charles baudelaire as flores do mal

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L Livros CHARLES BAUDELAIRE AS FLORES DO MAL Apresentação de Marcelo Jacques Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira à - EDITORA NOVA FRONTEIRA

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L

Livros

CHARLES BAUDELAIRE

AS FLORES DO MAL

Apresentação de Marcelo Jacques

Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira

à -EDITORA NOVA

FRONTEIRA

p

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Sobre os despojos fumegantes das orgias Tua imagem mais clara, mais rósea, mais cheia, Ante meus olhos pasmas sem cessar volteia.

o sol crestou nos castiçais as chamas frias; Assim, triunfante, o teu fantasma se parece, Alma radiosa, ao sol que eterno resplandece!

XLVII Harmonia da tarde

Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem, Cada flor se evapora igual a um incensório; Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo; Melancólica valsa e lânguida vertigem!

Cada flor se evapora igual a um incensório; Fremem violinos como fibras que se afligem; Melancólica valsa e lâguida vertigem! É triste e belo o céu como um grande oratório.

Fremem violinos como fibras que se afligem, ~as ternas que odeiam o nada vasto e inglório! E triste e belo o céu como um grande oratório; O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem.

Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório Recolhem do passado as ilusões que o fingem! O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem ... Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório!

As PLOllBS DO MAL} 211

Sur les débris fumeux des stupides orBies Ton souvenir plus clair, plus rose, plus charmant, A mes yeux ªBrandis voltiBe incessamment.

Le soleil a noirci la jlamme des bouBies; Ainsi, toujours vainqueur, ton f antôme est pareil, Ame resplendissante, à l'immortel soleil!

XLVII Harmonie du soir

Voici venir les temps ou vibrant sur sa tiBe Chaque jleur s' évapore ainsi qu'un encensoir; Les sons et les parfums tournent dans l' air du soir; Valse mélancolique et lanBoureux vertiBe!

Chaque Jleur s' évapore ainsi qu'un encensoir; Le violon frémit comme un creur qu'on affliBe; Valse mélancolique et lanBoureux vertiBe! Le ciel est triste et beau comme un Brand reposoir.

Le violon frémit comme un creur qu'on affliBe, Un creur tendre qui hait le néant vaste et noir! Le ciel est triste et beau comme un Brand reposoir; Le soleil s' est noyé dans son sanB qui se ftBe.

Un creur tendre qui hait le néant vaste et noir, Du passé lumineux recueille tout vestiBe! Le soleil s' est noyé dans son sanfj qui se ftBe ... Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir!

210 { CHAR.LBS BAUDELAIRE

20 E tudo o que no ldílio de infantil se d guar e. O Tumulto, golpeando em vão mi'nh 'd a v1 raça Não me fará mover a fronte ao que se ' . . passa, Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento De relembrar a Primavera em pensamento Em um sol na alma colher, tal como quem ah 'd,. , sorto, Entre as 1 e1as goza um tépido conforto.

LXXXVII O sol

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros Persianas acobertam beijos sorrateiros, Quando o impiedoso sol arroja seus punhais Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais, Exercerei a sós a minha estranha esgrima, Buscando em cada canto os acasos da rima, Tropeçando em palavras como nas calçadas, Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Este pai generoso, avesso à tez morbosa, 1 O No campo acorda tanto o verme quanto a rosa;

Ele dissolve a inquietação no azul do céu,

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E cada cérebro ou colméia enche de mel. É ele quem remoça os que já não se movem E os torna doces e febris qual uma jovem, Ordenando depois que amadureça a messe No eterno coração que sempre refloresce!

Quando às cidades ele vai, tal como um poeta, Eis que redime até a coisa mais abjeta,. . E adentra como rei sem bulha ou serviçais, ' . . Quer os palácios, quer os tristes hospitais.

As FLORES DO MAL} 2 9 5

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Et tout ce que l'Idylle a de plus enf antin. L'Émeute, tempêtant vainement à ma vitre, Ne fera pas lever mon front de mon pupitre; Car je serai plongé dans cette volupté D'évoquer le Printemps avec ma volonté, De tirer un soleil de mon creur, et de f aire De mes pensers brúlants une tiede atmosphere.

LXXXVII Le soleil

Le long du vieux faubourg, ou pendent aux masures Les persiennes, abri des secretes luxures, Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés, Je vais m' exercer seul à ma f antasque escrime, Flairant dans tous les coins les hasards de la rime, Trébuchant sur les mots comme sur les pavés, Heurtant parfois des vers depuis lonfJtemps rêvés.

Ce pere nourricier, ennemi des chloroses, É veille dans les champs les vers comme les roses; ll f ait s' évaporer les sou eis vers le ciel, Et remplit les cerveaux et les ruches de miel. C'est lui qui rajeunit les porteurs de béquilles Et les rends Bªis et doux comme des jeunes filles, Et commande aux moissons de croitre et de mürir Dans le cceur immortel qui toujours veut jleurir!

Quand, ainsi qu'un poete, il descend dans les villes, ll ennoblit le sort des choses les plus viles, Et s'introduit en roí, sans bruit et sans valets, Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.

294 { CHAllLES BAUDELAIRE

GUILHERME DE ALMEIDA

Flores das Flores do mal de Baudelaire

Ilustrações de Henri Matisse editor. 34

da /

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O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem Pegam um albatroz, enorme ave marinha, Que segue, companheiro indolente de viagem, O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas, Esse senhor .do azul, sem jeito e envergonhado, Deixa doridamente as grandes e alvas asas Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajar alado sem seu nimbo! Ave tão bela, como está cômica e feia! Üm o irrita chegando ao seu bico um cachi~bo, Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O Poeta é semelhante ao príncipe da altura Que busca a tempestade e ri da flecha no ar; Exilado no chão, em meio à corja impura, As asas de gigante impedem-no de andar.

27

L'albatros

Souvent, pour s' amuser, les hommes d' équipage Prennent des albatros, vas'tes oiseaux des mers, Qui suivent, indolents compagnons de voyage, Le navire glissant sur les gouffres amers.

A peine les ont-ils déposés sur les planches, Que ces rois de l' azur, maladroits et honteux, Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches Comme des avirons trainer à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule! Lui, naguere si beau, qu'il est comique et laid! L'un agace son bec avec un brule-gueule, L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poete est semblable au prince des nuées Qui hante la tempête et se rit de l' archer; Exilé sur le sol au milieu des huées, Ses ailes de géant l' empêchent de marcher.

26

r

1

O convite à viagem

Minha filha e irmã, Pensa na manhã

Em que iremos longe, em viagem, Amar a valer, Amar e morrer

No país que é a tua imagem! Os sóis, entre véus, Desses turvos céus

Para mim têm todo o encanto Cruel e singular Do teu falso olhar

Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é ordem, nitidez, Luxo, calma e languidez.

Móveis lisos, ou Que o tempo lustrou,

Decorariam o ambiente; Cada rara flor Misturando o olor

A um âmbar vago e envolvente; Tetos colossais, Profundos cristais,

Toda uma pompa excessiva, Tudo isso a falar À alma, a segredar

Na doce língua nativa.

67

r L'invitation au voyage

Mon enf ant, ma sceur, Songe à la douceur

D'aller là-bas vivre ensemble! Aimer à loisir, Aimer et mourir

Au pays qui te ressemble! Les soleils mouillés De ces ciels brouillés

Pour mon esprit ont les charmes Si mystérieux De tes traitres yeux,

Brillant à travers leurs /armes . •

1:à, tout n'est qu'ordre et beauté, Luxe, calme et volupté.

Des meubles luisants, Polis par les ans,

Décoreraient notre chambre; Les plus rares fleurs Mêlant leurs odeurs

Aux vagues senteurs de [' ambre, Les riches plafonds, Les miroirs profonds,

La splendeur orienta/e, .. Tout y parlerait À /' âme en secret

Sa douce langue nata/e.

66

<

, ..

Charles Baudelaire

O spleen de Paris PEQUENOS POEMAS EM PROSA

XIV. O VELHO SALTIMBANCO

Por toda parte exibia-se, espalhava-se, fartava-se o povo em dia de folga. Era uma dessas solenidades com as quais lon-gamente contam os saltimbancos, os prestidigitadores, os domadores de animais e os vendedores ambulantes, para compensar as más temporadas do ano.

Nesses dias, tenho a impressão de que o povo esquece tudo, o sofrimento e o trabalho; mais parece um bando de crianças. Para os pequenos, é um dia feriado, é o horror da escola adiado por vinte e quatro horas. Para os grandes, é um armistício concluído com as potências malignas da vida, um respiro em meio à contenda e à luta universais.

Mesmo os homens do mundo, mesmo os homens às voltas com trabalhos espirituais dificilmente escapam à in-fluência desse jubileu popular. Eles absorvem, sem notar, seu quinhão dessa atmosfera de desafogo. No que me toca, eu nunca deixo, como bom parisiense, de passar em revista todas as barracas que se enfeitam para essas ocasiões solenes.

De fato, elas faziam uma formidável concorrência umas às outras: era um tal de piar, mugir, berrar. Era uma mistura de gritos, clarins e detonações de foguetes. Os bufões e os pa-lhaços esgarçavam os traços de seus rostos morenos, curtidos pelo vento, a chuva e o sol; com o garbo de atores seguros de seu efeito, lançavam tiradas e chacotas de uma graça sólida e pesada como a de Moliere. Os hércules, ciosos da enor-midade de seus membros, sem testa nem crânio, à maneira dos orangotangos, pavoneavam-se majestosamente, metidos em malhas lavadas de véspera para a ocasião. As dançarinas, belas como fadas ou princesas, pulavam e saltitavam sob a luz das lanternas que faziam faiscar suas saias.

Tudo era luz, poeira, gritaria, alegria, tumulto; uns gas-tavam, outros ganhavam, uns e outros igualmente alegres.

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As crianças se penduravam à saia das mães para ganhar algum pirulito ou trepavam aos ombros dos pais para ver melhor um ilusionista, deslumbrante como um deus. E por toda parte cir-culava, dominando todos os perfumes, um cheiro de fritura que era como o incenso dessa festa.

No fim, no extremo da fileira de barracas, como se, en-vergonhado, ele tivesse exilado a si mesmo de todos esses esplendores, vi um pobre saltimbanco, arqueado, caduco, de-crépito, uma ruína de homem, encostado a uma das estacas de sua cabana; uma cabana mais miserável que a do selvagem mais bruto, com dois tocos de vela que, escorrendo e fume-gando, iluminavam bem demais a desgraça ao redor.

Em toda parte, a alegria, o lucro, a gandaia; em toda parte, a certeza do pão de amanhã; em toda parte, a explosão frené-tica de vitalidade. Aqui, a miséria absoluta, a miséria atavia-da - para cúmulo do horror - de andrajos cómicos, em que a necessidade, bem mais que a arte, introduzira os contrastes.

1 1 Ele não ria, o miserável! Não chorava, não dançava, não gesti-culava, não gritava; não cantava nenhuma canção, nem alegre, nem lamurienta, não implorava. Estava mudo e imóvel. Tinha renunciado, tinha abdicado. Seu destino estava selado.

Mas que olhar profundo, inesquecível, ele passeava pela multidão e pelas luzes, para essa maré que se detinha a alguns passos de sua repulsiva miséria! Senti a garganta apertada pela mão terrível da histeria, e senti que meu olhar era ofuscado por lágrimas rebeldes, dessas que não querem cair.

C2!ie fazer? De que serviria perguntar ao infeliz qual curio-sidade, qual maravilha ele tinha para mostrar naquelas trevas fétidas, atrás da cortina esfrangalhada? A verdade é que eu não tinha coragem; e, por mais que a razão de minha timidez pare-ça risível, devo admitir que tinha medo de humilhá-lo. Por fim, eu já me resolvia a deixar discretamente algum dinheiro sobre uma das tábuas da cabana, fazendo votos de que ele adivinhasse

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minha intenção, quando um grande refluxo de povo, causado sabe-se lá por qual tumulto, me arrastou para longe dele.

E, voltando-me para trás, obcecado por aquela visão, ten-tei analisar o meu súbito sofrimento, e disse comigo mesmo: acabo de ver uma imagem do velho homem de letras que so-breviveu à geração que ele soube divertir com brilhantismo; uma imagem do velho poeta sem amigos, sem família, sem filhos, degradado pela miséria e pela ingratidão pública, numa barraca em que mais ninguém quer entrar!

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XLVI. PERDA DE AURÉOLA

-Mas como? Você por aqui, meu caro? Você, num lugar de má fama! Você, sorvedor de quintessência, você, um degus-tador de ambrosia! Vamos e venhamos, é de surpreender!

- Meu caro, você sabe do meu terror aos cavalos e às car-ruagens. Ainda há pouco, quando vinha atravessando o bulevar com a maior pressa, saltitando sobre a lama, através daquele caos movente em que a morte chega a galope, de todos os lados, a um só tempo, minha auréola, por conta de um movimento brusco, deslizou da minha cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de pegá-la de volta. Achei menos desagradá-vel perder minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. E, depois, eu me dizia, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, cometer atos vis e me entregar à de-vassidão, como os simples mortais. E cá estou, perfeitamente semelhante a você, como vê!

- Você poderia ao menos pôr anúncios ou prestar quei-xa ao delegado.

- Ó, céus, não! Estou bem por aqui. Só você me reco-nheceu. De resto, a dignidade me entedia. E gosto de pensar que um mau poeta qualquer há de recolhê-la e envergá-la sem pudor. Fazer o bem ao próximo, que prazer! Ainda mais a um bem-aventurado que me fará rir! Pense em X ou em Z! Qµe tal? Como será divertido!

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