texto - interioridade da experiencia temporal

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  • 7/26/2019 Texto - Interioridade Da Experiencia Temporal

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    A INTERIORIDADE DA EXPERINCIA TEMPORAL DOANTROPLOGO COMO CONDIO

    DA PRODUO ETNOGRFICA12

    Cornelia Eckerte Ana Luiza Carvalho da Rocha

    Introduo

    O mtodo etnogrfico aponta para uma tica de interao, de interveno e de

    participao construda sobre a premissa da relativizao, onde o tema da interpretao

    desponta como central. Guardadas as divergncias terico-analticas, trata-se de toda uma

    gerao de antroplogos que priorizaram o ponto de vista do "outro" compreendido a partir doprocesso interativo em campo: o encontro intersubjetivo entre o pesquisador e os sujeitos

    pesquisados.

    A alteridade reside na singularidade do discurso mico traduzida pelo antroplogo nas

    pesquisas, tema este que tangencia uma "hermenutica do si", da qual no se pode afastar a

    produo/construo do conhecimento antropolgico em suas bases mais profundas3. Como

    se ver, a seguir, no por acaso que o campo da matriz disciplinar da Antropologia

    atingido por tais temas especficos do discurso filosfico contemporneo ("a dialtica da

    ipseidade e da mesmidade" na correlao entre o "si" e o "diverso do si").

    Trata-se de um momento singular da produo terica e conceitual da Antropologia,

    quando a experincia temporal do sujeito do investigador comea a ser incorporada como

    centro de suas preocupaes desde o momento em que seu objeto de pesquisa desloca-se

    das ditas sociedades primitivas s sociedades complexas.

    Acompanhando este "ponto de revoluo", o antroplogo passa a interrogar-se a

    propsito de "quem fala designando-se a si mesmo como locutor (dirigindo a palavra a um

    interlocutor), desencadeando-se a toda uma reflexo sobre o estatuto indireto da posio do

    1 Revista de Antropologia, publicao do Departamento de Antropologia, Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas, Universidade de So Paulo, volume 41 nmero 2, So Paulo 1998, ISSN 0034-7701. P. 107a 136.2Agradecemos ao Cnpq pelo concesso de bolsa produtividade no projeto integrado Estudo antropolgico deitinerrios urbanos, memria coletiva e formas de sociabilidade no mundo urbano contemporneo, Fapergs

    pelo financiamento do Projeto Banco de Imagem, do Laboratrio de Antropologia Social/PPGAS/UFRGSsediado no ILEA/UFRGS.3

    A linha de argumentao aqui apresentada tem por base as obras de P. RICOEUR, 1991 e l994 e a obra de J. PIAGET,1997.

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    si4.

    Pretende-se com este artigo refletir sobre o mtodo etnogrfico referido ao tema da

    identidade narrativa do antroplogo, em especial, o problema de sua identidade pessoal5no

    que tange a alcanar, em Antropologia, uma tica da ao.

    Assim quer-se aqui problematizar metodologicamente a mediao narrativa como

    constituinte, em Antropologia, do mtodo etnogrfico que, se acredita, possa elucidar os

    paradoxos da identidade pessoal do antroplogo como fundamento da produo torico-

    conceitual desta matriz disciplinar na contemporaneidade.

    A produo antropolgica sob a gide do deslocamento do sujeito da conscincia

    Em seus estudos das culturas e sociedades humanas, os antroplogos passam, ento, a

    confrontar-se com o fenmeno da interioridade do tempo. Isto , por exigncias de

    "deslocamento" do sujeito cognoscente na produo da "objetividade" cientfica, isto , o

    antroplogo constata que suas reflexes, oriundas da anlise de suas prprias experincias

    vividas em campo, traduzem assertivas relativas a problemtica do si6.

    Nestes termos, as estruturaes do real produzidas pelo antroplogo, consideradas

    segundo percepes subjetivas objetivadas, tanto quanto as prticas e aes sociais dos

    grupos por ele investigados passam a ser analisadas como "ordens de significado de pessoas

    e coisas"7. Por esta via, a matriz disciplinar da Antropologia8 desloca suas ordens de

    preocupaes epistemolgicas para o "carter reflexivo do si"9 na produo de seus

    4Marcel MAUSS, j em 1902, recomendava aos etngrafos "buscar os fatos profundos, inconscientes quase,porque eles existem apenas na tradio coletiva". Mauss recorre noo de inconsciente para melhor dar contada natureza das representaes coletivas ("categorias do entendimento"): "Para Mauss, a noo de inconsciente

    parecia indispensvel para explicar no apenas a categoria, mas igualmente o costume, os hbitos em geral".CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 38.5O problema da identidade pessoal, segundo P. RICOEUR, apresenta a questo da identidade-idem, evocando asquestes permanncia do tempo, em que a mesmidade relaciona-se a um conceito de relao, a um critrio de

    continuidade ininterrupta e de similitude. Trasladado para o mtodo etnogrfico, o tema da identidade pessoal doantroplogo, no corpo deste mtodo, significaria paradoxos que a se ligam em termos da irredutibilidade daexperincia etnogrfica enquanto busca de uma invariante relacional do antroplogo com a alteridade, onde secoloca em jogo o quem sou eu do investigador, logo o aspecto da identidade-ipse, irredutvel determinaode umsubstrato .6 A inteno deste artigo aqui evidenciada.O que se quer problematizar metodologicamente a mediaonarrativa como constituinte, em Antropologia, do mtodo etnogrfico que, se acredita, possa elucidar os

    paradoxos da identidade pessoal do antroplogo como fundamento da produo torico-conceitual desta matrizdisciplinar na contemporaneidade.7SAHLINS, M. 1979. p. 1 0.8 Para Roberto Cardoso de Oliveira, uma matriz disciplinar a articulao sistemtica de um conjunto de

    paradigmas, a condio de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e relativamenteeficientes. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988, p. 15.9

    Sero aqui mencionadas inmeras expresses que tm sua origem nas obras de P. RICOEUR supracitadas, dasquais nos apropriamos para fazer avanar a anlise sobre histria de vida em Antropologia, tendo como suporte otema da identidade narrativa.

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    conceitos e teorias, onde o tema da identidade narrativa e autoral ganha importncia

    na polmica encerrada pelas produes etnogrficas em Antropologia.De Bronislaw Malinowski Marcel Mauss, passando pela obra de Franz Boas,

    apreende-se, pela via da tradio empiricista, que o mtodo de uma observao completa,

    participante e viva das sociedades estudadas, em que o antroplogo deve realizar um percurso

    de "imerso no cotidiano de uma outra cultura"10, pressupe uma particularidade tico-moral:

    um grau de neutralidade axiolgica do investigador em campo. A necessidade de dominar a

    lngua do "outro" permitir-lhe-ia, por exemplo, traduzir a "semntica" do agir humano dado

    em cada cultura, reservando-se ao dirio de campo os dilemas da mesmidade do carter do

    antroplogo dissociado da manuteno do si11.

    Neste momento da reflexo antropolgica, gera-se o conceito de "etnocentrismo",

    onde a ipseidade substituda pela mesmidade no debate sobre a identidade do antroplogo.

    Encobre-se, aqui, o fato de que a dialtica do si, gerada na descentrao do sujeito do

    antroplogo12, redutvel ao carter das identificaes (valores, normas, ideais, modelos) nas

    quais o investigador/comunidade investigada se reconhecem, desvendando-se alteridades,

    ficando latente a problemtica da ipseidade13.

    Nos termos de uma sociopsicognese das teorias e conceitos da Antropologia, a tarefa

    do etngrafo se consolida, assim, como sendo a de investigar "um sentido em configuraes

    muito diferentes, por sua ordem de grandeza e por seu afastamento das que esto

    imediatamente prximas do observador"14.

    Fica evidenciado que a prtica antropolgica como a "busca da gramtica da vida

    humana e social a partir da diversidade presente"15ainda no desabrochara para o problema

    filosfico da hermenutica do si, ficando presa ao empiricismo e s armadilhas das filosofias

    do Cogito.

    Assim, o mtodo etnogrfico nascia e tomava forma nas tradies empiricistas da

    10"Culturas eram totalidades que deveriam ser recompostas pelo antroplogo e descritas como tais, embora nose apresentassem experincia dessa maneira". CALDEIRA. 1988. p. 137.11A tcnica do dirio de campo, que funda a narrativa etnogrfica, procede, neste cas o, segundo os dilemas daalteridade do antroplogo face aos nativos, tendo por base uma operao de comparao consigo mesmo,sem o suporte de uma reflexo a respeito de si, com base na problemtica da dimenso temporal do seu eumesmo, onde a pergunta quem sou eu? desliza para o que sou eu?.12Cf. expresso de J. PIAGET, 1997.13O aspecto tico aqui envolvido se traduz no fato de o antroplogo relativizar, num processo descentrado deseus hbitos e identificaes adquiridas (seu eu mesmo) sem, no entanto, explicitar a seus vnculos com acapacidade de designar-se, a si prprio, como um outro, jogando-se no campo da indeterminao e do

    julgamento moral da manuteno do si.14LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1985.15 LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1985.

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    Escola Funcionalista e Culturalista, diferenciando-se na tradio intelectualista-racionalista16,

    mas convergindo num mesmo ponto. Ou seja, a ausncia de uma reflexo em torno da

    problemtica da distenso temporal interior que preside a configurao da identidade pessoal

    do antroplogo e a mediao da narratividade que preside o mtodo etnogrfico, tornando-o

    instrumento eficaz de inteligibilidade das vidas humanas, no pela compreenso do si, mas

    pela via da interpretao do si do pesquisador.

    Ao contrrio, o que se coloca a "objetividade" atravs da certeza de que o Cogito, via

    neutralizao da ipseidade, d sobre a verdade de uma verso "subjetiva" de regras

    inconscientes e universais da cultura humana, "as estruturas permanentes" nos termos de

    Lvi-Strauss17. Em particular, com o estruturalismo, o estatuto do sujeito epistmico do

    antroplogo no confrontado com os paradoxos e as perplexidades da sua identidade pessoal

    no quadro da dimenso temporal tanto do si quanto da prpria ao do seu pensamento sobre

    o mundo.

    Se faltava ao mtodo etnogrfico nas tradies empiristas problematizar sobre a

    legibilidade das "histrias" dos grupos/indivduos humanos contidas nas suas etnografias,

    onde o questionamento da identidade pessoal do pesquisador segue apenas o critrio do

    questionamento da identidade-idem, presenciava-se, na tradio intelectualista da

    Antropologia estrutural, um modelo de unificao do sujeito epistmico do antroplogo na

    vacuidade do Cogito como parmetro de procedimentos de estudo das culturas e sociedades

    humanas, em que a questo da ipseidade por princpio eliminada por perda de suporte da

    mesmidade18.

    No quadro do mundo colonial que inspira tais tradies e paradigmas em

    Antropologia, ausenta-se uma referncia s "dinmicas interacionais e dialgicas que

    subjazem, a intersubjetividade, graas qual o sujeito epistmico do antroplogo aparece num

    perptuo processo de descentrao, na tentativa de "pr-se no lugar do outro", assumindo

    perspectivas e posturas alheias a sua identidade pessoal19.Abre-se, assim, espao para se problematizar, no corpo das prticas antropolgicas, o

    tema da constituio do si-mesmo do etngrafo como um outro, confrontado na escritura

    de seu texto com o lugar de autoria/autoridade de sua produo terico-conceitual, segundo

    16Seguimos CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.17 LVI-STRAUSS, "no que seguido por Dumont que, semelhana de Mauss, agrega a dimenso doinconsciente aos elementos de base da ideologia", cf. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 45.18 A respeito, ver os comentrios de G. DURAND sobre a hermenutica redutora que preside o pensamento

    antropolgico de C. LVI-STRAUSS, em obras como DURAND. 1976 e 1979.19SOARES. 1994. p. 105.

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    uma hermenutica da existncia, na impossibilidade do tratamento impessoal da identidade no

    plano conceitual.

    A dramtica temporal na interioridade da conscincia do antroplogo

    No mundo ps-colonial, uma vez confrontada a produo torico-conceitual em torno

    do tema do mtodo etnogrfico, a Antropologia e seus temas correlatos do

    relativismo/etnocentrismo realiza um giro interpretativo na busca de melhores critrios para

    situar o tema da identidade pessoal do antroplogo. Neste contexto, a noo de identidade

    narrativa20 e a questo da "hermenutica do si" parecem ser uma das vias de acesso

    compreenso do mtodo etnogrfico "aplicado s pessoas e s comunidades" estudadas pelos

    antroplogos.

    Na tradio intelectualista (firmada pela Escola Francesa de Sociologia), o mtodo

    etnogrfico encontra-se preso s armadilhas de uma abordagem longitudinal da identidade

    pessoal do antroplogo, sendo concebido como forma de apreenso de representaes

    simblicas coladas ao vivido. Em Mauss, por exemplo, o mtodo etnogrfico uma forma de

    apreenso do fenmeno social como total, posto que recompe o social integrado num sistema

    com significado, segundo o conceito de fato social total21.

    A partir de um tributo tradio intelectualista, Jean Piaget apontou, entre os anos

    40/50, a debilidade de uma orientao filosfica com base na fenomenologia do sujeito socialpara o caso dos estudos das categorias de entendimento humano, em prol do debate dos

    diferentes nveis hierrquicos de estruturao do esprito, individual e coletivo, nos termos de

    uma psicognese22.

    Inspirado nos estudos da tradio intelectualista francesa, esse autor reconhece o

    relativismo como mtodo de investigao e amplia sua feio do debate a localizado, no que

    aqui nominamos a identidade pessoal do antroplogo, ao propagar a tese central de que

    adialtica sujeito/objeto se processa nos termos de um construtivismo reflexivo: tantoconhecimento "uma exteriorizao objetivante" do sujeito quanto uma "interiorizao

    reflexiva" do real.

    Se re-situada, neste contexto, a dialtica da identidade-idem e identidade-ipse, no

    20Cf. P. RICOEUR, "Elaborei ento a hiptese segundo a qual a identidade narrativa, seja de uma pessoa, sejade uma comunidade, seria a do lugar procurado desse cruzamento entre histria e fico". RICOEUR. 1994, p.138.21LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1974.22

    Vale a pena situar a crtica feita pelo construtivismo ps-piagetiano ao fato de, em seus estudos, Piaget terignorado na construo do sujeito epistmico o lugar das motivaes simblicas e das pulses subjetivas naformulao dos esquemas de pensamento humano.

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    caso da identidade pessoal do antroplogo, se reveste da polmica do polimorfismo das

    estruturas cognitivas presentes no trajeto antropolgico de conformao do sujeito epistmico.

    Reunir uma hermenutica do si com as descobertas da epistemologia gentica pode

    significar aqui um esforo na tentativa de elucidar os paradoxos que sustentam os critrios de

    identidade pessoal do antroplogo na configurao do mtodo etnogrfico em Antropologia,

    fazendo dialogar as instncias da dimenso temporal que preside o ato de conhecimento

    humano e o processo cognitivo que o faz reflexivo.

    Seja atravs dos desdobramentos entre identidade-idem (mesmidade, idntico a si e

    imutvel atravs do tempo) e identidade-ipse (identidade pessoal e flexiva, talhada pela

    alteridade) para a compreenso do "primado da mediao reflexiva sobre a posio imediata

    do sujeito...", seja atravs da epistemologia gentica, e a ordem de suas preocupaes com as

    condies possveis nas quais os dados da conscincia atingem o grau de compreenso

    "objetiva" das aes executadas pelos sujeitos sociais, o debate em torno do ato interpretativo

    que preside o mtodo etnogrfico na pesquisa dos signos e dos smbolos culturais, das regras

    e dos valores sociais que configuram a experincia da vida coletiva s tem a enriquecer.

    Visto sob a escala do construtivismo piagetiano, o pensamento sociolgico elaborado

    por Durkheim, em fins do sc. XIX, confrontado aos sistemas teleolgicos de sociedades

    tribais, os quais eram o centro de interesse da Escola Sociolgica Francesa, configura-se, em

    nveis distintos de hierarquia, como aspectos indissociveis de toda a formao do real que

    experienciou a espcie humana ao longo de sua evoluo e maturao.

    Nas obras de seus seguidores, Marcel Mauss, Claude Lvi-Strauss ou Louis Dumont,

    as categorias do entendimento persistem no centro das indagaes antropolgicas23, sendo que

    cabe ao antroplogo a reconstruo formal, por excelncia, das ordens de significados

    oriundos da cultura/sociedade humana, capaz de explicar valores sociais ou decifrar cdigos

    simblicos de sociedades "outras", buscando desvendar ideologias e representaes numa

    perspectiva comparativa com sua prpria ideologia-cultura de socializao.Em decorrncia, poder-se-ia dizer que a problemtica do si atingiria, aqui, patamares

    de tipos distintos de esquemas de pensamento. O relativismo significaria no apenas a

    passagem de categorias de entendimento egocntricas (operaes cognitivas modeladas pela

    lgica individual) para sociocntricas (operaes cognitivas modeladas pela lgica social).

    No caso do pensamento sociolgico, tratar-se-ia de fazer operar a interdependncia da

    conscincia individual da lgica social a partir do ato de descentrao da conscincia

    23CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 45.

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    individual, levando-se em conta sua interdependncia da lgica social, desdobrada em

    operaes mentais lgico-abstratas24.

    Poder-se-ia observar, a ttulo de exemplo, que o prprio objeto de investigao

    antropolgica pertence ao campo das representaes coletivas, uma vez que o paradigma

    racionalista que funda tal tradio de pensamento, privilegiando a conscincia - ou, nos

    termos de Gilbert Durand, as filosofias do Cogito - nos seus estudos acerca das categorias do

    entendimento humano estabelece uma hierarquizao de nveis entre as operaes lgicas e

    racionais do "homem da civilizao", com as quais ele opera o entendimento do mundo, das

    categorias de entendimento dos povos ditos primitivos25.

    Diferentemente de mile Durkheim e Marcel Mauss, se em Louis Dumont, o tema da

    identidade pessoal do antroplogo enriquecido com a noo de pessoa e o tema da

    "identidade de atribuio", trazendo tona, dentro de certos limites, a dependncia do mtodo

    etnogrfico em Antropologia 26ao esquema espao-temporal que o contm, em Lvi-Strauss,

    a univocidade da estrutura inconsciente do esprito humano que est na raiz da investigao

    etnogrfica27, sendo no carter vazio de tais estruturas que reside sua eficcia heurstica.

    Em termos do que interessa a este artigo, foroso se reconhecer que, no

    estruturalismo lvi-straussiano, as categorias de entendimento empregadas pelo antroplogo,

    com base numa reduo translingstica, resolvem a problemtica do relativismo em

    Antropologia pela via da "opacidade do inconsciente" e de sua funo simblica. J em

    Dumont, as categorias de entendimento utilizadas pelo antroplogo sofrem a crtica de seus

    critrios de atribuio, sendo que a fora do questionamento da lgica da referncia

    identificante do antroplogo eclipsaria a problemtica da ipseidade.

    Em particular, o mergulho ortodoxo no estruturalismo lvi-straussiano aporta

    dificuldades ao trabalho antropolgico no que se refere tanto ao "privilegiamento da razo

    24Explorando-se os comentrios de Jean Piaget sobre a tradio intelectualista francesa e a explicao que trazseu paradigma racionalista em Antropologia, poder-se-ia aprofundar, inclusive, alguns aspectos importantesacerca da formao socio-psicogentica dos conhecimentos cientficos em Antropologia e de sua evoluohistrica, o que no vem ao caso neste artigo.25A respeito do assunto ver ROCHA. 1998.26 Cf. P. RICOEUR, 1991, impossvel no esquecer que, dentro do propsito deste artigo, na perspectivadumontiana da teoria da hierarquia, trata-se aqui unicamente das propriedades reflexivas da enunciao, umavez que a ordem cultural atuaria como fonte de particulares de base e instrumento de referncia identificante paraos sujeito biolgicos.27Se, cf. DURHAN. 1984. p. 9, o estruturalismo "contribui para recolocar a importncia da dimenso simblicada vida social, pelo biais do conceito de estrutura que se coloca no prprio cerne dos fenmenos

    culturais, pois implica o reconhecimento de uma lgica prpria da produo simblica", cabe reconhecer queele o faz s custas de uma hermenutica redutora que elimina o pluralismo coerente do smbolo.

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    analtica em detrimento, quase uma anulao, da razo dialtica"28, quanto supremacia do

    momento sincrnico. Tornava-se necessrio encontrar, na histria dos contatos entre

    sociedades e na prpria histria da disciplina, os limites e as eficcias do ato interpretativo na

    construo do conhecimento antropolgico29.

    Se no pensamento estruturalista tem-se "uma codificao de leis regulares"30pela via

    do sujeito do Cogito, no paradigma interpretativista, o ato de conhecer realizado pelo

    antroplogo depende da capacidade de interrogar-se sobre o poder de auto-designar-se face

    alteridade do outro.

    A proposta interpretativa, em que a figura de Clifford Geertz paradigmtica, valoriza

    a experincia etnogrfica e o trabalho artesanal das etnografias (essas so fices no sentido

    de "algo feito", "algo construdo"31).

    No contexto desta tradio, o encontro etnogrfico relaciona-se tanto ao contexto do

    encontro histrico em si, quanto construo da narrativa, uma vez que o sentido que

    proporciona um entendimento sobre o mundo, e a racionalidade apenas uma expresso desse

    entendimento. A racionalidade, tambm ela, est mesmo inserida dentro de um ponto de vista.

    Assim, s h racionalidade se houver sentido32.

    Estudar a cultura , portanto, estudar um cdigo de smbolos partilhados pelos

    membros dessa cultura"33 interpret-lo e no decodific-lo, como prope Lvi-Straus, numa

    "tentativa no de exaltar a diversidade, mas de tom-la seriamente em si mesma, como um

    objeto de descrio analtica e de reflexo interpretativa"34.

    Aproximando as dimenses sensveis e inteligveis do processo de construo de

    conhecimento, o paradigma interpretativista abdica de uma prtica positivista, j que o

    mtodo etnogrfico encerra-se no prprio ato de traduo35. Entretanto, permanece ainda

    presa armadilha das filosofias da conscincia, uma vez que preconiza que o mtier do

    antroplogo se centra no ato de "transformao da histria exteriorizada e objetivada em

    historicidade, viva e vivenciada nas conscincias dos homens e, por certo, do antroplogo"36.Chega-se, aqui, finalmente questo epistemolgica do abandono de uma reflexo

    mais criteriosa da dmarche simblica que configura o mtodo etnogrfico, a favor da

    28CARDOSO DE OLIVEIRA. 1983. p. 197.29CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.30AZZAN JUNIOR. 1993. p. 22.31AZZAN JUNIOR. 1993.32AZZAN JUNIOR. 1993. p. 16-17.33LARAIA. 1989 p. 64.34

    GEERTZ Apud. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 15.35CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 97.36CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 97.

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    supremacia da vontade subjetiva de sua unificao formal por parte do antroplogo. Um

    problema de considerao inevitvel para qualquer investigao etnogrfica que se pretenda

    consistente com a atualidade da Antropologia nos quadros do pensamento humanista

    contemporneo37.

    Conquista-se "a realizao de anlises que levam conjuntamente em considerao ao

    e representao no contexto de circunstncias especficas que se desenvolvem atravs do

    tempo"38 ainda que num esforo de supresso dos contrrios, dos antagonismos e das

    alteridades que interpelam constantemente o mtier do antroplogo, segundo o princpio do

    tiers exclu.

    Finalmente, seja a polmica da objetividade/subjetividade, seja a controvrsia do

    relativismo/etnocentrismo em Antropologia, ambas sucumbem tentao "dialtica" de

    excluso, tanto no ato de compreenso do paradoxo que subjaz s aes/intenes humanas

    quanto na forma como a se coloca o sujeito cognoscente do investigador nos termos de um

    princpio da no-dualidade lgica entre as ordens sensvel e inteligvel do conhecimento.

    A posio interpretativa do antroplogo em relao a seu "objeto" de estudo reside no

    s na aceitao da co-naturalidade de ambos; sendo "sujeito" humano como ele, o

    antroplogo encontra-se, ele prprio, assujeitado em seus atos de conscincia, atravs da

    linguagem, s formas simblicas que presidem suas funes cognitivas. Ou seja, s diversas

    vias que o esprito humano segue em seu processo de objetivao no mundo.

    Foi para sair do impasse de um esprito a priorique reina soberano sobre as formas de

    arranjo da vida social, em que o indivduo se sente presa da armadilha da "natureza humana",

    no processo de equilibrao entre inteligncia individual e vida coletiva, que a pistm

    Ocidental construiu operaes mentais mais complexas a partir da mxima de um

    sociomorfismo: " necessrio explicar o homem pela humanidade e no a humanidade pelo

    homem".

    O mtierdo antroplogo deriva-se, assim, deste processo antropossociopsicogenticodas representaes racionais no Ocidente moderno. Segue-se a idia de que certas formas de

    pensamento humano so o reflexo das preocupaes coletivas do grupo a que pertencem,

    chegando muitas vezes radicalidade da afirmao de que "no a conscincia do homem

    que determina sua forma de ser, seno sua forma de ser social que determina sua

    37CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.38FELDMAN-BIANCO. 1987. p. 11.

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    conscincia"39.

    Para alm da importncia de se discutir o contexto em que se d o processo de

    construo etnogrfica, as determinaes polticas, histricas e conjunturais da construo do

    enunciado e a avaliao da apreenso terica feita pelo pesquisador40, o que hoje deve ser

    ponderado pelas cincias humanas o fato de que o conhecimento humano, em sua

    pluralidade, segue todo um outro percurso que no o da causalidade finalista e fatalista da

    formulao de ordens complexas de estruturao do conhecimento41.

    De acordo com tais formulaes, todo o conhecimento (mesmo o produzido

    pelo antroplogo em torno da sua identidade pessoal na Antropologia) o conhecimento

    transcendente de uma totalidade na qual cada coisa se situa em relao unidade do

    conjunto, numa rede de correspondncias e similitudes simblicas cuja causalidade no

    se reduz a conexes de coisas a sries infinitas e simples. Isto em razo de que a funo

    simblica que preside as operaes cognitivas essencialmente funo eufmica,

    obedecendo a um dinamismo prospectivo a partir do qual o homem tende a organizar as

    suas formas ordinrias de conhecimento do e no mundo e a subsidiar at mesmo suas

    operaes lgico-formais.

    O mtodo etnogrfico e a prtica do "si-mesmo como um outro"

    Como sugere Peirano, "somente a incluso de um questionamento num contexto

    terico mais amplo poderia, em ltima instncia, abrir espao para um dilogo maior entre os

    praticantes da disciplina. Este tipo de dilogo implicaria combinar os problemas do encontro

    etnogrfico, a construo de etnografias e a reflexo terico-sociolgica"42.

    Na atualidade, os antroplogos esto atentos aos limites do mtodo etnogrfico,

    embora continuem reconhecendo sua eficcia metodolgica como instrumento-chave na

    formao de competncias em Antropologia. Apreende-se, pela investigao etnogrfica, a

    relao entre ao e representao, "desse modo, a prtica social adquire forma e sentido, masno estritamente determinada, admitindo-se todo um espao de arbtrio, criatividade,

    improvisao e transformao"43.

    39 Esta expresso oriunda dos postulados de um construtivismo ps-piagetiano que incorpora sociopsicognese do processo cognitivo tanto as vises de homem que o sustentam quanto o trajeto arqueolgicoque d suporte ao nascimento da figura homo sapiens sapiens. Ver a respeito, ROCHA. 1993.40Ver CALDEIRA. 1988.41 Ver a respeito E. CASSIRER, 1972, obra que poderamos fazer interlocutar tanto com PIAGET. 1970, S.

    VIGOTSKY, 1995 e H. WALLON, 1945 quanto com C. LEVI-STRAUSS, 1970 e LVY-BRHL 1925.42PEIRANO.1985. p. 262.43DURHAN. 1984.

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    No se trata, pois, de destruir uma ordem cientfica estabelecida, mas "desconstruir"44

    a ordem para melhor avaliar nossos papis na construo de uma temporalidade mais

    humanitria.

    Segundo se afirma, freqentemente, as interpretaes nascem no processo da

    investigao antropolgica, que produto, a um s tempo, do tema objetivado pelo

    pesquisador e do encontro de duas subjetividades. Pesquisador e sujeitos pesquisados

    vivenciam, no tempo de durao do trabalho de campo, uma espcie de jogos de interaes e

    de negociao de interesses, onde informaes so trocadas assim como afetividades,

    angstias, tenses, frustraes etc.

    O dinamismo do mtodo etnogrfico se afirma, assim, como frmula metodolgica

    coerente quando se detalha o esquema espao-temporal da constituio da pessoa do

    antroplogo na "operacionalizao" do entendimento dos "conjuntos de significados" que lhe

    foram transmitidos e desenvolvidos. E onde sua "ao humana", face s propriedades dos

    grupos/indivduos observados, entidades diretamente localizveis, " mediada por um projeto

    cultural no contexto das complexidades dos processos sociais"45.

    Dizer, portanto, que os dados etnogrficos recolhidos pelo antroplogo em campo e

    sua conseqente "descrio densa" nascem de uma relao intersubjetiva e dialgica colocar

    nfase no carter reflexivo que encerra o conhecimento antropolgico, mas no o bastante

    para o caso que se pretende estudar aqui.

    Trata-se de ir mais alm e pontuar, neste processo, o que est verdadeiramente em

    jogo, ou seja, o ato de configurao e reconfigurao do tempo que encerra a ao

    interpretativa em Antropologia.

    Encoberto sob o vu do relativismo/etnocentrismo em Antropologia, o que est em

    jogo, entretanto, o fato de que so as convergncias e divergncias inesperadas entre os

    dados recolhidos em campo e as expectativas/intenes do pesquisador ali situado, a lhe

    exigir uma submisso a um princpio formal de composio para os mesmos, que confrontamo antroplogo a sua identidade pessoal. No bojo do tema do relativismo/etnocetrismo

    encontra-se o problema tico-moral da busca da coerncia interna de sua produo etnogrfica

    que nada mais do que o esforo da ao reflexiva do seu sujeito cognoscente face

    descontinuidade de um tempo vivido rememorado e a seu compromisso com a manuteno

    do si.

    Atravs da composio narrativa que retoma o tempo da ao "em campo", o

    44DERRIDA apud MARCUS. 1986.45FELDMAN-BIANCO. 1987. p. 11.

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    antroplogo faz coincidir as redes de relaes nas quais os atores/comunidades se

    movimentaram com as que registrou em seu dirio de campo, numa referncia s negociaes

    cotidianas do sentimento de pertencimento ou excluso (negao voluntria ou excluso

    involuntria), onde todos os elementos do conjunto esto numa relao de intersignificao.

    Antes de ser texto, o mtodo etnogrfico fornece o contexto de descrio,

    considerando a mediao simblica, indutora de narrativa, a envolvida nos termos da sua

    legibilidade na textura da ao antes mesmo de ser submetida interpretao.

    Agenciando fatos, situaes, acontecimentos, personagens e seus dramas num todo

    ordenado (para alm de uma lgica acrnica ou cronolgica), o antroplogo emprega os

    recursos da configurao narrativa, busca re-presentar a ao. Para tanto, realiza uma

    atividade de configurao, que faz do mtodo etnogrfico uma soluo potica para os

    paradoxos de considerar junto, numa totalidade coerente, os episdios vividos e registrados

    em campo, rumo a uma fenomenologia da conscincia temporal de si, que fundante para

    compreender seus atos de interpretao.

    Neste plano, reconhece-se que no mais pode haver confuso entre a propriedade da

    enunciao narrativa do antroplogo, e suas marcas especficas de interpretao, e o

    enunciado das coisas contadas. Entre ambos emerge a compreenso do mtodo etnogrfico

    comopoesis ao transformar acontecimentos emhistria 46. A riqueza do mtodo etnogrfico

    reside, justamente, nesta tenso entre diversas modalidades simblicas do controle do tempo

    que configuram a mediao narrativa: a vivncia e a escritura que se desdobram na distenso

    temporal do si.

    No h ambio racionalista que d conta do fenmeno paradoxal que preside o

    mtodo etnogrfico. Nenhuma garantia que o antroplogo possa, no campo e na escritura de

    sua obra, descronologizar sua experincia reflexiva, a um s tempo, subjetivao e

    objetivao do ser, alterao e distoro de si.

    No h ambio racionalista que d conta do fenmeno paradoxal que preside omtodo etnogrfico. Nenhuma garantia que o antroplogo possa, no campo e na escritura de

    sua obra, descronologizar sua experincia reflexiva, a um s tempo, subjetivao e

    objetivao do ser, alterao e distoro de si.

    O mtodo etnogrfico permanece vigoroso, portanto, mesmo quando adota um estilo

    de narrativa realista, uma vez que sempre deixa-se captar pelo abismo dos fluxos de

    46

    Traslada-se, sem muita sofisticao, as consideraes de P. RICOEUR, 1994. Vol II, a respeito da mimese I emimese II no plano da anlise do mtodo etnogrfico.

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    conscincia do antroplogo. Em seus jogos de composio configuradora da etnografia, o

    antroplogopermanece assujeitado pela poesis que encerra a funo simblica da

    conscincia, onde o ser se d a conhecer.

    Pela nfase na reconstruo dos sistemas de valores, ethos, formas de vida social,

    mitos, rituais e crenas sobre os quais o mtodo etnogrfico se objetiva, o antroplogo no

    pode prescindir da inteligncia narrativa que suporta seu ato de conhecimento.

    A compreenso da narrativa , pois, significativa na formao de competncias em

    Antropologia na medida em que ela esboa os traos da experincia temporal humana,

    exigindo do etngrafo o domnio dos procedimentos de interpretao da ao semntica que o

    preside.

    Neste ponto h que se considerar um dos problemas das aprendizagens do mtierdoantroplogo, precisamente, saber inscrever a dialtica do si na configurao47da seqncia

    dos acontecimentos contingentes observados em campo, numa ordem compreensiva do

    mundo das aes humanas, onde a linguagem lanada fora de si mesma, por sua

    veemncia ontolgica, uma vez que atravs dela que a coerncia interna de sua obra

    conjuga a experincia temporal de seu ato interpretativo.

    O declnio do mtodo etnogrfico? Do estar l ao eu estou aqui

    No contexto destes comentrios, cabe aqui resgatar tambm a posio epistemolgica

    advogada pelos ps-modernos48, segundo a qual a intersubjetividade concretizada na

    experincia de campo reflete uma nova dimenso comparativa em Antropologia, atravs da

    preocupao com um "ns". Esse ns se refere a uma crise da ipseidade na conformao da

    identidade pessoal do antroplogo, onde se pensa a sua alteridade nos termos da uma

    condio imutvel no tempo, sendo que o texto etnogrfico recobriria, em sua composio

    formal, a ao etnogrfica experienciada em campo.

    Trata-se, agora, de replicar o real vivido, copiando-o no corpo da escritura do textoetnogrfico. Nos termos da crtica de Paul Ricoeur teoria da narrativa, vendo reforar-se

    mutuamente uma semitica do agente (actant) e uma semitica dos percursos narrativos, at o

    47 Segundo P. RICOEUR, 1991, p.169: Aplico o termo configurao a essa arte de composio que fazmediao entre concordncia e discordncia.48Localiza -se a oficializao desse movimento no Seminrio realizado em Santa F, Novo Mxico, em 1984,do qual participaram, entre outros, James CLIFFORD, Mary L. PRATT, Vincent CRAPANZANO, Renato

    ROSALDO, Stephen TYLER, Talal ASAD, George MARCUS, Michael FISCHER, Paul RABINOW etc. Entreeles, George MARCUS e Michel FISHER defendem a disciplina como crtica cultural.

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    ponto em que aparecem como percurso do personagem49, visto aqui como a figura do

    antroplogo. O mtodo etnogrfico dissolve-se, assim, no movimento da conscincia dos

    personagens da ao relatada, at mesmo no ato de aniquilamento dos mesmos, em prol da

    etnografia posta a servio da no-narratividade da identidade pessoal do antroplogo.

    Na assertiva de que a Antropologia "no se desenvolve como perspectiva terica, mas

    como resultado poltico da pesquisa"50 e na crtica ao formalismo do gnero realista que

    contamina esta matriz disciplinar, os ps-modernos investem na desconstruo de seus

    paradigmas pela crtica inconsistncia de sua escritura, em que o lugar autoral do etngrafo

    encontra-se freqentemente encoberto tanto quanto suas intenes polticas veladas.

    Talvez se possa aqui parafrasear Paul Ricoeur, afirmando-se que os ps-modernos,

    confrontados ao carter dialgico da experincia etnogrfica51e em sua "vigilncia formal",

    ao submeterem crtica a escritura etnogrfica em Antropologia, permanecem parasitrios da

    motivao realista que a engendra. Tal realismo se dissimula, agora, sob a observao

    impessoal do encadeamento da totalidade das vidas humanas que estuda na escritura do texto

    etnogrfico, provocando uma crise interna ipseidade, pela eliminao da totalidade da

    obra etnogrfica em prol da factualidade do acontecimento.

    Desvendando, com os ps-modernos a justo ttulo, o carter ficcional da narrativa

    etnogrfica, o argumento da verossimilhana foi deslocado da intriga que engendra a narrao

    etnogrfica para os personagens da ao que a conduzem: o antroplogo e a comunidade

    pesquisada.

    Poder-se-ia dizer, sem equvocos, que os ps-modernos, ao final do percurso, no

    sentido de explicitar a inteno representativa que motivava a conveno do gnero realista

    em Antropologia, sucumbem ao esforo de libertar-se de qualquer paradigma ao criticarem as

    condies formais que criam a iluso de proximidade do antroplogo com seus "objetos" de

    estudo52pela neutralizao da questo da ipseidade at a sua crise.

    Num ato de desapossamento do si e de decomposio da forma narrativa, os ps-modernos transpem os seus limites pelo tratamento impessoal dado a ela, eximindo o

    antroplogo da responsabilidade da manuteno do si que est na origem das razes de suas

    escolhas e julgamentos segundo os quais constri sua escrita etnogrfica.

    49RICOEUR. 1994.50PEIRANO. 1985. p. 261.51 Embora no seja inteno deste artigo, valeria a pena confrontar a produo torico-conceitual dos ps-modernos com a crtica feita por G. DURAND, 1993, a respeito da insistncia, em Antropologia, em seconfundir smbolo e signo no momento em que a produo escrita se pretende uma estrutura discursiva

    autnoma.52Impossvel no aproximar os comentrios que faz P. RICOEUR. 1994, p. 16-25, ao romance moderno e scrticas dos ps-modernos dirigida ao gnero realista em Antropologia.

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    Para a Antropologia dita ps-moderna, no se trata apenas de "ler" e "traduzir" um

    corpus estvel de smbolos e significados, como nos sugere Lvi-Strauss, ou interpretar as

    interpretaes, segundo Geertz, "adere-se agora a uma definio de cultura temporal e

    emergente, na qual os cdigos e representaes so suscetveis de serem semprecontestados"53.

    Na expulso das convenes realistas, a hermenutica do si abandonada, entre os

    ps- modernos, em proveito de uma reflexo sobre as condies formais de uma

    representao verdica do real. Confunde-se o ato de construo da verossimilhana com o de

    "representao"; ignora-se aqui o desdobramento epistemolgico que subjaz no ato de

    configurao de uma descrio etnogrfica.

    Poder-se-ia pensar que a questo da ipseidade foi por princpio eliminada dosjulgamentos dos ps-modernos a respeito da identidade pessoal do antroplogo. Ironias

    parte, os ps-modernos explicitam, mais que o gnero realista, o plano da verossimilhana na

    escritura do texto antropolgico, uma vez que a busca do princpio da concordncia sobre a

    discordncia que faz parte, mais uma vez, da condio da inteligibilidade do si-mesmo do

    antroplogo que "no cessa de preceder e de justificar-se a si mesma"54.

    Segundo alguns ps-modernos, na etnografia realista ou modernista, a construo de

    uma etnografia segue trs quesitos fundamentais: espao, tempo e perspectiva ou voz. Trs

    requisitos que do conta das estratgias para estabelecer a presena analtica do etngrafo na

    produo de seu texto: o dilogo adequado de conceitos analticos (onde se privilegiam

    autobiografias, que melhor permitem avaliar as experincias histricas "carregadas na

    memria e que determinam a forma de movimentos sociais contemporneos"), a bifocalidade

    e a justaposio crtica das possibilidades55.

    O carter bifocal da pesquisa etnogrfica, "um carter que ressaltado pelo significado

    modernista do real", conduziria, paradoxalmente, "a uma diversidade cada vez maior das

    ligaes entre os fenmenos, antigamente concebidos como dspares e pertencendo a mundos

    diferentes"56.

    53DWYER, 1979 e CLIFFORD, 1986 Apud. M. PEIRANO. 1985.p. 254.54Cf. P. RICOEUR. 1994. Vol II, p. 45.55

    MARCUS. 1986. p. 10, 11, 12 e 14.56MARCUS. 1986. p. 20.

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    guisa de concluso

    Em sua crtica exacerbada ao positivismo instrumental em Antropologia, os ps-

    modernos realam a dimenso poltica que engendra a escritura do texto etnogrfico pelo vis

    da crtica da ausncia do sujeito da enunciao. Com os ps-modernos pode-se ainda falar da

    unidade narrativa da vida? Ou estaremos diante da "morte do mtodo etnogrfico"?

    Certamente a resposta negativa, uma vez que os mltiplos sentidos dos termos

    "autor" e "posio do autor", antes de eliminar o ato interpretativo em Antropologia, pem em

    destaque a presena, no seu interior, de uma "exegese espiritual" 57que acompanha toda a

    produo do conhecimento humano.

    No entanto, presos s armadilhas do "pensamento de ocasio", os ps-modernos

    concluem que na organizao da realidade social contempornea que se coloca a exigncia

    de "um quadro de referncia diferente" para a produo antropolgica, sendo ela mesma "um

    projeto de auto-identidade que ainda no se completou ou que talvez no seja possvel

    completar"58.

    Ausenta-se, na crtica, a razo da qual deriva a crtica cultura no pensamento dos

    ps-modernos, uma referncia s heranas escolsticas do pensamento antropolgico que o

    fazem herdeiro de uma viso do Ser oposta ao no-Ser, separando o eu e o mundo, o sujeito e

    o objeto do conhecimento.

    Por isso, vale lembrar aqui a obra que inspira este artigo, O si-mesmo como um outro,

    e os comentrios que faz Paul Ricoeur sobre os traos da experincia temporal que separam

    identidade-idem e a identidade-ipse na formulao da identidade pessoal, para o caso do

    mtier do antroplogo e seus desdobramentos epistemolgicos na gerao do paradoxo que

    encerra o mtodo etnogrfico: fazer convergir o tempo da ao e o tempo da narrao.

    A "falha secreta" do pensamento antropolgico contemporneo, inclusive dos ps-

    modernos, talvez resida no enfoque moral mais do que tico do mtodo etnogrfico ao ignorar

    a distncia que separa "a modstia da manuteno do si e o orgulho estico da inflexvelconstncia a si", que s faz colocar o antroplogo na humilde situao de um autor em busca

    de seus personagens para melhor compreender seu lugar no mundo.

    57

    Cf. expresso cunhada por G. DURAND. 1979.58MARCUS. 1986.

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    Ttulo em portugus

    A interioridade da experincia temporal do antroplogo como condio da produo

    etnogrfica.

    Ttulo em ingls

    The interiority of the temporal experience of the anthropologist like the condition of the

    ethnographic production.

    RESUMO

    Este artigo traz uma reflexo sobre o mtodo etnogrfico enquanto encapsulando o tema da

    identidade narrativa do antroplogo, em especial, enfocando o problema tico-moral da busca

    da coerncia interna de sua produo etnogrfica atravs da anlise do processo de

    construo do conhecimento antropolgico. Trata-se de pontuar, neste processo, o que est

    verdadeiramente em jogo, ou seja, o ato de configurao e reconfigurao do tempo que

    encerra a ao interpretativa em Antropologia.

    ABSTRACT

    This article brings a reflections about the ethnographic method while encapsulating the

    identity theme describes by the anthropologist, in special, focusing the moral-ethic problem of

    the searching of the internal coherence of its ethnographic production through the study of the

    process of the anthropologic knowledge construction. It is to point, in this process, that is

    really in the play, or, the act of configuration and reconfiguration of time that stops the

    interpretative action in anthropology.

    PALAVRAS CHAVES EM PORTUGUS

    Mtodo etnogrfico, etnografia e narrativa, pesquisa antropolgica

    PALAVRAS CHAVES EM INGLS

    ethnographic method, ethnographic narrative, anthropologic research