artigo01 sociologia

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17 revista Liberdades. | Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – setembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 | Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

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  • 17revista Liberdades.

    | Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais | n 17 se tembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 |

    Expediente | Apresentao | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragus | Artigos | Audincia de custdia e a imediata apresentao do preso ao juiz: rumo evoluo civilizatria do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexes acerca do Direito de Execuo Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punio da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliao do conceito de autoria por meio da teoria do domnio por organizao | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tnia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simblico em face dos princpios da interveno mnima e da lesividade | Andr Lozano Andrade | Histria | Ressonncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | J, vtima de seu povo: o mecanismo vitimrio em A rota antiga dos homens perversos, de Ren Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida notcia de jornal. Anlises do contemporneo a partir do filme O outro lado da rua | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preo? | Yuri Felix | David Leal da Silva

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS2Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    expediente sumrio apresentao entrevista artigos histria resenha de livroresenhas de

    filmes

    EexpedienteDiretoria da Gesto 2013/2014

    Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    Diretoria Executiva

    Presidente:Maringela Gama de Magalhes Gomes

    1 Vice-Presidente:Helena Lobo da Costa

    2 Vice-Presidente:Cristiano Avila Maronna

    1 Secretria:Heloisa Estellita

    2 Secretrio:Pedro Luiz Bueno de Andrade

    Suplente:Fernando da Nobrega Cunha

    1 Tesoureiro:Fbio Tofic Simantob

    2 Tesoureiro:Andre Pires de Andrade Kehdi

    Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:Eleonora Rangel Nacif

    Conselho Consultivo

    Ana Lcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo MalanGustavo Henrique Righi Ivahy Badar Marta Saad

    Ouvidor

    Paulo Srgio de Oliveira

    Suplentes da Diretoria Executiva

    tila Pimenta Coelho Machado Ceclia de Souza Santos Danyelle da Silva Galvo Fernando da Nobrega CunhaLeopoldo Stefanno G. L. Louveira Matheus Silveira PupoRenato Stanziola Vieira

    Assessor da Presidncia

    Rafael Lira

    Colgio de Antigos Presidentes e Diretores

    Presidente: Marta Saad

    Membros: Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico MaasLuiz Flvio GomesMarco Antonio R. NahumMaurcio Zanoide de Moraes Roberto PodvalSrgio Mazina Martins Srgio Salomo Shecaira

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS3Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    Coordenadores-Chefes dos Departamentos

    Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. BecharaBoletim: Rogrio FernandoTaffarelloComunicao e Marketing: Cristiano Avila MaronnaConvnios: Jos Carlos Abissamra FilhoCursos: Paula Lima Hyppolito OliveiraEstudos e Projetos Legislativos: Leandro SarcedoIniciao Cientfica: Bruno Salles Pereira RibeiroMesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina DAngeloMonografias: Fernanda Regina VilaresNcleo de Pesquisas: Bruna AngottiRelaes Internacionais: Marina Pinho Coelho ArajoRevista Brasileira de Cincias Criminais: Heloisa EstellitaRevista Liberdades: Alexis Couto de Brito

    Presidentes dos Grupos de Trabalho

    Amicus Curiae: Thiago BottinoCdigo Penal: Renato de Mello Jorge Silveira CooperaoJurdica Internacional: Antenor Madruga Direito Penal Econmico: Pierpaolo Cruz BottiniEstudo sobre o Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de AndradeJustia e Segurana: Alessandra TeixeiraPoltica Nacional de Drogas: Srgio Salomo ShecairaSistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda

    Presidentes das Comisses Organizadoras

    18 Concurso de Monografias de Cincias Criminais: Fernanda Regina Vilares20 Seminrio Internacional: Srgio Salomo Shecaira

    Comisso Especial IBCCRIM Coimbra

    Presidente:Ana Lcia Menezes VieiraSecretrio-geral:Rafael Lira

    Coordenador-chefe da Revista Liberdades

    Alexis Couto de Brito

    Coordenadores-adjuntos:Bruno Salles Pereira RibeiroFbio LoboscoHumberto Barrionuevo Fabretti Joo Paulo Orsini Martinelli

    Roberto Luiz Corcioli Filho

    Conselho Editorial: Alexis Couto de BritoCleunice Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes

    revista Liberdades.Fbio LoboscoGiovani Agostini SaavedraHumberto Barrionuevo FabrettiJos Danilo Tavares LobatoJoo Paulo Orsini Martinelli Joo Paulo SangionLuciano Anderson de Souza Paulo Csar Busato

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  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS4Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    expediente sumrio apresentao entrevista artigos histria resenha de livroresenhas de

    filmes

    Eexpediente ........................................................................................................................2

    Apresentao ...................................................................................................................6

    Entrevista

    Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragus ....................................................................................8

    Artigos

    Audincia de custdia e a imediata apresentao do preso ao juiz: rumo evoluo civilizatria do processo penal ................................................................................11

    Aury Lopes Jr. e Caio Paiva

    Reflexes acerca do Direito de Execuo Penal .................................................................................24

    Felipe Lima de Almeida

    Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punio da Lei 11.340/2006 .........50

    Mayara de Souza Gomes

    A ampliao do conceito de autoria por meio da teoria do domnio por organizao .................69

    Joyce Keli do Nascimento Silva

    Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? ..............................................................................85Tnia Konvalina-Simas

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS5Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    expediente sumrio apresentao entrevista artigos histria resenha de livroresenhas de

    filmes

    Os problemas do Direito Penal simblico em face dos princpios da interveno mnima e da lesividade ....................................................................................................99

    Andr Lozano Andrade

    Histria

    Ressonncias do discurso de Dorado Montero no direito penal brasileiro ........................................118

    Renato Watanabe de Morais

    Resenha de Livro

    J, vtima de seu povo: o mecanismo vitimrio em A rota antiga dos homens perversos, de Ren Girard .....................................................................................................141

    Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa

    Resenhas de Filmes

    A vida notcia de jornal. Anlises do contemporneo a partir do filme O outro lado da rua .....149

    Laila Maria Domith Vicente

    Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preo? ...................................................................158Yuri Felix e David Leal da Silva

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS6Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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    ApresentaoMais uma edio da Liberdades, e mais uma vez, trabalhos notveis.

    Iniciamos com a entrevista do professor Ramn Ragus realizada pelo professor Spencer Toth Sydow, e faz consideraes sobre a teoria da cegueira deliberada.

    Nos artigos cientficos, variadas reflexes.

    No campo processual, Aury Lopes Jr. e Caio Paiva abordam o projeto de lei 554/11 e as vantagens da implementao, no Brasil, da audincia de custdia e imediata apresentao do preso ao juiz.

    Em uma abordagem histrica da execuo penal na legislao brasileira, Felipe Lima de Almeida disserta sobre a natureza jurdica da execuo penal e as finalidades que pretende alcanar.

    Passando ao direito material, sobre a tenso que existe entre a violncia domestica contra a mulher e a poltica criminal de ultima ratio, Mayara de Souza Gomes analisa a dicotomia sugerindo uma soluo que possa atender aos anseios sociais e sistmico-penais.

    Joyce Keli do Nascimento Silva parte da ao comunicativa de Habermas para analisar autoria mediata e o domnio do fato em aparatos organizados de poder.

    Mudando da dogmtica para a criminologia, a abordagem de Tnia Konvalina-Simas sobre a importncia da profisso de criminologista no cenrio jurdico-penal portugus oferece um entendimento acerca de uma melhor operacionalizao da criminologia e sua capacidade de rendimento para os procedimentos penais

    Andr Lozano Andrade tambm navega pela criminologia e pela poltica criminal ao discorrer sobre o direito penal simblico e a interveno mnima e como tais conceitos podem ser sentidos e absorvidos pelo contexto social.

    A abordagem histrica nos trazida por Renato Watanabe de Morais. O sempre atual e discutido Dorado Montero e seu correcionalismo so revisitados em busca de uma aplicao prtica no campo da poltica de drogas.

    Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa nos trazem a resenha do livro A rota antiga dos homens perversos, do sempre crtico Ren Girard, que apesar de sua formao essencialmente religiosa nos traz observaes muito interessantes sobre o ser humano e seus desejo de vingana.

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS7Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

    Por fim, Laila Maria Domith Vicente, Yuri Felix e David Leal da Silva nos trazem duas resenhas de filmes absolutamente recomendveis. O outro lado da Rua interpreta a forma de ser e estar no mundo, e Match Point tem como tema de reflexo a competitividade, acelerao e a busca do sucesso no mundo moderno.

    Como se v, mais uma interessante edio, elaborada com a ajuda dos colaboradores, que continuam apostando e prestigiando a nossa publicao.

    A todos, uma boa leitura.

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  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS11Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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    Audincia de custdia e a imediata apresentao do preso ao juiz: rumo evoluo civilizatria do processo penal

    Aury Lopes Jr.Doutor em Direito Processual Penal.Professor do Programa de Ps-Graduao Mestrado e Doutorado em Cincias Criminais da PUC-RS.Advogado.

    Caio PaivaEspecialista em Cincias Criminais.Fundador do Curso CEI Crculo de Estudos pela Internet e editor do site www.oprocesso.com.Defensor Pblico Federal.

    Sumrio: 1. A priso no (con)texto legislativo e judicial brasileiro; 2. Processo penal e direitos humanos; 2. Audincia de custdia: previso normativa, vantagens, definio de suas caractersticas, insuficincia do regramento jurdico interno, implementao no Brasil e breves consideraes sobre o PLS 554/2011; 4. Concluso.

    Resumo: O encarceramento em massa no Brasil tem crescido assustadoramente nos ltimos anos. A Lei 12403/2011 no produziu o seu efeito esperado, qual seja, o de fazer da priso preventiva a ultima ratio das medidas cautelares pessoais. A denominada audincia de custdia, que possibilita o encontro imediato do preso com o juiz, pode significar um passo decisivo rumo evoluo civilizatria do processo penal, resgatando-se o carter humanitrio e at antropolgico da jurisdio. No presente artigo so analisados todos os aspectos deste direito previsto em diversos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, concluindo-se, ao final, pela insuficincia do regramento jurdico interno e pela necessidade de se viabilizar, judicialmente e no plano legislativo, a implementao da audincia de custdia no Brasil.

    Palavras-chave: Priso. Audincia de Custdia. Conveno Americana de Direitos Humanos. Processo Penal.

    1. A priso no (con)texto legislativo e judicial brasileiro

    No teatro penal brasileiro, a priso desponta, indiscutivelmente, como a protagonista, a atriz principal, que estreia um monlogo sem fim. No divide o palco; no mximo, permite que algumas cautelares diversas dela faam uma figurao,

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS12Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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    um jogo de cena, e isso apenas para manter tudo como sempre esteve... Dados da ltima contabilidade do Conselho Nacional de Justia, de junho/2014: 711.463 presos, a terceira maior populao carcerria do mundo.1

    Se por um lado, Foucault tem razo quando admite que Conhecem-se todos os inconvenientes da priso, e sabe-se que perigosa, quando no intil. E, entretanto no vemos o que pr em seu lugar. Ela a detestvel soluo, de que no se pode abrir mo,2 por outro, preocupante o diagnstico feito por Ferrajoli de que a priso tem se convertido no sinal mais evidente da crise da jurisdicionalidade, da tendncia de administrativizao do processo penal e, sobretudo, da sua degenerao num mecanismo diretamente punitivo.3

    Perdemos o pudor. Chegamos, conforme anota Carnelutti, a um crculo vicioso, j que necessrio julgar para castigar, mas tambm castigar para julgar.4 Entre mortos e feridos, vamos nos assumindo como o pas que transita artificialmente entre rebelies e mutires, numa autofagia que faz, ento, que o sistema alimente-se de si mesmo. Eis-nos, portanto, adverte Vera Regina P. de Andrade,

    na periferia da modernidade, contando as vtimas do campo de (des)concentrao difuso e perptuo em que nos tornamos; campo que, apesar de emitir sintomas mrbidos do prprio carrasco (policiais que matam, prises que matam, denncias que matam, sentenas que matam direta ou indiretamente), aprendeu a trivializar a vida e a morte, ambas descartveis sob a produo em srie do capitalismo de barbrie, ao amparo diuturno do irresponsvel espetculo miditico, da omisso do Estado e das instituies de controle.5

    O (con)texto da priso, no Brasil, to preocupante que sequer se registrou uma mudana efetiva na prtica judicial aps o advento da Lei 12.403/2011, (dita) responsvel por colocar, no plano legislativo, a priso como a ultima ratio das medidas cautelares. O art. 310 do CPP, alterado pelo diploma normativo citado, dispe que o juiz, ao receber o auto de priso em flagrante, dever fundamentadamente (i) relaxar a priso, (ii) convert-la em preventiva quando presentes os requisitos do art. 312 e se revelarem inadequadas ou insuficientes as demais medidas cautelares no constritivas de liberdade, ou (iii) conceder liberdade provisria. E o que verificamos na prtica? Simples: que a lgica judicial permanece vinculada ao protagonismo da priso, que a homologao do flagrante, longe de ser a exceo, figura como regra no

    1 Disponvel em: .2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2011, p. 218.3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razn Teora del garantismo penal. Traduccin de Perfecto Andrs Ibez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Boyn Mahino,

    Juan Terradillos Bosoca e Rocio Cantarero Bondrs. Madrid: Trotta, 2001. p. 770.4 CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el proceso penal. Traduccin de Santiago Sents Melendo. Buenos Aires: Librera el Foro, 1994. p. 36.5 ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mos da criminologia O controle penal para alm da (des)iluso. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 32.

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS13Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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    sistema processual penal brasileiro. Prova disso que no houve a to esperada reduo do nmero de presos cautelares aps a reforma de 2011.

    A preocupao se agrava quando, alm da banalizao da priso cautelar, ainda assistimos a uma reduo da potencialidade do principal instrumento apto a question-la, qual seja, o habeas corpus, que de remdio constitucional passou, recentemente, a causar uma alergia nos Tribunais Superiores, notadamente aps a jurisprudncia defensiva de no se admitir o seu uso quando substitutivo de espcies recursais cujo procedimento vagaroso e burocrtico se distancia da urgncia que reclama o pleito de liberdade. Ou seja, como se j no bastasse prender em excesso, ainda se retira da defesa a sua melhor ttica de participar do jogo processual.6

    Se o cenrio no favorece o otimismo, que se confundiria, talvez, com certa ingenuidade, no podemos, jamais, nos desincumbir da necessidade de sempre resistir. Zaffaroni nos lembra de que O estado de polcia no est morto num estado de direito real, seno encapsulado em seu interior e na medida em que este se debilita o perfura e pode faz-lo estalar.7 O expediente do qual nos propomos a tratar adiante, a audincia de custdia, cumpre, entre outras, essa finalidade: a de conter o Estado de Polcia, de limitar o poder punitivo.

    2. Processo penal e direitos humanos

    O processo penal certamente o ramo do Direito que mais sofre (ou melhor, que mais se beneficia) da normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, no sendo exagero se falar, atualmente, que para se alcanar um devido processo, esse deve ser, no apenas legal e constitucional, mas tambm convencional. Nesse sentido, Nereu Giacomolli tem absoluta razo quando afirma que: Uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalizao dos direitos humanos, um dos pilares a sustentar o processo penal humanitrio. A partir da, faz-se

    6 Sobre processo penal e teoria dos jogos, cf. ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 157: A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de presso cooperativa e/ou tticas de aniquilamento (simblico e real, dadas as condies em que so executadas). A mais violenta a priso cautelar. A priso do indiciado/acusado modalidade de guerra com ttica de aniquilao, uma vez que os movimentos da defesa estaro vinculados soltura.

    7 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura bsica del derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2009. p. 30-31. No mesmo sentido, Karam: Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforando o Estado policial sobrevivente em seu interior, no sendo institudos espaos de suspenso de direitos fundamentais e de suas garantias, vai sendo afastada sua universalidade, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido atravs do sistema penal, a diferena entre democracias e Estados totalitrios se torne sempre mais tnue (KARAM, Maria Lcia. O Direito Defesa e a Paridade de Armas. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constitucional da Repblica de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 398-399).

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE CINCIAS CRIMINAIS14Revista Liberdades - n 17 setembro/dezembro de 2014 I Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais

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    mister uma nova metodologia hermenutica (tambm analtica e lingustica), valorativa, comprometida de forma tico-poltica, dos sujeitos do processo e voltada ao plano internacional de proteo dos direitos humanos. Por isso, h que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitrio, ou seja, o do devido processo.8

    Parece-nos possvel identificar, na superao deste enclausuramento normativo que somente tem olhar para o ordenamento jurdico interno, o surgimento, talvez, de uma nova poltica-criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder punitivo a partir do dilogo (inclusivo) dos direitos humanos. imprescindvel que exista uma mudana cultural, no s para que a Constituio efetivamente constitua-a-ao, mas tambm para que se ordinarize o controle judicial de convencionalidade.

    Esse controle pode se dar pela via difusa ou concentrada, merecendo especial ateno a via difusa, pois exigvel de qualquer juiz ou tribunal. No RE 466.343/SP e no HC 87.585/TO, o STF firmou posio (por maioria apertada, registre-se) de que a CADH tem valor supralegal, ou seja, est situada acima das leis ordinrias, mas abaixo da Constituio. Valerio Mazzuoli9 (e o Min. Celso de Mello no STF) faz uma verdadeira tese para sustentar que todos os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil tm ndole e nvel constitucional (por fora do art. 5, 2 da CF). Inobstante a divergncia, ambas as posies coincidem em um ponto crucial: a CADH um paradigma de controle da produo e aplicao normativa domstica.

    Incumbe aos juzes e tribunais hoje, ao aplicar o Cdigo de Processo Penal, mais do que buscar a conformidade constitucional, observar tambm a convencionalidade da lei aplicada, ou seja, se ela est em conformidade com a Conveno Americana de Direitos Humanos. A Constituio no mais o nico referencial de controle das leis ordinrias.

    No que tange audincia de custdia, o controle da convencionalidade da maior relevncia, na medida em que o art. 7.5 determina: Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razovel ou de ser posta em liberdade, sem prejuzo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juzo.

    Diante disso, inafastvel o controle de convencionalidade, para que o sistema jurdico interno se adeque e cumpra com a garantia nos limites definido na CADH, como veremos a continuao.

    8 GIACOMOLLI, Nereu Jos. O devido processo penal Abordagem conforme a Constituio Federal e o Pacto de So Jos da Costa Rica. So Paulo: Atlas, 2014. p. 12.

    9 MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed. So Paulo: RT, 2013.

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    3. Audincia de custdia: previso normativa, vantagens, definio de suas caractersticas, insuficincia do regramento jurdico interno, implementao no Brasil e breves consideraes sobre o PLS 554/2011

    3.1. Previso Normativa

    Como visto, dispe o art. 7.5 da Conveno Americana de Direitos Humanos (tambm denominada de Pacto de So Jos da Costa Rica), que Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais (...). No mesmo sentido, assegura o art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, que Qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infrao penal dever ser conduzida, sem demora, presena do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funes judiciais (...).10

    O Brasil aderiu Conveno Americana em 1992, tendo-a promulgada, aqui, pelo Dec. 678, em 6 de novembro daquele ano. Igualmente, nosso pas, aps ter aderido aos termos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (PIDCP) naquele mesmo ano, o promulgou pelo Dec. 592. Passados, ento, mais de vinte anos da incorporao ao ordenamento jurdico interno dos citados diplomas internacionais de direitos humanos, que gozam de carter supralegal, por que a relutncia em cumpri-los?

    3.2. Vantagens

    A denominada audincia de custdia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidado preso ser conduzido, sem demora, presena de um juiz para que, nesta ocasio, (i) se faa cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, tambm, (ii) para que se promova um espao democrtico de discusso acerca da legalidade e da necessidade da priso. O

    10 Alm de contar com previso normativa nos sistemas global e interamericano de direitos humanos, a audincia de custdia tambm est assegurada na Conveno Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 5., 3, dispe que Qualquer pessoa presa ou detida nas condies previstas no 1, alnea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funes judiciais (...).

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    expediente sumrio apresentao entrevista artigos histria resenha do livroresenhas de

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    expediente, anota Carlos Weis, aumenta o poder e a responsabilidade dos juzes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justia criminal passem a trabalhar em padres de legalidade e eficincia.11

    A mudana cultural necessria para atender s exigncias dos arts. 7.5 e 8.1 da Conveno Americana de Direitos Humanos, mas tambm para atender, por via reflexa, a garantia do direito de ser julgado em um prazo razovel (art. 5., LXXVIII da CF), a garantia da defesa pessoal e tcnica (art. 5., LV da CF) e tambm do prprio contraditrio recentemente inserido no mbito das medidas cautelares pessoais pelo art. 282, 3., do CPP. Em relao a essa ltima garantia contraditrio de extrema utilidade no momento em que o juiz, tendo contato direto com o detido, poder decidir qual a medida cautelar diversa mais adequada (art. 319) para atender a necessidade processual.

    So inmeras as vantagens da implementao da audincia de custdia no Brasil, a comear pela mais bsica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.12 Confia-se, tambm, audincia de custdia a importante misso de reduzir o encarceramento em massa no pas, porquanto atravs dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a fronteira do papel estabelecida no art. 306, 1, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de priso em flagrante para o magistrado.

    Em diversos precedentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem ressaltado que o controle judicial imediato assegurado pela audincia de custdia consiste num meio idneo para evitar prises arbitrrias e ilegais, j que no Estado de Direito corresponde ao julgador garantir os direitos do detido, autorizar a adoo de medidas cautelares ou de coero quando seja estritamente necessrio, e procurar, em geral, que se trate o cidado da maneira coerente com a presuno de inocncia.13 J decidiu a Corte IDH, tambm, que a audincia de custdia igualmente essencial para a proteo do direito liberdade pessoal e para outorgar proteo a outros direitos, como a vida e a integridade fsica,14 advertindo estar em jogo, ainda, tanto a liberdade fsica dos indivduos como a segurana pessoal, num contexto em que

    11 WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justia Criminal, Edio 05, ano 03/2013. Disponvel em: .

    12 Cf., sobre esse ponto, CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessria (e lenta) adaptao do processo penal brasileiro conveno americana de direitos do homem. IBCCrim, Boletim n. 254 jan. 2014.

    13 Corte IDH. Caso Acosta Caldern Vs. Equador. Sentena de 24.06.2005. No mesmo sentido, cf. tambm Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentena de 30.10.2008; Caso Bulacio Vs. Argentina. Sentena de 18.09.2003; Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. Mxico. Sentena de 26.11.2010; Caso Chaparro lvarez e Lapo iguez Vs. Equador. Sentena de 21.11.2007; Caso Fleury e outros Vs. Haiti. Sentena de 23.11.2011; Caso Garca Asto e Ramrez Rojas Vs. Per. Sentena de 25.11.2005.

    14 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentena de 22.11.2005.

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    a ausncia de garantias pode resultar na subvero da regra de direito e na privao aos detidos das formas mnimas de proteo legal.15

    3.3. Definio de suas caractersticas

    Ao menos duas expresses constantes na redao dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que asseguram a audincia de custdia despertam alguma margem para interpretao.

    Referimo-nos, primeiro e rapidamente, expresso juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais, encontrada na CADH, no PIDCP e tambm na CEDH. A esse respeito, importa dizer que a Corte IDH interpreta aquela expresso em conjunto com a noo de juiz ou Tribunal prevista no art. 8.1 da CADH, que estabelece que Toda pessoa ter o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razovel, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apurao de qualquer acusao penal formulada contra ela, ou na determinao de seus direitos e obrigaes de carter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

    Desta forma, a Corte IDH j recusou considerar como juiz ou outra autoridade por lei a exercer funes judicias (a) a jurisdio militar,16 (b) o Agente Fiscal do Ministrio Pblico,17 e (c) o Fiscal Naval.18 Fcil perceber, portanto, a partir da jurisprudncia da Corte IDH, que juiz ou autoridade habilitada a exercer funo judicial somente pode ser o funcionrio pblico incumbido da jurisdio, que, na grande maioria dos pases (a exemplo do Brasil), o magistrado.19

    A segunda expresso a que nos referimos, agora, sem demora, encontrada tanto na CADH quanto no PIDCP. No sistema regional europeu, a garantia ainda mais ampla, j que a CEDH exige que o cidado preso seja apresentado imediatamente ao juiz. Pois bem. O que deve significar a expresso sem demora? Falemos, primeiro, do que no corresponde a tal garantia. A Corte IDH j reconheceu a violao do direito audincia de custdia pela ofensa celeridade

    15 Corte IDH. Caso de Los Nios de la Calle (Villagrn Morales e outros) Vs. Guatemala. Sentena de 19.11.1999.16 Corte IDH. Caso Cantoral Benavides Vs. Per. Sentena de 18.08.2000.17 Corte IDH. Caso Acosta Caldern Vs. Equador. Sentena de 24.06.2005.18 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentena de 22.11.2005.19 Registra-se, aqui, uma curiosidade: em pleitos individuais ajuizados na Justia Federal de Manaus/AM, nos quais se requereu a efetivao do direito

    audincia de custdia, um dos motivos que tm ensejado o indeferimento o de que o Defensor Pblico (assim como a autoridade policial Delegado) exerceria, no Brasil, funo judicial. De to descabido, o argumento sequer merece consideraes. Tivesse o Defensor (ou o Advogado) funo judicial, poderia ele prprio, ento, cessar a ilegalidade/desnecessidade da priso, colocando o cidado em liberdade?

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    exigida pela CADH em casos de conduo do preso presena do juiz (a) quase uma semana aps a priso,20 (b) quase cinco dias aps a priso,21 (c) aproximadamente trinta e seis dias aps a priso,22 (d) quatro dias aps a priso,23 entre outros precedentes nos quais restou potencializada a expresso sem demora para garantir um controle judicial imediato acerca da priso. No que se refere ao Brasil, conforme se ver adiante, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei que, dando cumpridomento CADH, estabelece o prazo mximo de vinte e quatro horas para ser feita a conduo do preso ao juiz.

    3.4. Insuficincia do regramento jurdico interno

    O Cdigo de Processo Penal brasileiro (art. 306, caput e pargrafo nico, do CPP), ao prever que o juiz dever ser imediatamente comunicado da priso de qualquer pessoa, assim como a ele dever ser remetido, no prazo de vinte e quatro horas, o auto da priso em flagrante, satisfaz a contento a exigncia da audincia de custdia? A resposta evidentemente negativa, sendo bastante clara a insuficincia do regramento jurdico interno. A esse propsito, a Corte IDH tem decidido reiteradamente que o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa est detida no satisfaz essa garantia, j que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declarao ante ao juiz ou autoridade competente,24 e ainda, que o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicaes que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberao ou a manuteno da privao da liberdade, concluindo que o contrrio equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Conveno.25 Logo, conclui-se que a norma contida no Cdigo de Processo Penal no passa por um controle de convencionalidade quando comparada com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos a que o Brasil voluntariamente aderiu, especialmente a CADH, cujos preceitos, se violados, podem ensejar a responsabilizao do pas perante a Corte IDH.

    20 Corte IDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentena de 30.10.2008.21 Corte IDH. Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. Mxico. Sentena de 26.11.2010.22 Corte IDH. Caso Castillo Petruzi e outros Vs. Per. Sentena de 30.05.1999.23 Corte IDH. Caso Chaparro lvarez e Lapo niguez Vs. Equador. Sentena de 21.11.2007.24 Corte IDH. Caso Acosta Caldern Vs. Equador. Sentena de 24.06.2005.25 Corte IDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentena de 30.10.2008. No mesmo sentido, cf. Caso Chaparro lvarez e Lapo iguez Vs. Equador. Sentena de

    21.11.2007; Caso Garcia Asto e Ramrez Rojas Vs. Per. Sentena de 25.11.2005; Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentena de 22.11.2005.

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    3.5. Implementao no Brasil

    Outro argumento recorrente para no se viabilizar, na prtica, o direito audincia de custdia o de que tal expediente requer uma alterao/inovao legislativa, no sendo franqueado ao Poder Judicirio substituir o legislador para a implementao daquele direito no Brasil. Este argumento, no entanto, claramente equivocado, seja porque as normas de Tratados de Direitos Humanos so de eficcia plena e imediata, seja porque, igualmente, leciona Mazzuoli, No somente por disposies legislativas podem os direitos previstos na Conveno Americana restar protegidos, seno tambm por medidas de outra natureza. Tal significa que o propsito da Conveno a proteo da pessoa, no importando se por lei ou por outra medida estatal qualquer (v.g., um ato do Poder Executivo ou do Judicirio etc.). Os Estados tm o dever de tomar todas as medidas necessrias a fim de evitar que um direito no seja eficazmente protegido.26

    Assim, de se ter por improcedente tal argumento, possuindo a CADH densidade (e potencialidade) normativa o bastante para influir na prtica judicial do ordenamento jurdico interno, afastando-nos, com essa orientao, do positivismo nacionalista que predominou do sculo XIX at meados do sculo XX, quando se exigia que os direitos previstos em Tratados Internacionais (tambm) fossem prescritos em normas internas para serem pleiteados em face do Estado ou de particulares.27

    3.6. Breves consideraes sobre o PLS 554/2011

    Embora os Tratados Internacionais de Direitos Humanos que asseguram o direito audincia de custdia no necessitem, conforme visto no tpico anterior, de implemento normativo interno algum, no se pode olvidar que a edio de lei exerce um papel fundamental na promoo do direito, principalmente no caso da audincia de custdia, cuja previso normativa naqueles Tratados deixa em aberto (cf. o tpico 3.3) a definio de algumas caractersticas do instituto. Justamente por isso, alis, que vemos como uma medida absolutamente salutar o PLS 554/2011, de autoria do Senador Antonio Carlos Valadares, com o seguinte teor:

    Art. 306. (...)

    26 GOMES, Luiz Flvio; MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. Comentrios Conveno Americana de Direitos Humanos. 4. ed. So Paulo: RT, 2013, p. 33.27 Cf. RAMOS, Andr de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. So Paulo: Saraiva, 2014. p. 83: O risco aos direitos humanos gerado pela adoo do

    positivismo nacionalista visvel, no caso de as normas locais (inclusive as constitucionais) no protegerem ou reconhecerem determinado direito ou categoria de direitos humanos. O exemplo nazista mostra a insuficincia da fundamentao positivista nacionalista dos direitos humanos.

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    1. No prazo mximo de vinte e quatro horas depois da priso, o preso dever ser conduzido presena do juiz competente, ocasio em que dever ser apresentado o auto de priso em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado no informe o nome de seu advogado, cpia integral para a Defensoria Pblica.

    O referido PLS veio a receber, depois, quando em trmite na Comisso de Direitos Humanos e Participao Legislativa (CDH), uma emenda substitutiva apresentada pelo Senador Joo Capiberibe, a qual, devidamente aprovada por unanimidade naquela Comisso, alterou o projeto originrio, conferindo-lhe a seguinte redao:

    Art. 306. (...)

    1. No prazo mximo de vinte e quatro horas aps a priso em flagrante, o preso ser conduzido presena do juiz para ser ouvido, com vistas s medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se esto sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabveis para preserv-los e para apurar eventual violao.

    2. A oitiva a que se refere o 1. no poder ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versar, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da priso; a preveno da ocorrncia de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.

    3. A apresentao do preso em juzo dever ser acompanhada do auto de priso em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da priso, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.

    4. A oitiva do preso em juzo sempre se dar na presena de seu advogado, ou, se no o tiver ou no o indicar, na de Defensor Pblico, e na do membro do Ministrio Pblico, que podero inquirir o preso sobre os temas previstos no 2., bem como se manifestar previamente deciso judicial de que trata o art. 310 deste Cdigo.

    Perceba-se que o referido Projeto de Lei do Senado, na redao que lhe foi dada pelo substitutivo do Senador Joo Capiberibe, contm uma normativa praticamente completa sobre a audincia de custdia, sequer abrindo margem para interpretaes sobre a autoridade a quem o preso deve ser conduzido (o juiz) ou a respeito do prazo em que tal medida deve ser viabilizada (em at vinte e quatro horas da priso), alm de cercar a realizao da audincia de custdia das garantias do contraditrio e da ampla defesa quando prev a imprescindibilidade da defesa tcnica no ato.

    O PLS 554/2011 passou e foi aprovado pela Comisso de Assuntos Econmicos (CAE) em 26.11.2013, chegando, depois, na Comisso de Constituio, Justia e Cidadania (CCJ), onde foi distribudo para o Senador Humberto Costa (relator) e recebeu, em 25.06.2014, uma emenda substitutiva de autoria do Senador Francisco Dornelles, que se limita

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    basicamente a alterar a verso original do PLS para nele estabelecer que a audincia de custdia tambm poder ser feita mediante o sistema de videoconferncia. Eis a redao deste substitutivo:

    Art. 306. (...)

    1. No prazo mximo de vinte e quatro horas depois da priso, o preso dever ser conduzido presena do juiz competente, pessoalmente ou pelo sistema de videoconferncia, ocasio em que dever ser apresentado o auto de priso em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado no informe o nome de seu advogado, cpia integral para a Defensoria Pblica.

    O Senador Francisco Dornelles apresenta como justificativa principal para esta alterao o fato de que A diminuio da circulao de presos pelas ruas da cidade e nas dependncias do Poder Judicirio representa uma vitria das autoridades responsveis pela segurana pblica, e conclui afirmando que O deslocamento de presos coloca em risco a segurana pblica, a segurana institucional e, inclusive, a segurana do preso.

    O maior inconveninente desse substitutivo que ele mata o carter antropolgico, humanitrio at, da audincia de custdia. O contato pessoal do preso com o juiz um ato da maior importncia para ambos, especialmente para quem est sofrendo a mais grave das manifestaes de poder do Estado. No se desconhece que vivemos numa sociedade em que a velocidade, inegavelmente, um valor. O ritmo social cada vez mais acelerado impe uma nova dinmica na vida de todos ns. Que dizer ento da velocidade da informao? Agora passada em tempo real, via internet, sepultando o espao temporal entre o fato e a notcia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser presenciado virtualmente em tempo real. A acelerao do tempo nos leva prximo ao instantneo, com profundas consequncias na questo tempo/velocidade. Tambm encurta ou mesmo elimina distncias. Por isso, Virilio28 terico da Dromologia (do grego dromos = velocidade) afirma que a velocidade a alavanca do mundo moderno. Nesse cenrio, surge o interrogatrio on-line ou videoconferncia, que, alm de agregar velocidade e imagem, reduz custo e permite um (ainda) maior afastamento dos atores envolvidos no ritual judicirio, especialmente do juiz. Mas, sem dvida, os principais argumentos so de natureza econmica e de assepsia.

    A reduo de custos fruto de uma prevalncia da ideologia economicista, em que o Estado vai se afastando de suas funes a ponto de sequer o juiz estar na audincia. Sob o pretexto dos altos custos e riscos (como se no vivssemos numa sociedade de risco...) gerados pelo deslocamento de presos perigosos, o que esto fazendo retirar a garantia da jurisdio, a garantia de ter um juiz, contribuindo ainda mais para que eles assumam uma postura burocrtica e de assepsia da jurisdio. Matam o carter antropolgico do prprio ritual judicirio, assegurando que o juiz sequer olhe para

    28 Sobre o tema: VIRILIO, Paul. A inrcia polar. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1993.

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    o ru, sequer sinta o cheiro daquele que est prendendo. elementar que a distncia da virtualidade contribui para uma absurda desumanizao do processo penal. inegvel que os nveis de indiferena (e at crueldade) em relao ao outro aumentam muito quando existe uma distncia fsica (virtualidade) entre os atores do ritual judicirio. muito mais fcil produzir sofrimento sem qualquer culpa quando estamos numa dimenso virtual (at porque, se virtual, no real...).

    Acrescentando-se a distncia e a assepsia geradas pela virtualidade, corremos o risco de ver a indiferena e a insensibilidade do julgador elevadas a nveis insuportveis. Estaremos potencializando o refgio na generalidade da funo e o completo afastamento do eu, impedindo o avano e evoluo que se deseja com a mudana legislativa. A Conveno Americana de Direitos Humanos assegura, em seu art. 7.5, que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz. Por mais esforo que se faa, existe um limite semntico que no permite uma interpretao tal que equipare presena com ausncia...

    O direito de defesa e do contraditrio (incluindo o direito a audincia) so direitos fundamentais, cujo nvel de observncia reflete o avano de um povo. Isso se mede no pelo arsenal tecnolgico utilizado, mas sim pelo nvel de respeito ao valor dignidade humana. E o nvel de civilidade alcanado exige que o processo penal seja um instrumento legitimante do poder, dotado de garantias mnimas, necessrio para chegar-se pena. Nessa linha, um equvoco suprimir-se o direito de ser ouvido por um juiz, substituindo-o por um monitor de computador. Novamente iremos mudar para que tudo continue como sempre esteve...

    4. Concluso

    Finalizamos esse ensaio registrando a importante atuao da Defensoria Pblica da Unio em prol da implementao da audincia de custdia no Brasil, tendo a instituio j obtido precedentes favorveis na Justia Federal de Cascavel/PR29 e na 2. Turma Especializada do TRF-2. Reg.,30 merecendo destaque, ainda, a ao civil pblica ajuizada pela DPU/Manaus j noticiada no Conjur.31 Que os precedentes se multipliquem, que o Judicirio perca de vez o receio de se

    29 Cf. Justia determina que preso deve ser levado sem demora presena de juiz: Disponvel em: .

    30 Cf. Audincia de custdia contribui para revogao de priso preventiva: Disponvel em: .

    31 Cf. DPU ajuza ao cobrando implantao da audincia de custdia no Brasil: Disponvel em: . A ntegra da ACP foi disponibilizada no blog do juiz Marcelo Semer: Disponvel em: .

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    encontrar com o jurisdicionado preso e, principalmente, que a audincia de custdia seja enfim, implementada no Brasil com a aprovao do PLS 554/2011 (sem a faculdade da realizao por videoconferncia) e tambm com a mudana de mentalidade judicial rumo humanizao do processo penal.

    Alm da importncia de alinharmos o sistema jurdico interno Conveno Americana de Direitos Humanos, crucial uma mudana de cultura, um resgate do carter humanitrio e antropolgico do processo penal e da prpria jurisdio.