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A ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber

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A ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber

Luiz José Veríssimo

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2010, by Luiz José Veríssimo

Editora UapêAv. Olegário Maciel, 511/303 – CEP. 22621-200 – Tel. (21) 2493-9175homepage: www.uape.com.br — e-mail: [email protected]

Editora Responsável: Leda Miranda HühneAssistente de editoração: Thereza Martins de OliveiraRevisão: Michele SudohDiagramação: Nathanael SouzaIlustrações: 1a Foto do autor

2a Tela de Monet - As papoulas 3a Pintura de Helena Felicidade Contracapa: Pintura de Helena Felicidade

Direitos de edição da obra adquirida pela UAPÊ – Espaço Cultural Barra Ltda. Av. Olegário Maciel, 511/303 – CEP 22621-200 – Rio de Janeiro – Tel/fax: (21)2493-9175.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

V619e Veríssimo, Luiz José A ética da reciprocidade : diálogo com Martin Buber / Luiz

José Veríssimo. - Rio de Janeiro : Uapê, 2010. 201p. : il.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-85666-85-9 1. Buber, Martin, 1878-1965. 2. Ética. 3. Filosofia e religião.

4. O sagrado. 5. Misticismo. I. Título.

10-0119. CDD: 170 CDU: 17 11.01.10 12.01.10 017071

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Ag r A d e c i m e n t o s

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico, pela concessão de bolsa de estudos de doutorado.

Ao meu orientador Professor Doutor Olinto Antônio Pego-raro, pelo calor humano, apoio repleto de confiança, ensinamen-tos, modo de concepção da existência, e por me ensinar, até pelo seu exemplo vivo, o valor ético da pessoa.

Ao meu “eterno mestre” Leonardo Boff pelo seu apoio em todas as minhas caminhadas, desde o mestrado, sempre com so-licitude e zelo nas suas avaliações, e com muita fraternidade nos encontros, abrindo luzes para a construção do meu pensamento na religião, na psicologia e na filosofia, ajudando-me a compreen-der um pouco mais, a cada dia, o significado do cuidado.

Às professoras Doutoras Maria Helena Lisboa Cunha e Ma-ria Luiza P.F. Landim pelo seu toque feminino, tecendo valiosas observações, com a anima inspirada pela estética do imaginário e pela natureza.

Ao Professores Doutores Emmanuel Carneiro Leão e Luiz Eduardo Bicca pelas suas aulas, palestras, escritos, seu espírito acolhedor, orientador, sua solicitude, pelos seus ensinamentos que ajudam a tantos alunos como eu a esforçar-se para “aprender a pensar”.

À Mestra, Tereza Cristina Saldanha Erthal, por se fazer pre-sente e inspirar a mais autêntica fé na existência.

Às alunas Ana Maria Abreu Pereira da Silva e Tássia Dona-dello Ferreira por sua reflexão a respeito da relação entre ética e psicologia.

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Dedico esse trabalho às pessoas muito queridas que se fazem presentes nas conversas à mesa, nas aprendizagens do dia a dia, caminhando pela Vida, para quem o compartilhar ainda faz sentido.

À Marilda, por partilhar a experiência do encontro.

À Família, que me mostra o exemplo vivo da Comunidade.

Aos queridos Mestres, cuja dádiva do Cuidado não tem preço.

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O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele. Disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.

Leonardo Boff

Não basta ser senhor de si; ninguém é ético para si mesmo. Ninguém é virtuoso diante do espelho. Somos éticos em relação aos outros, visto que o comportamento é sempre transitivo e recíproco.

Olinto Pegoraro

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su m á r i o

Prefácio ............................................................................................. 13

Introdução ........................................................................................ 17

Capítulo I – Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica ......................... 29

O totalmente outro e o ocaso do ser humano ........................ 31O nada, o tudo e o trágico ........................................................ 36Confronto da fenomenologia de Otto com a metafísica ...... 41O renascimento do ser humano à luz do Ser ......................... 48O esquecimento do ser humano e o esquecimento do sagrado .............................................................................. 53

Capítulo II – Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber ............................................................ 55

Eu e Tu como uma relação originária entre o ser humano e o sagrado ..................................................... 57Interpretando o sentido de reciprocidade .............................. 67Caminhar pelo abismo .............................................................. 72

Capítulo III – A condição humana e o sentido ético e psicológico da pessoa .......................................... 83

A interface da imanência com a transcendência ................... 85

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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO

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O modo Eu – Isso e o encontro Eu e Tu. ................................ 87O falar com e o falar sobre ........................................................ 99O caráter originariamente simples do encontro .................. 112Considerações sobre o sentimento ........................................ 127O encontro da pessoa com o Tu envolve a mística .............. 146Sobre a noção de comunidade ............................................... 161A construção da pessoa e o modo de ser “egótico” ............. 176Perspectiva ética acerca da psicologia da pessoa ................. 184

Bibliografia ..................................................................................... 193

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Pr e f á c i o 1

Luiz José Veríssimo acede ao tema da tese com uma bagagem considerável. Já fizera sua tese de mestrado nesta mesma Casa2, sobre a “Experiência religiosa como expressão de si-mesmo a partir de C.G. Jung”. Agora não dialoga apenas com C.G. Jung, mas convoca para a mesma roda Martin Buber, Rudolf Otto, Mir-cea Eliade, Schleiermacher, Kierkegaard e outros. São autores se-minais dos quais podemos aprender sempre.

O trabalho de Veríssimo mostra um imenso aprendizado não apenas no convívio com esses mestres, o que seria já muito, mas a partir deles, de suas provocações e evocações. Ele próprio pensa por si mesmo municiado por tudo aquilo que aprendeu deles. E deveria ser assim, pois se trata de uma tese de doutorado em filosofia.

1 Apreciação de Leonardo Boff da tese de doutoramento “A experiência religiosa segundo uma ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber”, orientada pelo Professor Olinto A. Pegoraro, 2002. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. A tese foi o ponto de partida para o presente texto.

2 Referência ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. A tese de mestrado, orientada pelo Professor Boff, foi publicada com o título A psicologia do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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LUÍZ JOSÉ VERÍSSIMO

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O candidato deve mostrar que sabe pensar e não apenas que sabe e conhece. E na minha apreciação cumpriu esse preceito bá-sico de todo filosofar, desde os tempos pré-socráticos. E quero parabenizar a Luiz José Veríssimo por este brilhante trabalho de pensamento.

Ele é muito bem escrito em termos de dicção do discurso e bem urdido em suas conexões. Mas o que importa mesmo é o conteúdo, tratado com cuidado e profundidade.

É árduo o tema em tela: o sagrado, a experiência religiosa, a ética. Rudolf Otto viu a realidade do sagrado, do santo, na oposi-ção entre racional e irracional. É o que diz claramente o sub-títu-lo de seu livro clássico Das Heilige de 1917: “Sobre o irracional na ideia do Divino e sua relação para com o racional”. Mircea Eliade coloca o sagrado na tensão e oposição entre o cotidiano e o ex-traordinário.

Todos viram algo verdadeiro. Mas o sagrado possui uma raiz mais funda. E ela foi vista especialmente por Martin Buber. O sa-grado emerge da relação eu – tu e, no seu termo, do Tu eterno. É no campo da relação do “inter”, do intercurso, no interativo que emer-ge tanto o sagrado quanto o ético. Numa palavra o nicho gerador de tudo é a reciprocidade como jogo de relações envolvendo a to-dos e a tudo. Tê-lo demonstrado é o maior mérito deste trabalho.

O totalmente outro, tremendo e fascinante é simultaneamen-te a presença do Tu infinito. O totalmente outro que me faz fugir é um momento do totalmente outro que me chama de volta. Pois ele está num e noutro momento sempre presente e na forma do tu. Essa presença é carregada de espessura filosófica. Presença não é estar-aí como pode estar uma pedra. Presença significa uma densificação do ser, uma irradiação especial que fala e convence por si. Pois tal é a natureza do sagrado.

O suporte de toda experiência religiosa reside no sagrado. Aí se fundam as religiões e os caminhos espirituais e se mantém vi-vos na medida em que organicamente bebem desta fonte.

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PREFÁCIO

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A ética emerge desta mesma experiência do sagrado. Sempre que o outro fascinante e tremendo se faz presente, estabelece a reciprocidade de eu-tu, aí nasce a ética como o jogo das relações que devem ser boas para todos, para a vida e para a Terra. O sa-grado é a aura que alimenta a ética e que impede que decaia no moralismo e no fundamentalismo.

Estas e outras ressonâncias se encontram ao largo de toda a elaboração da tese de Veríssimo. No contexto atual de crise dos fundamentos, esta reflexão ganha relevância pois ajuda a criar luz num âmbito tão complexo e com bases geralmente tão escorrega-dias. Veríssimo não apenas discorre sobre tais coisas. Mais ainda: revela um engajamento pessoal pela causa do sagrado e do ético seja manifestados nas linhas e entrelinhas do texto, seja em sua vida profissional. Vale ainda ressaltar que mostra segurança e boa orientação sempre que acena para temas teológicos.

Uma vez mais, felicitamos o autor. Ele honra a Casa e forta-lece uma tradição que se quer fundar de seriedade, criatividade e contemporaneidade do fazer filosófico em nosso país.

Leonardo BoffPetrópolis, 25 de maio de 2002

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in t r o d u ç ã o

A existência se apresenta sob incontáveis formas. Importa, nes-se momento, para nós a compreensão da modalidade da existên-cia fundamentada no diálogo. Assumir esse desafio convida a observar como se constitui a relação que o ser humano estabelece com uma experiência radical: a experiência de um outro, por ve-zes sentido e designado como o “totalmente outro”, como “Isso”, como “Tu”, como o “infinito”... O que é essa experiência radical e relacional do eu com o outro? É o horizonte a partir do qual de-sejamos lançar luzes ao nosso estudo.

Seria impossível catalogar todas as formas como o outro é vivenciado e compreendido. A relação eu – outro se ilumina de plenitude e transcendência quando revela a constituição da pes-soa. Ela é formada por uma trama de relações, e seu sentido mais próprio em Martin Buber (1878-1965) é apresentado na perspec-tiva da relação Eu e Tu.

O Tu liga-se à dinâmica relacional Eu e Tu formulada por Martin Buber em sua obra de mesmo nome3. Essa dinâmica en-volve um encontro mútuo, reciprocidade, diálogo, troca, abertura à comunicação. Admitir o Tu remete ao reconhecimento do ou-tro enquanto tal. O eu4 só faz sentido numa relação com o outro.

3 2a edição revista. São Paulo: Moraes, 1977.4 A noção de eu aqui não deve ser confundida com a noção de ego, tanto na

psicanálise quanto na psicologia analítica. A noção de eu aqui apresentada

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O eu não é constituído pelo outro, antes, ele é constituído com o outro: ele vai emergindo na medida das suas relações, uma teia de relações que se estende ao infinito, que pode incluir a natureza, a comunidade, o sagrado (um sentido tomado de valor). Buber de-signa uma palavra para expressar, com toda a intensidade, o sen-tido do Tu em nossas vidas: encontro.

Na apreciação, em toda a sua amplitude, do pensamento de Buber, observamos que não basta dirigir a atenção somente ao eixo Eu e Tu. Faz parte da existência também a relação Eu – Isso. A representação do outro oscila, ele é apreendido como familiar e como um estranho por ser deixado como algo à parte, que pouco ou nada tem a ver comigo, um forasteiro, e deve permanecer dis-criminado, contido e controlado, quando não subjugado, mesmo torturado, mutilado e morto. Familiar, enquanto o outro é assimi-lado a mim, de tal forma que ele se torna uma projeção da subje-tividade desejante. Esses são determinados modos que compõem o campo Eu – Isso.

Por outro lado, o outro pode se tornar familiar se ele é con-vocado para um encontro que propicie uma relação dialogada e recíproca. Pode surgir como estranho porque ele subverte todas as representações que são feitas sobre ele. Nessas duas últimas referências, temos pistas do que se quer pronunciar com a “pala-vra-princípio” Eu e Tu. O outro, por fim, atrai e assusta, encanta e amedronta, seduz e suscita sentimento de ameaça. Tomando em-prestadas expressões do campo do sagrado, admitimos que o ou-tro é fascinante e amendronta.

O Tu e o Isso se alternam e se misturam nas diversas formas

é fundada numa perspectiva fenomenológica e dialógica, vale dizer, o eu é entendido basicamente como pessoa: uma totalidade de sentido constituí-da não só por racionalidade, como por emoção, desejo, corpo, energia vi-tal, paixões, atravessado pela temporalidade e espacialidade (o habitar) e que se constitui junto ao nó de relações pela qual transita em comunicação e diálogo.

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INTRODUÇÃO

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com que as pessoas se dirigem umas às outras, visam o mundo, lidam com o conhecimento, estimam a natureza e o insondável. Ao longo de nosso estudo, pareceu-nos que, para Martin Buber, o fundamento ético da existência é o Eu e Tu, mas na existência ele não se mantém permanentemente atualizado, ou seja, viven-ciado como presença. Frequentemente, o Tu é negligenciado, es-quecido, e mesmo renegado. Quando o outro é enquadrado como Isso, as pessoas o avaliam, seja como um mundo à parte, objetal, caindo em um esquema que modela um “totalmente outro” (completo estranho, estrangeiro), seja sob a aparência familiar, sujeito a toda sorte de projeções psicológicas, expectativas e es-quemas diretivos que antecipam conceitualmente ou “experi-mentalmente” o que o ser humano “é”, e tentam prever a sua ação. O jogo do Tu com o Isso é constantemente tematizado por Buber ao longo da obra Eu e Tu. Através de Buber, notamos que não é tarefa das mais fáceis acolher o outro, arrancá-lo da condição de objeto para reconhecê-lo como existente, e, dessa forma, afastar-nos da arena onde se disputa o “tudo ou nada”. Essa simplificação do viver e do conviver se resume em duas atitudes, que são, ao mesmo tempo, sentimentos básicos, sugeridas pelas assertivas-modelo: “Não sou nada, Tu és Tudo”, meu projeto é girar em tor-no de Ti, submeter o meu desejo ao teu desejo, ou, ainda, “Eu sou o centro, Tu és o meu apêndice”, o meu projeto é aplicar o meu desejo sobre o teu desejo.

Abrimos nossos trabalhos procurando levantar algumas possibilidades vivenciais do Tu quando compreendido à luz da experiência religiosa. Em sentido bastante amplo, a experiência religiosa tem a ver com a adoção de um fundamento que religa todas as coisas. Em sentido mais específico, a experiência religio-sa é a experiência do sagrado. Se trabalhamos com essa ideia, jul-gamos importante apresentar um apanhado geral e introdutório do sagrado, ao menos em algumas de suas formas características de vivência e de concepção; por exemplo, o sagrado como fasci-

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nante, temido, trágico, irracional, metafísico, paradoxal. O sagra-do é nomeado por Buber como o Tu Eterno, mas pode ser toma-do, “decifrado”, e, mesmo, apropriado, como um Isso. Então, ele se torna “familiar”, é decomposto em fórmulas doutrinárias, e en-quadrado em conceitos que passam ao largo da vivência. O sagra-do reduzido ao Isso cria um ambiente de esquematização e nor-matização das problemáticas emergentes, facilitando a adoção de um ponto de vista bastante extremado, dogmático ou cético: “Não sou nada, Tu (o sagrado) és Tudo”, ou, ainda, “Tu (o sagrado) és nada, estás morto, eu, sujeito, de agora em diante sou o único sentido que importa na existência”.

Na sequência de nossa pesquisa, abrimos as trilhas para dar passagem à pessoa e à comunidade. Partindo de algumas consi-derações complementares acerca da experiência religiosa, toma-mos o rumo para chegar à vivência cotidiana, onde encontramos algumas perspectivas de dar sentido ao ser humano que não se encerram numa singularidade solipsista, nem o achatam frente a um coletivo indiferenciado ou ideológico-dogmático que abafa o si-mesmo no ruidoso som das normas indicativas de caminhos previamente estabelecidos.

Trata-se, nesse ângulo, de uma ontologia, vale dizer, do estu-do de um ser, o ser humano, que aponta para o vislumbre do ou-tro enquanto Tu. Só penetraremos no cerne de nossa questão caso não nos percamos no labirinto de divagações que nos afastem cada vez mais da vivência. O professor Zuben considera que é na e pela vivência que poderemos ter oportunidade para abrir clarei-ras que permitam acessar a ação recíproca entre o Eu e o Outro.

A relação Eu – Tu seria uma relação ontológica e existencial que precederia o relacionamento cognoscitivo. Poderia mes-mo afirmar que, antes de conhecer a vivência, o homem a vive e a relação objetivante é um empobrecimento da densi-dade vivencial originária. A contemplação no face a face não

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INTRODUÇÃO

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é uma intuição cognoscitiva, mas doação de um Tu a um Eu. Este se realiza na relação a um Tu.5

Gostaríamos de aproveitar a introdução de nosso diálogo para justificar a reciprocidade relacional como uma ética, de acor-do com a proposição de nosso tema, a compreensão da existência segundo uma ética da reciprocidade e uma psicologia da pessoa.

Trabalhamos a noção de ética baseando-nos na tese de que a ética se fundamenta nas interações humanas. Na própria etimolo-gia da palavra, já temos essa indicação. Um dos significados de ethos é morada, isto é, o mundo que os indivíduos compartilham. Entendemos mundo como a totalidade das vivências de cada pes-soa, seu modo de compreensão da existência, sua interação com as demais pessoas, com a cultura, a sociedade, a natureza. Dito de outro modo, o ethos diz respeito à ideia de comunidade como a morada em comum na qual edificamos as nossas interações, o nos-so conviver, o nosso viver junto. Esse convívio se dá de muitas for-mas: na relação com o outro, com os diferentes grupos, com a co-munidade, com a natureza, nas instituições e nas práticas sociais.

A convivência, o viver junto, é o grande desafio ético, pois cada um tem uma forma própria de ser, o que gera conflito. Na convivência, está em jogo uma multiplicidade de valores, crenças, possibilidades. Diante da infinidade de modos de ser, de interes-ses, de mentalidades, de perspectivas do agir humano que com-põem as diversas formas de convivências e interações, o viver se-gundo um sentido ético nos leva a conscientizar que os pronomes eu e meu sozinhos não expressam a ética em amplo sentido. A expressão ética mais apropriada é o eu articulado e confrontado com o outro, ou seja, o nós: o nosso com-viver, os nossos projetos em comum, as nossas relações, nossos conflitos, diferenças, iden-

5 Zuben, Newton Aquiles von. Martin Buber. Cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.151.

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tificações, a nossa convivência. O pronome nós é, portanto, um pronome importante para expressar um sentido ético, ou, mais precisamente, como ressalta Buber, o “entre” é a melhor expressão para o ethos.

A ética não é somente um conjunto articulado de ideias com ideais. Ela se torna no campo religioso um profundo ofício de fé, e, no campo das diversas relações que se estabelecem, uma práti-ca consistente e coerente justamente no nosso viver cotidiano, quando temos de lidar com outras pessoas, diferentes de nós, com desejos diferentes, com a quebra de expectativas, a reformu-lação das nossas avaliações, e devemos levar em conta a relação com as pessoas, com os grupos com os quais interagimos, e com a natureza, segundo um sentido orientado pela gestão da recipro-cidade e do diálogo. Tal sentido se dá a partir da perspectiva do Eu com Você. Não se trata de colocar o “eu” em primeiro lugar e visar somente a si, desejar o outro apenas como meio de satisfa-ção de desejos próprios, nem de colocar o outro como o centro das decisões e da vida, o que significa anular-se perante o outro, mas de visar um projeto e uma praxis em comum com o outro, o que implica superação de conflitos, participação, inclusão, ternu-ra e cuidado no trato.

A ética consegue integrar, a um só tempo, a dimensão racio-nal, pois devemos ponderar a medida de nossas ações e intenções, e a dimensão afetiva. É nesse ponto que se desvela, no cenário dialógico, uma ética que enfatiza a alteridade. Ela acredita que a visada ao Tu promove a ligação fundamental entre mim e o outro. E isso é uma prática incessante, ou seja, um exercício de elaborar a convivência através da atitude fundamental do diálogo: o de-senvolvimento de um pathos relacional nos permite desenvolver o cuidado, a empatia e a compaixão (de com-paixão, sentir jun-to). O Tu evoca o reconhecimento, e, mais do que isso, o diligente interesse pela presença do outro na existência de cada pessoa. E assim tornamo-nos seres atuais uns para os outros, na medida em

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INTRODUÇÃO

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que atualização é a realização da interação com a alteridade in-tencionada como um Tu. A atualização implica uma empatia fun-damental: colocar-se no lugar do outro, interessar-se por ele, for-mar a noção de um destino comum. O destino em comum nada mais é do que a conscientização de que as ações, os projetos de vida, os modos de ser têm uma amplitude mútua, uma repercus-são recíproca nos integrantes da relação. Quando estamos inte-ressados no destino nosso e do outro, conseguimos vislumbrar que o que fazemos, o que desejamos, o que sentimos ou deixamos de sentir pode promover o bem comum, assim como pode ins-taurar e sustentar a dor, a exclusão e o sofrimento. Assim, quando estamos predispostos a assumir uma ética no sentido dialogal po-demos vivenciar a solidariedade, a compaixão, o cuidado, enfim, o revelador e preciso sentido do encontro.

A partir da convivência recíproca, dialogada e responsável, está fundamentado um dos sentidos fundamentais da pessoa: manter-se fiel aos valores que levem em consideração não apenas a nossa individuação (o processo de se converter no modo de ser próprio, um modo extático, ou seja, que se desenvolve nas diversas interações estabelecidas), como valores que considerem diligente-mente os integrantes da relação, suas particularidades e identida-des, a comunicação entre eles. A individuação e a relação rematam um sentido de fé como uma lealdade repleta de confiança no que se afirma e se experimenta como uma existência autêntica, com-partilhada e dialogada. A forma dialogal envolve reciprocidade, responsabilidade, cuidado, empatia, decisão, amor, capacidade de formar e de cultivar vínculos, reconhecimento da diferença.

Buber estima que a condição relacional expressa em toda a sua amplitude a condição humana. As relações que o ser humano estabelece não envolvem apenas a consideração para com o outro. Elas envolvem, igualmente, o ódio, a indiferença, a alienação, a negação do outro, a manipulação e o desejo de posse do outro como um objeto-para-mim. A reciprocidade formulada por Bu-

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ber quer dizer, também, que se trato o outro dessa forma, eu mes-mo me torno um objeto. De acordo com a forma com que deseja-mos e reconhecemos o outro, estaremos nos projetando como um Isso ou como um Tu nas relações. E não é pouco comum nos pro-jetarmos de forma ambivalente em nossas interações. O Isso con-vive com o Tu, ambos se alternam. Podemos romper com “o mun-do do Isso”, e nos envolver com a dinâmica do Eu e Tu, da mesma forma que, a todo momento, estamos retomando o mundo da causalidade, da necessidade, do objeto e da fascinação por man-ter-se à parte – o eu isolado, relacionando-se como um átomo so-breposto ao outro, e, independentemente da relação ser tomada eventualmente como “íntima”, relacionar-se com ele como se fosse um forasteiro, mesmo convivendo no mesmo espaço, ou ainda, mesmo que o espaço entre os corpos seja zero.

Uma última observação diz respeito à presença de uma orientação não apenas filosófica como psicológica em nosso tra-balho. Não é de hoje que nutrimos um acentuado interesse pela analítica junguiana. Jung ressaltou o desdém que uma tradição cientificista e racionalista nutre contra a psicologia, acusando-a de mero psicologismo. A psicologia deve ser entendida em amplo sentido, fenomenológico e existencial.

A psicologia nos conduz a uma hermenêutica que atende a uma abertura do logos à psique. Entendemos psicologia como um discurso, uma compreensão, um estudo (logos) acerca da alma humana (psiqué). Desse modo, a psicologia não se livra tão facil-mente da esfera metafísica: em algum momento, seus autores mais arrojados tangenciam com a radicalidade do pensar acerca dos fundamentos originários do ser humano.

Ocorre que, neste trabalho, em nenhum momento nos permitimos esquecer que Buber manteve uma acirrada polê-mica com Jung em torno de certas discussões, principalmente, sobre a transcendência e imanência de Deus. Buber ataca Jung, acusando-o de ter reduzido Deus à imanência. Jung se defende

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INTRODUÇÃO

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argumentando que nada tem a objetar quanto à tese do Eu e Tu; ele está analisando Deus do ponto de vista psicológico, e não metafísico, e que a primeira questão é tão decisiva quanto a última. Enquanto para Buber interessa como o ser humano se relaciona com o Tu eterno, Jung se dedica ao estudo das for-mas como o indivíduo e as culturas produzem, interpretam e reproduzem os conteúdos simbólicos no campo da experiên-cia religiosa.

Há quem aposte nas noções de Deus como relação e alterida-de, enquanto, por outro lado, encontramos quem se concentre na avaliação da “imagem de Deus” como uma imagem originária in-dissociável do psíquico, sobretudo do si-mesmo, dos arquétipos do inconsciente coletivo e da individuação da pessoa. Colocadas, a grosso modo, as afirmações lado a lado, as primeiras assertivas “pendem mais”, digamos assim, para o pensamento de Buber, as últimas se afinam especialmente com o sistema de Jung6. Mas, ressaltemos que essas apreciações são meras generalizações, pois, por exemplo, o pensar complexo não admite que a visão de Buber seja considerada um pensamento do sagrado apenas do ponto de vista transcendente. Da mesma forma, não aceitamos que Jung se contente com uma superestima da interioridade em prejuízo da ética em sua perspectiva relacional. Jung não deixa passar em branco a consideração da relação para a constituição do ser hu-mano. Ainda que as projeções psíquicas de um determinado sujeito sejam analisadas retrospectivamente até a sua origem, mesmo assim, permanece a demanda por parte do paciente de relacionar-se com um ser humano. Aqui, entendemos não apenas a relação paciente-analista, como todas as perspectivas das rela-ções humanas. E essa exigência deveria ser satisfeita, “pois o ho-

6 Sobre a importância capital que Jung confere à psique, veja Veríssimo, Luiz José. A psicologia do self e a função religiosa da alma. Um estudo a partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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mem, totalmente sem qualquer espécie de relação humana, cai no vazio”.7 O sofrimento humano não é apenas uma questão pura e simplesmente individual.

O ponto de vista clínico, por si só, não abarca, nem pode abarcar, a essência da neurose, pois ela é muito mais um fe-nômeno psicossocial do que uma doença estrito senso. A neurose obriga-nos a ampliar o conceito de “doença” além da ideia de um corpo isolado, perturbado em suas funções, e a considerar o homem neurótico como um sistema de rela-ção social enfermo.8

Até mesmo uma relação etiquetada de “profissional” pode evocar a relação no modo dialógico. Com relação ao encontro paciente-analista, ele é visto como uma parceria: “Esta relação de pessoa a pessoa é a pedra de toque de toda análise que não se dá por satisfeita com um pequeno resultado parcial.” Nessa situação psicológica, o paciente se coloca diante do médico em igualdade de condições, “esta forma de relacionamento pessoal corresponde a um compromisso ou a uma ligação livremente assumida, em oposição aos grilhões da transferência”.9

Para aqueles que tiverem interesse no fogo cruzado do deba-te envolvendo Jung e Buber, recomendamos a leitura do livro Eclipse of God. �tudies in the �elation Bet�een �eligion and �hi-�tudies in the �elation Bet�een �eligion and �hi-losophy (Eclipse de Deus. Consideraç�es sobre a relação entre reli-Consideraç�es sobre a relação entre reli-gião e filosofia), de Martin Buber10, e os textos de Jung “Religião e

7 Jung, C.G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 1987, p.8, par. 285 (Obras completas, vol. XVI/2).

8 Idem. A prática da psicoterapia. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.22, par. 37 (Obras completas, vol. XVI/1).

9 Ibidem (mesma obra), p.8, par. 286, 289 e 290.10 New Jersey: Humanities Press; Sussex: Harvester Press, 1979 (edição brasilei-

ra: Campinas Verus, 2007). O livro do comentador Maurice Friedman To

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INTRODUÇÃO

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psicologia: uma resposta a Martin Buber” (em A vida simbólica, Obras completas, vol. XVIII/2) e “Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia” (em �sicologia e alquimia, Obras completas, vol. XII)11, onde, apesar de Jung não se referir direta-mente a Buber, as problemáticas levantadas concernem ao debate em questão.

Entrar no confronto direto do pensamento de Buber com o de Jung exige um trabalho todo à parte, assim como teríamos de fazer o mesmo para acompanhar integralmente as diferenças co-locadas por Buber quanto ao budismo, ao hinduísmo, à mística em geral, a Kierkegaard, a Heidegger, a Platão.

Temos aqui um sonho mais modesto: o projeto de desenvol-ver uma interpretação de Buber que nos ajude a elucidar aspectos fundamentais da existência quanto ao que religa o ser humano com os seres humanos e com uma concepção de totalidade, fonte de nossas pesquisas há alguns anos. Nesse sentido, somos gratos a uma releitura acerca da existência sob a fonte do pensamento de Buber. O filósofo inspirou, não somente em nossa consciência, mas, sobretudo, em nosso coração, a perspectiva relacional de uma ética do diálogo, que acreditamos ter se insuflado definitiva-mente em nosso percurso de vida, numa trajetória que provoca constantemente a consciência da alteridade no horizonte da des-coberta do si-mesmo.

Deny Our Nothingness. Contemporary Images of Man também se refere ao de-bate entre Jung e Buber. Veja os capítulos VI.9 e IX.16.

11 Ambas as obras publicadas pela Editora Vozes.

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Capítulo I

Matrizes da experiência religiosa: o “totalmente outro” e a metafísica

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o totAlmente outro e o ocAso do ser humAno

Iniciemos o nosso exame do sagrado observando uma forma frequente pela qual ele é experimentado. Essa forma o reconhece apenas como uma realidade transcendente ao indivíduo, seguin-do o sentido convencional de transcendente como aquilo que se inscreve fora do mundo, e, consequentemente, além do âmbito humano. Quando o sagrado aparece sob a forma exclusivamente transcendente, mal podemos vislumbrar uma relação: trata-se, antes, da marcação de uma posição hierárquica, onde o sagrado ocupa o lugar central, e o ser humano é apresentado como a figu-ra de um astro que gira em torno de uma estrela.

Esse ponto de vista reproduz um modo típico de se com-preender o sagrado: ele supõe a existência de uma realidade que se impõe ao indivíduo, hierarquicamente superior, que não raras vezes é entendida como regente do tempo e do destino. Segundo essa perspectiva, estamos diante de uma relação desigual (se é que podemos chamar de relação) entre o ser humano e o sagra-do, caracterizada por um imenso abismo entre a pessoa e o sa-grado, marcada por categorias como o temor, o terror, a nadifica-ção do eu, a concepção do indivíduo como finito diante de uma infinitude ao qual ele deverá se submeter se quiser sublimar a sua condição trágica. De acordo com essa mentalidade, se resta ao

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homem algum campo de possibilidades e de liberdade, ele jamais pode afrontar os desígnios divinos, pois jamais se nivelará ao fun-damento sagrado que cultua.

Tal aspecto não é ignorado por Rudolf Otto ao fazer uma apreciação fenomenológica do sagrado. O autor procura analisar, em O sagrado, como ele é sentido pelo homem que se dirige a ele em oração, no culto, etc. A sua obra se inicia com a descrição do aspecto mais assustador do sagrado, o tremendum. O sagrado é de tal maneira grandioso, fora de qualquer medida conhecida, dotado de um incomensurável poder, manifesta-se de forma tão imprevisível e indomável, que para designar tal quadro a cons-ciência mítico-religiosa apela para o termo “tremendo”.

O tremendo é um sentimento característico da pessoa que se defronta com o sagrado. Ela sente um verdadeiro terror, que não se confunde com o que possamos entender ordinariamente como medo. O terror se apresenta para quem se encontra diante de um poder avassalador e, de fato, tremendo, que envolve o que é con-siderado sagrado. “Trata-se de um terror cheio de horror interno que nenhuma coisa criada, mesmo a mais ameaçadora e mais po-derosa, pode inspirar.” Otto vê nesse terror justamente a origem do fenômeno religioso. “Aqui está a origem dos ‘demônios’ e dos ‘deuses’ e de tudo que a ‘percepção mitológica’ ou ‘imaginação’ produziram para objetivar este sentimento.”12

O tremendo causa temor, faz tremer a alma e gera um espan-to na consciência. Uma primeira impressão que nos deixa a leitu-ra de Otto é a de que o sagrado é experimentado de tal forma que diante dele o ser humano se vê esmagado, reduzido a pó e cinzas. Para ilustrar tal situação, Otto cita a “ousadia” de Abraão ao diri-gir-se a Deus: “Tive a ousadia de falar contigo, eu que não passo de pó e cinzas” (Gênesis 18,27). Otto observa que, para tal com-preensão do sagrado, trata-se do apagamento e do aniquilamento

12 O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 23-24.

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MATRIZES DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: O “TOTALMENTE OUTRO” E A METAFÍSICA

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da criatura perante um poder soberano numinoso. Isso constitui nada menos que o “sentimento do estado de criatura”, ou seja, “o sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desa-parece perante o que está acima de toda a criatura”.13

Nesse cenário, imaginamos que onde entra em cena o sagra-do, o ser humano se nadifica, submete-se a um poder infinita-mente superior a ele. Assim, nada menos surpreendente do que se estabelecer uma relação de terror e temor entre Deus e o ser humano. Otto nos mostra na cólera de Javé um exemplo do que institui esse tipo de relação.

A “cólera de Javé” apresenta um caráter estranho que sempre nos impressionou. Em primeiro lugar, ressalta claramente de várias passagens do Antigo Testamento que esta “cólera”, ori-ginariamente, não tem relação alguma com os atributos mo-rais. “Inflama-se” e revela-se, misteriosamente, “como – diz-se – uma força escondida da natureza”, como a eletricidade acumulada se descarrega sobre quem dela se aproxima. É “incalculável” e “arbitrária”. Quem habitualmente apenas conceber a divindade sob a forma dos seus predicados racio-nais, verá na “cólera” um capricho e uma paixão. Mas os ho-mens piedosos da antiga aliança teriam decerto rejeitado energicamente esta forma de a considerar. (...) Com efeito, esta ira é apenas o próprio tremendum, o qual, não sendo de modo algum racional, deixa-se captar exprimindo-se aqui de forma primitiva, por analogia com um termo emprestado ao domínio natural, à vida espiritual do homem. 14

13 Ibid., p.19. Otto cita, na p.31 de O �agrado, G. Greith: “O homem afunda-se e dissolve-se no seu nada e na sua pequenez. Quanto mais se descobre, clara e pura a seus olhos, a grandeza de Deus, tanto melhor reconhece a sua própria pequenez.”

14 Ibid., p.28.

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A cada indivíduo resta a impotência em face da absoluta su-perioridade de poder; é quando se revela o sentimento do nada da criatura. Ele conduz ao aniquilamento do eu, e à afirmação da absoluta e única realidade do transcendente.15

A versão do sagrado com o hemisfério tremendo voltado para a janela do indivíduo que o espia é encontrada em tradições como o islamismo, o judaísmo, o cristianismo16, em imagens da mitologia grega (veja, mais adiante, a apreciação da noção grega do destino) etc., e, igualmente, até hoje, na mentalidade de muitas pessoas.

As observações de Rudolf Otto com relação ao aspecto tre-mendum do sagrado acentuam uma formulação desenvolvida a partir da vivência do sagrado como o “totalmente outro”. Essa ideia da alteridade absoluta nos fornece o nosso ponto de partida, porque o nosso estudo vai procurar circunscrever os limites dessa concepção, e sublinhar o caráter dialogal da experiência religiosa a partir do estudo da perspectiva de Martin Buber. Por outro lado, não se trata de rejeitar a observação de um “totalmente outro”, ou mesmo de negar que ele constitua uma das formas mais destaca-das da experiência religiosa: gostaríamos de ressaltar que essa proposição não esgota todas as possibilidades de vivência, ex-pressão e interpretação do sagrado.

Se nos detivermos unicamente no “totalmente outro”, corre-mos o risco de negligenciar os demais aspectos do sagrado. Por

15 Ibid., p.30.16 Para Karen Armstrong, “Os profetas de Israel experimentaram o seu Deus

como uma dor física que torcia cada membro e enchia-os de fúria e exaltação. A realidade a que chamavam de Deus foi repetidas vezes vivenciada pelos monoteístas sob um estado de [condição] limite: leremos sobre o cume das montanhas, trevas, desolação, crucificação e terror. A experiência Ocidental de Deus pareceu particularmente traumática.” A History of God. New York: Ballantine Books, 1994, p.xxii (edição brasileira. Uma história de Deus. São Paulo: Companhia Das Letras, 1994, p.12).

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exemplo, o sagrado afirmado como uma mística associada ao amor, à compaixão, à solidariedade, à comunhão. Eis outro as-pecto complementar do tremendum que nos faz admitir o sagra-do como uma noção complexa: o sagrado apresenta-se também como o fascinosum. O fascinante é a modalidade do sagrado que encanta, fascina, irradia amor e misericórdia, que suscita compai-xão, suprema e doce paz, aquieta a alma, oferece ampla consola-ção. Mesmo na instância atrativa, o sagrado permanece em Otto como uma instância completamente extra-humana:

Afirmamos, portanto, de acordo com a via eminentiae et causalitatis, que o divino é a realidade mais elevada, mais poderosa, melhor, mais bela e mais querida, coroamento de tudo o que um homem pode conceber. Mas, de acordo com a via negationis, dizemos que não é só o fundamento e o su-perlativo de tudo o que é concebível; Deus é, em si mesmo, uma essência à parte.17

Da mesma forma que a experiência religiosa pode suscitar o sentimento do nada da criatura, essa mesma experiência pode se revelar como a celebração de uma ética afirmadora da existência, uma ética cuja “fatalidade” é possibilidade. Uma ética da fé fun-dada no diálogo é uma forma fundamental de religare: ao desco-brir o sagrado, revela a natureza mais íntima de cada um que se inclina a ele. Como nas convicções do fundador do hassidismo, Israel Baal Shem Tov, que tentava descrever a interdependência entre Deus e a humanidade. Deus não era nenhuma realidade externa. Os hassidim acreditavam que, ao tomar consciência da centelha divina dentro deles, se tornariam plenamente humanos.

Nosso começo pretende interrogar o que significa ser “nada” perante um “tudo”, ser nada mais que “pó e cinzas”. Daí, seguire-

17 O sagrado, p.59.

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mos desenvolvendo temáticas que emergem a cada passo, quase infindavelmente, tentando amarrar um fio condutor que pode se desfazer a cada noite. A elaboração de um estudo exige uma tare-fa heroica de não se apavorar e prosseguir em frente tecendo la-boriosamente o fio do sentido. No fundo, não nos iludiremos: cada ponto será apenas uma vírgula, e, cada conclusão, uma pau-sa no pensar para irrigar o vigor desse mesmo pensar.

o nAdA, o tudo e o trágico

Procuramos descrever que o modo de aparição do sagrado sob o aspecto revelado por Otto, segundo as palavras evocadas por ele em nome de Abraão – “não sou nada, tu és tudo”18 – traz à mostra o apagamento e o aniquilamento da criatura perante um poder soberano. Tal poder expressa, não raras vezes, o seu aspecto as-sustador, como nos mostram vários relatos míticos. Os deuses gregos podiam tanto auxiliar e proteger os homens quanto ani-quilá-los de um só golpe, ou podiam armar uma trama que re-dundaria num destino trágico. Na Bíblia, quando o culto a Javé é subvertido ao paganismo popular (o culto a Baal), Javé expressa todo o seu aspecto tremendum, como nos conta Jack Miles:

Moisés volta ao monte por 40 dias e 40 noites, desaparecen-do em meio a fogo e fumaça (...) O Senhor (...) indica que, com todo o seu aspecto aterrador, agora veio para ficar. Em meio a essas instruções, o Senhor prescreve um ritual de sanguinolência sem precedentes para a investidura dos sa-cerdotes. Moisés retorna do monte e descobre que o povo mergulhou na idolatria. Em sua ira, quebra as tábuas da lei e induz os levitas a uma sangrenta e indiscriminada represália

18 Ibid., p.31.

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contra os israelitas. Milhares morrem, e, além disso, Deus atinge a nação com uma praga. Deus prova que em suas ações junto ao seu povo escolhido será tão violento e perigo-so quanto em sua primeira e assustadora aparição a eles.19

Estamos diante de uma imagem dramática, em que o ser hu-mano parece não ter qualquer outra possibilidade a não ser sub-meter-se ao sagrado da melhor forma que puder, a fim de não provocar a ira divina e conseguir manter-se sob a sua proteção.

Apesar de reconhecermos o que descrevemos como um sen-timento frequente em muitas pessoas ao procurarem uma ligação com o sagrado, não consideramos que os problemas religiosos ter-minem aqui. Ao contrário, o cenário descrito é o nosso começo, o ponto em que daremos início a nossa prosa, levantando algumas questões. O que significa esse aspecto tremendo do sagrado? Em que medida ele resulta num esmagamento do ser humano, cuja insurreição contra os mandamentos divinos, sob forma, por exem-plo da hybris grega (a temida perda da medida divina) ou do pe-cado judaico-cristão, acarreta um desfecho trágico?

Esse aspecto tremendo expressa simbolicamente certas con-dições da existência. Todos experimentamos a experiência da di-laceração, do sentimento de ser como que despedaçado, seja por pessoas ou situações que nos dão a impressão de nos machucar profundamente. Alguns golpes do destino, algumas situações da existência são sentidos como dilaceradores, devastadores, esma-gadores, e podem afetar sensivelmente o sentimento de determi-nação de nosso destino e de nossa personalidade. Ocorre-nos uma passagem do mito de Dioniso, quando o deus ainda se chamava Zagreu. Os Titãs o dilaceraram criança pequena, cozinharam-no, e, a seguir, o devoraram. Essa criança pode ser interpretada como a nossa própria inocência diante de algumas situações que se apre-

19 Deus. Uma biografia. São Paulo: Companhia Das Letras, 1997, p.136.

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sentam a nós. E algumas delas soam como titânicas. Sentimo-nos como se fôssemos dilacerados, a seguir cozidos e devorados, ou seja, sentimo-nos como se não sobrasse nada de nós, em outras palavras, o que parece restar é, de fato, o sentimento do nada da criatura.

No sentimento do nada da criatura, o indivíduo se sente anu-lado e impotente perante o sagrado. Tal feição nos leva a pensar o destino. O sagrado confunde-se com a noção de destino. O pen-samento grego expressou bem isso: nem Zeus pode com as Moi-ras, quando muito o pai dos deuses e dos homens é nivelado a elas, mas nunca lhes é superior. As Moiras determinam o destino sem apelação. As Moiras são símbolos da fatalidade. Significam, literalmente, o destino. Essa noção mítica grega acabou desmem-brando-se em três personagens: Cloto é a fiandeira. Ela tece nada menos que o fio das tramas da vida de cada pessoa. Láquesis é aquela que mede o tamanho do fio, a extensão da vida. E, final-mente, Átropos, do verbo trepein, voltar, logo Átropos é a que não volta atrás, é a que corta o fio. Elas constituem as tramas de nossa vida, de nosso destino. Sua tecedura não tem apelação, é o destino inevitável, quanto ao qual nada se pode fazer, nem Zeus, o todo-Poderoso pai dos deuses e dos homens pode com elas! Ele é uma espécie de zelador do que está decretado pela Moira. Quando Átropos, a que não volta atrás, corta o fio da vida, os liames são todos desfeitos. Esses liames podem ser compreendidos simboli-camente como os sentidos que tecemos ao longo de nossa vida, todos desamarrados, através do ato do corte.20 Ao experimentar-mos algumas formas do trágico, como a morte, a dilaceração, o sofrer, o sentimento de ser violentado, estamos soltos, desligados

20 Montaigne refletindo sobre a morte observa que “a sorte aguarda por vezes nosso último dia, a fim de nos fazer compreender o poder que possui de der-rubar em um instante o que custou longos anos para edificar”. Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida. Em Ensaios I (cap. XIX). São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.43.

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do que nos amarrava, desligados daquelas realidades com as quais nos identificávamos, estamos, afinal, imersos no não sentido.

Volta e meia a vida nos apresenta a morte. A morte como fato inexorável, como envelhecimento, como a perda de entes queridos, ou a morte simbólica, quer dizer, as perdas sentidas por nós como irreparáveis, traumáticas e dolorosas. Estamos volta e meia diante de golpes do destino. No campo da religião, certos acontecimentos de conotação aparentemente trágica fazem parte do destino das divindades, tanto quanto os acontecimentos subli-mes, beatíficos e conciliadores. A dupla condição finitude-trans-cendência aparece bem nítida no jogo morte-renascimento que envolve Dioniso, Cristo e Osíris em um simbolismo afim. Todos foram deuses que sofreram um violento martírio e, a seguir, res-surgiram renovados. Osíris foi assassinado por seu irmão Set. Seus pedaços foram recuperados por sua irmã-esposa Ísis, que, sendo a deusa da magia, promoveu o seu renascimento e, desde então, Osiris se torna também o deus dos mortos. Na Grécia antiga podemos reconhecer o tema do despedaçamento ou fim trágico que implique não apenas em uma morte, mas em um re-nascimento transmutado no mito de Zagreu, despedaçado bru-talmente pelos Titãs e renascido sob o nome e forma definitiva de Dioniso, o grande deus das religiões populares. Cristo pregado na cruz é uma imagem da tensão culminante entre a finitude e a transcendência. Ele, nada menos que um princípio divino, deve morrer para poder ressurgir transmutado. Nesses mitos, observa-mos que o próprio princípio sagrado se submete a uma espécie de finitude para poder revelar a sua transcendência, e, assim, rein-gressar na infinitude.

Essa conjugação de vida e morte, geração e destruição, con-ciliação e dilaceramento compõem o sagrado. Vários povos não olvidam esse duplo aspecto da existência. Eles celebram, também, o aspecto tremendum dos deuses. Vendo-os, espelham a si pró-prios, a sua condição, a sua existência, o mistério que permeia as

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definições e as concepções tradicionais, mistério que deixa a to-dos espantados, tentando responder às inquietações através de mitos, ideias, símbolos e ritos para fazer frente à torrencial ava-lanche de situações-limite postas diante de nós e impostas pelo próprio existir. As diversas culturas e tradições interpretam e ex-pressam a existência em sua complexidade, desenvolvendo no-ções acerca do que é “bom”, assim como do que é “mau”, na tenta-tiva de organizar, tecer e manter ligadas as tramas dos sentidos que se formam e com os quais as pessoas se identificam. Dessa forma, a religião celebra a existência em todos os seus matizes: celebra o trágico, a vida, a morte, o êxtase, a superação.

Ao expor o “estado de criatura” cuja máxima reza que o indi-víduo afirma-se como não sou nada, tu és tudo, e sente o sagrado como um “totalmente outro”21, constatamos em tal concepção um fosso entre o ser humano e o sagrado. A distinção entre a condi-ção humana e o sagrado encontramos, também, por exemplo, na teologia e na metafísica ocidental, sem, no entanto, reconhecer-mos uma separação tão drástica entre o humano e o sagrado.

O estado de criatura, apresentado por Otto faz vir a lume um sentimento que se apresenta ao longo de nossa existência, portan-to, de caráter ontológico, qual seja, o sentimento de dilaceração do eu, de não ser nada, de se ver reduzido a pó e cinzas, quando, por exemplo, encontramo-nos diante das perdas, das rupturas, da dor. Essa dimensão ontológica nos faz lembrar que a esfera reli-giosa permite experimentar as condições radicais da existência: a morte, o renascimento, o tempo. Elas apontam para uma articu-lação entre o sagrado e a noção do destino, como observamos nas Moiras. Não é à toa que a escatologia, a preocupação com os fins últimos da alma, é uma constante em diversas religiões. Quem evoca uma manifestação do sagrado está, de uma forma ou de

21 O sagrado, cap. 5, B. (Mysterium Tremendum).4. O “totalmente outro”, p.38 e ss.

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outra, defrontando-se com a mais extrema experiência, o destino: seja pelo desejo de alterá-lo, de barganhar com ele, de aceitá-lo, de compreendê-lo, de recriá-lo.

Quando lançados na experiência religiosa, o sagrado é como um oráculo onipresente, cujas respostas suscitam novas inquieta-ções, para o qual apelamos incessantemente uma imagem ou pa-lavra que faça sentido, quando, na verdade, essa vivência estranha e arrebatadora é quem nos interpela sobre um sentido para a exis-tência. E a existência nada mais é do que o nosso próprio destino.

confronto dA fenomenologiA de otto com A metAfísicA

A afirmação de uma absoluta realidade transcendente vai fundar, na filosofia, o campo da metafísica, articulando, numa unidade indissociável, o ser e o princípio transcendente. No pensamento metafísico, o homem mantém uma relação com o ser: mediante a elaboração racional, ele pretende ascender ao conhecimento das realidades em si mesmas; visa o supremo bem pelo desenvolvi-mento da ação virtuosa; empenha-se em elevar a sua alma a um mundo perfeito; mas, por mais que sua alma se esforce, o funda-mento absoluto é atribuído ao ser. Quer dizer: o homem não se nivela em dignidade, perfeição e verdade ao fundamento supre-mo, esfera divina.

Para Otto, semelhante ao que postula a metafísica, o sagrado é associado a categorias como o ser e o absoluto. Ele as relaciona com o sentimento da soberania absoluta, isto é, do sagrado en-quanto poder soberano: essa soberania transforma a plenitude de “poder” do tremendum em plenitude de “ser”22. Se Otto reconhe-ce um caráter ontológico do sagrado, sua imbricação com o ser, as semelhanças de seu pensamento com a metafísica se detêm aí.

22 Ibid., p. 31.

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A principal diferença entre as análises de Otto e o pensamen-to metafísico reside no papel da razão, e tudo que está implicado na razão como fundamento metafísico: a ética, o valor do ser hu-mano, a racionalidade como ascese ao sagrado, isto é, a justifica-ção da ideia de uma esfera divina por um crivo que visa transfor-mar o mistério no inteligível. Para Otto, somente a razão não pode dar conta dos fenômenos sagrados. O que tem caráter sa-grado é basicamente sentido. Mas não devemos tomar um passo em falso e concluir que isso interdita o pensamento a contemplar o sagrado. Ele pode ser pensado. Otto procura desvendar a rela-ção entre os elementos racionais e irracionais nos sentimentos, nas imagens e nas conceituações do sagrado. Os elementos são para ele formas a priori do fenômeno religioso. Pareceu-nos, no entanto, que Otto avalia que o mais fundamental é a dimensão de mistério, para além da moral e da metafísica.23

O sagrado é sentido em primeiro lugar como inefável, irra-cional e a-moral. A seguir, ao longo do desenvolvimento das con-cepções referentes ao sagrado, ele é “penetrado” pelos elementos racionais. O estado “rude” é ultrapassado à medida que o numen se “revela” à consciência e ao sentimento. Esse é o processo pelo qual o numinoso é penetrado por elementos racionais, graças aos quais entra no domínio do compreensível. No entanto, permane-ce sempre no fundo o elemento imperscrutável, que supera todas as categorias conceituais, como na música: “O que na música se pode captar por conceitos já não é a própria música.”24

Assim, Otto procura destrinchar o traço mais marcante do sagrado, a que chama o numinoso. O sagrado é, antes de mais nada, uma categoria de interpretação e de avaliação complexa:

23 Talvez aqui possamos reconhecer indicações da influência do pensamento de Schleiermacher. Otto afirma que a religião não está sob a dependência nem do telos, ou seja, de uma finalidade metafísica, nem do ethos (no sentido de mo-ral). Ibid., p.177.

24 Ibid., p.173-4.

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compreende um elemento com uma qualidade absolutamente es-pecial, que escapa a tudo o que chamamos racional, constituindo, enquanto tal, algo de inefável. Apesar de não ser muito proveitoso achar um nome especial para identificar a natureza mais própria do sagrado, Otto escolhe um termo, ao menos provisoriamente, para designar o elemento que bem caracterize o sagrado, abs-traindo do seu elemento moral e, acrescente-se, de todo elemento racional. Otto designa tal elemento como o numinoso.25

Falo de uma categoria numinosa como de uma categoria es-pecial de interpretação e de avaliação e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto é, sempre que um objeto se con-cebe como numinoso. Esta categoria é absolutamente sui generis; como todo o dado originário e fundamental, é obje-to não de definição no sentido estrito da palavra, mas so-mente de exame.26

Observando a metafísica seguindo as coordenadas de Otto acerca do fenômeno religioso, concluímos que ela representa um esforço de domesticação do avassalador poder do sagrado, a que Otto chama majestas. Esse poder não pode ser comparado com nada conhecido, corresponde a uma “preponderância absoluta”, que se acrescenta a uma “inacessibilidade absoluta”.

A metafísica, no que diz respeito à referência a uma realida-de divina, passou a montar, através do discurso, um sistema teó-rico para justificar a relação entre o divino e o ser. Julián Marías nos dá um fiel retrato dessa mentalidade, quando procura descre-ver o momento do surgimento da filosofia na Grécia. Ele conclui

25 De numen, designação latina para divindade, poder divino, vontade divina. Também significa, em sentido abstrato, majestade poder, grandeza.

26 O sagrado, p. 13-5.

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que o homem-filósofo começa a dispensar a magia e o mito: sua investigação acerca do “transfundo oculto das coisas manifestas”, ou seja, em última análise acerca do ser, “já não é mais um passivo recorrer ao oráculo; é dirigir-se ao que toma como realidade e obrigá-la a responder”.27

No desenvolvimento da metafísica grega, o fundamento divi-no se torna o resultado de um debate em praça pública, de um combate entre ideias. O ser resulta de uma pesquisa operada por um logos que passa a significar o discurso produzido pelo pensa-mento racional, imbuído de uma lógica que procura anular as contradições. Tal proposta de racionalidade tenta colocar, de um lado, o verdadeiro, o ser, o divino, o bem, o belo, a virtude, a me-dida, a alma, o conhecimento, e, de outro, combatendo-o sistema-ticamente, o falso, o nada, o mal, o erro, a desmesura, a ignorân-cia. Roberto Machado comentando a obra de Nietzsche Assim fa-lou Zaratustra, entende a metafísica como uma máquina de pro-dução de dicotomias: um mecanismo criado para cindir as inter-pretações da realidade, a fim de dar ordem ao sentimento de caos no mundo, mais exatamente, segundo o pensamento de Machado, “a metafísica é incapaz de expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalência que concede à verdade em detrimento da ilusão, ou pela oposição que estabelece entre a essência e a aparência”.28

Esbocemos uma definição genérica de metafísica.29 Ela de-signa os sistemas de pensamento que pretendem dizer o que é o

27 Idea de la metafísica. 3a ed., Columba, 1962, p.15.28 Zaratustra, tragédia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.12. Gos-

taríamos de acrescentar que o mundo em sua tragicidade significa “aceitar o sofrimento como parte integrante da vida”. Palestra proferida no ciclo de de-bates A cena cultural, I – Os heróis: épico e trágico. Rio de Janeiro, 1999.

29 Uma apreciação ampla e que considera meticulosamente inúmeros aspectos relevantes da metafísica, assim como a sua articulação, podemos encontrar no texto de Emmanuel Carneiro Leão “Metafísica e pensamento”. Em Aprenden-do a pensar Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 121-9.

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ser, em que ele consiste, o que ele funda, qual a sua origem, assim como situar o ser humano em relação ao ser. O conceito de ser adquire tamanha importância, na Grécia filosófica, que se torna associado à ideia de uma divindade ou princípio supremo: Apolo (Sócrates), Demiurgo (Platão), Deus (Aristóteles).

Ao lermos Otto, voltamo-nos para observar de perto uma das faces do sagrado, aquela em que ele é sentido como o indo-mesticável, o que não se enquadra em nenhum conceito, e, acres-centamos, o que abre sempre para novas possibilidades de signi-ficação, institui um permanente mistério, não se sujeita a uma única logia (psicologia, teologia, antropologia, sociologia, cos-mologia etc.). O sagrado é “irracional” na medida em que se opõe às metafísicas que elaboram valores e definições unilaterais. Esse tipo de arquitetura mental acerca do ser omite a complexidade das várias dimensões que interagem permanentemente umas com as outras. A ética (concepções do bem e do mal), o conheci-mento, o divino, o ser humano, a natureza, os símbolos se articu-lam intimamente. Tudo isso se encontra imbricado mutuamente, de tal forma que se torna insuficiente deter-se na proposição da cisão radical entre o “bem” e o “mal”, o “verdadeiro” e o “falso”, o ser e o nada, a imagem e o discurso.

É interessante, no estudo desenvolvido por Otto acerca do fenômeno religioso, a consideração do sagrado de forma mais abrangente do que as ideias que tiveram a sua gestação na pers-pectiva metafísica racionalista grega, conferindo ao fenômeno religioso, ou melhor, restituindo a ele a dimensão do sentimento, da corporeidade, do mistério. Deus não é apenas objeto de uma razão rigorosamente ordenadora das realidades a partir do enfo-que discursivo. Deus é compreendido por uma vivência, pelo sentimento. Ao mesmo tempo, o autor nos faz lembrar que Deus tem vida, o que aparece nas expressões simbólicas de paixão, von-tade, força, movimento, excitação, atividade, impulso. De acordo com Otto: “A ‘omnipotentia Dei’ afirmada por Lutero no ‘De servo

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arbitrio’ é unicamente a síntese entre majestas, enquanto sobera-nia absoluta, e a ‘energia’ enquanto força do Deus que não conhe-ce nem obstáculo nem repouso, que age e subjuga, do Deus ‘vivo’ [grifos nossos].” Otto prossegue a sua análise em um estilo arre-batador:

No misticismo também aparece este elemento de energia na sua poderosa vitalidade, pelo menos no misticismo “vo-luntarista”, o do amor. Encontramo-lo sob uma forma ver-dadeiramente impressionante, no ardor devorador e na impetuosidade do amor cuja aproximação o místico mal pode suportar; esmagado por este poder, pede que se atenue, para não morrer.30

Vitalidade quer dizer também que o sagrado apresenta uma espécie de temperamento, ele pulsa, por vezes até carregado de eletricidade que descarrega sobre o povo quando irado. Se o sa-grado, até na forma de Deus, pode mostrar ira31, provocar temor, podemos, então, admitir que não há solução de continuidade en-tre os deuses e o Deus monoteísta. Para Otto, o parentesco teria a ver com o sentimento do majestas, do tremendum, do terror que inspira o que possui o caráter sagrado. O elemento de terror

desconcerta quem na divindade apenas quer admitir bonda-de, doçura, amor, familiaridade e, em geral, os atributos que unicamente se relacionam com a sua face voltada para o mundo. Esta ira, que muitas vezes se chama “natural” e que, na realidade, não é nada natural, já que é numinosa, se ra-cionaliza, saturando-se de elementos éticos, de ordem racio-

30 O sagrado, p. 34-5.31 Segundo um místico que Otto não revela, “o amor” não é mais do que uma

cólera extinta”. Ibid., p.35.

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nal, os da justiça divina, justiça distributiva que pune as transgressões morais. Mas importa observar que na noção bíblica da justiça divina este novo conteúdo permanece sem-pre misturado com o elemento primitivo.32

Os filósofos metafísicos rejeitaram um temperamento para Deus, ou, pelo menos, um caráter irascível, acusando tal avalia-ção de antropomorfismo. Não percebem, no entanto, que o Deus-logos racional é um Deus igualmente antropomórfico. Um Deus com a cara dos valores cultuados por grupos intelectuais e reli-giosos, que se esforçavam por conferir ao ser absoluto um caráter de objetividade e moralidade, e basear tal proposição somente na argumentação. Mas, como lembra Jung, provavelmente inspirado em Kant,

qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a inse-gurança de todas as posições metafísicas, (...) a natureza in-sustentável de quaisquer afirmações metafísicas e admitir que não existe uma possibilidade de provar que a inteligên-cia humana é capaz de arrancar-se a si mesma do tremedal [pântano], puxando-se pelos próprios cabelos.33

A metafísica antiga e medieval tentou demonstrar a existên-cia de um princípio divino. E imaginou o seu projeto através de um pensamento que engendra uma lógica que acolhe certas rea-lidades em detrimentos de outras, sem se dar conta de que, como bem apontou Nietzsche, encontramos valores em jogo por detrás do cenário fleumático dos debates filosóficos. Se esse método é problemático para a filosofia (especialmente a partir do pensa-

32 Ibid., p.29.33 �sicologia e religião oriental. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completa,

vol. XI), p.3, §764.

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mento moderno), para Otto, tal procedimento não passa de uma crença supersticiosa e soberba: que reduzindo a variedade das re-presentações mítico-religiosas a um Deus único, e submetendo esse Deus à “razão”, estaremos decifrando integralmente o que “é” o sagrado e, por extensão, que estaremos resguardados do caos, do sofrimento, da injustiça, do mal, da ignorância, do absurdo, do trágico, do esquecimento. Para Otto, Deus origina-se de uma ex-periência originária, o sagrado, e, portanto, não se submete a nada, pelo contrário, escapa a todos os conceitos, às apreciações morais, enfim, a qualquer expectativa.

o renAscimento do ser humAno à luz do ser

Diante de tal levantamento de problemas para a presente investi-gação, o que resta ao pensamento perante o sagrado? Admitimos as problemáticas levantadas por Otto no estudo da religião, mas consideramos que elas não devem intimidar o pensamento, ao contrário, o pensamento deve abordar o sagrado como se fosse uma provocação, um evocar o sagrado para uma aparição diante de nós, como bem situou Gilberto Kujawski: “Como posso saber que o transcendente não me responde, se não o interrogo? Toda interrogação é uma provocação, e provocare significa ‘chamar para fora’. Só interrogando a transcendência esta se manifesta, vem para fora, quebrando o selo do indevassável.” 34

Não é vão para o pensamento o esforço de penetrar no mundo do sagrado. Nesse caminhar, procuramos nos familiarizar com a estranheza originária que suscita o numinoso. Ela se origi-na, segundo Otto, na relação fundamental constituinte do fenô-meno religioso, a relação entre o ser humano e um outro de cará-ter sagrado. Verificamos que tanto na metafísica quanto na ima-

34 O sagrado existe. São Paulo: Ática, 1994, p.18.

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ginação que somente admite o sagrado como o “totalmente outro” existe uma separação entre o ser humano e o sagrado. Na metafí-sica, essa separação não atinge o extremismo e a dramaticidade que apresentam as análises de Otto acerca da concepção de uma alteridade absoluta. Se, por um lado, tal concepção recusa-se a adequar o sagrado aos moldes da metafísica, por outro lado, ela não só mantém uma separação entre o ser humano e o sagrado, como a amplia consideravelmente.

Rudolf Otto enriquece a paisagem do sagrado ao dilatar o horizonte da sua apreciação. Temos aí um considerável ganho na pesquisa sobre religião. As considerações do autor nos permitem descobrir que o sagrado é uma noção complexa, o que abre as portas para o enriquecimento da investigação. No entanto, se o “totalmente outro” não for suficientemente pensado e experimen-tado, pode reduzir a sua ampla significação a um sentido que pa-rece deixar completamente de lado o ser humano, qual seja, o sentido de que a realidade humana se anula completamente fren-te à realidade sagrada.

Otto nos orienta para a dimensão do tremendum, aquela em que o sagrado instiga o sentimento do nada que se é perante o tudo do sagrado, o que pode alcançar extremos de se pensar que se é nada mais do que pó e cinzas. E na dimensão fascinosum, na qual o ser humano, geralmente em êxtase, aspira a uma união com o numen, quer ascender a ele ou ser tomado por ele, o sa-grado permanece como uma realidade absolutamente distinta da condição humana. Para ilustrar tal distinção, Otto cita inú-meros autores: místicos, teólogos, religiosos e filósofos, entre eles Goethe:

As pessoas tratam o nome divino como se o Ser supremo, incompreensível e absolutamente inimaginável fosse igual a elas. Caso contrário, não diriam: “O Bom Deus”. Se estives-sem penetradas da sua grandeza deixar-se-iam de palavras

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e, como veneração, não ousariam sequer pronunciar o seu nome.35

Na metafísica, apesar de se considerar o ser humano distinto da pura essência transcendente, ele, ao menos, vale alguma coisa, não se anula completamente perante o divino. Só para citar al-guns exemplos clássicos: Sócrates dá um vigoroso impulso à filo-sofia para pensar o ser humano, fundando a antropologia filosó-fica, promovendo uma virada no pensar, na medida em que abre mão de especular sobre a realidade cosmogônica para centrar suas atenções na alma; na metafísica de Platão, que desenvolve, até certo ponto, o pensamento socrático, o ser humano é um ser passível de evolução cognitiva, espiritual, ética, política. Em Aris-tóteles, a referência a um plano arquetípico como modelo para o ser humano é deixada um pouco de lado em prol da edificação de uma ética constituída no mundo, o que significa uma valoração ainda maior da existência e dos problemas humanos.

E aqui reside a principal contribuição do pensamento meta-físico para a nossa investigação do campo da religião: a dimensão antropológica. A metafísica não desconsiderou o ser humano como determinadas vivências do “estado de criatura’”, em que o indivíduo é pó e cinzas. O indivíduo, na metafísica, não se reduz a ver-se submetido ao divino como um boneco manipulado por cordas invisíveis e irrevogáveis. Ao contrário, o ser humano apa-rece como corresponsável pelo seu destino. A ética se constitui com o sagrado. Se na metafísica ela não se justifica sem a realida-de supra-humana, seu telos (meta) é a exaltação da existência, se-gundo um sentido de divinização da existência. O ser humano torna-se um ser que deve se elevar aos valores divinos, assim for-ma-se a ideia de um ser-para o divino. Não há mais o ser humano

35 Escrito a Eckermann, em 31 de dezembro de 1823. Citado por Otto, O sagra-do, p.46, nota 2.

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de um lado, anulando-se completamente, reduzido a cinzas e, de outro, a realidade suprema descarregando todo o seu incomensu-rável poder. Há um ser relacionado com o transcendente. Se ele quer ser assimilado ao princípio originário, unir-se a ele, seja ex-taticamente, seja pela prática da devoção, seja pela caridade, seja por uma compreensão racional do divino, o fundamento de exce-lência o alicia, ao invés de esmagá-lo e anulá-lo.

No contexto do mundo medieval, o ser humano deseja uni-ficar-se com Deus. Mas, talvez, seja mais exato pensarmos num projeto da metafísica que visa a integração do indivíduo com Deus do que numa anulação do indivíduo perante Deus. E, para promover tal integração, o indivíduo deve desenvolver uma ética. Isso é de sua responsabilidade. Na metafísica, não basta apenas a praxis ritual: o indivíduo tem que manter uma ação ética cons-tante se quiser religar-se com o divino.

Deixando de lado o ser humano, a concepção que só reconhe-ce o sagrado como um “totalmente outro” isola ambas as instân-cias, o sagrado e o humano, tornando inviável uma efetiva relação. O outro do sagrado se torna de fato um completo estranho, um totalmente outro. Otto pergunta qual a natureza e a qualidade do objeto, exterior ao eu, que pressentimos, ou seja, o que é o numi-noso em si mesmo. Ele define esse mesmo objeto como inacessível e inconcebível, perante o qual minha consciência mais do que es-pantar-se, recua: é o “totalmente outro”. O “totalmente outro” é algo que não entra em nossa esfera de realidade, mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta à realidade huma-na, que provoca na alma um interesse que não se pode dominar.36

Jung discorda de Otto quanto a se tornar o cerne da expe-riência religiosa a partir do horizonte de um “totalmente outro”. E Jung se refere, nessa pontuação, a uma das formas do numinoso, mais elaboradas, Deus: “É totalmente impensável, do ponto de

36 O sagrado, p.41.

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vista psicológico, que Deus seja apenas o “totalmente outro”, pois o “totalmente outro” não pode ser o íntimo mais íntimo da alma – e Deus é.”37 Pode-se contra-argumentar que o “totalmente ou-tro” seria uma noção mais adequada a um estádio pré-religioso, ou seja, restrito à magia, ao rito e aos rudimentos de uma mitolo-gia. Mas, lembremo-nos que Otto se refere ao “totalmente outro” quando pensa em Abraão, quando ele se depara com a absoluta superioridade de poder: é o sentimento do nada da criatura. Des-sa forma, Jung nota o amplo alcance da ideia de um “totalmente outro”, pelo menos, com raras exceções, no Ocidente, e conclui com relação ao homem ocidental:

Para ele, a criatura humana é algo de infinitamente pequeno, um quase nada. Acrescenta-se a isso o fato de que, como diz Kierkegaard, “o homem está sempre em falta diante de Deus”. O homem procura conciliar os favores da grande potência me-diante o temor, a penitência, as promessas, a submissão, a au-to-humilhação, as obras e os louvores. A grande potência não é o homem, mas um “totaliter aliter”, o totalmente outro, abso-lutamente perfeito e exterior, a única realidade existente.38

De fato, a concepção de “um totalmente outro” não leva em conta a totalidade da experiência originária promovida por uma vivência do sagrado, no que concerne a sua dimensão que se es-tende na direção do humano e do mundo. Ou seja: para Otto, o ser humano, ao se deparar com o que toma por numinoso, vê-se despertado pelo sentimento do numinoso, mas toma o numinoso necessariamente como fora dele.

37 �sicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1991 (Obras comp., vol. XII), p.23, §11, nota 4.

38 �sicologia e religião oriental, p.8, §772.

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o esquecimento do ser humAno e o esquecimento do sAgrAdo

O “totalmente outro” é uma proposição que nos interessa. Ela é o contraponto de nossa argumentação que reconhece o sagrado também a partir de um modo relacional, segundo um pensamen-to que considera o ser humano como uma trama de relações. O nosso ponto de partida residiu na tentativa de compreender um pouco melhor a concepção do sagrado como o “totalmente ou-tro”. O sagrado sob essa imagem frequentemente adquire feições dramáticas: o “tremendo”, o “terrível”, o que causa “tremor e te-mor”, o que mostra uma ira tenebrosa, por vezes “sinistro”. Essas significações nos fizeram estabelecer uma associação entre o sa-grado e o aspecto trágico da existência. Interpretamos os deuses nessa forma como a expressão fiel de como nos sentimos perante a existência quando lançados no trágico: na dor, no sentimento de aniquilação do eu, na perda do sentido, no absurdo.

Estabelecemos, a seguir, uma comparação entre a concepção do “totalmente outro” e a metafísica, que procura trazer ao campo religioso a dimensão ética. Ao visar uma ética que reúne o ser hu-mano ao fundamento sagrado (o ser, Deus), a metafísica tenta res-gatar o ser humano do trágico, retomar o fio do sentido, perdido no aniquilamento de um indivíduo reduzido a cinzas. Nisso, ela resgata a polaridade antropológica da relação entre o ser humano e o sagrado, mas acaba levando a associação entre o ser e o divino a uma espécie de domesticação aos moldes de determinados valo-res: o bem, a lógica que rejeita a contradição, o belo, a desconside-ração das paixões e do desejo. Maria Helena Cunha nota que

é própria do pensamento reflexivo a dissociação dos referen-ciais sujeito-objeto, enquanto no pensamento intuitivo e na vivência processa-se o contrário. O homem aparece, por um lado, como um ser livre, inventando e fundando a sua exis-

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tência, e por outro, submetido a limitações, a contrarieda-des. (...) O universo mitológico não conhece distinção entre mundo do ser imediato e mundo da significação mediata. A imagem não representa a coisa, ela é a coisa.39

E assim, tanto a convicção que só reconhece um “totalmente outro” quanto a metafísica deixam de considerar devidamente as-pectos relevantes da relação entre o ser humano e o sagrado. A primeira porque, basicamente, esquece a pessoa, e a metafísica porque não mais tem em conta o sagrado em sua totalidade, e tenta domá-lo na medida em que nos apresenta um discurso que anseia por encontrar respostas racionais, e com isso invade o ter-ritório do mistério, discurso esse que só se detém em parte peran-te a exaltação da fé na filosofia e na mística medieval.

Acompanhemos, daqui em diante, uma proposição de reli-gação com o sagrado, que se recusa a considerar a experiência religiosa como da ordem exclusiva do que está à parte da existên-cia, permanecendo mais do que um estranho, um interdito ao ser humano; nem considera o sagrado inteiramente deduzido de cri-térios racionais.

39 Espaço real, espaço imaginário. 2a ed. Rio de Janeiro: Uapê, 1998, p.108.

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Capítulo II

Interpretação do sagrado a partir da leitura de Martin Buber

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eu e tu como umA relAção origináriA entre o ser humAno e o sAgrAdo

Na leitura de Martin Buber, chamou-nos a atenção a apresenta-ção de uma determinada modalidade da experiência religiosa em que o sagrado se inscreve como relação, quer isso dizer: ele é constituído na relação Eu e Tu. Ele é apresentado como funda-mento constituinte de uma relação. Não é mais o único polo cen-tral da experiência religiosa.

No âmbito do Eu e Tu, procuramos um pensar que não sub-meta o ser humano a uma concepção de experiência religiosa em que ele se mantém como uma peça secundária. O que anuncia o pensamento dialógico a modo Eu e Tu é que o cenário religioso, ao invés de excluir o ser humano, evoca-o para a relação com o sagra-do. A tese que aceita o sagrado como um Tu é a de que o sagrado, a pessoa, a comunidade formam uma identidade relacional.

A confrontação entre um pensamento que adota a perspectiva relacional e dialogal e a fenomenologia de Otto concernente a de-terminadas concepções acerca do sagrado atinge o ponto máximo de tensão quando Otto descreve uma imagem do sagrado segundo a forma dicotômica que marca uma rigorosa separação entre o eu e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um “objeto” exte-rior a ele, o sagrado, com o qual o eu se depara. Quando o numi-

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noso é experimentado sob a forma de um “totalmente outro”, ocor-re uma cisão completa entre sujeito e objeto: o sagrado só é admi-tido como um absoluto transcendente e como uma realidade em tudo superior à esfera humana. Segundo essa forma, observa Otto: “É só aqui que se experimenta a presença do numen, como no caso de Abraão, em que se pressente algo de caráter numinoso, em que a alma se desvia de si própria para este objeto.”40

A alma se desvia de si própria? A experiência do sagrado também remete a alma a si própria. Entendemos esse “desvio” da alma para o “objeto” numinoso como algo distinto da experiên-cia mística, quando ela propõe um sair de si (caráter de êxtase). Não confundimos o “desviar de si própria” da alma com o “sair de si” da alma (característico da mística). Pois, segundo Otto, o desviar da alma está relacionado ao numinoso como objeto exte-rior ao eu, está relacionado ao objeto existente fora do eu. Na pá-gina 59 de O sagrado, Otto afirma, referindo-se ao aspecto atrati-vo do sagrado, que Deus é uma essência à parte.

Da mesma forma em que não há sempre desvio, mas, igual-mente, remetimento, tampouco o encontro com o sagrado pro-duz necessariamente um recuo, perante a estupefação que susci-ta41. Na introdução da célebre obra de Santa Teresa d’Ávila Castelo interior ou moradas, Jacyntho J.L. Brandão ratifica uma identi-dade de essência entre a alma e Deus.

Pois esta é a grande descoberta que Teresa pretende divul-gar: Deus habita no mais íntimo da alma. Tal verdade – com-preendida por ela através da experiência – é das formulações mais antigas de seu pensamento. Contra ela se posicionaram inclusive vários de seus confessores, que admitiam essa pre-

40 O sagrado, p.20.41 Otto acredita que, frente ao numinoso, debato-me com uma realidade inco-

mensurável perante a qual recuo, tomado de estupefação. Ibid., p.41.

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sença divina apenas através da graça, nunca em essência. Teresa, porém, é clara: Deus se encontra na alma como se encontra no céu. Por isso mesmo a própria alma é outro céu, no qual se pode entrar através da oração.42

Ocorre-nos, além da mística, o que estudamos em Jung: o ca-ráter “religioso” dos símbolos. Ao se remeter ao que é sentido como sagrado, o ser humano vê sua alma tomada pelos símbolos que ex-pressam a transcendência, assim como por imagens e ideias que expressam as formas constituintes de sua existência: a morte, o re-nascimento, o despedaçamento, o feminino, o masculino, o heroi-co, o trágico, o sublime, a salvação, o caos etc.43

Buber acentua que, antes de mais nada, não somente Deus se faz presente, como é presença. “Sem dúvida Deus é o ‘totalmente Outro’, Ele é porém o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, ele é o ‘mysterium tremendum’ cuja aparição nos subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que meu próprio Eu.”44

A experiência religiosa enquanto Eu e Tu concebe o divino em um modo relacional e dialogal. Buber aposta que o princípio sagrado existe na medida de sua relação com o ser humano: na medida não somente em que o indivíduo o evoca, mas, igualmen-te, na medida em que o sagrado também se dirige a cada um. Essa relação não está dada. Ela é uma descoberta, é uma revelação que se abre na medida em que se aceita o sagrado como relação, ao invés de meramente colocar-se sob a sua proteção ou a sua supos-ta lei. O sagrado é com o indivíduo. Assim, estabelece-se uma re-lação única, um encontro singular.

42 Rio de Janeiro: Paulinas, 1981, p.8-9.43 O símbolo religa o ego ao si-mesmo (self), à totalidade humana. Esse foi o tema

de nosso trabalho citado A psicologia do self e a função religiosa da alma.44 Eu e Tu, p.92.

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Isso nos permite concluir que as imagens do sagrado for-madas pela humanidade são criadas a partir de genuínos encon-tros com o sagrado. Concebemos símbolos não apenas por ra-cionalizações das formas (a geometria, o plano bidimensional em perspectiva, uma mandala representando a terra em relação ao cosmo, por exemplo) e abstrações da linguagem, mas tam-bém, e sobretudo, a partir da nossa vivência. O sentido do sim-bólico liga-se a uma vivência que é ao mesmo tempo um encon-tro com o sagrado. Se Deus, por exemplo, permanece sobretudo como um princípio conceitual, por mais excelente que seja a forma de sua concepção, a sua “verdade” (a sua argumentação), se Deus se mantém numa metafísica e numa teologia sem que essa reflexão se insira na existência, a modo de um permitir a existência igualmente revolver o pensamento, Deus permanece apenas um Isso, uma coisa, um objeto, manipulável pelas cate-gorias a Ele imputadas pela excessiva formalização de ritos, pela pregação sacerdotal, por dogmas impostos a partir de relações hierarquizadas.

O sagrado pode ser experimentado e pensado como um ob-jeto da minha crença, do meu estudo; como uma total alteridade; como produto de uma fantasia; como uma máscara; como um grande pai simbólico; como um ser ordenador do mundo, que dá guarita e sentido que insufla a salvação e a esperança, sublimando a angústia e o desespero. No entanto, ele escapa a todas essas achegas. Por exemplo, ele aparece igualmente como uma grande mãe acolhedora (por vezes acolhedora e simultaneamente temí-vel), como o Si-mesmo, como o “totalmente próximo”, como transgressor de todos os limites e ordenações. O sagrado é da es-fera do simbólico, e pela sua própria natureza, nunca é totalmen-te acabada a sua feição, os seus contornos são meros esboços, suas aparições, as formas de culto e veneração são esquecidas, reme-moradas, comemoradas, renovadas, transformadas. Em suma, pela sua própria essência o Tu Eterno não pode, Ele próprio, tor-

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nar-se um Isso, apesar de ser manipulado e intencionado, volta e meia, como um objeto.

Os homens têm invocado o seu Tu eterno sob vários nomes. Quando cantavam aquele que era assim chamado, pensavam sempre no Tu; os primeiros mitos foram cantos de louvor. Os nomes entraram, então, na linguagem do Isso; um impul-so cada vez mais poderoso levou-os a pensarem no seu Tu Eterno e falar dele como de um Isso. Todos os nomes de Deus permanecem, no entanto, santificados, pois, não se fala somente sobre Deus, mas também se fala com Ele.45

A letra viva da palavra que se dirige a Deus e que se origina do encontro com Ele, que aparece em revelações, relatos e dog-mas, tem o seu sentido rematado na confrontação de um existen-te com o Outro existente. O caráter existente de Deus amarra, por assim dizer, uma identidade íntima entre a pessoa e Deus, mas, não por isso, reduz Deus à imanência. Para Buber, Deus não se circunscreve nem num além, nem num aquém, ou seja, Deus não pode ser afirmado apenas como um “totalmente outro”, tampou-co, por exemplo, apenas antropologicamente, como produto da visão de mundo de alguns povos, ou, apenas psicologicamente, como uma imagem psíquica originária de uma instância profun-da do inconsciente. O que ressalta uma argumentação dialógica é a articulação radical do pensamento com a vivência. Donde se justifica a afirmação de que não apenas se fala “sobre Deus”, mas, igualmente, se fala “com Ele”.

Dessa forma, a experiência religiosa desenha uma noção complexa: simultaneamente afetiva e cognitiva. A ênfase no as-pecto vivencial da experiência religiosa não nos convence a confiná-la no campo do irracional, do incognoscível, do inefável.

45 Ibid., p. 87.

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A experiência religiosa apresenta uma abertura à compreensão e ao pensamento na medida em que possibilita um desvelamento do mistério que anuncia o fundamento sagrado. O ser humano na fé se depara a um só tempo com o desconhecido e com o fami-liar, descobrindo o sagrado pela relação que estabelece direta-mente com ele, e não fora dela (através exclusivamente de mensa-gens “reveladas”, sujeitas a interpretações exteriores ao sujeito que se submete à experiência religiosa). Assim, a fé evoca o princípio sagrado como presença. A religião é entendida mais exatamente

como um contato mútuo, como o encontro genuinamente recíproco na plenitude da vida, entre uma existência ativa e outra. Analogamente, entende-se fé como a inserção nesta reciprocidade, como o ligar-se numa relação com o Ser in-demonstrável e não comprovável, mas, ainda assim, numa relação com o Ser cognoscível de quem deriva todo signifi-cado.46

Aqui, acentuamos a noção de existência referida ao campo do sagrado. Não apenas o ser humano é um existente. O Tu eter-no, sem deixar de ser um transcendente, também é um existente. Quando estudamos a experiência do sagrado como encontro, concluímos que, segundo essa perspectiva, com respeito ao âma-go da experiência religiosa, chama-nos a atenção que não se trata de concebê-la como mera oposição metafísica entre o homem e o numinoso, entre sujeito e objeto, e sim contemplá-la como um genuíno encontro – recíproco, nada menos que um encontro en-tre duas existências. Martin Buber confere não só uma dignidade ao ser humano quando se projeta numa dimensão religiosa da existência, pois antes ele se via reduzido a não muito mais do que pó e cinzas, como lhe confere um caráter ontológico de mesmo

46 Eclipse of God, III, §3, p.33.

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peso que a realidade sagrada, ao admitir a copertinência do ser humano e do sagrado à esfera da existência.

Nesse ponto, Buber promove uma ruptura com a noção tra-dicional que põe de um lado o sagrado como o Ser, a essência, e, de outro, o ser humano como existente. A proposição de que a essência fundamenta a existência é uma tese metafísica veemen-temente contestada por Sartre, que sugere o justo contrário: é a existência que precede a essência. Até o presente momento, não encontramos em nossos estudos do pensamento de Buber uma discussão sobre quem tem a primazia ontológica: a essência ou a existência. A partir da leitura de sua obra, passamos a nos per-guntar como podemos admitir o sagrado como existente. Ele se revela existente, por exemplo, no encontro com os seres huma-nos, na sua atualidade, vale dizer, no seu fazer-se presente junto com o ser humano, na inter-ação mútua que se estabelece entre o sagrado e o ser humano de tal forma que se funda uma ligação dialogada.

O sagrado se faz presente com o ser humano: com a pessoa e com a comunidade. Evocar o sagrado implica também ser evocado. Ambos são com-vocados para um encontro místico, no seguinte aspecto da mística: ambos se chamam mutuamente ao êxtase, ao sair de si para o encontro e para o diálogo. Considerar apenas o sentido mais valioso da existência no ser humano ou no sagrado nada mais é do que instituir uma presença unilateral, donde se acredita na morte do sagrado ou na negação do ser humano.

Sem a perspectiva da existência, ousaríamos concluir que “Deus” é, mas não existe. Sem se constituir como existente o sa-grado é – um ser solitário e distante: abre-se um abismo inco-mensurável e sem pontes entre o ser humano e o sagrado. Na perspectiva do sagrado inserido na existência, esse abismo se mantém, pois o mistério permanece, no entanto, ele se enche de possibilidades. A relação entre o ser humano e o sagrado se cons-titui como possibilidade nos “fatos que não se veem”, que deixam

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em aberto o destino da relação, sem margem para antecipações ou controle.

O encontro entre os seres humanos e o sagrado envolve a disponibilidade para o reconhecimento da sua presença mútua. “Quem conhece Deus, conhece, sem dúvida o distanciamento de Deus, e o tormento da seca que ameaça o coração angustiado, mas não a ausência de presença. Nós é que não estamos sempre presentes.”47

Na esfera da experiência religiosa, quando não nos fazemos copresentes com o sagrado, configura-se para Buber o modo Eu-Isso. O sagrado é, então, eclipsado, para usar um termo do pró-prio autor, pela visão de mundo da esfera do Isso. Ele é retratado como uma realidade fechada sobre si mesma, uma instância onde Deus e homem têm lugar rigorosamente marcado e papéis con-vencionados. Desse modo, o sagrado aparece simplesmente como um ser que não permite a ninguém algo mais do que permanecer como uma criança, ingênua e sem responsabilidade alguma, ou mesmo como um “não sou nada” perante um soberano da fatali-dade, do universo e do sentido da existência.

No que toca à reciprocidade quando o sagrado é visado como um Tu, o ser humano se apresenta perante ele sem desejar se anu-lar para salvar-se num ideal de alteridade que projeta valores para fora da existência. Por isso, Buber acentua que “não é necessário o despojar-se do mundo sensível como um mundo de aparência. Não há mundo aparente, só existe o mundo que, sem dúvida, se nos revela duplo, visto que nossa atitude é dupla”.48

Buber quer enfatizar que não deseja sugerir com as instâncias Eu e Tu e Eu – Isso mais uma dicotomia que separa o mundo do divino, assim como cava uma fenda intransponível entre o campo do Isso e a esfera do Tu. Buber não pretende conceber uma sepa-

47 Eu e Tu, p.114.48 Ibid., p.89.

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ração entre a alteridade experimentada como Tu do mundo da realidade humana em suas formas de objetivação, por exemplo, o campo das dinâmicas psíquicas nas quais o desejo se articula com os seus objetos, da intencionalidade do outro como objeto, enfim, o mundo do “Isso”. Se estamos explorando uma ontologia pas-seando pelo Tu e pelo Isso, trata-se, não somente, de possibilida-des que se apresentam no enlaçamento da pessoa com o sagrado, como, antes, de dois modos de ser fundamentais do ser humano. Eles mantêm uma relação dialética, pois ambos ajudam a definir um pouco o que é esse fenômeno, o ser humano. Esses modos não são campos fechados. Eles não se definem em si mesmos. Eles se põem em função da atitude que tomamos conosco e com o outro, em como lidamos com o nosso desejo, e, por extensão, como de-sejamos o outro, em como intencionamos as nossas relações.

A dualidade de atitudes não é definida pelo emprego idênti-co do “eu” nas possibilidades de relacionamento. Aliás, essas atitudes, como Tu e como Isso, não são definidas em referên-cia a diferentes conteúdos determinados, por exemplo, o Tu representando uma pessoa e o Isso, uma coisa. Tudo aquilo que se apresenta no mundo diante do “eu”, pode ser um Tu ou um Isso de acordo com a atitude do “eu”.49

Recusando certas visões tradicionais do tipo o sagrado/es-sência versus o mundo/aparência, na esfera dialógica o valor de-positado no sagrado faz sentido a partir da inserção do sagrado na existência: no dia a dia, no trabalho, na arte, no enlace erótico, no encantamento amoroso, no conflito, na angústia, na morte, no sofrimento, no prazer, na vida. Em outras palavras, a existência se faz presente no sagrado, assim como o sagrado se faz presente na existência. Isso é para nós um significado importante de recipro-

49 Zuben. Martin Buber: cumplicidade e diálogo, p.119

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cidade. Ele configura a noção de dialógico. Assim, a proposição do sagrado como existente, do ponto de vista da experiência reli-giosa dialógica, leva em conta essa mutualidade entre presença, existência e transcendência.

Buber afirma o sentido de Deus como Pessoa inserido no sentido do Tu eterno, portanto, fundamentado na relação que Ele estabelece com as pessoas. Embora ele não creia que Deus possa se enquadrar definitivamente em qualquer designação, e, por isso, a ideia de “personalidade” não é suficiente para revelar a essência de Deus, Buber confere um valor inestimável à noção de Deus como Pessoa. Ela é indispensável “para quem, como eu, entende (...) ‘Deus’ [como] aquele que entra numa relação imediata co-nosco homens, através de atos criadores, reveladores e libertado-res, possibilitando-nos com isso a entrar em uma relação imedia-ta com Ele”.50 Vale a pena acrescentarmos o comentário de Newton von Zuben. Para ter mais intimidade com o que significa a rela-ção de Deus com o ser humano, ou seja, Deus como Pessoa, pre-cisamos observar que

não se trata de saber o que Deus é em si mesmo mas o que Ele é na relação com o homem. Deus não é pessoa em sua essência, mas em sua relação com o homem. Buber escolhe um caminho radical para a compreensão do ser de Deus em termos de seu sentido para o homem, ao mesmo tempo que empreende uma compreensão do homem em termos de seu ser-com-Deus. 51

A relação imediata entre o Tu, na qualidade de Tu eterno, e o ser humano é edificada com cada pessoa, com cada comunidade. E se abre em vias cada vez mais amplas, incluindo a relação do ser

50 Eu e Tu, p.154.51 Ibid., Notas do tradutor, p.168.

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humano e da comunidade com a natureza. É isso que dá concre-tude a cada relação, torna-a viva e pulsante, autoriza-nos a admi-ti-la como existencial: ela não está definida desde sempre e para todo sempre, não é estática, não é antropocêntrica, não exclui o ser humano e o mundo, ao revés, convoca-os todo o tempo para uma atualização, para um fazer-se presente, para uma aparição enquanto Tu.

Mais uma vez, Buber, sem deixar de legitimar o caráter su-pra-humano de Deus, insere Deus na existência de forma indis-sociável. A condição de Deus como pessoa só é possível no con-texto de uma mutualidade que apenas pode existir entre pessoas. O sagrado, quando aparece de tal forma, é um outro igualmente extático, que sai de si, para entrar em dialogação com cada um, com a comunidade e com o mundo.

É na apreciação do tema do Tu como Pessoa que Martin Bu-ber conclui seu texto a respeito de Eu e Tu.

A existência da mutualidade entre Deus e o homem é inde-monstrável, do mesmo modo que a existência de Deus é in-demonstrável. Porém, aquele que tenta falar d’Ele dá seu testemunho e invoca o testemunho daquele a quem Ele fala, seja um testemunho presente ou futuro.52

interPretAndo o sentido de reciProcidAde

O divino é como uma máscara que revela no seu verso algum sentido vital na existência da pessoa que experimenta a fé. Leo-nardo Boff, ao se perguntar o que é o sagrado, entende que ele “é aquela qualidade das coisas e nas coisas que de forma compreen-siva nos toma totalmente, nos fascina, nos fala no profundo de nosso ser e nos dá a experiência imediata de respeito, de temor e

52 Eu e Tu, p.156.

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de veneração.”53 De fato, como ressalta Boff, o sagrado não é uma coisa. O sagrado é uma qualidade das coisas; ou seja, o sagrado é um valor, um valor de excelência. O ser humano busca um valor que constitua o sentido para sua vida. Em Buber, esse valor está pleno de concretude. Se o sagrado é estimado como um valor de excelência, na esfera dialógica, isso quer dizer a afirmação desse valor pela coexistência com a pessoa. Em outros termos, isso sig-nifica que o sagrado se faz presente junto ao ser humano, partici-pa de sua existência cotidiana e concreta. Na visualização de uma relação dialogal ser humano – sagrado, um evoca o outro. A di-vindade não reina à parte, num mundo à parte, sua razão de ser se funda na relação que estabelece com o mundo, e nele, com os seres humanos.

Encontramos essa mútua participação sob a forma de um re-cíproco precisar já no mundo antigo, na imaginação de Platão ao apresentar o mito do andrógino através do discurso de Aristófa-nes. Os homens não eram como nós, eles eram seres redondos, portentosos, poderosos, e caíram na desmedida ambição. Quise-ram ascender ao Monte Olimpo, morada dos deuses e do pai dos deuses e dos homens, Zeus. Eles caíram na hybris, perderam com-pletamente de vista a sua medida e quiseram medir-se diretamen-te com Zeus, destroná-lo. Zeus se vê diante de um dilema. Não podia acabar com os homens, ao mesmo tempo não podia deixá-los impunes. E por que não podia, com todo o seu poder, acabar com os homens? Pois, segundo o texto, se assim fosse feito, as honras que lhe eram prestadas e os templos que lhe eram ergui-dos pelos homens desapareceriam. O soberano do Olimpo acaba cortando os homens em dois pedaços, tornando-os mais fracos, e acabando com a sua travessura.54 Está claro aqui o entendimento

53 Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995, p.180.54 Segundo Platão, esse relato procura justificar a gênese do amor: cada um de

nós está até hoje a procurar a sua metade perdida. O Banquete, 189c – 191e. In

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que o desaparecimento daquele que presta o culto significaria o igual desaparecimento do deus e de seu séquito de deuses olímpi-cos. Assim, podemos reconhecer no texto de Platão a copertinên-cia entre ser humano e o sagrado.

Em outra tradição, encontramos duas interpretações que vão ao encontro das teses de Buber para a chance de um mútuo abri-go para o Tu emergindo da relação entre o ser humano e o sagra-do. A primeira nos é dada por Jack Miles. Ele se refere à afir-mação-fundamento não só judaica como adotada também pelo cristianismo, acerca da criação do ser humano: “Façamos o ho-mem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gênesis 1, 26). Diz Miles: “Essa frase sempre foi lida como uma afirmação da nobreza da humanidade, mas ela pode ser tomada também como uma afirmação da não transparência de Deus para si mes-mo. Ele quer uma imagem porque precisa de uma imagem.”55 Esse modo reflexo é uma forma de Deus ter conhecimento de Si-mesmo. Revela a não transparência inicial de Deus para si mes-mo, uma descoberta de Si que convoca um outro, o ser humano. Notemos que Ele não criou uma cópia de si mesmo. Ele criou uma criatura, bastante limitada por sinal (em relação a Ele), mas com um potencial de crescimento e experiências fantástico, que possibilitou a Deus conhecer melhor a Si mesmo a partir da rela-ção com o ser humano e o curso da história.

A próxima citação de Jack Miles traz o acento na ideia de que se Deus reina soberano, ele não reina sozinho. Miles faz uma refe-rência à mitologia grega, o panteão dos deuses no Olimpo, compa-rando-o com a condição de Deus. Quando nossa imaginação aden-tra no monte sagrado, vemos cenas com festins, rivalidades, rusgas, enamoramento, sensualidade, música. A ideia de um só Deus pode

Diálogos / �latão. 4a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.22 e ss.

55 Deus. Uma biografia, p.449.

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supor um isolamento da divindade. O isolamento instiga um mo-vimento extático, para fora de si, no ato criador, na forma de se comunicar e intervir na vida da criatura humana. Na mitologia grega, quando a ordem do cosmo era quebrada, Zeus intervinha. Na ordenação do mundo do Velho Testamento, Deus não apenas intervém para que sua Lei seja assegurada, como se comunica com as criaturas (Moisés, Jó, Abraão), fala da sua criação (Jó), pede a Adão auxílio para nomear as demais criaturas (Gênesis), percebe que Adão precisa do outro, e, num novo desmembramento criati-vo, vem à luz um ser ao mesmo tempo semelhante e diferente do homem: a mulher.56 O isolamento de Deus dura pouco, assim como o homem não permanece igualmente isolado. É uma visão de mun-do que implica parceria, comunicação e relação.

Quando perguntamos (...) O que faz Deus divino?”, observa-mos que, desde o começo, ele parece não ter vida que não seja ligada à sua criatura humana. (...) Deus é onipresente, sim, mas sua onipresença é apenas outro nome para a sua solidão. Parece não haver efetivamente ninguém com quem ele possa ficar, a não ser a criatura que fez à sua própria imagem.57

Analisemos, agora, uma interpretação para a tradição que presta culto a Javé, redigida por Jung. Este estabelece uma compa-ração entre Javé e Zeus. Jung destaca o aspecto ordenador de Zeus: basicamente o deus zelava pela ordem do mundo, punindo a perda da medida da ordem, cuidando do bom andamento das leis cósmicas. Javé, por sua vez, tinha uma personalidade que ori-

56 Comenta Miles: “E fatidicamente [Deus] dota sua criatura do único poder sobre o qual tem um mínimo de controle consciente. Ele dá ao homem e à mulher, ao casal que fez à sua imagem, o poder de fazerem imagens de si mes-mos. Ele os faz uma espécie (...), cuja descendência ao mesmo tempo replicará e não replicará a eles próprios.” Ibid., p.450.

57 Ibid., p.449-50.

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ginava necessariamente um relacionamento pessoal entre Ele e o homem “ao qual outra coisa não restava senão sentir-se pessoal-mente chamado por Ele”.58

Seguindo os argumentos de Jung a respeito do soberano gre-go, podemos acrescentar que Zeus até tornou os homens menos poderosos (mito do andrógino), retomou o fogo divino roubado por Prometeu e dado aos homens, e não quis deixar com eles nem uma chispa desse fogo, punindo-os definitivamente com todas as desgraças e males imagináveis, sobrando apenas a esperança na borda da caixa inadvertidamente aberta por Pandora. Zeus não parece muito interessado em promover uma proximidade, nem em reconhecer uma “semelhança”. Zeus parece desejar manter-se num mundo à parte, “nada queria da parte dos homens, a não ser os sacrifícios que lhe eram devidos. Nada queria com eles, pois não tinha planos que lhes dissesse respeito”.59

No mito grego (tanto em Jung quanto em Miles) não acha-mos até o momento qualquer indicador relevante que nos dê a ideia de um mútuo vincular, que é o tema desta sessão de nosso trabalho. Coube ao pensar filosófico uma interpretação no sen-tido do reconhecimento de alguma forma de reciprocidade. É Platão quem expressa a copertinência entre Zeus e os homens. Zeus pode aparentar desinteresse, mas não pode ignorar os ho-mens, que, deixados em seu estado originário, ameaçam destro-ná-lo. Mais do que descrever uma situação incômoda, Platão su-gere (nas entrelinhas) a “imortalidade” dos homens (da raça hu-mana) perante os deuses: acabar com os homens significa nada menos que enterrar os próprios deuses.

Na tradição judaica, o mútuo reconhecimento é bem nítido não só para Miles, como para Jung.

58 �esposta a Jó. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1990 (Obras completas, vol. XI/4), p.11, §568.

59 Loc. cit.

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Pai Zeus era uma figura, não uma personalidade. Javé, pelo contrário, se interessava pelos homens. Estes constituíam para Ele uma de suas principais preocupações. Javé precisava dos homens do mesmo modo que estes também precisavam dele, de maneira premente e pessoal [grifos nossos]. É verdade que Zeus poderia lançar suas setas inflamadas, mas somente sobre delinquentes isolados que contrariassem a ordem esta-belecida. Nada tinha a objetar contra a humanidade como um todo, nem esta lhe interessava de modo particular. Javé, pelo contrário, podia irar-se desmesuradamente contra os homens enquanto gênero e enquanto indivíduos, quando es-tes não se comportavam como Ele queria e esperava, mas sem jamais explicar-lhes que sua onipotência poderia criar coisas muito melhores que “miseráveis vasos de terra”. Em face des-te relacionamento pessoal intenso com seu povo, era inevitá-vel que se desenvolvesse uma aliança toda particular.60

cAminhAr Pelo Abismo

Uma imagem nos fica de Martin Buber. Um caminhante, palmi-lhando as sendas de uma estrada que atravessa um desfiladeiro, andando pelos abismos desse espaço a perder de vista. O atraves-sar de uma montanha a outra corresponde à atitude de lançar pontes sobre o abismo que se imagina existir, num primeiro mo-mento, entre o ser humano e o sagrado.

Quando alguém inserido na experiência religiosa caminha nas escarpas dos abismos que a toda hora se abrem diante de si, instaura-se um evento. O fascinante e o tremendo se juntam num complexo de opostos que deixa tonta a consciência do homem religioso, entorpecendo seu corpo, enchendo sua alma de fasci-nação, temor e terror. Nesse cenário se instala um ambiente psi-

60 Ibid., p.11, §568 e 569.

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cológico e vivencial propício ao sentimento e à concepção do “to-talmente outro”. Buber demonstra acurada sensibilidade para captá-lo em seus modos fundamentais.

Buber trabalhou intensamente o texto bíblico, com conheci-mento íntimo de quem se dedicou à sua tradução. Ele nos fala sobre o ponto de partida da experiência religiosa, e, nesse aspec-to, reconhecemos um acordo com as ideias de Rudolf Otto: a ex-periência do sagrado tem seu começo no que a religião bíblica chama de “temor a Deus.” O temor “aparece quando nossa exis-tência entre o nascimento e a morte se torna incompreensível e misteriosa, quando toda segurança é estilhaçada através desse mistério”.61 Aqui, Buber não trata do mistério que se oferece ao desvelamento, mas do mistério que insiste em permanecer como tal, como um “umbral”, de uma abissalidade, por assim dizer, in-transponível, ou, ao menos, intraduzível. É o abismo que se abre no terremoto do tremor frente ao mysterium tremendum.

O ser humano imerso na experiência religiosa se vê numa condição peculiar. Não apenas deve aceitar esse mistério, como tem de conviver com ele. O acatamento não é uma atitude de “boa-fé”, ou seja, de boa vontade62. O acatamento é ser arrebatado e arrastado pela torrencial corrente do pulsar do imperscrutável, que emana da fonte sagrada. Dito com mais clareza: o mistério penetra e se espraia nas situações concretas da existência. É como entendemos a argumentação de Buber que transcreveremos, a fim de que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.

Eis o mistério essencial, a inescrutabilidade que compõe sua verdadeira natureza; é o incognoscível. Por essa obscura en-trada (que é de fato um umbral e não, como acreditam al-guns teólogos, uma morada) o homem com fé penetra no

61 Eclipse of God, III, §6, p.36.62 “Boa vontade” aqui não tem o rigor conceitual da moral filosófica.

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cotidiano que, daqui por diante, resulta consagrado como o lugar no qual ele deve viver com o mistério. Ele avança diri-gido e remetido às situações concretas, contextuais de sua existência. Tal condição, que ele a partir de então a aceita como lhe dada pelo Doador, é o que a religião bíblica chama o “temor a Deus”.63

Quando Buber repassa as inquietações do filósofo Whitehead, ele nos lança uma questão angular, que é posta de tal maneira que atinge o fundamento do que interrogamos: como se dá a passa-gem do Deus do temor para o Deus do amor? Em outros termos: como se dá a passagem do totalmente outro para o Tu? Existe essa passagem? É uma passagem “secreta”? É reservada aos mystikós, somente aos iniciados nos mistérios? Ou, por outra, mantém-se um abismo intransponível, e tudo o que podemos fazer é gritar para o outro lado, em nossas orações e evocações, na esperança de nos sentir acolhidos?

O sagrado vem ao encontro daquele que o encontra em seu coração e em sua consciência. Igualmente, o sagrado vem ao en-contro daquele que enxerga para além de si, e retorna os olhos renovados a si e ao mundo. Ir ao encontro é um ato de amor. O amor envolve não apenas harmonia e conciliação, consolação, rea lização, como conflito, ferida, luto, sacrifício. Esses temas apa-receram em Rudolf Otto, Jung, Kierkegaard, São João da Cruz, Mestre Eckhart, Mircea Eliade, ao discorrerem sobre Cristo, Abraão, Deus, alma, ser humano. A fé é um tema compreendido tanto na experiência do sofrimento, como da “salvação”. Ela se dá no entre, em uma mediação que liga o trágico à sublimação.

Vejamos o que Buber responde a respeito da questão de Whi-tehead: “Quem começa com o amor a Deus sem haver previa-mente experimentado o temor a Deus, ama um ídolo feito por ele

63 Eclipse of God, p.36.

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mesmo, um deus a quem resulta fácil amar. Não ama ao autêntico Deus que é, para começar, terrível e incompreensível.”64

Nesse momento, percebemos que, de certa forma, retorna-mos ao nosso ponto de partida. Eis-nos às voltas novamente com um ambiente de vivência e concepção que parece, à primeira vis-ta, aproximar-nos da imagem de um “totalmente outro”. Bem, então, a nossa próxima indagação quer dar uma espiada se há uma distinção significativa para com a proposição que enfatiza o sagrado como o “totalmente outro”, e, em caso positivo, gostaría-mos de identificá-la.

Uma primeira consideração nos ocorre, de imediato: não se trata, nesse ponto, de atribuir a Otto o tremendum e a Buber o fascinante. Isso seria um tipo de registro que não nos levaria mui-to longe. Voltemos ao cenário das montanhas. Nas andanças pe-los penhascos do caminho que percorre, Martin Buber não relega à poeira da estrada os aspectos insondáveis e o temor que suscita o mysterium tremendum. Ao mesmo tempo, nós o encontramos incansavelmente vislumbrando pontes de comunicação com o sa-grado. Percorrendo as escarpas do abismo, escorregando, apoian-do-se precariamente, mas com inabalável convicção do caminho que trilha, Buber se encontra com uma das faces do sagrado, o “Deus companheiro”, mas que não está, por isso, ao dispor de uma ingênua crença.

Que o homem em fé que atravessa o limiar do temor encon-tra-se lançado nas situações concretas e contextuais de sua existência, significa precisamente isso: que suporta ante a face de Deus a realidade da vida vivida, por terrível e incom-preensível que seja. A ama no amor em Deus, a quem tem aprendido a amar.65

64 Ibid., p.36-7.65 Ibid., p.37.

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Buber não aceita a referência exclusiva a um “totalmente ou-tro”, nem mesmo na gênese do fenômeno religioso. O Deus do temor é proferido e imaginado pelo ser humano quando a exis-tência se mostra para ele na forma predominante de um insondá-vel e tenebroso mistério, e, reciprocamente, o sagrado. Mas isso não quer dizer que possamos inferir desse sentimento originário a definição da experiência religiosa remetida somente a um “to-talmente outro”. Não podemos falar de religião a partir de onde não existe relação e de onde não pode haver.

Tal é o caso quando, em seu conceito de Deus, um homem entende simplesmente tudo o que é, fora do qual nem sequer ele mesmo pode existir como ser separado e capaz, como tal, de entrar em relação com Deus, ainda que fosse para perder-se uma vez ou outra nessa relação.66

Quando Buber define na obra Do diálogo e do dialógico o modo dialógico, ele torna explícita a sua posição de não acompa-nhar inteiramente a ideia de um “totalmente outro”. Essa represen-tação, se adotada de forma absoluta, desfaz muito da possibilidade de diálogo, entendido como um encontro-evento, o que acontece entre um ser e outro ser, o mistério da interpelação direta e da resposta, da reivindicação e da interlocução, da palavra e da répli-ca. O diálogo só pode ser experimentado quando a pessoa “não se fecha à alteridade, à primitiva e ôntica alteridade do outro (à pri-mitiva alteridade do outro, que, naturalmente, mesmo em se tra-tando de Deus, não se deve restringir a uma ‘total alteridade’)”.67

Um ponto central para a formulação do evento dialogal é não abrir mão da pessoa na experiência religiosa. Fixemos, uma vez mais, a nossa atenção no “estado de criatura” descrito por

66 Ibid., VI, §1, p.97.67 Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p.85.

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Otto. Nele, como já verificamos em nosso trabalho, temos a fór-mula conceitual e vivencial “não sou nada, tu és tudo”. Buber não aceita essa espécie de máxima moral e psicológica como possibi-lidade privilegiada para o encontro do ser humano com o sagra-do. Afirma ele: “Toda genuína expressão religiosa possui um ca-ráter pessoal aberto ou encoberto pois é pronunciada a partir de uma situação concreta na qual a pessoa toma parte como pessoa.”68 Não consideramos “a pessoa toma parte como pessoa” simples tautologia. A pessoa não é um mero ser passivo perante o sa grado, apenas uma testemunha, uma cópia ou simulacro de uma reali-dade ulterior. Ela não é mera parte do evento: ela participa do evento, atualiza-o, com-partilha, co-responde, enfim, ela se cor-relaciona com o sagrado.

Segunda consideração: estudar Buber nos levou a admitir uma estranha, porém: efetiva articulação do destino com a liber-dade. Eis uma das razões da dificuldade de compreensão da fé. Ela é paradoxal. Ao mesmo tempo em que nos convertemos ao sagrado, aceitando um destino fundamentado numa extensão transpessoal, tomamos uma decisão num gesto de liberdade. Sem essa liberdade para decidir entregar-se, não faz sentido a fé.

Quando temos a oportunidade de estudar a fé orientados pelo pensamento de Kierkegaard e pelas pesquisas de Mircea Eliade, que se detiveram na interpretação do episódio bíblico que envolve Deus, Abraão e seu filho Isaac, surgiu-nos o tema da li-berdade no fenômeno da fé: a fidelidade ao absurdo é um gesto de liberdade. Não custa repetir uma história bastante familiar. Deus solicita a Abraão oferecer o seu filho Isaac em holocausto. Abraão resolutamente vai à montanha sagrada com Isaac. Vai imolar o seu filho a Deus. Ao mesmo tempo em que não abre mão de seu amor ao seu filho, Abraão não abre mão do amor a Deus. Tudo isso quer dizer o paradoxo: sair de si, e, ao mesmo tempo, afirmar

68 Eclipse of God, III, § 6, p. 37.

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mais do que nunca o si mesmo. A tensão é insuportável, e incon-cebível para um espectador curioso. Kierkegaard procura nos mostrar que a fé envolve, a um só tempo, resignação e conversão ao absurdo que ela própria propõe, afrontando todo tipo de cál-culos, antecipações e previsões. Aquele que se projeta na fé realiza um salto para o não sentido. Ele

tem também lúcida consciência desta impossibilidade; só o que pode salvar é o absurdo, o que concebe pela fé. Reco-nhece, pois, a impossibilidade e, ao mesmo tempo, crê no absurdo; porque, se alguém imagina ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de todo o coração e com toda a paixão da sua alma, engana-se a si próprio e o seu testemunho é abso-lutamente inaceitável, pois que nem sequer alcançou a resig-nação infinita.69

Mircea Eliade, por sua vez, ressalta que a fé é a emancipação de qualquer tipo de lei. Eliade observa que o sacrifício de Isaac insere-se num contexto tradicional e arquetípico do sacrifício do primogênito ao deus. No antigo Oriente, o primeiro filho era considerado o filho do deus, era costume as jovens solteiras pas-sarem uma noite no templo e, assim, conceberem o filho de um deus (por intermédio de seu representante, o sacerdote, ou por seu emissário, o “estranho”). E, num certo sentido, Isaac era um filho de Deus, porque ele tinha sido dado a Abraão e Sara quando Sara já tinha passado em muito a idade de ter filhos. Na nossa própria cultura brasileira, volta e meia não ouvíamos falar de ca-sos em que o primeiro filho tinha que ser padre, principalmente no interior do país? Prossegue Eliade: o sacrifício de Isaac por Abraão era enganosamente semelhante aos sacrifícios ofertados pela tradição semita. O gesto de Abraão institui nas palavras de

69 Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.136.

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Eliade nada menos que uma nova posição do homem no cosmo, já que é realizado mediante um ato de fé, pois Abraão não enten-de por que o sacrifício lhe é requisitado. No fim do relato, com-preendemos que o cenário trágico revela a fé de Abraão. Ele se perde na fé e se vê salvo pela própria fé. Um animal toma o lugar de Isaac no sacrifício, mas o gesto daquele pai permanece aterra-dor e incompreensível para uma moral que se situe fora da vivên-cia originária. Por esse ato, aparentemente absurdo, Abraão funda nada menos que uma nova experiência religiosa: a fé.70

A emancipação da lei mencionada por Eliade pode ser ad-mitida, também, como a instância ética da liberdade, a respon-sabilidade pessoal pelo ato de entrega ao evento do encontro. Mas precisamos nos manter bem atentos nesse ponto. A nossa emancipação de qualquer lei não quer dizer que possamos sub-meter o sagrado à nossa liberdade. Como a perspectiva dialógica é uma reciprocidade, tanto o sagrado quanto a pessoa mantêm a sua liberdade, e assim se dispõem em sua totalidade para o en-contro. Uma autonomia do sujeito que submete o sagrado aos seus parâmetros morais perde de vista a dimensão da liberdade, e se torna não mais do que arbitrariedade. Da mesma forma, um sagrado que submete o ser humano às suas determinações, opri-mindo-o de tal maneira que ele tenha que se moldar a elas por submissão é um sagrado aprisionado à fatalidade. A fidelidade à lei significa confiar nessa lei, perseverar com lealdade e esperar com confiança. Na fé isso não se faz sem a opção de assumir tais atos decisivos.

Por outro lado, a emancipação da lei diz respeito à insubmis-são às prescrições convencionadas, supostamente ditadas por uma divindade que se ouve falar, sem que o indivíduo as converta em um sentido para a sua existência. O puro e simples acatamen-

70 Le mythe de l’éternel retour. Paris: Gallimard, 1969, p.130 (ed. bras. Mito do eterno retorno, São Paulo: Mercuryo, 1992, p.99).

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to de um dogma que, no fundo, nada ressoa dentro do indivíduo, não passa da instância do arbitrário. Quando a pessoa se converte ao destino, ela descobre um sentido significativo para a fé, ela tem que suportar o conflito inerente à fé, o confronto do destino com a sua vontade de realizar plenamente a sua liberdade.

Que alguém aceite a situação concreta como algo que tenha sido dado não quer dizer, de maneira alguma, que deve estar disposto a aceitar o que vai ao seu encontro como “dado por Deus” em sua pura factualidade. Pode, pelo contrário, decla-rar a oposição mais extrema até este acontecimento e tratar sua condição de coisa dada como apenas destinada a por em ação a sua força contestatória. Mas não se aliena da situação concreta tal como é na realidade; ao contrário, penetrará nela, ainda que sob a forma de uma luta contra ela. Campo de trabalho ou campo de batalha, ele aceita o lugar em que se encontra projetado. Não conhece o sobrevôo do espírito sobre a realidade concreta; para ele, até a espiritualidade mais suprema é uma ilusão se não se acha intimamente liga-da à situação em que se encontra.71

Portanto, importa nos conscientizarmos de que essa não é uma luta que se processa contra a realidade, mas que se dá justa-mente dentro dela. “A essência da religião em toda religião pode residir em sua certeza mais elevada. Esta é a certeza de que o sig-nificado da existência é aberto e acessível na situação vivida, con-creta e real, não passando por cima da luta com a realidade, mas sim, no seio dela.”72

Assim, mergulhado na existência, prossegue Martin Buber o seu caminhar, lembrando os passos do Mestre Baal Shen. O abis-

71 Eclipse of God, III, §6, p.37-8.72 Ibid., III, §5, p.35.

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mo que se dilui quando se realiza o evento do encontro é a mesma fenda que se abre quando queremos avidamente tomar posse do que poderia ser um genuíno diálogo. A existência adquire o cará-ter de um processo constante de encontro, desencontro, reencon-tro, ou, em outros termos, ligar, desligar, religar. A imagem do abismo expressa mistério, profundidade abissal, fundamento, se-paração, isolamento, desafio, evocação, superação, perigo, salva-ção, lançar-se no vazio do sentido para alcançar um inusitado sentido do outro lado do mesmo cenário.

A fé é um colocar-se perante o abismo, percorrer os penhas-cos, escalar montanhas, segurando-se na ponta dos dedos para não cair de vez, despencando das certezas tão precariamente ad-quiridas, ou, por outra, tão arraigadas, mergulhando no mistério e emergindo dele. No caminhar através da experiência religiosa, pelas escarpas, frestas, arestas, desfiladeiros, estabelecemos pon-tes, lançamos cordas, costuramos tramas, assim como podemos deixar que o abismo se amplie indefinidamente, tornando o sa-grado inacessível e isolando-o num mundo à parte.

Essa é para nós a imagem mais forte que responde precisa-mente à proposição da composição originária da existência for-mulada por Buber. Ele comentou certa ocasião com seus amigos:

Eu falava às vezes sobre minha posição a meus amigos; ela era semelhante a uma “estreita aresta”. Desejava exprimir com isso que não me coloco numa larga e alta planície de um sistema feito de proposições seguras quanto ao Absolu-to, mas sobre uma senda estreita de um rochedo, entre dois abismos, onde não existe segurança alguma da ciência enun-ciável, mas onde existe a certeza do encontro com aquilo que está encoberto.73

73 O problema do homem, p.92 da tradução francesa. Citado por von Zuben, em Eu e Tu, “Introdução”, p.XIX.

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Newton A. von Zuben apresenta uma interpretação interes-sante sobre o significado do abismo no pensamento de Buber, e, por extensão, na existência de quem se descobre na experiência religiosa como alguém que se dispõe para um encontro face a face com o Tu Eterno.

Esta “estreita aresta” não é uma solução de tranquilidade que se torna um refúgio para os espíritos pusilânimes; não é, de forma alguma, uma posição de facilidade que tende a trans-cender a existência real eivada de paradoxos e contradições, ignorando-os simplesmente a fim de escapar das situações delicadas e embaraçosas provocadas por eles. Tal “aresta” onde Buber se coloca, é antes de mais nada o vislumbre da união paradoxal da plenitude, superando as soluções de compromisso daquilo que geralmente é entendido como di-lemas ou alternativas: orientação-atualização, Eu-Tu Eu-Is-so, dependência-liberdade, bem-mal, unidade-dualidade. A união dos contrários permanece um mistério na profunda intimidade do diálogo. Diálogo é plenitude.74

74 Eu e Tu, p.XIX-XX.

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Capítulo III

A condição humana e o sentido ético e psicológico da pessoa

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A interfAce dA imAnênciA com A trAnscendênciA

�ara confirmar os termos de Buber, é caminhando pelas arestas e pelos abismos que prosseguimos em nossa trilha, passo a passo, pinçando alguns temas trazidos pela Filosofia do Diálogo. Por isso, aparecerão juntos, a partir desse marco, a questão religiosa com a questão existencial (dimensão imanente). A questão reli-giosa, pronunciada por Buber como remetida ao Tu eterno, é co-locada por ele sem nenhum pudor. Ele não hesita em afirmar e incluir Deus na instância da existência; falando com mais clareza, não recua para alguma trincheira científica ou filosófica ao afir-mar a existência de Deus. Quanto a nós, temos que confessar que não conseguimos nos livrar da cerimônia no qual fomos educa-dos a ter quanto ao corte e costura do pensamento se quisermos cerzir o tênue e frágil fio de uma hermenêutica. Então, miramos nossas setas, antes do mais, na direção do sentido da experiência do sagrado para a existência, os seus modos de ser apropriado, compreendido, e significado.

Já vem de um tempo mais do que secular uma tradição de inversão de 180 graus nos valores do Ocidente. Antes da Mo-dernidade, em termos gerais, estimava-se que fora de Deus não havia salvação. Dos mestres da suspeita (Marx, Nietzsche, Freud) para cá, aprofundou-se uma fissura entre produção de

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saber e a afirmação de um fundamento sagrado. Jung, somente por ter se dedicado ao estudo da alquimia, dos mitos, das religi-ões comparadas, e feito uma correlação hermenêutica da sim-bólica dos seus conteúdos com aspectos comportamentais do ser humano, foi tachado de bruxo para baixo, relegado ao “lodo negro do ocultismo”.

Da prescrição de que “fora da metafísica não há salvação”, passamos para uma nova norma, tão dogmática quanto a primei-ra: “fora da morte de Deus não há a existência”, consequentemen-te, não há conhecimento de coisa alguma. Se quisermos questio-nar se é possível “conhecer” o que quer que seja, não faz muita diferença porque Deus e o sagrado não são colocados mais como questão, pois muitos acham que não há mais interrogações para pautar o que já se considera uma noção esgotada. Pode-se embre-nhar o arrojo do pensar nos terrenos mais inóspitos à lógica for-mal-racional e à lógica experimental, como a compreensão ampla da sexualidade e do desejo, o sentido fenomenológico da cons-ciência, o corpo como fundamento do ser humano, a imbricação do corpo e do vivido com o pensar, pode-se propor com convic-ção o fim do próprio homem enquanto fenômeno.

No entanto, notamos que pouco se trabalha nas academias lai-cas o sagrado fora das representações usuais de um Deus “cabide”, em que se penduram inúmeros temores e tremores, na esperança de se obter salvação e segurança, um cabide que possa sustentar o ser frente ao terror da morte e da sorte, que se deseja como uma espécie de apólice de seguro frente ao trágico, e, em última análise, frente ao fluxo e à angústia que formata a própria existência.

Estamos, sob a inspiração de Leonardo Boff, Jung, Martin Buber, Rudolf Otto, Mircea Eliade, Ernst Cassirer, Carl Jaspers, Viktor Frankl, Heinrich Zimmer, Joseph Campbell, Paul Ricoeur, Kierkegaard, Jean-Pierre Vernant, Gilbert Durand, só para citar algumas referências, dispostos a trazer “Deus”, leia-se também o sagrado, o mito, a pesquisa das fontes mais originárias como pro-

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blema que vale a pena ser examinado. Primeiro, uma vez que não separamos Deus do sagrado. Não arrumamos de um lado o ima-ginário, o mito, o rito, e, de outro, a teologia e a metafísica. Todas essas instâncias apresentam campos bem próprios, e, ao mesmo tempo, misturam-se numa relação complexa, difícil até de desem-baraçar os fios. E, sobretudo porque, antes de ser uma realidade, utopia, representação psíquico-cultural ou ilusão, o sagrado ainda toma parte na vida de muitas pessoas. Se quisermos entender o ser humano e a existência, não podemos mutilá-lo a partir de discus-sões erguidas sobre argumentos e conceitos distanciados da vida, e estabelecidos em suas convicções como se constrói paliçadas em torno de um castelo. Onde, na tradição de muito tempo, falava-se de Mestres, agora se fala de Escolas. Mas, isso em nada ou pouco alterou o velho e permanente balancear entre o dogmatismo e o ceticismo. Matar Deus não livrou o candidato a pensador do dog-matismo, nem mesmo do niilismo. A própria incerteza, que tanto incomodou Descartes, parece ter se tornado quase uma nova cer-teza, mais uma norma instituída para o pensar; o relativismo, um novo dogmatismo e o niilismo um lugar comum.

Resta ao pensamento sempre vagar, sem descanso, sem porto seguro, sem guarita, sujeito a todo tipo de achaques. É um logos que inclui no Tu nas esquinas da transcendência e da imanência, e as convida para o baile da compreensão da existência. Assim, prosseguimos, marcando o nosso passo segundo uma metodolo-gia que, de agora em diante, vai da análise de algumas implica-ções da experiência religiosa para o exame de outras aproxi-mações que dão pistas para um sentido extenso do Tu.

o modo eu – isso e o encontro eu e tu

Martin Buber apresenta uma concepção do ser humano e sua re-lação com os demais seres humanos, com o mundo e com Deus a partir de dois modos básicos de relação: Eu e Tu e Eu – Isso.

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Achamos por bem riscar os primeiros traços para conhecer algo a respeito das possibilidades de o ser humano desenhar as suas relações pela descrição do modo Eu – Isso.

Chama-nos a atenção uma forma de conceber “relação” que se insere na mentalidade de muitas pessoas, e que não está apenas “na cabeça” de algumas: podemos identificá-la em sistemas psi-cológicos, filosóficos, teológicos. Trata-se da mentalidade que identifica “relação” como uma composição de pares de opostos na forma da contraposição de dois elementos distintos: o sujeito e o objeto, a alma e o corpo, a racionalidade e a natureza, o ser humano e o transcendente etc. Nessa composição, considera-se que cada elemento sustenta uma identidade inflexível, que não se altera nas interações, que se conserva em sua “pureza original”, por assim dizer. A partir dessas distinções, são idealizadas escalas valorativas: o homem se reconhece superior à natureza, a ativida-de intelectual prepondera sobre a afetividade e sobre a expressão corporal, a palavra vale mais que a imagem, o ser humano não se nivela de modo algum ao divino, a máquina é considerada mais eficiente que o ser humano, certos comportamentos são conside-rados válidos, outros são reprovados pelas convenções morais, científicas e religiosas.

No plano da relação intersubjetiva, observamos a exaltação de uma subjetividade independente e autônoma, onde o que em geral se entende por “autenticidade” (ou se quer entender) ratifica um modo de ser descrito por Luiz Bicca.

A maioria dos homens comporta-se segundo a representa-ção habitual de que o “eu” significa um núcleo ou polo sepa-rado de sensibilidade e ação, vivendo dentro e limitado pelo corpo físico – um polo que se defronta com um mundo “ex-terior” de pessoas e coisas, fazendo contato com uma reali-dade distinta. (...) O que chamamos de “realidade exterior” ou de “sociedade” (...) atua com uma força irresistível a per-

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suadir-nos de que somos, antes de qualquer outra coisa, áto-mos de existência. A partir daí torna-se muito fácil e natural o comportar-se como se ser fosse essencialmente contrapor-se, confrontar, disputar, em suma, estar sempre e constante-mente em contraste com alguma coisa.”75

Observar algumas formas cotidianas de as pessoas se re-lacionarem nos ajuda a visualizar uma fenomenologia do eixo Eu – Isso.

Um indivíduo estabelece contato com outro. Por vezes, am-bos se desejam fraternal, e até apaixonadamente. Frequentemente observamos que, apesar disso, cada um deseja afirmar na relação a sua “personalidade”, não abrir mão nas suas relações da centra-lidade dessa “personalidade”, de tal modo que o que mais importa é “ser autêntico”, exercitar e desenvolver unicamente a afirmação do “eu” através da relação. Não poucas vezes, constatamos como resultado de tal quadro mais uma tentativa de se defender do ou-tro do que um encontro propriamente dito entre as pessoas.

Surge à nossa mente, nesse instante, o pensamento do filóso-fo Martin Heidegger. O que define o ser humano para Heidegger é justamente a condição originária de ele se revelar como um ser que vai ao encontro do mundo nas suas relações. Nessa interação, ele faz a si e constrói o mundo. Não é, pura e simplesmente, um ser localizado num mundo. O ser humano lança-se no mundo em um modo de ser relacionado indissociavelmente com o mundo. Donde o significado do “tocar” quanto ao mundo da relação é bem distinto do tocar das coisas “porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira”.76 Quem oferece a possibilidade de

75 O mesmo e os outros. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p.56-7.76 �er e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p.93, §12.

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ir ao encontro são os seres humanos (e há quem admita os ani-mais77), e não as coisas.

Pois bem, lendo Heidegger, Sartre e Buber, observamos que as pessoas volta e meia se apresentam umas perante as outras como se pudessem tornar-se coisas. Dessa forma, estabelecem-se rela-ções não pessoa-pessoa, mas objetais. Assim, nessa condição, tal como o que ocorre com a cadeira e a parede imaginadas por Hei-degger, os indivíduos se tocam, mas não se encontram, ou melhor, eles se esbarram, não se encontram efetivamente, mesmo que o espaço entre eles seja igual a zero. As fricções inerentes às diferen-ças de cada uma são encaradas como “desgaste”, “crise”, algo que põe em risco o projeto do eu de se manter no que acredita ser o valor maior, sua “liberdade”, “autonomia”, “autenticidade”. Essa moral tem como suporte ideológico uma cultura narcísica, propa-gada na mídia, desenvolvida por determinadas orientações de consultores que pululam das mais diversas técnicas de decifração e “tratamento” do indivíduo, enfim, uma ideologia narcísica que se inscreve no seio da cultura consumista e tecnicista, cultuando va-lores do tipo “eficácia”, “goste de si mesmo”, “seja você mesmo”, “só depende de você”, acreditando que para alguém se “dar bem” com o outro, é preciso, em primeiro lugar, “ser autêntico”.

O que acontece comumente nas relações que se processam segundo o modo de ser Eu – Isso é o desenvolvimento de uma dualidade dicotomizada, que delimita o eu e o outro de lados di-ferentes de tal forma que observamos dois procedimentos cor-rentes. O primeiro: o sujeito se considera o centro da relação. Ele não consegue sair de si e entrar em empatia com o universo do outro: a empatia implica uma série de compreensões, tais como, “o outro não sou eu”, ou seja, o reconhecimento da diferença, dos limites do outro, seu modo de ser e encarar o mundo etc. Essa percepção se insere numa ética do cuidado, proposta por Leonar-

77 Veja a fala de Buber sobre a interação dele com um gato mais adiante.

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do Boff. O cuidado solicita desvelo, diligência, zelo, atenção, bom trato. É uma atitude fundamental, um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e dirige-se ao outro com desvelo e solicitu-de. “O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimen-tos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.”78

Segundo procedimento corriqueiro: quando uma pessoa não se dispõe para o relacionamento como o centro dele, é comum ela viver em função do outro de tal modo que ela experimenta o justo oposto: sua vida torna-se algo como um planeta que gira em fun-ção do sol (o outro). Há uma tal identificação com o outro, que ela mal reconhece a si própria, e já não sabe mais o que significa o seu desejo. Se o outro, por um motivo qualquer, desaparecer do hori-zonte da sua existência, ela se perde completamente, e se desman-cha o sentido da sua vida (aqui, cabe a definição de Sartre acerca de uma das facetas da condição humana, o “ser-para-outro”).

Tentemos resumir essas duas atitudes frequentes no modo em que se estabelecem “relações” recorrendo a duas expressões: Primeira: “Só eu existo (o outro é nada)”. Segunda: “Eu não existo (o outro é tudo)”. Acrescente-se a essa dupla atitude uma terceira, a ambivalência. É comum a oscilação entre uma modalidade e outra com relação à mesma pessoa.

O psicanalista e professor Jurandir Freire Costa está conven-cido de que os modelos tradicionais de representação do outro estão se perdendo. Hoje, as pessoas querem ceder pouco ao outro em busca de alguma coisa que dê sentido. Em lugar da represen-tação do modelo de que uma relação implica esforço, resta ter o outro como um aparato em que se descarrega toda sorte de frus-trações e agressividade. Nas palavras de Jurandir Freire, a recusa

78 �aber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p.91.

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em abrir mão de coisa alguma pode aparecer no modo da “arro-gância antissocial”. Mas tal recusa apresenta a representação do outro numa outra borda: não mais fazer do outro um boneco de pancadas, mas, a si próprio, o arrastar-se pelo mar de lamúrias, qual seja, o alojar-se na trincheira da “vitimização”.

No primeiro [modo de representação], eu não devo nada ao outro, e aquilo é palco da execução e da ação do meu desejo; eu mato, eu quebro, eu esfolo, eu roubo, eu faço o que bem quiser e entender, não devo nada a ninguém. O segundo, o modo da vítima, é que não devo nada ao outro porque ele está o tempo inteiro em dívida comigo. Ele não me deu, me fez sofrer, me retirou, e agora peço o tempo inteiro o ressarci-mento. Do Estado, da mãe, do pai, de quem quer que seja.79

Na modalidade Eu – Isso, podemos concluir que não se forma uma relação sujeito-sujeito, mas objeto-objeto: o ser humano deixa de lado a sua dimensão de ser de relações em abertura de possibi-lidades para se deixar moldar numa perspectiva objetal. Não raras vezes, o “ego” torna-se “inflado” (como dizem alguns junguianos) e o outro é tomado de forma compulsiva predominantemente como um objeto do “meu desejo”, e se torna passível de apropria-ção e dominação, e tudo que ele fizer que não corresponda ao “meu desejo” é motivo de frustração, quando não de retaliação. Desse modo, começa todo um processo de desenvolvimento consciente e inconsciente de defesas narcísicas. E tanto faz, se, nesse tipo de modalidade Eu – Isso, o sujeito se enquadra como o centro ou como a periferia. Porque, mesmo na condição de viver em função do outro, em que o indivíduo se sente fragilizado, pequeno, quase insignificante, isso nada mais é do que tentar ter no outro um ob-

79 A crise do outro. Entrevista ao caderno Mais!. Folha de �ão �aulo, domingo, 3 de julho de 2005, p.6.

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jeto para si, recusar-se a desenvolver um sentido próprio para a existência (muitas vezes pelo pânico da solidão, sem perceber o quanto se está só, pelo medo da perda do outro, perda do objeto que preenche várias demandas: “carência”, companhia, segurança, valorizar-se através do outro etc.). E, ao que estamos examinando, Buber acrescenta que tanto faz designar o outro como “Isso”, ou como “Eu/Ela”. O outro, nos aparece com um nome, uma identifi-cação, uma personalidade, mas pode não passar de um Isso, con-forme a maneira com que a relação é processada.

O “Tu” e o “Isso” são denominações para designar a alterida-de e a nossa forma de intencioná-la. O Isso implica uma forma objetal, em que o outro é basicamente um objeto do meu desejo, não tem sua existência plenamente aceita e reconhecida por mim. No modo Eu e Tu a relação é caracterizada pela reciprocidade, pelo diálogo, pela inclusão dos pares envolvidos: forma-se uma identidade na qual ambos se enriquecem na relação, na medida em que não permanecem fechados em si mesmos. É, portanto, uma modalidade de relação caracterizada por uma abertura recí-proca, em que um se apresenta ao outro, revela-se, oferta-se, por assim dizer. Nas interações entre os seres humanos, a relação Eu e Tu é caracterizada por um ir ao encontro do outro com interes-se, diligência e consideração recíprocos.

O que nos permite uma primeira compreensão do que seja a modalidade existencial Eu e Tu resume-se na seguinte premissa: numa relação dialogada, o centro dessa relação não reside mais em um eu, nem no outro. A relação se constitui na interação entre o Eu e um Tu, isto é, entre os integrantes da relação. Devemos pensar uma relação composta por “integrantes”, porque é preciso acrescentar que podemos considerar, por exemplo, minha relação com a natureza, com uma divindade, com um grupo social, com uma obra de arte etc. Compreendemos por Eu e Tu, portanto, o que designa uma relação entre mim e um outro, compondo uma identidade na diferença entre nós.

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A relação Eu e Tu não trata apenas do “relacionamento Eu e Você”. Quem só admite essa forma para o dialógico o encarcera na díade do esquema mais previsível, e segue numa avaliação sem surpresas – ou de má-fé acerca de Martin Buber. “Eu e Tu” envol-ve dois “sujeitos” em relação, sejam eles eu e você, eu e comunida-de, uma pessoa e outra, comunidade e pessoas, comunidade e natureza, ser humano e natureza, obra e artista, professor e aluno, comunidade e outras comunidades, ser humano e Deus. O que é remetido ao “político”, vale dizer, ao espaço comum onde os en-contros visam a interface comunitária e dialógica entre as pes-soas, não é desgarrado da dimensão interpessoal. O cósmico não relega o mundano para o fundo de cena. O espiritual não omite o imanente e vice-versa. O pensamento não dobra o corpo, e este não se dobra ao pensar. Quem ocupa o lugar da polaridade em interação não é uma instância anônima, na qual tanto faz que se nomeie A, B, ou Z, onde só se destaque o lugar, a função. A rela-ção Eu e Tu diz respeito a uma atitude de dialogação, participação mútua, confronto, face a face. Ela não se realiza nem no primeiro, nem no último eixo, e sim, no entre. A própria pronunciação de um entre supõe uma multidão de direções, instâncias e de atores para configurar o modo Eu e Tu.

No modo de relação Eu e Tu, não é uma instância nem a ou-tra que são o eixo central, mas a relação na forma dialogada e re-cíproca. O Tu implica uma forma de relação participativa, inclu-siva, interativa e orientada pelo cuidado, e mais: “o homem se torna um Eu na relação com o Tu”.80 O ser humano em sua totali-dade expressa-se na relação com um Tu. Reconhecer o outro e si mesmo como Tu significa um modo de ser que tende para a afir-mação da condição de pessoa, e desenvolve um modo próprio de ser nas relaç�es, na infindável e complexa rede de relações, com o mundo, as outras pessoas, a comunidade, a natureza, a poética do

80 Eu e Tu, p.32.

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imaginário, com um ser enovelado por um sentido de mística, com as várias expressões e possibilidades de ser.

Em última análise, estenderíamos os pares Eu e Tu e Eu – Isso para as relações em todas as direções: Eu e o Outro, pessoa-sociedade; comunidade-comunidade; comunidade-sociedade; sociedade-natureza; conhecimento-natureza; pessoa-sagrado; re-ligião com outra religião; sagrado-comunidade; religião-socieda-de, artista e natureza etc. Ambos os modos, Eu e Tu e Eu – Isso são modos originários, descrevem com precisão a existência. Eles se alternam e se entrelaçam no modo de os indivíduos encararem e desejarem uma relação, e no modo com que as relações se cons-tituem e se processam. A dimensão Eu e Tu é como uma figura que emerge de um fundo de Eu e Isso, reluz por algum tempo, e volta a submergir em esquecimento. Pois ela rompe com a forma trivial de ser, marcada pelo individualismo, por um lado, e, ao mesmo tempo, por uma avassaladora impregnação do modo de ser voltado para a impessoalidade. Da mesma forma com que rompe as convenções e condicionamentos com os quais as pesso-as entram numa relação, a forma Eu e Tu constitui, juntamente com a modalidade Eu – Isso, a própria existência humana. Assim, Buber admite que o Tu, no que diz respeito à nossa existência, não é eterno. O único Tu que ele admite como tal é Deus. Como não somos Deus, Buber admite nossa condição oscilante. Ele des-creve o seu encontro com um animal, o gato, em que, por breves instantes, ele teve a nítida impressão de que ambos apareciam um ao outro como um Tu, mesmo que através da expressão da lin-guagem não verbal, por um intenso olhar entre ambos. Na sua interação com um gato, Buber constata o jogo do outro como Tu e como Isso, a linguagem da aurora e do ocaso.

Há pouco, o mundo do Isso nos envolvia, o mundo do Tu havia emanado das profundezas no instante de um olhar e agora já caiu de novo no mundo do Isso.

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(...) senti (...) profundamente a efemeridade da atualida-de de todas as relações com os seres, a melancolia sublime de nosso destino, a volta fatal do Tu individualizado ao Isso. Pois, caso contrário, entre a manhã e o anoitecer se fundiam um no outro, a luz do Tu apenas aparecia e já se desvanecia. O peso do mundo do Isso havia sido realmente tirado de mim e do animal, no espaço de um olhar? Eu podia, em todo caso, lem-brar-me ainda, mas o animal havia recaído do balbucio de seu olhar à ansiedade muda e quase sem lembranças.

Como é poderosa e continuidade do mundo do Isso! e como são frágeis as aparições do Tu!81

O outro enquanto Isso pode ser medido, submetido a proce-dimentos experimentais, à conceituação, pode ser tratado como um número estatístico, sem consciência, nem corpo, um ponto numa escala numérica; pode ver-se submetido a leis – morais, so-ciais, científicas. O modo de ser do Tu, por sua vez, apresenta uma especificidade de escapar das determinações que projetam como ele deve ser antecipadamente. Ele se define na relação e através dela. Define-se, expressa-se, aparece, desaparece, torna a aparecer. É imprevisível, inusitado, único, tal como eu posso ser. Referindo-se à intersubjetividade, diz Martin Buber: “Pois, eu estou falando, na verdade, do homem atual, de ti e de mim, de nossa vida e de nosso mundo e não de um eu em si ou de um ser em si.”82

Descobriremos de que forma nos reconhecemos mutuamen-te na relação. Um cientista se relaciona com o que está pesquisan-do, com a comunidade científica, com os seus alunos. O artista, com a obra, o público, a sua temática, o inconsciente. Assim, infi-nitamente, vamos identificando inúmeras relações, a existência se define como essa rede infinita de relações, como Leonardo Boff

81 Ibid., p.114.82 Ibid., p.15.

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tenta nos descrever, a partir da sua interpretação do pensamento de Martin Heidegger.

Quando dizemos ser-no-mundo não expressamos uma de-terminação geográfica como estar na natureza, junto com plantas, animais e outros seres humanos. Isso pode estar in-cluído, mas a compreensão de ser-no-mundo é algo mais abrangente. Significa uma forma de ex-istir e de coexistir, de estar presente, de navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas do mundo. Nessa coexistência e con-vi-vência, nessa navegação e nesse jogo de relações, o ser hu-mano vai constituindo o seu próprio ser, sua autoconsciên-cia e sua própria identidade.83

No modo originário de um ser-de-relações, cada pessoa abre perspectivas de vivenciar o outro como Tu e como Isso. Buber nos descreve a relação Eu e Tu de forma quase religiosa: como algo sagrado, ou seja, que tem um valor incomensurável para a existência, que ultrapassa todas as medidas, e nos leva ao sair de si e deixar o outro comunicar-se e interagir conosco, no face a face, na condição da singularidade própria, da singularidade do outro, e da singularidade dessa relação que se enuncia como entre mim e o outro. O tom algo místico da exaltação da forma Eu e Tu surpreendentemente nos remete a uma certa melancolia, e, como se acordássemos de um sonho, constatamos que “a grande melan-colia de nosso destino” é a imersão do Tu novamente no mundo do Isso, o mundo das delimitações esquemáticas, dos conceitos fixos, mundo em que as pessoas se veem etiquetadas: “são” desta ou “são” daquela maneira. “A contemplação autêntica é breve; o ser natural que acaba de se revelar a mim no segredo da ação mútua, se torna de novo descritível, decomponível, classificável,

83 �aber cuidar, p.92.

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um simples ponto de interseção de vários ciclos de leis.” Cada Tu está condenado à liberdade, e, ao mesmo tempo, a retornar à coi-sidade. A reabsorção do Tu no Isso fecha a abertura ao ser-pró-prio (self), à própria individuação. A individuação desenvolve o tornar-se pessoa, que, por sua vez, envolve a ênfase na interação com o outro. A alternância de nossa imersão no modo do Tu e do Isso é evocada por Buber de forma poética: o Isso é a crisálida, o Tu, a borboleta. Porém, não como se fossem sempre estados que se alternam nitidamente, mas, amiúde, são processos que se enla-çam confusamente numa profunda dualidade.84

Em nossa pesquisa, interessa-nos conhecer um pouco mais a respeito do Tu, ainda que ele possa se esvaecer em meio ao mundo das ocupações em que um indivíduo se inscreve na dimensão do Isso, e reconhece seus pares da mesma forma. Impressiona-nos a afirmação “o homem se torna um EU na relação com o TU”.85 Estamos inclinados a supor que a pessoa é constituída na relação com o mundo e consigo mesma (o entrosamento e o desentrosa-mento entre as suas várias dimensões: afetiva, cognitiva, instinti-va, estética etc.). Martin Buber ressalta o que para ele constitui a pessoa: o campo intersubjetivo, ou seja, que diz respeito ao nosso encontro com um outro ser singular, igualmente relacional, reco-nhecido e estimado como tal. Se nos dirigimos a alguém na con-dição de pessoa, a força do Tu (utilizamos a palavra “força” por falta de uma expressão melhor) se faz sentir de tal modo que

a relação pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo Tu não o percebe em sua experiência, pois o Tu é mais do que aquilo de que o Isso possa estar ciente. O Tu é mais ope-

84 Eu e Tu, p.19-20.85 Achamos no texto uma proposição que diz isso de uma outra forma, ainda

mais contundente: “O Eu não é algo que existe ‘em mim’ – e todavia, [o Eu] é somente em mim que me uni a ti.” Ibid., p.114.

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rante e acontece-lhe mais do que aquilo que o Isso possa sa-ber. Aí não há lugar para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira vida.86

Para rematar de forma mais bem acabada o nosso pensa-mento, concluímos que o ser humano deixa de ser uma “coisa”, um conceito, um dado experimental ou estatístico quando vis-lumbra no horizonte de sua existência um Tu, e ele próprio se apresenta como um Tu. Dessa forma, ambos afirmam plenamen-te a sua pessoa. Essa constatação nos remete a evocar um elemen-to fundamental na composição do modo Eu e Tu, a reciprocida-de: “Relação é reciprocidade. Meu Tu atua sobre mim assim como eu atuo sobre ele. Nossos alunos nos formam, nossas obras nos edificam. (...) Nós vivemos no fluxo torrencial da reciprocidade universal, irremediavelmente encerrados nela.”87

o fAlAr com e o fAlAr sobre

Observemos, agora, uma ideia de Buber supracitada, quando nos detemos para examinar a experiência religiosa: “pois não se fala somente sobre Deus, mas também se fala com Ele”, e meditemos sobre isso. É interessante porque o falar de ou falar sobre e, por outro lado, o falar com não se restringem a Deus. Iremos da expe-riência religiosa para o acompanhamento da inserção dos modos do falar assinalados em outras paisagens da existência.

O falar sobre “Deus”88 é o campo da teologia, da metafísica, da doutrina, do relato mítico. Na instância do falar sobre “Deus”,

86 Ibid., p.10.87 Ibid., p.18.88 Colocamos Deus entre aspas porque o que nos interessa, na verdade, não é

ressaltar o falar com esse ou aquele deus especificamente, mas interessa-nos perscrutar o falar sobre o sagrado e com o sagrado, que Buber entende como “Deus”.

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o pensamento e o simbólico se articulam na tentativa de com-preender e transmitir a ideia do sagrado. Os conceitos e a lingua-gem são formas de nomear e dar contornos ao sagrado, mostrar uma das suas faces, compreender o conteúdo de uma revelação, de uma aparição, de um testemunho. Se a significação não ficar aprisionada numa única possibilidade de interpretação, e deixar aberturas à expressão do mistério, então o falar sobre o sagrado pode tornar mais familiar o que parece inacessível. O falar sobre o sagrado não o faz cair em esquecimento, procura manter a di-vindade “viva” no seio da coletividade, e em cada um. Tal aspecto é uma experiência compartilhada, e envolve comunicação, cum-plicidade, revelação, anunciação.

Essa anunciação muitas vezes é motivo de descrédito. A des-coberta do sepulcro vazio de Jesus foi feita pelas mulheres, segun-do a narrativa de Marcos (16, 1-8).

As mulheres vão ao sepulcro; encontram-no vazio. Fogem. De medo nada contam a ninguém. (...) O relato contudo atém-se ao essencial: o Senhor vive e ressuscitou. O sepulcro está vazio. O fato do sepulcro vazio porém não é feito, em nenhum evan-gelista, prova da Ressurreição de Jesus. Em vez de provocar fé originou medo, espanto e tremor, de sorte que “elas fugiram do sepulcro” (Mc 18,6; Mt 28,8; Lc 24,4). (...) Para os discípulos ele não passa de um diz-que-diz-que de mulheres.89

Interessante que no relato neotestamentário coube às mulheres, ou seja, ao feminino, o ser que porta o útero, o “vaso” onde ocorre a gestação de um novo indivíduo, acessar a revelação de um grande mistério justamente num local semelhante à caverna, num sepulcro,

89 Leonardo Boff. A nossa ressurreição na morte. 8a ed. Petrópolis: Vozes. p.46, 47. “Mas o que as mulheres diziam [aos apóstolos], pareceu-lhes como um desvario, e não lhes deram crédito.” (Lc 24,11)

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no qual ocorre um fato surpreendente: uma estranha mudança da situação anterior, quando jazia um corpo morto, misteriosa trans-formação que se dá fora da vista de todos, que resulta numa nova vida, lembrando-nos as imagens dos ritos pagãos realizados nas ca-vernas cretenses, em que na caverna o iniciado tornava-se “outro”. Em determinadas culturas, o simbolismo ritualístico da caverna trabalha o par arquetípico morte-renascimento, orientando o can-didato à iniciação que procura ingressar num tempo e espaço sagra-dos a atingir uma renovação da qual emerge uma transformação.

A descida à caverna, à gruta, a entrada no labirinto, no sepul-cro simbolizam um tipo de morte, a morte ritual, uma verdadeira iniciação. A iniciação requer que quem a experimenta esteja apto a morrer para determinada forma de ser e de ver o mundo e re-nascer para uma profunda modificação em seu modo de ser, de agir, e de compreender a existência. Nos ritos iniciáticos, os que a eles se submetem passam por várias experiências que envolvem a morte e o renascimento. Para isso, eles são conduzidos a um local que simboliza as profundezas, o mundo do mistério (o místico é o praticante dos mistérios), ligado, por sua vez, às origens pri-mordiais e às energias vitais que jorram da fonte da qual emanou todo o cosmo atual. Por isso, o saber iniciático conduz o indiví-duo ao saber das origens, que, por sua vez, contém todos os tem-pos reunidos numa só duração. O grande estudioso de mitos Ju-nito de Souza Brandão nos revela o sentido final da “catábase”, ou seja, do movimento de descida às profundezas. “Esta catábase é a materialização do regressus ad uterum, isto é, do retorno ao útero materno, donde se emerge de tal maneira transformado, que se troca até mesmo de nome. O iniciado torna-se outro”.90

Voltemos ao sepulcro. O corpo de Jesus desapareceu. Ele foi levado? O que aconteceu? As mulheres se surpreendem numa si-tuação espantosa. Ao final de toda uma série de experiências, vão

90 Mitologia grega Vol. I. Petrópolis: Vozes, 1986, p.54.

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descobrir um significado inusitado para as suas vidas. Seu espan-to tem início num local escuro como um labirinto ou uma caver-na. Bem nesse local Alguém desapareceu e reaparecerá numa nova forma. Ele se tornará um símbolo da morte e do renasci-mento, em última análise, está sendo posto um mistério que tam-bém toca a própria realidade humana.

Quando as mulheres se deparam diretamente com o numi-noso, sob a forma de dois homens de vestes reluzentes, não per-guntam mais entre si sobre o paradeiro de Jesus, não falam mais sobre o que aconteceu. Nessa hora, encontram-se diante do sagra-do, numa comunicação imediata com ele, em uma das suas múl-tiplas formas de aparição.

E aconteceu que, estando por isso consternadas, eis que apa-receram junto delas dois homens vestidos de brilhantes rou-pas. E como estivessem medrosas, e com os olhos no chão, disseram para elas: Porque buscais entre os mortos ao que vive? Ele não está mais aqui, mas ressuscitou; lembrai-vos do que ele vos declarou (...) Então elas se lembraram de suas palavras: (...) “Importa que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e que seja crucificado, e que ressuscite ao terceiro dia” (Lc, 24, 4-8).

Falar e pensar sobre os fatos que não se deixam ver a todos, que somente são vislumbrados por pessoas que tiveram um con-tato direto com o numinoso, e instauraram um novo relato, re-modelando a tradição e recriando uma nova forma tradicional, exige do falante e do ouvinte um depósito de confiança na pala-vra. É o que os gregos chamavam de pistis. Lealdade repleta de confiança, fé. Para que tal crédito não caia no vazio da crença-descrença, onde os sentidos se desligam de seu sentido originá-rio, por motivos vários como a adesão ao dogma desvinculada da vivência, o passivo acatamento do apelo de uma “autoridade”, o

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desejo de deixar a responsabilidade da existência inteiramente a cargo de uma vontade divina, o enredar a consciência nas articu-lações lógicas de uma razão arguta e niilista, é preciso que a pre-sença divina se faça sentir, é preciso que, de alguma forma, ela seja reconhecida intimamente.

Enquanto o falar sobre “Deus” demarca o campo da pesqui-sa, da revelação, da doutrina, da linguagem, o falar com “Deus” caracteriza, sobretudo, a instância mística. É um tipo de encontro face a face, que remata a experiência da fé, promovendo a conjun-ção da linguagem e da imagem com o experimentado, ou seja, do simbólico com o vivido. A integração da linguagem com o vivido nos permite observar que se a mística pode prescindir de media-ções, ela não as exclui necessariamente. Pensemos numa prática comum, a oração. A oração é um texto – falado, cantado ou escri-to. Quando experimentada no diálogo com o divino, dá a cada palavra, a cada acentuação, a cada som uma existência concreta; torna viva a letra, a imagem, a melodia; instala a renovação da fé onde parece haver nada além de mera repetição; modela imagens que projetam uma nova concepção de mundo, a modo de um revigoramento da esperança e do sonhar.

O falar sobre “Deus” e o falar com “Deus” são possibilidades de encontro com o sagrado. No episódio da surpresa da ausência do corpo de Jesus se percebe que esse encontro envolve não ape-nas comunicação, como confiança, comunhão de fé. Uma pala-vra vazia, guiada somente pelo “ouvir dizer”, ou pelo simples di-zer repetitivo e compulsivo, sem contato com a realidade íntima, é o mesmo que uma palavra-testemunho gritada do íntimo, mas sem crédito91.

91 Tal como a punição do deus grego Apolo a sua amada, Cassandra, a quem tinha conferido um de seus dons, o da vidência. Ela o rejeitou, e em punição Apolo, deus da razão e patrono da revelação da verdade, já que não podia voltar atrás do que lhe tinha conferido, cospe em sua boca. Daí em diante tudo que ela dizia caía em imediato descrédito. Ela via tudo, mas ninguém acreditava.

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O falar com ou sobre Deus nos inspirou para uma nova con-templação. Nosso interesse passa a ser a confrontação do falar sobre com o falar com na direção da imanência, mais especifica-mente, queremos nos referir ao ser humano. Comecemos pelo falar sobre.

Pensemos, primeiramente, no plano das formas de empres-tar ao ser humano um reino de conceitos. Há aqueles que acredi-tam que é preciso primeiro conceituar para, a seguir, entender. Ou, virado do avesso, que é preciso primeiro demolir para poder entender. O discurso que visa ao ser humano passa a vigorar sob a égide de uma armação conceitual, lógica, argumentada, emba-sada, coerente, construída a partir de observações meticulosa-mente “epistemológicas”, ou de hipóteses de trabalho, ou de ela-borações intelectuais. Esse cenário pode criar condições para um falar sobre que dispense uma articulação entre conhecimento e prática, entre o exercício do pensar e a ação, entre pensamento e vivência. Nesse sentido, alguns saberes têm o seu valor depre-ciado. Os esforços para desenvolver uma compreensão do fenô-meno humano podem se ver submersos em meio a rígidas e feri-nas reservas epistemológicas. A maioria delas se diz como lugar do pensar renovador, ou, pelo menos, da denúncia, da descons-trução, da crítica. Se o ser caiu em ociosidade como fundamento do conhecimento, permanece o apreço pela ancestral disputa agonística pelo dom da palavra. Algumas racionalizações, elas próprias se arrogam a apresentar uma nova esfera de interpreta-ção contra todas as “distorções” anteriores, que adquirem o cará-ter de tradição ou de canhestrice92. Então, elas próprias se põem no lugar do profeta da retificação ou mesmo da demolição, da-quele que aponta a trilha por onde deve correr o fio da compreen-são. Encontram-se tão ocupadas com a avaliação que se esque-

92 Neologismo derivado de canhestro: feito de modo desajeitado, às avessas, feito às canhas, quer dizer, como canhoto.

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cem de voltar qualquer vislumbre de crítica a si próprios. Todos os demais pensares que passem pela diferença estão encerrados na “tradição” até que apareça alguém que diga que seu pensar é mais consistente. Assim, indefinidamente, numa disputa eterna, onde pouco importa que se chame de filosofia ou força. Vence aquele que convence.

Ora, no reino do pensamento, tudo é possível. O pensamen-to tem o poder de explicar tudo, até Deus. O pensamento tem o poder de tornar um Isso tudo que é da ordem do mistério, ou seja, a existência, a vida, seus limites e fissuras. O pensamento se dá ao direito de dizer que Deus existe, e de matá-lo quantas vezes achar que isso seja acadêmico ou contracultura. O mesmo vale para o “homem” e seus sucedâneos.

E quando o pensar se dá a partir do vivido? Ele não se preo-cupa em engendrar articulações intelectuais primeiro, para, a se-guir, colocar o seu objeto nos moldes conceituais estabelecidos. O pensar com o vivido sofrerá uma série de acusações, a primeira delas, a de “psicologismo”. Como traz a público Jung, isso vem de uma mentalidade que, com o dedo em riste, de cima para baixo, aponta os erros, os “obstáculos epistemológicos”, para dizer em alto e bom tom: “isto é apenas psicológico”.

Enquanto isso, os saberes do que se etiquetou como “ciências humanas” se põem em campo, em marcha, encaram o face a face, percorrem becos, ruas, avenidas, conversam com a comunidade, escutam relatos de vidas, confrontam-se com o mesmo e com o outro enquanto tal. Ora se identificam com o outro, estabelecen-do correlações, ora se espantam com a emergência do outro com toda a sua estranheza. Deparam-se tanto com desafios epistemo-lógicos como com o senso comum. Não porque perderam de vis-ta a “verdade”, mas porque estão cara a cara; dispõem-se a colocar a cara em risco (como se diz), ao contraditório do outro.

Essas pesquisas não falam apenas sobre. Elas se dispõem a falar com. Enquanto elas se confrontam com um outro, um outro

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existente, esse outro é transformado por alguns autores em um mero conceito, por exemplo, “homem”, e, assim, em um erro de determinada tradição, e portanto passível de ser retirado do pen-sar como questão de relevo. Segundo algumas críticas do pensa-mento contemporâneo, quando o ser humano é apresentado atra-vés de uma compreensão ou uma ética do “humanismo”, isso nada mais é do que o esforço axiológico de “colocar o homem no centro”. Tais apreciações “anti-humanistas” ganham força justa-mente quando se fala sobre o ser humano e não com o ser huma-no, vale dizer, a partir do ser humano complexo, um novelo de relações que se perdem ao infinito. Quando se fala com tanto à vontade sobre o ser humano, seja para afirmá-lo acima da nature-za e da vida, seja para desfazer seu estatuto de existente, e identi-ficá-lo com a natureza, quem sabe, duas faces da mesma moeda, o “homem” é apresentado como uma categoria obsoleta, uma re-presentação conceitual que gira em torno de si própria. De fato, no reino dos conceitos, prevalecem os argumentos, enquanto a existência corre lá fora. Justamente por ser constrangido e inseri-do numa categoria onde se deita tanta falação sobre, o “homem” pode ser reduzido a pó. Enquanto representação, o humano pode ser relegado a algum capítulo da história da filosofia, com cheiro de naftalina. Enquanto existente, o ser humano é um problema, pois está sempre no devir. Como existente o “homem” não é pro-priedade deste ou daquele autor, escola, doutrina, seja ela “a fa-vor” ou crítica do “humanismo”. O vir a ser não se processa à parte do ser em sua densidade, em sua concretude: o ser humano que se apaixona, que sente, que deseja, que é pensado, que é no-meado, que recebe inúmeras representações, que é fragmentado, mas que também é consciência e se engaja, o ser que se vê diante de escolhas, o ser que é colhido por um sentido de destino, que é atravessado pela história, pelo tempo, pela cultura em continui-dades (tradição) e rupturas, que se depara com o cruzamento do finito com o infinito, dos limites com a transgressão e vontade de

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superação, que se encontra na tensão da liberdade com as múlti-plas formas de interdição e condicionamentos, que recebe signi-ficados estabelecidos, e que, ao mesmo tempo, dá sentido, enfim, o ser que é como um vaga-lume, brilha e apaga, o ser que respira e transpira não apenas ar, como também, linguagem e símbolos.

Freud era um adepto do reino dos conceitos. Sua obra é uma amarração de um primor epistemológico, apesar de rasgar o limi-te do conhecido ao formular a hipótese do inconsciente. No en-tanto, ele não se esquivou da interlocução com o paciente, ao re-vés, penetrou nela com todas as forças. Concebeu um método que instalou um tipo de relação analítica fundada no diálogo com o paciente, o qual dava voz às fantasias mais arcaicas. Abriu mão de métodos de controle e padronização do comportamento para criar um método que se propunha como uma abertura ao desve-lamento do desejo. Quantas vezes Freud supunha que podia não estar bem certo, que ainda havia muito que caminhar? Isso foi possível porque ele se dava ao trabalho de quebrar as lentes quan-tas vezes fosse necessário. Ele não quis, em primeiro lugar, traba-lhar o pensamento com marretas e martelos. Ele quis, simples-mente e antes de mais nada, compreender o ser humano. Freud tratou o ser humano e a cultura como um problema (uma ques-tão), e não como um alvo.

O trabalho de compreensão do ser humano toma em Jung o rumo de uma abertura mútua. Na difícil caminhada pelo terreno do humano, em sua confrontação permanente com o existente ao longo do trabalho psicoterapêutico, Jung ressalta que se tem de abrir mão de toda pretensão de superioridade no saber. Isso requer um cuidado para não se apropriar indevidamente do outro. Tra ta-se de uma relação dialógica, em que o outro não fala para uma teoria dentro da “minha cabeça”, toda pronta como Atena nasceu de Zeus, mas uma interlocução de averiguações mútuas. O que o outro diz ou expressa é de capital importância, e pode redirecionar a todo momento a compreensão. “Mas isto só se torna possível se

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eu deixar ao outro a oportunidade de apresentar seu material o mais completamente possível sem limitá-lo pelos meus pressupos-tos.”93 Desse modo, a pessoa em análise se relaciona com o terapeu-ta, um ser relaciona e se remete imediatamente ao outro, um mo-biliza o outro, afeta a pessoa do outro numa composição mútua.

Sobre a complexidade do fenômeno humano, escreve Jung:

As contradições em qualquer ramo da ciência comprovam apenas que o objeto da ciência tem propriedades, que por ora só podem ser apreendidas através de antinomias; como a natureza ondulatória e corpuscular da luz. Só que a psique é de natureza infinitamente mais complicada que a luz, ra-zão certamente do grande número de antinomias necessá-rias à descrição satisfatória da essência do psiquismo.94

As contradições requebram o saber instaurado, confirmam, negam hipóteses e elucubrações, em uma espécie de ebulição sem fim. Como se possibilita, então, algum tipo de conhecimento? No entre. Na relação efetiva entre seres humanos. Na relação perma-nentemente revivida, perdida e retomada. E assim se passa do falar sobre para o falar com, na desmedida abertura para o Tu.

Saindo da avaliação do falar sobre quanto ao conhecimento para penetrar uma vez mais no mundo da vivência, nosso pensar nos envia para o terreno onde as pessoas utilizam a palavra para sobrepor o explicar ao acontecer. Aqui, vamos tentar entender algo acerca do falar sobre quando ele se torna uma forma de es-quiva do outro, quando ele evita a confrontação com o outro, des-faz a possibilidade do colóquio para assentar-se no solilóquio. No atendimento psicoterápico fica bem nítida essa atitude do falar sobre. Tal procedimento não se reduz ao consultório. Ele se mos-

93 A prática da psicoterapia, §1, p.3.94 Ibid., §1, p.2.

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tra a todo o momento, em um cem número de ocasiões. Ocorre-nos o falar sobre si, e não a partir de si: são os processos de racio-nalização de si mesmo, uma análise interminável de razões e lucubrações nas quais o que se passa com a pessoa acaba corren-do despercebido, bem debaixo do seu nariz, como costumamos dizer coloquialmente. O falar sobre se perde em um labirinto de explicações e justificativas que passam de sobrevoo sobre o corpo e o desejo, não expressam algum núcleo subjetivo mais significa-tivo, senão através dos chamados sintomas, ou seja, de cifras comportamentais que são expressas paralelamente à comunica-ção. Por vezes, o sujeito não fala, seus pensamentos tomam a pa-lavra, “representam” os seus sentimentos, mas não conseguem atingi-los, dar vazão a eles. Os pensamentos produzem um deba-te interminável de fatos, memórias, detalhes, argumentos desarti-culados da vivência autêntica que não têm mais fim. Como ondas, alternam-se, chamam a consciência de volta para um labirinto restrito ao mental, e assim, ela se dispersa.

Esse falar sobre si tem afinidade com o falar sobre o outro e o falar do outro. O ponto de nó é um falar que não passa da su-perfície, e recusa a relação face a face. O falar do outro constitui o falatório, tão bem expresso na filosofia por Heidegger na seminal obra �er e tempo, no trabalho de Camile Claudel na sua escultura As Faladeiras.

Aqui, o falatório volta-se para o falar sobre a vida alheia, uma forma de distrair a atenção das questões próprias, expulsando-as para o mais longe possível das vistas de si mesmo, excitando-se com uma escuta curiosa e insaciável.

Vamos nos deter agora naquele típico modo do falar sobre, o falar de alguém que é desejado por uma estima especial. O sujeito nesse modo procura um auditor. Fala das suas mágoas, das suas frustrações, da sua perplexidade, revela algo dos seus medos, fan-tasias, sentimentos, expectativas, acentua o que o outro faz/fez, anuncia o que acha que pode vir a fazer ou deixar de fazer, fala

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numa torrente de pensamentos e palavras. Com frequência, sua falação se dirige às pessoas amigas, às pessoas em que deposita alguma confiança, ao terapeuta, ao astrólogo, ao tarólogo, ao sa-cerdote, ao médico, ao analista. O falante sobre divide uma parte de si com uma ou algumas pessoas, menos com aquela com quem se sente envolvido na cumplicidade da sua vivência, menos aque-la pessoa a partir da qual ele fala da vivência. Quando pergunta-mos se ele se dirigiu ao sujeito ao qual a sua fala está remetida, vem aquele silêncio, até uma sensação de ver-se surpreendido. É um momento rápido como um flash, fugidio, porém pode fun-cionar como uma chama. Essa espécie de vácuo nas percepções familiares abre para a consciência, ainda que por breves lampejos, a oportunidade de percepção do outro.

Quando alguém consegue dirigir a palavra de sua intimidade a outro alguém, nesse momento começa a se pronunciar a passa-gem do estado de objeto para a condição de pessoa. Quando con-seguimos dizer, ou expressar corporalmente algo do que sentimos para o outro, em vez de nos remetermos para “Deus e o mundo”, estamos abrindo o caminho para desenhar no outro o rosto do Tu. Estamos passando do falar sobre para o falar com. Estamos nos arriscando a tocar o outro e a sentir-nos tocados.

Para alguns, é difícil, pois implica risco, risco de perder-se na imensidão de si e do outro, no abismo que está aberto entre um e outro. Lançar uma ponte e ir ao encontro do outro é uma emprei-tada que requer dialogação, expressão do desejo, disponibilidade para escutar o outro. Se essa instância é desafiadora, a relação do entre Eu e Tu pode cair em um terreno que nem todos se sentem firmes: permanecer aberto a dar espaço para a resposta do outro. Carl Rogers é quem nos chama a atenção sobre isso.

Rogers não defende simplesmente colocar para fora os sen-timentos. Ele sugere que devemos nos comprometer tanto com os efeitos que nossos sentimentos causam em nosso

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parceiro quanto com a expressão original dos sentimentos em si mesmos. Isto é muito mais difícil do que simplesmente “desabafar” ou “ser aberto e honesto”. É a disposição de acei-tar os riscos reais envolvidos: rejeição, desentendimento, sentimentos feridos e [retaliação].95

Frente a essas dificuldades, o sujeito pode se retirar da rela-ção e passar a falar no modo do falar sobre. Permanece no mundo de pensamentos em redemoinho, que retornam sempre ao mes-mo ponto. O outro se torna temível. O desejo é nublado pelo te-mor ao outro. Temor pela perda do outro, pela desaprovação do outro. Nessa lógica, perder o outro é perder a si mesmo, perder-se, ou constatar o que não se quer constatar, o quanto já se está perdido. Uma relação em que o sujeito não se reconhece afirma-tivo de seu desejo: somente o fantasma do que o outro pode fazer, é uma relação cujo projeto de ser se liquefaz e se reduz ao de desempenhar bem papéis que deem a si mesmo segurança, esta-bilidade, previsibilidade, controle, o sentido viscoso, a consistên-cia de ser alguma coisa. Esses papéis podem ser assimilados por uma necessidade de aprovação, uma desesperada tentativa de ser amado, ou, ao menos, de não ser rejeitado, ser de alguma forma admitido, não excluído, acima de tudo.

A intencionalidade do outro como Tu envolve uma distensão do tempo, um retorno a si e um sair de si, em que condiciona-mentos sociais e os adquiridos desde tenra idade, matéria-prima para os papéis que se desempenha mutuamente, são convocados, chamados novamente a uma provocação de ruptura, mediante a abertura ao outro, em que podem ser em parte redimensionados, sem o que estamos fadados à repetição não criadora. Pouco a

95 Fadiman, James e Frager, Robert. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra, 1986, p.233. A obra de Rogers que traz essas ponderações é Novas formas de amor. O casamento e suas alternativas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

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pouco pode-se descobrir, de uma forma compartilhada, o outro a si próprio. É possível descobrir possibilidades para ser em con-junto com a abertura ao outro. Há espaço no ser humano para a comunicação enviada ao falar com, para o olho que encontra o olho, a face na face, o toque, o acolhimento. Todo esse conjunto não configura uma constituição de intersubjetividade que pro-mete felicidade, prazer ou coisa do gênero. Não é uma construção segura, não é uma receita de vida, tampouco uma consolação para um mundo de tribulações e fantasias malogradas, menos ainda, trata-se de uma conquista definitiva e apaziguadora do ato radical de viver. Constitui, fundamentalmente, um evento cuja possibilidade e amplitude é definida pela abertura mútua, a que Buber chama por uma simples denominação, Eu e Tu.

o cAráter originAriAmente simPles do encontro

Neste momento, gostaríamos de pensar a proposição da condi-ção originária da espontaneidade e da simplicidade no encontro entre a pessoa e o Tu, e expor de que forma nós a entendemos. Martin Buber afirma, referindo-se à relação Eu e Tu: “O Tu en-contra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado.” 96

É do nosso interesse, agora, interrogar: se não temos a pers-pectiva de uma procura, pois, segundo Buber, não é por uma pro-cura que o Tu se torna reconhecido como relação fundamental, o que encontramos? Com o que ou com quem nos deparamos? O que descobrimos quando observamos atentamente a maneira de assumir a experiência relacional no modo Eu e Tu?

Vejamos o que conseguimos pesquisar, começando pelo exa-me do procurar e do encontrar na experiência religiosa. O sagra-do na condição de Tu não se faz presente apenas em instantes

96 Eu e Tu, p.12.

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bem marcados, em que se promove a delimitação entre o “sagra-do” e o “profano”.97 Na instância do Eu e Tu não há passagem do profano para a presentificação do sagrado. O Tu (já) é presença.

Façamos duas observações. Primeira: o sagrado na condição de Tu deve ser reconhecido pela pessoa que vivencia o sagrado como presença em cada modalidade da experiência religiosa. Não se alcança aquilo que já é presença. No horizonte do Eu e Tu, parece-nos que “procurar” pode ser interpretado da seguinte for-ma: só se procura algo que ainda não foi encontrado, o que não se reconhece como presente. Dessa forma, quem se encontra envol-vido com a experiência religiosa não tem que, em primeiro lugar, obrigar-se a orar todos os dias, praticar sistematicamente exercí-cios de meditação, adotar algum procedimento catártico como o ascetismo, o vegetarianismo, banhos purificadores, dedicar-se à leitura exaustiva dos textos considerados sagrados, cumprir zelo-samente as práticas rituais. Nada disso tem um caráter significati-vo se não surgir a disposição para encarar o divino na perspectiva do encontro.

Em todos os procedimentos mencionados acima acredita-se estar procurando o sagrado. Não rejeitamos de todo a ideia de uma procura, na medida em que se tenha em conta que o sagrado já é presença “Procura”, dessa forma, adquire o sentido da desco-berta permanente do sagrado como presença.

Vamos à segunda observação. Não há por que separarmos de forma necessária e sistemática o sagrado do profano para promo-ver a ligação com o sagrado: aqui termina o profano, lá começa o sagrado. Essa demarcação postula, de uma lado, a experiência re-ligiosa como a instância do sagrado e, de outro, a existência, refe-rente ao campo do profano. No modo de concepção dialógico, o sagrado e o profano são integrados numa totalidade que os re-

97 V. Mircea Eliade. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1969 (ed. port. O sa-grado e o profano. A essência das religi�es. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”).

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mete a uma dialogação, onde não há solução de continuidade en-tre o rito e o profano, o mito e a “realidade”, as imagens e o discur-so, o “racional” e o “irracional”.

O sagrado, portanto, apresenta-se como abertura permanen-te à dialogação numa totalidade complexa, que envolve o cotidia-no, o “profano”, o rito, o pensamento, o psíquico, a arte etc. Ele como que passeia, atravessa todas essas instâncias. Todas elas são formas de mostrar a presença do sagrado, são as multiformas de expressar a presença do sagrado na existência.

O que ressaltamos na perspectiva do sagrado como Tu é que ela não desenvolve uma lógica produtora de descontinuida-des (alma x corpo, espírito x matéria, racional x irracional, eu x outro, profano x sagrado etc.). Com isso, o sagrado não se man-tém exilado da existência, quer dizer, ele não fica restrito ao templo, não se torna uma vaga lembrança após a prece, após a meditação, quando o indivíduo dá por encerrado o rito e sai dele para retornar às suas atividades cotidianas, “quando alguém iluminado e esgotado, voltar à miséria das coisas terrestres”.98 Se o momento “celestial de abundante riqueza”, ou seja, na qual procuro o sagrado em prece, meditação, ritos, sacralização e ce-lebração dos elementos da natureza etc., “nada tem em comum com o meu pobre momento terrestre, o que me importa, pois devo continuar vivendo sobre a terra, devo ainda viver com toda a seriedade?”.99 O Tu eterno é sentido como presença na existên-cia, e não se vê cir cunscrito a determinadas esferas metafísicas espaço-temporais da existência, a partir das quais se abriria um portal imaginário em que o sujeito passaria do profano para a ex-periência do sagrado.

Quem se dedica diligentemente aos procedimentos que vi-sam religar-se ao sagrado, e percebe essa ligação como uma rela-

98 Eu e Tu, p.10099 Ibid., p.101.

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ção dialogada, tem no fundo de sua busca, de sua procura, de seu caminho, a noção da presença do sagrado inserida no cotidiano de sua existência. Seu caminhar é o seu caminho, sua busca já é encontro permanente, sob diversas formas, entre elas, os procedi-mentos rituais. A noção de uma inserção do sagrado na existên-cia (sem que o sagrado, ao mesmo tempo, perca o caráter de transcendência) é um dos sentidos mais importantes da experiên-cia religiosa, compõe um dos aspectos essenciais da experiência do sagrado, por vezes, designado como “a mística”: a comunhão entre a pessoa, a comunidade e um sentido de sacralidade. É uma experiência que o senso comum considera pertinente ao “sobre-natural”. Segundo não apenas o senso trivial como algumas críti-cas à afirmação da experiência religiosa, o que se insinua como místico se refere necessariamente a um outro mundo, fora da existência natural. Contra tal teoria, cabe a notação de Leonardo Boff. Ele chama a atenção para a experiência do mistério que não se dá apenas no êxtase, mas, também, na discreta sucessão de nossos dias, onde a busca pelo espetacular dá lugar à experiência de respeito diante da realidade e da vida. “Quem não se extasia diante de uma criança que nasce? Quem não se enche de profun-do respeito em face de um rosto sofrido e curtido de um indígena do altiplano da Bolívia? Quem não emudece diante dos pés gros-sos e calosos do camponês nordestino que trabalha no sertão ári-do de sol a sol?” O Professor Boff registra com muita propriedade que existe aí uma sacralidade que se impõe por si mesma. Aqui, confirma-se que o sentido da mística é refeito a cada vez que o ser humano respira mais profundamente, num suspiro que se encan-ta com veneração com o mundo que se lhe apresenta. Esse mun-do é sagrado, porque o sagrado não se dissocia dele. A mística não é reservada somente a alguns bem-aventurados, mas ela é, antes do mais, “uma dimensão da vida humana à qual todos têm acesso quando descem a um nível mais profundo de si mesmos; quando captam o outro lado das coisas”, o mistério que se revela

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a quem se permite o espanto e o encantamento. “Todos, pois, so-mos místicos num certo nível.”100

Uma forma análoga de pensar foi desenvolvida por Martin Buber, certamente através de diversas fontes, como a religiosida-de, os estudos teológicos, místicos, metafísicos, a filosofia, a sua experiência pessoal. Talvez, a marca decisiva do pensamento de que o divino se faz presente no mais ínfimo contexto do cotidiano tenha sido fortemente inspirada pelo hassidismo. Martin Buber teve um contato estreito com essa modalidade da mística judaica, e o manteve durante anos. O tradutor e comentador de Eu e Tu, Newton Aquiles von Zuben, não tem dúvidas de que o hassi dismo foi a mais relevante influência no pensamento de Martin Buber. Aliás, Zuben vai mais longe: para ele, o movimento da mística hassídica representa para Buber, mais do que simples influência, o clima ou o molde do seu pensamento.101

O fundador do hassidismo foi Israel ben Eliezer, por volta de 1730. Ele preferia o contato direto com a realidade em vez de estudá-la; preferia andar na mata, visitar e tratar as pessoas (como curandeiro e exorcista), contar histórias às crianças a es-tudar o Talmude102. Ele percorria as aldeias da Polônia curando as doenças dos camponeses e aldeões através de ervas, amuletos e preces. Seus seguidores começaram a chamá-lo de rabino Baal Shem Tov (ou simplesmente Besht). O mestre fundador era uma figura ao mesmo tempo histórica e mítica. Ele morava na encos-ta de uma montanha. Contam que ele percorria, em seus deva-neios místicos, montanhas perigosamente íngremes. Eis o que nos diz um relato:

100 Boff. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.17.101 Em Eu e Tu., Introdução, p.XXXII.102 O Talmude contém comentários acerca dos textos do Velho Testa-

mento, e apresenta discussões, a partir da Doutrina da Lei anunciada por Moisés, do código de Lei judaico.

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Certa vez, seu êxtase foi tão profundo que não percebeu es-tar parado à beira de um abismo abrupto e calmamente le-vantou o pé para seguir adiante. Então a montanha vizinha saltou para junto da outra, apertou-se firmemente contra ela e o Baal Schem continuou seu caminho.103

Ele acreditava que existiam centelhas divinas em tudo:

Isso significava que todo o mundo estava repleto da presen-ça de Deus. Um devoto judeu podia experimentar Deus nas menores ações de sua vida diária – enquanto ele estava co-mendo, bebendo ou fazendo amor com sua mulher – porque a centelha divina estava em toda parte.104

Lex Hixon, discorrendo sobre o hassidismo, acrescenta:

Uma fórmula matemática, uma dor de cabeça, a morte de um ente querido, a brincadeira de uma criança, uma cerimônia religiosa – cada uma dessas coisas nos permite alcançar a par-ceria com Deus quando vivenciada extaticamente, quando celebrada como a própria Vida de Deus. (...) Toda a vida é

103 “A Montanha Auxiliadora”. Citado por Buber. Histórias do �abi. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.89. Sobre os líderes do movimento hassídico, os chama-dos “tzadikim”, esclarece Buber: “Devo denominá-la [uma realidade] lendá-ria, porque os relatos que chegaram até nós e aos quais me propus dar forma adequada não são, como crônicas, fidedignos. Remontam a pessoas entusias-madas que, em recordações a apontamentos, preservaram aquilo que seu en-tusiasmo percebeu ou acreditou ter percebido, (...) mas que a alma entusiás-tica sentiu como algo manifestamente acontecido, relatando-as, portanto, como tais. É por esta razão que devo chamá-las de realidade: a realidade da experiência de almas ferventes, uma realidade engendrada em total inocên-cia, sem lugar para a invenção ou para o capricho. É que essas almas não in-formavam de si mesmas, mas daquilo que sobre elas atuava.” Ibid., p.19.

104 Karen Armstrong, A history of God, p.334.

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apenas Vida Divina, e cada momento ou situação pode ser usado para despertar a sociedade ou união com Deus.105

Essa é, a nosso ver, a forma de aceitar uma relação com o sagrado com simplicidade, segundo a fórmula hassídica, expe-rimentando “Deus apenas”.106 O sagrado integrado ao cotidiano é um Deus apenas. Tanto num rito litúrgico especial, onde nos preparamos como se fôssemos a um baile de gala, como na ora-ção feita na intimidade do quarto, ao recostar numa árvore, contemplando a natureza, na prece pronunciada por um pensa-mento profundo e introspectivo, podemos dar sentido ao Deus apenas. Deus apenas é sentir no coração uma abertura ao sagra-do, e sentir sua presença respondente, no recolhimento íntimo da fé.

Nesse ponto, Buber nos oferece mais um convite a refletir, ao insinuar que, na esfera da relação com o Tu, não há uma pro-cura por ele. Não nos dirigimos ao Tu como se procurássemos alguma coisa. Na verdade, não há uma procura de Deus, como ele costuma dizer. Santo Agostinho nos legou um testemunho de quem procurou anos a fio por Deus. Enquanto o procurava, não o encontrava. Somente pôde realizar o seu sonho quando percebeu a presença integral de Deus, ou seja, a atualidade de Deus, sua presença a cada instante. Deus não está em um “lá”, ele se faz presente aqui e agora, entranhado em nosso próprio ser. Não é demais repetir um pensamento de Agostinho muito conhecido, quando ele se dirige em êxtase místico a Deus, após uma descoberta fundamental: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão an-tiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de

105 O retorno à origem. São Paulo: Cultrix, 1992, p.135-6.106 Expressão extraída do livro de Hixon: “O mestre hassídico desaparece na

Vida de Deus transformando a existência cotidiana comum na dança sagrada do êxtase, percebendo Deus apenas.” Ibid., p.134.

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mim e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco!”107

Se não faz muito sentido uma procura por Deus, é porque se descobre que não há nada onde não se possa encontrá-lo. “Quão insensato e sem esperança seria aquele que se afastasse de seu próprio caminho a fim de procurar Deus; mesmo que houvesse conquistado toda sabedoria da solidão e todo o poder de concen-tração, não o encontraria.”108 Pois, o Tu eterno não se revela a não ser para quem o reconhece como presença, uma presença com-partilhada com cada pessoa. Desviar do caminho pode ser admi-tido como um regramento dos desejos, a edificação de uma moral alienada do ser-próprio, o deixar de lado a expressão do si-mes-mo a partir da tentativa de enquadramento da personalidade em moldes exteriores: por ouvir dizer, por querer impor a si uma crença esvaziada de sentido, por medo de viver, pelo medo da morte. O procurar significa que se perde de vista que o Tu já se faz presente. Quem sabe, não teríamos aí um sentido pertinente para a máxima proferida por Jesus: “O que acha a sua alma, perdê-la-á: e o que perder a sua alma por mim, achá-la-á” (Mt 10,39). Aquele que se dispõe a achar, procura por algo, e assim, perde de vista o objeto de sua busca, ao se ocupar com a tarefa de encontrar o que tanto persegue. Se procura algo, na lógica dialogal, é porque não encontra ressonância plena do sagrado enquanto presença. Na máxima cristã em análise, identificamos a expressão da experiên-cia extática, do sair de si, ao nos darmos conta de que a perda da alma é sinônimo de encontro: no estabelecimento da relação com o divino perde-se o Deus-objeto a ser encontrado (Deus que não é sentido como plena presença), e encontra-se a um só tempo a si e a Deus-presença.

107 Confiss�es, X, 27. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores), p.190.108 Eu e Tu, p.92-3.

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Parece-nos que para Buber, “procurar” e “achar” mudam de sentido quando estão remetidos à dimensão relacional do ser hu-mano com o sagrado. O sentido do Tu para o ser humano

é um achado sem que se tivesse procurado; uma descoberta daquilo que é primordial, originário. O sentido do Tu que não pode ser saciado, até que ele tenha encontrado o Tu in-finito, que lhe estava presente desde o começo; bastou so-mente que esta presença se lhe tornasse totalmente atual, de uma atualidade da vida santificada do mundo.109

A simplicidade do encontro com o sagrado como Tu se afina com o aspecto de gratuidade que, igualmente, compõe o encon-tro. Afinal, retomando os termos de Buber já citados páginas atrás, o Tu se encontra comigo por graça, não é através de uma procura que ele é encontrado. Essa graça, não devemos confundi-la com o sentido “de graça”. Nós podemos estar disponíveis ou não para o encontro. Podemos cultivar hábitos “religiosos” e ri-tua lísticos que não se mostrem configuradores do encontro, as-sim como podemos simplesmente evocar o Tu como presença no rito, numa meditação, na projeção de um desejo ou ideal que se processa numa fé íntima e silenciosa. Essa relação requer a dispo-nibilidade para o encontro. Cultivar o sagrado no coração, perce-bê-lo integrando todos os momentos da existência, reconhecer e acolher a sua presença são formas de se dispor ao encontro.

Para Leonardo Boff, a graça implica liberdade e gratuidade. Dessa afirmação, pensamos: a disponibilidade para o sagrado en-volve uma escolha. Uma escolha afetiva, corporal, espiritual, uma escolha que diz respeito à totalidade da pessoa: a pessoa se dispõe ao encontro, lança-se no encontro, vai ao encontro do sagrado, e o encontra a cada passo do caminho. É um ir-ao-encontro-de que

109 Ibid., p.93.

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descobre de imediato ressonância recíproca, o reconhecimento da presença divina na existência.

No estudo acerca do cristianismo, Boff descreve a “Graça” como referente à situação do homem inteiro inserido no amor de Deus e estabelecendo uma comunhão com Deus, do ser humano na experiência do amor mútuo, onde Graça significa a natureza humana “penetrada pelo amor de Deus, não mais num frente a frente com Deus, mas num diálogo de amor gratuito, de mútua interpenetração divinizante, de sorte que podemos dizer: a divi-nização do homem humaniza Deus, e a humanização de Deus diviniza o homem”.110 O amor a Deus e de Deus constitui justa-mente o aspecto relacional recíproco em que a pessoa e Deus saem de si e se dispõem para o encontro.

O caráter originariamente simples do encontro não é uma questão para Buber reservada exclusivamente à experiência reli-giosa. Essa simplicidade é muito precisamente expressa quando Buber relata a possibilidade de relação com uma árvore. A árvore pode ser recortada em conceitos, em infinitos conceitos apro-priados pelos diversos saberes, fotografada, ter partes suas leva-das para o laboratório, classificada. A árvore pode ser medida e entrar para alguma estatística, submetida ao rigor da lei científi-ca, que prescreve qual a sua inscrição no reino da natureza, qual a sua função. Ela pode ser disposta como um objeto: como objeto de estudo, como madeira, como matéria-prima, como essência aromática, como remédio, como investimento econômico. Vale, aqui, darmos a voz ao próprio Buber.

Eu considero uma árvore.(...) Posso senti-la como movimento: filamento fluente de vasos unidos a um núcleo palpitante, sucção de raízes, respi-ração das folhas, permuta incessante de terra e ar, e mesmo

110 A nossa ressurreição na morte, p.90.

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o próprio desenvolvimento obscuro. Eu posso classificá-la numa espécie e observá-la como exemplar de um tipo de es-trutura e de vida.

Eu posso dominar tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão a expressão de uma lei – de leis segundo as quais um contínuo conflito de forças é sempre solucionado ou de leis que regem a composição e a decomposição das substâncias. Eu posso volatilizá-la e eterni-za-la, tornando-a um número, uma mera relação numérica.

A árvore permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto, tem seu espaço e seu tempo, mantém sua natu-reza e sua composição.111

A enunciação “Isso é uma árvore” não pode ser mais adequa-da a sua objetivação. Até que ela, sem deixar de se enraizar como uma árvore, mostre-nos outras faces. Esse desenho novo só pode ser composto pela nossa relação com ela, em que nós a vejamos de forma renovada, não simplesmente como uma coisa, mas atra-vés da nossa relação com ela. Existe mais uma possibilidade de se dispor diante de uma árvore. Não apenas representar a árvore, mas, senti-la, tocá-la, e ser tocado por ela, aceitar a sua presença.

Entretanto, pode acontecer que, simultaneamente, por von-tade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela não é mais um Isso. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim.

Não devo renunciar a nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para vê-la, não há nenhum conhecimento do qual devo me esquecer. Ao con-trário, imagem e movimento, espécie e exemplar, lei e núme-ro estão indissoluvelmente unidos nessa relação.

111 Eu e Tu, p.7-8.

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Tudo o que pertence à arvore, sua forma, seu mecanis-mo, sua cor e suas substâncias químicas, sua “conversação” com os elementos do mundo e com as estrelas, tudo está in-cluído numa totalidade.112

No momento em que nos lançamos na relação com a árvore, percebemos que ela não nos pertence, ainda que nos sintamos a ela ligados, ela não é apenas uma imagem representada, não é uma reprodução passiva de nossos sentidos, não é somente um expoente de nossa subjetividade, não é apenas o meio através do qual a nossa subjetividade se faz perceber a si própria. Ela é um outro. Não é qualquer um, mas, aquele ser que se apresenta a nós naquele momento único, de um encontro único, o outro singular, aquela árvore.

A árvore não é uma impressão, um jogo de minha represen-tação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo, e eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela.

Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: rela-ção é reciprocidade.

(...) Não é a alma da árvore ou sua dríade [ninfa dos bosques] que se apresenta a mim, é ela mesma.113

E nós, como vamos ao encontro? Munidos de quê vamos para o encontro? Nosso encontro é um encontro ou um confron-to, ou melhor, uma guerra, uma disputa, uma agonística?

Na maioria das vezes, já partimos para o encontro armados de explicações e justificativas para tudo o que não queremos fazer, não queremos contar, não queremos partilhar. Armados com a

112 Ibid., p.8.113 Ibid., p.9.

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nossa “subjetividade”, entramos no encontro repletos de uma apro-priação não problematizada do discurso psi: um amálgama de con-ceitos psicológicos, psicanalíticos, psiquiátricos, que a tudo tenta justificar, mas que a nada responde quanto àquela simplicidade fundamental, estarmos face a face uns com os outros. Ele dita o que é “neurótico”, “patológico”, “obsessivo”, “satisfação”, “realização”, “inconsciente”, “liberdade”, “desejo”. Nesse discurso, atravessado pela exaltação subjetiva, “a demanda”, “o investimento”, “as necessi-dades” são as normas diretivas. Nem paramos para perceber que esses são termos hauridos da economia. Tratamo-nos como um assunto de ordem material, prática e literalmente econômica.

Para que o evento da relação encontre o seu fim, não basta-ria, para começar, a presença mútua? Ou mesmo a saudade, quan-do se sente a presença, mesmo na ausência? Pois parece que não. Queremos determinar as condições para que uma relação “acon-teça”, apresente contentamento, valha a pena. Queremos que o valor da relação seja posto em questão antes mesmo da relação, e, portanto, sobreposta à própria relação. Não basta que um se colo-que diante do outro. É preciso que o outro seja predeterminado por uma série de demandas, tal qual o controle de qualidade de um produto.

Dois sujeitos se desejam, eles se desejam? Ou desejam a si através do outro? O que eles querem? Haverá alguma possibilida-de para o desejo que não o “amor” a si? Quem pode saber fora da própria relação? Por que não deixar que a própria relação indique acerca de nós próprios? Por que isso se tornou quase da ordem da absoluta idealização?

Entre mil explicações válidas, pensamos em mais essa. Fica-mos encalacrados em nosso modo “pós-moderno” de viver, pre-sos a uma auto imagem que não permite que o outro se revele porque não nos revelamos diante dele. Somos um manancial de possibilidades de ser, sentir, desejar. No entanto, não nos coloca-mos por inteiro. Bem, devemos admitir que nunca estamos intei-

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ros, pois estamos sempre por nos constituir. Mas, no ritmo atual, não nos colocamos por inteiro tanto por uma questão ontológica como por um motivo que vem de pronto em nossa mente, qual seja, pela adoção de um novo imperativo categórico: há sempre mais que fazer. Recorremos às tarefas, que têm de ser cumpridas, sob pena de sentimento de fracasso, ineficácia, ficar para trás, fi-car sozinho. Pouco importa se essas tarefas são realmente signifi-cantes, o importante é se ocupar e preencher todo o tempo; ficar ligado, conectado, levar o celular, seja com quem estiver, estar com todos, todo tempo, ao mesmo tempo114, e, assim, não perma-necer em silêncio para a escuta do si-mesmo, nem dar um tempo para se relacionar no sentido de efetivamente se permitir estar com alguém, simplesmente com alguém, com um grupo de ami-gos, em família, vivenciando a relação, apenas.

Por que essa necessidade desesperada de fazer alguma coisa, sentir-se ativo, útil, eficaz, competente? Qual o vazio de sentido que precisa ser preenchido a qualquer preço?

Podemos, também, ocupar o tempo com marcar território sobre o campo do outro. Pretendemos retirar a sua autonomia: ele só tem “validade” enquanto corresponder às nossas necessida-des mais imediatas, e assim, quem sabe, consigamos manobrar para que ele preencha o vazio da existência que, a todo momento, ameaça tomar de assalto a consciência, e fazê-la perder o controle da angústia. Esse ocupar-se freneticamente permite um esvazia-mento de si próprio, uma identidade descomprometida com a forma de ser mais própria, dá pano para o estabelecimento de relações de conveniência, e para seguir a vida sem rumo de si-mesmo. Parece-nos que o existencialismo acredita que o ato de ser remete à angústia, à iminência do risco, ao desejo, à possibili-dade de negação da consciência. Socorre-nos o Professor Zuben.

114 Acrescente o ligar a TV, a web, os computadores, há muito com o que se ocupar...

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Ele se pergunta se ainda resta fôlego para que interroguemos acerca de nós mesmos, para nos importar com a questão do sen-tido da existência.

Engolfado no mundo da eficácia produtiva, dos interesses imediatos, do consumo desenfreado, da luta pela sobrevivên-cia (...), aturdido pelo gigantesco volume de conhecimentos acumulados, [o homem] não vê senão uma conspiração em eliminar a sua vontade de silêncio para poder encontrar-se consigo mesmo. O pensamento calculante do homem con-temporâneo não permite brechas que lhe propiciem uma vi-são, embora ofuscada e fugaz, de suas limitações trágicas.115

Perdendo de vista a constituição mais pessoal de uma sub-jetividade, perdemos também o foco do outro, a dimensão da intersubjetividade. Para encontrar alguém, não precisamos neces-sariamente enunciar “tenho que me encontrar primeiro”, não pre-cisamos tomar como via exclusiva bater na porta de alguém que elegemos portador de um suposto saber para autorizar a nossa existência. Inúmeras pessoas, antes de tomarem uma decisão, vão discutir as questões que envolvem o outro com terceiros, tomando decisões sem nenhuma participação do outro. Não precisamos ne-cessariamente nos encontrar primeiro, nem depois. Não há o que procurar, diríamos, sob a inspiração de Buber. Nunca nos encon-tramos por inteiro porque não somos uma pessoa acabada, nem o outro. O desejo subverte todo o projeto de encontrar uma identi-dade definitiva. Encontramo-nos em devir junto ao outro. O outro vem ao nosso encontro e nós ao dele. O outro devolve o nosso olhar para nós, convida-nos a isso, ao mesmo tempo, ele renova o nosso olhar porque ele não é reduzido a uma simples tela de pro-jeções do nosso passado, ainda que a relação com ele suscite mui-

115 Martin Buber. Cumplicidade e diálogo, p.142.

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tas projeções inconscientes (projetar o eu no outro) advindas de nossa história. Ele, também, não se encaixa completamente nos nossos projetos (a dimensão do desejo voltada para o futuro), ele igualmente é, simplesmente, presente. Essa presença de um ao ou-tro confere ao encontro o caráter originariamente simples do en-contro. Os fantasmas do passado e as expectativas do futuro estão presentes, todo o peso da vida que vivemos se coloca, mas não interdita a oportunidade de um rasgo na subjetividade, por mais tênue que seja, que dê guarnição para a descoberta daquela espe-cífica pessoa, tão específica quanto nós podemos ser para ela.

A simplicidade do encontro torna-o atual, quer dizer, dá pas-sagem para sentir a presença um do outro e descobrir quem és Tu. Deixar que o encontro revele algo desconhecido reflete em uma recriação de nosso próprio ser. Um ser que não é mais nosso de todo, nem permanece enclausurado no outro, um ser que é a própria vida jorrando através de todos os eventos, o olhar, o ges-to, a comunicação, o silêncio, o toque, o palpitar. Essa é a dimen-são mística de nosso cotidiano. Ela aponta o sentimento de infini-to no seio do finito, da falta e da fragilidade em meio ao desejo de transcendência. É risco. É doçura e conflito. É perder-se para que o sentido do eu e do outro tome o seu lugar na existência. Um lugar que não está marcado, apenas pressentido.

considerAções sobre o sentimento

Na exaltação amorosa, dois sentimentos serão por nós observa-dos de perto, sem querer esgotar o gigantesco repertório de pos-sibilidades de expressão do cosmo sentimental: o chamado senti-mento de dependência e o sentimento do estado de criatura. Deles, Buber distende o seu arco para a compreensão mais extensa do amor.

Pelo primeiro sentimento, nosso eu parece aderir ao outro de tal maneira que é como se entrássemos dentro de um labirin-

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to sem retorno, perdemo-nos “completamente” nele, donde a sensação, difusa ou eminente de “dependência”. Pelo segundo, somos atacados por um sentimento concomitante de deflação do eu e endeusamento do outro. Podemos chegar ao ponto de cul-minar na máxima não sou nada, você é tudo. Nos dois, o outro é posto como um deus, por vezes não menos do que fonte da feli-cidade e, consequentemente, da infelicidade. Quando não adqui-re tintas tão dramáticas, tais sentimentos sugerem a imagem da “alma gêmea”, em que “nós dois somos um”. A alma gêmea é um mito vivo, que para alguns remonta ao distante Platão, no relato das metades cortadas por Zeus que passam a procurar seu elo perdido. Remonta, em termos psicológicos, ao mito da busca do Paraíso perdido: o desejo de preencher a carência, diluir, ou, ao menos, sublimar a falta originária do ser humano. Mas não se trata tão-somente de preencher demandas do sujeito, como tam-bém do desejo de união e vínculo tão profundos e intensos que o eu parece ter uma morte anunciada: ele não se importa mais tan-to consigo próprio. Expliquemo-nos: ele pode se ver submetido a um tamanho arrebatamento que pode aceitar o sacrifício de uma imagem e de um modo de ser que idealizou e com o qual se iden-tificou para submeter-se a uma transformação profunda, donde sairá renascido.

Eis quando começa uma discussão no terreno da “religião”, segundo o sentido de uma experiência de religação do indivíduo a um fundamento que para ele tem sentido de valor superlativo. Nossa meditação não se atém à experiência religiosa. Ela pode ser estendida para direções da existência a perder de vista. Ela envol-ve a angulosa questão se o amor implica algum tipo de morte ou dissolução do eu. Pois bem, Buber vai remexer em certas formas de experimentar o sentimento, no âmbito da experiência religio-sa, ampliando o campo das possibilidades vivenciais da religião para além dela, sem que elas sejam diluídas em seu mistério.

Podemos começar?

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Quando pensamos a experiência religiosa, imediatamente nos ocorre a atribuição de uma ênfase toda especial à vivência, e, por extensão, ao sentimento. Observamos descrições do sagrado bastante frequentes, em que aparecem adjetivos carregados de emoção, dramaticidade e intensidade, tais como “angústia”, “ter-ror”, “fascinante”, “tremendo”, “majestoso”, “extraordinário”, “des-medido”, “extático”, “inebriante”, “amoroso”, “misericordioso”, que demonstra ou suscita compaixão etc.

Buber apresenta o seu entendimento acerca do sentimento na experiência religiosa. Ele procura nos fazer ver que, na esfera relacional, não cabe se admitir a preponderância deste ou da-quele sentimento. Como exemplo da experiência religiosa base-ada num determinada concepção de sentimento, ele se refere a Schleiermacher e a Rudolf Otto.

Para Rudolf Otto, como estudamos, o sagrado suscita um sentimento predominante, o sentimento do “estado de criatura”: “não sou nada, Tu és tudo”. A partir daí, toda uma série de formas de vivenciar o sagrado são desenvolvidas, ao longo do amplo campo de experiências que se inserem entre as polaridades do tremendo e do fascinante: o espanto ou estupor que deixa a todos boquiabertos, o poder incomensurável do majestas116, o mirum (é o absolutamente inesperado, o estranhamente diferente) que não se compara com nada que se inscreva na imanência117, o mistério tremendo que aterroriza, humilha a razão, escapa a todos as ten-tativas de conceituação, ao mesmo tempo em que irradia uma

116 Majestade, grandeza, equivale “a absoluta superioridade do poder”. O sagra-do, p.29.

117 Não resistimos deixar de degustar essa citação de Goethe acerca do “enorme” (que se confunde facilmente com o mirum), a qual nos brinda Otto: “Infeliz! Mal me posso restabelecer! / Quando algo de absolutamente inesperado nos surpreende / Quando os nossos olhares se apercebem de algo enorme, / O nosso espírito fica momentaneamente em suspenso: / Não temos nada a que compara isto.” Ibid., p.63.

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atração irresistível e incoercível... Tudo isso confere à imagem do sagrado um estranhamento arrebatador, designado como o “to-talmente outro”.

Friedrich Schleiermacher (1768-1834) define religião a par-tir do sentimento de dependência. Desde logo, convém sublinhar que tal sentimento não quer dizer uma impotência do ser huma-no frente ao divino. Ao contrário, observa Hans Küng, tal senti-mento acentua a liberdade humana em face de qualquer servilis-mo de ordem religiosa. O sentimento de dependência inclui a li-berdade, “a liberdade interior do homem justo, liberdade essa que constitui a fonte da eterna juventude e jovialidade”.118 É um senti-mento de conexão e sintonia entre nós e o infinito, sinônimo de universo. Há uma correlação íntima entre nós, seres finitos, e o universo infinito.

Numa de suas várias definições de religião, Schleiermacher comenta que a religião repousa toda a sua vida na natureza – na infinita natureza da totalidade, a um só tempo na singularidade de cada ente e na multiplicidade de tudo que compõe o universo; e o que vale para cada ente singular da natureza também é perti-nente ao ser humano. A religião se define essencialmente pelo sentimento e pela intuição do infinito-universo. O dito mais forte do filósofo, muito citado por diversos autores que examinam seu pensamento, estima que a “religião é a sensibilidade e o sabor do infinito”.119 Essa sensibilidade está diretamente estruturada a par-tir da articulação indissociável entre intuição e sentimento. Para Schleiermacher, não se pode dividir a intuição e o sentimento do infinito em dois mundos distintos, o da intuição enquanto per-cepção empírica, e o sentimento pelo infinito referido ao campo da metafísica. Cada intuição é única, o infinito é experimentado

118 Os grandes pensadores do cristianismo. Lisboa: Presença, 1999, p.161.119 On �eligion. �peeches to its Cultured Despisers. Cambridge University Press,

1996, p.23.

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por cada pessoa de forma absolutamente única, em nada nivelado à experiência de outra pessoa. O filósofo transmite com precisão um dos significados da experiência religiosa em seu caráter de singularidade: o universo se apresenta de forma particular para cada pessoa nas suas intuições e, daí, define-se a forma própria de religião pessoal, de tal modo que a intensidade dos sentimentos suscitados determina o grau da religiosidade em cada indivíduo.

Podemos estabelecer algumas aproximações entre o pensa-mento de Schleiermacher e o de Rudolf Otto acerca do fenômeno religioso.120 O sentimento de dependência nos dá a consciência plena de nossa finitude diante do universo, e a dimensão de nossa medida frente a tal imensidão infinita, incomensurável e para além dos esforços de racionalização moral e metafísica. O senti-mento de dependência, essa ligação intensa e “pré-reflexiva”121 com o todo, o infinito, faz-nos perceber que

quando o mundo do espírito se revela majestosamente em si mesmo para nós, quando nós temos auscultado sua ação, orientados por tal magnificente apreensão e por tal excelên-cia de leis, o que é mais natural do que ser permeado por uma profunda reverência face ao eterno e ao invisível? E, uma vez intuído o universo, e retornando a visão para nós

120 Segundo Karen Armstrong, Otto é um “distinguido discípulo” de Schleier-macher. Uma história de Deus, p.352. Não por isso, Otto deixa de manter uma discussão com o pensamento de Schleiermacher acerca da experiência religiosa.

121 Segundo o tradutor e editor Richard Crouter, na sua introdução à obra, que, a partir leitura da versão inglesa, traduzimos o título por �obre religião. Dis-curso aos seus cultos desprezadores, a obra estabelece a sua questão temática predominante em torno da primazia da experiência pré-reflexiva. “O abor-dagem de Schleiermacher acerca da verdade religiosa é vivencial, baseada no encontro pessoal com a verdade, na forma de uma intuição imediata e no sentimento.” Em obra citada, p.XXXII.

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mesmos, encarando-nos a partir de tal perspectiva, observe como, em comparação com o universo, nossa auto imagem desaparece em meio à [nossa] infinita pequenez, o que pode ser mais apropriado para os mortais do que uma pura humildade?122

Há, portanto, no sentimento de dependência, um sentimen-to básico de humildade reverente, de “amorosa modéstia”, de “passiva inocência”123, de “quieta submissão”124. Tal estado do ser humano perante o infinito poderia nos suscitar uma lembrança viva do “estado de criatura” vislumbrado por Otto como reação básica do ser humano perante o sagrado. O ser humano adquire contornos limitados quando descobre o sagrado e devolve o olhar para si mesmo. Outro ponto em comum entre os dois pensadores da religião é a apresentação de uma imagem do homem religioso que o considera basicamente inserido no campo da vivência. Para Otto e Schleiermacher, o sentimento compõe o fundamento ori-ginário. Em Schleiermacher, como tivemos oportunidade de ob-servar, o universo é intuído e captado pelo sentimento. Segundo Schleiermacher, a intuição do infinito é um campo próprio, autô-nomo, sempre permanece algo único, uma imediata percepção, nada mais do que isso, a não ser que comprometamos a essência da experiência religiosa e entremos na esfera do pensamento abs-

122 Ibid., p.45.123 “Religião em essência não é nem reflexão [ou seja, metafísica], nem ação [ou

seja, moral], mas intuição e sentimento. Ela é o desejo de intuir o universo, desejo devotado de auscultar suas manifestações e ações próprias, em tal am-plitude que se chegue a ser possuído e preenchido pela imediata influência do universo numa inocente passividade.” Ibid., p.22.

124 “E o que quer que seja, incluindo o ser humano, que possa ser expresso ou mantido no eterno fermento das formas individuais e dos seres, a religião deseja intuir e divinizar isso detalhadamente, numa quieta submissão.” Ibid., p.23.

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trato e da moral. Schleiermacher acredita que o campo da religião não se funda num antropocentrismo.

Metafísica e moral encaram a totalidade do universo somen-te do ponto de vista humano como o centro de todas as rela-ções, como a condição de todo o ser e de toda causa do vir a ser; [enquanto] religião quer vislumbrar o infinito, sua im-pressão em nós e suas manifestações.125

Nela, o homem igualmente permanece finito, mas a religião nos remete à infinita natureza do universo, ao individual e ao múltiplo, compondo uma totalidade. Da mesma forma que a lei-tura de Rudolf Otto põe a metafísica em questão, a segunda pre-leção dos Discursos estabelece uma crítica severa à metafísica:

Por que, por tanto tempo, a especulação nos deu decepções ao invés de um sistema, e palavras em lugar de efetivos pen-samentos? Por que a metafísica não foi mais do que um jogo vazio com fórmulas que sempre reapareciam mudadas, e para o qual nada poderia algum dia corresponder? Porque ela perdeu a religião, porque o sentimento do infinito não a anima, e porque o desejo por ele e a reverência a ele não le-vam os seus refinados e aéreos pensamentos a assumir uma consistência mais rigorosa para preservá-los contra a pode-rosa força da religião.126

Apontadas algumas analogias com o pensamento de Otto, vejamos, agora, certas diferenças que se fazem notar para com a forma de Otto abordar o sagrado, que delineiam a maneira própria de Schleiermacher entender o infinito. A consciência

125 Loc. cit.126 Ibid., p.24.

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da finitude humana pelo homem religioso não o impede de sentir-se profunda e intimamente ligado ao divino. Se, por um lado, a pessoa contempla o infinito, e, ao voltar para si mesma o olhar, sente-se em doce quietude, em humilde reverência, lembrando o “estado de criatura”, por outro lado, ela se sente conectada ao sagrado, para Schleiermacher, identificado com o infinito, numa amplitude mística, de tal forma que ela sente a dimensão do universo em si mesma, o que o filósofo se refere num texto carregado de imagens: o primeiro aroma com o qual o orvalho gentilmente acaricia as flores que despertam para um novo dia, o delicado beijo de uma moça inocente, a plenitude do enlaçamento nupcial, “nada como tal, mas exatamente em todas essas formas”!127 Há um contínuo entre o universo, a na-tureza e a dimensão humana: minha alma corre em direção ao infinito, ainda que isso possa ser fugaz, porém de uma intensi-dade incomensurável:

Eu o enlaço, não como uma sombra, mas toda a sua essência em si mesma. Eu me ponho no seio do mundo do infinito. Neste momento, sou sua alma, dessa forma eu sinto todos os seus poderes e sua infinita vida como minha própria exis-tência; neste momento, ele é meu corpo, eu penetro nos seus músculos e nos seus membros como ele sendo os meus pró-prios, e os seus nervos movimentam-se em sintonia com a minha própria sensibilidade e meu pressentimento.128

Segunda observação: a passiva inocência, a humildade reli-giosa que suscita o sentimento de dependência não devem ser confundidas com impotência, inatividade, fuga do mundo, bar-ganhas rituais. Igualmente, não deve ser associado a nada do tipo

127 Ibid., p.32.128 Loc. cit.

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“Eu devo primeiro dominar a mim mesmo e os sentimentos de devoção antes de eles se expressarem”. Pois serenidade e reflexão se perdem quando alguém se permite ser tomado pela ação do poder e da perturbação inerentes aos sentimentos de religião. Se-gundo Crouter, trata-se aqui de uma crítica às práticas sacrifi-ciais, ao quietismo místico. Para o filósofo essas são formas equi-vocadas de religião, meras “superstições.”

Se em Schleiermacher trabalhamos com a noção de religião fundada no sentimento e na intuição, que não se submete ao reino da razão e da moral (ainda que não exclua essas dimensões, a reli-gião é afirmada enfaticamente como um campo próprio da exis-tência), e permitindo suscitar um estranhamento – “Quem dera eu se pudesse expressar [o sentimento religioso] ou, ao menos, indi-cá-lo sem ter que profaná-lo!”129 –, não podemos admitir em Sch-leiermacher um “totalmente outro”, e, tampouco, um sentimento dirigido a uma realidade fora do indivíduo que se lança na experi-ência religiosa. Em Scheleirmacher, religião é uma experiência do todo – do singular e do múltiplo, transcendente sim, mas também imanente ao mundo (o universo, a natureza) e ao indivíduo. Ele é incisivo nesse ponto: uma divindade aquém do mundo e fora do mundo pode ser bom e necessário na metafísica, mas na religião se torna mitologia vazia. Hans Küng sintetiza com precisão a orien-tação do pensamento de Schleiermacher por nós estudada:

Pode, portanto, dizer-se que a religião é uma religião do co-ração, um deixar-se tocar, tomar, impregnar e mover no ín-timo e na totalidade do ser, pelo infinito, presente em tudo aquilo que é finito. A religião não é nem uma práxis, nem uma especulação, não é uma arte nem uma ciência, mas sim “o sentido e o gosto do infinito”. Esta relação vital com o eter-no, com o infinito, demonstra a existência no indivíduo de

129 Ibid., p.32.

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uma predisposição religiosa original, à espera de despertar. (...) No consciente religioso tocam-se os dois extremos; a in-dividualidade de cada um e o universo.130

Pois bem, é hora de promovermos a reentrada de Buber no cenário que estamos examinando: o sentimento na experiência religiosa, a partir de agora, segundo um aspecto relacional e dia-logal. Eis como Buber não aceita a ideia da predominância deste ou daquele sentimento como fundamentos da relação com o Tu Eterno, a que ele chama Deus.

Pretende-se ver, como elemento essencial na relação com Deus, um sentimento chamado “sentimento de dependên-cia” ou, mais claramente, em termos mais recentes, o senti-mento de criatura. Por mais correto que seja fazer realçar e definir este elemento, acentuando-o de um modo exclusivo, se desconhece o caráter da relação perfeita.131

Por que Buber rejeita as concepções que procuram fundar a religião em um determinado sentimento? Tentaremos responder, em primeiro lugar, negativamente. Não é porque ele discorde da importância do sentimento na experiência religiosa, muito me-nos nos parece que ele desdenha do “sentimento de dependência” e do “estado de criatura”. Buber, aqui, não parece interessado em questionar a finitude humana quando esta se volta para o divino e enxerga a si própria, a partir da perspectiva do todo: a humilde reverência, a qualidade de criatura, a quieta submissão.

Agora, a nossa resposta vem em termos afirmativos. Se quiser-mos fundamentar o sagrado em um sentimento específico, estare-mos empobrecendo o manancial de possibilidades de experimentá-

130 Os grandes pensadores do cristianismo, p.160.131 Eu e Tu, p.94.

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lo, e de constituir uma relação pessoal com ele. Buber parece querer nos fazer entender que os sentimentos são constituídos em cada re-lação. É a relação que determina fundamentalmente os sentimentos, mais exatamente, é o modo de relação que estabelece a modalidade do sentimento. Quando predomina uma constituição fixa de senti-mento na relação, descobrimos que se trata do modo Eu – Isso. Quando intencionamos o outro como um Isso, os sentimentos po-dem ser previstos, calculados, medidos, submetidos ao crivo expe-rimental da ciência e do pensamento conceitual. Ao contrário, no modo genuinamente relacional, cada sentimento é uma descoberta que nasce na relação, e se desenvolve nela e através dela.

É preciso encarar uma discussão ainda mais arrojada para a concepção dos sentimentos, que nos foi trazida de forma inusita-da por Buber. Um dos trechos em que encontramos maior difi-culdade de compreensão e interpretação é o que se segue, onde Buber fala do “sentimento” e do “amor”, estabelecendo um con-fronto entre as duas concepções.

Os sentimentos acompanham o fato metafísico e metapsíqui-co do amor, mas não o constituem: aliás estes sentimentos que o acompanham podem ser de várias qualidades. O sentimen-to de Jesus para com o possesso é diferente do sentimento para com o discípulo-amado; mas o amor é um. Os sentimen-tos, nós os possuímos, o amor acontece. Os sentimentos resi-dem no homem, mas o homem habita em seu amor. Isto não é simples metáfora, mas a realidade. O amor não está ligado ao Eu de tal modo que o Tu fosse considerado um conteúdo, um objeto: ele se realiza, entre o Eu e o Tu.132

Não “temos” amor como “temos” sentimentos, pois, “os sen-timentos nós os possuímos, o amor acontece”. “Possuímos” senti-

132 Ibid., p.16-7.

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mentos não necessariamente como uma atitude racional de controle e vigia frente à torrente de sentimentos que nos atraves-sam a cada segundo. “Possuímos” sentimentos na medida de nos-sa constituição psicológica. Ou seja, a “posse” dos sentimentos concerne ao que nos é legado pela nossa natureza psíquica. Nós possuímos uma constituição de sentimentos e de pulsões. Essa constituição por vezes se manifesta fora do controle racional, sobretudo quando invade, irrompe na consciência, povoa o imaginário, subverte valores convencionados, como podemos identificar em vários autores, com suas interpretações próprias: Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Freud, Jung.

“... o amor acontece.” Nesse momento, cabe a proposição da noção de amor para designar a especificidade de uma forma ori-ginária do encontro, a constituição da morada, do solo em co-mum, da ética133, enfim, de um espaço que não é, antes de mais nada, físico, e sim um espaço de convivência. Por isso, quanto ao modo de relação Eu e Tu, o ethos não se restringe ao campo dos sentimentos, ele se radica no diálogo, na parceria, na reciprocida-de entre os envolvidos na relação134. Cá entre nós, acreditamos que o amor envolve o sentimento. Mas é um sentimento que acompanha aquela pessoa que aponta a visada do outro para uma ética relacional. Possui, portanto, uma especificidade.

Parece que nos vemos lançados no mundo dos sentimentos assumindo-os, negando-os, recalcando-os, tentando fazê-los de-saparecer, tentando controlá-los, suportando-os, expressando-os. Ao mesmo tempo, o homem habita no amor. Isso significa que o reconhecimento do ethos constitui um modo de ser que se faz re-velar entre mim e o outro, segundo um modo dialogado. Tal

133 Ética deriva do grego ethos: a noção de casa, morada, abrigo.134 Nesse momento, analisamos o âmbito Eu e Tu. Importa considerar que o es-

paço de convívio pode ser alvo de sistemática problematização, como nos indica a leitura dos autores citados no parágrafo anterior.

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modo de ser é uma ética, ou seja, uma mútua ação, cujo sentido trata da relação com um Tu.

Buber vai explicitar esse amor como responsabilidade. Nela, estão implícitas as noções fundamentais para a consti-tuição do modo Eu e Tu, que dizem respeito à reciprocidade e à paridade, ou seja, a uma condição de igualdade, que nada tem a ver com nivelamento das diferenças, e sim com a aceita-ção do si-mesmo de cada um, aceitação integrada num sentido amplo de responsabilidade mútua. Aceitar o outro não signifi-ca cruzar os braços e acatar todo o tipo de ação. Se assim for, trata-se de simples submissão. Aceitar o outro no contexto re-lacional tem a ver com dialogação, interesse mútuo, cuidado, aceitação acolhedora, porém sem ser submissa, negligente e dissimulada, pelo contrário, uma aceitação do outro participa-tiva, que se expõe, que se expressa, e assim marca a diferença na identidade. Todos esses modos compõem o sentido de res-ponsabilidade.

Nada melhor do que as próprias palavras de Buber:

Amor é responsabilidade de um Eu para com um Tu: nisto consiste a igualdade daqueles que amam, igualdade que não pode consistir em um sentimento qualquer, igualdade que vai do menor ao maior, do mais feliz e seguro, daquele cuja vida está encerrada na vida de um ser amado, até aquele cru-cificado durante sua vida na cruz do mundo por ter podido e ousado algo inacreditável: amar os homens.135

O amor se revela entre o eu e o outro. Essa proposição forte marca o que significa Eu e Tu. Se Eu e Tu inclui relação, paridade, diálogo, assim como conflito, gangorra, encontro e delusão, esta-mos dispensados do pensamento dicotômico, do certo ou errado,

135 Eu e Tu, p.17.

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“bem” ou “mal”, “verdadeiro” ou “falso”, característico dos juízos morais.

O amor é uma força cósmica. Aquele que habita e contempla no amor, os homens se desligam do seu emaranhado confu-so próprio das coisas; bons e maus, sábios e tolos, belos e feios, uns após outros, tornam-se para ele atuais, tornam-se Tu, isto é, seres desprendidos, livre, únicos, ele os encontra cada um face a face.136

Como podemos esboçar uma compreensão acerca do que Buber pronuncia? Bem, examinemos, primeiramente, a forma com que nos apresentamos perante uma relação. Inserimo-nos numa relação com toda uma bagagem de condicionamentos da-dos na cultura, na constituição psíquica, no corpo e na sua rela-ção com o meio ambiente. Inserimo-nos numa relação com toda uma série de predisposições a partir da constituição da personalidade elaborada num meio familiar, social, cultural, histórico, o que nos configura como sujeitos. Do sujeito para a pessoa é uma questão de como nos lançamos no existir, de que forma damos sentido para a existência: tornar-se pessoa é emer-gir para a vida inundado de sentido, risco e navegação. Essa in-dividuação já nos torna uma pessoa singular. Não devemos dei-xar de considerar que, em meio aos diversos condicionamentos, a nossa condição de pessoa se encontra com outra condição de pessoa, pois não esqueçamos que a outra parte da relação, o ou-tro, da mesma forma que nós, aparece para a relação igualmente repleto de maneiras e manias próprias. Cada um de nós intro-duz na relação o seu mundo, formado pela história de vida, pe-las vivências, pelas expectativas de toda ordem, pelos hábitos, por aquilo que gosta e detesta, pelas definições de “certo” e “er-

136 Loc. cit.

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rado”, por aquilo que valoriza, pelo que acredita. Desse modo, tal processo já dá abertura para a possibilidade de que uma re-lação única, uma história singular se desenvolva em cada rela-ção, ainda que cada um de nós entre na relação projetado pro-fundamente no “seu jeito de ser”.

Por outro lado, se não conseguimos reconhecer no outro nada ou muito pouco da sua plena condição de pessoa, se o tratamos e desejamos apenas como um objeto, se os condicionamentos psi-cossociais se fazem impor de tal forma que, em vez de uma aber-tura ao modo relacional Eu e Tu, instaura-se a predominância do modo Eu – Isso, os sentimentos se condicionam não tanto pela relação, mas de uma forma reativa. Não entramos em uma intera-ção mediada pela palavra no modo do diálogo, nós reagimos ao outro. Tentamos aceitá-lo somente na medida da idealização que construímos, tentamos controlar o seu desejo, retaliamos ou per-manecemos no ressentimento, “eu o culpo, eu me culpo...” Assim, interdita-se, durante esse momento, a condição extática de uma relação, qual seja, o sair de si, e a condição mística, ou seja, a comu-nhão. Aqui, observamos a alternância do Eu e Tu e do Eu – Isso.

No jogo de Eu e Tu e Eu – Isso, Buber reconhece que o amor se defronta com o ódio, e, dirigindo-se a si mesmo, indaga: “Fa-las do amor como se fosse a única relação entre humanos; entre-tanto podes fazer a escolha de um exemplo, visto que existe tam-bém o ódio?”137

Na forma Eu e Tu, o amor constitui uma amplitude que ul-trapassa as especificidades da condição e dos condicionamentos de cada um, sem anulá-los, de tal forma que engloba os senti-mentos numa totalidade interativa. Nenhum sentimento é anula-do pela totalidade, mas os seres envolvidos habitam no amor, quer dizer, no estabelecimento de uma dialogação integradora, que permite a expressão da multiplicidade das modalidades do

137 Eu e Tu, p.18.

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sentimento que se apresentam, sem perder de vista o sentido da responsabilidade mútua. Quanto ao ódio, para Buber, não se pode odiar senão uma parte do ser. O ódio é uma das demarca-ções da fronteira da esfera do modo Eu – Isso com o âmbito do Eu e Tu. Ele não marca uma separação nítida entre uma forma e outra, mas se insere numa fronteira que de alguma forma evoca a relação, ainda que essa não se anuncie abertamente, ou que nos esquivemos dela. Com respeito ao ódio, Buber faz um perspicaz comentário: “Porém aquele que experimenta imediatamente o ódio está mais próximo da relação do que aquele que não sente nem amor e nem ódio.”138

A análise da dinâmica Eu e Tu / Eu – Isso enquanto consti-tuinte de nossa existência nos levou a imaginar que desejamos a relação dialogal e, ao mesmo tempo, desejamos nos manter à par-te. O “estou fora”, como se diz, pode sinalizar alguma forma de não aceitação do outro, e traz à luz uma velada sedução que todos sen-timos por sustentar um distanciamento. Buber esclarece que o mundo se revela duplo para nós, uma vez que a nossa atitude é dupla. Para projetar-se na dimensão Eu e Tu, “só deve ser quebra-do o encanto da separação”139, que anseia resguardar, e mesmo impor a si e aos outros a subjetividade solipsista, por assim dizer, ou seja, uma “autenticidade” desligada da dimensão de pessoa.

Quando consideramos a pessoa, entendemos o indivíduo em sua singularidade afirmativa, mas não isolado em si, e sim, como um ser de relações. O amor se manifesta em um processo relacional que implica a expressão de si mesmo, e, ao mesmo tempo, uma comunicação em que os parceiros não querem fun-damentalmente tomar posse um do outro, e sim, relacionar-se, trocar, interagir, aprender a conviver com a diferença e com a li-berdade do outro.

138 Ibid., p.18 e 19.139 Ibid., p.89.

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Essa liberdade pode causar o sentimento de estranhamento. Pois, nela, desfilam a vulnerabilidade e a ousadia de amar.

Sim, sem dúvida, na relação pura, tu te sentiste inteiramente dependente como nunca em alguma outra foste capaz de te sentir – e também inteiramente livre como nunca e em ne-nhum lugar: criatura e criador. O que possuías, então, não era mais um destes sentimentos limitados pelo outro, mas ambos sem reservas e juntos.140

Estamos “entregues”, entregues ao correr da relação, ao per-mitirmo-nos ser tocados. Perdemos de vista o eu, tão guardado a sete chaves, nas sete fortalezas. O permitir-se ser tocado acena para um lapso no controle de si próprio, da situação. A pessoa se perde na ida para o outro, e é nesse ponto que se acha, ela se acha perdida, e, ao mesmo tempo, encontrada. Encontrou um novo sentido, que não é só cognitivo, é sentido mesmo, ou seja, é senti-do pelo sentimento, o significado é dado fundamentalmente pelo enlace, pelo sentimento vivo no enlace.

Tu te sentiste inteiramente dependente, referência a Schleir-macher, quer isto dizer: tu te sentiste ligado, intimamente ligado, vinculado, numa identificação atrativa que produz na alma um sentimento de irresistível desejo que, por sua vez, a inclina na direção do Tu, que a faz sentir o significado e o sabor do infinito. Tu te sentistes, ao mesmo tempo, “criatura” (referência a Otto): a percepção de si diante da perspectiva do mistério do outro, do medo e da atração que inspira o outro, do fascinante e do tremen-do apresentado pelo outro. O ser humano se vê lançado ao en-contro do Eu com o Outro, do finito com o infinito, sentido profundo de liberdade, já anunciado por Kierkegaard. “O eu é formado de finito e de infinito. (...) O eu é liberdade. Mas a liber-

140 Ibid., p.95.

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dade é a dialética das duas categorias do possível e do necessário.”141 Às considerações de Kierkegaard sobre o eu, estendemos nossas letras para abarcar o enlace do Eu com o Tu.

Passeamos entre o possível e o necessário. Não somos oni-potentes, não podemos fazer o que bem nos aprouver. Estare-mos sempre nos deparando com a intercessão da “realidade” sobre os nossos sonhos, sobre as nossas fantasias, sobre o dese-jo. A “realidade” não diz respeito somente a uma avaliação de nossa situação frente a uma atribuição de “concretude” que da-mos a essa palavra que enchemos de sentido. É bem possível que o limite do nosso eu comece na interação com o outro. Mas, não é um limite fechado. Ao contrário. O outro dá um limite, “sem querer” ou por uma ação dele reconhecida por nós. Ao mesmo tempo, ele nos aponta para uma transcendência, na me-dida em que o nosso eu não se constitui por si mesmo e sozinho. Devemos ter em conta, ainda, que jamais poderemos abolir a nossa imaginação; ela nos remete ao infinito, a essa dimensão que nunca se conforma com o que “é”, cria ilusões, formas, mun-dos, e responde, de imediato, ao mais íntimo do desejo. É no cruzamento da necessidade com o sentido do infinito que se constela a liberdade, os limites, o sentido e a relação entre o ser humano e o outro.

Enfim, a exposição de uma ética dialógica de amor (que envolve diálogo, comunicação, reciprocidade) não se reduz a este ou aquele sentimento. Aliás, os sentimentos se expressam a partir da atitude que tomamos uns para com os outros. Na esfera do Eu e Tu, os sentimentos se expressam de forma mais inteira: é o face a face, que rompe com o “totalmente estranho” entre a pessoa e o outro, sem violar o selo do mistério de um e de outro.

141 O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores, vol. XXXI), Livro III – Personificações do Desespero, p.107).

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Não gostaríamos de continuar o nosso caminho sem passar por mais uma provocação que nos suscitou a leitura e o estudo de Martin Buber. Ela nos chegou através do Professor Zuben, que chama atenção para a forma mais precisa do sentido dialógico da existência e a inserção do amor nesse sentido. O professor nos traz uma referência em que Buber observa que não se deve nive-lar a dialogicidade ao amor.142 O dialógico, o diálogo entre os se-res humanos, não se reduz ao duo “altruísmo” versus “egoísmo”, nem aos juízos morais do tipo “o bem” versus “o mal”, nem ao par de opostos “amor” e “ódio”. Com relação ao amor, Buber não se intimida em revelar a sua opinião: “Eu não sei de ninguém, em tempo algum, que tivesse conseguido amar todos os homens que encontrou.” 143 Essa frase nos soa como uma admissão da não oni-potência do amor no que se refere ao seu contexto existente, ou seja, ao seu aspecto faltante, e, ao mesmo tempo, transcendente. E por que transcendente? Porque o amor dialógico vai se dar em um ir-em-direção-ao-outro, tocar o outro, alcançar o outro, per-manecer junto ao outro, algo que nunca se completa, nem é com-prometido com a perfeição, sim, com a condição humana na sua mais extrema borda.

Esse sair de si ao mesmo tempo integra o ser a ele próprio, pois é um ato e uma decisão que envolve a nossa totalidade. “Para podermos sair de nós mesmos em direção ao outro, é pre-ciso, sem dúvida, partirmos de nosso próprio interior, (...) é preci so estar em si mesmo.”144 Mas, por outro lado, o sujeito que se mantém unicamente consigo mesmo não realiza o encontro, permanecendo no modo do narcisismo (em sentido leigo), e, por extensão, da apropriação, da objetivação, da sujeição. “Mas por que meios poderia um homem transformar-se, tão essen-

142 Zuben. Martin Buber. Cumplicidade e diálogo, p.158.143 Do diálogo e do dialógico, p.55.144 Loc. cit.

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cialmente, de indivíduo em pessoa, senão pelas experiências austeras e ternas do diálogo, que lhe ensinam o conteúdo ilimi-tado do limite?”145

o encontro dA PessoA com o tu envolve A místicA

Queremos aprender um pouquinho sobre a mística. A mística é um encontro. Um tipo muito especial de encontro. Mística signi-fica união, “casamento”, fusão, entrelaçamento, envolve cumplici-dade, intimidade, familiaridade. Estávamos acostumados a um sentido de mística em que os seus participantes se dissolvem um no outro, e formam um só, um só corpo, um só espírito. Eu me torno outro, o outro vem ao meu encontro e me abraça, eu pene-tro nele e o deixo me invadir, deixo-me levar, e assim nos leva-mos, deixamo-nos arrastar como numa correnteza, queremos o infinito, queremos um querer junto, queremos um ser que nos unifica, que nos liga, que aponta a nossa própria transcendência.

Na mística, permitimo-nos perder um no outro. Nessa per-da, nós nos achamos. Sentimo-nos como se fôssemos um novo ser, ou antes, como se estivéssemos gerando um novo ser, algo que não me pertence, nem ao outro, é da alçada do devir, anun-ciando aquilo vem. “Onde estou eu?”, “quem sou eu?”, “para onde fui?”, são perguntas inócuas. Ninguém em particular mais im-porta, você ou eu, nem você, nem eu, os eus já se foram, viraram categorias do passado, ainda que o presente seja tão fugaz. O sentimento do eu é trocado pelo da dissolução da individualida-de no seio do que acolhe uma transcendência de nós mesmos, do que é trocado, compartilhado, do que vem ao encontro, que recebe mil denominações: paixão, amor, infinito, ilimitado, o Todo, o Tao, Deus.

145 Ibid., p.55-6.

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Na mística diretamente remetida ao infinito, o indivíduo quer ser um com o Todo. Quer como que entrar dentro dele, lá no âmago, penetrar no grande amplexo (abraço) do cosmo, tocá-lo e sentir toda a sacralidade em seu transbordamento. Atentos à lei-tura de Leonardo Boff, aprendemos que a mística é uma expe-riência imediata de Deus, ou simplesmente do Uno. Ela responde ao sofrer e à exasperação da experiência da disjunção (Deus-cria-ção; eu-mundo; uno-múltiplo).146

Da mística em seu sentido familiar para um mergulho da mística na estética. Não temos cerimônia em desenrolar o fio do pensamento sobre a mística em várias instâncias. Chegamos à obra de arte, onde nos demoramos não apenas diante da contem-plação da obra, mas da relação com a obra. Há um confronto ar-tista-obra. Não cabe apenas ao ser humano a criação estética. Não apenas ele desliza para a forma, mas, igualmente, uma forma se defronta com ele, ela anseia tornar-se uma obra por meio dele. “Ela não é um produto de seu espírito, mas uma aparição que se apresenta a ele, exigindo dele um poder eficaz.” Por que Buber faz questão de afirmar a convicção de que a obra não é “do artista”, não é um produto de seu espírito?147 Por que não trata Buber da subjetividade como fundamento da criação artística? Ele preten-de ressaltar a interação artista-obra, pretende destacar tanto o fundo como a figura, artista e obra elevados ao mesmo plano, sem perderem suas marcas distintivas.

A obra se oferta, mas, ao mesmo tempo, entrega um risco. Toda pincelada, todo o embate com a matéria, todo apertar o dis-parador da máquina fotográfica, todo ajuste das lentes, todo ris-car o papel, todo toque no instrumento, todo escorregar dos de-

146 Leonardo Boff. “Mestre Eckhart: A mística da disponibilidade e da liberta-ção”. In Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.16.

147 Eu e Tu, p.11.

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dos ao longo da obra, tudo isso envolve risco, pois não pode ser produzido senão pelo ser em sua totalidade. Então, tudo que ain-da há pouco compunha um somatório de partes, mantinha-se preso à determinada perspectiva, deverá ser ultrapassado. As par-tes não poderão penetrar na obra, “assim exige a exclusividade do face a face”. Quem se entrega à obra sob o prisma do Tu, “não deve ocultar nada de si, pois a obra não tolera, [assim] como a árvore ou o homem, que eu descanse, entrando no mundo do Isso. É ela que domina; se eu não a servir corretamente, ela se desestrutura ou me desestrutura”.148 Eu arremesso um laço e me embaraço numa autêntica relação com ela. Sublinhemos as pala-vras que dão cor a uma autêntica relação: a obra atua sobre mim, assim como eu atuo sobre ela.

Nem o ato criador escapa de se molhar, escapa ao mergu-lho no Tu. Produzir ao largo da relação é não só apropriar-se artificialmente, como aniquilar o próprio sentido da arte. En-quanto “aquele que contempla [a obra] com receptividade, ela pode amiú de tornar-se presente em pessoa”.149

Buber faz chegar a nós uma noção de mística que, a nosso ver, não supera as percepções anteriores, não as anula, pelo con-trário, enriquece-nos para quantas e quantas possibilidades de apresentar a mística. É uma mística que aceita uma união em que seus partícipes não perdem a identidade, afirmam a mística justa-mente na diferença. Leonardo Boff reafirma, via mística cristã, essa ideia de uma unidade que não dispensa a multiplicidade.150 Por isso mesmo, cogita Boff, se a unidade é fruto de uma busca radical, ela eclode como termo de um processo extremamente “oneroso”, isto é, que revolve a existência. O Eu e o Outro se man-têm como instâncias que dão fundamento à própria união. Não

148 Local citado.149 Ibid., p.12.150 “Mestre Eckhart: A mística da disponibilidade e da libertação”, p.16.

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se mantêm estáticos, sem se mobilizarem, afetarem-se, e se trans-formarem mutuamente. Mas, por outro lado, eles não desapare-cem no anelo, no desejo ardente de vínculo. Eles não se dissolvem como gotas em um suposto oceano consolador da religião; ao re-vés, são levados à questão-cerne da identidade como unidade múltipla: a mística responde ao problema da separação não com uma solução conciliadora imediata, mas apresentando o proble-ma complexo de como atravessar o abismo da diferença, sem perder-se por completo, “como chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus? Eis a questão essencial da mística”151 que leva em conta a alteridade.

Martin Buber nos convida a conhecê-la.

Não se trata de algo como a renúncia do Eu, como o misticis-mo supõe geralmente; o Eu sendo indispensável a cada rela-ção, o é também para a relação mais elevada, a qual só pode acontecer entre Eu e Tu; não se trata da renúncia do Eu, mas do falso instinto da autoafirmação que impele o homem a fu-gir do mundo incerto, inconsistente, passageiro e confuso e perigoso da relação, em direção ao ter das coisas.152

Dispor-se à relação face a face com um sentido de alteridade como Tu não quer dizer, nem por um lado, apossar-se do outro com um ávido desejo compulsivo de controle da existência e da natureza (pois a presença do outro em sua possibilidade plena não se deixa possuir), e, muito menos, admite que alguém se dei-xe perder nela, deixe de ser humano para aderir irrefletidamente a algo que tudo “é”, menos um Tu.

Reentrando no terreno da experiência religiosa, Buber acen-tua que, embora Deus nos envolva e habite em nós, jamais o pos-

151 Boff, Loc. cit.152 Eu e Tu, p.90-1.

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suímos em nós.153 Tocamos aqui no cerne do modo relacional da experiência religiosa. É como se disséssemos (usaremos uma di-vindade conhecida para tornar mais fácil a nossa comunicação): “Eu não sou igual a Deus”, mesmo nas concepções em que se ad-mite que a centelha divina habita no humano, e, ao mesmo tem-po, “Deus não é totalmente outro em relação a mim”. Diante do mistério da identidade e da alteridade entre o sagrado e os seres, Leonardo Boff elabora a seguinte consideração:

Tudo não é Deus. (...) Deus e mundo são diferentes. Um não é o outro. Mas não estão separados ou fechados. Estão aber-tos um ao outro. Encontram-se sempre mutuamente impli-cados. Se são diferentes é para poderem se comunicar e esta-rem unidos pela comunhão e mútua presença.154

Para Buber, eis a atualidade: eu participo da relação e me in-siro numa interação sem a avidez de querer a posse do outro, pois não se trata de apropriação, e sim, de coparticipação. Onde não há participação, não há atualidade. Onde há apropriação, da mes-ma forma, não há atualidade.

Entre o Eu e o Tu não há fim, avidez ou antecipação. O que isso significa no campo do sagrado? Isso significa dizer: não há uma posse mútua. Posse mútua implica duas crenças básicas: o sujeito deseja ter “Deus” como um fim para realização dos seus desejos, e “Deus”, por sua vez, tem o crente como um bom “servo”, caso ele se mostre digno de comprometer-se e seguir tais e tais mandamentos, prescrições, apenas reproduzindo um sentido es-tabelecido de antemão, sem que ele se sinta envolvido com ele, ou seja, sem que o sentido se projete para o interior de sua existência.

153 Ibid., p.121. Buber ainda comenta: “Infeliz o possesso que crê possuir Deus!”

154 Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, p.235.

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Projetando-se na existência, o sentido não se torna um forasteiro, alheio à existência.

Quando isso acontece, desmancha-se a relação interativa para cair numa relação por obrigação, por hábito, por tentativa desesperada de salvação do sofrimento e da angústia, por culpa, enfim, para inúmeros fins que não a própria ligação mística. Foi o caso do senhor Paul Jung, no parecer de seu filho, Carl Gustav Jung. Este observa que seu pai começara brilhantemente uma carreira de pastor. Quando estudante, mergulhou entusiastica-mente no estudo de línguas orientais, fez sua tese sobre uma ver-são árabe do Cântico dos Cânticos. Mas após o arroubo de sua juventude, a sua libido como que se apagou em uma existência sem muito sentido. Estava sempre voltado para fora, esquecendo-se por completo de seu mundo interior. A vida interior fora esva-ziada de energia e significado, enquanto a vida conjugal o decep-cionara. “Consequentemente, estava quase sempre de mau humor e sofria de irritação crônica. (...) Como é fácil compreender, sua fé entrou em crise, por causa dessas dificuldades.” Jung não tinha afinidade intelectual com seu pai, mas admirava a sua dedicação, bondade e ternura. Não se conformava com a forma, digamos, burocrática com que o pai administrava a sua religiosidade: acha-va que ele repetia impessoalmente os dogmas sem questionar ou senti-los de fato interiormente.

Meu pai tomara por regra de conduta os mandamentos da Bíblia, acreditando em Deus como a Bíblia exige e como seus pais o haviam ensinado. (...) Foi nesse momento [na juventude de Jung] que comecei a sentir dúvidas profundas em relação a tudo que meu pai dizia. Quando ouvia seus sermões, pensava em minha própria experiência. Suas pa-lavras eram insípidas e vazias, tal como as de uma história contada por alguém que nela não crê ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas, não sabia como.

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Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência ou me imiscuísse em suas preocupa-ções pessoais.155

Jung se recorda que gostava quando um tio o convidava para almoçar. Lá ele se encontrava com familiares e pessoas da comu-nidade, que promoviam um ambiente de discussão e estudos de teologia e religião, que muito excitavam o jovem Jung. Ele tentava compartilhar esse ambiente com o seu pai, mas sempre se depa-rava com uma grande impaciência, na época para Jung incom-preensível, e com uma recusa ansiosa.

Só alguns anos mais tarde compreendi que o meu pobre pai evitava pensar, pois sentia dúvidas profundas e dilacerantes. Fugia de si mesmo, insistindo na necessidade de uma fé cega que esperava atingir mediante um esforço desesperado e uma contração de todo o seu ser. E isto o fechava ao influxo da graça.156

O modo relacional da experiência do sagrado não se justifi-ca, em primeiro lugar, por um sentido de salvação da alma, de purgação do pecado, de passaporte para o céu, de garantia de um comportamento moral (ordenador do “caos” das paixões e dese-jos). Ele é um encontro: o seu significado sempre estará em aber-to. Se coloco antecipadamente uma finalidade, denoto uma in-tenção que se põe fora da relação, não permitindo que a relação revele-me a sua própria “finalidade”. A antecipação do que pode se suceder na relação corresponde ao cálculo: na antecipação, quero saber de pronto as minhas possibilidades, as do outro, as

155 Memória, sonhos, reflex�es. 14a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.48-50.

156 Ibid., p.74.

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do “relacionamento”. A fé se contrapõe ao cálculo, pois, como ob-serva Kierkegaard, ela remete ao absurdo, ou seja, a todos os pos-síveis a um só tempo, isto é, tudo pode acontecer.157

Buber gosta de afirmar que a relação com um Tu é imediata. Nesse âmbito, todos os meios são abolidos; então, o encontro pode acontecer. Isso significa dizer que dispensamos a vontade de controlar avidamente o Tu, e que podemos abrir mão da voraci-dade de decifrar o sagrado em fórmulas e conceitos acabados, de domesticá-lo em rituais e preces na tentativa de conter o fluxo torrencial do destino, de impor a todos e a nós valores morais sem experimentar a afirmação da existência pulsando em nossa própria vida, ou, ainda, requer abrir mão de nos convencer a ado-tar as prescrições dos “mestres” indicadores do caminho, sem a mínima ideia do que significa caminhar com os próprios pés com o sagrado, quer dizer, refutar entorpecer a consciência e colocar-se sob a sua tutela de uma doutrina prescritiva.

A autoridade em religião quer dizer alguém, ou uma institui-ção, ou, ainda, o seu representante, em quem depositamos lealda-de e confiança na palavra, na doutrina, na interpretação dos sím-bolos, na condução dos ritos. Essa entrega na fé deve ser resoluta, mas não deve subtrair a responsabilidade de se deixar disponível para o encontro com o Tu. É uma atitude que envolve a decisão, intransferível, em que pesa a autoridade da nossa decisão para a conversão ao processo dialógico. Buber aponta essa decisão nos seguintes termos:

Não temos aqui de modo algum em mente que o homem deva, sozinho e desaconselhado, buscar a resposta no seu próprio seio... Mas a orientação não deve substituir a deci-são; nenhuma substituição é aceita. Aquele que tem um mestre pode entregar-“se” a ele, pode entregar-lhe sua pes-

157 Temor e tremor.

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soa física, mas não sua responsabilidade. Para esta, ele preci-sa empreender o caminho ele mesmo... 158

A mística não se restringe à experiência religiosa. Um de seus braços alcança a dinâmica relacional inter-humana. Nela, aparecem novamente algumas questões de frente, tais como: de que modo fica o eu diante da relação com o outro?

A mística, do ponto de vista inspirado por Buber não é sim-ples fusão, em que dois se dissolvem em um. A mística é encon-tro. Então, se nessa mística não se trata da renúncia do eu, como é possível uma mística que não admita qualquer tipo de dissolu-ção do eu em um sentido de identidade que vincula o Eu ao Tu?

Comecemos a nossa abordagem escavando de certa forma como visamos o outro. Ela não é uma regra, mas pode ser bem mais frequente do que gostaríamos de admitir.

Na procura do outro, não raro, queremos que ele seja como nós. Projetamos o nosso eu sobre ele. Seu desejo desaparece no meio da bruma de nossa subjetividade. Por vezes, em desespero, chame-se isso de “carência” ou “neurose”, queremos descarregar nossa subjetividade sobre o outro, agimos como náufragos, entre-tidos em um mar de divagações auto referidas. Pouco resta para o outro do que se encaixar em algum esquema. Ele pode receber mil nomes, até Deus, mas permanece amarrado a uma categoria do existir previamente estabelecida pelo nosso mundo próprio. E lá permanece até que seja chamado por um projeto diferente. Esse projeto é, ao mesmo tempo, um ideal e uma ação. Quando conse-guimos nos dispor à relação num movimento mais efetivo, po-demos descobrir a existência do outro, e enunciar “Ele existe na medida em que eu existo”, uma medida recíproca: “Eu existo na medida em que ele existe e me relaciono com ele”.

O “Eu existo” está cheio de desejos, quase puro desejar. O ser

158 A questão que se coloca ao Indivíduo. Em Do diálogo e do dialógico, p.10.

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humano entra em uma relação sem querer perder nenhum peda-ço. O modo “Eu sou assim...” se antepõe à abertura para a existên-cia. Isso não faz desaparecer a condição humana de existente. Como fato psicológico, ele é presa constante de uma subjetivida-de arraigada desde vastas paisagens em remotas memórias. Como existente, no entanto, ele não está condenado a ficar sitiado den-tro de si mesmo. Assim lemos a pronunciação de Buber. Atentos àquele resto de ser humano que fica fora dos livros e artigos, não é encontrado, porque ainda não foi escrito. Não foi escrito porque existe concretamente, para fora de toda tentativa de dizer anteci-padamente o que ele é.

A relação com o Tu é imediata. Entre o Eu e o Tu não se inter-põe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, e nenhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre Eu e o Tu não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação; e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realida-de. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro.159

Quantas coisas são colocadas entre mim e Tu. São comple-xos psicológicos, expectativas, condicionamentos sociais, valores, moral. Eles não são meros entulhos descartáveis. Fazem parte do pacote que nos constitui. Como pode ser possível conceber que se retire o mundo de um e o mundo de outro? Como é possível se conceber uma relação pura, um “daqui para a frente”, radical? Todo um liame de experiências acumuladas espelhadas no cam-po comum compõe uma relação. Mas existe para o ser humano uma dimensão de transcendência. Ainda com tudo isso, nossos fardos que carregamos das experiências do passado, nossa “per-

159 Eu e Tu, p.13.

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sonalidade” cristalizada, nossa afirmação do “eu sou assim”, te-mos a possibilidade de transcendência, de girar ao contrário, de inverter e subverter a norma que estabelecemos para nós. Isso não quer dizer saltar para fora de nossa subjetividade. Isso quer dizer que é possível uma passagem do sujeito para a pessoa.

A noção de pessoa acredita que o ser humano não está defi-nido de forma absoluta e fechado ao devir por sua constituição, seja ela psicológica, biológica, ou social, como quer, por vezes, o reino dos conceitos quando assume o modo dogmático de pen-sar. Na história de vida de uma pessoa se insere a repetição, como também se apresenta a possibilidade da irrupção do inusitado. Ao ser humano coloca-se a experiência da fissura consigo pró-prio, da negação de seu modo habitual de ser, e a irrupção do que ele não está esperando, provavelmente não se preparou para isso, pois de alguma forma escapa ao controle e ao hábito, ao seu “dog-matismo” para se justificar. Para muitos, isso remete a uma an-gústia, pois os referenciais estão se tornando pálidos. Convida-mos à palavra o saudoso mestre Gerd Bornheim:

O importante a observar em experiências como a da náusea ou da angústia é precisamente esta perda de sentido do real, que faz com que o próprio homem sofra como que uma di-minuição, destruindo a tese geral da existência dogmática. O sentido de familiaridade é substituído pela experiência da separação, da ruptura.160

Aparece para a pessoa a possibilidade de ruptura com a re-presentação construída de si próprio. Essa ruptura pode levar a um ceticismo que descambe para um isolamento e um ensimes-mar-se. Mas ela pode, por outro lado, abrir a percepção para uma renovada imagem de si, assim como, por extensão, a possibilidade

160 Introdução ao filosofar. 9a ed. São Paulo: Globo, 1998, p.91

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de uma renovação no olhar dirigido ao outro, se a pessoa se dispu-ser a aceitar a ruptura como um arejamento em seu próprio ser.

No modo Eu – Isso estamos fadados à repetição, aos esque-mas sociais, aos modos de ser estratificados e cristalizados ao lon-go do tempo. Ao abrir-se a janela da experiência do Eu e Tu, ocor-re uma experiência de disrupção. Esse modo abre a chance de uma renovação na imagem do outro e de si próprio. Os modos Isso e Tu se interpenetram e se confrontam. Não somos seres sim-ples do estilo “isso ou aquilo”. Não se trata de mera dicotomia, de categorias metafísicas puras, mas, sim, de modos de ser que esca-lam o ser humano para a existência, a existência malograda, a existência como poesia, a existência que está aquém e além da palavra pronunciada.

O modo de relação Eu e Tu é fugaz, é quase um lampejo, é tão rápido como um êxtase. Porém, ele não é uma fumaça que se perde em meio ao emaranhado das subjetividades adquiridas. Ele é o que permite a descoberta do outro para além de tudo o que foi demarcado para ele “ser”, por isso, nenhum jogo de conceitos, ne-nhum esquema pode dar conta do Eu e Tu.

O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coi-sas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu Tu, endereço-lhe a palavra-princípio [Eu e Tu]. Ele não é um simples Ele ou Ela limitado por outros Eles ou Elas, um pon-to inscrito na rede do universo de espaço e tempo.

Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienci-ável, descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é Tu, sem limites, sem costuras, preenchendo todo o ho-rizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz.161

161. Eu e Tu, p.9.

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Nenhuma teoria psicológica pode esgotar as significações em torno da enunciação Eu e Tu, nem mesmo a existencialista. Tudo que ela tenta fazer é descrever o esboço de uma fenomenologia, o que já é uma empreitada digna de ralar os joelhos. Não estamos condenados a ser o que “somos”. Não estamos condenados à li-berdade, nem a ser o que somos. Nem isso, nem aquilo. A própria relação, a postura das pessoas na relação pode dar a possibilida-de da acomodação e da adaptação, como, também, a possibili-dade da abertura para a criação de si com o outro. Uma criação que não parte do nada, uma criação que é uma recriação, ela se inventa de novo, na roda dos dias, ao longo da seta do tempo.

Para isso, “basta” que as pessoas estejam dispostas à desco-berta mútua. E parece que esse “basta” é o mais difícil. Porque, muitas vezes, estar com o outro, num frente a frente, o olhar, a presença, o toque, a voz, o silêncio não bastam. Quer-se mais, sempre mais. Não se quer a transcendência de si. Quer-se a posse, a afirmativa dos modos, dos medos, dos conceitos fechados do que “eu sou” e do que “você é” ou “deve ser”. Queremos que o outro seja aquilo que ele não é, e não seja aquilo que “é”. Quere-mos que o outro deseje o nosso desejo, corresponda a nossa fan-tasia, seja lambido pelo nosso imaginário. Queremos incorporar o outro ao nosso modo de ver, de ser. O outro deve ser observado, deve ser estudado para que não possa surpreender.

De um modo diverso, entre Eu e Tu não há fim algum, avidez ou antecipação. Quem aguenta ficar sem controle, sem o controle remoto de mim e do outro? Quem aguenta se derreter perante o outro, deixá-lo vir, ou até, convidá-lo? Estamos falando de um convite em abertura, não daqueles convites com lugar marcado, no estilo “daqui você não passa”. Percebemos no atendimento clí-nico, conversando com as pessoas, uma grande ansiedade pela posse do controle. Enquanto um não decifra o outro, mantém-se uma inquietação insuportável. Enquanto não se encaixa o ser hu-mano numa teoria, seja filosófica, psicológica, sociológica, ele

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será vasculhado, interrogado, colocado sob suspeita em tudo o que fala e imagina. O que não dizer do enquadramento do outro numa representação psíquica? Enquanto ela não se formata, fica-se com a sensação de estar suspenso no ar.

A mística do encontro implica precisamente a suspensão dos conceitos, porque eles trabalham até os limites de um campo de conhecimento estritamente dentro da sua lógica para delimitar o ser humano.162 Não advogamos a sua supressão, mas a sua suspen-são. Significa não torná-los absolutos, parâmetros únicos de com-preensão segundo uma lógica exclusiva. Tudo que não se encaixe nos moldes conceituais é considerado de “uma outra ordem”. Co-locar sob suspensão é aceitar a probabilidade de ranhuras. O ou-tro pode surpreender, assim como podemos surpreender. O pró-prio desejo é passível de se transformar quando passa “do sonho para a realidade”, nas palavras de Buber, do papel que cada um desempenha para a relação cara a cara, para a relação que escon-de, que oculta, mas também revela, desmascara. O desejo se trans-forma ao longo da concretude da relação. Sonhos se desfazem como impérios de açúcar, mas outros sonhos podem se constelar, e tomar o seu lugar. Enquanto dentro de nosso canto, entre quatro paredes, o outro é uma fantasia, uma fantasia incompleta, ele não denuncia a falta porque a preenchemos magicamente. Ele vem à vida no instante decisivo do encontro: aqui, ele tem toda a inten-sidade da falta. Porque ele enche e esvazia o nosso sonho. Porque ele é rebelde à nossa fantasia. Ele se rebela, mesmo que não queira se rebelar, mesmo que não queiramos aceitar o outro que ele é.

Por outro lado, cada um pode entrar na relação na base do “eu me basto”. Eu não quero contar com o outro, não pelo respei-to e amor por ele, mas pela indiferença, pelo esfriamento, pelo

162 “Pois, nada é mais democrático do que a lógica: ela não dá atenção à pessoa, e não faz distinção entre narizes curvos e retos.” Ironia de Nietzsche em A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, §348, p.243.

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“desgaste”. Dia a dia, cada um com o seu mundo, permanece en-castelado no seu jeito de ser. Cria-se uma solidão a dois, uma distância, um abismo. No fim, dois estranhos, duas sombras vi-vem, mas não convivem, suportam-se, apoiam as suas “carências”, inseguranças e “demandas”. Eventualmente, falam de si, mas não falam um com o outro, não se interessam de fato um pelo outro. Um fala e o outro finge escutar, quando seu pensamento mora longe. Um fala e outro fala, mas nenhum se escuta, trata-se de um solilóquio, não de um diálogo. Estão tão distantes que não perce-bem mais o rosto do outro, senão na ordem da exterioridade.

Entre nós e outro existe uma diferença. Duas personalidades entram em interação. São duas histórias diante da perspectiva de abrir uma cumplicidade de emoções e desejos. Elas esperam abrir concomitantemente uma estrada em comum. No meio do cami-nho percebem que são diferentes. O familiar não tarda a revelar o que há de mais estranho. Nesse momento, sente-se como se fosse aberto um fosso entre um e outro. Esse fosso é a experiência do abismo. Entre nós e o outro, seja ele uma pessoa, um grupo social, a natureza etc., abre-se um abismo, a cada passo que damos na in-terseção de nossas vidas. O abismo é o mistério que permeia nós e o outro, é o que fascina e é tremendo, o que parece, por vezes até um totalmente outro, perante o qual nosso corpo e nossa consciên-cia querem recuar ou mesmo recusar. Percorrer a distância que separa a pessoa do outro é atravessar a ponte sobre um abismo.

No raio da mística do igual, eu não vejo a diferença, e caio refém do abismo. Quanto mais eu o nego, mais ele me traga. Es-tabelecer pontes entre mim e outro implica o reconhecimento das singularidades não fechadas, mas abertas e dispostas ao diálogo. Nesse ponto, ressurge a aparição da mística. Há uma evocação para o sair de si mútuo. Em contrapartida, na esfera do indivi-dualismo, Pedrinho Guareschi indica que cada um se posta como o centro de tudo, e cada um é quem se acha no lugar de decidir a última palavra, de decidir o que é justo e de tomar as decisões, “o

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outro não interessa, ou ao menos, está em segundo plano, subor-dinado. (...) Eu o explico, eu o domino, eu o exploro. E mais: sou eu que decido quando há dominação, quando há compreensão, quando há exploração”.163

A palavra, o olhar, a voz, o toque podem unir ou separar, destruir ou criar. Depende de como são enviados. Todas essas instâncias não são meios, são a própria relação em seu processo de devir. Para se chegar ao outro é preciso atravessar o abismo, que separa, mas também que liga, porque o ser humano não tem como escapar do mistério do ser, o que, nos termos sartreanos, talvez tenha a ver com a ideia de que o ser humano é atravessado pelo Nada. A sedução pelo distanciamento e pela exclusão mostra um posicionamento que não faz mais do que aumentar o abismo. No futuro, não muito distante, forma-se um enorme campo para a desilusão. Descobrir a alteridade do outro é atravessar o abismo, penetrando nele, criando uma ponte imaginária que nunca será acabada de todo, pois a existência é movimento, contradição, contração e ligação.

sobre A noção de comunidAde

A ideia de um vínculo do Tu com o mundo se realiza tanto na esfera da pessoa como da comunidade. A pessoa diz respeito ao caráter de uma radical singularidade: trata do que é vivenciado por cada um, por cada relação, a cada vez, a cada lugar. Ao mes-mo tempo, a pessoa significa a abertura ao outro e ao mundo da relação. A pessoa caracteriza o ser humano como uma trama de relações. Donde a pessoa apontar para o sentido de comunidade.

Há uma dimensão da experiência humana em que ela se apresenta como uma experiência compartilhada. Os ritos, os mi-

163 “Alteridade e relação: uma perspectiva crítica”. Em Arruda, Ângela. �epresen-tando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998, p.159-60.

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tos, os símbolos, o êxtase, as situações que se apresentam no cor-rer dos dias são experimentados em comunhão de pensamentos, sentimentos, preces, ideais, valores. O indivíduo sai de si para o encontro com o Tu, desta feita sob a forma de comunidade, para confraternizar, solidarizar-se, comunicar-se com a comunidade. Ele participa de seus problemas, de seus anseios, temores, fracas-sos e superações, suas imagens e formas de compreender e lidar com o mundo. Há um contínuo entre a existência individual e a existência coletiva. Muitos problemas, dúvidas, inquietações do indivíduo são também os da sua comunidade. Através da comu-nidade, o indivíduo tem a oportunidade de se ver e se sentir inse-rido num todo maior, de constatar que sua vida não se reduz a ele, que o outro coletivo, ou seja, que a comunidade também apresen-ta, tal como ele, angústias, sonhos, necessidades, contradições, algumas bastante semelhantes às dele.

O sentido de comunidade apresentado pode parecer, para muita gente, uma realização idealizada e fantasiosa. Não seria mais uma união “histérica” entre os indivíduos, bem ao estilo da-quele espírito típico do final dos anos 1960: “Tudo o que você precisa é paz e amor”? O atual Dalai Lama mostra-se sobremodo lúcido a respeito da não idealização de comunidade a ponto de afastar o seu sentido da realidade humana. A leitura de sua obra nos permitiu admitir que o sentido de comunidade não é dado pura e simplesmente pela tradição, pelo isolamento de uma cul-tura, pelo modo de vida da aldeia, da família, de um grupo social. O Dalai Lama descreve o ambiente de uma região do norte da Índia, em Spiti, onde as pessoas não trancam as suas casas quan-do se ausentam delas. Elas esperam que quem chegar e encontrar a casa vazia entre e faça uma refeição enquanto aguarda a volta da família que lá mora. A seguir, ele tece um comentário:

É preciso cuidado, entretanto, para não idealizarmos as ve-lhas maneiras de viver. O alto nível de cooperação que en-

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contramos em comunidades atrasadas pode estar baseado mais em necessidade do que em boa vontade. Em geral, a cooperação aí é vista como uma alternativa a maiores priva-ções. E o contentamento que observamos pode na verdade ter mais a ver com ignorância do que com outra coisa. Essas pessoas talvez não sejam capazes de perceber ou imaginar que seja possível existir outra maneira de viver.164

Dalai Lama nos convence de que enfrentamos um desafio: encontrar meios de desfrutar de um certo grau de harmonia e tranquilidade encontrados em algumas comunidades tradicio-nais, que parecem aceitar a inclusão, a cooperação, a integração das pessoas entre si e com o meio ambiente, sem dar as costas ao andamento do mundo contemporâneo, com suas mazelas, feri-das, problemas de toda ordem, como alto índice de violência, ex-clusão, consumo incontido e escapista de drogas, desamparo, so-lidão, exploração em larga escala do ser humano.

A noção de comunidade significa um espaço de convivência em comum, marcado pelo vínculo das pessoas umas com as ou-tras, que coloca a comunidade sob o alcance do Tu. Será esse pon-to de vista uma abstração que apenas responde aos nossos mais altos ideais, mas que não corresponde ao que reina de fato na condição humana? Sob o fundo dos valores que edificam a comu-nidade, não estaria a genuína esfera humana, com os seus anseios um tanto modestos, isto é, a insegurança, o medo da solidão, o não ter coragem de tocar a vida sozinho, o não saber se virar por si mesmo, o se encostar no outro, o precisar da aprovação do ou-tro, o submeter-se ao outro? Essa é a provocação que nos surgiu por ocasião do exame da comunidade.

Se ficarmos apenas na necessidade, não poderemos admi-tir possibilidade alguma para a esfera do Tu. É preciso abrir

164 Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p.24.

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espaço, por menor que seja, para reconhecer o fator de coesão que justifica a própria noção de comunidade. O que envolve a comunidade não é somente a ordem utilitária. Envolve senti-mentos, realização de projetos e lutas, festejos, o querer saber “como vai a Dona Maria”? Fazer junto, sentir junto, passar por algo junto. Não como todos iguais, retirados de si pela unifor-mização, mas como cada um, em sua marca pessoal, em sua fisionomia própria, que atravessa as situações de vida, com-partilhando-as, apresentando uns para os outros suas experi-ências e impressões.

Martin Buber define a noção de comunidade originada em dois fatores. Primeiro: todos estão em relação viva com um cen-tro igualmente vivo. Segundo: as pessoas se sentem ligadas em uma relação viva e recíproca. A comunidade é uma modalidade do viver humano que oferece um campo de relações em que as pessoas podem interagir de forma a promover a confraterniza-ção e a troca de sentimentos, de compartilhar experiências, de exercitar o cuidado mútuo, a cooperação e a coparticipação. As pessoas não são mais exclusivamente estranhas umas às outras. Se elas têm a perspectiva de se solidarizar é porque não se isolam no anonimato, nem na indiferença pelo que se passa com elas. Saem para fora, simbolicamente (ou literalmente) abrem as jane-las e as portas de suas casas. Elas se permitem a convivência. A convivência é conflitiva, deixa em aberto a rivalidade, o disse-me-disse, a inveja, mas também traz o outro para a frente, para o frente a frente, e, assim, ele se torna mais próximo. Não devemos tomar um passo em falso e considerar qualquer tipo de interação da ordem da comunidade. Não bastam seres humanos em convi-vência para reconhecermos o espírito de comunidade. O sentido de comunidade tem o seu fundamento, o seu centro ativo e vivo, no fato de os seres envolvidos nela revelarem o Tu um ao ou-

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tro.165 Eles interagem expressando-se e reconhecendo-se como um Tu.

“Afinal, a que Tu te referes?” Poderia alguém nos perguntar quanto ao fundamento: é o Tu “religioso” ou o Tu no mais amplo sentido que constitui o fundamento da noção de comunidade, cujo âmbito alcança a experiência religiosa? Resposta: o Tu “exis-tencial”, por assim dizer, e o Tu eterno se cruzam num tal emara-nhado que Buber nos dá uma vaga pista: “A finalidade da relação é o seu próprio ser, ou seja, o contato com o Tu. Pois no contato com cada Tu, toca-nos um sopro da vida eterna.”166

O sentimento de comunidade se realiza através de uma prá-tica e de uma estima que recusa deixar ao outro apenas a condi-ção de alienígena. A simples referência à atitude do tipo comuni-tário é uma daquelas que é digna do maior descrédito. Como admitir a vivência com o Tu, se a toda hora o outro é espreitado como um estranho, um a mais na multidão de rostos encobertos? Rostos marcados pela pressa, pela papelada, por uma cabeça sem-pre dispersa. Rostos que olham para baixo, que desviam o olhar para os lados, que olham para si mesmos, ou melhor, que mal olham para si mesmos, para além do espelho que reflita a imagem que idealizaram através dos agentes ideológicos hipnóticos em ação? O outro é visto como aquele que interfere na minha vida, na minha privacidade, no meu lazer, na minha intimidade. Se ele não devassa, ele pode devassar. Existe sempre essa ameaça em vista. Ele me põe a nu. Estaremos uns perante os outros, “nus feito minhocas”, diz Sartre através da boca de seu personagem Garcin, na peça Entre Quatro �aredes.167

165 Nessa afirmação sobre a comunidade, inspiramo-nos nas considerações de Buber sobre o matrimônio (v. Eu e Tu, p.53), e estendemos suas considera-ções a respeito desse modo de relação numa maior amplitude, permitindo-nos pensar a comunidade.

166 Ibid., p.73.167 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.76.

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A vivência da comunidade pode estar em nossos dias se transformando cada vez mais numa nostalgia de um modo de vida aprazível, porém dispensável, restrito ao “lazer” dos fins de semana, quando muito, aceito como modo de vida “alternati-vo”, ou seja, à margem da vida cotidiana e efetiva. Se não é impos-sível, é difícil para o homem contemporâneo encontrar um senti-do de comunidade fora dos que acabamos de apontar. Para o su-jeito de uma grande metrópole, que quer se enquadrar e se adap-tar da melhor forma que puder às demandas do mercado, da mídia, seu vizinho parece algo como um opositor íntimo: aquele que devassa sua privacidade, compete com ele, ameaça suas am-bições, ou, simplesmente, nada tem a ver com ele, é um estranho, que vive junto, mas não convive. Nesse ambiente, formam-se re-presentações de comunidade do tipo: num rincão de mundo, um templo perdido, cheio de beatas e paladinos da moral, onde os crentes se reúnem e ficam de picuinhas, um falando do outro, querendo saber da vida alheia, metendo-se na vida alheia, regidos por uma moral sem sentido e completamente desvinculada da sua existência concreta, negando-se sistematicamente a se verem tal como são, e reproduzindo análises judicativas uns dos outros.

A comunidade aparece também representada como uma es-pécie de ilha em meio à multiplicidade de apelos às sensações e a estimulação de emoções que puxam pela adrenalina, a uma rede de comunicação cada vez mais sem controle, a um estilo de vida que pretende se globalizar. Enfim, a comunidade parece ser uma espécie de mundo em extinção, uma forma de resistência ao pre-sente e ao futuro; a tradição é encarada como mofo, da ordem do que já foi ultrapassado pelo tempo, pela velocidade da técnica, pela explosão das imagens que rendem audiências incalculáveis e consumo. A comunidade não interessa a um mundo em processo de globalização, em que ela aparece como não muito mais do que um dos seus espetáculos, um dos seus entretenimentos, uma fon-te de prazer, um pacote turístico.

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Uma das representações de “comunidade” ainda aceitáveis por inúmeras pessoas é uma determinada forma de conceber e desenvolver a instituição família. Nesse modelo, as pessoas acre-ditam que se solidarizam, de alguma maneira: fazem uma bela ceia de Natal e Ano-Novo, organizam divertidas festas e estimu-lantes eventos, compram presentes umas para as outras. Tais eventos compõem uma espécie de bolha: tudo que não for do al-cance do seu campo de investimento afetivo – filhos, alguns pa-rentes e amigos seletos, o casal, o objeto do desejo apaixonado – é excluído do interesse, e dispensa reflexão, atenção e cuidado.

Emmanuel Mounier inclui na noção de comunidade os gru-pos de pessoas como os amigos em comum, o grupo de camara-das que se solidariza em algum momento geralmente por um objetivo em comum, mantém-se e não perde o contato com o correr dos anos, o próprio casal é incluído dentro da ideia de co-munidade. Frente a uma sociedade massificada, em que as pes-soas são reduzidas a números de índices de audiência e dados mercadológicos, para assegurar uma plena comunidade de pes-soas resta aproximar-nos em pequenos grupos (família, amigos, camaradas fiéis, o casal). Contudo, o filósofo se mostra atento à possibilidade de esses grupos perderem o sentido do que chama-ríamos de “espírito comunitário”:

Uma rápida sufocação do ímpeto comunitário ameaça as melhores dentre essas realizações de se degradarem em so-ciedades fechadas. Só se podem manter como elementos dum universo pessoal se cada uma delas se mantiver virtual-mente aberta à universalidade das pessoas.168

Mais uma vez, o pensamento nos põe no confronto da idea-lização da comunidade com a sua realização e a sua concretiza-

168 O personalismo. 4a ed., Lisboa: Moraes, 1976, p.76.

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ção, fazendo a pergunta oportuna, em dois tempos: é um projeto possível? Se é, como pode ser possível? Devemos admitir que é raro encontrar a abertura para o encontro em nossa vida cotidia-na, nas trocas de um ser com o outro, nas relações de amizades, na interação social, nos relacionamentos amorosos que não são esbarr�es, enfim, raros são os genuínos encontros, aqueles encon-tros em que não se insira uma objetivação que, na realidade, é alienação.169

Começamos, aqui, a esboçar a interpretação de que a comu-nidade é mais do que uma ideia estanque, ela é, ao mesmo tempo, uma noção, uma ética, e um modo de ser no mundo. O Tu cofun-damenta ao mesmo tempo a comunidade e a pessoa. A noção de comunidade não prescinde da noção de pessoa. Tornar-se pessoa nessa correlação com a comunidade significa mais do que estabe-lecer relações, assumir uma mútua responsabilidade. Uma comu-nidade não é um agregado de indivíduos, um diálogo não é um burburinho de personalidades, cada uma querendo afirmar a sua “questão”, a sua arbitrariedade, os seus desejos à revelia de com quem faz contato e em que contexto. Uma comunidade é uma dialogação entre pessoas. E isso envolve uma interação, como Bu-ber tenta explicar. A comunidade só tem um sentido efetivo quando é formada por relações autênticas entre as pessoas. “Au-tênticas” não implica uma transparência absoluta e ingênua, como se pudéssemos tomar de assalto a ordem do ser e do vir a ser, e anunciar que na comunidade todos são possíveis de se co-nhecerem por inteiro, simplesmente por se instalarem nela. Por autêntica, devemos nos contentar com uma compreensão que vise as atitudes que prezam a si e ao outro, sem colocá-los numa gangorra onde o espaço de um sufoque, de uma vez por todas, o do outro. Como pessoa interessada no Tu, cada um, de alguma forma, sente-se responsável pelo outro e, ao mesmo tempo, aceita

169 Buber. �obre comunidade. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.112-3.

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a responsabilidade do outro pela sua própria pessoa. Ser respon-sável não significa ser perfeito. No processo do encontro, um con-vida o outro para costurar o sentido da existência. Forma-se um elo de reciprocidade, o sentido dialógico de relação. O ser huma-no confirma cada ser humano como um existente, e não como simples coisa, utilidade, objeto. Igualmente, ele se deixa confir-mar pelos outros seres humanos como um existente,

e sempre se oferece como pilar sobre o qual será construída uma ponte sobre si e sobre os seus parceiros momentâneos – ponte eterna que desaba a cada momento, mas que a cada momento se reconstrói novamente.

Eu – Tu, somente assim o indivíduo se torna pessoa... que significa pessoa? A pessoa não existe fora disso, e o ho-mem solitário é pessoa pelo fato de estar ligado deste modo e poder ligar-se novamente, mesmo que engolfado na mais profunda solidão.170

Devemos, nesse ponto, concluir nosso pensamento acerca da articulação entre a comunidade e a pessoa com algumas conside-rações. Primeira: como vários autores, Buber verifica todo um aparato para retirar a corresponsabilidade, a cogestão e o cuidado mútuo. Esse aparato se forma em uma sociedade massificada. Diz Buber quanto a tal estado de coisas:

Há um enorme aparato que funciona de modo confiável, que proporciona tudo aquilo de que o homem necessita, vale di-zer, este não precisa mais responsabilizar-se nem por si pró-prio, nem pelo ser, nem pelos entes. Tudo será feito para ele, ele só deve oferecer-se e nada mais. Isso é o oposto, exa-tamente o antagônico daquela autodoação pessoal da au-

170 Ibid, p.123.

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têntica relação. Ele se entrega, à maneira de uma roda na máquina. A máquina precisa desta roda, esta peça deve en-tregar-se, sem responsabilidade.171

Faz parte desse aparato a apologia das sensações, a ideologia da evitação da dor, assim como da morte e do luto, as mil maravi-lhas dos produtos de consumo, desde carros a eletrodomésticos, várias forma de terapias da alma que prometem autonomia, suces-so, “realização”, “revelação” etc., que propõem promover e elevar a autoestima, o autoconceito, o autoconhecimento, sem a perspecti-va de levar em conta, com igual valor, os contextos interativos e as pessoas envolvidas como um todo vivo, pulsante e recíproco.

Segunda consideração: se por um lado, as formas descritas acima conduzem a não mais do que um desenvolvimento da “personalidade” a modo de um mero individualismo, por outro lado, não devemos deixar de admitir que a comunidade não está preservada de perder de vista o seu sentido originário e o grupo inserir-se no mundo, humano demasiado humano, do Isso. Se a comunidade torna-se o campo em que tenhamos, por um lado, o exclusivo domínio da moral, da culpa, da lei e da ordem, de mo-delos alheios à existência atualizada, impostos por autoridades que a comunidade acata ou se submete, e, por outro lado, se a comunidade torna-se a posse de grupos que apenas se interessam pela prosperidade e segurança de seus membros, então, desmoro-na-se por inteiro o sentido efetivo de comunidade no que diz res-peito a uma perspectiva dialogal. Mantendo-se centrado unica-mente em torno de si mesmo, o grupo se fecha à comunicação com outras comunidades, e com as pessoas do próprio grupo em sua subjetividade e diferença.

Terceira observação: o fato de, no seio de uma proposta de “ação comunitária”, encontrarmos a possibilidade da alternância

171 Ibid., p.125.

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do modo de ser relacional com o modo de ser do Isso, que trans-forma o sentido de comunidade numa “instituição pública” (onde se trabalha, se faz negócios, se exerce influência, enfim, onde se aperfeiçoa as funções de experimentação e utilização172), não nos deve convencer a anular a experiência comunitária de nossas vi-das, ou, ao menos, de nosso pensar. Chama-nos a atenção que a experiência de comunidade fundada no Tu parece cada vez mais recolhida ao esquecimento.

Quarta observação: em um quadro contemporâneo de alta competitividade, exclusão, devastação da natureza, ma-nipulação dos desejos na direção do marketing, do culto ao individualismo, algumas pessoas acreditam que não é mais possível se resgatar algum tipo de ideal e de prática de comu-nidade. Elas só conseguem enxergar uma única via: a salvação reside numa religião “interior”. Se eu não posso interagir com o mundo de tal forma a participar de uma perspectiva de sen-tido que valha a pena lutar, engajar-se, sonhar, então, resta-me o recolhimento pessoal e com “Deus”. Diante de tal atitude, responde Buber:

Afirma-se que o homem “religioso” é aquele que não neces-sita estar em relação com o mundo ou com os seres, porque o estado de vida social, determinado do exterior, é ultrapas-sado por uma força que só agiria do interior. Confunde-se assim, sob o conceito de social, duas coisas fundamental-mente diferentes: a comunidade, que se edifica pela relação, e a massa de unidades humanas sem relação entre si, isto é, a ausência de relação, que se tornou evidente no homem moderno.173

172 Eu e Tu, p.50.173 Ibid., p.123.

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A massa de unidades humanas é regida pelo modo de ser im-pessoal, um aglomerado de atitudes, comportamentos, ideias, va-lores que são “públicos”, e que, espantosamente, vendem a imagem de que só pertencem ao indivíduo: seu carro, seu apartamento, seu vestido, seu aparelho tecnológico. Tal indivíduo, que se considera autônomo, autêntico, Zuben traduz por “egótico”174. Confrontan-do o seu modo de ser com o da pessoa, observa Buber:

Ele se delicia com seu modo-de-ser específico que ele imagi-na ser o seu. Pois, para ele, conhecer-se significa fundamental-mente sobretudo estabelecer uma manifestação efetiva de si e que seja capaz de iludi-lo cada vez mais profundamente: e pela con-templação e veneração desta manifestação procura uma aparên-cia de conhecimento de seu próprio modo-de-ser, enquanto que o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.

A pessoa contempla-se no seu si-mesmo, enquanto que o egótico ocupa-se com o seu “meu”: minha espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.175

Voltemos a nossa atenção a um certo gênero de “homem re-ligioso” que deseja prescindir da relação com o mundo referido por Buber. Em tal pessoa, identificamos o esforço de romper, pelo encanto da separação do mundo, com a lógica regida pelo duo de sentido impessoal-individual. Esse tipo de sujeito consegue des-mascarar uma imagem de “público” que não atende senão a inte-resses de mercado, consumo, eficácia, produtividade, a propósi-tos de nivelar as particularidades num conjunto de signos mani-pulados ideologicamente. Com igual perspicácia, nosso “homem de religião interior” rasga os véus de maya (ilusão) e consegue perceber como falaciosa a crença de que somente se afirmando

174 O termo em alemão que ele traduz é eigen�esen. Ibid., notas de Newton A. von Zuben (tradutor), p.164, n.10.175 Ibid., p.75.

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por um modo de ser “meu”, “autêntico”, alguém pode se sentir integrado no “mundo”.

Mediante tal quadro de mundo, esse sujeito confunde reco-lhimento com separação e exclusão, “interioriza-se”, quer romper com um mundo onde se perverteram os sentidos mais dignos de “nosso” e de “meu”. O indivíduo que se dedica a tal religião “inte-rior”, entretanto, não tem em conta outros sentidos possíveis para “público”, e mesmo “autenticidade”. Por exemplo, o público como o espaço em comum da partilha, da troca, do reconhecer em-paticamente os outros; a parceria que respeita a singularidade; o comunitário que se interessa e se articula com o singular e vice-versa; a autenticidade desenvolvida nas relações que se estabele-cem, no face a face, num acolhimento que não signifique submissão nem aceitação passiva do outro, e sim um realizar-se e expressar-se conjuntamente com o outro.

O esforço de separação e negação do “estado de coisas” do mundo, através do isolamento, nega o mundo porque não vê mais sentido no mundo, não consegue conceber um sentido de trans-formação de si no mundo, pelo convívio, pelo interesse em enga-jar-se numa proposta que resgate o sentido da existência inclusivo, integrando o mundo na esfera genuinamente religiosa. O religare convida a um encontro com o outro que não separe necessaria-mente o eu do mundo. O recolhimento não deve ser confundido com a exclusão. A exclusão acalenta o desejo de simplesmente desligar-se do mundo, excluindo-o da existência, vale dizer, da com-vivência. Na exclusão, o sujeito permanece tendo como ho-rizonte um niilismo para com o mundo que projeta toda a sua esperança e ação num outro mundo, pouco importa se o chame de “interno” ou “transcendente”.

Lendo Buber, reconhecemos a possibilidade de uma espécie de parceria entre o sujeito e a coexistência-no-mundo. Nela, o destino se apresenta, o mundo “acontece” fora de minha determi-nação, como também pela minha atitude posso criar o mundo,

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aceitá-lo, transformá-lo. Negar ou afirmar o destino e o mundo não dependem só de mim, mas, por outro lado, é possível que o seu acontecimento se solidarize com minha vida: com minha de-cisão, com minha obra, com meu serviço.176 Então, eu saio da dis-cussão negar-aderir ao mundo, e passo a “transformar em vida minha atitude de alma diante do mundo, uma vida que atua no mundo, uma vida atual”.177 Com isso, achamo-nos em disponibi-lidade, igualmente, para assumir o conflito inerente ao encontro com o outro, de tal forma que: “Se amamos o mundo atual que não quer deixar-se abolir, realmente em todos os seus horrores, se ousarmos enlaçá-lo com os braços de nosso espírito, então nossas mãos encontrarão as mãos que suportam o mundo.”178

Vale, nesse ponto, uma observação. A concepção que realça a relação dialógica (Eu e Tu) não rejeita o recolhimento e a intros-pecção. A experiência humana como uma experiência total, que envolve nossas possibilidades de expressão, inclui uma instância de recolhimento: uma espécie de exílio voluntário, que pode ter vários significados e ser reconhecido em diversas fontes.

Martin Buber dá um realce à relação com o Tu eterno, mas não negligencia a possibilidade de um recolhimento. Ele nos in-sere na temática através de perguntas que faz a si mesmo:

Porém, a solidão não é ela também uma porta? Não se re-vela, às vezes, no mais silencioso isolamento, uma visão inesperada? O intercâmbio consigo mesmo não pode trans-formar-se misteriosamente em um intercâmbio com o mis-tério? E mais, não é aquele que não é submetido a nenhum ser, o único digno de se encontrar com o Ser?179

176 Ibid., p.109. 177 Ibid., p.109.178 Ibid., p.110.179 Ibid., p.119.

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Buber reconhece um caráter catártico no recolhimento, ad-mitindo a solidão como uma purificação que prepara aquele que está vinculado. Entendemos o vínculo como um duplo vínculo: com o outro e com o mundo. Buber adverte, no entanto, que a solidão não deve ser confundida com ausência de relação, recusa do mundo, negação da existência para projetá-la somente em ou-tras esferas. Ele retoma a tese de que não é aderindo ao mundo, nem se afastando dele, que experimentamos um sentido de alte-ridade. Aderir somente ao mundo podemos entender como man-ter um “comércio” com as coisas180, e, acrescentamos, com as pes-soas, o sagrado, a natureza, remeter-se ao mundo e ao outro no modo da utilização, manipulação, controle, exploração, domina-ção, posse.

De modo análogo, afastar-se do mundo, desinteressar-se de-le, querer ansiosamente a “libertação” desse planeta de “expia-ções” e “pecados”, tendo, por exemplo, na religião um meio para ratificar a negação da existência, configura o modo de reduzir o Tu a um molde de coisa, de Isso. Tal solidão é como uma “fortale-za da separação” que Buber considera a verdadeira decadência do espírito na espiritualidade. Aquele que cobiça apenas se apropriar de uma experiência da transcendência para salvar-se permanece preso aos seres, buscando neles apenas gratificação. Aquele que deseja realizar a experiência da transcendência no modo relacio-nal permanece ligado não só ao que abrigar um valor sagrado, como ao mundo. Não busca gratificação nem ingratidão. Perma-nece vinculado, tecendo um amor que constrói uma ética da res-ponsabilidade mútua. Com relação a quem abraça um sentido de transcendência na religiosidade, Buber, no seu linguajar, nota que “Só aquele que está vinculado com os seres está pronto para o

180 “Se a solidão significa afastar-se do comércio com as coisas de experiências e utilização, então ela é sempre necessária, não só para a relação suprema mas sobretudo para o ato de relação.” Ibid., p.119-20.

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encontro com Deus. Pois, somente ele leva ao encontro da atuali-dade de Deus uma atualidade humana.”181

A construção dA PessoA e o modo de ser “egótico”

A concepção da experiência dialógica apresentada por Buber é uma afirmação de Deus e do mundo, de si e do outro. Importa para essa dinâmica relacional a noção de pessoa. Pessoa é tornar-se um ser próprio, único, ser próprio no sentido de um ser de re-laç�es. Consideramos que esse ser único é desenvolvido num processo de interação com as pessoas, com as situações de vida concretas, com a natureza, com pulsões e desejos, com desejos do outro, com a comunidade, e para quem se projeta na perspectiva da fé, acrescente-se a essa lista o sagrado. No pensamento de Bu-ber, certamente Deus participa dessa composição de tramas que se entrecruzam no fundamento do Tu.

Na constituição de nosso tornar-se pessoa, por vezes con-fundimos o que é da ordem do individualismo e o que é da ordem da individuação e do diálogo. Dessa forma, ingressamos no con-fronto do modo de ser da relação dialogada com o modo de ser da apropriação, da avidez, do cálculo, da utilização, numa pala-vra, penetramos no emaranhado do Tu com o Isso. “Homem al-gum é puramente pessoa, e nenhum é puramente egótico; ne-nhum é inteiramente atual e nenhum totalmente carente de atua-lidade. Cada um vive no seio de um duplo Eu.”182

Através do árduo processo de conscientizar e encarar a pos-sibilidade de se perder na indiferenciação de um modo de ser de “todo mundo”, do modo Eu – Isso, que nivela as diferenças numa superposição de monólogos, e, por outro lado, através do esforço para romper as defesas suscitadas pelo temor de se expor ao face

181 Ibid., p.120182 Ibid., p.76.

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a face com as pessoas e consigo mesmo, pela expressão das emo-ções, pensamentos, ideias no convívio e no cuidado consigo e com o outro é que constituímos um eu, um eu-com, um eu-pes-soa, um eu-relacionado, enfim, um ser-com.

A pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como um ente. O egótico toma consciên-cia de si como um ente-que-é-assim, e não-de-outro-modo. A pessoa diz: “Eu sou”, o egótico diz: “Eu sou assim”. “Co-nhece-te a ti mesmo” para a pessoa significa: conhece-te como ser; para o egótico significa: conhece o teu modo de ser. Na medida em que o egótico se afasta dos outros, ele se distancia do Ser. 183

Buber não acredita num recolhimento “religioso” que recuse o mundo e queira se des-ligar da teia de relações que marca a existência, contentando-se em permanecer meditando, orando, “querendo o bem”. Isso para Buber é mais uma face do modo de ser “egótico”. Nessa esfera, desconhece-se, a um só tempo, a pes-soa, a comunidade, o sagrado, enfim, o outro, e, em última análi-se, a si mesmo.

Quanto mais o homem e a humanidade são dominados pelo egótico, mais profundamente o Eu é atirado na inatualidade. Nestas épocas, a pessoa leva, no homem, na humanidade, uma existência subterrânea e velada e, de algum modo, ilegí-tima – até o momento em que ela será chamada.184

O egótico faz parte da mentalidade do “cada um na sua”. Não faz muito tempo, notamos um anúncio de uma bebida em que

183 Ibid., p.74-5.184 Ibid., p.75 e 76.

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aparecia uma mãe, com seus filhos no quarto, cada um na sua, e a mãe, sozinha, feliz, porque consumia o produto. O pai era uma figura ausente. O que mais importava era o produto. Os sujeitos estavam em seus cômodos, fazendo as suas coisas. Eis um dos ícones da família contemporânea. Cada um na sua, ninguém jun-to. Todos têm mais o que fazer, por exemplo, postar-se diante da televisão e consumir.

Se alguém contasse um dia um mito dos dias atuais, talvez começasse por algo assim: “Era uma vez, um reino onde, em vez de os sujeitos estarem uns com os outros, ficavam com a televisão, com o computador, com o celular, com o seu fone de ouvido. E se achavam sós. Quanto mais procuravam se livrar da solidão, mais ligavam seus aparelhos, mais sós, no final, ficavam, mais procura-vam, de novo, novas excitações, e assim, indefinidamente. A tele-visão trazia o mundo inteiro para dentro de casa. Cabia o mundo todo na palma da mão, no controle remoto, mas não cabia mais o espaço da convivência, do se postar lado a lado, e deixar a conver-sa correr, para onde ela fosse, sem pressa, sem a premissa da ‘falta de tempo’. O computador estava assumindo o lugar da televisão. Eram horas e horas diante de uma tela, enquanto a vida corria lá fora, ficava-se na toca, onde se tinha todo o tempo do mundo, que restava da ‘falta de tempo’, inclusive, todo o mundo nas interfaces da rede mundial que ‘plugava’ o sujeito com o universo, deixando o parceiro esperando na cama.”

A responsabilidade por esse estado de coisas não pode ser atribuída a refrigerantes, aparelhos, conexões tecnológicas. O uso e o valor que se dá a essas parafernálias é o que acreditamos que diz sobre nosso modo moderno de viver. Se todos parecem tão felizes, como explicar as montanhas de dinheiro consumidas pelas drogas, o índice de alcoolismo, de dependência de psicotró-picos, de depressão, de sintomas psíquicos de toda a ordem, a violência nunca antes sequer imaginada, o aprofundamento das desigualdades sociais, a exclusão como paradigma moral (a nor-

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ma do vence aquele que está preparado para o mercado de traba-lho para ser o único vencedor), a devastação da natureza atingin-do à beira do irreversível?

Sim, porque sob toda a parafernália tecno-mercadológica é montado um discurso da promessa de prazer – e prazer imediato, e felicidade. Você só será feliz se consumir essa geladeira, esse automóvel, esse celular, essa marca. Não há opções. Ou você entra na busca incessante de prazer, ou é excluído, é um zero econômi-co. A cidadania, aquele espírito da pólis grega foi reduzido ao es-tatuto de “consumidor”. “Ah, que bom será o dia em que todos forem cidadãos, quando todos finalmente poderem consumir, entrarem no mercado!” Assim, ele se torna ainda mais bem nutri-do. E para além do prazer, depois do ruidoso som dos fogos de artifícios, o que vem?

Isso para nós diz muito. Fala da solidão do ser humano. Da desumanização do ser humano. Do ser humano separado de seu corpo pela lógica do mundo do trabalho alienante e do dinheiro, separado da natureza, separado de seus pares, sem consciência de si e do outro, e agora sem lar. Seu lar foi reduzido a uma tela de computador, de celular, do treco que ainda vão inventar logo, logo. Talvez, por isso, queiram vender telas imensas, como as de cinema. Só que um cinema fora do cinema, não mais o espaço de partilhar emoções em cumplicidade. O ethos, a morada do ser foi pulverizada pelas atrações do mercado. Essa pulverização asfi-xia o próprio sentido do viver humano. Sem sentido, o ser huma-no alucina, foge, delira, descarrega toda a tensão de não ser, da artificialidade de seu viver através de um desejo que tem a com-pulsão como combustível. O desejo é reduzido a desejo de consu-mo. O consumo só se sustenta com mais consumo. Então, é pre-ciso trabalhar mais, produzir mais, explorar mais, aprender mais, render mais, malhar mais, namorar mais, tomar mais, divertir-se e gozar demais. É o círculo vicioso da filosofia do cada um na sua, do ególatra, do culto ao eu.

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O ser humano sem a relação autêntica cai no mais extremo desamparo. Está perdido, perdido do caminho de casa. Não sabe mais o que faz sentido, nem ao menos o que é sentido, não sente mais nada além da compulsão à diversão. Buscando fugir do de-samparo, ele se refugia naquilo que lhe dá a ilusão de autossuficiên-cia, de dispensar a todos os outros e ficar “na minha”. A solidão se insufla em sua vida. Quanto mais ele foge, mais ela o alcança. Ele passa a idolatrar a máquina e a técnica, e se distrair com o que acre-dita ser seu fetiche de felicidade, uma espécie de euforia na veia.

O ser humano suporta a sua solidão? A condição de estar diante de si mesmo, em sua possibilidade de ser? A sua possibili-dade de ser não é somente algo virtual. É o que se faz presente. É toda uma torrente de desejos, emoções, sensações, imagens, so-nhos que vem do passado, apontam para o futuro, rasgando o pre-sente. São as perspectivas que se abrem diante de nós. É postar-se diante de escolhas. Em cada opção desfaz-se a onipotência. Cada escolha assumida remete à constatação de “não ser Deus”, como enuncia Sartre, ou seja, de não ser perfeito, de não ser inteiro, de não ser totalmente feliz, de ser faltante, incompleto, não transpa-rente, ambíguo, contraditório. Qual o espaço para a angústia on-tológica onde não se quer perder, não se quer abrir mão de nada, onde impera o reino do lucro e bem-estar pessoal (“se dar bem”)? Para se achar, a consciência tem que se perder. Para encontrar Deus, para quem acredita, é preciso perder a onipotência (deixar de lado a pretensão de já ser Deus, ou seja, ter a posse de Deus). Para se encontrar o outro é preciso perder a guarnição da autossu-ficiência. Para se encontrar a si próprio é preciso perder a consci-ência, para ganhar, então, quem sabe, o broto de uma nova cons-ciência. Para escolher que caminho tomar, para encontrar o ser que eu sou, tenho que perder crenças tão arraigadas, a fim de for-mar novas compreensões, que um dia serão vistas como crenças.

Aceitar a convivência consigo mesmo e com o outro é perce-ber tudo o que está em jogo, é sair da condição de espectador para

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jogar o jogo. O ser humano, não raro, foge de sua mais própria condição. Na contemporaneidade, ele busca avidamente se refugiar no mundo dos prazeres e do entretenimento, da sensação de con-trole, ao apertar botões e mais botões, gravar e deletar. Dissolve-se na instância da massificação, da impessoalidade mais extrema.

Imaginemos a partida de um esporte, daqueles bem emocio-nantes, em que vamos a ela municiados por algumas motivações. Numa primeira intenção, acordamos cedo e nos preparamos para enfrentar um duro dia de trabalho, pois estamos motiva-dos para comerciar durante o espetáculo. Nada mais queremos com o que está acontecendo. Tudo não passa de um fundo de cena para um objetivo que interessa: o de comerciar, e, com isso, vender o máximo possível para obter o maior ganho possível. Não estamos interessados no jogo, no que está em jogo. Numa segunda atitude, vamos aos jogos, aí sim, para jogar, para partici-par deles, onde, como se diz, suamos a camisa, arriscamos a ga-nhar ou perder numa única e simples jogada, às vezes até nos le-sionamos. Na terceira hipótese, podemos nos colocar na arqui-bancada, ou na cabine de imprensa, e lá exercer a nobre função de avaliar os jogos e o desempenho dos jogadores, com a imparciali-dade de quem tem a visão do todo e não se envolve passional, nem subjetivamente. 185 Na mente de Pitágoras, célebre por uma filosofia que prima pela interpretação do universo como uma grande harmonia cósmica, cuja cifra pode ser desvelada com au-xílio da matemática, esse é o reino do conhecimento, a atitude cara ao filósofo, o espectador crítico.

Segundo a nossa interpretação da existência, tentando seguir alguns passos de Buber, a atitude para fazer face à vida e a sua compreensão é a daquele que se envolve efetivamente com o jo-

185 Veja Marilena Chauí, Convite à filosofia. 13a ed. São Paulo: Ática, 2004, p.25 (Cap. 1, A origem da filosofia).

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go.186 Não só se envolve, como joga o jogo. É aquele que sai da condição de expectador para entrar no jogo, perder-se e se achar nele. Não tem estatística, cálculos, elucubrações lógicas, estrata-gemas, não há espaço para antecipações. O que é o jogo? É o cor-rer da existência. E mais: é o fazer-se existente à medida em que se vive e se convive, expressando um modo de ser que responda a questões de foro íntimo, conferindo sentido a cada situação.

A condição de expectador, para alguns, é o melhor correlati-vo para a atitude a se conservar na vida. Na filosofia dialógica essa postura é justamente o termo não só da existência, como da pró-pria filosofia. Permanecer como expectador, ou mesmo virar as costas para o fluxo da existência que corre nas veias do corpo e nas ruelas da vida trocando-o pelos catálogos dos métodos e con-ceitos é o mundo que o racionalismo tenta construir, como um castelo de cartas.

O egótico não é um ser especial, diferente, alguém a quem faltaria alguma qualidade para ser legitimado como ser humano saudável, não é, simplesmente, um ente patológico, um pensador tresloucado. Somos todos nós, quando em nossa atitude de recu-sa da relação. Quando queremos resolver as coisas encerrados entre quatro paredes, e acabamos dando voltas sobre o mesmo ponto, achando-nos sem saída, num mundo em que, desespera-dos, enchemos o peito para dizer que “o inferno são os outros”.

O egocentrismo denuncia a dificuldade em sair de si, e, até mesmo, entrar dentro de si, e experimentar a sua interioridade profunda, numa cultura em que as pessoas se veem cada vez mais isoladas, abandonadas, numa só palavra, sós. O egocentrismo es-cora a sua centralidade na individualização187, no eu-separado, no

186 Gostaríamos de ressaltar que a posição contemporânea de modo algum inva-lida a grandeza do pensamento da Escola Pitagórica.

187 Não confundir com individuação: processo de desenvolvimento em direção à constituição da pessoa, incluindo a dimensão do ser de relações.

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eu me basto, no eu “faço do meu jeito”, sem levar em conta que a troca com o outro acaba renovando o si-mesmo.

É bom pingar aqui uma vírgula no pensamento para não dei-xar de considerar que entrar no jogo da vida, no mundo da re-lação, não salva ninguém da solidão, da angústia, do desejo, da crise nas esperanças e na confiança. Diante do que é próprio à relação, ou seja, a angústia, o desespero, a perspectiva de perder e se machucar, assim como o amor, a paixão, a amizade, a solidarie-dade, o surpreender-se consigo e com o outro, a emoção do en-contro, as pessoas estão recusando a sua mais própria condição para se refugiarem num mundo virtual, que aparece na tela e que é operado apenas por um teclado. Muitos entram de cara, como se diz, nos produtos da cultura de massa, buscando fugir da soli-dão, da falta, do vazio. E, quanto mais tentam fazê-lo, malogram diante daquilo que a indústria cultural não pode fornecer, apenas anunciar: a promessa de felicidade, ou melhor, da oferta da felici-dade mediante o cartão de crédito.

Quanto mais se tenta refugiar-se num mundo de sonhos de autossuficiência – sexual, individual, “psicológica” –, mais se ar-ranca de si mesmo a entrada para o espaço fundamental do ethos, o espaço de convivência que dá sustento ao ser de relações que é o ser humano. Quanto mais o sujeito se retira da condição de pessoa, mais ele se molda como um objeto. Um objeto do desejo. Que desejo? Ninguém sabe mais aonde ir, mas sabe quanto custa o último lançamento que diverte e alucina em lugar da imagina-ção. Antes, ninguém sabia muito ou quase nada sobre o desejo. Era uma força subversora, transgressora, em certo sentido, por mais paradoxal que possa parecer, libertadora. Agora, tenta-se domesticá-lo sob inúmeras normas, incluindo os tranquilizantes e antidepressivos.

A atitude egocentrada dispensa o mundo porque visa so-mente e em primeiro lugar o seu mundo. O seu entra entre o su-jeito e o mundo, toma o lugar do mundo. O outro permanece de

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fora, ele só entra se for considerado da ordem da posse, para não dizer, do uso. O saudoso Beatle George Harrison, já falecido, fez uma composição em 1969 bastante pertinente para o nosso as-sunto: chamava-se I, Me, Mine (traduzimos por Eu, Mim, Meu). Na atitude egocêntrica, para me sentir em relação eu preciso ter a sensação de que possuo e tenho um certo controle, enfim, o outro precisa ser inserido como objeto, em geral, fonte de prazer. Na atitude egocentrada, importa exclusivamente a minha individua-lidade. O outro é um mero apêndice da história de cada um. Ele é como um quadro na parede, natureza morta. Surgem ideias do tipo: “Você precisa pensar primeiro em você”.

De outro modo, o aprender a se cuidar pode alçar um pa-râmetro inclusivo: um gostar que admita e permita incluir a si e ao outro. Quem aprende o cuidado, cuida-se e se põe no lugar do outro. Por isso, é tão difícil a experiência do cuidado. Se ti-véssemos a dádiva dos devidos cuidados, não precisaríamos es-tar falando tanto sobre o cuidado como um dos pilares éticos para a entrada do terceiro milênio.

PersPectivA éticA AcercA dA PsicologiA dA PessoA

Convidamos, nesse instante, a ética para compor uma reflexão sobre a subjetividade e alteridade no campo da psicologia.

Pela psicologia, sabemos da importância de lidar consigo mesmo, falar de si mesmo, expressar a si próprio. Nas relações que estabelecemos, pouco espaço encontramos para expressar o que se passa conosco. No mais das vezes, responsabilizamos o outro pelo nosso próprio calar-se, mas mal percebemos que so-mos nós mesmos quem muitas vezes cortam os elos de comuni-cação com o mundo. A psicologia denuncia uma tendência não para todos e qualquer um, mas que atinge uma considerável par-cela de pessoas. Vamos à sua descrição. O sujeito se encerra num mundo voltado para colocar todo o sentido de existência, o eixo

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central de sentido, digamos assim, na aprovação de si através do outro, de um outro especial que ele elege como o lugar de sua fe-licidade/infelicidade. Uma vez frustrado em seu projeto de ter no outro o certificado para o bem viver, passa a construir muros de pedra, onde abandona as mais autênticas emoções e desejos, como que desistindo de afirmar a vida, e nega o clamor do ser. Seguem-se uma série de sintomas, tais como insônia, ansiedade, fobias, angústia, depressão, embotamentos sexuais etc. Nesse mo-mento, ele pode procurar um profissional por iniciativa própria ou por indicação de alguém (amigos, filhos, pessoas de convívio próximo). O que lemos volta e meia na literatura psicológica, em várias abordagens e conversas com colegas, é expresso com preci-são por uma aluna, já quase se formando, que, num trabalho so-bre ética e psicologia, diz:

O terapeuta deve ter sempre em mente que o seu cliente é que deverá ser o condutor de sua vida e autor de seu com-portamento. Caberá ao primeiro convidar a pessoa a se co-nhecer, a descobrir seus próprios valores – o eixo de valores – e a construir a sua autonomia, a partir daí. A ajuda tera-pêutica deve se focar nisso. Deve ser capaz de facilitar a in-dividuação do sujeito, a sua autonomia, o seu desligamento dos valores impostos pela família e pelo social, através do desenvolvimento de uma atitude reflexiva e crítica. O desen-volvimento da personalidade implica em afastamento das convenções sociais. Muitas vezes, o próprio paciente, por encontrar-se muito conflitado, e perdido, vem buscar uma resposta pronta, um caminho certo e rápido para seguir – está ansioso, quer resolver logo, não se sente capaz de esco-lher nada, não quer arriscar, e nem esperar...

Nossa aluna conclui definindo o papel do psicólogo: “Con-siste em levar o seu paciente ao exercício constante de mergulhar

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para dentro de si, e em de buscar os seus próprios desejos, que nortearão as suas escolhas.” Nós confirmamos cada palavra, pon-to e vírgula dessa colocação. É o que nós mesmos dizemos em sala de aula, debatemos com os alunos, lemos em muitos livros da área psi. Mas parece que o ser humano apronta um problema para si mesmo, é o que nos ensina Buber. Esse problema é que ele não se encerra em si mesmo, não faz sentido somente para si mes-mo, não se desenvolve apenas a partir de si mesmo. Sua interiori-dade não pode ser constituída sem o mundo da relação. O Eu (a personalidade) é feito não pelo outro, mas junto ao outro. Foi o que percebeu uma aluna do mesmo curso ao nos dar o seguinte depoimento:

Atualmente vivemos numa sociedade onde há mais preocu-pação com o próprio EU do que com os outros, vivemos numa sociedade cada vez mais individualista e egoísta. Pen-sa-se no próprio bem e não em um bem comum a todos. (...) O parâmetro do que é felicidade para as pessoas em geral está exatamente dentro dessa cultura. A “felicidade” está exatamente dentro dessa cultura do EU. A felicidade deve ser uma realização do ser humano, mas deve ir além de uma realização subjetiva, devemos pensar no social, na política, na cultura, ter esperanças e gritar por dignidade.188

Quando entra em cena o psicólogo, ele está dentro de uma cultura egocentrada. Para não confundir esse ego com a instância consciente do ser humano, diríamos, mais precisamente, numa cultura eu-centrada. Uma cultura que produziu extremos. De um

188 As alunas citadas são, pela ordem, Ana Maria e Tássia. Agradeço a sua contri-buição neste estudo, assim como aos meus alunos pela oportunidade de pôr em debate questões centrais para a reflexão que articula a filosofia (ética) com a psicologia.

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lado, notamos o fermento de uma subjetividade individualista e isolacionista, que toma cada vez mais inúmeros campos e práticas antes compartilhados coletivamente, tais como o espaço em co-mum da casa, o espaço do trabalho, o espaço da comunicação intersubjetiva, ou seja, da conversa face a face. De outro, uma al-teridade sem rosto, uma massa de comportamentos uniforme e condicionada. Numa observação de inspiração buberiana, o eu não é o objetivo último do trabalho terapêutico.

Na leitura de Richard Hycner encontramos uma aproxima-ção com o nosso pensamento. Ele é um terapeuta que trabalha com o fundamento o Eu e Tu de Buber.

Em nossa era moderna, a alienação dos outros, de nosso próprio self e da natureza é endêmica. Muito do sofrimento humano poderia ser diminuído se houvesse uma maior preo cupação em se estabelecer um diálogo genuíno entre as pessoas. Se isso é verdadeiro, então compete aos terapeutas criarem uma atmosfera na qual a atitude dialógica seja se-meada e floresça. Isso requer que o terapeuta vá além da cura técnica, em direção à cura do “entre” – aquela dimen-são invisível e ainda assim muito profunda da interconexão humana. Embora tal cura não seja sempre possível, é essen-cial tentar se aproximar dela. Ironicamente, a psicologia mo-derna tem feito muito pouco no sentido de voltar-se para essa dimensão do espírito humano.189

Parece que a personalidade se desenvolve inserida no círculo de relações que tece ao longo de sua existência. O que Hycner chama de “cura”, nós imaginamos como a tecelagem da teia de relações. Essa teia é tecida para além da prática psicoterápica. A

189 Hycner, Richard e Lynne Jacobs. �elação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo, Summus, 1997, Prefácio, p.16.

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prática psicoterápica responde e questiona a existência viva e pu-jante. Terapia faz sentido uma vez que a pessoa se relaciona. Não vemos a psicoterapia restrita à pessoa trazer para o consultório seus conteúdos e encerrá-los num cofre. Em curtas palavras, não vemos como a psicoterapia possa definir-se apenas entre as qua-tro paredes do consultório, em um eterno diálogo a dois. A tera-pia convida o sujeito a experimentar a condição de pessoa. Tal condição vem da vida, define-se na vida e por meio da vida. A vida é a vida interior, como se diz na psicologia, e, também, é a esfera da relação. A “atitude dialógica” é a que envolve o Eu e Tu. Essa preocupação, apontada por Hycner, de a terapia estimular a criação de condições para estabelecer um diálogo genuíno entre as pessoas, de a terapia ter como telos (meta) propiciar uma at-mosfera em que a atitude dialogal seja semeada e floresça, deve ser extensiva para além do consultório, em outras palavras, ela não se limita à relação entre terapeuta e cliente.

A psicoterapia deve ser um espaço de contribuição para a expressão da subjetividade não só em seu aspecto de afloramento da singularidade, como, sobretudo, do âmbito relacional. Ela tra-balha a comunicação, as prováveis dificuldades de estabelecer re-lações e se vincular, os laços afetivos, uma história de vida, a ima-ginação, o desejo, os projetos, as escolhas, a trama histórica e própria de uma existência. Importa-nos a consciência do funda-mento relacional do ser humano, sem a qual o ser humano pode se ver vitimado por uma antropologia que o reconhece dentro de um modelo tipo caixa fechada. Essa ideia nos foi soprada pelo psiquiatra existencialista Medard Boss. O essencial para Boss é o fato de que, apesar de todos os diversos nomes “aparelho psíqui-co”, “sujeito”, “personalidade”, “pessoa”,

todas as psicologias, psicopatologias e psicoterapias imagi-nam estas coisas como sendo uma formação psíquica do tipo de uma cápsula fechada e existente por si. O conceito

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adicional de um “inconsciente”, no sentido de uma reparti-ção especial da “psique”, não altera em nada o caráter funda-mental do conceito da “psique”, até então vigente, na forma concreta de uma cápsula.190

Acreditamos que seja possível levar adiante essa colocação de Boss quando a pessoa se torna basicamente um sistema pre-viamente definido por conceitos, e sua interpretação é encerrada dentro desses moldes, que são projetados por uma universaliza-ção sem surpresas. Por trás da “subjetividade” se encaixa um mol-de de universalização e inferências lógicas, seja partindo de observações “empíricas”, seja escorando-se em premissas “simbó-licas”. Segundo essa inserção em cápsula, o ser humano se vê or-bitando em torno de conceitos que já definem a que se destina o seu devir. Nesse ponto, o psiquismo corre o risco de ser reduzido a um conjunto bem urdido de leis e fórmulas normativas, onde o pensamento só pode correr nesses trilhos, sejam eles justificados sob jurisdição da ciência, da linguagem, da biologia ou da cultu-ra. Qualquer argumento que aponte numa direção aberta à dis-cussão que atinja os próprios fundamentos da noção de psique sofrerá medidas contraceptivas, quer dizer, que evitem uma nova concepção, e será alvo de subjeção, em que se interpela o orador adversário e se supõe a sua resposta, dando-se, de pronto, a répli-ca. Nesse caso, o outro, assim como o sujeito, não são mais que referências para algum conceito instituído que passa a nortear to-das as demais compreensões do fenômeno humano, com lugar bem demarcado, onde importa mais a função que as próprias pessoas e as suas interações concretas.

Por outro lado, a ideia de cápsula nos devolve ao tema da ati-tude ego-centrada, quando nos lembra a imagem do ser humano autossuficiente: a autonomia do sujeito como valor maior de vida.

190 Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p.53.

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Kant nos ajudou a entender que não devemos permanecer o resto da vida sob a tutela de uma “autoridade”. Seu pensamento pode ser lido como um “recado” de que não devemos renunciar o esforço para desenvolver uma consciência própria, acatando passivamen-te o discurso de alguém ou as normas sociais instituídas, que são estimadas ou temidas como o suposto lugar do saber, o modelo da ação. Pouco a pouco, foi se degradando o sentido filosófico de au-tonomia, descambando para um desejo cada vez mais irrefletido de autossuficiência que incorre no esquecimento do outro como constituinte da subjetividade. No eixo dos valores, passou-se a adotar uma forma privilegiada de “ponto de vista”. É o ponto de vista tendo como referência para as múltiplas linhas de relação o próprio “eu”, dele partindo, a ele retornando: “o meu ponto de vis-ta”, como “eu me sinto”, “como aparece para mim”, “o meu desejo”, “a minha consciência”, “a minha demanda”. A alteridade se trans-formou em um mero apêndice da subjetividade de cada um.

Finalmente, o ser humano encapsulado tem em sua partitura a melodia do “me deixe na minha”. Nela, encontramos um sujeito cada vez mais perdido em seus afazeres, afagos, razões e carên-cias. Na vida do dia a dia, o outro não passa de uma identidade para o eu. O outro é incorporado, não ao nós, mas ao Isso, ele é objetivado. Sua condição de pessoa é rarefeita pela condição de objeto. Então, não mais existe desejo por pessoas, desejam-se nas pessoas os objetos de um eu perdido dentro de si mesmo.

Quem nos arranca da condição de cápsula, de um cerco fe-chado em torno de si mesmo, girando sobre um eixo esvaziado de um sentido ético para a vida (relativo à constituição do espaço de convivência)?

Se tratamos da existência, devemos admitir que as possibili-dades para desenhar um croqui do destino de cada pessoa estão em aberto. O futuro é uma responsabilidade que acena ao ser humano, já no presente, assim como as cores das pinturas que traçamos e contemplamos no passado são misturadas ao presen-

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te. A posição que tomamos na vida, se não define inteiramente a nossa biografia, uma vez que somos atravessados pelas intera-ções que se constituíram ao longo de nossa existência, que afe-tam as nossas escolhas, ao menos, redefine uma parcela conside-rável da nossa história. A postura que tomamos na existência confunde-se com o sentido que damos às nossas experiências em sua totalidade. É assim que podemos rever a nossa questão em termos do deslocamento da pergunta sobre quem nos arran-ca da condição egocentrada para a questão de como rompemos com essa condição.

Uma proposição, não de resposta, mas de sentido é a ética relacional exposta por Martin Buber.

De que possibilidade de sentido para o trato com o ser hu-mano falamos aqui? Do encontro com o outro. A psicoterapia deve ser uma modalidade de encontro que vise os encontros, ou seja, cuja intencionalidade se volte para um trabalho que resguar-de a linguagem e as imagens psíquicas do sujeito a partir da aber-tura à descoberta de si e do outro no entrelaçamento do Tu com o Isso.

Os encontros nas suas incontáveis modulações oscilam entre o Tu e o Isso, entre a abertura para o outro e o fechamento para esse outro. Vamos deixar a sugestão de que está sendo decidida para cada pessoa, a cada momento, a face desse outro, e a face de si perante esse outro. Não é uma decisão basicamente “mental”, ou simplesmente volitiva, e sim existencial: envolve a destinação de nosso ser para a existência.

Espiamos a aurora do Tu na condição de constituição da pessoa e na experiência da comunidade. O sentido do Tu é o de uma vivência que religa, que vincula, que enlaça. Sentido em aberto, que cada um vai construindo (e desconstruindo) na me-dida em que percorre sua malha de encontros e desencontros.

Inspirados por Buber, admitimos, entre as infindáveis pos-sibilidades existenciais, uma relação do destino com a ação

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mediada pela abertura ao vínculo. Traduzindo: em meio ao processo do vir a ser humano, podemos eleger como um proje-to adotar o horizonte Eu e Tu como um sentido de vida funda-mental. Então, surgiremos diante do outro dispostos à abertura para a comunicação e para o toque. Abriremos mão da onipo-tência da posse para a relação, com todos os seus encargos, ras-gos, delusões, riscos, surpresas, esperanças. E poderemos per-ceber um sentido profundo de subjetividade, alteridade e rela-ção, numa só palavra, poderemos conceber um sentido fecun-do para a Pessoa.

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