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Revista Eletrnica Via Litterae ISSN 2176-6800
Via Litterae, Anpolis, v. 2, n. 1, p. 249-264, jan./jun. 2010
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CANTO COMPASSADO: OS CANTARES DE AMIGO E OS CANTARES
DE HILDA HILST
CHANTS IN COMPASS: THE GALICIAN-PORTUGUESE TROVADORISM AND HILDA
HILSTS CHANTS (CANTARES)
Renata Rocha Ribeiro* (UEG)
Goiandira de Ftima Ortiz de Camargo** (UFG)
RESUMO: Este artigo pretende realizar uma leitura de parte da lrica de Hilda Hilst. Em primeiro lugar, ser vista a produo dessa poetisa no panorama da lrica brasileira contempornea, tentando estabelecer a qual linhagem lrica ela se filia. Num segundo momento, sero vistas algumas caractersticas relacionadas s cantigas de amigo galego-portuguesas, tais como a configurao do eu-lrico feminino, a estrutura, os temas. A partir da, ser visto como Hilda Hilst promoveu uma (re)leitura desse gnero dos Cancioneiros do Trovadorismo em sua obra Cantares, publicada em 2002. PALAVRAS-CHAVE: Lrica brasileira. Contemporaneidade. Trovadorismo galego-portugus. Cantigas de amigo. Hilda Hilst.
ABSTRACT: This article aims to analyze parts of Hilda Hilsts lyrical poems. At first, her production will be analyzed in the scenery of the contemporaneous Brazilian lyrical setting to try to establish which lyrical trend she fits in. After this, some characteristics of the Galician-Portuguese Chants, the cantigas de amigo, with a female lyrical self, will be related to Hilsts poems, such as the female self, the structure and the themes. To sum up, it will be discussed how Hilda Hilst has promoted new reading approaches about this genre the Trovadorism lyrical chants especially in her book Cantares, published in 2002.
KEYWORDS: Brazilian lyric. Contemporaneity. Galician-Portuguese Trovadorism. Cantigas de amigo (female lyrical self). Hilda Hilst.
* Doutora em Estudos Literrios pela Universidade Federal de Gois (UFG). Professora de Teoria Literria e Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Gois (UEG - Inhumas). E-mail: [email protected]. ** Doutora em Cincia da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fez estgio de ps-doutoramento na Universidade de Lisboa sobre poesia contempornea. Professora de Teoria Literria da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Gois (UFG). E-mail: [email protected].
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Traar um panorama preciso da produo de poesia contempornea no Brasil algo
praticamente impossvel. Isso porque parece no haver mais a ideia de movimento literrio,
ou seja, um grupo de poetas motivados pelos mesmos objetivos. Talvez o ltimo tenha
ocorrido na dcada de 50, com o Concretismo e seus desdobramentos. Os tericos e
crticos dessa poesia tentam buscar padres, reconhecer linhas, mas o que parece haver
um emaranhado de dices.
Benedito Nunes (1991), no artigo A recente poesia brasileira: expresso e forma,
acredita ser importante pensar na referencialidade histrica para entender os
acontecimentos de uma potica atual. Partindo desse pressuposto, chega concluso de
que a poesia no mais cannica, mas uma soma de cnones que convivem num
pluralismo esttico. Em Caminhos recentes da poesia brasileira, Antnio Carlos Secchin
(1996) parte das poticas de vanguarda para entender o contemporneo. Tambm ele
pensa que uma das caractersticas da atualidade a multiplicidade, numa oscilao
constante entre vanguarda e tradio. Italo Moriconi (1998), assumindo a postura de crtico
cronista em Ps-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira, estabelece pontos
de contato entre a poesia das dcadas de 70, 80 e 90 e concorda com a profuso de vozes
poticas.
Assim, a crtica especializada, representada pelos nomes acima e por outros como
Jos Guilherme Merquior, Helosa Buarque de Hollanda, Clia Pedrosa e tantos outros, ao
tentar pensar em linhas poticas, entra em consenso ao reconhecer que o que existe uma
mistura de vozes, formas e temas, sem a predominncia de um estilo especfico. Os poetas
contemporneos parecem eleger de qual antepassado querem descender, escolhendo
assim as suas linhagens poticas, sejam elas de uma tradio mais ou menos remota, para
propor as suas (re)leituras.
, portanto, nesse contexto que a poesia de Hilda Hilst se insere. Nascida em 1930,
publicou seu primeiro volume de poesia no ano de 1950, aos vinte anos, intitulado
Pressgio. Tambm se dedicou narrativa e ao teatro. So suas as narrativas A obscena
senhora D (1982), O caderno rosa de Lory Lambi (1990) e Rtilo nada (1993), e as peas O
verdugo (1969) e A morte do patriarca (1969), por exemplo. Sobre essa versatilidade entre
os gneros, afirma Anatol Rosenfeld (1970):
raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializaes, que experimentam cultivar os trs gneros fundamentais de literatura a poesia lrica, a dramaturgia e a prosa narrativa alcanando resultados notveis nos trs campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst [...], de incio exclusivamente dedicada poesia e mais conhecida como poeta [...].
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Rosenfeld (1970) tece comentrios tambm sobre as leituras e influncias da poeta,
que justificam o seu modo de fazer potico:
A experincia potica de Hilda Hilst ampla. Ao lado dos poetas lembrados, ama, ou pelo menos amava durante certa fase, a poesia de Helderlin, Rilke, John Donne, Eliot, Ren Char, Saint-John Perse. Alguns deles afinam, em maior ou menor grau, com as tendncias msticas e metafsicas de Hilda Hilst, tendncias que se situam, aproximadamente, na linha da tradio platnica e gnstico-teosfica e que se manifestam tambm e particularmente nas elocubraes fsico-geomtricas da sua poesia e dramaturgia. Matemtica e mstica, por paradoxal que possa parecer, so terrenos que facilmente se avizinham, sobretudo na literatura contempornea.
Ainda sobre sua obra, Edson Costa Duarte ([20--], p. 2), em Hilda Hilst: a poeta da
agonia e do gozo, afirma que a obra de Hilda no tem um lugar claro na literatura brasileira
contempornea:
Em parte, isto se deve singularidade de sua obra, que nunca se afinou com nenhum movimento ou corrente literrios brasileiros de sua poca. Por outro lado, os textos que buscam relaes da obra de Hilst com a de outros escritores raramente aprofundam o que afirmam.
Alm de tratar dessa possvel falta de lugar de Hilda no cnone nacional, Duarte
([20--], p. 4) comenta sobre as vozes crticas acerca de sua produo potica:
Nos ltimos anos, a crtica acadmica tem se interessado mais pela obra de Hilst, embora ainda seja pequeno o nmero de trabalhos produzidos, se comparado enorme fortuna crtica de outros autores. Isto dito, tendo-se em conta o reconhecido valor da literatura de Hilst, e o fato de j se passarem mais de cinquenta anos da publicao de Pressgio (1950), primeiro livro da autora.
Devido s declaraes polmicas em entrevistas e tambm s obras de cunho
fortemente ertico da poeta, a crtica sobre Hilda Hilst vai desde a indiferena, passando
pelos fartos elogios e chegando at raivosa indignao.
Por outro lado, sabido que Hilda se identificava com os nomes da tradio literria
brasileira e portuguesa, como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Jorge de
Lima e Ceclia Meireles. Assim, a linhagem potica a que Hilda escolheu pertencer a da
lrica mais subjetiva e autocelebrativa. Sobre isso, afirma Moriconi (1998, p. 16):
boa parte das poetas mulheres surgidas no ps-68 responsvel pela onda de subjetivismo identitrio, afirmativo e autocelebratrio na poesia brasileira recente. A voz avassaladora da mulher indica, como bvio, a presena de uma nova subjetividade social, e se traduz de maneira mais imediata na expresso ertica. A poeta mulher celebra seu prprio corpo como signo de diferena na arena pblica.
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Como mulher, Hilda Hilst no se furtou, em sua obra, de (re)elaborar toda uma
potica voltada para o feminino, com destaque para o jogo amoroso: a seduo, o erotismo,
os ganhos e as perdas oriundos do relacionamento entre homem e mulher. Moriconi (1998,
p. 16) ainda acrescenta: Est em pauta a emergncia no discurso de uma sexualidade de
orifcios, lquidos, receptividades, contrastando com a sexualidade flica. Inaugura-se assim
toda uma nova famlia dentro da poesia brasileira.
Dentro dessa temtica da mulher diante de uma batalha amorosa, destacam-se na
obra de Hilda os livros Cantares de perda e predileo (1980) e Cantares do sem nome e de
partidas (1995), que posteriormente foram reunidos num nico volume, Cantares (2002).
Esse momento da poesia hilstiana, a partir da dcada de 80, principalmente, de acordo com
Duarte ([20--], p. 17), se caracteriza pelo fim da
busca da desconstruo da tarefa nomeadora do real, por meio da paradoxal desconstruo metafrica desse mesmo real. O texto potico, resduo de si mesmo, torna-se um resto do que foi sua produo, a tentativa de constituio e fixao de snteses mentais. O amor em todas suas ramificaes sensuais e msticas surge agora com mais vigor. Para alm dos despojos da paisagem, dos restos da linguagem, a poesia hilstiana abordar, neste momento, o gozo/prazer a partir do amor e da morte. A poesia, embora possa se tingir de tons de aparente contemplao ou humildade, nos revelar a aceitao da dificultosa tarefa de nomear as relaes entre o sagrado e o profano, elevando-se o humano a uma posio equidistante entre o homem e a divindade.
Alcir Pcora (2002, p. 7, grifo do autor), no prefcio de Cantares, justifica a unio dos
dois volumes pelo interesse de trazer para o primeiro plano de leitura a maneira como Hilda
se aplica forma dos cantares, ou cnticos, tomando-se como matriz o livro bblico.
Entretanto, o presente artigo no pretende abordar essa relao com a Bblia, mas outra a
que a palavra cantares alude: a proximidade com certos aspectos das cantigas medievais,
mais especificamente a cantiga de amigo. Para tanto, faz-se necessria uma breve
explanao sobre as cantigas lricas trovadorescas.
Praticamente toda e qualquer literatura se inicia com obras em verso, devido
facilidade mnemnica para a transmisso oral. Por sua vez, as cantigas trovadorescas, que
so a base da literatura portuguesa, no vo fugir regra. De acordo com a Histria da
literatura portuguesa, de Saraiva e Lopes (1996, p. 45-46), os textos literrios mais antigos
em portugus
so composies em verso coligidas em Cancioneiros de fins do sculo XIII e do sculo XIV, que renem textos desde fins do sculo XII. Mas devemos supor anterior a tal poca o culto da poesia testemunhado por estes textos escritos. A literatura oral, com efeito, s se fixa por escrito em poca tardia da sua evoluo, quando as condies ambientes j divergem muito daquelas que lhe deram origem. Portanto, seria errado pensar que a poesia
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portuguesa nasceu com os Cancioneiros: estes no passam de coleces, mais ou menos tardias, de textos que de incio circulariam em cpias mais restritas.
Os Cancioneiros (da Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Vaticana), portanto, no so
colees de poesia portuguesa, mas sim de poesia peninsular em lngua galego-
portuguesa (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 47). Os gneros presentes nesses Cancioneiros
so as cantigas de amigo, as de amor e as de escrnio e maldizer, sendo que as duas
primeiras so as de maior interesse para este artigo.
A poesia dos trovadores, de acordo com Denis de Rougemont (2003, p. 102-103,
grifo do autor) em Histria do amor no Ocidente, aquela em que h a o amor infeliz
exaltado. Para ele, a
Europa no conheceu poesia mais profundamente retrica: no somente em suas formas verbais e musicais, mas tambm, por mais paradoxal que parea, em sua prpria inspirao, j que esta se baseia num sistema fixo de leis que sero codificadas sob o nome de leys damors. Mas tambm preciso dizer que nenhuma retrica foi mais exaltada e ardente.
Na tentativa de explicar a origem do amor infeliz, Rougemont (2003, p. 104) afirma
que todos os estudos voltados para o assunto concordam que os trovadores nada extraam
da realidade social. Assim, ele considera que um grande fato histrico do sculo XII foi
responsvel por essa viso do amor: a religio ctara, vista como uma ameaa na poca
por discordar de certos dogmas catlico-cristos, como o da Encarnao e o do batismo por
asperso. E continua explicando:
Era concedido nas cerimnias de iniciao aos irmos que aceitavam renunciar ao mundo e solenemente se comprometiam a consagrar-se unicamente a Deus, a jamais mentir nem prestar juramento, a no matar nem ingerir animal de qualquer espcie e, por fim, abster-se de todo contato com sua mulher, se fossem casados. (ROUGEMONT, 2003, p. 109-110, grifo do autor).
Em outras palavras, os puros que consagravam sua vida a Deus no deveriam ter
relacionamento sexual nem com suas esposas, se j tivessem sido casados anteriormente.
A estaria uma justificativa para o posterior amor a uma mulher que nunca diz sim ao seu
admirador, o chamado amor corts, que tambm tem sua origem remontada relao
feudal entre suserano e vassalo. Vale a pena lembrar que esse tipo de cantiga em que o eu
masculino a cantiga de amor.
Entretanto, muito simplista dividir as cantigas de amor e de amigo apenas pelo
sexo de seu emissor. As diferentes origens e formas so capitais para a compreenso de
uma e de outra. Em linhas gerais, as cantigas de amor tm origem provenal. Foram
incorporadas ao galego-portugus expresses daquela lngua, bem como os temas. Para
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Saraiva e Lopes (1996, p. 59), foram os provenais que elaboraram o amor corts, como se
fosse
uma aspirao, sem correspondncia, a um objecto inatingvel, de um estado de tenso que, para permanecer, nunca pode chegar ao fim do desejo. Manter este estado de tenso parece ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro poeta, como se o movesse o amor do amor, mais do que o amor a uma mulher. E no s a esta dirigem os poetas suas imploraes, queixas ou graas, mas o prprio Amor personificado, figura de retrica muito comum entre os trovadores provenais e por eles transmitida aos galego-portugueses.
J as cantigas de amigo tm sua origem no folclore popular galego-portugus.
Algumas de suas composies usam a forma do paralelismo, um esquema em que o par de
estrofes ou de dsticos a unidade rtmica. Eles guardam com os demais pares pouca
diferena de sentido. Tambm h o refro, que segue cada estrofe. Esse esquema repetitivo
demonstra que a letra se subordinava ao canto e ao ritmo da dana, e que a inveno
literria desempenhava [...] um papel relativamente secundrio (SARAIVA; LOPES, 1996,
p. 50). Entretanto, h tambm esquemas paralelsticos mais complexos, como a cantiga de
meestria.
As cantigas de amigo apresentam grande variao temtica. Por meio da leitura de
vrias dessas cantigas, supe-se a existncia de diversos estratos culturais ou sociais, mas
quase sempre elaborados pelo modo corts. Assim, h cantigas em que o rural retratado,
outras em que o ambiente domstico delineado e outras ambientadas na corte. Em muitos
cantares de amigo, existe uma equivalncia entre estado de esprito do eu e as paisagens
naturais, bem como smbolos naturais que ritualizam o erotismo feminino.
De forma geral, de acordo com Saraiva e Lopes (1996, p. 55), o que distingue o
tpico lirismo dessas cantigas
sua confinao esttica do paralelismo, mesmo nos espcimes j de certo reelaborados que nos chegaram. D-se uma rarefaco extrema de elementos narrativos ou descritivos; avultam poucos mas densos smbolos de participao imaginria entre, por um lado, certas coisas naturais e, por outro lado, uma coita feminina sem individualidade, sem ambiente domstico, [...] na presena ou ausncia do amigo, que todo ele se reduz tambm carga amorosa de sinal contrrio.
No texto Aspectos do feminino no cantar dos trovadores: das cantigas de mulher
codaxianas aos louvores afonsinos a Santa Maria, Maria do Amparo Tavares Maleval
acrescenta que as cantigas de amigo, consideradas as mais genuinamente galego-
portuguesas por sua origem, promoveram uma espcie de louvao e sacralizao do
corpo, antes anulado pela Igreja e ridicularizado em cantigas de escrnio e maldizer. Para
Maleval ([19--]), as cantigas de amigo
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no se pautam pelas regras idealizadoras do amor corts: antes, movem-se no mbito do desejo natural da jovem pelo namorado, num espao tantas vezes comprobatrio da unio entre a natureza, a magia e a religio, marca de substratos pr-cristos que se perpetuavam na Pennsula Ibrica.
Alm de marcar o papel da mulher no jogo de seduo amorosa, Maleval ([19--])
destaca, como traos originais das cantigas de amigo,
a representao dos elementos da natureza em que se (con)fundem o significado literal e o simblico, principalmente para vincularem o erotismo que a partir deles se insinua. Distanciam-se, dessa foram, da natureza estereotipada do exrdio primaveril da cano provenal, por representarem, antes do mais, a natureza mgica, que congrega em si a religio e a sexualidade.
Em contrapartida, o texto Duas artes de amar: Ovdio e os trovadores, de Gerson
Gonalves da Silva e Telma Maria Vieira ([19--]), destaca que o eu feminino no inovao
dos trovadores, mas de Ovdio, no sculo III, quando escreveu Herodes, que so um
conjunto de cartas redigidas por figuras conhecidas do mundo grego como Penlope, Dido,
Ariadne, Fedra e Medeia, entre outras, endereadas respectivamente a seus hericos
amados: Ulisses, Eneias, Teseu, Hiplito e Jaso.
Em linhas gerais, os caracteres apresentados acima so os mais relevantes acerca
da composio do gnero cantiga de amigo. A leitura de Hilda Hilst das cantigas
trovadorescas se revela bem anterior publicao de seus dois Cantares: em 1961 publicou
Trovas de muito amor para um amado senhor, onde j cantava:
XIII Dizeis que tenho vaidades. E que no vosso entender Mulheres de pouca idade Que no se queiram perder preciso que no tenham Tantas e tais veleidades. Senhor, se a mim me acrescento Flores e renda, cetins, Se solto o cabelo ao vento bem por vs, no por mim. Tenho dois olhos contentes E a boca fresca e rosada. E a vaidade s consente Vaidades, se desejada. E alm de vs No desejo nada. (HILST, 1980)
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Nesse poema, a moa conversa com o rapaz sobre a prpria vaidade. Ele acredita
que jovens mulheres no devem se entregar s veleidades para que no se percam. Mas
ela justifica seus cuidados consigo mesma como uma espcie de oferta ao seu amado, para
que ele se encante mais e mais com seus atributos. Alm disso, a vaidade nela s foi
despertada pelo desejo do outro, que por sua vez o nico desejo da jovem. A mulher,
ento, louva seu prprio corpo ao adorn-lo para o amor e demonstra por meio disso seu
desejo pelo homem. Os enfeites so as armas de seduo de que ela dispe para que o
outro a deseje ainda mais. Ao se dirigir ao rapaz, ela usa a palavra senhor, o que indica
um compromisso. Alm disso, vrios elementos citados aparecem na tradio dos cantares
de amigo: as flores, as rendas, os cetins, os olhos e a boca rosada. A fita, por exemplo,
simbolizava compromisso, como se v na cantiga de Pero Gonalves Portocarreiro, um
trovador do reinado de D. Afonso III e da alta fidalguia:
Par Deus, coitada vivo: pois non ven meu amigo: pois non ven, que farei? meus cabelos, con sirgo eu non vos liarei. Pois non ven de Castela, non viv, ai mesela, ou mi-o deten el-rei: mias toucas da Estela, eu non vos tragerei. Pero meu leda semelho, non me sei dar conselho amigas, que farei? En vs, ai meu espelho, eu non me veerei. Estas das mui belas el mi-as deu, ai donzelas, non vo-las negarei: mias cintas das fivelas, eu non vos cingerei.
A moa, nesse caso, recebeu presentes (das) que indicam compromisso: o sirgo
(fita) e a touca, por exemplo. Ela no nega que os ganhou para firmar uma espcie de
noivado, porm, diante da demora de seu amigo, promete romper com a relao caso ele
no retorne e diz isso as suas amigas. A jovem praticamente ameaa seu amado, dizendo
que no vai mais se enfeitar com os agrados recebidos dele para dar a entender que est
desimpedida.
J em Cantares, a celebrao das npcias dos cnticos bblicos trocada por um
registro de batalhas e lutas, no qual o tom elegaco, pesaroso, alterna com o francamente
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belicoso [...] (PCORA, 2002, p. 7). No primeiro livro, retratada a memria dos lugares
de convivncia e disputas amorosas (PCORA, 2002, p. 8), enquanto no segundo, as
penas de amor tomam formas menos furiosas e vingativas, embora ressentidas (PCORA,
2002, p. 9). Hilst realiza, portanto, uma releitura da tradio medieval. Nesta, a jovem podia
tanto cantar o sofrimento e a saudade do amigo ausente, da partida desse amigo, como a
alegria que antecede o encontro com o rapaz e o prazer de sua presena. Alm do amigo,
as cantigas geralmente tinham como interlocutoras as amigas, irms e mes das jovens
apaixonadas.
A epgrafe de Cames que abre Cantares do sem nome e de partidas j anuncia a
viso do amor a ser tratada nas dez composies do livro: tirnico Amor, caso vrio/
Que obrigas um querer que sempre seja/ De si contnuo e spero adversrio. O amor
camoniano, que por sua vez bebeu na fonte de Petrarca, aquele que proporciona
sensaes contrrias, o sentimento de opostos. Alegria e tristeza, prazer e dor convivem
paradoxalmente. Esse tipo de amor renascentista de razes platnicas tambm existiu, de
certa forma, na Idade Mdia, principalmente nas cantigas de amor: a concepo do amor
provenal est informada de platonismo, alis por via crist: a Mulher aparece ali, no como
uma companheira humana, mas como um ser anglico que sublima e apura a alma dos
amantes (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 335). Assim, esses dez poemas revelam a coita
feminina no campo do jogo do amor.
Os setenta poemas de Cantares de perda e predileo tm como epgrafe duas
passagens da Sror Juana Ins de la Cruz. Ela era mexicana, freira catlica e, nascida no
sculo XVII, dedicou-se poesia barroca. Autodidata, sua erudio lhe permitiu escrever
obras centradas na liberdade, nos direitos da mulher e na crtica ao sexismo. Seus escritos
renderam-lhe duras crticas, j que s mulheres da poca era vedado o direito de escrever.
Enfim, as passagens escolhidas por Hilst so: en liquido humor viste y tocaste/ mi corazn
deshecho entre tus manos1 e A mi, no el saber (que an no s) solo el/ desear saber me
ha costado gran trabajo2. Pressupe-se, a partir da, o cantar de um amor passado mas que
ainda traz ressentimentos; um amor que exigiu demais, mas que talvez no tenha sido
correspondido em toda sua intensidade.
Os dez poemas de Cantares do sem nome e de partidas 3 tm, entre si, uma espcie
de interligao. como se um fosse a continuao do outro e assim por diante. Um exemplo
justamente a passagem do primeiro poema para o segundo, ou melhor, o ltimo verso do
primeiro e o primeiro verso do segundo: Que este amor s me veja de partida e E s me
1 em lquido humor viste e tocaste/ meu corao desfeito entre tuas mos. [Traduo nossa]. 2 A mim, no o saber (que ainda no sei) s o/ desejar saber me custou grande trabalho. [Traduo nossa]. 3 Como, a partir de agora, ser usada a edio de 2002 de Cantares, s ser colocado o nmero de pgina.
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veja/ No no merecimento das conquistas (p. 17-18). No comeo, trata-se de um desejo
(Que este amor no me cegue nem me siga, p. 17); da tentativa de explicao desse
desejo, que no propriamente amor nem parece ter nome (No tem nome de amor. Nem
celeste/ ou terreno, p. 19); da sensao de eterna despedida que esse sentimento produz
(E isso sem nome, o despedir-se sempre/ Tem muito de seduo, armadilhas, mincias/
Isso sem nome fere e faz feridas, p. 20), cuja partida relacionada ao Nunca Mais.
Apesar de tudo isso, esse sentimento deve ser cantado (Mas assim mesmo/ Canta! Ainda
que se desfaam ilhargas, trilhas.../ Canta o comeo e o fim. Como se fosse verdade/ A
esperana, p. 25), a fim de encantar, que uma das funes da arte, do poema (Como se
fosse verdade encantaes, poemas/ Como se Aquele ouvisse arrebatado/ Teus cantares
de louca, as cantigas da pena, p. 26). J os setenta poemas de Cantares de perda e
predileo no apresentam uma sequncia elaborada da mesma forma, mas cantam as
dores e prazeres do relacionamento, antes tido como sem nome e aqui j nomeado como
dio-amor.
Das caractersticas levantadas sobre a cantiga de amigo, a mais bvia presente nos
poemas de Hilda Hilst a voz feminina; fato que pode ser comprovado por meio de vrios
versos: Que me exclua do estar sendo perseguida (p. 17; grifo nosso); Aldeia o que sou.
Alde de conceitos (p. 23; grifo nosso); Me vias/ Partida ao meio (p. 37; grifo nosso);
dentre outros.
A questo do amor como que irrealizvel pode ser verificada em algumas
composies, como a de nmero III do primeiro livro: Isso de mim/ novo: Como quem
come o que nada contm./ A impossvel oquido de um ovo./ Como se um tigre/ Reversivo,/
Veemente de seu avesso/ Cantasse mansamente./ [...] Como pode ser isso? [...]/ E preferir
ausncia e desconforto/ Para guardar no eterno corao do outro (p. 19). Para o eu, esse
sentimento novo por se colocar como impossvel: impossvel como um ovo oco, como um
tigre manso. um sentimento que prefere a ausncia para sempre t-lo no corao.
Paradoxalmente, a presena do amado acabaria por matar o sem nome.
Alguns temas recorrentes nas cantigas de amigo, como o da partida e o da
esperana de volta, esto presentes nos poemas hilstianos. Exemplo do primeiro o poema
II:
E s me veja No no merecimento das conquistas. De p. Nas plataformas, nas escadas Ou atravs de umas janelas baas: Uma mulher no trem: perfil desabitado de carcias. E s me veja no no merecimento e interdita: Papis, valises, tomos, sobretudos
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Eu-algum travestida de luto. (E um olhar de prpura e desgosto, vendo atravs de mim navios e dorsos.) Dorsos de luz de guas mais profundas. Peixes, Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis Machucadas de gozo. E que jamais perceba o rocio da chama: Este molhado fulgor sobre o meu rosto. (p. 18)
Esses versos contm algumas imagens de partida, como a da mulher em p em
plataformas, escadas ou por trs de janelas, num trem; vestida de luto pela ausncia e com
o rosto molhado que no deve ser percebido pelo outro. Remonta tambm tradio
portuguesa da navegao, com a imagem dos navios, dorsos e guas profundas. A
esperana da volta aparece, por exemplo, no poema VIII do segundo livro:
Me vinha: Que se tecesse Hastes de compaixo Corolas de caridade Sopro e saudade tecidos Na rede do corao Eu nunca mais sentiria Teu nome de hostilidade. Me vinha: Se desfizesse O que j tranado tinha Meu nome que ficaria Amor na tua eternidade. Ento teci Sis e vinhas: Ouro-escarlate-paixo E consumida de linhas Enovelada de ardncia Te aguardo s portas da minha cidade. (p. 40-41)
Alm de o tema da esperana da volta pertencer a parte das cantigas de amigo, esse
poema remonta a uma outra tradio, mais remota: a de Ulisses. A ideia dessa mulher de
tecer para relembrar o amor sem hostilidades liga-se astcia de Penlope para enganar
seus pretendentes e esperar por seu marido. O eu desse poema, ento, espera por seu
amado consumida, enovelada em sentimentos piedosos (compaixo, caridade) e de desejo
(ardncia).
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Outro caractere encontrado nas cantigas de amigo chama a ateno em algumas
passagens da poesia de Hilst: a coita feminina, seja pela lembrana de um tempo passado,
seja pela dor de um amor no-correspondido. Isso pode ser verificado nos poemas III, V,
XIV e XXVI do segundo livro. O III pode servir de exemplo:
Se a tua vida se estender Mais do que a minha Lembra-te, meu dio-amor, Das cores que vivamos Quando o tempo do amor nos envolvia. Do ouro. Do vermelho das carcias. Das tintas de um cime antigo Derramado Sobre o meu corpo suspeito de conquistas. Do castanho de luz do teu olhar Sobre o dorso das aves. Daquelas rvores: Estrias de um verde-cinza que tocvamos. E folhas da cor de tempestades Contornando o espao De dor e afastamento. Tempo turquesa e prata Meu dio-amor, senhor da minha vida. Lembra-te de ns. Em azul. Na luz da claridade. (p. 35)
Nesse caso, a mulher pede ao homem que se lembre do tempo em que eram
envolvidos pelo amor. H o sofrimento por parte dela porque j um tempo passado, que s
pertence ao campo da lembrana e que talvez no volte mais. interessante notar o cenrio
montado para os momentos de amor: as cores so tons de dourado, vermelho, turquesa,
prata. So cores fortes, luminosas e que podem transmitir a paixo, o amor. Assim, h a
equivalncia entre estado de esprito do eu e o cenrio a sua volta, como costumava
acontecer em boa parte das cantigas de amigo. A dor do amor no-correspondido pode ser
vista em diversas passagens, como esta, do poema XIV: Sem ser amada/ perteno (p. 47),
e melhor no poema XXVI, em que h a clara referncia ao ato de trovar:
De sacrifcio De conhecimento Da carne machucada Os joelhos dobrados Frente ao Cristo Meu canto compassado De mulher-trovador. Ai. Descuidado Que palavras altas Que montanha de mgoas
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Que guas De um venenoso lago Tu derramaste Nos meus ferimentos. Que simetria, justeza Para ferir-me a mim Como se a cruz quisesse De mim ser a moradia. E eu canto Porque esse o destino Da minha garganta. E canto Porque criana aprendi Nas feiras: ave e mulher Cantam melhor na cegueira. (p. 59-60)
A louvao do corpo pode ser depreendida do poema IX do primeiro livro: E pensas
maravilha quando pensas anca/ Quando pensas virilha pensas gozo (p. 25), numa
referncia ao desejo sexual. O erotismo simbolizado e insinuado por meio da enumerao
de diversos animais, objetos e sensaes ao longo de toda a obra, como: navios, dorsos,
gua, tigre, plancie e fendas, lenis, carne, virilha, gozo, anca, fome, lobos, leopardos,
cadela, lngua, cavalos, volpia, entre outros.
Ainda em relao seduo, ao erotismo, a mulher demarca bem o seu papel nesse
jogo, como em alguns casos de cantares de amigo. S que Hilda Hilst leva esse papel a
nveis quase que paroxsticos. A mulher aqui capaz de praticamente dar a vida para a
continuao da vida do outro. A seduo, a persuaso se d pelo que de mais precioso e
extremo a mulher pode doar. o que se pode perceber em poemas como o de nmero
XVIII, do segundo livro:
Para tua fome Eu teria colocado meu corao Entre os ciprestes e o cedro E tu o encontrarias Na tua ronda de luta e incoeso: A ronda que persegues. Para tua sede As nascentes da infncia: Um molhado de fadas e sorvetes. E abriria em mim mesma Uma nova ferida Para tua vida. (p. 51)
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Nesses versos, a mulher se coloca como provedora de todas as necessidades
fsicas e afetivas de seu amado: oferta seu corao (afetividade), sua infncia (prazeres
inocentes) e a prpria vida ou integridade em prol da vida dele. Tambm no poema XXII h
essa mulher que oferece tudo a fim de saciar o seu amor. a mulher que se sacrifica em
nome do outro:
Toma para teu gozo Este rio de saudade. Nenhum recobrir teu corpo Com tamanha leveza E com tal gosto Ainda que sejam muitos Os largos rios da Terra. Toma para teu gozo Minha dor e insanidade De nunca voltar a ver Meu prprio rosto. E aguarda uma tarde sem tempo Quando serei apenas retalhada Um espelho molhado de umas guas. (p. 55)
Como se pde perceber, Hilda Hilst foi realmente uma leitora da tradio medieval,
especialmente das cantigas de amigo. Entretanto, a poeta resguarda diferenas em relao
a essa produo lrica. No que diz respeito forma, no h o retorno ao paralelismo
medieval. Acontecem algumas repeties, mas nada to esquematizado como a estrofao
tradicional.
Hilda Hilst, alm da mudana na questo formal, tambm adicionou outros elementos
tidos como contemporneos, como a presena de referncias ao processo de escrita
potica e a elaborao das metforas, bem mais complexas que as dos trovares medievais.
Exemplos do primeiro elemento so as composies LIII e LVIII:
LIII Cadenciadas Vo morrendo as palavras Na minha boca. Um sudrio de asas H de ser agasalhado E ptria para o corpo. Annimo, calado O poeta contempla Espelho e mgoa Fragmentos de um veio Berrio de palavras.
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Umas lendas volteiam O poeta vazio de seus meios: Escombro, escadas Amou de amor escuro E fugiu de si mesmo De sua prpria cilada. O poeta. Mudo. Aceitvel agora para o mundo No seu sudrio de asas. (p.90) LVIII O bisturi e o verso Dois instrumentos Entre minhas mos. Um deles rasga o Tempo O outro eterniza Aquele tempo-ouro sem medida. Rompem-se slabas e fonemas Estanco meus projetos. E o que se v um s comum-complexo Corao aberto. E nunca mais Na dimenso da Terra Hei de rever as moradas, os tetos Os parasos soberbos da paixo. (p. 95)
No poema LIII, o eu tira a veste feminina e encarna a do poeta. As palavras
proferidas morrem na boca para serem eternizadas e prolongadas pela escrita. No outro, o
ato de escrita potica colocado ao lado de uma espcie de dissecao. Enquanto opera
o tempo, o eu o eterniza pela escrita. Palavras como rompem-se, estanco e o corao
aberto comprovam a cirurgia feita pelo eu. Sobre a elaborao metafrica, em todos os
textos escolhidos poder-se-ia destacar exemplos, como a prpria espcie de alegorizao
proposta neste ltimo poema.
Pelo que foi exposto, Hilda Hilst, escritora multifacetada, verstil e tambm polmica,
pode ser colocada, no painel da literatura brasileira contempornea, como mais uma poeta
dona de sua voz e escolhedora de sua ascendncia potica. uma poeta que conseguiu
sintetizar bem traos do tradicional e do contemporneo, revelados em suas leituras dos
cantares medievais.
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Recebido em 28 de maro de 2010.
Aceito em 20 de junho de 2010.