cama desfeita

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1 Artur Portela CAMA DESFEITA Romance

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ENFIM! A REPÚBLICAA REVOLUÇÃO TRIUNFANTEO BOMBARDEAMENTO DO PALÁCIO REAL– A FUGA DO MONARCA– A ATITUDE DAS FORÇAS REVOLUCIONÁRIAS– O POVO ÉBRIO DE ALEGRIA– A SALVAÇÃO DO PAÍS

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  • 1

    Artur Portela

    CAMA DESFEITA

    Romance

  • 2

  • 3

    memria de Manuel Teixeira Gomes

  • 4

  • 5

    ENFIM! A REPBLICA

    A REVOLUO TRIUNFANTE

    O BOMBARDEAMENTO DO PALCIO REAL

    A FUGA DO MONARCA

    A ATITUDE DAS FORAS REVOLUCIONRIAS

    O POVO BRIO DE ALEGRIA

    A SALVAO DO PAS

    JORNAL * *****

  • 6

  • 7

    A situao histrica

    que esta narrativa,

    em alguns passos,

    assemelhar

    um ponto de partida

    para a imaginao.

  • 8

  • 9

    NDICE

    1. As duas balas 2. O Comissrio 3. A palma da mo 4. Uma ternura feroz 5. A pera da Cidade 6. Os gatos 7. O mido 8. Di l, di qua! 9. Jotap sai de casa 10. Vo pela calada 11. O guarda estranha 12. O Heri fita-se no espelho 13. Outro mido 14. A horta 15. O jornalista interroga-se 16. A patroa estranha 17. O Convento adivinha 18. Que est ele ali a fazer? 19. Feliciana sai de casa 20. Outra cama 21. As guas 22. A farda do Senhor Coronel 23. O jornalista corre ao Descampado 24. S neste Pas! 25. Lenos e xailes

  • 10

    26. Qual l deles! 27. A maleta do clnico 28. O Camareiro insiste 29. A Loja um torvelinho 30. Una notte abitata! 31. Alto l! 32. O coro dos Goliardos 33. Temendo o pior 34. O smoking entornado 35. Um sbito bon 36. Janeiro por Outubro 37. O santo e a senha 38. O garoto da presso de ar 39. Viste a lua? 40. A questo so duas 41. No justo! 42. A fuga 43. Os regimentos no saem 44. O Club um tumulto 45. Morto, essa noite 46. Aguentar!, disse 47. Estranha identidade 48. Cinquenta e tantas 49. A fotografia de Jotap 50. Os guardas trancados 51. Oitenta e muitas 52. Viram o Jotap? 53. Teria o Comissrio sorrido? 54. Fogo! 55. C` una rivoluzione! 56. Um rio de chapus de coco

  • 11

    57. O grande Baslio 58. O Cnsul apanha o comboio 59. O Ministro Plenipotencirio 60. Os heris no so fceis 61. A cadeira do dentista 62. O leno branco 63. Visto do Descampado 64. Que gente esta? 65. Os ferozes marinheiros 66. O Palcio bombardeado! 67. S no trinco 68. A esto eles! 69. Herr Kommissar 70. O 23 do Penedo 71. Os culos do Senhor Coronel 72. Sonhava correr 73. Alameda abaixo 74. O espio 75. Uma entrevista para O Amanhecer 76. Fazemos fogo vista? 77. O chapu voador 78. O garoto est ferido! 79. A floresta em movimento 80. Digamos a rendio 81. Foi preciso chegarmos ns! 82. O 131 contra O 74 83. O avistamento 84. Guarda que bello! 85. No sabia, mas sentia 86. Ao Deus dar 87. Saem as Demoiselles

  • 12

    88. E elas Mulheres! 89. Lavada em lgrimas 90. Canho ou pea? 91. Jotap assesta os binculos 92. Na ltima fraco de segundo! 93. L est o Legado 94. Vir, ela? 95. A Senhora Me 96. O Grande Industrial 97. Acusaes mtuas 98. O almirante estrangeiro 99. Os generais aderem 100. O Conselheiro exila-se 101. Sai O Amanhecer 102. O homem da sachola 103. O Cara Comprida 104. Disseram-lhe que esperasse 105. Os Chefes do Derrube 106. O dia foi ontem! 107. Fotografia varanda 108. A Pintura comemora 109. A Bandeira 110. Visto do Mar 111. Os Funerais 112. Ostensivamente fechadas 113. Aquele o Comissrio! 114. Anjos e Heris 115. Os operrios posam 116. A greve 117. Chegar o dia 118. A Bssola

  • 13

    119. Na defesa dos seus interesses 120. Cama desfeita

  • 14

  • 15

    1

    As duas balas

    H duas balas no ar. Vistas de onde estamos, que o seu futuro distante, so praticamente simultneas, embora haja um dia e meio de diferena entre uma e outra. A primeira bala no sabe da segunda, claro. A segunda sabe da primeira. Porventura no teria sido disparada se a primeira o no tivesse sido. De onde estamos, no se ouve mais do que um estampido, talvez com eco. Que nos parece a hesitao de um tiro ou o muito ligeiro desfasamento dos dois. Uma das balas, levaram-na na cabea desesperadamente ligada de um homem. Operaram-no a chorar. Outra soou numa azinhaga, ps fim, no sem nobreza, a uma angstia que recusava a desonra. O primeiro morto vestia uma bata branca. O segundo, uma farda de gala. Estava tudo perdido. Estaria?

    A memria isto: uma emoo. Uma reverberao. E um mistrio.

    Em rigor, no h rigor.

  • 16

    O pas antigo e curto. Visto do Mar, que ali predomina, no mais do que uma praia feita de terra. Que tem do lado de l outro Mar que outro Pas. A esperana , neste em que estamos, uma teima do prprio desespero.

    H uma bandeira. H duas. Uma ainda no est pintada mas j .

  • 17

    2

    O Comissrio

    Aquelas duas balas decidiram tudo.

    Eram tantos, na sala, a explicar por que estava tudo perdido, e to exaustiva, cumulativa e persuasivamente, que ele se decidiu. Olhou para quem devia. Percebeu o significado do devolvido olhar. E anunciou que iria. De assombro, poucos tentaram dissuadi-lo. Houve quem no quisesse ouvi-lo, tendo-o porm ouvido muito bem. Houve quem declarasse que o seguiria, tendo-o porm deixado ir frente e depois virado na primeira sombra de desvio. Houve quem anunciasse que o seguiria, desde que.

    - No h desde que, h sim ou no.

    Disse isto com aquela sombra tmida que era, tirando a vibrada cintilao das lunetas, todo ele.

    - Como?

    - H sim. H no.

  • 18

    Hesitaram.

    Enquanto diziam que no ou que sim, o Comissrio encostou-se a uma mesa alta. A escrever uma nota. Enquanto atrs dele se geria o silncio. Se tentava gerir um silncio tumultuoso sobre aquilo que quase todos pensavam e poucos ousavam ali dizer. E que era isto: o prestgio, o prestgio, estas coisas fazem-se levando frente prestgio, patentes, condecoraes. E ele, vejamos, ele era o que era, era apenas o que era, no que no fosse quem honradamente era, e no que no servisse a Ideia, mas que isso, ele que desculpasse, no chegava.

    Quando acabou de escrever a nota, voltou-se para trs:

    - Ento?

    Ouvira tudo o que no tinha sido dito. Nem um sorriso. A no ser o das lunetas.

    Assentiu, ao fundo, quem devia.

    A carta que ele dobrou, meteu num envelope, fechou e entregou a um rapaz, tudo pausadamente, comeava assim:

    Hermnia, no me esperes cedo.

    Estava de farda de gala.

  • 19

    3

    A palma da mo

    Tudo ali cabe na palma da mo. A Alameda dobra a Cidade em duas. Para a Alameda escorregam as casas e esvaem-se as caladas, a um lado e a outro. No cimo da Alameda, o Descampado. C em baixo, a Praa.

    Igrejas fazem paredes-meias com quartis, conventos so hospitais, h caladas que entortam os ps, escadinhas que quebram espinhas, jardins que cabem num abrao de rvores, fontes, repuxetes, muros atrs de muros, a Vereda, onde se concentram e serpenteiam palacetes, a pera.

    H, abaixo da Praa, outra Praa, fronteira a um rio largo que a outra margem, alta, mura. Velas, barcaas, gritos de gaivotas. E sempre, vigilante, um navio estrangeiro. Uma gigantesca e densa bisarma, ou picada de luzes ou drapejada de bandeiras.

    Longe, seguindo-se a margem, para l da Vereda, que onde so os palacetes, para l de quintais e de esparsas quintas, o Palcio.

  • 20

    Dia adiante soam cavalos, preges, apitos, sinos, desordenadas tropas fandangas, rombas rajadas de pombos, esforadas manivelas, um ou outro Arreda!.

    Contra grandes lenis-velas, painis de azulejos devotos e sussurradas sombras de trepadeiras, tumultuam bons, cocos, chapus altos, barquinhos que levam espuma por baixo. A noite acende luzes que dramatizam a escurido.

    Subindo escadinhas e torcendo direita e direita e depois esquerda, h uma casa, baixa e estreita.

  • 21

    4

    Uma ternura feroz

    Nessa casa, h dois corpos enchendo uma cama que quase todo o quarto que quase toda a casa. Desdobram-se os movimentos. Multiplicam-se os corpos. Rolam os lenis. E neles os corpos. Ondulam os lenis. E neles os corpos. Cobrem, descobrem, prendem, repuxam. As pernas ora so quatro ora so trs. Braos, umas vezes demoram, outras agarram. Outras caem. As mos ou se soltam da cama, e pendem, e so de mulher, ou assentam na cama e apoiam o corpo, e so de homem.

    O homem, umas vezes soerguido, ri perante o seu prprio riso num espelho. A ternura , como deve, feroz. Diz isso mesmo o jogo de sombras que o candeeiro de petrleo projecta e inventa e crepita nas paredes nuas e altas. No mudas, que a madeira arfa.

    Aos ps da cama desfeita est um embrulho.

  • 22

    5

    A pera da Cidade

    Longe, a pera.

    Cantara a pera, essa noite, uma revoluo distante. E fora muito e muito sinceramente aplaudida por todos. Embora as palmas, sobretudo as de l de cima, desejassem mais, e mais do que um encore. Pareciam reclamar uma festa outra, uma revoluo outra. O coro, metade dos homens, essa noite, usara armas autnticas. Para qu? Pois porque a pera, por uma vez, acertara.

    (Apesar de as balas outras, de que j falmos, uma disparada por acaso, numa exaltao de uma patologia devidamente caracterizada, a outra por vontade trgica do atirador, e na lgica da honra, parecerem que, com elas, o Destino frustrava uma vez mais, naquele pas, a esperana. No ainda, no ainda!).

  • 23

    Onde vo, parece que correndo, e alguns meio pintados, metade dos homens do coro?

  • 24

    6

    Os gatos

    Dir-se-ia que o dia no se esgotou.

    Ser assim durante dois dias. Feitos de desejo e de memria, de ansiedade e de risco. Contados para a frente e para trs. To ali mesmo iniciados, to dispersamente vividos, to depois evocados. Dois ou trs? A luz no diz. A memria j no sabe.

    Neste momento, a noite est ali. Mas o dia tambm. Indecisa, a noite. Indeciso o dia. O crepsculo amanhece. Entardece a manh. Depende do bairro. O cu hesita. Da uma ansiedade. Os candeeiros no so precisos. Acesos, parecem apagados. Como se houvesse um espanto no ar. Uma prata velha, martelada. Um estanho. Um chumbo. Uma expectativa.

    Um cenrio da pera da Cidade: aquela gaivota est parada no ar, aquela estrela est pintada, a sombra ilumina.

  • 25

    Ser assim at ao fim. Uns sabem por que ser, outros por que foi. Os gatos esto confusos. Fazem menos barulho do que o muito pouco que em Outubro fazem.

  • 26

    7

    O mido

    Passa na rua um mido a correr desfilada. Parado teria uma cabea enorme e uma enorme trunfa que um bon aperrado na testa guarda. Em corrida so os ps que so enormes. So os ps que vo frente. Vai descalo.

    Se fosse um ardina, apregoava.

    Pisa, mal pisa, toca, as pedras certas. Umas vezes teria de tocar esta e mais aquela, mas nem toca. A corrida sabe a Cidade de cor. As escadinhas, voa-as o mido, os degraus de quatro em quatro.

    Quando uma esquina e tem de cortar direita ou esquerda, deixa a mo um instante espalmada na parede, como se por esse instante colasse e assim segurasse. E assim se arremessasse, ele, mas j outro, na rua perpendicular. Como se fizesse trapezismo horizontal.

  • 27

    Leva um riso na boca e um meio assobio meio respirado silvo nos dentes. Um riso entre si e si. A porta de armas do quartel. Apregoa o mido para dentro de si prprio, j ali adiante!

  • 28

    8

    Di l, di qua!

    Esperaram o maestro e o cengrafo, porta dos artistas, que o grande tenor deitasse abaixo, ao espelho, a pesada maquillage e desenfiasse o costume revolucionrio do papel que lhe cabia na agitadssima pera. Tinham combinado aventurar-se pelas ruas por eles imaginadas como desertas.

    - Di l!

    - Di qua!

    - A me mi hanno detto qui di l!

    - A me, di qua!

    Dois trombones nativos quiseram ser teis:

    - A Praa?

  • 29

    - Querem ir para a Praa?

    - La Piazza!

    - A Praa! A Praa!

    - Si, si, la Piazza, la Piazza!

    - Para ali, a descer!

    - A descer!

    - Di l?!

    - Para ali!

    - Di qua?!...

    - Sim, sim, para ali!

    - A descer, a descer!

    - Su?!

    - Su, como?

    - Su!

    E choveram gestos.

    Entreolharam-se os trombones.

    - Su! assentiram, finalmente.

    - Grazie! Grazie mille!

    - Arrivederci!

    - ...noite!

    - ...oite!

    J iam os trombones no alto de uma escada de pedra.

  • 30

    9

    Jotap sai de casa

    De novo, na casa baixa e estreita. Que um quarto. Que uma cama. Que foram dois corpos.

    Jotap veste-se num jogo de sombras que sobem a parede. Que se esguiam e se partem. E no tecto se desfiguram e se agitam. Colocara o candeeiro no sobrado. Olha, de vez em quando, com ternura, para o lado de Feliciana. Ela dorme.

    (No dorme, espreita-o).

    Ele est pronto em meia dzia de gestos sumrios e cuidadosos. tipgrafo e sai sempre com o bon e um casaco que no escolhe porque no tem outro. Nem acha que precise.

    Desta vez, as diferenas so duas. Sai de noite e leva um embrulho que no so livros. uma espingarda. J a verificou trs vezes. Uma dobra no pano em que a embrulhou e pode ser o que ele disser.

  • 31

    - Isso o que ?, pergunta-lhe, da cama, a cara emaranhada de cabelos, Feliciana.

    - Dorme.

    - Isso o que ?

    - A ferramenta.

    Diz a ferramenta e sorri.

    Ela no percebe tudo, percebe porm que tem de ser uma ferramenta. Seja!

    - Sais j?

    - Saio.

    - A esta hora?, diz ela, a alongar-se para as bandas do relgio.

    - Vm buscar-nos l baixo Alameda. Dorme.

    Nos?, pensa ela.

    Ele acrescenta:

    - para longe. Dorme.

    Longe? O jornal no longe, pensa ela.

    No diz.

    Ele vai a sair e detm-se. Olha-a de uma forma como nunca a olhou. Dir-se-ia que. Sai. Num repente, numa parece que zanga. Numa parece que fora.

    Ela est encostada cabeceira da cama.

    Ele, na rua, sorri.

    Esta Feliciana!

    Ela, dentro, sorri.

    Este Jotap!

  • 32

    A cama est desfeita.

  • 33

    10

    Vo pela calada

    A rua devia estar vazia mas h mais gente. Pelo menos outro e outro que, como Jotap, fecham atrs de si as portas. E outro. Devagar. No se distingue se com mais cerimnia se com mais prudncia. As chaves. Uma volta, duas voltas. Deixam ficar as mos um pouco nas portas. Abertas as mos. Despedem-se delas? Confirmam que as fecharam? Sabero, as portas? Olham uns para os outros, vigiam-se.

    Uns levam chapu, outros bon, alguns, muito novos, nada.

    Olha o Lus!

    Olha o Gonalo!

    O Vtor tambm!

    Levam, quase todos, embrulhos.

  • 34

    Vo pela calada. Pedra a pedra. Equilibrando-se em cada uma. Ligeiramente oblquos. E oscilantes. Digamos que as sombras, digamos que eles. Os ombros um pouco encolhidos. Biqueiras, palas, abas, perfis. Pontas de embrulhos. Pisando to sem barulho quanto possvel. Danando furtivamente. Consigo prprios? Ou no, sendo outros as sombras?

    Dali para diante, h sempre mais dois ou trs que assomam s ruas seguintes.

    - B`dia!

    - B`dia!

    (Dia?).

    Descem todos, e j vo doze ou treze, quinze!-quinze!, dezasseis, dezassete!, em direco Alameda.

    No querem levar o embrulho ao ombro, mas h um que, instintivamente, o faz. E depois outro. E depois vrios. Uns, experientes, discordam: Irmo, ao ombro no!, Primo, ao ombro no!, aos ombros no! Sorriem uns para os outros.

    - B`dia!

    - B`dia!

    Brincam aos soldados?

  • 35

    11

    O guarda estranha

    H um guarda, acolhido a um portal, que estranha. V vir descendo a calada, em direco Alameda, uns tantos homens, e no poucos, para a uns vinte, para a uns trinta, muitos com no sabe qu ao ombro. Naquela noite confusa, meio acordada, meio sonmbula, aquilo dir-se-ia. Dir-se-ia uma arma.

    Dir-se-ia que trazem, todos, armas!...

    Estranha tambm, o guarda, o passo deles. Ao longe pareceu-lhe um passo disperso, felino e trocado, uns para aqui, outros para ali, uns depressa, outros devagar. Mas aproximam-se e parecem, parecem mesmo!, cada vez mais conjugados, mais descuidados e ferozes. Um passo-passada, cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais, cadenciado. Um-dois, um-dois, um-dois, isto o que ?, isto o que vem a ser?!...

    O guarda s um. Tem uma arma e um apito mas s um. E eles so a rua toda! Enfia-se mais no portal.

  • 36

    Desce, ao longo de si, por si a baixo, e v que tem botes vista, que a farda tem barriga a mais e que os botes cintilam e o denunciam. E, no havendo mais portal, nem mais sombra, e assim no havendo mais recuo, meteu o homem a barriga para dentro. Escondendo-se.

    Embora, no dia seguinte, jurasse a si prprio que um dos homens que por ali vinham descendo, ao passar o portal, passara mesmo rente a ele, e lhe lanara, a ele e ao seu silncio e ao seu susto, um olhar meio insolente meio divertido.

  • 37

    12

    O Heri fita-se no espelho

    Esperam-no l fora. Ouve-se o escarvar de cavalos. H tambm um, talvez dois motores a trabalhar.

    Pe o cinto do sabre. Est a olhar a nota que lhe tinham enviado. Aberta sobre a mesa. L-a mais uma vez. Tanto pode ser tudo como nada: todas as noites so assim, pelo menos para ele.

    Ele sabe. Sabe-o por aquela vocao de fatalidade que aquele pas entristece as coisas e os homens, decaindo sempre da altura que foi e da grandeza de que se arroga. Fita-se no espelho. Devolve-lhe o espelho o olhar. No tem idade, tem a que preciso. Embora tenha, dir-se-ia, toda.

    V, atrs de si, a porta alta entreaberta. a mulher, que assoma e o contempla.

    - Ser hoje?, pergunta ela.

  • 38

    - Os despachos, uns garantem que sim, outros garantem que no. So assim os despachos do Ministrio, para garantir o que no sabe!

    - E tu achas que...?

    - Eu acho o que sou. Vou.

    Ela sorriu:

    - Como sempre!

    Beijou-o. Fez meno. Era o suficiente. Era o costume.

    (Ela, porm, achou que havia, na meno, mais tempo, digamos, mais gravidade, um travo mesmo de ternura).

  • 39

    13

    Outro mido

    Passa na rua, desfilada, um mido. Outro. De chapu, este, e pelas sobrancelhas. Se no voa. Ps, como os do outro, descomunais mas leves. frente dele. Palmas numa oblqua quase vertical. Devoram os ps o caminho. Ouve-se o pisar, ouve-se o palmatoar. Ouvir-se-, numa poa, o esparrinhar. Vem quase do lado de l da Cidade e leva, no corao, um bater veemente e festivo e ressoante: depressa, depressa, por aqui, por aqui! Inventa um caminho que no h, mas h. Feito de ruas, ptios, traseiras, muros, saltos, trepares, escadas, tabiques, muros e mais muros. E mais muros. Em linha recta. Aquela que as gaivotas vem e sabem. E fazem por sobre os macios de casas. Caladas, quintais, escadinhas, todas de improviso, ao momento, todas conforme o fregus que ele prprio, s mesmo um garoto.

    E aquele.

    Eu!, pensa ele.

  • 40

    (O caminho, se o caminho filosofasse, filosofaria que era ele que magicamente se ia abrindo para o garoto, e s para o garoto, e se fechava, logo aps a sua passagem: colavam os becos, subiam os muros, fechavam os tabiques. Os caminhos clandestinos e imaginativos, isto , secretos, gostam dos garotos, devolvem aos garotos o gosto do que so, cumplicemente. Tambm esta Cidade tem estes demnios travessos e benfazejos, nela, to ao Sul, diz-se que rabes, que vivem nos golpes de vento, nos desvos e nos ns do tempo).

    Traz o mido, na mo fechadssima, um papel. E, nos lbios, um post-scriptum.

    O regimento manda dizer que.

  • 41

    14

    A horta

    Vai o Jotap descendo para a Alameda. Os outros no o seguem. Simplesmente vo. (Ao mesmo?). H de sbito um barulho adiante, ao lado. Acautela-se o Jotap. Faz leve o passo. E to silencioso quanto pode. Pisando, tacteando o empedrado que ondula, que resvala, que salienta ora uma pedra ora outra. Depois detm-se. Detm-se quantos por ali vo. O barulho insiste. Insiste. Insiste. Que ? Que ser? quela hora.

    Naquela noite?

    Interrogam-se os olhares: que poder ser? Um golpe, tempo, e depois um arrastar. Um golpe, tempo, e depois um arrastar. Um golpe, tempo, e depois um arrastar. E arrasta. E arrasta. E arrasta.

    J so talvez, imveis, atentos, em frente daquilo que um muro, uns vinte. Pe-se Jotap em bicos de ps. Olha por cima do muro. No que

  • 42

    Jotap seja alto, mas que no alto o muro. Detm-se o barulho. Sorri Jotap. Ri. Olha para trs, para os outros. E solta, abafadamente:

    - aqui um vizinho!...

    - O qu?!...

    - A sacholar! A sacholar a horta!

    - A esta hora?!...

    Diz, de l, o da sachola:

    - Pois, a hora boa! No sabes, citadino?!...

    - Famosas couves!...

    - E alfaces!...

    Tudo em voz abafada. Mais os risos.

    - Olhe que hoje...!

    - Hoje qu?!... pergunta o vizinho.

    Jotap manda calar o avisador.

    (E pensa: este no tem pinta de carvoeiro).

    - Hoje, como todos os dias, vai-se sacholando!... diz o vizinho.

    E l vo todos os que vinham rua abaixo. Acima fica o barulho. Golpe, golpe, golpe. Arrasta. Arrasta. Arrasta. Sachola. Sachola. Sachola.

    - Citadinos...

    J no ouvem.

  • 43

    15

    O jornalista interroga-se

    As janelas so cegas. As informaes so muitas. Anda o jornalista de um lado para o outro na redaco. De uma extremidade a outra extremidade. Entre as secretrias infestadas de papis.

    - certo!, tinham-lhe dito.

    (Os jornalistas so os ltimos a saber e os primeiros a dizer).

    O primeiro tiro, aquele que varou o homem que todos diziam que e que, podia ter sido um tiro avulso e pessoal, podia ter sido um tiro poltico: tudo se passara num hospital que tratava dessa paixo que a loucura e tudo estava em aberto. O segundo tiro, por mo prpria, e militar, moralmente exigente, e disparado beira de uma estrada, parecia dizer tudo. At porque muitos o ocultavam. Num caso, um alienado. Noutro, qu se no a honra?, mas em causa porqu?, por que havia de ser se no pelo que muitos sabiam e todos intuam? Tiros interessados. Tiros com um

  • 44

    mbil e um nico mbil. Tiros que derrotam, e assim adiam? Ou que, pelo contrrio, atiram para a frente? Tiros que simultaneamente matam e honram. Assim se lhes sobrevive.

    Ia-se sucessivamente escancarando, e na parede batendo, com estrondo, a porta da redaco.

    E quem chegava anunciava:

    - Parece que o povo mexe!

    Outro estrondo:

    - Parece que as Lojas se decidiram!

    Outro estrondo:

    - Parece que h cada vez mais fogueiras no Descampado!

    E outro:

    - Parece que a tropa se concentra na Praa!

    E outro ainda:

    - Parece que O Heri saiu!

    Os brados eram o jornal. A porta era a pgina.

  • 45

    16

    A patroa estranha

    A patroa estranha: nada se passa e no entanto tudo se passa de outra forma. Porque vai-se a ver e tudo e nada so como sempre. Os clientes esto para ali, uns falam que se desunham, outros embezerram, outros trazem para ali coisas de infncia, um chora, outro ri e no se explica, outro traz um embrulho, outro sai porta fora, num arranque, entram dois militares muito srios, muito compenetrados, parece que celebram qualquer coisa, que se despedem, no escolhem, no vo atrs das Demoiselles corredor fora, ningum escolhe, ningum vai, corredor fora, atrs das Demoiselles. Elas prprias, uma at j o disse, no sabem explicar, mas esto comovidas. No tristeza, comoo. H lenos amarrotados em mos incertas. Emprestam-se lgrimas. No sei, no sei, c uma coisa. Tu sabes? A sala est cheia, os quartos esto vazios. De resto, a sala parece que tem mais luz, no mais luz, outra luz. Parece que so os rostos que iluminam a sala.

  • 46

    Ouve-se um grande estrondo l fora. Imediatamente seguido de um estalar, de um desmoronar, embrulhados num talvez multiplicado e ressoado rumor de espantos e de medos. Gritam as Demoiselles. Entreolham-se os da sala. Levantam-se dois, trs, quase todos. Saem. Quase todos. Fica um. O mais velho. O de sempre.

  • 47

    17

    O Convento adivinha

    Do lado de l da Alameda, subindo um largo, galgando at ao Jardim, o Convento. Onde, dir-se-ia depois, os Santos bem tinham avisado toda a gente que no era noite para levar a dormir. Viu um dos que levaram o aviso dos altares a srio, e que estava de atalaia, entre portadas de janela, passar homens de embrulhos.

    De embrulhos?, que embrulhos?

    Compridos, espalmados.

    (O que ele foi dizer!).

    Compridos?, espalmados?

    Compridos e espalmados.

    Em que direco?!

    Na direco da Alameda.

  • 48

    Dois, trs?!

    Trinta, quarenta!

    E aquele estrondo?!

    Os sinos. Os sinos esto loucos. Os sinos no tocam. Emudeceram, os sinos?!

    Correram sandlias nas lajes.

    - Trancas porta! Trancas porta!

    E aos portes. As janelas, altas, foram todas fechadas nas portadas. Mesmo com grades. O convento confirma o seu medo.

    O abade, finalmente acordado, aprova.

  • 49

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    Que est ele ali a fazer?

    No sabe onde est nem o que est ali a fazer. Sabe que segura, agarra (outros que no ele dizem: empunha) a espingarda. A espingarda sabe-a de cor: o peso, a forma, o cano acima, a culatra abaixo, o gatilho, o coice no ombro, o tiro no tmpano. Tanto que fala com ela. E ela com ele. Ela acha que ele preguioso. Ele promete salv-la se, cado ele, vierem por ela. Ela, nada. Empurra um de um lado, empurra outro do outro lado. O soldado est entre soldados. S ombros e nucas. Ao lado direito, um. Ao lado esquerdo, outro. Um, frente. Outro, atrs. Se o seu cheiro no fosse o cheiro de todos, diria que havia um cheiro. A gente. Dos que esto ali mesmo sua beira, um dorme. Ressona em p, o que uma tcnica. V-se l saber qual ! O soldado baixo, so todos baixos, mas ele mais baixo e no v quase nada para a frente, nem quase nada para trs, nem quase nada para um lado, nem quase nada para o outro lado. S para cima e de noite, embora ele no saiba nem que horas so nem h quanto tempo est ali nem quanto tempo ainda ali estar. So para no se mexer,

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    posio descanso, mas mexem-se, como quem no quer a coisa mexem-se, perna esta perna aquela. Menos o que ressona. E mesmo esse! Oscilam os ombros, ora um ora outro. V-se, v-se alguma coisa. V-se que o sargento est a ver. A v-lo a ele! O sargento talvez saiba aquilo o que . Por que . Para que . E para quanto tempo. Tem cara disso ou faz cara de quem sabe. O furriel sabe, s pode saber. Por vezes, sorri o furriel, entre si e si. E passa palavra a outro furriel. So estranhos, os furriis. So l eles entre eles. Parecem irmos. Se trocassem de bigode uns com os outros, ningum notava. E talvez troquem. Riem-se de coisas que pensam e pensam s vezes nas mesmas coisas porque ri um, de sbito, e depois ri outro. Do mesmo. Sem o primeiro ter dito em que que estava a pensar. O soldado sabe que com o sargento no se safa. O furriel no, o furriel homem para lhe responder. No talvez a tudo, que tudo muita coisa, mas a isto ou aquilo. Vai perguntar ao furriel que passa. Mas o sargento barra-lhe o pensamento e o propsito com um nico olhar que diz QUIETO! Engole o soldado em seco. Apertam-no o companheiro da direita e o companheiro da esquerda. S v ombros e costas e nucas rapadas. Olha para cima. noite?, dia? H um redor de beirais. J ter ali estado? Ouve-se um correr, um espirrar de gua. H, l mais para a frente, ordens gritadas. SENTIDO-CERRAR FILEIRAS! Um silvo a crescer. Vindo l do fundo?, l de longe?, l de cima? UM ESTRONDO. Abanam os ombros todos para o mesmo lado. Abana o 131.

    Solta-se um pombo no ar.

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    Feliciana sai de casa

    A Feliciana, dormir no podia. Ora para um lado ora para outro. Perna direita por cima da perna esquerda, perna esquerda por cima da perna direita. Braos ora para um lado ora para outro. P de fora, empinado. Dedos dedilhando. Lenol pernas abertas acima, puxado, puxado por entre as pernas, por sobre o peito, at boca, at s narinas, at aos olhos. Almofada aqui, almofada ali.

    Nunca a cama lhe fora aquela impacincia. Passava gente fora.

    Ferramenta, qual ferramenta? E que sorriso era aquele que ela, despenteada, e merecidamente despenteada, e assim nos cabelos escondida, lhe vira? Dir-se-ia ternura, dir-se-ia emoo, dir-se-ia dvida.

    Foi espreitar, descala, janela: manh entardecida, uma chamada sem voz, um respiro sem pulmo.

    - Jotap, Jotap, onde ests, onde foste?!...

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    Qual ferramenta, qual ferramenta?

    Puxa a gaveta e ele to pouca roupa, embora disposta a tapar o fundo de lado a lado, que, levantando o riscado de uma camisa, v logo, entre a camisa e o papel de forrar o fundo da gaveta, os panfletos, todos s maisculas.

    Escorreu uma saia pelo tronco abaixo, espetou um brao na manga de uma camisa, depois o outro brao na outra manga e enfiou as tairocas. O xaile puxou-o de um prego. Ainda meteu cuidadosamente qualquer coisa num bolso fundo. Bateu sobre o bolso, uma, duas vezes, com a mo aberta. Digamos que com cuidado. Digamos que com afecto. Saiu.

    Vinha gente. Apertou-se no xaile. Que no era dessas!

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    Outra cama

    Do lado de l do Bairro da Bemquerena, com as suas casas baixas, o Bairro da Vidalina que no a Vereda dos palacetes mas onde as varandas antecedem, a contar de baixo, as janelas de guilhotina que sobem e se arrumam, pelas fachadas, s filas. Ali as camas so de casal instalado. A no ser a dos quartos das criadas, trazidas ao servio talvez por tios, talvez por irms mais afoitas. Ali, ali mesmo, mais acima, ali mesmo!, entremos que est tudo a dormir, passemos o corredor, a cozinha, a marquise virada ao saguo, l ao fundo, no, no, l ao fundo h uma porta, a est ela, a cama.

    A cama.

    Aquela cama no uma cama mas quem nela est dorme-a porque o dormir no escolhe. Caiu de cansao e de infncia, que ainda era mas j no lhe deixavam. Enfia-se, encolhe-se, cobre-se. H um ressoar distante, misturado, meio falado, meio cantado, meio auto-embalador Acorda,

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    acorda! Mais se enfia, mais se encolhe. E nisso v um rio, e uma ponte, e um rvore e uma casa. E ela, l. Ressoa o ressoar. Acorda, acorda, o Senhor Coronel. O Senhor Coronel?

    A criada, de sbito, est de p.

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    As guas

    Ainda dorme, mas j est de p. Acorda. O Senhor Coronel. a Senhora Dona, porta, a bater, a bater, a bater. porta, qual porta?, porta do quarto da criada, dizia-se naquela casa, e a criada era ela! Acorda, acorda, rapariga, acorda, que o Senhor Coronel tem de sair, vai-me acender o fogo, vai-me aquecer a as guas, rapariga acorda, que o Senhor Coronel. Vai sair, completa, repete, repete em pensamento a rapariga. O Senhor Coronel vai sair?! Como que o Senhor Coronel vai sair se , diz, pergunta, pensa, a entreabrir as portadas da janela, de noite?! Mistrios. Olha-se por si abaixo e v que dormiu outra vez vestida. E assim ficar, vestida. Pensa isto e leva o pente ao cabelo. Rapariga, rapariga, depressa! Vai pelo corredor. O Senhor Coronel est ao fundo, de robe, com o rolo atado cintura. Bom dia, Senhor Coronel.

    As guas, rapariga, as guas! Acende a rapariga o fogo. Ou sonha que tem as mos a arder e que esta acha a mo direita e esta a mo esquerda e este papel amarrotado e mais este e mais este so flores em

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    chamas? Fecha-te porta. Encha a rapariga de gua um grande panelo. Espera que a gua que cai l do topo da torneira o encha o encha o encha e nisso, e nisto, no qu?, adormece. Acorda-me rapariga! Pega a rapariga nas pegas do panelo. No tem, no pode ter fora para o levantar! Quanto mais para o levar! Tem, tem de ter! Tens de ter, diz a rapariga a si prpria. Tenho de ter. Tem, sempre tem! Tenho, sempre tenho! Leva a rapariga o panelo, a gua a oscilar, a gua a transbordar, mo, brao, perna, pedra, do lava-loias para o fogo. Pousa a rapariga o panelo em cima do fogo aceso. To aceso que toda a cozinha, de to quente, o fogo. Tosse o Senhor Coronel. Depressa, depressa, depressa. Dorme, de p, em frente do fogo, a rapariga. Quando acorda, e acorda num susto, acorda, rapariga, acorda-me, que nos lanas fogo casa!, est a gua a borbotar.

    Leva a rapariga, dificilmente, corredor fora, o panelo das oscilantes guas. Fumegantes. Transbordantes. Mo escaldada, brao escaldado, perna escaldada. Sobrado, l com ele! Na tina, na tina, rapariga! Verte a rapariga a gua fumegante. E na bacia do lavatrio, para o Senhor Coronel fazer a barba! Para o Senhor Coronel fazer a barba, porque o Senhor Coronel, a barba, s com gua quase a ferver. Fecha-se o Senhor Coronel. Maaneta para um lado, maaneta para outro lado. Talvez chave. Talvez chave para um lado, talvez chave para outro lado. Tossir muito. Tosse-tosse-tosse. Ests bem?, pergunta, encostada porta, a Senhora Dona. Resposta curta do Senhor Coronel, mas torcida.

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    A farda do Senhor Coronel

    A farda do Senhor Coronel est, v a rapariga, sobre a cama do quarto do Senhor Coronel e da Senhora Dona. Bon ao alto, sobre a almofada, dlmen ao meio, aberto, calas em baixo, cinto da espada ao lado. Do cho, ao fundo da cama, mesmo abaixo das calas, erguem-se as botas. Ombros enformados, bolsos enfunados, botes vibrando luz, mangas cheias, calas a fazer as pernas. Pausa-se, fica-se, imobiliza-se a rapariga, perante aquela maravilha, perante aquele terror! E perante aquele terror porque o Senhor Coronel, deitado! Por uma pena! Fardado e deitado! Porque est todo, s lhe falta o bigode. E a tosse. Pronto a levantar-se! Valha-me a Santssima! Olha l, rapariga, tu o que que ests a a fazer, a olhar, esparvoada, para a farda do Senhor Coronel?! Ala, rapariga, ala que se faz tarde, que o Senhor Coronel j a vem no corredor, para se fardar!...

    sada, a Senhora Dona pergunta:

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    - Isto que , que foi, que aconteceu? Porque te chamam ao quartel?

    O Senhor Coronel puxa um resposta, tem dificuldade, no sai, acaba por sair:

    - Maluquices de furriis!...

    A rapariga, vai a Senhora Dona encontr-la, num banco de cozinha, a cabea contra a parede e contra o armrio de rede. A dormir. E a loua do caf por lavar.

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    O jornalista corre ao Descampado

    Desatou o jornalista a correr rua abaixo, o pescoo estrangulado pelo colarinho, os bolsos do casaco atulhados de linguados. Ia sendo logo deitado ao cho por um garoto que vinha correndo na direco contrria.

    - s parvo ou qu, fedelho, p, porra, p?!...

    No ouviu a resposta, que j l ia em cima, a meio da Pedra d`gua, um triunfante meu grandessssimo filho da e por a fora, isto j o garoto no topo das escadas. Retomou o jornalista a corrida. Chegado Alameda, cortou esquerda. Subiu. Sobem com ele, sombras. Depois, homens. Depois caras. Chegado ao Descampado, achou que, uma de duas, ou havia gente a mais ou havia gente a menos. A mais para no confirmar, a menos para confirmar. Embora houvesse sempre gente a anunciar que viria mais gente.

    - Tropa?

  • 60

    - Claro!

    E seguia-se um rol de regimentos.

    - Esses vm!

    - Esses no vm!

    - Esses, vi-os eu sair!

    - Esses ouvi-os eu, recusarem-se a sair!

    Desenhavam-se agitadamente contra as fogueiras algumas espingardas. E at j rolava, trazido de uma rua larga, a pulso, um homem a cada roda, e dois atrs, uma pea de artilharia. Mas a maior parte desarmada.

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    S neste Pas!

    Os dois generais consideram a situao. Cada um no seu palacete. Ambos na Vereda. Convocaram os ajudantes. Porque os quartis nunca se sabe. E o que se sabe que sim e que no. Civis entrando, civis saindo. Esto os dois generais e os ajudantes de p em redor de mesas sobre as quais se desdobram uma grande carta da Cidade. Globalmente, os ajudantes concordam em que a situao, sendo grave, no dramtica, e, sendo complexa, no insolvel, e, tendo a vertente militar que tem, sobretudo poltica. Sobretudo poltica! Os generais concordam. Telefonam-se. Mandam telefonar os ajudantes para os quartis. O nosso general quer falar com o senhor coronel, o senhor coronel no est?!, o senhor coronel ainda no chegou?!, s est o senhor capito!?, um momento!, meu general, o meu general quer falar com o senhor capito?!, que o senhor coronel ainda no chegou!, quer?!, passe imediatamente o telefone ao senhor capito!, o nosso general vai falar ao

  • 62

    senhor capito!, com licena, nosso general, com licena!, est ao telefone o senhor capito, senhor capito, o nosso general vai falar! , d c!, est, est?!, capito, o senhor coronel?!, o senhor coronel no est?!, como no est?!, ainda no chegou?!, como ainda no chegou?!, v por ele!, mande imediatamente algum que v por ele! Tudo firme, a, capito?! Tudo?! Mande ir pelo coronel, mande ir, e imediatamente!, pelo coronel! Telefone desligado. O general olha os ajudantes. Tudo firme! Tudo firme no Penedo! O Penedo muito importante! O Penedo so as peas, o Penedo a artilharia! Ele h quartis que saram e quartis que no saram. Seguem-se os nmeros dos que no saram e dos que no saram. Procede-se localizao dos quartis na carta: este, este e este. Este no, este no. Este no se sabe. H instrues do Senhor Conselheiro? No h instrues do Senhor Conselheiro, meu General. O Senhor Conselheiro mandou saber o que se passa. H instrues do Senhor Ministro? No, meu general, no h instrues do Senhor Ministro. O Senhor Ministro mandou saber o que se passa. E o Senhor Conde?, o Senhor Conde, nos momentos mais graves, costuma deixar cair uma palavra. Costuma, sim, meu general, mas desta vez no deixou cair uma palavra. Nada? Nada, meu general. E do Palcio, h ordens, vamos, indicaes, do Palcio? No h indicaes do Palcio, meu General. Pois, mas a artilharia. O Penedo muito importante!

    Tudo isto simultaneamente tranquiliza e preocupa os generais. Preocupando os ajudantes. Sabendo-se, alis, que um dos generais suposto simpatizar com quem se sabe e outro suposto ser prximo de quem se sabe. O mais novo dos generais, com mais tempo adiante, mais porventura impaciente, leva um ajudante para junto de uma janela que d para uma rua de palacetes, sobre os quais desce uma meia madrugada, e nos quais se acendem luzes de uma talvez inquieta vigilncia, e confidencia-lhe:

    - S neste Pas!

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    25

    Lenos e xailes

    Feliciana achou estranho. Homens, tantos, quela hora, e todos na mesma direco, e no se virando para trs, passagem dela, todos num to estranho silncio, meio encandeado meio ensimesmado. Quando viu que dois, um, e depois outro, se despediam de mulheres, um porta, outro entre portadas de janela, percebeu.

    - Vizinha, hoje?!...

    Silncio na nem se percebia se escurido se desescurido.

    - Quem pergunta?!...

    - Quem quer saber?!...

    Verificao.

    J eram trs e assomava uma quarta.

  • 64

    - Quem quer saber?!...

    - Sou a Feliciana!...

    - s a Feliciana!...

    - a Feliciana!...

    - Quem?!...

    - A Feliciana, a do Mercado das Flores!

    - a Feliciana, a do Mercado das Flores, aquela que est com o Jotap!...

    Ficaram a conspirar.

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    Qual l deles!

    E a Feliciana:

    - E se fossemos, ns, tambm?!...

    - Ns quem?!...

    - Tu, eu, a Flvia, a Laura, a Tomsia!...

    - N! Coisas de homens!

    - O meu fez-me jurar que...!

    A Feliciana insistia:

    - Vamos!...

    - O meu fez-me jurar...!

    - Pois, mas a liberdade...!

  • 66

    - Isso essa, l deles...!

    - esta noite!

    - hoje!

    - Pela liberdade l deles?!...

    - E nossa!...

    - Nossa?!...

    - Nossa, nossa! Ora essa!...

    Saem primeiro trs, depois, rua fora, cinco, seis. Seis xailes. Arrepanhados em grandes braos valentes. A caminho do Mercado das Flores, onde iam, e, dizendo isto, riram-se muito, mobilizar umas quantas. Todas que l houvesse!

    Qual l deles!

    O guarda, perplexo, vendo-as e ouvindo-as nestes modos, era, no portal, s sombra e terror. Tanto que, no cintilando os botes, emagrecera de medo.

  • 67

    27

    A maleta do clnico

    O clnico arruma a maleta pela terceira vez. Primeiro os apetrechos, o estetoscpio, o frasco de sais, as ventosas, o frceps, a tesoura, a seringa, a pina de Kocher, e mais os elsticos, e mais o bisturi. E mais um frceps. Depois, por cima, aquilo! Aquilo! Assim, abrindo a maleta, encontra logo aquilo. Pousa a maleta a meio da mesa de metal curta. Tem a mo sobre a pega. Agarra-a. Levanta a maleta. Sopesa-a. Sopesa-a outra vez. Pesa que obra! Pousa-a. Depois abre-a e arruma-a pela quarta vez. Primeiro aquilo, no fundo, deitado. Deitado para um lado. Deitado para outro. Assim. No, assim. Assim melhor, d mais jeito ao gesto. D mais jeito mo. Depois, por cima, os apetrechos. Este. Mais este. E mais isto. E mais isto. Os elsticos soltam-se e preciso enrol-los e fazer-lhe um n. E outro n. Assim, se lhe mandarem abrir a maleta e se espreitarem l para dentro ou se lhe abrirem a maleta fora, s vem os apetrechos. Est para sair, j tem a bata pendurada no armrio. Batem porta. Olha para a maleta. Doutor, doutor, agora, agora, a da enfermaria B, agora! um enfermeiro. J ali est vista, a porta aberta, a mo na maaneta, a cabea enfiada no gabinete. agora, e parece complicado! Complicado?

  • 68

    Complicado, doutor, complicou-se! Hesita o clnico, olha a maleta, olha o enfermeiro. O enfermeiro olha a maleta e olha o clnico. A maleta, se pudesse, olhava o clnico e olhava o enfermeiro. Os instrumentos, se pudessem, diriam: isto aqui, isto aqui ao p de ns, isto que ?!, isto que vem a ser?! Isto! O enfermeiro olha a maleta, parece ouvir aquilo que a maleta e os instrumentos diriam, se pudessem, mas no ouve, ou ouve de uma maneira l dele, e olha sobretudo o clnico: Doutor, doutor, venha, complicou-se! J esto em movimento, clnico e enfermeiro. Corre o enfermeiro corredor fora. Corre o clnico corredor fora. O clnico, em corrida, olha para trs. Deixou a porta aberta e v-se a maleta sobre a mesa. Aberta? Entreaberta? Estetoscpio, frceps, seringa, elsticos, pina de Kocher, outro frceps, e por a fora, e aquilo! Sobretudo aquilo! T-la-ia deixado aberta? Doutor, doutor. Ouve-se, adiante, dentro de uma sala, um grito de mulher, um alvoroo, um choro, um guinchar de rodzios, uma bacia que cai, e que rola, e que roda. O clnico olha ainda uma vez para trs e entra na Enfermaria.

    O revlver, que est dentro da maleta, digamos que pede a todos os santos, sendo embora, como todo o bom revlver, um pouco ateu, que ningum o descubra.

  • 69

    28

    O Camareiro insiste

    Insiste o Camareiro.

    Eleva por uma vez a voz.

    - Abri!

    As portas altas hesitam.

    - Tem de ser, tem de ser!

    Renitentes portas. Abrem porm, comeam a abrir.

    O Vulto Jovem j vem. J ali est. ele prprio que abre, de dentro, a ltima porta. Composto. Plido. Teria ouvido os carros no Ptio Grande? Saberia? Teria intudo?

    - Que queres?

    To novo!

  • 70

    Tem atrs de si dois primos.

    O Camareiro leva-o para junto de uma janela. Traa, em gestos sucintos, e foi tudo o que os primos viram, aquilo que podia ser tudo, desde que fosse grave. Desde que fosse o que parecia ser. Aponta, no Ptio Grande, os carros e os cavalos. Est a chegar o Bernardo.

    Faz o Vulto Jovem uma, duas perguntas.

    Que sim.

    Que no.

    Acena para baixo ao Bernardo.

    Ol, Bernardo!

    tudo.

    Tudo no, que A Senhora Me j assoma. A porta alta mas ela ocupa-a quase toda. Percebera tudo. Percebera antes de intuir, porque a ela, as intuies costumavam sair-lhe, naquele Pas, caras.

    A condessa, que lhe assomava a um ombro, no percebera nada.

  • 71

    29

    A Loja um torvelinho

    A Loja um torvelinho. cega. Porque no l que. Mas l que chegam os informes e de l que partem as instrues. Ultrapassadas, a cada momento, por uma porta de armas que se no abre, por um regimento que no sai, por uma adeso que no se confirma.

    Honra e desonra!

    Toda a Cidade, que o que conta, invisvel. Dali, . Ouve-se, ou no se ouve e inventa-se, um estampido, um rumor, um cavalgar, um silvo de projctil. Mas no se v nada. Dali, nada. O olhar da Loja tem duas palas. Tudo est do lado de l dos altos em que a Cidade prdiga. E o que est quase-quase a ver-se, vai-se a ver e no se v, porque ele telhados, torres de igreja, desmesuradas palmeiras herdadas trazidas pelos cruzados mares. A Loja precisa de saber. A cada hora. A cada receio. Tudo tem de ser confirmado. Da os correios, os estafetas, os garotos. Estes assessorados pelos espritos malignos e benfazejos dos mouros que

  • 72

    ignoram a topografia oficial e abrem sonhadas mourarias aos estafetas de p descalo.

    Quer manter-se solene, a Loja. Solenes as paredes. Solenes os pendes. Graves e exigentes, e positivistas, os olhares dos quadros. Mas tudo se precipita. Abreviam-se as frmulas, dizem-se de cor. Saem espingardas. Corre mal, corre mal! Corre bem.

    Correr?

  • 73

    30

    Una notte abitata!

    Descem as escadas que comeam no longe da pera o tenor, o maestro e o cengrafo. Dois a um lado do corrimo de ferro, um ao outro lado. Vo numa meia corrida e so todos gestos, brados, superlativos, capas, chapus.

    - Sentite! Sentite! clamava, conduzindo, o maestro.

    - Si, si! assentia o bartono.

    Havia um rumor. Um coro mudo. Um ensaio.

    - Una notte abitata!

    O cengrafo s via. As escadas desciam e os prdios subiam, em assombrosas engenharias de cena. Iam eles rua abaixo. O tenor ensaiando. O cengrafo pincelando gestos. O maestro dirigindo. Um estardalhao.

  • 74

    31

    Alto l!

    E eis que, de sbito, uma esquina. Silenciosa. Estranhamente silenciosa.

    E eis que, no voltar da esquina, a Praa. Toda apinhada de soldados.

    E todos, mas todos, lhes apontavam as armas!

    - Alto!...

    - Alto l!...

    - Alto l ou disparamos!...

    Estarrecidos ficaram os operticos.

    - No sparare!...

    - Siamo fratelli!...

    - Siamo fratelli, siamo amici!...

  • 75

    32

    O coro dos Goliardos

    Chegava, porm, Praa, naquele mesmo momento, em carro descoberto, O Heri.

    - Isto o que ?!

    Aps averiguao sumria, e gritada, de um lado ao outro da Praa, por sobre a cabea dos soldados, comunicam os tenentes:

    - Estrangeiros!

    - Diz-se que espies!

    - Dizem que so da pera!

    - Um diz que quer cantar para provar que...!

    Sorriu O Heri. Sorriu aquele sorriso triste, que gelava. Deu ordens para que os deixassem passar, para que os pusessem do lado de l, na Alameda imediatamente. Imediatamente! Atravessaram os operticos duas alas de

  • 76

    soldados meio perplexos, meio divertidos. Colocados na Alameda, despediram-se, tirando, todos, os chapus altos.

    - Buona notte!

    - Buona notte!...

    - Signori, buona notte!...

    Abanaram os soldados todos, em despedida, erguidas, as espingardas.

  • 77

    33

    Temendo o pior

    Fazem-se os operticos Alameda. Por ali vem subir tambm estranhos homens que aparecem dos lados do caminho largo, por entre as rvores, a soltar papis de embrulho.

    Deles tirando armas!

    - Buona notte!...

    - Buon giorno!...

    Espanto dos homens armados.

    E depois, j em corrida, de costas para os operticos:

    - Boa!...

    - Boas!...

    Mas j aparecem garotos descalos, gritando coisas decerto idiomticas aos operticos. Reforadas por gestos. Braos. Dedos. Temendo o pior, os operticos pem-se a cantar.

  • 78

    34

    O smoking entornado

    Vo ali j os bons e os chapus de coco. Ouve-se o andar. Ouve-se o marchar. E eis que, vindo de uma das margens da Alameda, talvez de uma perpendicular estreita, surge, entre rvores, trauteando digamos que nem ele prprio sabe o qu, um smoking, o negro e o branco de um smoking, o branco e negro de um smoking, oscila o smoking, abana o smoking, h nisto mais branco do que devia haver, porque tambm h um longo cachecol branqussimo, que pendula, e ainda por cima franjado, ora para um lado, ora para outro, ora para trs, ora para a frente, parece uma estampa rpida, parece uma ilustrao da Ilustrao, entre riscada e pincelada, imobiliza-se o smoking, perplexo, demasiadamente perplexo, meio entornado, meio desconfiado, meio desequilibrado, comea a imobilizar-se o cachecol, e o smoking no consegue, e no consegue, e l consegue, l se ampara, l se segura, l se consegue segurar, no tronco de uma rvore, e o cachecol imobiliza-se, em fio de prumo, imobilizam-se finalmente as franjas, ou no?, ou nunca?, que l isto?!, que l isto?!,

  • 79

    onde que vai esta gente toda?!, com esta seriedade toda?!, pr trabalho!, pr trabalho?, pr trabalho por aqui, por aqui?!, pela Alameda?!, quer dizer, e a esta hora?!, e em passo de marcha, um-dois, um-dois, um-dois?! O smoking est na sua hora, o smoking sabe que est na sua hora, o smoking sabe que, a esta hora, a Alameda dele, quer dizer, ele pra umas no sei quantas, dir-se-ia que entre as bastantes e as muitas, o relgio!, o relgio?!, bolso um, bolso dois, mexe-se o cachecol, bolso, bolso, agita-se mais o cachecol, enervam-se as franjas, onde ests tu, bolso?, no querem l ver que me roubaram o relgio?!...

  • 80

    35

    Um sbito bon

    - B`dia! diz, na cara do smoking, um sbito bon.

    Responde o smoking:

    - B`dia...!

    Ia o smoking jurar que o bon, uma de duas, ou tinha modos assim meio agressivos ou pura e simplesmente era simptico. Continuou a subir o bon. O smoking arrumou-se. Simptico, decidiu! Largou-se do tronco de rvore no qual se apoiava. E comeou, tambm ele, a subir. Trauteando.

    O cachecol ficou para trs, num longo e melanclico S, no cho.

  • 81

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    Janeiro por Outubro

    H, sobre tudo isto, o olhar dos gatos. Escorrem s sombras nos telhados. Passam de telhado para telhado. Tudo telhado. Pantufam-no. S muito levemente o esgarreiam. So mos cheias deles. Breves nuvens rapidssimas. Pardos, pardos, pardos. Mesmo os negros, mesmo os brancos. Sobretudo os negros e os brancos.

    Apontam as cabeas. Inclinam-se. Espreitam. So s olhos. Aos gomos, s estrias. Vem os grupos de homens que descem na direco da Alameda. Vem as mulheres que a vm, por uma rua engenhosa e sibilina, abraadas a flores. Vem os soldados, na Praa. Avistam, de longe, o prprio Descampado, onde, em contraluz, se agitam figuras.

    H um furriel, na Praa, que, sentindo-se observado, sentindo-se pesadamente observado, multiplicadamente observado, olha, de sbito, para cima. De sbito. No v nada. Tinham-se recolhido, instantneos, ainda o olhar do furriel vai no 2 andar, os gatos.

  • 82

    Os gatos no tm dvidas.

    Os homens esto loucos.

    Julgam que Janeiro.

  • 83

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    O santo e a senha

    Jotap, a princpio, s via fogueiras. E gente iluminada pelo fogo. Ardiam sombras, ardiam os gestos. Era o Descampado. Senhas, palavras de ordem, localizaes.

    - Tu aqui!

    - Vocs ali!

    Jotap pergunta:

    - Quem manda?

    - Ele!

    Apontaram um homem que estava de costas. Foi Jotap por ele. Senha. Contra-senha. O homem voltou-se. Tinha lunetas e os olhos interrogativos acima delas. E uma farda de gala.

    - Jotap!

  • 84

    - s ordens!

    Conheciam-se, de onde se deviam.

    - A tropa?

    - Estamos espera dela.

    - E eu?

    - Tu ficas ali!

  • 85

    38

    O garoto da presso de ar

    Ali ficou Jotap barricada. Espantou-se. Ao lado dele, um garoto empunhava uma presso de ar. E disparava-a. Talvez na direco da Praa.

    Dali a pouco, passando, em pensativa e preocupada inspeco, o homem de farda de gala diria a Jotap:

    - Protege-me esse mido, manda-o abrigar-se na barricada e no pr a cabea de fora.

    - Sim, Comissrio!

    Jotap viu que as fogueiras ardiam nas lunetas do outro.

  • 86

    39

    Viste a lua?

    - Viste a lua?, perguntou um homem agarrado a uma arma.

    - No, e tu?, respondeu e perguntou outro homem, apoiado a outra arma.

    Esto junto de uma grande roda de pea de artilharia. So civis, vestem de preto, tm chapus demasiado enfiados nas cabeas. Passaram a noite a ajustar os chapus, ora um ora outro, porque era preciso que estivessem atentos e esse gesto ajudava. Olham l para baixo, onde comeam as casas. Basta que sigam os canos das espingardas.

    - Nada?

    - Nada. Agora, nada.

    J de l de baixo tinham vindo alguns tiros de pea, to curta a distncia que chegavam quase antes de partirem. Tinha de haver, l em baixo, apontadas para cima, peas. Decerto espingardas. No se via era nada. Um dos civis era publicista. Inventaria depois tudo. Com meia

  • 87

    honestidade. Aquela em que a emoo no mente. Embora. Porque escreveria que o garoto da espingarda, a espingarda era a srio. E que o que acabou por acontecer acontecera porque daquele stio onde estava o garoto tinham sado trs balzios que vararam, nas posies da Praa, um soldado e feriram outro.

    Havia depois a artilharia do quartel do Penedo.

  • 88

    40

    A questo so duas

    O Heri sente uma melancolia acrescida. Detesta a desordem e a morte intil. A noite, aquela noite de areia, cega de estrelas, disso. Pode ser disso. esse o risco. Percebe, e percebe antes de confirmadamente saber, que no viro mais unidades para o seu lado. Est s. Os soldados so o que so. Os l de cima, pelas informaes que tem, sobretudo pelo que intui, so paisanos. Quase s paisanos.

    Fala-se de Derrube.

    Percebe que entre os l de cima e o Derrube est ele. E a questo so duas.

    O Derrube no coisa j comeada h muito, pelas tibiezas e pelos polticos? E pelas inaptides de generais. Que passam todas as catstrofes a vau. Medalha a medalha, condecorao a condecorao. Desde h muito, desde trinta e tantos, desde vinte!

  • 89

    E como escorraar os l de cima sem uma grande sangueira?

    Os tiros que ordena so uma sinalizao de fora.

    Os generais mandam dizer que a tctica no pode cometer a estratgia.

    O Vulto Jovem. O Vulto Jovem no se sabe onde est. E a artilharia parece que.

  • 90

    41

    No justo!

    O Conselheiro acha que no justo.

    Di-lo ao secretrio:

    - No justo!

    - No , Senhor Conselheiro.

    E acrescenta:

    - A confirmar-se.

    O Conselheiro repete:

    - A confirmar-se.

    Olha as onze informaes que tem sua frente. Trazem, umas cabealhos militares, outras cabealhos civis. Quase todas dizem que ser esta noite. Duas, que no ser esta noite. Uma, que no ser nos anos mais prximos.

    Pergunta, de sbito lembrado:

  • 91

    - E o Senhor Conde? O Senhor Conde, nos momentos graves, costuma deixar cair uma palavra.

    - Nada, Senhor Conselheiro! Nada do lado do Senhor Conde.

    - No justo, a confirmar-se, no justo!

    Tempo.

    - Eu no fiz nada de pior. Fiz o possvel. Fiz o possvel depois do que o outro fez e no tempo que me deram!

    O Outro.

    O primeiro secretrio sabe quem O Outro. Todo o Pas sabe quem O Outro. No fica no entanto bem a um secretrio sublinhar de alguma forma que no fica bem a um Primeiro Conselheiro tratar um dos seus antecessores por O Outro.

    Ficam algum tempo nisto. O Conselheiro a avaliar o significado e o alcance do silncio do secretrio e a perceber que no pode dar a entender ao secretrio que compreendia o seu escrpulo. E o secretrio a perceber que o Conselheiro entendia. Entra um segundo secretrio:

    - Senhor Conselheiro, chamam-no ao Palcio!

    Ergue-se o Conselheiro.

    - O automvel!

    - J l est em baixo!

    O Conselheiro pergunta:

    - O Palcio o Palcio do Rio?

    - No, o Palcio do Mar!

    - J o do Mar?

    - J.

    Os secretrios, um segue o Conselheiro, o outro fica a ver, no alto da escada. O que ficou a ver pensa que o Conselheiro no deixa de ter

  • 92

    dignidade. Todos tinham razo no que pensavam uns sobre os outros. Incluindo o Conselheiro.

  • 93

    42

    A fuga

    Aquele pas tem sempre um Mar vista em todos os assombros e em todas as fugas. O Vulto Jovem debrua-se janela do Palcio para onde o levaram. o Palcio do Mar.

    preto, o Mar. Cinzenta, talvez, a espuma.

    A Senhora Me est de p.

    Discute-se na sala ao lado.

    Ouve-o o Vulto Jovem. capaz de distinguir entre as vozes civis e as vozes militares.

    Ouve a voz do Conselheiro:

    - No justo!

    Os generais dizem nmeros de quartis.

  • 94

    Para a Senhora Me todas as vozes so iguais naquele pas.

    Sabem que viro, depois, trs casacas e dois uniformes, dizer. Se , se no , a revoluo. Aquela que fizera o que fizera quando ainda no era.

  • 95

    43

    Os regimentos no saem

    O Descampado espera os regimentos que se haviam comprometido. Era para chegarem o mais tardar uma hora depois e desampararem o Descampado de civis, ou seja, porem-nos no seu devido lugar, ao fundo, e vigiados, que isto para profissionais. Comearam a no chegar passadas quase duas horas. Passadas trs, soube-se que no chegariam os do 16, do 22 e do 7. Passadas quatro, que no viriam os do 3, do 6 e os do 2. Nem o 12.

    Muitas destas notcias vinham amarfanhadas nas mos dos garotos corredores.

    Os regimentos, o risco este. Vai-se por eles e as portas de armas esto fechadas. Em alguns casos, bate-se-lhes com fora. Nada. Bate-se-lhes s grandes punhadas. Nada.

    Quem vem l?! Quem est a?!

  • 96

    Ento?!

    Ento o qu?!

    Saem ou no?!

    Jotap que pergunta. D dois trs passos atrs, a olhar a porta das armas, de cima abaixo, e pergunta. Anda numa roda viva, a mando do Comissrio e guiado por dois garotos, os mais velozes da maratona.

    Silncio. Um silncio que o lado de fora sabe encostado ao lado de dentro. Encabulado e comprometido.

    Saem ou no?!..., insiste o Jotap.

    O nosso major diz que no. Que ou outros tambm no saem.

    isto. Todos esperam todos. A audcia inimiga da loucura embora o contrrio no seja rigorosamente falso. Os civis so amadores. As ideias so civis. A noite parda. Percebeu-se que no chegaria nenhum. Havia alguns oficiais, quase todos paisana, e era tudo. Dois, recebidas as notcias, foram-se embora. Diziam que iam buscar mais. Os civis no perceberam nada.

    Jotap torna ao Descampado, numa linha recta, outra, inventada ao momento pelos garotos. Com a mozinha dos gnios travessos e benfazejos que magicamente lhes abrem o traado mouro.

  • 97

    44

    O Club um tumulto

    Falam todos ao mesmo tempo e quando um se cala falam sempre mais dois. E ao mesmo tempo. Muitas vezes, a razo estava rouca. Tendo, por vezes, a inexperincia uma voz melhor colocada. Sempre fora assim, desde a fundao do Club, que j estivera na rua de cima e no bairro ao lado. Esta noite fala-se mais. Porque a noite que . Mas que noite aquela, e sobretudo para qu? E isso que se discute.

    (E ser noite? Ser manh? Que haver para alm daquele prdio ali em frente, que nada deixa ver, que tudo tapa? Quem ser o espio que h, entre ns?).

    Chega quem viu, quem acaba de ver, e logo diz, no tanto o que viu, o que acaba de ver, as espingardas, os punhados de furriis, a artilharia, mas os riscos do que no viu. O risco da noite para a Ideia! Pelo que saem mais dois a saber. A questo simples e grave: que aquilo?, um motim?, uma assim a modos que maonice de luxo?, uma meia burguesia a

  • 98

    converter a Cidade numa sala de armas? Que tem o operariado a ver com aquilo? Que tem o proletariado a ganhar com aquilo? Entram dois. Trazem olhares. No os deixam falar. S os deixam ouvir. Saem mais trs. Vo ver.

    Porque a Ideia.

  • 99

    45

    Morto, essa noite

    O escritor, ningum ali sabe que ele o . Nem ele quereria que se soubesse. Est ali pela solidariedade da indignao. E porque era esse o preo do juramento que fez. A ideia um sentimento. No, uma organizao. Discute consigo prprio. Ele sabe que ser escritor. Ou morto. Essa noite. Quase no conhece ali ningum. So todos tus. Percebe-se que vm de diversos juramentos. Os juramentos procuram-se e identificam-se no Descampado.

    - Tu s do

    - Sou.

    Abraam-se vivamente. Outros, no. H magotes de diversos tus. Olham-se, avaliam-se. Calculam-se. E no esto to certos de que aquele lado um lado s, de que ser s um.

    (O publicista sabe que ele escritor, o escritor no sabe que ele sabe).

  • 100

    Pois, mas o Comissrio, ali, no quer magotes.

    - Discutir l onde deve ser.

    E:

    - Somos todos isto, caramba!

    Amanhecia.

    - E os regimentos?

    - Ao teu posto!

    Um silvo. E vem de l um balzio que escavaca traves, tapumes, entranados cestos. Explode no ar, voa, uma absurda cama de ferro. Outro balzio. Diz-se que j h um morto.

    O escritor ouve tudo. Est j a escrever. No est mas est. J porque ainda no . E s-lo- porque leva a vontade do vir a ser. E um olhar que tudo devora, tudo interroga, tudo vive. Ditar mo que escreva no papel aquilo que a lembrana lembra. Directamente. Um insensato dir, muitos, mas muitos anos depois, que ele no merece o stio onde acabaram por depositar o seu corpo.

  • 101

    46

    Aguentar!, disse

    O Comissrio no tinha de dizer tudo e no dissera tudo na assembleia da Loja. Soubera do primeiro tiro. Soubera do segundo. Percebendo que tudo estava perdido, dissera a si prprio que, a ganhar-se alguma coisa, tinha de ser tudo, porque menos do que tudo, por pouco que depois fosse, daria em nada. A honra j no era pouco. No parecia talhado para a grandeza, sabendo-se que a grandeza no posa para a Histria numa farda que um luto regulamentar. E de lunetas. No havia, porm, outro. De maneira que, dissera a si prprio, dizendo um bvio de que soube sorrir, tinha de ser ele. Estava no que pensava to s que nenhum dos que o rodeavam diria depois que ele sorrira.

    Pediram-lhe, chegado ao Descampado, instrues.

    - Aguentar!, disse.

  • 102

    Mas no seria melhor ir, fazer, acontecer? Descer a Alameda, cair sobre o espanto dos defensores do vultismo?

    - Aguentar!, repetiu.

    Foi o seu maior movimento.

    O escritor, medida que as notcias no chegavam, ou chegavam mas diziam que nada se passava l em baixo com os vultistas, percebeu que o Comissrio, por no fugir nem avanar, podia vencer. Percebeu ou desejou? Imaginou a vitria. Comeou a cont-la. Com isso ganhou o tempo precioso que a imaginao usa. Arquiva. E torna disponvel. A imaginao a cor da memria. E a memria , no caso, um depsito a prazo. Cobrada em cada ttulo.

    Quando viu chegar um operrio de longo cachecol branco, com duas voltas no pescoo e as franjas pelos sapatos, tomou nota deste pormenor. E sorriu. O mesmo sorriso que lhe guardam na fotografia, aquela do recanto da livraria antiga.

  • 103

    47

    Estranha identidade

    Assim se fazia uma estranha identidade. Na Praa e no Descampado, no Descampado e na Praa. Nem por uns nem por outros saam os regimentos apalavrados e para tal instrudos. Sabendo-o, e com isso, estranhamente contando, e estranhamente se enfrentando, um l no topo da Alameda, outro c em baixo, o Comissrio e O Heri. No se vem, mas vem-se. Pensam-se um ao outro. E assim se enfrentam Embora haja nesse clculo uma interrogao. Comum. Embora com disposies abissalmente diferentes. O temor dos soldados vultistas. E o desejo dos civis e dos soldados derrubistas. A pergunta, feita na barricada, nos postos de comando das formaes de soldados vultistas, nos Palcios e nos palacetes, nas Lojas e nos Clubs, nas redaces dos jornais, nas portas dos cafs que ainda no abriram, mas que j so cafs, nas ruas, nos passeios, e dos passeios para as janelas e das janelas para os passeios, esta: os marinheiros?, quando que os marinheiros fazem fogo?, quando que os marinheiros desembarcam? Est pois a Cidade dividida entre a esperana

  • 104

    e o temor. Embora alguma esperana tema no sabe bem o qu, mas tema.

  • 105

    48

    Cinquenta e tantas

    Subiram do Mercado das Flores ao Descampado vinte e poucas mulheres, a meio caminho j eram umas cinquenta e tantas. Feliciana frente.

    - Quem?

    - A Feliciana!... Vocs no sabem quem a Feliciana?!...

    - Quem, aquela do bairro da Bemquerena?!...

    - Aquela que est com o Jotap, o tipgrafo?!...

    - Essa!

    Trazem flores. Feliciana traz flores. Quase todas trazem flores. Algumas trazem cestos de po e algum condimento. De um cesto emerge mesmo uma garrafa de vinho. Vm muitas com grandes aventais. Mas uma, j duas, daqui a pouco trs, quatro, trazem chapus. Desceram dos prdios altos. Uma professora. Outra retroseira. Outra escreve versos que

  • 106

    ainda no mostrou a ningum. Outra j mostrou os que escreve. Passaram todas elas, c em baixo, pelos soldados vultistas. Abriram-lhes os soldados alas. Riram elas. Para eles, e deles.

    E os soldados:

    - Onde que vo?!...

    - Vamos ali acima e j vimos!..., disseram as dos aventais.

    As dos chapus, srias.

    - Cuidai de no vos pordes na linha de tiro!

    - Isso que ?, riram as dos aventais.

    - Pelo meio, entre aqui em baixo e l em cima!

    - Ah, sim!...

    Puseram-se a caminho. Setenta, j. Por a. O Heri calculou onde que elas iam.

  • 107

    49

    A fotografia de Jotap

    Tira Feliciana do bolso, cuidadosamente, qualquer coisa que tem agora na mo, junto do rosto. Sorri. Sorri entre si e si. uma fotografia. Hesita e depois no hesita e depois mostra. Primeiro a quem vem ao seu lado esquerdo. Depois a quem vem ao seu lado direito. Depois em redor, s outras. Faz a legenda: a fotografia de Jotap!

    - Qual ?, qual ?

    - este! este!

    - Qual, qual?!

    - Este!

    Aponta, num grupo, uns sentados, outros de p, Jotap. Jotap est sentado. No ao meio, mas sentado. Todos os que esto sentados tm aos mos sobre os joelhos. H um que se apoia sobre o ombro de Jotap. Esto todos srios, todos graves, todos pela Ideia, que alis est dita atrs

  • 108

    deles, por cima das cabeas deles, num grande quadro onde se v, onde se consegue ver, por baixo de umas letras, a fotografia de um outro grupo de homens, tambm uns sentados e outros de p, tambm srios, tambm graves. Esses com duas bandeiras atrs, inclinadas uma para a outra, uma esquerda e outra direita. No se consegue ler as legendas, mas Feliciana sabe, diz que sabe, mas s sabe mais ou menos, o que dizem as letras que se perdem nas dobras dos tecidos.

    Uma professora diz, alto.

    Esta diz que.

    E esta diz que.

    So da.

    - Pois, est bem!...

    Solta outra, para Feliciana:

    - O teu Jotap o mais bonito!...

    Passa a fotografia de mo em mo, no ma percam, no ma percam!, , , o mais bonito., tens razo! Tens sorte!

    E Feliciana;

    - Pois havemos de v-lo porque ele anda por a e s pode ser um dos que esto onde pior, onde mais arriscado.

    Conclui:

    - o Jotap!

  • 109

    50

    Os guardas trancados

    A primeira esquadra a trancar-se por dentro foi aquela onde chegou um guarda gritando que eram centenas de homens e milhares de mulheres. Que estavam todos e todas na rua e que iam armados, eles com espingardas e elas com grandes facas.

    Trancar?

    No trancar?

    Trancar era o mais prudente que eles eram quase todos homens do campo fardados e aquilo, por muito povo que juntasse, ia ser resolvido por uns tantos tenentes e dois ou trs coronis aos quais eles deviam fazer aprumada continncia. No se sabendo o que seria o dia de amanh. Pelo que as trancas eram, dependendo, de dentro para fora e de fora para dentro.

    Logo se veria.

  • 110

    No foram uma nem duas as esquadras da Guarda que assim esperaram que lhes viessem dizer quem mandava. Diz-se que um desses garotos-corredores, sempre que passava em frente de uma destas esquadras entupidas, ou l como era, berrava, sempre em corrida, coisas to graves que nem ele sabia o quanto.

  • 111

    51

    Oitenta e muitas

    O que l em cima viram, se elas soubessem tudo quanto eles sabiam, sobretudo tudo quanto o Comissrio sabia, mesmo tudo o que Jotap sabia e tudo de que suspeitava, era de susto. Mas elas no perceberam. E eles no disseram. Homens. Pensaram elas: tantos!

    (To poucos, to desirmanadas as armas).

    No perceberam nem tinham de perceber. As de grandes aventais eram umas alegres desbocadas. Coravam as outras, de chapus.

    - Que fazeis?

    - O Derrube!

    - Sozinhos?!

    - No estamos sozinhos, estamos uns com os outros!

  • 112

    Elas gostaram da resposta. Ali, e por ela, as hesitantes escolheram o campo. J estaria escolhido por coisas outras. Apeteceu-lhes dizer a si prprias que escolhiam. Formalizaram-no com flores. Ou com conselhos. Ou lavando feridas. Ou pondo um pouco de arrumao na desarrumao que uma barricada. As que levavam po, distriburam-no. A que levava vinho, estendeu-o a beber. As que de alguns dali eram conhecidas foram mais efusivas. Revisitavam-se. Aprazavam coisas. Uma encontrou um filho, outra um irmo, outra no percebia por que no encontrava o marido. O publicista, fascinado, multiplicou por trs e escreveu, de cabea, trs crnicas em itlico.

  • 113

    52

    Viram o Jotap?

    - O Jotap?! Viram o Jotap?!

    - Est ali mais adiante!

    - Sempre mais adiante!

    Estava onde a barricada apontava Praa. E disparava. Disparava e berrava a um garoto, que estava ao seu lado, com uma espingarda:

    - Agacha-te, p!... Agacha-te, porra!...

    Passou ela sobre pedaos de pedaos que faziam a barricada.

    - Jotap!... Jotap!...

    - Tu aqui?!...

    - Eu aqui!

    - No podes! No quero!... Tu no vs que...?!

  • 114

    Silvavam coisas em redor dela, enquanto passava a barricada, p aqui, p acol.

    (L de baixo, na Praa, parecia uma enorme bandeira agitada: ah, ?!, pois ento aqui vai disto!).

    - Desce! Desce. Mulher!

    E arrebatou-a, travou-lhe o brao e arrebatou-a ali de cima, puxou-a, desceu-a.

    - essa a tua ferramenta?!

    - Tu no podes!...Tu no vs que...?!

    - E tu mandas em mim?!

    Despedaavam-se os pedaos. E Jotap, para o garoto:

    - Porra, p! Agacha-te, p! Tu queres-te desgraar e queres-me desgraar?!...Agacha-te, j disse!...

    E para Feliciana:

    - perigoso, Feliciana, perigoso!...

    Ela sorriu. Era isso que queria ouvir.

  • 115

    53

    Teria o Comissrio sorrido?

    Assoma, quela banda da barricada, o Comissrio. Solta, dir-se-ia que em voz baixa mas com uma autoridade que soava a voz alta:

    - Mulheres daqui para fora!...

    Feliciana olhou o homem. No discutiu. Explicou:

    - o meu homem, Senhor Comissrio!

    Teria o Comissrio sorrido?

    - Despea-se e v-se embora!

    Foi o que fez Jotap, a acelerar, no susto do perigo que ela corria. Acabaram por sair todas as mulheres. Foram-se barricada, parte menos atingida da barricada, grandes saias, cabelos j em muitas despenteado, flores, as de chapu, duas com ele banda, subiram,

  • 116

    galgaram, desequilibraram-se algumas, saltaram todas. Feliciana frente, sorriu, a ver o espectculo, Jotap. Tinha de ser!

    - Cento e vinte!, somou-as um despachante, habituado s contas de cabea.

    Antes de se afastar, disse o Comissrio a Jotap:

    - V-me esse garoto!...

    E logo a sorrir, corrigindo:

    - V-me esse rapaz!...

  • 117

    54

    Fogo!

    Os artilheiros da Praa tratam as peas por tu, afagam-nas, sentem-lhes a impacincia, sabem que sempre a direito, Alameda acima. Disparar uma limpeza. meia punhada, meia carcia.

    - Aqui vai disto!

    Tosse e salta a pea. Cospe. Sai-lhe o silvo por a fora.

    Os meio artilheiros do Descampado, um pouco avulsos entre magotes de civis com chapus ferozes, bons at ao nariz e muito brandidas espingardas, fazem pedagogia. Disparar uma responsabilidade. Disparam na mesma.

    Cruza-se, depois de se fazer rogado, o fogo. As balas no seguem com muita convico, quer as que, primeiro, sobem quer as que, depois, descem. E assim se mantm. Passam umas pelas outras e se falassem

  • 118

    diriam umas s outras que vo por ali porque as mandam embora no tanto para matar mas para dizer alto l.

    Os tiros das peas tm outra responsabilidade. Abrem caminho, so o caminho, so um sopro, so um buraco no ar, aqui vamos ns!, arreda!, arreda!, e so capazes de uma desgraa. o que diz a esquina escalavrada de um prdio.

    O sentimento geral que uma revoluo, mesmo um Derrube, o ideal que a Morte seja um tropo. E uma excepo. Uma desnecessidade. A fora para se contabilizar antes. A vitria uma contabilidade. Somos tantos, vocs so tantos, o armamento este e aquele, regimentos, a um lado so estes, ao outro lado, so aqueles e aqueles. De forma que. O Heri sabe que o herosmo s em estrita necessidade, o resto uma irresponsabilidade. O herosmo uma cruz, vive paredes-meias com a morte. por isso que o homem triste. O Comissrio tem do herosmo uma noo funcional. Ou sim ou no, a Liberdade.

    Comea o Penedo a fazer fogo.

    Responde-lhe o Descampado com energia.

    Isto por cima da Bemquerena.

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    C` una rivoluzione!

    - Guarda, guarda! C` una rivoluzione!

    O maestro, o tenor e o cengrafo, tinha-se-lhes juntado o contra-regra, aquele mesmo de ordinrio to exacto e to circunspecto, encontrado agora porm num miradouro aos vivas e aos morras entre os morras e os vivas de uma boa centena de populares.

    - Maestro!...

    - Caro amico!...

    - Meus senhores!...

    - Carissimo!

    Levara-os ele a ver aquilo que lhes anunciou j como o Derrube, de um alto da Cidade. E depois de outro. E depois de outro. No viam, ouviam. Ouviam clares. Viam ressoados brados. Toda a Cidade era um coro e um

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    coro dissonante. O maestro achava-o consonante. Conflitualmente consonante. O cengrafo encantava-se com os altos da Cidade a amanhecer. Fazia esquissos. Ter problemas por causa deles.

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    Um rio de chapus de coco

    Tumultuavam por todo o lado os chapus de coco. Eram um rio tumultuoso para l. Vinha vindo para c um rio de bons. Boiavam entre os negros e os cinzas trs canotiers. Um chapu alto era o centro de um redor de chapus de coco. Os chapus de coco faziam. Os chapus altos filosofavam. Corria-se a ver, corria-se a dizer. Corria-se a dizer o que se tinha visto e ouvido. E o que no se tinha ouvido e visto. Exagerava-se, reportava-se o desejo. desfilada, e eram midos. Tomava-se partido, avulsamente. Mas eram tantos que era a Cidade.

    Queria o Descampado saber isto e aquilo?

    Queria a Praa saber mais isto e mais aquilo?

    - Ao Descampado, tudo!

    - Praa, nada!

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    Ou alguma coisa, mas ao contrrio. Tanto que no Descampado havia quem mandasse dizer l em baixo que as unidades tais e tais estavam com o Derrube e que o regimento tal estava aqui estava a atacar a Praa do lado do rio. O Heri percebeu. As mentiras tinham posto cerco Praa. Era por estas e por outras que no era democrata.

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    O Grande Baslio

    Houve um garoto que no transe se fez lenda. E depois cone em postais pintados mo. O Baslio. Aquele. Ia pela Cidade, cavalgando uma espantosa bicicleta, de posio em posio. Descampado, Praa, Alameda abaixo, Alameda acima, claro, mas tambm de regimento em regimento, de jornal em jornal, de convento em convento, de representao diplomtica em representao diplomtica, e mais genericamente de bairro em bairro.

    Fazendo o qu?

    Pois inventando histrias. Num crescendo de audcia.

    Ele era que havia trinta regimentos a um lado e trinta a outro. E que se estava espera da deciso de um outro para se saber se havia Derrube ou no.

    Ele era que a ****** tinha declarado guerra ******.

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    Ele era que o Vulto Jovem se tinha apoderado de um cruzador estrangeiro!!!, e declarado, ele, a favor do seu prprio Derrube!!!!...

    Tanto que, pelas novidades, mas tambm pela riqueza narrativa, estavam os dois lados, os trs lados, todos os lados, esperando que B. chegasse.

    O Baslio era derrubista. Embora s vezes nem tanto. Dependia de quem o ouvia e do que queria ouvir quem o ouvia. Era sobretudo um artista. Da que tenha sido ele, talvez mais do que os jornalistas, talvez mais do que os numerosos testemunhos memorialistas que depois foram dados estampa, a fazer a crnica maravilhosa do Derrube. Falsa, mas verdadeira.

    Est hoje provado que Baslio, a partir de uma certa hora, no era um, eram doze, doze as bicicletas, havendo nove Baslios derrubistas e trs Baslios vultistas. Eram todos companheiros de escola e, havendo qurum de pelo menos oito, reuniam-se de duas em duas horas no Parque Botnico da Cidade, sob uma rvore centenria.

    Anos depois, quando da Guerra de 21, tendo seguido para o front nove deles, e querendo repetir o jogo das fbulas, chegaram a fazer mossa de um lado e de outro do conflito. Morreram l sete. E por isso que h, no Cemitrio Leste, sete campas com a mesma inscrio: Baslio.

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    O Cnsul apanha o comboio

    Havia casos. Um deles era o do Cnsul. Contavam uns que o Cnsul partia, que o Cnsul partiria, que o Cnsul j tinha partido.

    - Si, si, ma quale Console, quale?!..., perguntou o maestro ao contra-regra.

    O contra-regra explicou. O Cnsul era do pas fronteirio, orgulhoso e desproporcionadamente maior do que aquele. E ruidoso. Dado a exageros de si e do seu papel no Mundo. Tanto que um estardalhao cantado e musicado e disparado por d c aquela palha. De dentro para fora. E de dentro para dentro. Pas que, sendo como , irritvel, poderia, irritado com o Derrube, irritado com a prpria tentativa de Derrube, irritado com a prpria ideia de Derrube, sabe-se l, intervir! Porque os Derrubes, elaborou o contra-regra, so contagiosos, mesmo que sejam s de ouvido, pelo menos, sendo os povos, como se sabe, inflamveis, pegam fogo s imaginaes e no h fronteiras que travem a ideia deles, poderia muito bem vir por a abaixo repor o Vulto Jovem.

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    - Un` invasione?!

    - Sim, sim! No seria a primeira vez!

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    O Ministro Plenipotencirio

    Outro pas estrangeiro, muito outro e muito mais distante deste, tido esse como ainda mais feroz, por juntar a um mau gnio congnito um empenhamento furioso nos altos fornos, entendia-se, e entendia a circunstncia do Derrube, de outra forma. Era esse pas representado, no por um Cnsul e por um Cnsul alis j com um p num comboio mas por um Ministro, e Plenipotencirio. Militar. Condio que era, como ele a entendia, simultaneamente e de uma assentada, o patriotismo e a eficincia.

    Barbeou-se rigorosamente o Ministro Plenipotencirio, escanhoou-se no limite do risco, exactssimo porm, sem um golpe, abotoou-se de alto a baixo, condecorou-se a propsito, sucinta mas categoricamente. Enfiou o capacete que o espelho, embora alto, no cobria. Cobria-o o espelho do corredor. Um passo frente, um passo atrs. Estava como devia estar.

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    Desceu rua. A calada soou, sob os seus taces. A espada tiniu-lhe na anca. Tinha de intervir, para o que tinha de se informar, embora tivesse sobretudo de intervir. Dando a ver assim quele pas confuso e meio rabe como se intervm. Nem ouviu o passo subalterno do Secretrio da Legao, que o seguiu. Chegando c baixo Alameda, mais ou menos a meio dela, olhou num sentido, olhou noutro, para cima e para baixo. Depois sacou dos binculos, aqueles que a excelente ptica da sua Nao produzia, apontou-os, demorou-se a calibr-los. Viu tudo, percebeu tudo. Em baixo, na Praa, os vultistas. Em cima, no Descampado, os derrubistas. Em baixo, em sentido. Em cima, em delrio. Passou por ele um disparo. Classificou-o, identificou a pea, conjecturou o efeito. Estava no seu elemento. Nem viu que o Secretrio da Legao se atirara de borco para o cho. Desceu o Ministro Plenipotencirio em direco Praa. Era um profissional. Primeiro o Poder.

    Embora o Poder, naquele Pas, j se sabia que. Tinham-lhe dito que havia um Conde. Um s, os outros no contavam.

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    Os heris no so fceis

    O dito O Heri tinha, pensava o Ministro Plenipotencirio, todas as condies para ser um excelente interlocutor. E no tinha.

    Tinha porque era um militar, como ele, e ilustre, como ele se considerava. E considerava-se at na medida em que tal qualidade era coisa ratificada pelas trs condecoraes que exibia. Duas, definitivas, da sua prpria Nao. Uma, singularssima, e um tanto extica, de uma nao outra. E estava tudo dito.

    No tinha porque, pertencendo a uma nao triste e curta, tinha, dessa tristeza e desse acanhamento, uma noo de grandeza que julgava autorizar-lhe a mais insuportvel arrogncia. Sobretudo no trato com as grandes potncias, das quais, para o Ministro, a maior era sem sombra de dvida aquela que ele plenipotenciariamente representava.

    Tanto e de tal forma que se contava na Cidade aquela histria sumamente irritante de, discutindo-se um dia, numa recepo, numa roda de

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    diplomatas e de militares, a fora das diversas Naes, e lanando uns contra os outros o nmero de divises dos pases que representavam, indo isto num crescendo, quando chegou a vez do dito O Heri, ele limitou-se a dizer, com ironia:

    - Novecentos e cinquenta anos!

    Pensando nisto, pensando irritadamente nisto, at porque no percebia aquelas contas, o Ministro Plenipotencirio apresentou-se aos primeiros soldados que viu na Praa. Nem eles, verificou que todos morenos e baixos, o entenderam nem ele os entendeu a eles. No sendo assim fcil nem rpido chegar fala com O Heri.

    O que acabou por acontecer.

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    A cadeira do dentista

    As continncias foram feitas, e tudo a esteve bem. Digamos que nada estaria melhor em qualquer grande Cidade civilizada. O Ministro falou na lngua terceira. Respondeu O Heri na mesma terceira lngua. Admirando-se:

    - Informaes?! Mas informaes sobre qu?!...

    - Sobre a situao...!

    - Qual situao?!

    -...delicada...

    - Delicada?!

    - O Derrube...!

    - O Derrube?!... Mas qual Derrube?!...

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    - Enfim, o... Isto! Esta...! Ou seja, a...!

    No encontrava a frmula.

    - Tenho de informar imediatamente o meu Governo! Peo a V. Ex. que me informe... a mim!

    Silncio.

    Percebeu o Ministro que dera um mau passo.

    - Eu reporto a quem reporto!, disse O Heri.

    Dali para a frente foi tudo base de continncias e formalidades.

    - Vou subir, a parlamentar com a outra parte!, anunciou o Ministro.

    - Far V. Ex. o que entender, responsabilizando-se V. Ex. pelos riscos que correr!

    Diria, alguns anos depois, j noutro pas, este Ministro Plenipotencirio, que aquele brevssimo dilogo o fizera sentir-se pior do que quando se sentava numa cadeira de dentista. Antecedendo assim largamente uma frase semelhante proferida, logo aps outro dilogo difcil, por um compatriota seu, alis em rigor um quase compatriota.

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    O leno branco

    Assestou o Ministro Plenipotencirio sobre o alto da Alameda o culo. Era uma meia lgua. Sentiu que o dito O Heri o observava, por meio de binculo, l de baixo. Imaginou que ele sorria. Uma meia lgua, por ali acima, sem identificao, sem aviso, sem uma explicao, independentemente do risco, era uma irregularidade. No se embaraou o Ministro. Ordenou ao Secretrio que lhe passasse o seu leno.

    - O meu leno, Excelncia?!...

    - O seu leno!

    Passou-o o Secretrio. Desdobrou-o o Ministro. Era enorme. E era branco. Atou-o na espada, ignorou os oferecimentos de ajuda do Secretrio e atou-o. Um n na ponta, um n a meio. E, erguendo-a, comeou a subir sozinho. Descontando o Secretrio, que s podia ir no seu encalo e pisando a sua sombra. E a correr, tambm atrs dele, populares, um, e depois outro, e depois mais, os chapus s trs pancadas. O Ministro nem

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    notou que, entre as rvores um fotgrafo sumariamente o enquadrava, a ele e turbamulta, e premia, na mquina, um boto. Foi o que bastou.

    O fotgrafo era O Fotgrafo.

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    Visto do Descampado

    Visto do Descampado, o Ministro Plenipotencirio no se percebia o que fosse, quem fosse, o que quisesse.

    - Ser um representante dos batalhes vultistas que vem apresentar a rendio?!...

    - Ser um louco?!...

    Assestaram, sobre ele, os binculos. Havia bichas para ver, para observar. Agora eu!, agora eu! Um louco decerto no. Porque os loucos no so Ministros representantes de Estados estrangeiros, como j se estava a ver por um ou dois assestados e informados culos. E no so Plenipotencirios. S podendo ser o da ********. Logo, Plenipotencirio. Ou, sendo, apesar disso, loucos, no podem ser tratados como tais.

    - Sua Excelncia o Senhor o Ministro Plenipotencirio da ********!, Sua Excelncia o Senhor Ministro plenipotencirio da ********!...

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    Era o que, em corrida, vinha dizendo o Secretrio, na lngua terceira, j sobre a linha da barricada. Correra ele como no sabia que era capaz. Por estar tudo, mas tudo, em risco. A representao diplomtica, o Ministro e ele prprio, Secretrio da Legao. Ouriada de espingardas a barricada. Todas viradas para o Ministro e para ele. Alm da bocarra da pea que lhe estava, achou o Secretrio, rigorosamente apontada ao peito. O Comissrio ajustou as lunetas, olhou por cima do Secretrio, e, avistando quem chegava agora, uma espada ao alto, uma expedita bandeira branca, foi na direco do Ministro.

    Sentiu que tinha a barba por fazer.

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    Que gente esta?

    Sabe-se que o Ministro Plenipotencirio, quanto ao pas em que estava, ia de surpresa em surpresa. L em baixo, na Praa, tinha sido o dito O Heri, c em cima era um Comissrio. Desde logo por ser um Comissrio. Viu-o chegar, de farda de gala, sim, mas apenas Comissrio, e no percebia, pura e simplesmente no percebia, como que um Derrube, na forma embora meramente tentada, era chefiado por um Comissrio. Da Marinha. Tenso, refugiado atrs de umas lunetas opacas. Talvez tmido.

    Dois casos.

    Um meio displicente, o outro meio fechado. Ambos melanclicos. E com uma arrogncia que nem a dimenso daquele Pas nem as foras que comandavam nem as perspectivas para o dia, que nunca, mas nunca mais, amanhecia, justificavam. No tanto pelo que diziam. Sobretudo pelo que no diziam mas se lhes lia no olhar e nos lbios. Como se, perdendo, ganhassem alguma coisa em perder.

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    Que gente esta?

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    Os ferozes marinheiros

    Os marinheiros apinhavam-se na amurada que dava para a Cidade. Tanto que o Dinastia adornava. Eh l, eh l! No a preto e branco daquele amanhecido entardecer, o azul das fardas era negro, e mais tensos os braos, e mais negros os bigodes, e mais temveis os cares.

    Tambm dali, do meio do rio, alm do rio, ao fundo do qual respirava o Mar, chamava o Mar, embora fosse apenas um rio exagerado, da Cidade no se via nada, tudo se passava atrs das casas, nos corredores das ruas. Mas ouvia-se o que se queria ouvir. Um clamor, um estalar, um desabar.

    Na amurada era uma impacincia geral. Desembarca-se? No se desembarca? Os oficiais tinham instrues, uns umas, outros outras. Umas ouvidas aqui, outras ouvidas ali. Na circunstncia, eram vrias e contraditrias as hierarquias. Quiseram os marinheiros discutir as instrues e mesmo as hierarquias. Digamos que vot-las, uma a uma.

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    No era disso que se tratava naquele dia? Predominaram as do bombardeamento do Palcio.

    - O qu, o Palcio?!

    - O Palcio!

    Depois de uma curtssima hesitao foi a alegria. Tanto que as ordens comearam a ser cumpridas antes de terem soado. Comearam os artilheiros a girar lentamente, atravs das competentes manivelas, os tu