etnociências: etnobiologia e etnoecologia

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Silvia Maria Guerra Molina Professor Associado Lab. Ecologia Evolutiva Humana Departamento de Genética - ESALQ-USP Etnociências: Etnobiologia e Etnoecologia

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Silvia Maria Guerra Molina Professor Associado

Lab. Ecologia Evolutiva Humana

Departamento de Genética - ESALQ-USP

Etnociências:

Etnobiologia e Etnoecologia

Etnobiologia : estudo do conhecimento e dos conceitos desenvolvidos por qualquer sociedade a respeito da biologia estudo do papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação do ser humano aos ambientes ênfase: nas categorias e conceitos cognitivos utilizados pelos povos em estudo prevê: inter-relação entre os universos natural, simbólico e social (abordagem interdisciplinar)

Etnobiologia

-----------------------------------------------------------------

investiga:

- conceitos e relações entre estes

- padrões de classificação e de nomenclatura

- tipologias e taxonomias, estabelecidas por grupos

(indígenas/ folk/populações tradicionais) dentro e entre as

categorias cognitivas o que permite identificar os princípios

subjacentes à cultura do povo e os elos que unem os

referidos conceitos

Os dados devem ser registrados na sua totalidade porque:

-podem gerar novas hipóteses a serem testadas

-se não podem ser analisados, devem ser arquivados

-algumas crenças podem vir a demonstrar seu papel de

mecanismos sociais para regular o consumo de alimentos ou

para a manutenção do equilíbrio ecológico, mesmo que

aparentemente ilógicas ou absurdas para a ciência ocidental

Elaboração de categorias que emergem dos discursos dos

entrevistados:

constitui um guia êmico ("visto de dentro") que permite

penetrar no âmago dos sistemas,

fornece um indício seguro de seu significado cultural

Não é um simples inventário de nomes nativos que validam

categorias ocidentais nas culturas indígenas

Nem todas as crenças e conhecimentos de fenômenos

naturais da cultura em estudo coincidem com a ciência

ocidental

A contradição e a anomalia são os princípios culturais básicos a serem investigados em maior extensão. Para a biologia: sem significado estatístico. Pesquisa de conceitos folk e sistemas de classificação fornece informações sobre:

- zoneamento ecológico

- distribuição de recursos naturais

- heterogeneidade biológica

- administração integrada dos reinos vegetal e animal

Além de uma metodologia a etnobiologia é uma filosofia

de trabalho que estabelece pontes de compreensão

cultural entre culturas distintas

pode orientar políticas ecológicas socialmente

responsáveis.

Principais categorias passíveis de pesquisa etnobiológica:

1. ETNOTAXONOMIA

2. ZONAS ECOLÓGICAS E UNIDADES DE RECURSOS

3.HETEROGENEIDADE BIOLÓGICA E MANEJO DE RECURSOS

1. ETNOTAXONOMIA:

Correlações entre crenças folk e classificação do

mundo natural como percebido por sociedades não

abrangidas pela civilização ocidental

Correspondências entre sistemas taxonômicos folk e

classificação científica de Lineu

(enraizada nas taxonomias de folk européias)

Alto grau de concordância com os conceitos

ocidentais de gênero e espécie

A abordagem utilizada é "utilitária" a qual facilita:

- a captação de dados minimiza a imposição de

paradigmas do modelo científico.

- a correlação de dados etnográficos (fenômenos sociais

observados) com dados etnobiológicos

Estudos etnotaxonômicos investigam a universalidade da

capacidade humana de classificação.

A abordagem mais comum é funcionalista, buscando-se

componentes adaptativos dos comportamentos sociais.

A abordagem simbólica ou ideacionista também vem

ganhando espaço.

Ambas são complementares nos estudos das etnociências.

O grau de diferenciação dentro de uma categoria cognitiva

folk indicador de significação cultural; guia êmico para

investigações posteriores

Categorias superordenadas com denominações específicas

(insetos sociais: abelhas, formigas, térmitas)

significado simbólico; destaque na mitologia e ritual

Ciência ocidental:

- generaliza sobre a ecologia de regiões em ecossistemas

tropicais

- ignora zonas ecológicas extremamente variadas -

obstáculo à compreensão

(ex. oposto: índios Kayapó)

Índios Kayapó:

SE da Amazônia Brasileira

(Sul do Pará e Norte Mato Grosso – Rio Xingu e seus

afluentes)

~ 4500 índios (7093 em 2003)

10357 (5296 H: 5061 M) - IBGE-2010

(13 milhões de ha de florestas e cerrado)

(~ Ceará, quase = Áustria)

maior que qualquer reserva biológica das Américas

8580 vivem dentro de terras indígenas (5520 >5 anos)

15 – 19 comunidades [IBGE-2010]

100-1000 habitantes

(m= 200-500; desde 60-900)

Índios Kayapó:

- Patrulham os limites de seu território.

- Têm consciência de que são dependentes da floresta e

do cerrado para sua sobrevivência e manutenção da

identidade cultural de seu povo.

Tal disposição leva a um reduzido impacto sobre os

ecossistemas onde vivem (mais que isso!)

A fisionomia da Floresta é distinta daquela típica da

Amazônia em seu núcleo; caracteriza a transição para as

savanas do Planalto Central.

A integridade ecológica da Terra Indígena Kayapó

contrasta com o cenário de devastação generalizada que

se observa fora de suas áreas em todo o cinturão seco da

Amazônia Ocidental.

Índios Kayapó:

- vêem o meio como sucessão de ecozonas associadas a plantas, animais, o solo (e os Kayapó), num sistema integrado de interações.

- escolhem os locais para suas aldeias em função da proximidade dessas ecozonas - em meio à máxima diversidade de espécies (garantindo alimentos nas diferentes estações do ano)

- têm conhecimento profundo sobre o comportamento animal e da associação de plantas a determinados tipos de solo

- índios e caboclos classificam seu ambiente ecológico por níveis verticais terrestre/arbóreo e aquático (microambientes):

- base da classificação: componente funcional - o locus de determinados recursos naturais

Índios Kayapó:

Há grande complexidade nas informações a serem obtidas de fontes indígenas e de folk sobre zonas ecológicas e a distribuição de recursos naturais:

2. ZONAS ECOLÓGICAS E UNIDADES DE RECURSOS Níveis Aquáticos:

A-1: Nível da superfície, de 0 a 1m abaixo do espelho d'água - insetos e peixes que se alimentam dos nutrientes desse nível (ex: cobra-d'água) A-2: Nível superior, de 1 a 4m abaixo da superfície - locus da maioria dos peixes e enguias A-3: Nível médio, de 4 a 10m abaixo da superfície - menos produtivo, abriga algumas espécies de peixes A-4: Nível inferior, de 10m ao leito do lago ou rio - menos produtivo de todos A-5: Leito ou fundo do rio ou lago - rico em peixes que se alimentam nele e várias espécies de arraia.

Níveis terrestre/arbóreo:

T-5: abaixo do nível da superfície do solo - maioria das tocas de animais e grandes raízes de tuberosas

T-4: nível do solo a 20cm abaixo da superfície - concentração de matéria orgânica e localização das comunidades vegetal/animal associadas à zona de raízes superficiais.

T-3: nível intermediário, de 1 a 10m acima do nível do solo - predomínio de capoeira ou "floresta aberta"; concentração de árvores de menor porte e arbustos que atraem pássaros e mamíferos - caça proveitosa

T-2: Cobertura média (7 a 15m acima do nível do solo) - ocorre na maioria das florestas maduras; hábitat principal de mamíferos arbóreos e grandes aves (araras, papagaios etc.)

T-1: cobertura ou dossel alto, mais de 15m acima do nível do solo; caracteriza a floresta de terra firme - hábitat de pássaros e mamíferos arbóreos difíceis de serem apresados em função da altura das árvores; exploração em função de produtos úteis como a castanha-do-pará

3. HETEROGENEIDADE BIOLÓGICA E MANEJO DE RECURSOS Povos indígenas: possuem grande conhecimento sobre a diversidade biológica e as potencialidades dela resultantes para a captação de recursos naturais.

3.1. Produtos de Coleta:

Obtenção de plantas silvestres, animais e produtos

animais e elementos inertes para alimentação, uso como

matérias-primas ou remédios

(cordame, cobertura de casas, óleos, ceras, combustível,

unguentos, ferramentas, ornamentos, perfumes, lenha,

pigmentos, tinturas, gomas, resinas e fibras, valor

medicinal)

Coleta de insetos - entomofagia e coleta de abelhas e

seus produtos (resina, cera, mel, pólen)

Estudos sobre os conhecimentos indígenas na

farmacologia - contribuições ponderáveis à indústria

farmacêutica - de modo geral os índios não se

beneficiaram com esta aplicação de seu saber - é

necessário que se estabeleça uma forma de recompensa

ética e econômica às populações indígenas.

Ex: Calathea lutea/Maranta lutea

- planta de grande tamanho; cresce nos pântanos da bacia

amazônica; produz cera similar à da carnaúba; fácil cultivo

- produção controlada permitiria a exploração de regiões

pantanosas não aproveitadas

3.2. CAÇA: - Mamíferos e aves de diversas espécies

- conhecem detalhes importantes a respeito do comportamento dos animais (urros, alimentos preferidos, excrementos, marcas de dentes nas frutas etc.)

-fazem recenseamentos periódicos para evitar a sobre-exploração do meio

- alguns animais podem ser mantidos em estado de semi-domesticação nos locais de roças abandonadas ou num sistema integrado de manejo que combinasse a atração de animais para junto de plantações de árvores frutíferas de que se alimentam

“Fazendas de Caça“

alternativa de desenvolvimento de biomassa animal na

Amazônica enriquecendo a dieta dos pequenos

produtores amazônicos ou semi-domesticação de

cotias, capivaras e aves como o mutum em capoeiras

e sítios fechados com cercas, nas proximidades de

hortas domésticas, produzindo excedentes

substanciais para a comercialização

3.3. Hidrocultura Sistemas de manejo de recursos aquáticos (peixes, répteis, mamíferos aquáticos e algumas formas de vegetação ribeirinha e lacustre) - a Amazônia possui a mais rica e diversificada fauna de água doce do mundo Peixes - fonte substancial de proteínas para a maioria dos grupos indígenas dessa região, sendo estes superiores em termos de conversão alimento/proteína, aos animais que fornecem carne. (tartaruga peixes). Kayapó conhecem os padrões de migração e de cruzamento dos peixes e detêm um imenso inventário dos mesmos

-Peixes

-Tartarugas (ovos e carne, o ano todo e exportação),

-Jacarés (carne para consumo local e peles para exportação), desempenham papel crucial nos ciclos de nutrição da aquafauna amazônica;

-Peixe-boi (sirênio) e botos (cetáceos) - carne para consumo humano e pele para uso industrial - contribuem para todo o sistema hidricultor porque mantém os cursos d'água livres de vegetação, liberando grande massa de nutrientes para estimular a reprodução primária de peixes -Vegetação lacustre e marinha: pouca exploração direta

Jacinto aquático: queima das folhas para produção de um sal contendo K. 1/3 de ha dessa planta pode purificar 1tonelada de despejos por dia; também filtra metais pesados. Saber etnoecológico dos índios: plantas dos "prados flutuantes" geram até 7 toneladas de biomassa por ha/dia e oferecem alimento para invertebrados consumidos por peixes.

O saber etnoecológico dos índios assume que há relação

estreita entre a manutenção de floresta de várzea e a

manutenção da fauna aquática.

As populações indígenas são as que melhor conhecem a

pesca natural por tê-la explorado com êxito durante

milênios.

3.4. AGRICULTURA

Domesticação de plantas pelos índios não se limita ao

uso alimentício mas também para fins medicinais,

repelentes de insetos, corantes e matérias-primas para

manufaturas

Grande variedade de cultivares é conservada pelos índios

- oportunidade de experimentação com plantas

adaptadas a fatores do ambiente e aos vários tipos de

solos tropicais.

Monoculturas - destruição sumária do ambiente natural local

O sistema de lavoura indígena é mais complexo e melhor

adaptado às condições tropicais do que se supunha

Os agricultores indígenas conhecem a adaptação localizada de determinadas plantas que domesticaram e desenvolveram "padrões de cultivo intra-roça" em microzonas que combinam variedades específicas de cultivares com solos específicos, padrões de drenagem e outras características climáticas Efeitos positivos para a conservação do solo: - minimizam o tempo em que ele é exposto à insolação direta e ao peso das chuvas tropicais - a cobertura vegetal é conservada a várias alturas para diminuir o impacto da precipitação pluviométrica, proporcionando sombra e prevenindo a erosão e lixiviação Abrem roças de pequenas dimensões e espacialmente dispersas

O cultivo itinerante é altamente compensatório em

termos de produtividade por unidade de trabalho

empregado e por unidade de área cultivada

São capazes de produzir excedentes mas não têm

estímulo político ou econômico (meios de transporte e

mercados estáveis).

3.5. UNIDADES DE RECURSOS NATURAIS E PRODUZIDOS PELO SER HUMANO Os índios reconhecem e visitam periodicamente essas unidades para colher seus produtos (concentrações de determinadas árvores, plantas rasteiras e animais) Fazem replantio próximo às aldeias e trilhas principais, produzindo artificialmente concentrações de recursos ("campos de florestas"/forest fields) Antigas capoeiras - colheita culmina em 2-3 anos, mas não há abandono total

E, no processo de reflorestamento crescem plantas úteis

Alimentos ali produzidos atraem a fauna selvagem

(porcos do mato, quatis, pacas, cotias ,veados e aves como

araras, papagaios, mutuns1, jacus2)

facilitando a caça para os índios

acesso 13-4-2010

(1) (2)

Estratégia de manejo que produz reservas florestais densas

artificialmente construídas, minoram o esforço das caçadas e

melhoram seu resultado.

Informações inestimáveis a respeito do relacionamento

ecossistêmico

O modo como os índios interagem com seu habitat

oferece informações preciosas sobre as inter-relações

ecológicas, cruciais para o funcionamento dos

microecossistemas

3.6. COSMOLOGIA

Mitos e rituais da região contêm informações sobre a

complexidade dos ecossistemas e modos pelos quais podem

ser explorados.

O mito codifica as relações ecológicas intrincadas entre o

mundo natural e o humano e para a etnobiologia equivale ao

que chamamos de "teoria" na ciência ocidental.

Ex:

Função social dos tabus alimentares baseados em mitos

para evitar a superexploração de elementos da fauna

Função de ciclos cerimoniais Kayapó na difusão de

conhecimentos a respeito da utilização sistemática de

recursos renováveis

EM ETNOBIOLOGIA: É necessário conhecer biologia e antropologia

(botânica, zoologia, ecologia, lingüística, antropologia,

história e teoria da ciência) multidisciplinaridade.

A excessiva especialização tanto de biólogos como de

cientistas sociais vem limitando nossos conhecimentos

sobre a manipulação de recursos da Amazônia por

populações indígenas e de caboclos

Maior problema:

Impor suas próprias ideias e categorias culturais aos

informantes ou consultores culturais; evidenciar reprovação

ou desagrado, limitam a aquisição de dados.

É essencial estabelecer um relacionamento entre iguais

intelectualmente.

A ciência folk não é um acúmulo de superstições e de

crenças não-verificáveis.

É essencial confiar nos informantes e deixar que estes

conduzam o pesquisador ao longo das trilhas de

investigação deles.

Linguagem:

nada substitui o emprego da língua nativa.

Língua intermediária (ex: português)

-problemas insuperáveis de tradução de conceitos.

Variações regionais em um mesmo idioma

Ex: - Quantos tipos de X existem?

Ex: - Quantos tipos de X existem? (presume que X são identificados e nomeados em todas as culturas)

Ex: - Essa é a larva da borboleta X?

Ex: - Essa é a larva da borboleta X? (supõe noção de metamorfose)

Ex: - De que maneira curam a doença X?

Ex: - De que maneira curam a doença X?

(supõe identificação de um estado como uma única doença

e esquece que categorias de doença não são universais, mas

social e etnicamente classificadas)

Ex: - Por que não tratam pessoas que perdem os sentidos?

Ex: - Por que não tratam pessoas que perdem os sentidos?

(e se perder os sentidos é um estado sagrado e desejável

nessa cultura?)

Ex: - Quando fazem as refeições principais?

Ex: - Quando fazem as refeições principais? (não existe ideia de refeição em muitas tribos)

Quanto menos perguntas melhor a entrevista

Metodologia Geradora de Dados - na medida em que o

informante propõe tópicos e explicações corre-se menos

risco de prejudicar a informação.

Ex: ouvir a mitologia e o folclore - chave para decodificar a

percepção por uma determinada cultura de importantes

inter-relações entre elementos como vegetais, animais e

seres humanos.

Entretanto:

nem sempre é possível descobrir funções ecológicas

nos mitos

-Outras relações e significados culturais

- Perdas culturais

Quando se utiliza o questionamento deve-se começar

mostrando um objeto e dizer: "fale-me sobre isso“

(“indicativo indeterminado”), sem nomeá-lo

Atenção! Dizer algo como: - Fale-me sobre arbustos... (pressupõe uma categoria de planta que pode não possuir designação própria na cultura local) ------------------------------------------------------- Ex: o que é “caça” para o grupo local? Somente animais de pelo? Todos?

Ex:

P: “fale-me sobre isso”

(respeitar o modo local de solicitar)

Ex:

P: fale-me sobre isso

I: é a pupa de uma abelha

Ex:

P: fale-me sobre isso

I: é a pupa de uma abelha

P: o que é abelha; o que é pupa?

( a hipótese do conceito de metamorfose)

Ex:

P: fale-me sobre isso

I: é a pupa de uma abelha

P: o que é abelha; o que é pupa?

( a hipótese do conceito de metamorfose)

I: a pupa emerge dos ovos e se alimenta de arbustos

Ex:

P: fale-me sobre isso

I: é a pupa de uma abelha

P: o que é abelha; o que é pupa?

( a hipótese do conceito de metamorfose)

I: a pupa emerge dos ovos e se alimenta de arbustos

P: o que é ovo, arbusto? (e posteriormente metamorfose)

Este último conceito deve ser considerado "oculto" até que

venha a ser explicitamente citado pelo informante

Existem métodos mais rápidos de se coletar dados mas

procura-se qualidade e não quantidade.

Deve-se fazer todo esforço para formular perguntas sem

conceitos etnocêntricos.

Hipóteses pré-formuladas raramente refletem a lógica e a realidade

internas de uma cultura a não ser da própria

Elementos associados em nossa lógica científica podem

não estar associados em outras culturas

- podem existir outras relações na cultura em estudo, que

viriam a alargar nossa compreensão por exemplo sobre a

fisiologia humana e(ou) sobre as propriedades medicinais

de certas plantas.

Regras fundamentais para pesquisa etnobiológica:

1. reconhecer que a outra cultura também se esforça por

classificar, catalogar e explicar o mundo natural - tem suas

"ciências biológicas"

2. os informantes são considerados peritos em sua cultura,

tratá-los como aos especialistas da nossa cultura

3. não menosprezar os informantes, já que dominam em seus

mínimos detalhes fenômenos pouco conhecidos ou

completamente ignorados por nossa ciência

4. deixar que os informantes sejam os guias - tanto na

identificação das categorias culturais significativas

como no desenvolvimento das veredas para as

pesquisas de campo

5. não eliminar dados que superficialmente podem

parecer absurdos - eles podem conter codificações de

relações evolutivas, ou de animais mitológicos, cuja

função é proteger os recursos naturais e preservar o

equilíbrio ecológico

Etnobiologia: provê um arcabouço teórico para integrar os

diferentes subsetores das ciências sociais e naturais com

outros sistemas científicos

Filosoficamente: etnobiologia - mediadora entre as

diferentes culturas - compreensão e respeito mútuo entre

os povos.

Em termos práticos detecta a influência humana na

manipulação e manutenção de sistemas ecológicos.

A pesquisa etnobiológica pode enriquecer e fazer a ciência

na medida em que produz alternativas a paradigmas

correntes.

Exemplos:

A prática de derrubada de grandes árvores, pelos índios,

para a coleta de mel - é ecologicamente adequada e

eficiente?

A Etnobiologia busca conhecer e avaliar seus efeitos a

longo prazo do ponto de vista nativo (êmico):

formação de um bà-krê-ti- grande abertura na floresta que

oferece uma zona ecológica modificada por ação humana

podem ser introduzidas plantas úteis, medicinais e

comestíveis

cria-se portanto uma "ilha" concentrada de recursos

aproveitáveis perto de trilhas e acampamentos

animais de caça são atraídos para essa área rica porque

são escassos os alimentos de consumo animal nos

patamares mais baixos da alta floresta amazônica

os índios plantam intencionalmente espécies para atrair

pássaros e mamíferos

Portanto as funções de uma derrubada desse tipo são:

- oferecer uma fonte imediata de mel

- prover um nicho ecológico para plantas úteis

- produzir a longo prazo um campo de caça

O exemplo evidencia os conceitos indígenas de uso botânico

em relação à fauna, integrados num sistema conservacionista

de manipulação.

Resultado diferente da conclusão apressada e superficial de

que derrubar árvores de grande porte para obter mel é anti-

ecológico

Experiências de um projeto etnobiológico multi-disciplinar

- o Projeto Kayapó - com os índios Gorotire-Kayapó, do sul

do Pará, Brasil:

Etnoecologia

Classificação indígena de zoneamento ecológico ou

"ecozonas"- informações sobre a diversidade de recursos

naturais e sua distribuição - discriminação em unidades de

classificação horizontais e verticais - caracterizam certa

uniformidade dentro da diversidade

A classificação Kayapó da abelha Melipona -

informação sobre a repartição de nichos e

exclusividade de habitat entre diferentes espécies de

abelhas sem ferrão.

------------------------------------------------------------------------

Complexos co-evolutivos são reconhecidos por povos

nativos, incluindo intrincados relacionamentos entre

solos, suas plantas indicadoras e animais associados:

Construção de ilhas florestais (apêtê) no campo-cerrado:

mostra como os Kayapó podem criar e manejar microambientes

dentro e por entre as ecozonas para incrementar a diversidade

biológica

requer conhecimento detalhado:

-da fertilidade do solo

-de propriedades microclimáticas e preferências por variedades

de plantas

-dos interrelacionamentos que se estabelecem entre

componentes de uma comunidade ecológica criada pelo ser

humano e

-das modificações a longo prazo que ocorrerão entre as espécies

em sucessão.

Os apêtê são unidades florestais e reservas de caça.

Plantas Ombigwa õ-toro ("amigos que crescem juntos"):

Os Kayapó estão conscientes de que algumas espécies se

desenvolvem com maior vigor quando plantadas com outras

variedades determinadas e que outras associações inibem o

crescimento.

Esses agrupamentos sinérgico incluem até dezenas de plantas e

requerem padrões complexos de cultivo.

Os índios combinam "energias e personalidades de plantas", como

um artista as diferentes cores, para produzir uma obra de arte.

Essa prática pode vir a substituir com eficiência as monoculturas

depredadoras do solo amazônico.

Etnopedologia (estudo dos solos em seu ambiente natural)

Base da taxonomia Kayapó: textura, calor, capacidade de drenagem

etc., correlacionadas a espécies de plantas indicadoras que permitem

a previsão de componentes da flora e fauna de uma ecozona.

Cada tipo de solo é manipulado segundo suas características

específicas, com variedades de plantas úteis tidas como as mais

adequadas.

Os índios modificam o solo com diferentes coberturas vegetais

afetando a umidade e temperatura (com troncos, folhas, palha e

casca de árvores). As vezes enchem buracos com matéria orgânica

(detritos e cinzas) produzindo bolsões altamente concentrados de solo

fértil.

Folhas de bananeira, espigas de milho, palha de arroz e outros materiais orgânicos são empilhados e às vezes queimados em partes específicas dos campos para criar variações microzonais adicionais.

Obs: os Kayapó discriminam dezenas de tipos de cinzas de plantas

Assumem que cada uma delas possui propriedades específicas adequadas a determinadas culturas.

A cinza de plantas é o mais importante componente fertilizador da agricultura indígena.

Os solos cultivados pelos índios melhoram de qualidade mediante uso e manipulação. A famosa "terra preta dos índios da Amazônia" é considerada produto histórico humano.

Etnozoologia Os índios observam os comportamentos animais (acasalamento, nidificação, alimentação, caça relacionamento presa/predador, hábitos diurnos e noturnos etc.) Transmitem esses conhecimentos às gerações seguintes criando bichos de estimação nas aldeias e ensinando as crianças a observar seus padrões de comportamentos, até um indivíduo em particular, porque assumem que os animais também têm "personalidade própria". Estudam conscientemente a anatomia animal com especial atenção ao conteúdo do estômago.

O conhecimento detalhado do comportamento dos insetos é explorado no controle das pragas das roças: espalham ninhos de formigas Azteca em áreas infestadas por formigas cortadeiras, assumindo que seu odor repele as cortadeiras.

Cultivam plantas que atraem formigas benéficas ajudando a proteção do plantio contra pragas.

Plantam um muro circular de bananeiras em torno de suas plantações já que as vespas parasitas preferem fazer seus ninhos nessas plantas.

O controle é natural mas é deliberado, na agricultura indígena.

As classificações dos insetos pelos índios vêm ajudando a descoberta de novas espécies pela ciência ocidental.

Etnomedicina e Etnofarmacologia Etnofarmacologia: uma das áreas mais promissoras da etnobiologia. Focalizar também plantas/animais, preparações nativas, modos de administração e posologia, coleta em campo das partes da planta utilizadas no preparo dos remédios, a ecozona preferida, variações sazonais, diferenças de solo etc pode enriquecer mais a área -> esses fatores podem modificar a qualidade dos componentes naturais.

Etnomedicina e Etnofarmacologia deveriam estar associadas

para que a aplicação prática seja realmente eficiente -sem

uma compreensão efetiva dos conceitos indígenas de sáude

e doença, os tratamentos de folk podem ser

inadequadamente testados nos laboratórios.

Os Kayapó classificam 250 tipos de diarréia e disenteria,

cada qual tratado com remédios específicos.

Etnobotânica Base para os Kayapó: que tipo de doença as plantas podem curar Sua classificação ajuda na descoberta de novas espécies pela ciência ocidental, na investigação de novos uso para espécies conhecidas e no detalhamento do emprego de espécies desconhecidas (fertilizantes naturais, pesticidas, estimulantes de crescimento etc.). O transplante e plantio dentro e por entre muitas zonas ecológica indicam que a presença humana modificou o ecossistema da Amazônia - é preciso rever o conceito do que realmente são "paisagens naturais amazônicas".

Há grande dependência de plantas semi-domesticadas de

forma que os processos de domesticação devem ainda

estar em curso.

É importante a revisão de conceitos como os de

domesticação, agricultura e manipulação de plantas.

As mudanças genéticas percebidas pelos especialistas

indígenas também podem ser úteis a compreensão dos

desenvolvimentos que ocorreram e continuam ocorrendo

no caso de certas plantas e seus manipuladores humanos,

inclusive o processo de domesticação.

Etnoagronomia e Agroflorestamento Informações a respeito do controle de pragas com o uso de predadores naturais: insetos, pássaros e quadrúpedes e inseticidas e fertilizantes naturais (baixo custo e pouca energia). Manipulação cuidadosa da erosão, drenagem, sombra, umidade e temperatura - fatores cruciais para o sucesso dos cultivos Kayapó. "Corredores naturais" mantidos entre as roças Kayapó servem como reservas biológicas que protegem e preservam a diversidade de espécies e facilitam o restabelecimento dos componentes da flora e da fauna durante a seqüência de florestamento natural.

A "horticultura" Kayapó começa com uma clareira aberta na

mata sendo introduzidas espécies úteis e acaba numa

floresta amadurecida de recursos concentrados.

O desmatamento é refeito quando a produtividade torna-se

baixa.

Maximizam a produção de lenha a longo prazo, aplicam um

tratamento diferencial a espécies úteis (corte sazonal, podas,

preferência pela extração vertical, escolha de tamanho do

galho ou tronco, decisões sobre o ponto de maturação e

capacidade de secagem).

Etnoastronomia: Têm extraordinário conhecimento dos fenômenos celestes. A orientação das aldeias, os locais onde se realizam cerimônias são p.ex. determinados pelos movimentos solar e lunar e os ritos são ligados a um calendário astronômico. Correlacionam as alterações no nível da água dos rios, os padrões de pluviosidade, as florações e o comportamento animal a mudanças nas constelações estrelares. Os ciclos agrícolas são marcados pelos movimentos estrelares. Para o etnobiólogo, a etnoastronomia oferece um modelo útil para a integração de dados biológicos e de comportamento a todas as fases da vida social e cerimonial.

Códigos Simbólicos do Mito e do Ritual:

Crenças funcionando como conceitos ecológicos:

Bepkororoti - espírito de um antigo xamã injustamente morto pelos

companheiros de tribo quando reivindicava seu direito hereditário a

certas partes de uma anta.

Seu espírito manifesta-se atualmente sob a forma de chuvas, raios

e perigosas tempestades que podem matar pessoas ou destruir

colheitas.

Fica irado quando as pessoas não repartem a caça. O temor à sua

ira compele os Kayapó a serem generosos e a compartilharem-na.

Para acalmar a ira do Bepkororoti os Kayapó deixam

porções de mel, dos favos e de pólen nas colmeias

(algumas espécies de abelhas sem ferrão voltam às

colmeias coletadas e restabelecem suas colônias

- essa crença ajuda a conservar e manejar colônias de

abelhas para assegurar a continuidade da produção).

mry-kraàk: entidade mística que assume a forma de um

animal semelhante ao poraquê (peixe elétrico) medindo 20

m de comprimento e vivendo em poços profundos e pode

matar com sua descarga elétrica a uma distância de 500m

- é a mais temida das criaturas sobrenaturais.

Os índios creem que se alimenta de barrigudinhos; assim,

sempre que veem bandos de peixes em desova ou de

barrigudinhos afastam-se da área por temor a mry-kraák -

protegem desta forma o elemento básico da cadeia

alimentar aquática dos rios.

Entretanto:

nem sempre é possível descobrir funções

ecológicas nos mitos

Exemplo geral de clasificação Kayapó: Todas as coisas estão divididas em 4 categorias:

Ex. geral de classificação Kayapó: Todas as coisas estão divididas em 4 categorias: 1. coisas que se movem e crescem 2. coisas que crescem mas não se movem 3. coisas que nem se movem nem crescem 4. ser humano - é relacionado com todos os animais mas é

único e mais poderoso que a maioria dos animais devido à sua organização social

Dentre os animais (categoria encoberta - não nominada), todos os são divididos entre dois grupos nominados: aqueles com carne (mry) aqueles com carapaças e sem carne (maja) = Arthropoda Insetos sociais são nomeados (ñy) e têm papel central no

sistema de crenças kayapó. Os humanos teriam se afirmado como mais poderosoa que os

outros animais devido a duas coisas:

1. ao poder que adveio da organização social como as vespas

2. à grande forma e valor dos guerreiros indígenas que veio das vespas

Os Kayapó observaram as vespas e aprenderam seus segredos descobrindo seu "poder" que poderia ser adquirido através de suas potentes picadas - o veneno das vespas era o segredo: os ataques corajosos e agressivos das vespas tornaram-se o modelo para os guerreiros indígenas.

Praticam um ritual que comemora a aquisição desses

segredos e a vitória sobre o besouro gigante, quando ainda eram fracos e não viviam em aldeias nem tinham sociedades.

Nesse ritual provacam as vespas até que recebam picadas

suficientes para ficarem semi-conscientes pela dor produzida pelo veneno.

Os cupins são associados às pessoas inúteis sendo eles

próprios considerados inúteis e covardes, apesar de viverem

em sociedade, são subdivididos pela cor (brancos, vermelhos

ou negros, como as cores das peles das pessoas inúteis, os

não-kayapó)

As formigas são mais semelhantes aos homens do que as

abelhas e vespas porque andam e caçam no chão. Também

lhe são atribuídos poderes especiais devido a suas picadas,

mas esse poder é mais útil para o aliado da caça do homem, o

cão. Usam formigas em poções e tinturas voltadas para a caça.

Para serem bons caçadores os Kayapó devem

conhecer as formigas e para serem guerreiros

valentes e destemidos devem conhecer as

vespas.

Os cupins não merecem maior estudo...

Outros exempos de estudo em etnociências:

• “BIODIVERSIDADE E DIVERSIDADE ETNOLINGÜÍSTICA NA AMAZÔNIA”

Rodrigues, 2001: Estimativa de que na Bacia Amazônica, em 1500 > 700 línguas diferentes, com mais de uma população por língua.

• “ETNOMUSICOLOGIA DAS TAIEIRAS DE SERGIPE: UMA TRADIÇÃO REVISTA”

Ribeiro, 2003: Produção musical e identidade em grupos folclóricos.

• “ETNOBIOLOGIA DOS BOTOS(Tursiops truncatus) E A PESCA COOPERATIVA EM LAGUNA, SANTA CATARINA.”

Peterson et al., 2005: Conhecimento de pescadores sobre os botos com quem pescam cooperativamente uma espécie de tainha.

• Áreas de estudos recentes e em crescimento: Scientific American já publicou duas edições especiais sobre etnociências específicas. (“Etnomatemática”, e “Etnoastronomia”)

• “PERCEPÇÕES SOBRE A FAUNA EM ESTUDANTES INDÍGENAS DE UMA TRIBO TUPINAMBÁ NO BRASIL: UM CASO DE ETNOZOOLOGIA” Razera et al, 2006. Etnozoologia

• “ETNOFARMACOLOGIA: O USO TERAPÊUTICO DE Origanum vulgare NA MEDICINA POPULAR, BRAGANÇA-PARÁ”

Lima et al, 2007. Etnofarmacologia

• “A PERCEPÇÃO DE ANIMAIS COMO ‘INSETOS’ E SUA UTILIZAÇÃO COMO RECURSOS MEDICINAIS NA CIDADE DE FEIRA DE SANTANA, ESTADO DA BAHIA, BRASIL”

Costa Neto & Resende, 2007. Etnoentomologia.

• “PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO E CONHECIMENTO ETNOBIOLÓGICO DO CATADOR DE CARANGUEJO-UÇA, Ucides cordatus, NOS MANGUEZAIS DE IGUAPE, BRASIL.”

Fiscarelli et al, 2002. Etnozoologia.

• Estudo Etnobotânico de Plantas Medicinais na Terra Indígena Kaxinawá de Nova Olinda, Acre Brasil.

Bárbara Pacheco Carita Simões Lopes

Orientador: Lin Chau Ming

UNESP – Botucatu - 2017

BIBLIOGRAFIA Posey, Darrel A. Etnobiologia e Ciência de Folk: sua

importância para a Amazônia Tubinger Geographische Studien Tubingen 95:95-108. 1987.

Posey, Darrel A. Etnobiologia: teoria e prática

Summa Etnológica Brasileira Petróplis, RJ. FINEP. vol.1 (Etnobiologia):15-28. 1986.

Posey, Darrel A. O conhecimento entomológico

Kayapó: etnometodologia e sistema cultural. Anuário Antropológico. 81:109-124. 1983.

BIBLIOGRAFIA

http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2013/img/12-Dez/pdf-brasil-ind.pdf

http://www.sociambiental.org/pib/epi/kayapo/populacao.shtm http://www.geocities.com/pinkaiti/pinkaiti/html

http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://ntsavanna.com/wp-content/uploads/2009/04/calathea-lutea-may-2008.jpg&imgrefurl=

http://www.elarishtropicalexotics.com/Plant/107/Thumbnail_havana-cigar.jpg

http://www.elarishtropicalexotics.com/Plant/110/Thumbnail_gold-cigar.jpg

http://static.blogstorage.hi-pi.com/photos/flores.fotosblogue.com/images/gd/1220052126/Eichornia-crassipes-jacinto-aquatico.jpg

http://static.blogstorage.hi-pi.com/photos/flores.fotosblogue.com/images/gd/1220052245/Eichornia-crassipes-jacinto-aquatico.jpg

http://www.avespantanal.com.br/imagens/060%20-%20Mutum-de-penacho/mutum-de-penacho-40181-72.jpg

http://www.baixaki.com.br/imagens/wpapers/BXK34133_jacu-01800.jpg