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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “SU DOMÍNIO SOBRE NOSOTRAS ERA ABSOLUTO”: UMA REFLEXÃO SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS “INIMIGAS INTERNAS” DAS DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL Janaína Athaydes Contreiras 1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar, a partir de alguns estudos de caso, como o Terrorismo de Estado - empenhando durante as ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul possibilitou que a violência sexual, mais propriamente o estupro (e a escravidão sexual), fosse uma das ferramentas utilizada de forma sistemática para o controle e punição das mulheres identificadas como “inimigas internas” dos regimes ditatoriais. Em todos os países que passaram pela experiência de ditaduras há relatos de memórias, bem como documentos dos julgamentos e Comissões da Verdade, que atestam a utilização desta prática no quadro da repressão. Logo, analisaremos como os agentes repressores, através da total liberdade de repressão e tortura, usaram os corpos das ex- presas políticas como um “botim de guerra”. Priorizaremos neste artigo as questões relativas a escravidão sexual ilustrando com alguns casos de mulheres argentinas que foram presas nos centros clandestinos de detenção e de uma sobrevivente uruguaia, exilada no Brasil, que teve dois filhos frutos desta violência. Ressaltamos que este trabalho pertence a uma pesquisa maior que está em desenvolvimento, entretanto tais dados apontados já são resultados parciais da pesquisa. Diante disto, justificamos a relevância do trabalho, pois a violência sexual empenhada contra as mulheres foi específica e deixou marcas permanentes que impactaram e continuam impactando suas vidas no tempo presente. Palavras-chave: Violência Sexual. Escravidão sexual. Estupro. Ditaduras de Segurança Nacional. Terrorismo de Estado. A violência sexual 2 contra as mulheres é uma realidade que transcende gerações. Por séculos, nas mais diversas sociedades e culturas, em períodos de guerra, batalhas, conflitos civis, ou experiências marcadas por forte autoritarismo, as mulheres acabam sendo visadas pelos grupos 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Brasil. 2 A Organização Mundial da Saúde baseou-se na definição do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde de Heise & Garcia-Moreno, 2002; Jewkes, Sen & Garcia-Moreno, 2002 para a definição. Segundo o relatório qualquer ato sexual, tentativas de obter um ato sexual, comentários ou insinuações sexuais não desejadas, atos de tráfico ou dirigidos contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção, por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer contexto, porém não limitado à penetração da vulva ou ânus com o pênis, outra parte do corpo ou objeto contudo, a definição de estupro pode variar em vários países. Ver em Organização Mundial da Saúde, 2012. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher Ação e produção de evidência. Disponível em: < http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44350/3/9789275716359_por.pdf?ua=1 > Acesso em junho de 2017. Ao encontro da definição sobre violência sexual podemos citar também o trecho que a Corte Interamericana de Direitos Humanos define, segundo o Tribunal Penal Internacional para Ruanda: “La Corte, siguiendo la li ́ nea de la jurisprudencia internacional y tomando en cuenta lo dispuesto en la Convencio ́ n para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra la Mujer, considera que la violencia sexual se configura con acciónes de naturaleza sexual que se cometen en una persona sin su consentimiento, que adema ́ s de comprender la invasio ́ n fi ́ sica del cuerpo humano, pueden incluir actos que no involucren penetracio ́ n o incluso contacto fi ́ sico alguno. Ver em: CARVALHO, Cláudia P. Crimes sexuais e justiça de transição na América Latina: judicialização e arquivos. Florianópolis: Tribo da ilha, 2016. p. 56. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/miolo_crimes- sexuais_final.pdf/ > Acesso em maio de 2017.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

“SU DOMÍNIO SOBRE NOSOTRAS ERA ABSOLUTO”: UMA REFLEXÃO SOBRE A

VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS “INIMIGAS INTERNAS” DAS DITADURAS DE

SEGURANÇA NACIONAL

Janaína Athaydes Contreiras1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar, a partir de alguns estudos de caso, como

o Terrorismo de Estado - empenhando durante as ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul –

possibilitou que a violência sexual, mais propriamente o estupro (e a escravidão sexual), fosse uma

das ferramentas utilizada de forma sistemática para o controle e punição das mulheres identificadas

como “inimigas internas” dos regimes ditatoriais. Em todos os países que passaram pela experiência

de ditaduras há relatos de memórias, bem como documentos dos julgamentos e Comissões da

Verdade, que atestam a utilização desta prática no quadro da repressão. Logo, analisaremos como

os agentes repressores, através da total liberdade de repressão e tortura, usaram os corpos das ex-

presas políticas como um “botim de guerra”. Priorizaremos neste artigo as questões relativas a

escravidão sexual ilustrando com alguns casos de mulheres argentinas que foram presas nos centros

clandestinos de detenção e de uma sobrevivente uruguaia, exilada no Brasil, que teve dois filhos

frutos desta violência. Ressaltamos que este trabalho pertence a uma pesquisa maior que está em

desenvolvimento, entretanto tais dados apontados já são resultados parciais da pesquisa. Diante

disto, justificamos a relevância do trabalho, pois a violência sexual empenhada contra as mulheres

foi específica e deixou marcas permanentes que impactaram e continuam impactando suas vidas no

tempo presente.

Palavras-chave: Violência Sexual. Escravidão sexual. Estupro. Ditaduras de Segurança Nacional.

Terrorismo de Estado.

A violência sexual2 contra as mulheres é uma realidade que transcende gerações. Por

séculos, nas mais diversas sociedades e culturas, em períodos de guerra, batalhas, conflitos civis, ou

experiências marcadas por forte autoritarismo, as mulheres acabam sendo visadas pelos grupos

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Porto Alegre, Brasil. 2 A Organização Mundial da Saúde baseou-se na definição do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde de Heise &

Garcia-Moreno, 2002; Jewkes, Sen & Garcia-Moreno, 2002 para a definição. Segundo o relatório qualquer ato sexual,

tentativas de obter um ato sexual, comentários ou insinuações sexuais não desejadas, atos de tráfico ou dirigidos contra

a sexualidade de uma pessoa usando coerção, por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em

qualquer contexto, porém não limitado à penetração da vulva ou ânus com o pênis, outra parte do corpo ou objeto –

contudo, a definição de estupro pode variar em vários países. Ver em Organização Mundial da Saúde, 2012. Prevenção

da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher Ação e produção de evidência. Disponível em: <

http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/44350/3/9789275716359_por.pdf?ua=1 > Acesso em junho de 2017. Ao

encontro da definição sobre violência sexual podemos citar também o trecho que a Corte Interamericana de Direitos

Humanos define, segundo o Tribunal Penal Internacional para Ruanda: “La Corte, siguiendo la linea de la

jurisprudencia internacional y tomando en cuenta lo dispuesto en la Convencion para Prevenir, Sancionar y Erradicar la

Violencia contra la Mujer, considera que la violencia sexual se configura con acciónes de naturaleza sexual que se

cometen en una persona sin su consentimiento, que ademas de comprender la invasion fisica del cuerpo humano,

pueden incluir actos que no involucren penetracion o incluso contacto fisico alguno. Ver em: CARVALHO, Cláudia P.

Crimes sexuais e justiça de transição na América Latina: judicialização e arquivos. Florianópolis: Tribo da ilha,

2016. p. 56. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/miolo_crimes-

sexuais_final.pdf/ > Acesso em maio de 2017.

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armados fazendo parte do botim de guerra, os bens, as crianças e as mulheres eram entendidos

como os espólios da batalha. Durante as ditaduras de Segurança Nacional (SN), as mulheres que

foram consideradas “inimigas internas”, também, foram alvos da violência sexual.

No período das ditaduras todas as formas de violência foram utilizadas contra presas e

presos políticos. A prática da tortura3 foi aplicada de forma sistemática e em grande escala; pois,

esta era entendida, na lógica da repressão, como um método eficaz para extrair informações e

confissões e para obter a destruição física, psicológica e moral dos presos e presas. A tortura,

combinada com sequestros, execuções extrajudiciais e desaparecimentos de pessoas (e de seus

cadáveres), configurou uma dinâmica complexa de violência, dentro da estrutura do Terrorismo de

Estado, que, segundo Enrique Padrós, “se fundamenta na lógica de governar mediante a

intimidação”. Ou seja, “é um sistema de governo que emprega o terror para enquadrar a sociedade e

que conta com o respaldo dos setores dominantes, mostrando a vinculação intrínseca entre Estado,

governo e aparelho repressivo”. (PADRÓS, 2005, p.64).

A violência do Terrorismo de Estado, principalmente a tortura, foi uma das práticas

utilizadas de forma sistemática em praticamente todas as ditaduras de SN do Cone Sul, tornando-se

a central, entre as diversas modalidades de ações violentas. Entretanto, dentro deste conjunto de

“ferramentas de terror”, é importante registrar uma, de característica específica, utilizada,

principalmente, contra as mulheres: a violência sexual.

Todos los informes existentes sobre la tortura indican que el cuerpo femenino siempre fue

un objeto “especial” para los torturadores. El tratamiento de las mujeres incluía siempre una

alta dosis de violencia sexual. Los cuerpos de las mujeres – sus vaginas, sus úteros, sus

senos -, ligados a la identidad femenina como objeto sexual, como esposas y como madres,

eran claros objetos de tortura sexual [...]. Hay que recordar también que muchas mujeres

detenidas eran jóvenes y atractivas y, en consecuencia, más vulnerables al hostigamiento

sexual (JELIN, 2002, p.102-103).

Durante as ditaduras de SN a maioria das presas políticas sofreu algum tipo de violência

sexual. Homens, presos políticos, também sofreram esse tipo de violência, que era realizada,

geralmente, com o objetivo de afetar a sua masculinidade ou torná-los impotentes (tanto para efeitos

de procriação quanto para manter relações sexuais); contudo, poucos são os registros e denúncias de

conhecimento público.

A violência sexual está inserida na violência de gênero (que é algo muito maior) e engloba

diversos tipos de agressões: morais, verbais, psicológicas e, principalmente, físicas. A maioria das

3 O “Projeto Brasil: Nunca mais” define a tortura como “a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de

sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas [...] com o fim de forçar uma outra pessoa a dar

informações, confessar, ou por outra razão qualquer” Disponível em: <

http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=REL_BRASIL >. Acesso em 10 de setembro de 2015.

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ex-presas políticas sofreu algum tipo de violência sexual. Muitas não falaram à respeito por muito

tempo. Todavia o quadro de denúncias e o entendimento desta forma de violência como algo

especifico, e não como uma forma de tortura, contra as mulheres ganhou mais importância nas

últimas décadas. Sobre as denúncias relacionadas as violações de direitos humanos a tortura

predomina, mas é possível averiguar que há, também, nos relatos das vítimas a acusação do uso da

violência/tortura sexual, principalmente entre as mulheres. Paraguai, Brasil, Uruguai, Chile e

Argentina além de terem pessoas que foram torturadas, há as que foram torturadas sexualmente,

abusadas e/ou violentadas. Cabe aqui explicar que há uma diferença entre tortura sexual e abuso

sexual (que pode ser usada tanto em homens quanto em mulheres). A historiadora Mariana Joffily é

muito didática na explicação desta diferença:

A violência sexual, com um conteúdo mais abrangente, refere-se a toda e qualquer

violência dirigida aos órgãos sexuais, o que era muito comumente praticado, tanto com

homens quanto com mulheres, dada a extrema sensibilidade dessa parte do corpo. O abuso

adquire uma conotação mais específica quando relacionado ao contexto cultural das

representações de como podem ou devem ser as relações entre homens e mulheres, dentre

as quais não se exclui o prazer masculino numa relação sexual imposta à mulher. Contribui

para isso o fato de a extensa maioria dos agentes repressivos ser do sexo masculino. Esta

indiferenciação entre abuso e violência sexual está certamente na raiz da proximidade

percentual entre as vítimas de sexo feminino e masculino relativamente a esta modalidade

de tortura (JOFFILY, 2010, p. 124)

Portanto, muitos presos e presas politicas receberam, durante as sessões de tortura, a tortura

sexual. Seus órgãos sexuais sofreram diversas formas de violência (choque, soco, cortes,

mutilações, queimaduras, entre outras), já os abusos sexuais, de fato, atingiram em maior escala as

presas política; porque os corpos femininos eram entendidos como objetos sexuais; ou seja,

serviram também para satisfazer os desejos dos agentes, que eram em grande parte homens.

As denúncias sobre violência sexual são recentes, mas são cada vez mais crescentes. Isto

evidencia – para os casos das ditaduras de SN – que tal prática foi utilizada de forma sistemática e

destrutiva. As violações, os abusos, e torturas sexuais foram empenhados como método para

castigar, destruir e, também, como forma de apropriação dos corpos das vítimas. Foi um modelo

que se aproxima e integra a concepção de que a violência sexual - contra mulheres - é muito mais

recorrente e agressiva em períodos de guerras ou conflitos armados. Usa-se o corpo das mulheres

para subjugá-las, domina-las, castiga-las, e também para mostrar para os homens que tenham

alguma relação pessoal com elas (pai, filho, irmão, marido, companheiro político ou de grupo de

resistência), que elas são, também, um território a ser disputado. Logo, a violência sexual também é

usada de forma política nas estratégias belicosas. Independente do período que seja analisado há,

nestes contextos de extrema violência, a interpretação (pelo masculino) de que o corpo das

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mulheres (ou o corpo feminino4) é passível de ataque, pode tornar-se objeto de prazer, de

dominação e, também, disputa de poder.

A violência sexual praticada no marco do Terrorismo de Estado, durante as ditaduras de SN,

se demonstrou excepcional. É possível ver, nas experiências traumáticas, como a hierarquização de

gênero está presente, reafirmando o poder hegemônico do masculino sob o feminino e ao mesmo

tempo ocultando tais prática, mantendo-as na invisibilidade, pois muitas das sobreviventes

silenciaram por muito tempo, seja por culpa, por vergonha, por acreditarem que foram responsáveis

pelos danos que sofreram ou porque os espaços de escuta não estavam interessados em ouvir tais

especificidade.

Neste artigo, sobre a Argentina apresentaremos alguns recortes de relatos - de pessoas que

passaram pela experiência da tortura e da violência sexual - extraídos do Informe final realizado

pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP)5 publicado em 1985, e

também do livro de relatos sobre as experiências traumáticas que muitas mulheres passaram nos

Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) durante os anos da ditadura neste país. Este livro foi

organizado pelas sobreviventes do período, Miriam Lewin6 e Olga Wornat7, e intitula-se: Putas y

Guerrilleras: crímenes sexuales en los centros clandestinos de detención. La perversión de los

represores y la controversia en la militancia. Las historias silenciadas. El debate pendiente. E para

o caso do Uruguai utilizaremos o caso de uma sobrevivente uruguaia, exilada no Brasil, que teve

dois filhos frutos das violações. A partir destes relatos é possível construir uma reflexão inicial

sobre como a violência estatal se deu neste contexto.

Repressão e violência sexual

As ditaduras no Cone Sul, de modo geral, cercaram-se de práticas completamente ilegais,

sob o verniz da legalidade, para caçar e destruir os considerados “inimigos internos” (inimigos

ideológicos). Os mecanismos de terror estatal puderam ser utilizados de forma massiva e

sistemática, pois respaldaram-se e foram estimulados, principalmente, a partir do alinhamento do

Estado com a Doutrina de Segurança Nacional (DSN); teoria elaborada pelos Estados Unidos da

América logo após o final da II Guerra Mundial. Sua criação surgiu da necessidade de fortalecer a

4 Pessoas que nascem, biologicamente, num corpo masculino, mas que se identificam com o gênero feminino

(transexuais e travestis) podem ser alvos de violência sexual da mesma forma. 5 Esta comissão foi criada no governo de Raúl Afonsín em dezembro de 1983 com o objetivo de esclarecer e investigar

os desaparecimentos de pessoas realizados durante os anos da ditadura de 1976 da Argentina. 6 A jornalista Miriam Lewin foi presa política e ficou desaparecida no centro clandestino de detenção Escuela Superior

de Mecánica de la Armada 7 A jornalista Olga Wornat exilou-se durante os anos que ocorreram a ditadura na Argentina (1976-1983).

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segurança nacional estadunidense contra a influência da União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas nos países considerados pertencentes às zonas de influência capitalista.

A institucionalização da violência foi tão abrangente entre os membros das Forças Armadas

e policiais que isto possibilitou a minimização da culpa entre os agentes envolvidos nas práticas.

Entretanto, houve também um outro elemento que, também, facilitou o exímio da culpa: a

desumanização das vítimas. Havia todo um processo de desconstrução da identidade dos

interrogados, pois para os agentes o “subversivo” era um inimigo de alto risco e precisava ser

destruído, logo, não poderia ser visto como alguém indefeso que estava sofrendo. Durante as

sessões de tortura lhes tiravam as roupas, deixando somente o capuz (ou algo parecido que cobrisse

o rosto) e o transformavam em um corpo sem rosto, sem identidade. Essa

coisificação/desumanização das presas e presos políticos permitia legitimar qualquer violência

aplicada como estratégia de interrogatório sem a existência da culpa. O próprio uso do capuz

anulava a identidade da pessoa que o usasse; eram corpos sem expressões faciais, sem

características próprias. Nesta lógica da desumanização foi possível a perpetração de práticas

terríveis: saques, sequestros de pessoas, bem como a utilização da tortura e a violência sexual de

forma indiscriminada, principalmente, contra as mulheres que estavam detidas. Pois elas ficavam a

mercê dos agentes repressores que estavam amparados por um Estado que, também, permitia todos

os tipos de violência e abusos sexuais.

O médico Liwsky que foi preso em 5 de abril de 1977 na Argentina denunciou à CONADEP

o que lhe ocorreu enquanto foi preso político:

En algún momento estando boca abajo en la mesa de tortura, sosteniéndome la cabeza

fijamente, me sacaron la venda de los ojos y me mostraron un trapo manchado de sangre.

Me preguntaron si lo reconocía y, sin esperar mucho la respuesta, que no tenía porque era

irreconocible [...] me dijeron que era uma bombacha de mi mujer. Y nada más (CONADEP,

1985, p. 18)

Podemos perceber, a partir do seu testemunho, que ao mostrarem uma calcinha com

manchas de sangue para ele dizendo que era da sua esposa a mensagem era clara. Os agentes

induziam o preso a pensar que havia sido cometido ou poderia ocorrer estupros das mulheres

(esposa, filha, irmãs, etc). Uma das formas utilizadas para desestruturar ou para conseguir arrancar

informações de homens que tinham alguma relação pessoal com alguma mulher. E, de fato, em

muitos casos o estupro era consumado; não era apenas uma insinuação ou ameaça. Outro caso

semelhante a esta situação é o de Fernando Rule que foi levado para o centro clandestino D2 em

Mendoza. Ele se recorda que “le hicieron “manosear” a su mujer, desnuda y colgada de la puerta de

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um calabozo, mientras los repressores le describían cómo la violaban (Lewin; Wornat, 2014, p.

211). Ainda no mesmo depoimento, Fernando Rule faz a seguinte constatação:

Querían que tuviésemos claro que podían hacer com nosostros lo que quisieran. Querían

que colaboráramos, que les diéramos información, pero nos robaban las Mujeres. Así como

nos robaban la heladera y el televisor, nos robaban las Mujeres. Necesitaban dejar en claro

que nos despojaban de todo, hasta de ellas (LEWIN; WORNAT, 2014, p. 212)

As questões que envolveram abusos e estupros feriam a moral dos homens, e estes se

consideravam incapazes de proteger suas mulheres, ou sentiam-se desonrados. Miriam Lewin e

Olga Wornat falam sobre isso em seu livro: “Una ex desaparecida visitada en la cárcel por su padre,

relata que él le preguntaba insistentemente si la habían violado. [...] Outra, cuando le contaba a su

hermano que había sido sometida sexualmente, recebía como respuesta un “no exageres, no habrá

sido para tanto””. A socióloga Inés Hercovich, também citada por Miriam e Olga, relata um caso

semelhante:

una mujer le dijo en una entrevista: ‘Yo no sé quién me dano más, se el violador o mi

papá’. Cuando ella llegó a su casa lastimada, violada por vários hombres y le contó a su

padre, él de imediato la subió a su camioneta para buscar a los violadores. No la escuchó.

No la ayudó ni siquiera a lavarse la cara. El padre se habia convertido em la victíma

principal, em el personaje central. Su hija violada y degradada ocupaba um lugar

secundário (LEWIN; WORNAT, 2014, p. 212).

A violência sexual ultrapassou o objetivo de causar dores físicas, sua aplicabilidade

transmite mensagens relacionadas as questões morais concebidas para cada gênero. Tanto para o

homem quanto para a mulher este tipo de violência é degradante, humilhante e a dor física é

bastante presente. Não é possível pensar nos casos de homens e mulheres que tiveram objetos

condutores de eletricidades inseridos em seus corpos como algo apenas moral. Este tipo de

violência foi usado para aumentar a dor física das vítimas e causar-lhes, também, a humilhação e o

sentimento de derrota em não poder proteger aquilo que consideram mais íntimo no seu corpo. O

caso do médico Liwsky, citado anteriormente, também ajuda a perceber que este tipo de tortura

sexual foi explorado nos corpos masculinos:

Empezaron a retorcerme los testículos. No sé si era manualmente o por médio de algún

aparato. Nunca sentí dolor semejante. [...] Otro día me llevaron y, a pesar del tamaño de los

testículos, me acostaron uma vez más boca abajo. Me ataron y, sin apuro, desgarrando

conscientemente, me violaron introduciéndome em el ano un objeto metálico. Después me

aplicaron electricidad por médio de ese objeto, introducido como estaba. No sé describir la

sensación de cómo se me quemaba todo por dentro (CONADEP, 1985, p. 31).

Muitos dos centros clandestinos que foram utilizados pelo sistema repressivo possibilitaram,

além de todas as violações de direitos humanos ocorridas, que os agentes cometessem estupros e

abusos sexuais diversas vezes, em várias mulheres; muitas delas foram vítimas de estupros e abusos

por mais de uma agente torturador. Os homens e mulheres que foram detidos nestes centros,

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ficaram à mercê de violações de direitos humanos cometidos por agentes da mais baixa patente até

os chefes dos centros.

Conforme os relatos analisados podemos identificar que algumas mulheres foram vistas por

alguns oficiais como “propriedade”, outras foram escolhidas para atender sexualmente as

necessidades das tropas. A finalidade é a mesma: prazer sexual, dominação, poder. Mas as formas

foram diferentes. Também vale ressaltar que algumas mulheres foram estupradas propositalmente

na frente de seus companheiros; com o objetivo da punição. Ou seja, o objetivo da violência muda,

crime, mas não a perversidade e muito menos a forma: violência sexual é violência sexual.

A depoente C.G.F8 relatou à CONADEP que além de passar por toda a degradação da

tortura acabou submetendo-se ao desejo sexual do agente. Este lhe propôs liberta-la se ela aceitasse

fazer sexo com ele. Outra depoente, nominada pela CONADEP por M., relatou a violência que

sofreu no local que foi levada sem saber identificado. Era uma espécie de acampamento com lonas

e toldos.

Luego la ataron de los pies y de las manos com cables y le pasaron corriente eléctrica. A

partir de ahi tuve convulsiones, ellos decían que eso era el adiestramiento que necesitaba

para que confessara. Luego desdudaron y la violaron. [...] Tambiém recuerda claramente

que la paseaban desnuda por la galería, que la violaron varias veces, no recuerda si eras,

recuerda conscriptos o gendarmes, recuerda que para esa época tenía muchas perdidas y

ella ya para esse entonces se dejaba morir, que ya no le importaba nada, ya ni lloraba.

(CONADEP, 1985, p. 51-52).

No relato sobre o caso de M. podemos perceber que além da tortura sexual a depoente foi

diversas vezes estuprada enquanto esteve presa. Situações como estas não foram casos isolados.

Tanto C.G.F., quanto M passaram pela mesma experiência. Sofreram abusos sexuais dos mais

variados e foram violentadas diversas vezes. Dos casos de mulheres que foram constantemente

violentadas, por mais de um agente existem vários, mas apontaremos apenas alguns, como o caso de

Elena Alfaro que além de relatar o que lhe ocorreu, durante os julgamentos da Junta Militar em

1985 na Argentina, apontou outros casos de mulheres que também passaram pelo centro onde

esteve presa; El Vesubio. Elena foi sequestrada no ano de 1977 e quando foi solta, no ano de 1982

exilou-se na França. Quando ocorreram os julgamentos das Juntas ela fez suas declarações diante da

Câmara Federal sobre a situação das mulheres que foram sequestradas:

Nosotras, como Mujeres, estábamos en una situación a merced de cualquier fuerza o

cualquier hombre que estuviera ahí, salvo por supuesto, los detenidos que no harían una

cosa por el estilo. Yo sé del caso de Graciela Moreno, una de las detenidas, que fue violada

mientras estaba en las duchas. De Elsa, de María del Pilar García, que también fue violada.

(LEWIN; WORNAT, 2014, p. 105-106).

8 Respeitamos as siglas utilizados no texto escrito da CONADEP.

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Durante a descrição (realizada por Olga Wornat), sobre o caso de Elena, há, também, mais

alguns outros casos que a depoente lembrou, como as três desaparecidas: Silvia, Elena e Tana.

Sobre estas três mulheres ela disse que o torturador Durán Sáez as levou com ele. Em 1977 as três

mulheres que formaram o harém de Durán foram transladadas9. Elena contou que, também, recebeu

ordens para ir com Dúran, onde acabou sendo estuprada. Ela estava gravida de quatro meses quando

este episódio ocorreu. Já Alícia (uma outra vítima lembrada por Elena) sofreu estupro coletivo na

enfermaria. Elena afirma que isso não foi um caso isolado e que Beatriz (também outra vítima

citada) sofreu felação na presença de seu filho pequeno de 3 anos. Já Alejandra Naftal uma

secundarista de 17 anos foi sequestrada em 1978 e levada, também, para El Vesubio onde sofreu

estupros e, no seu depoimento, ela relata que, o seu estuprador era conhecido como “la vaca”, além

dos abusos ele a ameaçava com a sua sobrinha de dois anos de idade.

No centro clandestino La Cueva a perversão e crueldade também imperou. Marta (outra

depoente) contou a experiência que passou enquanto esteve sequestrada neste centro para as autoras

Lewin e Wornat:

Una día, Charles la llevó a limpiar la mesa que ataban a los torturadores para picanearlos.

Com un balde y un trapo, com la capucha semilevantada, Marta quitó restos de sangre y de

excrementos de la superfície bajo la mirada del verdugo.[...] Pero Charles no le dio tempo a

comoverse. La empujó sobre un camastro que había en la habitación y la violó.[...] Marta se

mordió los lábios mientras el monstruo la penetraba. [...] No fue la única vez. Tampouco

fue Marta la única victíma de esse suboficial de la Fuerza Aérea que se llamaba Gregório

Molina. Usaba un anillo cuadrado [...] y golpeaba a Marta com el borde en el brazo, como

anticipándole que había llegado el turno de otro sometimiento. Sólo uma vez, ella quebro el

silencio para perguntarle: ?por qué? “Así, com essas dos palavras. “Porque vo sos uma

señora y afuera no me darías pelotas”, le contestó el violador. (LEWIN; WORNAT, 2014,

p. 141).

Marta foi submetida sexualmente diversas vezes pelo torturador Gregório Molina, tornando-

se um objeto sexual “à disposição”. Não era pouco comum que mulheres, na condição de presa

política, fossem “escolhidas” por agentes da repressão. Este foi o caso da a uruguaia Rosa10.

Rosa11 é uma ex-presa política, sobrevivente da ditadura do Uruguai e residente no Brasil

(Porto Alegre). Ela era estudante de medicina e atuava no movimento estudantil, tinha 19 anos

quando foi presa. A sua primeira prisão ocorreu em 21 de julho de 1973, um mês após a

oficialização da ditadura uruguaia. Rosa relata que quando acordou – depois de ser presa - era de

noite, pouca claridade, em um local ao ar livre - ela acredita ser a praça de armas do quartel

9 Termo usado para dizer que uma pessoa que estava em algum centro clandestino de detenção foi desaparecida;

assassinada. 10 Por questões de privacidade ocultaremos o sobrenome da depoente. 11 Foram realizadas duas entrevistas orais com a depoente Rosa para o trabalho de dissertação de mestrado, desta autora,

que será concluído no ano de 2018.

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comandante da marinha em Montevideo. Relata que ao acordar, percebeu que estava amarrada pelas

mãos (pendurada), nua, com as pernas abertas e com o corpo ensanguentada. Relata que foi

submetida a torturas e abusos. Rosa passou por vários espaços de detenção: a praça de armas, na

chefatura de polícia - que fica no centro de Montevideo -, em uma sala branca (possivelmente

alguma enfermaria), em vagões, mas não sabe ao certo, podem ser, também, containers e na 9ª

Cavalaria, lugar quando um dos Ferreiras (militares), José Eduardo, a capturou. Rosa relata que foi

muito violentada na chefatura e nos demais espaços e que foi em algum destes locais que ficou

grávida da sua primeira filha (M)12. Ela não sabe se a sua primeira gravidez foi de algum dos

Ferreiras, mas acredita que não, por causa dos diversos estupros que sofreu, cometido por diversos

agentes, nos espaços de repressão em Montevideo.

Quando ela já estava no 7º mês de gravidez foi levada pelos irmãos Ferreiras para uma

cidade no interior do Uruguai. A família Ferreira era praticamente a dona da cidade; o cartório local

era da família, assim como a policlínica onde nasceu seus filhos. Rosa relata que foi obrigada a

casar com um deles, Carlos Maria, um dos irmãos que foi expulso do exército e que inclusive era

alcoólatra. Como Rosa era menor de idade (para a legislação uruguaia da época) e só poderia casar

com a permissão dos pais, foi feito, neste cartório local, uma certidão de nascimento com a data

falsa para que a união matrimonial fosse realizada dentro da legalidade.

A filha de Rosa nasceu em 12 de junho de 1974 e três meses depois ela ficou grávida do

segundo filho; este sim, provavelmente de um dos irmãos Ferreiras. Quando falamos um dos irmãos

Ferreiras é porque ela afirma que dos 4 irmãos, 3 abusavam sexualmente dela e que ela não podia

sair sem a presença de algum deles. Os três lhe agrediam fisicamente, além dos abusos e estupros.

Seu filho (E)13 nasceu um ano e cinco dias após o nascimento de sua filha (M) em 1975.

Da menina eu não sei e dele eu também não sei, teoricamente é de um dos Ferreiras. Por

que? Porque depois que to lá... E aí nasce a (M) e tal. Tá? Com 3 meses eu engravido do

meu filho. Como é que eu sei que é três meses? Porque levou um ano e cinco dias. É só

fazer a conta. Eu não lembro de quando, não lembro como eu lembro que ela era muito

pequena, voltei para Montevideo. A esta casa em Paulo Perez, 4434, que é esta casa que a

gente estava buscando e que achamos e que estava exatamente igual [...]14.

A partir do ano de 1977, Rosa relatou que passou a morar numa casa clandestina onde

passavam vários militares e que neste espaço havia, também, outras mulheres. Umas habitavam a

casa e outras, apenas, passavam por lá.

Tem várias peças. Tá? É um corredor, tem uma casa na frente e depois tem um corredor.

Tá? Atrás, que são várias peças, que tem em cada peça mora gente e eu era uma dessa

12 A pedido da depoente será mantido em sigilo o nome de seus filhos. 13 Idem. 14 Trecho extraído da primeira entrevista oral.

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gente, como... e... e ali só tem militares, todos os homens que tem ali, são só homens

militares. E tem mulheres, e tem algumas crianças. Só que uma, não me lembro do nome

dela, me lembro do nome do gurizinho pequeno dela que agora deve ser um homem,

William, mas eu não me lembro do nome dela. E ela tinha duas crianças. Tinha esse menino

e uma menina, que segundo eu me lembro, ela era mulher de algum sargento, mas tinha as

outras peças que tinham outros militares que tinham outras mulheres. Inclusive, o Ferreira,

o sargento Ferreira, vamos dizer o patriarca, o maior de todos eles, dos três irmãos, aliás,

mais irmãos, mas dali. Aí, assim... o Ferreira tinha a Mabel também que eu me lembro, que

depois eu nunca mais vi ela, que a gente se conversava.

Rosa menciona, também, que esta casa foi utilizada por homens ligado às Forças Armadas

tanto para moradia como, possivelmente, um espaço para manter algumas mulheres, ou para levar

outras que pudessem lhes atender. É possível inferir que Mabel, citada por Rosa, seja um familiar

de algum preso político, pois algumas mulheres relataram que se sujeitaram aos abusos sexuais dos

agentes em troca da liberdade ou para melhorar a qualidade do seu familiar preso. A existência de

outras mulheres como moradoras fixas e com crianças possibilita pensarmos duas possibilidades

plausíveis. Poderiam ser esposas, de fato, dos militares e/ou algumas estarem na mesma condição

de Rosa: escrava sexual.

Embora pouco se fale no Uruguai sobre a violência sexual cometida pelos agentes do

Estado, o caso de Rosa não é isolado neste país. Em outubro de 2011 uma denúncia judicial coletiva

de 28 mulheres veio a público. Uma das porta-vozes do grupo, Beatriz Benzano, relatou que todas

as mulheres foram vítimas de alguma forma de tortura ou abusos sexuais. Em um dos vídeos

disponíveis no YouTube ela fala sobre a cumplicidade entre os militares e quais as práticas de

tortura sexual e abuso que as mulheres passaram.

Acusamos desde o comandante, que era o responsável primeiro, até o último alferes. Todos

os oficias, porque todos eram cumplices, todos sabiam o que estavam fazendo nos quarteis.

[...] Desde a nudez forçada, exposta, exposta aos olhares da tropa, exposta na praça de

armas nos quarteis. Também quando tomávamos banho, assistiam ao banho, [...] desde a

nudez forçada até as distintas e aberrantes formas de violência sexual, como violação, com

o sem penetração, com bichos, com cachorros [...] com vara também. Distintas formas e

todas selvagens e aberrantes 15.

O que ocorreu com as presas políticas do Uruguai se assemelha com as práticas de violência

existentes no Paraguai, Brasil, Chile e Argentina. Na maior parte das vezes as mulheres que foram

presas neste período passaram por torturas, tortura sexual e ainda foram vítimas de abusos e

estupros sistemáticos. Em muitos espaços clandestinos, espaços militares ou policiais a violência

sexual foi massiva. As presas destes espaços eram, também, o botim das tropas. Os agentes, que ali

circulavam, abusavam dos seus corpos. As vezes cometiam os abusos de forma individual e em

outros momentos de forma coletiva. Eles escolhiam os seus “troféus” e faziam o uso indiscriminado

15 Traduzido por esta pesquisadora. “Era salvaje, aberrante”: relatos de mujeres abusadas em ditadura” da emissora

Subrayado. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=QbMQrw57maw > Acesso em junho de 2017.

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dos corpos das presas. As denúncias feitas na Argentina informam que a prática da escravidão

sexual foi usual na maioria dos centros clandestinos de detenção daquele país.

Na Argentina, Graciela García Romero (la negrita) esteve presa na Escuela Superior de

Mecánica de la Armada (ESMA) e cruzou com alguns dos piores torturadores: Antonio Pernías

(Rato), González Menotti (el gato), Francisco Whamond (el duque) e Jorge Acosta (el tigre).

Segundo Graciela, destes homens o que lhe transformou em uma escrava sexual foi Acosta (el

tigre), um dos mais importantes oficiais do centro. Acosta a levou para um dos apartamentos que

eram usados pelos agentes para levar as presas políticas e abusarem sexualmente delas. Mesmo que

Acosta não utilizasse de golpes ou agressões físicas ao estuprar Graciela, a situação toda já era uma

violência. Miriam Lewin fala sobre a impossibilidade de defender-se dos agentes: “ninguna de

nosotras tenía posibilidad de resistirse, estábamos bajo amenaza constante de muerte en un campo

de concentración. Estábamos desaparecidas, si derechos, inermes, arrasada nuestra subjetividad. Su

domínio sobre nosotras era absoluto [...] Ellos eran nuestros dueños absolutos”. (LEWIN;

WORNAT, 2014, p.19)

Muitas mulheres, como Rosa e Graciela, ou, talvez, até mesmo a Mabel (mencionada por

Rosa) “consentiram” o estupro porque estavam numa situação em que não tinham escolha. Estavam

na condição de reféns em espaços desconhecidos. Não tinham com quem contar e/ou confiar.

Precisavam sobreviver e, para tal, sabiam que resistir ao ato sexual forçado era inútil e perigoso. Ao

mesmo tempo sabiam que “aceitar” ser o objeto sexual dos agentes não era garantia de segurança ou

vida. Algumas destas mulheres que sofreram abusos e estupros estão nas listas dos mortos e

desaparecidos políticos dos países do Cone Sul, isto demonstra que estar nas mãos dos torturadores

e “servi-los” de qualquer forma não era garantia de vida.

Considerações finais

Tentamos problematizar neste artigo, de forma geral, a questão da violência sexual,

especificamente o estupro (e escravidão sexual) praticado contra as mulheres que foram vítimas da

violência estatal durante as ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Buscamos esboçar, por

estes pequenos relatos, as especificidades desta violência. Desta forma, podemos identificar que a

violência sexual foi utilizada de forma sistemática, deliberada e cruel. As motivações para tais

práticas foram várias. Algumas foram violentadas na frente de seus maridos/companheiros para

agredir a moral dos homens, outras foram torturadas sexualmente como uma dupla punição, pois

eram “inimigas internas” e não representavam o papel social que lhes cabia e adentraram no

político, dito “mundo masculino”.

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Algumas das mulheres que foram estupradas, o foram porque despertaram o interesse sexual

nos agentes, outras serviram como recompensa para as tropas e outras foram interpretadas como um

troféu, tornando-se escravas exclusivas de um oficial; como o caso de Graciela ou o harém relatado

por Elena. Não há como dizer qual foi a pior experiência. O que devemos ressaltar é que a

experiência de estar na condição de sequestrada em um centro clandestino possibilitou que o

sistema (seus agentes) extrapolassem todos os limites morais e sociais para ferir, degradar, matar e

desaparecer corpos, e, ainda, para o caso das mulheres, abusar sexualmente e estuprar

sistematicamente.

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junho de 2017.

"His domain over us was absolute": a reflexion about sexual violence against the "intern

enemies" of National Security Dictatorship

Abstract: The following paper has the objective to present, using some case studies, how the State

Terrorism - used by the National Security Dictatorships of the Cone Sur - made possible that the

sexual violence, specifically rape and sexual slavery, to be used systematically as a tool to control

and punish women identified as "intern enemies" of the dictatorial regimes. There are testimonies,

as well as documents of trials and Truth Commissions', that attest the use of this kind of violence by

the repression. Then, will be analysed how the repressive agents had the total freedom to torture and

use the bodies of the ex-political prisoners as a war booty. The paper will focus the questions

around sex slavery using some cases of argentineans who were in clandestines' detention centers

and an uruguayan, exiled in Brazil, who had two children as a result from this violence. This paper

belongs to a larger research in development and the dada presented here are some of the parcial

conclusions. Therefore the importance of the paper resides in the specificity of sexual violence

against women in that period, which left permanent marks that impact till this day the lives of these

women.

Keywords: Sexual violence, Rape, Sexual slavery, National Security Dictatorships, State's

Terrorism.