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FILOSOFIA E DIREITO Ilícitos atípicos Manuel Atienza Juan Ruiz Manero Ilícitos atípicos Manuel Atienza Juan Ruiz Manero Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder

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FILO

SOFI

A E

DIR

EITO

Ilícitos atípicosSobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder

A noção de “ilícitos atípicos” é abordada a partir de duas ideias fundamentais. A primeira indica que o abuso do direito, a fraude à lei e o desvio de poder obedecem a uma mesma lógica, sendo concretizações de um mesmo conceito geral. A segunda caracteriza os ilícitos atípicos – diferenciando-os dos ilícitos típicos – como uma oposição aos princípios (não às regras) do sistema jurídico. De qualquer modo, a importância prática dos ilícitos atípicos vincula-se à importância dos princípios jurídicos no “paradigma constitucional”. O tipo de jurista que o Estado de Direito Constitucional necessita precisa ser capaz de detectar e reagir frente à peculiar forma de atentado ao direito implicadas nos ilícitos atípicos: o abuso do direito, a fraude à lei e o desvio de poder.

Manuel Atienza

Catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Alicante, Espanha. Manuel Atienza é diretor da Revista Doxa e foi vice-presidente da IVR (Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social). É também Doutor Honoris Causa de diversas universidades latino-americanas, tendo escrito sobre a teoria dos enunciados jurídicos, o marxismo jurídico, a bioética, a teoria e a técnica da legislação e da argumentação.

Juan Ruiz Manero

Catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Alicante, Espanha. Juan Ruiz Manero é membro do conselho editorial da Revista Doxa e autor de uma série de livros e artigos na área de sua especialidade, muitos dos quais em parceria com Manuel Atienza.

FILOSOFIA E DIREITO

Entre as muitas maneiras de abordar o estudo do Direito nas sociedades contemporâneas, a análise filosófica indubitavelmente desempe-nha papel de grande relevância. Esta relevân-cia manifesta-se no modo de se conhecer as bases filosóficas de nossas instituições jurídi-cas e, desse modo, compreendê-las e subme-tê-las à crítica.

A coleção Filosofia e Direito passa a ser edita-da em português como uma contribuição ao enriquecimento do debate filosófico na cultura jurídica brasileira, combinando a publicação de textos escritos em português com a tradução de obras originalmente escritas em outras lín-guas, de modo que as contribuições decorren-tes da filosofia, da lógica, da teoria da lingua-gem, da filosofia da ciência, da filosofia da mente, da filosofia moral e da filosofia política constituam extensão conveniente aos horizon-tes da nossa compreensão do Direito.

Ilícitos atípicos

Manuel A

tienza Juan Ruiz Manero

Ilícitos atípicos

Verdad, error y proceso penalLarry Laudan

Entre la autoridad y la interpretaciónJoseph Raz

Prueba sin convicción. Una teoría racional de la pruebaJordi Ferrer Beltrán

Estándares de prueba y prueba científicaCarmen Vázquez (ed.)

Perspectivas pragmatistas en filosofía del derechoSusan Haack

As Coleções Marcial Pons possuem projeção ibero-americana. Suas obras são publicadas em português e castelhano.

Alguns dos nossos próximos títulos:

Técnicas de interpretação jurídicaPierluigi Chiassoni

Pensando como um advogadoFrederick Schauer

Interpretação e argumentaçãoRiccardo Guastini

O conceito e a natureza do direitoRobert Alexy

A provaMichele Taruffo

ISBN 978-85-66722-12-3

FILOSOFIA E DIREITO

A provaMichele Taruffo

Estudos sobre lógica e direitoJuliano Maranhão

Ilícitos atípicos. Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poderManuel Atienza e Juan Ruiz Manero

Introdução à teoria do direitoAdrian Sgarbi

O conceito e a natureza do direitoRobert Alexy

O direito dos direitosCarlos Bernal Pulido

Positivismo jurídico lógico-inclusivoJuliano Maranhão

Uma discussão sobre a teoria do direitoJoseph Raz, Robert Alexy, Eugenio Bulygin

Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatosMichele Taruffo

www.marcialpons.com.br

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o Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder

facebook.com/marcialpons.brasil

MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SãO PAULO

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Coleção

Filosofia e Direito

Direção

Jordi Ferrer José Juan Moreso

Adrian Sgarbi

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MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SãO PAULO

Marcial Pons

MAnuel AtIenzA

JuAn RuIz MAneRo

IlíCItoS AtípICoSSobre o abuso de direito,

fraude à lei e desvio de poder

tradução

Janaina Roland Matida

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ColeçãoFilosofia e Direito

DireçãoJordi FerrerJosé Juan MoresoAdrian Sgarbi

Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poderManuel Atienza, Juan Ruiz Manero

título original: Ilícitos atípicos

TraduçãoJanaina Roland Matida

Capanacho pons

Preparação e editoração eletrônicaIda Gouveia / Oficina das Letras®

todos os direitos reservados. proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo – lei 9.610/1998.

© Manuel Atienza, Juan Ruiz Manero© Janaina Roland Matida © MARCIAl ponS eDItoRA Do BRASIl ltDA. Av. Brigadeiro Faria lima, 1461, conj. 64/5, torre Sul Jardim paulistano Cep 01452-002 São paulo-Sp ( (11) 3192.3733 www.marcialpons.com.br

Impresso no Brasil [01-2014]

Cip-Brasil. Catalogação na PublicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

14-08208 CDu: 340.12

A888i

Atienza, Manuel. Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder / Manuel Atienza,

Juan Ruiz Manero ; tradução Janaina Roland Matida. - 1. ed. - São paulo: Marcial pons, 2014.

(Filosofia & Direito)

tradução de: Ilícitos atípicosInclui bibliografiaISBn 978-85-66722-12-3 1. Direito - Filosofia. I. Manero, Juan Ruiz. II. Título. III. Série.

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SumáRio

BReVe notA DA tRADutoRA .......................................................... 11

ApReSentAção .................................................................................... 13

CApítulo I

IntRoDução ......................................................................................... 17

1. A teoria geral do Direito e o conceito de ilícito: as razões de uma ausência ................................................................................................. 17

2. Regras e princípios ................................................................................ 19

3. O elemento justificativo das normas ..................................................... 22

4. Uma definição de ato ilícito .................................................................. 24

5. A classificação dos atos ilícitos em típicos e atípicos ........................... 25

6. Classes de ilícitos atípicos. O papel dos princípios na definição da conduta ilícita ........................................................................................ 27

CApítulo II

o ABuSo De DIReIto ........................................................................... 31

7. O surgimento da figura e seu porquê .................................................... 31

8. A disposição do art. 7.2 do Código Civil espanhol e as normas expressadas por ela ............................................................................... 34

9. «Abuso de direito» como termo que designa uma propriedade valorativa. A distinção entre significado e condições de aplicação ...... 35

10. As condições de aplicação do abuso segundo a jurisprudência ........... 37

11. princípios e moralidade positiva. uma posição equivocada ................ 39

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9introdução

12. o direito de propriedade e o abuso de direito ...................................... 42

12.1 o abuso de propriedade como conjunto de posições normativas 42

12.2 A justificação da propriedade. Justificações últimas e justifica-ções utilitárias na adscrição de direitos. A justificação da estru-

tura normativa da propriedade como justificação «mista» .......... 43

12.3 Razões justificativas da propriedade e abuso de direito .............. 46

13. Uma definição de abuso de direito... .................................................. 48

14. ... e sua aplicação a um caso paradigmático ....................................... 49

15. uma estrutura normativa de dois níveis, mas situados ambos dentro do Direito ............................................................................................. 50

16. Abuso de direito e lacuna axiológica no nível das regras .................... 52

17. Cabe o abuso de direito em relação aos direitos fundamentais? ......... 53

CApítulo III

A FRAuDe À leI ..................................................................................... 57

18. Quando e por que surge a fraude à lei .................................................. 57

19. Fraude à lei e normas que conferem poder .......................................... 59

20. A estrutura da fraude à lei .................................................................... 62

21. Uma definição de fraude à lei... ......................................................... 63

22. ... e sua aplicação a um caso paradigmático ........................................ 66

23. o que é e o que não é fraude ................................................................ 67

24. Fraude à lei, aplicação e interpretação do Direito ................................ 69

25. Fraude à lei e abuso de direito ............................................................. 71

26. nota sobre a fraude à lei no Direito internacional privado .................. 72

CApítulo IV

o DeSVIo De poDeR............................................................................. 75

27. origem e sentido da instituição ............................................................ 75

28. Poderes privados e poderes públicos: fins e discricionariedade .......... 77

29. Uma definição de desvio de poder ....................................................... 79

30. Desvio de poder, fraude à lei e abuso de direito .................................. 80

31. Aplicação da definição a um caso paradigmático ................................ 81

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10 Manuel atienza | Juan Ruiz ManeRo

32. Algumas consequências da definição ................................................... 82

33. os requisitos do desvio de poder ......................................................... 84

34. Fins de interesse geral, mas proibidos? ................................................ 88

35. Caráter subjetivo ou objetivo do desvio? ............................................. 90

CApítulo V

SoBRe A lICItuDe AtípICA ............................................................... 93

36. três supostos de licitude atípica .......................................................... 93

37. A tolerância jurídica ............................................................................. 94

38. licitude atípica e caráter peremptório das regras ................................ 96

CApítulo VI

ConCluSÕeS ......................................................................................... 99

ReFeRênCIAS BIBlIogRáFICAS....................................................... 105

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aPRESENtação

Ilícitos atípicos é a continuação de um livro anterior, As peças do direito, no qual apresentamos uma teoria dos enunciados jurídicos, isto é, dos elementos mais básicos nos quais cabe decompor o Direito, visto como linguagem. naquele livro, sinalizávamos que, para elaborar uma teoria geral do Direito, o estudo dos enunciados jurídicos deveria ser seguido do das ações juridicamente relevantes. o que aqui apresentamos é, essencialmente, uma parte dessa teoria das ações juridicamente relevantes ou, melhor dito, uma parte da referida teoria das ações ilícitas, as contrárias ao direito.

Duas são as ideias fundamentais a partir das quais tratamos de elaborar neste livro sobre a noção de «ilícitos atípicos». Uma é que as três figuras, do abuso de direito, da fraude à lei e do desvio de poder obedecem, por assim dizer, a uma mesma lógica; são derivações de um mesmo conceito geral (precisamente, o da ilicitude atípica). e a outra ideia é que o que caracteriza aos ilícitos atípicos (frente aos ilícitos típicos) é a oposição aos princípios (e não às regras) do sistema jurídico; isso faz com que se trate de uma noção difícil de analisar teoricamente, mas de uma grande importância prática.

As dificuldades teóricas para elaborar a noção de ilicitude atípica se devem fundamentalmente ao fato de que a teoria tradicional da norma jurídica se centrou, ao menos até pouco tempo, na análise de alguns tipos de regras jurídicas, mas descuidou de analisar outros tipos de normas e, em particular, dos princípios; ademais, no estudo da norma jurídica observou-se a tendência em privilegiar o que caberia chamar de seus traços estruturais (neste sentido, uma teoria fundamentalmente estática), mas a análise da noção de ilicitude atípica (e de suas três formas principais: o abuso de poder, a fraude à lei e o desvio de poder) exige que se centre na maneira como argumentativamente as normas operam, isto é, no elemento funcional, dinâmico, das mesmas.

A importância prática dos ilícitos atípicos é fácil de ser explicada. Dado que em nossos direitos (os que respondem ao que vem sendo chamado como

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15introdução

«o paradigma constitucional», ou seja, os direitos do estado constitucional) os princípios jurídicos adquirem uma singular importância, resulta também inevitável que passem aquelas instituições que a eles se vinculam de uma maneira especial a um primeiro plano.

Por isso, é bastante significativo que quando recentemente o Consejo General del Poder Judicial tratou de fixar um modelo de juiz (digamos de juiz conforme com o paradigma anterior) tenha selecionado com notas caracte-rísticas do mesmo, além da posse de conhecimentos jurídicos suficientes, a capacidade para integrá-los aos valores da sociedade e o respeito aos valores constitucionais (liberdades, igualdade e pluralismo), o estar «alerta frente aos abusos de direito e aos desvios de poder».1 Se a essas duas figuras se adiciona a da fraude à lei (sobre a qual – atrevemo-nos a sugerir – está completamente alinhado com o espírito deste livro) e se aceita (o que não parece difícil) que as capacidades, as virtudes, dos juízes não podem ser muito distintas das dos outros profissionais do Direito, poderíamos chegar à conclusão de que o tipo de jurista que estado constitucional de Direito precisa deve incluir, entre outras capacidades, a de detectar e reagir frente à forma peculiar de atentado contra o Direito que os ilícitos atípicos supõem: o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder.

O livro que escrevemos tem essa última circunstância muito em conta, e daí que tenhas buscado fazer compatível nossa condição de filósofos ou teóricos gerais do Direito com o propósito de nos dirigir a um público amplo de juristas. Dedicamos, por isso, um considerável esforço em conhecer o que os dogmáticos do Direito (sobretudo civilistas e administrativistas) escre-veram sobre essas figuras, de modo a confrontar tais escritos com nossas ideias. por momentos pode parecer inclusive que o nível em que nos situamos é o da dogmática jurídica ou, se se prefere, o que se tem chamado de «alta dogmática» (dito isso sem a menor pretensão por nossa parte, posto que a altura não significa profundidade, mas apenas nível de abstração). No entanto, nossa análise tem um caráter mais reconstrutivo (e menos descritivo) do que se costuma encontrar nos estudos de dogmática jurídica sobre essas matérias. Com isso, queremos dizer que nosso propósito fundamental não é (ou não é apenas) o de construir conceitos que sejam operativos, válidos, para um determinado sistema jurídico (o sistema espanhol atual), e sim o de elaborar os «tipos ideais» do abuso de direito, da fraude à lei e do desvio de poder. Tivemos em conta, para tanto, alguns traços característicos dessas figuras tal e como se apresentam em nosso sistema jurídico, mas prescindindo das notas que possam ser consideradas como «contingentes», isto é, aquelas cuja presença se deve a peculiaridades do sistema que poderiam ser «superadas» de acordo com a «lógica» interna desses conceitos, e da qual forma parte

1 Libro blanco de la Justicia, Madri, 1997: 45.

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essencial a noção de coerência. Sabemos que esse tipo de reconstrução teórica não deixa de ter consequências práticas nas elaborações dogmáticas e na utili-zação que os juristas práticos fazem dessas figuras; um bom exemplo disso é proporcionado pela discussão a propósito da interpretação subjetivista ou objetivista do desvio de poder.

São muitas as pessoas que nos ajudaram a melhorar um livro que resultou curto em extensão, mas longo – talvez excessivamente longo – em seu tempo de elaboração. A lista inclui a tomás-Ramón Fernández, Juan Alvarez-Sala, germán Valencia, Riccardo guastini e a nossos companheiros de departa-mento Juan Antonio pérez lledó, Daniel gonzález lagier, pablo larrañaga, Victoria Roca, Macário Alemany, Roberto lara e, de forma muito especial, Josep Aguiló, ángeles Ródenas e Isabel lifante. De todos eles podemos dizer que, sem nenhum tipo de abuso, fraude ou desvio, mantiveram conosco uma conduta que, sem dúvida, vai muito além do estritamente exigível em Direito.

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CApítulo I

iNtRoDução

1. A teoRIA geRAl Do DIReIto e o ConCeIto De IlíCIto: AS RAzÕeS De uMA AuSênCIA

o tema do abuso de direito e da fraude à lei (e claro, do desvio de poder) não está entre os que costumam ser estudados desde a teoria geral do Direito. tomemos como exemplo as obras de autores como Austin, Kelsen e Ross e vejamos a que se deve esta ausência.

nas Lectures on Jurisprudence (Austin, 1977: 149 ss.), John Austin considerou que entre os princípios, noções e distinções que constituem o objeto da General Jurisprudence somente alguns deles possuem caráter necessário, no sentido de que não podemos imaginar um sistema de Direito coerentemente desenvolvido de que deles não faça uso. uma dessas noções necessárias é a de ilícito ou delito (injury); as outras cinco são as de dever, direito, liberdade, castigo e reparação (redress). Mas entre as distinções a serem traçadas dentro dos ilícitos não aparecem a categoria de ilícitos que nós chamaremos de «atípicos» e a qual se relacionam as três noções mencionadas. Para Austin, as únicas distinções que, dentro do campo dos ilícitos, têm caráter necessário (é óbvia a influência do direito romano em sua concepção) são as que permitem separar os crimes (delitos públicos) dos ilícitos civis (delitos privados) e, dentro dessa última categoria, a que tem lugar entre os torts, por um lado, e as rupturas das obrigações provenientes de contratos ou de quase-contratos, por outro. Há também outros princípios, noções e distinções que são objeto de estudo da teoria geral do Direito (da General Jurisprudence), mas não por razões de necessidade lógica, senão por simples utilidade, isto é, porque aparecem normalmente nos sistemas de Direito até então pensados (evolucionados); contudo, tampouco aqui o abuso de direito, a fraude à lei ou

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19introdução

o desvio de poder (ou que pudesse ser seus equivalentes funcionais no sistema de common law) chegam a ser mencionados por Austin.

Como é bem sabido, o conceito de delito ou de ato ilícito forma parte do elenco de conceitos básicos da teoria kelseniana do Direito. O delito é definido a partir da sanção; seria «a conduta daquele homem contra quem, ou contra cujos alegados, dirige-se a sanção como consequência» (Kelsen, 1979a: 129). Kelsen estabelece por isso uma distinção entre ilícitos penais e civis, segundo o tipo de sanção que tem como par: «O ato antijurídico é um delito se tem uma sanção penal, e é uma violação civil se tem como consequência uma sanção civil» (Kelsen, 1979b: 60). Como para Kelsen uma sanção civil é uma execução forçosa, daí se segue que o ilícito civil propriamente dito não é a ação consistente em causar um dano, senão que sua reparação. Mas nem Kelsen vai além dessa classificação generalíssima dos ilícitos, e não entra na análise das figuras que nos interessam agora.

Uma explicação para essa ausência pode ser encontrada, sem dúvida, na própria generalidade das teorias, dado que o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder são, em nossa opinião, espécies do gênero ato ilícito. para além disso, trata-se de um tipo de ilícito que supõe ações contrárias não a uma norma jurídica específica – a uma regra – mas a um princípio. Portanto, encontramo-nos aqui com categorias que não podem ser analisadas – ou bem analisadas – no contexto de teorias que descuidam do fato de que a ordem jurídica é composta por regras e princípios (e de outros tipos de entidades que neste momento não nos interessam).1 uma concepção imperativista como a de Austin que vê o Direito como conjunto de mandatos provenientes de um sobe-rano, ou o normativismo imperativista de Kelsen que identifica como material jurídico unicamente os enunciados coativos de certo tipo, não parecem, com efeito, aptos a incluir em seu campo temático os princípios jurídicos e não configuram, por essa razão, o ponto de partida adequado para o estudo dessas figuras.

talvez fosse possível pensar que um autor realista como Alf Ross pudesse se encontrar intelectualmente mais bem equipado para dar conta de figuras como o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder. Efetiva-mente, a importância que Ross atribui a elementos tais como a «tradição de cultura» ou a «consciência jurídica material» na conformação das decisões judiciais, frente ao sistema de regras provenientes das «fontes formais» do Direito, poderia lhe haver habilitado para abordar esses ilícitos atípicos desde um ângulo que resulta vedado a posições puramente imperativistas como as de Austin ou Kelsen. Certamente, a teoria do Direito de Ross (cf. Ross, 1963) não inclui um tratamento geral da noção de ilícito, mas sim se ocupa extensamente

1 Mas falaremos de algumas delas mais adiante – por exemplo, das normas que conferem poderes.

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20 Manuel atienza | Juan Ruiz ManeRo

de conceitos – como os de direito subjetivo, «disposição privada» (negócio jurídico, em terminologia mais usada) ou norma de competência – em relação aos quais caberia ter dado conta do abuso, da fraude e do desvio. Que não tenha sido assim e que também em Ross não possa ser encontrado um tratamento dos ilícitos atípicos tem sua explicação, entre outros possíveis fatores, no irracio-nalismo prático de Alf Ross, que lhe conduz inevitavelmente a uma visão algo empobrecida a respeito da maneira como o Direito incide no raciocínio prático de seus destinatários: as normas jurídicas de conduta são vistas por Ross sob a forma exclusiva de regras (e não também de princípios) e única dimensão das normas a que atende é a de guia de conduta (e não também como um critério de valoração – de justificação e de crítica – dessa mesma conduta). Pois bem, como veremos seguidamente, estas distinções (entre regras e princípios, por um lado, e entre dimensão diretiva e valorativa, por outro) são capitais para poder dar conta adequadamente das figuras que agora nos interessam.

2. RegRAS e pRInCípIoS

A fim de analisar a noção de princípio jurídico e a diferença entre prin-cípios e regras, partamos de um exemplo: a proteção do direito à honra. em todos os sistemas jurídicos contemporâneos se castigam a calúnia e a injúria. Assim, no código penal espanhol se define a calúnia como a imputação de um delito com conhecimento de sua falsidade ou temerário desapreço à verdade, e são distinguidos dois supostos de calúnia, acompanhada ou não de publici-dade; concretamente, para a calúnia realizada com publicidade se prevê uma pena de prisão de seis meses a dois anos ou multa de seis a vinte-e-quatro meses. A injúria, por sua vez, é definida como ação consistente em lesar a dignidade de outra pessoa, prejudicando sua imagem ou atentando contra a estima que essa pessoa tem de si mesma; e as injúrias graves efetuadas com publicidade se castigam com multa de seis a quatorze meses. evidente que também existem normas civis que se conectam com as anteriores: uma, por exemplo, outorga à pessoa injuriada um direito a perceber uma determinada indenização; outra precisa que não cabe indenização se o titular do direito outorgou seu conhecimento de forma expressa etc.

pois bem, todos os anteriores são exemplos de regras de ação, isto é, de pautas específicas de conduta as quais estabelecem mandatos ou permis-sões e que têm os seguintes traços como característicos. o primeiro é que sua estrutura consiste em um antecedente ou condição de aplicação, que contem um conjunto fechado de propriedades; e um consequente ou solução norma-tiva onde cabe distinguir, a sua vez, dois elementos: uma ação (ou melhor, uma classe de ações) e sua qualificação deôntica como obrigatória, proibida, permitida etc. Dizemos um conjunto «fechado» de propriedades porque, por exemplo, em relação à norma que castiga a calúnia com publicidade, a obri-gação que o juiz tem de impor essa pena de prisão ou de multa requer que

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21introdução

se deem três circunstâncias: que se impute a outro um delito, que exista o conhecimento de sua falsidade ou um temerário desapreço à verdade; e que se faça com publicidade. Mas, certamente, essas propriedades podem muito bem carecer de limites precisos, isto é, sofrer de vagueza (por exemplo, o que significa «temerário desapreço à verdade»?; ou, com respeito à publicidade o código estabelece que «a calúnia e a injúria serão reputados fatos com publicidade quando propagados por meio de imprensa, radiodifusão ou por qualquer outro meio de eficácia semelhante», mas em que condições se pode afirmar que um meio apresenta uma «eficácia semelhante»?). De igual forma, as ações mencionadas no consequente (as consequências jurídicas) podem estar mais ou menos indeterminadas (a pena pode ser de prisão ou de multa, a prisão pode oscilar entre seis meses e dois anos), mas essa indeterminação se encontra sempre circunscrita em uma classe de ações que se deve (se a norma é um mandato) ou se pode (se é permissiva) realizar; neste sentido, pode-se dizer também que a ação (ou ações) ordenada(s) no consequente é (são) «fechada(s)». A segunda característica – consequência do que foi dito ante-riormente – é que as regras de ação pretendem regular a conduta de seus desti-natários excluindo sua própria deliberação como base para a determinação da conduta a ser seguida: o juiz deve aplicar tal pena quando se encontra frente a (é competente para julgar) um caso que cumpra com tais e quais propriedades; os cidadãos devem se abster de realizar tal tipo de ação; ou, pelo contrário, podem realizar a ação em questão se concorrem determinadas circunstâncias (com o que, de certo modo, trata-se de outra ação) etc.

Contudo, há outro tipo de regras – regras de fim – que se diferenciam das anteriores – das regras de ação – unicamente com respeito ao consequente, estabelecendo não o dever ou permissão para realizar determinada ação, e sim de dar lugar a um certo estado de coisas. por exemplo, pensemos em uma disposição administrativa que fixa a tal órgão administrativo o objetivo (a obrigação) de lograr que os funcionários que dele dependem (ou uma certa percentagem dos mesmos, digamos, ao menos 50%) aprendam a língua verná-cula. para cumprir essa regra, o destinatário (o órgão) tem uma variedade de meios entre os quais pode optar: pode oferecer aulas gratuitas, vantagens de promoções empregatícias, ameaçar com sanções etc. Mas o objetivo fixado – o estado de coisas a ser alcançado – é fechado: é atingido se, para seguir com o exemplo, mais de 50% dos funcionários, com o passar de um período temporal, consegue aprovação num teste que mede o conhecimento de tal língua.

Mas é certo que em nossos sistemas jurídicos não existem unicamente normas dos tipos antes descritos (regras de ação e regras de fim), mas também outras as quais costumamos chamar de princípios, cabendo distinguir entre princípios em sentido estrito e diretrizes ou normas programáticas. esses prin-cípios servem, por um lado, como justificação das regras, das pautas especí-

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22 Manuel atienza | Juan Ruiz ManeRo

ficas: assim, em relação aos exemplos de regras de ação já oferecidos, pode-se dizer que o que as dota de sentido são princípios de liberdade de expressão e respeito à honra (ou, em outros termos, o limite à liberdade de expressão que o direito à honra supõe) e o objetivo de prevenir condutas que lesionem a honra de forma inaceitável – de forma que não resulte justificada, por exemplo, pelo princípio da liberdade de expressão; e, em relação ao exemplo da regra de fim, o que lhe dá sentido é o propósito de conservar uma língua e, com isso, os símbolos de identidade de um grupo humano etc.

Mas, por outro lado, os princípios cumprem também uma função de regulação da conduta, especialmente da conduta de estabelecer normas ou de aplicar as normas existentes à resolução de casos concretos, isso (a dimensão diretiva dos princípios em relação aos órgãos aplicadores) ocorre quando não existem regras específicas aplicáveis, quando essas apresentam problemas de indeterminação em sua formulação, ou quando as regras existentes parecem estar em conflito com os princípios que as justificam ou com outros princípios do sistema. o aspecto diferenciador dos princípios está no fato de que seu antecedente ou condição de aplicação não contém nada além da propriedade de que haja uma oportunidade de realizar a conduta prescrita no consequente; e nessa solução normativa está contida uma proibição, um dever ou uma permissão prima facie de realizar uma certa ação (no caso dos princípios em sentido estrito) ou de dar lugar a um certo estado de coisas na maior medida possível (no caso de diretrizes ou normas programáticas). Assim, o princípio de liberdade de expressão (entendido como princípio dirigido aos órgãos públicos) estabelece sempre que se dê uma oportunidade a expressar pensamentos, ideias ou opiniões, e se não concorre outro princípio que no caso tenha mais peso operando em sentido contrário, está proibido estabe-lecer proibições ou obrigações relativas a essas condutas, impedir de algum modo sua realização ou impor sanções como consequência das mesmas. A diretriz de procurar o desenvolvimento e manutenção das línguas vernáculas estabelece que, sempre que exista a oportunidade de favorecer esse estado de coisas, os órgãos públicos (ou determinados órgãos públicos) devem procurar na maior medida possível aumentar e consolidar essa língua como veículo de comunicação da população.

Dessa forma, os princípios – diferentemente das regras – não pretendem excluir a deliberação do destinatário como base da determinação da conduta a ser seguida, mas justo o contrário, exigem essa deliberação. Quando os desti-natários são órgãos legislativos ou administrativos, estes devem determinar sob quais condições um certo princípio (em sentido estrito) prevalece frente a outros (dando lugar a alguma regra como a sinalizada através dos exemplos concedidos) ou traçar cursos de ação que assegurem a obtenção, na maior medida possível, de diversos estados de coisas causalmente inter-relacionados entre si e exigidos por diretrizes diversas (dando lugar, por exemplo, a regras

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de fim como a que foi mencionada anteriormente ou a regras de ação idôneas para facilitar o objetivo proposto: estipulando, por exemplo, que as bancas de seleção concedam uma certa vantagem aos candidatos às vagas que conheçam a língua vernácula). Quando os destinatários são juízes, os princípios servem de guia de comportamento quando – como antes dizíamos – não existem regras específicas que se apliquem a um caso, quando essas sofrem de indetermi-nação em sua formulação, ou quando aparece algum tipo de desacordo entre as regras e os princípios que as justificam. Em tais supostos, o juiz leva a cabo uma ponderação entre princípios, cujo resultado é precisamente uma regra. por isso, tem pleno sentido dizer que os princípios não determinam diretamente (sem a mediação das regras) uma solução. precisamente por isso, pode-se dizer (desde outra perspectiva) que a distinção entre regras e princípios só tem pleno sentido em um nível de análise prima facie, mas não uma vez que sejam estabelecidos todos os fatores, isto é, à luz de todos os elementos pertencentes ao caso de que se trate, pois então a ponderação entre princípios deve haver dado lugar a uma regra (AtienzA; Ruiz MAneRo, 2000).

3. o eleMento JuStIFICAtIVo DAS noRMAS

o resultado a que chegamos no ponto anterior é que as regras e princí-pios parecem inter-relacionados: a «vocação» dos princípios – se se pode falar assim – é dar lugar a regras (legislativas ou jurisprudenciais); e as regras se justificam por sua adequação aos princípios. Tratemos agora de precisar mais em que consiste esse elemento justificativo dos princípios.

em um trabalho anterior (AtienzA; Ruiz MAneRo, 1996), ao falar das normas como razoes para a ação, mostrávamos que era necessário distinguir o elemento propriamente diretivo das normas: sua função de dirigir a conduta e o elemento justificativo: o que faz que a conduta proibida pareça desvaliosa, a obrigação como valiosa e a permitida como indiferente (não há nada que reprovar ao que faz ou que deixa de fazer o que está permitido). Há, pois, uma relação intrínseca entre as normas e os valores, posto que o estabelecer, por exemplo, a obrigatoriedade de uma ação implica necessariamente atribuir a essa ação um valor positivo. Mas, ademais disso, considerávamos existir uma premência do aspecto justificativo ou valorativo sobre o diretivo (tese essa estritamente contrária a de Kelsen) se, por exemplo, tem sentido dizer que caluniar é uma ação desvaliosa e, por isso, está proibida, enquanto, em nossa opinião, careceria de sentido afirmar que caluniar é uma ação desvaliosa porque está proibida (contra o que Kelsen pensa).

pois bem, os princípios em sentido estrito incorporam valores conside-rados como últimos pelo ordenamento jurídico. Atribuir a uma ação ou a um estado de coisas um valor último significa que não se tomam em conta suas consequências (as consequências da ação ou do estado de coisas), pois se o que os faz valiosos fossem tais consequências, o que se qualificaria como

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valiosas seriam essas consequências, e não as ações ou estados de coisas; em nosso Direito, a liberdade de expressão ou respeito à honra são alguns desses valores ou fins últimos do ordenamento. Isso implica que neste âmbito (dos princípios em sentido estrito) a distinção entre ações e estados de coisas perde em boa medida seu sentido, pois os únicos estados de coisas que nos interessam são os vinculados não causalmente, mas conceitualmente às ações. Se, como dissemos, vemos a liberdade de expressão como um desses valores últimos, então não pode haver diferença entre dizer que o que é valioso são as ações que respeitam ou garantem a liberdade de expressão, ou que o valioso é o estado de coisas no qual a liberdade de expressão se encontra respeita ou garantida. no caso dos princípios em sentido estrito é possível determinar que uma ação está justificada com independência do processo causal, isto é, sem considerar suas consequências; ou, em outras palavras, o que aqui usamos são critérios de correção que implicam uma exigência tudo ou nada, no sentido de que o sentido de correção não é passível de graduação: uma ação ou uma decisão é ou não é correta. não tem sentido dizer que uma decisão é mais correta que outra, pois, em tal caso, a última simplesmente não seria correta. naturalmente, o juízo negativo (de incorreção) sim admite graus: não é igual-mente incorreto – incorreto no mesmo grau – impedir a difusão de uma notícia isolada que instaurar uma estrutura sistemática de censura de imprensa; como não é incorreto no mesmo grau o homicídio de um indivíduo que o genocídio de um grupo inteiro.

As coisas são distintas se o que se considera são os valores incorporados ao sistema jurídicos por diretrizes ou normas programáticas: os valores utili-tários que, em nossa reconstrução, têm caráter intrínseco, mas não último. O que caracteriza os valores utilitários é que as ações e estados de coisas assim qualificados são suscetíveis a um critério superior de valoração. Por exemplo, valoramos positivamente o estado de coisas em que a imensa maioria dos habitantes de um território conhecem uma determinada língua; mas funda-mentalmente o fazemos por suas consequências: porque isso permite a inte-gração social, viabilizar o sentimento de pertencimento a uma comunidade etc. por essa razão, aceitamos, em geral, que esse valor se veja limitado por outros, como o da liberdade ou igualdade de trato. Diferentemente do que ocorria com os princípios em sentido estrito, no caso das diretrizes a relação relevante entre estado de coisas e ações é extrínseca ou causal. Desde o ponto de vista das diretrizes, uma ação justificada é a que, respeitando as outras normas do ordenamento (e, em especial os limites que derivam dos princípios em sentido estrito), é a mais eficiente, isto é, facilita a obtenção do estado de coisas ordenado com o menor sacrifício dos outros fins. À diferença do critério de correção, o critério de eficiência pode ser satisfeito em distintos graus, ainda que possam haver ações as quais caibam ser qualificadas de abso-

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lutamente ineficientes, absolutamente inidôneas para objetivar em qualquer grau o estado de coisas ordenado.2

pois bem, as regras regulativas podem ser vistas como o resultado de ponderações entre princípios em sentido estrito e/ou diretrizes, e seu aspecto justificativo provém precisamente dos valores (da especificação dos valores) que acabamos de ver. no entanto, como é possível recordar, as regras incluem, como condições de aplicação, propriedades adicionais à propriedade de que se dê oportunidade de realizar a conduta estabelecida no consequente; por exemplo, as injúrias apenas constituem delito quando «por sua natureza, efeitos e circunstâncias, sejam tidas por graves no conceito público» (art. 208, § 2.º, do Código penal espanhol).3 Esta última propriedade (a gravidade da injúria) pode atender a circunstâncias ou propriedades que (ao menos em parte) sejam distintas das razões existentes para efetuar a ação do consequente (a razão para abster-se de injuriar é o respeito à dignidade das pessoas, não que as pessoas considerem a injúria como de maior ou menor gravidade); de maneira que não se pode descartar a possibilidade de que, em um determinado suposto, o que ordena (ou permite) a regra difira do ordenado ou permitido por sua justificação subjacente (pelo princípio ou princípios dos quais a regra é uma especificação): no exemplo, isso ocorria se se estima que a dignidade da pessoa é afetada gravemente em algum suposto que pelos demais não é atribuída gravidade à ação injuriosa.4

4. uMA DeFInIção De Ato IlíCIto

Um ilícito pode ser definido como um ato contrário a uma norma regula-tiva de mandato. Vejamos com algum detalhe o que isso significa.

1) O que se qualifica como ilícito é ou bem uma ação em sentido amplo, isto é, uma conduta (ativa ou omissiva) suscetível de ser qualificada deontica-mente como obrigatória, proibida etc. (por exemplo, caluniar); ou bem a conse-quência de ações ou omissões, quando essa consequência está deonticamente qualificada (para seguir com o exemplo usado antes, não haver conseguido ao

2 tais ações marcam negativamente, por assim dizer, o limite da discricionariedade de que geralmente se goza para selecionar os cursos de ação orientados a dar cumprimento às diretrizes. Agradecemos a Josep Aguiló os comentários feitos à redação anterior dessa parte do trabalho, os quais nos permitiu – acreditamos – melhorar a versão definitiva.3 Em outros casos, a injúria constitui simplesmente uma falta: art. 620 do Código Penal. 4 A independência das propriedades que constituem o antecedente ou condições de aplicação da regra com relação às razões a favor ou contra da realização da ação que figura em seu consequente – e a conseguinte possibilidade de que o ordenado ou permitido pela regra difira do ordenado ou permitido por sua justificação subjacente – parece com mais nitidez naquelas regras nas quais a caracterização das propriedades constitutivas das condições de aplicação são levadas a cabo em termos estritamente descritivos: em regras do tipo, por exemplo, «se se dirige em automóvel em autopista, então está proibido ultrapassar os 120 km por hora, então deve ser imposta uma multa de x pesetas».

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final do prazo estipulado que 50% dos funcionários chegassem a dominar uma certa língua). os supostos são distintos, pois, no segundo caso, o ilícito não é propriamente a realização ou não-realização de determinada ação, mas sim de haver realizado uma ação ou uma série de ações que produz uma determinada consequência ou (como é o caso do nosso exemplo) o haver-se omitido de todas as ações ou série de ações que teriam conduzido à consequência em questão. Dado que a produção de estados de coisas requer também a reali-zação de ações (ainda que não estejam previamente determinadas), é possível simplificar e falar unicamente – como faremos a seguir – em termos de ação.

2) A ação ilícita há de ser oposta a uma norma regulativa de mandato. Com isso, diz-se, na realidade, duas coisas distintas. uma é que o compor-tamento contrário5 às normas não-regulativas (as normas constitutivas) não constitui um ilícito; as normas que conferem poderes (o principal tipo de normas constitutivas) não mandam, proíbem ou permitem realizar uma deter-minada ação ou alcançar um certo estado de coisas. propriamente, o que esta-belecem é que se, sob certas circunstâncias, são efetuadas determinadas ações, então um certo tipo de mudança normativa é produzida; por exemplo, se duas pessoas que cumprem certas condições seguem certo tipo de procedimento, então passam a estar casadas. por isso, essas normas não podem propriamente ser desobedecidas, senão serem bem usadas (e então se produz a mudança normativa) ou não (não se produzindo o resultado ou não se produzindo intei-ramente os resultados [ver infra, cap. III, ap. 19]). A outra coisa que está sendo dita é que apenas as normas de mandato (as que proíbem ou obrigam) definem ações ilícitas (fazer o proibido ou não fazer o devido); as permissões – as normas regulativas permissivas –, pelo contrário, não produzem uma divisão da conduta em lícita e ilícita: aquilo que simplesmente está permitido tanto se pode fazer como deixar de ser feito.

3) Se os ilícitos são condutas contrárias a normas de mandato e estas últimas podem ser regras ou princípios, isso significa que cabe também traçar uma classificação paralela entre atos ilícitos, que abranja aos que sejam contrá-rios a regras e aos que sejam contrários a princípios? nossa tese é de que sim, e que os primeiros (atos opostos a regras) podem ser chamados de ilícitos típicos, enquanto os segundos, que se opõem a princípios, seriam os ilícitos atípicos. Mas essa proposta de classificação necessita ser esclarecida.

5. A ClASSIFICAção DoS AtoS IlíCItoS eM típICoS e AtípICoS

Como ponto de partida para isso, pode nos servir a análise do conceito de tipicidade efetuada pelos penalistas. e, a este respeito, parece essencial distinguir entre o chamado «tipo de garantia» e o «tipo sistemático». o de

5 Como logo se verá, não há propriamente falando ações contrárias a normas não-regulativas ou constitutivas, senão ações não-previstas ou não-mencionadas por essas normas.

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garantia se refere ao fato de que as descrições dos delitos devem ser relati-vamente precisas: uma ação somente é típica ao poder ser subsumida em tal descrição de forma precisa; como escreve nino: «o requisito de que uma ação deve ser típica não é mais que uma reformulação do princípio nullum crimen, nula poena sine lege, interpretado de tal maneira que dele se seguem os três seguintes subprincípios (de acordo com a fórmula de Feurbach): nullum crimen, nulla poena sine lege previa; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta» (nino, 1987: 41).

pelo contrário, a segunda noção de tipo, o «tipo sistemático», «não denota a inteira descrição do delito, mas somente certos aspectos dele» (idem, ibidem, p. 42); «um tipo, nesta segunda acepção, é apenas o conjunto de alguns aspectos cruciais da situação descrita pela lei como necessária para que se aplique o castigo» (idem, ibidem, p. 43); esse conceito de tipo cumpre a função de fixar os limites entre a tipicidade e a antijuridicidade. Como se costuma dizer, a conduta típica só é suspeitosa de ser antijurídica, e, portanto, requer uma ulterior determinação acerca de se está justificada ou não, isto é, de se é ou não antijurídica. Dada a concepção estruturada do delito da dogmática penal, compreende-se bem que esta noção de tipicidade cumpra um papel sistemático, no sentido de que só passará à comprovação da antijuri-dicidade e a culpabilidade das ações que possam ser consideradas típicas.

pois bem, a ideia da tipicidade que aqui nos interessa é a primeira, o tipo da garantia, como consequência do princípio da legalidade. o que deter-mina é que os delitos penais devem estar estabelecidos em regras (em pautas que sejam o mais específica possível) e não em meros princípios, tal e como ocorreu no Direito penal pré-moderno. A propósito do princípio da legalidade, luigi Ferrajoli propôs uma distinção entre o princípio de «mera legalidade» e o de «estrita legalidade»: o primeiro estabelece que «somente leis (excluindo-se a moral ou outras fontes externas) dizem o que é delito» (FeRRAjoli, 1995: 374). enquanto o segundo (estrita legalidade) proíbe que as leis penais estabe-leçam «elementos substanciais, determinados mediante juízos de valor, como condições não apenas necessárias, mas também suficientes para configurar delitos» (idem, ibidem, p. 375); como dito por último, Ferrajoli quer sinalizar que as normas penais não podem tipificar como delito ações configuradas tão-somente em termos valorativos, tais como «escândalo público» ou «atos obscenos».

Ainda que não estejamos em desacordo com Ferrajoli, essa última exigência (a de estrita legalidade) é um desideratum que deve ser cumprido pelo Direito penal (de fato cumprido pelos Direitos penas garantistas, os de estado constitucional de Direito) e que, em medida mais ou menos variável, mas sempre menor, é aplicável a outros campos do Direito sancionatório. Mas que os delitos sejam configurados com expressões muito vagas não implica – como vimos –, a não ser que se trate de uma vagueza radical (entendendo

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por vagueza radical que não existam critérios distintos de aplicação da expressão dos valores que se trata de proteger ou promover mediante a norma em questão) que se configurem mediante princípios, isto é, que deixem de ser ilícitos «típicos», no sentido em que aqui queremos dar uso à expressão: as regras podem conter expressões muito vagas, sem deixar por essa razão de serem regras. Os exemplos anteriores de ilícitos (dar lugar a escândalo público ou proceder à prática de atos obscenos) seguiriam sendo exemplos de ilícitos típicos, por mais que se trate de uma tipificação injusta (ou inconstitucional: se a Constituição consagra o princípio da estrita legalidade penal).

Se os ilícitos típicos são, pois, condutas contrárias a regras (de mandato), os ilícitos atípicos seriam condutas contrárias a princípios de mandato. Mas aqui, parece-nos, ainda pode ser traçada uma distinção entre duas modali-dades de ilícitos atípicos. Alguns são o resultado de estender analogamente a ilicitude estabelecida em regras (analogia legis) ou o resultado da mera ponderação entre os princípios relevantes do sistema, cujo equilíbrio exige a criação de uma nova regra proibitiva (analogia iuris).6 outros – os que aqui nos interessam – são ilícitos atípicos que, por assim dizer, invertem o sentido de uma regra: prima facie existe uma regra que permite a conduta em questão; contudo – e em razão de sua oposição a algum princípio ou princípios –, essa conduta se converte, uma vez considerados todos os fatores, em ilícita; isso, em nossa opinião, é o que ocorre com o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder.

6. ClASSeS De IlíCItoS AtípICoS. o pApel DoS pRInCípIoS nA DeFInIção DA ConDutA IlíCItA

Acabamos de dizer que os ilícitos atípicos que aqui nos interessam não são o resultado da criação analógica (mediante analogia legis ou analogia iuris) de novas regras proibitivas. A analogia opera quando prima facie o caso não parece ser subsumível à regra alguma, isto é, como permitido meramente no sentido de que não está coberto por uma regra proibitiva; inversamente, no abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder estamos diante de casos que a princípio parecem cobertos pelas regras permissivas, isto é, que prima facie estão regulados pelas regras como condutas permitidas, mas que têm seus estados deônticos modificados (passando a estar proibidos) uma vez consi-derados todos os fatores. os princípios jogam em ambos os casos um papel essencial, mas de maneiras diferentes.

Frederick Schauer (1991) sinalizou como um traço central das regras o fato de que elas – precisamente porque o significado de sua formulação pode ser estabelecido independentemente das razões que constituem sua justi-

6 Sobre esta distinção e sobre a relação entre analogia e princípios, cf., AtienzA, 1996.

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29introdução

ficação subjacente – são, potencialmente, supra-inclusivas e infra-inclusivas com relação às suas justificações subjacentes: isto é, pode haver casos que devem estar incluídos na regra – se tomamos em consideração sua justificação subjacente –, mas que, entretanto, não estão e outros que, pelo contrário, não devendo estar incluídos – procedendo às mesmas considerações tomando em conta sua justificação subjacente – mas estão. Pois bem, utilizando essa termi-nologia, podemos dizer que os ilícitos por analogia surgem – nas hipóteses de analogia legis – quando uma certa regra proibitiva é infra-inclusiva em relação às exigências dos princípios que constituem sua justificação subjacente: a ilicitude de uma conduta descrita como tal em uma regra se estende também a outra conduta que não resulta desde o início ou prima facie subsumível à regra, mas a respeito da qual são assim mesmo aplicáveis as razões para a proibição que justificam dita regra; nas hipóteses de analogia iuris, trata-se simplesmente de que o equilíbrio entre os princípios relevantes exige o surgimento de uma nova regra proibitiva, não existindo uma regra prévia que consideremos infra-inclusiva. pelo contrário, em relação ao segundo tipo de ilícitos, trata-se de hipóteses nas quais – usando a terminologia de Schauer – uma regra de permissão resulta supra-inclusiva com relação às exigências dos princípios que constituem sua justificação subjacente ou com as exigências de outros princípios do sistema: a restrição no alcance ou âmbito de aplicação de uma regra de permissão (que caracteriza tanto o abuso de poder, como a fraude à lei ou o desvio de poder) é produzida porque se trata de ações que, ainda que sejam prima facie subsumíveis a uma regra de permissão, não resultam concordes à justificação subjacente dessa regra de permissão, ou esta se vê deslocada por algum outro princípio que, no caso concreto, tem um peso maior.

Ademais, o fato de que em todos esses casos os princípios jogam um papel essencial não significa que, em relação aos ilícitos típicos, isto é, os relativos a regras, tais princípios deixem de cumprir um papel destacado. Seria necessário dizer que, neste segundo caso, os princípios desempenharam seu papel em um momento anterior, isto é, quando, ao ponderar acerca de diversos princípios, produz-se a regra (como teria ocorrido, por exemplo, ao estabelecer mediante regras os casos em que se castiga – e com que pena – a injúria ou calúnia: essas regras são o resultado de ponderar de uma determinada forma sobre o peso relativo da liberdade de expressão, da honra, da dignidade das pessoas etc.). De todo modo, uma vez dado o passo dos princípios às regras, aqueles não perdem inteiramente sua virtualidade, podendo resultar como elemento essencial à hora de resolver, por exemplo, um problema de interpre-tação: quando deve ser entendido que um meio tem «eficácia semelhante» à imprensa ou à radiodifusão, de modo que a calúnia por ele divulgada reúna o requisito da «publicidade» exigido para que determinada pena seja imposta?; como se deve interpretar a referência ao «conceito público» para determinar que uma injúria é grave? etc.

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Desde logo, nem sempre é fácil (ou mesmo possível) manter a distinção entre esses dois tipos de ilícitos atípicos, como é possível ver através de um exemplo. no famoso caso «Friedmann» (StC de 11 de novembro de 1991) o tribunal Constitucional teve de se enfrentar com uma petição de amparo (recurso) por parte da senhora Violeta Friedmann, baseada no fato de que as declarações realizadas à revista Tiempo por león Degrelle, um ex-chefe das SS – nas quais ele negava o holocausto judeu, ansiava pela chegada de um novo Führer e considerava Mengele um «médico normal» etc. –, alegava significarem um atentado contra seu direito à honra, posto que toda sua família havia sido assassinada pelo uso de gás, por ordem do Dr. Mengele, no campo de extermínio de Auschwitz. o tribunal começa recordando os dois critérios que caracterizam sua jurisprudência até o momento. um sendo a distinção entre liberdade de expressão em sentido estrito (referida à emissão de juízos e opiniões) e a liberdade de informação (referida à ocorrência de fatos): a liber-dade de expressão tem um âmbito maior que a de informação, pois o requisito da verdade só opera em relação aos fatos, não em relação a juízos de valor. o segundo critério é que o direito à honra tem um caráter personalista, de maneira que sua proteção é mais intensa quando se trata da honra de pessoas físicas e mais débil se afeta pessoas jurídicas ou a um coletivo de pessoas. A utilização desses dois critérios levaria, neste caso, a denegar o amparo (recurso), já que o tribunal reconhece que as manifestações de Degrelle estavam inscritas, em geral, no âmbito da liberdade de expressão e não se referiam a nenhuma pessoa determinada, mas a um grupo, o povo judeu. no entanto, o amparo (recurso) foi concedido porque adicionou-se mais um critério, segundo o qual a liberdade de expressão não compreende «o direito de efetuar manifestações, expressões ou campanhas de caráter racista ou xenófobo».

pois bem, um suposto como o anterior seria suscetível – parece-nos – de duas interpretações. por um lado, poder-se-ia dizer que o caso ajuizado não tinha previsão em regra alguma. o tribunal dispunha dos princípios da liber-dade de expressão e os do respeito à honra e à dignidade da pessoa para aplicar ao caso, mas a operatividade de tais princípios exigia efetuar uma ponderação que tivesse em conta todos os fatores do caso. em relação a todos esses fatores, o equilíbrio entre esses princípios vem exigir o surgimento de uma nova regra segundo a qual a conduta consistente em efetuar manifestações, expressões ou campanhas de caráter racista ou xenófobo é ilícita. Vistas assim as coisas, seria necessário dizer que o tribunal Constitucional criou uma nova conduta ilícita (uma nova regra) mediante um processo de analogia iuris cujas raízes estão nos princípios da liberdade de expressão e do respeito à honra e da dignidade da pessoa.

Mas a resolução do tribunal Constitucional também pode ser entendida de outra forma, quiçá mais acorde com o que foi argumentado. De acordo com ela, o tribunal parte de que o caso está regulado por regras de origem jurispru-

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31introdução

dencial elaboradas por ele mesmo. Aplicando as mesmas, as manifestações do nazista belga deveriam ser consideradas lícitas. Contudo, dá-se uma circuns-tância bastante importante no caso em questão (as expressões de Degrelle têm caráter racista e xenófobo) que levam o tribunal a considerar que o caso não pode ser subsumido a tais regras: ou seja, a regra de permissão que o mesmo tribunal havia criado em ocasiões anteriores deve ter seu alcance ou âmbito de aplicação restringido, dado que este caso apresenta uma nova propriedade que o situa fora do alcance justificado da mesma.

Definitivamente, o caso pode ser visto como um exemplo de ilícito análogo ou como um abuso de direito: o alcance justificado do direito a mani-festar livremente as opiniões não chega a conceder o direito de manifestar expressões racistas ou xenófobas.

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Manuel Atienza

Catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Alican-te, Espanha. Manuel Atienza é diretor da Revista Doxa e foi vice-presidente da IVR (Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social). É também Doutor Honoris Causa de diver-sas universidades latino-americanas, tendo escrito sobre a teoria dos enunciados jurídicos, o marxismo jurídico, a bio-ética, a teoria e a técnica da legislação e da argumentação.

Juan Ruiz Manero

Catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Alican-te, Espanha. Juan Ruiz Manero é membro do conselho edito-rial da Revista Doxa e autor de uma série de livros e artigos na área de sua especialidade, muitos dos quais em parceria com Manuel Atienza.

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