eclesiastes ou qohélet grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

476
JOSÉ VÍLCHEZ LÍNDEZ ECLESIASTES OU QOHÉLET GRANDE COMENTÁRIO BÍBLICO PAULUS

Upload: rosangela-borkoski

Post on 21-Jul-2015

440 views

Category:

Documents


16 download

TRANSCRIPT

Page 1: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

JOSÉ VÍLCHEZ LÍNDEZ

ECLESIASTES OU QOHÉLET

GRANDE COMENTÁRIO BÍBLICO

PAULUS

Page 2: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Este comentário ao livro de Qohélet, pelo peso da tradição continua­mos a chamá-lo Eclesiastes. Em linhas gerais sigo o mesmo método de trabalho empregado no comentário a Sabedoria, publicado por esta mes­ma editora em 1995.

O Eclesiastes, aceito por todos como livro canônico, manifesta para­doxalmente a riqueza inesgotável da revelação de Deus com palavras muito humanas. Em nenhum outro livro da Sagrada Escritura encontramos o simples homem tão próximo a nós como neste. A atitude de Qohélet é ati­tude de busca permanente do sentido da vida, sem que em nenhum mo­mento encontre explicação tranqüilizadora. Converte-o isso no crítico mais implacável das doutrinas que oferecem segurança no campo sapiencial religioso e profano. No entanto sua fé inquebrantável em Deus faz com que não leve até o extremo a lógica de seus raciocínios.

Qohélet revela a impotência absoluta do homem diante dos mistérios da vida e do além. Homem experimentado e derrotado em todas as bata­lhas transcendentais da vida, descobre como ninguém o sabor das coisas simples no cotidiano de nossa existência e na natureza que nos rodeia.

JOSÉ VILCHEZ LÍNDEZ, sj. nasceu em Pedro Martínez (Granada, Espanha) em 1928. Estudou Filosofia e Teologia em Madri, Barcelona e Innsbruck (Áustria). Especializou-se em Sagrada Escritura em Roma. Atualmente é professor de Teologia Dogmática e Sagrada Escritura na Faculdade de Teologia de Granada (Espanha). Publicou por PAULUS Editora — Sabedoria.

Page 3: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

coleção

GRANDECOMENTÁRIO

BÍBLICO

Todos que são beneficiados pelo que faço, fiquem certos que sou contra a venda ou troca de todo material disponibilizado por mim. Infelizmente depois de postar o material na Internet não tenho o poder de evitar que ' alguns aproveitadores tirem vantagem do meu trabalho que é feito sem fins lucrativos e unicamente para edificação do povo de Deus. Criticas e agradecimentos para: mazinhorodriguesQyahoo. com. br

Att: Mazinho Rodrigues.

Page 4: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Vílchez Líndez, José, 1928 -

Eclesiastes ou Qohélet / José Vílchez Líndez ; [tradução João Rezende Costa], — São Paulo : Paulus, 1999. — (Coleção grande comentário bíblico)

Título original: Sapienciales — Comentários I. Título. II. Série.

96-1357 CDD-223.807

índices para catálogo sistemático:1. Qohélet: Poema sapiencial bíblico: Comentários 223.807

GRANDE COMENTÁRIO BÍBLICO• O Apocalipse de São João, E. Corsini• Êxodo, G. V. Pixley• Profetas I, L. A. Schõkel e J. L. Sicre Diaz• Profetas II, L. A. Schõkel e J. L. Sicre Diaz• O Evangelho de São João, J. Mateos e J. Barreto• Carta aos Romanos, C. E. B. Cranfield• O Evangelho de São Marcos, Ched Myers• Os salmos, Artur Weiser• Jó, Samuel Terrien• Sabedoria, José Vílchez Líndez• Salmos I (Salmos 1-72), L. A. Schõkel e C. Carniti• Salmos II (Salmos 73-150), L. A. e C. Carniti• Eclesiastes ou Qohélet, José Vílchez Líndez

Page 5: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

JOSE VILCHEZ LfNDEZ

^ T r O T A O r r P O

OU QOHELET

PAULUS

Page 6: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Título originalSapienciales III - Eclesiastes o Qohélet © Editorial Verbo Divino, Navarra, Espanha, 1994

TraduçãoJoão Rezende Costa

Revisão H. Dalbosco

© PAULUS-1999 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 5084-3066 http://www.paulus.org.br [email protected]

PAULUSEstrada de São Paulo 2685 Apelação (Portugal)Fax (01) 948 88 78 Tel. (01) 947 24 14

ISBN 85-349-1261-0ISBN 84-7151-669-1 (ed. orginal)

Page 7: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ABREVIATURAS E SIGLAS

A Códice alexadrinoa. c. artigo citadoANET Ancient Near East Texts Relating to the 0 . T. , editado por J. B. Pritchard,

Princeton, 1955 _Aq Aquila (versão grega de Aquila)BH Bíblia Hebraica, ed. R. Kittel, Stuttgart, 1961, 3s ed.BHS Biblia Hebraica Stuttgartensia, ed. K. Eiliger — W. Rudolph, Stuttgart, 1967­

1977 ,CCL Corpus Christianorum Series Latina, TurnholtCSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, VienaF. Zorell Lexikon hebraicum et aramaicum Veteris Testamenti, Roma, 1962G/LXX Versão grega dos SetentaGes.-K. W. Gesenius — E. Kautzsch, Hebräische Grammatik, Leipzig, 1902, 27 ed.K KetibLa VL Versão Vetus LatinaLXX/G Versão grega dos SetentaM (s) Manuscrito(s)0. c. obra citadaP(P) página(s)P Versão siríaca PesittaP. Joüon P. Joüon, Grammaire de Vhébreux biblique, Roma, 1947PG Patrologia Greaeca, ed. J. M. Migne, ParisPL Patrologia Latina, ed. J. M. Migne , ParisPW A Pauly — G. Wissowa, Realencyclopädie der classischen Altertumswissenschaf­

ten, Stuttgart, 1883ssQ QerêRR1R2 Redator, Redator l 9, Redador 29...S Códice Sinaíticos. v. sub verboSim/Sym Símmaco (versão grega de)Tg TargumTeod/Th Teodocião (versão grega de)TH/TM Texto hebraico / texto massoréticov(v) versículo(s)Vg Versão latina VulgataVL/La Versão Vetus Latina

Page 8: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

PRÓLOGO

Ao apresentar esse comentário, dou por bem empregados todos os meus esforços e sacrifícios, porque, assim como no caso do nascimento de um filho, vê a luz uma nova criatura.

Este comentário ao livro de Qohélet, que pelo peso da tradição conti­nuamos chamando de Eclesiastes, pertence à Coleção: Nova Bíblia Espa­nhola. Comentário teológico e literário, dirigido por L. Alonso Schõkel, e que com muito louvor vem publicando a Editora Verbo Divino. Nele, sigo o mesmo método de trabalho que usei no comentário à Sabedoria, publicado em 1990 na mesma editora. Para a versão ao castelhano do texto sagrado, levei muito em conta a tradução de L. Alonso Schõkel (cf. Eclesiastés, Madri, 1974), se bem que nem sempre a tenha seguido.

O Eclesiastes, aceito por todos como livro canônico, faz parte dos Sapienciais e manifesta de forma paradoxal a riqueza inesgotável da re­velação de Deus em palavras humanas.

Espero que este novo comentário tenha ao menos a mesma acolhida favorável que teve o comentário ao livro da Sabedoria. Em todo caso, agra­deço sinceramente a L. Alonso Schõkel eaJ. L. Sicre pela ajuda que com seus valiosos conselhos me prestaram para melhorar a redação primeira deste comentário. Do mesmo modo terei muito presente qualquer crítica positiva que se me fizer para melhorar futuras edições.

Granada, julho de 1994 José Vílchez SJ

Page 9: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

INTRODUÇÃO

Page 10: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

I. TÍTULO

Dizer que Qoh 1,1 é o Título do livro não é nada disparatado, ainda que necessariamente tenhamos que matizar de imediato essa afirmação. Falando com propriedade, só la: Palavras de Qohélet, pode-se chamar Tí­tulo do livro, pois somente ele corresponde ao livro inteiro; não, porém, a aposição a Qohélet v. lb: Filho de Davi, rei em Jerusalém, que se pode aplicar a Qoh 1-2, mas não ao resto do livro. Esta é uma das razões de muitos autores modernos defenderem que na redação de Qoh 1,1 intervie­ram várias mãos.1

Poder-se-ia defender com todo direito que 1,1a: Palavras de Qohélet pertence ao autor do livro.2 De modo parecido começa Jr 1,1; Am 1,1; Pr 30,1; 31,1 e Ne 1,1 (cf. Dt 1,1; Os 1,1; Mq 1,1 e Sf 1,1). Todavia, parece-nos mais provável a opinião da intervenção de dois redatores distintos de Qohélet, porque explica melhor as incoerências de Qoh 1,1 com relação a todo o livro.

II. AUTOR DE QOHELET

Qohélet começa: “Palavras de Qohélet, filho de Davi, rei em Jerusa­lém”; mas em seguida surge uma pergunta: Quem seria essa persongem que se esconde sob o nome fictício de Qohélet? Ou em outra palavras: Quem seria o autor do Eclesiastes? Nem sempre se responde da mesma maneira.

'Admite-se com naturalidade que este versículo primeiro não pertence ao sábio Qohélet, mas redigiu-se posteriormente ao se publicar o livro. Assim R. Gordis afirma que “o versículo 1 é um título, posto pelo editor que acreditava que Salomão era o autor” (Koheleth — the Man. 204); cf. N. Lohfink, Kohelet, 19; melek, 537). Outros distinguem bem dois redatores, um res­ponsável pelo v. la e outro pelo v. lb (cf. L. Di Fonzo, Eclesiaste, 121b; K. Galling, Der Prediger, 84).

2E. Glasser afirma-o para todo 1,1 em Le procès, 5.

Page 11: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. O autor de Qohélet é Salomão

“A antiguidade responde a essa pergunta [Quem é o autor de Qohélet?] com uma só voz e com uma só opinião imperturbável: o autor é Salomão”.1 E a razão é bem simples, uma vez que é moderno o problema da origem do livro, proposto criticamente; a resposta de toda a tradição não pode ser outra, pois lê sem preconceitos o que se escreve no começo do livro (1,1.12).

A tradição dos judeus é constante.2 Os Padres primeiro e os escritores eclesiásticos depois se encarregam de recordá-lo, pois consideram-se os herdeitos dessa tradição.3 Pode-se afirmar que até o século XVII mantém- se pacificamente essa tradição, continuando também depois, ainda que não pacificamente, mas no seio de contínuas controvérsias.

Em 1860 F. H. Reusch defende tenazmente a autoria salomônica do livro, assim como A. Motais em 1876, R. Cornely em fins de século XIX e começos do século XX, e mesmo depois continuam defendendo a mesma coisa autores como Vigouroux e L. Cl. Filion.4

2. Começa-se a duvidar da autoria de Salomão

Os dois pilares em que se fundamenta a opinião tradicional, ou seja, a tradição judaico-cristã e o próprio livro, começam a dissolver-se seriamen­te no século XVII com Hugo Grotius. Já antes se tinha escutado alguma voz discrepante entre os judeus, que, porém, logo se calou.5 Costuma-se citar também Lutero em suas Tischreden, como se fosse ele o primeiro a negar que Salomão foi autor do Eclesiastes.6 Atribui-se-lhe, com efeito, o

!A. Vaccari, Institutiones, 80.2R. Gordis escreve: “Segundo a tradição da Sinagoga, o livro de Qohélet é atribuído a Salomão,

filho de Davi [Nota 1: Sua fonte mais antiga está no título 1,1]. Uma fonte rabínica declara que ele escreveu o Cântico dos cânticos, com sua acentuação do amor, em sua juventude; Provérbios, com sua ênfase nos problemas práticos, em sua maturidade; e Eclesiastes, com suas reflexões melancólicas sobre a vaidade da vida, em sua velhice [Nota 2: Midrash Shir Hashirim Rabba 1,1, século X)” {Koheleth— the man, 39).

3Cf. J. de Pineda, In Ecclesiasten, 2-4; Comélio a Lápide, Commentaria, lss; os testemunhos aduzidos em V. Zapletal, Das Buch, 56-57; L. Bigot, Ecclésiaste, 2006s; H. Hõpfl, De libro, 393.

4Cf. F. H. Reusch, Zur Frage; A. Motais, Salomon, 37; também V Ecclésiaste, 9,65s; R. Cornely, Historicae, 1889, Ia ed, 336 [Essa sentença é mantida inalterada por R. Cornely até a 5a edição em 1905 (cf. p. 344); F. Vigouroux, Ecclésiaste, (1906), n. 844: 505s; L. Cl. Filion, Le livre, 1927, pp. 547­549.

5H. Hõpfl aduz um testemunho, ao afirmar: “A tradição judaica não é constante [Nota 1. Cf. e. g. Midrash Qoh. Rabba (1,12), onde se diz que o autor é homem pobre e rude]” (De libro, 394); H. W. Hertzberg, por sua vez, diz: “Pela primeira vez surgem suspeitas sobre a autoria salomônica em Ibn Esra (século XII)” (Der Prediger, 53).

6Diz, por exemplo, G. Gietmann: “Lutero foi o primeiro que, em suas Tischreden, ousou duvidar, ainda que no comentário latino e em outros lugares, com os outros protestantes, defendesse quase o mesmo que os católicos” (Commentaria, 21); E. Philippe, por sua vez: “A unanimidade da antiguidade foi rompida por Lutero e, sobretudo, por H. Grotius” (Ecclésaste, 1539); G. A. Barton: “Martinho Lutero

Page 12: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

seguinte: “0 próprio Salomão não escreveu o livro do Pregador, mas foi escrito por Sirac no tempo dos Macabeus”.7 Mas é quase seguro que se trata de lapsus linguae ou calami, pois corrige-se a mesma conversa na tradução latina: “neque is [Salomon] conscripsit Ecclesiasticum, sed tempore Maccabeorum a Syrach conscriptus est”.8De mais a mais, Lutero, em seu comentário ao Eclesiastes, não se afasta da tradição.9

A verdadeira ruptura com a tradição começa com Hugo Grotius, que, em suas Annotationes de 1644, defende abertamente que Qohélet não foi escrito por Salomão, mas por outros mais tarde.10 Assim o reconhecem to­dos os autores, e “desde então a verdade se impôs”.11 Para chegar aí foi preciso todavia passar por quase três séculos de controvérsias entre os defensores da autoria salomônica de Qohélet e os que a negavam.

3. Salomão não é o autor de Qohélet

A nova teoria foi aceita paulatinamente, primeiro pelos não-católicos, e depois também pelos católicos,12 não sem antes ter que superar dificul­dades de ordem dogmática.13

A análise do hebraico de Qohélet levou Fr. Delitzsch à sua célebre afirmação: “Se o livro de Qohélet fosse do tempo antigo de Salomão, não existiria história da língua hebraica”.14 Os estudiosos lingüísti-

foi o primero que compreendeu que Salomão não pode ter sido o autor do Eclesiastes” (A criticai, 21, e aduz o texto das Tischreden, WA 1,207). Cf. ademais H. W. Hertzberg, Der Prediger, 53; R. Kroeber, Der Prediger, 6.

W A Tischreden, 1,207: n. 475.®WA Tischreden 2,653: n. 2776b; o grifo é nosso. A correção parece estar bem feita e concorda com

que disse em seguida: “É um livro muito bom e agradável... É um livro como um Talmud, composto de muitos livros, talvez da biblioteca do rei Ptolomeu no Egito” (TW Tischreden, 1,207: n. 475 e 2,653: n. 2776b). Isso só se pode dizer de Eclo, não de Qoh (cf. F. H. Reusch, Zur Frage, 430 n. 1; F. Delitzsch, Commentary, 190 n. 1).

9Cf. Annotationes, 14-15 e ao longo de todo o comentário (WA20).“ Textualmente diz: “Ego tamen Salomonis esse non puto, sed scriptum serius, sub illius regis

tamquam paenitentia ducti nomine atque Zorobabilis iussu a viris quibusdam in unum corpus congestum esse”. Assim em H. W. Hetzberg, Der Prediger, 53-54.

UH. W. Hertzberger, Der Prediger, 54.12F. H. Reusch reconhece que em seu momento (1860) quase todos os protestantes, mesmo os

conservadores, defendem que o Eclesiastes é pós-exílico. Wangemann talvez seja o único que ainda defende a autoria salomônica. Também alguns católicos [M. J. Jahn, J. G. Herbst e Fr. K. Movers] começam a negá-la (cf. Zur Frage, 430-431); cf. G. Gietmann, Commentarius, 21-22; E. Philippe, Ecclésiaste, 1539; L. Bigot, Ecclésiaste, 2007s.

13Recordemos o que dizia R. Comely em 1905: “Não se pode explicar isso ‘pela fraude piedosa’ nem ‘pela ficção poética’, pela qual autor recente representasse a pessoa de Salomão e tentasse vender suas sentenças sob seu nome e autoridade. Pois tal ‘fraude piedosa’ e ‘ficção poética’, pela qual os leitores são induzidos a erro inevitável, não se conciliam com a inspiração do livro” (Historicae, 344). Pelo contrário, H. Hüpfl afirma em 1963: “O argumento tirado dos Padres não é vinculante, pois tanto eles como os antigos documentos do Magistério da Igreja para designar simplesmente os cinco livros sapienciais empregam o nome de Salomão” (De libro, 394).

uKoheleth, 192 = Commentary, 190; cf. G. A. Barton, A criticai, 22.

Page 13: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cos posteriores até nossos dias acabaram de eliminar toda dúvida ra­zoável.

Em 1905, R. Cornely tenta refutar os argumentos de tipo lingüísticos contra a tese da tradição.15 A. Merck, por sua vez, rejeita os argumentos de R. Cornely nas reedições de seu livro.16 Sendo assim, chegou-se à conclu­são segura de que Salomão não pode ter sido o autor de Qohélet,17

Terminamos essa secção com as palavras de R. Gordis em 1978: “A história da literatura conhece muitos infelizes acidentes que levaram à perda de obras-primas. Representa Qohélet feliz exceção a essa regra. A tradição salomônica garantiu ao livro um lugar no cânon da Escritura, preservando-o assim para a posteridade. Nem sempre é uma tragédia que ‘habent sua fata libellV ”.18

4. Dados pessoais de Qohélet

Não temos a intenção de empreender nessa secção uma biografia de Qohélet,19 mas agrupar o que direta ou indiretamente nos subministra o próprio livro.20 Enquanto se identificou Qohélet com Salomão, este pro­blema não existiu; ao negar-se a identificação, surgiu a necessidade de caracterizar o autor apelidado de Qohélet. Convém distinguir, nessa ta­refa, entre a identificação Qohélet com uma personagem histórica, mais ou menos conhecida, e a descrição ou o retrato-robô de Qohélet. Ao não ser possível o primeiro, alguns renunciaram ao segundo; nós, porém, não re­nunciamos. V. Zapletal concluiu com razão que não podia dizer quem foi o autor de nosso livro.21 E verdade que de Qohélet sabemos pouco, mas não tão pouco para não poder dizer nada sobre ele. Seu livro está aí, e sempre será verdade que podemos chegar pelas obras a conhecer alguma coisa sobre seu autor.

15Cf. Historicae, 345-346.16Cf. R. Cornely - A. Merk, Historicae, 1907 9ä ed., 1934 11a ed., 495. Um capítulo importante das

Introduções aos comentários modernos de Qoh constitui o dedicado à língua de Qohélet e de seus estilo, confirmando seu caráter tardio. Cf. os capítulos dedicados nessa Introdução ao Estilo (cap. IX) e à Língua de Qoh (cap. X).

17Cf. V. Zapletal (em 1911), Das Buch, 57; E. Podechard (1912); UEcclésiaste, 187; A. Bea (1950), Liber, VI; R. Kroeber (1963), Der Prediger, 4; H. W. Hertzberg (1963) sentencia: “Que o autor não seja Salomão, não é necessário que se discuta mais” (Der Prediger, 52).

wKoheleth — the man, 42.19Como já fez B. Plumptre na Introdução a seu Comentário; pode-se verum resumo em V. Zapletal,

Das Buch, 71.20J. van der Ploeg critica fortemente R. Gordis, porque, segundo ele, afirma mais do que se pode

deduzir da leitura e do estudo do livro sagrado, cf. J. van de Ploeg, Robert Gordis, 106.21Cf. Das Buch, 71. O mesmo afirmava R. Kroeber: “O autor do livro Qohélet é desconhecido” (Der

Prediger, 6).

Page 14: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A maioria dos autores retêm que um discípulo de Qohélet escreveu o que lemos em 12,9-10, a saber: “Qohélet, além de ser sábio, instruiu per­manentemente o povo; e escutou com atenção e investigou, compôs muitos provérbios; Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto”. E informe verídico abreviado acerca do autor. Como afirma A. Lauha: “Não há nenhum motivo para duvidar da veracidade dessa notícia. Deve ter sido Qohélet mestre profissional de sabedoria”.22 O epílogo é apenas um ponto de partida. O estilo, o tipo e o tom do livro desvendam-nos facetas interessantes do autor.4.1. Qohélet é judeu, de Jerusalém

Com muita razão escreve estranhando H. W. Hertzberg: “Não se com­preende que se tenha duvidado de seu judaísmo”.23 Diante dessa leve dú­vida está a asseveração de todos os outros. Alguns atribuem-lhe explicita­mente, como lugar de origem e residência, a região da Judéia. Se se aceitar a região da Judéia,24 Jerusalém será o único lugar adequado.25 De modo excepcional alguns colocam Qohélet na Palestina do norte.26 M. Dahood, por sua vez, defende que “o autor foi judeu residente na Fenícia”.274.2. Qohélet é aristocrata ou da classe acomodada

A cultura sempre foi um dos bens mais apreciados; sua aquisição ge­ralmente se reservava na antiguidade às pessoas economicamente fortes. Por essa razão e enquanto não se demonstre o contrário, é preciso conside­rar Qohélet pertencente a família de boas posses;28 mais ainda, pertencen­te à classe alta ou aristocrática.29 Seu livro não deixa lugar a dúvidas. O

22Kohelet, 1; cf. A. L. Williams, Ecclesiastes, XLVIII; H. Duesberg, Ecclésiaste, 41-42; H. W. Hetzberg, Der Prediger, 54.

23Der Prediger, 54; refere-se a D. S. Margoliouth (The Exp 8a série, vol. 2 [1908] 125).24Assim, por exemplo, F. Asensio, In libros, 266; M. Hengel, Judentum, 215.25"Todos os sinais apontam a que Qohélet vivia em Jerusalém” (E. Gordis, Koheleth — the man,

76); cf. também A. L. Williams, Ecclesiastes, XLVIII; S. Holm-Nielsen, The Book, 45; N. Lohfink, Kohelet, 12 = DerBibel, 24-25; “Com grande probalidade em Jerusalém” (R. Braun, Kohelet, 178); cf. também R. Kroeber, Der Prediger, 23; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 71.

26Escreve W. F. AIbright: “Retenho que o autor deste livro [Qohélet] era judeu influente, que viveu na planície costeira, provavelmente na Fenícia do sul” (Some Canaanite, 15).

27Qohélet, 302; o mesmo em Canaanite-Phoenician, 33. Assim também estes autores: J. Muilenburg, A Qoheleth; J. T. Milik, RB 59 (1952) 590; H. Cazelles, VT 6 (1956) 221; E. Arbez, CBQ 15 (1953) 115 (citados todos eles por M. Dahood em Qoheleth, 302 nota 4).

28M. Hengel afirma que Qohélet, “como mestre de sabedoria integrava a acomodada e aristocráti­ca classe alta da Judéia” (Judentum, 215); cf. também L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 71; H. L. Ginsberg, The structure, 149; R. Braun, Kohelet, 177.

29S. Holm-Nielsen opina que “não há motivos para duvidar de que Qohélet pertença à classe alta. Ele é certamente aristocrata intelectual. Qohélet é aristocrata intelectual até a ponto de conhecer bem a filosofia grega” (The Book, 45). W. E. Tam - G. T. Griffith afirmam-no também explicitamente: “O aristocrático autor desse livro fascinante [Qohélet] viveu na Palestina” (Hellenistic, 230); cf. F. Crüsemann, Hiob und Koh., 386.

Page 15: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tipo espiritual que o caracteriza é o de um aristocrata um tanto distancia­do da realidade,30 que recebeu esmerada educação e formação.31

Por isso tudo pode-se afirmar também que Qohélet pertence à classe influente e dominante em todos os campos da vida cidadã,32 à medida que o permitiam as circunstâncias políticas do momento.33 Só nesse sentido pode-se admitir a relação de Qohélet com o ainda não existente sadu- ceísmo.34

Vêm bem a nosso propósito as palavras de N. Lohfink: “Muitas coisas esclarecer-se-ão mais facilmente, se supusermos que ele [Qohélet] proce­dia de família influente”.35

Até agora fixamos nossa atenção nas circunstâncias que podemos qualificar de externas, ainda que internamente digam respeito ao nosso autor. Há, porém, outras circunstâncias que determinam maus intimamente a personalidade de Qohélet e outros traços ou notas que revelam essa mesma personalidade. Movemo-nos, em alguns casos, no meio de conjetu- ras, ainda que fundadas no texto, em outros, porém, a certeza é plena.4.3. Estado civil de Qohélet

Será porventura possível chegar a determinar o estado civil de Qohélet, se era casado ou não, com os dados que nos subministra o livro? Pisamos terreno movediço. R. Gordis ousa afirmar que “Qohélet era solteiro”,36 que “não tem esposa nem quer compartilhar os sucessos simples da vida ordi­nária nem os raros momentos de uma profunda experiência”.37 São exces­sivamente terminantes essas afirmações. Com razão J. van der Ploeg cri­tica R. Gordis: “Por que dizer que Qohélet não era casado..., quando o

30Qohélet revela-se cético; ora, como argumenta R. Gordis, o ceticismo se dá nas classes altas da sociedade, as que não sofrem; não nas baixas que sofrem na vida e buscam mudar as condições de vida ou sair delas (cf. Koheleth — the man, 34-35).

31Assim admite R. Kroeber: “Provavelmente procedia de família notável da alta classe de Jerusa­lém e recebeu a educação científica e religiosa e a instrução profissional que correspondia à tradição de sua classe” (Der Prediger, 23); cf. também R. Braun, Kohelet, 178.

32W. F. Albright escreve: “Retenho que o autor deste livro [Qohélet] foi judeu influente” (Some Canaanite, 15); e R. Kroeber: "Vemos, portanto, no autor um mestre de sabedoria que, como membro da classe dominante...” (Der Prediger, 6).

33A matização no-la dá H.-P. Müller: Qohélet “pertence à antiga camada social dominante, que foi despojada de seu poder pelos diádocos e seus colaboradores” (Neige, 264, no resumo em francês do artigo).

“ Cf. D. Michel, Qohélet, 75, onde rejeita a opinião de L. Levy em seu livro Das Buch. R. Kroeber opina acertadamente que Qohélet “reflete a atitude espiritual daqueles círculos que no século seguin­te constituíram uma coalizão sociopolítica no partido dos saduceus. Mais não se pode dizer” (Der Prediger, 6).

35Kohelet, 12 = Der Bibel, 24-25.36Koheleth— the man, 78; e acrescenta a razão em que se funda: “Porque está bastante preocupa­

do pelo fato de que, quando o homem morre, deve deixar sua riqueza a ‘estranhos’, que nunca traba­lharam para consegui-la, e não manifesta nenhum sentimento por parentes e amigos, também quan­do fala da família” (Ibidem).

37Koheleth — the man, 84.

Page 16: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

texto não diz nada disso?”38 Deve-se supor antes o contrário, pois ficar sol­teiro constituía exceção entre os judeus, e o próprio Qohélet recomenda o contrário: “Desfruta a vida com a mulher que amas” (9,9).

Sobre se Qohélet tinha ou não filhos, nega-o R. Gordis: “Qohélet era solteiro ou, ao menos, homem sem filhos”,39 e seu “lar jamais ressoou com vozes de crianças brincando”.40 A resposta de van der Ploeg, que me parece mais equilibrada, é a mesma que deu a propósito de se Qohélet era casado ou solteiro e no mesmo lugar.4.4. Profissão de Qohélet

Sobre esse ponto, sim, temos dados concretos em Qohélet. Diz-nos o epiloguista que “Qohélet, além de ser sábio, intruiu permanentemente o povo; e escutou com atenção e investigou, e compôs muitos provérbios; Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto” (Qoh 12,9-10). Neste pequeno semblante do mestre amado subli­nham-se dois aspectos de sua atividade profissional: o do sábio-mestre e o do investigador.41 Como sábio-mestre ou mestre de sabedoria, “era mestre numa das academias de sabedoria em Jerusalém, que estava a serviço das necessidades educacionais da juventude da classe alta”.42

N. Lohfink difere da maioria dos autores quanto à maneira de ensi­nar de Qohélet. “Em nosso contexto o mais provável é que Qohélet, ao estilo dos filósofos gregos ambulantes, tenha oferecido seu ensinamento publicamente (ao ‘povo’) nas praças, naturalmente como estes, por dinhei­ro”.43 A novidade está no modo de ensinar ao ar livre, e não em receber dinheiro em troca.44

Alguns chamaram Qohélet filósofo.45 Creio que em sentido rigoroso não é adequada essa qualificação. Melhor seria chamá-lo pensador. Quan-

38J. van der Ploeg, Robert Gordis, 106, que ademais afirma: “E gratuito pensar que ele [Qohéletl tenha transgredido seu principal mandamento, apesar de 7,26, que fala da mulher em termos hiperbólicos e rebuscados para pôr em guarda os discípulos dos sábios contra as seduções femininas, o que sempre fizeram os sábios (cf. Pr 2,16 etc.)” (Ibidem).

^Koheleth — the man, 78.i0Koheleth — the man, 84.41As palavras de A. Baruq confirmam essa apreciação: “As duas personagens: o mestre tradicional

e o buscador decidido a recolocar tantas e tantas coisas, descobertas pelo epiloguista, reconhecem-se com bastante facilidade no livro que tomou a seu encargo difundir” (Ecclésiaste, 11; trad. 14-15).

42R. Gordis, Koheleth — the man, 77. A. Lauha também afirma que “Qohélet deve ter sido mestre profissional de sabedoria” (Kohelet, 1).

i3Kohelet, 12 = DerBibel, 24-25.■“ Pr 4,5-7 e 17,16 sugerem que os discípulos pagavam ao mestre de sabedoria. Sobre a instituição da

Escola pode-se consultar o que já escrevi em L. Alonso - J. Vüchez, Provérbios, Madri, 1984, 47-48.45"0 fato de Qohélet confrontar-se criticamente com a sabedoria tradicional de escola faz supor

que ele era ‘filósofo’ cercado por um grupo entusiasta de ouvintes adultos, como pedagogo de grêmios de juventude (cf. 12,9: ‘ensinava ao povo’)” (A. Lauha, Kohelet, 3). Cf. C. S. Knopf, The optimism, 199; J. Steinmann, Ainsi, 23.33; R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 191.196; The way, 170; A. Bonora, Qohelet, 97.

Page 17: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

to ao grau de originalidade, já é mais discutível, pois depende de como se interpretam as influências que recebeu da cultura ambiente e de sua assi­milação.46

Devemos pensar que a atividade docente de Qohélet era inseparável de sua atividade política na comunidade de que fazia parte; a que se acres­centa sua pertença à classe dominante. Desse ponto de vista, a afirmação de R. Kroeber parece-nos lógica: “Vemos, pois, no autor, um mestre de sa­bedoria que, como membro da classe dominante, tomou parte na vida po­lítica”47 e, como tal, favorecedor das tendências conservadoras.48

4.5. Personalidade bem definida de QohéletChama poderosamente a atenção a singularidade de Qohélet; é certo

que o livro é um marco na literatura sapiencial judaica. Seu autor deve ter sido pessoa muito singular, como o é sua obra.49 A personalidade de Qohélet é muito complexa, ou, como disse J. Cantó Rubio: “Possui toda uma perso­nalidade, e forte, com certeza”.50 Enfrenta valorosamente os mais graves problemas humanos de toda ordem e põe em interrogação as soluções tra­dicionais que de fato se consideravam intocáveis. A. Barucq disse dele que “é um mestre na arte de romper as seguranças mais firmes e os valores mais cotados”.51 Esse arrojo e a árdua tarefa de buscar formas literárias adequadas “supõem uma personalidade mais marcante; e desta vez, sim, o livro está de acordo... sem ter, com certeza, nada de linha revolucioná­ria”.52 Fê-lo, porém, valendo-se de formas e métodos novos, com cara des­coberta e diante dos representantes do poder e da intelectualidade do povo.53

E impossível reduzir tal personagem a moldes determinados; rompe com eles todos, porque tem características muito díspares e até contradi­tórias: conservador e inovador, cuja obra é “mescla de abertura ao mundo e de conservadorismo, de ceticismo e de fé”.54

46Que seja autor original defenderam G. A. Berton (cf. A criticai, 43), O. S. Rankin - G. G. Atkins (cf. The Book, 15a), R. Gordis (cf. Koheleth — the man, 55-58). Pôs em dúvida Ch. F. Whitley, que diz: “Em vista do número de lugares paralelos que se podem aduzir para muitos de seus ditos, isso é discutível” (Koheleth, 183).

47Der Prediger, 6; cf. H. Duesberg, Ecclésiaste, 41. '“ Cf. J. Steinmann, Ainsi, 17.131; cf. L. Di Fonzo, Ecclesiastes, 70-77.49Apesar dos poucos dados de que dispomos, “pode-se falar de manifesta ‘individualidade’ do au­

tor” (M. Hengel, Judentum, 215), típica do tempo do helenismo, assinalada pela liberdade do indiví­duo (cf. 215-216).

mSapienciales, 154.5lEcclésiaste, 7; trad. 11.52A. Baruq, Ecclésiaste, 11; trad. 14-15.53Como escreve N. Lohfink: “Alguém que logrou fazer isso em Jerusalém deve ter sido não somente

homem (que presumivelmente viajou muito) com ampla formação e elevadas atitudes espirituais e lingüís­ticas, mas também personalidade com forte poder para se impor” (Kohelet, 12 = Der Bibel, 24-25).

54R. Kroeber, Der Prediger, 6; cf. A. Baruq, Ecclésiaste, 11; trad. 15.

Page 18: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

5. Atitude de Qohélet na vida

Qohélet podia estar dotado de melhores qualidades de espírito, mas não manifestá-las suficientemente em sua obra escrita. O estudo de Qohélet põe-nos, todavia, a descoberto uma pessoa bem caracterizada, que se con­fronta com a realidade que o circunda de maneira firme, decidida, clara e inequívoca. Descobrir e descrever essa atitude de Qohélet é o que nos inte­ressa agora.5.1. Pressuposto fundamental

Qohélet faz distinção fundamental entre Deus e tudo o mais. Deve-se, sem dúvida, à fé religiosa em que foi educado. Constitui ela o núcleo prin­cipal do legado religioso que herdou da tradição de seu povo.

Qohélet não se distingue especialmente por sua piedade religiosa; mas a fé em Deus, Criador e Senhor do mundo e do homem, lhe é algo tão conatural que sequer se propõe o problema de sua existência, ele que de tudo duvida. Acerca disso não existe nenhuma voz discrepante.55 Tão se­guros estão todos da fé de Qohélet que chegam a afirmar: “Deus não é problema para ele”,56 ou então: “No livro de Qohélet não existe ‘o problema de Deus’ (‘Gottesfrage’). E estranho ao autor o ateísmo”.57

Consequência imediata de tudo isso é o estabelecimento de outra dis­tinção, que coincide com a anterior e que influirá decisivamente no desen­volvimento das reflexões de Qohélet em todo o livro: Qohélet tem ple­na consciência do que “é investigável” pelo homem e do que “não é investigável”; Deus em primeiro lugar, depois tudo o mais. O que quer dizer que “a priori” exclui de seu campo de reflexão, e com certeza de ob­servação, a existência de Deus mesmo; não assim tudo o mais, incluídas as formas de pensar sobre esse Deus e suas relações com o homem e a criação, que foram transmitidas quase intocáveis através de gerações e gerações e influíram em toda a vida de fé, no culto, na moral, na concepção de todo um povo como povo e de seus indivíduos. Parafraseando o próprio Qohélet: não se podem confundir “as coisas que acontecem sob o sol”, que podem e devem ser investigadas pelo homem como dura e inútil tarefa, com “o que está sobre o sol”, ou seja, Deus e seu mundo: o impenetrável, o mistério.

55A. Lauha afirma como algo sabido e admitido por todos: “Naturalmente Qohélet, como filho de seu povo, não é ateu. Ele não duvida da existência de Deus” (Kohelet, 17). G. von Rad, por sua vez: “Qohélet não é, absolutamente, ateu niilista; sabe que o mundo foi criado e é regido continuamente por Deus” (Teologia dei A. T., I, 551).

56J. A. Loader, Polar, 129, que aduz o testemunho de H. Blieffert: “A única realidade indiscutível e indiscutida” para Qohélet é a existência de Deus (Weltanschauung, 17).

57M. Schubert, Schõpfungstheologie, 82; cf. também R. B. Y. Scott, The way, 170; J. L. Crenshaw, Old Testament, 137.

Page 19: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

5.2. Qohélet é bom observadorA realidade próxima ao homem, “o que acontece sob o sol”, concentra

toda a atenção de Qohélet. Este é seu meio natural em que se move como peixe na água: “Dediquei-me a investigar e explorar com sabedoria tudo o que se faz sob o céu” (1,13); “Examinei todas as ações que se fazem sob o sol” (1,14); “Observei a tarefa que Deus impôs aos homens” (3,10); “E ou­tra vez observei todas as opressões que se cometem sob o sol” (4,1); “E observei também que todo trabalho e todo êxito nos empreendimentos só são...” (4,4); “De tudo vi em minha vida sem sentido” (7,15); “Dediquei-me a conhecer a sabedoria e a observar as tarefas que se realizam na terra” (8,16). Poder-se-ia acrescentar número muito considerável de passagens em primeira pessoa em que o autor frisa sua ação pessoal de investigação: suas experiências pessoais. Com suas afirmações terminantes, universais, evidentemente hiperbólicas, parece que Qohélet quer dar a impressão de que não há parcela da realidade que não tenha analisado pessoalmente como cabe, segundo ele, ao verdadeiro sábio e mestre: “Tudo isso tenho-o examinado com sabedoria. Eu disse: serei sábio” (7,23).

Efetivamente seu campo de observação é tão amplo como a própria vida. Ele é o centro (eu... eu... eu...). Apartir de si mesmo, de sua experiên­cia pessoal, percorrerá o universo humano, traçando círculos concêntri­cos. Observa a atividade humana em torno: o ir e vir, o azafamar-se da gente; o mundo dos negócios com suas perdas e ganhos, a vida dos concidadãos, ou seja, a ordem social ou, antes, a desordem.58Estes primei­ros e fundamentais contatos com a realidade servem de ponto de arran­que para suas primeiras reflexões de grande nervo sobre a avaliação justa das coisas, sobre a hierarquia dos valores estabelecidos na sociedade ou comunidade humana. Ninguém lhe poderá lançar em rosto que é sonha­dor, ainda que seja de pesadelos, nem que não tenha fundamento na vida real o que ele diz. Não inventa nada; seu mundo é nosso mundo. E depois de observar e examinar “o que sucede debaixo do sol”, reflete-o por escrito: escreveu “a verdade com acerto” (12,10).

5.3. Qohélet é crítico radicalO que Qohélet vê no campo das relações inter-humanas, a seu redor,

não é nada alentador; é o mesmo que viram e vêem muitos outros, sábios ou responsáveis, em maior ou menor medida, pela marcha da vida da co­munidade humana. A diferença está em que ele não permanece calado; diz em voz alta o que a maioria silenciosa pensa.59 Não lhe satisfaz o que lhe

58Cf. A. Baruq, Qohéleth, 640-654.59Cf. J. Chopineau, Uimage, 601s.

Page 20: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ensinaram desde pequeno na sinagoga, na escola e no templo: o ensino tradicional contido por escrito na Lei ou Torá, nos Profetas, nos Sábios e na tradição viva do povo.

Qohélet não é moralista, não levanta a voz como os antigos Profetas, mas constata, como sábio, a contradição evidente entre o que às vezes se ensina como doutrina recebida de Deus e o que acontece: “Irá bem para os que temem a Deus, porque o temem, porém não irá bem para o malvado, nem se prolongarão seus dias como uma sombra, porque não é temente na presença de Deus. Há uma vaidade que se verifica na terra: que há justos aos quais cabe a sorte dos malvados, enquanto há malvados a quem toca a sorte dos justos” (8,12-14; ver também 7,15).

Pode-se afirmar que a constatação repetida dessa contradição é o prin­cipal fundamento que tem Qohélet de sua visão crítica da realidade e, con­seqüentemente, da crítica implacável que faz ao que se ensinou tradicio­nalmente; para ele não existem tabus de qualquer espécie.

Se Qohélet foi capaz de confrontar-se com o ensino tradicional em coisas tão graves como na negação de qualquer retribuição,60 na impossi­bilidade de conhecer os sentimentos de Deus para com o homem,61já pode­mos imaginar que não existe nada, por muito certo que pareça, que não negue ou ponha em dúvida Qohélet. Por isso repetirá uma e outra vez: “Tudo é vaidade”, porque nada tem consistência, tudo desvanece como a fumaça e o vento.

Os homens lutam e matam-se pelo poder; Qohélet, transfigurado no rei mais poderoso de Israel com tudo o que o homem pode desejar ou sonhar (cf. 1,12-2,10), confessa sem rebuços : “Tudo é vaidade e caça de vento” (2,11).

Entre as coisas que mais estimamos, os humanos, estão as riquezas, o possuir, o dinheiro. Com elas acredita-se conseguir os bens supremos do homem: a segurança na vida, o poder, o prestígio, o desfrutamento e gozo dos prazeres mais variados e refinados, a possível felicidade em suma. Mas ocorre com elas como com os fogos de artifício: muito trabalho para fugaz desfrutamento. Qohélet apresenta-se a si mesmo, real ou ficticia- mente, como o mais afortunado neste campo. Mas nem Salomão sentiu-se satisfeito com todas as suas riquezas (2,4-11); nem o avaro: “O que ama o dinheiro não se farta dele, e o que ama as riquezas não as aproveita. Tam­bém isso é vaidade. Quando aumentam os bens, aumentam os que os co­mem, e o que resta a seu dono senão o espetáculo de seus olhos?” (5,9-10). Em todo caso o despojo total de tudo é o triste resultado final para todos sem exceção: “Como saiu do ventre de sua mãe, nu, assim de novo irá

60Cf. IV Excurso sobre a retribuição.6lVeja-se o V Excurso sobre Deus.

Page 21: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

como veio; e nada levará do trabalho de suas mãos. Também isso é grave mal. Como veio, assim irá. E que vantagem terá aquele que trabalhou para o vento?” (5,14-15. cf. também 6,1-2).

Quanto não fazem e dão homens e mulheres para conseguir alto grau de consideração sociaU Mas esta, ao ver de Qohélet, também é fumaça que desvanece, vento que não se pode apanhar: “Fui maior e mais magnífico que todos os que me precederam em Jerusalém”, diz o pseudo-Salomão, para acrescentar imediatamente: “Tudo é vaidade e caça de ventos” (2,9.11). Não infreqüentemente o espetáculo de nossa vida na sociedade é como o de uma festa de carnaval: “Há um mal que vi sob o sol, um erro de que é responsável o soberano: A tolice é colocada nos mais altos postos, enquan­to ricos se sentam abaixo; vi escravos a cavalo, enquanto princípes iam a pé como escravos” (10,5-7).

Os filhos sempre se consideraram em Israel como bênção de Deus. São a única garantia de futuro para um povo, uma estirpe, um nome. Para Qohélet isso é evidente, pois a própria fama, espécie de imortalidade, des­vanece com o esquecimento, sorte que a todos nos espera (cf. 1,11; 2,16; 9,5). Qohélet não dedica sequer uma palavra amável aos filhos, mas algu­mas muito amargas. Normalmente, o filho é o herdeiro: “Aborreceu-me todo o fruto de meu esforço pelo que me fatigo sob o sol, pois devo deixá-lo a meu sucessor, e quem sabe se será sábio ou se será néscio? Certamente ele terá pleno domínio de tudo o que consegui com tanto esforço e sabedo­ria. Também isso é vaidade. E acabei desesperando em meu coração de todo trabalho pelo que me fatiguei sob o sol. Pois há quem trabalha com sabedoria, ciência e acerto, e tem que deixar sua porção a alguém que não se fatigou nela. Também isso é vaidade e grande desgraça” (2,18-21).

Sobre as relações do homem com Deus em parte já sabemos como pen­sa Qohélet. Também este aspecto não se livra da visão negativa de nosso autor. Deixa, contudo, primeiramente bem assentado seu pressuposto fun­damental religioso, ou seja, a transcendência divina, e recomenda pru­dência e respeito: “Não te precipites com tua boca nem se apresse teu coração a proferir uma palavra diante de Deus. Porque Deus está no céu e tu na terra. Portanto, sejam tuas palavras contadas” (5,1). Se, apesar dis­so, se fazem votos e promessas a Deus, Qohélet exige seu exato cumpri­mento: “Quando fizeres voto a Deus, não tardes em cumpri-lo; porque não lhe agradam os néscios; o que prometes, cumpre-o. Melhor é que não faças nenhum voto, do que o fazeres e não cumprires” (5,3-4).

Impõe-se, portanto, o espírito absolutamente crítico de Qoheleti Tudo, absolutamente tudo o que o homem tem a seu alcance, tudo o que está e sucede sob o sol é vazio, fumaça, vaidade, e andar atrás disso é ir à caça do vento.

Page 22: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

III. COMO SE JULGOU QOHÉLET

Pelo que acabamos de dizer parece que têm razão de sobra os que dão de Qohélet uma imagem inteiramente negativa e derrotista. Todavia, em seu conjunto não cremos que seja assim. Dele se disseram muitas coisas, coisas demais. A nosso ver, algumas acertadas, outras não tanto, ou aber­tamente errôneas. Por isso cremos que em muitos casos será necessário matizar ou corrigir ou negar semelhantes juízos e apreciações.

1. Introdução ao tema

Não se pode estranhar as acusações que se fazem contra Qohélet em nosso tempo, pois, no século I de nossa era, a escola rabínica de Shamay levava-o ao banco dos réus.10 que mais chama a atenção é o recrudesci- mento destas acusações, especialmente a partir do século passado.2 Re­centemente se repetem os mesmos juízos negativos.3

2. Acusações contra Qohélet

2.1. ContradiçõesUm dos capítulos em que mais insistiram os que julgaram negativa­

mente Qohélet foi o das contradições. Estas são por demais evidentes para ignorá-las, sem tentar dar uma explicação. A isso se deve que tenham surgido desde o começo tentativas de explicação e harmonização, e que nós sintetizamos em dois capítulos: um dedicado à composição e outro ao gênero ou gêneros de Qohélet.4

2.2. PessimismoSe há uma nota que em geral caracteriza Qohélet entre os autores

antigos e modernos é a do pessimismo. O começo do livro constitui plano inclinado que nos leva a essa conclusão: “Vaidade das vaidades — diz

lPode-se ver o que se dirá no capítulo XIII sobre a Canonicidade de Qoh.2Isso fazia V. Zapletal exclamar em 1911: “Não há nenhum livro do AT em que se crê encontrar

tantos erros filosóficos e teológicos como no de Qohélet. Quem não ouviu falar do pessimismo, determinismo, materialismo, ceticismo e epicurismo de Qohélet? Quase em cada versículo pretende- se descobrir um ou outro destes erros e maravilha-se que semelhante livro tenha podido ser recebido no cânon do Antigo Testamento” (Das Buch, 81).

3Cf. J. Lévêque, La Sagesse, 657; Ch. F. Whitley, Kohelet, 1.4Cf. J. L. Crenshaw (1988), Eclesiastes, 46s. M. V. Fox considera de tanta monta o tema das con­

tradições em Qohélet que lhe dedica um livro inteiro, cujo título é Qohelet and his contradictions, (Sheffield, 1989). Veja-se especialmente seu Excursus I: Aproximaciones a las contradicciones en Qohélet, 19-28.

Page 23: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet — ; vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (1,2). A sentença, com algumas variações, vai se repetindo por todo o livro até 12,8: “Vaidade das vaidades — diz Qohélet —, tudo é vaidade”. As interpretações que os autore dão de hebel podem ser variadas, mas o tom de pessimismo é comum a todas elas.5 Da mesma maneira, este foi o aspecto que inspirou tantos autores, alheios ao campo da teologia, literatos e filósofos espe­cialmente.

Que Qohélet seja pessimista para a maioria dos autores, parece que se deve admitir sem discussão. Nesta secção, como em todas, uns autores são muito radicais, outros mais moderados. Assim passamos da simples afirmação do pessimismo em Qohélet a uma visão absolutamente derrotista do homem. J. Pedersen diz desempoadamente: “A dor causada pela falta de êxito na vida nos proporciona em primeiro lugar um ponto de partida para compreender o pessimismo do Eclesiastes”.6 Moderadamente se ma­nifesta também Bo Isaksson, ao escrever: “O traço pessimista em Qohélet, que eu preferiria chamar de agonia do vazio ou sentimento do absurdo...”7H. H. Schmid, todavia, é contundente: “No mundo, tal como o vê Qohélet, mal há lugar para o homem, nem sequer um lugar limitado”.8

Quanto à origem do pessimismo de Qohélet, alguns viram-no fora de Israel, no Egito ou na Mesopotãmia,9 outros em Israel.10 A resposta com­pleta a essa pergunta vai unida à que se der a propósito do capítulo sobre as influências a que está submetido Qohélet, e não em último lugar em sua vida pessoal ou muito próxima. Neste sentido é preciso levar muito em conta a situação sociopolítica que se vivia em seu tempo.112.3. Ceticismo

O ceticismo é fruto espontâneo do pessimismo e vice-versa.12 D. Michel crê, todavia, que “mais aceitável que a classificação ‘pessimista’ é com cer­teza ‘cético’, de fato Qohélet foi apresentado com frequência por esse ponto de vista”.13

^Veja-se o Excursus 25 sobre hebel.6Scepticisme, 345.’’Studies, 40.aWesen, 188. Uma sentença parecida é a de R. H. Pfeifer (cf. The peculiar, 104-106).9Diz, por exemplo, R. B. Y. Scott: “As raízes mais profundas de nosso autor... estão no aspecto

cético e pessimista da sabedoria do Egito e da Mesopotãmia” (Ecclesiastes, 198).10A única explicação adequada da origem do pessimismo do Eclesiastes deve-se encontrar na tra­

dição hebráica” (C. C. Forman, The pessimism, 342).nL. Chopineau assinalava que “a falta de êxito na vida social e política seria a fonte do pessimis­

mo de Qohélet: expressão da filosofia de vida de classe dominante, despossuída de seu poder” (L’image, 599). n

I2As vezes os autores passam de um a outro sem adverti-lo, ou talvez com plena consciência.13Qohelet, 88; e cita E. Pedersen (Scepticisme, 317-370), R. H. Pfeiffer {The peculiar, 100-109), M.

A. Klopfenstein (Die Skepsis, 97-109), R. E. Murphy (Qohélet), J. L. Crenshaw (The birth).

Page 24: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O aberto otimismo que reinava no campo da sabedoria tradicional desaparece em grande parte do horizonte de Qohélet, porque, fundado sempre em sua experiência, ele é “cético teórico do conhecimento”.14

Teve fortuna uma frase atribuída a H. Heine: Qohélet é “a glorifica­ção (das Hohelied) do ceticismo”, sinal manifesto de que a grande maioria dos autores viu refletido o ceticismo em Qohélet. Não faz muito tempo demonstrou-se que H. Heine não falava de Qohélet mas de Jó.15

J. Pedersen começa assim seu célebre artigo sobre o ceticismo israelita: “Em Israel, tem o ceticismo um representante característico: é o autor do Eclesiastes”.16Ou como escreve G. von Rad: “Este ceticismo aparece em toda sua amplidão e com vigor até então inaudito no livro de Qohélet”.17 Sobre isso, pelo que parece, não há muitas dúvidas.18 Qohélet é investigador in­cansável, ainda que nele se dê o paradoxo de que só se fia de suas compro­vações e, ao mesmo tempo, desconfia de suas próprias possibilidades.

Geralmente se reconhece que o ceticismo faz Qohélet duvidar “somente das possibilidades humanas, não da realidade de Deus”.19 Como indica­mos em outro lugar, Qohélet jamais põe em dúvida a existência de Deus; o de que duvida (e até nega) é poder chegar a conhecer como Deus está

14D. Michel, Qohelet, 33; cf. p. 89. Assim o confirma também J. M. Rodríguez Ochoa, ao afirmar um pouco exageradamente que em Qoh, “de todos os elementos que constituíam o antigo ideal da vida não fica nada, apenas um ceticismo doloroso” (Estúdio, 44). Mais duro ainda é o juízo de G. von Rad: “E preferível conceber a obra [Qoh] como uma nota marginal à tradição sapiencial, de um ceticismo por certo muito amargo” (Teologia dei Antiguo Testamento, 1,550). Essa afirmação sobre a marginalidade de Qoh parece-nos desacertada. Cf. também A. M. Dubarle, Où en est, 412.

15F. Ellermeier em 1965 desfez o mal-entendido, publicando o texto completo de H. Heine (.Randbemerkung). A parte central diz: “Por que o justo tem que sofrer tanto sobre a terra? Por que têm que perecer talento e lealdade, enquanto o bufão fanfarrão...? O livro de Jó não resolve esse penoso problema. Pelo contrário, este livro é o cântico do ceticismo” (Randbemerkung, 93).

A causa deste erro crasso está nada menos que em Franz Delitzsch, que, em seu Comentário a Jó de 1894, aplica a Qohélet a sentença de H. Heine, fazendo notar que Heine fala de Jó, e não de Qohélet. Tbdavia, no Comentário a Qohélet de 1875 lemos: “Por isso se poderia chamar o livro de Qohélet de o cântico do temor de Deus, melhor que ‘o cântico do ceticismo’, como o chama H. Heine” (F. Delitzsch, Hoheslied und Koheleth, 190 = Commentary, 183). Curiosamente, no ano seguinte, 1876, publicava-se a segunda edição do Comentário a Jó. A passagem da primeira edição, em que se cita H. Heine, permanece inalterada, ou seja, corretamente (cf. F. Ellermeier, Randbemerkung, 94). A F. Delitzsch podemos aplicar o que disse Horácio: “Quandoque et bonus dormitat Homerus” (Ars, 539). Mas o erro de Delitzsch repete-se ainda nos Comentários a Qohélet. E. Wülfel advertia em 1958 que todos citam a célebre frase de Heine, mas nunca se indica em que lugar de seus escritos encontra-se ela, e acrescentava que foi F. Delitzsch que a citou pela primeira vez em seu Comentário a Qoh (cf. Luther und die Skepsis, Munique, 1958, 60). Assim o constata simplesmente H. W. Hertzberger em seu comentário (cf. Der Prediger [1963], 222) e estranhamente também S. Holm-Nielsen em 1974 (cf. On the interprétation, 168), apesar de que, como vimos, F. Ellermeier tenha decifrado o enigma em 1965. K. Galling (.Der Prediger, 84 nota 1) e A. Lauha (Kohelet, 22) explicam-no já corretamente em seus comentários, mas a maioria dos autores ainda não se inteiraram do fato.

16Scepticisme, 317.17Teologia dei Antiguo Testamento, I, 549s.18"Na atualidade há acordo geral de que o livro [Qoh] é obra de cético derrotista” (S. Holm-Nielsen,

The Book, 40).19M. Hengel, Judentum, 219, que cita J. Pedersen (Schepticisme, 344). Cf. G. von Rad, Teologíadel

Antiguo Testamento, I, 548.

Page 25: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

presente e age no mundo e na história.20 Duvida também de qualquer sis­tema que assegure ao homem poder chegar a conhecê-lo com toda segu­rança ou aos enigmas da natureza e da vida humana, “de tudo aquilo que acontece sob o sol”.21

Quanto às causas e raízes do ceticismo em Qohélet, provavelmente se deve responder da mesma maneira como fizemos ao tratar das causas do pessimismo. Não é preciso ir muito longe para encontrá-las, ou seja, na experiência real da vida de Qohélet, ou em seu próprio sistema ou método de conhecimento: o que ele averiguou em suas investigações, o que vê com seus próprios olhos e percebem todos os seus sentidos na vida real, social e política são o fundamento de seu próprio ceticismo.22 Suas frustradas experiências religiosas fazem com que se proponha uma interrogação an­tes de tudo: para que serve...?, que proveito tem?, que diferença há entre o justo e o ímpio etc.?23

2.4. AgnosticismoQohélet não se o acusa de agnosticismo no sentido filosófico estrito,

pois é evidente que não se abstém de afirmações sobre Deus e a natureza do criado,24 algo que, em nenhum caso, faria verdadeiro gnóstico.25 Mas,

20"Qohélet não é absolutamente ateu niilista” (G. von Rad, Teologia dei Antiguo Testamento, I, 551). R. E. Murphy escreve: “Deveríamos matizar um pouco o nosso título [Qohélet o cético]: talvez Qohélet o cético fiel... fosse mais apropridado... o ceticismo não exclui a fé” (Qohélet, 358). Ilustra sua afirmação com uma anedota pessoal com G. von Rad e conclui: a resposta de von Rad “de que o ceticismo não exclui a fé põe-nos na perspectiva acertada para interpretar o pensamento de Qohélet” (Ibidem).

21R. H. Pfeiffer assegura que “o Eclesiástico não é apenas um cético com relação aos sistemas filosóficos de seu tempo, mas também com relação à busca de um summum bonum de valor perma­nente” (The peculiar, 108); cf. M. A. Kopfenstein, Die Skepsis, 98.108-109.

22Cf. M. A. Klopfenstein, Die Skepsis, 105s.23Cf. R. H. Pfeiffer, The peculiar, lOOs; A. Lauha, Kohelet, 17 e H. P. Müller, Neige, 247-248, os

quais se deverá matizar em outro lugar. Um bosquejo do cético em geral, que se inspira em Max Horkheimer, podemos ver em B. Lang, Ist de Mensch (1979), 118. Em seguida vem a aplicação a Qohélet: “Se passarmos do cético de Horkheimer a Qohélet, encontraremos muitas afinidades: Qohélet é seguramente rico aristrocrata; revela-o o desconhecimento com que fala do sonho feliz do pobre diabo faminto (5,11). Provavelmente não teve nunca que sofrer pessoalmente o lado negativo da vida. Como Montaigne se refugiava em seu palácio como em uma ilha de felicidade, assim o fazia Qohélet em suas festas. Também não intervém Qohélet na política, nem empreende nada para mudar a misé­ria do mundo, para a qual tem olho tão vivaz. Fica desamparado diante dos acontecimentos e deixa levar-se, como Montaigne, de lúgubres pensamentos. Nada estranho que Montaigne lerá Qohélet com prazer” (o. c., 118-119).

24Praticamente todos os comentadores subscreveriam o que G. von Rad admite sem titubeios: “Qohélet não é absolutamente ateu niilista. Sabe que o mundo foi criado e é regido continuamente por Deus” (Teologia dei Antiguo Testamento, I, 551), e também: “No tema da existência de Deus e de sua atuação soberana no universo, compartilha o Eclesiastes absolutamente da concepção tradicional dos sábios” (Sabiduría, 292).

25Neste sentido parece que se contradiz R. B. Y. Scott, ao afirmar que Qohélet “não é ateu; ele afirma a existência e o poder de Deus, como pressuposto de sua filosofia agnóstica e fatalista” (The Way, 170; grifamos).

Page 26: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

analisando suas próprias confissões, pode-se descobrir “certo agnosticismo”, como diria A. Allgeier.26

A atividade de Qohélet centra-se em investigar, averiguar, tentar sa­ber cada vez mais: “Dediquei-me a conhecer a sabedoria e a observar as tarefas que se realizam na terra” (8,16). Depois de seu imenso esforço, que simboliza o esforço da mente humana, chega à conclusão de que “o homem não pode averiguar o que se faz sob o sol; por isso o homem afadiga-se buscando, porém nada averiguará; e ainda que o sábio diga que o sabe, não poderá averiguá-lo” (8,17). O mistério, como densa nuvem, envolve-o por inteiro: “Longe está o que existe e profundo, profundo, quem o desco­brirá?” (7,24; ver também 1,8.17; 3,11; 11,5). Especialmente impenetrável para o homem é o futuro: “Pois é grande o mal que ameaça ao homem; uma vez que ele não sabe o que acontecerá, pois quem lhe vai anunciar quando acontecerá?” (8,6b-7; ver também 6,12; 7,14;10,14).

Essas confissões de Qohélet oferecem ocasião a alguns autores para dele fazerem juízo muito negativo quanto a suas possibilidades de co­nhecimento.27 Aqui reside a diferença tão radical entre o sábio Qohélet e a sabedoria tradicional ou “antiga” de Israel. Essa é otimista, talvez ex­cessivamente otimista, e para ela é transparente a realidade; encontra com facilidade, no mundo e nos acontecimentos, a Deus que lhe fala. Em Qohélet, todavia, ao homem “revela-se mudo o universo, apesar de a po­derosa mão de Deus não deixar de exercer sobre a criação seu domínio soberano”.28 E se é mudo para o homem o universo, não há possibilidade de diálogo.29

São essas as limitações que Qohélet atribui ao homem no campo do conhecimento; é este, portanto, também o horizonte de seu agnos­ticismo.

2.5. Determinismo e outras qualificaçõesNão é infreqüente o uso da palavra determinismo entre os comen­

tadores de Qohélet; mas seu significado é equívoco. Desde o extremismo exagerado de R. B. Y. Scott, que na prática converte o Deus de Qohélet

26Das Buch, 15.27Um dos mais significativos é G. von Rad, que generaliza excessivamente sem acrescentar matiz

que talvez seja necessário: “O universo e os acontecimentos intramundanos são inteiramente incom­preensíveis ao Eclesiastes” (Sabiduría, 289). Certamente, segundo von Rad, mais incompreensíveis são ainda para Qohélet os desígnios de Deus: “O homem é incapaz de conhecer (as) disposições de Deus, ou seja, ‘sua ação’ no universo” (Sabiduría, 287). É preciso supor, portanto, que o que Qohélet sabe de Deus, sabe-o pela fé que herdou e que vive em sua comunidade.

28G. von Rad, Sabiduría, 293.29L. Gorssen avança um pouco mais e converte o homem em desconhecido a si próprio: “O homem

é pergunta sem resposta para si mesmo” (Lo cohérence, 314).

Page 27: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

num deus grego, impossibilitado de agir na história;30 até o uso mais mati­zado de determinismo, que coincide com o das leis postas por Deus na natureza.31 Neste caso não se nega a liberdade de Deus.32 Quanto à liber­dade do homem em Qohélet, geralmente se afirma sua defesa;33 mas tam­bém se ouve alguma voz discrepante.34

A Qohélet se aplicaram ainda muitas outras qualificações, como cíni­co, niilista, epicurista; cada dia menos freqüentes, mas ainda ocorrem.35

3. Defesa de Qohélet

É preciso defender Qohélet de tudo que se lhe imputou? Não o creio, pois que sobre ele se disseram coisas contraditórias. R. B. Y. Scott afirma que “o autor é racionalista, agnóstico, cético, pessimista e fatalista”, e como observação esclarecedora acrescenta simplesmente: “Os termos não se empregam pejorativamente!”36 Que significado têm, então, os termos? O autor não o explica. Todavia, não cremos que seja acertado o que em outro tempo se fez: a defesa, custasse o que custasse, de Qohélet, mais por motivos dogmáticos ou simplesmente apologéticos do que por razões ob­jetivas.37

30À doutrina da divina Providência converte-se em Qohélet em determinismo arbitrário e absolu­to. Qualquer possibilidade de intervenção divina na natureza ou nos assuntos humanos está excluída, visto que nada de novo acontece sob o sol” (Eclesiastes, 198). O homem está, por conseguinte, domina­do pelo fatum (cf. o breve comentário que faz a 6,10 na p. 233).

31Pelo que parece, é isso o que pretende dizer G. von Rad, ao escrever: “O Eclesiastes está conven­cido de que existe algo como uma norma, que exerce misteriosamente seu domínio sobre todos os acontecimentos...” (Sabiduría, 288); como exemplos aduz 3,18.17; 8,6; 9,11-12.

32Diz-nos G. von Rad: O Eclesiastes “está convencido de que tudo está nas mãos da livre atuação de Deus” (Sabiduría, 289). Mas de um Deus déspota e arbitrário, segundo alguns: “Um traço essencial da concepção de Deus no Eclesiastes é, segundo A. Lauha (Die Krise, 186) e o O. Rankin (Ecclesiastes, Nova York, 1956, 18), a incoerência ética da atitude divina. Deus favorece ou desfavorece aos homens segundo sua vontade; converte-se em déspota incompreensível e arbitrário. A religião perverte-se em fatalismo, a lei em incerteza” (L. Gorssen, La cohérence, 315).

33"0 Eclesiastes pressupõe a liberdade da vontade (1,13.17; 2,1-10; etc.)” (R. H. Pfeiffer, The pecu­liar, 108).

“ "Contra essa misteriosa determinação [que domina na natureza] não há possibilidade de resis­tência. O homem é totalmente escravo do destino. ‘O homem não pode enfrentar um mais forte’ (Ecl 6,10). Agora já está suficientemente claro o que se oculta sob essa inexorável determinação; o próprio Deus é quem fixa ‘os dias contados’ da existência. Deus ‘criou’ não só o tempo de prosperidade, mas também o da adversidade, e assim é preciso aceitá-lo (Ecl 7,14)” (G. von Rad, La sabiduría, 289); cf. V. Zapletal, Das Buch, 82a, onde cita M. Lutero e G. Wildeboer.

35Cf. H. Lusseau, El Eclesiastés, 681. F. Spina, ao dar-nos conta de um juízo de H. B. Y. Scott, acrescenta: “Em grande parte essa avaliação, que de nenhuma modo se reduz a Scott, provém da perspectiva cínica, e talvez até niilista, que caracteriza o livro” (Qoheleth, 267). Pode-se citar a controvérsia entre os autores a propósito de Sb 2. Quem são os ímpios deste grande discurso? Ver meu comentário a Sabedoria (a Sb 2,1, especialmente nota 7); cf. J. Pedersen, Scepticisme, 370; A. Dupont-Sommer, “Les ‘impies’ du Livre de la Sagesse sont-ils des Épicuriens?”, RHT 111 (1935) 90­112.

mEccle$iastes, 192; cf. também pp. 199s.37Cf. D. Buzy, La notion, 510; ver também A. Bea, Liber, IX.

Page 28: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3.1. A Qohélet se lhe lançou em rosto que é ser contraditório. Ao dizer isso, geralmente se pensa de modo cartesiano e ocidental. O modo de pensar de Qohélet é típico do âmbito semita, que, com certeza, tam­bém é lógico; mas à sua maneira: mais compreensivo, mais vital, com mais alusões, menos definido. Qohélet enfrenta a realidade e quer re­fletir sobre ela tal como a vê.38 A vida está cheia de contradições; o sábio não deve fechar os olhos ao que o rodeia e menos Qohélet que observa tudo. Ele deixou gravado em seu livro o que viveu, se bem que fragmen- tariamente.39

3.2. Otimismo relativo. À característica de pessimismo, com que uma corrente de comentadores etiquetaram o livro de Qohélet, outra corrente, não menos forte na atualidade do que aquela, propõe a de otimismo relativo. Não é que se pretenda eliminar de Qohélet as passa­gens abertamente pessimistas; simplesmente se incluem no juízo global as muitas passagens que apresentam outra visão da realidade. Um pessi­mismo absoluto em Qohélet não se pode manter a não ser que se queira mutilar o texto, dele eliminando os convites à alegria, tão típicos de Qohélet.40

Como não se pode encerrar Qohélet num adjetivo por muito impor­tante seja, há quem pense que se pode qualificar sua atitude de eclética.41

3.3. O que dizer do ceticismo de Qohélet? Certamente não é ceticismo paralisante. Um dos maiores defensores do ceticismo de Qohélet, J. Pedersen, dele afirma: “Mas o que caracteriza o Eclesiastes, como judeu, é que, apesar de toda sua amargura e da falta de confiança que marca sua teoria, na prática não desespera; recomenda perseverança tenaz, esforço infatigável para provar todas as possibilidades (11,1-6). Teoricamente, fica com os braços cruzados; na prática, age”.42

38J. Durandeaux expressa-se assim: “Para ‘salvar’ a Deus, Qohélet não escondeu nada do que causava escândalo no mundo em que vivia: a injustiça, o mal, a morte. Negou-se a percorrer os cami­nhos fáceis de uma teologia simples que tudo justifica em nome de Deus: não esquivou-se a nenhuma das maiores contradições com que se confronta todo crente” (Une foi, 182). Não tinha por que fazê-lo.

39Cf. B. Pennacchini, Qohelet, 493.40Como nos diz D. Michel: “Se lhe [a Qohélet] quiser pôr a etiqueta de ‘pessimista’, deve-se falar ao

mesmo tempo de seu otimismo” (Qohelet, 87). R. Braun matiza: “Não necessariamente é preciso qualificá-lo nem como pessimista nem como fatalista, pois ele, apesar das limitações do homem, con­vida ao conhecimento do lado alegre da vida e à atividade como autêntica possibilidade de realização do ser humano, o que, segundo Nietzsche, no máximo se poderia qualificar de ‘pessimismo da força’ ” (Kohelet, 181). N. Lohfink crê que “ele seria mal compreendido ao se qualificar de pessimismo sua melancolia suave” (Valores, 39).

41A. Bonora escreve: “Para Qohélet a alternativa não está entre pessimismo e otimismo... Certa atitude eclética pode ser sabedoria! (Qohelet, 129s). Em sua orientação fundamental otimista chama- o também de “mestre no ensino para gozar da vida” (o.c., 97).

i2Scepticisme, 368.

Page 29: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Alguns negam abertamente que Qohélet seja cético;43 outros aceitam- no apenas em parte.44 O que quer dizer que se admite que Qohélet põe em dúvida quase tudo o que antes dele se aceitara sem titubeios, que relativiza grande parte de nossos conhecimentos e apreciações.45

3.4. Sobre o determinismo e o fatalismo em Qohélet observamos algu­mas precisões muito atinadas, que deixam muito claro tanto a liberdade de Deus em suas atuações como a do homem ao se dobrar às disposições divinas.46Deus é soberano no exercício de seu governo (cf. 3,14; 7,13; 9,1); mas isso não faz periclitar a liberdade do homem que Qohélet supõe em muitas passagens (cf. 3,16-17; 4,17-5,6; 7,29).

As lamentações de Qohélet não têm como centro a liberdade ou falta de liberdade do homem, e sim não poder conhecer até o fundo as coisas e os acontecimentos, sobretudo os iminentes, e não poder introduzir mu­danças como se desejaria.47

3.5. É ainda possível livrar Qohélet das acusações que se lhe fizeram de ser epicurista, hedonista e cínico? Certamente não se pode negar o evidente, suas afirmações: “Isto é o que compreendi: A felicidade perfeita consiste em comer e beber e desfrutar de todo o trabalho com que a pessoa se afadiga sob o sol nos poucos dias da vida que Deus lhe deu. Tal é sua paga” (5,17). E como essas muitas outras (cf. 2,24a, 3,12.22a; 8,15a; 9,7-9a; 11,7-12,la).48

Em primeiro lugar, não é censurável sem mais convidar a gozar na vida dos bens deste mundo. Tudo depende de como se queira conseguir. Uma é a forma que propõem Epicuro e os verdadeiros hedonistas, e outra muito diferente a que propõe Qohélet.49 E não somente se distancia Qohélet de Epicuro e de seus fiéis sequazes, mas também de correntes parecidas, porém mais antigas, do Egito.50

43A. Vaccari sustenta que “embora Qoh pense que nós não podemos entrar nos planos de Deus sobre o governo do mundo, todavia, supõe muitas coisas certas acerca de Deus e da ordem física e moral; louva também a ciência (7,12.19; 9,13-18) e confessa que é mais proveitosa do que a ignorância, como a luz com relação às trevas (2,13s), ainda que declare que não basta para a felicidade do homem (2,15s). Logo não é cético” (Institutiones, 77, ns 82; cf. W. Zimmerli, Das Buch, 137; E. Zeller, Die Philosophie der Griechen, III 2, p. 304; D. Lys, VEcclésiaste, 75.

“ Cf. M. A. Klopfenstein, Die Skepsis, 98.45Cf. A. Bonora, Qohelet, 69; H. Lusseau, El Eclesiastés, 681. '46F. Nõtscher afirma sem atenuações que “Deus... exerce sua vontade completamente livre e sem

coação” (Schicksal, 462).47Cf. F. Nõtscher, Schicksal, 462.4SVeja-se a análise que de todas essas passagens faz R. N. Whybray em Qohelet.49Cf. J. Durandeaux, Une foi, 42. Do mesmo J. Durandeaux é esta magnífica sentença: “Aprendo

de Qohélet que é possível amar todos os prazeres amando a Deus e sem ser neurótico” (o. c., 179). A propósito do poema sobre a velhice 12,1-8), escreve A. Bonora: “Qohélet é o realista desencantado! Não é hedonista desenfreado ou epicurista, todavia, convida a gozar cada dia da vida como dom divi­no” (Qohelet, 139).

50Nô-lo recorda G. von Rad: “Ainda que estas palavras [Qoh 5,17] recordem expressões semelhan­tes do antigo Egito, Qohélet distancia-se bastante claramente desse hedonismo, amiúde cínico, que

Page 30: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

IV. ASPECTOS POSITIVOS DE QOHÉLET

A tradição rabínica que atribui ao rei Salomão, já ancião, a autoria do livro do Eclesiastes,1 é pura lenda, porém manifesta e marca ao mesmo tempo a orientação pessimista dos intérpretes judeus e cristãos durante séculos. Sabemos que a corrente pessimista predominou até nossos dias, razão por que foi responsável de que se tenham desconhecido aspectos muito importantes de Qohélet, pois “o livro de Qohélet está cheio de ale­gria e desejo de viver”,2 como indicamos a seguir.

1. Qohélet e sua personalidade sadia

Um livro, aliás muito breve, que causou tal diversidade de opiniões entre autores de muito valor e de todas as tendências, não pode ter sido escrito por autor medíocre e vulgar. Fazemos nosso o parecer de R. H. Pfeiffer que diz de Qohélet: “Sua originalidade de pensamento e sua ho­nestidade mental dificilmente podem pôr-se em dúvida; seu livro, em con­junto, não tem paralelo nem entre os judeus nem entre os gregos”.3

Têm razão todos os que falaram do espírito crítico de Qohélet, porque, como já sublinhamos antes, têm-no e em sumo grau. Verdadeiramente “Qohélet é mestre em desmascarar e desnudar, em pôr a descoberto e fa­zer vir à luz tudo o que tentam os homens esconder, embelezar e masca­rar. Chama o pão de pão”.4 Ele enfrenta, de rosto descoberto, os mais gra­ves problemas que atormentam o homem, e põe por escrito sem melindres o resultado de suas investigações sobre o escasso valor das coisas, até as mais estimadas, sobre a mentira da vida em família e na sociedade, sobre a concepção mercantilizada da religião e os supostos conhecimentos do ser misterioso de Deus, sobre a fria realidade da morte e sua repercussão na maneira de conceber a vida etc. Por isso causa escândalo tantas vezes e tem, todavia, razão no que diz.

Neste sentido é verdade que Qohélet é “sábio pessimista, desencanta­do, um tanto mestre da suspeição, um tanto resignado e impotente, teste­munha da crise dos valores sapienciais tradicionais”.5 Mas também é ver-

costuma ser irmão do desespero. As frases em que aconselha a aproveitar e gozar de tudo o que se puder, contêm uma referência a Deus, são inclusive as únicas que põem em relação assombrosamente direta a ação humana com a vontade positiva de Deus: isto ‘agrada a Deus’ ” (Qoh 9,7b); cf. 2,25; 3,13; 7,14; 9,7s” (Teologia delAntiguo Testamento, I, 552s).

Hüf. R. Gordis, Koheleth — the man, 39.2A. Bonora, Qohelet, 143.3The peculiar, 109.4A. Bonora, Qohelet, 150.5G. Ravasi, Qohelet, 37s.

Page 31: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dade que a vida é complicada, que os fatos e as situações algumas vezes têm muitos sentidos e outras vezes não têm nenhum, ou, ao menos, não o encontramos. Qohélet abre os olhos para a realidade na qual “se dão o mal e o bem que não podemos mudar e diante dos quais nos vemos desvalidos. Ele nos protege do otimismo frívolo e da supersegurança cristã”.6 Por tudo isso podemos qualificá-lo como lúcido pensador realista, que ridiculariza com fina ironia “todas as doutrinas, ideologias, práticas, usos e crenças com que se imaginam os homens ‘conhecer’ definitiva e exaustivamente a realidade”.7

2. Qohélet busca o sentido da vida

Se tivéssemos de atribuir característica comum às reflexões e divaga­ções de Qohélet, seria essa provavelmente a de “busca”; busca, mas de quê? A pergunta não é retórica, e sim a meu ver, a pergunta mais importante que nos podemos fazer ao ler Qohélet e tentar penetrar no mais íntimo e respei­tado da personalidad de Qohélet. Se descobrirmos o que consciente ou in­conscientemente buscamos em nossa atarefada vida, encontramo-nos a nós mesmos, uma vez que somos puro desejo que é preciso satisfazer. Mas então perguntamos pelo sentido ou sem-sentido de nossos afãs, chegando assim a uma das perguntas mais importantes que podemos fazer. “O sábio busca compreender a vida humana”,8 Qohélet é sábio.

Os que sublinham os aspectos negativos de Qohélet, nele não vêem um enamorado da vida; todavia, nenhum pôde afirmar que Qohélet convi­de ao suicídio, sequer nos momentos mais obscuros da existência. H. H. Schmid admite que neste ponto Qohélet não é conseqüente.9 A razão para Qohélet é óbvia, visto que o homem não é dono de sua vida nem do dia de sua morte (cf. 8,8). Qohélet está em favor da vida, apesar de seus misté­rios e contradições, pois, em fim de contas, “vale mais cachorro vivo que leão morto” (9,4).

Não são muitos os autores que fazem da vida o centro da atenção de Qohélet, apesar de todas as aparências em contrário. E isso que de verda­de preocupa Qohélet: o sentido da única vida que temos e que tanto apre­ciamos. Dá voltas e mais voltas para ver se pode decifrar o enigma de nossa existência. E afinal o que descobre?

6B. Lang, Ist der Mensch (1979), 124.7A. Bonora, Qohelet, 150.8L. Gorssen, La cohérence, 323.9Cf. Wesen, 192. G. von Rad reconhece que “Qohélet detém-se subitamente perante a bancarrota

total. Não tira a mesma consequência que o conhecido diálogo babilónico entre o senhor e o escravo (ANET, 438). Não recomenda o suicídio, sente-se agarrado perante o abismo do desespero (Qoh 5,17)” CTeologia dei Antiguo Testamento, I, 552).

Page 32: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3. A vida não tem sentido transcendente

A tentativa persistente de Qohélet de compreender a existência das coisas em geral, e da vida humana em particular, fica estrepitosamente falida. A razão mais fundamental deste malogro — causa principal do pes­simismo de Qohélet — reside na incapacidade do homem de compreender as obras de Deus, e na mais radical ainda de decifrar os desígnios de Deus. Sobre o primeiro lemos: “observei todas as obras de Deus: o homem não pode averiguar o que se faz sob o sol; por isso o homem se afadiga buscan­do, mas nada averiguará” (8,17), e se o homem não pode “abarcar as obras que Deus faz do princípio ao fim” (3,11), muito menos poderá adentrar o mistério mesmo de Deus. A mera tentativa já é temeridade, uma vez que, na expressão gráfica do autor: “Deus está no céu e tu na terra” (5,1).

A isso se acrescentam as consequências que Qohélet tira de suas per­sistentes reflexões sobre a morte. Para ele é evidente que a morte põe fim definitivo à única vida do homem que conhecemos, ou “aos dias contados de sua vida” (2,3), “os poucos dias da vida que Deus lhe deu” (5,17), “os dias de sua vida que Deus lhe concedeu sob o sol” (8,15), “os dias de tua vida fugaz que Deus te concedeu sob o sol” (9,9). Se Qohélet tivesse desco­berto de alguma forma que se projetava o destino do homem para além da morte, tê-lo-ia consignado em seu livro, como tempos depois o fez o autor da Sabedoria. Mas então Qohélet não seria o livro que conhecemos. Este não-descobrimento de Qohélet em suas investigações outorga paradoxal­mente a seus múltiplos pensamentos valor transcendental: a relativização de tudo quanto existe e se pode fazer sob o sol, uma vez que tudo quanto existe, exceto Deus, tem valor relativo. Qohélet expressa este “descobri­mento” com sua variada fórmula favorita: “tudo é vaidade”, “também isso é vaidade e caça de ventos” etc.

4. Qohélet e os parciais mas alegres sentidos da vida

Mas não desespera Qohélet por não ter encontrado sentido pleno à curta, efêmera e sempre ameaçada vida humana, nem retrocede em seu empenho, quase fadado ao impossível, de continuar buscando, se não a felicidade perfeita, o sentido que plenamente satisfizesse à ânsia de abso­luto de seu espírito insatisfeito, mas, pelo menos, parcelas e frações de satisfação, momentos de felicidade, espaços reduzidos e limitados de vida que dão sentido aos duros e em aparência inúteis esforços do homem em sua tarefa diária “sob o sol”.

Certamente a vida está excessivamente salpicada de sensabo­res, mas também têm seus encantos. Qohélet os vai descobrindo ao

Page 33: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

longo de suas reflexões, aprecia-os e estima-os em seu justo mas limi­tado valor, e convida seus leitores a que saibam aproveitá-los, deles des­frutando.

As passagens principais em que Qohélet faz essas recomendações são 2,24; 3,12s; 5,17; 8,15; 9,7-9.10 Qohélet reconhece explicitamente que de­leite, alegria e gozo fazem parte da ordem estabelecida e querida por Deus, razão pela qual não se pode acoimá-lo de epicurista ou hedonista. A teoria e, sobretudo, a prática do povo judeu, descobriu essa orientação central de Qohélet. Por isso foi escolhido Qohélet entre todos os livros canônicos, para celebrar a liturgia de uma das festas mais alegres e gozosas do calendário judaico, a festa dos Tabernáculos.11

E preciso reconhecer, todavia, que, mesmo somados todos os motivos de gozo que nos descobre Qohélet, não se elimina o senso da precariedade da vida; suas reflexões no-lo inculcam e voltam a tingir de “melancolia” os sentimentos mais profundos de Qohélet. Não é isso crítica desfavorável a Qohélet, e sim muito pelo contrário; visto que a vida humana, levada a sério, é realidade agridoce até para aqueles que temos conhecido a mensa­gem de Jesus. O importante não é supervalorizar a realidade, e sim aceitá- la como é, com suas luzes e suas sombras; pois, apesar de todos os pesares: “E doce realmente a luz e agradável aos olhos ver o sol” (11,7), embora nem sempre seja de dia nem brilhe o sol.12

V. ATUALIDADE DE QOHÉLET

Tem sentido propormos a pergunta sobre a atualidade de Qohélet? Teoricamente, parece contradição afirmar que um livro escrito há mais de dois mil anos seja atual. Todavia, não o é. Sem dúvida, para nós Qohélet é livro muito antigo; porém a sensibilidade do autor aproxima-se muito da do homem de nosso tempo. Muitas das perguntas que se fez são as mes­mas do homem contemporâneo; as respostas que dá, quando as dá, seriam também válidas para nós? Essa questão pode ser mais discutível; com efeito, os autores não se põem de acordo.

10Essas passagens do Eclesiastes e algumas mais são objeto de um estudo de R. N. Whybray, que vê na alegria um foco central de atenção por parte de Qohélet (cf. Qoheleth [1982], 88).

llR. Gordis no-lo recorda, manifestando assim sua última interpretação, mais otimista que as anteriores: “Que o tema central do livro era a simhah, o desfrutamento da vida, foi claramen­te reconhecido pelas autoridades religiosas judaicas, que justificaram assim o costume da leitu­ra de Qohélet na sinagoga na festa dos Tabernáculos, a Estação do regozijo” (Koheleth — the man, 131).

12Cf. E. Glasser, Le procès, 205.

Page 34: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Alguns reduzem a função de Qohélet a “mera advertência”;1 o que parece excessivamente pouco. Mais acertadamente M. Dubarle afirma que “mais que mensagem, o Eclesiastes é testemunho. E a expressão de uma experiência e não a transmissão de comunicação divina à maneira dos profetas”.2 Veremos a seguir que realmente Qohélet é testemunho, teste­munho de valor inapreciável.

1. Qohélet analisa a realidade criticamente

Não pretendemos, afirmar que Qohélet enfrenta a realidade da vida despojado de todo “a priori”. Seria simplesmente impossível. Ninguém pode deixar sem mais a bagagem cultural que o constitui, a formação espiritual que recebeu. Mas a pessoa dotada de espírito crítico pode observar a rea­lidade, tentando refletir sobre ela, sem deixar-se levar pela corrente do modo comum de pensar, sujeitando os pareceres ao crivo da dúvida e, se oportuno, ao da contradição. Nisso Qohélet participa bastante do jogo au­têntico do espírito moderno, que é crítico por excelência.3

Qohélet, portanto, é observador realista, não frívolo otimista que tudo resolve acudindo à fé em Deus, como se essa fosse prova convincente.4 Assim podem explicar-se sua atitude crítica para com a tradição sapiencial em geral, o tom irônico e astuto de muitas de suas passagens, da mesma maneira que sua sã atitude para com o positivo que percebemos na vida, embora Qohélet esteja plenamente convencido de que tudo acha-se mar­cado pelo selo do efêmero.

2. Afinidade de Qohélet com o homem contemporâneo

Em parte já a constatamos na secção anterior, mas queremos aduzir uma série de testemunhos que não deixam lugar à dúvida razoável, acom­panhados das razões que lhe emprestam credibilidade.

T. N. Jasper pretende reivindicar de certa forma o papel de Qohélet, porém sua visão é bastante reducionista; ele escreve, por exemplo: “Nossos problemas são novos e não encontraremos resposta em livro de quase dois mil anos atrás. Podemos, em todo caso, determinar, que o Eclesiastes não é exemplo para nós, mas sim mera advertência” (Eclesiastes, 273).

2Los sabios, 149 = Qohélet, 122. Que Qohélet não seja mensagem, afirma-o também F. N. Jasper: Qoh “dificilmente é ‘mensagem’ ” (Eclesiastes, 260); não coincide, porém, com a afirmação de que é testemunho.

3"0 que seria a sabedoria bíblica sem Qohélet!”, exclama B. Lang (Ist der Mensch [1979], 122); e continua: “Qohélet é o antídoto de todas as teorias que evadem da vida. Ele é o antípoda de uma teologia sem propriedades, dogmaticamente correta, sem sujeito; é o advogado da empiria, do “eu o vi”; é crítico impiedoso e grande realista, alguém que não dissimula o reverso das coisas, mas chama- as por seu nome. Ele descreve a infelicidade humana, o desamparo, o ser-para-a-morte e o ser lançado no mundo, antecipando-se a uma filosofia e literatura posteriores tão acertadamente, que nos reco­nhecemos a nós e nosso tempo em Qohélet”.

4Cf. B. Lang, Ist der Mensch (1979), 124.

Page 35: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2.1. TestemunhosO descobrimento da modernidade de Qohélet é de nossa época, razão

por que também o são os testemunhos que aduzimos. A atualidade de Qohélet causa em muitos leitores de nossos dias simpatia e admiração, que se convertem em atração irresistível ou fascinação, como confessa F. Crüsemann: “Fascina-me a atualidade de Qohélet”.5 Sentimo-lo, não obstante sua antiguidade, muito próximo, suas palavras parecem recém- pronunciadas. Alguns dos temas de que trata “contêm assombrosa atuali­dade atemporal”.6 No espírito insaciável de busca e confronto de Qohélet “descobrimos surpreendente semelhança com o homem hodierno que ten­de a sujeitar tudo a novas investigações”.7

Por seu tipo todo particular — sobretudo seu espírito contraditório que tantos de seus detractores puseram de manifesto no transcorrer do tempo — é Qohélet precursor do espírito moderno, e até mesmo do ultramoderno.8

Para Qohélet, a experiência, não em abstrato, e sim em concreto, pa­rece ser sua norma suprema. Ao ser esta contraditória, poderá ele próprio contradizer-se. Estamos longe das apologias tradicionais, que procuravam apresentar um Qohélet logicamente impecável, livre de toda e qualquer contradição.9Por isso mesmo podemos repetir com E. Glasser que “o livro de Qohélet é sempre atual”, até para os que não compartilham da mesma fé: “Nosso sábio suscita interesse de crentes e não-crentes”.10

5D£e unveränderbare, 80. Note-se, porém, que o fascínio, que causa Qoh, não se limita à época moderna e contemporânea; assim podemos ler em J. A. Loader: “Durante séculos o livro de Qohélet exerceu peculiar fascinação entre seus leitores, e não menos nos críticos modernos” (Polar, 1); e em R. Gordis: “Os homens pagaram de bom grado tributo à fascinação de Qohélet ao lutar com o enigma de sua personalidade” (Koheleth — the man, 3). Talvez porque sua situação fosse semelhante à nossa, como opina J. Chopineau: “A atualidade do livro de Qohélet não constitui paradoxo, e sim, pelo con­trário, é reconhecimento da modernidade de sua situação” (L’image, 603).

6A. Schmitt, Zwischen, 129.T3. Pennacchini, Qohélet, 493.8"Qohélet antecipa um pensamento ultramoderno, porque, definitivamente, em vez de considerar

a desordem, o sem-sentido, a incoerência e a contradição como acidentes, como mal que se deve eliminar e como evento secundário ou casual, apresenta tudo isso como traço inerente à vida humana e à vida social. Integra a desordem e a contradição no ser ‘normal’ da humanidade” (J. Ellul, La razón, 217).

9J. A. Loader, explica formalmente as supostas contradições de Qoh pelo que chama de estruturas polares: “As ‘contradições’, que aos rabinos causaram tantos quebra-cabeças, e que se podem eliminar tão habilmente pelos críticos, não passam de propositadas estruturas polares” (Polar, 133). Explica, no começo de seu estudo, o que entende por estruturas polares: “Por ‘estruturas polares’ quero signifi­car modelos de tensão criados pela contraposição de dois elementos, um à frente do outro. E tão importante em todo o livro essa tendência, que se pode chamar sua característica marcante. Tentarei provar, nas páginas que seguem, a tese de que vai capacitar a análise deste fenômeno a dar adequado esclarecimento literário ao livro” (Polar, 1).

10Le procès, 207. E, longe de perder interesse, cresce este com o passar do tempo: “Para dizer a verdade, pode-se afirmar que a atualidade do livro do Eclesiastes vai aumentando” (A. Lauha, Kohelet, 23). Com palavras de S. Bretón: o Eclesiastes “poderia converter-se em livro de moda. Bem que o merece” (Eclesiastés, 375)

Page 36: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Provavelmente poder-se-iam repetir essas afirmações em todas as épocas de transição, uma vez que se põem em tela de juízo todas as escalas de valores e reina a instabilidade de todas as ordens da vida. Algo assim deve ter sido a época em que viveu Qohélet e que se parece tanto com a nossa.11 Talvez seja essa a razão que levou alguns autores a afirmar, com evidente exagero, que Qohélet é “o mais moderno livro da Bíblia”.122.2. Porque Qohélet é tão atual

Limitamo-nos na secção anterior quase exclusivamente a aduzir sen­tenças em favor da atualidade de Qohélet, sem referir-nos aos argumen­tos ou às razões que fundamentam esses testemunhos. Este é o momento de enumerar os argumentos, as causas que se descobrem em Qohélet e que praticamente continuam vigentes na atualidade.

Temos, antes de tudo, que dar graças a Deus por encontrar entre os livros sagrados um que o parece tão pouco, pois desafia sem cessar a teolo­gia, não oculta em nenhum momento “o lado obscuro e os abismos da vida”, mas confronta-se com “perguntas atormentadoras”, com o negativo e con­traditório da existência humana: “Por que se cala Deus tanto tempo pe­rante um mundo e uma história tais? Por que a uns protege da desgraça e miséria, e a outros deixa morrer de fome e sucumbir?”.13 E evidente a afi­nidade que existe entre Qohélet e o homem contemporâneo, pois acham- se ambos atormentados pelos mesmos problemas e preocupações.14

Apresenta-se Qohélet como mestre do inconformismo. O argumento de autoridade: “Isso é o que se disse até agora”, para ele não tem grande valor (cf. Qoh 8,12-14). Tudo critica e faz passar pelo crivo da prova. É, no fundo, a dúvida que tudo penetra e que é tão familiar ao homem contem­porâneo, “herança, talvez, daquele estranho ‘Pregador’ de 23 séculos atrás”.15

“ Expressamente o constata M. Schubert ao afirmar: “É fascinante a surpreendente atualidade de Qohélet nessa época de profundas inseguranças, na qual perdem vigência valores tradicionais en­quanto novos ainda não se encontraram. Tem nesse ponto Qohélet também para a atualidade seu irrenunciável lugar como analista da situação e ‘guardião de uma verdade nos umbrais da autêntica realidade da vida’ (Zimmerli)” (Schôpfungsthelogie, 5).

l2R. Gordis, Koheleth — the man, X.13A. Schmitt, Zwischen, 131.14"Quando o homem de nossos dias reflete sobre os sucessos do mundo e sobre o destino histórico

e individual, facilmente chega, como Qohélet, às mesmas idéias angustiantes: a questão acerca do sentido dos sucessos, bem como a sensação da injusta ordem universal, também a el; oprimem. Vive ele, como Qohélet, sob a influência de diversas ideologias. No livro do Eclesiastes ouve falar um com­panheiro de infortúnio, premido pelas mesmas crises ideológicas” (A. Lauha, Kohelet, 23). J. Chopineau diz de Qoh que “estamos diante de um livro, cuja atualidade se sente” (L’image, 595), e em nota aduz as palavras de H. W. Wolff: “O homem de hoje, que não compreende nem o mundo nem a Deus, acha no Eclesiastes seu parente próximo: no absurdo abre os olhos para as alegrias que ainda lhe são dadas” (Ancien Testament. Problèmes d’ introduction, 1970, [trad. freine. Genebra, 1973], 180).

15S. Breton, Eclesiastés, 375.

Page 37: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A análise da realidade humana conduz Qohélet a beco sem saída, pois descobre, por um lado, a complexidade da existência e suas contradições, e, por outro, a incapacidade humana de compreender essa incapacidade e seu sentido. O reconhecimento dessa realidade, e as dolorosas vivências que comporta, cada vez mais aproximam Qohélet ao homem de nossos dias.16

Como se sabe, Qohélet não espera nenhuma espécie de sobrevivência após a morte, fora da eventual recordação efêmera dos que ainda vivem. Por isso, ancora-se a orientação de sua vida no aquém ou na visão pura­mente terrena da existência humana. Este é outro motivo de semelhança entre Qohélet e o homem de hoje, ainda que este seja eventualmente cren­te.17 Para estes e no momento atual, tem valor extraordinário a atitude de Qohélet para com a vida e para com Deus.182.3. Qohélet, mestre e guia

A afirmação de que continua Qohélet sendo mestre sábio e guia em nossos tempos não é novidade, depois do que dissemos neste capítulo. Se Qohélet continua tendo atualidade, é que seu magistério continua vivo, pelo menos para muitos.19

Se é verdade, como dizíamos, que Qohélet pode ajudar aos que se profes­sam cristãos, quanto mais o poderá aos que, sem professar nenhuma fé no além, crêem, todavia, em Deus, ou simplesmente esperam o que possa lhes oferecer a vida, mantendo-se fiéis a si mesmos e à voz de sua consciência.

VI. COMPOSIÇÃO DE QOHÉLET

Tratamos nesta secção do próprio fato da elaboração ou formação de Qohélet; prevalece o ponto de vista da ação. Portanto, tentamos dilucidar, em concreto, o problema de se foi um só o autor ou criador da obra literá­

16H. Lusseau frisa a proximidade e a distância de Qohélet para com as correntes existencialistas agnósticas e atéias de nosso século (cf. El Ecclesiastés, 689-692). Cf. H. P. Müller, Der unheimliche, 455.

17Pois uma coisa é a mera afirmação teórica das verdades de fé e outra muito diferente são as vivências que contradizem ao meramente teórico (cf. H. Lohfink, Valores, 272s).

18Afirma N. Lohfink em seu comentário a Qohélet: “Para muitos modernos agnósticos constitui Koh a última ponte para a Bíblia; para muitos cristãos de hoje, constitui a infame e querida porta traseira, através da qual podem deixar entrar em sua consciência sentimentos cético-melancólicos que não pode­riam entrar pela porta principal, em cujo rótulo lemos: prêmio à virtude e fé no além” (Kohelet, 5).

19Nisso tem razão A. Lauha ao escrever: “O descobrimento surpreendente de que também na Escritura Sagrada se encontra um investigador e cético radical pode fazer com que ele [o homem moderno] receba a palavra bíblica melhor que na pregação convencional. Desta maneira, a palavra de Qohélet pode ter mais efeito em nosso tempo do que uma doutrina tradicional, sem contradições, com os problemas já resolvidos” (Kohelet, 23). Um compêndio do que poderia ser a mensagem de Qohélet ao homem de hoje, pode-se ver em Q. J. Fuerst (Ecclesiastes, 155-158).

Page 38: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ria chamada Qohélet/Eclesiástes, ou foram vários os autores e, neste caso, de que maneira colaboraram.

1. A voz da tradição

À pergunta se foi um só o autor de Eclesiastes, ou, se foram vários os autores, a tradição judaica e cristã responde unanimemente que foi so­mente um. O problema é, em parte, o mesmo que o da autoria salomônica. Digo em parte, porque mesmo os que negavam a autoria de Salomão, não necessariamente negavam a unidade de autor: se não é Salomão, é outro, mas não outros. D. C. Siegfried foi o primeiro que em 1898 aplicou aos estudos de Qohélet os métodos, então imperantes, da crítica das fontes, e expressamente defendeu a pluralidade de autores para Qohélet, nove ao todo. Até D. C. Siegfried mantém-se, portanto, pacificamente a unicidade de autor para Qohélet.

Na Idade Moderna esforçam-se os autores para responder às dificul­dades internas do livro sem necessidade de recorrer à pluralidade de au­tores de Qohélet, seja mediante teorias antigas do monólogo ou diálogo íntimo consigo mesmo1, sej a mediante outros recursos literários.2 A este pro­pósito, a mais pitoresca de todas as soluções foi a de G. Bickell: um acidente casual desordenou as folhas, já preparadas para a encadernação. Com mui­ta paciência e agudeza de engenho, G. Bickell tenta reconstruir a suposta ordem original.3 Vão esforço de imaginação, pois o texto original não pode ter sido escrito em códice, que ainda não se conhecia, mas em rolos.4

2. Ruptura com a tradição

Os estudos verdadeiramente críticos acerca das fontes literárias dos livros sagrados (do Pentateuco em concreto) desenvolvem-se e ganham máximo esplendor na segunda metade do século XIX.5 Pouco a pouco es-

'São Gregório Magno dizia: “Aquele que no final do livro diz: Omnes pariter audiamos, é testemu­nho de que, ao representar em si o papel de muitos, não falou como um só” (Dialog. líber, IV, cap. IV: PL 77,324); cf. também Alcuíno, Commentaria super Eclesiasten, cap. I: PL 100, 670; J. G. Herder: “Duas almas num só peito”, (Briefe, das Studium, der Theologie betreffend [Tübingen, 1808], 135ss), citado por R. Kroeber (Der Prediger, 31).

2Por exemplo, Qoh é composto de fragmentos ou de pensamentos soltos ou a modo de diário etc., mas sempre de um só autor; A. Barucq traz em Qohéleth, 611-612, um resumo de sentenças bem matizadas a este respeito.

3Cf. G. Bickell, Der Prediger, reeditado com algumas modificações em 1886: Kohelefs Untersuchung über den Wert des Daseins.

‘Todos os autores recordam a teoria de G. Bickell como raridade; D. Michel sentencia: “Essa ten­tativa de Bickell compreensivelmente não teve seguidores e pertence ao museu de curiosidades da ciência exegética” (Qohélet, 17).

5Cf. o magnífico resumo de O. Eissfeldt em sua Einleitungin dasAlte Testament, Tübingen, 1964, 3- ed., § 23. Mencionemos especilamente H. Hupfeld (1853), A. Dillmann (1875ss), F. Delitzsch

Page 39: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tende-se a aplicação destes métodos críticos aos demais corpos do Antigo Testamento, até chegar aos Sapienciais.6

Como já indicamos na secção anterior, foi C. C. Siegfried o primeiro autor que aplicou tais métodos ao livro de Qohélet, e desde então come­çou-se a falar expressamente de pluralidade de autores em Qohélet.7

Por isso é mais que justificado dividir a história da exegese do livro de Eclesiastes em dois períodos: antes de D. C. Siegfried (1898) e depois dele.2.1. Desde D. C. Siegfried a D. Buzy

Abarcamos um período de pouco mais que meio século, ou seja, desde fins do século XIX até a metade do presente. Distinguem-se esses anos fundamentalmente pela luta aberta entre os defensores da diversidade de fontes de Qohélet, continuadores de D. C. Siegfried, e os que se aferram a uma tradição de séculos.

Nesse espaço de tempo começa-se a distinguir-se entre crítico- racionalista, no pior dos sentidos dentro do campo eclesial católico [ou seja, heterodoxo, não conforme às normas doutrinais eclesiásticas] e críti- co-literário ou estudioso da Sagrada Escritura [que leva em conta os con­textos históricos, culturais, sociais, religiosos, etc., que influem positiva­mente nos autores e redatores dos livros sagrados]. Fruto dessa importante distinção vai ser que, doravante, nenhum estudo sobre literaturas anti­gas, inclusive a Sagrada Escritura ou Antigo Testamento, considerar-se-á válido, ou sério, se não for crítico.

As causas, pelas quais D. C. Siefried estabelece a pluralidade de au­tores em Qohélet, são, a seu juízo, as contradições internas no livro que possuímos atualmente.8

B. Bickell buscava uma lógica interna em Qohélet e por isso inventou sua teoria sobre o golpe de vento que desordena as folhas, já preparadas para a encadernação. D. C. Siegfried, convencido de que “constitui esforço inútil querer demonstrar plano ou disposição orgânica no livro de Q.”,9 lança-se à nova aventura de encontrar os diferentes responsáveis ou auto­res de todas e cada uma das sentenças de Qohélet. Ele pensa que o texto,

(1880.1883) e J. Wellhausen (1876.1885). Cf. também H. Hõpfl - S. Bovo, Introductio specilais inV. T., Nápoles, 1963, 6S ed., 34-40.

6Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 70.7A. L. Williams o diz sem rebuços (cf. Ecclesiastes, XIX). Também se afirma em A. Comely - A.

Merk, Introductionis [1934], 496). Ainda que Siegfried tenha tido precursores, é considerado o porta- voz da teoria da pluralidade de autores (cf. E. Podechard, La composition, 170s; D. Buzy, UEcclésiaste, 193; G. A. Barton, A criticai, 28; A. Bea, Líber, VI; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 40).

8"0 livro de Q. manifesta tal soma de contradições radicais que é totalmente impossível considerá- lo em bloco unitário” (D. C. Siegfried, Prediger, 3); nas pp. 3-4 enumera Siegfried muitas dessas con­tradições; cf. V. Zapletal, Dos Buch, 17-21.

9D. C. Siegfried, Prediger, 4.

Page 40: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tal como o conserva o TM, constitui um acúmulo de incoerências e contra­dições. Se conseguirmos determinar coleções ou séries de sentenças homo­gêneas, e atribuirmos cada série ou coleção a autor ou redator diferente, eliminamos as contradições internas que agora descobrimos em Qohélet. Conseqüente com seu princípio, D. C. Siegfried pulveriza materialmente o texto. Estabelece cinco autores, dois redatores e dois epiloguistas, ou seja, nove mãos diferentes para os 12 capítulos de Qohélet.10

Como se verá na história posterior, influi excessivamente o elemento subjetivo nesta verdadeira vivissecção da pequena obra de Qohélet. O êxi­to de Siegfried foi muito relativo11 e sua sentença foi-se corrigindo e purifi­cando com o passar do tempo.12

A. H. McNeile simplifica a teoria de Siegfried: reduz a quatro os nove autores exigidos por Siegfried. Estes são: 1. Qohélet, o autor principal do livro. 2.0 hasid ou Piedoso; 3.0 hakam ou Sábio, contemporâneo de Qohélet como o hasid-, 4. O editor l9 acrescentou 1,1-2 e 12,8-10; 5. Um 49 glosador é autor de 2,26 (final) e de 7,6b.13

Cronologicamente, G. A. Barton é o primeiro autor importante que segue McNeile, corrigindo-o em alguns pontos, como ele próprio admi­te.14 Segundo ele, são três as mãos ou os autores que intervêm na confec­ção do livro: Qohélet ou autor principal, um editor-sábio e um autor pie­doso.15

A Barton seguiu logo E. Podechard com sua mais elaborada teoria dos quatro autores: Qohélet ou autor principal do livro, a cuja obra realmente una se somaram contribuições do epiloguista, do piedoso e do sábio.16

10A cada um dá uma sigla e caracteriza-o: Q1 é o Qohélet primigênio, judeu pessimista, sua contri­buição ao atual Qoh é a coluna vertebral que sustentará a dos demais autores; Q2 é um glosador saduceu epicurista; Q3 um glosador sábio; Q4 um glosador piedoso; Q5 um grupo de sábios glosadores; Rl é o primeiro redator de 1,2-12,7, o qual acrescentou 1,1 e 12,8; Epiloguista primeiro: 12,9-10; Epiloguista segundo: 12,11-12 e, por fim, R2 ou redator final, um fariseu: 12,13-14 (cf. D. C. Siegfried, Prediger, 6-12).

UA hipótese é aceita por um número cada vez mais crescente de exegetas enquanto abre “uma nova via, a da pluralidade de autores (D. Buzy, LSEcclésiaste, 193); mas acaba aí sua influência efêmera.

12Como afirma D. Buzy: “As análises de Siegfried, já muito avançadas, foram retomadas e melho­radas por seus sucessores Mc Neile, Barton, Podechard e, pode-se dizer, levadas assim a um ponto de confirmação e segurança que permite doravante apreciação serena” (UEcclésiaste, 193).

13A teoria de McNeile, resumida, pode ver-se em A. L. Williams, Ecclesiastes, XIX-XX e em D. Michel, Qohelet, 20.

14Cf. A criticai, 30.15Atribui ao editor 1,1.2; 7,27; 12,8-13a; e identifica esse Editor com o autor-sábio, de que são 4,5;

5,3.7a; 7,la.3.5.6-9.11.12.19; 9,17.18; 10,1-3.8-14a,15.18.19. Do autor piedoso seriam 2,26; 3,17; 7,18b.26b.29; 8,2b.3a.5.6a.ll-13; 11,9b; 12,la.l3b-14 (cf. G. A. Barton, A criticai, 44.46).

Mais adiante K. Galling também falará de três autores, atribuindo a cada um partes diferentes:ao Epiloguista primeiro Qoh 1,1-3; 7,27 e 12,8-11; ao Epiloguista segundo e a Qohélet o resto (cf. Der Prediger, 76.84).

I8E. Podechard expõe claramente sua teoria em seu artigo “La composition”; cf. também H. Duesberg— I. Fransen, Les scribes, 551-552; D. Buzy, UEcclésiste, 193-194; D. Michel, Qohelet, 20.

Page 41: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A. L. Williams juntou-se a McNeile, adatando-o.17 Williams não distin­gue tanto Qohélet do Sábio e do Piedoso. A maior parte de Qohélet pertence ao primeiro e as variantes (menos que as de McNeile) aos outros dois.

D. Buzy é o último grande autor que defendeu em sua integridade a teoria dos quatro autores. Morre nele, praticamente, a corrente que parte de D. C. Siegfried.18

Mas essa corrente de pluralidade de autores, que se pode comparar a uma linha parabólica: em elevação e vigorosa no começo, fraca e descen­dente no final, teve que se confrontar com a corrente que vinha de longe e representava a tradição; dela vamos tratar em seguida.2.2. Resistência da tradição

Como se pode facilmente supor, a opinião multissecular, defensora da unidade rigorosa de Qohélet, não foi abandonada diante da avalanche que significou a revolução da crítica literária. Desde que se começaram a lan­çar ataques contra a unidade integral de Qohélet, levantaram-se vozes autorizadas para pôr em surdina as novas idéias ou para rejeitá-las intei­ramente. Os autores costumam repetir a sentença de A. Kuenen [1885ss], que reflete clima de perplexidade: “Pode ser difícil demonstrar a unidade de Qohélet; mas é ainda mais difícil negá-la”.19

Por aquelas datas, defende S. R. Driver a absoluta integridade de Qohélet, inclusive o epílogo.20 Entrados já no século XX, F. Vigouroux (1906) e V. Zapletal (1911) sustentam “a integridade do Eclesiastes”;21 em 1927, L. Cl. Filion repete praticamente a opinião de F. Vigouroux.22 Pouco de­pois, quase todos os católicos, mas também a maior parte dos protestan­tes... retêm que é um só o autor do Eclesiastes e renunciam ao azar enga­noso da dissecção”.23 Até em 1949 encontramos testemunhos dessa corren­te em A. Bentzen.24

17A. L. Williams em seu comentário escreve: a teoria de McNeile, “modificada, não deixa de ser razoá­vel e acha-se constantemente presente neste comentário” (Ecclesiastes, XX; ver também XXII e XXV).

18Escreve D. Buzy: “Tudo bem ponderado, e depois de estudo atento da obra, estimamos que a tese de Siegfried-Podechard mantém-se firme em suas linhas gerais. Pode-se discutir sobre a atribuição de tal versículo a tal ou tal autor... Mas as distinições capitais ficam: Qohélet, epiloguista, hasid e hakam” (UEcclésiaste, 194). E um pouco mais adiante repete sua firme convicção: “Em resumo, depois de mandura reflexão, mantemos a distinção das quatro personagens: Qohélet, epiloguista, hasid e hakam” (p. 196); cf. também seu artigo “Les auteurs”.

19De sua obra Historisch-kritische Einleitung in die Bücher des A. T., Leipzig, 1885-1894 (citado por R. Gordis, Koheleth — the man, 72-73).

20Cf. An introduction, 447-448. O mesmo podemos dizer de G. Wildeboer (cf. Der Prediger) e de A. Condamin (cf. Etudes, 505).

21Cf. F. Vigouroux, Manuel, no. 848, p. 512 e V. Zapletal, Das Buch, 14.22Cf. Le livre, 551-552.23Institutiones, 79. Em nota cita Motais, Salomon et VEcclésiaste, II, 156-168; *E. Sellin, Einleitung,

4a ed., 150; O. Eissfeldt, Einleitung, 558.24Cf. Introduction to the Old Testament, II, (Copenhaguem), 1949,191.

Page 42: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3. Nova situação

Os frutos das controvérsias sobre a integridade de Qohélet começa­ram a se colher em nosso tempo. Agora constamos que não se deram em vão. A isso contribuiu de maneira decisiva o clima de serenidade em que se desenvolvem os estudos exegéticos, diante da crispação de tempos feliz­mente superados.

3.1. Insucesso das posições extremadasPode-se observar que, a partir da década de 20, foi-se abandonando

paulatinamente a teoria da diversidade de fontes e impôs-se a tendência que advoga a unidade fundamental de Qohélet. Limadas as asperezas das correntes extremadas, chegamos a situação de síntese, de harmonioso equi­líbrio em certo sentido. O fracasso das puras teorias críticas é um fato e assim o constatam prestigiosos autores.25 Por outro lado, os defensores da unidade a todo custo de Qohélet neste último século descobriam a particu­laridade do prólogo e do epílogo de Qohélet.

3.2. Aquisições irreversíveisa. As três partes de que se compõe Qohélet

Estas são o título (1,1), o corpo (1,2-12,8) e o epílogo (12,9-14). Geral­mente se aceita que tanto o título como o epílogo não foram escritos pelo mesmo autor do corpo fundamental de Qohélet. Ainda se continua discu­tindo sobre as mãos que intervieram no título e no epílogo, e também so­bre a autoria de algumas passagens mais determinadas de Qohélet.26b. Contradições em Qohélet?

Uma norma, tacitamente admitida pelos exegetas modernos, é a de não multiplicar os autores de Qohélet sem necessidade.27 Isso foi possível porque se encontraram novas formas de explicar as supostas contradições

25Cf. D. Michel, Qohelet, 20-21. J. A. Loader raciocina de certa maneira sobre essa nova atitude crítica para com os críticos de outrora: “Esforços para salvar habilmente as tensões no livro, aceitando ‘glosadores’ e ‘redatores’ também se deveráo abandonar. Porque é parte integrante da polêmica de Qohélet impugnar expressões ‘ortodoxas’, construindo-as dentro de suas unidades literárias” (Polar, 132-133).

26J. Steinmann admite que a “autenticidade do livro não exclui absolutamente a intervenção de um editor; pelo contrário, supõe-na” (Ainsi, 19). Cautelosamente escreve W. Zimmerli: “Que 1,3-12,7 provenha da mão de Qohélet não se pode afirmar com certeza, mas também não se pode excluir forçosamente. Ao invés, o marco [1,2 e 12,8] possivelmente foi posto pelo editor que também acrescen­tou o título (1,1) e o epílogo (12,9-11) [em nota: “12,12-14 provém da mão de um segundo epiloguista”], e Qohélet foi proposto como um mestre público” (Das Buch [1974], 230. Cf. Idem, Das Buch (1980), 127.140.144; também em 7,27 faz intervir um narrador (p. 145, o primeiro editor?) e em 11,9b um corretor (p. 140; o segundo epiloguista).

27K. Kroeber expressa-se assim: “Restringe-se ao mínimo a necessidade de uma hipótese de interpolações estranhas e mudanças” (Der Prediger, 38).

Page 43: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em Qohélet, pedra de escândalo e causa de divisão. Qohélet vale-se funda­mentalmente do método das citações implícitas, que umas vezes aceita e outras rejeita. A dificuldade reside em poder determinar semelhantes ci­tações nos diversos contextos.28

c. Quantos intervieram na composição de Qohélet?Em geral se observa uma grande firmeza na defesa da unidade de

1,2-12,8.29O número de epiloguistas oscila entre um30 e três.31 E mais geral a tese que defende dois epiloguistas.32

Quanto a Qoh 1,1(2), as opiniões geralmente são acordes com as dos epiloguistas. Qoh 1,1 atribui-se ao epiloguista primeiro; Qoh 1,2 ao epiloguista segundo no todo ou em parte, ou ao redator responsável de 12,8.

Também Qoh 7,27 [Vg 7,28] costuma-se atribuir a outra mão, geral­mente a um epiloguista, e algumas outras passagens.33 A. Lauha não acha inconveniente em admitir alguma interpolação no texto de Qohélet, quan­do não há outra explicação possível.34

Fica claro, depois disso, que a tendência da exegese atual, a que ade­rimos sem reticência, é a de dar mais importância ao autor principal — Qohélet — e a de não querer simplificar os problemas que nos pode propor sua forma de pensar, nem sempre conforme ao geralmente admitido, ou abertamente heterodoxa. Suas palavras estão aí para que as interprete­mos, não para que as anulemos.

28R. Gordis com seus estudos sobre o tema fez uma grande contribuição (cf. Quotations [1939/40], Quotations [1949] e Koheleth — the man, 95-108). Colaboraram também nesta árdua tarefa R. F. Johnson, N. Lohfink, R. N. Whybray e D. Michel (cf. D. Michel, Qohelet, 27-33).

29Desde 1951 proclamava R. Gordis que “no estudo de Qohélet destas últimas décadas os especia­listas introduziram um reconhecimento crescente desta unidade básica [1,1(2)-12,(7)8]” (Koheleth — the man, 73). Autores plenamente convencidos desta unidade são R. Kroeber (cf. Der Prediger, 34.40);G. S. Ogden (Qoheleth [1987], 11).

30Propõem um só epiloguista, entre outros, A.-M. Dubarle (cf. Les sages, 96); da mesma opinião sãoH. Duesberg e I. Fransen em Les scribes, 557 e B. Celada em Pensamiento, 178.

31Abertamente defendem três epiloguistas H. W. Hertzberg: 12,9-11 + 12,12 + 12-14 (cf. Der Prediger,41s) e W. J. Fuerst: 12,9-10 + 12,11-12 + 12,13-14 (cf. Ecclesiastes, 98).

32Cf. K. Galling, Der Prediger, 84.76; R. Braun, Kohelet, 166; 142-145; A. Barucq, Ecclésiaste, 192­197; A. Lauha, Kohelet, 217-223. Duvidam entre dois ou três epiloguistas O. Eissfeldt (cf. Einleitung, § 68, no. 7) e D. Lyz (cf. UEcclésiaste, 69).

330. Eissfeltd admite a unidade fundamental de Qoh (rechaça Siegfried e Podechard), mas tam­bém possíveis retoques, como 2,26; 3,17; 7,18b.26b; 8,5.12b; 13aa; 11,9b; 12,7b e 12,9-11.12-14 (cf. Einleitung [1934] § 62; [ed. posterior, § 68]. K. Galling é quase da mesma opinião (cf. Der Prediger, 76); ver também A. Barucq, Ecclésiaste, 29; trad. cast. p. 31. R. Gordis opina, porém, que “também pode-se atribuir ao autor [Qohélet] a frase ‘disse Qohélet’ de 1,2; 7,27; 12,8" (Qohélet — the man, 73).

^De fato propõe como glosas atribuídas a R2 2,26a.ba; 3,17a; 5,18; 7,26b; 8,12b.l3; 11,9b (cf. Kohelet, 6-7).

Page 44: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

VII. ESTRUTURA DE QOHÉLET

Se no capítulo anterior sobre a composição de Qohélet centrávamos nossa atenção na execução ou produção do livro, ou seja, no autor ou nos autores de Qohélet, neste nos perguntamos sobre a armação da obra já feita, na disposição, organização, estruturação de seus componentes ou partes integrantes. Existe ou não fio condutor, razão ou princípio lógico interno, que dê consistência ao edifício literário que é a obra em si, o livro chamado Eclesiastes ou Qohélet?

1. Estado da questão

Antigamente se falava só de divisão ou partes de Qohélet, mais ou menos relacionadas entre si; hoje se fala de estrutura interna de Qohélet em seu conjunto ou em algumas de suas partes para negá-la ou afirmá-la. Investi­ga-se diretamente sobre a relação existente entre as partes que compõem o livro. Se se descobre que existe entre elas união ou relação íntima, admite- se a existência de estrutura ou de estruturas-, do contrário, se nega.

O problema discute-se acaloradamente desde o século passado. Fr. Delitzsch sentenciou sobre ele e formou escola, como veremos; mas não pôs fim às divergências. Não só não existe acordo entre os autores quando opinam sobre a estrutura em Qohélet, mas também não há na hora de sistematizar as opiniões que se deram.1

Expomos a seguir a opinião dos autores mais notáveis, divididos em três grupos: os que negam qualquer gênero de estrutura em Qohélet, os que afirmam um plano geral ou estrutura orgânica, e os que se mantêm em posição intermédia.

2. Qohélet não tem estrutura ou plano geral

O cabeça de fila dessa sentença é F. Delitzsch, que em seu Comentá­rio de 1875 escrevia: “Todas as tentativas de demonstrar no conjunto [de Qohélet] não só unidade de espírito, mas também um progresso genético, um plano que o abarque por inteiro e uma disposição orgânica, fracassa­ram até o momento e fracassarão no futuro”.2 Durante muitos anos foi

irrrês autores trataram do tema de forma mais extensa: A. G. Wright em The riddle (1968), 314­320; A. Barucq em Qohéleth (1979), 654-661 e ultimamente D. Michel em Qohélet (1988) 9-45. A. Barucq e D. Michel geralmente coincidem em seus juízos; A. G. Wright segue critérios meramente formais e discrepa deles ao catalogar alguns autores.

2Koheleth, 195 = Commentary, 188. A essas palavras chama E. Glasser “a maldição pronunciada por F. Delitzsch” (Leprocès, 10). Adere a elas O. Loretz (Zur Darbietung, 49-50, que por sua vez cita K.

Page 45: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

esta a sentença mais comum entre os autores, ainda que se tenham acres­centado muitos matizes novos à formulação de F. Delitzsch.3

Todavia, até os autores que negam uma estrutura interna em Qohélet, um desenvolvimento lógico no livro, tentam apresentar o conteúdo de cer­ta forma hierarquizado e organizado.4

3. Qohélet tem estrutura ou plano geral

Ao falar de estrutura ou plano geral, os autores não se referem a mera sinopse de Qohélet ou a quadro do conteúdo que, como vimos, também o oferecem os que não admitem estrutura interna em Qohélet. Os autores, que recencionamos nesta secção, defendem que existe desenvolvimento no pensamento de Qohélet, desenvolvimento que avança de princípio a fim mais ou menos linearmente.

F. Vigouroux afirmava em 1906, contra a corrente que vinha de F. Delitzsch: “O livro do Eclesiastes tem a forma de discurso, não o rigor metódico ou a ordem lógica da dissertação; mas é impossível não reconhe­cer nele uma ordem ou um plano. Compõe-se de um prólogo, de quatro secções ou partes, e de um epílogo”.5 Cl. Filion, 21 anos mais tarde, apre­senta o mesmo modo otimista de Vigouroux.6 A. Bea dá com seu livro forte impulso à sentença da unidade interna estruturada.7 H. L. Ginsberg se­gue entrementes Bea, influindo, ainda mais do que ele, na defesa de união

Galling (Kohelet-Studien, 281; ver também Der Prediger, 76), D. G. Wildeboer {Der Prediger, ll l)e A . Lauha (Die Krise, 183). A Fiseher, porém, opõe-se ao menos no que se refere a Qoh 1,3-3,15 (cf. Beobachtungen, 72).

®V. Zapletal faz referência a um elemento de caráter psicológico, que influiu na disposição de Qoh (cf. Das Buch, 13). Facilmente O. Eissfeldt conclui que Qoh é uma espécie de diário (cf. Einleitung, 552-553: § 62, n. 2; cf. também n. 7; R. Gordis, Koheleth — the man, 110; cf. F. Whitley, Koneleth, 184). O. Loretz compara Qoh com os livros de pensamentos, como o de Pascal (cf. Das Buch, 119). Com essa orientação continuam E. Sellin e G. Fohrer (cf. Einleitung, 368). Da mesma opinião é G. Galling (cf. Der Prediger, 76). Com razão escrevia também D. Buzy que “todo ensaio de divisão de um livro como o Eclesiastes não poderia ser mais que hipotético” {UEcclésiaste, 201).

4W. Zimmerli defende firmemente a não-estruturação de Qoh com matizes: “O livro de Qohélet não é um tratado com um esquema facilmente reconhecível, e um tema único e determinável. Mas ao mesmo tempo é mais que mera coleção de sentenças, ainda que o caráter de coleção não se possa passar por alto em lugares particulares” (Das Buch, 230). Algo parecido defende A. Lauha em Kohelet, 5; cf. também L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 14-15; G. Ravasi, Qohélet, 35.

5Manuel, 515: n. 851.Prólogo: 1,2-11; l e secção: 1,12-2,26;2S secção: cc. 3-5; 3S secção: 6,1-8,15;4® secção: 8,16-12,7; epílogo: 12,8-14 (Ibidem, 515-518: n. 851). Reconhece-se, todavia, que “a ordem dos pensamentos não é sempre rigorosa; a conexão das idéias, sobretudo, não aparece em todas as partes, e o enquadramento não é muito metódico. Há oscilações na exposição, algumas repetições e alguns parênteses, sendo, contudo, impossível não reconhecer a idéia dominante em cada uma das partes” (o.c., 518-519: n. 851).

6Le livre, 551; na p. 552 cita o texto de Vigouroux da nota anterior.7Efetivamente, concebe o livro de Qoh como “tratado”, mas tratado escrito por semita e segundo a

maneira semita (cf. Líber, VI).

Page 46: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

interna ou estrutura de Qohélet pela extensão e qualidade de seus es­tudos.8

G. R. Castelino (1968) divide Qohélet em duas partes tão relaciona­das entre si que não se entende uma sem a outra.9 Por sua vez A. G. Wright, que segue o caminho traçado por G. R. Castellino, tentará em suecessivos estudos decifrar “o enigma da esfinge”, entre eles sua estrutura.10 Se A. G. Wright se distingue dos demais autores pela ênfase que põe na análise formal de Qohélet, E. Glasser representa provavelmente o caso contrário; sua atenção dirige-se de fato mais ao conteúdo que à forma.11

N. Lohfink foi, entre os comentadores modernos, quem estudou com maior seriedade e profundidade a natureza da lógica interna no desenvol­vimento do pensamento de Qohélet.12 Para levar a cabo sua obra literária, Qohélet tomou em conta não só as técnicas tipicamente gregas como, por exemplo, a diatribe filosófica, mas também “a herança da retórica semita”.13

8Se em 1952 demonstrara certas dúvidas quanto à distribuição das partes de Qoh (cf. Supplementary, 58), em 1955 afirma categoricamente: “Agora não duvido declarar que no livro [Qoh] há exatamente quatro partes principais” (The structure, 138). Essas quatro partes intimamente ligadas sáo: A = 1,2­2,26; B = 3,1-4,3; A’ = 4,4-6,9; B’ = 6,10-12,8 (cf. The structure, 139-145). D. Lys segue em linhas gerais a Ginsberg quanto à estrutura geral de Qoh (cf. L’Ecclésiaste, 64-66).

9Estas duas partes são: I: 1,1-4,16; II: 4,17-12,14 (cf. Qohélet, 18-20.22).10São sintomáticos os títulos de seus artigos: The riddle [1968], The riddle [1980], A. G. Wright é

acérrimo defensor da estrutura e do desenvolvimento progressivo do pensamento em Qoh. Desde 1968 manteve firmemente a mesma posição: “Que o livro do Eclesiastes não constitui coleção de aforismos livremente organizada, mas composição deliberada e cuidadosamente estruturada, na qual o autor assinalou unidades por meio da simples técnica de secções finais afins com a mesma palavra ou frase” (The riddle [1980], 38). Além do título (1,1) e do epílogo (12,9-14), ficam fora do conjunto estruturado 1,2-11 e 11,7-12,8; mas indiretamente dá função estrutural a estes dois poemas: “o poema inicial (1,2-11) e o poema final (11,7-12,8)” (The riddle [1968], 324).

“Apesar de afirmar que “consideramos, ao mesmo tempo, e não sucessivamente, a forma e o fundo” (Le procès, 13); tem presente o estudo A. G. Wright de 1968, mas o julga apriorístico. E. Glasser descobre que Qoh está bem estruturado, ainda que não queira falar de estrutura, mas de “movimento da obra” (cf. o capítulo “Movimento da obra”, l. c., 179-190).

12No começo da Introdução a seu Comentário de Qoh afirma que o livro “está construído sistema­ticamente” (Kohelet, 5); afirmação que demonstra refletindo sobre o encadeamento das secções que compõem o conjunto.

13Assim pode falar N. Lohfink de “uma sucessão de partes do livro, lógica e retoricamente convin­cente” (O.c., 10).

UÉ a seguinte:l,2s Marco1,4-11 I. Cosmologia (poesia)1,12-3,15 II. Antropologia3.16-4,16 III. Crítica da sociedade I4.17-5,6 IV. Crítica da religião (poesia)5.7-6,10 V. Crítica da sociedade II6,11-9,6 VI. Crítica da ideologia9.7-12,7 VII. Ética (no final: poesia)12,8 Marco(Cf. War Kohelet, 268, nota 39; Kohelet, 10). D. Michel reconhece a contribuição de N. Lohfink,

mas submete-a a severa crítica (cf. Qohélet, 42 [40-43]). G. Ravasi também critica Lohfink (cf. Qohélet, 32). R. Michaud aceita sem mais a oferta de Lohfink (cf. Qohélet, 123-124).

Page 47: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

De fato, N. Lohfink oferece-nos a mais bela arquitetura que até agora se descobriu de Qohélet.14

Uma das últimas tentativas para esclarecer o problema da estrutura de Qohélet oferece-nos F. Rousseau.15 Todavia, o entusiasmo de F. Rousseau não convence a todos.16

4. Posição intermédia sobre estruturas em Qohélet

Incluímos também nesta secção os autores que negam a estrutura global em Qohélet, mas fazem-no com muitas ou certas matizações.

A. Morais mantinha em 1876: “Nem tanta desordem, nem tanto arti­fício: tal é, a nosso ver, o juízo que convém fazer sobre o processo de compo­sição deste livro”.17

R. Gordis não admite estrutura formal em Qohélet, e menos ainda desenvolvimento em seu pensamento, nem tampouco mera aglomeração indiscriminada; afirma em seu Comentário: “De tudo o que se disse, fica claro que o livro do Eclesiastes não é debate, diálogo, ou tratado filosófico. Descreveu-se melhor como um caderno ou livro de notas, no qual o autor apontou suas reflôxões durante o inevitável tempo livre de sua velhice.18

H. W. Hertzberg também não admite progresso do pensamento no livro, nem que “o livro de Qohélet” seja “um aglomerado de provérbios ou de pequenas compilações de provérbios, como acontece em Provérbios”.19

15Mas Rousseau declara previamente: “Nossa intenção não é impor, mas extrair uma estrutura, a estrutura do texto, mediante indícios literários descobertos no texto” (Structure, 209). O resultado, a que chega em sua investigação, prescindindo da introdução (1,1-11) e da conclusão do livro (12,9-14), é o seguinte:

A I: Confissão do rei Salomão (1,2-2,26) g II: O sábio ignora os desígnios de Deus em geral (3,1-13)

III: O sábio ignora o que virá depois da morte (3,14-22)IV: Decepções diversas e exortações (4,1-5,19)

C V: Decepções diversas e exortações (6,1-8,15)B’ VI: A fraqueza do sábio (8,16-9,10)C’ VII: Decepções e exortações (9,11-11,10) (o. c., 213).16Cf., p. ex., G. Ogden, Qohéleth, 12; D. Michel, Qohélet, 43-44.17L’Ecclésiaste, 125.lsKoheleth — the man, 110. Pouco mais adiante desce a detalhes interessantes: “Que o livro se

abra e se feche com secções rítmicas, sendo estas as mais brilhantes do livro, dificilmente é casual, sobretudo quando se vê que o tema Vaidade das vaidades, tudo é vaidade’ aparece no começo e no final (1,2; 12,8). O que indica que o livro de notas de Qohélet era algo mais que mera coletânea levantada ao azar, e que Qohélet em pessoa é o responsável pela organização do material. A simplicidade de seu tom e a falta de articulações estão longe de ser realizações fortuitas, facilmente logradas. Pelo contrá­rio, como pode atestar todo escritor criativo, o saber como esconder o andaime de uma bela estrutura é sinal da mais elevada arte” (o. c., 111).

l9Der Prediger, 36; mesmo mantendo que Qoh não contém “uma ordem lógica progressiva de idéias” (Der Prediger, 39), aceita [na nota 4] a opinião de A. Allgeier: “Pelo menos é possível encadear num só fio explícitas experiências, sentenças e doutrinas e também reconhecer um plano, ainda que este não compreenda as modernas leis de composição” (Das Buch, 9). Confirmação da postura intermédia de Hertzberg em E. Sellin - G. Fohrer, Einleitung, 1965, 10* ed., 368.

Page 48: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

R. Kroeber, por sua parte, confessa que “a pergunta sobre a disposição [Aufbau] da obra faz parte dos problemas mais vivamente discutidos na história da exegese do livro de Qohélet”; mas termina dizendo: “A unida­de... encontra-se na totalidade espiritual e característica da obra, não em sua disposição”.20 A posição de G. Ogden também é “intermédia”.21 Na mes­ma orientação caminha D. Michel, conhecedor admirável das sentenças antigas e modernas a esse respeito.22

5. Conclusão: nossa postura

Fizemos uma relação das principais teorias que os autores apresen­tam acerca da organização ou estrutura de Qohélet. Dificilmente se encon­trará tema em que se dê tal grau de discrepância. Será isso confirmação de que em Qohélet não existe, nem se poderá jamais encontrar organiza­ção interna ou estrutura global, como afirmou em seu tempo F. Delitzsch?

Depois de comentar o livro em sua totalidade e de analisar cada uma de suas perícopes, longas ou breves, aderimos à última corrente indicada, a que admite solução intermédia: Não à estrutura global do livro, sim a estruturas parciais e a ligações propositadas na maioria das perícopes.23 Com minuciosidade e profusão, damos os argumentos nas introduções particulares a cada perícope. Em conjunto podem-se ver em sua totalida­de e de maneira gráfica no índice de matérias; aqui propomos somente as perícopes que consideramos unitárias, remetendo ao comentário para as divisões e subdivisões das mesmas, a saber:

I. Preâmbulo de Qohélet......................................................1,1-2II. A grande unidade.............................................................1,3-3,15III. Reflexões sobre problemas humanos............................ 3,16-22IV. Outras reflexões de Qohélet menos transcendentais.....4,1-16

wDer Prediger, 30.40. Algo parecido defende R. Braun: unidade de redação não interna (cf. Kohelet, 166). J. A. Loader nega uma verdadeira estrutura em Qoh com matizes; entre suas conclusões lemos: “No livro de Qohélet não encontramos nem desenvolvimento lógico do pensamento, nem livre compi­lação de aforismos numa série de coleções breves” [Polar, 8). E pouco mais adiante volta a matizar (cf. pp. 111-114).

2lPois escreve; “Assim chegamos a uma posição intermédia, onde se consideram os diversos blocos do material, de que se compõe o livro, como individualmente referidos a um tema. O que nos evita o problema de determinar a estrutura, como conexão lógica entre uma unidade e a próxima” (Qohéleth [1987], 12). A mesma coisa confirma-se pelos estudos detalhados que nos apresentou das perícopes do livro, conforme podemos constatar na enumeração desses artigos na Bibliografia geral.

22Escreve D. Michel: “Também um leitor atento esforçar-se-á inutilmente para encontrar no livro de Qohélet construção sistemática e direção progressiva do pensamento, como esperamos hoje nor­malmente de tratados científicos; junto a secções, em que se pode reconhecer argumentação progres­siva, há outras que se unem, pelo que parece, só por associação de vozes-guia — e raras vezes se pode livrar da impressão de que o autor salta simplesmente de um tema ao próximo, sem que se possa reconhecer motivo para esse salto” (Qohélet, 9); cf. também A. Fischer, Beobachtungen, 73.

23Cf. D. C. Fredericks, Chiasm, 17; A. Fischer, Beobachtungen, 72.

Page 49: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

V. Sobre o culto, as injustiças e a riqueza............................ 4,17-6,9VI. O homem perante o predefinido e o imprevisível.......... 6,10-12VII. O que é bom para o homem...........................................7,1-29VIII. Qohélet de novo diante da sabedoria tradicional.......8,1-17IX. O sábio Qohélet diante do destino comum e do poder.... 9,1-18X. Variações sobre temas de sabedoria tradicional............. 10,1-20XI. Ousadia e prudência...................................................... 11,1-6XII. Juventude e velhice...................................................... 11,7-12,7XIII. Palavra final de fecho.................................................. 12,8XIV. Apêndice a Qohélet....................................................... 12,9-14

VIII. GÊNERO OU GÊNEROS LITERÁRIOS EM QOHÉLET

A investigação explícita sobre o gênero ou os gêneros literários em Qohélet é relativamente recente, tão recente como o é o interesse parti­cular pelo estudo dos gêneros literários na Bíblia. Por isso podemos re­petir neste momento, aplicando-o a Qohélet, o que em 1990 escrevíamos em nosso Comentário ao livro da Sabedoria: As reflexões sobre o gênero literário de Qohélet como um todo são relativamente recentes; até há pouco tempo os autores quando muito discutiam sobre a presença deste ou daquele gênero literário em Qohélet, mas não do gênero literário de Qohélet. Agora, porém, discute-se o tema, razão por que cremos oportu­no apresentar uma síntese do que os autores disseram e dizem sobre esse assunto. Resolver acertadamente o problema do gênero literário de Qohélet, como de qualquer outra obra, é muito importante para a reta interpretação do texto, porque supõe que o intérprete põe-se a priori no mesmo ponto de vista do autor.1 Talvez não se tenha estudado tanto este aspecto em Qohélet como em Sb, mas o assunto mereceu a atenção dos especialistas.

Na presente secção proporemos, em primeiro lugar, a pergunta se é possível classificar Qohélet em um gênero literário, sem negar, aliás, gê­neros literários menores e subordinados ao maior. Em segundo lugar, enu­meraremos diversos gêneros literários, mais ou menos importantes, dos quais se serviu o autor de Qohélet para seus fins particulares. Por fim, fixaremos nossa sentença, que acolherá e coordenará os juízos críticos que se deram ao longo da secção.

^ f. J. Vílchez, Sabiduría, 30.

Page 50: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. Epossível classificar Qohélet em um gênero literário?

A pergunta refere-se a Qohélet em sua totalidade, enquanto é obra una\ não se pressupõe nem se pré-julga sua unidade nem de autor nem de composição. As respostas podem ser díspares em qualquer hipótese.

Cataloga-se Qohélet entre os livros sapienciais da Sagrada Escritura. O que, porém, é excessivamente amplo e genérico. E evidente que Qohélet não é livro histórico, nem profético, nem apocalíptico. Todavia, não basta dizer dele que faz parte do gênero literário sapiencial, uma vez que dentro desse gênero há multiplicidade de subgêneros, que são os que caracteri­zam e individualizam propriamente uma obra junto a outras do mesmo gênero literário em sentido amplo.

Chamamos de subgênero literário sapiencial as inúmeras formas es­critas com que se expressam em concreto os sábios e criadores da literatu­ra bíblica que os autores denominam sapiencial. Somente faremos men­ção de alguns subgêneros mais importantes que se aplicaram a Qohélet em sua totalidade.

1.1. DiálogoDiálogo fictício e implícito, aliás, uma vez que no livro não aparece

pluralidade de personagens, como a encontramos, por exemplo, no livro de Jó. Que Qohélet seja diálogo nesse sentido, é provavelmente a teoria mais antiga que conhecemos e da qual se serviram os santos Padres para resolver as dificuldades que descobriram na leitura do Eclesiastes.2 Quase dessa única perspectiva judeus e cristãos leram o livro do Eclesiastes du­rante toda a alta e baixa Idade Média. Eco da hipótese do diálogo é “a teoria das duas vozes”, patrocinada principalmente por J. G. Eichhorn (em sua primeira época) e J. G. Herder em fins do século XVIII e começos do século XIX.3

2Como diz R. Kroeber a propósito de Qoh: “Os Padres da Igreja [Jerônimo, Gr. Nazianzeno, Gr. Magno] não duvidaram que tinham diante de si o livro de único autor, mas supunham que o autor introduzia várias pessoas de diferente atitude religiosa e espírito, para refutar suas opiniões” (Der Prediger, 31). Cf. São Jerônimo, Commentarius in Ecclesiasten 9,7-8: CCL 72,324-327 = PL 23,1138­1140; São Gregório Magno: “Aquele que no final do livro [Qoh] diz: Omnes pariter audiamus, é teste­munho de que, ao representar em si o papel de muitos, não falou como um só” (Dialog. liber, IV, cap. IV: PL 77,324); Alcuíno, Commentaria super Ecclesiasten, cap. I: PL 100,670.

3"Duas almas em um só peito” (J. G. Herder, Briefe das Studium der Theologie betreffend, XI; citado por R. Kroeber em Der Prediger, 31). “O autor escolheu uma forma de exposição que se asseme­lha a uma conversação entre dois sábios sobre a vida humana e o curso do universo. Um pergunta, critica e desaprova; o outro sopesa lenta e sagazmente. Não há, porém, propriamente diálogo, nem perguntas e respostas, nem objeções e soluções; é uma composição artificial de gênero único, de que não conheço outra semelhante” (E. Podechard, La composition, 163; UEcclésiaste, 144, citando J. G. Eichhorn, Einleitung in das A T., Leipzig, 1783, III, 572ss).

Page 51: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1.2. DiatribePode-se considerar no tempo helenístico a diatribe como gênero lite­

rário ou como mero recurso lingüístico.4a. Aplicação do gênero diatribe a Qohélet

De fato, aplicou-se a diatribe a Qohélet como gênero literário. Timida­mente o insinua A. Allgeier, mas não se detém na análise e na prova de sua afirmação.5 O autor, que mais ampla e decididamente defendeu a diatribe como gênero literário de Qohélet, foi S. de Ausejo. Recopila os resultados dos estudos sobre a diatribe no meio helenístico e conclui com firmeza: “O gênero literário do Eclesiastes coincide com quase todas as características do gênero literário helenístico chamado diatribe, ainda que se possa discu­tir se é de caráter popular ou antes intelectual”.6ò. A diatribe em Qohélet como método literário

Realmente não prosperou entre os exegetas modernos a tese da diatribe como gênero literário total de Qohélet. O que se apresentava como recurso para resolver os enigmas de Qohélet,7 ficou num meio estilístico a mais, embora importante, entre os muitos que utiliza o autor de Qohélet em sua dissertação.8

Pelo que parece, é excessivamente difícil o livro de Qohélet em sua forma literária para poder deixar-se encaixar num único gênero literário conhecido.1.3. Testamenteo régio

Resenhamos essa sentença quase a modo de inventário, pela relevân­cia de seu defensor G. von Rad.9Mal se sustenta essa opinião, pois a ficção da figura do rei só se estende de 1,12 ao cap. 2.10

4Cf. S. deAusejo, El género, 371.395. Resumo magnífico do que se entende por diatribe na era helenistica, no-lo faz H. I. Marrou (cf. “Diatribe”: RAC III 998); ver ademais E. Norden, Die antike Kunstprosa, I (Leipzig-Berlim, 1915), 129; W. von Christ, Geschichte der griechischen Literatur, II/l, Munique, 1920,6s ed, 55s; P. Wendland, Die hellenistisch, 77s; St. Tbwer, The diatribe and Paul’s Letter to the Romans, (Michi­gan, 1981), 46; W. Capelle, “Diatribe”: RAC III, 992; G. Schmidt, Diatribai: Der Kleine Paidy, 2 ,1577s.

5Das Buch, 11.eEl género, 405. Anteriormente enfatizara que “no método, Qohélet acolhe o gênero literário helenístico

denominado diatribe, mas não diretamente dos escritores gregos, e sim através da cultura helenistica difundida por todo o Oriente próximo” (a. c., 401). Não foram muitos os autores que seguiram S. de Ausejo, cf. A. Bea, Liber, VII; A. M. Figueras, Eclesiastés, 1050. Com menos convicção escrevem H. Hõpfl e S. Bovo que “o gênero literário que penetra quase todo o livro é a diatribe” (De libro, 396).

7Isso ao menos pensava S. de Ausejo (cf. El género, 405).8L. Di Fonzo chama a diatribe, creio que acertadamente, de “método” ou “procedimento dialético”

(Ecclesiaste, 16), negando seu caráter de gênero literário. Deste mesmo parecer são outros autores, como R. Braun (cf. Kohelet, 166) e A. Lauha (cf. Kohelet, 11).

'’Von Rad afirma que “esta obra [Qoh] faz parte do antigo gênero dos testamentos régios, um gênero cortesâo-sapiencial que tem sua origem no antigo Egito” (Teologia dei A. T.,1, 550). Posterior­mente repete o mesmo em Sabiduría, 286.

10Apesar disso, J. L. Crenshaw chega a escrever: “A forma literária essencial, por meio da qual Qohélet optou para comunicar sua mensagem, deve sua origem às instruções do Egito antigo. Amiúde

Page 52: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O. Loretz, defensor acérrimo do caráter exclusivamente semítico de Qohélet, exclui toda influência egípcia e grega; por conseguinte, admite unicamente a influência da tradição veterotestamentária hebraica e mesopotâmica; rejeita em parte a sentença de G. von Rad.11

1.4. Coleção de sentençasÉ obrigatório fazer referência ao problema que Zimmerli formulou da

seguinte maneira: “O livro de Qohélet é um tratado ou uma coleção de sentenças?”12 Já nos referimos ao tema ao falar da Estrutura de Qohélet; mas agora não nos interessa tanto prestar atenção à alternativa, quanto determinar a natureza do segundo membro dela.

K. Galling é o autor moderno mais importante e representativo dos que defendem que Qohélet é “uma coleção de sentenças”. Por isso se con­verteu ele em chefe de fila. Desde 1932 opina assim.13

G. Bertram ousa generalizar, dizendo que “a exegese moderna conce­be este escrito [Qohélet] cada vez mais como uma coleção de sentenças”.14 Em todo caso, muitos destes autores matizam de certa forma essa afirma­ção sobre coleção de sentenças. W. Zimmerli, que, como vimos, propunha a alternativa “Qohélet, tratado ou coleção de sentenças?”, não se precipita na resposta.15 K. Galling, que afirmara: “A sentença isolada constitui pri­mariamente a unidade literária, que, como tal, se deve explicar”, matiza: “mas não quer dizer naturalmente que as sentenças isoladas tenham sido embaralhadas como naipes e que se tenham colocado uma atrás das ou­tras segundo o resultado casual assim surgido”.16 Se não é casual, foi pro­positado.

chamado de testamento do rei, esse recurso prestou-se com facilidade a uma obra literária que preten­dia mostrar a compreensão da realidade do rei Salomão” (Old Testament, 144). Mas Crenshaw admi­te, junto com esse gênero ou “forma literária essencial”, outros gêneros literários em Qoh; em concre­to: provérbios, instruções, dois poemas, uma alegoria (cf. o. c., 144-145).

uCf. Gotteswort, 115-116; Qohélet und der A. O., 144-161. Mas R. Braun não está de acordo com O. Loretz, a quem uma e outra vez refuta (Kohelet, 163).

12VT 24 (1974) 221-230.13Cf. Koheleth-Studien. Em seu Comentário afirma: “O livro, que abarca 222 verscículos, está

dividido em 12 capítulos, mas sem unidade de sentido. Na realidade se trata de uma série de senten­ças, fechadas em si mesmas, quase sempre de pequena extensão” (Der Prediger, 74). Na nota 1 da mesma página escreve: “Segundo a primeira edição [1940] manteve-se o nome da secção ‘sentença’, ainda que na maioria dos casos se poderia falar melhor de reflexões, com Ellermeier” (Qoh VI, 50s).

14Hebrâischer, 27. Os autores intercambiam sentenças e reflexões, por isso H. H. Schmid diz: “Kohelet é uma coleção de reflexões sobre temas particulares da ‘sabedoria de escola’, sem um processo interno do pensamento” (Wesen, 187) e W. Werbeck, por sua vez: “O autor da Coleção de sentenças é chamado qohelet” (Predigerbuch, 510); na p. 512 volta a falar de “coleçáo de sentenças” (I, 2-12-8).

lsDas Buch Kohelet, 230. Ele inclina-se pelo segundo membro ou coleção de sentenças, embora não possa negar a existência de unidades maiores em tomo de temas; cf. seu comentário Das Buch des Predigers, 131-132.

16Der Prediger, 72.

Page 53: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Mesmo dentro dessa tendência, A. Lauha é mais explícito em suas matizações.17

1.5. ReflexõesComo acabamos de ver, há autores muito representativos que defen­

dem que Qohélet é uma Coleção de sentenças. Na secção 1.4 concentramos nossa atenção em primeiro lugar no termo coleção; neste vamos concen­trar-nos no segundo, ou seja, em sentenças.18

J. A. Loader não aceita os termos “palavras” nem “sentenças” nem “meshalim”; prefere o termo “reflexão”.19 As sentenças de Qohélet em sua maioria são reflexões do autor, como aparecem formuladas na primeira pessoa, ou então objeto de suas reflexões ou considerações, se não são suas, ou simplesmente aparecem na terceira pessoa. Por isso alguns dão a Qohélet o nome de meditação.20

Outros utilizam os termos “monólogos”, “solilóquios”. Deles se deve dizer o mesmo que de “meditação”.21

Mas o termo mais recorrente e principal é o de reflexões.22 A reflexão é o matiz ou aspecto principal que dá unidade às diversas formas que mui­tos autores empregam para falar de Qohélet: desde filosofia até pensa­mentos.

17Lauha escreve: “O livro do Eclesiastes não é um conglomerado de simples provérbios, como o livro dos Provérbios, mas as sentenças constituem secções, nas quais determinados temas prestam a uma relação interna (assim recentemente O. Loretz)” (Kohelet, 5). Algo parecido, mas só na forma, afirma H. W. Hertzberg: “Uma coisa tenho por segura: o livro de Qoh não é um conglomerado de provér­bios ou de pequenas compilações de provérbios, como acontece em Pr” {Der Prediger, 36). No fundo, não está de acordo com K Galling, como o expressa imediatamente depois das palavras citadas.

18E muito ilustrativo que K. Galling se sentisse obrigado a fazer um esclarecimento na segunda edição de seu comentário com estas palavras: “Segundo a primeira edição [1940] manteve-se o nome da seção ‘sentenças’, ainda que na maioria dos casos se pudesse falar melhor de reflexões, com Ellermeier) (Qoh 1/1, 50s)” (Der Prediger [1969, 2- ed.), 74, nota 1).

19"Parece-me melhor o uso do termo “reflexão”, aplicado largamente por Zapletal e agora também por Ellermeier” (Polar, 28); cf. também p. 115; R. Braun, Kohelet, 166.

20"Pode-se ver neste livro outra coisa senão uma meditação...?” (J. Chopineau, Uimage, 596). Creio que é legítimo o apelativo, contanto que não se converta em expressão reducionista, como faz J. Ellud, ao concluir que “Qohélet é livro típico de meditação solitária, livro de volta sobre si mesmo. Livro formado por pensamentos que justamente seriam impossíveis de proclamar numa assembléia” (La razón, 25). Leva ao máximo o exagero ao aduzir em favor da tese somente Ibmás de Kêmpis e Kierkegaard, “dois solitários por excelência”; razão pela qual séntencia: “É um livro solitário para solitários” (Ibidem).

21H. Lusseau afirma que “o autor procede não em forma de diálogo, mas antes de monólogo, de solilóquio” (El Eclesiastés, 679); porém matiza em seguida: “Pode-se, todavia, admitir que o escrito compõe-se de duas séries de reflexões... A primeira... distingue-se pelo traço agudamente crítico... tem afinidade com Jó. Asegunda... tem afinidade com os provérbios” (Ibidem). E melhor ainda mais adian­te: “Não se poderia ver simplesmente na obra o resultado de uma reflexão crítica que, não chegando a precisar completamente, e, muito menos, a resolver os problemas da contingência do criado e da retribuição do bem e do mal, nos comunica em estado de dispersão reflexões de valor desigual?” (o. c., 683).

22Além dos autores já citados, V. Zapletal é um dos adiantados; escreve: Não temos que nos haver com uma obra lógica e simetricamente elaborada, “mas com reflexões que, sem ordem estrita, foram

Page 54: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

De modo indireto, J. Pedersen inclui Qohélet no âmbito do filosófico, ao escrever: “Não é preciso perguntar ao autor que israelita se retirou do mundo para fazer reflexões filosóficas e pessimistas sobre seu próprio rei­no e sobre o despotismo dos poderosos”.23 Não assim R. B. Y. Scott, que considera o autor de Qohélet um verdadeiro filósofo, que “apresenta uma filosofia da resignação”,24 e o livro mesmo como uma obra filosófica.25 Não parece linguagem muito apropriada a de R. B. Y. Scott para falar de Qohélet. J. Steinmann poderia servir-nos de ponte, se bem que alguém o tenha julgado inapropridado; diz-nos que “existia, com efeito, uma sabedoria em Israel, inclusive uma filosofia, se por ela se entende o que era a filosofia grega antes de Sócrates”.26

Creio que isso é levar as coisas muito longe: umas reflexões, embora sejam sobre temas tão importantes, não são ainda filosofia. Por isso da­mos em parte razão a R. Gordis que escreve: “O livro de Qohélet não é debate, nem diálogo ou tratado filosófico. Descreve-se melhor como um caderno ou livro de notas em que o autor apontou suas reflexões durante o imposto tempo livre de sua velhice. Diferem em humor, estilo e extensão.27

Assim encontramos outra forma de chamar o livro de Qohélet: cader­no, livro de notas, diário.28 Do diário de reflexões a uma obra estilo Pensa­mentos não há senão um passo que, de fato, se deu. Faz tempo que os autores comparam Qohélet com o gênero literário pensamentos,29

escritas à medida que se apresentavam ao espírito de Qohélet” (Das Buch, 13; cf. também 22.29.31.34); J. Pedersen, “Quando viveu o homem que compôs essas reflexões?” (Scepticisme, 330). A. Vaccari também afirma que Qoh “constitui uma série de reflexões sobre as misérias da vida humana que se sucedem sem ordem ou conexão aparente” (Enciclopédia italiana di scienze, lettere ed arti, XIII, Roma, 1932, s. v. Ecclesiaste, 393). Mas, segundo ele, essas reflexões “entremesclam-se com conselhos práti­cos em prosa ou com frases sentenciosas em verso, expressos como saem do coração, sem grandes pretensões literárias” (Ibidem).

23Scepticisme, 330.24Ecclesiastes, 191.25As palavras e argumentos de Scott eliminam qualquer equívoco, pois afirma: “O que temos pe­

rante nós é, antes de tudo, uma obra filosófica mais que um livro de religião. Busca uma compreensão racional da existência humana e um fundamento para a ética mediante aplição da razão humana aos dados de observação... O autor exclui da consideração, como não comprováveis, os dados especiais da religião revelada. Todavia, seu método filosófico não é o de um dabate lógico que passo a passo avança a uma conclusão. Começa estabelecendo uma tese: Vaidade...’ ” (Ecclesiastes, 196). R. B. Y. Scott fala da filosofia de Qoh da mesma maneira que da filosofia grega (cf. o. c., 196-206).

2SAinsi, 23. E ainda ousa afirmar: “Que fim perseguia Qohélet, ao publicar ou ao deixar publicar as notas de seu curso de filosofia?” (o. c., 33).

27Koheleth — the man, 110.280. Eissfeldt diz que “nosso livro... acusa amiúde o estilo de um diário” (Die Einleitung, 1956, 2a

ed., 609; 1964,3® ed., 669); H. Duesberg: Qoh “não é um livro; é antes uma coleção de notas” (Ecclésiaste, 42). Mais próximo de nós, L. Alonso Schõkel confessa que é “impossível averiguar como o autor com­pôs sua obra. Postos a ilustrar seu aspecto, escolheríamos o modelo de um diário de reflexões” (Eclesiastés, 14s).

29Assim, por exemplo, R. E. Murphy escreve: Qoh “faz parte do gênero de Pensamentos de Pascal, reflexões e anotações de um homem maduro sobre o sentido da vida, editado (e reelaborado até certo ponto?) por um de seus discípulos” (The Pensées, 185).

Page 55: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A. Vaccari faz-se eco da corrente que vê em Qohélet um tratado filosó­fico; em parte a corrige e tenta pôr as coisas em seu lugar.30 A mesma orientação segue O. Loretz, que coloca também Qohélet ao lado de Pascal, Schoppenhauer e Nietzsche.31

2. Pluralidade de gêneros literários em Qohélet

Praticamente já está afirmada a pluralidade de gêneros em tudo o que precede. Os gêneros literários enumerados, se se os rejeitam não é porque não se verifiquem em Qohélet, mas porque nenhum é o único e exclusivo.32

Em primeiro lugar, os autores que não admitem unidade de composi­ção, afirmam pluralidade de estilos e formas literárias. E conseqüência lógica. Mas sabemos que a afirmação da tese da unidade de autor não implica necessariamente a eliminação da pluralidade nas formas de ex­pressão literária ou gêneros literários. Não existe, com efeito, nenhum autor que admita unicamente um só gênero literário em Qohélet; quando muito se admite um gênero literário global, por exemplo, a diatribe, e ou­tros muitos gêneros secundários ou subordinados.

Assim, pois, são constatáveis em Qohélet as seguintes formas e gêne­ros literários; de alguns já falamos largamente, de outros talvez não:

— Reflexões e raciocínios: 1,2-11; 3,1-8.11; 4,9ss; 7,1-8; em forma desolilóquio: 1,16; 2,1.15; 3,17-18.

-Observações: 1,13.14.17; 2,11-14.24; 3,14.16.22; 4,1.4.7.15; 5,12.17;6,1; 7,15.23.25-29; 8,9.10.16.17; 9, 1.11.13; 10,5.

—Provérbios, ditos, sentenças, aforismos: l,14b.l5.18; 2,14.17.21.23.26;3,19; 4,4-6.8-12; 5,9; 6,2; 7,6; 8,8.14; 9,4b.l6-18; 10,1.8-15; 11,4.10;mais vale... que... 4,6.9.13; 5,4; 6,9; 7,1-3.5.8; 9,16.18.

— Instruções e conselhos: 4,17-5,6; 7,9-10.18-22; 8,2-3; 9,7-10; 10,4.20;11, 1-2 .6 .8-12, 1.

— Anotações e descrições: autobiográficas: 1,12-2,10; biográficos: 1,1;12,9-10.

30"Na realidade, o presente opúsculo não tem nada do uso oratório e antes deve colocar-se no gênero da filosofia menor, que, com o título de ‘Pensamentos’, conhece-se também nas literaturas profanas, antigas e modernas” (UEcclesiaste, em La Sacra Bibbia, Roma, 1961,1117); L. Di Fonzo faz sua essa opinião (cf. UEcclesiaste, 11).

3lSuas palavras são: “O livro de Qohélet tem sido amiúde comparado com certo direito com obras da literatura aforística da Europa. Mencione-se em primeiro lugar os Pensamentos de Pascal” (Das Buch Qohélet, 119). Mais adiante faz referência aos pensadores “Pascal, Schoppenhauer e Nietizsche” (Ibidem). Por sua vez F. Festorazzi escreve: “O gênero literário [de Qoh] poderia de alguma maneira recordar os ‘Pensamentos’ de Pascal?” (La dimensione, 94); cf. também G. Ravasi, Qohélet, 35.

32Por causa dessa complexidade de Qoh em suas formas literárias podemos dar razão a J. Goettsberger, que afirma: “Quem se preocupar em ressaltar um ponto de vista dominante, normal­mente escolherá apenas uma parte do pensamento de Qohélet” (Einleitung in das A T., Friburgo de Brisgóvia, 1928, 251).

Page 56: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

- Lamentações: 4,10; 10,16.— Bênção: 10,17.— Gênero parabólico: 4,13-16 e 9,14-15.- Gênero alegórico: 12,3-7.

3. União de gêneros literários em Qohélet

Uma vez que defendemos a unidade de autores do corpo fundamental de Qoh (1,[2] 3-12,7[8], e sua unidade de composição, não parece tarefa impossível dar explicação aceitável da pluralidade e variedade de gêneros literários em uma só obra literária. Falamos, portanto, da integração lite­rária numa obra de múltiplos gêneros literários. Com isso não pretende­mos sequer comparar Qohélet a uma obra literária do tipo de uma novela ou uma peça dramatúrgica. Queremos, sim, sublinhar que é compatível pluralidade básica de gêneros literários numa unidade superior, causada pelo gênero literário ou por outro elemento, como o pode ser o estilo.

Um dos ideais de todo comentador de Qohélet é vir a detectar um “gênero literário”; por isso parece-se com a linha do horizonte, que está cada vez mais longe e inatingível. R. E. Murphy escreve que “a designação do gênero literário próprio do livro do Eclesiastes se nos escapa, apesar de tudo”.33 Creio que seria mais nobre reconhecer simplesmente que se está buscando algo que não existe. O próprio R. E. Murphy conclui sua investi­gação: “Concluindo, pode-se dizer que nenhum gênero literário, sequer a diatribe, é adequado, como caracterização de Qohélet”.34 O que, porém, não constitui derrota nem fracasso; olhando bem, trata-se de um êxito.

Parece, porém, que o livro de Qohélet tem algo de singular que o dis­tingue dos demais. Não é propriamente um gênero literário. O que mais se aproxima dele é a forma particular comum em que o autor soube ajuntar e unir os diversos gêneros literários, mas sapienciais. Portanto, insistire­mos no peculiar de Qohélet, no que ele se distingue dos outros escritos sapienciais da Sagrada Escritura. Cremos que é sua língua e seu estilo.

IX. ESTILO INCONFUNDÍVEL DE QOHÉLET

O que mais distingue uma obra é seu estilo, o selo ou marca do autor e de seu ambiente. Quanto mais autêntica é a obra, tanto mais participa das qualidades, virtudes e defeitos de seu autor. Nesse sentido, “o estilo é

33Wisdom, 129.“ O. c., 131.

Page 57: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

o homem”; a esse respeito escreveu R. Gordis: “A sentença de Buffon de que o ‘estilo é o homem’ de ninguém é mais verdadeira que de Qohélet. E impossível reconhecer sua personalidade sem compreender seu estilo, e, vice-versa, não se pode avaliar seu estilo sem compreender o homem. Quan­do estão presentes esses elementos essenciais, surge o livro como unidade literária, o testamento espiritual de uma personalidade única, complexa e ricamente dotada”.1

A simpatia que surge entre o estudioso de uma obra e a obra estudada leva R. Gordis a fazer uma afirmação tão exagerada e fora de comum, como a que diz que “nenhum outro livro dentro da Bíblia, e poucos fora dela na literatura universal, é tão profundamente pessoal como Qohélet”.2 A admiração pela obra transfere-se inconscientemente ao autor: “Qohélet foi escritor de surpreendente originalidade no que se refere à forma e ao conteúdo”.3

1. Singularidade do estilo de Qohélet

Sobre a originalidade do estilo de Qohélet, manifestaram-se os auto­res, mas nem sempre no mesmo sentido.4 Parece que prevaleceu por muito tempo a tendência mais negativa, que, sem ignorar a singularidade de Qohélet, considerava-a, porém, de escasso ou nulo valor literário. O. S. Rankin aduz dois testemunhos bastante significativos: “Segundo Adolfo Schlatter, a língua de Qohélet ‘prova, por sua obscuridade e cunho pesado, que o autor não falava o hebraico, mas só o lia e escrevia’. A opinião de F.C. Burkitt é ainda mais mordaz; segundo ele, o estilo do Eclesiastes não é nem ‘correto’ nem ‘natural’; tem ‘a dureza pouco elegante de uma tradu­ção’. Sua linguagem é jargão indecifrável e anormal, e o livro parece ser tradução do aramaico”.5

Juízos mais ou menos parecidos repetiram-se como eco, chegando até nós. Assim R. Pautrel escreve: “O livro parece com um libelo. A arte literá­ria é medíocre, o estilo é resistente... Qohélet não mais contém poesia semítica, nem ainda a prosa grega. Salvo no começo e no final da obra, nos quais se esmerou, não tem preocupação estética”.6 E ainda mais recente-

Woheleth — the man, 74. Para matizações sobre a célebre expressão de G. L. Leclerc de Buffon veja-se W. Kayser, Interpretation y analisis de la obra literaria, Madri, 1961, 3® ed., 362.366-369.

2Koheleth — the man, 75.3R. Gordis, Koheleth — the man, 43. Este mesmo juízo é repetido por R. Gordis, quase com as

mesmas palavras, em Qohélet and Qumran, 406.4Cf. O. S. Rankin, The Book, 13.5The Book, 13. Para as citações de A. Schlatter, Calwer Bibellexíkon, Stuttgart, 1924, 4- ed., 585­

586 e F. C. Burkitt, 1st Ecclesiastes. Recordamos que tratamos agora somente do estilo de Qoh; sobre a língua de Qoh trataremos no capítulo seguinte.

6L’Ecclésiaste, 10.

Page 58: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mente podemos ler o juízo, também negativo, porém menos, de L. Di Fonzo: “Certamente, no aspecto lingüístico, é o Eclesiastes livro pobre e imperfei­to em sua prosa e em seus trechos rítmicos; não tem estilo rico e imagina­tivo, como em Jó e em Is, não é justo e elegante, como em Pr e em seu quase contemporâneo Eclo, nem tem a prosa oratória de Sb”.7

Paralelamente a essa corrente, que não descobre em Qohélet valores literários que mereçam destaque, corre outra que vê em Qohélet, de uma forma ou outra, um modo literário, digno de apreço e grande elogio.

E. Philippe é muito moderado nesse aspecto; seu parecer acerca do estilo de Qohélet, único aspecto que nos interessa frisar, pode-se conside­rar bastante equilibrado, suposto o ambiente não muito favorável a Qohélet. Escreve que “o Eclesiastes é, do ponto de vista do estilo e da língua, único em seu gênero... Sabe-se que ao lado da língua dos livros, clássica e erudi­ta, coloca-se a língua falada, necessariamente menos polida e menos pura, com palavras e giros de origem estrangeira. O livro de Qohélet assemelha- se mais a essa que àquela”.8

Já neste século, cada vez se escutam mais vozes que exaltam as boas qualidades literárias de Qohélet. “Segundo [A. H.] McNeile: ‘sua grande originalidade o elevou muito acima do nível literário do seu tempo’. Impe­lido pela intensa decepção e indignação pelos males do mundo, conferiu a seu estilo ‘sarcasmo mordaz, tendência ao epigrama, tom de queixa, único na literatura hebraica”.9 Quase do mesmo tempo podemos ler a sentença de P. Volz: “Por seu estilo literário, o livro [Qohélet] é único e, por isso, tanto mais sugestivo no A. T.”.10

Mas o autor, que mais se assinalou na defesa do estilo de Qohélet (e de outros muitos aspectos), foi e é R. Gordis. No começo dessa secção já escutamos sua voz autorizada. Estava plenamente convencido da peculia­ridade uniforme do estilo de Qohélet.11 Houve quem quis ainda comple­tar o que R. Gordis fez ao escrever: “Falando do estilo de Qohélet, Gordis

7Ecclesiaste, 19. No resumo final condensa seu parecer: “Em conclusão, um estilo verdadeiramen­te popular o de Qoh, mas também literariamente apreciável, sustentado pela força da linguagem interior e expresso em veste exterior adequada e eficaz, embora pobre e esfarrapada” (o. c., 20).

sEcclésiaste, 1538. Também afirma: “O hebraico de Qohélet, um hebraico original, como o exigiam a matéria do livro e o círculo de leitores, hebraicos e não-hebraicos, aos quais escrevia Salomão. Em geral oratório, poético em algumas partes, o estilo da última parte parece muito com o estilo da poesia proverbial” {Ibidem).

90. S. Rankin, The Book, 13. A citação de A. H. McNeile corresponde a An introduction to Ecclesiastes, Cambridge, 1904, 32.

10Hiob, 234 (citado por D. Michel em Qohélet, 11, nota 1).uComo faz notar o próprio R. Gordis: C. Siegfried “reconheceu que a uniformidade de estilo, que se

estende pelo livro todo, constiuía uma debilidade fundamental de sua sentença [os nove autores ou fontes de Qoh]” (Koheleth — the man, 70). A este propósito G. Pérez também afirma que “existe no livro liberdade de língua e estilo que advogam em favor da unidade de autor que sugere o próprio título do livro (1,1)” (El Eclesiastés, 562).

Page 59: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

teria podido insistir mais no caráter hiperbólico e propositadamente paradoxal, que constitui uma das características do estilo oriental de Qohélet”.12

Uniformidade não equivale a empobrecimento, pois que ela é capaz de transluzir uma complexidade mais ampla e profunda; Gordis diz tam­bém: “O estilo de Qohélet reflete a complexidade de seu ambiente e de sua personalidade”.13 Ufana-se R. Gordis de ter descoberto muitas das causas da singularidade do estilo de Qohélet.14

Qohélet sentiu a necessidade de expressar-se de modo novo por influên­cia do modo grego, adiantando-se em muito tempo ao processo da língua.15

Doravante os autores têm R. Gordis como ponto de referência. Se uns se mostram de acordo e, mais ou menos, repetem suas expressões,16 outros mostram-se mais exigentes e buscam resposta aos muitos proble­mas que Qohélet propõe à exegese, dos quais o estilo literário é expoente e reflexo.

2. Qohélet domina múltiplos recursos literários

O uso que faz Qohélet dos múltiplos recursos literários, muito conhe­cidos dos retóricos do seu tempo, é um dos pontos que mais luz nos propor­cionam para conhecer a fundo o estilo de Qohhélet. Qohélet não inventa recursos, mas utiliza muito bem os já inventados.

2.1. A contradição como recurso literárioR. Kroeber, que segue as pegadas de F. Delitzsch e K. Galling, que

cita, frisa a função das contradições em Qohélet, contradições que tan­tos quebra-cabeças causaram. A contradição é uma realidade objetiva em nossa vida, razão pela qual a reflete Qohélet em seu próprio estilo literário.17

12J. van der Ploeg, Robert Gordis, 106.13Was Koheleth, 103. E oferece alguns capítulos dessa complexidade: “Este livro mostra: a) muitas

afinidades com o hebraico clássico, b) muitos pontos de contato com a época midráxica da língua, de que constitui etapa recente, c) inumeráveis exemplos das intelisas influências do aramaico, que era a língua falada em seu ambiente, e d) modos únicos de expressão para suas idéias particulares (a. c., 103-104).

llQoheleht and Qumran, 407. Como dizíamos anteriormente, a R. Gordis talvez o cegue um pouco a paixão por Qohélet; por isso afirma ousadamente: “Em qualquer época Qohélet teria sido figura relevante e seu estilo teria refletido naturalmente essa característica distintiva” (Jbidem).

15Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 88; Qohéleth and Qumran, 407.16H. W. Hertzberg, por exemplo, insiste na singularidade de Qoh: “Tal é o juízo definitivo: estilo

muito particular, absolutamente independente, em linguagem do mesmo modo absolutamente parti­cular, construído conscientemente, amiúde com muita perícia” (Der Prediger, 32).

17Cf. Der Prediger, 37. De F. Delitzsch cita ele seu Biblischer Kommentar, 191 = The Book of Ecclesiastes, 183; de K. Galling, Stand, 369; Koheleth-Studien, 285.

Page 60: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2.2. Outros recursos estilísticos comunsÉ lógico que um autor, tipicamente sapiencial como Qohélet, conheça

e utilize as formas habituais em que se expressa este gênero literário sapiencial. Entre elas sobressai o mashal com todas as suas variedades,18 e dentro do mashal os mais variados recursos. “Analisa-se o vocabulário, fazem-se estatísticas sobre freqüência de uso de palavras, constatam-se formas estereotipadas, jogos de palavras, repetições, palavras favoritas, o uso da observação e reflexão etc. Os resultados que se obtêm são seme­lhantes. Varia unicamente o ponto de partida da análise ou a insistência em determinada qualidade estilística”.19

O uso freqüente que Qohélet faz da interrogação converte-a também, por isso mesmo, em traço típico de seu estilo pedagógico.20

3. Qohélet é escrito em prosa ou verso?

Muito cedo se fez a pergunta, mas não foram uniformes as respostas desde o princípio.21 Como amostra, resenhamos a opinião de alguns autores.

3.1. Qohélet é livro poéticoÉ opinião muito antiga entre os exegetas e nunca unânime. H. W.

Hetzberg informa-nos de que “[J. G.] Vaihinger encontrou forma poética no livro inteiro. [H.] Grimme (ZDMG 1897, p. 689) mostra que o livro (exc. 12,13s) é composto em versos de quatro sílabas; [P.] Haupt [1905] encon­tra em tudo o antigo 2x3; [G. W. H.] Bickell [1884], dísticos e tetrásticos. Mais prudentes são E. Sievers [1901] e [V.] Zapletal (1911), que admite metro irregular; também adota algo semelhante a tradução de [W.] Vischer [1926].22Para o próprio Hertzberg, Qohélet é livro poético, onde se combi­nam indiscriminadamente versos de dois ou três acentos.23 Mas em Qohélet nem sempre está garantida a qualidade poética, nem é seguro o metro que

18Cf. O. Loretz, Das Buch Qohélet, 118-119.19S. Bretón, Eclesiastés, 379; cf. também Qohélet Studies, 26s. A. Lauha faz enumeração ainda

mais pormenorizada dos recursos literários de que se vale Qohélet (cf. Kohelet, 8-9); ver também J.-A. Loader, Polar, 9-15.

20Cf. K. Kroeber, Der Prediger, 37-38. _210 que H. W. Hertzberg escrevia em 1963 tem valor em nossos dias: “A pergunta sobre se Qoh

está escrito em forma métrica e, por conseguinte, sobre se se deve chamá-lo livro poético, respondeu- se de maneiras muito diversas. G. colocou Qoh entre os livros poéticos, enquanto os massoretas não aplicaram a Qoh o sistema dos acentos dos livros poéticos. Essa diversidade de opiniões chega até os dias de hoje” (Der Prediger, 32).

22Der Prediger, 32. V. Zapletal até ousa utilizar a métrica como critério de autenticidade do texto. Desde então, e apesar de opiniões contra, não cessaram de surgir defensores do caráter poético de Qoh (cf. Das Buch, 35-38).

23Cf. Der Prediger, 33.

Page 61: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

utiliza o autor, razão por que cautelosamente não se pode utilizar como critério para corrigir o texto.24

Um recente defensor do caráter poético de Qohélet é A. Lauha. Mui­tos de seus argumentos são novos, outros nem tanto; repete simplesmente a não muito antiga tradição entre os autores. Reconhece nobremente que os massoretas não consideraram que Qohélet fosse livro poético, apesar de apresentar sinais inequívocos de poesia hebráica (cf. 2,16; 3,11; 5,14; 7,8s; 9,5.10; 12,7).25

O último testemunho que aduzimos é de J. Ellul, que escreveu em 1987: “Por minha vez, reterei dois dados: trata-se de poema, e de poema sapiencial”.26

No entanto, todas as razões aduzidas podem-se interpretar de outra maneira, razão pela qual cremos mais condizente aderir à seguinte cor­rente de opinião.3.2. Qohélet, como livro, ê escrito em prosa

Não levamos em conta a sentença que exclui qualquer forma poética em Qohélet, pois de uma ou outra forma todos os autores admitem que algumas secções de Qohélet estão plasmadas em forma poética.

Anteriormente aludíamos aos autores que não descobriam em Qohélet méritos especiais de estilo.27No entanto, não é essa a sentença dominante.

F. Delitzsch já opinava que Qohélet foi escrito “quase geralmente em prosa retórica”, com irregularidades quanto ao estilo.28 “Essa opinião, em palavras de R. Kroeber, é compartilhada até hoje pela maior parte dos comentadores”.29

R. Gordis não admite que Qohélet em sua totalidade tenha sido escri­to em verso; concede, todavia, que algumas partes o foram.30 Por sua vez,

24Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 34.25Cf. Kohelet 9-10. J. A. Loader continua praticamente Lauha e defende que “o livro como um todo

é obra de poesia” (Polar, 18). R. Braun introduz novo matiz, ao comparar Qoh com seus contemporâ­neos gregos Fênix de Colofão e Kérkidas de Megalópolis (cf. Kohelet, 179).

26La razón [1989]. Estranha que os exegetas falem mal da linguagem de Qohélet e acrescenta: “Ora, o que acho estranho é que topemos nas traduções com um texto prodigiosamente poético, evocativo, rico e comovedor. E estou convencido de que não se deve isso à força poética dos tradutores!” (Ibidem).

27E. Podechard, como nome mais representativo, escrevia: o.Eclesiastes “foi composto em prosa, e mais, em prosa bastante má” (UEcclésiaste 137); de semelhante opinião são T. K. Cheyne (Job, 204) e E. König (“Poesie und Prosa in der althebräischen Literatur abgegrenzt”, ZAW 37 [1917/1918] 152­154).

2SKoheleth, 209 = Commentary, 199. Na prática seguem-no S. R. Driver, An introduction to the literature ofthe O. T., Edimburgo, 1892, 3ä ed., 436s; G. A. Barton, que se apóia em J. F. Genung (cf. A criticai, 31; cf. também pp. 51-52). O livro de J. F. Genung, a que se refere G. A. Barton, é Words of Koheleth (1904).

wDer Prediger, 39. Adere a essa opinião (cf. pp. 39s).30Cf. Koheleth — the man, 111. Assim, não acha inconvenientes em admitir aí mesmo que “na

inolvidável ‘alegoria da velhice’ (11,7-12,8), que é clímax e conclusão do livro, o ritmo é muito pronun­ciado, de sorte que se possa descrever com razão como poesia formal”.

Page 62: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A. Barucq crê que “a parte central do livro [1,2-12,8] está em prosa, embo­ra seja certo que nela se incluem numerosos meshalim com ritmo e mesmo estrofes em verso”.31

Por último N. Lohfink fala de “uma prosa filosófica, desconhecida até então em Israel”,32 devido principalmente à influência grega.

Assim se apresenta Qohélet. Ele, que se afastou de tantos caminhos trilhados, preferiu também a multiplicidade no estilo, rompendo com as formas tradicionais ou aceitando as menos uniformes, para melhor ex­pressar sua forma desconforme de pensar.

X. LÍNGUA ORIGINAL DE QOHÉLET

Ninguém jamais pôs em dúvida que o TH de Qohélet seja o canônico; pelo contrário, afirma-se com toda razão que Qohélet é um dos livros do A. T. em hebraico cujo texto se conservou melhor.10 que agora nos preocupa é a discussão que surgiu a partir do estudo do Qohélet que conhecemos pelo TM, mais exatamente, a partir de seu hebraico como língua: é origi­nal esse hebraico ou é a versão ao hebraico de um suposto original aramaico? As razões que levaram a formular essa pergunta constituem o núcleo prin­cipal deste estudo, assim como as respostas afirmativas, negativas ou dubitativas que os autores foram dando, e seus argumentos.2

1. O hebraico de Qohélet é de transição

Não é possível classificar o hebraico de Qohélet como singular em contraposição aos muitos outros escritos em hebraico bíblico e extrabíblico que chegaram até nós e que se supõem pertencerem à mesma época helenística. Quando muito podemos falar de características do hebraico de Qohélet, que também se encontram em outros livros mais ou menos contemporâneos.3 Pela análise dessas características podemos fazer as seguintes afirmações:

3lEcclésiaste, 17; Eclesiastés, 20; cf. Qohéleth, 617, onde aceita que “a dificuldade está em separar a prosa das secções rítmicas. Para isso ajuda com freqüência o uso do paralelismo; mas ainda restam muitas indeterminações”. C f. W. Zimmerli, Das Buch, 130.

32Kohelet, 9.

Hüf. F. Piotti, La lingua, 185.2D. C. Fredericks escreve: “Na esfera lingüística, dão-se em geral atitudes diferentes. Delitzsch,

Barton e Gordis são representantes do raciocínio normal em favor do hebraico bíblico tardio [HBT], do hebraico mischnaico [HM] e da influênica aramaica. Whitley defendeu recentemente que [Qoh] foi escrito depois de Ben Sira. Zimmermann, Torrey e Ginsberg buscam indícios de tradução do aramaico. Ao passo que Dahood conta com influência fenício-cananaica”. (Qohéleth’s, 255).

3Como veremos, a presença de aramaísmos é uma das notas características, provavelmente a principal; não constitui, porém, nota singular ou exclusiva de Qoh. Pela presença de aramaísmos em

Page 63: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1.1. Estamos longe do hebraico clássicoA prosa de Qohélet não é certamente a dos clássicos hebraicos, a dos

livros de Sm ou de Rs, por exemplo;4 não há dúvida de que a qualidade literária é inferior. Que seja distinta não nos deve estranhar, visto que toda língua viva muda com o passar do tempo e já se passaram vários séculos. A medida que é maior a distância, a diferença também é maior, razão pela qual se considera natural admitir que Qohélet é de época tar­dia sem que seja necessário aduzir mais provas.

A relação do hebraico de Qohélet com o hebraico da Mishná costuma- se afirmar neste contexto, quer de forma genérica, como faz O. S. Rankin;5 quer acrescentando algumas qualificações quanto à qualidade do hebraico como afirma L. Di Fonzo.6R. Gordis crê que “Qohélet está a meio caminho entre o hebraico clássico e a língua da Mishná, se bem que mais próximo da segunda”,7 “de que consitui uma etapa primitiva”.8

1.2. Características do hebraico de QohéletOs autores costumam enumerar uma série de notas lingüísticas, típi­

cas do hebraico de Qohélet, comuns ao hebraico bíblico tardio, pelas quais Qohélet se distingue do hebraico clássico bíblico. O fato é indiscutível e tem sido o argumento lingüístico de maior força utilizado pelos autores

muitas obras, chegou-se a afirmar delas que originalmente foram escritas em aramaico; A. Sáenz- Badillos escreve: “No caso de vários livros escritos na época persa ou helenística, não faltaram exegetas que tentaram demonstrar que o aramaico foi sua língua original, e que posteriormente foram tradu­zidos para o hebraico. Defendeu-se semelhante opinião com respeito a Jó, Qo, Sir, Dn, Est, 1 e 2Cr, Pr e inclusive Ez, embora nunca de maneira totalmente convincente. A mesma problemática encontra-se nos escritos pseudepigráficos da época helenística ou do período asmoneu ou romano” (Historia, 124).

4A propósito da prosa de Qoh, os juízos de alguns autores são excessivamente negativos; chama-a E. Podechard de “prosa bastante má” (UEcclésiaste, 137); cf. A. Barucq, Qohéleth, 617, onde afirma que “o epiloguista, de acordo com 12,10, tinha opinião melhor de seu mestre”.

5"0 Eclesiastes foi escrito numa forma tardia do hebraico, relacionada com a língua da Mishná (cerca de 200 d.C.)” (O. S. Rankin - G. G. Atkins, TheBook, col. 12a). D. Lys admite que “de fato... deve­se reconhecer que o Eclesiastes é tardio. O hebraico é próximo ao da Mishná” (UEcclésiaste, 58). Cf. também D. Michel, Qohélet, 46.

6Cf. Ecclesiaste, 25. Pouco antes falou de “uma língua hebraica tardia, como a dos livros sagrados mais recentes ou suas secções pós-exílicas (...) e, de mais a mais, uma língua deteriorada e decadente, com usos morfológicos e sintáticos, neologismos e variações semânticas mais próprios do hebraico mísnico (séc. II d.C.) ou protomísnico e do aramaico” (p. 20; cf. também pp. 26s).

’Koheleth — the man, 60.8Was Koheleth, 103. Segundo K. Galling: “Sobre a língua do Ecl há unanimidade em que represen­

ta a fase mais recente do hebraico bíblico e assinala a passagem para o hebraico da Mishná” (Der Prediger, 74). Depois dele A. Barucq escreveu que “quer se goste ou não goste, teve-se a preocupação de atribuir a essa língua um lugar na evolução que o hebraico conheceu desde a época clássica dos profetas à do hebraico mísnico” (Qohéleth, 617); e J. L. Crenshaw: “Essa linguagem especial [a de Qoh] assinala um estádio de transição entre o hebraico clássico e o hebraico da Mischná” (Ecclesiastes, 31). Todavia, E. Piotti é voz discordante neste coro, pois afirma que “não nos parece, como quer Gordis, que o hebraico de Qoh represente estádio intermédio entre o hebraico bíblico, mas o popular, e o da chegada, e não o hebraico mishnaico da escola ou da literatura, mas, com bastante probabilidade, o falado” (La língua, 193). Mais adiante matizaremos mais a sentença de F. Piotti.]

Page 64: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que começaram a defender a datação tardia de Qohélet ou sua pertença à época pós-exílica.9 A dois grandes capítulos ou secções se podem reduzir todas essas características: às formas tardias do hebraico e à influência considerável do aramaico.10

- Emprego de nomes terminados em -on e -ut, abstratos, raros no A. T., mas de uso freqüente no hebraico tardio rabínico.11

- Nomes com marca inequivocamente aramaica.12- Sobre o uso do artigo anota A. Sáenz-Badillos: “Da mesma forma

que em outros livros tardios, o artigo não se elide depois de uma partícula: ke-he-hakam (Qo 8,1)”.13

- O pronome pessoal da primeira pessoa é sempre ’ani, acomodando- se uma vez mais à evolução geral da língua.14

- O pronome demonstrativo feminino em Qohélet é sempre zoh (cf. Qoh 2,2.24; 5,15.18; 7,29; 9,13), nunca o habitual zo’t.15

- “São peculiares suas partículas den (4,3) e denah (4,2) com uma tendência à composição — elidindo algumas consoantes intermédias — muito alheia ao caráter do H[ebraico] B[íblico, mas bem conhecida no H[ebraico] R[abínico]; o mesmo se diga da acumulação de partículas: be- she-kbar (2,16)”.16

- O relativo ^sher aparece em Qohélet 89 vezes, ao passo que a forma abreviada she 67 vezes. Desta maneira também se adverte que Qohélet continua a corrente comum na evolução da língua hebraica. Como nos diz S. J. du Plessis: Qohélet “está a meio caminho entre os outros livros do A. T. e a Mishná”.17

9Cf. F. Delitzsch, Commentary, 190-201.“ Existem estudos detalhados de ambas as secções, realizados por autores de toda responsabilida­

de. Vamos mencionar as principais características sem pretender ser exaustivos, remetendo o leitor a biografia mais completa. D. C. Fredericks contrapõe-se à força destes argumentos para apoiar a datação tardia da língua de Qohélet (cf. Qoheleth’s, 30-36).

^Terminados em -on: yitron (Qoh 1,3; 2,11.13; 3,9; 5,8.15; 7,12; 10,10.11), ra’yon (Qoh 1,7; 2,22; 4,16); kishron (Qoh 2,21; 4,4; 5,10); heshbon (Qoh 7,25.27; 9,10), hesron (Qoh 1,15); silton (Qoh 8,4.8); zikron (Qoh 1,11; 2,16).

Terminados em -ut: re‘ut (Qoh 1,14), siklut (Qoh 1,17), siklut (Qoh 2,3), holelut (Qoh 10,13; [alter­nativa holelot (Qoh 1,17)], siplut (Qoh 10,18). Cf. S. J. du Plessis, Aspects, 164-168; L. Díez Merino, Tar gum, 184; A. Sáenz-Badillos, Historia, 130.

12habel (Qoh 1,2; etc.), kebar (Qoh 1,10; 2,16; 3,15; 4,2; 6,10; 9,6.7), z ’man (Qoh 3,1), qerab (Qoh 9,18), bbadehem (Qoh 9,1), kól-emunat-she (Qoh 5,15). Cf. S. J. du Plessis, Aspecto, 169-170; L. Díez Merino, Targum, 184.

13Historia, 131; cf. S. J. du Plessis, Aspects, 172s.14Cf. S. J. du Plessis, Aspects, 173; L. Díez Merino, Targum, 185.15Segundo Díez Merino: “O uso morfológico do pronome demonstrativo em Qoh corresponde à

forma aramaica zô, que se usa normalmente” (Targum, 186).16A. Sáenz-Badillos, Historia, 131; cf. S. J. du Plessis, Aspects, 175; L. Díez Merino, Targum, 186.17Aspects, 177; L. Díez Merino segue literalmente S. J. du Plessis em Targum, 187. Cf. A. Sáenz-

Badillos, Historia, 131, e todos os autores em geral.

Page 65: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— Quanto ao uso do verbo, também Qohélet parece com os escritores e poetas tardios, confundindo os verbos lamed-he com os lamed-alef.18

- Como conclusão e complemento do que se disse nessa secção, va­lham as palavras de A. Sáenz-Badillos: “Pode-se dizer que na língua de Qo se entremesclam deliberadamente o H[ebraico] B[íblico] e o H[ebraico] R[abínico], com possível predomínio deste último. Evitam-se os tempos verbais com uoaw consecutivo, e introduz-se o uso tardio do particípio na área temporal do presente (negando-o com ’en). Não é raro que se entremesclem usos de uma e outra etapa da língua, como no emprego do demonstrativo ou do relativo. As vezes se trata de dar uma tintura de HB a expressões típicas do HR... Outras vezes, é o HR que se impõe claramen­te: we-yoter she-hayah (12,9) não tem paralelos no HB”.19

2. É original o hebraico de Qohélet?

Como acabamos de ver, tantas são as particularidades do hebraico de Qohélet, que se pode considerar justificada a pergunta se a língua original de Qohélet era ou não o hebraico. Houve, com efeito, autores que deram resposta negativa.

2.1. A língua original de Qohélet é o aramaicoF. C. Burkitt perguntava-se em 1921: “Seria o Eclesiastes uma ver­

são?”,20 e respondia afirmativamente, “ainda que com muita reserva e dan­do-o não mais que hipótese plausível”, “de um original aramaico”.21 Desde 1945, houve autores que passaram das prudentes reservas à decidida de­fesa do aramaico como língua original de Qohélet: Três são os autores principais à frente dessa cruzada: F. Zimmermann, C. C. Torrey e H. L. Ginsberg.22No entanto, a maioria dos especialistas refutaram ou matiza­ram seus argumentos. De todos eles, o principal é, sem dúvida, R. Gordis, que desde o princípio estabeleceu uma luta dialética sem concessões.23

l8Cf. S. J. du Plessis, Aspects, 177-179; L. Diez Merino, Targum, 187s; A. Sáenz-Badillos, Historia, 131.19Historia, 131; cf. também Ch. Rabin, Hebrew, 1020s. Para a influência do aramaico em Qoh veja-

se o estudo exaustivo de M. Wagner, Die lexikalischen, 139ss; também J. Lévêque, La Sagesse, 654s (que seapóiaemO. Loretz, Qohélet, 22-29); K. Beyer, Die aramäischen Texte vom Toten Meer, Göttingen, 1984, p. 49 nota 1; J. Diez Merino, Targum, 64-65.

20JThSt 23 (1921) 22-26.21A. Femández, Es Eclesiastés, 45; cf. M. Dahood, Canaanite-Phoenieian, 31; R. Kroeber, Der Prediger,

43; D. Michel, 48s. Costuma-se resenhar como nota curiosa a sentença de D. S. Margoliouth (1903) de que o modelo de Qoh estava escrito numa língua indogermânica (cf. Jewish Encyclopedia, V 33 [citado por D. Michel, Qohélet, 48]. Naturalmente esta opinião estranha não teve nenhuma aceitação.

22Cf. F. Zimmermann, The Aramaic, 17-45; The question, 79-102; C. C. Tbrrey, The question, 151­160; H. L. Ginsberg, Studies, 1950. Veja-se também D. C, Fredericks, Qoheleth’s, 14-17.

23Veja-se também seu artigo Koheleth — Hebrew, 93-109, e o comentário Koheleth — the man, 60.374s.

Page 66: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Ultimamente M. V. Fox (1989) manifestou suas simpatias pelas teses de Zimmermann e Ginsberg, embora confesse que não as levou em conta na hora de comentar o texto,24 e L. Díez Merino permanece indeciso, pois es­creve: “Continua, portanto, debatido o problema da língua original do Qohélet bíblico”;25 que, todavia, não o era para A. Fernández que já em 1922 rejeitava a hipótese de F. C. Burkitt.262.2. A língua original de Qohélet é o hebraico

Esta é a sentença comumente mantida hoje em dia pelos autores mais críticos. Não se desconhecem os argumentos que esgrimem os defensores da originalidade do aramaico: fundamentalmente, a abundância de aramaísmos. Mas se existe unanimidade em afirmar que a língua original de Qohélet é o hebraico, a diversidade é quase absoluta nos matizes que cada autor acrescenta.27

Nesse aspecto, a sentença mais atraente e digna de se resenhar é a que defende M. Dahood: “O livro do Eclesiastes foi composto originalmen­te por um autor que o escreveu em hebraico, mas empregou a ortografia fenícia, cuja composição acusa forte influência literária cananeu-fenício. O termo ‘literária’ pretende incluir as fases morfológica, sintática e léxica do estilo do autor”.28 Por essa razão M. Dahood pressupõe que o autor resi­diu por longo tempo na Fenícia ou compôs o livro na Fenícia. Seria prova­velmente judeu do norte da Palestina, e não da Judéia.29 R. Gordis reco­nhece a valiosa contribuição de M. Dahood, uma vez que confirma que Qohélet foi escrito em hebraico e descobre paralelos entre o fenício e hebraico, mas “não descobrimos prova da influência específica do fenício na ortografia, morfologia e sintaxe de Qohélet. Todavia, no livro não há nenhuma alusão importante, histórica ou social, que sugira que Qohélet foi morador da Fenícia”.30

24Cf. M. V. Fox, Qohélet and his, 155.25Targum, 66.26Sua argumentaçã fundava-se em que “a língua aramaica era, nos tempos a que se refere o pro­

fessor Burkitt, geralmente conhecida e falada pelo povo. Um livro, que todo mundo podia ler, que interesse tinha de ser traduzido para o hebraico? Em favor de quem se fazia a tradução? Não do povo que não entendia ou entendia pouco a língua hebraica; tampouco dos sábios, que entendiam perfeita­mente e falavam como os demais o aramaico” (Es Eclesiatés, 45s). Um resumo de toda essa polêmica pode-se ver em D. Michel, Qohélet, 48-51, e uma avaliação dos argumentos de F. Zimmermann em Ch. L. Whitley, Kohelet, 106-110.

27A. Lauha, Kohelet, 7-8.2SCanaanite-Phoenician, 32.29Cf. Cannanite-Phoenician, 32.34; do mesmo M. Dahood, The Phoenician, 264s.279s. A tese de M.

Dahood só foi defendida seriamente por C. H. Gordon e F. W. Albright (cf. R. Kroeber, Der Prediger, 46; D. C. Fredericks, Qohéleth’s, 18-23). Ultimamente J. R. Davila reexaminou todos os argumentos es­grimidos por Dahood e, embora não adira à tese defendida por ele, defende que o hebraico de Qohélet procede do norte [da Palestina] e está influenciado pelo dialeto do norte (cf. Qohéleth).

30R. Gordis, Wízs Koheleth, 114. No mesmo sentido cf. também H. L. Ginsberg, Ecclesiastes, 354; Ch. F. Whitley, Kohelet, 111-118; D. Michel, Qohélet, 58.

Page 67: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2.3. O autor de Qohélet é bilingüeSe o autor de Qohélet escreve em hebraico, como defendemos, é mani­

festo que domina essa língua.31 Mas a este propósito surgem algumas per­guntas: O hebraico de Qohélet é ainda língua viva em seu tempo ou já era língua morta? Que relação tem essa língua com o hebraico bíblico e com o hebraico rabínico? Até que ponto conhecia também o autor de Qohélet o aramaico? Será que o falava? Era, portanto, bilingüe o autor de Qohélet?

Em parte já respondemos à pergunta no parágrafo 1; tentaremos pre­cisar ainda mais e responder a tudo o mais.

Constate-se, antes de tudo, um fato: aceita-se por todos os autores como provado que nos tempos de Qohélet o aramaico era língua conhecida e falada na Palestina com seus matizes locais. Mesmo os que defendem a todo custo que o hebraico era a língua comum na Judéia, não negam que também aí se falava o aramaico.32

O exílio babilónico vai ser de capital importância para a língua dos judeus, como claramente se reflete em Qohélet ao ver dos especialistas. Os judeus que vão ao desterro vêem-se obrigados a aprender e a falar o aramaico, ainda que como autodefesa conservem viva sua língua. Ciro impõe em seu império, como língua diplomática e franca, o aramaico,33 sinal evidente de que era a língua mais difundida e entendida em todo o Oriente médio e próximo. Não é aventurado crer que muitos judeus prova­velmente já o conheciam.

Por outro lado, os judeus que ficaram na Judéia, “gente pobre que não tinha nada” (Jr 39,10), “de classe baixa..., como vinhateiros e hortelães” (2Rs 25,12; cf. Jr 52,16)34e que até então falavam o hebraico, abandonados à sua sorte, sob o representante da Babilônia, sofreram a influência reli­giosa, social e cultural da região ocidental costeira, a província de Asdod.35 Logo se ressentiu a língua, e testemunho disso temos em Ne 13,23-24: “Por então também adverti que alguns judeus tinham-se casado com mu­lheres asdoditas, amonitas e moabitas. A metade de seus filhos falavam asdodeu ou outras línguas estrangeiras, mas pouco sabiam falar hebraico”.

31Ainda que com as limitações que alguns levantam, coirio, por exemplo, Schlatter: “Segundo Adolf Schlatter, a língua de Qohélet ‘prova por sua obscuridade e cunho pesado, que o autor já não fala hebraico, mas somente o lia e escrevia” (O. S. Rankin, The Book, 13a).

32M. H. Segai, falando do tempo depois do desterro babilónico, afirma que “os judeus nativos [de Jerusalém] converteram-se em bilingües, que usavam o aramaico e o hebraico mishnaico indiscrimina­damente” (Agrammar ofMishnaic Hebrew, Oxford, 1927, p. 14); um pouco antes disse: “Entendiam e usavam o aramaico por escrito, mas sõ ocasionalmente” (p. 13).

33Cf. Ch. Rabin, Hebrew, 1025s.^Outros da classe alta, que não foram deportados para a Babilônia, rebelaram-se contra Godolias

e seu séquito e, depois de assassiná-los, fugiram para o Egito (cf. 2Re 25,26), levando com eles tam­bém o profeta Jeremias (cf. Jr 43,4-7).

35Cf. F. Piotti, La lingua, 194.

Page 68: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

À volta dos exilados, já sob Ciro (538 a.C.), a Judéia é testemuha de novo fenômeno lingüístico, interpretado pelos autores de maneira muito diversa. Na realidade a situação dos judeus, quanto à língua falada e es­crita, durante o período da dominação persa, é bastante confusa. A sen­tença dominante entre os autores até há pouco tempo leva em conta o fato do bilingüismo na Judéia durante a época persa, sobretudo nas camadas média e alta da sociedade judaica. O que parece impossível é determinar qual das duas línguas, o hebraico ou o aramaico, era de fato a língua domi­nante.36

J. Steinmann escreveu em 1955: “O grande número de aramaísmos na língua de Qohélet prova que se trata de autor que usava o aramaico na vida ordinária e escreve numa língua morta”.37 R. Gordis matiza mais ao afirmar que “Qohélet foi escrito em hebraico, por um escritor que, como todos os seus contemporâneos, conhecia o aramaico e provavelmente o usava livremente na vida diária”.38 Ele mesmo opina que para Qohélet o “medium literário era o hebraico do segundo Templo da Palestina numa forma que começava a aproximar-se do hebraico da Mishná”.39AR. Gordis seguiu durante cerca de dois decênios a maioria dos autores.40 Ultima­mente se manifestou neste sentido Kl. Beyer: “Não se falou mais o hebraico na Palestina desde 400 a.C.”41

No entanto, entre os especialistas surgiu nova corrente interpre- tativa. Os judeus que voltam à pátria falam em hebraico mais puro que os residentes na Judéia.42 Na prática surge uma língua hebraica popu­lar, o hebraico coloquial, que cada vez mais se vai afastando do hebraico pré-exílico.43

36É preciso levar em conta também o equívoco que se produz ao tratar do hebraico que se fala, pois língua falada não é o mesmo que língua viva. Pode-se dar o caso de se falar uma língua que não é mais viva, como ocorria ou pode ocorrer com o latim a partir da Idade Média.

31Ainsi, 13.3SKoheleth — the man, 61.3<3Ibidem, p. 62.40O. S. Rankin afirma: “A opinião, segundo a qual o livro foi escrito em hebraico por um escritor

que usava livremente o aramaico na vida diária, corresponde à situação literária com que se nos apresenta o Eclesiastes” {The Book, 14a). K. Galling por sua vez escreve: “Q provavelmente viveu no começo do séc. III [a.C.]. Por essa época a língua corrente na Palestina não era o hebraico, mas o aramaico, pelo que não se pode censurar a tese de D. S. Margoliouth [Exp. VII.5 (1908), p. 120] de que ‘pensou em aramaico e escreveu em hebraico’” (Der Prediger, 74s); cf. também H. W Hertzberg, Der Prediger, 28s.

ilDie aramäischen Texte vom Toten Meer, Göttingen, 1984, 58. O mesmo dissera um pouco antes: “O hebraico do norte foi falado na Palestina cerca do ano 500 a.C., o hebraico do sul aproximadamente até 400 a.C.” (p. 49 nota 1).

42F. Piotti, La lingua, 194s: Osservazioni (1977), 56.43A. Sáenz-Badillos reflete assim esta última sentença: “A comunidade judaica da época persa

passa por situação de multilingüismo, conseqüência das circunstâncias históricas e políticas em que vive desde o edito de Ciro até a conquista de Alexandre Magno (538-332 a.C.). Generaliza-se o uso do aramaico para comunicação com o exterior e para certos gêneros literários, ainda que se utilize ao

Page 69: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Quanto a essa “língua hebraica coloquial”, pouco sabemos dela. Al­guns autores a chamam já desde seu início de “hebraico mishnaico”. Assim M. H. Segai diz; em sua Gramática: “Longe de ser jargão escolar artificial, o hebraico mishnaico é essencialmente dialeto popular e coloquial”.44

Adverte-nos F. Piotti que “a língua de Qohélet parece-nos substan­cialmente o hebraico, mas hebraico ‘sui generis’, que sofreu influência norte- ocidental e, em menor medida, talvez igual, influência aramaica”.45 Em Qohélet temos, pois, esplêndido exemplo do hebraico popular falado em fins do século III e começos do século II a.C.46

XI. DATAE LUGAR DE COMPOSIÇÃO DE QOHÉLET

Antes de apresentar o complicado panorama das sentenças sobre o tempo e lugar de composição de Qohélet, exponho meu parecer a esse res­peito. Minha opinião apóia-se com toda lógica no que dissemos sobre o autor e a língua de Qohélet, e está muito conforme com o ambiente socio­cultural que implicam as reflexões de Qohélet. Segundo isso, o mais pro­vável é que Qohélet tenha sido escrito durante a segunda metade do sécu­lo III a.C., muito próximo ao ano 200. O lugar, parece que não pode ser outro senão Jerusalém.

Vejamos agora em linhas gerais as principais sentenças sobre data e lugar de composição de Qohélet.

mesmo tempo uma forma tardia do hebraico bíblico (HBT) para não poucas composições literárias que continuam o estilo dos antigos livros sagrados, e muito provavelmente no sul pelo menos, o povo continua falando uma língua hebraica coloquial, que, quando séculos mais tarde se puser por escrito, receberá o nome de hebraico rabínico (HR)” (Historia, 121-122).

44A grammar, 6. L. Moraldi escreve a propósito do Rolo de cobre (3Q15): “Note-se que o texto está na língua hebraica popular, falada pelos hebraicos da Judéia e do vale do Jordão praticamente desde a época persa até a segunda guerra judaica (132-135 d.C.), ou seja, no chamado hebraico mishnaico, cujos inícios se atestam por livros bíblicos (como o Eclesiates ou Qohélet, o Cântico dos cânticos, as Lamentações, o Eclesiástico ou o Sirácida) e o termo pela Mishná e pelos escritos talmúdicos” (I manoscriti di Qumran, Turim, 1971, p. 709). A. Díez Macho também o afirma (cf. La lengua hablada por Jesucristo, Madri, 1976, p. 61). No mesmo sentido manifestou-se ultimamente M. O. Wise (cf. A Calque, 250, nota 8). -

i5La lingua, 188; mas determina a seguir esse hebraico ‘sui generis’, identificando-o com a língua que se fala (cf. La lingua, 193; ver também p. 195). F. Piotti volta ao mesmo tema em 1977 (cf. Osservazioni [1977],56); cf. também Osservazioni (1978) 169 e D. C. Fredericks, Qoheleth’s, 42-45.

46Esse parecer é confirmado por A. Sáenz-Badillos: “Ao longo de meio milênio, emprega-se o hebraico bíblico tardio [HBT] para os últimos livros que passarão a fazer parte do cânon bíblico, para a maioria dos deuterocanônicos, algumas obras apocalípticas e pseuepigráficas, e para os escritos de Qumrã... Mas há deficiências muito sensíveis na língua e no estilo em que se redigem os diversos livros. En­quanto em alguns a intenção de reproduzir fielmente a língua bíblica é predominante, em outros podemos descobrir pegada sensível da língua hebraica coloquial que mais tarde se chamará hebraico rabínico [HR]. Na maioria das obras, porém, o peso específico do aramaico constitui o traço mais destacado” (Historia, 122-123).

Page 70: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. Data de composição de Qohélet

Recordamos de novo a célebre sentença de F. Delitzsch: “Se o livro de Qohélet fosse de origem antiga salomônica, não existiria então história da língua hebraica”.1 Este é o ponto de partida de nosso capítulo.

1.1. Qohélet foi escrito antes do séc. III a. C.Temos em conta principalmente o período da dominação persa (539­

333 a.C.) e o tempo imeditamente posterior ou começo da época grega, ou seja, de 333 a 300 a.C.2

F. Delitzsch fala indeterminadamente.3 Pelo fim do período persa es­tabelece C. Siegfried a composição de Qohélet.4 Também o faz R. B. Y. Scott, mas já duvida.5

No começo da época grega e ainda no século IV coloca-a J. Ellul.6 Por fim, alguns vacilam entre o final do século IV ou os inícios do século III a.C.71.2. Qohélet foi escrito depois do século III a.C.

Antes de tudo, poderíamos aproximar-nos ainda mais do limite infe­rior, da data-topo após a qual não pode ter sido escrito Qohélet? Contamos em primeiro lugar com um ponto de referência certo, a saber, o encontro dos fragmentos de Qohélet na gruta 4 de Qumrã e datados pelo ano de 150 a.C.8

1Commentary, 190. Aderimos plenamente ao julzo de C. Siegfried: “Razoavemente não se pode duvidar que o livro de Qohélet seja pós-exüico”. A. Barucq parece eco de C. Siegfried: “A composição pós-exílica da obra não oferece dúvida para ninguém” (Ecclésiaste, 11 = Eclesiastés, 15).

2Em todo caso convém chamar a atenção para a opinião de D. C. Fredericks. Ultimamente voltou a examinar os argumentos de tipo lingüístico que se deram em favor da datação pós-exílica de Qoh e chegou à conclusão de que “a língua de Qohélet não se deveria datar depois do período exílico, e que nenhuma acumulação de argumentos lingüísticos vai contra uma data pré-exílica” (QohéletVs, 262; cf. especialmente pp. 255-268). Na p. 263 insinua como data de composição de Qoh os séculos VIII e VII a.C.

3"Pode-se considerar como fora de qualquer dúvida que [o Eclesisastes] foi escrito sob a dominação persa” (Commentary, 214). R. K. Harrison inclina-se por meados do século V a.C., “em torno dos tempos de Malaquias” (Introduction, 1077); reconhece, porém, que a grande maioria dos modernos especialistas indicaram para a obra uma data entre 280 e 200 a.C.” Não lhe desagrada, todavia, a opinião de H. H. Wright, “que indicou para o Eclesiastes o período entre 444 e 328 a.C.” (Ibidem).

4Cf. Prediger, 13, e cita outros autores que são, a seu ver, da mesma opinião: F. W. C. Umbreit, H. G. A. Ewald, Ch. D. Ginsburg, F. Delitzsch, W. Volck, T. K. Cheyne, H. L. Strack.

5Suas palavras são: “Deve-se datar Qohélet pelos fins da dominação persa ou pelo começo do período grego, ou seja, no século IV a.C. ou no começo do século III” (Ecclesiastes, 198).

6"Com certa preferência pelo período da conquista de Alexandre, ou seja, mais ou menos em tomo do ano de 320 [a.C.]” (La razón, 23).

7Cf. R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 198; L. Derousseaux, La crainte, 338; S. Holm-Nielsen opina que “é razoável crer que Qohélet foi um mestre de sabedoria em Jerusalém em fins do século IV e começos do século III a.C.” (The Book, 45); O. Loretz confessa: “A maioria dos investigadores decidem-se pelo século III [a.C.], embora se deva levar em conta que não se exclui data mais antiga” (Gotteswort, 114). A essa última sentença junta-se J. Lévêque (cf. La Sagesse, 655).

sCf. J. Muilenberg, Qohélet Scroll. G. E. Wright constata este fato: “A presença de um rolo deste livro em Qumran, datada cerca de meados do século II [a.C.]...” (Biblical Archaeology, Londres, 1962,

Page 71: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A maioria dos autores reduz ainda mais a faixa de tempo disponível, ao afirmar que Qohélet foi escrito antes de Eclesiástico (cerca de 180-190 a.C.), visto que Jesus Ben Sira faz uso dele.9 Alguns, porém, não duvidam em afirmar que Qohélet é mais recente que Eclo.10Por fim, alguns confir­mam a data tardia de Qohélet ao descobrir no próprio livro de Qohélet umas poucas alusões a situações históricas determinadas, ainda que não estejam muito convencidos da força probativa desse argumento.11

1.3. Qohélet foi escrito entre os séculos III e II a.C.Os autores sabem que é difícil provar qualquer sentença sobre a

datação de Qohélet; uns arriscam mais que outros. Há quem não quer arriscar demais e fixa a data com margem bastante ampla, como F. Asensio: entre 300 e 150 a.C.,12ou R. H. Pfeiffer: entre 250 e 150 a.C.13 Outros se atre­vem a mais apostando no final do século III e/ou começo do século II d.C.14

1.4. Qohélet foi escrito no século III a.C.Esta é a opinião da maioria dos autores desde há bastante tempo.15

Umas vezes se considera que “é muito provável que a obra seja do século III [a.C.]”;16 outras se afirma genericamente: “No século III a.C. surge o livro de Qohélet: o Eclesiastes”.17 O século III a.C. é efetivamente marco

p. 219a = Arqueologia bíblica, Madri, 1975, p. 316b). A partir deste achado, os autores descartam automaticamente as hipóteses de datação de Qoh posteriores à metade do século II a.C.

9Cf., entre outros, G. A. Barton, A criticai, 53-56; R. Kroeber, Der Prediger, 64-66; M. Hengel, Judentum, 213; A. Barucq, Qohéleth, 620; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 49; N. Lohfink, Kokelet, 7. Note-se que A. Barucq em seu Comentário baixa a data de composição até 175 a.C., mas acrescenta: “Mesmo admitindo que Qohélet preceda a Ben Sira, são possíveis essas datas” (Ecclésiaste, 13 = Eclesiastés, 16).

10O mais terminante é N. Peters que escreve (em 1903): “Certamente é preciso pôr o Eclesiastes depois do Eclesiástico (cerca de 190-180 a.C.), visto que este o utiliza” (Ekklesiastes, 150), e situa-o entre 145 e 130 a.C. Uma refutação da tese de N. Peters pode ver-se em A. Grootaert, “UEcclésistique est-il anterieur à l’Ecclésiaste?”, RB 2 (1905) 67-73. Recentemente Ch. F. Whitley desempoou a sen­tença da dependência de Qohélet com relação ao Eclesiástico (cf. Kohelet, 122-131, especialmente p. 130); por isso data Qoh entre 152 e 145 a.C. (cf. p. 148). Rejeitaram seus argumentos N. Lohfink em BZ 25 (1981) 114s e D. C. Fredericks em Qohéleth’s, 111-115.

nCf. especialmente L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 59s; R. Gordis, Koheleth — the man, 65s; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 49-52; A. Barucq, Qohéleth, 620.

12Cf. In libros, 266.13Cf. The peculiar, 100.l4G. A. Barton afirma: “O final do século III a.C. e começo do século II constitui contexto conve­

niente para uma obra como o Eclesiastes” (A criticai, 62). Muito parecida é a opinião de H. W. Hertzberg: “Qoh escreveu seu livro pelos fins do século III; talvez algo em torno dos primeiros anos do século II” (Der Prediger, 52). Cf. assim mesmo J. Lévêque, La sagesse, 654; N. Lohfink, melek, 535; Die Wiederkehr, 125. Alguns até apostam pelo ano 200 a.C. (cf. A. Condamin, Études, 376; V. Zapletal, Das Buch, 61; L. Bigot, Ecclésiaste, 2009; D. Buzy, VEcclésiaste, 200; W. W. Tarn - G. T. Griffith, Hellenistic, 230).

15Constata-o O. Loretz: “A maioria dos investigadores decide-se pelo século III [a.C.]” (Gotteswort, 114). Ver também H. P. Müller, Neige, 254; Bo Isaksson, Studies, 42 nota 32.

16J. Pedersen, Scepticisme, 331; cf. H. Hüpfl - S. Bovo, Introductio, 394; M. Hengel, Judentum, 213; W. J. Fuerst, Ecclesiastes, 97; A. Bonora, Qohéleth, 47, também pp. 9s; L. Rosso-Ubligi, Qohélet, 217s.

17R. Michaud, Qohélet, 12; cf. R. Pautrel, VEcclésiaste, 7; O. Kaiser, Judentum, 135.

Page 72: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

bastante amplo em que se satisfazem as exigências lingüísticas e históri­cas que exigem os especialistas para o Eclesiastes.18

Para o começo do século III a.C. como alternativa de fins do século IV a.C. o afirmam, por exemplo, R. B. Y. Scott e S. Holm-Nielsen.19 Muitos autores preferem os meados do século III a.C.20 E. Podechard admitia em 1912 “que o Eclesiastes foi composto... mais provavelmente na segunda metade do século III”.21 Desde ele até agora se sucedem os autores que corroboram a mesma sentença.22 Outros reduzem ainda mais os limites,23 ou colocam-no em fins do século III.24 Como manifestei no começo desta secção, prefiro uma data que ronde o ano de 200 a.C.

2. Lugar de composição de Qohélet

Já nos manifestamos a favor da Palestina, e, dentro dela, a favor de Jerusalém; mas nem todos os autores pensam da mesma maneira.2.1. Qohélet foi escrito fora da Palestina

Três regiões fora da Palestina foram propostas para a composição de Qohélet: Babilônia, Fenícia e Egito.

C. H. Gordon defendeu a candidatura da Babilônia sem êxito.25 Quan­to à sorte corrida por M. Dahood, defensor da hipótese fenícia, foi seme­lhante à de C. H. Gordon.26 Somente W. F. Albright defende origem fenícia

18Cf. H. L. Ginsberg, The structure, 148; A. M. Figueras, Eclesiastés, 1055; G. E. Wright, Biblical Archaeology, Londres, 1962 p. 215a = Arqueologia bíblica, Madri, 1975, p. 311a; D. Lys, VEcclésiaste, 60; L. Díez Merino, Targum, 64.

19Cf. a nota 7; também A. Bonora, Qohélet, 9-10.20R. Gordis afirmava em 1952: “Não se pode datar Qohélet antes do século terceiro. Todos os

indícios apontam que foi escrito em torno de 275-250 a.C.” (Koheleth Hebrew, 109); cf. Koheleth — the man, 62.68; K. Galling, Predigerbuch, 513; R. Braun, Kohelet, 38; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 46; A. Lauha, Kohelet, 3. O. Kaiser introduz pequena variante: “Em torno do segundo terço do século III a.C. atuou na Palestina e provavelmente em Jerusalém um sábio “ (Determination, 251).

2]L’Ecclésiast,e, 122.22Cf. E. Sellin - G. Fohrer, Einleitung, 370; A. Sáenz-Badillos, Historia, 130. Afirmam o mesmo,

mas indicando os limites entre 250 e 200 a.C., O. S. Rankin, TheBook, 14a; A. Barucq, Qohéleth, 620; J. A. Loader, Polar, 127; D. Michel, Qohélet, 14.

23M. Schubert: “No começo da segunda metade do século III a.C.” (Schõpfungstheologie, 70; R. Kroeber: “Em torno de 250-220 a.C.” (Der Prediger, 8); J. L. Cremshaw: “Entre 225 e 250 a.C.” (Ecclesiastes, 50); A.L.Williams, por volta do ano 225 a.C. (Ecclesiastes, XLVIII).

24Afirmam-no, em parte pelo menos, os autores já resenhados em 1.3; também A. Vaccari, Institutiones, 82; S. de Ausejo, El género, 371; A. Bea,Liber, VI; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 62 e G. Pérez Rodríguez, Eclesiastés, 860.

25Cf. “North Israelite influence in postexilic Hebrew”, IsrExpU 5 (1955) 87. K. Galling chama essa hipótese de “desacertada” e absurda (cf. Der Prediger, 76; ver também A. Lauha, Kohelet, 4; O. Loretz, Gottesuiort, 114, que também rejeitam a proposta de Gordon.

26M. Dahood defendeu que Qohélet foi escrito em ambiente fenício. Ao mesmo tempo que refuta H. W. Hertzberg, escreve: “O presente escritor [M. Dahood] admite que Qohélet escreveu em hebraico, mas prefere atribuir suas peculiaridades estilísticas mais a seu meio lingüístico (provavelmente uma cidade-estado fenícia) que a suas idiosincrasias” (The Phoenician, 264s).

Page 73: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

para Qohélet.27 A terceira proposta, o Egito, teve eco maior e defendeu-se com maior convicção.28 A maioria, porém, preferiu a Palestina.29

2.2. Qohélet foi escrito na PalestinaExcluídas todas as propostas anteriores, só resta a Palestina como lugar

de origem de Qohélet. Essa é a opinião mais generalizada entre os comentadores. Como amostra dessa generalidade recordamos em especial F. Delitzsch, W. Zimmerli. E. Sellin - G. Fohrer e, sobretudo, H. W. Hertzberg.302.3. Qohélet foi escrito em Jerusalém

Essa secção está unida estreitamente à anterior, pois, se se defende que a Palestina foi a região em que se compôs Qohélet, parece que não se pode pensar em lugar mais apropriado para isso que Jerusalém.31 Assim se deduz de tudo o que se disse anteriormente, como justamente o recorda R. Gordis: “Todos os indícios demonstram que Qohélet foi escrito por um sábio judeu, que viveu em Jerusalém”.32

XII. FONTES DE INSPIRAÇÃO DE QOHÉLET

Vamos tratar neste capítulo das influências literárias que se podem descobrir em Qohélet. O Eclesiastes, como toda obra literária, nasce em meio determinado e seu autor é pessoa exposta às influências ambientais

27Pois retém que “o autor deste livro [Qoh] era um judeu influente que viveu na planície costeira, provavelmente na Fenícia do sul, em tomo do ano 300 a.C. e cujos aforismos, transmitidos oralmente, foram recopilados depois de sua morte e postos por escrito na Fenícia” (Some Canaanite, 15). Sobre essa hipótese escreve duramente S. Holm-Nielsen: “Parece-me umas dessas invenções inverossímeis, feitas para explicar — e assim eliminar — a natureza sofisticada deste escrito [Qoh]” (The Book, 45); e das duas propostas juntas, Fenícia e Babilônia, opina A. Lauha: “As tentativas de demonstrar por meros recursos lingüísticos que Qohélet atuara na Fenícia (M. Dahood) ou na Babilônia (C. H. Gordon) têm muito pouca força probatória” (Kohelet, 4).

28P. Volz argumentava dessa maneira: “Os dois territórios que sobretudo vêm em questão são a Palestina e o Egito, e a escolha oscila entre Jerusalém e Alexandria. A amplitude de horizonte e a atmosfera de todo o livrinho permitem supor que o autor vivia numa grande cidade, antes que no estrei­to e sóbrio ambiente burguês de Jerusalém; por isso, decidimo-nos por Alexandria, a capital dos Ptolomeus” (Hiob und Weisheit, 233). S. Holm-Nielsen escreve a esse propósito: “Alexandria não é, afinal, má solu­ção. Onde melhor se poderia pensar para a pregação de Qohélet que na Alexandria no mundo do século IV ou da entrada do século III?” (The Book, 45; cf. também P. Humbert, Recherches, 107-124).

29Assim O. Loretz, apesar de sua indecisão, parece que vê algo claro, pois afirma: “É desconhecido o lugar de composição de Qohélet. Com segurança podem-se excluir Alexandria no Egito e Babilônia” CGotteswort, 114).

30Cf. F. Delitzsch, Commentary, 216; W. Zimmerli, Das Buch, 128; E. Sellin - G. Foher, Einleitung, 370; H. W. Hertzberg, Palästinische Bezüge im Buche Kohelet, Der Prediger, 44s; também W. W. Tarn- G. T. Griffith, Hellenistic, 230.

31Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 63; O. Kaiser, Determination, 251.32Qohéleth and Qumran, 410; assim também em Koheleth-Hebrew, 109; Kocheleth — the man, 68;

cf. também, entre outros muitos, K. Galling, Prediger, col. 1829; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 45; R. Kroeber, Der Prediger, 8-9; R. Braun, Kohelet, 38; A. Bonora, Qohélet, 47.

Page 74: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

segundo seu grau de abertura, maior ou menor, às correntes de pensa­mento de seu tempo.

E preciso distinguir bem entre fonte literária direta, determinada ou determinável, em que se inspira o autor, e influência indireta ou difusa. No primeiro caso, trata-se de citações explícitas; no segundo, das influên­cias ambientais. Em Qohélet não se dá citação explícita,1 razão pela qual se deverá recorrer à segunda hipótese. Na maioria dos casos, a única coisa que podemos descobrir são lugares paralelos, ou seja, textos que surgiram independentemente uns dos outros em meios próximos ou distantes no tempo e no espaço.

1. Abertura indiscutível de Qohélet

Qohélet é livro de sabedoria, o gênero mais aberto a toda espécie de influências literárias. O autor de Qohélet é homem culto, “um escritor de surpreendente originalidade em sua forma e conteúdos”.2 Tinha necessa­riamente que estar a par dos ares culturais que sopravam na Palestina de seu tempo. Quanto à abertura de seu espírito a essas correntes e suas preferências, a opinião dos especialistas é como rosa dos ventos, apontan­do em todas as direções. Há os que consideram Qohélet tipo do verdadeiro sábio, aberto a todas as correntes, sem perder contudo sua identidade israelita;3 outros crêem, no entanto, que a influência maciça não-israelita vai em detrimento de seu espírito israelita.4

Desde fins do século passado, os autores nos acostumaram a seguir o movimeno do pêndulo quanto às influências externas sobre Qohélet.5

Em nosso estudo, trataremos primeiro de possíveis influências literá­rias não-bíblicas; depois, das relações existentes entre Qohélet e o Antigo Testamento.

'Sobre o discutido problema das citações em Qoh podem-se consultar os seguintes estudos: R. Gordis, Quotations (1949); R. F. Johnson, A form-critical (1973); R. N. Whybray, The identification (1981) e especialmente D. Michel, Qohelet (1988), 27-33.

2R. Gordis, Koheleth — the man, 43.3A. Bonora escreve: “Nos livros sapienciais bíblicos, como em Qohélet, confluem a sabedoria

popular e a reflexão culta do ambiente oriental babilónico, egípcio, cananeu e grego. O sábio estava aberto para acolher os frutos de uma sabedoria internacional que circulava no mundo antigo” (Qohelet, 50).

4F. N. Jasper diz, por exemplo: “O Pregador faz parte de Israel, mas seu ponto de vista e expressão têm mais em comum com pensadores de outras tradições bem assentadas na cultura contemporânea” (Eeelesiastes, 262).

bisões de conjunto de todas essas opiniões podemos encontrar em O. S. Rankin, The Book, 14-17; R. Kroeber, Der Prediger, 47-59; H. Duesberg - 1. Fransen, Les scribes, 578-585; R. Braun, Kohelet, 1­13.38-43.167-171; A. Barucq, Qohéleth, 620-633; Ch. F. Whitley, Koheleth, 52-65.

Page 75: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Qohélet e fontes não-bíblicas

Comparemos Qohélet com as três grandes culturas ou correntes cul­turais: a helenística, a mesopotâmica e a egípcia.2.1. Qohélet e o helenismo

Muitos afirmaram que Qohélet bebeu diretamente das fontes gregas e do helenismo. Esta foi a tendência dominante em fins do século passado e começos do nosso, mas agora carece de interesse.6 H. Ranston confronta a literatura antiga grega com Qohélet, em particular Hesíodo e Teógnis, e admite certas influências.7 Já em nossos tempos, R. Braun empreende estu­do comparativo de fontes e textos, como não se fizera até o momento.8 Des­cobre em conseqüência relação estreita entre Qohélet e a filosofia popular helenística.9 E tudo isso sem deixar de ser judeu autêntico, conhecedor da doutrina sapiencial tradicional, ainda que sua atitude para com ela fosse muito crítica.10 O último autor que tratou extensamente da influência grega em Qohélet foi Ch. F. Whitley, cuja opinião em nenhum momento é equívo­ca: “Admitimos certamente que há influência grega em Qohélet”.11 Ele reco­lhe os frutos dos autores que o precederam e confirma influências prove­nientes do âmbito filosófico e do campo meramente literário.12

Mas surgiu logo uma corrente de pensamento entre os exegetas que se opôs forte e tenazmente à anterior, defendendo orgulhosamente a abso­luta independência de Qohélet com respeito ao pensamento grego.13 P. Kleinert pode considerar-se como cabeça de fila dessa corrente;14 V. Zapletal,

6Para todo o tema do helenismo e sua influência em Qoh, veja-se M. Hengel, Judentum, 210-237; referências também em D. C. Fredericks, Qoheleth’s, 2s.

7Koheleth, 169. S. Holm-Nielsen fala da possível influência de Heráclito e Teógnis (cf. The Book, 45). Y. Amir estudou em concreto a influência de um texto particular de Menandro em Qoh (cf. Doch ein grieschischer e D. Michel, Qohelet, 65).

8Koheleth und die frühhelenistische Popularphilophie, Berlim, 1973.9"E preciso deduzir, portanto, que Kohélet estava familiarizado com a reflexão grega de seu tem­

po, e mais, que aceitou seu pensamento e suas doutrinas formulando-as em hebraico em seu escrito doutrinal” (Kohelet, 170).

10Cf. Kohelet, 171-173. R. Braun opõe-se abertamente a uma corrente, muito em voga alguns anos atrás, segundo a qual a influência do pensamento filosófico grego em Qoh foi desastroso. Expoente dessa maneira de pensar é J. Pedersen, que escreve: “Se perguntarmos... que influência teve a filoso­fia grega sobre o livro do Eclesiastes, poderemos responder.í. que essa influência foi puramente nega­tiva. Em nenhum ponto pôde o Eclesiastes apropriar-se do espírito grego; mas é muito provável que a filosofia grega tenha agido como elemento dissolvente na cultura hereditária de Israel... Dizer que Qohélet é judeu, cuja fé sossobrou sob a influência da filosofia grega, parece bastante bem fundamen­tado” (Scepticisme, 362-363).

nKohelet, 162.12Estuda as influências do epicurismo (pp. 165-170), do estoicismo (pp. 170s), de Hesíodo (pp. 171­

175), de Homero (p. 173), de Sófocles (pp. 173s), de Píndaro, de Menandro e de Eurípedes (p. 174).13Cf. também referências em D. C. Fredericks, Qoheleth’s, 4.14Em 1883 escreve um artigo muito sério contra E. Pfleiderer, em que nega que Qoh tenha sofrido

influência grega, especialmente da parte de Heráclito (cf. “Sind im Buche Kohelet ausserhebrãische Einflüsse anzuerkennen?”, ThStKr 56 [1883] 761-782).

Page 76: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

por sua vez, nega as hipotéticas influências sobre Qohélet da filosofia gre­ga em geral e mais particularmente de Aristóteles, dos estóicos e dos epicuristas;15 G. A. Barton, P. Humbert e O. Loretz devem-se também in­cluir, por diferentes motivos, nesta secção.16

Julgamos, porém, mais sensata a atitude que sabe aglutinar tendên­cias complementares. Constatamos, antes de tudo, uma realidade: o avanço incomparável do helenismo a partir de fins do século IV a.C.17“0 espírito da época”, que se manifesta nas formas de pensar e viver, estava impreg­nado pelo que chamamos de helenismo.18 Este foi se introduzindo paulati­namente também na Palestina de Qohélet.19 Pouco tempo depois, acomo­dava-se a alta sociedade de Jerusalém aos novos ares e à moda, como nos descreve 2Mc 4,13-15: “Verificou-se, deste modo, tal ardor do helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros, por causa da exorbitante per­versidade de Jasão, esse ímpio e de modo algum sumo sacerdote, que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar! Antes, desprezando o Santuário e descuidando-se dos sacrifícios, corriam a tomar parte na iníqua distribuição de óleo no estádio, após o sinal do disco. Assim, não davam mais valor algum às honras pátrias, enquanto consideravam sumas as glórias helénicas”.20

A influência da cultura ambiental helenística é, portanto, fato que, pelo que tudo indica, não podemos negar razoavelmente.21 Reconhece-se

15Seu juízo global é o seguinte: “Aduzimos os principais paralelos e opinamos que, isoladamente considerados, não nos forçam a reconhecer dependência direta de Kohélet da filosofia grega. Para os respectivos ensinamentos de Kohélet encontram-se lugares no AT que contêm algo semelhante ou, em suma, eles são reflexões comuns humanas” (Die vermeintliche, 137s; Das Buch, 54), ou, como disse no final: “O que eles consideram grego, pode ser herança hebraica” (a.c., 139; Das Buch, 55. Cf. L. Bigot, Ecclésiaste, 2019-2021; J. M. Rodríguez Ochoa, Estúdio, 66; C. C. Forman, The pessimism, 336-338.

16G. A. Barton admite apenas influência bíblica em Qoh (cf. A criticai, 43; P. Humbert põe em interrogação qualquer influência do helenismo sobre Qoh (cf. Recherches, 124); O. Loretz, o mais radical dos três: não se descobre em Qoh influência grega de qualquer espécie (cf. Qohelet, 56).

l7Por isso é muito normal encontrar afirmações como a de W. W. Tam e G. T. Griffith: “Percebe-se que em seu tempo respirou ele [Qohélet] em alguma parte ar grego” (Hellenistic, 230). Ilustram os autores pouco depois o que querem dizer com essas palavras: “Assim como hoje, também havia um conjunto de pensamentos no ar, chame-se espírito da época ou como se queira, que atingia ins- conscientemente as pessoas” (o. c., 231).

18"Entendemos genericamente por helenismo certa forma de viver de acordo com o estilo grego que se difundiu pelos territórios conquistados por Alexandre Magno. Mas podemos matizar ainda mais. Em sentido mais restrito, entendem-se por helenismo o espírito e as idéias filosóficas, religiosas, morais, so­ciais e culturais que se estendem de oriente a ocidente como ar inovador a partir da morte de Alexandre Magno em 323 a.C. até o advento de Augusto em 30 a. C. Em sentido mais amplo, identifica-se o helenismo com o movimento colonizador dos gregos tanto no campo econômico e político como na esfera social e cultural desde o século VIII a.C. até o século II da era cristã” (J. Vílchez, Sábiduría, Estella, 1990, 501).

19"Com efeito, Qohélet conhece, segundo opinião comum, se não os sistemas filosóficos gregos, pelo menos a mentalidade difusa e maneiras de falar. A civilização helenística conquistava nessa época o mundo e, sem dúvida, no mesmo tempo de Qohélet, exerceram os Lágidas na Palestina pressão cultu­ral muito forte” (J. Derousseaux, La creinte, 339).

20Confirma-o também M. Stern (cf. Estrutura social, 235-236).21A. Allgeier já o dizia em 1925: “Não se trata de se o autor depende da filosofia grega, como se

tivesse tomado dela suas idéias. Poder-se-ia discutir nesse sentido a influência com bons argumentos.

Page 77: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cada vez mais a dificuldade de descobrir em Qohélet influência direta de determinado texto, não, porém, a influência indireta.22

E essa a nossa conclusão. Admitimos sem reparos certa influência do helenismo ambiental em Qohélet, de tal sorte que se realiza nele verda­deira síntese do espírito judaico, em que vive imerso por nascimento e educação, e do helenismo que começa a respirar-se na Jerusalém de sua época.232.2. Qohélet e a literatura mesopotâmica

Israel esteve desde sempre em contato direto com a cultura meso­potâmica. Por essa razão escrevi em outro lugar: “A influência da Mesopotâmia e, em geral, do oriente geográfico em Israel: em todas as suas instituições, e em particular no Antigo Testamento, foi quase um como que dogma cultural. Dificilmente se poderá encontrar um só autor que não acei­te de bom grado semelhante influência. Falando em concreto da literatura sapiencial do Antigo Testamento, é fato irrefutável que se afirma a influên­cia recebida da literatura de tipo sapiencial mesopotâmico”.24

O problema está de novo em determinar o grau dessa influência li­terária em Qohélet. E de tal magnitude que se pode dizer que viria a solução total do Oriente, da Mesopotâmia? O autor, que defendeu com toda seriedade que Qohélet depende exclusivamente da literatura mesopotâmica, foi O. Loretz, depois de ter que negar qualquer influên­cia grega e egípcia.25 As teses de O. Loretz encontraram, porém, forte rejeição não só da parte dos defensores das prováveis influências egípcia

Mas ninguém pode fechar-se completamente em seu ambiente” (Das Buch, 4). Por isso mesmo, R. Gordis, nada suspeito neste aspecto, afirma com toda naturalidade: “Não é nada raro descobrir seme­lhanças nas idéias entre nosso autor e escritores gnômicos gregos como Teógnis de Megara (século VI a.C.) ou o consideravelmente posterior Marco Aurélio (t 189 d.C.)” (Koheleth — the man, 56).

22Já observara O. S. Rankin que “A tendência da crítica moderna é sustentar que não se provou em nenhum caso que o Eclesiastes dependa de um escrito grego em particular, mas que o livro judaico parece impregnado do espírito popular grego” (The Book, 14b); opinião que se pode confirmar com testemunho de muitos autores. Assim H. W. Hertzberg admite afinidades com e não dependência das principais correntes filosóficas helenísticas (cf. Der Prediger, 58-59). Vão-se manifestando, com pe­quenas variantes, outros autores.

23Tem razão J. de Sevignac, quando diz que “se é verdade que o cristianismo apresenta-se histori­camente como síntese de judaísmo e helenismo, importa, no entanto, observar que essa síntese já se iniciara na literatura sapiencial de Israel e, de modo eminente, em Qohélet” (La sagesse, 318); parece, todavia, que exagera um pouco ao dizer: “Passagens deste livro bíblico são tão gregas que se compreen­deriam melhor em grego que em hebraico, particularmente o ensinamento dos 15 primeiros versículos do capítulo III” (Ibidem); cf. também R. Michaud, Qohelet, 121.

24J. Vílchez, Historia de la investigación, 43.25Cf. Gotteswort, 115s. Os textos mesopotâmicos que teriam influído em Qoh seriam Ludlul bei

memeqi (ANET 434-437), Diálogo entre um senhor pessimista e seu criado (ANET 437-438), o Qohélet babilónico ou Teodicéia babilónica (ANET 438-440). (Cf. O. Loretz, Qohelet, 91ss). E, mais em concre­to, para a relação direta entre Qoh 9,7-9 e uma parte do poema Gilgamesh (cf. O. Loretz, Qohelet, 133­134). Paira os textos em castelhano cf. M. Garcia Cordero, Biblia y legado dei Antigho Oriente (BAC 390), Madrid, 1977, pp. 607-633; L. Alonso Schõkel - J. L. Sicre, Job, Madri, 1983, pp. 23-36.

Page 78: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ou grega, mas também de todos os que optam por soluções intermédias e não extremadas.26

Os autores sublinham em geral os textos que tratam de temas seme­lhantes. Não convém precipitar-se e logo deduzir dependências literárias do que não sói passar de meros contatos temáticos ou de “analogias con­ceituais”.27

2.3. Qohélet e a literatura egípciaNesta secção temos que repetir os argumentos postos no início de 2.2.,

pois tanto a Mesopotâmia como o Egito estão presentes na história do povo de Israel e em todas as suas manifestações. Política, social e cultu­ralmente, depende a Palestina do leste e do sul. A Palestina é território de passagem obrigatória entre os dois grandes focos da civilização antigos. A cultura hebraica alimenta-se com toda certeza pelo menos das duas gran­des culturas que a circundam.28 Chamamos a atenção especialmente nes­te momento para as possíveis influências da literatura sapiencial egípcia na literatura hebraica. Foi esse gênero de literatura muito mais rico e abundante no Egito do que na Mesopotâmia.29

Mas de novo surge a pergunta: Em que medida e até que ponto temos que admitir influência egípcia na concepção de Qohélet?

A partir do descobrimento da cultura e civilização egípcias, uma vez supostas as relações históricas de Israel com o Egito, vai-se consolidando a opinião da dependência literária. P. Humbert vai mais além dos meros contatos literários; ele defende a dependência direta de Qohélet da litera­tura egípcia.30 Por sua parte, B. Gemser estuda o livro de sabedoria egíp­

26Entre as refutações mais contundentes está a de R. Braun, que, muito embora também seja muito parcial só admite influência grega é seguido por outros à medida que se opõe à exclusividade da influência mesopotâmica (cf. R. Braun, Kohelet, 13; também D. Michel, Qohelet, 56-58).

27K. Galling, Der Prediger, 77; cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 60; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 48­49; J. de Sevignac, La sagesse.

28Naquele tempo “não permanecia a cultura em seu lugar de origem, mas percorria a rota das caravanas e chegava a toda parte. Com os objetos manuais ou artísticos também chegavam formas de pensar e viver, especialmente com as obras literárias” (J. Vílchez, Historia, 41); cf. H. Gunkel, “Ägyptische Parallelen zum Alten Testament”, ZDMG 63 (1909) 532s.

29Testemunhos dessa literatura podem-se ver em ANET 405-410.412-418.420-425.467; M. Garcia Cordero, Biblia y legado dei Antiguo Oriente, (BAC 390), Madri 1977, pp. 577-607; H. Brunner, “Die Weisheitsliteratur”, em Handbuch der Orientalistik 1,1, Leiden, 1952, 90-110; J. Leclant, “Documents nouveaux et points de vue récents sur les Sagesses de l’Egypte ancien”, em Les Sagesses du Proche-Orient ancien, Paris, 1963, 5-26.

30No final resume assim seu estudo: “Sumarizando, constatamos, no final deste capítulo, que, se alguns indícios lingüísticos levam a pensar que o Eclesiastes conhecia a língua egípcia, fatos outros no-lo mostram com muita probabilidade familiarizado com a mesma literatura dos egípcios; a litera­tura moral e didática especialmente no-lo mostram sobretudo imbuído ao mesmo tempo do pessimis­mo e da moral do prazer que constituem grande corrente do pensamento egípcio” (Recherches, 124). Cf. Ch. F. Whitley, Kohelet, 153.

Page 79: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cia Instruções de Onchsheshongy.3í São notáveis as semelhanças entre pas­sagens desta coleção e Qoh 2,19; 10,6-8.15; 11,1-6; 12,5. B. Gemser con­clui, por conseguinte: “Essas muitas semelhanças levam a se perguntar se não é provável em Qohélet fundo egípcio ou, pelo menos, relação com a sabedoria egípcia”.32

Apesar desses esforços e de outros parecidos, temos que concluir com O. Loretz que “não se pode provar relação concreta de Qohélet com obra egípcia”;33 mas temos que admitir que se aduzem muitos temas que também são comuns à literatura mesopotâmica e grega, por exemplo, o pessimismo e a exortação a desfrutar da vida em vista da consideração da morte.2.4. Qohélet e a influência fenícia

Expusemos, na secção sobre a língua de Qohélet, a sentença de M. Dahood acerca das relações diretas entre Qohélet e a Fenícia.34 A maioria dos especialistas, porém, não se mostra favorável à admissão de influên­cias fenícias diretas em Qohélet.35 Não podemos negar absolutamente in­fluência indireta, uma vez que a Palestina de fins do século III a.C. e, dentro da Palestina, Jerusalém, estavam especialmente abertas aos ven­tos culturais que corriam em todas as direções. Encontramo-nos, pratica­mente, na mesma situação que no caso da relação com influências hele- nísticas, mesopotâmicas e egípcias.36

3. Qohélet e o Antigo Testamento

Temos repetido, uma ou outra vez, que Qohélet era um sábio judeu atento às correntes culturais de seu tempo. Pode-se afirmar, com todo di­reito, que também esteve aberto a influências provenientes da firme e rica tradição de seu povo, plasmada especialmente no conjunto de livros sa­grados que chamamos Antigo Testamento.

31Cf. SVT 7 (1960) 102-128. Esta coleção de ditos proverbiais consta de 27 colunas e meia com escritura demótica e em papiro relativamente bem conservado. A composição provavelmente é do século V a.C., anterior ao Papiro Insinger. ‘

32The instructions, 126.33Qohelet, 89; cf. D. Michel, Qohélet, 53.MCf. Canaanite-Phoenician.35D. Michel afirma, por exemplo: “O conteúdo específico da obra de Qohélet não se pode absoluta­

mente deduzir das fontes ugaríticas e fenícias conhecidas até o momento” (Qohelet, 58).36Um seguidor dessa corrente moderada é M. Hengel que afirma: “As suposições de Dahood e

Albright, acerca da concepção da obra na Palestina do norte ou em cidades fenícias, são pouco prováveis. Possíveis reminiscências lingüísticas explicam-se porque, a partir da época persa, esteve toda a Palestina sob a influência cultural fenícia” (Judentum, 235). R. Braun adere explicitamente a M. Hengel (cf. Kohelet, 13); ver também Bo Isaksson, Studies, 196; J. L. Kugel, Qohelet, 36 nota 10).

Page 80: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3.1. Qohélet e o Antigo Testamento em geralPor muita abertura que se queira descobrir em Qohélet, parece coisa

natural que “a situação espiritual de Qohélet está muito mais próxima dos sábios de sua raça” do que de todos os sábios e filósofos da Grécia e do Oriente.37 Qohélet é um elo a mais qualificado na verdadeira cadeia de transmissão do pensamento e da fé do povo de Israel sempre renovados.38 L. Di Fonzo fala “da mentalidade essencialmente judaica do autor, enrai­zado no sulco de sua própria tradição doutrinal”.39 R. Gordis não vê incon­venientes em admitir que Qohélet “é o herdeiro da religião pós-exílica hebraica tal como se ensina preeminentemente na Lei e nos Profetas”.40 Afirmação bastante saliente, uma vez que, como sabemos, considerou-se Qohélet doutrinalmente heterodoxo. No entanto, não podemos nos esque­cer de que Qohélet não é nem profeta nem moralista, mas sábio que vive intensamente as vicissitudes de seu povo marcado pelas coordenadas de espaço e tempo.413.3. Qohélet e o Antigo Testamento mais em particular

Ao tentar descobrir as influências que sofreu Qohélet, provenientes de seu mundo judaico, podemos falar inclusive do Antigo Testamento como conjunto de livros canônicos? Nossa resposta é afirmativa com todas os matizes que se façam necessários.42

Certamente Qohélet tinha que conhecer, e muito bem, os livros que em seu tempo se consideravam sagrados 43 Achava-se, entre esses em pri­meiro lugar o Pentateuco ou a Torá.44 Só neste sentido, de bom conhecedor

37Cf. S. de Ausejo, El género, 401. V. Zapletal, tratanto dos que defendem influência grega no Eclesiastes, escreve: “O que eles consideram grego, pode ser herança hebraica” (Die vermeintliche, 139; também Das Buch, 55).

“ "Nosso livro [ao ver de R. Gordis] situa-se na corrente principal da literatura judaica, que se inspira no passado e contribui para o futuro” (Koheleth — the man, 50).

39Ecclesiaste, 44.wWas Koheleth, 103.41,'Kohélet, sem dúvida, é homem de seu tempo. Mas, precisamente por isso, também permanece

no seio da tradição do pensamento veterotestamentário e de sua teologia” (M. Schubert, Schõpfungstheologie, 79). Não pensa assim G. von Rad, a meu ver erroneamente, pois afirma que o Eclesiastes “com todo o direito pode-se considerar como solitário inteiramente desligado da tradição ... Rebelde solitário... Pensador solitário que nada contra a corrente” (Sabiduría, 296).

42Da mesma opinião é R. Kroeber (cf. Der Prediger, 59). Ele próprio reconhece que “estas relações não são sempre claras”, e apresenta a razão: uma vez que “só se pode falar de relações diretas com outros livros do cânon, quando se podem demonstrar citações textuais ou conceitos próprios, ou se pode presumir de maneira clara e vigorosa confronto do autor com um escrito antigo” (o. c., p. 60).

43Notamos que a negação de influência direta de um livro ou de um conjunto de livros em Qoh não implica necessariamente afirmar que desconheça Qohélet esse livro ou conjunto de livros. Pode, por­tanto, sustentar-se perfeitamente a suposição de que Qohélet conhece, por exemplo, o Pentateuco, não fazendo, porém, uso dele.

“ Considera-se essa opinião geral; afirma-o R. Gordis categoricamente: “Seja qual for sua história anterior, o Pentateuco já era conhecido em sua forma atual nos dias de Qohélet como a autorizada Tbrá de Moisés” (Koheleth — the man, 43).

Page 81: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

da Torá, pode-se admitir a sentença de H. Duesberg sobre Qohélet, a quem chama de “escriba da Torá”.45

As alusões ao Gênesis parecem muito numerosas em Qohélet; é céle­bre a tese de H. W. Hertzberg: “Não há dúvida: o livro de Qohélet está escrito com Gn 1-4 diante dos olhos do autor; conforma-se a concepção que da vida tem Qohélet à história da criação".46 Também alinham-se em favor da influência de Gênesis em Qohélet autoridades como R. Gordis, R. Kroeber e A. Barucq.47 ^

Quanto aos contatos literários entre Qohélet e os livros do Êxodo, Levítico e Números, eles são escassos, razão pela qual mal o advertem os autores. Qoh 4,13-16 põe-se em relação com Ex l,8ss; Qoh 7,7 com Ex 23,8; Qoh 5,3-6 (sobre os votos e faltas de inadvertência) com Lv 5,4 (e Dt 23,21-23) e com Nm 15,25; 30,2s.

Mais firme parece ser a relação entre Qohélet e Deuteronômio. Acei­tam-se como seguras as existentes entre Qoh 3,14 e Dt 4,2; 13,1; entre Qoh 5,3-6 e Dt 23,2 lss sobre os votos, e entre Qoh 7,7 e Dt 16,19.

Já aludimos antes ao fato, surpreendente à primeira vista, de que se considere Qohélet herdeiro dos Profetas.48

Sobre a influência dos Salmos em Qohélet acabamos de citar A. Barucq na nota anterior, que nos fala do “ ‘ideal religioso’ de Qohélet”, o mesmo dos profetas e salmistas. Efetivamente, Qohélet conhece a fonte inesgotá­vel dos Salmos, e pôde sentir-se identificado como espírito de alguns de­

45Les Scribes, 576. Dessa sentença diz A. Barucq que “parece um tanto ousada” (Qohéleth, 661). Explicita amplamente as razões o próprio A. Barucq em seu comentário: “A expressão convida a uma semelhança abusiva entre sua atividade e a de Esdras, ‘escriba versado na Lei de Moisés’ (Esd 7,6), ou também a de um escriba e sábio como Jesus Ben Sira, para quem era a Tbrá o ser ideal, preexistente junto de Deus e dada exclusivamente a Israel. Qohélet não alardeia nenhuma pretensão de ser escriba da Lei” (Ecclésiaste, 200 = Eclesiastés, 192).

íeDer Prediger, 230. A R. Braun parecia esta afirmação “tão exagerada como a expressão de [H.] Ranston, que apresentava Kohélet como uma espécie ‘de Teógnis para leitores judeus”’ (Kohelet, 172). K. Galling critica fortemente a tese de Hertzberg expressa no texto (cf. Theologische Literaturzeichnung 58 [1933] 274. No mesmo sentido expressa-se S. Holm-Nielsen, matizando sua rejeição: “Não há razão para negar que o autor conheça o relato da criação; mas não penso que deliberadamente dependa dele nem que a ele se refira... Não parece que se dê relação com Gn 1-3” (The Book, 44). Logicamente também D. Michel não concorda com Hertzberg quanto ao que diz a propósito de Qoh 3,11: “Se Qohélet aí depende de Gn 1, não ‘conformou’ então sua concepção da vida à “história da criação”, mas em polêmica com ela e, em última conseqüência, contra ela” (Qohelet, 72). Cf., todavia, C. C. Forman, Koheleth’s use, 263.

47De R. Gordis podemos ler: “Ele [Qoh] utiliza passagens clássicas de Gênesis e Deuteronômio... Sua recordação de Gn 3,19 não difere notavelmente do original, porque o próprio Gênesis reflete com tristeza sobre a brevidade da vida humana e a inevitabilidade da morte (Gn 3,19 e Ecle 12,7)” (Koheleth— theman, 43); cf. R. Kroeber, Der Prediger, 60.131; A. Barucq, Qohéleth, 663; cf. também Ecclésiaste, 201-204 = Eclesiastés, 193-196. _

48R. Gordis dizia do autor de Qohélet: “E herdeiro da religião preexílica hebraica, como proemi­nentemente se ensina na Lei e nos Profetas” (Wos Koheleth, 103). A. Barucq afirma também sem vacilar: “Não duvidamos que tenha sido seu ‘ideal religioso’ o mesmo dos Profetas e Salmistas” (Ecclésiaste, 201 = Eclesiastés, 193).

Page 82: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

les; os autores fixam a atenção especialmente em dois salmos: o SI 49 e o SI 73.

Mas onde achamos mais afinidades e onde provavelmente mais se inspira Qohélet é no conjunto dos livros de sabedoria.49 Recorda-nos A. Barucq que “o epiloguista garante-nos a adesão de seu mestre à sabedoria autêntica e a suas tarefas tradicionais, não nos diz, porém, que livros con­sultou. Provérbios não lhe era desconhecido”.50 São muito numerosas as passagens de Provérbios que se citam como paralelos de Qohélet e que muito provavelmente exerceram influência sobre ele.51 Não obstante, não se silenciam as profundas discrepâncias entre a sabedoria tradicional, representada por Provérbios, e o inconformista Qohélet.

Parece que Qohélet deveria ter muito mais pontos de contato com Jó que com qualquer outro livro sapiencial; no entanto, não é muito fácil es­tabelecer dependêcias literárias em concreto, nem referências de vocabu­lário, muito embora se possam levantar temas comuns.52

Quanto ao Eclesiástico, mencione-se em primeiro lugar a hipótese que defende a prioridade temporal deste com relação a Qohélet.53 No en­tanto, prevalece a sentença de que, se entre Qohélet e Ben Sira houve relação de dependência, “será mais razoável supor que a dependência não é de Qohélet mas de Ben Sira”.54

Sobre as verdadeiras relações entre o livro da Sabedoria e Qohélet discutiu-se muito e ainda se continua discutindo. A causa acha-se sobretu­do na identificação dos ímpios protagonistas de Sb 1,16-2,20. São Qohélet e seus discípulos ou apenas seus discípulos? São discípulos de outros mes­tres que nada têm a ver com Qohélet?55 R. Brasun admite só uma Contro­

ls. Holm-Nielsen, The Book, 44, apesar de sua atitude negativa para com quaquer outra influên­cia israelita. Também R. Braun vê muito clara “a relação de Kohelet com a literatura sapiencial” (Kohelet, 173).

mEcclésiaste, 199 = Eclesiastés, 191; acrescenta em seguida que “ao ensinar ele, Provérbios devia ser um dos sábios clássicos”.

51Cf. R. Kroeber, Der Prediger, 62. A. Barucq volta a nos dizer que Qohélet “evidentemente conhe­ceu os ditos dos sábios, e pode-se pôr-se Provérbios bastante amiúde em paralelo com suas sentenças” (Qohéleth, 621).

52R. Kroeber conforma-se em admitir que “Qohélet tomou do livro de Jó imagens e criações verbais, mas nenhuma idéia” (Der Prediger, 64). J. Lévêque, grande conhecedor de Jó, ousa afirmar algo mais: “Influência de Jó sobre Qohélet é, a priori, possível. Qoh fala, com efeito, do homem que sai nu do seio da mãe (5,14) em termos que recordam Jó 1,21; da mesma forma a propósito da sorte do aborto (Qoh 6,4s e Jó 3,11-16), do sheol onde se apaga toda recordação (Qoh 9,5-7 e Jó 14,21s), ou da humana inecerteza acerca da obra de Deus (Qoh 11,5 e Jó 38,2-4; Qoh 12,7 e Jó 34,14). É possível que Qohélet tenha lido Jó, como leu o código sacerdotal, os Provérbios e Malaquias (Qoh 5,5 Ml 2,7)” (La sagesse, 655).

53N. Peters defende a prioridade do Eclesiastes, mesmo sabendo que é “o voto da minoria” (Ekklesiastes, 48); também aposta nessa minoria Ch. F. Whitley (cf. Kohelet, 163-164).

“ A. Grootaert, Uécclesiastique, 73. D. Michel, que parece duvidar, termina sua análise com inter­rogação muito significativa: “Acaso a solução mais fácil a este enigma não é supor que Jesus Ben Sira foi composto depois de Qohélet?” (Qohélet, 111).

55A este respeito escrevia eu em meu comentário a Sabedoria: “Existe grande confusão entre os autores acerca da identidade dos ímpios. A. Dupont-Sommer crê que os ímpios são os discípulos de

Page 83: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

vérsia indireta contra Qohélet e Sabedoria.56 G. von Rad, um pouco solita­riamente, não crê em influência de Qohélet sobre Sabedoria.57 No entanto, de Sb 6-9 diz H. W. Hertzberg: “Não há dúvida de que temos aí claro e expresso confronto com a concepção da sabedoria em Qohélet”,58 e, conse­qüentemente, com bastante probabilidade, alguma influência literária, acrescentamos nós.

XIII. CANONICIDADE DE QOHÉLET

Qohélet é livro canônico, ou seja, faz parte da lista dos livros sagrados entre os judeus e cristãos. L. Díez Merino opina que “provavelmente o livro de Qohélet deve ter sido o último que teve acesso ao Cânon judaico, tendo sido possivelmente fruto de um sínodo de Yabne (em fins do século Id.C.)”.1 Precisamente por isso surge a pergunta: como é possível que se considere um livro como Qohélet livro inspirado, sendo, por conseguinte, normativo para a vida dos crentes judeus e cristãos?2

As causas tiveram que ser muitas e complexas. Neste capítulo recor­damos algumas delas, além das controvérsias que mantiveram os rabinos com este motivo. Exporemos os argumentos a favor e contra, juntamente com algumas conjeturas sobre as razões não explicitadas nestas contro­vérsias que, unidas às outras, inclinaram a balança a favor da inclusão de Qohélet no Cânon.3

Epicuro; para [L.] Link e W. Weber, [F.] Focke são os saduceus (cf. Mt 22,23; At 23,8); outros opinam que são os seguidores das doutrinas do Eclesiastes, assim [W.] Bousset, [K.] Siegfried, [I.] Levy, [A. T. S.] Goodrich. [C. L. W. Grimm e [A.] Condamin não vão tão longe; para eles os ímpios não são os discípulos do Eclesiastes, mas seus maus intérpretes. A maior parte dos intérpretes segue a opinião que expusemos nos comentários (Sabiduría [1990], 154s nota 7), ou seja, “os judeus que, por influên­cia do ambiente pagão materialista, apostataram da fé de seus pais. Não se podem excluir, porém, os pagãos que estão em contato permanente com os judeus que permaneceram fiéis e que, como veremos, deles caçoarão e os perseguirão” (o. c., p. 154).

56Cf. Kohelet, 175.57Cf. Sabiduría, 299.mDer Prediger, 237.

1Targum, 79.2P. Beauchamp diz, por exemplo: “De tempos a tempos se pergunta porque precisamente o livro de

Qohélet entrou no Cânon das Escrituras, tanto mais que, a diferença do Cântico dos cânticos, não permite a escapatória de leitura alegórica” (Ley, 124). R. B. Salters expressa-se por sua vez com muito mais crueza: “Por que... se atribuiu a Qohélet um lugar nas Escrituras judaicas? Como semelhante iconoclasia e impiedade vieram a se incluir entre os livros Isaías, Jeremias e Salmos?” (Qoheleth, 340a).

3Resumos desta história e a mais seleta bibliografia sobre ela podem-se ver em G. A. Burton, A criticai, 2-7; E. Podechard, UEcclésiaste, 1-20; R. Gordis, Koheleth — the man, 41s.365s (com textos rabínicos); H. W. Hertzberg, Der Prediger, 23-25; R. Kroeber, Der Prediger, 69-73; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 85-89; D. Lys, UEcclésiaste, 70s; A. Barucq, Qohélet, 669s; D. Michel, Qohélet, 116-126.

Page 84: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. Testemunhos acerca de Qohélet

Alguns são testemunhos, encontrados na literatura judaica, que nos falam de Qohélet; os mais importantes são de épocas mais ou menos tar­dias: do século II de nossa era em diante.4 Destes testemunhos, uns são a favor e outros contra. Dois grandes rabinos antigos e suas respectivas es­colas centralizaram estas duas correntes: Hilel, o liberal (de cerca de 60a.C. a cerca de 10 d.C.), era a favor, ao passo que Samai, o rígido (contem­porâneo de Hillel), era contra. Vejamos esses testemunhos.1.1. Testemunhos contra Qohélet

Manifestam a recusa de aceitar Qohélet entre os livros sagrados es­tas passagens da Mishná:

Yodayim 3,5: “Todos os escritos santos tomam impuras as mãos. O Cântico dos cânticos e o Eclesiastes tornam impuras as mãos. R. Yehudá diz que o Cântico dos cânticos torna impuras as mãos, mas com respeito ao Eclesiastes é controvertido. R. Yosé afirma, ao invés, que o Eclesiastes torna impuras as mãos, ao passo que com respeito ao Cântico dos cânticos é controvertido. R. Simeão diz que o Eclesisastes é uma das coisas a que a escola de Samai aplica a norma mais indulgente, e a escola de Hilel, a mais rigorosa [cf. Eduyot, 5,3]”.

Em Tosefta Yad. 2,14 lemos: “R. Simeão ben Manassia diz: ‘O Cântico dos cânticos mancha as mãos, porque foi dito pelo Espírito Santo, Qohélet não mancha as mãos, por que é [só] sabedoria de Salomão’ ”.5

Eduyot 5,3: “R. Ismael [var. Simeão] diz que em três coisas segue a escola de Samai a interpretação mais indulgente, ao passo que a escola de Hilel a mais severa. Segundo o ensino da escola de Samai, o livro de Qohélet não toma impuras as mãos, ao passo que a escola de Hilel afirma que as torna impuras...”6

E lógico que se levantaram vozes contra Qohélet pela atitude radical­mente crítica que manifesta para com o que se aceitava tradicionalmente em Israel e pela própria doutrina que ensina.7 O autor do livro da Sabedo-

4Esta é a época em que se fixa, pelo que tudo indica, a Michná. Diz-nos Carlos dei Valle em sua Introducciónk Michná: “As fontes mais autorizadas atribuem a coleção michnaica atual a Rabi Jehudá o príncipe (na segunda metade do século II e talvez primeira década do século III). Todavia, tanto a contribuição pessoal de Rabi Jehudá como a situação prévia do material haláquico, coligido e utiliza­do por ele, são pontos obscuros que ainda não lograram esclarecimento científico” (La Misná, Madri, 1981, p. 21). Mas a essa coleção já tinham precedido outras, que continham material sem dúvida também antigo; são conhecidas, pelo menos, a de R. Aquiba (cerca de 50-135 e a de R. Meir (t 165). Sobre a formação da Michná, seus comentários e Tosefta pode-se ver C. dei Valle, o. c., pp. 21-25.

5De tudo isso se faz eco são Jerônimo em seu comentário a Ecl 12,13-14, cf. P.L. XXIII, 1172 [1116].Versão de C. dei Valle, em La Misná, Madri, 1981, p. 760.7Cf. A. M. Figueras, Eclesiastes, col. 1055; L. Díez Merino, Targum, 72.

Page 85: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ria (cf. cap. 2) poderia refletir, segundo alguns, a rejeição dos ensinamen­tos de Qohélet ou, mais provavelmente, de alguns de seus presumidos alunos.

Que alguns rabinos encontrassem contradições em Qohélet no-lo diz o Talmud da Babilônia: “R. Judah, filho de R. Samuel ben Shileth disse em nome de Rav: ‘os sábios quiseram sequestrar (Ignnwz) o livro de Qohélet porque suas palavras são contraditórias”.8 Costumam-se citar como con­tradições internas Qoh 2,2 com 7,3; Qoh 2,2 e 8,15 com 4,2, e como contra­dições com outros livros sagrados Qoh 11,9 contra Nm 15,39.

Também alguns acharam-no suspeito de heresia: “R. Benjamim ben Levi disse: ‘Os sábios quereriam sequestrar (Ignnwz) o livro de Qohélet, porque encontraram nele questões que se podem tachar de heresia’ ”.9

1.2. Testemunhos a favor de QohéletHouve com certeza entre os rabinos controvérsia acerca da aceitação

ou não de Qohélet como livro sagrado; mas prevaleceu no fim a opinião que considerava Qohélet como livro sagrado ou que “manchava as mãos”, razão pela qual se citou como Sagrada Escritura. R. Gordis afirma que “a popularidade de Qohélet é atestada pelo fato de que não menos de 122 versículos dos 222 são citados nas fontes rabínicas, em seu todo ou em parte”.10

A Mishná aceitou Qohélet como livro “que mancha as mãos”. Antes citamos Eduyot 5,3 e a primeira parte de Yadaym 3,5 que conta a contro­vérsia de Samai (contra) e Hilel (a favor), e continua: “R. Simeão ben Azai diz: recebi uma tradição oral dos setenta e dois anciãos, no dia em que entronizaram R. Elazar ben Azarias como (presidente) da Academia, de que o Cântico dos cânticos e o Eclesiastes tornam impuras as mãos”. Como foi possível que se chegasse à aceitação de Qohélet no Cânon judaico, ape­sar de ter sido sempre livro incômodo, capaz de suscitar amiúde entre os rabinos confrontos dialéticos e suspeições?

Dá muito que pensar que um livro tão piedoso e “inocente” como o Eclesiástico não obtivesse a honra de ser admitido entre os livros sagra­dos dos judeus, e a obtivesse o inquietante e suspeito Qohélet. Em vista desse fato, que chama tanto a atenção, “é-se autorizado a perguntar-se, se no judaísmo os critérios da ‘tradição’ não teriam tido mais peso que os

sShabbat 30b, segundo a versão de L. Díez Merino em Targum, 73.9Leu. Rab. 28,1; segundo a versão L. Díez Merino em Targum, 73.wKoheleth — the man, 133; cf. J. Steinmann, Ainsi, 126-128. Muito mais decidido é L. Díez Merino:

“Na realidade o livro resistiu a todas essas investidas e de fato é citado com muita freqüência na própria literatura judaica, de sorte que se podem obter todos os seus versículos da literatura rabínica; se não tivesse sido transmitido por inteiro, poder-se-iam reconstruir seus 12 capítulos e seus 222 versículos valendo-se das citações da literatura judaica” (Targum, 81).

Page 86: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

critérios subjetivos”.11 Creio que aí está a chave da solução, ou seja, na convicção de que o livro do Eclesiastes era valioso legado de tradição mui­to antiga. Como escreve L. Bigot: “Não se concebe que um livro novo — o Eclesiastes — tenha-se podido introduzir no cânon judaico no século em que floresciam as escolas rivais de Hilel e Samai. Os doutores, que se gloriavam de ‘pôr uma cerca em redor da Lei’, não eram homens que per­mitissem essa intrusão sem levantar ademais fortes discussões, como aque­las em que esteve implicado o Eclesiastes com outros livros, e das quais o Talmud também nos conservou a memória”.12

A firmeza, com que sempre se defendeu no judaísmo a autoria salomônica de Qohélet, foi provavelmente o argumento de mais peso em favor da antiguidade do livro e, com a antiguidade, o halo de mistério que provinha da figura quase mítica de Salomão. O texto 1,12 e a redação do título 1,1 são a base em que se apóia esta arraigada opinião.13

Como conseqüência, pode-se afirmar que existe unanimidade entre os autores em atribuir à autoridade de Salomão a razão pela qual se admi­tiu Qohélet entre os livros sagrados. Não é difícil demonstrá-lo. À pergun­ta: “Por que se aceitou Kohélet em último lugar, e apesar de tudo, como Sagrada Escritura?”, responde S. Holm-Nielsen: “Não consigo encontrar outra resposta a essa pergunta senão a autoridade de Salomão como seu autor”.14

Nada a estranhar que a comunidade de Qumrã lesse Qohélet como Sagrada Escritura, fato que é de importância capital.15 Pode-se considerar como seguro que Qohélet já era geralmente aceito como livro sagrado na comunidade judaica na mudança de era.16 Fato que nos deve orientar na

llA. Barucq, Qohéleth, 669.12Ecclésiaste, 2002. A tese é confirmada explicitamente por R. B. Salters, Qoheleth, 341a.

Equivalentemente também R. Kroeber adere à tese: “O cânon [do A. T.] não surgiu graças à adminis­tração, mas por tradição e consolidação da validez dos escritos no uso sinagogal” (Der Prediger, 72).

13Ver o dito no cap. II § 1, sobre a autoria de Salomão.liThe Book, 55. Antes dele muitos outros tinham dado a mesma resposta: cf. R. Gordis, Koheleht

— the man, 41; no mesmo sentido se manifestam a V. Zapletal, Das Buch, 87; O. S. Rankin, The Book, 4b; R. Kroeber, Der Prediger, 2; R. B. Salters, Qoheleth, 340b-341a; A. Lauha, Kohelet, 20; O. Kaiser, Determination, 251.

15Cf. K. Galling, Der Prediger, 73. O editor dos textos é J. Muilenburg em BASOR 135 (1954) 20­28. O testemunho de L. Gorssen e sua argumentação são particularmente importantes: “Os fragmen­tos do Eclesiastes encontrados em Qumrã identificam-se substancialmente com o texto massorético. A comunidade qumraniana certamente conheceu nosso livro com os textos-hasid. Como os fragmen­tos mais antigos datam da metade do século II a.C., deve-se praticamente aceitar que já figuravam estes textos no livro antes do período macabaico. Em todo caso é quase impensável que a comunidade do período macabaico tenha-se molestado em tornar ortodoxo um livro tão pouco conforme às suas atividades e concepções religiosas; antes o teriam descartado. O livro deve ter sido constituído plena­mente e recebido antes da época macabaica” (La cohérenee, 301).

16Tem razão L. Bigot ao dizer que “é muito provável que o Eclesiastes, juntamente com os Ketubim, tenha sido objeto por parte da comunidade judaica, não... de uma decisão canônica, e sim de uma espécie de aceitação tácita, equivalente na realidade a um reconhecimento oficial pelo começo do século I de nossa era” (Ecclésiaste, 2002).

Page 87: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

hora de interpretar as discussões sobre o livro do Eclesiastes, que ocorre­ram em fins do século I da era cristã durante as sessões do sínodo judaico de Yahvne.17

Cabe, portanto, a Qohélet a presunção de canonicidade. Por isso fa­lam alguns autores de inovadores, ao referirem-se aos que se opunham à canonicidade de Qohélet.18 Coisa diferente é se acertaram ou não os defen­sores de Qohélet ao tentar responder às dificuldades que propunham os adversários. Assim nos parece bastante peregrina a solução que se dá em TB Shabbat 30b: “R. Judah, filho de R. Samuel ben Shilet, disse em nome de Rav: ‘os sábios quiseram seqüestrar (Ignnwz) o livro de Qohélet porque suas próprias palavras são contraditórias. Mas por que não o seqüestra­ram? Porque começa com palavras da Torah e termina com palavras da Torah’ ”.19

Naturalmente, os Mestres não aceitaram Qohélet só por isso, mas por outras muitas razões, entre as quais se podem encontrar muitos dos ensi­namentos contidos no livro.20 Arazão principal, porém, continua sendo sua suposta antiguidade, uma vez que se atribui ao próprio rei Salomão.21

2. Consagração de Qohélet na liturgia judaica

Qohélet integra, no cânon judaico, o último grupo de Escritos ou Hagiógrafos, ainda que nem sempre ocupe o primeiro lugar. Nas edições hebraicas, Qohélet faz parte de uma pequena coleção: “os cinco rolos” ou Megillot, ou seja, Cântico dos cânticos, Rut, Lamentações, Qohélet ou Eclesiastes, e Ester. Esses cinco livrinhos nem sempre formaram coleção,

17R. Gordis afirma: “Geralmente há acordo em que se fixou o cânon hebraico ainda antes da sessão histórica da academia de Jâmnia em 90 d.C. Nessas sessões... discutia-se o status dos diversos livros bíblicos, apenas como questão acadêmica, antes da ratificação oficial pelos sábios do que geralmente era aprovado” (Koheleth — the man, 365, nota 15 do cap. IV sobre Autoria salomônica e lugar de Kohélet no cânon).

180 . Loretz escreve: “Na discussão sobre o livro entre os rabinos só se perguntava se tinha que se retirar o livro da lista dos escritos sagrados, e não se se tinha que contá-lo entre eles. Reconhece-se isso claramente, uma vez que os que queriam excluir o livro do cânon eram inovadores que agiam contra tradição antiga. Era essa tão forte, que qualquer tentativa de eliminar o livro de Qohélet haveria de falir” (Gotteswort, 113s (o grifo é nosso). Na nota 3 declara que “parece que se devem reduzir os inimigos do livro de Qohélet ao círculo da escola rigorosa de Samai” (Ibidem, p. 208 nota 3). L. Gorssen também é categórico: “As dúvidas acerca da canonicidade do Eclesiástes no sínodo de Jâmia (cerca de 100 d.C.) provinham de certos inovadores contra tradição antiga. A questão debatida no sinodo não era saber se o Eclesiastes devia ser ou não acrescentado à lista dos Livros Santos, mas se devia ser isolado deles” (La cohérence, 301s nota 70). Cf. também H. W. Hertzberg, Der Prediger, 49 nota 17.

“ Versão segundo L. Díez Merino em Targum, 73.20Cf. M. Schubert, Schõpfungstheologie, 79s.21Uma hipótese nada desprezível, postos a supor, é a que apresenta N. Lohfink: Qohélet entra no

Cânon judaico por ser livro já venerável, utilizado nas escolas (cf. Kohelet, 12).

Page 88: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sequer nas listas de livros sagrados apareceram na mesma ordem.22 Como afirma H. Bardtke: “Essa coleção, assim como a designação hamesh megillot (cinco rolos) surgiu pela primeira vez no tempo dos Massoretas (séculos VT-IX d.C.)”.23Pelo que tudo indica, a razão, pela qual se ajuntaram numa coleção, foi o uso que deles se fez na liturgia sinagogal. De fato, “a ordem dos M[assoretas] corresponde à das festas, a cuja liturgia foram agrega­dos”,24 como consta pelo uso constante desde o século XII.25

Este teve sem dúvida longa pré-história. “O costume de ler os cinco Rolos originou-se em vários períodos. O rolo de Ester lia-se no período do segundo Templo; em Ta’nit 30a faz-se menção da leitura das Lamentações, e no Tratado pós-talmúdico Soferim (14,18) consta somente o costume de ler Ester, o Cântico dos cânticos e Rut, ainda que em ordem diversa da moderna”.26 Desde então a leitura de Qohélet esteve ligada à festa dos Tabernáculos ou Sukkot, que se celebra no sétimo mês (Tishri), de 15 a 21 (cf. Ex 23,16; 34,22).27 Como escreve M. Díez Merino: “Qohélet lia-se publi­camente no Sábado que mediava na celebração de Sukkot, ou no oitavo dia (shemini Aseret), se o último coincidisse com sábado”.28

Não sabemos por que causa se uniu Qohélet à festa de Sukkot; aduzem- se, como conjeturas, algumas razões: a obrigação de fazer festa e alegrar- se na festa das Tendas (cf. Dt 16,13-15), relacionada por alguns com Qohélet11,2;29 “foram os ditos sobre comer e beber com alegria (2,24; 3,12s; 5,17s;

22Cf. Encyclopaedia Judaica, XIV, 1057. Na LXX e nas versões latinas nunca vão seguidos.23Megillot, em RGC, IV, 829. São os seguintes os argumentos que aduz: “A discutida canonicidade

de Ct., Ecl e Est ainda no século III d.C.; o número total de 22 livros do Antigo Ttestamento que pressupõe Josefo (Contra Ap., 1,8), já que Jz e Rt, Jr e Lm são respectivamente contados como um só livro; a ordem diversa dentro do Cânon grego em Melitão de Sardes [t cerca de 190], Orígenes (t 254s), Jerônimo (f 419); a seqüência dada no Talmud (Baba Batra, 14b): Rt, Sl, Jó, Pv, Ecl, Ct, Lm, Dn, Est, Esd, l-2Cr (Ibidem).

24H. Bardtke, Megillot, em RGG, IV, 829. Bardtke enumera em seguida as festas, mas em ordem equivocada: Páscoa (Cântico), Pentecostes (Rut), Tabernáculos (Ecl), Destruição do Templo (Lm), Purim (Ester).

25E. Würthwein escreve: “O uso litúrgico dos Rolos, comprovável desde o século XII d.C., vincula o Cântico com a Páscoa..., Rut... com a festa das Semanas (Pentecostes), Lamentações com o dia 9 do mês Ab em agosto (recordação da destruição do Templo), Eclesiastes com a festa dos Tabernáculos (...), e Ester com a festa dos Purim (no décimo mês)” (Die fünfMegilloth, Tübingen, 1869, 2S ed., Introdu­ção sem p.). Cf. O. Eissfeldt, Einleitung, 706; K. Galling, Der Prediger, 73; M. Taradach, Le Midrash, Genebra, 1991, p. 129.

26Encyclopaedia Judaica, XIV, 1058. Recorda-nos H. Bardtke que “como rolo se designa pela pri­meira vez Ester (Tratado da Michná Megilla) e, como tal, ainda hoje é usado no culto judaico. Confor­me seu uso litúrgico, aplicou-se essa designação também aos outros quatro livros” (Megillot, RGG, IV, 829); cf. E. Würthwein, Die fiinf Megillot, Intr., sem página.

27Sobre a festa dos Tabernáculos ou Sukkot e seu significado pode-se ver H. J. Kraus, Gottesdienst in Israel, Munique, 1962, p. 80; J. C. Rylaarsdam, Booth (Feast of), em The interpreter’s dictionary of the Bible, 455b; B. N. Wambacq, Tabernáculos (fiesta de los), em Enciclopédia de la Bíblia, IV, 844; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 88; Encyclopaedia Judaica, XV, 495; E. Kutsch, “..Am Ende des Jahres”, ZAW 83 (1971) 21.

2STargum, 71; cf. L. Jacobs, Sukkot: Encyclopaedia Judaica, XV, 501; também XIV, 1058.29Cf. Encyclopaedia Judaica, XIV, s. v. Scrolls, col. 1058; XV, s. v. Sukkot, col. 501s.

Page 89: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

9,7ss)?”;30“o aviso (Ecl 5,3-4) de não diferir o cumprimento dos votos... se pensou ser particularmente apropriado para a última festa do ciclo anual. Outros sugeriram que a atitude sombria e pessimista do Eclesiastes cor­responde à atmosfera outonal”.31

3. Qohélet e o cânon cristão do A. T.

A comunidade cristã tem suas raízes no judaísmo, pois nasce nele e dele. Ao se emancipar dele, leva consigo um legado precioso: as Sa­gradas Escrituras. Nela já estava o livro do Eclesiastes tanto no cânon palestinense como no mais amplo alexandrino. Dentro da igreja não teve lugar nenhuma controvérsia, parecida à dos mestres judeus sobre Qohélet; pelo contrário, Qohélet foi aceito pacificamente como livro sa­grado, se excetuarmos a voz discrepante de Teodoro de Mopsuéstia no século V.

3.1. Qohélet e o Novo TestamentoA opinião comum afirma, com toda razão, que não se cita nem uma

vez Qohélet no Novo Testamento. “Silêncio normal”, chama-o J. Steinmann, visto que o livrinho não contém “matéria imediatamente proveitosa para a catequese cristã”.32 As vezes se fala de “reminiscências” ou de possíveis “pontos de contato”, mas, pelo que tudo indica, com pouca convição.33 Há autor que crê que Qohélet é uma espécie de “preparação para o Evange­lho”.34 R. Braun descobre, ao invés, uma referência a Qohélet em São Pau­lo, mas em sentido negativo.35

3.2. Qohélet e os primeiros escritores cristãosO “silêncio normal” sobre Qohélet, que observamos nos escritos que

compõem o Novo Testamento, viu-se logo rompido pelos escritores cris­tãos. Primeiro foram citações mais isoladas do Eclesiastes e algumas alu­sões, e depois vieram os comentários parciais ou totais. Damos cronologi­camente uma breve introdução.

30K. Galling, Der Prediger, 73.31Encycl. Jud., s. v. Scrolls, col. 1058. L. Jacobs fala da índole melancólica do Ecl, razão pela qual

sua leitura é adequada para a festa de outono (cf. Encycl. Judaica, XV, s. v. Sukkot, col. 501).32Ainsi, 128.33Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 88s; A. Lauha, Kohelet, 21.34Assim se expressa J. Steinmann: “O livro de Qohélet preparara à sua maneira o Evangelho. No

sermão da montanha desenvolve-se um ideal de abandono à Providência, de despreocupação pelo dinheiro, de gosto pela beleza e pelo encanto do mundo, do gozo sereno, que teria encantado Qohélet” (.Ainsi, 128); cf. J. Cantó Rubio, Sapienciales, 165.

35Cf. Kohelet, 180.

Page 90: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O Pastor de Hermas cita Ecl 12,13; são Justino alude a Ecl 12,7; Cle­mente de Alexandria (cerca de 220) cita explicitamente Ecl 1,16-18 e 7,12; Tertuliano (cerca de 220) cita pelo menos três vezes Ecl 3,17.36

Mais importante que uma citação certamente tem o fato de o Eclesiastes aparecer nas listas dos livros canônicos. Põem-no em seus cânones da Sagrada Escritura Melitão de Sardes (cerca de 190)37e Orígenes (cerca de 250).38 A partir de Orígenes, fazem os autores e santos Padres uso normal de Qohélet como livro sagrado. A consagração total é dada por são Jerônimo, ao aceitar sem reservas o cânon palestinense de livros sa­grados. Prova disso é seu comentário completo ao Eclesiastes.39

3.3. Qohélet e Teodoro de MopsuéstiaO caso de Teodoro de Mopsuéstia (cerca de 350-428) constitui exce­

ção e voz solitária. O que opinava conhecemos apenas pela sentença condenatória do Concílio Constantinopolitano II (ano de 553) que diz: “Os livros de Salomão, Provérbios e Eclesiastes, devem-se contar entre aquilo que foi escrito conforme o espírito dos homens, uma vez que ele próprio os compôs por sua própria iniciativa (ex sua persona) para utilidade dos demais, por não ter recebido a graça da profecia, mas a graça da pru­dência”.40

Existem, porém, muitas dúvidas acerca do alcance da condenação do Concílio. As Atas do Concílio só se conservaram na versão latina. Os ex­tratos das obras de Teodoro, que nos apresentam essas atas, não se podem comparar com os originais gregos de Teodoro de Mopsuéstia, e o que se pode comparar (como o relativo ao Símbolo segundo as Atas e as homilias de Teodoro) acha-se abertamente falseado.41 Parece, pois, que é preciso pôr em interrogação o que se diz que negava Teodoro de Mopsuéstia, com faz R. Devreese: “Reconhecia ele a estes livros [Pr e Ecl] uma espécie de inspiração de grau inferior? Aparava secções importantes? Não sabería­mos dizer”.42

36Cf. Pastor de Hermas, Mand. VII 1; Justino, Diálogo com Trifão, 6,2; Clemente de Alexandria, Strom., I, 13.[58]; Tertuliano, Adv. Marc., 5,4; em De monog., 3,10 e em De virg. vel., 1,8.

37Cf. Eusébio de Cesaréia, Historia eclesiástica IV, 26,[14].38Cf. Eusébio de Cesaréia, Historia eclesiástica, VI, 25,[2],39Cf. o prólogo galeatus: Prol. in libro Regum, emBiblia Sacra iuxta latinam vulgatam versionem,

V, Roma, 1944, p. 7 e Commentarius in Ecclesiasten: C.C.L. 72, pp. 247-361.40J. B. Mansi, Sacrorum Conciliorum ... collectio, IX, Florença, 1763, p. 233.41Cf. R. Dovreese, Essai sur Théodore de Mopsueste, Studi i Testi 141, Cidade do Vaticano, 1948,

pp. 256s.i2Essai sur Théodore de Mopsueste, 35; ver especialmente pp. 254-258. Pouco antes (1941), D.

Buzy apresentava condicionalmente a sentença de Teodoro: “Se Teodoro de Mopsuéstia não lhe [a Qoh] reconhecia senão uma inspiração ‘de grau inferior’, é a única voz discordante de toda a antigüi­dade cristã” (UEcclésiaste, 1920).

Page 91: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O certo é que a teoria de Teodoro de Mopsuéstia foi praticamente ig­norada em toda a tradição posterior da Igreja. Dogmaticamente ficou o problema resolvido de forma definitiva no Concílio de Trento.43

Creio, em conclusão, que podemos e devemos dar graças a Deus por­que o livro de Qohélet, apesar de todas as dificuldades, encontrou lugar adequado na Lista ou Cânon dos livros sagrados para judeus e cristãos.44 Não houvesse sido assim, provavelmente não teria chegado até nós, como tantas outras obras literárias que em seu dia viram a luz e logo foram sepultadas nas trevas do esquecimento.

XIV. BIBLIOGRAFIA

1. ComentáriosAllgeier, A., Das Buch des Predigers, oder Koheleth, Bonn 1925.Alonso Schökel, L., Eclesiastés y Sábiduría, Madrid 1974.Barton, G.A., A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Ecclesiastes (ICC 20),

Edimburgo 1908.Barucq, A., Ecclésiaste-Qohéleth. Traduction et Commentaire, (Verbum Salutis, AT 3), Pa­

ris 1968. Trad, castellana: Eclesiastés o Qohélet. Texto y comentário (ActBib 19), Madrid 1971.

Bea, A., Liber Ecclesiastae qui ab hebraeis appellatur Qohélet, Roma 1950.Buzy, D., L’Ecclésiaste, La Sainte Bible, VI, Paris 1941, 189-280.Cornelio a Lapide, Commentaria in Ecclesiasten, em: Commentaria in Scripturam Sacram,

IX (Amberes Ia ed., 1638), Paris 1881.Crenshaw, J.L., Ecclesiastes, Filadélfia (Pensilvânia) 1987.Delitzsch, F., Koheleth, em: Biblischer Kommentar über die biblischen Bücher des A. Ts., 4S

vol: Hoheslied und Koheleth (BKAT), Leipzig 1875.— Commentary on the Song o Songs and Ecclesiastes, Michigan [reimpr.] 1978, 177-442.Di Fonzo, L., Ecclesiaste, Roma-Turim 1967.Fillion, L.CI., Le livre de VEcclésiaste, La Sainte Bible IV, (Paris 1927) 547-592.Fox, M.V., Qohelet and his Contradictions, Sheffield 1989.Fuerst, WJ., Ecclesiastes, em: The Books of Ruth, Esther, Ecclesiastes, The Song of Songs,

Lamentations. The Five Scrolls, Cambridge 1975, 91-158.Galling, K., Der Prediger, Die Fünf Megilloth (HAT 18), Tubinga 2- ed., 1969, 73-125.Gietmann, G., Commentarius in Ecclesiasten et Cant. Cant., Paris 1890, 2- ed., 1901.Glasser, E., Le procès du bonheur par Qohelet (Lectio divina 61), Paris 1970.Gordis, R., Kohelet — The Man and His World, Nova York, 3a ed., 1968.Hertzberg, H.W., Der Prediger (KAT 17,4-5), Gütersloh 1963.Jerônimo, são [t 420], Commentarius in Ecclesiastem: CCL 72,247-361; PL 23,1061-1174;

28,1339- 1352 = Texto.Kroeber, R., Der Prediger, Berlim 1963.Lauha, A., Kohelet (BKAT? 19), Neukirchen-Vluyn 1978.

43Cf. o decreto Sacrosaneta sobre as Sagradas Escrituras e Tradição da Sessão IV, celebrada em 8 de abril de 1546: DS 783s/1501-1505.

“ Assim se expressa F. N. Jasper, ainda que exagerando um pouco a nota: “Graças a Deus o livro encontrou lugar no Cânon. Foi borrascosa sua entrada, ms finalmente chegou” (Ecclesisastes, 273).

Page 92: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Lohfink, N., Kohelet, Stuttgart 1980.Loretz, O., Das Buch Qohelet, em: Gotteswort und menschliche Erfahrung. Eine Auslegung

der Bücher Jona, Rut, Hoheslied und Qohelet, Friburgo-Basiléia-Viena 1963, pp. 113­190.207-213.

Lorinus, J., Commentarii in Ecclesiasten, Lião 1606 e 1619.Lutero, M., Annot. in Ecclesiasten [1532]: WW 1/20,1-203.Lys, D., L’Ecclésiaste ou Que vaut la vie? Commentaire de Qoh 1,1 à 4,3, Paris 1977.Michaud, R., Qohéleth et l’hellénisme. La littérature de Sagesse. Histoire et théologie, II,

Paris 1987.Michel, D., Qohelet (Erträge der Forschung 258), Darmstadt 1988.Motais, A., L’Ecclésiaste, Paris 1903.Murphy, R.E., Ecclesiastes, em: TheJerBibCom, 1, Londres 1968,534-540; ed. en castelhano:

Eclesiastés (Qohélet), Comentário Bíblico “San Jerónimo”, A.T. II, Madrid 1971, pp. 507-523. ,

Nötscher, F., Das Buch Kohelet, Ecclesiastes oder Prediger, em; Echter Bibel, Wurzburgo, 2® ed., 1959, 535-567.

Ogden G.S., Qoheleth, Sheffield 1987.Osty, E. - Trinquet, J., La Bible, Paris 1973,1341-1353.Pautrel, R., L’Ecclésiaste, Paris, Ia ed., 1948, 1974.Pérez Rodriguez, G., Eclesiastés, em: Biblia Comentada, IV, Madrid, 2- ed., 1967, 851-930.Pineda, J. de, In Eclesiasten, Sevilha 1619.Podechard, E., L’Ecelésiaste, Paris 1912.Rankin, O.S. - Atkins, G.G., The Book of Ecclesiastes, Nova York 1956.Ravasi, G., Qohelet, Turim 1988.São Jerönimo [t 420], Commentarius in Ecclesiastem: CCL 72,247-361; PL 23,1061-1174;

28,1339-1352 =Ttexto.Scott, R.B.Y., Ecclesiastes, em: Proverbs. Ecclesiastes (AB 18), Garden City, 2- ed., 1965.Serrano, J.J., Eclesiastés, em: La sad. Escritura. A.T., IV, Madrid,1969, 527-582.Siegfried, D.C., Prediger und Hoheslied (HK 2/3:2), Gotinga 1898.Weber, J.J., Le livre de Job. L’Ecclésiaste, Paris 1947.Whybray, R.N., Ecclesiastes, Londres 1989.Williams, A.L., Ecclesiastes, Cambridge 1922.Zapletal, V., Das Buch Kohelet kritisch und metrisch untersucht, übersetzt und erklärt,

Friburgo, 2- ed., 1911.Zimmerli, W., Das Buch des Predigers Salomo (ATD 16/1), Gotinga, 3- ed., 1980.

2. Estudos especiaisAbel, F.-M., La Syrie el la Palestine au temps de Ptolémée Ier Soter: RB 44 (1935) 559-581.— L’ère des Séleucides: RB 47 (1938) 198-213.— Histoire de la Palestine. Depuis la conquête d’Alexandre jusqu’à l’invasion arabe, I: De

la conquête d’Alexandre jusqu’à la guerre juive, Paris 1952.Ackroyd, P.R., Two Hebrew Notes: ASTI 5 (1967) 82-86.Acram, S.Y., The Golden Mean in Koheleth: Its Biblical Context, its Relationship to Greek

Philosophie, Amsterdam 1977.Albertz, R., háebael Hauch: ThHAT 1 (Munich 1971) 467-469.Albright, W.F., Somme Canaanite-Phoenician, Sources of Hebrew Wisdom, em: Wisdom in

Israel, 1-15.Allevi, L., II messaggio spirituale dell’Ecclesiaste: LaScCatt 60 (1930) 143ss.Alonso Diaz, J., El pesimismo de un autor biblico, Eclesiastés, Santander 1962.— Jacob lucha con Elohim, Santander 1964.— En lucha con el mistério. El alma judia ante los premiosy castigos y la vida ultraterrena,

Santander 1967.Amir, Y., Doch ein griechischer Einfluss auf das Buch Kohelet?, em: Studien zum antiken

Judentum (Beiträge zur Erforschung desATs und des antiken Judentums 2), 1985,35-50.

Page 93: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Archer, G.L., The Linguistic Evidence for the Date of ‘Ecclesiastes’: JouEvThSoc 12 (1969)167-181.

Armstrong, J.F., Ecclesiastes in OT Theology: P[rinceton]S[eminary] B[ulletin] 94 (1983) 16-25.

Asensio, F., In libros didacticos (Job, Ps., Ec., Sap.), II, Roma 1955, 264-298.Ausejo, S., El gênero literário del Eclesiastés: EstBíb 7 (1948) 369-406.Baltzer, Kl., Women and War in Qohelet 7:23-8,la: HarvTR 80 (1987) 127-132.Barton, G.A., The Text and Interpretation of Eccelesiastes 5,19: JBL 27 (1908) 65s. Barucq, A., Question sur le sens du travail (Qoh 1:2): AssS 49 (1971) 66-71.— O salmo XLIX e o livro de Qoheleth: Atualidades bíblicas, Miscellânea J.J. Pedreira de

Castro, Petrópolis 1971, 297-308 [Resumo em DBS IX 664s].— Dieu chez les sages d’Israël: BEThL 41 (1976) 169-189.— Qohéleth: DBS IX (Paris 1979) 609-674.Baumgärtel, F., Die Ochsenstacheln und die Nagel in Koh 12,11: ZAW 83 (1969) 98. Baumgartner, W., Die israelitische Weisheitsliteratur ThR NF 5 (1933) 259-288. Beaucamp, E., L’Ecclésiaste et son message: Lavalth 17 (1971) 191-195.Beauchamp, P., Entendre Qohéleth: Christus 16 (1969) 339-351.— Ley. Profetas. Sabios, Lectura sincrónica del A.T., Madrid 1977.Becker, J., Gottesfurcht im Alten Testament (AnBib 25), Roma 1965, 249-255.Beentjes, P.C., Recente visies op Qohelet: Bijdr 41 (1981) 436-444.Bertram, G., Hebräischer und griechischer Qohelet: ZAW 64 (1952) 26-49.Bianchi, F., “Essi non hanno chi li consoli” (Qo 4,1): RivBib 40 (1992) 299-307.Bibel und Kirche, Kohelet 45/1 (1990) 1-42.Bickell, G., Der Prediger über den Wert des Dasein, Innsbruck 1884.Bickerman, 'E., Four Strange Books of the Bible... Koheleth... Nova York 1967.Bigot, L., Ecclésiaste: DThC IV/2, Paris 1920, 1998-2028.Bishop, E.F.F., Pessimist in Palestine: PEQ 100 (1968) 33-41.Blank, S.H., Ecclesiastes: The Interpreter’s Dictionary of the Bible, II (Nova York 1962) 7­

13.— Considerations Relative to the Origin and Date of Koheleth, em: The Song of Songs and

Coheleth, Nova York 1970, XV-XXV.— The Structure and Nature of Koheleth, em: The Song of Songs and Coheleth, Nova York

1970, XXIX-XXXV.Blieffert, H-J., Weltanschauung und Gottesglaube im Buch Kohelets, Rostock 1958.Böhl, E., De Aramaismis libri Coheleth, Erlangen 1860.Bojorge, H., Verkenning in de gedachtenwereld van het boek Prediber: Bijdr 28 (1967) 118­

138.Bonora, A., Esperienza e timor di Dio in Qohelet: Teol [Brescia] 6 (1981) 171-182.— Qohelet. La gioia e la fatica di vivere, Brescia 1987.Bons, E., Zur Gliederung und Kohärenz von Koh 1,12-2,11: BN 24 (1984) 73-93.Bottéro, J., L’Ecclésiaste et le problème du mal: NouvClio 7-9 (1955-1957) 133-159. Bourguet, D., Daniel Lys au miroir de l’Ecclésiaste: EtThRel 53 (1978) 402-409.Bousset, W., Jüdisch-christlicher Schulbetrieb in Alexandria und Rom, Gotinga 1915. Braun, R., Kohelet und die frühhellenistische Popularphilosophie (BZAW 130), Berlim

1973.Breton, S., Qoheleth Studies: BibThBull 3 (1973) 22-50.— Eclesiastés: Anotaciones Exegéticas: RevTeolLim 11 (1977) 375-392.— Qoheleth: recens Studies: ThDig 28 (1980) 147- 151.Bright, J., La historia de Israel, Bilbao 1971.Bruns, J.E., Some Reflections on Coheleth and John: CBQ 25 (1963) 414-416.— The Imagery ofEccles. 12,6a: JBL 84 (1965) 428-430.Burkitt, F.C., Is Ecclesiastes a Translation?: JThSt 23 (1922) 22-26.— Additional Note on the Physical Meaning of “Vanity”: JThSt 23 (1922) 26-28.Burrows, M., Kuhn and Koheleth: JBL 46 (1927) 90-97.

Page 94: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Busto Saiz, J.R., Estructura métrica y estrófica dei “Poema sobre la juventudy la vejez”: Qohélet 11,7-12,7: Sef 43 (1983) 17-25.

— bwr’yk (Qoh. 12,1). Reconsiderado: Sef 46 (1986) 85-87.Buzy, D., Le portrait de la vieillese (Eccl XII,1-7): RB 41 (1932) 329-340.— La notion du bonheur dans l’Ecclésiaste: RB 43 (1934) 494-511.— Les auteurs de l’Ecclésiaste: AnnTh 11 (1950) 317-336.Calandra, G., De histórica Andreae Victorini expositions in Ecclesiasten, Palermo 1948.Cantó Rubio, J., Sapienciales y Midrás, Madrid 1966, 149-172.Carmichael, C.M., A Time for War and a Time for Peace: The Influence of the Distinction

upon some legal and Literary Material, em: Studies in Jewish Legal History. Essays in Honour of D. Daube, Londres 1974, 50-63 [sobre 3,8].

Carny, P., Theodicy in the Book ofQohelet, em: Justice and Righteousness. Biblical Themes and Their Influence. Ed. Graf Reventlow andYair Hoffman, Sheffield 1992, pp. 71-81.

Carr, D.McL., From D to Q. A Study of Early Jewish Interpretations of Solomon’s Dream at Gibeon (Atlanta-Georgia 1991) 133-145.

Castellino, G.R., Qohelet and His Wisdom: CBQ 30 (1968) 15-28.Cazelles, H., Ecclésiaste: Catholicisme, III (Paris 1952) 1240-1243.Celada, B., Pensamiento radical en un libro sagrado. El Qohélet o Eclesiastes: CulBíb 23

(1966) 177-184.Ceresko, A.R., The Function ofAntanaclasis (mç’“to find” / / mç’- “to reach, overtake, grasp”)

in Hebrew Poetry, Especially in the Book ofQoheleth: CBQ 44 (1982) 551-569.Chamakkala, J., Qoheleth’s Reflections on Time: Jeevadhara 7 (1977) 117-131.Chevalier, L. - Rondet, H., L’idée de vanité dans l’oeuvre de St. Augustin: REtAug 3 (1957)

221-234.Chopineau, J., Hebel en hébreu biblique. Contribution entre sémantique et exégèse de

l’A.T., Universidade de Estrasburgo 1971.— Une image de l’homme. Sur Ecclésiaste 112: EtThRel 53 (1978) 366-370.— L’image de Qohelet dans l’exégese contemporaine: RHPhR 59 (1979) 595-603.— Qoheleth’s Modernity: ThDig 29 (1981) 117-118.Condamin, A., Études sur l’Ecclésiaste: RB 8 (1899) 493-509; 9 (1900) 30-44.354-377.— Aboulie, Scepticisme, Pessimisme: RechScR 11 (1921) 133-140.Coppens, J., La structure de l’Ecclesiaste, em: La Sagesse de A T, Gembloux/Lovaina 1979,

288-292.Cornely, R., Historicae et criticae introductionis in V.T. Iibros compendium, Paris, Ia ed.,

1889, 333-340; 5â ed., 1905, 341-348.Cornely, R. - Hagen, M., Historicae et criticae introductionis in V.T. Libros compendium,

Paris, 6a ed., 1909, 342-350; 8a ed., 1914, 348-356.Cornely, R. - Merk, A., Introductionis in S. Scripturae libros Compendium, Paris 9® ed.,

1927, 492-499; IIa ed., 1934, 494-499.Corré, A.D., A Reference to Epicureism in Koheleth: VT 4 (1954) 416-418.Crenshaw, J.L., The Eternal Gospel (Eccle. 3:11), em: Essays in O.T. Ethics (Homenagem a

J.P. Hyatt), Nova York 1974, 23-55.— The Shadow of Death in Qoheleth, em: Israelite Wisdom (Homenagem a S. Terrien),

Nova York 1978, 205-216.— The Birth of Skepticism in ancient Israel, em: The Divine Helmsman (Homenagem a

L.H. Silberman), Nova York 1980, 1-19.— Old Testament Wisdom, an Introduction, Atlanta 1981, 126-148.— Qoheleth in Current Research, en Biblical and Other Studies in Honor of R. Gordis:

HebAnR 7 (1983) 41-53.— The Expression mi yôdia‘ in the Hebrew Bible: VT 36 (1986) 274-288.— Youth and Old Age in Qoheleth: HebAnR 11 (1987) 1-13.Crocker, P.T., “I Made Gardens and Parks...’’: BurH 26 (1990) 20-23 [Qoh 2,5].Crüsemann, F., Die unveränderbare Welt. Überlegungen zur “Krisis der Weisheit” beim

Prediger (Kohelet), em; Der Gott der kleinen Leute, Munich 1979, 80-104.

Page 95: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— Hiob und Kohelet. Ein Beitrag zum Verständnis des Hiobbuches, em: Werden und Wirken des A.T., Homenagem a C. Westermann, Gotinga 1980, 373-393.

Cruveilhier, P., La doctrine essentielle de l’Ecclésiaste: RApol 49 (1929) 404-426.542-567.Dahood, MJ., Canaanite-Phoenician Influence in Qoheleth: Bib 33 (1952) 30-52.191-221.— The Language ofQohelet: CBQ 14 (1952) 227-232.— Qoheleth and Recent Discoveries Bib 39 (1958) 302-318.— Qoheleth and Northwest Semitic Philology: Bib 43 (1962) 349-365.— Canaanite Words in Qoheleth 10,20: Bib 46 (1965) 210-212.— Qoheleth und der Alte Orient: Bib 46 (1965) 234-236.— The Phoenician Background of Qoheleth: Bib 47 (1966) 264-282.— Further Instances of the Brealap of Stereotyped Phrases in Hebrew, em: Studia

Hierosolymitana in onore del P. B. Bagatti, Jerusalém 1976, II 9-19. [10,20].— Three Parallel Pairs in Eclesiastes 10:18- A Reply to Professor Gordis: JQR 62 (1971)

84-87.— Northwest Semitic Philology and three Biblical Texts: JNWSemL 2 (1972) 17-22 [6,4;

10,18],Daiches, S., Bible Studies, Londres 1950, 28-29.D’Alario, V., II libro del Qohelet. Struttura letteraria e retórica, Bolonha 1992 [Não pude

utilizá-lo].Davila, J.R., Qoheleth and Northern Hebrew: Maarav 5/6 (1990) 69-87.Davis, B.C., Ecclesiastes 12,1-8. Death, an Impetus for Life: Bibliotheca Sacra 148 (1991)

298-318.De Waard, J., The Translator and Textual Criticism (with Particular Reference to Eccl

2,25): Bib 60 (1979) 509-529.Delsman, W.C., Zur Sprache des Buches Koheleth, em: Von Kanaan bis Kerala, Homena­

gem a J.P.M. van der Ploeg, Neukirchen-Vluyn 1982, 341-365.Derousseaux, L., La crainte de Dieux dans l’A.T... Recherches d’exégèse et d’histoire sur la

racine yaré (Lectio divina 63), Paris 1970, 337-346.Dhorme, P., Ecclésiaste ou Job?: RB 32 (1923) 5-27.Di Fonzo, L., “Quis novit si spiritus filiorum Adam ascendet sursum...?”Eccl. 3,21: VD 19

(1939) 257-268.289-299; 20 (1940) 166-176.Dicionário bíblico hebraico-português, preparado por L. Alonso Schökel, São Paulo, 1998.Diego Sánchez, M., El Comentário al Eclesiastés de Dídimo Alejandrino. Exégesis y

espiritualidad, Roma 1991.Diehls, H., Der antike Pessimismus, Berlim 1921.Diez Merino, L., Targum de Qohelet. Edic. Principe del Ms. Villa-Amil n. 5 de Alfonso de

Zamora, Madrid 1987.Dohmen, Ch., Der Weisheit letzter Schluss? Anmerkungen zur Übersetzung und Bedeutung

von Koh 12,9-14: BN 63 (1992) 12-18.Donrseiff, F., Das Buch Prediger: ZDMG 89 (1935) 243-249.Dreese, J.J., The Theology of Qoheleth: BibT 56 (1971) 513-518.Driver, G.R., Problems and Solutions: VT 4 (1954) 225-245.Du Plessis, S.J., Aspects of Morphological Peculiarities of the Language of Qoheleth, em;

De Fructu Oris Sui: Essays in Honour of Adrianus Van Seims, Leiden 1971, 164-180.Dubarle A.M.; Qohelet ou les Déceptions de l’Expérience, em: Les Sages d’Israël, Paris 1946,

95-128 (esp. Los Sabios de Israel, Madrid 1958,111-158).— La condition humaine dans l’A.T: RB 63 (1956) 321-345 (esp. 322-332).— Où en est l’étude de la littérature sapientielleî: EThLov 44 (1968) 412-419.Duesberg, H., Ecclésiaste: DictionSpir IV (Paris 1960) 40-52.Duesberg, H. - Fransen, I., Les Scribes inspirés, Maredsous 1966, 537-592.Durandeaux, J., Une foi sans névrose ou l Actualité de Qohéleth, Paris 1987.Ebeling, E., Ein babylonischer Kohelet, Berlim 1922.Ehlich, K., Verwendungen der Deixis beim sprachlichen Handeln. Linguistisch-philologische

Untersuchungen zum hebräischen deiktischen System, Frankfort do Meno 1979.

Page 96: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Eissfeldt, 0.; Einleitung in dasA.T., Tubinga 1964, § 68: 664-677.— Alles Ding währt seine Zeit [Qoh 3,1-8], en Archäologie und A.T., Homenagem a K.

Galling, Tubinga 1970, 69-74 = Kleine Schriften, V 174-178.Ellermeier, F., Die Entmachtung der Weisheit im Denken Qohelets. Zu Text und Auslegung

von Qoh. 6,7-9: ZThK60 (1963) 1-20.— Randbemerkung zur Kunst des Zitierens. Welches Buch der Bibel nannte H. Heine “das

Hohelied der Skepsis’?: ZAW 77 (1965) 93-94.— Qohelet I I 1. Untersuchungen zum Buche Qohelet, Herzberg 1967.— Das Verbum [hws] in Qoh 2,25: ZAW 75 (1963) 197-217; = Qohelet 1/2, Herzberg,

21970.Ellis, R., “A Time to weep and a Time to laugh”: ExpTim 99 (1987) 176s.Ellul, J., Le statut de la philosophie dans Qohelet: Archivio di Filos 53 (1985) 1 151-164.— La raison d’être, Paris 1987. Trad, castelhana: La razôn de ser. Méditation sobre el

Eclesiastés, Barcelona 1989.Euringer, S., Der Masoreh-Text des Qohelet kritisch untersucht, Leipzig 1890.Fernandez, A., g Es Eclesiastes una version?: Bib 3 (1922) 45-50.Fernandez, V.M., El valor de la vida presente en Qohelet: RevBib 52 (1990) 115-120.Festorazzi, F., Il Qohelet: un sapiente di Israele alla ricerca di Dio. Ragione e fede in rapporto

dialettico, em: Quaerere Deum. Atti della XXV Sett. Biblica, Brescia 1980, pp. 173-190.— Giobbe e Qohelet: crisi délia Sapienza, em: Problemi e prospettive di scienze bibliche,

Brescia 1981, pp. 235-258.— La dimensione salvifica del binomio morte-vita (Qohelet e Sapienza): RivBib 30 (1982)

91-109.— Qohelet, em: Il messaggio délia salvezza. 5. Gli “Scritti” dell’AT, Leumann 1985, pp.

88ss.— In margine a un libro su Qohelet: RivBib 36 (1988) 67-72.Festugière, A.J., Le monde gréco-romain au temps de Notre-Seigneur. Le milieu spirituel,

II, Paris 1935.Fichtner, J., Die altorientalische Weisheit in ihrer israelitischjüdischen Ausprägung, Giessen

1933.Figueras, A.M., Eclesiastés: EnciclBiblia II, Barcelona 1964,1049-1056.Fischer, A., Beobachtungen zur Komposition von Kohelet 1,3-3,15: ZAW 103 (1991) 72-86.Fohrer, G., [Sellin, E.- Fohrer, G.] Einleitung in das Alte Testament, Heidelberg 1965, 365­

373.Foresti, F., ‘ämäl in Koheleth: “Toil” or “Profit”: EphCarm 31 (1980) 415-430.Forman, Ch.C., The Pessimism of Ecclesiastes: JSSt 3 (1958) 336-343.— Koheleth’s Use of Genesis: JSSt 5 (I960) 256-263.Fox, M.V., Frame-Narrative and Composition in the Book of Qohelet: HUCA48 (1977) 83­

106.— The Meaning of HEBEL for Qohelet: JBL 105 (1986) 409-427 = Qohelet and his

Contradictions, 29-51.— Qohelet 1,4: JSOT 40 (1988) 109.— Aging and Death in Qoh 12: JSOT 42 (1988) 55-77.— Qohelet and his Contradictions, Sheffield 1989.Fox, M.V.- Porten, B., Unsought Discoveries: HebrSt 19 (1978) 26-38.Fredericks, D.C., Qoheleth’s Language: Re-evaluating its Nature and Date, Nova York 1988.— Chiasm and Parallel Structure in Qoheleth 5:6-6:9: JBL 108 (1989) 17-35.— Life’s Storms and Structural Unity in Qoheleth 11,1-12,8: JSOT 52 (1991) 95-114.Frendo, A., The “Broken Construct Chain” in Qoh 10,10b: Bib 62 (1981) 544-545.Friedländer, M., Griechische Philosophie im Alten Testament, Berlim 1904, pp. 131-162.Galling, K., Kohelet-Studien: ZAW 50 (1932) 276-299.— Stand und Aufgabe der Kohelet-Forschung: ThR NF 6 (1934) 355-373.— The Scepter of Wisdom: A Note on the Gold Sheat of Zendjirli and Ecclesiastes 12:11:

BASOR 119 (1950) 15-18.

Page 97: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— Die Krise der Aufklärung in Israel. Mainzer Universitätsreden 19, 1952.— Prediger: PW 22/2 (Stuttgart 1954), 1827-31.— Predigerbuch: 3® ed., RGG V (1961) 510-514.— Das Rätsel der Zeit im Urteil Kohelets (Koh 3,1-15): ZThK 58 (1961) 1-15.Gammie, J.G., Stoicism and Anti-Stoieism in Qoheleth: HAR 9 (1985) 169-187.Gammie, J.G.- Perdue, L. (org.), The Sage in Israel and the Ancient Near East, Winona

Lake 1990.Garret, D.A., Qoheleth on the Use and Abuse of Political Power: TrinJ 8 (1987) 159-177. Gelio, R., Osservazioni critiche sul masal di Qoh. 7,5-7: Later 54 (1988) 1-15.Gemser, B., The Instructions of ’Onchsheshonqy and Biblical Wisdom Literature: SVT 7

(1960) 102-128.Genung, J.F., Words of Koheleth, Boston 1904.Gerson, A., Der Chacham Kohelet als Philosoph und Politiler. Ein Kommentar zum

biblischen Buche Kohelet, zugleich eine Studie zur religiösen und politischen Entwicklung des Volkes Israel im Zeitalter Herodes des Grossen, Frankfort 1905.

Gese, H., Die Krisis der Weisheit bei Kohelet, em: Les Segesses du Proche-Orient ancien.Colloque de Strasbourg 17-19 mai 1962, Paris 1963, 139-151.

Gianto, A., The Theme of Enjoyment in Qohelet: Bib 73 (1992) 528-532.Gilbert, M., La description de la vieillesse en Qohelet xii 1-7 est-elle allégorique? [Congress

Volume. Viena 1980]: SVT 32 (Leiden 1981) 96-109.Ginsberg, H.L., Studies in Kohelet, Nova York 1950.— Suplementary Studies in Koheleth: PAAJR 21 (1952) 35-62.— The Structure and Contents of the Book of Koheleth: SVT 3 (1955) 138-149.— Koheleth 12:4 in the Light ofUgaritic: Syria 33 (1956) 99-101.— The Qintessence of Kohelet, em: Biblical and Other Essays (Homenagem a N. Glatzer),

Harvard 1963, 47-59.— Ecclesiastes: EncyclJud 6 (1972) 349-355.Goldin, J., The End of Ecclesiastes: Literal Exegesis and its Transformation, em: Biblical

Motifs, Cambridge, Mass. 1966, 135-158.Gömez Aranda, M., Eel 12,1-7 interpretadopor Abraham ibn Eszra: Sef 52 (1992) 113-121. Gonzalo Maeso; D., Manual de Historia de la Literatura Hebrea, Madrid 1960, 171-174.

Good, E. M., Irony in the O.T. (cap.VI), Philadelphia 1965.— The Unfilled Sea: Style and Meaning in Ecclesiastes 1:2-11, em: Israelite Wisdom, Nova

York 1978, 59-73Gordis, R., Ecclesiastes 1,17-its Text and Interpretation: JBL 56 (1937) 323-330.— Quotations im. Wisdom Literature: JQR 30 (1939/40) 123-147.— The Heptad as an Element of Biblical and Rabbinic Style: JBL 62 (1943) 17-26.— The Original Language of Qohelet: JQR 37 (1946/47) 67-84.— Quotations as a Literary Usage in Biblical, Oriental and Rabbinic Literature: HUCA

22 (1949) 157-221.— The Translation-Theory of Qohelet Re-examined: JQR 40 (1949-50) 103-116.— Koheleth - Hebrew or Aramaic?: JBL 71 (1952) 93-109.— Was Koheleth a Phoenician?: JBL 74 (1955) 103-114.— Qohelet and Qumran - A Study of Style: Bib 41 (1960) 395-410.— The Wisdom of Koheleth, em: Poets, Prophets, and Sages, Bloomington 1971, 325-350.— The Word and the Book, Studies in Biblical Language and Literature, Nova York 1976. Gorssen, L., La cohérence de la conception de Dieu dans VEcclésiaste: EThL 46 (1970) 282­

324.Gottes Wort und Gottes Land (Homenagem a Hertzberg), Gotinga 1965.Grämlich, M.L., Qoheleth: Poet-Philosopher of Everyday Living: BibT 84 (1976) 805-812. Gray, G.B., Job, Ecclesiastes, and a New Babylonian Literay Fragment: ExpTim 31 (1919­

20) 440 443.Greene, W.C., Moira, Fate, Good, and Evil in Greek Thought, Harvard 1944.Grimm, W., Über die Stelle Koheleth 3,11b: ZWTh 23 (1880) 274-279.

Page 98: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Grimme, H., Babel und Koheleth - Jojakkin: OLZ 8 (1905) 432-438.Grootaert, A., L’Ecclésiastique est-il antérieur à l’Ecclesiaste?: RB 2 (1905) 67-73.Gunkel, H., Predigerbuch: 2s ed., RGGIV (Tubinga 1930) 1405-1408.Günther, J., Der Zusammenhang in Koh 3,11-15: ZAW 51 (1933) 79s.Hadas, M., Hellenistic Culture, Fusion und Diffusion, Nova York 1959.Harrison, R.K., Introduction to the O.T., Michigan 2® ed., 1971, 1072-1084.Heinisch, P., Prediger und Weisheit Salomos: Der Katholic XC/1 1910, 48.Hengel, M., Judentum und Hellenismus (WUNT 10), Tubinga 1969.— Juden, Griechen und Barbaren. Aspekte der Hellenisierung des Judentums in vor­

christlicher Zeit (SBSt 76), Stuttgart 1976.— The Political and Social History of Palestine from Alexander to Antiochus III (333-187

B.C.E.), em: The Cambridge Histoy of Judaism, II: The Hellenistic Age, Cambridge 1989, pp. 35-78 = Juden, Griechen und Barbaren, pp. 11-72.

Herder, J.G., Briefe, das Studiuih der Theologie betreffend, 2- ed., 1970 (carta 11).Hertzberg, H.W., Palästinische Bezüge im Buche Kohelet, em: Baumgärtel-Festschrift,

Erlangen 1959, 63-73.Hessler, B., Der verhüllte Gott. Der heilstheologische Sinn des Buches Ecclesiastes: ThGl

43 (1953) 347-359.Historia del puéblo judio, I, dirigida por H.H. Ben-Sasson, Madrid 1988.Höffken, P., Das EGO des Weisen. Subjectivierungsprozesse in der Weisheitsliteratur ThZ

41 (1985) 121-134.Holm-Nielsen, S., On the Interpretation of Qoheleth in early Christianity: VT 24 (1974)

168-177.— The Book of Ecclesiastes and the Interpretation of it in Jewish and Christian Theology:

ASTI 10 (1976) 38-96.Holstein, H., L’optimisme des livres sapientiaux: BibVïeChr 78 (1967) 34-44.Höpfl, H. - Bovo, S., De lïbro Ecclesiastis, em: Introductio specialis in VT, Nápoles, 6® ed.,

1963, 391-402.Horton, E., Koheleth’s Concept of Opposites as compared to Samples of Greek Philosephy

and Near and Far Eastern Wisdom Classics: Numen 19 (1972) 1-21 (cf. TDig23 (1975) 265-267).

Howe, G.R., The Christian Attitude to Work: ExpTim 90 (1979) 113-114.Humbert, P., Qohéleth: RThPh 3 (1915) 253-257.— Recherches sur les sources égyptiennes de la littérature sapientiale d’Israël. Mémoires

de l’Université de Neuchâtel 7 (1929).Hungs, Fr.-J., Ist das Leben sinnlos? Bibelarbeit mit dem Buch Kohelet (Prediger), Zurich

1980.Hurvitz, A., The Histoy of a Legal Formula: VT 32 (1982) 257-267.Hutchison, H., Are You A Good Loser?: ExpTim 90 (1979) 336-338.Irwin, W.A., Ecclesiastes 8,2-9: JNES 4 (1945) 130-131.— Eccles. 4:13-16: JNES 3 (1944) 255-257.Israelite and Judaean History (org. J.H. Hayes - J. Maxwell Miller) Philadelphia, Penn.,

1977Isaksson, B.; Studies in the Language of Qoheleth. With Special Emphasis on the Verbal

System. Acta Universitatis Upsaliensis (StSemUp 10), Upsala 1987.James, K.W., Ecclesiastes: Precursor of Existentialists: BibT 22 (1984) 85-90.Jasper, F.N., Ecclesiastes: A Note for Our Time: Interpr 21 (1967) 259-273.Jenni, E., Das Wort ‘oläm im Alten Testament: ZAW 64 (1952) 197-248; 65 (1953) 1-35.— ‘oläm Ewigkeit: THAT 2 (Munich 1976) 228-243.— ‘et Zeit: THAT 2 (Munich 1976) 370-385.Johnson, R.F., A Form-Critical Analysis of the Sayings in the Book of Ecclesiastes, Diss.

Emory 1973.Johnston, R.K., “Confessions of a Workaholic”: A Reappraisal of Qoheleth: CBQ 38 (1976)

14-28.

Page 99: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Johnstone, W., “The Preacher” as Scientist: SJTh 20 (1967) 210-221.Jong, St. de, A Book of Labour: The Structuring Principles and the Main Theme of The

Book ofQohelet: JSOT 54 (1992) 3-24.Joüon, P., Sur le nom de Qoheléth: Bib 2 (1921) 53-54.— Notes de syntaxe hébraïque 2: L’emploi du participe et du parfait dans l’Ecclésiaste: Bib

2 (1921) 225-226.— Notes philologiques sur le texte hébreu d’Ecclésiaste: Bib 11 (1930) 419-425.Kaiser, O., Die Sinnkrise bei Kohelet, em: Der Mensch unter dem Schicksal (BZAW 161),

Berlim 1985, 91-109.— Judentum und Hellenismus. Ein Beitrag zur Frage nach dem hellenistischen Einfluss

auf Kohelet und Jesus Sirach, em: Der Mensch unter dem Schicksal (BZAW 161), Berlim 1985, 135-153.

— Schicksal, Leid und Gott. Ein Gespräch mit dem Kohelet, Prediger Salomo, em: Altes Testament und christliche Verkündigung (Homenagem a A.H.J. Gunneweg) Stuttgart 1987, 30-51.

— Determination und Freiheit beim Kohelet IPrediger Salomo und in der Frühen Stoa: NZSThRPh 31 (1989) 251-270.

Kamenetzky, A.S., Das Koheleth-Rätzel: ZAW 29 (1909) 63-69.— Der Rätzelname Koheleth: ZAW 34 (1914) 225-228.— Die ursprünglich beabsichtigte Aussprache des Pseudonyms qhlt: OLZ 24 (1921) 11­

15.Kautzsch, K., Die Philosophie des A.Ts., Tubinga 1914.Keel, O., Die Vögel in Koh 10,20, em: Vögel als Boten (OBO 14), Friburgo-Gotinga 1977, 93­

102.Kleinert, P., Sind im Buche Kohelet ausserhebräische Einflüsse anzuerkennen?: ThStKr 56

(1883) 761-782.— Prediger Salomo: RE, 3® ed., 15,1904, 617-623.— Zur religions- und kulturgeschichtlichen Stelluag des Buckes Koheleth: ThStKr 82 (1909)

493-529.Klopfestein, M.A., Die Skepsis des Qohelets: TZ 28 (1972) 97-109.— “Kohelet und die Freude am Dasein”: TZ Al (1991) 97-107.Knopf, C.S., The Optimism of Koheleth: JBL 49 (1930) 195-199.Koch, Kl., Gibt es ein Vergeltungsdogma im AT?: ZThK 52 (1955) 1-42. Reimpreso em: Um

das Prinzip der Vergeltung in Religion und Recht des Alten Testaments (Wege der Forschung 125), Darmstadt 1972,130-180.

Köhler, A., Über die Grundanschauungen des Buches Kohelet, Erlangen 1885.Kugel, J.L., Qohelet and Money: CBQ 51 (1989) 32-49.Kuhn, G., Erklärung des Buches Koheleth (BZAW 43), Giessen 1926.Labate, A., L’apporto della Catena Hauniense sull’Ecclesiaste per il testo delle versioni

greche di Simmaco e della Settanta: RivBib 35 (1987) 57-61.Lang, B., Ist der Mensch hilflos? Zum Buch Konelet (Theol. Medit., 53), Zurich 1979.— Ist der Mensch hilflos? Das biblische Buch Kohelet neu und kritisch gelesem: ThQ 159

(1979) 109-124.Lapide, P., Eine Lektion der Vergänglichkeit. Kohelet bricht alle Koventionen der

Verkündigung: LM 18 (1979) 590-592.Lauha, A., Die Krise des religiösen Glaubens bei Kohelet: SVT 3 (1955) 183-191.— Kohelets Verhältnis zur Geschichte, em: Homenagem a H.W. Wolff, Neukirchen 1981

393-401.— Omnia vanitas. Die Bedeutung von hbl bei Kohelet, em: Glaube und Gerechtigkeit, I..

memoriam Rafael Gyllenberg, Helsinki 1983,19-25.Laurentini, G., Ecclesiaste o Qohelet, em: Introduzzione alla Bibbia, III, Bolonha 1978, pp.

423-442.Leahy, M., The Meaning of Eccl. XII. 1-5: ITQ 19 (1952) 297-300.Leanza, S., L’esegesi di Origene al libro dell’Ecclesiaste, Reggio Calabria 1975.

Page 100: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— La catena all’Ecclesiaste di Procopio di Gaza del Cod. Marc. gr. 22, (ff. 67v-83r): Studia Codicologica (TU 124), Berlim 1977, 279-289.

— Eccl.12,1-7: lïnterpretazione escatologica dei Padri e degli esegeti medievali: Augustin 18 (1978) 191-208.

— Le tre versioni geronimiane dell’Ecclesiaste: Annali di Storia del’esegesi (4/1987) 87­108.

— I condizionamenti dell’esegesi patristica. Un caso sintomático: Finterpretazione di Qohelet: Ricerche Storico Bibliche 2 (1990) 25-49.

Leiman, S., The Canonization of Hebrew Scripture. The Talmudic and Midrashic Evidence. Hamden, Conn., 1976.

Leimdörfer, D., Die Lösung des Koheleträtsels durch den Philosophen Baruch ihn Baruch, Berlim 1900.

Les Sagesses du Proche-Orient ancien, Paris 1963.Lévêque, J., La Sagesse en échec: Job et Qohelet, em: Job et son Dieu, Paris 1970, 654-679.Levine, E., Qohelet’s Fool. A Composite Portrait: On Humor and the Comic in the Hebrew

Bible. Edit, por Y.T. Radday and Ath. Brenner, Sheffield 1990, pp. 277-294 = JSOT SuppSer. 92.

Levy, I., Rien de nouveau sous le soleil: NC 5 (1953) 326-328.Lichtheim, M., Observations on Papyrus Insiger [and Qohelet, Sirach, Menander], em:

Studien zu altägyptischen Lebenslehren, Friburgo/Gotinga 1979 (OBO 28), 283-305.Lieberman, S., Palestine in the Third and Fourth Centuries: JQR 36 (1945/46) 329-370.— Hellenism in Jewish Palestine, Nova York 1962.— Greek in Jewish Palestine, Nova York 1965.Lifshitz, B., L’Hellenisation des Juifs de Paléstine: RB 72 (1965) 520-538.Loader, J.A., Qohelet 3,2-8. A “Sounet’ ” in the Old Testament: ZAW 81 (1969) 240-242.— Polar Structures in the Book of Qohelet (BZAW 152), Berlim 1979.Loewenclau, I. von, Kohelet und Socrates - Venach eines Vergleisches: ZAW 98 (1986) 327­

338.Lohfink, N., Das Siegeslied am Schilfmeer, Frankfurt do Meno 1965, 198-243 (sobre a

morte em Qoh, 211-224).— Valores actuates del Antiguo Testamento, Florida (Buenos Aires) 1966, 241-256 [= La

muerte según la mente del Cohelet (Eclesiastés)].— Technik und Tod nach Kohelet, em: Strukturen christlicher Existenz, Homenagem a F.

Wulf, Wurzburgo 1968, pp. 27-35.— War Kohelet ein Frauenfeind? Ein Versuch, die Logik und den Gegenstand von Koh.,

7,23-8,la herauszufinden, em: La Sagesse de 1’A.T., Gembloux-Lovaina 2- ed., 1990, 259-287.

— Der Bibel skeptische Hintertür. Versuch, den Ort des Buchs Kohelet neu zu bestimmem: StZeit 198 (1980) 17-31 [= Introduc. en el Com. a Kohelet, Stuttgart 1980].

— Melek, shallit und moshet bei Kohelet und die Abfassangszeit des Buchs: Bib 62 (1981) 535-543.

— Warum ist der Tor unfähig, böse zu handeln? (Koh 4,17): ZDMG Supp 5 (1983) 113-120.— Le temps dans le livre de Qohelet: Christus 125 (1985) 69-80.— Die Wiederkehr des immer Gleichen. Eine frühe Synthese zwischen griechischen und

jüdischen Weltgefühl in Kohelet 1,4-11: ArchivioFilos 53 (1985) 1 125-149.— Gegenwart und Ewigkeit; die Zeit im Buch Kohelet: GeistLeben 60 (1987) 2-12.— Koh 1,2 “alles ist Windhauch”-universale oder anthropologische Aussage?, em: R. Mosis

- L. Ruppert (orgs.), Der Weg zum Menschen. Zur philosophischen und theologischen Anthropologie, Friburgo 1989, 201-216.

— Kohelet und die Bankern: zur Übersetzung von Kohelet V 12-16: VT 39 (1989) 488-495— “Freu dich, junger Mann...” Das Schlussgedieht des Koheletbuches (Koh 11,9-12,8) BibKir

45 (1990) 12-19.— Das “Poikilometron”. Kohelet und Menippos von Gadara: BibKir 45 (1990) 19.— Von Windhauch, Gottesfurcht und Gottes Antwort in der Freude: BibKir 45 (1990) 26-32.

Page 101: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— Qoheleth 5:17-19- Revelation by Joy: CBQ 52 (1990) 625-635.Loretz, O., Zur Darbietungsform der “Ich-Erzählung” im Buche Qohelet: CBQ 25 (1963)

46-59.— Qohelet und der Alte Orient, Friburgo 1964.— Fleiches Los trifft alle! Die Antwort des Buches Qohelet: BibKir 20 (1965) 6-8.— Altorientalische und kanaanäische Topoi im Buche Kohelet: TJF 12 (1980) 267-278 [so­

bre 2,24-26; 3,12s; 5,17-19; 7,25-8,1; 9,7-16],Luder, E., Gott und Welt nach dem Prediger Salomo: SThU 28 (1958) 105-114.Lusseau, H., L’Ecclesiaste, em: Introduction à la Bible II (org. H. Cazelles), Paris 1974,

624-638. [Trad. cast. El Eclesiastés, em: Introducciôn a la Biblia, II. Introdución crítica al A.T., Barcelona 1981, 678-693],

Lux, Rüdiger, “Ich, Kohelet, bin König...”. Die Fiktion als Schlüssel zur Wirklichkeit in Kohelet 1,12-2,26: EvTh 50 (1990) 331-342.

Lys, D., Ruach. Le soufle dans l’A.T, Paris 1963, 322-328.— Par le temps qui court: EtThRel 48 (1973) 299-316 [= L’Ecclésiaste, 302-314.341.345].— L’Etre et le Temps. Communication de Qohèlèth, em: La Sagesse de l’A.T., Gembloux-

Lovaina 1979, 249-258.MacDonald, D.B., The Hebrew philosophical Genius: Princeton 1936, Reimpr. Nova York

1965.Magnanini, P., Sull’origine letteraria dell’Ecclesiaste: Annali dellTstituto Orientale di Napoli

18 (1968) 363-384.Maillot, A., La contradiction. Qoh. chap. 3,1-8: BibVieChr 96 (1970) 55-58.Maltby, A., The Book of Ecclesiastes and the After-Life: EvQ 35 (1963) 39-44.Mandry, St.A., There is no God! A. Study of the Fool in the O.T., particulary in Proverbs

and Qoheleth, Roma 1972.Margoliouth, D.S., The Prologue of Ecclesiastes: The Expositor 8 (1911) 463-470.Mazar, B., The Tobiads: IEJ 7 (1957) 137-145.229-238.McKenna, J.E., The Concept of Hebei in tie Book of Ecclesiastes: ScJourTh 45 (1992) 19-28.McNeile, A.H., An Introduction to Ecclesiastes with Notes and Appendices, Cambridge

1904.Menzel, P., Der griechische Einfluss auf Prediger und Weisheit Salomos, Halle 1889.Michaud, R., Qohelet et l’hellénisme, La littérature de Sagesse. Histoire et Théologis, II,

Paris 1987.Michel, D., Humanität angesichts des Absurden. Qohelet (Prediger) 1,2-3,15, em: Humanität

heute, Berlim 1970, 22-36.— Von Gott, der im Himmel ist (Reden von Gott bei Qohelet): ThViat 12 (1973/74), Berlim

1975, 87-100 = Untersuchungen, 274-289.— Qohelet-Probleme. Überlegungen zu Qoh 8,2-9 und 7,11-14: ThViat 15 (1979/80) Berlim

1982, 81-103 = Untersuchungen, 84-115.— Qohelet (Erträge der Forschung 258), Darmstadt 1988.— Untersuchungen zur Eigenart des Buches Qohelet. Mit einem Anhang: R. Lehmann,

Bibliographie zu Qohelet (BZAW 183), Berlim 1989.— Kohelet und die Krise der Weisheit. Anmerkungen zur Person, Zeit und Umwelt Kohelets:

BibKir 45 (1990) 2-6.— Probleme der Koheletsauslegung heute: BibKir 45 (1990) 6-11.— Zur Philosophie Kohelets. Eine Auslegung von Kohelet 7,1-10: BibKir 45 (1990) 20-25

[também estuda Qoh 1,3-3,15 em pp. 21-24].— Gott bei Kohelet. Anmerkungen zu Kohelets Reden von Gott: BibKir 45 (1990) 32-36.Middendorp, Th., Die Stellung Jesu ben Siras zwischen Judentum und Hellenismus, Leiden

1973, 85-91.Miller, A., Aufbau und Grundproblem des Predigers, em: Miscellanea Biblica 2 (1934) 104­

122.Mitchell, H.G., “Work” in Ecclesiastes: JBL 32 (1913) 123-138.Montgomery, J.A., Notes on Ecclesiastes: JBL 43 (1924) 241-244.

Page 102: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Morenz, S. - Müller, D., Untersuchungen zur Rolle des Schicksals in der ägyptischen Religion: AAL 52,1 (1960).

Muilenburg, J., A Qoheleth Scroll from Qumran: BASOR 135 (1954) 20-28.— The Biblical View of Time: HThR 54 (1961) 225-252.Mulder, J.S.M., Qoheleth’s Division and also its Main Point, em: Von Kanaan bis Kerala.

Homenagem a J.RM. van der Ploeg (AOAT 211), Neukirchen-Vluyn 1982, 149-159. Müller, H.-P., Wie sprach Qohälät von Gott?: VT 18 (1968) 507-521.— Neige der althebräischen ‘Weisheit’. Zum Denken Qohäläts: ZAW 90 (1978) 238-264.— Theonome Skepsis und Lebensfreude - Zu Koh 1,12-3,15: BZ 30 (1986) 1-19.— Der unheimliche Gast. Zum Denken Kohelets: ZThK 84 (1987) 440-464.Murphy, R.E., The “Pensées” of Coheleth: CBQ 17 (1955) 184-194.— A Form-Critical Consideration of Ecclesiastes VII, em: Society of Biblical Literature.

1974 Seminar Papers, Cambridge MA 1974,1 77-85.— Qohéletel escéptico: Cone 119 (1976) 358-363.— Qohelet’s “Quarrel” with the Fathers, em: From Faith to Faith. Essays in Honor of D.G.

Miller, Pittsburgh 1979, 235-245.— Wisdom Literature, Michigan 1981,125-149.— Qohelet interpreted: the Bearing of the Past on the Present: VT 32 (1982) 331-337.— On Translating Ecclesiastes: CBQ 53 (1991) 571-579.Neher, A., Notes sur Qohelet, Paris 1951.Nichols, W.F., Samuel Beckett and Ecclesiastes on the Borders of Belief: Encounter 45 (1984)

11- 22.Nilsson, M.P., Geschichte der griechische Religion, II Munich 1961.— Die hellenistische Schule, Munich 1955.Nishimura, T., Quelques réflexions sémiologiques à propos de “la crainte de dieu” de Qohelet: Annual of the Japanese Biblical Institute 5 (1979) 67-87.— Un mashal de Qohelet 1,2-11: RHPhR 59 (1979) 605-615.Nötscher, F., Zum emphatischen Lamed: VT 3 (1953) 372-380.— Schicksal und Freiheit: Bib 40 (1959) 446-462.Ogden, G.S., The Tob-Spruch in Qoheleth: Its Function and Significance as a Criterion for

Isolating and Identifying Aspects of Qoheleth’s Thought, Diss. Princeton 1975.— The “Better"-Proverb (Tôb-Spruch), Rhetorical Criticism, and Qoheleth: JBL 96 (1977)

489-505.— Qoheleth’s Use of the “Nothing is Better”-Form: JBL 98 (1979) 339-350.— Qoheleth ix 17-x 20. Variations on the Theme of Wisdom’s Strength and Vulnerability:

VT 30 (1980) 27-37.— Historical Allusion in Qohelet iv 13-16?: VT 30 (1980) 309-315.— Qoheleth ix 1-16: VT 32 (1982) 158-169.— Qoheleth xi 1-6: VT 33 (1983) 222-230.— Qoheleth xi 7-xii 8: Qoheleth’s Summons to Enjoyment and Reflection: VT 34 (1984) 27­

38.— The Mathematics of Wisdom. Qoheleth iv 1-12: VT 34 (1984) 446-453.— The Interpretation of dor in Ecclesiastes 1,4: JSOT 34 (1986) 91-92.— “Vanity” it Certainly is not: BibTransl 38 (1987) 301-307.— Translation Problems in Ec 5,13-17: BibTransl 39 (1988) 423-428.Osborn, N.D., A Guide for Balanced Living. An Exegetical Study of Ecclesiastes 7:1-14:

BibTransl 21 (1970) 185-196.Otzen, B., ‘ämal: TWAT VI (1989) 213-220.Palm, A., Qohelet und die nacharistotelische Philosophie, Mannheim 1885.— Die Qohelet-Literatur, Mannheim 1886.Parenti, A., De animae humanae immoratalitate in Eccl. 3,21: Greg 2 (1921) 117-121. Pautrel, R., Et tenebrescent videntes per foramina: RechScR 37 (1949) 305-309.— “Data sunt a pastore uno”: RechScR 41 (1953) 406-410.Pedersen, J., Scepticisme Israelite: RHPR 10 (1930) 317-370.

Page 103: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Pennacchini, B., Qohelet ovvero il libro degli assurdi: EuntesDoc 30 (1977) 491-510.Perdue, L., Wisdom and Cult, Missoula, Montana 1977.Pérez Rodriguez, G., El Eclesiastés, em: Manual bíblico, II, Madrid 1968, 558-572.Perrella, G.M., - Vagaggini, L., Guida alio studio dell’A.T. II, Padua 1965, 293-304.Peters, N., Ekklesiastes und Ekklesiastikus: BZ 1 (1903) 47-54. 129-150.Pfeiffer, E., Die Gottesfurcht im Buche Kohelet, em Gottes Wort und Gottes Land (Homena­

gem a Hertzberg), Gotinga 1965, 133-158.Pfeiffer, R.H., The Peculiar Skepticism of Ecclesiastes: JBL 53 (1934) 100-109.— Introduction to the O.T., Nova York 1948.— History of New Testament Times, Nova York 1949, reimpr. 1973.Philippe, E., Ecclésiaste: DB 2, Paris 1899, 1533-1543.Pidoux, G., A propos de la notion biblique du temps: RevThPh 2 (1952) 120-125.Pié-Ninot, S., La palabra de Dios en los libros sapienciales, Barcelona 1972, 135-146.Piotti, F., La Lingua dell’Ecclesiaste e lo sviluppo dell’Ebraico: BibOr 15 (1973) 185-196.— Il rapporta ira ricchi, stolti eprincipi in Qoh. 10,6-7 alla luce della letteratura sapienziale:

ScCat 102 (1974) 328-333.— Osservezioni su alcuni usi linguistici dell’Ecclesiaste: BibOr 19 (1977) 49-56 [Qo 1,3.8.17;

2,10; 7,28, 8.17],— Osservazioni su alcuni paralleli extrabiblici nell “allegoria délia vecchiaia” (Qohelet

12,1-7): BibOr 19 (1977) 119-128.— Osservazioni su alcuni problemi esegetici nell libro dell’Ecclesiaste: (Studio I): BibOr

20 (1978) 169-181.— Osservazioni su alcuni problemi esegetici nel libro dell’Ecclesiaste (Studio II): il canto

degli stolti (Qoh. 7,5): BibOr 21 (1979) 129-140.— Osservazioni su alcuni problemi esegetici nel libro dell’Ecclesiaste (Studio III): BibOr

22 (1980) 243-253.Plath, S., Furcht Gottes. Der Begriffy yr’ im Alten Testament, Stuttgart 1963.Plessis, SJ., du, cf. Du Plessis SJ.Ploeg, J. van der, Robert Gordis, Koheleth - The Man and his World: VT 4 (1954) 102-108.Plöger, O., Wahre die richtige Mitte; soil Mass ist in allem Beste!, em Gottes Wort und

Gottes Land, Gotinga 1965, 159-173.Plumptre, E.H., The Autor of Ecclesiastes. An Ideal Biography: The Expositor 11 (1880)

401-430.Podechard, E., La composition du livre de l’Ecclésiaste: RB 9 (1912) 161-191.Polk, T., The Wisdom of Irony: A Study ofhebel and its Relation to Joy and the Fear of God

in Ecclesiastes: SBTh 6 (1976) 3-17.Préaux, Cl., Le monde hellénistique, 7-77, Paris 1978.Preuss, H.D., Das Gottesbild der älteren Weisheit Israels, em: Studies in the Religion of

Ancient Israel (SVT 23), Leiden 1972,117-145.— Alttestamentliehe Weisheit Israels, em: BEThL 33 (1974) 165-181.— Einführung in die altt. Weisheitsliteratur (UrbanTB 383) 1987, 50-60.Quacquarelli, La lettura patristica di Qoèlet: VetChr 29 (1992) 5-17.Rabin, Ch., Hebrew and Aramaic in the First Century, em: The Jewish People, II, Assen/

Amsterdam 1976, pp. 1007-1039.Rad, G. von, Teologia delA.T. I, Salamanca 1972, 548-554.— Sabiduria en Israel, Madrid 1985: El libro del Eclesiastés, 286-298; Corolário a Job y

Eclesiastés, 298-300.Ramos, J., Nueva luz sobre la unidad y origen salomónico del Eclesiastés: IlustrClero 20

(1926) 155-158.Ranston, H., Koheleth and the Early Greels: JThSt 24 (1923) 160-169.— Eccelesiastes and the Early Greek Wisdom Literature, Londres 1925.Reif, S.C., Recension de Charles F. Whitley, Koheleth...: VT 31 (1981) 120-126.— A Reply to Dr C.F. Whitley: VT 32 (1982) 344-348.Reines, C.W., Koheleth on Wisdom and Wealth: JJS 5 (1954) 80-84.

Page 104: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— Koheleth 8:10: JJS 5 (1954) 86-87.Reuseh, F.H., Zur Frage über den Verfasser des Koheleth: ThQ 42 (1860) 430-469.Rhodoranakis, N., Zur Allegorie des Alters Koh 12: ZDMG (1914) 373s.Richards, H., What’s It All About? ANew Look at the Book of Ecclesiastes: ScrB 6 (1975) 7-11.Rodriguez, I., Una antigua estampa otonal (Eccli. 14,18 y paralelos clásicos): Helmántica

10 (1959) 383-390.Rodriguez Ochoa, J.M., Estúdio de la dimension temporal en Prov., Job y Qoh. El etemo

volver a comenzar en Qoh: EstBib 22 (1963) 33-67.Rofé, A., “The Angel” in Qohhelet 5:5 in the Light of A Wisdom Dialogue Formula: Eretz-

Israel 14 (1978) 105-109 (sumário em inglês).Rosenmüller, E.F.C., Scholia in Vetus Testamentum, IX/2 [Koheleth], Leipzig 1830, pp. 1­

248.Rosso-Ubigli, L., Qohelet di fronte all’apocalittica: Henoch 5 (1983) 209-234.Rostovtzeff, M., The Social and-Economic History of the Hellenistic World, Oxford 1941.Rousseau, F., Structure de Qohelet i 4-11 et plan du livre: VT 31 (1981) 200-217.Rowley, H.H., The Problems of Ecclesiastes: JQR 42 (1951/52) 87-90.Rudolf, W., Vom Buch Kohelet, Münster 1959.Rundgren, F., Greek Influence on the Book of Ecclesiastes, em Homenagem a B. Spuler,

Leiden 1981, 359-361.Sacchi, P., Da Qohelet al tempo di Gesù. Alcune linee del pensiero giudaico, em Aufstieg

und Niedergang der römischen Welt, II 19,1 (Berlim/Nova York 1979) 3-32.Sáenz-Badillos, A., Historia de la lengua hebrea, Sabadell 1988.Salkinowitz, G., Pessimistische Strömungen im Judentum, Berlim 1907.Salters, R.B., Qoheleth and the Canon: ExpTim 86 (1975) 339-342.— A Note on the Exegesis of Ecclesiastes 3,15b: ZAW 88 (1976) 419-422.— Text and Exegesis in Koh 10,19: ZAW 89 (1977) 423-426.— Notes on the History of the Interpretation of Koh 5,5: ZAW 90 (1978) 95-101.— Notes on the Interpretation of Qoh 6,2: ZAW 91 (1979) 282-289.— Exegetical Problems in Qoheleth: IrBibStud 10 (1988) 44-59.Saulnier, Ch., La crisis macabea (Cuadernos bíblicos 42), Estella (Navarra) 1985, 13-19.Saulnier, Ch.- Perrot, Ch., Histoire d’Israël, III: De la conquête d’Alexandre à la destruction

du temple (331 a.C.-135 a.D.), Paris 1985.Savignac, J. de, La sagesse du Qôhéléth et l’épopée de Gilgamesh: VT 28 (1978) 318-323.Sawyer, J.F.A., The Ruined House in Ecelesiastes 12: A Reconstruction of the Original

Parable: JBL 94 (1975) 519-531.Schäfer, P., The Hellenistic and Maccabean Periods, em: Israelite and Judaean History,

Philadelphia (Penn.) 1977, 539-604.Scheid, E.G., Qoheleth; criticism of values: BibT 25 (1987) 244-251.Schiffer, S., Das Buch Qohelet im Talmud und Midrasch, Leipzig 1884.Schmid, H.H., Wesen und Geschichte der Weisheit (BZAW 101), Berlim 1966,173-201.Schmidt, J., Koh 4,17: ZAW 58 (1940-41) 279-280.Schmitt, A., Zwischen Anfechtung, Kritik und Lebensbewältigung. Zur theologischen

Thematik des Buches Kohelet: TrTZ 88 (1979) 114-131.Schoors, A., La structure littéraire de Qoheleth: OrLovPer 13 (1982) 91-116.— Kohelet: A Perspective of Life after Death?: ETL 61 (1985) 295-303.— The Preacher Sought to Find Pleasing Words. A Study of the Language of Qohelet

(OrLovAn 41), Lovaina 1992.Schubert, M., Schöpfungstheologie bei Kohelet (Beitrage zur Erforschung des Alten

Testaments und des antiken Judentum 15), Frankfort 1989.Schunck, K.D., Drei Seleukiden im Buche Kohelet?: VT 9 (1959) 192-201.Schwertner, S., ‘ämel Mühsal: THAT II, Munich 1976, 332-335.Schwienhorst-Schönberger, L., “Nicht im Menschen selbst gründet das Glück...” (Koh 2,24):

Erbe Auftrag 67 (1991) 116-120.Scott, R.B.Y., Seconday Meanings o f ’har, After, Behind: JThSt 50 (1949) 178-179.

Page 105: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

— The Shekel Sign on Stone Weighs: BASOR 153 (1959) 32-35.— The Way of Wisdom in the Old Testament, Nova York 1971,163-189.Sellin, E. - Fohrer, G., Einleitung in das AT, Heidelberg, 10s ed., 1965, 365-373.Serrano, J.J., I Saw the Wicked Buried (Eccl 8:10): CBQ 16 (1954) 168-170.Seybold, K., hebel: ThWAT II (Stuttgart 1977) 334-343.Shaffer, A., The Mesopotamian Background of Qohelet 4:9-12: Eretz-Israel 8 (1967) 246­

250.— New Ligit on the“Tree-Ply Cord": Eretz-Israel 9 (1969) 159-160 (Sumário em inglês).

[4,9-1)]Shank, H.C., Qoheleth’s World and Life Wiew as seen in his Recurring Phrases: The

Westminster Theological Journal 37 (1974/75) 57-73.Sheppard, G.T., The Epilogue to Qoheleth as Thealogical Commentary: CBQ 39 (1977) 182­

189.— The Epilogue to Qoheleth (Qoh 12:13-14), em: Wisdom as Hermeneutical Construct

(BZAW 151), Berlim 1980, 121-129.Siméon, J.R, Le don du vivre: Qohelet: LumVie 38/191 (1989) 17-36.Smith, J.L., A Critical Evaluation of the Book of Ecclesiastes: JBR 21 (1953) 100-105. Spina, F.A., Qoheleth and the Reformation of Wisdom, Homenagem a G.E. Mendenhall,

Winona Lake 1983, 267-279.Staerk, W., Zur Exegese von Koh 10,20 und 11,1: ZAW 59 (1942-43) 216-218.Staples, W.E., The “Vanity” of Ecclesiastes: JNES 2 (1943) 95-104.— “Profit” in Ecclesiastes: JNES 4 (1945) 87-96.— Vanity of Vanities: CJT 1 (1955) 141-156.— The Meaning ofhepes in Ecclesiastes: JNES 24 (1965) 110-112.Steinmann, J., Ainsi parlait Qohèlèt (Lire la Bible 38), Paris 1955.Stern, M., Palestina bajo el dominio de los reinos helenísticos, en Historia del pueblo judio,

I 221-227.— Estructura social y gubernamental de Judea bajo Tolomeos y Seléucidas, em Historia

del pueblo judio, I 229-239.— Los decretos contra la religion judia y el estabelecimiento dei estado asmoneo, em Historia

del pueblo judio, 1241-258.— El Estado asmoneo, em Historia del pueblo judio, I 259-282.Stiglmair, A., Weisheit und Jahweglaube bei Qohelet, Diss. theol., Tréveros 1969.— Weisheit und Yahwegleube im Buch Kohelet: TrTZ 83 (1974) 257-283.339-368.Stock, G., Nochmals Koheleths Pessimismus, em: Schopenhauer-Jahrbuch 43, Frankfort

do Meno 1962, 107-110.Stockhammer, M., Koheleths Pessimismus, em: Schopenhauer-Jahrboch 41, Frankfurt do

Meno 1960, 52-81.Stone, E., Old Man Koheleth: JourBibRel 10 (1942) 98-102.Strange, M., The Question of Moderation in Eccl. 7,15-18, Washington 1969.Stranzinger, E., Die Jeaseitsvorstellungen bei Koheleth, Viena 1962.Strauss, H., Erwägungen zur seelsorgerlichen Dimension von Kohelet 12,1-7: ZTK 78 (1981)

267-275.Taradach, M., Le Midrash, Genebra 1991.Tarn, W.W. - Griffith, G.T., Hellenistic Civilization, Cleveland-Nova York 1966, 210-238. Tcherikover, V., Hellenistic Civilization and the Jews, Philadelphia 1966.The Sage in Israel and the Ancient Near East (orgs. J.G. Gammie - L. Perdue), Winona

Lake 1990.Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament (ThHAT) vol.I-II, edit, por E. Jenni -

CI. Westermann (Munich 1971.1976).Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament (TWAT), org. por GJ. Botterweck - H.

Ringgren (Stuttgart 1973-).Thexton, S.C., We will remember: ExpTim 90 (1978) 19-20.Thomas, D.W., A Note on bfmaddã^ka in Ecles. X.20: JTS 50 (1949) 177.

Page 106: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Torrey, C.C., The Question of the Original Language ofQohelet: JQR 39 (1948) 151-160.— The Problem of Ecclesiastes iv 13-16: VT 2 (1952) 175-177.Tyler, Th., Ecclesiastes. An Introduction to the Book; an Exegetical Analysis; and a

Translation with Notes, Londres, 2a ed., 1899 (1874).Ullendorf, E., The Meaning of qhlt: VT 12 (1962) 215.Vaccari, A., Institutiones biblicae scholis accommodotae, II: De libris V. Ti. Ill: De libris

didacticis, nn. 80-88, Roma 1935, pp. 75-84.Vahldieck, F., Beiträge zum Verständnis des Buches Kohelet mit besonderer Berücksichtigung

des Unsterblichkeitsproblems, Leipzig 1896.Vajda, G., Ecclésiaste xii 2-7, interprété par un auteur juif d’Andalousie du XIe siècle: JSSt

27 (1982) 33-46.Vallet, O., Menus propos de Qohélet ou l’art de mourir un peu moins selon l’Ecclésiaste,

Limoges 1976.Vattioni, F., Niente di nuovo sotto il sole: RivBib 7 (1959) 64-67.Verheij, A., Paradise Retried: On Qohelet 2,4-6: JSOT 50 (1991) 113-115.Vigouroux, F., Ecclésiaste, em: Manuel biblique, II, Paris, 12® ed., 1906, nn. 842-859, pp.

504-532.Vilchez, J., Historia de la investigation sobre la literatura sapiencial, em L. Alonso - J.

Vilchez, Proverbios, Madrid 1984, pp. 39-92.Vischer, W., Der Prediger Salomo im Spiegel des Michel de Montaigne. Ein Brevier von

Wilhelm Vischer, Pfullingen 1981.Vogel, D, Koheleth and the Modern Temper: Tradition 2/1 (1959) 82-92.Vogels, W., Performance vaine e, performance saine chez Qohélet: NRT 113 (1991) 363-385. Vogt, E., Fragmentum Qohelet ex Qumrân: Bib 36 (1955) 265-266.Wagner, M., Die lexikalischen und grammatikalischen Aramaismen... (BZAW 96), Berlim,

1996.Waldman, N.M., The dabär ra‘ of Eccl 8:3: JBL 98 (1979) 407-408.Walsh, J.T., Despair as a Theological Virtue in the Spirituality of Ecclesiastes: BiTheolBull

12 (1982) 46-49.Wendland, P., Die hellenistisch-römische Kultur, Tubinga, 4s ed., 1972.Werbeck, W., Predigerbuch: RGG, 3s ed., V (Tubinga 1961) 510-514.White, G.,Luther on Ecclesiastes and the Limits of Human Ability: NZSTh29 (1987) 180-194. Whitley, Ch.F., Kohelet. His Language and Thought (BZAW 148), Berlim 1979.— Koheleth and Ugaritic Parallels: UF 11 (1979) 811-824.— A Reply to Dr S.C. Reif: VT 32 (1982) 344-346.Whybray, R.N., Qohelet the Immoralist? (Qoh 7:16-17), em: Israelite Wisdom, Nova York

1978, 191-204.— Conservatisme et radicalisme dans Qohelet, em: Sagesse et religion [Colloque de

Strasbourg 1976], Paris 1979, 65-81.— The Identification and Use of Quotations in Ecclesiastes, em: Congress Volume. Vienna

1980 (SVT 32), Leiden 1981, 435-451.— Qoheleth, Preacher of Joy: JSOT 23 (1982) 87-98.— Ecclesiastes 1,5-7 and the Wonderns of Nature: JSOT 41 (1988) 105-112.Williams, J.G., What Does It Profit a Man? The Wisdom of Koheleth: Judaism 20 (1971)

179-193 e em: Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York 1976, 375-389. Williams, N.D., A Biblical Theology of Ecclesiastes. Diss. Dallas 1984.Wilson, G.R., “The words of the wise”: the Intent and Significance of Qoheleth 12,9-14: JBL

103 (1984) 175-192.Windel, R., Luther als Exeget des Predigers Salomo, Halle 1897.Wisdom in Israel and in the Ancient Near East, Homenagem a H.H. Rowley (SVT 3), Leiden,

1955Wise, M.O; A Calque from Aramaic in Qoheleth 6:12, 7:12 and 8:13: JBL 109 (1990) 249-257. Witzenrath, H., Süss ist das Licit... Eine literaturwiss. Untersuchung zu Kohelet 11,7-12,7,

St. Ottilien 1979.

Page 107: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Wölfel, E., Luther und die Sketsis. Eine Studie zur Kohelet-Exegese Luthers, Munich 1958.Wright, A.G., The Riddle of the Sphinx: The Structure of the Book of Qohelet: CBQ 30

(1968) 313-334 = Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York 1976, 245-266.— The Riddle of the Sphinx Revisited: Numerical Patterns in the Bock of Qoheleth: CBQ

42 (1980) 38-51.— For Everything There is a Season”: The Structure and Meaning of the Fourteen Opposites

(Eccl 3,2-8), em: De la Tôrah au Messie, Melanges H. Cazelles, Paris 1981, 321-328.— Additional Numerical Patterns in Qohelet: CBQ 45 (1983) 32-43.Wright, J.S., Interpréter l’Eeclésiaste: Hok 13 (1980) 50-64.Wünsche, A., Der Midrasch Kphelet, Leipzig 1880.Würthwein, V., Die Weisheit Ägypten und das Alte Testament, Marburg 1960.Zapletal, V., Die vermeintlichen Einflüsse der griechischen Philosophie im Buche Kohelet:

BZ 3 (1905) 32-39.128-139.Zeitlin, S., The Tobias Family and the Hasmoneans. A Historical Study in the Political and

Economic Life of the Jews of the Hellenistic Period, em: PAAJR IV (1932- 1933) 169­223.

Zeller, E., Die Philosophie der Griechen, 77-7/7, Leipzig 1879-1923.Zimmerli, W., Zur Strulturanalyse der altt. Weisheit: ZAW 10 (1933) 177ss.— Der Mensch und seine Hoffnung im Alten Testament, Gotinga 1968.— Das Buch Kohelet-Traktat oder Sentenzensammlung?: VT 24 (1974) 221-230.— “Unveränderbare Welt” oder “Gott ist Gott’”? Ein Plädoyer für die Unaufgebbarkeit des

Predigerbuches in der Bibel, em: Wenn nicht jetzt, wann dann? (Homenagem a HJ. Kraus), Neukirchen 1983, 103-144.

Zimmermann, F., Notes on Some Difficult O. T. Passages: JBL 55 (1936) 303-308.— The Aramaic Provenance of Qohelet: JQR NS 36 (1945/46) 17-45.— The Question of Hebrew in Qohelet: JQR 40 (1949) 79-102.— The Inner World of Qohelet, Nova York 1973.Zirkel, G., Untersuchungen über den Prediger mit philosophischen und kritischen

Bemertungen, Wurzburgo 1792.Zuck, R.B., God and Man in Ecclesiastes: BibliothSacra 148 (1991) 46-56.

Page 108: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

TEXTO

Page 109: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

TEXTO DE QOHÉLET

1,1 Palavras de Qohélet, filho de Davi, rei em Jerusalém.2 Vaidade de vaidades — diz Qohélet — ;

vaidade de vaidades, tudo é vaidade!3 Que ganho tem o homem em todas as fadigas com que se

afadiga sob o sol?4 Uma geração vai, outra geração vem,

enquanto a terra permanece para sempre.5 Sai o sol, põe-se o sol,

arqueja para chegar a seu posto e volta a sair daí.6 Caminha ao sul, gira ao norte,

gira e gira caminha o vento,e volta o vento a girar.

7 Todos os rios caminham ao mar e não se enche o mar;aonde caminham os rios, para lá voltam a caminhar.

8 Cansam todas as coisase ninguém é capaz de expressá-las.Não se saciam os olhos de ver nem se fartam os ouvidos de ouvir.

9 O que passou isso passará, o que aconteceu acontecerá:Nada de novo há sob o sol.

10 Se de alguma coisa se diz:“Olha, isso é novo!”,já aconteceu em outros tempos muito antes de nós.

11 Dos antigos ninguém se lembrae o mesmo passará com os que vierem:Deles não se recordarão seus sucessores.

Page 110: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12 Eu, Qohélet, fui rei de Israel em Jerusalém.13 Dediquei-me a pesquisar e investigar com sabedoria

tudo o que se faz sob o céu.Esta triste tarefa deu Deus aos homens para que com ela se atarefem.

14 Examinei todas as ações que se fazem sob o sol:Tudo é vaidade e caça de vento;

15 o torto não se pode endireitar,o que falta não se pode computar.

16 Pensei comigo: eis que aqui estou,eu que aumentei e incrementei a sabedoriamais do que todos os meus predecessores em Jerusalém;atingiu minha mente grande sabedoria e saber.

17 Assim que, apliquei minha mente para conhecer a sabedoria e o saber, a loucura e a nescidade.Compreendi que isso também é caça de vento,

18 pois a mais sabedoria mais pesadume, e aumento do saber, aumento do sofrer.

2,1 A mim mesmo disse:Vamos, provar-te-ei com a alegria,e goza dos prazeres;porém também isto é vaidade.

2 Do riso eu disse: “loucura”,e da alegria: “o que consegue?”

3 Eu promovi em meu coração a investigação ao seduzir meu corpo com o vinho— enquanto meu coração se comportava com sabedoria — e ao dar-me à loucura,até que averiguasse o que é o bem para o homem, para que o realize sob o céu nos dias contados de sua vida.

4 Realizei obras magníficas: construí-me palácios, plantei-me vinhedos.

5 Fiz-me hortos e parquese neles plantei todo tipo de árvores frutíferas.

6 Fiz-me represas para irrigar com elas o bosque fértil.7 Adquiri escravos e escravas,

e tinha outros nascidos em casa;tive também em grande número rebanhos de vacas e ovelhas, mais que meus predecessores em Jerusalém.

Page 111: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

8 Acumulei também para mim prata e ouro, e tesouros de reis e das províncias.Procurei-me cantores e cantorase o prazer dos homens: um harém de concubinas.

9 Fui maior e mais magnífico que todos os que me precederam em Jerusalém,e, mais ainda, permaneceu minha sabedoria comigo.

10 E tudo o que desejaram meus olhos, não lho neguei; não recusei a meu coração alegria alguma,pois alegrava-se meu coração de todas as minhas fadigas e era esse o pagamento de todas as minhas fadigas.

11 Refleti então sobre todas as obras de minhas mãos e sobre a fadiga que me custou realizá-las,e eis que tudo é vaidade e caça de vento; nada se tira sob o sol.

12 E pus-me a refletir sobre a sabedoria, a loucura e a nescidade. Pois, que tipo de homem sucederá ao rei,que eles mesmos tinham nomeado em outro tempo?

13 E observei atentamente que a sabedoria leva vantagem sobre a nescidade, como a tem a luz sobre as trevas.

14 O sábio tem os olhos na cara, o néscio caminha em trevas. Porém compreendi também que uma mesma sorte toca a todos.

15 Então pensei comigo:como a sorte do néscio será também a minha.Então, para que sou sábio? Onde está a vantagem?E pensei comigo: também isso é vaidade.

16 Pois ninguém se recordará do sábio nem tampouco do néscio para sempre,uma vez que nos dias vin douros já tudo estará esquecido. Como é possível que tenha que morrer o sábio como o néscio!

17 E aborreci a vida, porque pesavam sobre mim como coisa má as ações que se fazem sob o sol;pois tudo é vaidade e caça de vento.

18 E aborreci todo o fruto de meu esforço pelo qual me afadigo sob o sol,pois devo deixá-lo a meu sucessor,

19 e quem sabe se será sábio ou néscio?Certamente terá domínio pleno sobre tudo

Page 112: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

o que consegui com tanto esforço e sabedoria.Também isso é vaidade.

20 E acabei por desesperar em meu coração de todo trabalho pelo qual me afadiguei sob o sol.

21 Pois há quem trabalha com sabedoria, ciência e acerto,e tem que deixar sua porção a alguém que para isso não se afadigou.Também isso é vaidade e grande desgraça.

22 Porque, o que tira o homem de todas as suas fadigas e preocupações com que se afadiga sob o sol?

23 De dia sua tarefa é sofrer e penar, nem sequer de noite descansa seu coração.Também isso é vaidade.

24 Nada há de melhor para o homem que comer, beber e desfrutar de seu trabalho.Também observei que isso vem da mão de Deus.

25 Pois, quem pode comere quem pode gozar independentemente dele1?

26 Já que ao homem que lhe agrada ele dá sabedoria, ciência e alegria;porém a quem lhe desagrada impõe-lhe ele a tarefa de ajuntar e acumular,para dá-lo depois a quem agrada a Deus.Também isso é vaidade e caça de vento.

3,1 Para tudo há uma hora,e um tempo para todo assunto sob o céu;

2 Um tempo para nascer, um tempo para morrer;um tempo para plantar, um tempo para colher o que se plantou;

3 um tempo para matar, um tempo para curar; um tempo para destruir, um tempo para edificar;

4 um tempo para chorar, um tempo para rir;um tempo para fazer luto, um tempo para dançar;

5 um tempo para jogar pedras, um tempo para recolher pedras; um tempo para abraçar, um tempo para abster-se do abraço;

6 um tempo para buscar, um tempo para perder; um tempo para guardar, um tempo para tirar;

7 um tempo para rasgar, um tempo para costurar; um tempo para calar, um tempo para falar;

8 um tempo para amar, um tempo para odiar; um tempo para a guerra, um tempo para a paz.

Page 113: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

9 Que ganho tem o trabalhador com suas fadigas?10 Observei a tarefa que Deus impôs aos homens

para que com ela se atarefem.11 Tudo ele fez belo a seu tempo.

Também pôs a eternidade em seu coração.Sem que o homem possa abarcar as obras que Deus faz do princípio ao fim.

12 Compreendi que nada há de melhor para eles senão alegrar-se e passar bem na vida.

13 Mas também que o homem coma e beba e desfrute de todo o seu trabalho é dom de Deus.

14 Compreendi que tudo o que Deus faz, durará para sempre. Nada se lhe pode acrescentar, e nada se lhe pode tirar.Assim Deus fez que o temam.

15 O que foi já foi, e o que será já foi; e Deus vai em busca do passado.

16 Outra coisa observei sob o sol:No lugar do direito, ali a iniqüidade; no lugar da justiça, ali a iniqüidade.

17 E pensei: o justo e o mau julgá-los-á Deus.Pois há um tempo para cada assuntoe para cada ação um lugar.

18 Pensei acerca dos homens: prova-os Deuse lhe faz ver que por si mesmos são animais.

19 Pois a sorte dos homens e a sorte dos animais é a mesma sorte. Como morrem uns, morrem os outros; todos têm o mesmo alento. E o homem não supera os animais.Tudo é vaidade.

20 Todos caminham ao mesmo lugar, todos vêm do pó e ao pó voltam todos.

21 Quem sabe se o alento do homem sobe para o alto e o alento do animal desce à terra?

22 E assim observei:que nada há de melhor que o homem desfrute do que faz: essa é sua parte;pois quem poderá levá-lo a desfrutar do que virá depois dele?

4,1 E outra vez observei todas as opressões que se cometem sob o sol; e eis as lágrimas dos oprimidos, mas eles não têm consolador;

Page 114: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

e da parte de seus opressores, violência, mas eles não têm consolador.

2 E proclamei os mortos que já morreram mais ditosos que os vivos que ainda vivem,

3 porém melhor do que os dois, o que ainda não existiu, o que não viu as más obras que se fazem sob o sol.

4 E observei também que todo trabalho e todo êxito nos empreendimentosnão é senão rivalidade entre companheiros.Também isso é vaidade e caça de vento.

5 O néscio cruza os braços e devora-se a si mesmo.6 Melhor é um punhado com tranqüilidade do que dois punhados

com trabalho e caça de vento.7 E observei outra vaidade sob o sol:8 Alguém está só sem companheiro, sem filhos nem irmãos;

no entanto, trabalha sem descanso,não está contente com suas riquezas.Mas para quem trabalho eu e me privo de satisfações?Também isso é vaidade e triste tarefa.

9 Melhor dois que um só,visto que terão bom ganho em seu trabalho.

10 Porque, se caírem, um levantará seu companheiro;mas ai do solitário que cair e não houver outro que o levante!

11 Ademais, se dois se deitam juntos, aquecem-se; um só como se aquecerá?

12 E se atacarem um, dois juntos resistirão:a corda de três cabos não se rompe facilmente.

13 Mais vale jovem pobre e sábio que rei velho e néscio, que não mais sabe deixar-se aconselhar.

14 Pois saiu do cárcere para reinar,embora durante seu reinado nascesse pobre.

15 Observei que todos os viventes, que caminham sob o sol, estavam da parte do jovem, o segundo, que ocupou seu lugar;

16 era inumerável o povo, aqueles todos à cuja frente estava. Tampouco os que vierem atrás se alegrarão com ele.Pois também isso é vaidade e caça de vento.

17 Vigia teus passos quando fores à casa de Deus: aproximar-se para escutar vale maisque o sacrifício que oferecem os néscios que não sabem sequer fazer o mal.

Page 115: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

5,1 Não te precipites com tua boca nem se apresse teu coração a proferir uma palavra diante de Deus.Porque Deus está no céu e tu na terra.Portanto, sejam tuas palavras contadas.

2 Porque o sonho provém das muitas preocupações e nas muitas palavras se escuta o néscio.

3 Quando fizeres um voto a Deus, não tardes em cumpri-lo; porque não lhe agradam os néscios; o que prometes, cumpre-o.

4 Melhor é que não faças voto nenhum do que fazê-lo e não cumpri-lo.

5 Não permitas que tua boca te faça cair em pecado;nem digas depois diante do mensageiro que foi por inadvertência. Não aconteça que Deus se irrite pelo que dizes e destrua a obra de tuas mãos.

6 Pois na multidão de sonhos e vaidades, há realmente muitas palavras.Tu, ao invés, teme a Deus.

7 Se vires numa província a opressão do pobre,a violação do direito e da justiça, não te estranhe essa situação; porque uma autoridade vigia sobre outra autoridade, e sobre elas uma maior.

8 Vantagem de um país em tudoé que o rei esteja preocupado com o campo.

9 O que ama o dinheiro não se farta dele,e quem ama as riquezas não as aproveita.Também isso é vaidade.

10 Quando aumentam os bens, aumentam os que os comem, e o que resta a seu dono senão o espetáculo de seus olhos1?

11 Doce é o sono do trabalhador, coma pouco ou coma muito; mas ao rico a abundância não lhe permite dormir.

12 Existe um grave mal que observei sob o sol: riquezas guardadas para o mal de seu dono.

13 Em mau negócio perde essa riqueza;e fica o filho que lhe nasceu de mãos vazias.

14 Assim como saiu do ventre de sua mãe, nu, assim também tornará a ir-se como veio;e nada se levará do trabalho de suas mãos.

15 Também isso é um grave mal.Assim como veio, assim também irá.

Page 116: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

E que vantagem terá quem trabalhou para o vento ?16 Ademais, em todos os seus dias come em trevas,

com grande pena, aflição e desgosto.

17 Isto é o que compreendi:A felicidade perfeita consiste em comer,beber e desfrutar de todo o trabalhocom que alguém se afadiga sob o sol nos poucos diasde vida que Deus lhe deu.É esse seu pagamento.

18 Se a um homem concede Deus riquezas e tesouros e a faculdade de comer deles e levar sua partee desfrutar de seu trabalho; isso sim que é dom de Deus.

19 Pois não pensará muito nos dias de sua vida,já que Deus o tem absorto na alegria de seu coração.

6,1 Há um mal que vi sob o sol e pesa amiúde sobre o homem:2 Alguém a quem Deus dá riquezas, tesouros e honras,

sem que lhe falte nada de tudo que possa desejar; porém Deus não lhe concede comer disso,porque um estranho o consome.Isso é vaidade e grave mágoa.

3 Suponhamos que um homem tem cem filhos e vive muitos anos,de sorte que sejam muitos os dias de sua vida; mas não pode saciar-se de seus bens,e, embora para ele não haja sepultura, eu afirmo: melhor que ele é um abortivo,

4 pois chega inutilmente e vai-se às escuras; fica seu nome oculto na escuridão.

5 Sequer viu o sol, nem o conheceu; mas este descansa mais que o outro,

6 E ainda que viva dois mil anos, se não é feliz, não vão todos ao mesmo lugar?

7 Toda a fadiga do homem é para a boca, mas o apetite não se sacia.

8 Que vantagem tem o sábio sobre o néscio e o pobre que sabe haver-se na vida?

9 Melhor é o que vêem os olhos do que o divagar dos desejos. Tambem isso é vaidade e caça de vento.

Page 117: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

10 O nome do que existe faz tempo que foi chamado e sabe-se que é homem,e não poderá enfrentar quem é mais forte do que ele.

11 Quando há muitas palavras, essas aumentam a vaidade.Que aproveita isso ao homem?

12 Pois, quem sabe o que é bom para o homem em sua vida, esses dias contados de sua vida tênueque os passa como uma sombra?Pois quem fará saber ao homem o que sucederá depois dele sob o sol?

7,1 Melhor é um bom nome do que um bom perfume e o dia da morte que o dia do nascimento.

2 Melhor éir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festas, porque nisso acaba todo homem;e o que ainda vive, reflete.

3 Melhor é o pesar que o riso,pois com a tristeza do rosto alegra-se o coração.

4 O coração do sábio na casa em lutoe o coração do néscio na casa da alegria.

5 Melhor é escutar a repreensão do sábio que escutar o canto dos néscios,

6 pois como crepitar de gravetos sob o caldeirão assim é o riso do néscio.Porém também isso é vaidade.

7 Pois a opressão perturba o sábio e o suborno corrompe o juízo.

8 Melhor é o fim de um assunto que seu princípio, melhor é o paciente que o soberbo.

9 Não te deixes arrebatar pela cólera, porque a cólera aloja-se no peito dos néscios.

10 Não digas:Por que os tempos passados foram melhores que os de agora ? Porque não é de sábio perguntar sobre isso.

11 Boa é a sabedoria acompanhada de patrimônio, e proveitosa aos que vêem o sol.

12 Pois à sombra da sabedoria, à sombra do dinheiro; mas a vantagem da ciência é que a sabedoriadá a vida a seu dono.

13 Observa a obra de Deus:quem poderá endireitar o que ele torceu ?

Page 118: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

14 No dia bom mantém-te no bem e no dia mau reflete.Tanto um como o outro os fez Deus,de sorte que o homem não possa averiguar nada depois dele.

15 De tudo vi em minha vida sem sentido:Gente honrada que perece em sua honradeze gente malvada que vive longamente em sua maldade.

16 Não queiras ser excessivamente justo, nem te mostres excessivamente sábio.Por que tens que te destruir?

17 Não queiras ser demasiado mau, nem sejas néscio.Por que tens que morrer fora de teu tempo ?

18 E bom que retenhas isso e não soltes aquilo.Pois quem teme a Deus tudo lhe sai bem.

19 A sabedoria faz o sábio mais forte do que dez chefes na cidade.20 Realmente não há ninguém no mundo tão honrado,

que faça o bem sem cometer um só erro.21 Não dês atenção a tudo o que se diz,

já que jamais ouvirás teu servo quando te maldiz,22 pois sabes de muitas vezes que também tu amaldiçoaste a outros.23 Tudo isso examinei com sabedoria.

Eu disse: vou ser sábio,a sabedoria, porém, fica longe de mim.

24 Longe está o que existe e profundo, profundo, quem o descobrirá'?25 Voltei-me interiormente para investigar a fundo

e buscar sabedoria e reta avaliação,e para reconhecer que iniqüidade é insensatez e a nescidade loucura.

26 E descubro que a mulher é mais amarga do que a morte,pois ela é uma armadilha e rede seu coração, laços seus braços. Quem agrada a Deus libertar-se-á dela, mas o pecador ficará preso a ela.

27 Olha o que averiguei — diz Qohélet — >quando me pus a averiguar a reta avaliação passo a passo;

28 o que ainda continuo buscando e ainda não encontrei: um homem entre mil encontrei,mas entre todos estes não encontrei uma mulher.

29 Olha o único que encontrei:Deus fez o homem reto,mas eles idealizaram muitas maquinações.

Page 119: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

8,1 Quem como o sábio?E quem é o que conhece a interpretação de um assunto?A sabedoria do homem ilumina seu rosto e transforma a dureza de seu semblante.

2 Eu digo:Observa o mandato do rei pelo juramento diante de Deus.

3 Não te afastes de sua presença precipitadamente, nem te obstines em assunto desagradável,pois ele pode fazer o que lhe aprouver.

4 Porque a palavra do rei é soberana, e quem lhe vai dizer: O que fazes?

5 Quem cumprir o mandato, nada sofrerá de mau;o coração do sábio acerta com o momento e modo adequado.

6 Com efeito, todo assunto tem seu momento e seu modo adequado, pois é grande o mal que ameaça o homem;

7 já que ele não sabe o que acontecerá,pois quem lhe vai anunciar quando acontecerá?

8 O homem não tem poder sobre o vento, de sorte que o retenha; nem existe poder sobre o dia da morte,nem há evasiva na batalha,nem a maldade poderá livrar tampouco o infrator.

9 Tudo isso tenho observado,ao fixar-me em tudo o que se faz sob o sol,enquanto o homem exerce seu domínio sobre outro para seu mal.

10 E então observei:Os maus se aproximam e entram e saem do lugar sagrado, e gloriam-se na cidade porque agem assim.Também isso é vaidade.

11 Porque não se executa com rapidez a sentença contra as más ações,por isso transborda o coração dos homens para fazer o mal.

12 Pois o pecador faz cem vezes o mal e, no entanto, tem vida longa;ainda que eu saiba disso:“Irá bem para os que temem a Deus porque o temem,

13 mas não irá bem ao malvadonem se prolongarão seus dias como uma sombra, porque não tem temor na presença de Deus”.

14 Há uma vaidade que acontece na terra:que há justos aos quais toca a sorte dos malvados, ao passo

Page 120: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que há malvados aos quais toca a sorte dos justos.Digo que também isso é vaidade.

15 Eu louvo a alegria, porque o único bem do homem sob o sol não é senão comer, beber e alegrar-se;isso o acompanhará em seu trabalho durante os dias de sua vida que Deus lhe regalou sob o sol.

16 Quando me dediquei a conhecer a sabedoriae a observar as tarefas que se realizam na terra — pois os olhos do homem não conhecem o sono nem de dia nem de noite — ,

17 observei todas as obras de Deus:o homem não pode averiguar o que se faz sob o sol;por isso se afadiga o homem na busca, mas nada averiguará;e ainda que o sábio diga que o sabe, não poderá averiguá-lo.

9,1 Por suposto, sobre tudo isso refleti e vi tudo isto:Que os justos e os sábios com suas obras estão nas mãos de Deus. O homem não tem conhecimento nem do amor nem do ódio; tudo está diante dele.

2 Tudo sucede a todos da mesma maneira:um mesmo é o destino para o justo e o malvado, para o puro e para o impuro,para quem oferece sacrifícios e para quem não os oferece,para o bom e para o pecador,para o que jura e para o que tem reparos em jurar.

3 Este é o mal de tudo o que acontece sob o sol: que o mesmo é o destino para todose que, ademais, o coração do homem está cheio de maldade, e enquanto vivem pensam loucuras, e depois, morrer!

4 Certamente, para quem vive ainda há esperança, pois vale mais cão vivo que leão morto.

5 Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem nada;para eles já não há recompensa, pois sua memória foi olvidada.

6 Seus amores, seus ódios, suas paixões há tempo que acabaram, e nunca mais terão parte em tudo o que se faz sob o sol.

7 Vai, come teu peio com alegria e bebe contente teu vinho, porque Deus já aceitou tuas obras.

8 Em todo tempo veste brancas vestes e não falte o perfume de tua cabeça.

Page 121: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

9 Desfruta a vida com a mulher que amas todos os dias de tua vida fugaz que Deus te concedeu sob o sol, pois esta é tua sorte na vida e em tuas fadigas com que te afadigas sob o sol.

10 Tudo o que puderes fazer, faze-o com empenho, porque não há ação, nem cálculos, nem conhecimento, nem sabedoria no abismo aonde te encaminhas.

11 Eu vi outra coisa sob o sol:que a corrida não a ganham os mais velozes,nem a batalha os mais fortes,nem para os sábios é o pão,nem para os inteligentes a riqueza,nem para os expertos o favor,porque o tempo e a sorte alcançam a todos.

12 Porque, de mais a mais, o homem não conhece seu momento: como peixes que foram apanhados na rede funestae como pássaros presos no laço,assim são apanhados os homens quando um mau momento cai sobre eles repentinamente.

13 Também observei isto sob o sole foi para mim exemplo de sabedoria importante:

14 Havia uma cidade pequena e nela poucos habitantes; veio contra ela um grande rei;cercou-a e construiu diante dela grandes fortificações.

15 Encontrava-se nela um homem pobre mas sábio,e ele teria podido salvar a cidade com sua sabedoria; mas ninguém se lembrou daquele homem pobre.

16 Então eu me disse:a sabedoria é melhor que o poder, mas a sabedoria do pobre é desprezada e ninguém faz caso de suas palavras.

17 As palavras tranqüilas dos sábios escutam-se melhor que os gritos de um capitão de néscios.

18 Melhor é sabedoria que armas de guerra, mas uma só falha põe a perder muito bem.

10,1 Moscas moribundas fazem com que cheire mal, fermente o óleo do perfumista;um pouco de nescidade é de mais peso que a sabedoria, que a honra.

Page 122: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2 A mente do sábio vai à sua direita,a mente do néscio vai à sua esquerda;

3 ademais, por qualquer caminho que vá o néscio, falta-lhe a sisudez;e diz a todos: “E um néscio”.

4 Se quem manda se enfurecer contra ti, não deixes teu posto,pois a calma cura graves erros.

5 Há um mal que vi sob o sol,um erro de que é responsável o soberano:

6 A nescidade é colocada nos mais altos postos, ao passo que ricos sentam-se em baixo;

7 vi escravos a cavalo,enquanto príncipes andavam a pé como escravos.

8 Quem cava uma fossa, cairá nela,a quem derruba um muro, morder-lhe-á a serpente,

9 quem remove pedras, ferir-se-á com elas, quem corta lenha, correrá perigo com ela.

10 Se o machado está cego e não se amola seu fio, é preciso fazer muito esforço,mas uma vantagem da sabedoria é retificar.

11 Se morde a serpente antes de ser encantada, de nada vale o encantador.

12 As palavras do sábio ganham estima, mas os lábios do néscio lhe causam ruína;

13 seu exórdio é uma nescidade, sua conclusão, loucura funesta.

14 O néscio tagarela sem medida;o homem não sabe o que vai acontecer, o que acontecerá depois dele, quem lhe anunciará?

15 O trabalho do néscio o afadiga,porque não acerta com o caminho da cidade.

16 Ai de ti, país, onde reina um joveme teus príncipes madrugam para comer!

17 Feliz és tu, país, onde reina um nobre e teus príncipes comem à sua hora, virilmente e não como bêbados.

18 Pela preguiça derruba-se o tetoe pela negligência tem a casa goteiras.

Page 123: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

19 Para divertir-se, celebram-se banquetes, e o vinho alegra a vida,e o dinheiro responde por tudo.

20 Nem sequer em tua mente fales mal do rei,nem na intimidade de tua alcova fales mal do rico, porque um pássaro leva a voz e um ser alado conta o que se disse.

11.1 Joga teu pão na superfície das águasque ao cabo de muito tempo o encontrarás.

2 Divide-o em sete e até em oito partes,pois não sabes que desgraça pode acontecer na terra.

3 Se as nuvens vão cheias, descarregam a chuva sobre a terra,e se uma árvore cai para o sul ou para o norte, no lugar onde cair, a árvore, ali fica.

4 Quem observa o vento não semeará, quem contempla as nuvens não ceifará.

5 Como tu não conheces qual é o caminho do vento, como se formam os ossos no seio da mulher grávida, tampouco conheces a obra de Deus que tudo faz.

6 Pela manhã semeia tua semente,e pela tarde não dês repouso a tuas mãos, pois não sabes qual prosperará, se esta ou aquela, ou se terão as duas êxito igual.

7 Realmente é doce a luz e agradável aos olhos ver o sol;8 pois, ainda que o homem viva muitos anos,

que os desfrute todos,mas lembre-se dos dias escuros, que serão muitos. Tudo o que vem é efêmero.

9 Desfruta, jovem, durante tua adolescência, e sê feliz nos dias de tua juventude;vá por onde diga teu coração e vejam teus olhos, mas saibas que por tudo isso Deus te levará ao juízo.

10 Distancia as penas de teu coração e o mal de teu corpo,pois a adolescência e a juventude são efêmeras.

12.1 Lembra-te de teu Criador nos dias de tua juventude,antes que cheguem os dias maus e te alcancem os anos em que dirás: “Não lhes tiro gosto”;

Page 124: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2 antes que se escureçam o sol, a luz, a lua e as estrelas, e voltem as nuvens depois da chuva;

3 quando tremerem os guardiães da casa, e se encurvarem os robustos,e pararem as que moem, porque são poucas, e ficarem às escuras as que olham pelas janelas;

4 e se fecharem as portas da rua, enquanto se apaga o ruído do moinho, e se enfraquecer o canto do pássaroe forem se calando todas as canções.

5 Também terão medo da altura e terror na rua.Enquanto floresce a amendoeira, arrasta-se o gafanhoto e estala a alcaparreira;porque o homem vai para sua morada eterna e os que lamentam andam às voltas pela rua.

6 Antes que se rompa o fio de prata, e se quebre a taça de ouro,e se despedace o cântaro na fonte, e se destroce a roldana no poço;

7 e volte o pó à terra como erae volte o alento para Deus que o deu.

8 Vaidade das vaidades — diz Qohélet — tudo é vaidade!9 Qohélet, além de ser sábio, instruiu permanentemente o povo;

escutou com atenção e investigou, e compôs muitos provérbios;10 Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis

e escrever a verdade com acerto.11 As palavras do sábio são como ferrões,

e como cravos pregados os ditos das coleções; são dados por um só pastor.

12 Além disso, meu filho, toma cuidado:escrever muitos livros não tem fim e estudar demais fatiga o corpo.

13 Em conclusão, depois de ouvir tudo:Teme a Deus e guarda seus mandamentos, porque isso é ser homem.

14 Pois Deus julgará todas as ações, mesmo as ocultas, boas ou más.

Page 125: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

COMENTÁRIO

Page 126: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

I. PREÂMBULO DE QOHÉLET (1,1-2)

Preferimos utilizar o termo preâmbulo em vez de prólogo, que ram- bém é legítimo por ser sinônimo. A razão é porque nos parece que Drólosro é termo mais técnico e determinado, preâmbulo menos técnico e muito mais amplo: palavras que precedem a um escrito e lhe fazem ' ' 'erencia.

Propomos, pois, Qoh 1,1-2 como preâmbulo de Jo(bi íivrbT^nbora tenhamos conhecimento das intermináveis dii ;u sões t V u os intérpre­tes sobre a função desses versículos e dos seguinte^feWa da obra em seu conjunto.1 \\\ \\\

O preâmbulo consta de duas partes hé^dif^enciadas: Qoh 1,1 é o título do livro e 1,2 o quadro (cf. 12,8)./-—

1. Título do livro: 1,1

No capítulo I da iuçqb defendemos que Qoh 1,1 contém, de uma ou de outra maneirgD rtftu|o- 0 livro. Não parece que exista atualmente dificuldade espec jl - \ adi i ir essa tese, como ficará claro depois das reflexões que: vt í 'lós-ftóer em seguida.

1,1. Pala^r^ufejQohélet, filho de Davi, rei em Jerusalém.: Não se refere a Davi, mas a Qohélet; assim se deduz

de separação ou zaqef qaton (:), posto pelo TM sobre a palavra que tudo indica, para suavizar a dureza da expressão rei em Jeru-

acrescentou-se Israel (rei de Israel em Jerusalém) em versões antigas alguns Mm de VL, SirHex e Copto); mas já São Jerônimo o rejeitava:

“Aqui é supérfluo Israel, que erroneamente (male) se encontra em códices g g se latinos . 'omm.adloc.: CCL 72, !5 , PL 2 , 34)

1,1. Preferimos traduzir dibrê por palavras porque assim se traduzem geralmente os modelos em que, quase com certeza, se inspira o Autor, ou seja, Jr 1,1: “Palavras de Jeremias”; Pr 30,1: “Palavras de Agur”; Pr 31,1: “Palavras de Lemuel; etc. De mais a mais, se dibrê Qohelet for realmente o Título do livro, cremos que sua melhor versão é Palavras de Qohélet por sua

^ er Introdução, cap. VII sobre a Estrutura.

Page 127: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

generalidade e imprecisão. Palavras pode aplicar-se tanto aos discursos ou arengas propriamente ditos, como às sentenças, ditos e provérbios, soltos ou agrupados, espalhados com generosidade por todo nosso livro. Além disso, as alternativas que se propõem não mudam o sentido original de dibrê, apenas matizam algum aspecto, reduzindo sua amplidão (pretendida?).2

Qohélet: sete vezes aparece esse nome no livro. Em quatro ocasiões se fala de Qohélet como se fosse o nome próprio do autor, cujas palavras se recopilam (Qohélet sem artigo em 1,1.2; 12,9 e 10); em dois vai precedido pelo artigo: o Qohélet, como se Qohélet indicasse ofício, profissão, título (em 12,8 e em 7,27 modificado); só uma vez aparece Qohélet na boca do próprio autor, que fala em primeira pessoa: “Eu, Qohélet” (1,12). Segundo o texto, é evidente que Qohélet é o nome do autor do livro, seja este nome real, ou seja fictício.3

Filho de Davi: Qohélet é o nome próprio do mestre, cujas palavras foram recolhidas por seus discípulos e são publicadas no livro que comen­tamos (cf. 12,9-12). Mas o velho mestre é coberto com a roupagem de ilus­tre personagem da história do povo judeu: ele é convertido em filho de Davi, que só pode ser Salomão pelo que se acrescenta em seguida: rei em Jerusalém e, sobretudo, pela identificação que de si mesmo faz Qohélet em1,12: “Eu, Qohélet, fui rei de Israel em Jerusalém”.

Filho deve-se tomar no sentido mais estrito de descendente direto em primeiro grau. Alguns autores, porém, não crêem que seja necessário in­terpretar filho de Davi em sentido estrito, uma vez que a figura histórica de Salomão não se encaixa com o que se afirma neste livro.4 Mas resolve- se a dificuldade levando-se em conta que a identificação de Qohélet com o presumido Salomão, filho de Davi, é mero recurso literário, como unani­memente se admite.

Para evitar confusões na nomenclatura, dever-se-ia evitar falar de Qohélet como se fosse obra pseudepigráfica, como o é o Livro da Sabedo­ria, e a razão é bem simples. O livro atribui-se a Qohélet, e Qohélet não é personagem histórica conhecida, como o são Moisés, Davi ou Salomão. Ainda que este Qohélet em momento posterior e secundário possa se con­siderar como pseudônimo ou nome fictício, atribuído ao filho de Davi, rei em Jerusalém, que, pelo que tudo indica, é Salomão. A ficção literária é válida somente para Qoh 1,1-2,11, já que a partir daí o autor fala por si mesmo, sem necessidade de transformar-se em outra personagem.

2R. E. Murphy opina que “o título ‘Palavras de...’ é análogo ao de outras coleções de sabedoria, como, por exemplo, Pr 22,17; 30,1; 31,1 e pode-se comparar com as introduções das instruções egípcias (por exemplo, Ptah-hotep: ANET 412)” (Wisdom, 132).

3Para conhecimento maior do significado de Qohélet e do que acerca dele se disse, veja-se o Excursus I: sobre Qohélet.

4Cf. O. Loretz, Gotteswort, 120s.

Page 128: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A razão pela qual se faz passar Qohélet pelo filho de Davi é realçar a autoridade do que segue, atribuindo-o a “Salomão”, arquétipo dos sábios de Israel, sem que se possa acusar de fraude o primeiro autor, causador dessa atribuição, visto que era costume literário que vinha de tempos an­tigos fora e dentro de Israel.5

Bei em Jerusalém, unido a Qohélet, e não a Davi, como já dissemos nas notas filológicas. A expressão: rei em Jerusalém, além de insólita, não é fluida estilisticamente. Com isso estão de acordo os modernos comen­tadores. Algo disso observam também os antigos, pois as versões autoriza­das se afastam do TM (cf. nota filológica). A construção normal seria: rei de Israel, de Judá etc. (cf. ISm 26,20; 29,3; lRs 15,9.16.17.19.23.25.28.31 etc.), ou também rei sobre Israel... (cf. ISm 15,26; 2Sm 2,19.23; lRs 4,1;11,37 etc.). A preposição em (be) costuma acompanhar o verbo reinar, indi­cando a cidade; e a preposição sobre (’al) precede geralmente ao povo sobreo qual se reina. 2Sm 5,5 diz: Davi reinou em Hebron sobre Judá sete anos e seis meses; reinou em Jerusalém sobre todo o Israel e Judá trinta e três anos (cf. lRs 2,11; 11,42 etc.). Em 2Sm 2,11 lemos, porém, que Davi foi rei da casa de Judá em Hebron sete anos e meio, expressão parecida a Qoh1,12, onde provavelmente se inspirou o redator de Qoh 1,1.

2. Quadro de Qoh: 1,2

É preciso dizer que existe unanimidade entre os intérpretes na hora de considerar Qoh 1,2 e 12,8 como o grande quadro em que se encerra a obra de Qohélet. Ainda se continua discutindo se Qoh 1,2-3 forma uma unidade ou se é preciso separar os versículos por razões de estrutura.1 A maioria crê que os versículos 2-3 não se devem separar, porque estão inti­mamente unidos e relacionados. Uns defendem a unidade por razões for­mais principalmente;2 outros por razões de conteúdo, atribuindo ao bloco1,2-3 o tema, o problema do livro.3Nós pensamos, porém, que 1,3 faz parte do que segue como parte integrante da unidade maior 1,3-3,15.4

5Recordemos, dentro da Escritura, os discursos de Moisés no Deuteronômio, a atribuição do livro dos Provérbios a Salomão etc. e fora das Escrituras: no Egito, por exemplo, a literatura sapiencial em geral se atribui a reis e príncipes.

'A. Lauha propõe o problema nos termos seguintes: “Discute-se somente se o v. 3 faz parte do que segue ou se se deve unir ao v. 2, como segunda parte da palavra-guia [hebel]” (Kohelet, 32)

2Como, por exemplo, N. Lohfink: “1,2-3 = quadro”; “Prólogo”: 1,2-3 (Kohelet, 10.19); cf. War Kohelet, 268 nota 39; ou F. Rousseau, Structure, 201.

3Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 121b; A. Barucq, Ecclésiaste, 54 = Eclesiastés, 56-58; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 57.

4Do mesmo parecer é tambem D. Michel que estuda explicitamente, pelo menos em duas ocasiões, a posição de 1,3 com relação ao que segue (1,3-3,15) e que ele chama de “um tratado, projetado por Qohélet como uma unidade” (JJntersuchung, 2; cf. pp. 1-8 e Zur Philosophie, 21-24); assim também A.

Page 129: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1,2 Vaidade das vaidades — diz Qohélet — ; vaidade das vaidades, tudo é vaidade!

“Vaidade de”: em hebraico habel, estado constructo com vacalização aramaizante em lugar de hebel: ver Dn 6,21 = ‘abed (cf. S. J. du Plessis, Aspects, 169; Ch. F. Whitley, Koheleth, 6). São Jerônimo, porém, leu habal: In Hebraeo pro vanitate vanitatum abai abalim scriptum est” (Commentarius,I 2: CCL 72,253). Vaidade das vaidades. Santo Agostinho conheceu outra versão latina: vanitas vanitantium (cf. De moribus Ecclesiae catholicae, I 21,39; PL 32,1328), da que se retratou ao comprovar que não concordava com o texto grego (cf. Retractationes, I 7,3: CCL 57,19; PL 32,592).“diz”: corresponde ao perfeito hebraico ’amar, que se considera perfeito pre­sente porque a ação, terminada no passado, mantém sua virtualidade no presente (cf. Ges.-K, 106g); ou se a ação é instantânea, ao realizar-se já que se considera que pertence ao passado, como o são os verba dicendi (cf. P. Joüon, 112f). No entanto, nas versões antigas mantém-se o perfeito, LXX: eipen; Vg. dixit.

1,2. Depois do cabeçalho ou título, anteposto pelo editor ao livro, le­mos a sentença mais solene que se atribui a Qohélet. Este versículo não só é importante em si mesmo, como veremos em seguida, mas também por­que a tradição inteira viu nele a quintessência do Eclesiastes.5 Acertada ou desacertadamente é outro problema que também tentaremos resolver em nosso comentário.

Antes de tentar sequer desvelar o sentido e o conteúdo dessa senten­ça lapidar, constatamos o que tantos intérpretes frisaram, que a sentença abre e encerra o livro propriamente dito;6 constitui, pois, um verdadeiro quadro, um excelente e “eficaz quadro” do livro.7 O que agora nos importa é averiguar o que o autor de Qoh 1,2 quis expressar com sua famosa sen­tença, seja o próprio Qohélet ou um discípulo dele, bom conhecedor do que pensava o mestre.

Começamos a investigação não frontalmente, lendo e explicando o texto, mas indiretamente, pondo em relevo o que de modo genérico se dis­se da sentença enquanto tal e da palavra que é central na sentença, ou seja, hebel.

Fischer, Beobachtungen, 72.86. Segundo A. Lauha o v. 3 é parte integrante da perícope 1,3-11 (cf. Kohelet, 32).

5Cf. São João Crisóstomo, Ad Eutropium, 1: PG 52,391; São Jerônimo, Commentarius in Eccl., Praefatio: CCL 72,249; PL 23,1061; Santo Agostinho, De civitate Dei, 20,3: CCL48,701s; PL 41,661; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 82s.

6L. Alonso Schükel escreve: “A frase lê-se, quase literalmente, no final do livro (12,8); portanto, emoldura a série inteira de reflexões díspares” (Eclesiastés, 17).

7Expressamente o chamam assim K. Seybold, hebel, 342; K. Galling, Der Prediger, 84; A. Lauha, Kohelet, 30; Bo Isaksson, Studies, 106s; D. Michel, Untersuchungen, 2 e 40. Ver, além disso, o que diremos em 12,8 a propósito do recurso literário da inclusão e do provável autor dela, que não descar­tamos que seja o próprio Qohélet.

Page 130: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Ousadamente se chamou 1,2 de a tese que Qohélet defende,8 como se Qohélet fosse livro de uma só tese; excessivo otimismo quanto à unidade de Qohélet, e excessiva ocidentalidade.9 Bastante reducionista parece, por outro lado, a afirmação de que “a sentença [1,2] é um resumo antecipado da doutrina de Kohélet... o resumo do livro”.10

Também não conseguiu aceitação unânime a apelação menos com­prometida de 1,2 como “motto” ou lema.11 Muito próxima do motto está a comparação aráldica de A. Barucq: “Máxima... colocada como exergo do livro”12 e o brasão de G. Ravasi.13

Passando ao âmbito musical, escreveu-se que Qoh 1,2 “é o núcleo de toda a obra da qual é como que a abertura”;14 ou então que “este versículo soa como a nota dominante do livro”15 e, mais freqüentemente, que é o motivo ou “leitmotiv” que escutamos com múltiplas variações em todo o livro.16

De tudo isso se deduz com clareza que o conteúdo de Qoh 1,2 é muito importante, muito significativo, mas que de nenhuma maneira pode esgo­tar-se nela todo o ensinamento de Qohélet; Qoh 1,2 mostra um aspecto, até pode ser que seja o mais importante do livro, mas não é o único.

Ao ser hebel palavra favorita de Qohélet, converte-se com todo direito em “a sigla [ou cifra] simbólica de Qohélet”;17 em seu emblema ou lema.18 Sem dúvida se pode e se deve qualifcar hebel de “palavra-chave”.19

8Afirma categoricamente J. Alonso Díaz: “Desde o começo (1,2) o autor assenta sua tese: ‘Vai­dade das vaidades...’ ” (Jacob, 47). Igualmente D. Lys: “A tese está no princípio como um sumário” ([L’Ecclésiaste, 87; também em L’Être, 251); cf. também R. B. Y. Scott, The way, 175, e outros muitos.

9Cf. W. Zimmerli, Das Buch, 144, e o que diremos no Excursus II sobre hebel.10A. Lauha, Kohelet, 30. F. Vigouroux também é de opinião de que Ecl 1,2 “resume o livro inteiro”

(Ecclésiaste, 516). K. Galling não aprova a intenção do redator primeiro de Qoh, ao qual ele atribui 1,2 e 12,8, porque intensificou a afirmação de nulidade “flxando-a assim subjetivamente como o único resumo válido da visão do mundo de Qohélet” (Der Prediger, 80).

uDefendem-na, por exemplo, F. Nõtscher (cf. Das Buch., 540), R. Albertz (ef. hebel, 468), R. E. Murphy (cf. Wisdom, 132); M. V. Fox, Qohelet (1989) 167.311; cf. também L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 123. Rejeita-a W. Zimmerli (cf. Das Buch, 144). L. Alonso Schõkel parece, porém, excessivamente cauto: “Ainda que seja estritamente o tema ou o motto do livro, tem algo de resumo” (Eclesíastés, 17).

l2Ecclesiastés, 29; Ecclésiaste, 27.13Cf. Qohelet, 27.14B. Pennacchini, Qohelet, 495. H. W. Hertzberg, tratando de 1,2-11, escreve: “Aintrodução signi­

fica para o livro de Qoh o mesmo que para o evangelho de João o Prólogo e para a Opera a abertura” {Der Prediger, 69).

15R. Gordis, Koheleth — the man, 204.16Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 69; O. Loretz, Qohelet, 138; A. Barucq, Ecclésiaste, 27; K.

Seybold, hebel, 342.17Como nos diz G. Ravasi em Qohelet, 21.18Cf. G. Ravasi, o. c., 22; K. Seybold, hebel, 342.19Cf. K. Galling, Der Prediger, 79; S. Holm-Nielsen, The book, 46; A. Lauha, Kohelet, 18.30; R. E.

Murphy, Wisdom, 132.

Page 131: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Como ao versículo 1,2 em sua totalidade, também ao vocábulo hebel se aplicam metáforas do campo musical, porque ele em grande medida dá o tom às reflexões de Qohélet.20

Vaidade das vaidades!'21 Sintaticamente a sentença é um superlativo numa construção tipicamente hebraica.22 São Jerônimo não utilizou a ex­pressão “superlativo”, mas seu comentário nos sugere coisa muito seme­lhante: pergunta-se porque o Eclesiastes diz que “tudo é vaidade”, “e não só vaidade, mas vaidade das vaidades”, e responde: “Para que, assim como no Cântico dos cânticos, mostra-se o poema como o poema excelente entre todos os poemas, assim também se manfeste em vaidade das vaidades a grandeza da vaidade”.23

Outros autores preferem falar de fórmula de intensificação que refor­ça um sentido negativo e que vem a ser o mesmo que o superlativo,24 ou então de fórmula exclamativa.25 Por isso aparece em nossa versão o sinal de exclamação: Vaidade...!

E preciso pensar que o autor utiliza de maneira plenamente cons­ciente os múltiplos recursos literários na construção da sentença mais famosa do livro.26

Diz Qohélet-, Cremos que fala o discípulo-editor pelas razões que já demos tanto no capítulo VI da Introdução 21 como no princípio do comentá­rio deste versículo, apesar dos que opinam que pode ser o próprio Qohélet.

Tudo é vaidade: A sentença é precisa em sua formulação; repete-se exatamente em 12,8, razão pela qual o livro do Eclesiastes fica encerrado

20Cf. J. Chopineau, Une image, 367; L. Gorssen, La cohérence, 319; D. Lys, UEcclésiaste, 88; A. Lauha, Kohelet, 30.

21Suposto o que se disse no Excursus II a propósito da palavra hebel e de suas múltiplas versões, podemos, pois, manter em português a fórmula tradicional: ‘Vaidade das vaidades”, como diz L. Alonso Schõkel: “A fórmula entrou em nossa literatura e era preciso respeitá-la” (Eclesiastés, 17). J. Durandeaux também defende que é preciso manter nas traduções as fórmulas já consagradas (cf. Une foi, 38).

22Assim o confirma P. Joüon: “Um grupo de dois substantivos, dos quais o primeiro está em estado constructo do segundo em plural, expressa a idéia em superlativo” (Grammaire, 1411); cf. Ges.-K., 133-i; F. Zorell, s. v. hebel, 2a). Os exemplos se multiplicam em hebraico: Gn 9,25 (servo dos servos); Ex 26,33 (santo dos santos); Nm 3,32 (príncipe dos príncipes); Dt 10,17 (Deus dos deuses, senhor dos senhores); lRs 8,27 (o céu dos céus); Jr 3,19 (pérola das pérólas); Ez 16,7 (beleza das belezas); 26,7 (rei dos reis); Os 10,15 (maldade das maldades); Ct 1,1 (Cântico dos cânticos). Muitas dessas expressões formam parte de nossa cultura; outras se formaram à semelhança delas, por exemplo, solidão das solidões, mestre dos mestres etc.

23Commentarius, 252 (ao versículo 1,2).24Cf. K. Galling, Der Prediger, 80.84; R. Albertz, hebel, 467; K. Seybold, hebel, 342; A. Lauha,

Kohelet, 30, que acrescenta além disso: “talvez com um matiz iterativo: ‘continuamente vão’ ”.25Como o faz F. Delitzsch: “A repetição da expressão mostra que é uma exclamação = O vanitatem

vanitatum” (Commentary, 219); K. Galling implicitamente cita F. Delitzsch, pois afirma: “A repetição deve entender-se como exclamação” (Der Prediger, 84)

26A isso se refere A. Alonso Schõkel ao escrever que “a quíntupla repetição, o ritmo, as aliterações facilitam a memorização” (Eclesiastés, 17).

27Cf. Composición de Qoh, 3.2.C.

Page 132: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dentro da fórmula, como que dentro de um parêntese. O recurso literário realça o significado da sentença “tudo é vaidade”. O que abarca esse tudo ? E o universo da criação em sua totalidade, a totalidade sem restrição algu­ma, ou se restringe ao universo humano?28 Imediatamente se compreende a transcendência deste “tudo”, pois se qualifica de “vaidade” toda sua ex­tensão.

São Jerônimo encabeça uma fila interminável de autores que enten­dem o “tudo” em sua máxima extensão, “pois com esse versículo mostra-se o cadudo e o nada da universalidade, já que a universalidade das coisas do céu, da terra e do mar em comparação com Deus deverão ser tidos como nada (pro nihilo).29

Não é esta, todavia, a sentença comum entre os autores modernos. Com toda clareza G. A. Barton opina em 1908: “Tudo... não se refere ao universo, mas a todas as atividades da vida: ‘o que se faz sob o sol’ ”.30 A análise minuciosa das passagens que repetem nossa sentença (2,11.17; 3,19; 12,8; cf. 11,8) confirma o que diz Barton.31 No decorrer do comentário constataremos que Qohélet não sai do âmbito meramente humano, do que está ao alcance do homem em sua experiência próxima, ou, como ele mes­mo diz, “do que acontece sob o sol”. Portanto, só a esse âmbito pode referir- se o “tudo” de nossa sentença.32

Desta maneira, e fundando-nos no próprio conteúdo do livro, podemos romper o férreo círculo negativo no qual, pelo que parece, nos tinha encerra­do o próprio Qohélet. A afirmação geral de que tudo é vaidade, não exclui que haja algo que não seja vaidade: a imperfeição num objeto pode fazer com que esse objeto seja inútil, mas não que todas as suas partes sejam inúteis. Pensemos num carro em que não funciona o motor; o carro enquan­to tal é inútil, mas muitas de suas peças continuam sendo aproveitáveis.33

28Cf. N. Lohfínk, Koh 1,2 “alies ist Windhauch”.29Cf. São Jerônimo, Commentarius, 252s; J. de Pineda, In Ecclesiasten 95b-111a, que se faz eco de

toda a tradição. Já em tempos mais recentes podemos ler em A. L. Williams: “Advirta-se que Qoh não diz ‘cada coisa’ mas ‘tudo’ (lit. ‘o todo’) é vaidade. A totalidade do universo, incluindo a existência humana, não passa de mero hálito” (Ecclesiastes, 3). Parece que N. Lohfink aponta também a essa corrente, pelo menos pela citação que faz do cínico Mônimos: “ta panta, ‘todo’ é typhos [vento, fumaça, vapor]” (Kohelet, 20a).

30A criticai, 70.31V. Zapletal repete: “Em hakol habel ‘tudo é vão’ não está pelo universo, visto que Kohélet fala só

das coisas sob o sol (2,17)” (Das Buch, 93); cf. W. Zimmerli, Das Buch, 144.248.32Em 2,11 fala das “obras de minhas mãos” e da “fadiga”; em 2,17 refere-se às “ações que se fazem

sob o sol” e consequentemente “que tudo é vaidade e caça de vento”; em 3,19 fala da mesma forma de homens e animais, e conclui: “Tudo é vaidade”. M. V. Fox faz algumas reflexões muito a propósito em The meaning, 423; mas, ao analisar as afirmações de Qohélet, adverte que nem todos os êxitos da vida humana são qualificados por Qohélet como absurdos e sem valor (cf. 5,5; 7,11; 9,13-15), pelo que o “tudo é vaidade” terá que ser matizado ainda mais e restringido: “Hakol refere-se aos êxitos em sua totalidade, aos acontecimentos da vida, tomados como um todo” (The meaning, 424). A essa sentença aponta também W. Vogels (cf. Performance, 370).

33Cf. o capítulo IV da Introdução: Aspectos positivos de Qohélet.

Page 133: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

II. A GRANDE UNIDADE (1,3-3,15)

Na secção VII da Introdução tratamos longamente sobre se Qohélet tem ou não uma estrutura geral. O que não podemos pôr em dúvida é que em Qohélet existem blocos ou conjuntos, maiores ou menores, muito bem organizados; um destes é 1,3-3,15. Neste se descobre uma unidade for­malmente estruturada, como demonstra suficientemente A. Fischer em seu estudo, cujo resultado é o seguinte: o centro de 1,3-3,15 “é constituído pela ficção do rei 1,12-2,26, que está emoldurada pelos poemas 1,4-11 e3,1-8 e abarcada pelas duas observações... 1,3 e 3,9. A composição total completa-se com a reflexão 3,10-15 que, quiasticamente, refere-se a 1,4­11; 1,12-2,26; 3,1-8, e reflete o tema dos versículos teologicamente”.1

1. Pergunta temática: 1,3

O v. 2 marcou sentenciosamente o tom predominante nas reflexões do livro: o tom de desengano. A expressão em forma exclamativa faz com que a célebre sentença revele os sentimentos mais íntimos de Qohélet: real­mente ele pensa assim. Por sua parte, o versículo 3 liga-se muito bem com o v. 2, uma vez que a atmosfera de um e outro versículo é de certo pessi­mismo.

Com a forma interrogativa do v. 3 o autor dá um toque de atenção aos leitores, um toque de clarim que os põe em tensão para tentar compreen­der com todos os sentidos a importância de seu conteúdo. A interrogação é recurso muito importante da linguagem, uma figura retórica de estilo. Chamar, portanto, a interrogação do v. 3 de interrogação “retórica”, não tira nada de sua força original, uma vez que não deve tomar-se em sentido despectivo.2 Mas qual é o sentido da pergunta?

1,3 Que ganho tem o homem em todas as fadigas com que se afadiga sob o sol?“Em todas as fadigas”: preferimos dar à preposição hebraica be seu sentido hebraico em e no fenício de, como quer M. J. Dahood (cf. The Phenician, 265) e o entendeu a Vg: “de universo labore suo”.“Todas as fadigas”: lit. “todo seu duro trabalho”, todo seu esforço. Sopesados os prós e os contras, preferimos traduzir o texto hebraico, com a maioria dos in­térpretes, em todas as fadigas com que se afadiga. O relativo, cujo antecedente é ‘amai, está aqui em sua forma abreviada she por ,asher (Qohélet usa )asher

lBeobachtungen, 86; cf. D. Michel, Untersuchungen, 1-83.2Por isso afirma D. Michel que “a pergunta de 1,3 não é de nenhuma maneira retórica..., mas

autêntica pergunta” (Untersuchungen, 4), “a pergunta central”. Em concreto D. Michel refere-se ao bloco 1,3-3,15, onde crê que Qohélet com 1,3 “propõe a pergunta central pelo sentido do esforço sapiencial” (Zur Philosphie, 4), ou simplesmente “a pergunta pelo sentido da ‘sabedoria’ ” (p. 21). Cf. D. Lys, L’Ecdésiaste, 97; Bulletin de VA. T., EtThRel 57 (1982) 598; W. Vogels, Performance, 370s.

Page 134: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

89 vezes e she 67 vezes) e não é o sujeito do verbo; segundo F. Zorell é acusativo de ‘ml (cf. Lexikon hebraicum, s. v.*‘amel); Vg: “labore suo quod laborat”. O imperativo hebraico ya‘amol é presente gnômico (cf. P. Joüon, 113c; Bo Isaksson, Studies, 124).

1,3. O primeiro elemento substantivo de 1,3 é o termo yitron, que traduzimos por ganho. E palavra exclusiva de Qohélet, onde aparece 10 vezes.3

O substantivo yitron encaixa-se perfeitamente no mundo do comér­cio, de que faz parte, segundo a opinião geral dos autores, e seu significado oscila entre o produto ou resultado positivo e o lucro, o benefício residual, a vantagem.4

Alguns crêem que yitron é palavra cunhada pelo próprio Qohélet,5 o que é muito difícil de provar, pois o conceito é comum no meio comercial de que com certeza foi tomado,6 e seu fundo lingüístico é ainda mais amplo no meio hebraico por sua raiz ytr.7

O homem,-. Qohélet pergunta pelo possível ganho ou lucro em benefí­cio do homem em seu sentido mais amplo, “no sentido genérico de ‘gênero humano’ ”.8

O terceiro substantivo de grande importância em 1,3 é ‘amai: traba­lho, esforço, fadiga, a que serve o verbo ‘amai? Sublinha-se fortemente o lado áspero e duro da vida humana. O que tira a limpo o homem de todos seus afãs sem conta, de tanto sofrer e padecer? E digna de nota a paranomásia no texto hebraico, que tentam imitar as versões dentro de suas possibilidades. A versão grega conserva a paranomásia (mox o

3Em 1,3; 2,11.13 (2x); 3,9; 5,8.15; 7,12; 10,10;11 (cf. S. J. du Plessis, Aspects, 164-167). Sua raiz é ytr, da qual derivam ademais o substantivo motar (3,19, cujo significado é o mesmo áe yitron) e o particípio Qal yoter, que se usa 7 vezes em Qohélet (cf. F. Zorell, s. v. yoter). A raiz comum dá também significado comum a essa constelação de vocábulos.

4Cf. T. Kronholm, TWAT, III 1087. R. Gordis diz que “ytrwn é provavelmente termo comercial, o superávit do balancete de contas” (Koheleth — the man, 205). K. Galling afirma também: “Ytron no v. 3... designa o benefício líquido que resta de uma transação econômica” (JDer Prediger, 84). Cf., de mais a mais, M. Dahood, Canaanite-Phoenician, 220s.

5R. Braun constata que “ytrwn” comumente se designa como criação de Qohélet” (Koheiet, 47).6Cf. L. Schwienshorst-Schõnberger, Nicht im Menschen, 117; S. Holm-Nielsen, The Book, 47.7R. Braun assinala o termo comum grego ophelos, consagrado, de mais a mais, no âmbito literário,

como possível fonte de inspiração para a formação da palavra yitron: “Pode-se supor que as composi­ções ytrwn de Kohélet estão influenciadas pelo uso linguístico da antiga retórica” (Koheiet, 48; ver passagens gregas em sua nota 36). Essa suposição não se pode negar, mas também não é absoluta­mente necessária.

8R. Gordis, Was Koheleth, 112. M. J. Dahood apoiava em 1952 sua tese sobre a origem fenícia ou nórdica de Qoh, que “a palavra predominante para ‘homem’ nessa obra [Qoh] é ’adam, que aparece 49 vezes, ao passo que ish encontra-se só 7 vezes (Canaanite-Phoenician, 202). Essa interpretação foi rejeitada praticamente por todos os autores (entre eles os já citados), pois, como diz F. Piotti, “se se examinam as passagens em que aparece a palavra homem, vê-se que a maior parte dos casos Qoh usa ’adam, segundo o costume bíblico...; a coincidência com o uso fenício é puramente casual” (Osservazioni [1977], 50).

9Sobre ‘ml veja-se o que se diz no Excursus III.

Page 135: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

moxthei).10 Tentamos conservar também essa figura de estilo: “fadiga com que se afadiga”.

Sob o sol: Esta é uma das expressões inequivocamente características de Qohélet; encontramo-la 29 vezes no livro e nenhuma vez no resto do A. T. Os autores logo se perguntam pela fonte de inspiração de Qohélet. Está no âmbito grego ou no semítico? Houve tempo em que prevaleceu a sen­tença que considerava a expressão sob o sol um clássico grecismo.11 Mais recentemente se preferiu a influência do meio semita ocidental, em con­creto o fenício ou o palestinense do norte.12

Constata-se, todavia, que em 1,13; 2,3 e 3,1 Qohélet utiliza a expres­são sob o céu, que é muito conhecida no A. T. (cf. Gn 1,9; 6,17; 7,19; Ex 17,14; Dt 7,24; 9,14 etc.). Sob o céu e sob o sol significam, pois, a mesma coisa, ou seja: sobre a/na terra” (cf. Qoh 8,14.16; 11,2.3), que é o lugar onde se desdobra a vida do homem, em contraposição ao céu: “Deus está no céu e tu [o homem] na terra” (Qoh 5,1). A originalidade do autor se deve o fato de ter consagrado a fórmula “sob o sol”.13 Com justiça não podemos excluir a diversidade de influências, venham da tradição israelita, da semita em geral, ou da realidade difusa do helenismo imperante.14

Ainda que seja verdade que sob o sol delimita o espaço vital do ho­mem, a vida neste mundo,15 nem por isso a pergunta de 1,3 perde seu valor.16 O que Qohélet busca aqui em última instância é o sentido de todos os seus esforços ou fadigas, ou seja, o sentido de sua existência. Que o consiga ou não é outra coisa. No entanto, não creio que devamos ser tão derrotistas neste particular a ponto de afirmar já desde o princípio que Qohélet com a pergunta de 1,3 o que espera é uma negação. Devemos reconhecer que Qoelet é muito valente e sincero ao propor essa pergunta, pois com ela se confronta com toda uma tradição sapiencial consagrada,

10Cf. G. Bertram, Hebräisch, 36. Segundo H. Lohfink, a paranomásia ou “figura etimológica” do texto hebraico “talvez reflita o moxthon moxthein “afanar-se afanosamente” de Eurípedes e outros” (Kohelet, 20b), ou, melhor ainda, o “o sofrer infortúnios” (cf. Liddell-Scott, s. v. moxtheo).

uPois tht hshshmsh é comparável à expresssão puramente grega hyp’helio ou inclusive hypo ton helion de G (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 205; R. Braun, Kohelet, 49-51.

12M. J. Dahood encontra-o na esfera fenícia, “uma vez qüe os únicos casos da expressão, normal pelo que parece, no fenício nórdico-ocidental dáo-se nas inscrições sidônias de Tabnit e Eshmunazar, datada do século IV a.C.” (Cannanite-Phoenician, 203). Este argumento convenceu a muitos total ou parcialmente; vejam-se, por exemplo, W. Zimmerli, Das Buch, 147; O. Loretz, Qohelet, 46s; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 124a; F. Piotti, La lingua, 192; H. P. Müller, Neige, 244.

13Cf. F. Piotti, Osservazioni (1977), 51.14Até o próprio M. J. Dahood concede que se a expressão vem do grego, naturalmente é através dos

canais fenícios que chegou a Qohélet (cf. Canaanite-Phoenician, 203).15Assim o entende TgQoh (cf. L. Díez Merino, Targum, 223).16Opina N. Lohfink que “sob o sol” torna a pergunta mais fundamental: nenhum espaço cósmico,

acessível ao homem, fica vazio; pressupõe-se a antiga representação do cosmos. O horizonte da per­gunta é o mundo como tal. E este uma realidade translúcida (‘sol’), mas apresenta-se nela ao homem a pergunta do sentido” (Kohelet, 20-21).

Page 136: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

segundo a qual a vida é transparente e sem problemas que não se possam resolver, ainda que sejam muito graves, como pensam, por exemplo, os amigos de Jó. Era preciso fazer alguma vez essa pergunta: Qohélet a fez com tanta clareza e crueza que ainda ressoa em nossos ouvidos. Mas a resposta de Qohélet nem é clara nem imediata. À segurança de 2,11: “E eis que tudo não passa de vaidade e caça de vento; nada se tira sob o sol”, precede 2,10, onde algo de bom e positivo se descobre entre as fadigas da vida: “Tudo o que desejaram meus olhos, não lhes neguei; não recusei a meu coração alegria alguma; pois meu coração se alegrava de todas as minhas fadigas e esta era a paga de todas as minhas fadigas”; e segue-lhe a magnífica lição de 2,13: “E observei atentamente que a sabedoria tem uma vantagem sobre a nescidade, como a tem a luz sobre as trevas”.

São as pequenas satisfações que dá a vida, que por pequenas não se devem desprezar, como sabe muito bem o próprio Qohélet. No entanto, é preciso reconhecer que são muito relativas em comparação com o pesado fardo que é nossa existência aos olhos de Qohélet. Por isso é preciso voltar a falar da importância que tem a pergunta de 1,3: “pergunta programática”, chamaram-na também os autores.17 O que quer dizer que seu conteúdo deve concernir ao projeto de vida de quem é verdadeiramente sábio, e, definitiva­mente, a idéia que todo homem tem acerca do que é viver humanamente.

2. Poema introdutório: 1,4-11

Com o versículo 4 começa o primeiro poema do livro, do qual se disse muitas e boas coisas:1 “Magnífico poema”, chamou-o G. von Rad,2 e J. Chopineau: “Não é apenas página retórica: constitui evocação impressio­nante da pequenez do homem”.3

Que o poema 1,4-11 constitui unidade em si percebe-se com facilida­de. Muitos são os autores que assim se manifestam, menos, porém, os que

17D. Michel afirma: “A pergunta em 1,3 é a pergunta programática para todo o livro” (Qohelet, 28). Cf. G. S. Ogden, Qoheleth’s use, 344.

1Não queremos discutir se Qoh 1,4-11 serve ou não de prólogo a todo o livro. A maioria dos autores crê que sim e, em grande parte, tem razão, uma vez que neste poema se introduz Qoh em suas refle­xões. Nós não o chamamos prólogo, porque, como já vimos, consideramos 1,1-2 como o verdadeiro preâmbulo do livro.

2Teologia dei A. T., I, 550. Por sua vez, L. Alonso Schõkel o chama “breve poema” (Sabiduría, 18).3L’image, 602. H. W. Hertzberg faz dele um dos maiores elogios: “Todo o poema [1,2-11] constitui

obra-prima. Escrito em língua singela, nobre, transcorre em forma rítmica livre, o mais das vezes em versos trimembres e bimembres, ordenados com soltura e, não obstante, com intenção métrica. O conteúdo corresponde à forma” (Der Prediger, 73). De poema (Gedicht) qualifica, sem duvidar, N. Lohfink a perícope em seu Comentário (Kohelet, 21-23), e recorda-o posteriormente, ao escrever: Qoh l,4 -ll"é um poema e como tal aparece em duro contraste com a pergunta de 1,3, formulada quase em forma de gíria” (Die Wiederkehr, 126).

Page 137: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se preocupam com demonstrá-lo. Conhecemos a dispersão de opiniões quan­to ao começo da perícope.4 Todavia, depois da interrogação programática do v. 3 inicia-se uma reflexão, a primeira de Qohélet, com o v. 4. Pode-se considerar essa reflexão também como a primeira resposta ao v. 3 que termina duramente no v. 11. A mudança brusca do v. 12 (mudança de pes­soa e gênero literário) indica-nos que terminou no v. 11 a reflexão começada no v. 4.5

Estrutura de Qoh 1,4-11. Já dissemos uma palavra sobre o problema da estrutura ou estruturas em Qohélet;6 cabe-nos agora falar em concreto de 1,4-11. Como veremos na análise que seguirá, a perícope 1,4-11 forma bloco homogêneo quanto ao sentido e desenvolvimento, o que é garantia de sucesso em nossa busca da estrutura que lhe dá vértebra.

Constatamos de antemão quanta verdade se encerra na afirmação deF. Rousseau a propósito de Qoh 1,4-11: “Os exegetas estão longe de pôr-se de acordo com uma só e a mesma estrutura”.7 Todavia, desde que se fala da estrutura e não simplesmente da divisão de Qoh 1,4-11, existe uma tendência dominante que se matizou depois em muitas variantes. Certa convergência de pareceres descobre em 1,4-11 uma estrutura bipartida e algum sentido antitético, correspondente ao confronto de natureza (w. 4­7) e história (w. 8-11).8

Partiremos da estrutura convencional: natureza (w. 4-7) — história (w. 8-11); mas no comentário aduziremos as variantes e respectivos argu­mentos.2.1. Observação da natureza (1,4-7).

1,4 Uma geração vai, outra geração vem,enquanto a terra permanece para sempre.

5 Sai o sol, põe-se o sol,arqueja para chegar a seu posto e dele volta a sair.

4Veja o trecho anterior sobre os w. 2-3; também T. Nishimura, Un mashal, 615 nota 22; F. Rousseau, Structure, 201s.

5W. Vogels ousa até afirmar uma inclusão com estas palavras: “Alguns autores unem o versículo [3] ao conjunto 1,3-11; mas 1,4 e 1,11 formam uma inclusão, isolando assim o v. 3” (Performance, 370). Não explica W. Vògels onde se manifesta essa inclusão, que, certamente, não é formal. N. Lohfink afina muito mais, ao afirmar que na estrofe 1,4-11 o v. 11 oferece “a possibilidade de uma conclusão. Essa se manifesta positivamente, visto que o v. 11, quanto ao conteúdo, apóia-se no v. 4, portanto constitui um marco” (Kohelet, 21a).

sVeja-se a secção VII da Introdução.’’Structure, 200.®T. Nishmura opina que 1,8a é um mashal, em redor do qual se desenrola simetricamente o conjunto:a = w. 2-3 + w. 4-7; b = b. 8a; ç = w. 8b-ll.Tudo isso segundo o significado ou conteúdo; os elementos formais confirmam a estrutura propos­

ta: “Os w. 4-7 e os w. 8b-ll são constituídos cada um [dos blocos] por 40 palavras, cada parte simétri­ca (verbos, estilo, objetos, métodos) em redor de um eixo [o v. 8a]” (Un mashal, 605). Alguma variante menos importante pode-se ver em outros autores, como, por exemplo, em F. Ellermeier, Qohelet I, l,90s.

Page 138: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

6 Caminha ao sul, gira ao norte, gira e gira e caminha o vento, e volta o vento a girar.

7 Todos os rios caminham ao mar e não se enche o mar;aonde os rios caminham para lá voltam eles a caminhar.

4 “outra geração”: lit. “uma geração” sem artigo. Os três verbos estão no particípio: holek = vai, ba’ = vem, ‘omadet = permanece. Segundo os gramáticos, utiliza-se a construção participial para descrever estados per­manentes ou que se repetem (cf. Ges.-K., 116n; P. Joüon, 121c.d.). “en­quanto” corresponde a be com sentido adversativo, igual a mas.

5 Vg põe como sujeito o sol até gira ao norte (v. 6a). Propõe-se a correção wezarah (pf. e saiu, sairá) pelo particípio wezoreah, como no v. 5c (cf. BH 3a ed.; Bo Isaksson que, após enumerar uma série de autores que admi­tem a mudança, afirma: “Embora seja possível essa correção, não é ne­cessária” [Studies, 93], o que nos parece acertado). O zakef qaton (:) não sobre mqwm, mas sobre shw’p (cf. BH, 3a ed.); shw’p = sentença nominal participial (cf. Ges.-K., 141e).

6 Para Vg o sujeito de gira e gira até o final é “o vento”, “e volta o vento a girar”: lit. “e a seus giros volta o vento” (cf. Vg); não admitimos a senten­ça de F. Whitley de que ‘al signifique de, desde (cf. Kohelet, 9).

7 Para os particípios cf., como no v. 4, Ges.-K., 116n. “aonde”: lit. “ao lugar que” ou “ao lugar para o qual” ou “ao lugar onde”. Para construção meqom she (aonde), veja-se Ges.-K., 130c. O advérbio sham em contexto de movi­mento como o presente normalmente é shammah, por isso o traduzimos “para lá” (cf. Joüon, 102h; Fr. Delitzsch, ad loc.; R. Meyer, Gramática 86,2). “voltam”: sobre esse verbo R. Gordis observa: “shwb é verbo auxiliar que significa ‘repetir, continuar, fazer outra vez’. Nossa cláusula deve-se tra­duzir, portanto, ‘para lá continuam fluindo”’ (Koheleth — the man, 206).

1,4-7. Qohélet é observador nato da vida normal e corrente, da natu­reza e de seus fenômenos, e de tudo isso tira suas conseqüências em or­dem à sua vida, como vamos ver doravante. Em 1,4-7 encontramos Qohélet que reflete sobre a passagem das gerações humanas em face dos horizon­tes mais largos da natureza.

O poema pode ter sido composto independentemente do lugar que ocupa, pois tem pleno sentido em si mesmo, mas na hora de interpretá-lo já não nos é permitido ignorar o lugar que atualmente ocupa e quem é aquele que se presume nos apresentar.

4 Uma geração vai (dor holek): O poema começa com toda solenidade com a palavra dor, que traduzimos por geração. Repete-se o mesmo vocábu­lo em seguida e nos dois casos sem artigo, não, porém, a terra, o sol, o vento, os rios e o mar que levam o artigo e são os sujeitos gramaticais das senten­ças da perícope. dor = geração, originalmente parece que diz relação com a passagem do tempo, como sucessão cíclica ou simplesmente periódica; daí

Page 139: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

passou a significar a idade, o período ou ciclo da vida humana, considerada mais coletiva que individualmente.9 Geração seria, pois, o conjunto de ho­mens que vivem sincronicamente em período de tempo determinado.10

Outra geração: Em hebraico repete-se o substantivo dor sem artigo e precedido da copulativa we: e, a uma geração humana sucede geração, outra geração, não a mesma: o gênero humano continua em sucessão ininterrupta.

A observação da mudança das gerações pode dar pé a reflexões profun­das sobre o valor do tempo ou também a concepções antes pessimistas sobre a vida. Essa segunda visão predominou de fato na história da cultura, pelo menos na esfera semítica ou helénica, e nas que delas derivaram.11 Aqui se vê claro que, embora seja verdade que o que interessa ao autor é chamar a atenção sobre o curso ininterrupto ou sucessão de gerações e gerações hu­manas ao longo da história, não têm rosto os indivíduos como tais.

O autor expressa o sentido de sucessão eficazmente com os verbos ir e vir, mas no particípio: “Geração vai, e geração vem”. A construção é fre­qüente em Qohélet12 e muito apta na esfera sapiencial, onde abundam as sentenças de valor geral ou gnômico.

Com o ir e vir das gerações, o autor está se referindo, de forma muito delicada, ao processo natural e contínuo do morrer e do nascer.13 É a pri­meira vez que aparece em Qohélet o tema da morte e, como se pode ver, quase às furtadelas. Mais adiante veremos que a morte é um dos proble­mas que mais preocupam Qohélet e para o qual não tem resposta.

Enquanto a terra...: A visão majestosa da passagem das gerações (v. 4a) sucede outra não menos esplêndida da estabilidade e permanência da terra (v. 4b); no v. 4a tudo é movimento (os verbos ir — vir), no v. 4b tudo é quietude (verbo estar quieto, permanecer). No primeiro quadro sublinham- se o fluir, a inconsistência; no segundo passam ao primeiro plano a segu­rança e fixidez. Para nós não há dúvida de que o autor pretendeu estabe­lecer constraste; ao v. 4a contrapõe-se o v. 4b, como o contrapeso de uma

9H. Lohfink expressa o sentido assim: “Presta-se a atenção aí não ao homem como indivíduo, mas como realidade concreta, como a sucessão das gerações” (Die Vãederkehr, 132).

10Cf. F. Zorell, s. v. dor 2; Diccionario bíblico, 154a. 1.uCf. R. Braun, Kohelet, 57s, que cita entre outros Homero; “Como a geração das folhas, assim a

dos homens. Espalha o vento as folhas pelo chão, e a selva, reverdecendo, produz outras folhas ao chegar a primavera; do mesmo modo, uma geração humana nasce e outra perece” (Ilíada, 6,146-149. Versão de L. Segalá e Estalella. Obras completas de Homero, Barcelona, 1927, 65). Veja-se também Eclo 14,18: “Como crescem as folhas na árvore frondosa, uma murcha, a seguinte brota, assim as gerações de carne e sangue: uma morre e outra nasce”.

12Como faz notar P. Joüon, “o Eclesiastes emprega com frequência o particípio para expressar a ação freqüentativa do presente, ao passo que na língua clássica emprega-se mais ordinariamente o yiqtol. Assim 1,4 holk, b’ (mas ‘omdt é excelente, visto que a ação é aqui de duração). Os outros exem­plos mais notáveis são: 1,5.6.7; 3,20; 4,5; 8,14; 10,19” (Notes de sintaxe, 225).

13Não é estranho na Sagrada Escritura o uso do verbo hlk: ir, para significar a morte (cf. 2Sm 12,23; SI 39,14; Jó 10,21; 14,20; 19,10) e no próprio Qoh (cf. 3,20; 5,14; 6,4.6; 9,10; 12,5). b’: vir, só se usa em Qoh com o significado de nascer = vir à existência; além do caso presente, ver 6,4.

Page 140: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

balança.14 É essa a razão pela qual traduzimos o v. 4b assim: “Enquanto a terra sempre está quieta”.15

A terra (ha’areç) deve-se tomar em seu sentido físico; e não só a terra que pisamos e de que estamos rodeados até os confins do horizonte, incluin­do vales, planaltos, montanhas e mares, mas com muita probabilidade também tudo o que o autor podia ver com os própios olhos, ou seja, céu e terra, o que foi criado por Deus desde o princípio (cf. Gn 1,1).16

Dessa terra afirma Qohélet com toda segurança que permanece.11 As­sim. o entendeu São Jerônimo que traduziu o particípio ‘omadet pelo pre­sente latino stat (et terra in saeculo stat). Em seu Comentário São Jerônimo insiste na persistência da terra até a consumação final.18

Os autores compararam a permanência da terra, expressa no v. 4b com a de um cenário em que se representam muitas obras dramáticas (a passagem das gerações, a história); o cenário fica, as obras dramáticas e as personagens passam.19 A permanência da terra possibilita a série su­cessiva das gerações.20

Da permanência da terra o texto de 1,4b diz que épara sempre (le‘olam). O que significa esse para sempre? Numa primeira aproximação podemos falar de duração-, a terra durará, mas por quanto tempo? Pelo menos, como o mundo. Trata-se certamente de longo tempo, de “tempo ilimitado”,21 aon­de a imaginação mais ousada não pode chegar nem o pensamento mais lúcido pode conceber.22

14Cf. G. S. Ogden, The interprétation, 91. Por isso não aceitamos o parecer de F. Ellermeier que defende que o v. 4b não passa de uma “sentença esclarecedora” (Qohelet I, 1, 187ss,269).

15"Não existe motivo nenhum para traduzir o v. 4b como sentença adversativa, escreve R. Braun, sobretudo porque, se considerarmos o v. 4 do ponto de vista poético, dá-se um paralelismo antitético” (Kohelet, 64). Sobre o uso adversativo de waw lemos em R. Meyer: “Dentre as múltiplas funções do waw copulativo como conjunção coordenante, podemos destacar o uso adversativo.” (Gramática de la lengua hebrea, 112, 3.a).

16Damos, pois, razão a N. Lohfink quando escreve: “O v. 4: começa com o homem para terminar no cosmo” CDie Wiederkehr, 132).

17Este é o significado que H. Ringgren dá ao verbo ‘md em Qoh 1,4: “mas a terra permanece” (cf. ‘md: ThWAT VI, 201). Sobre a estabilidade e persistência que leva o verbo ‘md, cf. E. Jenni, THATII, 329 b).

I8Cf. Commentarius, 253s.19Escreve N. Lohfmk: o cosmo “apresenta-se à vista como o cenário para a dança da mudança das

gerações, como [a] terra... Como cenário da mudança das gerações...” (Die Wiederkehr, 133).20A. Lauha (Kohelet, 34) comenta: “A representação dramática pressupõe que o cenário perdura” e

J. L. Crenshaw fala de “uma grande ironia”, a saber, “o cenário em que se representa o drama humano dura mais que os próprios autores” (Eclesiastes, 62). Este pensamento inspira-se no comentário de São Jerônimo a 1,4.

21Assim H. Lohfink neste contexto: “Naturalmente ‘olam ‘eternidade’ não se deve tomar no senti­do de um conceito matafísico, mas simplesmente como ‘tempo ilimitado’ (Die Wiederkehr, 133). N. Lohfink ainda sugere que 'olam é um “giro litúrgico que era familiar ao leitor original em suas ora­ções” (a. c., 133). Isso é muito possível; mas não creio que só por isso o judeu piedoso poderia sequer confundir a “eternidade” de Deus com a “eternidade” da terra e do cosmo.

Z20 modo de pensar de Qohélet não é apocalíptico (cf. H. P. Müller, Der unheimliche Gast, 457). Tampouco pensa Qohélet em futuro escatológico (cf. E. Jenni, Das Wort, 22).

Page 141: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet não sai de seu campo de observação; suas afirmações não vão além de uma generalização da experiência. Por isso agora vemos clara­mente o que em outro tempo não se viu: 1,4b não se pode aduzir nem em discussão teológica nem, muito menos ainda, em controvérsia científica.23

5. Sai o sol, põe-se o sol: A primeira impressão que produz a leitura do v. 5a é muito agradável por seu ritmo perfeito. Se, ademais, se compara com o v. 4a, cresce o prazer estético, ao descobrir-se “uma perfeita sime­tria” na construção.24 Essa perfeita simetria autoriza-nos também a poder falar de verdadeiro paralelismo.25 Em todo caso também se deve notar que o significado do verbo bo’ não é o mesmo nos dois versículos; no v. 4a = vem (outra geração) e no v. 5a = põe-se (o sol), que estaria mais de acordo com holek: vai (uma geração).

No v. 4 víamos como o autor observava um tanto sombriamente a sucessão incessante, a mudança das gerações humanas em face da majes­tade sempre presente da terra. Como se quisesse comunicar-nos a mensa­gem de que a natureza é mais forte que o homem, que todos os homens, que a história inteira do gênero humano. Mas a coisa não é tão fácil. Tam­bém a natureza, representada neste caso pelo sol (v. 5), o vento (v. 6), os rios e o mar (v. 7), está dominada pela lei implacável da sucessão e mudan­ça; também ela expõe seus flancos débeis; também ela não é perfeita, an­tes está sempre a caminho sem jamais chegar a atingir um termo que implique o decanso perfeito, a plenitude.

O sol é o ser que mais chama a atenção na natureza, o mais luminoso. Mas cada dia vemos como o sol percorre infatigável seu caminho celeste do leste a oeste; é como se nascesse e morresse cada dia (o sair do sol chamamos de nascer e seu pôr-se, ocaso). Seu nascimento é glorioso, presi­dido pelo resplendor sempre admirado da aurora; seu ocaso também é misterioso e sublime entre os longínquos planaltos e montanhas ou na linha infinita do horizonte marinho.

Ponhamo-nos agora na situação dos antigos, na de Qohélet. Eles criam em geral que a terra era como um disco plano, rodeado de mares e oceanos pelas bordas e de um abismo inferior, totalmente desconhecido, onde reinavam as trevas e as profundas águas primordiais.

Sai o sol e com ele parece que ressuscita o universo, a vida volta à vida; põe-se o sol e com seu pôr-se chegam as trevas, chega a noite e com

23É conhecido o uso que se fez de Ecl 1,4b e de outros textos da Sagrada Escritura, na controvérsia contra o sistema copemicano e no caso Galileu Galilei, especialmente nos anos 1616 e 1633. Podem-se consultar P. de Vregille, Galilée: DAFC II (1911) 147-192; E. Vacandard, Galilée: DThC VI/1 (1915) 1058-1094; P. Soccorsi, Ilproceso di Galileo: CivCatt 97/4 (1946) 175-184.429-438.

24A expressão é de J. L. Crenshaw (ver Ecclesiastes, 63). A construção do v. 4a é: sujeito-verbo, sujeito-verbo, e a do v. 5a é: verbo-sujeito, verbo-sujeito.

250u, como escreve Bo Isaksson, de “manifesto paralelismo conceituai” (Studies, 93).

Page 142: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ela antecipa-se o reino da morte, tudo se paralisa; até o sono é símbolo da morte. Mas o sol tem um encontro combinado a que jamais faltou. Põe-se o sol pelo poente e umas horas depois aparece radiante pelo levante. O que fez durante a noite?

Qohélet conhecia com toda certeza o que diziam os sábios egípcios e muito provavelmente também o que imaginavam os gregos.26 Não parece, porém, que tenha muito em conta nenhum dos mitos pagãos: não fala nem de barca, nem de carros, nem de cavalos do sol. Pelo contrário, a imagem que nos apresenta do sol não é a de um herói mitológico que faça uma viagem noturna com meios maravilhosos e chegue descansado e renovado a seu ponto de encontro marcado antes do amanhecer. Antes o v. 5b suge­re-nos a imagem de uma pessoa ou animal que teve que fazer esforço con­tínuo e esgotante, razão pela qual arqueja para chegar a seu posto. Com razão pode-se perguntar se o autor não pretende dessa maneira demitificar a imagem do sol, elevado à categoria de ser divino em todos os povos do âmbito israelita. Os autores costumam recordar neste lugar o Sísifo mito­lógico que passa a vida tentando até a extenuação fazer chegar sua pesa­da rocha ao topo da montanha e, quando está a ponto de coroar sua proe­za, vê como deslisa de novo ladeira abaixo o enorme penhasco. Assim, o sol não descansa em seu eterno caminhar nem sequer de noite; no final de uma carreira noturna esgotadora chega a seu posto e daí volta a sair, começa de novo sua tarefa diurna e sem fim: sai o sol, põe-se o sol. Dessa maneira nos descobre o autor outro ciclo da natureza, mas sublinhando a inutilidade do mesmo, como se fosse uma roda d’água que dá voltas e mais voltas, mas sem tirar água, com os canjirões sempre vazios.

6. Caminha ao sul, gira ao norte-. Como já dissemos no começo, na presente perícope predominam os particípios; no v. 6 totalmente, todos os verbos estão no particípio. Contra G e Vg o que caminha e gira é o vento, e não o sol.27

Continua Qohélet observando os fenômenos da natureza. No v. 5 su­biu até o topo das reflexões ao tratar do curso do sol; agora no v. 6 desce à coisa mais acessível e próxima, ainda que não visível: às evoluções do ven­to. Em visão cósmica, Qohélet refletiu em primeiro lugar sobre a terra (v. 4b), depois sobre o sol (v. 5) e agora sobre o vento, que ocupa o lugar inter­médio. Se vemos que o sol caminha de leste a oeste, o vento completa os quatro pontos cardeais com o sul e o norte.28

26Sobre as teorias dos gregos veja-se O. Jessen, Helios: PW, XV 58-93 (especialmente 90-93); H. von Geisau, Der Kleine Pauly, II 999-1001. Sobre os egípcios cf. ANET 33.

27Ver nota filológica.28Esta parece ser a explicação mais plausível de que se nomeiem o sul e o norte: e não outras

direções do vento. Não há lugar, portanto, para as considerações sobre as direções dominantes do

Page 143: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Gira e gira... o vento, e volta... a girar: Do sol podia Qohélet afirmar, segundo o que observava, em que direção caminhava: de leste a oeste; do vento não pode predizer qual será a direção de seus giros. Recorda-nos isso as palavras de Jesus a Nicodemos: “O vento sopra onde quer; ouves seu ruído, mas não sabes donde vem e aonde vai” (Jo 3,8). Também Jesus era fino observador da natureza, como Qohélet.

No v. 6 repete-se quatro vezes a raiz sbb (girar), como também se repetem o verbo hlk (ir, caminhar) e o substantivo rwh (vento): recursos estilísticos que o autor emprega com mestria para dar mais ênfase à idéia dominante do movimento sem rumo fixo, que por sua vez reforça o pensaT mento central da perícope: a sucessão, o movimento incessante sem saber para quê.

7. Todos os rios caminham ao mar: O v. 7 encerra a perícope que co­mentamos. Tratou-se nela da terra (v. 4b), do sol (v. 5), do vento (v. 6) e por fim dos rios e do mar. Não é estranho que alguns autores vejam aqui certa influência da filosofia grega que disputava sobre os quatro elementos fun­damentais da natureza, a terra, o fogo, o ar e a água.

Nunca se poderá provar que o autor de 1,4-7 não pensava na teoria grega dos quatro elementos; mas o que salta à vista é a diferença tão notável que existe entre uma exposição filosófica sobre os elementos constitutivos do universo e o que lemos neste poema. Não trata Qohélet de princípios gerais, mas de realidades sensíveis, visíveis e tangíveis; não da terra, do fogo, do ar e da água como elementos primordiais, mas da terra ou solo e conjunto de seres que compõem sua imensa mole, do sol ou luminária maior no céu, do vento que sopra suave e às vezes violento mas sempre sem rumo fixo, e das correntes de água que fluem sempre para o lugar de reunião, o mar, largo e misterioso.

Na exposição não seguiu esquema de inspiração platônica ou estóica, mas outro mais concreto de orientações lineares, rigorosamente semítico, a saber, nos w. 4-5 domina a verticalidade: terra — sol; no v. 7 a horizontal: rios e mar e no versículo intermédio 6 o circular: os giros do vento. A origina­lidade é total e a forma poética, que fizemos constar anteriormente.

Todos os rios: A palavra que utiliza o autor, e que traduzimos por rio, é nahal, ainda que seu significado próprio seja corrente de água, seja ou não permanente, grande ou pequena. A palavra normal para indicar o Eufrates, Tigre ou o Nilo é nahar e não nahal. Na Palestina, o rio por antonomásia é o Jordão, a principal corrente de água que alimenta o mar Morto. Não abundam as correntes permanentes ou rios na Palestina. Ver-

vento no Egito ou na Palestina, dado que revelaria a origem de Qoh. Estamos, pois, com R. Braun (cf. Kohelet, 59) e contra H. W. Hertzberg (cf. Palästinische, 63s).

Page 144: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dadeiros afluentes do Jordão podem-se contar muito poucos. Na parte oci­dental estão o Jalud, que vem do planalto de Esdrelon, e o Fari‘ah, que recolhe as águas das montanhas da Samaria. Pelo leste confluem no Jordão afluentes mais importantes, geralmente encaixados em imponentes canyons. O Yarmuk desemboca no Jordão a cerca de 8 km mais abaixo do lago de Genesaré; o Zerka (Jabboq), que vem de Aman. Além disso se po­dem contar como rios, ao menos em seus últimos trechos, o Wadi Mujib (Arnon), que por sua vez recebe o Wadi Wala ou Heidan pela direita, pouco antes de derramar suas águas no mar Morto. Por último, o Wadi Hesa (Zéred), que desemboca no extremo sul oriental do mar Morto.29 Todas as outras correntes de água na Palestina ou são muito pequenas ou não me­recem o nome de rio, mas de arroio, ou são torrentes que somente correm quando chove, sendo seus leitos simples barrancos secos ou canyons are­nosos profundos.

A sentença de Qohélet: todos os rios, não precisa ser tomada ao pé da letra, mas em sentido generalizante. O autor sabe perfeitamente que nem todas as correntes de água vão ao mar; muitas são tragadas pela terra.

Caminham ao mar: O verbo hlk: ir, caminhar, é utilizado pelo autor neste versículo três vezes; duas no particípio (v. 7a e 7c) e uma no infinitivo constructo (v. 7d). Traduzimos as três vezes da mesma maneira, visto que o contexto é o mesmo nos três casos e não há motivo para mudar. O senti­do é derivado, já que propriamente só caminham os seres vivos que têm pés ou patas; mas admite-se universalmente este sentido metafórico e, portanto, sua aplicação aos rios e a toda corrente de águas.30

O mar que tem presente o autor é, principalmente, o mar Morto, pois nele confluem o Jordão e alguns dos outros rios e torrentes principais da Palestina. Deve logicamente pensar também no grande mar ocidental, o mar Mediterrâneo, onde vai morrer o Nilo; e no atual golfo Pérsico, onde desembocam o Eufrates e o Tigre, e em todos os outros mares que rodeiam as terras, conhecidas ou desconhecidas, já que a sentença tem valor uni­versal.

E o mar não se enche: Essa é a conclusão a que se chega, após obser­var por longo tempo como vão afluindo ao mar todos os rios, grandes e

29Para a discussão hidrográfica do Jordão e do mar Morto, cf. M. Du Buit, Géographie de la Terre Sainte, Paris, 1958, 23-25; A. González Lamadrid, “Jordán”: Enciclopédia de la Biblia, IV 608-612; R. Sánchez, MarMuerto: Enciclopédia de la Biblia, V 340-343.

30Este sentido metafórico nada tem a ver com o sentido moral que também é freqüente em cami­nhar, andar, quando se aplica às condutas humanas; assim o utilizam moralistas e poetas. Unido a rios e mar, nós o encontramos nas Coplas de Jorge Manrique por la muerte de su padre, estrofe 3a.: “Nuestras vidas son los rfos / que van a dar en la mar, / que es el morir; / allí van los senoríos / derechos a se acabar / y consumir; / allí los rios caudales, / allí los otros medianos /y más chicos, /y Uegados, son iguales / los que viven por sus manos / y los ricos”.

Page 145: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pequenos. O nível das águas é sempre o mesmo. Naturalmente se trata de observação como a dos antigos, que não contavam com aparelhos de alta precisão como os dos modernos. A conclusão faz parte do patrimônio co­mum humano, razão pela qual não nos estranha ler em Aristófanes a se­guinte observação: “O mar não cresce, ainda que o rios desemboquem [nele] sem cessar”.31

Aonde os rios caminham, para lá voltam eles a caminhar: Essa dupla sentença é objeto de uma discussão muito inflamada e séria. Quanto à construção em hebraico veja-se a nota filológica. Fundamentalmente se trata de averiguar se o texto afirma que os rios vão ao mar, donde outra vez voltam a fluir, ou, se somente afirma que os rios vão ao mar e assim continuam indo. Em favor da primeira sentença há testemunhos muito veneráveis, como a versão grega (G), a Vg,32 a versão de São Jerônimo33 e muitos comentários modernos.34 A segunda sentença não tem em seu favor versões antigas, mas sim modernas, e cada vez mais.35

A argumentação, porém, creio que se inclina, e em muito, em favor da segunda sentença que defendemos.36 A única dificuldade considerável do que defendemos parece residir em que, se não se admite o perpétuo movi­mento circular das águas: rios — mar — rios, parece que se rompe a cor­rente de pensamento iniciada no v. 4 e continuada nos w. 5-6. No v. 4 afirma-se o perpétuo movimento das gerações; no v. 5 o sol sai, põe-se e volta a sair; no v. 6 o vento gira, gira sem parar; mas no v. 7 os rios fluem até o mar e se nega que no texto se diga que voltam a sair do mar. Onde estaria, pois, o ponto de contato entre o v. 7 e os versículos anteriores? A resposta, porém, não parece difícil. Os rios caminham ao mar, e conti­nuam caminhando ao mar uma e outra vez sem cessar. Apesar disso, não se enche o mar. Isso não parece ter sentido. E esse o sem sentido do fluir e fluir das águas para o mar: que nunca conseguem sua finalidade, encher o mar. Se se admitisse que os rios se alimentam das águas do mar, como afirma a primeira sentença,37 já não caberia admirar-se de que não se enche o mar, uma vez que a mesma quantidade de água que entra volta a

31Las nubes, 1293s.32"Ad locum unde exeunt flumina revertentur [ver ed. crítica] ut iterum fluant”.33,1 Ad locum de quo torrentes exeunt, illuc ipsi revertentur, ut abeant”.“ Vejam-se A. Allgeier, Das Buch, 21s; A. Bea, Liber, 1; K. Galling, Der Prediger, 85s; L. Di Fonzo,

Ecclesiaste, 128s; F. Ellermeier, Qohelet 1 1, 198s; N. Lohfink, Kohelet, 22; Die Wiederkehr, 138.35Assim, por exemplo, a defendem G. Gietmann, Commentarius, 75s; D. Buzy, UEcclésiaste, 206;

H. W. Hertzberg, Der Prediger, 68.71s; N. Femández Marcos, 761; A. Lauha, Kohelet, 35.36Já Fr. Delitzsch desfazia em parte os argumentos de ordem filológica (cf. Commentary, 223). Mas

o que mais se empenhou em refutar os principais argumentos da primeira sentença foi H. W. Hertzberger (cf. Der Prediger, 71).

37L. Alonso Schõkel, que se remete a essa sentença, comenta: O v. 7 “parece supor que água dos rios, chegadas ao oceano, desce ao oceano inferior e o atravessa para voltar a sair nos mananciais. É a velha concepção de um oceano subterrâneo unificado” (Sabiduría, 20).

Page 146: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sair. Mas o texto sagrado não diz nada disso, nem é necessário supô-lo para sua reta explicação.

Têm razão os que dizem que o que de verdade interessa a Qohélet é o homem, os grandes problemas do homem, mas não abstratamente, como se fosse ele mero amante das especulações acerca do homem. Qohélet preo­cupa-se e muito pelo homem concreto, porque suas reflexões partem de si mesmo, de sua situação pessoal. Essa não era absolutamente desespera­da, mas antes a de um homem bem acomodado. Mas Qohélet não encontra respostas satisfatórias às perguntas mais angustiantes do homem. Qohélet não sabe porque está neste mundo, qual é o sentido da vida humana e de tudo o que a constitui; é crente, sem dúvida, mas não compreende que rela­ção pode ter sua fé em Deus com os problemas entre os homens: a justiça ou a injustiça, a riqueza ou a pobreza, a piedade ou a impiedade, a sabedo­ria ou a tolice, a vida ou a morte, a sorte ou a desgraça, etc. Esta é a concepção teológica que subjaz às especulações de Qohélet sobre o sem sen­tido de tantas coisas que observa. Até a própria natureza é prova de tudo isso com seus fenômenos mais representativos, como observou em 1,4-7.

E não só a natureza. Também a história é testemunha do sem sentido que tudo invade, como vai continuar mostrando Qohélet na segunda parte de seu poema.

2.2. Observações sobre a história (1,8-11).1,8 Todas as coisas cansam

e ninguém é capaz de expressá-las.Não se saciam os olhos de ver nem se fartam os ouvidos de ouvir.

9 O que passou, isso passará, o que aconteceu, acontecerá: nada de novo há sob o sol.

10 Se de algo se diz:“olha, isso é novo”,já aconteceu em outros tempos muito antes de nós.

11 Ninguém se recorda dos antigose o mesmo passará com os que vierem: não se recordarão dele seus sucessores.

8 “cansam” = yege‘im como particípio ativo: são fatigosas ou causam incô­modos. A. B. Ehrlich corrige o texto pelo particípio piei = meyagge‘im, que explica pela queda do m inicial por causa de outro m que lhe precede (cf. Randglossen 56). Nega-o R. Gordis (cf. Koheleth — the man, 207) eG. F. Hasel não o considera nem recomendável nem necessário (cf. TWATIII, s. v. yaga‘, 417). “ninguém”: lit. “o homem não”, “é capaz de”: BHS propõe Vykalleh: “ninguém termina de” (falar), que não parece impro­vável (cf. Diccionario bíblico, 335b). “expressá-las”: lit. “falar”, sem com­plemento. “não se saciam os olhos de” em hebraico no singular; a mesma

Page 147: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

coisa com respeito a “ouvidos”. O verbo saba‘, construído com l, é um hápax na Bíblia (cf. F. Piotti, Osservazioni [1977], 52). Em Qoh 4,8 en­contra-se com acusativo e em 6,3 com min (cf. M. Dahood, Qoheleth and Northwest, 349s; F. Piotti, La lingua, 188.192). “nem se fartam os ouvi­dos de ouvir”: lit. “não se enche o ouvido de ouvir”.

9 “o que”: “mah-shshe - pronome interrogativo e relativo é característico de Qoh; em 3,15.22; 8,7; 10,14 significa id quod, que em hebraico clássi­co se expressaria com ’shr e em 6,10 e 7,24 significa quidquid, que em hebraico normal seria kl ^sher” (M. J. Dahood, Canaanite-Phoenician, 45); cf. também Ch. F. Whitley, Koheleth, 10. “se passou, se passará”: lit. “foi, será”. P. Joüon (llli e 113a) defende uma tradução no presente do segundo termo: isso passa; Bo Isaksson também o traduz no presente (cf. Studies, 75.110). Vg interpreta erroneamente Quid est quod fuit?

10 “isto” corresponde a zeh, pronome demonstrativo masculino, pelo neu­tro zôt. “já” = kebar, é um aramaísmo que só aparece em Qohélet. “muito antes de nós” = bsher hayah; lit. que foi antes de nós, por: que foram.: é possível o singular, porque se considera ‘olamim (antecedente do relati­vo) como plural coletivo (cf. Ges.-K, 145 n). BH, 3® ed. corrige hayu, eli­minando a dificuldade, mas não é necessário. Ch. F. Whitley, por sua vez, explica-o de outra maneira: “ ‘Imym parece ter a força de um singu­lar em certas passagens bíblicas [cf. Is 26,4; 45,17 e Dn 9,24; em outros, como lRs 8,13 e SI 61,5, é advérbio]. E provável que, ao ser ïmym aqui em Kohélet termo enfático para um longo período de tempo, possa traduzir-se no singular: já que aconteceu na época que foi antes de nós’ ” (Koheleth, 11).

11 “Ninguém se recorda de”: lit. “não há recordação de”, zikron (recordação de) não é forma absoluta, como pensava F. Delitzsh, à semelhança de yitron ou de kishron (cf. Commentary, 225), mas estado constructo antes de lamed (cf. Ges.-K., 130a; R. Gordis, Koheleth — the man, 208; Ch. F. Whitley, Koheleth, 12). “Seus sucessores”: com os que serão em último lugar, ou simplesmente: que serão em último lugar ou no final (cf. Vg).

1,8-11. De Qoh 1,8-11 ficamos sabendo que Qohélet, além de observar os fenômenos da natureza, observa o transcorrer da história humana bas­tante mais apaixonadamente que o curso da natureza. Dele podemos su­por com fundamento que era bom conhecedor da história de seu povo e do ambiente próximo e mais ou menos distante. Também isso fez constar em seu livro. Umas vezes o sentiremos mais próximo da realidade humana; outras vezes mais longe, mas nunca indiferente.

8. Antes de tudo propõe-se o problema de se o v. 8 em sua totalidade faz parte ou não do poema.1 Todavia, a pura conveniência na crítica literá­

lT. Nishmura recorda que “do ponto de vista da crítica literária notou-se faz tempo que o v. 8 (...) destoa do conjunto dos w . 4-11 e que, se se omite, os w. 4-7 unem-se melhor com os w. 9-12” (Un mashal, 607). De fato, é muito significativa a interrogação de A. Barucq: a observação do v. 8 “não seria uma ‘nota’ talvez marginal, um reparo de um leitor de Qohélet?” (Ecclésiate, 62 = Eclesiastés, 63). T. Nishmura chega a conceder como possível que o v. 8 seja uma glosa, mas matiza muito aguda­mente: “O v. 8b leva a pensar numa nota marginal; todavia, é indispensável”, uma vez que apóia e sustenta a estrutura deste mashal (Un mashal, 608).

Page 148: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ria ou na melhoria de uma estrutura não são motivos suficientes para negar a originalidade de um versículo que certamente se revela molesto. Portanto, será preciso tentar dar explicação plausível antes de chegar à situação-limite de ter que eliminar todo o v. 8 ou parte dele.

Uma solução ou um princípio de solução nos oferece T. Nishmura e consiste fundamentalmente em considerar o v. 8a como um mashal em si, mas que no contexto atual adquire novas dimensões para trás e para diante. O versículo 8a tem sentido completo em si [a: “todas as coisas cansam / ß: e ninguém é capaz de expressá-las”], prescindindo por enquanto da diversidade das versões. Segundo ele, o que verdadeiramente dá coesão ao que parece díspar é ò método ou procedimento seguido fielmente pelo sábio e que sustenta a própria estrutura do poema; este método, que o autor chama indutivo, consta de duas fases: a primeira é a da observação da rea­lidade, a segunda é a da avaliação ou do julgamento do momento existen­cial e humano. Sendo assim, “se o v. 8a é um mashal independente e o v. 8aa em sua forma atual designa uma observação sobre a natureza, en­quanto que o v. 8aß é um juízo sobre o homem, tudo se esclarece”.2

Se agora analisarmos o v. 8a em relação com seu contexto, descobri­mos que “o v. 8a [uma observação] continua as observações dos w. 4-7:3o v. 8b parece que está demais nessa explicação.4 A função complementar do v.8 a estudaremos no momento de sua explicação.

De todo o v. 8 podemos dizer que é um versículo-ponte ou de transi­ção. Uma das razões pelas quais muitos preferem traduzir debarim por coisas é precisamente porque “ é melhor interpretar a cláusula [v. 8a] refe­rida aos fenômenos descritos anteriormente”.5 O próprio começo do versículo: todas as coisas (kol-haddebarim), está nos recordando o do v. 7: todos os rios (kol hannehalim). Que o v. 8 seja introdução dos ver­sículos que seguem, parece-nos evidente aos que consideramos os w. 8­11 como a segunda parte do poema: é o início da reflexão sobre a história humana.6

Essas considerações prévias à interpretação do v. 8 dão-nos uma idéia de sua complexidade; as que seguem nos convencerão mais disso, se é que já não estamos convencidos. Causa dessa complexidade e da dispersão de pareceres sobre o v. 8 radica fundamentalmente na natureza do mesmo,

2T. Nishmura, o. c., 607.“T. Nishmura, Ibidem. Veja o que diremos em seguida acerca do caráter de transição do v. 8.4Considera-o T. Nishmura “uma nota marginal” e, de mais a mais, de caráter secundário, com

explicitamente afirma: “O v. 8b, sendo elemento secundário, teria sido acrescentado para sublinhar o v. 8aß, fazendo asssim contrapeso ao v. 8aa” (o. c., 605).

5R. Grordis, Koheleth — the man, 207. O qual negam geralmente os que traduzem d‘barim por palavras (cf. K. Galling, Der Prediger, 88).

6N. Lohfink vê-o como resumo e conclusão dos w . 4-7 e como introdução ao “novo tema do poema: o homem” (Die Wiederkehr, 140).

Page 149: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que, a meu ver, é propositadamente equívoco, ou seja, polivalente.7 Mas passemos ao próprio texto e sua interpretação.

Todas as coisas cansam. Temos que justificar necessariamente nossa versão, visto que a grande dificuldade do v. 8a radica precisamente nos dois vocábulos que traduzimos por as coisas (debarim) e cansan (yeg ‘im).

Não nos fazemos ilusões em nossa tentativa, visto que desde que o texto hebraico se traduziu para o grego e para o latim até nossos dias continuam em pé as mesmas dificuldades; só queremos tornar conscientes os leitores da dificuldade intrínseca ao texto original e justificar razoavel­mente nossa versão. A história da interpretação do v. 8 ensina-nos que parece que sempre estaremos condenados a renovar as tentativas de apro­ximação ao texto original, para descobrir o que pensava o autor sagrado ao escrever seu texto; a empresa é quase impossível. O autor não encon­trou neste caso a fórmula adequada; objetivamente é obscura e difícil.

Todos os autores, antigos e modernos, declaram que dobar pode-se traduzir tanto por palavra como por coisa e sinônimos.8 Será, pois, o con­texto que vai determinar se é palavra ou coisa o significado pretendido pelo autor. Em nosso caso, já dissemos, nem sequer o contexto nos tira de dúvidas, como demonstram os testemunhos antigos e modernos.9

Todas as coisas: Fizemos antes uma breve referência à discussão so­bre se o v. 8 relaciona-se com os w. 4-7 ou antes se adiantava aos w. 9-11; agora voltamos a propor-nos a questão, uma vez que se trata de ver a força que é preciso atribuir à expressão todas as coisas. E uma conclusão ou antes uma tese que se propõe provar o autor? Se é uma conclusão, eviden­temente supõe as reflexões que fez nos w. 4-7; se é uma tese ou proposição, está intimamente ligado aos w. 9-11. Mesmo neste caso se poderia consi­derar uma conclusão adiantada, pois que se supõe que o autor, antes de deixar assentado o v. 8a, já tem experiência e conhecimento do que afirma nos w. 8-11.

7Por isso tem muita razão N. Lohfink ao afirmar, a propósito da versão do v. 8, que “outra vez necessariamente qualquer tradução é mais precisa que o texto original” (Die Wiederhehr, 139), já que define sua indefinição, põe limites a sua amplidão com o perigo de deixar algo de seu conteúdo e de causar, em certa medida, seu empobrecimento.

8J. de Pineda escreve: “Eadem vox originalis non solum rem, sed primo vocem, aut verbum proprie significat; deinde etiam rem quamcumque, quae verbo explicari potest” (In Ecclesiasten, 169a). Cf. A. Bea, Liber, 1 nota ao v. 8; A. Lauha, Kohelet, 35; H.-P.; Miiller, Der unheimliche Gast, 443, onde se expressa assim: “O v. 8 por meio da palavra-chave haddebarim, que ao mesmo tempo significa ‘as palavras’ e a realidade nela contida, ‘as coisas’; T. Nishmura, TJn mashal, 609.612, que a “palavra” acrescenta “provérbio”, uma espécie de congelação da palavra: “palavra fixada em provérbio, coisa presa por palavras” (611); N. Lohfink também diz que “dabar significa tanto ‘coisa’ como ‘palavra’ ” (Die Wiederkehr, 139).

falham como amostra os seguintes representantes. Traduzem d‘barim por palavras: LXX (logoi), Jerônimo (sermones), A. Bea (sermones), H. W. Hertzberg, A. Lauha, K. Galling, D. Michel (cf. Untersuchungen, 6s). Outros preferem traduzir debarim por coisas; assim Vg e muitos modernos. Nós também traduzimos por coisas, condicionadas em grande parte pela interpretação que demos a.ygeim.

Page 150: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Cremos que todas as coisas faz referência em primeiro lugar e princi­palmente aos w. 4-7, à incessante passagem das gerações, à carreira sem fim do sol, do vento e dos rios; tudo, pelo que parece, sem finalidade, inutil­mente. Mas de nenhuma maneira excluímos que todas as coisas do v. 8a seja antecipação dos w. 9-11, pois que essa segunda parte do poema confir­ma a tese geral do autor a partir do ponto de vista do homem na história.

Ibdas as coisas cansam, são fadigosas (LXX), penosas, graves (São Jerônimo). y^ im é a segunda palavra-chave do v. 8, e para o sentido do versículo é ainda mais decisiva que debarim, visto que em toda hipótese qualifica debarim e reflete o tom do versículo, dos w. 9-11 e, em certo sen­tido, de todo o poemá 1,4-11. Considere-se como adjetivo verbal ou particí- pio, é uma observação da realidade e fundamento do juízo que segue.10

O significado de ygfim pode ser ativo ou passivo, segundo o manifes­tam as versões antigas e modernas.11 Se se aceita o sentido passivo, o can­saço das coisas deverá se tomar em sentido figurado. Além de ser infreqüente a figura retórica, não é fácil descobrir um sentido plenamente coerente e fluido com o contexto.12 O sentido ativo de yge^m está bem atestado entre os autores antigos13 e entre os modernos;14 encaixa perfeita­mente com os w. 4-7: tanta mudança e movimento, sem que se alcance uma meta, produzem fastídio, incômodo, cansaço, ou seja, cansam.

V. 8aa serve-nos de introdução aos w. 8af>-ll. A estrutura de 8(3a- 8b no-lo põe ainda mais diante dos olhos. Com três estíquios, cada um dos quais consta com simetria perfeita de uma negação + um verbo no imper-

10Cf. T. Nishmura, Un mashal, 612; G. Ogden, Qoheleth [1987], 32.“ Expressamente o afirma J. de Pineda (cf. In Ecclesisten, 169.171a. Ch. F. Whitley menciona

também aqui o sentido de adjetivo: “todas as coisas estão cansadas” (Kohelet, 10), ou como parafraseia D. Buzy: “Todas as coisas estão num estado de fadiga” (UEcclésiaste, 206b). R. Braun acha certa semelhança num pensamento de Menandro: “Pois todas as coisas se cansam em sua duração” (cf. Kohelet, 60); também N. Lohfink cita Menandro em Kohelet, 22.

12Confessamos que estas não são razões convincentes para descartar o sentido passivo, mas prefe­rimos ir por outros caminhos que não compliquem a perícope mais que o estritamente necessário.

13J. de Pineda nos faz um breve resumo da interpretação ativa da raizyg ‘ entre os antigos: “Ativa­mente com Aquila: [coisas ou discursos] que causam moléstias. O que admitiu Kimhi ao dizer que o cansaço e a fadiga atribuem-se às próprias coisas, porque aos que se ocupam com elas sobrevêm moléstias e fadiga. O mesmo sentido é o da Septuaginta e das versões antigas: Omnes sermones gra­ves, porque se aprendem com grande trabalho, como diz São Jerônimo” {In Ecclesiasten, 169a).

14R. Gordis nos dá a versão ao mesmo tempo que a explica da maneira seguinte: “É melhor inter­pretar a cláusula [1,8a] referindo-a aos fenômenos antes descritos: “Todas as coisas são fastidiosas’, porque se repetem a si mesmas ad infinitum et ad nauseam” (Koheleth — the man, 207). Gordis ilustra a sentença de Qohélet com uma de Horácio: “A palavra \yge‘im] é um epíteto com significado transferido (cf. a frase de Horácio tarda podagra [Sáí. 1,9,32], lit. ‘a lenta gota; a gota que dificulta o enfermo’)” (Ibidem). Antes de Horácio já Catulo (71,2) fizera uso da expressão tarda podagra.

Os lexicógrafos também atestam o sentido passivo; G. F. Hasel escreve: “O adjetivoygelm parece que indica um processo ativo na difícil passagem de Qoh 1,8a” (ThWAT III, s. v. yaga‘, 417). Sabemos que Hasel alinha-se com os que traduzem debarim por palavras, mas isso não diz respeito em nada nossa tese; ele propõe: “Literalmente, a sentença em Qoh 1,8a pode ser traduzida “todas as palavras são fadigosas” {Ibidem).

Page 151: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

feito (poder, saciar-se, encher-se) + um sujeito (homem, olhos, ouvidos) + um verbo no infinitivo precedido pela partícula le (os dois primeiros: falar e ver) ou min (o terceiro: ouvir).15

Ninguém é capaz de expressá-las: Outra vez podemos ver como Qohélet afasta-se da vereda comum da sabedoria tradicional. Segundo o sentir comum dos semitas, o nome, a palavra, dá ser às coisas, atribuindo à pala­vra um ser quase mágico, o de fazê-las: uma coisa sem nome equivale a não existir. O homem é o único ser da criação que pode falar; por isso é o único senhor dela e manifesta seu próprio senhorio por meio da palavra (cf. Gn 2,19-20). Na corrente sapiencial o sábio é o dominador da palavra por excelência, e mais numa cultura fundamentada na tradição oral. Se agora lemos que ninguém é capaz de expressar as coisas, quer dizer que o poder da palavra fracassou, e com isso o homem carece desse poder mági­co sobre a realidade, que a realidade supera o homem e não ao contrário, como se tinha crido até Qohélet. Esta é a razão mais que suficiente para que Qohélet se mostre crítico para com uma corrente de sabedoria excessi­vamente superficial e otimista, e sustente cada vez mais seu ceticismo diante da realidade. O que se confirma, de mais a mais, claramente com o v. 8b em seus dois hemistíquios sobre os olhos e os ouvidos.

Já falamos suficientemente sobre a função complementar do v. 8ß com relação sobretudo ao v. 8,aß. Ao dizer dos olhos (do olho) que não se saciam de ver e dos ouvidos (do ouvido) que não se fartam (não se enchem) de ouvir, refere-se o autor à insaciabilidade dos sentidos humanos?16

Visto a disparidade de opiniões, justamente podemos e devemos nos perguntar qual é a interpretação mais coerente com o texto. A pergunta vale da mesma forma para o v. 8bß, pois, ainda que se diferenciem na cons­trução [um: verbo precedido de le, outro: verbo precedido de min], o sentido é o mesmo.17 Defendemos que com muita probabilidade Qohélet não excluía nenhuma das duas sentenças. Qohélet gosta das ambigüidades, já tivemos ocasião de comprová-lo e ao longo do comentário não faltará mais oportuni­dades para detectar a mesma coisa. Qohélet vê-se preso pelo desejo de saber e conhecer mais e mais: a insaciabilidade do homem em geral e do sábio em

15Cf. T. Nishmura, Un mashal, 606; também observa que a simetria não é de todo perfeita, pois homem não é da mesma ordem que olhos e ouvidos-, nem os verbos pertencem todos à mesma categoria nem as partículas são perfeitamente equiparáveis.

16Assim pensam alguns comentadores (cf. W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 149; A. Barucq, Eclesiastés, 63). Este náo é o parecer de outros muitos que, como V. Zapletal, relacionam o v. 8b com a perpétua monotonia da repetição do mesmo (cf. V. Zapletal, Das Buch, 97; também J. Steinmann, Ainsi, 47).

17T. Nishmura compendia: “Os dois le nos w. 8aß e 8bct são diferentes em suas funções, e le + um infinitivo como complemento do verbo sb‘ é único no Antigo Testamento [cf. E. Podechard, Ecclêsiaste, 242; M. Dahood, Qoheleth (1962), 349s]. Pelo contrário, o segundo 1‘ do v. 8bct e o min do v. 8bß são perfeitamente paralelos em seu sentido” (Un mashal, 607).

Page 152: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

particular, e a triste realidade das limitações humanas, tão frisada por Qohélet em todas as ordens, especialmente na área dos conhecimentos. O homem deseja conhecer todo o relativo à natureza, suas maravilhas e mis­térios indecifráveis, tudo o que tenha a ver com o homem como membro de uma sociedade e como indivíduo. Por todos os lados não descobre mais que incoerências e caminhos sem saída: Aonde vamos? Quanto a Deus, em quem crê firmemente, não compreende nada: Quais são seus sentimentos para com o homem? Quais devem ser as justas relações do homem para com Deus? Sem dúvida conhece o que se ensina em seu povo sobre tudo isso e sabe que na sinagoga se lêem e se explicam todo sábado a Lei e os Profetas de Israel. Mas também conhece o que dizem os sábios desde sempre e, no entanto, não o aceita, a tudo põe um sinal de interrogação, consome-o a dúvida. Não deveríamos, pois, estranhar que afirme taxativamente que nem os olhos se saciam jamais de ver, por muito que vejam, nem os ouvi­dos se fartam ou se enchem de tantas coisas que ouvem. Se o mar jamais se enche, ainda que não parem de fluir para ele correntes de água, tampouco se enchem os ouvidos, ou seja, o homem, por muito que ouça: sua capacida­de de percepção é maior que as percepções todas de uma vida.18

Não se detém Qohélet em reflexões sobre as causas pelas quais nada pode satisfazer ou encher os sentidos, ou seja, o homem; mas deixa aberta a porta para semelhantes reflexões, coisa que farão profusamente os comentadores posteriores ao discorrer sobre a natureza do homem, aberta ao infinito, porque foi feita à imagem e semelhança de Deus. Mas nisso já não pensava Qohélet. No que pensava era na experiência do homem na história, como se vai manifestar nos v. 9 e seguintes.

Vv. 9-11. Segundo nossa divisão da perícope, aos w. 4-7(8): reflexões centradas na natureza, seguem os w. 9-11: reflexões que têm por centro o homem. Os w. 9-11 formam unidade temática; neste sentido, o v. 9 leva consigo os w. 10-11.

Ao analisar 1,4 descobrimos nele uma antítese, ou seja, o movimento ou passagem das gerações humanas (v. 4a) perante a permanência ou es­tabilidade da terra (v. 4b). Isso era como a síntese do conteúdo do poema inteiro 1,4-11. Com efeito, os w. 5-7(8) correspondem ao desenvolvimento do v. 4b e os w. 9-11 ao do v. 4a. A particularidade do v. 8 ficou patente na explicação precedente.

V. 9. O que se passou, se passará, o que aconteceu acontecerá-. Mesmo ao leitor mais superficial chama a atenção o ritmo do versículo, o cunho

18Sobre a relação entre este versículo 8bp e o v. 7ap, o do mar que não se enche, pode ver-se N. Lohfink, Die Wiederkehr, 141; R. E. Murphy, que diz: Outra inclusão: male’ / timmale’ (encher), man­tém unidos o mar e o homem (w. 7-8), que nunca se enche ou se satisfaz” (.Wisdom, 133).

Page 153: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sóbrio e todavia convincente da forma de expressão. Facilmente se obser­va o paralelismo existente entre o v. 9a e o v. 9b. As boas versões procuram pô-lo de manifesto, a nossa também.19

Quanto ao significado, que diferença há entre o v. 9a: o que se passou (hayah) e o v. 9b: o que aconteceu (na^sah)! Há autores que relacionam o verbo ser (hayah) com os fenômenos da natureza, e o verbo fazer, ser feito, acontecer Çasah) com as ações humanas;20 outros crêem que é inútil tentar diferenciar uma fórmula da outra;21 ou então somente vêem certos aspec­tos ou conveniências, mas de nenhuma maneira argumento lingüístico decisivo.22 Creio que o autor quis expressar a mesma coisa no v. 9a e no v. 9b, incluindo, certamente, a esfera da natureza e a do homem.23 Deve-se explicar a variedade unicamente por motivo de estilo.

Volta de novo o autor no v. 9 ao tópico da repetição das coisas (objeto dos w. 4a.5-7), apoiando-se agora na roda do tempo. A universalidade da sentença de Qohélet, homem aferrado à experiência, é bastante suspeito­sa. Com que direito afirma que se repetirá no futuro o que uma vez acon­teceu? Disso certamente ele não tem experiência.

Advertimos que na literatura sapiencial de orientação pessimista do Egito e da Mesopotâmia, e mais tarde também da Grécia e de Roma, é um lugar comum, um tópico, a repetição dos acontecimentos.24 Cadenciosa e monotonamente se repetem os fenômenos da natureza, os acontecimentos históricos e seus protagonistas, como se fossem os desenhos ou esboços de uma imensa roleta ou carrossel que sempre girasse no mesmo sentido. O mundo gira e gira, “um mesmo rosto vai mostrando o mundo a todos”.25 Sendo assim, tem pleno sentido que nada de novo há sob o sol, porque

19Entre os que estudaram a estrutura interna do v. 9 sobressai F. Rousseau (cf. Structure, 205); ver também R. Braun, Kohelet, 65.

20Cf. D. Lys, UEcclésiaste, 127, onde se citam C. H. H. Wright e E. Podechard; ver também R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 211.

21Assim se expressa D. Buzy: “A lei enuncia-se em duas fórmulas sinonímicas: o que foi será; o que foi se fará, entre as quais seria supérfluo buscar diferenças” (UEcclésiaste, 207a). D. Lys parece conce­der alguma probabilidade à diferença entre versículo e versículo, pois concede que “em 1,9, mais que um paralelismo sinonímico, pode-se ver um paralelo entre o que é o mundo e o que faz o homem” CUEcclésiaste, 127).

220 próprio D. Buzy admite que “quando muito se poderia dizer que o verbo ser convém melhor aos fenômenos naturais que são, ao passo que o verbo fazer, fazer-se, convém melhor às ações humanas que se fazem. Não há razões para insistir mais” (UEcclésiaste, 207a).

23Por essa razão São Jerônimo relaciona o v. 9 com todo o enumerado desde o v. 4.24Mesopotâmia: “A vida de ontem é a mesma do todos os dias” (ANET 425b); Egito: “Desde a

primeira geração até os descendentes se assemelham aos passados” (citado por R. Braun em Kohelet, 60); Grécia: Um dito de Pitágoras tem parecença surpreendente com a sentença de Qohélet, ele diz assim: “O acontecido uma vez, acontece de novo, pois simplesmente não há nada de novo” (Porfírio,Víía Pythag., 19); Roma: “Tudo passa e volta, não vejo nada de novo” (L. A. Sêneca, Epist, 24); “Nada é novo. Tudo o que acontece, assim acontece sempre e acontecerá” (Marco Aurélio, 12,26; cf. 7,1). Cf. F. Vattioni, Niente di nuovo, 64s.

25Citação de J. de Pineda, assim em castelhano em In Ecclesiasten, 180b.

Page 154: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tudo já aconteceu alguma vez ou uma infinidade de vezes (cf. v. 10). Essa afirmação parece ao autor a mais normal do mundo: para ele é como a conseqüência lógica do que acaba de dizer no v. 9a e no v. 9b. Se o que está por vir vai ser repetição do que se passou ou aconteceu, logo nada de novo há sob o sol. Nos w. 10-11 teremos ocasião de comprovar a importância dessa afirmação. Mas será isso exatamente o que nos ensina Qohélet no v. 9?

As fórmulas de Qohélet são verdadeiramente equívocas; com elas po­der-se-ia expressar a doutrina dos filósofos gregos de seu tempo sobre o eterno retorno de todas as coisas para repetir o ciclo de sua existência: o dos fenômenos naturais e o dos indivíduos em singular e coletivamente, ou seja, o da história. Qohélet, todavia, não fala como filósofo de escola, não pretende dar-nos com suas sérias reflexões lição de física (em sentido grego) nem de metafísica (em nosso sentido). Como já dissemos na Intro­dução, ao tratar das fontes de inspiração de Qohélet, admitimos em Qohélet uma influência indireta; mas essa influência literária indireta não impli­ca dependência literária direta, e até pode ser que não se dê verdadeira dependência literária, mas só mero contato literário, porque paira no am­biente o tema.26

Qohélet em 1,9 não trata da doutrina do eterno retorno, mas do que observa dia após dia, como qualquer bom observador da natureza e da vida: todos os seres vivos, com atenção especial ao homem, nascem, vi­vem, morrem; as gerações se superpõem umas às outras e se sucedem sem cessar; o ciclo do sol; o eterno fluir das águas; o girar incessante do vento; o surgir dos impérios: seu esplendor e queda e sua volta a começar; os triunfos e fracassos dos homens, nada disso é novo, nem surpreende nin­guém. Parece que não se pode negar o matiz claramente pessimista da visão de Qohélet, como no-lo vão confirmar os versículos 10 e 11 e tantas outras passagens do livro, sem que por isso se chegue a uma desesperança absoluta, mas a uma forma de consciência realista, um tanto derrotista, mas não paralisante.

Sob o sol: Remetemos ao que dissemos ao comentar a mesma expres­são em 1,3. Em resumo, sob o sol equivale à esfera em que se desenvolve a vida do homem, em contraposição talvez à esfera divina.

Tem sentido perguntar-nos sequer se o v. 9 pode reconciliar-se ou não com o sentido de progresso que domina a modernidade em todos os seus aspectos? Creio que não. São dois mundos muito distintos, o de Qohélet e o nosso, para que possamos tirar conclusão de confrontação direta. O mundo de Qohélet é o de toda a antiguidade, para o qual a categoria de mudança

26Cf. Introdução, secção XII, no começo. Em Qoh 1,9 manifesta-se este contato com o ambiente. F. Vattioni arrisca afirmar entre Qoh e Pitágoras um “empréstimo manifesto”, e toma, portanto, Qoh “tributário de uma versão helenística” de Pitágoras (cf. Niente di nuovo, 64s). ■

Page 155: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

identifica-se com a imperfeição e, ao invés, a da imutabilidade com a de perfeição. Neste contexto, o horizonte ideal do homem é o do permanente­mente estável, firme, imutável, como Deus.27

Outra vez temos que reconhecer a valentia de Qohélet, que enfrenta toda a tradição do AT e já não só na esfera sapiencial. Os profetas anun­ciam que se aproxima “o novo”, que o futuro é o reverso de todo o passado, é a renovação da história (cf. Jr 31,22.31; Ez 11,19; 36,26; Is 42,9; 43,19; 65,17; 66,22). Provavelmente Qohélet pensava de tudo isso que não passa­va de bela utopia, que estava longe, muito longe da realidade, e era por isso mesmo sonho irreal. Tão seguro está do que diz que negará plena­mente qualquer resquício de escapatória para diante (cf. 9,1-3).

No entanto, talvez seria conveniente distinguir entre a concepção ge­ral e totalizante de Qohélet acerca da natureza e da história, e a visão próxima e primária de cada dia e momento. Qohélet sabe muito disso, já veremos onde põe ele seu empenho e onde se refugia em sua vida pessoal e diária. O que via ele nas coisas normais, simples, ao alcance da mão, como as descreve, por exemplo, em 9,7-9? Certamente se daria conta de que não há dois amanheceres iguais, nem dois entardeceres, nem tampouco duas ondas do mar. Não é isso precisamente aquilo a que responde e con­tra o que nos previne no v. 10?

10. No fim do versículo anterior o autor propôs seu pensamento cen­tral em forma de tese: “nada de novo há sob o sol”. Comentando essa afir­mação, dizíamos que “para ele é como a conseqüência lógica do que se acaba de dizer no v. 9a e no v. 9b”. Os w. 10-11 vão ser a confirmação solene desse pensamento tão característico em Qohélet.

Se de alguma coisa se diz: Com efeito, o versículo 10 começa condicio­nalmente, propondo um caso concreto, com a única finalidade de fazer ressaltar a tese de que “nada de novo há sob o sol”.28 O caso concreto é uma hipótese que, segundo Qohélet, é puramente ilusória. Para sublinhar me­lhor o aspecto saliente do exemplo, o autor passa ao estilo direto do impe­rativo: Olha.23 Sem dúvida deve valer a pena prestar atenção, quando se nos convida assim com urgência: “Ei, olha”. E assim é, porque se desco­briu algo de novo, e considera-se a novidade valor em si. Mas infelizmente se trata de miragem, algo que parece novo, embora na realidade não passe da repetição do passado, “é novo somente para quem o experimenta nova­

27Todas as considerações que não levem em conta estas mudanças de perspectiva serão inúteis e até prejudiciais.

28Este é o sentir comum dos autores, apesar de que LXX e Vg traduzam o começo como interroga­ção. R. Gordis escreve: “ysh dbr tem força de protase numa sentença condicional e equivale a ‘se há algo’, ysh é virtualmente igual a um particípio” (Koheleth — the man, 207).

290 texto pode também traduzir-se: “Olha isto, é novo”; o sentido é o mesmo, mas com essa versão perde-se muito em força expressiva.

Page 156: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mente”,30 mas já aconteceu em outros tempos. A expressão hebraica que traduzimos por “outros tempos”: ‘olamim, já encontramos no singular no v. 4b. O contexto é notavelmente diverso: lá se olhava para o futuro, aqui para o passado; embora o significado fundamental deva ser o mesmo: “um tempo longo, ilimitado”, dizíamos lá; o matiz deve ser diferente.

Muito antes de nós: Veja-se a nota filológica, onde se prova que equi­vale a um tempo ou época distante que nos precedeu e da qual se supõe que não guardamos memória. E o tema do v. 11.

11. Neste versículo o autor vai dar a razão última pela qual aparece como novo o que na realidade não o é.

Literariamente, o v. 11a vê-se reforçado em seu começo pelo uso da partícula verbal ’en: “não há”, que parece fazer jogo com a partícula verbal afirmativa yesh: “há, existe”, do v. 10a. Ninguém se recorda dos antigos: o autor entra de cheio num dos temas mais tratados e queridos de todos os antigos, semitas e não semitas, e, ousaria dizer, também do homem de todos os tempos; é o tema da fama, da memória, e da recordação, ou seja, do desejo de permanência mesmo depois da morte, desejo do nome perpé­tuo. Mas constata a triste realidade do esquecimento, pó da história que cobre todas as coisas. O esquecimento, como terrível maldição, alcança não só os que passaram, os que morreram, os antigos, mas alcançará tam­bém os presentes e os que hão de vir, quando tiverem deixado de existir: o mesmo passará com os que vierem.31

O v. 11b é um versículo paralelo ao v. 11a, com diferença de que no v. 11a são objeto do esquecimento os antigos (rVshonim) e os que hão de vir Çaharonim) e no v. 11b somente não haverá recordação para os que virão depois. Sendo assim, o v. 11b pode-se considerar como réplica do v. Haß.

Qohélet insere-se na corrente de pensamento dominante no mundo antigo. Sem dúvida conhecia a abundante literatura elegíaca que flo­resceu no oriente mesopotâmico, no ocidente egípcio e greco-romano helenístico. O tema do esquecimento era tema bastante conhecido em to­dos esses meios culturais. Chegaram até nós alguns testemunhos, como, por exemplo, O diálogo entre o escravo e seu senhor na Babilônia; nele lemos: “Sobe nos montões das ruínas antigas e anda por eles; olha os cadá­veres dos homens do passado e recentes; qual deles é malfeitor, qual ben­feitor público?”32 Ou no Egito O diálogo de um desesperado, onde encon­

30G. Ogden, Qoheleth (1987), 30.31K. Galling afasta-se da sentença comum; nega que o v. 11 trate da fama ou do olvido dos homens,

visto que interpreta rVshonim e ’aharonim do v. 11a como períodos de tempo: o passado (não os anti­gos) e o posterior (não os que vierem), o passado e o futuro, como ‘olamim do v. 10b eram outros tempos (cf. Der Prediger, 86); R. Braun o refiita (cf. Kohelet, 60).

32ANET, 438b; La sabiduría dei antiguo Oriente, 298.

Page 157: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tramos: “Os que constroem em granito e se escavam aposentos numa pirâ­mide... tão depressa como os construtores morreram, suas mesas para os sacrifícios estão vazias, porque não têm um sobrevivente, como qualquer um dos afadigados [os pobres] que morrem no dique — as águas acabaram com ele e também a luz do sol, o pixe das margens do rio fala com ele...”33 Também O canto do harpista sobre os grandes, príncipes e reis já mortos, exclama: “Os que constroem palácios — já não existem seus escabelos —. Olha o que se fez deles!”34

As reflexões sobre a recordação e o esquecimento tampouco são alheias ao resto do AT. Jesus ben Sira resume a maneira comum de pensar dos judeus; falando dos antepassados, diz: “Alguns legaram seus nomes para ser respeitados por seus herdeiros. Outros não deixaram recordação e aca­baram ao acabar sua vida: foram como se não tivessem sido, e da mesma forma seus filhos depois deles” (44,8-9). Segundo essa mentalidade, a so­brevivência do indivíduo está na recordação; se essa se perde, é como se não tivessem existido. Entre os piedosos se cria que o esquecimento esta­va reservado somente aos maus. O próprio Sirácida continua o texto ante­rior: “Não assim os homens de bem.” (Eclo 44,10). Qohélet, porém, não admite distinção, a todos espera a mesma sorte: o esquecimento total. Nem em Eclo nem em Qoh se vislumbra sequer a doutrina da imortalidade que tão nitidamente aparecerá no livro da Sabedoria. Há, porém, um lugar na Sabedoria em que se desenvolve também elegiacamente o tema do esque­cimento; mas a diferença com o Eclesiastes é abissal, pois o que Ecl afirma de todos sem distinção, Sb só o diz dos maus, e ademais por suas próprias bocas; falam os maus: “Nosso nome cairá no esquecimento com o tempo e ninguém se recordará de nossas obras; passará nossa vida como rastro de nuvem, dissipar-se-á como neblina acossada pelos raios do sol e esmagada por seu calor. Porque nossa existência é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; está aplicado o selo, não há retorno” (Sb 2,4s). Per­mita-se-nos transcrever aqui nosso comentário: “Postos os fundamentos da doutrina dos ímpios nos w. 2-3, vem agora a conseqüência lógica, o esquecimento do tempo. Negada a imortalidade individual, não ficará se­quer a imortalidade da recordação nas gerações futuras. A existência pes­soal para eles não tem mais consistência que a do tempo que passa. Esta doutrina sem esperança ilustra-se graficamente com várias comparações”.35

O tema é tão universal que se manifesta em todos os povos. Em nossa literatura castelhana temos preclaros exemplos, que tratam do esqueci­mento dos de outrora e dos mais próximos:

33ANET 405b.^ANET 467a.35J. Vílchez, Sàbiduría, Estella, 1990, 156.

Page 158: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“Deixemos os troianos, / que seus males não vimos, / nem suas glórias; / deixemos os romanos, / ainda que tenhamos ouvido e lido / suas histórias; / não cuidemos de saber / daquele século passado / o que foi dele; / venhamos aos de ontem, / que também é esquecido / como aquele. / O que se fez do rei don Juan? / Os Infantes de Aragão, / o que se tomaram? / O quê se fez de tanto galã, / o que de tanta invenção / que trouxeram?”36

Ao terminar o comentário ao poema 1,4-11, creio que podemos afir­mar com toda verdade que o poema constitui digna abertura ao livro de Qohélet. Sua altura de forma e conteúdo garante-nos de antemão que vale a pena esforçar-se para decifrar o que o autor nos quer comunicar com seu livro. Não temos porquê ficar defraudados se o livro não responde às ex­pectativas levantadas pelo grandioso poema introdutório. Cruzar o pórti­co régio de 1,4-11 já valeu a pena, ainda que depois o palácio, a que dá acesso, em conjunto não esteja à sua altura. Em todo caso, teremos oca­sião de averiguá-lo, e com certeza depararemos outra jóia do mesmo quila­te que o poema 1,4-11 e ainda maior.37

3. Ficção salomônica 1,12-2,26

Chegamos ao estudo da perícope central da grande unidade 1,3-3,15, pois, como nos dizia A. Fischer na conclusão de seu artigo: o centro de Qoh1,3-3,15 “é constituído pela ficção do rei 1,12-2,26 que está emoldurada por dois poemas 1,4-11 e 3,1-8 e abarcada por duas observações... 1,3 e 3,9”.x

Nessa perícope o autor, que nos fala em primeira pessoa e chama-se a si mesmo de Qohélet, faz-se passar pelo rei Salomão, sem que apareça o nome desse rei. Com razão se denomina, pois, a perícope de ficção salomônica ou ficção real (régia), figura literária que dá nome ao gênero literário. Quanto a isso não parece haver dúvidas entre os autores. Tampouco há quanto à determinação do Sitz im Leben: momento real ou fictício em que se localiza sua origem. A importância que isso implica na hora de interpretar a passagem é evidente e a ningém se oculta. Qohélet nesta secção é tributário da tradição sapiencial comum israelita e inter-

36 Jorge Manrique, Coplas por la muerte de su padre, estrofes 15 e 16.37Quanto ao tom dominante do poema, condiciona de certa forma tudo o que virá, ainda que não

tenhamos que chegar aos extremos que H. W. Hertzberg assinala tão negativamente: O autor “abarca a vida prática e teoricamente, em suas manifestações particulares e em seus princípios gerais. Mas como ele considera a vida também ‘sob o sol’, o resultado é o mesmo: nenhum ytrwn, só “ml, tudo é hbll Isso está escrito na porta através da qual agora vamos entrar no livro propriamente dito” (Der Prediger, 73).

lBeobachtungen, 86. De outra maneira também H. L. Ginsberg indica a importância de toda a perícope 1,12-2,26, considerando-a como a secção mais importante na primeira parte de sua estrutu­ra, intitulando-a: “Descobrimento da solução de Kohélet” (The structure, 139).

Page 159: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

nacional: ilustre personagem do passado, rei ou simplesmente mestre, dá lições de vida a seu discípulo ou seus discípulos em momento solene. Se este tem presente, pelo menos como horizonte, a morte, o gênero literário chama-se testamento régio.2

Não pensam de igual maneira os autores ao tentar indicar os limites da ficção régia ou salomônica, ou, melhor, do limite final, não do começo que todos põem em 1,12. Como exemplo da variedade das opiniões, valha o esquema seguinte: Uns põe os limites da ficção régia em 1,12-2,9;3 outros em 1,12-2,l l ;4 N. Lohfink em 1,12-2,25;5 mas a imensa maioria em 1,12- 2,26.6Essa é a sentença que aceitamos e que aplicaremos no comentário, onde aduziremos os argumentos que a tornam mais razoável e provável que as outras.

Quanto ao grau de unidade que se deve conceder ao conjunto 1,12­2,26, não coincidem todos os que o consideram ficção régia.7 Podem-se fa­zer dois blocos: os que apostam por um grau muito alto de unidade8 e os que a afirmam por razões estruturais e estilísticas, mesmo superando as dificuldades que militam contra.9

Ao determinar o gênero literário de 1,12-2,26, fala-se implícita e às vezes também explicitamente da intenção ou finalidade do autor. Aqui se apresenta literariamente a figura do rei Salomão, aureolado pela fama de sua sabedoria e suas riquezas.10 Ninguém como ele, o mais sábio e o mais rico dos reis de antanho, para falar-nos por própria experiência, em pri­meira pessoa, do valor da sabedoria e das riquezas. Na busca da sabedo­ria, no afã de acumular riquezas, por um lado, e no desfrutamento do saber adquirido e do possuir tudo o mais apreciado, por outro, compendia- se o que seja a vida humana. Em 1,12-2,26 o autor, transfigurado em

2Cf. A. Lauha, Kohelet, 43s. À observação de G. von Rad de que “esta obra [o livro de Qohélet] faz parte do antigo gênero dos testamentos régios, um gênero cortesão-sapiencial que tem sua origem no Egito antigo” (Teologia del A.T.,1, 550), opinião que repete em Sabiduría, cap. VIII: Género. 1.3.

3Cf. O. Loretz, Gotteswort, 126.4Cf. F. Ellermeier, Qohelet 1 1, 82. J. A. Loader está de acordo (cf. Polar, 19). K. Galling considera

1.12-2,11 como “a 2a sentença” e dela diz: “Qoh aqui — e só aqui — fala como rei” (Der Prediger, 87). Essa frase de K. Galling faz sua D. Michel em Untersuchungen, 9.

5Cf. Kohélet, 23b.30b.6Cf. H. L. Ginsberg, The structure, 139; W. Zimmerli, Das Buch (1962), 150; Das Buch (1974), 226;

H. V/. Hertzberg, Der Prediger, 73-77; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 9; E. Glasser, Leprocès, 179; L. Alonso Schõkel, Sabiduría, 21; A. Lauha, Kohelet, 42; A. Fischer, Beobachtungen, 78-83, e como visão geral pp. 73s.

7Muito poucos destes autores se propuseram reflexamente demonstrar a unidade do conjunto1.12-2,26; a maioria conforma-se simplesmente com afirmá-la.

80 que mais se empenhou até agora em demonstrar a unidade interna de 1,12-2,26 é, sem dúvida nenhuma, A. Fischer (cf. Beobachtungen, especialmente na p. 79). De seu estudo faremos uso freqüen­te no comentário.

9Cf. L. Di Fonzo, A. Lauha, H. W. Hertzberg e W. Zimmerli nos lugares citados na nota 6.10Cf. G. R. Castellino, Qohélet, 18; L. Alonso Schõkel, Sabiduría, 21.

Page 160: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Salomão, vai-nos ensinar que nem a sabedoria mais ampla nem as rique­zas mais proverbiais para nada servem definitivamente (cf. 1,14.17; 2,11.17). A pergunta ergue-se desafiante no final: “Então, o que tira o ho­mem de todos os trabalhos e preocupações que o afadigam sob o sol?” (2,22). A limpo, nada.11 Só no final em 2,24-26 brilha um pouco de esperança, efêmera como tudo, mas esperança afinal.

Quanto à estrutura do conjunto total da ficção salomônica 1,12-2,26, é difícil encontrar dois autores que coincidam. Preferimos a que acaba de apresentar A. Fischer, já que acolhe o melhor entre os autores e justifica seus elementos. O fundamental dessa estrutura é que não violenta o tex­to, aproveita os elementos objetivos textuais e realça cada um dos matizes por sua concepção concêntrica. Em todo caso, procuraremos corrigir ou justificar o que nos parecer que não está suficientemente provado e que enriqueceremos com nossas próprias contribuições.

Uma auto-apresentação (1,12) encabeça o corpo central da ficção salomônica (1,13-2,21), que dividimos em dois blocos principais: experiên­cia original de Qoh (1,13-2,2) e reflexões sobre a experiência original de Qoh (2,3.21). Um resumo teológico (2,22-26) põe ponto final à ficção salomônica.3.1. Auto-apresentação de Qohélet (1,12)

Afirmamos o caráter introdutório do versículo 12,12 no qual se apre­senta a si mesmo e se identifica aquele que vai falar nessa ficção literária, o Qohélet salomônico. Como introdução é ponto de partida e ao mesmo tempo abertura direta às confissões e reflexões em voz alta que lhe se­guem imediatamente.

1,12 Eu, Qohélet, fui rei de Israel em Jerusalém.“Eu”: Qohélet conhece somente a forma abreviada *ni em vez do clássico ’anoki, o que é sinal de literatura tardia (cf. S. J. Du Plessis, Aspects, 173; Bo Isaksson, Studies, 142).“fui”: hayiti, perfeito histórico narrativo (cf. R. Gordis, Kohéleth — the man, 209). Bo Isaksson sempre o traduz no presente (cf. Studies, 60.77).“rei”: propuseram-se especialmente duas leituras variantes à tradicional melek. Uma foi defendida repetidamente por H. L. Ginsberg desde 1950, a saber, molek: proprietário (cf. The structure [1955], 148s; Enc. Judaica 6

UA. Fischer resume magnificamente a lição: “No quadro da ficção todo o processo de pensamento adquire colorido e força expressiva: toda dúvida deve emudecer se alguém que foi rei, que desfrutou de todas as alegrias possíveis, que viveu todos os seus dias sendo o sábio mais elogiado, e que conse­guiu para si bens singulares, no final chegou a convencer-se de que antes da morte nem ele próprio podia tirar da vida algum yíran [proveito]” (Beobachtungen, 83).

I2A. G. Wright apresenta o conjunto 1,12-15 como primeira introdução ao que ele qualifica de Investigação de Qohélet sobre a vida (1,12-6,9); os versículos 1,16-18 seriam para ele a segunda intro­dução (cf. The riddle [1980], 40).

Page 161: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

[1972], 353). Sobre essa opinião manifesta-se H. H. Rowley que “é mais en­genhosa que provável; o crítico não vê nenhuma razão para duvidar de que o livro foi escrito em nome de Salomão, ainda que sem ocultar que se tratava de pseudônimo” (The problems, 90). Outra leitura é molek ou malák: conse­lheiro, patrocinada por W. F. Albright (cf. Some Canaanite-Phoenician, 15 nota 2). A maioria dos autores, porém, rejeita as duas modificações e man­tém a versão “rei” para melek em 1,12 (cf. R. Gordis, Vtfas Koheleth, 114; K. Galling, Der Prediger, 84; N. Lohfink, melek, 537).“de Israel”: Em TM lemos sobre Cal) Israel, da mesma forma que ISm 15,26; 2Sm 19,23 e lRs 11,37; M. Dahood aduz, de mais a mais, outros três parale­los fenícios à construção hebraica ‘al ysra’el (cf. The Phoenician, 266). No entanto, a expressão normal é “rei de Israel”, que preferimos na versão.

1,12. Não são poucos os autores que pensam que este versículo é o começo do núcleo mais primitivo de Qohélet, e a razão parece lógica: surge uma personagem que fala em primeira pessoa e apresenta-se a si mesma. Essa sentença não tem porque supor nada anterior; só cabe que o editor dessas palavras ponha diante dela alguma espécie de título geral (cf. 1,1). De mais a mais, não era infreqüente, no âmbito do Oriente Próximo anti­go, que os escritos sapienciais começassem com a apresentação da ilustre personagem que vai falar, e mesmo com a auto-apresentação.13

O que chama mais a atenção na sentença é sua forma enfática, com o pronome pessoal no cabeçalho.14 Ao pronome pessoal vai acrescentado o nome Qohélet, de quem já falamos suficientemente em 1,1. O autor apre­senta-se sob a figura de rei, que, segundo o dito em 1,1 e em nota filológica, só pode ser Salomão.15

Uma lenda judaica conta que Salomão, ensoberbecido por suas gran­des riquezas e poderio, afastou-se do Senhor, razão pela qual o Senhor permitiu que Asmodeu, rei dos demônios, o arrojasse do trono real. Salomão destronado, recorda então que ele antes dessa situação tinha sido rei so­bre Israel etc.16 Mas não é necessário recorrer a semelhantes lendas para explicar o texto; basta-nos admitir que o autor utiliza aqui de propósito a ficção literária. Não é um Salomão arrependido, nem um redivivo que nos fala, mas o autor Qohélet, revestido literariamente dos atributos reais de Salomão.

Israel está por todo o povo judeu (reino do norte e reino do sul), seja porque em tempos de Salomão ainda não se tinha consumado a divisão do

13J. L. Crenshaw aduz em Ecclesiastes, 71 nota 20 os seguintes testemunhos do meio cananeu: “Eu sou Kilamuwa, o filho de Hayya”; “Eu sou Yehanmilk, rei de Biblos”; “Eu sou Azytawadda”. (J. C. L. Gibson, Canaanite myths and legends, Edimburgo, 1978, 2S ed., 34.95.47).

14Os gramáticos insistem na ênfase dada ao pronome pessoal nesta situação, cf. Ges.-K., 135a.b; P. Joüon, 146a; R. Meyer, Gramática, 91,2 b.

15Cf. Introdução, secção II: Autor de Qohélet e Excursus I sobre Qohélet.16Cf. Targum de Qohélet, l,12s.

Page 162: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

único reino, seja porque para o autor Qohélet já não tinha sentido confron­tar entre si reinos que já não existiam. E digno de nota que é a única vez que em Qohélet se fala de Israel; não, porém, de Jerusalém, que também aparece em 1,1; 2,7.9, ou seja, no título e na perícope da ficção salomônica. As referências tão particulares ao povo judeu: Israel, Jerusalém, não di­minuem a universalidade da doutrina do sábio Qohélet para preocupar- nos. Os dados geográficos e históricos são mínimos; não atam o mestre, que oferece sua doutrina, suas reflexões válidas para todo homem, mesmo para aqueles que se consideravam cidadãos do mundo ou ecumene, como o podia fazer um mestre de Atenas, de Roma e de Alexandria.

3.2 Experiência original de Qohélet (1,13-2,2)Este é o primeiro bloco em que se divide a ficção salomônica, frente ao

segundo em 2,3-21. Em magnífico aparato literário, o autor ou o suposto Salomão resume as experiências culminantes de sua vida, as mais ricas e significativas. Primeiro do ponto de vista geral sobre todas as suas atitu­des (1,13-15), depois sobre a sabedoria (1,16-18) e finalmente sobre a ale­gria e o desfrute (2,1-2). E exame da vida de homem que se supõe que chegou a atingir todas as suas metas, a realizar todas as suas aspirações. Mas o autor pergunta-se com todo direito, e nós também perguntamos: Vale a pena tanto trabalhar e afadigar-se na vida? Qual é o resultado de tanto esforço, a recompensa de tanto penar? O resultado é frustrante: é como querer pegar o vento com as mãos.

3,2a. Experiência de todas as atividades: 1,13-15O título da epígrafe é muito geral porque também o é o conteúdo, o de

que nos fala o autor. Pode-se dizer que o exemplo do autor com seu afa de des­cobrir e analisar tudo o que acontece sob o céu quer ser o paradigma da vida humana, como constante e perpétuo ensaio de penetrar no desconhecido.

1,13 Dediquei-me a investigar e explorar com sabedoria tudo o que se faz sob o céu.Esta triste tarefa Deus deu aos homens para que se atarefem com ela.

14 Examinei todas as ações que se fazem sob o sol: tudo é vaidade e caça de vento;

15 o torcido não se pode endireitar, o que falta não se pode computar.

13 “dediquei-me a”: lit. “apliquei meu coração a, ntn + acus. + le com infinitivo, aqui duplo infinitivo: lidrosh (a investigar) e latur (a explo­rar). A sentença é precedida de we: e, que não é necessário traduzir (cf. F. Ellermeier, Qohélet 1 1,186).

Page 163: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“a explorar”: latur, tur significa reconhecer, por exemplo, o terreno (cf. Nm 13,2.16.17). Qohélet o utiliza (cf. também 7,25) para expressar “a exploração mental”. “Este é um desenvolvimento semântico natural desde o mais antigo uso bíblico” (Ch. F. Whitley, Kohelet, 13).Dos infinitivos lidrosh (investigar) e latur (explorar) dependem duas expressões proposicionais: bahokmah e ‘al kol-asher. Qual é a função das duas preposições be e ‘al? Grande confusão entre os autores, porque se bahokmah é o objeto do investigar e explorar (dediquei-me a investi­gar e explorar a sabedoria...), com ‘al kol-^sher... indicar-se-ia a esfera da investigação e exploração: sobre tudo o que se faz sob o céu, bahokman se entenderia instrumentalmente como o meio com que se realiza essa investigação: por meio da sabedoria, com sabedoria. A. Fischer discute as dificuldades de 1,13 e conclui: “Filologicamente, justifica-se, pois, con­siderar kl-’shr n‘sh tht hshmyn como objectum explorationis, pelo que drsh em composição com twr significa com toda normalidade explorar, estudar, investigar e o acompanhante bhkmh sublinha a seriedade da tentativa” (Beobachtungen, 75s).“o que se faz”: o verbo hebraico (na^sah) está no perfeito Nifal, que se deve traduzir no presente pelo sentido freqüentativo. Normalmente Qohélet nestes caso utiliza o particípio, se bem que não depois do relati­vo (cf. P. Joüon, Notes [1921], 225s). M. J. Dahood, em vista de que G e Vg têm o plural, sugere: “O original pode ter lido nsh que é ambíguo” (Canaanite-Phoenician, 36).“sob o céu”: lit. “sob os céus”; cf. também 2,3; 3,1. Ps Vg Tg e muitos Ms lêem hashshamesh: “sob o sol” (cf. 1,3.9.14 etc.), mas R. Gordis crê que “este é um exemplo de ‘nivelação’; TM é preferível como difficilior lectio (Koheleth — the man, 210).“esta”: hu’, unido a ‘nyan, criou muitos problemas já aos próprios massoretas, pois lhe acrescentaram o signo paseq (1) e ninguém sabe que função desempenha aqui.

14 “que se fazem”, ver o que se disse no v. 13 sobre “o que se faz”; cf. tam­bém Bo Isaksson, Studies, 70. Os dois pontos (:) depois de o sol: substi­tuem o original “e eis aqui porque” (wehinneh). “caça (de vento)”: r*lut (ruah). Com muita probabilidade r‘wt em Qohélet deriva do último dos três significados fundamentais da raiz hebraica rli (lfi alimentar, cuidar; 2° associar-se com; 39 afanar-se, desejar). “Esse significado da raiz deve­se associar com o aramaico r^ah: ‘desejar’, que corresponde foneticamen­te ao hebraico rçh: ‘estar contente com’ ” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 13).

15 “endireitar-se, ser endireitado”: litqon é infinitivo qal intransitivo de tqn, mas o contexto exige sentido passivo (ver computar-se: lehimmanot infinitivo absoluto Nifal). Por isso muitos propuseram correções: lehittaqen (Nifal com G Vg e outras versões). G. R. Driver propôs o Pual letuqqan, que por sua extrema rareza os massoretas não levaram em conta (cf. Problems, 225). No entanto, a maioria dos autores mantém o TM como lectio difficilior, se bem que com sentido passivo.Sobre a estranha versão da Vg de 1,15b: et stultorum infinitus est numerus, A. Vaccari escreveu um breve comentário em VD 8 (1928) 81­84, em que tenta explicar a origem de semelhante versão, que ele não aceita; depois de analisar o texto hebraico e manifestar sua opinião, ter-

Page 164: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mina ironicamente: “Mantenhamos essa sentença como a genuína in­tenção do escritor sagrado, ainda que não se nos proíba continuar pen­sando que ‘o número dos néscios é infinito’.” Notemos que São Jerônimo em seu comentário dá esta versão: imminutio (quod deest) non poterit numerari.

1,13-15. O autor confessa que se dedicou com toda a alma à investiga­ção e à exploração de tudo o que se pôs a seu alcance. Qual a primeira ava­liação que faz dessa tentativa que, pelo que tudo indica, é sobre-humana?

13 Desde a atalaia mais alta — a do posto de rei (v. 12) — o autor aplica-se com interesse pessoal sincero a investigar e explorar tudo. O re­curso à imagem do rei sábio por excelência é literário, mas o interesse por conhecer e averiguar não é fictício mas real. Quer dizer que a ficção está a serviço da realidade.

A sinceridade do empenho por saber e conhecer tudo descobre-se me­lhor se se levar em conta que me dediquei é tradução da expressão hebraica de meu coração para, pus meu coração em.17

A intensidade da ação de busca do autor manifesta-se com a repetição do conceito nos dois verbos sinônimos: investigar (drsh) e explorar (twr).18 O objeto da atividade investigativa do autor já indicamos e justificamos nas notas filológicas: não é propriamente a sabedoria, isto será a partir do v. 16, mas tudo o que se faz sob o céu. Afirmamos com todo vigor que o autor leva a termo a investigação com todas as suas potências espirituais, expressadas aqui com a sabedoria como órgão apropriado, sem negar que se pergunte, pelo menos implicitamente, pelo sentido fundamental de to­dos os acontecimentos.19 Pois isso é o menos que se pode supor, quando assevera com tanta força que lhe interessa tudo o que se faz sob o céu.w O centro de atenção dessa afirmação tão universal é a atividade do homem, uma vez que não lemos o que acontece ou ocorre na natureza, mas o que se faz, que pede agente pessoal, humano. Atividade do homem em sua globalidade, não cada ato particular enquanto tal. Atividade humana que

17Qoh usa a expresão ntn (’t) lb l, ademais em 1,13.17; 7,21; 8,9.16 (cf. Pr 23,26; Dn 10,12). O coração (leb) entre os judeus aparece como o órgão ou sede da inteligência e da vontade (cf. J. B. Bauer, De “cordis” notione bíblica et judaica, VD 40 [1962] 27-32; H. W. Wolff, Antropologia teológica dei Antiguo Testamento, Salamanca, 1975, pp. 63-86) e entre todos os semitas e na antiguidade (cf. A. Guillaumont, Le sens des noms du coeur dans Vantiquté, em Le coeur, Les Ecoles Carmélitaines 12 [1950] 41-81).

18Alguns autores quiseram ver em cada um dos verbos um aspecto diferente da busca ou investi­gação; assim pensa H. W. Hertzberg: “As palavras drsh e twr significam (cf. Delitzsch) duas formas de investigar, uma que olha a profundidade e outra a extensão” (Der Prediger, 82). A idéia toma-se, de fato, de Delitzsch (cf. Commentary, 227). De fato o verbo twr é próprio dos que inspeccionam e explo­ram um território (cf. Nm 13,2.16.17). Ver nota filológica.

19Cf. E. Glasser, Le procès, 36; A. Lauha, Kohelet, 45; A. Bonora, Esperienza, 173.20Sob o céu ou os céus: a expressão é equivalente a sob o sol; assim se explicam as variante no texto

(ver notas filológicas). Por isso remetemos ao que dissemos a propósito de sob o sol em 1,3.

Page 165: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

implica também o passivo no conjunto, pois o que é ativo em um pode ser ativo em outro. Dessa maneira, o autor abarca, em sua investigação e exploração, a vida humana em sua máxima extensão. Portanto, o autor pode ter uma visão da realidade humana e essa pode ser negativa, sem que por isso necessariamente tenha que negar o positivo de algumas par­tes dessa realidade. No autor predominam os juízos negativos universais sobre a vida humana. Este é o fundamento objetivo da interpretação co­mum entre os comentadores de que Qohélet é derrotista empedernido. Mas essa visão geral não deve eliminar os juízos particulares e esporádi­cos também de Qohélet, nos quais manifesta o lado positivo da realidade humana tangível, ao alcance de todos os indivíduos.

O v. 13b começa com esta: hu’, aqui pronome domonstrativo que diz respeito ao substantivo ‘inyan, que traduzimos por tarefa, ocupação. Por si essa tarefa não tem por que ser fatigante, como é ‘amai; mas, ao apare­cer acompanhada de ra‘: molesta, triste (cf. 4,8; 5,13) já quase se converteu em ocupação molesta por natureza, porque melhor seria não tê-la.21

Na realidade o v. 13b pode-se considerar parêntese entre o v. 13a e o v. 14, como se adverte pela mudança de sujeito gramatical e principalmente pelo conteúdo: o v. 14 ligar-se-ia sem a mais leve modificação com o v. 13a.

A sentença está em forma de tese e refere-se ao que precede. Propõe- se aos autores uma dificuldade: sobre que recai a sentença negativa do v. 13b, ou seja, a que se refere essa triste tarefai A resposta não pode ser outra senão ou à investigação pessoal de Qohélet ou à toda a atividade sob o céu.22 G. Bertram, H. Lohfink e A. Fischer defendem que a triste tarefa ou o mau negócio (Lohfink) refere-se à atividade do homem sob o céu, e não à atividade investigadora de Qohélet.23 No entanto, a imensa maioria afirma que o v. 13b faz referência direta à ação investigadora de Qohélet.24 A experiência de Qohélet se universaliza, e, neste sentido, já não se cir­cunscreve o juízo negativo do v. 13b à particular experiência de um sábio chamado Qohélet, mas que imediatamente se relaciona com a investiga­ção de todo homem sobre os enigmas da vida no mundo.

Para que se atarefem com ela\ a expressão é tipicamente hebraica em sua construção. Há jogo pretendido de palavras entre tarefa e atarefar-se, a mesma coisa que em hebraico.

21Cf. S. Holm-Nielsen, The Book, 47; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 139a; F. Whitley, Kohelet, 12.22Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 76. F. Ellermeier rejeita energicamente a proposição alternativa

(cf. Qohélet 1 1, 178).“ Cf. G. Bertram, Hebräischer, 44s; N. Lohfink, Kohelet, 23 (texto); A. Fischer, Beobachtungen, 76.

Outros defensores mais antigos sáo citados por F. Ellermeier em Qohélet 1 1, 177-333.24Com as cautelas que sejam necessárias, esta sentença poderia expressar-se com as palavras de

R. Kroeber: “Esse afã de investigar apresenta-se [a Qohélet] com tarefa imposta por Deus aos ho­mens, mas sua experiência reconhece-a como um ‘pesado negócio’ ” (Der Prediger, 125).

Page 166: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Mas Qohélet não deixa de surpreender-nos, ao dizer que foi Deus quem deu aos homens essa triste tarefa. Aparece o lado íntimo do crente Qohélet. Não podemos esquecer esse aspecto, ainda que Qohélet não se preocupe muito de no-lo recordar. Esta é a primeira vez que Qohélet nos fala de Deus, e o faz como sábio crente, mas sem matiz particularista de judeu. Esse se manifestaria se nomeasse a Deus com seu nome próprio Iahweh. Pretende aparecer como sábio internacional e não simplesmente judeu? E muito difícil, para não dizer impossível, dar resposta definitiva a essa per­gunta. Pessoalmente creio que Qohélet não se propôs o problema, e fala com toda naturalidade, como quando um cristão fala de Deus sem nomear o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mas é verdade que essa forma de falar de Qohélet entra na corrente sapiencial universalista. O mesmo que faz ao falar de os homens (dos filhos do homem), ou seja, da humanidade.

No v. 13b quase nos esquecemos de que a perícope que comentamos é confissão de Qohélet. Isto confirma que o v. 13b é parêntese, cujo pensa­mento fundamental é que sobre o homem pesa grave tarefa, dada por Deus.

14. Neste versículo volta Qohélet a suas confissões em primeira pes­soa; não se desliga do versículo anterior, mas explica-o com sua própria experiência. Se no v. 13a escutamos Qohélet que nos dizia “apliquei meu coração (dediquei-me) a investigar”, agora, em paralelo sinonímico, nos confessa: “Observei todas as ações” (os olhos em ação). Qohélet entrega-se com o coração e com todos os sentidos a seu trabalho investigativo e obser­vador. Qohélet tem os olhos bem abertos para que não se lhe escape nada do que ocorre a seu redor. Podemos afirmar que em Qohélet a observação pessoal converteu-se em princípio básico e fundamental.25

O objeto de sua observação atenta são todas as ações que se fazem sob o sol, ou seja, tudo o que fazem os homens em sua vida. Por as ações (hamma‘ãsim) entende-se tanto a atividade humana como o produto dela.26 Que sejam ações humanas e não divinas, fica claro porque delas se diz que são vaidade, coisa que não se pode dizer das ações divinas. E que essas ações equivalham a toda a vida ou existência dos homens em todas as suas esferas e efeitos, sublinha-o o acento sobre a totalidade, expresso pelo autor repetidamente. Já no v. 13a tinha falado de tudo o que se faz sob o céu, referindo-se à atividade do homem, e em 2,17 relacionará expressa­mente a vida com as obras (aí no singular) que se fazem sob o sol.

25Fica-se muito impressionado ao se fazer a recordação das vezes que Qohélet utiliza a mesma fórmula observei (ra’iti: vi com os olhos): 1,14; 3,10.16.22; 4,15; 5,12; 6,1; 7,15; 8,9.10.17; 9,13; 10,5.7; e reforçado com o pronome pessoal eu (%/u) em 2,13.24; e 4,4.

26H. G. Mitchell também entende assim: “O nome (ma'aseh) derivado do verbo Vasah] natural­mente tem significado que corresponde [ao do verbo]. Em outras palavras, é usado pela atividade efetiva e pelo produto dela” Work, 125).

Page 167: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Quanto à análise particularizada da sentença relativa “todas as ações que se fazem sob o sol”, temos que repetir o que escrevemos anteriormente.27

O v. 14b expressa o resultado da observação de Qohélet, formulado como conclusão de valor universal que se repete como estribilho ao longo de todo o livro; tão profunda é a convicção a que chegou Qohélet depois de examinar, investigar e observar tudo o que os homens fazem em sua vida e o que recebem em troca. A particularidade de nossa passagem está em sua segunda parte: e caça de vento.28 Já propusemos o problema de sua etimologia na nota filológica. Na realidade, caça de vento não acrescenta conteúdo a vaidade, mas a força da imagem insólita e quimérica reforça o juízo absolutamente negativo do autor sobre a vida humana.29

Na epopéia de Gilgamesh encontramos um pensamento que tem cer­ta parecença com o de Qohélet: “Só os deuses vivem para sempre sob o sol. Quanto à humanidade, seus dias são contados; qualquer coisa que fazem não passa de vento”.30

15. O presente versículo consta de duas sentenças proverbiais, de dois provérbios, que com muita probabilidade eram de domínio público. A in­tenção do autor, ao aduzi-los neste lugar, parece ser a confirmação do que acaba de dizer no v. 14b.31

O primeiro provérbio: O torcido não se pode endireitar, em seu senti­do primário, é conseqüência do que acontece no curso da natureza e na vida normal: por exemplo, é inútil querer endireitar uma árvore adulta que ficou torta. A aplicação à vida em sentido geral ou moral é fácil. O herdado ou dado pela natureza no homem adulto não podemos mudar. As atitudes, os atos repetidos criam em nós uma como que segunda natureza, que, em geral, tampouco podemos mudar, razão pela qual dizemos que “gênio e figura até a sepultura”.

No passivo o torcido quis-se ver também uma manifestação do con­vencimento interior de Qohélet, não expresso aqui formalmente, mas em 7,13: “Quem poderá endireitar o que Deus torceu?”32 Em todo caso, não creio que devamos forçar o texto para que diga mais do que expressa em

27A propósito do uso do relativo abreviado she por bsher cf. 1,3; quanto ao uso e significado do verbo ‘sh ver o perfeito Nifal singular em l,13s; aqui no v. 14 no plural; para sob o sol (tahat hashshamesh) veja-se a mesma expressão em 1,3 e o equivalente ao sob o céu em 1,13a.

28Sobre tudo é vaidade (hakkol hebel) falamos a propósito em 1,2 e a hebel dedicamos o Excursus II.29Estamos de acordo com a explicação de H. W. Hetzberg (cf. Der Prediger, 83).30ANET 79b. A imagem da perseguição do vento como símbolo do insensato foi utilizada também

por Sir em 34,2: “Caça sombras ou persegue ventos o que se fia de sonhos”.31Advirtamos que cada uma das três secções em que se divide a perícope 1,13-2,2 termina com a

citação de provérbios: 1,5; 1,18 e 2.2 (cf. A. Fischer, Beobachtungen, 78).32Cf. S. Holm-Nielsen, The Book, 63.77. A. Lauha afirma sem mais matizações: “Atrás das pala­

vras de Kohélet oculta-se amarga visão: a culpa está na ordenação do mundo. E Deus que torceu os acontecimentos” (Kohelet, 47). Ver a interpretação que damos a 7,13 em seu lugar correspondente.

Page 168: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sua formulação popular. Mais adiante o autor terá o direito de reinterpretar o mesmo provérbio, adaptando-o ao novo contexto.

Alguns autores descobriram no provérbio outros significados possí­veis, como o patrocinado por K. Galling e N. Lohfink, que vêem em o torci­do “as costas encurvadas do ancião”.33 No entanto, também creio que, se se pode dizer da árvore torcida que não se pode endireitar, com a mesma razão se poderá afirmar do homem encurvado; ainda que só como exemplo explicativo do provérbio, que deverá manter-se em sua universalidade indeterminada para não perder nada de sua força original.

O segundo provérbio: “O que falta não se pode computar”, parece que se refere em primeiro lugar ao meio comercial;34 mas de nenhuma manei­ra se exclui a esfera agrícola.35

Em todo caso, o sentido original dos dois provérbios neste lugar está superado pela intenção transcendental de Qohélet em todas as suas con­fissões e reflexões. Essas manifestam, sem dúvida, uma visão pessimista da vida humana.36 O homem tem, pois, que confessar sua impotência radi­cal diante de uma realidade dada, porque é Deus quem a dispôs assim e não de outra maneira.

3.2b. Experiência sobre a sabedoria: 1,16-18Até agora o autor contemplou a sabedoria como instrumento à sua

disposição; doravante vai contemplá-la como objeto de suas considerações. Mas vai deparar grande surpresa, nisto que descobrirá que esta não é tarefa doce e plácida, segundo a mentalidade do sábio tradicional, mas atividade que não leva a parte alguma, que é um sem-sentido.

1,16 Eu pensei para mim: aqui estou eu,que aumentei e incrementei a sabedoriamais que todos os meus predecessores em Jerusalém;minha mente alcançou grande sabedoria e saber.

17 Assim que apliquei minha mente para conhecer a sabedoria e o saber, a loucura e a nescidade.Compreendi que também isso é caça de vento,

18 pois a mais sabedoria mais pesadume, e aumento do saber, aumento do sofrer.

33N. Lohfink, Kohelet, 25; cf. K. Galling, DerPrediger, 88. Rejeita abertamente essa insinuação D. Michel, que reduz o provérbio à esfera do ensino, em que o mestre não tem nada a fazer com o aluno manifestamente tardo (cf. Untersuchungen, 11).

34O vocabulário faz parte manifestamente desse meio, como o constatam os autores. M. J. Dahood recorda a opinião de A. B. Ehrlich e apóia-se no vocabulário ugarítico (cf. The Phoenician, 266); cf. também Ch. F. Whitley, Koheleth, 14.

35Assim opina N. Lohfink em Kohelet, 25.36A. Lauha diz que “atrás das palavras de Kohélet oculta-se uma visão amarga” (Kohelet, 47). “É

impossível ver nas coisas algo que não existe”, diz-nos H. W. Hertzberg, referindo-se ao sentido da vida (Der Prediger, 83); cf. A. Fischer, Beobachtungen, 77.

Page 169: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

16 “Eu pensei para mim”: lit. “falei com meu coração, dizendo”; “eu” ('Vu): Qohélet usa-o com muita freqüência pleonasticamente no começo de uma sentença (cf. 2,l.lls). “com meu coração”: ‘im libbi, mais freqüentemente belibbi (cf. 1,1.15 etc.).“Aqui estou eu que”: lit. “eis-me aqui” (*ni hinneh); o advérbio demons­trativo hinneh emprega-se para concentrar a atenção (cf. Joüon, 105d), quase imperativamente (cf. R. Meyer, Gramática, 89,2). A tentativa de M. J. Dahood de substituir (eu) por V i (riqueza), fundando-se na falta de objeto do verbo higdalti e na influência do fenício (scriptio defec- tivd), foi inútil segundo o sentir comum dos autores (cf. J. M. Dahood, The Phoenician, 266s; cf. F. Whitley, Koheleth, 15; J. L.Crenshaw, Ecclesiastes, 75).“aumentei e incrementei” (hgdlty whwspty): não são poucos os autores modernos que pensam como R. Gordis, que estes dois verbos “formal­mente estão coordenados, mas o segundo está modificado adverbialmente pelo primeiro: incrementei grandemente” (R. Gordis, Koheleth — the man, 211). E possível essa interpretação e sua versão correspondente (cf. L. Alonso Schõkel: “acumulei tanta sabedoria”), mas não é necessá­ria (Ch. F. Whitley, Koheleth, 14). Outros mudam desnecessariamente o Hifil higdalti pelo Qal gadalti.“mais que todos” (‘al kol): a forma mais comum para expressar a compa­ração em hebraico é a proposição min, mas também pode-se utilizar 7 (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoenician, 191, onde aduz também um testemunho fenício), “todos os meus predecessores”: lit. “tudo o que foi antes de mim”, no singular (cf. lCr 29,25). Ver notas a 1,10. Mais que todos os meus predecessores pode-se considerar como fórmula estereoti­pada, utilizada por reis e magnatas, como atestam inscrições fenícias (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoenician, 204).“Minha mente alcançou grande...”: lit. “e meu coração experimentou uma abundância grande de Qiarbeh)”.

17 “Assim que apliquei minha mente a” (wa’etifnah libbi l). Este é um dos três raros casos em que o autor utiliza o clássico imperfeito com waw consecutivo (cf. ademais 4,1.7) em contexto verdadeiramente narrativo, “e o saber”: corrigimos a pontuação do TM; em vez de weda‘at: e conhecer, preferimos wada‘at (como no v. 16): e o saber. Desta maneira dependem do verbo lada’at quatro substantivos como objeto direto, divididos em dois pares: sabedoria e saber, loucura e nescidade. Assim o entenderam as versões G Sir Vg e Jerônimo, embora com outros significados. Para ser conseqüentes, devemos transladar o zaquef (:) de hokmah para wada’at\ muitos autores, porém, seguem o TM tal como está (cf., por exemplo, N. Lohfink, Kohelet, 26).“loucura”: (holelot), é objeto de controvérsia. Efetivamente a terminação -ot é a de um feminino plural, pelo que se sugere holeZwí (cf. BHK), como aparece em 10,13. Mas não é necessária a correção, como já indicava P. Joüon (88 Mk) e defendeu M. J. Dahood (cf. Qoheleh and the Northwest, 350; um fenicismo mais); com ele estão H. L. Ginsberg, W. F. Albright (Some,8) e outros muitos (cf. F. Piotti, La lingua, 188.192; Osservaz. [1977], 53). Para ra‘yon (caça) pode-se ver o que dissemos a propósito da etimologia de r^uí (v. 14), pois, como escreve R. Gordis: “não é provável que os

Page 170: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

hebraicos r’wt e r‘ywn sejam completamente distintos dos nomes co­muns aramaicos de formas idênticas” (R. Gordis, Koheleth — the man, 210).

18 “aumento” (yosip), propriamente é terceira pessoa singular do imp. hifil deysp (cf. Ges.-K., 78c). Propuseram-se várias correções: yosep (particí- pio Qal, cf. BH) ou mosip (particípio Hifil); “todavia, deve-se preferir a leitura do TM como lectio difficilior1’ (A. Lauha, Kohelet, 41), que segun­do A. B. Ehrlich “usa-se as duas vezes substantivamente” (Randglossen, 59). Adere a essa sentença R. Gordis, que completa: “um imperfeito usa­do como substantivo em estilo gnômico, para expressar uma verdade permanente” (Koheleth the man, 214).

1,16-18. Os provérbios dos versículos 15 e 18 encerram essa unidade que gira toda direta ou indiretamente em torno da sabedoria, pois tira à luz seus contrários: a loucura e a insensatez.1

16. Eu pensei para mim: O autor fala consigo mesmo, sua reflexão converte-se em diálogo interior. O resultado dessa reflexão-diálogo é ex­posto pelo autor de modo magisterial, pois em nenhum momento se esque­ce de que ele é um mestre de sabedoria nem deixou de pensar em seus discípulos ouvintes-leitores. A lição é vital e passa primeiro pelo “coração”, que é ao mesmo tempo mente e inteligência, ou seja, o mais íntimo e pes­soal.2

Aqui estou eu: Como indicamos nas notas filológicas, o autor com essa expressão quer chamar a atenção. Quem representa aqui esse eu e a quem se dirige para que se fixe nele? Pela confissão que segue parece que fala Salomão; na realidade é o autor disfarçado de Salomão, como em toda a perícope do contexto. Algo muito importante tem que comunicar o autor nos w. 17b-18, quando utiliza toda sua artilharia pesada nos w. 16-17a.

Aumentei e incrementei a sabedoria. O autor pensa no Salomão supersábio da lenda tal com o descrevem, por exemplo, lRs 5,9-14 ou 10,23­24: “Em riqueza e sabedoria, o rei Salomão superou todos os reis da terra. De todo o mundo vinham visitá-lo, para aprender da sabedoria com que Deus o tinha enchido”. Neste momento se fixa somente na sabedoria; mais adiante interessar-se-á por suas obras e riquezas (cf. 2,4ss). A acumulação de verbos sinônimos ou complementares é uso habitual de Qohélet. E ób­vio que fazer crescer e incrementar algo é fórmula redundante que subli­nha o incremento em grande medida, de maneira superlativa, neste caso da sabedoria.

1A. Schmitt sintetiza muito bem: “Em 1,16-18 destaca o autor que ele dispõe de grande ‘sabedoria’ (hokma) e ‘conhecimento’ (da‘at). No confronto sabedoria-nescidade soa, porém, o resultado negativo que atormenta e escandaliza ao mesmo tempo” (Zwischen, 117); cf. H.-P. Müller, Theonome, 5-6.

20 solilóquio ou diálogo íntimo é um gênero literário, conhecido e praticado pelos mestres de sabedoria; cf. Diálogo de um desesperado na literatura egípcia do terceiro milênio (ANET 406-407).

Page 171: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Mais que todos os meus predecessores em Jerusalém-. Há mais de um século os autores discutem se com essa expressão incorre ou não o autor em anacronismo. Se o que se supõe que fala é Salomão, não pôde falar no plural de seus antecessores em Jerusalém, porque somente seu pai Davi dominou e reinou em Jerusalém. A não ser que acudamos à idéia peregri­na de querer incluir nos predecessores todos os reis cananeus anteriores a Davi, que governaram em Jerusalém.3 Se historicamente foi assim, por que o autor faz incorrer o presumido Salomão em anacronismo tão palmar? Qohélet conhecia excessivamente bem a história de seu povo para cair em erro tão crasso. A solução está em admitir que o autor está utilizando uma fórmula já consagrada pelos assírios e aplicada na linguagem diplomática.4 Em certo sentido não é alheia ao Antigo Testamento (cf. lCr 29,25). Mas, mesmo assim, não é preciso que façamos mais equilíbrios mentais, pois num contexto literário não são necessárias tantas precisações históricas.

Minha mente: meu coração em hebraico, pode muito bem substituir o pronome pessoal.

Sabedoria (hokmah) e saber (da‘at), por que voltaremos a encontrar no versículo seguinte; parece que o autor entende os dois conceitos como sinônimos. Sendo assim, os dois juntos abarcam toda a esfera do conhe­cimento teórico e prático, geral e particular, estático e dinâmico. De quem adquiriu a sabedoria e o saber pode-se dizer que chegou a ser verdadei­ramente sábio no sentido mais nobre e profundo, ou seja, que conseguiu alcançar o ideal máximo do homem antigo e também moderno. Todavia, o texto não fala em termos tão absolutos, somente diz que alcançou grande quantidade de sabedoria e saber, não toda a sabedoria e todo o saber. E reconhecimento implícito da capacidade limitada do homem, mesmo a do sábio por excelência. Por outro lado, isso de tentar alcançar sabedoria e saber é tarefa que se deve cumprir e que, portanto, também estará sem­pre no horizonte do autor; por isso pode continuar no v. 17.

17. A primeira parte do versículo 17 deve-se unir ao v. 16, à medida que nela se manifesta a mesma atividade inquisitiva da mente do autor sobre um objetivo, que agora vai além da sabedoria e do saber. O v. 17b é claramente distinto do anterior, é a conclusão a, que o autor chega depois de longo itinerário. Qohélet prepara-se para dar seu juízo pessoal sobre a sabedoria e o saber, não tanto em abstrato como em concreto, porque ele os possui e em grau extremo (v. 16). Talvez a forma gramatical e sintática (o imperfeito consecutivo), escolhida sem dúvida com toda intenção, pre-

3Cf. C. A. Barton, A criticai, 79, onde cita uma série de autores que indicaram essa solução.4C. A. Barton o diz expressamente em seu comentário (cf. A criticai 79), citado também por M. J.

Dahood, em Canaanite-Phoenician, 204, que acrescenta: “Esta fórmula, que se encontra também em 2,7 e 2,9, era uma fórmula dos reis fenícios, atestada abundantemente por suas inscrições”.

Page 172: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tenda expressar isso mesmo.5 Nossa versão: Assim que apliquei minha mente, tenta ao menos refletir esse aspecto intencional do autor.

Para que tudo isso não fique em mera tentativa, o autor, transforma­do em Salomão, não só vai examinar a fundo a sabedoria e o saber, mas os vai comparar com seus contrários, para utilizar a expressão antiga de São Jerônimo.6 Esses contrários são a loucura ou falta de sensatez7 e a nescidade.8

O processo meditativo do autor culmina no v. 17b com duríssimo juízo negativo que expressa sua desilusão e frustração. Não se trata de juízo emitido levianamente; quem o emite tem pleno conhecimento de causa, como demonstrou nos versículos precedentes e o reafirma no começo de seu veredito. Compreendi: conheci.9

Também isso é caça de vento-. O presente versículo não passa de apli­cação do que já afirmara o autor em 1,14, pois se de todas as ações que se fazem sob o sol se diz que são vaidade e caça de vento (1,14), a busca da sabedoria e o empenho de distingui-la do que não é sabedoria também devem ser atividades ilusórias, ou seja, como a caça de vento.10

18. O versículo tem todo o aspecto de um provérbio que muito prova­velmente já existia11 e fazia parte da esfera da escola. Sublinha-se nele a relação existente entre a aquisição da sabedoria e o esforço doloroso.12 Mas nosso autor o aduz como argumento que prova e confirma o que acaba de

5Bo Isaksson o dá a entender em sua versão: “Por isso eu me apliquei” (Studies, 168) e R. Gordis é ainda mais explícito: “O versículo [17] é introduzido por um waw consecutivo para expressar a idéia de que, depois de anos de experiência, Kohélet decidiu um dia tirar a conclusão lógica (Hertzberg)” (Koheleth — the man, 213); Gordis remete ao comentário de H. W. Hertzberg (cf. Der Prediger, 84s) que repete a mesma idéia). O imperfeito consecutivo tem “he final exortativo, que expressa ênfase e empenho da vontade” (L. Di Fonzo, Ecelesiaste, 142b).

6"Contrariis contraria intelleguntur” (Commentarius, 261).v'hwllot (10,13 hwllut) significa propriamente insensatez; representa o contrário do razoável e do

conhecimento. A palavra traduz-se adequadamente por ‘falta de racionalidade’ ” (H. W. Hertzberg, Der Prediger, 85).

8Aqui em hebraico siklut (cf. 2,3.12.13; 7,25; 10,1). Muitos traduzem por loucura, demência. H.-P. Müller interpreta muito benignamente a parelha loucura e nescidade: “holelut w‘sikklut é uma ingê­nua alegria de viver, da qual a sabedoria, também a de Kohélet (7,2-4), não quer saber nada” (Theono- me, 5).

9H. W. Hertzberg escreve: “yd‘ty quer dizer com fina ironia: Eu ‘conheci’ — mas somente que todo conhecer é inútil. Eu sei que não sei nada!’ “ (Der Prediger, 85). Mas Qohélet é mais radical que Sócrates, e julga negativamente qualquer tentativa de aproximar-se da sabedoria. Cremos que o juízo negativo de Qohélet recai no esforço não na sabedoria mesma. A. Schmitt diz da expressão ra^h (caça de vento)-. “Ela articula o resultado da busca, do esforço e do conhecimento” (Zwischen, 117 nota 19).

“ Em 1,14 líamos r*ut ruah\ aqui em 1,17 (e em 4,16) ra^h m ah, mas são expressões equivalentes (cf. A. Montgomery, Notes, 241; A. Schmitt, Zwischen, 117).

uNão há nenhum inconveniente em admitir a preexistência do provérbio que Qoh cita aqui. Sus­peitam-no, por exemplo, R. Gordis, Koheleth — the man, 155; W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 155; Das Buch Kohelet, 225; A. Lauha, Kohélet, 47.

lzVer nosso refrão: “La letra con sangre entra”. Os autores relacionam explicitamente o versículo com o meio escolar; ver, por exemplo, W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 155; A. Lauha, Kohelet, 47; N. Lohfink, Kohelet, 26; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 76.

Page 173: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

afirmar, como se adverte pela partícula ki: pois, visto que, que encabeça o v. 18. Nisso não parece que haja discrepância entre os autores. A ligação lingüística com os w. 16-17 é, de mais a mais, manifesta pela série de repetições verbais.13

A mais sabedoria mais pesadume...: Estamos perante um provérbio estruturado com paralelismo sinonímico perfeito: a a mais sabedoria cor­responde o aumento de saber, e a mais pesadume o aumento do sofrer. Por isso também se pode falar de dois provérbios paralelos. O sentido do v. 18 cremos que, pelo menos, é duplo: se o considerarmos segundo a sua muito provável origem escolar, a longa experiência no meio sapiencial chegara à conclusão de que o aprendizado comportava esse pesadíssimo fardo no aluno e no mestre: preocupação, trabalho ingrato, angústia, ou seja, pesadume e sofrer em todos os seus sentidos. O provérbio em seu contexto atual, que não é o original da escola e formação, adquire amplitude e pro­fundidade muito maior. A sabedoria e o saber capacitam o possuidor deles para perceber mais motivos de aflição e dor em medida proporcional a eles mesmos: a mais sabedoria e saber mais capacidade de pesadume.14

O autor aplicou-se tenazmente a desentranhar os mais árduos pro­blemas relacionados com a atividade sapiencial, ou seja, com os proble­mas e enigmas que fazem com que o homem seja sábio ou louco ou néscio, com a atividade das faculdades humanas enquanto tais. O autor não disse que fracassou em sua tentativa; sem dúvida o autor sábio é agora mais sábio. Mas nem por isso resolveu aqueles problemas que fazem sofrer os homens.15 Dessa maneira, a conclusão final do autor, e de quem o lê, só pode ser bastante pessimista, pois de novo nos confirmamos em que todo esforço desemboca em beco sem saída, ou seja, que é inútil e é como querer prender e reter o vento com as mãos.3,2.c. Experiência sobre a alegria e o desfrute: 2,1-2

Com essa breve perícope termina a exposição das experiências pes­soais do autor, o suposto rei magnífico Salomão. Todas as experiências anteriores fracassaram estrepitosamente. Vamos ver se estas, que ver-

lsGrande sabedoria (harbe hokmah): v. 16d— a mais sabedoria (berob hokmah): v. 18a; incrementei (hosapti): v. 16b aumento (yosip): v. 18b; e as freqüentes repetições de sabedoria (hokmah) e de saber (da‘at).

14Não podemos nem devemos propor problemas que estão fora do horizonte do autor, pelo menos diretamente, como seria o de que se é verdade o que acabamos de dizer, também o é que quem está mais capacitado para descobrir motivos de pesar, na mesma medida, pelo menos, está capacitado para descobrir razões do contrário: como o gozo estético e ético. Mais adiante aludiremos a essa orientação, quando o autor tratar dos aspectos positivos da sabedoria, da vida etc.

15H. W. Hertzberg aplica a Qohélet uma sentença sábia: “O que não sabe nada das necessidades do mundo, não sofre por isso. “Se soubésseis o que eu sei, choraríeis muito e riríeis pouco” (Der Prediger, 85).

Page 174: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sam sobre os aspectos mais positivos da vida humana: a alegria e o desfru­te de todas as coisas boas, que ele pode oferecer, têm o mesmo resultado negativo ou abrem janelas à esperança.

2,1 Disse-me a mim mesmo:Vamos, provar-te-ei com a alegria,e goza dos prazeres;mas também isso é vaidade.

2 Do riso eu disse: “loucura”, e da alegria: “o que consegue?”

1 “Disse-me a mim mesmo”: lit. “falei eu com meu coração (belibbi), cf. 1,16a (‘im libbi). “Provar-te-ei”, pôr-te-ei à prova.“Goza dos prazeres” (r*‘eh betob); escreve P. Joüon (133c): “O b com os verbos de percepção, sobretudo ver, implica idéia de intensidade e pra­zer”. “Mas também: ht. mas eis aqui que também; para o waw adversativo cf. P. Joüon 172a.

2 “Do riso”: quanto ao riso, sentido relacional da preposição Ie (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 215; P. Joüon, 133d).“O que consegue?”: o que é que ela (zoh a alegria) realiza (1osah)? Sobre a expressão zoh discutiram bastante os autores. G. R. Driver pensava que a particularidade de zoh se devia às suas origens nórdico-palestinenses (cf. Introduction to the literature ofthe O. T. [3â ed., 1892], p. 188); tam­bém M. H. Segai, A grammar to Mishnaic Hebrew [1927], § 72. M. J. Dahood localiza a origem na Fenícia (cf. Canaanite-Phoenician, 44). Assim explica ele as variantes que aparecem nos Ms, pois “dificilmente se teriam produzido se Qohélet tivesse sido composto com a scripsio ple­na da ortografia hebraica do séc. IV-III. Na ortografia fenícia, o pronome demonstrativo masculino e feminino ‘este’ aparecia só comz” (Canaanite- Poenician, 37). Ch. F. Whitley não está de acordo, já que somente atri­bui às variantes dos Ms o valor testemunhal de diferentes escrituras, e acrescenta que “o fato de que zoh apareça como a forma feminina em textos bíblicos antigos (por exemplo, 2Rs 6,19; Ez 40,45; cf. também Jz 18,4), sugere que aqui [em Qohélet] está o original” (Kohelet, 19). Prati­camente esta é também a opinião de R. Gordis, que explica as variantes dos Ms por efeito de “nivelação e não [por] ortografia fenícia” (Was Kohelet, 108).

2,1-2. O autor anima-se a si mesmo ao tentar novo caminho que con­sidera como prova para si mesmo; na intenção do autor, também para todos sem exceção. Logo vai se desenganar, pois o novo caminho também é beco sem saída.

A estrutura de 2,1-2 é semelhante à de 1,13-15 e 1,16-18: 1) proposi­ção do projeto ou plano (2,1a); 2) constatação do resultado negativo: hebel (2,1b); 3) sentenças proverbiais que o confirmam (2,2).1

lA. Fischer, Beobachtungen, 78-79.

Page 175: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. Continua o autor falando consigo mesmo em tom tranqüilo, sosse­gado e meditativo2 em seu diálogo interior, como dizíamos em 1,16.3 A no­vidade está em que o diálogo aqui é explícito. O autor anima-se primeiro a si mesmo: eia, vamos, e depois se desdobra num eu que fala e num tu a quem se dirige: provar-te-ei, submeter-te-ei a prova.

O campo de provas vai ser a alegria (simhah) e o mundo dos prazeres (;tob). Não se trata de convite semelhante ao dos ímpios em Sb 2,6ss: “Ve­nha desfrutar dos bens presentes, gozar afanosamente das coisas...”. O ponto de vista de nosso autor não é o dos maus sem moral nem temor de Deus, nem o dos homens de Sb 2,6ss.4

O que entende o autor por alegria (simhah) ou por prazeres (tob)? Pelo contexto (cf. relação entre 2,1-2 e 2,3-11) e pelo paralelismo entre os dois termos não se podem distinguir muito um do outro. A alegria ou simhah, quando é coletiva, necessariamente está relacionada com a cele­bração festiva, profana ou religiosa;5 abarca, portanto, qualquer manifes­tação de júbilo, mais ou menos intensa, duradoura ou profunda. O versículo não especifica nada, mas sem dúvida se deverá relacioná-la com ativida­des como as que se descrevem a partir do v. 3, uma vez que, como veremos, o que ali se disse faz referência a 2,1-2.

O que acabamos de dizer da alegria (simhah) pode-se e deve-se apli­car também aos prazeres (tob). O hebraico tob: bem, bom, é um desses termos comuns que podem de fato abarcar todas as esferas desde as mera­mente objetivas da natureza às mais íntimas e elevadas da ética ou mo­ral.6 A fórmula utilizada por nosso autor reduz consideravelmente o senti­do de tob que se refere diretamente aos bens de que gozamos e nos causam prazer.

Mas também isso é vaidade: E o juízo negativo do autor, já manifesto igualmente em 1,14 e 1,17; repete-se nessa secção como estribilho. O au­tor propõe em todo o v. 1 uma visão sintetizada da vida, sem desenvolver nenhum aspecto. Mas seu modo de pensar é inequívoco, uma vez que o expressou anteriormente e não o muda com as novas experiências. O juízo negativo do autor não tem nenhum matiz moral ou ético, como já vimos ao interpretar hebel em 1,2, a que remetemos.

2Existem antecedentes literários, como o egípcio Diálogo entre um homem e sua alma (ver ANET 105-107).

^ er também aqui o uso pleonástico e enfático do pronome ’ny (cf. P. Joüon, 146b; Bo Isaksson, Studies, 168; E. Bons, Zur Gliederung, 84).

4Ver nosso comentário a essa passagem em Sabiduría [1990], 157-159.5E. Ruprecht pensa que “antes de tudo é a alegria da festa, seja essa profana ou religiosa” (smh

sich freuen: THATII829); H. W. Hetzberg também o afirma: “smhh é a alegria intensa, com freqüên­cia a alegria festiva” (Der Prediger, 86).

6Cf. H. J. Stoebe, tob gut: THAT I 652-664.

Page 176: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Aformulação do v. 2 é a típica de provérbio. Confirma-se pela estru­tura das três perícopes: 1,13-15; 1,16-18 e 2,1-2, segundo vimos na intro­dução dessa perícope e no estudo de A. Fischer.7

Tanto o riso como a alegria são tomados aqui como as manifestações externas de um estado de ânimo prazenteiro; talvez a intenção do autor dirija-se principalmente à causa deste estado de ânimo, visto que tanto loucura como o que consegue? no contexto certamente têm sentido muito negativo e isso só se pode dizer de uma atitude do homem. O autor não fica na pura exterioridade das condutas humanas, mas penetra até o mais íntimo do coração, a que se dirige no v. 1 e de que, em última instância, brotam o riso e a alegria, aqui personificados pelo autor e aos quais apostrofa.8

O que consegue?: Segundo a nota filológica fica claro que é preciso manter a terceira pessoa. A pergunta é retórica e espera-se resposta ne­gativa.9

O que todavia não está desvelado é porque o autor se mostra tão aber­tamente pessimista. Aquilo a que os homens aspiram e a que estão orien­tados desde o mais profundo de seu ser: ao equilíbrio perfeito nos senti­mentos da alma, que pode manifestar-se até na alegria como explode no riso (cf. SI 126,2), declara-se solenemente pelo autor como “loucura” e inú­til, sem que por outro lado sequer se tenha feito menção de alguma infra­ção moral contra a vontade de Deus. A explicação do enigma a encontrare­mos, em parte, no mesmo capítulo 2 e mais claramente no capítulo 3. Tudoo que demonstra relação muito estreita desses capítulos entre si, uma vez que foram redigidos por um só e mesmo autor. O enigma, portanto, fica sem decifrar até o momento em que ao autor pareça conveniente no-lo explicar.

3.3. Reflexões sobre a original experiência de Qohélet (2,3-21)A uma primeira parte (1,13-2,2), em que o autor propõe suas experiên­

cias sobre tudo o que se faz sob o sol (1,13-15), sobre a sabedoria (1,16-18), e sobre a alegria e o desfrute (2,1-2), segue segunda parte (2,3-21), mais reflexiva ainda, e que volta quiasticamente sobre as experiências da pri­

7Cf. Beobachtungen, 78s. Expressamente o afirma A. Bea (cf. Liber, 3). D. Michel faz notar que em1,15 e 1,17 o autor citava provérbios do acervo comum; aqui, porém, apóia sua sentença em suas próprias palavras, ou seja, o dito proverbial cunha-o ele próprio (cf. Beobachtungen, 16). Mas, basta que o autor fale em primeira pessoa para poder rejeitar que no v. 2 não se contém um dito já proverbial?

8Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 86; M. V. Fox não aceita que o autor fale aqui do riso, mas antes da diversão ou do regosijo (The meaning. 419 nota 21). Mas creio que, depois de nossas precisações, não têm valor seus argumentos.

9Cf. D. Buzy, L’Ecclésiaste, 211a; Bo Isaksson, Studies, 127; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 77.

Page 177: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

meira parte: sobre a alegria e o desfrute (2,3-11), sobre a sabedoria (2,12­17), e sobre tudo o que causa fadiga sob o sol (2,18-21).1

Podemos esperar alguma surpresa nesta nova etapa do autor em sua reflexão sobre as experiências mais significativas de sua vida por sua ex­tensão e intensidade? Será difícil descobrir algo de novo, pelo menos em seu juízo global, visto que o autor manifestou-se muito claramente desde o próprio começo do livro (cf. 1,2-3). Todavia, é muito possível que revele alguma faceta nova em sua atitude para com a vida e o mundo, ao ter que matizar suas apreciações sobre aspectos mais particulares, ao refletir ex­pressa e detidamente sobre eles.

3.3a. Reflexões sobre a alegria e o desfrute: 2,3-11No esquema geral que traçou o autor, esta perícope corresponde à

última da secção anterior, ou seja, à experiência sobre a alegria e o desfru­te: 2,1-2. Os contatos verbais reais existem.2

2,3 Eu promovi em meu coração uma investigação ao seduzir meu corpo com o vinho— enquanto se comportava meu coração com sabedoria — e ao dar-me à loucura,até que averiguasse o que é o bom para o homem, para que o realize sob o céu nos dias contados de sua vida.

4 Realizei obras magníficas: construí-me palácios, plantei-me vinhedos.

5 Fiz-me hortos e parquese neles plantei todo tipo de árvores frutíferas.

6 Fiz-me represas para irrigar com elas o bosque fértil.7 Adquiri escravos e escravas,

e tinha outros nascidos em casa;tive também em grande número rebanhos de vacas e ovelhas, mais que meus predecessores em Jerusalém.

'Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 78-83, especialmente p. 79. Outros exemplos de divisões podem-se ver em J. L. Ginsberg, The structure, 139 (1,12-2,2 + 2,3-26 com subdivisões); H. W. Hertzberg, Der Prediger, 73-77 (5 subdivisões); L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 9 (1,12-2,11 + 2,12-26 com subdivisões); G. R. Castellino, Qohelet, 18 (1,12-18 + 2,1-26); G. Ravasi, Qoheleí, 100 (1,12-2,11 + 2,12-26 com duas tabe­las contrapostas); A. Lauha, Kohelet, 43 (6 divisões).

^Veja-se: belibbi... w‘libbi (v. 3a), ’et-libbi... ki-libbi (v. 10b) cf. com b‘libbi (v. 1); simhah... sameah (v. 10b) cf. com besimhah (v. 1), utsimhah (v. 2); ’er’eh ’e-ze tob (v. 3) cf. com ur*’eh betob (v. 1); raiz ‘sh nos w. 3b.4a.5a.6a.8b.10b.ll (3x) cf. com ‘osah (v. 2a); wehinneh... hebel (v. 11b) cf. com w‘hinneh (errata em BHS)... hebel (v. lc).

Sobre o conteúdo A. Fischer expressa-se assim: “As relações reais entre 2,ls e 2,3-11 são eviden­tes. O rei Kohélet percorre o caminho da nescidade até os limites das possibilidades humanas aonde o conduz sua razão. O m‘sy do v. 4a, colocado em lugar delicado, que sintetiza a descrição particular seguinte, mostra que a atenção dirige-se à ação total do rei que com todo seu coração aspira a conse­guir um sentido por meio da riqueza como fonte do prazer e da alegria. Entretanto, fracassa o experi­mento, sabendo que não se concede nenhuma duração ao êxito conseguido com as próprias mãos” (Beobachtungen, 79s).

Page 178: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

8 Acumulei-me também prata e ouro, e tesouros de reis e das províncias.Procurei-me cantores e cantorase o prazer dos homens: um harém de concubinas.

9 Fui maior e mais magníficoque todos os que me precederam em Jerusalém, e mais ainda, permaneceu minha sabedoria comigo,

10 E tudo o que desejaram meus olhos, não lho neguei; não recusei a meu coração alegria nenhuma,pois alegrava-se meu coração de todas as minhas fadigas e era esse o pagamento de todas as minhas fadigas.

11 Refleti então sobre todas as obras de minhas mãos e sobre a fadiga que me custou realizá-las,e eis que tudo é vaidade e caça de vento; nada se tira sob o sol.

3 “Eu promovi” ou então “eu explorei”. Do texto hebraico que segue o me­nos que se pode dizer é que sua “construção e significado não são nada claros” (N. Lohfink, Kohelet, 26). A expressão limshok bayyayin ’et-beshari centrou a atenção dos tradutores e intérpretes de todos os tempos; sua tradução fiel não é senão “arrastar minha carne com vinho” (cf. H. P. Müller, Theonome, 6).Talvez a dureza da expressão tenha sido o que deu lugar à variedade de versões. A mais comum traduziu o verbo mshk por refrescar, consolar, manter-, assim G e a maioria das versões modernas. Grande parte dos tradutores que seguem essa corrente não mudam o TH, mas confirmam0 sentido do verbo com o aramaico, com o árabe, ou com o hebraico tar­dio rabínico (cf. F. Delitzsch, Commentary, 234; G. R. Driver, Problems, 225s; K. Galling, Der Prediger, 87; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 86; A. Lauha, Kohelet, 48; Ch. F. Whitley, Koheleth, 19); ou simplesmente o admitem porque assim o pede o contexto, ainda que não exista nenhu­ma confirmação textual (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 215). Outros, porém, propõem mudança no TH para que o sentido possa ser o da sentença mais comum; assim o BHS e Koehler-Baumgartner: lishmok por limshok, cf. Ct 2,5. P. Joüon introduz uma variante: “poder-se-ia ler leshameah ‘alegrar’, palavra que se encaixaria bem depois smhh nos w.1 e 2. smh e smhh associam-se amiúde com o vinho (por exemplo, SI 104,15;...)” (Notes philologiques, 419). Dessa proposição diz R. Gordis: “A correção de Joüon... lingüisticamente é possível, mas não necessária apesar do SI 104,15” (Koheleth — the man, 216).A. D. Corré sustentou posição extravagante, propondo mudança não em limshok, mas em byyn por kywn com essa versão: “Procurei em meu coração fazer-me incircunciso como os gregos” (cf. La reference). Um juízo negativo dessa sugestão pode-se ver em D. Michel, Untersuchungen, 15 nota 39.“O que é o bom”: “ ’y-zh tem a força do interrogativo “o que?”; cf. lRs 13,12" (Ch. F. Whitley, Koheleth, 20). “para que” ou “de sorte que”: cor­responde ao relativo sher que, se bem que em raras ocasiões, pode ter

Page 179: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

matiz final (cf. Joüon, 168f; R. Meyer, Gramática, § 117) ou consecutivo (cf. P. Joüon, 169f; R. Meyer, Gramática, parágr. 118); “sob o céu”: as versões antigas G Vg lêem hshmsh, mas deve-se preferir a lectio difficilior hishshmyn, pois “as versões representam o processo de nivelação” (R. Gordis, Koheleth — the man, 216).“nos dias contados”: acusativo de tempo (cf. Ges.-K., 118k; P. Joüon, 126i).

5 “parques”: prds é empréstimo do antigo iraniano ou persa; por si é um horto cercado para recreio (cf. Ct 4,13 e Ne 2,8). Praticamente é como gan: horto; G traduziu um e outro por parádeisos (cf. Gn 2,8.9.10.15.16;3,1 etc.; Ct 4,13; Ne 2,8).

6 “com elas”, em hebraico mehem (desde elas): sufixo pronominal da 3a. pessoa pl. masculino com antecedente feminino;,assim também em 2,10; 10,9; 11,8 e 12,1, e no A. T. freqüentemente (cf. Jz 21,22; Jó 1,14 etc.) (ver Ges.K., 135-o). M. J. Dahood sugere que se pode dever à influência do fenício que tinha uma forma única para o sufixo da 3a. pessoa do plural masculino e feminino (cf. Canaanite-Phoenician, 43s); ao que se opõem A. Lauha (cf. Kohlet, 41) e Ch. F. Whitley (cf. Koheleth, 20).“solo fértil”: lit. “o bosque que produz árvores”.

7 “e tinha”: em hebraico está o singular hayah com o sujeito no plural. M. J. Dahood encontra aqui outro fenicismo, pois o original estava escrito, opina ele, segundo a ortografia fenícia que é defectiva: hy (cf. Canaanite- Phoenician, 37). R. Gordis crê que “o verbo masculino singular ou está usado no neutro (cf. Gn 15,17; etc.), ou é o resultado da atração de byt (cf. Ges.-K., 145u)” (R. Gordis, Koheleth — the man, 217; cf. também A. Lauha, Kohelet, 41). Contra M. J. Dahood declara-se R. Gordis em Was Koheleth, 108. A sugestão de E. Bons (cf. Zur Gliederung, 88 nota 64) sobre a nova distribuição do versículo 7 constitui modo engenhoso de evitar o problema textual de hyh, mas não vai além disso.“outros nascidos em casa”: lit. “filhos da casa”, “meus predecessores”: lit. “os que foram antes de mim”.

8 “tesouros de reis e das províncias”: N. Lohfink traduz s‘gullat como “meu tesouro pessoal”, pois crê que se pode considerar segullah como termo técnico de “rei vassalo” (cf. melek, 537). Ver, todavia, Ch.‘ F. Whitley, Koheleth, 21). Chama a atenção dos autores que a reis sigam províncias, e, de mais a mais, sem artigo. D. Byzy opina que talvez seja necessário restituir antes da última uma palavra desaparecida: sare, prefeito das províncias, como Est 1,3, tendo assim dois nomes de pessoas” (UEcclésiaste, 212b). Propuseram-se várias correções ao TH, a saber, wahamudot: e coisas deliciosas (cf. A. B. Ehrlich, Randglossen, 61; BH 3S ed., mas desaparece em BHS); hamon medinot: riquezas das províncias”. M. J. Dahood deixa intato o texto mas propõe como provável a tradução de hammedinot por prefeitos, fundando-se em textos ugaríticos (cf. The Phoenician, 267s); Ch. F. Whitley aceita essa hipótese (cf. Kohelet, 21). R. Gordis, pelo contrário, pensa que a irregularidade do artigo em whmdynwt pode ser influxo aramaico, sem que seja necessário fazer qualquer mudança no TH (cf. Koheleth — the man, 218).“um harém de concubinas”: BH 3a ed. propõe que seja delimitada a ex­pressão: “eliminação arbitrária” chama-a A. Lauha (cf. Kohelet, 41); BHS,

Page 180: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

porém, conserva-a e cita como fórmula paralela Jz 5,30. R. Gordis, por sua vez, tenta dar explicação coerente à expressão: shiddah deriva de shad = mama, peito, que se usa como sinédoque, a parte pelo todo: a mulher; o singular mais o plural indica grande quantidade (cf. Jz 5,30, citado por Ibn Esra), por isso traduz: um crescido número de mulheres (cf. Kohelet — the man, 219). M. J. Dahood recorda, de mais a mais, que uma carta de Amarna confirma para shiddah o significado de concubina, conjetura feita por Ibn Esra (cf. Kohelet and recent, 307); Ch. F. Whitley aceita essa teoria (cf. Koheleth, 22); também H. R Müller em Theonome,7 nota 30.

10 “não lhos neguei”: lit. “não afastei deles”; quanto ao sufixo pronominal masculino -hem em vez do feminino -hen, ver o que se disse no v. 6. “meu coração se alegrava de” (sameh min): o verbo smh (alegrar-se) cons­trói-se normalmente com a preposição be (cf. Qoh 4,16), pode-se, porém, ver com min em lCr 20,27 e em Pr 5,18; e “agora encontramos smh seguido da preposição mn em ugarítico” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 22s); cf. também M. J. Dahood, Qoheleth and Northwest, 35 ls; F. Piotti, Osservazioni [1977], 53s.“de todas as minhas fadigas”: lit. de toda a minha fadiga (trabalho, es­forço). o pagamento pode-se traduzir também por a parte, a sorte.

11 “as obras de minhas mãos”: lit. “minhas obras que fizeram as minhas mãos”, “nada se tira”: lit. “não há ganho”.

2,3-11. Será verdade que todo afanar-se na vida é como querer pegar o vento com as mãos? O autor, transformado em Salomão, vai nos falar a partir do pico de suas riquezas, de seu poder e de sua glória. “O quadro aqui esboçado é uma espécie de concretude da febre pelo domínio e pela transformação do mundo que sacode totalmente em seus ‘anos fundacionais’ o vibrante reinado dos Ptolomeus”.3

3. Este versículo tem caráter introdutório na perícope. Propõe o autor qual era sua intenção ao entregar-se ao desfrute de tudo o que pode cau­sar satisfação sensível, simbolizado aqui pelo vinho, e que à primeira vis­ta de fato também se pode qualificar como loucura, mesmo na mente do autor.

Eu promovi em meu coração uma investigação: Sobre a atividade in­vestigadora e exploradora de Qohélet já conhecemos algo por 1,13, onde encontramos dois verbos praticamente sinônimos; drsh (investigar) e twr (explorar); aqui temos somente twr. A ação investigadora ou exploradora do autor é abertamente introspectiva: Eu explorei em meu coração, ou seja, no mais íntimo de mim mesmo. O objeto da busca em 1,13 era muito geral (tudo o que se faz sob o sol), agora se circunscreve a dois objetos ou esferas: o do prazer ou o da loucura. Por isso do verbo twr dependem dois

3N. Lohfink, Kohelet, 27a.

Page 181: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

infinitivos precedidos pela preposição le, que traduzimos por ao seduzir e por ao dar-me.4

Ao seduzir meu corpo com o vinho: Essa sentença dividiu e divide tradutores e comentadores, como aparece com clareza na nota filológica. A causa de tanta diversidade de opiniões está no verbo mshk, cujo significa­do é arrastar, tirar, segundo o parecer unânime. Geralmente as traduções tendem a suavizar o sentido; para isso se fizeram tantos equilíbrios e se investigaram tanto as línguas semitas. Preferi manter o sentido original na tradução. Seduzir é uma forma de arrastar, tirar, que expressa muito bem a força de atração do vinho. Assim devolvemos o protagonismo a quem o tem, agora o vinho, depois a loucura, que são os centros de investigação do autor.5 Meu corpo, segundo nossa maneira de falar, expressa melhor a idéia do autor de que minha carne (’et-besari)*, ou está mais perto de nos­sa forma de pensar. Não se trata aqui da carne de Qohélet no sentido próprio e direto, mas dele enquanto ser material e corporal; na realidade é a si mesmo que se deixa arrastar pela força sedutora do vinho. Põe-se de relevo com a carne o lado frágil e débil do homem sem conotação alguma ética ou moral da carne, do corpo, ou do homem enquanto corpo ou ser de carne.

O trabalho de investigação, que leva a termo o autor em si mesmo sobre o prazer, centralizou-o ele no vinho e, naturalmente, em seus efei­tos. Vinho aqui se deve, portanto, entender em seu sentido plenamente literal6 e ademais como símbolo de todos os prazeres dos sentidos, ou dos que o homem pode experimentar como ser corporal. A escolha do autor foi boa, visto que o vinho, além de proporcionar por si mesmo prazer ine­gável, em todas as sociedades simboliza a alegria de tal sorte que não se concebe ato festivo sem vinho.7 A Escritura faz-se eco do sentir universal. No apólogo de Joatão fala a videira, a que as árvores pediram que fosse seu rei: “Abondonaria eu meu vinho novo, a fim de balançar-me sobre as árvores?” (Jz 9,13). Do vinho, bebido com moderação, fazem-se grandes elogios. Assim lemos que “o vinho alegra o coração” do homem (SI 104,15). Jesus ben Sira é mais generoso: “A quem dá vida o vinho? Aquele que o bebe com moderação. Que vida é aquela quando falta o vinho, que foi cria­do no princípio para alegrar? Alegria, gozo e euforia é o vinho, bebido a seu tempo e com tento” (Eclo 31,27-28). Recordemos que Jesus fez que corres-

4P. Joüon diz a propósito dessa construção: “O infinitivo com l é muito usado depois de um verbo para expressar uma ação que especifica ou explica a precedente; equivale então ao gerúndio latino em -do, por exemplo, faciendo” (P. Joüon, 124-o), equivalente por sua vez à nossa expressão ao fazer.

5E igualmente correta a versão seduzindo ou ao seduzir, por serem equivalentes.6Mas vejam-se as matizações que fazemos ao comentar a sentença seguinte.7N. Lohfink comenta acertadamente: “Máxima expressão de felicidade humana é o festim entre

amigos, durante o qual circula a jarra de vinho” de mão em mão (Kohelet, 27b).

Page 182: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se o vinho com abundância numa festa de bodas a pedido de sua mãe (cf. Jo 2,1-12), que o vinho foi escolhido por ele para celebrar a eucaristia, e que existe uma promessa sua misteriosa que diz: “Não beberei mais do fruto da videira até chegar o reino de Deus” (Lc 22,18). O vinho é, pois, símbolo da mais alta felicidade.

Voltando a nosso Qohélet, podemos afirmar que escolheu bem o vinho como cifra do prazer, do desfrute e do gozo.

Enquanto se comportava meu coração com sabedoria: Essa é uma sen­tença entre parêntese, presa entre duas sentenças paralelas.8 Sua finali­dade parece ser clara: a de matizar de alguma maneira a situação pessoal e os limites da investigação ousada, perigosa, borrascosa na qual se em­barcou o pseudo-Salomão. P. Joüon reflete a tendência mais branda da interpretação de Qohélet, por isso entende o parêntese da seguinte manei­ra: “O Eclesiastes se entregará moderadamente ao vinho, de maneira que esteja alegre, mas sem perder a razão”.9

Outros autores não são tão timoratos e vão além do simples degustar o vinho; se bem que possamos observar progressão desde R. Gordis, que pensa que o entregar-se aos prazer do vinho “fazia parte de seu experi­mento”10, até E. Glasser, que fala abertamente da embriaguez,11 passando por A. Lauha, que eufemisticamente fala do “êxtase dos sentidos pelo vi­nho”, ou seja, da embriaguez.12

Agora a pergunta é: como alguém pode entregar-se à embriaguez e ao mesmo tempo ser sábio? Porque o autor afirma as duas coisas ao mesmo tempo.13 A este respeito observa-se certa insipidez nos comentários que afirmam que o experimento chega até a embriaguez; por isso costumam acrescentar alguma cláusula explicativa.14

8Não oferece dificuldade especial admitir que a sentença seja parenética, mas é importante sublinhá- lo, porque isso ajuda bastante a interpretação e melhor compreensão das sentenças precedente e imediatamente seguinte.

9Notes philologiques, 420. Dessa posição aproxima-se bastante H. P. Müller para quem “se trata de simples experimento em relação com a alegria da vida, à qual se entrega mantendo distância” CTheonome, 6).

10Koheleth — the man, 216.uVejam-se as passagens que citamos na nota seguinte.12Kohelet, 48. E preciso reconhecer que, se quisermos levar a sério o texto, deixar-se seduzir pelo

vinho não é tomar uns copos e nada mais, mas chegar até a embriaguez. Assim o entendem autores como E. Glasser, que diz: “Qohélet quer fazer a experiência da embriaguez a fim de julgar seu valor do ponto de vista da sabedoria” (Leproeès, 42). Isso mesmo volta a afirmar um pouco mais adiante: “Para não deixar escapar nenhuma oportunidade da felicidade, nosso sábio realizou um prudente reconhe­cimento do lado da embriaguez...” (o. c., 46).

l3H. W. Hertzberg adverte que “ele [Qohélet] quer percorrer um caminho tão contrariamente opos­to à ‘sabedoria’, mas continua sendo ‘sábio’ ” (Der Prediger, 87).

14R. Gordis diz que o experimento do vinho não era “mera rendição aos desejos físicos” (Koheleth — the man, 216). E. Glasser, que foi até o fundo, freia seu ímpeto, dizendo: “Tampouco se entrega [Qohélet] inteiramente; seu coração guarda sábio controle da ‘exploração’ ” (Le proeès, 42). Pratica­mente coincide o juízo de A. Lauha: “Ainda que Kohélet tenha se entregado aos prazeres, todavia,

Page 183: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A solução, a meu ver, vem por outro lado. H. W. Hertzberg recordou algo que estabelecemos no princípio da ficção régia (l,12ss), e que também repetimos alguma vez: “Também aqui fica claro que ‘Salomão’ é só uma máscara para o autor”.15 Ou seja, que, embora a Salomão se atribua o que se quiser, ele continuará sendo “o sábio” por excelência. Pode entregar-se ao vinho, como de fato se entregou às mulheres, que Salomão será sempre Salomão. Alguém pensará que não é este o sentido, mas que o autor real Qohélet lança-se a fazer experimentos, aqui o do vinho, disfarçado de Salomão, para provar sua tese com conhecimento pessoal de causa. Pro­põe-se assim o problema que apresenta toda obra literária. É preciso que o autor real viva a vida de suas personagens de ficção para que tudo seja autêntico? Não é necessário que todo autor literário desça até os baixos fundos onde se movem suas criaturas. Não temos porque atribuir a Qohélet- autor tudo o que realiza seu protagonista, o suposto Salomão, embora fale em primeira pessoa, e muitas vezes seja difícil traçar uma linha divisória entre o que é de Qohélet-autor do que é de Qohélet-Salomão. Aqui estamos num desses casos. Embora Qohélet-Salomão seja rei muito rico e podero­so, nem por isso Qohélet-autor o tem que ser, e assim em tudo o mais, sem que por isso Qohélet-autor seja insincero nem diminua o valor de seus ensinamentos.

E ao dar-me à loucura: a sentença depende do verbo principal tarti que traduzimos por eu promovi uma investigação; forma em paralelo per­feito com ao seduzir.1S

A loucura (siklut):17 Este é o segundo objeto do experimento em que se embarcou Qohélet. Como no primeiro — deixar-se arrastar pelo vinho — não se tinha em conta o aspecto moral e ético, tampouco penso que se tenha que atribuí-lo à loucura.18 Mas antes cremos com D. Lys que “se trataria para Qohélet de explorar as maneiras de viver que os homens consideram como loucura, para ver se não se pode aí encontrar algum bem. E preciso ensaiar tudo, mesmo o que parece o mais néscio (quem sabe?)”.19

Até que averiguasse ou visse: O autor apresenta seu protagonista muito interessado em seu empenho pessoal, como sé quisesse ver o resultado de

conservou a possibilidade crítica de juízo e assim pôde levar a cabo o experimento de maneira credível” (Kohelet, 49). Mas o problema continua sendo como se podem compaginar ambas as coisas: o êxtase dos sentidos e o controle da mente.

l5Der Prediger, 87.16Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 216 e tudo o que dissemos da preposição l com infinitivo. 17Cf. o que escrevemos no comentário a 1,17, onde aparece a fórmula rara sikklut; pode-se traduzir

também por insensatez ou nescidade, ou seja, falta de racionalidade.18Não opinam assim R. Gordis (Koheleth — the man, 216) nem H. P. Müller que vê nos opostos

hokma — sikklut “atitudes vitais que é preciso julgar eticamente” (Theonome, 6). aL’Ecclésiaste, 194.

Page 184: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sua investigação, de sua averiguação, com seus próprios olhos. É o inte­resse do próprio autor o que se vê sublinhado em cada uma das palavras. Ele tem muito interesse nisso, pois se trata de encontrar algo que não possa cair sob o estigma do vão e do inútil, algo que seja verdadeiramente bom, como diz em seguida.

O que é o bom para o homem...: A visão do autor não “sucumbe” a uma aspiração ético-individual ou funcional”,20 visto que continua sendo uni­versal: Qohélet busca o que é bom para o homem, para todo homem em sua afanosa vida terrestre ou sob o céu, sem especificar sequer o matiz israelita. Não se afasta, portanto, do ideal sapiencial internacional que é o homem, cidadão do murido ou cosmopolita, como diziam seus contemporâ­neos helenistas.

Nos dias contados de sua vida, porque esta é breve, excessivamente breve, ou porque os dias e as horas já estão fixados de antemão. No pri­meiro caso, a atenção centra-se sobre a brevidade da vida enquanto tal;21 no segundo, não se perde de vista o enfoque anterior, mas é secundário; o principal é que os dias estão enumerados. A vida é como relógio de areia em que se vê, se sente como a vida se vai, se encurta e está a ponto de fenecer: a ameaça do fim se antepõe por sua urgência ao valor da vida mesma. As reações diante dessa realidade tão premente são de fato mui­to diferentes, e às vezes imprevisíveis; dependerá em grande medida da atitude fundamental do homem perante a vida. Não pode ser idên­tica a resposta de um crente, que admite que Deus é quem fixa de ante­mão o número de dias de cada um,22 à de um incrédulo; e, abarcando uns e outros, a de uma pessoa respeitosa dos demais e a de um malvado ou ímpio.23

O tema dos dias contados da vida é universal: vimo-lo na literatura de âmbito helenístico; anteriormente o encontramos no Egito no Hino a Aton: “Todos os homens têm seu alento e o tempo de sua vida está conta­do”,24 e na Mesopotâmia na época de Gilgamesh, onde Gilgamesh diz a Enkidu: “Os dias da humanidade estão contados”.25 Em todo caso, a recor­dação da morte em Qohélet26 faz com que tudo se colora com inegável ma­tiz de melancolia e tristeza. No fundo este é um dos pilares mais firmes em que se fundamenta o juízo negativo de Qohélet de que “tudo é vaidade e caça de vento”.

20Como opina H. P. Müller em Theonome, 6-7.21Sobre o que já dissemos algo em nosso comentário a Sb 2,lss (cf. Sabiduría [1990], 153-155).22Cf. Qoh 5,17; 8,15; 9,9 e Introdução, secção IV.4.23Cf. Sb 2,6-9 e meu comentário em Sabiduría (1990) 157-159.24ANET 370b.25ANET 79.26Cf. Introdução, secção II.5.3.

Page 185: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

4-9. Estes versículos formam um bloco especial27 dentro de uma uni­dade estrófica maior 2,3-11: abarcam toda a atividade construtora, agríco­la: rústica e pastoril, administrativa e comercial tanto doméstica como do reino, do presumido rei Salomão. Não são propriamente excursus, como os chama A. Lauha,28mas peça perfeitamente encaixada no conjunto.29 Creio que têm razão os autores ao fazer referência aos momentos históricos em que se vivia nos tempos de Qohélet, pois uma febre de construção e de arte de todo gênero dominava nos reinos helenísticos tanto selêucidas como ptolemaicos.30

4. Realizei obras magníficas: Começa o autor a enumerar as obras, que são grandiosas, como corresponde a um rei e grande senhor, que de­monstra o que é, o que pode e o que vale por suas obras. Naturalmente não é preciso que as realize com as próprias mãos, mas sim que se façam em seu nome às suas custas. Os grandes Mecenas sempre agiram assim e levaram-se a glória da fama. Que diferença dos grandes artistas da anti­guidade: magníficas obras saíam de suas próprias mãos, mas seus nomes ficaram no anonimato com pouquíssimas exceções.

Construí-me palácios: Começa a série de nove li: me, a mim, para mim nos w. 4-9, que nem sempre se traduzem ao português.31 Indicam antes, como um sinal de trânsito, aonde é preciso dirigir a atenção no meio desse desfile de obras: todas elas não passam de degraus para agigantar a figura do rei que fala e que chegará a dizer que foi “o maior e o mais magnífico em Jerusalém” (v. 9). A intenção do autor é manifesta e no v. 11 nos revelará por quê.

As casas dos reis e dos poderosos costumam ser grandiosas, por isso traduzimos o original battim por palácios.

Plantei-me vinhedos: Numa sociedade eminentemente agrícola a ri­queza mede-se pela posse de grandes extensões de terra lavrável. A vinha

2rE. Bons dedica parte de seu artigo para pôr de manifesto os elementos estilísticos que provam a unidade de 2,4-9 (cf. Zur Gliederung, 87-90).

28"0 Excursus [w. 4-5] pode ser corpo estranho tardio para tomar credível a origem salomônica do livro; todavia, é mais provável que Kohélet mesmo tenha acrescentado o suplemento; o humor amargo neste resumo em forma de lista fala em favor da autoria de Kôhélet” (Kohelet, 49).

29Repetimos uma vez mais que quem fala é Salomão, mas, ao ser um recurso literário, não é preciso buscar nas fontes bíblicas os lugares correspondentes que fundamentam as atividades aqui descritas. De fato são muitas as passagens bíblicas em que se nos fala da atividade de Salomão (cf. lRs 7,1-9; Ct 4,13s; 8,11), mas nem todas têm aqui sua réplica; nada se diz, por exemplo, da edificação do templo (cf. lRs 7,15-8,13), nem das fortificações (cf. lRs 9,15-24), nem das atividades marítimas (cf. lRs 9,26-28). O caráter fictício e literário da narração, todavia, ou precisamente por isso, não deixa de ser para Qohélet um magnífico meio para expor o que ele pensa de cada coisa.

30A. Lauha, Kohelet, 49; N. Lohfink, Kohelet, 26s; H. P. Müller, Theonome, 7.31''Este ‘para mim’ não se deve entender egoisticamente. Mas antes indica o fato de que Qohélet

não se contentou com realizar, mas que gozou de suas realizações” (D. Lys, UEcclésiaste, 199); R. Gordis acentua, porém, que a atividade de Qohélet estava “dirigida unicamente para seu próprio prazer” (Kohleth — the man, 217).

Page 186: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

é, de mais a mais, planta nobre, muito estimada em toda a antiguidade (cf. Gn 9,20: a vinha de Noé; lRs 21,lss: vinha de Nabot; Is 5,lss: canto à vinha etc.) pela uva e pelo seu vinho.

5. Fiz-me hortos e parques: pardes = parque ou jardim, é vocábulo de origem persa.32 Propriamente o horto ou a horta distingue-se do parque ou jardim pela espécie de plantas que os constituem, e no destino dessas plan­tas. No horto ou na horta cultivam-se plantas comestíveis, como hortali­ças, ou de frutos comestíveis, como as árvores frutíferas; também podem ter árvores ornamentais, mas excepcionalmente. No parque ou jardim é tudo ao contrário: sua finalidade primeira é a recreativa sem que por isso se possa excluir alguma finalidade prática. Em nosso versículo, porém, hortos eparques são praticamente sinônimos, como se deduz do v. 5b, onde não se dá distinção entre árvores e árvores: todo tipo de árvores frutíferas. A passagem parece que nos está recordando o relato genesíaco (cf. Gn 2,8.9.15, etc., por um lado, e Gn 1,11.29, por outro).33 O que não está longe da mentalidade do autor que quer exaltar tanto o seu pseudo-Salomão que até ousaria equipará-lo ao próprio Adão ou homem primigênio.

6. Fiz-me represas...: Num lugar como Jerusalém e seus arredores, onde não existem correntes naturais de água, rios ou riachos, é preciso construir represas para reter a água das chuvas escassas, ou para enchê- las com a água tirada de poços artificiais. Em nosso caso, as represas são necessárias para os hortos e parques do v. 5, que se podem identificar poe­ticamente com o bosque fértil.34

7. Adquiri escravos...: Após mencionar os edifícios (v. 4a), as posses rurais e complementos (w. 4b-6), reconta no v. 7 os seres vivos à sua dispo­sição: os escravos e os animais. Não podemos estranhar que o autor ponha no mesmo plano os escravos e os animais, pois que no mais sagrado da Lei assim se encontra: “Não cobiçarás os bens de teu próximo; não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu asno, nem nada do que seja dele” (Ex 20,17), ou então: “Não pretenderás a mulher de teu próximo. Não cobiçarás sua casa, nem suas terras, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu asno, nem nada do que seja dele”

32Ch. F. Whitley escreve: “O termo se toma do persa pairidaeza, um parque ou bosque cercado” (.Kohelet, 20); R. Gordis, Koheleth — the man, 217.

33M. Hurter relaciona Qoh 2,5 com Ne 2,8 e Gn 2,15 e deduz que “Adão/o homem cumpre aqui uma tarefa que corresponde à de um rei, ou seja, o homem original está desenhado com traços reais segun­do a concepção de o J” (Adam als Gärtner und. König / Gen 2,8.15/: BZ 30 [1986] 261).

^Segundo A. Lauha, “o Antigo Testamento faz menção amiúde de recipientes e condutores de água, mas todos sem exceção são destinados a abastecimentos públicos de água (2Sm 2,13; 4,12; lRs 22,38; 2Rs 18,17; 20,20; Is 7,3; Ne 2,14)... Em Koh, pelo contrário, os sistemas de água são somente sinal de fasto” (Kohelet, 50). Para os sistemas artificiais de irrigação cf. G. Dalman, Arbeit und Sitte in Palästina, II, Gütersloh, 1932, 29-35.133-241.

Page 187: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

(Dt 5,21). A categoria que abarca esse conjunto é a da propriedade priva­da, domínio, posse; nela estão incluídos da mesma maneira a própria es­posa, a casa, as terras, os escravos e os animais.

O texto faz distinção entre os escravos comprados no mercado e os escravos nascidos em casa, ou seja, os escravos em propriedade, chamados por isso de filhos da casa (cf. Gn 17,12.23.27; Ex 21,4; Lv 22,11), que não se devem confundir com os filhos do amo que são livres e não escravos.35 Todos eles formavam parte da família, mas de maneira especial os nasci­dos em casa.36 Um sinal externo do nível social duma pessoa são os escra­vos ou pessoas não livres que faziam parte de suas posses ou patrimônio.

O Qohélet-Salomão possui em abundância escravos e também ani­mais, pois teve também em grande número rebanhos de vacas e ovelhas. Como nos tempos do nomadismo, o gado em grande quantidade é a forma mais concreta de riqueza.37 A expressão já estava consagrada.38

Mais que meus predecessores em Jerusalém: A fórmula no essencial é a mesma que vimos em 1,16, a cujo comentário remetemos. Ainda a en­contraremos em 2,9, razão pela qual nos confirmamos que se trata de giro estereotipado.

8. Após elencar os bens que fazem parte do patrimônio de toda pessoa rica e bem de vida (w. 4-7) — um rei não o pode ser menos —, o v. 8 refere- se a tesouros próprios de reis: Acumulei-me também prata e ouro. A prata e o ouro acumulados eram a garantia do poder de um rei. Recordemos que o patrimônio real equivalia então ao que atualmente é o tesouro ou erário público.

A Sagrada Escritura fala amplamente das riquezas de Salomão. De fato, a sentença de lRs 10,27: “Salomão conseguiu que em Jerusalém a prata fosse tão corrente como as pedras”, soa a expressão proverbial. Na mente de Qohélet estão sem dúvida todas essas passagens: o ouro e a prata acumulados por Davi e que herdou Salomão para a obra do templo (cf. lCr 29,2-5); as contribuições dos notáveis de Israel (cf lCr 29,6-7); o ouro acumulado nos tempos de Salomão (cf. lRs 9,28; 10,11-23); a doação da rainha de Sabá (lRs 10,10); os obséquios dos visitantes (lRs 10,24-25);

35Sobre a instituição da escravidão em Israel pode-se consultar R. de Vaux, Les Institutions de VA T., I, cap. 3, Paris, 1958, 125-140.

36E comovedor o caso do servo de Abraão, “o criado mais velho de sua casa, que administrava todas as suas posses” e a quem Abraão recomendou buscar esposa para seu filho Isaac (cf. Gn 24).

37Tanto é assim que, segundo R. Gordis opina, miqneh: rebanhos, gado, aqui significa ‘posses’ (cf. Gn 49,32); em seu sentido original. O nome mais tarde desenvolveu o significado de ‘gado’, a forma básica de riqueza numa sociedade nômade; cf. latim pecus ‘gado’, pecunia ‘dinheiro’” (Koheleth — the man, 217). Arelação entre “posses”, “bens” e rebanhos é evidente, razão pela qual é melhor conservar a versão rebanhos ou gado, como se vê também pelos paralelos citados.

38Cf. Gn 26,14 e 47,17: “rebanho de ovelhas e rebanho de vacas”; cf. também 2Cr 32,29: “rebanho de ovelhas e vacas”.

Page 188: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

etc. Assim se forjou a lenda de que “em riqueza e sabedoria Salomão supe­rou todos os reis da terra” (lRs 10,23).

Tesouros de reis e das províncias: Em parte, podem-se explicar por tesouros de reis pelo que recebia dos reis vassalos, como nos diz lRs 5,1: “Salomão tinha poder sobre todos os reinos, desde o Eufrates até a região filistéia e fronteira com o Egito. Enquanto viveu, pagaram-lhe tributo e foram seus vassalos”. Ao invés, as províncias podem-se entender que se referem à contribuição dos territórios administrados em que se dividia o reino (cf. lRs 4).

Os cantores e as cantoras são personagens familiares em todas as cortes. Em lRs 10,12 diz-se-nos que “com a madeira de sândalo o rei fez balaustradas para o templo do Senhor e o palácio real, e cítaras e harpas para os cantores”. Com bastante probabilidade esses instrumentos e esses cantores são os da corte, e não os do templo (de que se fala longamente em lCr 25, no tempo de Davi). A esses cantores estariam também destinadas as canções que compôs o próprio Salomão: “Compôs mil e cinco canções” (lRs 5,12).

O prazer dos homens: Numa civilização como a que pressupõe Qohélet, o prazer por excelência, os prazeres e as delícias dos varões, não podem ser outros que os que lhes brinda a mulher: Um harém de concubinas. Na nota filológica viu-se a grande dificuldade que oferece essa expressão. Mas todas as soluções chegam a um mesmo final: trata-se da mulher e sempre em grande número. O harém de Salomão foi o mais famoso em toda a história do povo de Israel (cf. lRs 11,1-3).

9. Esse versículo e o que segue são uma espécie de conclusão de todo o anterior. O autor reafirma uma vez mais que Salomão é o rei magnífico por excelência: suas grandes obras sem dúvida confirmam que ele foi grande e magnífico, mais que todos os seus predecessores (cf. 1,16 e 2,7).

E, mais ainda, ainda que pareça incrível,39 minha sabedoria perma­neceu comigo: Creio que o autor insere matiz irônico neste inciso, ou, pelo menos, um pouco de ceticismo, porque, pelo que parece, sequer ele mesmo consegue crer. Talvez esteja pensando no juízo negativo definitivo de toda essa experiência, como vai expressar no final no v. 11. Neste caso, a ironia converte-se em sarcasmo, uma vez que o juízo de vaidade e inutilidade vai alcançar também a sabedoria de Salomão, a minha sabedoria. Se não for assim, o autor simplesmente manifestaria com este e, mais ainda... sua grande perplexidade e desorientação.

10. A atividade febril do pseudo-Salomão produziu as magníficas obras que fizeram com que seu nome seja o mais famoso dos reis em Israel se­

39Cf. F. Zorell, s. v. ’ap 3) b): “In narranda re grandi, vix incredibili”.

Page 189: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

gundo a própria confissão. Mas, pôde ele desfrutar delas? Porque até ago­ra nada se nos disse sobre isso. O versículo 10 compendia o desfrute e gozo dos bens acumulados: E tudo o que desejaram meus olhos. Frisa-se em primeiro lugar o gozo de todos os sentidos, não se põe limitação nenhuma, expressa-se totalidade, pois se diz literalmente: tudo o que desejaram meus olhos, não lho neguei. Os olhos simbolizam todos os sentidos. Em segundo lugar, o autor interioriza mais o desfrute, põe a descoberto a alegria e o gozo de seu coração, que são plenos, expressando tudo primeiramente de forma negativa: não recusei a meu coração alegria nenhuma, e depois afir­mativamente: alegrava-se meu coração de todas as minhas fadigas.

Parece que o autor quer corrigir o juízo tão negativo e severo, formu­lado a este respeito em 2,1; pelo menos aparentemente assim é. Porque não podemos negar que o autor fale aqui de gozosa e verdadeira satisfa­ção, e de autêntica alegria: alegrava-se meu coração.40

O gozo e a alegria, ainda que sejam passageiros, são autênticos. No entanto, o próprio autor vai responder a essa nossa dificuldade: e este é o pagamento de todas as minhas fadigas. Não nega absolutamente que se possam dar gozo, alegria, desfrute em nossa atarefada vida, senão que de fato o afirma, porque ele próprio o experimentou no mais íntimo de si mesmo, em seu coração, o que ele chama de o pagamento de suas fadigas. O que se entende por pagamento ou parte? Parte (heleq) originariamente é o termo técnico para designar a porção de terra que cabia a cada israelita (cf. Js 14,4; 15,13); depois virão outros significados derivados de grande importância na vida religiosa do povo eleito (cf. Nm 18,20). Em Qohélet o significado já é derivado e relaciona-se de uma ou outra forma com a idéia de prêmio, recompensa, sorte: pagamento. Que relação tem com oytron do v. 11, vamos ver em seguida.

11. O autor pensa que chegou ao final do experimento que se tinha proposto realizar em 2,3; é o momento de fazer balanço. O objetivo do balanço é duplo. Em primeiro lugar, deve avaliar os resultados, suas obras, essas obras que ele próprio qualificou de magníficas (cf. v. 4), e, em segun­do lugar, o esforço, o trabalho, o fadiga que lhe custou realizar suas obras. Em termos mercantis: o resultado conseguido, ou seja, as obras mesmas (w. 4-8) e a satisfação por tê-las conseguido (w. 9-10), compensam as ener­gias empregadas, o trabalho, a fadiga? O autor dá resposta global inequi­vocamente negativa no v. 11b: Tudo é vaidade e caça de vento; nada se tira sob o sol. Quanto à terminologia, nada de novo; de fato repete no todo ou

40O objeto da alegria é o trabalho mesmo, a atividade do homem que normalmente é fadigoso (cf. G. Ogden, Qoheleth [1987] 42). Outros pensam que não é o trabalho, mas o fruto do trabalho (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 23). Depende de como se entender ‘amai (cf. o comentário a 1,3 e Excursus III sobre o trabalho em Qoh).

Page 190: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em parte as sentenças de 1,2.14.17; 2,1, e responde explicitamente à per­gunta de 1,3: “Que ganho tem o homem em todas as fadigas com que se afadiga sob o sol?”, e que implicitamente já se esperava.

No entanto, o v. 11 suscita uma série de perguntas com relação ao v. 10: Invalida o juízo negativo do v. 11 o que acaba de afirmar o autor no v. 10? Se o invalida, que valor tem o que com tanta sinceridade afirmou no mesmo versículo? Se não o invalida, que valor tem então o duplo juízo negativo do v. 11? D. Michel parece que indica uma saída válida deste labirinto: a acertada compreensão do contraste entre heleq (pagamento, parte) e yitron (ganho, vantagem). O contraste não é o da parte {heleq) diante do todo {yitron),41 mas o da participação no passageiro (heleq) dian­te do permanente.42

Se aplicarmos a Qohélet este mesmo esquema, provavelmente se re­solverão muitas dificuldades: sempre que encontrarmos juízo positivo da realidade objetiva e das vivências pessoais de Qohélet, este se emoldurará frente ao “perecedouro”, e não entre o “permanente ou duradouro” que para Qohélet é o único e verdadeiro ganho ou yitron. Por isso Qohélet é conseqüente ao chamar todo o passageiro de “vaidade e caça de vento”, sem que por isso queira negar todo aspecto positivo e até útil no que por natureza é “perecedouro”, mas isso mesmo não deixará nunca de ser volá­til como a fumaça, porque com o tempo se dissipa sem deixar pegada per­manente.

3.3b. Reflexões sobre a sabedoria: 2,12-17O autor volta à experiência da sabedoria que expôs em 1,16-18, cujos

temas repete (cf. 2,12 com 1,17), ainda que a diferença no tratamento seja consideravelmente diferente: primeiro parece negar o que se afirmou em1,17 (cf. 2,13-14a) e em segundo lugar reafirma-se no que se disse e ainda vai mais além (cf. 2,14b-17).

2,12 E pus-me a refletir sobre a sabedoria, a loucura e a nescidade Pois que tipo de homem sucederá ao rei, que eles mesmos tinham nomeado em outro tempo?

41Como o entende W. Zimmerli: “O coração de Kohélet pôde alegrar-se em pleno trabalho. Nele lhe saiu ao encontro fragmentariamente algo que nunca deixará de lado, algo em que, como ele mesmo disse, encontrou ‘sua parte’. O que encontrou não alcança claramente o todo de um juízo otimista da vida... Ele permanece parte que, como tal, recorda sempre com dor que o todo não está nas mãos do homem e que não pode pegá-lo” (Das Buch des Predigers, 159s).

42Como opina D. Michel: “Em heleq o pensamento dominante não é o de “parte’, mas o de ‘partici­pação’ em algo... A mim me parece que é preciso levar em conta essas duas determinações: que em todo caso heleq diante de ytron designa algo mais restrito, e que este ‘mais restrito’ dever-se-ia buscar com Delitzsch, Wõlfel e Hertzberg na esfera do temporal: como ‘participação’ em algo efêmero, heleq é também necessariamente passageiro, ao passo que a pergunta pelo ytron, pelo que parece, significa algo duradouro e permanente. Antecipando-nos a 3,1-5 poder-se-ia dizer que heleq corresponde a 'et e ytron a ‘olaml” (Untersuchungen, 19-20).

Page 191: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

13 E observei atentamente que a sabedoria leva vantagem sobre a nescidade, como a luz sobre as trevas.

14 O sábio tem os olhos na cara, caminha em trevas o néscio.Mas compreendi também que toca uma mesma sorte a todos.

15 Então pensei comigo: como a sorte do néscio será também a minha. Então, para que sou sábio? Onde está a vantagem?E pensei comigo: também isso é vaidade.

16 Pois ninguém se recordará do sábio nem do néscio para sempre, uma vez que nos dias vindouros já tudo estará esquecido.Como é possível que tenha que morrer o sábio como o néscio!

17 E aborreci-me da vida, porque pesavam sobre mim como coisa má as ações que se fazem sob o sol; pois tudo é vaidade e caça de vento

12 “E pus-me a refletir sobre”: lit. “e voltei-me para observar”. “Que tipo de homem”: lit. “que homem”, “sucederá”: lit. “o que virá atrás de”. “Que eles mesmos tinham nomeado”: “que eles mesmos fizeram”.E um fato que o v. 12b foi sempre um lugar de discussão entre os tradu­tores e intérpretes. Já o constata Juan de la Pineda (cf. In Ecclesiasten, 308b). Os intérpretes modernos continuam os passos dos antigos. R. Gordis diz de 2,12b que “é uma antiga crux interpretum” (Koheleth — the man, 220), o mesmo que A. Lauha em Kohelet, 53. A. B. Ehrlich chega ao extremo, quando diz do v. 12b que “é inteiramente ininteligível” (Randglossen, 62), e segundo ele não melhora a coisa com as correções, já que “o resto está extremamente corrompido” (Ibidem).E natural que se alguns opinam que Qoh 2,12b não tem sentido como está, se tente uma solução, buscando um novo lugar para ele, ou apresen­tando outras alternativas de leitura do texto consonantal, ou mesmo mo­dificações do texto. A proposição mais inocente é a da mudança de posição. Uns propõem essa ordem: v. 11 + v. 12b + v. 12a + w. 13ss (cf. D. C. Siegfried, Prediger, 36s; W. Zimmerli, Das Buch des Prediger, 160s; L. Alonso Schõkel, Sabiduría, 25). Mas como A. B. Ehrlich adverte: “A coisa não melhora se se coloca o v. 12b imediatamente atrás do v. 11” (Randglossen, 62). Outros transladam o v. 12b para depois do v. 19 (assim A. Lauha, Kohelet, 41.53) com o único e exclusivo argumento de que o contexto é adequado. Mas essa solução não é séria, pois parece ignorar o uso dos recursos estilísticos pe­los quais se adiantam temas ou se repetem motivos etc.Mais importantes são as propostas que concernem ao texto consonantal. Assim BH, 3a ed. e BHS que lêem: mah-ya^seh. São muitos os que ade­rem a essa sentença (cf. S. Holm-Nielsen, TheBook, 77; A. Lauha, Kohelet, 42). Alguns sugerem mudar ‘ahare por ‘aharay (atrás de mim) segundo LXX e, conseqüentemente, hammolek (que é ou será dono) em vez de hammelek (cf. H. L. Ginsberg, The structure, 148). Em vez do TM ‘asuhu (fizeram), propõe-se ‘asahu (o fez), segundo o testemunho de muitos ma­nuscritos (assim BH, 3a ed., BHS, R. Gordis, Koheleth — the man, 221) e também ‘asah hu (ele fez) (ver BH, 3a ed., BHS). Para todo o versículo ver Ch. F. Whitley, Koheleth, 23s. Mantemos o texto hebraico como está, porque cremos que, apesar de suas dificuldades, é a melhor solução.

14 “na cara”, lit. “em sua cabeça”. “Mas”: é outro waw adversativo (cf. P. Joüon, 172a). “também”: lit. “também eu”, pronome pessoal com função enfática.

Page 192: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

15 “então pensei comigo”: lit. “E disse eu em meu coração”, “do néscio” (ksl): M. J. Dahood descobre em kesil influxo do fenício, transcrito em grego xsil (cf. Canaanite-Phoenician, 205). “será também minha”: lit. “tam­bém eu, me sucederá a mim”. A ênfase pretendida manifesta-se dupla­mente com a acumulação do pronome de primeira pessoa absolutamen­te ou como complemento (cf. Ges.-K., 135d-h; M. J. Dahood, The Phoenician, 268).“Onde está a vantagem?”: o TM tem ’az yoter. A partícula ’z criou muitos problemas. E omitida por muitas versões antigas, especialmente por G e Vg, e não há acordo entre os modernos. M. J. Dahood considerou em 1952 que ’z (scriptio defectiva) tinha que se ler: ’e zeh: onde está a vanta­gem? (Cf. Canaanite-Phoenician, 205) e em 1968 que ’z “é o pronome demonstrativo [zeh] precedido do protético aleph, como em fenício que emprega ambos z e ’z” (The Phoenician, 268): é essa uma vantagem? Ch. F. Whitley corrige em parte Dahood e opina que “é provável... que ’z seja corrupção dum original ’e (onde?), cujo y foi confundido por um copista pelo z (...) Por conseguinte, deveríamos ler ‘y em vez de ’z e, segundo isso, traduzir nossa linha: “e por que eu sou sábio, onde está a vantagem?” (Koheleth, 25). A maioria, porém, pensa de outra maneira (cf. P. Joüon, Notes philologiques, 420; R. Gordis, Koheleth — the man, 222).“E pensei comigo”: lit. “E falei em meu coração”.No final do v. 15 G acrescenta: “porque o néscio fala da abundância”, cf. Mt 12,34; Lc 6,45.

16 “Ninguém se recordará do sábio”: lit. não haverá recordação para o sá­bio. “nem tampouco do néscio”, “uma vez que já” corresponde a beshkkebar, palavra composta por be-she-k8bar (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 222; Ch. F. Whitley, Koheleth, 25s). “nos dias vindouros”: acusativo de tempo (cf. Ges.-K.,118.3).

17 “pesavam sobre mim como coisa má as ações que se fazem”: lit. “mal sobre mim a ação que se faz”.

2,12-17. A interpretação de 2,12-17 está intimamente ligada à posi­ção tomada com relação aos limites da ficção régia. Nós escolhemos os limites 1,12-2,26. O eu da perícope continua sendo o pseudo-Salomão.1 Quanto à divisão da perícope seguimos a seguinte: 1) o v. 12 como uma espécie de introdução; 2) os w. 13-14a: avaliação positiva da sabedoria em comparação com a nescidade; 3) w. 14b-17: juízo extremamente pessimis­ta sobre o sábio e a própria vida.2

lAinda que não neguemos que a partir de 2,12 se descobre mais a ficção do eu, ou seja, o autor Qohélet como que se deixa ver mais às claras, razão por que muitos autores afirmam que já não se dá ficção régia nenhuma (cf. a mesma introdução a 2,12-2,26). D. Michel afirma: “Aqui [2,12] ter­mina de uma vez o ‘experimento Salomão’, começado em 1,12... doravante fala o filósofo!” (Untersuchungen, 23).

2Ainda se poderia fazer outra divisão em duas partes segundo aparece o ynzo-hébeh a primeira é 2,12-15, com sua vacilação ou dificuldade contra 1,17; a segunda mais homogênea e taxante na seve­ridade de seu juízo 2,16-17 (cf. também A. Fischer, Beóbaehtungen, 80). Vamos seguir a divisão indicada no texto, porque nos parece mais lógica quanto a seu conteúdo.

Page 193: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12. O v. 12 ao mesmo tempo que nos translada de novo à experiência sobre a sabedoria (cf. 1,17), introduz-nos na nova reflexão (w. 13-17) e aponta ainda para mais além, ao falar do herdeiro (cf. 2,12b com 2,18ss).

E pus-me a refletir sobre a sabedoria, a loucura e a nescidade: Depois da experiência tão decepcionante que o pseudo-Salomão teve com a sabe­doria (1,16-18), parece que não está muito convencido disso, razão por quê volta a refletir sobre ela, mas desta vez a vai considerar a partir de novos pontos de vista: em abstrato, em concreto e em comparação com seus antônimos loucura — nescidade.

Segundo nossa versão, parece que tanto a sabedoria como a loucura e a nescidade são objeto da reflexão do autor, como se fossem três objetivos, postos no mesmo plano. Na realidade, porém, os três se reduzem a dois objetos de observação que são antagônicos: a sabedoria e a nescidade. No resto da perípoce aparecerão somente a sabedoria e a nescidade (em abstra­to), o sábio e o néscio (em concreto). No comentário a 1,17 ficou claro que holelot (loucura) é a falta de sensatez3 e siklut (forma rara de siklut) é insen­satez.4 Ao autor interessa frisar o confronto sabedoria — nescidade, para ver que supera a que, se é que uma supera a outra, em que grau e até quando.

E agora chega o v. 12b com todos os seus problemas e enigmas não resolvidos ou com excessivas explicações (ver notas filológicas). Entre to­das elas temos que escolher alguma, ou, do contrário, teremos que dar uma nova no todo ou em parte pelo menos.5

Mantivemos o texto hebraico como está; preferimos, pois, manter o caráter introdutório e antecipativo do versículo 12.6Ao ser versículo introdutório, necessariamente está orientado ao que vem; o que explicaria a não-relação intrínseca entre 12a e 12b.7

3"hwllot (10,13 hwllut) significa propriamente ‘insensatez’; representa o contrário do razoável e do conhecimento. A palavra traduz-se adequadamente por ‘falta de racionalidade’ ” (H. W. Hertzberg, Der Prediger, 85).

4M. V. Fox defende explicitamente que Qohélet examina “duas coisas: sabedoria e loucura. As palavras holelot w'siklut estão corretamente agrupadas sem interrupção pela acentuação massorética e formam hendíade com o significado de ‘insensata loucura’, ‘loucura estúpida’, ou algo semelhante” (Qohelet and his, 183).

5Resenhamos na nota filológica a dificuldade que implica o v. 12b; a R. Gordis, porém, parece que “apesar das dificuldades textuais, a idéia é inteiramente clara. Koheleth, em seu papel de Salomão, quer assegurar ao leitor que ele experimentou até o extremo a sabedoria e o prazer e que a ninguém é necessário repetir o experimento” (Koheleth— the man, 221). Ironicamente aduz o testemunho do Midrash Koh. Rabba a 3,11: “Se alguém qualquer (menos Salomão) disse: “Vaidade das vaidades’, eu responderia: ‘Este tipo que nunca possuiu dois centavos despreza todas as riquezas do mundo!” (Ibidem). O conteúdo dessa sentença é verdadeiro, e por isso o autor meteu-se na pele de Salomão desde 1,12; mas não se vê como o v. 12b possa implicar essa lição, a não ser que se mude o próprio texto, como faz R. Gordis.

6Por isso “mudança [do v. 12b] não é necessária, logo que se reconhece que 2,12 é indicação das... duas passagens que seguem: o v. 12a de 2,13-17 e o v. 12b de l,18ss” (H. Lohfink, melek, 538 nota 12); cf. 1,13-22; 5,9-11; 6,lls.

7Por essa razão o ki do v. 12b não é o fundamento lógico do v. 12a; muitos autores sequer o tradu­zem (cf. K. Galling, L. Alonso Schõkel e outros). Poderia ter função deíctica (assim A. Fischer,

Page 194: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Que tipo de homem sucederá ao rei?: Estamos no tema do herdeiro, de que não se trata mais na presente perícope, mas sim na seguinte (cf. w. 18ss). Mas talvez tenham razão os que vislumbram, neste sucessor do rei Roboão, filho e sucessor de Salomão; porque se Salomão é o sábio por exce­lência, a personificação da sabedoria, Roboão é o exemplo do néscio, ou a personificação da insensatez (cf. lRs 12,1-14).

Que eles mesmos tinham nomeado em outro tempo: Para nós o antece­dente do relativo que é o rei que o precede imediatamente. Assim parece que tem melhor sentido toda a sentença de relativo. De fato lemos em lCr 29,22: “Proclamaram [a assembléia ou povo de Israel] rei por segunda vez a Salomão, filho de Davi”. Sintaticamente, o precedente do relativo pode­ria ser o homem que sucederá ao rei, ainda que se encontre um pouco distanciado. Se se preferir esse caso, se estará aludindo a um estado qua­se revolucionário, parecido ao que se viveu nos últimos anos do reinado de Salomão (cf. lRs 11,14-41), no qual já se teria eleito o sucessor do rei.8

13-14a. Intitulamos essa passagem: avaliação positiva da sabedoria diante da nescidade. A pergunta é: quem faz esse juízo positivo de valor? Se for Qohélet, continuamos perguntando: é lógico em seu modo de pen­sar? Até que ponto? Se não for Qohélet o que fala, de outra maneira, se Qohélet não expressa aí o seu modo de pensar, quem pensa assim e qual é a atitude de Qohélet?

13. Começa o autor no v. 13 a desenvolver o que tinha proposto no v. 12a. Observei atentamente que. No original hebraico volta a aparecer o pronome pessoal eu (’ani) depois do verbo; cremos que com ele se expressa a intensidade da ação pessoal, razão por que acrescentamos na tradução atentamente.9

E necessário ressaltar a idéia de intensidade no v. 13a, visto que o verbo utilizado r ’h não significa simplesmente ver com o sentido da vista, mas introduzir-se no interior do objeto para julgá-lo.10

Surge agora dupla dificuldade: 1) o exame crítico do autor recai dire­tamente sobre a sabedoria e a nescidade, de tal maneira que isto é o que se quer expressar no v. 13, a que se acrescenta como exemplo esclarecedor o v. 14a? Ou antes 2) o exame crítico tem como objeto direto os dois provér-

Beobachtungen, 80), ou afirmativa, mas muito tênue (cf. P. Joüon, 164b). Para o uso de ki em Qoh cf. D. Michel, Untersuchungen, 200ss.

sNeste caso, seria preferível traduzir: “que eles mesmos tinham nomeado já ”, em vez de “outro tempo”, que parece mais distante.

9A conjunção que (observei... que) poderia ser substituída por dois pontos (:). Corresponde ao rela­tivo she- em sua função de conjunção (cf. R. Meyer, Gramática, 88, 2.b; P. Joüon, 104a).

“ Como diz D. Michel: “r ’h neste contexto não é... um termo para designar a atividade empírica do sábio, mas para um exame crítico da teoria da sabedoria, para uma meta-empírica” (Untersuchungen, 28); cf. ademais Qohélet, 81.32.

Page 195: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

bios presumidamente conhecidos e que se citam nos w. 13-14a? Não é indiferente a resposta, visto que o sentido é muito distinto em um e outro caso. Se se escolher a alternativa 1), temos que admitir que nos versículos 13-14a se reflete o que pensa Qohélet, a saber, que depois de olhar e olhar criticamente11 a sabedoria e a nescidade, Qohélet chega à conclusão de que a sabedoria é melhor que a nescidade, da mesma maneira que a luz é melhor que as trevas, e assim mesmo o que se diz do sábio e do néscio.12 Mas se preferimos a alternativa 2), é muito outra coisa que se deduz do texto. Neste caso os w. 13-14a expressariam o parecer comum do povo, formulado em forma de provérbios: a sabedoria tem uma vantagem... e o sábio tem os olhos na cara...;13 Qohélet com seu olhar penetrante e crítico submete estes ditos populares a exame crítico. O que pensa Qohélet disso, não se vê nos w. 13-14a, mas nos w. 14b-15.

A questão não se pode dirimir pela gramática ou pela sintaxe; o texto é ambíguo e admite as duas interpretações. A solução que escolhermos tem que vir por outro caminho, pelo da coerência ou incoerência do que se afirma nos w. 13-14a com o resto do livro. Os autores se decantam majori- tariamente pela alternativa 1). Na realidade os autores estimam que Qohélet está expressando seu próprio parecer nos w. 13-14a, que admite uma partícula positiva na sabedoria diante da necescidade, ou seja, que se pode aplicar ao ensinamento de Qohélet o giro estilístico sim mas, por um lado sim, por outro não, sobretudo se se compara com o que se disse em 2,11.14Tudo o que é coerente com outras passagens do livro (cf. 7,lls.l9; 8,1; 9,17s) e se poderá compaginar com os w. 14b-17.

Quanto a considerar os w. (13)-14a como provérbios,15 que refletem a corrente tradicional otimista da sabedoria, não cremos que se oponha ao que acabamos de dizer, contanto que se veja nesta passagem a crítica pro­funda, talvez irônica, de Qohélet, que se manifesta nos w. 14b-17.16Com essa atitude de Qohélet nos vamos familiarizando pouco a pouco. Logo veremos passagens muito mais acres e violentas. No entanto, o que lemos no v. 13 é de senso comum, e o próprio Qohélet expressa-o em outros con­

uSobre o começo do v. 13 escreve M. V. Fox: “O hebraico w‘ra'iti'ani she- é maneira tão clara como possível de introduzir o pensamento próprio de alguém” (Qohélet and his, 184).

12Não teria inconveniente em admitir que Qohélet expressa sua convicção, a que chegou depois de exame rigorosamente crítico por meio de dois provérbios já conhecidos.

13Nesta hipótese os dois pontos (:) depois de atentamente seriam preferíveis na versão ao por­tuguês.

14Cf. H. P. Müller, Theonome, 8-9.15Que o v. 14a seja provérbio, é comum entre os autores; R. Gordis afirma-o também do v. 13 e eu

o creio muito provável (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 150 [versão].221); também adere D. Michel (cf. Untersuchungen, 28).

16Ver a longa disquisição de D. Michel em Untersuchungen, 27-30, com que estamos de acordo somente em parte.

Page 196: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

textos (cf. 7,lls; 9,17). Quem não admite de bom grado a superioridade da sabedoria sobre a nescidade? Quem não prefere a luz à escuridão?

14a. O sábio tem os olhos na cara: Chama a atenção que uma expressão tão pouco original como esta se aduza para confirmar uma sentença tão importante, pelo que parece, como a do v. 13. Por acaso o néscio não tem também olhos na cara? Sim, mas comporta-se como se não os tivesse, como se estivesse cego, razão por que se diz dele que caminha em trevas, que vai pela vida às apalpadelas, como se o cobrisse a escuridão (cf. Is 43,8). Estamos já no plano das condutas que qualifica as pessoas como sábias ou néscias.

14b-17. Juízo extremamente pessimista sobre o sábio e a própria vida. Se até o v. 14a se pôde discutir se Qohélet manifestava ou não seu pensa­mento, a partir do v. 14b não existe dúvida possível. O pensamento de Qohélet é nítido, categórico, sem fissuras, ainda que o matiz seja o de um derrotista e de uma amargura incomparáveis. Este é o lado obscuro de Qohélet até mais não poder.

14b. Mas compreendi também: Depois das experiências já realizadas em primeiro lugar praticamente em todas as esferas da vida humana, e depois em tudo o relacionado com a sabedoria e a nescidade, e de refletir outra vez sobre todas essas experiências, o inquisitivo Qohélet nos vai manifestar as mais íntimas e dolorosas convicções a que chegou. Estas dizem respeito não só a ele em sua visão global e transcendental de sua vida pessoal, mas também a todos sem distinção. A nova compreensão acrescenta-se aos conhecimentos anteriores, assumindo-os e colorindo-os com seus matizes trágicos e desoladores.

O mas inicial opõe-se ao quadro precedente, onde coexistem sábios e néscios que seguem caminhos diferentes; agora, pelo contrário, o panora­ma é diferente: também há sábios e néscios, mas — paradoxo incompreen­sível! — o destino final é o mesmo para todos: toca uma mesma sorte a todos.

O conceito “sorte”, “destino” (miqre) em Qohélet parece que está bem determinado. Encontramo-lo em outras duas passagens de Qohélet: “pois a sorte dos homens e a sorte dos animais é a mesma: como morrem uns, morrem os outros...” (3,19); cf. também 9,2-3).17 Em Qohélet, relaciona-se sempre com o destino de mortalidade, razão por que nada tem a ver com a tyche grega,18 nem com a fatalidade propriamente dita, posto que tudo está nas mãos de Deus (cf. 9,1).19

lv'miqre, diz-nos A. Lanha, significa ‘o que acontece por si mesmo sem intervenção própria, sem a vontade do interessado e sem autor conhecido’ (KBL 3S ed.), portanto, ‘casualidade’, ‘destino’ ” (Kohelet, 53); opõe, portanto, ao que se faz, se busca, se pretende por si mesmo etc. (cf. M. V. Fox, Qohelet and his, 184).

18Cf. K. Galling, Der Prediger, 90; A. Lauha, Kohelet, 53.19Pelo que não vejo porque H. W. Hertzberg afirma que “o característico conceito fatalístico de Qoh

começa a anunciar-se” (Der Prediger, 91); cf. F. Nõtscher, Schicksal, 459-462.

Page 197: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

15. Então pensei comigo-. O autor avança em seu caminhar íntimo e reflexivo sem medo de deduzir todas as conseqüências, até as mais amar­gas para sua condição privilegiada de sábio ou simplesmente de homem mortal.

Como a sorte do néscio será também a minha-. A sorte ou miqre do v. 15a; é como o eco da sorte do v. 14b: néscios e sábios têm o mesmo destino. Jamais se tinha ouvido semelhante doutrina no meio sapiencial judaico: a equiparação do néscio e do sábio é total. Como estão longe aquelas senten­ças dos Provérbios:20 “A memória do justo é bendita, o nome do ímpio apo­drece”, “Quem caminha honradamente caminha seguro, quem segue um caminho torto é descoberto”, “O salário do justo é a vida, o ganho do ímpio é o fracasso”, “O que aceita correção vai por caminho de vida, o que rejeita a repreensão se extravia” (Pr 10,7.9.16.17). “Ao justo nada acontece de mal, o ímpio anda cheio de desgraças” (Pr 12,21, etc.).

Qohélet explicitará ao longo do livro seu pensamento sobre a remune­ração que é terminante: não se dá, como se pode comprovar facilmente qualquer que observar com atenção o que ocorre entre os homens, o que acontece sob o sol. De sobrevivência para além da morte, nada de nada.21

Então, para que sou sábio? Conseqüência lógica do estabelecimento da igualdade entre o néscio e o sábio. A pergunta de Qohélet descobre a profunda desorientação em que se encontra metido, seu estado emocional diante de sentimentos contraditórios.22 Não compreende o sentido do es­forço pessoal para chegar a ser sábio. Onde está a vantagem ?: a vantagem de ser sábio em absoluto e com relação ao néscio, se no final todos terão o mesmo pagamento, todos serão tratados igualmente, ou seja, com a morte ou o nada absoluto. O autor não se subleva por isso, não faz a mais míni­ma alegação contra a sabedoria ou o esforço para consegui-la, ou em favor de uma greve de braços cruzados ou inatividade total.23 Não se dá o mais mínimo sinal de censura contra Deus; só se vislumbra um sentimento de melancolia e resignação. Pensei comigo: também isso é vaidade,24 o preo­cupar-se pela sorte do sábio e do néscio? O admirar-se? O indignar-se? Tudo isso ao mesmo tempo, já que Qohélet sabe que se trata de batalha perdida de antemão, de empenho fadado irremissivelmente ao fracasso,

“ O antônimo de o néscio é o sábio, mas é muito freqüente na tradição sapiencial a equiparação do néscio com o malvado e do sábio com o justo. Em Provérbios adverte-se esse desvio (cf. 1,7; 3,33-35, etc.); consuma-se no livro da Sabedoria (cf. Sb 4,16s).

21Cf. Excursus IV sobre a retribuição em Qoh.22Bo Isaksson fala de “expressão emocional” (Studies, 169).23Como diz M. V. Fox: “Isso não é condenação da sabedoria. O ponto de vista de Qohélet é que é

injusto que tão diferentes causas (maneiras de viver) tenham o mesmo resultado (a morte)” {The meaning, 420).

24"A resposta é resignação: realmente tudo foi hbl!” (A. Lauha, Kohelet, 54).

Page 198: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pois, como ele mesmo dirá: “O homem não pode averiguar o que se faz sob o sol; por isso o homem se afadiga buscando, mas nada averiguará; e ain­da que diga o sábio que o sabe, não poderá averiguá-lo” (8,17).25

16. O destino mortal do sábio e do néscio não se distinguem em nada, a sorte é a mesma (w. 14b-15), mas depois da morte não fica pelo menos a recordação, a memória entre os vivos, que reconhecerão a superioridade de um sobre o outro? Também isso o nega redondamente o autor: Nin­guém se recordará do sábio nem tampouco do néscio para sempre;26 em pouco tempo já tudo estará esquecido. No livro da Sabedoria distingue-se muito bem entre justos e ímpios, entre a sorte do justo: a imortalidade com Deus, e a sorte dos ímpios: a separação definitiva da comunidade com Deus (cf. cap. 2-5). Mas em Sb 2,4 podemos ler coisa muito parecida com Qoh 2,1627com uma diferença essencial: o que Qohélet diz do néscio e do sábio por igual, Sb só aplica aos maus: “Nosso nome cairá no esquecimen­to com o tempo e ninguém se recordará de nossas obras”. Comentando essa passagem de Sb, escrevi: “Negada a imortalidade individual [para os ímpios], não ficará sequer a imortalidade da recordação nas gerações fu­turas.28 A existência pessoal para eles não tem mais consistência que a do tempo que passa (...) O destino é fatal, o termo de nosso caminho é a morte da qual ninguém volta (cf. Jó 7,10; Is 38,10-12)”.29

Se no versículo anterior 15 Qohélet manifestava sua desorientação perguntando Por que sou sábio?, neste torna público seu estado de estupe­fação e admiração: Como é possível que tenha que morrer o sábio como o nésciol Aqui não tem cabimento a indiferença, razão por que até o tom do versículo é elegíaco.30

17. As perguntas sem resposta do autor, a admiração e estupefação diante do que acontece sem que ninguém possa ajudar no enigmático labi­rinto da vida humana, levam Qohélet a um beco escuro, tenebroso e sem saída. A incompreensibilidade absoluta de tudo o que vê a seu redor e

25Lemos em F. Notseher: “Os planos e as obras de Deus são para o homem não só insondáveis e imperscrutáveis, mas também inalteráveis; eles estão firmes de antemão e para sempre; o homem só pode acomodar-se e submeter-se a eles e não pode mudar nada deles” (Schicksal, 460).

26Séculos antes no acádico Diálogo pessimista entre amo e servo se diz: “Sobe aos montões das antigas ruínas e anda sobre eles; olha as caveiras de antigos e recentes; quem (entre eles) é malfeitor, quem benfeitor público?” (ANET 438b).

27Sobre a relação entre Sb e Qoh neste ponto concreto veja-se meu Comentário a Sahiduría (1990) 154-155 nota 7.

2SNa Escritura, reserva-se ao justo memória imperecível: cf. Sb 4,1; Is 56,5; SI 112,6; Pr 10,7; Eclo 37,26; 39,9, etc.; ao malvado o esquecimento total: cf. Dt 9,14; SI 9,6; Jó 18,17; Eclo 44,9 etc.

29J. Vílchez, Sabiduría (1990), 156.30Cf. H. W. Hertzberger, Der Prediger, 92; também D. Michel, Untersuchungen, 31. Com diz A.

Lauha: “Atrás da melancolia levanta a cabeça a amargura na pergunta final... dirigida contra a injus­ta ordem do mundo” (Kohelet, 54), ordem que ele não compreende nem é possivel retificar, porque depende única e exclusivamente dos direitos imperscrutáveis de Deus (cf. 1,15; 3,14; 7,13; 11,3).

Page 199: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mais distantemente enche sua alma de tristeza e amargura, que explo­dem em grito dilacerante: E aborreci-me da vida, porque merece ser odia­da, pois “não é razoável o sentido da realidade terrestre”.31 No meio judai­co semelhantes palavras somente disseram homens submersos na dor do corpo e da alma e que tinham chegado ao limite da resistência humana. Estes foram Jeremias e Jó. “Maldito o dia em que nasci, o dia que me deu à luz minha mãe não seja bendito!... Por que saí do ventre para passar trabalhos e penas e acabar meus dias derrotado?” (Jr 20,14.18). “Então Jó abriu a boca e maldisse seu dia dizendo: Morra o dia em que nasci...” (Jó 3,lss). De Qohélet não nos consta que se encontrasse em circunstâncias parecidas com as de Jeremias ou Jó; no entanto, o fastio intelectual leva- o às mesmas conclusões e expressões, sem que, apesar de tudo, insinue sequer solução radical, como seria o suicídio.32 No fundo detectamos uma das mais agudas contradições de Qohélet.33

Ainda pode surpreender-nos esse Qohélet em grande parte desconhe­cido. Porque não lhe são indiferentes de modo algum as incoerências, as injustiças, o sem-sentido do que experimenta e observa sob o sol, sem que saiba a quem deva atribuir tudo isso. Como um atlante sustenta a carga pesada de todos estes males: pesavam sobre mim como coisa má as ações que se fazem sob o sol. Ao carecer tudo de sentido, é como se sentisse náu­seas de tudo, náuseas do ser, se se nos permite a expressão de sabor metafísico mais que físico.

Qohélet põe a rubrica a toda essa longa disquisição com algo que lhe é próprio e exclusivo: pois tudo é vaidade e caça de vento (cf. 1,14). Mas isso não é o final, vem mais, como veremos na perícope seguinte.

3.3c. Reflexão sobre o esforço humano e seus resultados: 2,18-21Segundo o esquema geral que se traçou o autor, agora cabe refletir

sobre a experiência humana de tudo o que se faz sob o sol, da qual tratou em 1,13-15.1 De mais a mais, na secção anterior (3.3.6) dizíamos de 2,12 que “ao mesmo tempo que nos translada de novo à experiência sobre a sabedoria (cf. 1,17), introduz-nos na nova reflexão (w. 13-17) e aponta para mais além, ao falar do herdeiro (cf. 2,12b com 2,18ss)”. Chegamos, pois, ao último ponto das reflexões programadas pelo autor, que fazem referência ao herdeiro (razão por que 2,18ss se relaciona com 2,12b), aos esforços pessoais e seus resultados: a acumulação de riquezas, e ao juízo

31H. P. Müller, Theonome, 9; cf. A. Lauha, Kohelet, 54. Bo Isaksson crê que Qohélet “chegou a odiar a vida por sua futilidade pela inevitabilidade da morte” (Studies, 169).

32Do problema do suicídio em Qoh já tratamos na Introdução, secção IV.2.33Como diz D. Lys: “Paradoxalmente Qohélet detesta a vida, porque a ama” (UEcclésiaste, 259).

‘Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 78s.

Page 200: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

negativo que tudo isso lhe merece (relação com 1,13-15), já que, definitiva­mente, ele não desfrutará do fruto de seu trabalho, mas outro (seu herdei­ro) que em nada colaborou com ele no trabalho, e até pode ser um perfeito néscio.

2,18 E aborreci todo o fruto de meu esforço pelo qual me afadigo sob o sol, pois devo deixá-lo a meu sucessor,

19 e quem sabe se será sábio ou néscio?Certamente ele terá domínio pleno sobre tudo o que eu consegui com tanto esforço e sabedoria.Também isso é vaidade.

20 E acabei desesperando em meu coração de todo trabalho pelo qual me afadiguei sob o sol.

21 Pois há quem trabalha com sabedoria, ciência e acerto,e tem que deixar sua porção a alguém que para isso não se afadigou. Também isso é vaidade e grande desgraça.

18 “pois”: sh como conjunção, cf. F. Zorell, s. v., p. 810b; P. Joüon, 104a. “a meu sucessor”: lit. “ao homem que virá detrás de mim”.

19 “e quem sabe?”: cf. J. L. Crenshaw, The expression mi yodea‘. A disjuntiva interrogativa normalmente é ha...’im, mas ha...’o não é desconhecida (cf. Ges.-K., 150g). “Certamente”: cf. Ges.-K., 154a nota 1. “sobre tudo o que consegui com tanto esforço”: lit. “sobre o fruto de meu esforço com que me afadiguei”. “e sabedoria”: lit. “e no que eu manifestei minha sabedoria”.

20 “E acabei desesperando em meu coração”: lit. “e eu me voltei (em meu interior) para entregar meu coração ao desespero”.

21 “há quem trabalha”: lit. “há um homem a quem seu trabalho”, “acerto”: kishron, assim só em Qohelet (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoenician, 206). “E tem que deixar”: yitnennu. Sobre essa expressão discrepam os autores. M. J. Dahood interpreta-a assim: “Ibmos que voltar àquelas versões antigas (LXX...) e à explicação daqueles comentadores (Ibn Esra, Bauer, Stuart), que interpretaram o sentido de yitnnenu como dativo. Em outras palavras: a idéia do dativo está expressa duas vezes em Le’adam e no sufixo de yitnnenu” (Qoheleth and Northwest, 352). No entanto, não é esta a opinião comum que considera tanto o sufixo de yitnnenu como helqo (sua porção) com acusativos do verbo ytn (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 224).“a alguém”: lit. “a um homem”. ‘Também isso” (gam-zeh): segundo R. Gordis, “gm, como freqüentemente em Koheleth, é partícula enfática: ‘realmente, seguramente’; cf. 2,23.26" (Koheleth — the man, 224).

2,18-21. São evidentes as relações de todo tipo, formais e materiais, que existem entre essa perícope e 1,13-15. O que verdadeiramente preo­cupa o autor neste momento é que o que conseguiu com tanto esforço não o possa desfrutar ele, mas que tenha que deixá-lo a seu sucessor ou her­deiro, ou seja, a alguém que nem trabalhou para consegui-lo, nem sabe ele

Page 201: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se será sábio ou néscio. A conclusão é que “também isso é vaidade” (2,19c), “vaidade e grande desgraça” (2,21c); a mesma conclusão a que tinha che­gado em 1,14. O âmbito da experiência é o mesmo em ambas as passa­gens: “sob o céu” (1,13a), “sob o sol” (1,14a e 2,19.20). Pode-se afirmar que há perfeita correspondência entre ‘sh em 1,13-15 e ‘ml em 2,18-21.2

18. O versículo presente enlaça-se perfeitamente com o v. 17, e com ele a perícope inteira pela repetição do verbo principal e aborreci (wesane’ti). Ao mesmo tempo determina em parte o aborrecimento que Qohélet tem da vida, descendo ao caso particular que agora o preocupa: o do herdeiro do fruto de seus trabalhos (de seu ‘amai). Qohélet manifesta seu profundo sentimento de rejeição, o aborrecimento por seu próprio ‘amai não por si mesmo, mas pelas circunstâncias que o rodeiam, neste caso as do herdeiro que não teve mérito nenhum de sua parte. Sendo assim, vê-se claro que, além do tema do ódio e da rejeição de Qohélet para com seu ‘amai, centram a atenção do leitor e do intérprete outros dois conceitos fundamentais: o do ’amai e o do herdeiro.

Já tratamos a respeito de ’amai substantivo e verbo em 1,3; aqui so­mente recordamos o necessário para a compreensão da perícope.3 Os au­tores em geral estão de acordo, com pequenos matizes e diferenças. Tra­duzimos mali por o fruto de meu esforço, ou por “o adquirido com meu esforço”. Confirma-se que a escolha é a acertada, porque o antecedente de o que devo deixar a meu sucessor (devo deixá-Zo) não pode ser o trabalho em si, mas o que com ele se conseguiu, o seu fruto; do que falará também nos versículos seguintes, ou seja, do que constitui uma verdadeira herança.

Qohélet não encontra sentido para o seu próprio esforço e trabalho penoso se não redunda de alguma maneira no desfrute pessoal dos frutos de tantas fadigas. Por isso seu aborrecimento pode-se estender justamen­te tanto a seu esforço como aos resultados desse esforço. Sendo assim, está fora da consideração do autor uma concepção altruísta da vida. A chave de interpretação talvez esteja em que o autor tem presente um sucessor em concreto, não o homem em geral.4

19. O versículo continua a reflexão de Qohélet sobre o sucessor ou herdeiro, e nele se confirma o dito no v. 18.

2Para estes e outros pontos de contato entre 2,18-21 e 1,13-15 cf. A. Fischer, Beobochtungen, 78­82, especialmente o quadro da p. 79.

3Cf. Excusus III sobre o trabalho de Qoh.4D. Lys aponta que “o homem, ’adam (cf. 1,3) com o artigo (...), aqui talvez indique menos o homem

em geral que uma espécie de domonstrativo (cf. Joüon, 137), um homem particular, no qual pensa o autor, a saber,... o que ocupará seu lugar depois de sua morte, seu sucessor” (UEcclésiaste, 262). Como hipótese pode-se supor que na ficção de Qohélet-Salomão se está pensando em Roboão, sucessor inep­to de Salomão; mas o fato é tão freqüente que não seria preciso recorrer a essa hipótese. O que diz o texto pode valer de qualquer sucessor ou herdeiro.

Page 202: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

E quem sabe se será sábio ou néscio?: Ainda que se soubesse que o herdeiro será homem sábio e prudente, pouco consolo pode trazer a al­guém que pensa sobre Qohélet, segundo se manifestou em 2,15-17. Mas se ainda continua a dúvida, a possibilidade de consolo é inteiramente nula. Uma coisa é certa e segura, como o são geralmente as leis que determi­nam os direitos de sucessão: que o herdeiro disporá a seu bei prazer bem ou mal de tudo aquilo que ele acumulou com esforço e sabedoria. Quanto dói a Qohélet que seja outro que desfrute do que a ele tanto custou acumu­lar e que a morte lhe arrebatou violentamente! E certo que aqui não se fala explicitamente da morte, mas é como se o fizesse, porque sua sombra está onipresente e tudo ensombrece com tristeza. Afinal de nada lhe servi­ram nem suas fadigas nem sua grande sabedoria. As causas de seu pessi­mismo se acumulam, razão por que este vai crescendo e outra vez ouvimos o estribilho: Também isso é vaidade, como um lamento.

20. Por isso conclui Qohélet: E terminei desesperando em meu cora­ção. Neste momento parece que Qohélet renova no mais íntimo de seu coração os mesmos sentimentos que o levaram a dizer em 2,17: “aborreci- me da vida”. O pior que pode acontecer a uma pessoa em sua vida é perder a esperança. Por algo Dante Alighieri pôs na entrada do seu inferno: “Deixai fora toda esperança”.5

O que resta ao homem sem esperança? O desespero.6 Qohélet está à borda de um abismo tenebroso. Em todo caso, não creio que se possa afir­mar que Qohélet tenha caído nesse abismo.7

21. Qohélet faz-se porta-voz dessa nossa humanidade, desenganada pela experiência dolorosa que se repete uma e outra vez através do tempo: os homens afanam-se na vida normal até o limite de suas possibilidades, pondo grande ilusão em seus planos e realizações. Mas no final sempre acontece o mesmo: o homem, todo homem, tenha tido muito sucesso ou pouco ou nenhum em seus afãs, chega ao final de seus dias e, querendo ele ou não, ao morrer se vê despojado do que crê que é seu e, sem tê-lo desfru­tado, tem que deixar tudo ao que vem depois dele, a seu sucessor ou her­deiro, sem que este o tenha ganhado, e sem que possa saber se é ou não digno dessa herança.

5Divina Comedia. Inferno, Canto III, 9.6W. Zimmerli comenta: “Desde o ‘odiei’ (v. 18) sobe-se no v. 20 até o ‘então me volvi para entregar

meu coração ao desespero’. E a mais dura descrição do próprio desespero que se encontra nas palavras de Kohélet. O sábio... está aqui à borda do desespero” (Das Buch des Predigers, 163).

7No entanto, A. Lauha crê que “Kohélet cede ao desespero (y’sh piei: Ges.-K., 64c)”, ainda que o coloque em esfera suprapessoal, pois acrescenta: “As amargas palavras não se devem avaliar como testemunho de uma experiência privada de família..., antes Kohélet pretende expor o destino de cada um dos homens” (Kohelet, 56).

Page 203: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O consabido estribilho de Qohélet: Também isso é vaidade, volta a ouvir-se uma vez mais, como conseqüência lógica de seu modo de refletir. Mas desta vez acrescenta algo de novo e desacostumado: Também é... gran­de desgraça, grande mal. L. Alonso Schõkel tem uma palavra que ilumina a passagem: “Recordemos que trabalhar e não desfrutar, trabalhar para outros, é uma das maldições clássicas da lei e dos profetas (por exemplo, Lv 26,16; Dt 28,30-33). E há homens — pensa Qohélet — que se condenam a si mesmos a semelhante maldição”.8 O que certamente é uma grande desgraça.

As conseqüências de toda essa longa reflexão de Qohélet coligem-se na última secção do capítulo 2, ou seja, em 2,22-26, como veremos em seguida.3.4. Resumo teológico (2,22-26)

No final da ficção salomônica (1,12-2,26) o autor esforça-se para resu­mir o que se pode tirar a limpo de todas as experiências, observações e reflexões que fez como se fosse o próprio Salomão. O ponto de vistí* é teoló­gico, algo particularmente significativo, pois até agora o autor procurou refletir unicamente sobre a visão do homem que se desenvolve “sob o sol”, sem referência especialmente marcada à presença de Deus nos assuntos “que acontecem sob o sol”.

2.22 Porque, o que tira o homem de todas as suas fadigas e preocupações com que se afadiga sob o sol?

23 De dia sua tarefa é sofrer, nem sequer de noite descansa seu coração.Também isso é vaidade.

24 Nada há de melhor para o homem que comer, beber e desfrutar de seu trabalho.Também observei que isso vem da mão de Deus.

25 Pois, quem pode comer e quem pode gozar independentemente dele?

26 Já que ao homem que lhe agrada ele dá sabedoria, ciência e alegria;mas a quem lhe desagrada impõe-lhe ele a tarefa de ajuntar e acumular, para dar depois a quem agrada a Deus.Também isso é vaidade e caça de vento.

2.22 “o que tira o homem”: lit. “o que tem o homem, ou, o que há para o homem”. De howeh escreve Ch. F. Whitley que “está vocalizado como um particípio hebraico do verbo hawah ‘ser, cair’... forma participial (howeh) em Ne 6,6. Na Mishná hwh aparece com freqüência como uma forma do verbo ‘ser’ ” (Kohelet, 28). “preocupações”: lit. “preocupação de seu coração”.

8Sabedoria, 27.

Page 204: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

23 “De dia”: lit. “todos os seus dias”, acusativo de tempo e paralelo de de noite, “sofrer e penar”: lit. “aflições e pesar”, “descansa”, perf. shakab com sentido de presente (cf. P. Joüon, Notes de syntaxe, 225).

24 “para o homem”: la’adam\ o TM tem ba’adam: “no homem”, ver, toda­via, 3,12. Outros opinam que a mudança de bet por lamed talvez se deva à influência do bet final de tob, que precede imediatamente (cf. BHS).“melhor... que”: supõe um texto hebraico twb... mn\ mas a partícula mn parece que desapareceu de mishsheyyo’kal por hapolografia, ou seja, pelo m final de ’adam que vem imediatamente antes. “Confirma-se pelo fato de que ’yn twb vai sempre seguido de ky’m (3,12; 8,15) e de mn 3,22)” (R. Gordis, Koheleth — the man, 226); cf. BHS; G. Ogden, Qoheleth’s use, 340 nota 7.“e desfrutar de seu trabalho”: lit. “e que manifeste à sua alma o bem de seu trabalho”, modismo hebraico. “Também”: gam com sentido enfáti­co. Quanto ao hi’ final do versículo muitos Ms e autores mudam-no para hu’ (cf. BHS). M. J. Dahood recorre à influência do fenício: “Em ortografia fenícia, os pronomes da 3â pessoa, masc. e fem., escrevem-se h’, e, dado que neste contexto qualquer dos dois gêneros está justifica­do gramaticalmente, resultou a atual divergência” (Canaanite-Phoe- nician, 38).

25 Este curto versículo tem longa história de controvérsias, especialmen­te com relação a seu verbo yahush. As versões antigas geralmente pres­supõe outro verbo (vejam-se as notas de BHS e o magnífico resumo de Ch. F. Whitley em Koheleth, 28). A raiz hwsh atribui-se unicamente o significado de “apressar-se”, que não é a que convém a nosso v. 25. A maioria dos autores traduz hwsh no v. 25 como “alegrar-se ou gozar” (cf. M. J. Dahood, Qoheleth and recent, 307s; W. Baumgartner no dicio­nário Koehler-Baumgartner, 3a ed., s. v. II hwsh defende a sentença deF. Ellermeier: “como hshsh (dor), sentir, preocupar-se por, ar. hassa sentir; acád. hashu preocupar-se, hashashu alegrar-se” (188a). Mas no mesmo volume no começo, em Nachträge und Berichtungen, LIII 288b, corrige: “II hwsh qal I: Koh 2,25 alegrar-se (acád. hashashu)” (cf. J. De Waard, The translator, 527).Mas é preciso fazer constar que também há outras opiniões. Já W. Zimmerli põe sinal de interrogação (?) em sua versão (cf. Das Buch des Predigers, 164; não assim na nota 2). O grande defensor de hwsh = preocupar-se é F. Ellermeier (cf. ZAW 75 [1963] 197-217, corrigido e ampliado em Qoheleth 1/2 [1970], Com ele, também D. Michel, Untersuchungen, 35. G. Fohrer não se decide nem por preocupar-se nem por gozar (cf. Hebrãishe and aramäische Wörterbuch zum A.T. hwsh, 77). R. Gordis, apoiando-se no árabe hshy VI, aceita para hwsh o significado de “abster-se” (cf. Koheleth — the man, 29).Outra palavra controvertida é a última do versículo: mimmenni. Neste caso R. Gordis caminha com a maioria: “mmny deve-se corrigir por mmnw com 8 Ms hebraicos, LXX, P[esitta], Jerônimo e praticamente todos os modernos. O sufixo refere-se a Deus” (Koheleth — the man, 227). M. J. Dahood está de acordo no significado, mas não crê necessá-

Page 205: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ria a correção de mimenni por mimmennu (cf. The Phoenician, 269s; Qoheleht and Northwest, 353).

26 “que lhe agrada”: lit.: “que é bom em sua presença”. Como dissemos em2,23 acerca de shakab, também em 2,26 o perfeito natan pode-se tra­duzir como presente freqüentativo (cf. P. Joüon, Notes de syntaxe, 225). “a quem o desagrada”: lit. “ao pecador”, “para dá-lo depois”: lit. “para dar”, “ao que agrada a Deus”: lit. “ao bom diante de Deus”.

2.22-26, ou resumo teológico, encerra a grande perícope da ficção salomônica, sem que corresponda quiasticamente a nenhuma secção an­terior.1 Pode-se dividir em duas secções: a) 2,22-23 e b) 2,24-26.

2.22-23. Uma vez que o autor chegou ao final de sua reflexão e com­provou com desespero que sua vida não vale a pena vivê-la, pergunta com muita retórica que é que afinal resta ao homem de todas as fadigas e preo­cupações. Repete-se, pois, a pergunta inicial de 1,3 e uma vez mais ouvi­mos o estribilho: “Também isso é vaidade”.

22. Parece que o v. 22 quer avaliar muito em síntese a vida do homem em sua existência presente e tangível: sob o sol. Tudo o cifra em sua ativi­dade ou trabalho (jbekol‘a maio), e não só em seu aspecto exterior de exercí­cio físico que causa fadiga, desgaste, cansaço, mas também em seu aspec­to interior: em suas preocupações ou afãs do coração (como diz o TH).

Não devemos acusar o autor de reducionista por apresentar somente a face escura, o lado tenebroso da vida humana, pois não creio que preten­da dar-nos análise completa da vida do homem sobre a terra ou sob o sol, ainda que assim pareça pela universalidade de suas expressões. Não es­queçamos que os versículos presentes são só resumo em que se sublinham deliberadamente alguns aspectos já tratados, sem excluir outros que ime­diatamente vão aparecer (cf. w. 24ss).

23. O versículo começa com um ki explicativo, que não é preciso tra­duzir, pois todo o versículo não passa de continuação do 22: verdadeira­mente de dia...\ mas de outro ângulo ligeiramente distinto. O centro de atenção é agora a tarefa ou ‘inyan do homem.

Em 1,13b o autor falou da triste tarefa que Deus outorgou aos ho­mens. Trata-se aqui dessa mesma tarefa ou de outra parecida ou distinta? Advirtamos que os contextos são muito distintos. No comentário a 1,13b defendemos com a maioria dos autores o sentido restritivo de tarefa, ou seja, “a ação de investigar de Qohélet”. No contexto atual do v. 23 não há razão para restringir o sentido de tarefa, mas tudo pelo contrário: a tarefa do homem é seu encargo geral e sem limitações, ou, como se dizia em 1,13b: “a atividade do homem sob o céu”, mas com os limites que acaba-

'Cf. esquema de A. Fischer em Beobachtungen, 79.

Page 206: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mos de fazer no comentário ao v. 22: desde o ângulo negativo da vida, sublinhado especialmente no v. 23: sofrer epenar, frisando o aspecto inte­rior dos sofrimentos, pois se refere às aflições e ao pesar. Como se vê a visão do autor, pelo menos aquilo que lhe interessa ressaltar da vida hu­mana, é bastante parcial e pessimista neste momento.

Pode-se dizer dessa tarefa que Deus a outorgou aos homens? (cf. 1,13b). Expresamente não se diz no v. 23, mas poder-se-ia admitir, dado que este parece ser o modo de pensar de Qohélet. Comparando 2,24b-25 com 1,13b e outras passagens em que se trata da ação de Deus no mundo, nada acon­tece sem a intervenção divina. Outra coisa será determinar como entende Qohélet essa ação divina. Quanto à amplitude é total, pois dia-noite abar­ca todo o espaço de um dia natural, e o original hebraico fala de “todos os seus dias”. O panorama não pode ser mais negro. A noite associa-se geral­mente o sono que na tradição popular universal aparece como medicina de todos os males e reparação dos trabalhos do dia. No próprio Eclesiastes lemos: “Doce é o sono do trabalhador, coma pouco ou coma muito” (5,11), e em Pr 3,24: “O sono te será doce” (cf. Jó 11,18; Eclo 31,20; Jr 31,26). Para o homem de Qohélet nem sequer a noite serve de trégua para seu coração atormentado. Por isso conclui o versículo que assim a vida não tem ne­nhum valor: também isso é vaidade.

Mas definitivamente não é toda a verdade, já que, mesmo para Qohélet, o horizonte último da vida não é todo obscuro e tenebroso; também vis­lumbra-se algo de claridade entre tanta treva, como vão mostrar os versículos seguintes.

2,24-26. Nesta segunda secção do resumo final o autor tenta de novo dar resposta à primeira pergunta, repetida na secção anterior, e que levou o pseudo-Salomão a ensaiar todos os meios a seu alcance. Mas convence- se de que nunca poderá o homem com todas as suas possibilidades alcan­çar a felicidade ou parte dela; só Deus pode dá-la a quem quiser e como quiser.2 A resposta é, portanto, esperançosa, ainda que apenas em parte.

A intervenção direta de Deus no meio humano justifica o título dado à perícope: Resumo teológico, ainda que “a introdução de um Deus criador não mude nada nos conhecimentos adquiridos (2,24-26)”.3

Não há nada de melhor para o homem...: O sentido obscuro do texto hebraico ilumina-se com as outras três passagens em que aparece a mes­ma construção em Qoh (cf. 3,12; 3,22 e 8,15).4

2Cf. R. N. Whybray, Qohelet-Joy, 88s.3D. Michel, Qohelet, 135; cf. Untersuchungen, 34-40.4G. S. Ogden estudou particularmente a expressão ’en-tob em The ‘Beter-Proverb (1977) e em

Qoheleth’s use (1979).

Page 207: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O autor não exorta nem dá nenhum conselho nesta passagem, só faz uma constatação, ou, como escreve A. M. Dubarle: “Trata-se de uma ver­dade de fato e não de uma norma de conduta que se anuncie em nome de um princípio superior”.5 E o que observamos na vida normal e corrente.

Neste lugar, e nos outros paralelos do livro, mostra Qohélet seu lado amável, bastante desconhecido por certo. Aqui se manifesta a estima que o autor tem da criação de Deus em sua totalidade, dos bens que estão ao alcance de todos, como é o beber, o comer e a atividade laborai que não suponha esforço excessivo da parte do homem. Estes bens são, ou podem ser, pequenos em si, mas salpicam a vida de momentos felizes, nem menos desprezíveis. Qohélet os chama de bons (twb [mn]\ melhor que).6

Este tob: bom, recorda-nos o juízo que o autor sacerdotal vai fazendo das obras da criação (cf. Gn 1,4.10.12.18.21.25.31), que Deus põe à dispo­sição do homem. Qohélet está plenamente de acordo com o relato genesíaco e com a fé prática do povo do A.T., como não podia ser de outra maneira. Podemos citar, ademais, algumas passagens da Sagrada Escritura que explicitamente recomendam o que Qohélet aprova. Lemos em lCr 29,22: “Festejaram aquele dia comendo e bebendo na presença do Senhor”. “Ide, fazei uma refeição abundante, bebei vinhos generosos e enviai porções aos que não têm nada, porque hoje é dia consagrado a nosso Deus. Não jejueis, pois o Senhor gosta que estejais fortes” (Ne 8,10). O profeta Jeremias diri­ge-se ao rei Joaquim com estas palavras: “Se teu pai [Josias] comeu e bebeu e lhe foi bem é porque praticou a justiça e o direito” (Jr 22,15).7

No v. 24b descobrimos o homem de fé israelita que era Qohélet: Tam­bém observei que isso vem da mão de Deus. A afirmação vai mais além da observação, ainda que essa seja muito profunda; é a expressão da fé de Qohélet, enraizada na fé de seu povo. Salva também Qohélet da acusação de hedonismo, que tantos autores lhe atribuíram. “O elogio do desfrute da vida não é nenhum pequeno hedonismo, nem uma forma epicurista ou estóico-eudaimonística”,8 sobretudo quando vai acompanhada do reconhe­cimento de que em tudo isso está presente Deus, ou que tudo provém da mão de Deus.

5Les sages, 119; trad. esp., p. 145; cf. também E. Glasser, Le procès, 51 e nota 7.6Segundo L. Gorssen: “O emprego normal de twb no Eclesiastes é... o que indica uma situação de

felicidade vivida pelo homem” (La cohérence, 288).7Isaías conhece uma maneira de comer e beber censuráveis, por isso lança em rosto ao habitantes

de Jerusalém: “O Senhor dos exércitos convidava-vos naquele dia ao pranto e ao luto... Mas agora: festa e alegria, a matar vacas, a degolar cordeiros, a comer carne, a beber vinho, ‘a comer e beber, pois amanhã morreremos’ ” (22,12s). Recordemos que a Jesus acusaram seus inimigos porque comia e bebia (!), a que ele mesmo responde: “Vem o Filho do homem que come e bebe, e dizem: Aí tendes um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores’. Mas a sabedoria ficou acreditada com suas obras” (Mt 11,19).

8K. Galling, Der Prediger, 92; o autor com essas palavras cita quase literalmente a G. Bertram, Hebrãischer, 26 (no. 36, como diz K. Galling).

Page 208: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

25. Parece que o versículo quer ser fudamento (ki: pois) e ampliação do v. 24b, visto que se volta sobre o comer, sobre o desfrutar ou gozar dos bens e sobre Deus de quem dependemos.9 Formalmente, o v. 25 tem o as­pecto de provérbio.10

O autor propõe em forma interrogativa uma tese integrada plena­mente no corpo doutrinal do povo de Israel e pertencente ao mais central de sua fé: o domínio absoluto de Deus em todas as esferas da vida huma­na. Para um israelita é impensável um acontecimento de âmbito univer­sal ou particular, uma ação humana oculta ou patente sem a intervenção de Deus. Tudo isso não é mais que corolário ou conseqüência da fé em um Deus único e criador de tudo” (cf. SI 139).11

Pela absoluta soberania de Deus, essencial também à fé de Israel em seu Deus, exclui-se qualquer exigência ou imposição de fora sobre Deus, mas isso desenvolverá o autor no v. 26.

26. Algum autor quis descobrir tom irônico na maneira de falar de Qohélet no v. 26,12 e é que é realmente difícil seguir o processo mental do autor em suas palavras. De fato do v. 26 se disseram coisas contraditórias; como que não contém palavras autênticas de Qohélet, mas de um autor “piedoso”, porque defende uma doutrina abertamente contrária à mantida por Qohélet no livro;13 ou que o v. 26 é de Qohélet, mas nele não se defende nenhuma doutrina sobre a retribuição. Hoje em dia essa opinião se gene­ralizou.14

Para que nem sequer se possa chegar a suspeitar que são diminuídos no mais mínimo o domínio e a liberdade de Deus com relação às vicissitu­des da história humana em geral e dos indivíduos em particular, fala-se com freqüência da “arbitrariedade de Deus”, que é preciso explicar e mati­zar para não converter Deus numa espécie de monstro onipotente e despó­tico.15

9Suposta a mudança no texto hebraico; cf. nota filológica.10Que 2,25 seja um provérbio já conhecido ou tenha sido cunhado por Qohélet é secundário.llAssim se pode entender melhor o que a este propósito escreve R. Gordis: “Todo desfrute ou sua

ausência é um fiat divino; obediência à vontade de Deus é verdadeira religião!” (Koheleth— tke man, 227).12Cf. O. S. Rankin - G. G. Atkins, The Book, 42.13Cf. D. Buzy, UEcclésiaste, 217b.14As palavras de L. Gorssen poderiam ser exemplo disso: “No que precede constamos o caráter abso­

luto do domínio de Deus sobre a condição humana. A obra de Deus consiste em determinar a existência humana, sem que o sábio possa descobrir nela uma estrutura, que é precisamente o contrário da doutri­na da retribuição. A nosso ver, o versículo 2,26 descreve essa mesma atitude de Deus” (La cohérence, 298). Cf. R. Rroeber, Der Prediger, 131; D. Lys, UEcclésiaste, 291; A. Bonora, Qohelet, 98-100.

15Neste sentido se deveria matizar mais o juízo de G. Bertram sobre o TM e LXX: “Há forte con­traste entre TM e LXX em nossa passagem: o TM eleva contra Deus a censura da arbitrariedade; LXX divide os homens em bons e pecadores...” (Hebräischer, 46); e muito mais a sentença de O. Kaiser: “Assim o Deus de Kohélet em sua predestinação não se distingue de um cego destino que reparte a sorte, nem da casualidade ou desdita dos homens” (Die Sinnkrise, 96); cf. também H. P. Müller, Theonome, 11.

Page 209: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Diante do mistério absoluto e impenetrável de Deus, Paulo exclama em Rm ll,33s: “Que abismo de riqueza, de sabedoria e de conhecimento o de Deus! Que insondáveis suas decisões e irrastreáveis seus caminhos! Pois, quem conhece a mente do Senhor?” E Isaías, que Paulo cita, já disse­ra: “Meus planos não são os vossos planos, vossos caminhos não são meus caminhos — oráculo do Senhor —. Como o céu está acima da terra, meus caminhos são mais altos que os vossos, meus planos mais que vossos pla­nos” (55,8s). Jamais o homem — nem toda ciência dos homens junta — poderá compreender o mais simples dos planos de Deus sobre o homem mesmo ou sobre qualquer coisa. Por isso qualquer disposição divina está fora do alcance interpretativo do homem e se pode chamar “arbitrário”.16

Qohélet falou no v. 24 de uma observação que transcende os sentidos corporais de que está dotado. Amplia essa observação no v. 26, e assim o constata: Deus reparte seus dons (sabedoria, ciência e alegria) como quer e a quem quer, ou seja, ao homem que lhe agrada; e não precisamente porque é bom em sua presença, já que isso seria “uma espécie de retribui­ção”; da mesma maneira que ao que lhe desagrada impõe uma tarefa, dis­tinta da que tem o homem que agrada a Deus. Para quem será o que acu­mular e ajuntar o homem que desagrada ao Senhor? Já disse o autor algo disso em 2,18-21, a perícope sobre o herdeiro. Se, segundo o que nos con­fessava aí, ele próprio não sabia como ia ser seu sucessor, sábio ou néscio (2,19), quanto menos pode sabê-lo com relação a um estranho que nem sequer conhece. Certamente irá parar nas mãos daquele a quem Deus quiser, ou seja, de quem agrada a Deus.

Como se vê, nada têm a ver com a ética ou moral os conceitos quem agrada a Deus — quem desagrada a Deus. Assim o vê a quase totalidade dos autores modernos. Não estamos diante do par: bom (tob) — mau ou pecador (hote’) em sentido moral.17

Qohélet termina seu resumo e reflexão teológica com o estribilho que o caracterizou em sua longa ficção régia: Também isso é vaidade e caça de vento. O problema, e não pequeno, está em determinar a que se refere em concreto o juízo negativo-hebel.

A resposta parece fácil aos que interpretaram o versículo 26 em senti­do moral, como o confronto das sortes diferentes entre o “bom” e o “peca-

16Isso é o que parece indicar A. Fischer, ao falar da solução que dá Qohélet em 2,26 à teoria contro­vertida da retribuição: “Resolve-a teologicamente enquanto o livre juízo de Deus na repartição de seus dons se faz incompreensível ao homem, e por isso aparece como arbítrio” (Beobachtungen, 83).

17D. Michel expressa-o muito claramente: “Não se devem entender “bom diante de Deus’ e ‘peca­dor’ como categorias morais; com estes giros Kohélet só pode indicar: ‘quem é grato a Deus’ e ‘quem não é grato a Deus’, em que o critério para ‘grato’ e ‘não grato’ só está em Deus” (Untersuchungen, 39­40). Cf. também J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 90; G. Bertram, Hebrãischer, 46; R. Gordis, Koheleth — the man, 227s; L. Gorssen, La cohêrence, 298; A. Loader, Polar, 42; O. Kaiser, Die Sinnkrise, 96; H. P. Müller, Theonome, lis .

Page 210: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dor”.18 Mas essa solução fica descartada, porque rejeitamos anteriormente seu fundamento: o sentido moral do v. 26.

Parece-nos, porém, que vão pelo caminho acertado os que relacionam o juízo de vaidade com a perícope inteira 2,24-26 ou, se se quiser, com a versão subjetiva de Qohélet sobre o que observa acontecer entre os ho­mens.19 Não se compreende porque uns triunfam e outros fracassam na vida. Muitas vezes, excessivas vezes, parece que se premiam a injustiça, a maldade, e se castigam a honestidade, o bem. Não existe lógica.20

Diante dessa realidade impenetrável, indecifrável, parece que não cabe outra solução que a “resignação perante o inevitável”,21 ou, como escreve L. Alonso Schõkel: “Assim o dispõe Deus e assim é preciso aceitá-lo. Mas mesmo isso não compensa, é vaidade. O autor não quer propor uma con­clusão como solução plena do problema. E preciso buscar por outro lado, talvez ponderando o tempo e ocasião de cada coisa...”22 com o que já temos um pé na perícope seguinte.

4. Tempo determinado, duração ilimitada (3,1-15)

Anteriormente afirmamos1 que Qoh 1,3-3,15 com razão se considera­va composição unitária. O centro dessa unidade é ocupada pela ficção salomônica (1,12-2,26), que está rodeada por dois círculos concêntricos, como duplas conchas de um molusco; o primeiro é constituído por dois poemas: o inicial (1,4-11) e o do tempo (3,1-8), e o segundo pela formulação da grande pergunta e sua repetição: que ganho...1? (1,3 e 3,9). Umas refle­xões teológicas sobre tudo o que se afirmou até o momento por Qoh (3,10­15) encerram majestosamente a grande perícope 1,3-3,15.

O que pretende Qohélet em 3,1-5 com este grandioso poema e suas reflexões anexas? Segundo parece, J. Pedersen não deve afastar-se muito ao afirmar que “a idéia fundamental dessa passagem é que tudo segue segundo a ordem fixada por Deus, independentemente do homem”.2 Com

18L. Di Fonzo expressa-se assim: “A vaidade, afirmada no final pelo autor, entende-se melhor se se refere só ao caso do ‘pecador’ que, por ganhar demais, perde tudo (v. 26b; como 5,12-16; 6,1-2)” (Ecclesiaste, 160b). Muito afim a Di Fonzo mostram-se J. Ellul, La razón, 274s e M. A. Klopfenstein, Kohelet, 105 nota 23.

19Assim o vê, por exemplo, L. Gorssen: “Esta expressão [também isso é vaidade] sempre põe fim à descrição de uma situação de perplexidade, de uma anomalia, de uma falta de estrutura inteligível (cf. 2,11.15.17.19.21.23; 3,19; 4,4.8.16; 5,9; 6,2; 8,10.14)” (La cohérence, 298s).

20Por isso N. Lohfink afirma: “Também a repartição da felicidade e infelicidade é sopro de vento” (Kohelet, 30b-31a).

2IR. Gordis, Kohelet — the man, 228.22Eclesiastés, 28.

■Cf. Introdução a 1,3.2Scepticisme, 351.

Page 211: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ajuda dos antagonismos o autor reflete e faz refletir sobre o maior dos antagonismos: Deus e o homem, o âmbito do divino e o âmbito do humano,o grande e único mistério: Deus e seus projetos sobre o mundo e sobre o homem, e a tentativa inútil por parte do homem de abarcar este mistério.3 A atividade limitada do homem desenvolve-se dentro do marco esplêndido de um tempo sem limites e de um espaço universal. Este tempo ilimitado e este espaço sem fronteiras estão sob o domínio de Deus. O homem, pois, é como uma pequena elevação de pó no deserto, como uma gota de água no oceano. Que interesse pode despertar uma coisa tão pequena diante de uma realidade tão misteriosa e inabarcável?

Pela estreita relação existente entre 3,9-15 e 3,1-8 alguns opinam que Qoh 3,1-15 forma verdadeira unidade literária.4 Todavia, cremos que é melhor manter a unidade literária global de 1,3-3,15 e, dentro dela, assi­nalar o lugar que corresponde a cada um dos elementos, entre os quais estão 3,1-8; 3,9 e 3,10-15 intimamente entrelaçados, como acabamos de insinuar pouco mais acima e justificaremos amplamente mais adiante.54.1. Poema sobre o tempo: 3,1-8

3,1 Para tudo há uma hora, e um tempo para todo assunto sob o céu;2 um tempo para nascer, um tempo para morrer;3 um tempo para plantar, um tempo para colher o que se plantou;

um tempo para destruir, um tempo para edificar;4 um tempo para chorar, um tempo para rir;5 um tempo para jogar pedras, um tempo para recolher pedras;

um tempo para abraçar, um tempo para abster-se do abraço;6 um tempo para buscar, um tempo para perder

um tempo para guardar, um tempo para tirar;7 um tempo para rasgar, um tempo para costurar;

um tempo para calar, um tempo para falar;8 um tempo para amar, um tempo para odiar;

um tempo para a guerra, um tempo para a paz.

3Os autores raramente concordam nas palavras, mas neste caso existe notável convergência nas idéias, ainda que muitas vezes seja necessário matizar as expressões, coisa que tentaremos fazer ao longo da exegese. R. Gordis expressa-se sem rodeios a propósito de 3,1-15: “Como os eventos da natu­reza, todas as ações humanas estão predeterminadas por Deus. Toda atividade do homem é, portanto, inútil; inclusive a busca da verdade última que Deus escondeu a suas criaturas. Kohélet volta a seu tema principal: a única meta razoável para o homem é o desfrute do prazer, que é dom de Deus” CKoheleth — the man, 154-155). De modo parecido manifesta-se A. Lauha em Kohelet, 64. Podem-se ver as matizações feitas na explicação de 2,26.

4K. Galling assim o atesta: “Com razão Delitzsch vê em 3,1-15 uma unidade” (Der Prediger, 93); mas a unidade em K. Galling é a de bloco de sentenças, neste caso o sexto. J. Stiglmair afirma mais terminantemente: “No parágrafo 3,1-15 encontra-se uma das reflexões mais longas do livro de Koh. Contra Ellermeier (cf. Qohelet H l, 310), a afirmação deste parágrafo deve-se julgar criticamente unitária” (Weisheit, 353). A. Lauha só a mantém como provável (cf. Kohelet, 63).

5Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 84-86. Praticamente coincide com A. Fischer a maioria dos auto­res que une o v. 9 ao que precede, dividindo a perícope em duas partes, a saber: 3,1-9 e 3,10-15 (cf. A. Lauha, Kohelet, 63).

Page 212: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1 “uma hora”: 2fman, empréstimo do aramaico, originariamente do acádico (cf. Ch. F. Whitley, Kohelet, 30); “normalmente significa em hebraico um tempo fixado ou estabelecido” (J. R. Wilch, Time, 125). Com muitas difi­culdades e fazendo muitos equilíbrios os intérpretes distinguem z?man de ‘et (tempo), sem que nos possa ajudar muito neste caso a versão grega (chronos e kairos respectivamente); praticamente são sinônimos: “As duas palavras semitas significam o mesmo pouco mais ou menos” (A. Lauha, Kohelet, 64; J. R. Wilch, Time, 125). “assunto” ou negócio, como tradução de hepeç, “adapta-se melhor ao contexto, uma vez que serve como texto compreensivo para a lista de atividades e preocupações que se mencio­nam na seqüência imediata” (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 30).

2 “para nascer”: o TH é um infinitivo constructo Qal, que corresponderia a “dar à luz” (cf. G); no entanto, o contexto está a favor do sentido passivo, “posto que se sublinha o nascimento do filho e não o dar à luz da mãe” (A. Lauha, Kohelet, 64-65); ver também Vg: “tempus nascendi”.“colher” corresponde ao infinitivo Qal qor (única vez que aparece ‘qr em Qal) que se traduz geralmente por “arrancar”; preferimos, porém, como mais provável, colher, pelo testemunho fenício ‘qrt com o significa­do de “armazém”, “depósito” e porque se encaixa perfeitamente no con­texto (cf. M. Dahood, The Phoenician, 270, que se apóia na autoridade de L. W. Batten; Ch. F. Whitley, Koheleth, 270).“o que se plantou”: nós o mantemos como autêntico apesar de romper o ritmo e de muitos autores se manifestarem contra. G. R. Driver crê que natua‘ é uma glosa marginal que passou ao texto da seguinte maneira: “netoa‘, vocalizado erroneamente natua‘ como um particípio, é acrescen­tado como forma alternativa ao inusual infinitivo ta‘at ‘plantar’ (Ecl 3,2)” (Gloses in the Hebrew text of the OT, em: L’Ancien Testament et VOrient, OrBibLov [Lovaina, 1957], 131). Outros simplesmente o suprimem sem dar explicações.4b Em todo o poema 3,1-8, este versículo 4b e v. 5aß’ são os únicos em que os infinitivos não vão precedidos da preposição le. Não é preciso re­correr a explicação especial, pois, como escreve Ch. F. Whitley: “A cons­trução é a do infinitivo constructo com significado de gerúndio Iplangendi... saltandi]” (Kohelet, 31).

5 “jogar pedras”, “recolher pedras”: outra vez a mudança de ritmo é moti­vo para que alguns considerem dupla glosa as “pedras”. O sentido, po­rém, exige o complemento e assim distingue o próprio verbo haslik no v. 5b e v. 6b (cf. A. G. Wright, For everything, 322).“abster-se do abraço”: lit. “abster-se de abraçar”. Por alguns se conside­ra glosa a segunda parte da sentença: mhbq (cf. G. R. Driver, Glosses, 133); mas não o cremos provado.

3,1-8. Disseram-se e escreveram-se muitas coisas sobre este magnífi­co poema e todas com razão. Umas exaltam seu conteúdo,6 outras sua for­ma e estilo.7 O poema tem consistência por si mesmo como reflexão ampla

6"Uma grandiosa e sugestiva visão universal” (A. Bonora, Qohelet, 66).7"A forma da perícope... estilisticamente está cinzelada magistralmente” (A. Lauha, Kohelet, 63).

Page 213: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

e profunda acerca da vida humana. Por isso alguns opinam com funda­mento que pode ter tido existência própria e independente do lugar em que atualmente se encontra.8 Em todo caso, o contexto atual é o que nos interessa e que determina o sentido do poema.9

Em primeiro lugar, convém recordar a função estrutural do poema em todo o bloco 1,3-3,15: 3,1-8 corresponde a 1,4-11, emoldurando dentro de si a unidade 1,12-2,26;10 serve, de mais a mais, como introdução à per­gunta programática em 3,9. Em si mesmo, o poema está construído segun­do plano preconcebido?11

Parece que se conseguiu entre os autores acordo explícito ou tácito ao admitir que 3,1 formula uma espécie de tese que depois se desenvolve em 3,2-8. Quanto ao modo do desenvolvimento, Qohélet aplica um método que lhe é muito familiar, o dialético, que, além disso, conforma-se com a realidade mesma. No poema sucedem-se em cascata 14 pares de situações ou de ações antitéticas. E evidente que “a enumeração não faz menção de todas as possibilidades da vida humana”,12 mas também o é que “o elenco é emblemático e simbólico”,13 de nenhuma maneira casual. Existe uma antiga e ininterrupta tradição literária, bíblica e extrabíblica, que gira em torno do valor simbólico do número sete e de seus múltiplos.14 No presente poema, o simbolismo recai sobre o 7, seus múltiplos 14 e 28, e o 4 (4 x 7 = 28), com o que certamente o autor pretende dar uma sensação de plenitu­de, totalidade, ordem e perfeição.15

8Cf. A. G. Wright, For everything, 327; G. Ogden, Qoheleth, 52. Ainda se poderia discutir se o poema deve-se atribuir ao próprio Qohélet ou ele o recebeu da tradição sapiencial. Mas essa distinção é inútil, pois, pelo que tudo indica, leva-nos a beco sem saída (cf. W. J. Fuerst, The Books, 113).

90 problema da dependência ou independência de Qohélet das culturas circundantes, especial­mente da helenística, aguça-se nessa passagem 3,lss. J. R. Wílch escreve: “A realidade simples e clara é que Qohélet não mostrou aqui nem em outra parte prova de qualquer influência da filosofia da Grécia” (.Time and event, 122), e apóia-se em O. Loretz (cf. Qohelet, 56) e em R. Gordis (cf. Koheleth — the man, 51-58). Em favor da influência grega pode-se consultar R. Braun, Kohelet, 85s e J. de Savignac, La Sagesse, 318.

10Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 83.11 A. G. Wright crê que sim, mas “não foi descoberto até agora” (For everything, 321). J. A. Loader

crê, porém, ter descoberto a chave secreta da forma quiástica segundo a qual se concebe o poema: o desejável — o indesejável-, ele fala de “um soneto”, ainda que não no sentido literário convencional (cf. A “sonnet" [1969] e Polar [1979], 10-13, onde confirma em sua tese e rejeita o ataque da parte de R. Braun (Kohelet, 88); cf. também D. Michel, Untersuchungen, 54-55.

12D. Lys, UEcclésiaste, 313.13A. Bonora, Esperienza, 174.uCf. especialmente R. Gordis, Koheleth — the man, 229; D. Michel, Untersuchungen, 54-55.15Como faz notar L. Alonso Schõkel (Eclesiastés, 29), Ruben Dario colige seis dos binários do poe­

ma de Qohélet em seu soneto Gaita galaica:“Canta. Es el tiempo. Haremos danzar al fino verso de rítmicos pies.E nos lo dijo el Eclesiastés:tiempo hay de todo: tiempo hay de amar,tiempo de ganar, tiempo de perder,

Page 214: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

1. O versículo propõe a tese de todo o poema: “Tudo tem seu tempo e ocasião”.16 A intenção do autor de abarcar em sua reflexão a totalidade da realidade ao alcance de sua mão: “Todo assunto sob o sol”, é manifesta. Estrategicamente utiliza duas vezes a expressão para tudo (lakol, 1‘kol).11 Se é verdade que a experiência de Qohélet, como a de todo homem, é muito limitada no tempo e no espaço, implicitamente faz uma extrapolação, ou seja, aplica de fato um método que consagrarão mais adiante os filósofos de ofício.

Uma hora, um tempo. Ver em primeiro lugar a nota filológica. As duas expressões têm que ver com o tempo, embora não no sentido ocidental de tempo histórico, a modo dé duração que flui, que corre, que passa, ou que está por chegar. A verdade é que não é fácil captar os matizes de uma e outra expressão, razão por que a maneira de falar dos autores parece um verdadeiro aranzel, passando-se insensivelmente de um a outro conceito. O que tampouco é de estranhar, pois se confessa que são sinônimos ou quase.

A doutrina de que a cada coisa corresponde um tempo adequado é muito mais antiga que Qohélet; em certo sentido, é universal, como as doutrinas sapienciais autênticas.18 Mas sobre este “tempo adequado”, so­bre essa “ocasião oportuna” o homem não tem poder algum, faz parte da criação exterior e superior ao homem.

Está, pois, o homem irremediavelmente submetido a uma força exte­rior que o determina a todo momento? Sabemos que sobre o fatalismo e determinismo se disseram coisas contraditórias.19 A maneira de falar de Qohélet, tão imprecisa nos conceitos que perfilamos tanto filosófica como teologicamente, presta-se a esses juízos contraditórios. Todavia, nós pre­ferimos alistar-nos entre os autores que ainda concedem a Qohélet a opi­nião de que o homem pode e deve às vezes determinar o curso de sua existência.20

tiempo de plantar, tiempo de coger, tiempo de llorar, tiempo de reír, tiempo de rasgar, tiempo de coser, tiempo de esparcir y de recoger, tiempo de nacer, tiempo de morir”.

16Esta é a versão de L. Alonso Schükel do v. la.17Para tudo há uma hora, um tempo para tudo...; a composição é perfeita, bem elaborada, acres­

centando um complemento que delimita com clareza o âmbito deste tudo.18"A doutrina do tempo oportuno de uma ação constitui lugar comum da sabedoria clássica”, a

israelita por certo (D. Michel, Untersuchungen, 53), também a não-israelita: cf. Bo Isaksson, Studies, 177; O. Loretz, Qohelet, 200.252s (oriental); H. H. Schmid, Wesen, 33s (Egito); R. Braun, Kohelet, 86.88 (Grécia); Horácio diz: “Buscarei as ocasiões propícias (têmpora)” (Sátiras, I, 9,58).

19Veja-se Introdução III.2.5 e III.3.20Assim o crê também K. Galling, que escreve: “Koh 3,1 diz: ‘Cada coisa tem sua hora (/man) e

cada projeto sob o céu tem seu tempo’ (...) O homem indivíduo... jamais pode evitar decisões concretas em sua vida terrestre (ou seja, sob o céu). Ele pode, por exemplo, num kairós determinado, “calar”

Page 215: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O homem não pode senão estar à espreita para que não se lhe escape a ocasião quando chegar e aproveitar-se dela na medida de suas possibili­dades.21 Num primeiro momento, as possibilidades do homem parecem ser suficientes para chegar a conhecer “a hora” e “o tempo” de cada coisa. Isto é, pelo menos, o que se desprende de toda a tradição sapiencial em que se inspira o poema. Num segundo momento, o próprio de Qohélet, será lançada por terra qualquer esperança que o homem tenha se forjado a esse respei­to (cf. 3,9ss). Ainda que essa visão pessimista seja compensada com uma interpretação densamente teológica (cf. 3,10-15).

Tinha Qohélet consciência do sentido da história? Que a tivesse do tempo, é claro que sim, e suas reflexões sobre o tempo oportuno dão mos­tra disso. Mas o sentido da história requer ademais uma reflexão especial sobre os acontecimentos mesmos e sobre as relações mútuas entre eles, e entre o passado e o futuro.22 Contentemo-nos com que tinha uma consciên­cia lúcida do que ocorria a seu redor, que conhecia as tendências de seus contemporâneos (os sábios especialmente) e suas ingênuas projeções para um futuro melhor, mas com uma visão realista (histórica por estar funda­da na experiência histórica?) que o fazia ver o futuro antes obscuro.

Para a expressão sob o céu ver o que se disse a propósito de 1,3.2. Começa o desenvolvimento do princípio geral ou da tese que o au­

tor estabeleceu no v. 1; este desenvolvimento ou explicação prolongar-se-á até 3,8 inclusive. O elemento formal de que se serve o autor para unir o v. 2 com o v. 1 é o vocábulo let: tempo, o mesmo que, repetido anaforicamente 28 vezes, dá coesão interna à perícope inteira do poema 3,1-8.

Metodologicamente, o autor recorre ao emprego reiterado das antí­teses, cuja familiaridade recordamos na introdução particular a 3,1-8. A primeira das antíteses, a do v. 2a, é a de nascer — morrer, a mais ampla e radical de todas. Não existe mais que um tempo para nascer e um tempo

somente ou ‘falar’. Mas, já que não conhece de antemão a hora oportuna (...), isso se converte para o indivíduo em tribulação que alcança o total de sua existência” (Das Ràtsel, 2; cf. também Der Prediger, 93-94.

2lA formulação hebraica: le com dativo (para...), expressa muito bem a idéia de passividade, não de domínio por parte do homem, razão por que se pode deduzir com certa probabilidade a convicção teológica que formula A. Neher: “O tempo é um dom..., jamais o tempo é criado pelo homem, vem-lhe de fora, é-lhe oferta” (Notes, 104; citado por D. Lys em UEcclésiaste, 311). Para G. von Rad, porém, a “relevância teológica [de 3,1-8], como a de muitas outras doutrinas da sabedoria antiga, é completa­mente nula” (Sabiduria, 329); o que, pelo menos, é muito discutível, levando em conta todo o contexto, como veremos mais adiante.

22Também sobre isso há opiniões contraditórias. G. von Rad afirma por um lado: “O pensamento de Qohélet é inteiramente a-histórico” (Teologia dei Nuevo Testamento, 550). K. Galling por sua vez: “Dentro do Antigo Testamento, ou seja, da‘sabedoria veterotestamentária, Kohélet... é o primeiro que descobriu e tratou tematicamente da historicidade da existência — in tormentis — “Das Ràtsel, 1). Provavelmente se deverá ficar no termo médio: nem tão a-histórico nem tão tratadista da historicidade humana.

Page 216: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

para morrer, e sobre eles o homem não tem nada a fazer.23 Ao nascer o ser vivo (em nosso caso se supõe que é o homem) começa sua carreira, abre-se à vida, à existência, à esperança; ao morrer chegou ao termo de seu cami­nho, cessam a vida, a existência, e com ela toda esperança.

Podem-se dar, e de fato se dão, atitudes contraditórias diante da radicalidade da existência do homem, demarcada por esses dois limites infranqueáveis: o nascimento e a morte. Depende em grande parte do ponto de vista que se escolhe: não é o mesmo analisar o fato da existên­cia do ponto de vista da vida que surge e se recebe, como do ponto de vista da morte que frustra todo projeto, porque aniquila de um sopro a própria existência. Se a morte é um muro que está aí firme, alto e frio no ocaso da vida, sua sombra alarga-se tanto que tudo entenebrece fatalmente. Mas o crente pode confessar ao Senhor com o salmista: “Meus tempos (‘ittotay) estão em tuas mãos” (SI 31,16), o tempo de nascer e o tempo de morrer; razão por que surge espontaneamente o sentimento de confiança ape­sar de nossa impotência e ignorância. Qohélet limita-se a afirmar sobria­mente que tanto o nascer como o morrer têm seu tempo definido. Por ora não nos desvela mais nem o nascer nem o morrer nem do que ele sente ou não sente acerca disso; em outras passagens sim nos dirá algo mais (cf.3,19-21).

Entrementes, parece que ao autor é indiferente qualquer outra matização, pois continua imperturbável em sua cantilena. Anteriormen­te dissemos que não parecia que o autor pretendesse fazer uma enu­meração exaustiva das atividades e ocasiões que se podem apresentar durante uma vida humana; isso é simplesmente impossível. O autor limi­ta-se a fazer menção de 28 situações antitéticas, repartidas em dois tur­nos de sete pares. Não temos porque buscar uma ordem determinada, pois não creio que o tenha pretendido o autor. Só parece que foram esco­lhidos com toda intenção a primeira antítese: nascer — morrer, por seu valor de totalidade, e a última do v. 8b: guerra — paz, como explicaremos em seu lugar.

Das alturas da antítese totalizante nascer — morrer o autor desce a um caso particular ilustrativo como o de plantar — colher, que é uma espécie muito concreta de nascer e morrer, já que se trata de antítese que faz parte da esfera dos vegetais, muito afim também com a cultura rural, meio natural da sabedoria mais original (cf. também v. 5a). No meio rural qualquer agricultor medianamente experto sabe perfeitamente que nem

23Falamos da normalidade (ponto de vista de Qohélet), não dos casos extraordinários do assassí­nio ou do suicídio. Nesse sentido é válida a sentença de A. Lauha: “O tempo é soberano, o homem seu escravo” (Kohelet, 65); cf. também com certos reparos G. von Rad, Sahiduría, 289.

Page 217: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

todo tempo é apto para todos os trabalhos do campo: um tempo é bom para plantar, e outro tempo o é para fazer a colheita.24

3. Do meio pacífico, idílico e rural do v. 2 passamos de modo brusco ao borrascoso da vida social, onde se geram tantos conflitos. Porque o v. 3a refere-se à morte violenta, naturalmente de seres humanos, seja em tem­pos de guerra, seja em tempos assim chamados de paz.

O autor não pretende filosofar, nem falar da cátedra para estabecer princípios gerais, nem sequer de moral; ele constata fatos, ainda que ge­neralizando. Por isso não é necessário dramatizar ainda mais, afirmando que “é terrível pensar que os assassínios têm seu tempo assinalado”.25 É um fato que os homens nos matamos uns aos outros; isso é terrível, mas a história está aí e não podemos mudá-la nem dizer que isso só é próprio dos tempos bárbaros. Em nossos dias também continua-se matando, terrivel­mente matando, a sangue frio e a sangue quente, de todas as formas. A barbárie dá-se entre nós. E não só se mata, também se deixa morrer, o que muitas vezes, nem sempre, é o mesmo.

Como antítese de matar o autor escolheu sanar-}6 também há um tem­po para sanar. Este é o lado bom da humanidade, que é o mesmo que dizer de cada homem em concreto. Porque se é verdade que o homem mata seus semelhantes, também é que o homem tenta curar e procura a saúde, a vida, o bem para seus semelhantes. Paradoxalmente, às vezes o homem que mata, que fere, é o que cura a ferida, o que sana. Se para esse homem houve, infelizmente, um tempo para matar ou ferir, em que matou e feriu, também felizmente há outro tempo para ele em que pode remediar o mal feito e assim curar e sanar. Em todo caso, o normal é que uns homens sejam os que ferem e matam e outros os que tentam curar e sanar.

Quanto à segunda antítese do v. 3: destruir — edificar, o sentido é óbvio. Neste caso, o paralelismo com o v. 3a é sinonímico e a antítese per­feita. Talvez esteja o autor pensando no tempo de guerra: tempo de des­truição, e no tempo da paz: tempo de construção, com referência explícita aos edifícios ou lugares onde o homem costuma habitar. Nos tempos de Qohélet podiam-se ver ruínas abandonadas de cidades que tinham sido famosas no passado, e cidades novas, edificadas junto daquelas ruínas ou sobre elas. Assim podia chegar à conclusão que o homem em seu quefazer

24Confirmamo-nos na escolha de colher ou fazer a colheita do que foi plantado, em vez de arrancaro que foi plantado, porque, falando em geral, o ciclo agrário é: semear (ou plantar) — colher, não semear (ou plantar) — arrancar o que foi plantado.

25L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 29.26A antítese não é de todo perfeita. A matar ou tirar a vida se deveria opor ressuscitar, voltar a dar

a vida; mas isso não está nas mãos do homem (esfera das reflexões de Qohélet). Por isso sanar, que na verdade pode fazer o homem, é suficientemente antitético de matar.

Page 218: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

histórico não faz senão repetir a mesma atividade: fazer — desfazer — para voltar a fazer o desfeito: nada é novo sob o sol.

4. O v. 4 não tira o homem da convivência social, mas no-lo mostra com seus sentimentos mais profundos como indivíduo e como membro de uma família, de um clã. O indivíduo humano manifesta as duas caras passivas mas significativas de sua vida interior: a tristeza e a alegria,27 com suas manifestações externas: o choro e o riso (primeira antítese no v. 4a), o luto e a dança (segunda antítese no v. 4b). O paralelismo nos dois hemistíquios e as antíteses em cada um deles provavelmente são os mais perfeitos do poema: chorar— rir I fazer luto — dançar.28

Segundo a expressão utilizada pelo autor, não existem razões obje­tivas nem para limitar o luto e a dança à esfera do cultual,29 nem para excluir a dança do culto e relacioná-la unicamente aos acontecimentos festivos profanos, como as bodas.30 O v. 4b pode referir-se tanto ao culto sagrado como às festas profanas em toda sua amplidão. Para Qohélet não existem parcelas assinaladas nem para o sagrado nem para o profano, como teremos oportunidade de ver mais adiante.

5. Estamos ainda na esfera social, sem que apareça razão ou causa alguma porque ocupa o v. 5 este lugar na enumeração. As antíteses no v. 5a {jogar pedras — recolher pedras) e no v. 5b (abraçar — abster-se do abraço) são perfeitas. O movimento que sugerem os verbos é centrífugo no v. 5acx (jogar) e centrípeto no v. 5aß (recolher), e inverso no v. 5b, a saber, centrípeto no v. 5ba (abraçar) e centrífugo no v. 5bß (abster-se de - rejei­tar); por essas razões, o paralelismo entre um e outro hemistíquio pode-se considerar antitético: a jogar corresponde abster-se (rejeitar) e a recolher, abraçar.

São muitas as sentenças que se deram a propósito do versículo 5 em seus dois hemistíquios.31 No v. 5a pode-se interpretar de muitas manei­ras, mesmo no caso em que nos restrinjamos ao sentido literal de suas palavras. A primeira interpretação que consignamos tem reminiscências bíblicas, pois recorda a passagem de 2Rs 3,19: “Enchereis de pedras os melhores campos” para inutilizá-los; corresponderia ao nosso v. 5aa. O recolher as pedras seria a operação prévia necessária para poder voltar a

27No v. 8a aparecerão as outras duas faces ativas que impulsionam o homem em todo o seu proce­der: o amor e o ódio.

28Essa perfeição objetiva do conteúdo vai acompanhada, porém, de uma exceção formal bastante saliente no v. 4b, como já indicamos na nota filológica: os dois infinitivos (s'-pod: fazer luto e r*qod: dançar) não vão precedidos da preposição le, ainda que essa carência não concirna ao significado.

29Como crê D. C. Siegfried (cf. Der Prediger, 39).30Assim opina H. W. Hertzberg (cf. Der Prediger, 104).31Um resumo da variedade de sugestões entre os autores pode-se ver em A. G. Wright, For everything,

322 e em J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 94-95.

Page 219: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cultivar os campos devastados pela ação do inimigo. Mas a probabilida­de de que Qohélet esteja pensando numa razia desta natureza é quase nula.

Outros pensam na ação de desescombro (jogar pedras) e na de empilhamento de pedras (recolher...) como materiais de construção, traba­lho também muito comum em todos os povos e tempos.

A meu ver, a interpretação mais provável é a que relaciona o jogar e o recolher pedras com os trabalhos de preparação dos campos de trabalho, sem nenhuma alusão a ato bélico devastador. Limpa-se o campo de pedras (cf. Is 5,2), empilhando-as em montes ou muros (cf. Os 12,12), ou forman­do paredes de contenção em terrenos muito íngremes.32

Não podemos passar por alto a interpretação em sentido figurado, ainda que lhe atribuamos probabilidade baixa. Essa interpretação tem um representante muito antigo no Midrash de Qohélet. R. Gordis a faz sua e a explica assim: “ ‘Jogar pedras’ emprega-se simbolicamente da união sexual; a ‘reunião de pedras’ da abstinência. O Midrash (Qoh. Rabba, ad loc.) entendeu com toda a clareza a passagem assim... ‘um tempo para jogar pedras — quando tua esposa está pura (menstrualmente), e um tempo para reunir pedras — quando tua esposa está impura’ ”.33

O v. 5b foi interpretado por muitos com toda normalidade da intimi­dade conjugal, da consumação do ato conjugal por excelência e de sua abs­tenção.34 Precisamente o v. 5b serve de fundamento para a interpretação em sentido figurado do v. 5a. Mas não creio que tenhamos que excluir uma explicação mais ampla ainda, como é o costume de abraçar-se entre fami­liares e amigos em muitas ocasiões.

6. Na construção estilística do v. 6 continua a série perfeita de antíte­ses e volta o paralelismo sinonímico dos hemistíquios: buscar — perder (v.6a); guardar — tirar (v. 6b). Como podemos ver, o autor desce às ações mais normais da vida quotidiana.

Tempo para buscar o que se tinha e se perdeu ou extraviou, como faz o pastor que vai em busca da ovelha extraviada ou a mulher que busca a dracma que se perdeu (cf. Lc 15,4-9).35 Tempo para perder: Seja por inad­vertência ou desvio, seja por negligência. Não cremos que o autor se incli­

32Cf. H. W. Hertzberg, Palästinische, 67; Der Prediger, 104s. Pouca ressonância teve a opinião de K. Galling que aplicou o v. 5a à atividade comercial de “compra e venda” (cf. Das Rätsel, Der Prediger, 94s). Sobre outras aplicações das pedras, como que para tirar sorte ou para alguma espécie de jogo, cf. L. Alonso Schõkel, Èclesiastés, 29; A. G. Wright, For everything, 322.

33Koheleth — the man, 230. Assim pretendeu J. Pedersen, Scepticisme, 351 nota 23; N. Lohfink, Kohelet, 32a.

“ Cf. S. Jerônimo, Commentarius, 275.35Não parece aceitável a interpretação subjacente à Vg: tempus acquirendi; trata-se de buscar,

não de adquirir posse.

Page 220: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ne, mais por um extremo que por outro, pois, como afirmamos anterior­mente, Qohélet no poema é asséptico quanto ao moral.36

Um tempo para guardar: Todo tempo é bom e adequado para reser­var, para custodiar algo de valioso, de maneira especial no tempo da abun­dância para outros tempos piores (recordar o conselho de José ao Faraó do Egito em Gn 41,33-36). Um tempo para tirar: A guardar opõe-se o não- guardar porque se consome, se dá ou se dissipa indevidamente. Nesta última possibilidade parece que está pensando o autor. Seria algo assim como fez com seus bens o filho menor da parábola (cf. Lc 15,13).37

7. Parece que as antíteses do versículo 7 são claras: A rasgar corres­ponde costurar, a calar, falar-, bastante discutível é a relação entre o v. 7a e o v. 7b: Tudo depende se tanto 7a como 7b se referem aos ritos costumei­ros em torno do culto.38

Um tempo para rasgar: Existe um costume, atestado desde muito tem­po, de rasgar a veste ou parte dela por ocasião de uma desgraça, ou como sinal de grande aflição (cf. Gn 37,29.34; Jz 11,35; 2Sm 13,31; Jó 1,20; 2,12). Quase com toda segurança o autor tem presente esse costume no v. 7a. É lógico que a esse rasgar a veste siga o costurar.:39 Independentemente des­se costume, tanto rasgar qualquer tipo de tecido ou pano que seja, como costurar, podiam dar-se freqüentemente na vida ordinária, e não se pode excluir que o autor pensasse também nessa circunstância do tempo para rasgar e costurar.

Um tempo para calar: E certo que não falar pode relacionar-se com uma grande pena e com o luto; assim se manifestam Jó e seus amigos durante sete dias e sete noites (cf. Jó 2,13). Mas o mais normal no caso de um grande pesar e, em concreto, da morte de um ser querido, é que a dor se manifeste estrondosamente com ais, gritos e choros (cf. Gn 27,34; Jó 7,11; SI 55,18; Jr 31,15; Mq 1,8, etc.). Sendo assim, o mais provável é que o autor não se refira com esse calar a nenhum silêncio ritual, mas ao silên­cio prudente que é necessário guardar em muitas ocasiões, como nos reco­mendam os sábios. O mesmo deve-se dizer do falar segundo paradigma que os sábios têm do homem perfeito quanto ao uso da palavra.40

36H. Hutchinson faz uma série de reflexões muito atinadas e profundas acerca do saber perder na vida, como se se tratasse de desporto. As reflexões são legítimas, mas vão além da exegese propria­mente dita (cf. Are you a good loser?, ExpTime 90 [1979] 336-338).

37Com muita facilidade pode-se aplicar este v. 6b ao nosso tempo em que se dão juntamente o desperdício que fere e insulta com a carência mais absoluta do necessário para viver.

38R. Gordis dá-o como provável (cf. Koheleth — the man, 230s), A. Lauha por sua vez prefere negá- lo (cf. Kohelet, 67).

39Parece que se supõe isso na Mishná (cf. Sanedrín 7,5 e Sábado 13,3).40Cf. Ecl 5,1.5: 10,12; Pr 11,12; 15,23; 16,13; 22,11; 23,9.16; 26,4s; 29,20; Eclo 6,5; 7,14; 8,1-5;

20,1.5-8.18; 21,26 etc.).

Page 221: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

8. Termina o autor a série de antíteses com as duas do v. 8, que são também perfeitas em sua correspondência: amar — odiar / guerra-paz, criando um paralelismo antitético com os dois hemistíquios: com amor (8aa) faz jogo paz (8bß) e com odiar (8aß), guerra (8ba). A mudança na ordem do v. 8b foi, sem dúvida, propositada para terminar a série com um conceito positivo como o da paz.

Um tempo para amar... odiar. Os dois extremos mais distantes nos sentimentos humanos e os mais eficazes tanto para as coletividades como para os indivíduos.

Um tempo para a guerra... a paz: E a única antítese das 28 do poema em que o autor não utiliza a forma verbal, mas a nominal. Por quê? E recurso meramente estilístico ou a forma substantiva tem mais força ex­pressiva numa formulação proverbial como esta? Em todo caso, infeliz­mente, temos que constatar que a história humana está balizada por tem­pos excessivos de guerra, de sorte que as histórias escritas parecem mais histórias de guerras e batalhas que de gestas pacíficas.

A bela palavra paz (shalom) encerra o poema, palavra de sentido in­teiramente positivo, carregado de insinuações, ainda que não chegue a alcançar as altíssimas cotas de outras passagens da Sagrada Escritura como Is 52,7; 66,12; SI 85 e a descrição da paz messiânica em Is 11,1-9, sem mencionar a paz explicitamente. Mas também não se opõe a eles, se bem que Qohélet não saiba sonhar, como demonstrará imediatamente a partir de 3,9.

No princípio dizíamos que sobre o poema tinham-se dito e escrito gran­des elogios. Não podemos negar que o autor exige uma técnica estilística muito depurada e que o conteúdo situa-se à mesma altura literária.

E verdade que “nessa série de máximas o Eclesiastes recapitula mui­tos séculos de sabedoria”.41 Foram necessárias muitas observações dos sá­bios sobre a realidade humana e história antes que um deles estabeleces­se “a lei dos momentos”.42

4.2. Repetição da grande pergunta: 3,93.9 Que ganho tem o trabalhador com suas fadigas?“o trabalhador”: lit. “o que trabalha, o que age, o que faz algo”, como particí-pio que é. “com suas fadigas”: lit. “com o que ele se afadiga e se afana”, cf. 1,3.Chamamos 3,9 de a grande pergunta, porque, sendo exclusiva de

Qohélet, até agora a utilizou para que seu discurso adquira o tom seria-

41G. von Rad, Sabiduría, 329.42Com efeito, B. Pennacchini escreve a propósito de 3,2-8: “E a lei dos momentos. O fato de tudo ter

seu tempo, também é fundamental no sistema de Qohélet. O homem só pode fazer o que fizeram outros homens. Todavia, ele não sabe qual será a sucessão desses momentos” (Qohelet, 504).

Page 222: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mente cético que o caracteriza e o distingue radicalmente de todos os ou­tros sábios que o precederam (cf. 1,3 e 2,22).

Depois de poema tão brilhante e tão na linha da sabedoria tradicio­nal, surge “a pergunta cético-retórica”, como a chama D. Michel, pondo em tela de juízo o que parecia aquisição definitiva da sabedoria.43 Se tudo tem seu tempo definido anteriormente ao homem e independentemente dele, que sentido pode ter que o homem trabalhe, se afane e se afadigue? Sabemos já que a resposta de Qohélet à sua pergunta é muito negativa (cf.2,20-23). Por que a repete de novo? Certamente não podemos nos esquecer da função estrutural da pergunta, pois 3,9 corresponde a 1,3 e forma uma magnífica inclusão.44 Sem negar importância a este motivo estilístico, po­demos apontar agora outra razão, também de ordem literária, que, unida ao motivo anterior, explique com plena satisfação a repetição da grande pergunta: 3,9 serve de introdução a 3,10-15, que é a resposta teológica de Qohélet à sua grande inquietude como sábio e como crente.

4.3. Reflexões teológicas de Qohélet: 3,10-153,10 Observei a tarefa que Deus impôs aos homens

para que com ela se atarefem.11 Tudo ele fez belo a seu tempo.

Também pôs a eternidade em seu coração.Sem que o homem possa abarcar as obras que Deus fez de princípio a fim.

12 Compreendi que não há nada melhor para eles, senão alegrar-se e passar bem em sua vida.

13 Mas também que coma o homem e beba e desfrute de todo o seu trabalho é dom de Deus.

14 Compreendi que tudo o que Deus faz, durará para sempre.Nada se lhe pode acrescentar e nada se lhe pode tirar.Assim Deus fez para os que o temerem.

15 O que foi já foi, e o que será já foi;Deus vai em busca do passado.

10 “aos homens”: lit. “aos filhos do homem”.11 “Tudo ele fez belo a seu tempo”: Ch. Whitley crê que esta cláusula “ou

está mal colocada [e seu lugar próprio seria no final do v. 8] ou é acrés­cimo do editor” (Kohelet, 33 nota 27); mas este recurso não é válido porque unicamente pretende eliminar a dificuldade de interpretação sem nenhuma base textual, “a seu tempo”: o seu é ambíguo tanto em português como no hebraico; be‘itto refere-se ao “tempo” de Deus ou ao “tempo” de cada uma das coisas, incluídas no “todo” e enumerado em parte em 3,2-8? A solução só a pode dar a exegese, que neste caso con-

43São extremamente pessimistas as interpretações dos autores; cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 229; G. von Rad, Sabiduría, 329s; D. Michel, Untersuchungen, 57.

44Cf. a introdução a 3,1-15 e A. Fischer, Beobachtungen, 86.

Page 223: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tinua sendo duvidosa e ambígua (cf. S. Holm-Nielsen, The Book, 76; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 166b).“a eternidade”: ha‘olam criou tantas dificuldades na interpretação que com freqüência se recorreu à correção do TM (‘ml por ‘Im: cf. A.S. Kamenetzky, ZAW 24 (1904) 238; H. G. Mitchell, Work, 128s; BHS), ou à mudança no significado etimológico (cf. M. J. Dahood, Canaanite- Phoen., 206; Qoheleth and Northwest, 353s; L. Gorssen, La cohérence, 293s), ou na vocalização dos Massoretas (cf. A. B. Ehrlich, Randglosen,66). Para todos estes caminhos e outros pode-se ver um compêndio em O. S. Rankin - G. G. Atkins, The Book, 48s; E. Jenni, Das Wort, 25. A maioria, porém, retém que o TM como está, ainda que não haja conver­gência na interpretação de ha‘olam.“em seu coração”: segundo o TH; bHibbam sem nenhuma mudança, tem como antecedente os homens de 3,10. K. Galling propõe ler bo ou bHibbo (nele ou em seu interior), referindo-se a hakol no início do v. 11. Muitos opinam com K. Galling, admitindo também a correção do TH, outros admitem sua versão sem necessidade de corrigir o Texto (cf. K. Galling, Der Prediger, 93; Das Rätsel, 4; E. Jenni, Das Wort, 26s: “por falta de outra solução melhor”).“sem que” é o significado que mais comumente se dá à expressão müfli bsher, reforçada aqui por uma segunda negação lo’ (cf. Ges.-K., 152y; Bo Isaksson, Studies, 180s; F. Piotti, Osservazioni [1978], 171). “o ho­mem”: singular coletivo (cf. 3,10) pelo que no v. 12 uma vez mais se utiliza o sufixo do plural (para eles) e outra no singular (em sua vida), “as obras que Deus faz”: lit. “a obra que Deus fez”.

12 “para eles”: lit. “neles” (bam). Não estamos de acordo com a opinião de R. Gordis que considera bam como produto de uma ditografia e preferi­ria suprimi-lo (cf. Kohleth — the man, 232).

13 “o homem”: lit. “todo homem”, “é”: em hebraico é o pronome pessoal da 3® pessoa singular feminino Qii’) com a função de cópula; (cf. P. Joüon, 154i; M. J. Dahood, Canaanite-Phoenician, 197).

14 “que o temerem”: lit. “de sorte que temam em sua presença”.15b Chama a atenção a expressão hebraica ’et-nirdap. Como escreve M. J.

Dahood: “Segundo as regras da sintaxe hebraica, o artigo definido de­veria ser usado com nomes comuns introduzidos pela nota accusativi” (Canaanite-Phoenician, 198). A ausência do artigo é explicada por ele por influência fenícia; no entanto, tampouco é necessário recorrer ao fenício neste caso (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 234; D. Michel, Untersuchungen, 74).

3,10-15.É muito digno de levar-se em conta que nos poucos versículos desta secção apareça seis vezes Deus: Hohim (3,10.11.13.14 xx.15). “Disso se pode deduzir que aqui se encontra uma das reflexões teológicas mais densas do livro de Kohélet”.45

45A. Fischer, Beobachtungen, 84.

226

Page 224: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Não parece que o parágrafo ou perícope tenha existido independente deste lugar, o que significa que foi composto explicitamente para comple­tar e explicar 3,1-9.46 Divide-se claramente em três partes, a saber: 3,10­11; 3,12-13 e 3,14-15. Cada uma dessas partes começa com um verbo de observação na primeira pessoa, típico de Qohélet: ra’iti ki (v. 10), yada’ti (w. 12 e 14). A primeira (w. 10-11) tem fundamentalmente a Deus como sujeito e o homem como termo pessoal da ação divina; na segunda (w. 12­13) o centro da atenção é o homem com uma referência final muito impor­tante a Deus; o homem já só aparece implícita e secundariamente. Estas três partes correspondem-se quiasticamente com o precedente: 3,10-11 com3,1-8; 3,12-13 com 1,12-2,26, e 3,14-15 com 1,4-11, como veremos na expli­cação correspondente.47

3,10-11. Os dois versículos, entre o observei (ráiti) do início e o com­preendi (yada‘ti) do v. 12a, estão muito relacionados entre si, de forma que se devam considerar como uma pequena unidade. O v. 11 pressupõe o v. 10 (ver os antecedentes); o próprio Deus impôs (natan) aos homens uma tare­fa (v. 10) é o que também impôs (natan) o oíam em seu coração (v. 11).

10. Começa o autor a nova secção com o verbo próprio da atenção concentrada: Observei.48 O objeto dessa atenta observação é algo que já conhecemos e que Qohélet tratou antes em 1,13: a tarefa dada ou imposta por Deus aos homens. Aqui não a chama de triste tarefa, mas não se opõe a isso, já que no v. 11b vai confessar a frustração absoluta do esforço hu­mano diante da tentativa de compreender a obra de Deus. Por que repete Qohélet outra vez o mesmo tema? Não estranha que Qohélet se repita; antes, a repetição nele é recurso habitual.

Em 3,10, ademais, o contexto é novo. Não é a confissão particular de Qohélet (em 1,13), mas a reflexão teológica, também de Qohélet (na pri­meira pessoa), que serve de introdução à resposta que vai dar à pergunta feita em 3,9. Porque definitivamente a tarefa que pesa sobre os homens na realidade identifica-se com as fadigas de que nos fala 3,9.49

Ao afirmar Qohélet que essa tarefa foi dada e imposta por Deus a todo homem não faz senão repetir algo muito sabido em Israel desde tem­pos muito antigos: que tudo tem sua origem em Deus. Efetivamente, a Deus se atribuem aqueles sentimentos humanos que parecem mais opos­tos aos planos de Deus, dos quais unicamente são responsáveis os que os

460 ponto de união entre os poemas e as reflexões teológicas de Qohélet é precisamente o tempo do v. 11a (be‘itto).

4TVeja-se um quadro sinótico dessa correspondência quiástica em A. Fischer, Beobachtungen, 85.480 verbo ra‘ah (ver, observar atentamente) é predileto de Qohélet. Já o encontramos em 1,10.14;

2,13.24, e vamos encontrá-lo em 3,16; 4,1.4.7; 6,1; 7,15; 8,10; 9,11.13.49Isso parece mais claro aqui em 3,10 que em 1,13; ver o que se disse ao comentar 1,13.

Page 225: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

têm e os que os executam (cf. Ex 7,3: “Eu endurecerei o coração do Faraó”; 10,ls.20.27; 11,10; comparar 2Sm 24,1 com lCr 21,1). Portanto Qohélet está dentro do modo de pensar de Israel acerca de Deus.50 Como no caso do Faraó, permitir uma coisa, segundo nossa linguagem mais refinadamente teológica, ou o saber de antemão equivale a ordenar (cf. Ex 7,13s; 9,11.15; 9,12), assim em Qoh 3,10 (e em 1,13) impor uma tarefa é saber que a condição humana é essa, que Deus quis que o homem exista com todas as limitações próprias das criaturas.51

Mas as verdadeiras matiz ações a este respeito vai fazê-las o próprio Qohélet no versículo seguinte.

11. O versículo 11 pode compreender-se como esclarecimento oityoQ>- plemento do mais central v. 10, ou seja, da tarefa ou ocu pação do-jkoS òn? segundo o plano de Deus; nele se trata de ações divinas que dié^^eSjíei- to especial ao homem e das poucas ou nulas possibilidades \ ’inanas ape­sar disso.

Em si mesmo o v. 11 é muito importante. Algâèn/\^)ntele “o versículo- chave do livro”.52 Qohélet é um homem deve^^SttòfeeríH^s já vimos que não é muito efusivo nas manifestações de^ua^xE'sfe versículo, não obstante, é especial a este respeito, e ma« i ejA^rmos em conta o contex­to teológico em que se encontra.53 Mas ffii v rtãncia nem sempre acompa­nha a clareza, amiúde ocorre to< . c atfario como no caso presente.54

Qoh 3,11a nos recorda Gn l\è&petialmente Gn 1,31. Pelo que tudo indica, o mais provável é q^ê ó autôr tem presente Gn 1 ao formular sua sentença.55 Examin^mp&^pmayjja por palavra.

Tudo ocupa posiçao ehiaíica, o começo da sentença, como se o autor quisesse atrair a atenção do leitor. Ao dizer tudo não exclui nada, sem

h Lauha ao afirmar que Qohélet em 3,10 “descreve Deus como ser arbitrário. ú !, impôs Deus ao homem vima tarefa dolorosa” (Kohelet, 68).

^especulações dos modernos sobre o conceito de determinação e predeterminação de Jòí 3 et deve-se levar mais em conta a influência interna israelita que a externa grega

ífBraun, Kohelet, 117; cf. J. Stiglmair, Weisheit, 354).1 Bo Isaksson, Studies, 179.

> 53M. Schubert pode escrever: “Esta sentença [Qoh 3,11a] pode-se entender como a fórmula sintéti­ca ao mesmo tei o 1 rimeiro’ da teol de Kohélet. Todas as outras afirn teolicas no livro de Kohélet podem-se agregar fundamentalmente a Koh 3,11a” (Schõpfungstheologie, 125s).

M0 versículo é tão discutido que D. Michel chega a dizer que “sobre o v. 11 há quase tantas opi­niões quanto comentadores” (Untersuchungen, 58); O. S. Rankin e G. G. Atkins também escrevem que “este é o versículo mais discutido no Eclesiastes” (The Book, 46). Por isso se chama de “crux interpretum” (ver, por exemplo, R. Gordis, Koheleth — the man, 231; Bo Isaksson, Studies, 179; A. Lauha, Kohelet, 68; D. Michel, Untersuchungen, 58), e até “um sono de uma noite de Walpurgis” ou de bruxas (J. L. Crenshaw, The eternal, 28).

55Há contatos no vocabulário: tudo, fez e afinidades: yapeh (belo) por tob (bom), para evitar mora­lizar. Os autores que são desse parecer são legião. Alguns poucos negam que Qohélet sequer pretenda relacionar sua sentença com Gn 1, como, por exemplo, D. Michel, Untersuchungen, 60; ver também K. Galling, Der Prediger, 95.

Page 226: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

necessidade de ter que acentuar a presença do artigo hakkol.56 Não se pode pensar nada que escape à influência da ação de Deus.

Fez: Afirmação explícita de que Deus é criador.57 O verbo está no per­feito (.‘asah), mas deve-se evitar pensar que ação criadora de Deus só per­tence ao passado longínquo, ao princípio originário e temporal de todas as coisas. A ação de Deus é única e está acima do tempo. Para ele, portanto, não há nem passado nem futuro, tudo é presente. Por isso preferimos pensar que a expressão a seu tempo refere-se antes ao tempo das coisas que ao tempo de Deus, solucionando assim a dúvida que não pôde resolver a sintaxe.

Do v. llaa somente nos resta examinar o adjetivo belo. Este apelativo reflete certamente o modó tão particular que tem Qohélet de ver o criado por Deus. Não cabe a menor dúvida de que o juízo global de Qohélet sobre a criação de Deus neste momento de sua reflexão é positivo. Gn 1,31, onde segundo dissemos se inspira Qohélet, diz: “E viu Deus tudo Cet-kol) o que tinha feito (‘asah) e era bom (tob)”.

Por que Qohélet mudou o apelativo bom (tob) por belo (yapeh)? Creio que estaremos no rumo certo se afirmarmos que isso não foi por casuali­dade mas de propósito.58 Sendo assim, pode-se pensar com fundamento que Qohélet prefere um termo (yapeh) ao outro (tob) para que nem sequer exista a possibilidade de interpretar seu pensamento ética ou moralmen­te. Neste sentido, yapeh é termo muito apropriado, já que seu sentido ori­ginal e normal move-se na órbita da estética.59 Em favor dessa interpreta­ção devem-se citar todos os autores que traduzem yapeh por belo ou por conceito sinônimo.

A segunda parte de 3,11a diz: “Também pôs (Deus) o ‘olam em seu coração”. Como facilmente se pode perceber, o centro da atenção da sen­tença é o ‘olam, que é precisamente onde se encontra a máxima dificulda­de de interpretação do versículo, razão por que foi chamado de a “crux interpretum”.60

Antes de tudo é evidente que qualquer tentativa de solução deve le­var em conta o que parece que já é claro pelo contexto, ou seja, que o homem, ainda que tenha o ‘olam, não tem capacidade para compreender todas as obras de Deus.

Nossa interpretação de 3,llaß. Supostas as principais interpretações que os autores deram de Qoh 3,Haß, como se pode ver no Excursus VI, expomos agora nossa opinião. Creio que não é preciso demonstrar nem

560u seja, náo é preciso traduzir hakkol por q todo, como faz H. P. Müller, Theonome, 14.57Que Qohélet use ‘asah e náo bara’ depende provavelmente de que em Gn 1,31 está ‘asah e não bara’.58Pensamos como D. Michel que escreve: “Num homem que escolhe suas palavras tão cuidadosa­

mente como Qohélet devemos partir de que a escolha de yapeh em vez de tob foi propositada e visa a expressar matiz especial” (Untersuchungen, 60).

59Apesar da opinião contra de L. Gorssen em La cohérence, 292; cf. H. Ringgren: ThWAT III788-790.

Page 227: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

frisar que a chave da interpretação do v. 3,11 está em ‘olam. Os autores assim se manifestaram sem exceção. Daí se deduz com facilidade que ‘olam é algo muito importante e positivo. Que tenha sentido positivo somente o negariam os que traduzem ‘olam por escuridão, ignorância, e em parte somente os que preferem enigma ou coisas semelhantes. O sentido positi­vo de ‘olam prova-se em primeiro lugar de forma extrínseca pela autorida­de do número quase incontável de autores que assim se manifestam. O próprio texto já no-la indica: o advérbio também igam) conecta nosso versículo llaß com o v. llaa, todo ele positivo: Deus “tudo fez belo a seu tempo”, ademais pôs...61

O ‘olam foi posto por Deus no coração dos homens.62 Se no v. llaa descobrimos um Qohélet que afirmava sua fé em Deus criador de todas as coisas, no v. llaß aparece-nos como o crente num Deus que se acerca do homem; e intervém naquilo que mais pode influir nele e em seu destino. Deus dá o ‘olam ao homem e o dá livre e soberanamente, sem condição alguma.63

Em que consiste este dom de Deus ao homem, este ‘olam? Temos que levar em conta o que para um israelita é o coração64 para descobrir o que deve ser o ‘olam, já que Deus o põe nele. O sentido tem que ser metafórico, pois se refere ao homem como ser que busca sentido para as coisas (cf. v. 11b). Refere-se, sem dúvida, ao mais íntimo e central do homem tanto em seu aspecto noético e racional como no emotivo e afetivo. Isso quer dizer que não temos motivos para excluir nenhum aspecto da vida interior do homem, pois a priori a todos parece dizer respeito ao ‘olam.

Pelo ‘olam pode-se e deve-se relacionar o homem com Deus, já que ele é o beneficiário deste dom que provém de Deus somente. Pode-se relacio­nar o homem com Deus pela finalidade do 4olam? São tentadoras as sen­tenças de F. Delitzsch (‘olam = desejo de eternidade) e sobretudo as de R. E. Murphy e de A. Bonora, que desembocam na doutrina agostiniana de que o coração do homem, ou seja, o homem desde o mais íntimo de si mes­mo não pode encontrar sua completude e plenitude senão no próprio Deus. O ensinamento de Qohélet não voa tão alto nem chega tão longe. Ele move-

60Cf. Bo Isaksson, Studies, 179; D. Michel, Untersuchungen, 58.61W. Zimmerli especifica que “o ‘também’... não é aqui introdução a proposição contrária, mas

simplesmente acréscimo” (Das Buch des Predigers, 172). J. G. Williams frisa que “a secção 3,1-15 trata toda ela de ‘olam e é uma das poucas séries de ditos em Kohélet que não expressa o vapor (o nada) da existência no mundo...” (What does, 378).

620 que vamos dizer também é válido em parte mesmo na hipótese de que o coração se aplique às coisas do mundo como seu centro ou intimidade mesma.

“ Em linguagem teológica posterior falar-se-á de doação gratuita, de graça; equivalentemente, Qohélet diz o mesmo sem precisões terminológicas.

64Cf. F. Baumgärtel, ThWNT III 609-611; H. Haag— S. de Ausejo, Diccionario de la Biblia, 374­376; H. J. Fabry, ThWAT IV 424-447.

Page 228: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se ao rés da terra, sem sair do horizonte humano nem da esfera das obras de Deus, cujo sentido último fica-lhe escondido e selado (cf. v. 11b). Mas talvez deixe uma fenda aberta para tentar levantar o vôo e sonhar. Isso se poderá provar depois de expormos o que pensamos sobre o ‘olam que Deus pôs no coração de todo homem.

De todas as interpretações que se deram de ‘olam parece seguro que se relaciona com a duração ou permanência no tempo; o difícil é determi­nar de que maneira. Abertamente se descarta o tempo fixo de qualquer tipo; para o tempo fixo está o ‘et, e já vimos que ‘olam se contrapõe a ‘et. Também deve-se excluir do conceito de ‘olam em Qohélet a eternidade como duração permanente mesmo depois da morte. Em Qohélet não há rasto da doutrina sobre uma vida para além do túmulo.65 Mas existe pelo menos como desejo? Creio que se pode afirmar que tampouco consta que Qohélet o tenha se proposto sequer como problema.

Então, o que significa ‘olam-eternidade? Significa uma duração sem limites prefixados, dentro das fronteiras da vida terrestre. E um tempo sem enumerar, a perpetuidade na vida.66

Os seres vivos por serem vivos tendem sempre ao positivo, à perma­nência na existência. Deus pôs no mais íntimo do homem a vida, e mais, o homem desde o mais íntimo de si mesmo é vida porque está vivo e a vida não existe no abstrato. Da própria vida não pode surgir sua limitação; esta virá imposta de fora. Dar-se conta dessa terrível realidade é uma das mais amargas experiências que o homem terá nos dias de sua vida, em parte porque virá de onde menos se poderia esperar e em parte porque a pessoa se vê frustrada pelos impulsos mais fortes que o homem sente e que surge de seu ser: o desejo de não morrer. Talvez por isso o ‘olam no coração humano continue avante contra vento e maré, e até mesmo quer continuar avante quando tudo falha na própria natureza humana.67 Qohélet sabe muito bem de tudo isso e assim o quer expressar no v. Haß; mas é realista e volta logo à realidade dura e obscura do dia-a-dia, reconhecendo ao mesmo tempo as limitações humanas.

3,11b. A sabedoria internacional e tradicional é mais otimista; tem confiança quase ilimitada nas possibilidades humanas. Este é talvez o

65Ver o que diremos a propósito de 3,19-21 e o Excursus IV sobre a retribuição em Qoh.66Cabe falar de perpetuidade em nossa vida que sempre é limitada, como, por exemplo, se fala de

votos perpétuos (de perpetuidade nos votos), de prisão perpétua (a perpetuidade da condenação), e mesmo de jurar-se amor eterno.

67J. G. Williams não diz exatamente o mesmo que nós, mas creio que se aproxima bastante; ele também fala do ‘olam como “a fonte profunda do esforço humano — o ‘olam é o oposto a hebel, a alento, a vaidade” {What does, 378), e tendo em vista a diversidade de interpretações do ‘olam escreve: “Como quer que se traduza a palavra ‘olam, o mais importante é que é algo que se acha no centro da existên­cia” {Ibidem).

Page 229: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

princípio fundamental de toda pedagogia dos mestres de sabedoria. Por isso animam os discípulos a levar à prática seus conselhos para ter pleno êxito na vida. Em nosso caso, Qohélet teria motivos mais que suficientes para um aberto otimismo depois das grandes afirmações do v. 11a. Se Deus fez tudo de modo perfeito e deu ao homem essa fonte de energia que é o ‘olam, poder-se-ia esperar uma espécie de profissão de fé no homem com capacidade para conhecer tudo ou quase tudo, ou para tentar conhecer pelo menos a parte da criação ou obra de Deus que lhe está ao alcance. E certo que, segundo Qohélet, o homem chega a ter profundos conhecimen­tos de si mesmo e de seu ambiente. Ele é um testemunho vivo disso. A história encarregar-se-á de confirmar amplamente isso mesmo em todas as esferas do conhecimento especulativo e prático, do macro e do micro­cosmos.

Mas a realidade impõe-se de novo a Qohélet.68 Se utilizarmos nossa linguagem, mais evoluída e precisa, talvez possamos explicar o pensa­mento de Qohélet. De fato, o homem sente impulso irrefreável de subme­ter tudo a seu domínio por meio do conhecimento primeiro e da vontade depois. E a tentação prometéica, que se converte em “trágica aspiração”,69 porque está fadada ao fracasso mais rotundo. O homem é homem e não Deus (cf. Ez 28,2.9; Is 31,3), mas nessa tentativa prometéica rivaliza com Deus, pois quer compreender as obras que Deus faz, todas elas e total­mente, ou seja, de princípio a fim. Se o homem conseguisse compreender assim as obras de Deus, compreenderia também os planos de Deus sobre sua obra, o mistério de Deus em sua obra, o que seria igualar-se a Deus, ser como ele; tudo o que é simplesmente impossível.

E necessário, portanto, que nos acomodemos à atitude de Qohélet que se sabe homem e conhece seus próprios limites diante da realidade do mundo e diante de Deus. Como ensinamento mais universal também é necessário que o homem saiba aceitar sua condição de homem que implica certa contradição interna.70 O que é mais certo se o que se pretende conhe­cer e saber é algo relacionado com o próprio Deus; e com os planos de Deus sobre suas obras, pois não temos mais remédio que reconhecer com Eliu que “Deus é maior que o homem” (Jó 33,12) e, por conseguinte, “Deus excede nosso conhecimento” (Jó 36,26).

3,12-13. Esses dois versículos compõem a segunda parte em que se divide a perícope 3,10-15, como dizíamos na introdução; formam uma pe-

68Com palavras de R. H. Pfeiffer: “Em 3,11 o Eclesiastes, lutando com uma linguagem estranha à metafísica, tenta explicar porque o mundo deve permanecer sempre para o homem enigma não resol­vido” (The peculiar, 107).

69D. Michel, Untersuchungen, 62.70Como diz D. Michel e poderiam subscrevê-lo todos os filósofos e teólogos: “Paz parte do ser do

homem que ele sempre deva querer saber mais do que pode conhecer” (Untersuchungen, 63).

Page 230: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

quena estrofe, completa quanto a seu conteúdo: sentido ético e teológico do desfrute na vida do homem. Estruturalmente 3,11-13 corresponde à grande unidade da ficção salomônica 1,12-2,26, cujo versículo 2,24 repete- se quase literalmente.71

12. Compreendi que: Qohélet acaba de fazer no v. 11 dupla reflexão, uma sobre a ação criadora universal de Deus e outra acerca do plano par­ticular também de Deus sobre o homem. Se a primeira foi de sinal aberta­mente otimista, a segunda não podia ser mais pessimista. Agora Qohélet volta de novo ao homem em sua reflexão. O centro de gravidade do v. 12 é, portanto, o mais próximo a si mesmo que tem Qohélet.

Nada há de melhor: Á expressão é repetição literal do começo de 2,24. Quanto ao conteúdo do resto do v. 12 não supera teologicamente o que Qohélet já afirmou em 2,22-24, a cujo comentário remetemos para não nos tornarmos repetitivos.

Senão alegrar-se e passar bem na vida: Concepção otimista e lumino­sa do modo de viver prático do homem durante os poucos dias de que dis­põe em sua vida. Na Introdução geral já matizamos suficientemente esses conceitos e defendemos Qohélet da acusação de hedonismo e epicurismo crassos.72

13. O versículo em seu conjunto recorda-nos 2,24b, o que não é de estranhar, já que, segundo vimos, também o v. 12 relaciona-se com 2,24a.73

Mas também: Segundo se desenvolve o pensamento de Qohélet, o mas opõe-se ao que acaba de dizer no v. 12, sem sequer ser “restrição ao v. 12, mas esclarecimento”74 e uma magnífica fundamentação teológica do mais natural que se pode conceber numa vida profana normal e corrente do homem: o comer, o beber e qualquer atividade produtiva. Comer e beber constituem necessidade física primária do homem; mas também podem

71Dessa correspondência estrutural trata graficamente A. Fischer em Beobachtungen, 85. Ele mesmo notou um pouco antes que “bastante estranhamente falta nos w. 12s qualquer relação direta ao tem­po qualificado tematizado no poema [3,1-8]. Antes aí se trata, até na estrutura objetiva, de uma repe­tição à maneira de citação da afirmação de 2,24” (Beobachtungen, 84).

?2Cf. Introdução III3 e IV 3 e 4; também J. R. Wílch, Time, 126. A. Lauha vê em 3,12 e em lugares semelhantes o “carpe diem” horaciano (cf. Kohelet, 69). Na expressão passar bem (laklsot tob) parece refletir-se giro tipicamente grego: eu prattein. Não seria nada estranho que assim fosse, pois Qohélet não podia fechar-se à influência evidente do helenismo em seu meio cultural. Assim o afirma explici­tamente J. de Savignac (cf. La sagesse, 318). Como provável também o admitem entre outros Ch. F. Whitley (cf. Koheleth, 34) e J. L. Crenshaw (cf. Ecclesiastes, 99); ainda que alguns também o neguem (cf. G. A. Barton, A criticai, 32; R. Gordis, Koheleth — the man, 232).

73Observamos, além disso, que tanto o começo como o final de 3,13 e de 2,24b coincidem verbal­mente: também (gam: 3,13a e 2,24ba) e é dom de Deus (’"elohim hi’: 3,13) = isto... da mão de Deus (haHohim hi’: 2,24bf3). A. Lauha, porém, considera-o provavelmente “um acréscimo ortodoxo” (Koheleth, 62). D. Michel observa também que 3,13 é estranho, mas atribui essa estranheza antes a uma razão de estilo que à intervenção de mão ortodoxa posterior; essa razão estilística é o anacoluto que dá maior relevo ao conteúdo da afirmação (cf. Untersuchungen, 67s).

74H. W. Hertzberg, Der Prediger, 108.

Page 231: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

simbolizar toda atividade que produz prazer dos sentidos, especialmente do sentido do gosto. Qohélet inclui certamente os prazeres da mesa neste comer e beber, o que está muito conforme com o que a Escritura ensina. Em muitas passagens dela se mencionam a comida e a bebida não só com a finalidade de manter a vida que recebemos, mas como expressão de sen­timentos mais profundos e nobres no homem, como o são a hospitalidade, a amizade, a alegria e a festa.75

3,13 complementa e explicita em concreto o “alegrar-se e passar bem” na vida de 3,12. Quanto ao desfrute de todo o seu trabalho, preferimos entendê-lo como o prazer inerente a toda atividade do homem, escolhida livremente ou não, mas querida por ele até com ela identificar-se. Não excluímos a interpretação que faz referência explícita ao trabalho mesmo como atividade e aos frutos deste trabalho, dos quais se pode desfrutar legitimamente.

A visão religiosa e de fé de Qohélet mantém-se no final deste versículo: é um dom de Deus (cf. 2,24).76 É visão verdadeiramente otimista e não hedonista nem epicurista, como várias vezes repetimos. Reconhece Qohélet que Deus é a fonte não só de todas as coisas, mas também de todas as alegrias da vida, pequenas e grandes.

3,14-15. Chegamos por fim à terceira parte da perícope 3,10-15, na qual o sentido teológico alcança o grau mais elevado.77 Já sabemos que 3,14-15 corresponde quiasticamente a 1,4-11 ou poemas iniciais sobre a natureza e a história.78 Completa-se assim a estrutura concêntrica do au­tor no conjunto 1,3-3,15.

14. Compreendi que: repete-se a fórmula introdutória do v. 12a (yada‘ti ki1), já que em ambos os casos a expressão tem a mesma função literária introdutória da conclusão a que Qohélet chegou em sua reflexão, conclu­são que vai além do observado. Nesta se dá certamente uma não pequena incoerência no modo de pensar de Qohélet. Em 3,11b acaba de confessar o impenetrável das obras de Deus, pois o homem não pode abarcá-las nem compreendê-las. Agora, porém, afirma algo que está fora de toda compro­vação: a permanência futura, a duração sem limites das obras de Deus. Pelo que parece, a única explicação satisfatória desta incoerência é que

75Recordemos a realidade e o simbolismo das refeições e em especial dos banquetes em Gn 18,1-8; 24,33.54; 27,1-29; 43,31-34; Tb 7,14; 8,19-20; a ceia da Páscoa; e no NT Jo 2; Le 15,23s; as refeições de Jesus com seus discípulos e com outros; a última ceia do Senhor antes de morrer.

76Interpretamos mattat como dom e não como disposição de Deus com W. Zimmerli (cf. Das Buch des Predigers, 173), D. Michel (cf. Untersuchungen, 68s) e contra K. Galling (cf. Der Prediger, 93.95) e A. Lauha (cf. Kohelet, 70).

77Nos dois versículos aparece três vezes Deus: Hohim.78Cf. A. Fischer, Beobachtungen, 85, onde se representa também graficamente. Ver D. Michel,

Untersuchungen, 81.

Page 232: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet, sem dar-se conta, de um modo espontâneo se deixou levar pelo que sua fé lhe dita, que Deus é Senhor e Criador permanente da criação: o que Deus faz, e que esta criação: as obras que Deus faz (v. 11b), permanece para sempre, como já disse da terra em 1,4.

Apostila Qohélet sua afirmação e confissão de fé com uma sentença que até parece fórmula mágica.79 A fórmula vem de muito antigo. Com efei­to, já aparece no terceiro milênio a.C., como nos recordam os autores.80Tam­bém encontramos fórmula semelhante em Dt 4,2: “Não acrescenteis nada ao que vos mando nem suprimais nada” (ver ademais Dt 13,1; Ap 22,18s).

Sem sair do ambiente judaico, mas desta vez em Alexandria, pode­mos 1er na carta de Aristéias, depois de se ter lido a versão ao grego que os 72 mestres judeus fizeram da Torá: “Posto que a tradução é correta, de uma precisão e piedade extraordinárias, justo é que permaneça tal como está e não se produza nenhum desvio. Todos assentiram a essas palavras e ordenaram pronunciar uma maldição, como é costume entre eles, no caso de alguém se atrever a revisá-la acrescentando, modificando ou ti­rando algo ao conjunto do texto. E fizeram bem, para que se mantenha sempre igual e imperecedoura”.81

Se os testemunhos anteriores falam de palavras pronunciadas em nome de Deus ou de Escrituras sagradas, em Qoh 3,14 trata-se da obra de Deus por excelência, da criação. A obra de Deus é perfeita (cf. 3,11); o homem nem deve nem pode mudar nada dela, porque, em última instân­cia, não pode entrar nos planos de Deus, muito menos modificá-los.

Uma conseqüência lógica deste ensinamento é a atitude reverenciai do homem para com o Deus impenetrável, distante, e puro mistério. E o que Qohélet expressa no final do versículo 14: Assim Deus fez que o te­mam?2 Das cinco passagens em que Qohélet fala do temor de Deus,83 esta de 3,14 é a que oferece maiores dificuldades. Todavia, honestamente, não podemos limar as arestas da doutrina de Qohélet porque nos resulta incô­moda.84 Provavelmente tem razão R. Gordis, ao falar em nosso contexto da idéia que os antigos tinham acerca de “os ciúmes dos deuses”, e que aflora

79A. Fischer chama-a de “fórmula de proteção” em Beobachtungen, 85.80W. L. Moran nos diz: “Na doutrina de Ptah-hotep lemos: ‘Não tires uma só palavara nem acres­

centes! — Não substituas uma palavra por outra!’ ” (Annotationes in libri Deuteronomii capita selecta. In usum privatum tantum auditorum P. I. B., Roma, 1963, 77). A. Fischer fala assim mesmo da fórmu­la “conhecida pela sabedoria egípcia” em Beobachtungen, 85.

81Carta de Aristéias, 310-311. Tradução de N. Femandez Marcos em A. Díez Macho (coord.), Apócrifos dei Antiguo Testamento, II, Madri, 1983, 61.

82Ao considerar essas sentenças como conseqüência do afirmado até agora no v. 14, é preferível a versão assim Deus... a e Deus...

83Cf. 3,14. 5,6; 7,18; 8,12s e 12,13. Do significado do temor de Deus em Qoh tratamos no Excursus V 2, oferecendo visão de conjunto.

84Por isso parece que fica curto B. Pennacchini, quando escreve que o temor de Deus “é só o temor que toda pessoa prudente experimenta diante de alguém manifestamente mais poderoso do que ele”

Page 233: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mais ou menos transformada em passagens como Gn 3,22s (expulsão de Adão e Eva do jardim do Éden) e Gn 11,6 (torre de Babel).85 Ainda que pareça raro, também Qohélet 3,14 poderia ser testemunho de como, num livro sagrado judaico, emerge, ainda que metamorfoseada, uma idéia tão presente em ambientes pagãos helenísticos.

15. Qohélet põe um broche de ouro em suas reflexões teológicas com este versículo.86 A imagem de Deus levanta-se majestosa neste final. Se no v. 14 Deus surge como Senhor absoluto da criação e do homem, no v. 15 frisa-se seu senhorio sobre a história, sobre todo tempo: presente, passado e futuro.

A sentença do v. 15a, com o selo inconfundível do proverbial, recorda o que se disse em 1,9, ainda que aqui sem o matiz pessimista de então.87 Diante da permanência imperturbável do que o homem percebe como rea­lidade que o rodeia e vai além de sua curta história, Qohélet envia-nos uma mensagem de serenidade, corrigindo talvez o penumbroso do v. 14c.88

Também o v. 15b parece provérbio, cujo sentido tem sido muito discu­tido. Preferimos o da versão latina: Deus instaurat quod àbiitP O homem, ser passageiro, não pode ser ponto de referência do tempo que foge e se escapa; Deus, porém, não está sujeito ao processo do tempo, supera-o e al­cança-o em toda sua extensão mesmo de passado e de futuro, por isso não é estranho que se possa dizer que Deus vai em busca do passado. Segundo a mentalidade de Qohélet, Deus o encontra e o alcança, o homem não.

III. REFLEXÕES SOBRE PROBLEMAS HUMANOS (3,16-22)

Em nosso longo discurso sobre Qohélet, quase a partir do umbral do livro em 1,3 até o último versículo comentado, o 3,15, descobrimos, com outros muitos comentadores, estrutura unitária modelar. A partir de 3,16

(Qohelet, 507); ver também K. Galling: “Temor de Deus é reconhecimento da onieficácia de Deus” (Der Prediger, 95). Algo mais acertado nos parece a interpretação de L. Derousseau: “Aqui se trata de verdadeiro temor, de sentimento que está presente no coração do homem, porque o contexto mostra claramente que Qohélet tem a intenção de reagir contra os sábios” (La crainte, 341). Em seu apoio aduz W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 174. A. Lauha chama este temor de Deus de “angústia, ocasionada por insegurança e abandono” (Kohelet, 70), agravada, cremos nós, por não-ajustada inter­pretação do conceito de Deus segundo Qohélet.

85Cf. Koheleth — the man, 233.86“ma obra-prima” nas palavras de H. W. Hertzberg (Der Prediger, 108).87Assim se confirma ademais a relação entre 3,14-15 com 1,4-11. Existe sentir comum entre os

autores sobre a referência certa do v. 15a a 1,19.88Como nos diz F. Nütscher: “O homem só pode acomodar-se e submeter-se aos planos de Deus,

nada pode mudar neles” (Schicksal, 460), sem necessidade de crer em fatalismo paralisante.89Segundo R. B. Salters, a “V... conseguiu o único sentido satisfatório para a passagem” {A note,

421); cf. também no mesmo sentido H. P. Müller, Theonome, 17. Outros sentidos podem ver-se em D. Michel, Untersuchungen, 74-78.

Page 234: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

teríamos que falar de ruptura, ou seja, de algo totalmente novo e distinto, não relacionado com o anterior, ou que a nova perícope faria parte de uni­dade maior que englobaria também o bloco estudado de 1,3-3,15? Não cre­mos necessário aceitar nenhuma das estruturas globais que resenhamos na Introdução geral.1 Não quer dizer que Qohélet não leve em conta nas re­flexões sucessivas o que escreveu antes e sobre o que refletiu tão seriamente. Como veremos, há temas conhecidos que aparecem aqui e acolá. Quase com toda segurança o autor volta a eles conscientemente conseguindo sus­citar no leitor certa sensação de continuidade temática, que não chega à unidade do conjunto, mas supera o mal-estar que causa toda dispersão.2

Outra coisa é perguntar-nos sobre o grau de unidade que tem a perícope3,16-22, e se está ou não estruturada. Quanto ao primeiro, muitos autores con­cederiam de bom grado que 3,16-22 constitui em si pequena unidade e as­sim o refletem na divisão que apresentam em suas versões e comentários.3

A coesão da perícope mostra-se na forma de o autor desenvolver e concatenar suas idéias, o que se relaciona diretamente com a estrutura. Sobre se se constrói 3,16-22 segundo estrutura determinada, devemos re­cordar que Qohélet aplica na perícope um método também determinado de trabalho, o que quer dizer que em seu desenvolvimento segue um es­quema mental, uma estrutura. 3,16-22 é exemplo típico do método de pro­ceder de Qohélet: aguda observação da realidade circundante; reflexão sincera sobre ela;4 finalmente uma conclusão que diz respeito direto à for­ma de entender a vida. A estrutura esquemática de 3,16-22 poder-se-ia plasmar em divisão tripartida: 3,16-17; 3,18-21 e 3,22,5 que procuraremos analisar e matizar no comentário.

Não deveríamos nos esquecer do pano de fundo de toda a passagem, ou seja, do mundo helenístico que invadira e fazia-se presente na vida diária dos judeus da esfera palestinense ptolemaica.6

1. A injustiça imperante e o juízo de Deus: 3,16-173,16 Outra coisa observei sob o sol:

no lugar do direito, ali a iniqüidade; no lugar da justiça, ali a iniqüidade.

‘Ver cap. VII, 3.2D. Michel escreve a esse propósito: “Com relação à estrutura do livro, parece-me claro que 3,16­

22 não faz parte integrante do debate fundamental em 1,3-3,15; mas por outro lado não constitui magnitude independente: 3,22 relaciona-se como ‘autocitação’ com 3,12s” (Untersuchungen, 251).

sVer como mostra H. W. Hetzberg, Der Prediger, 109; A. Lauha, Kohelet, 72-74; N. Lohfink, Kohelet, 33s; D. Michel, Qohelet, 138s.

4Nestas reflexões de Qohélet pode-se descobrir sua grande personalidade por ir geralmente contra a corrente normal do que se costuma pensar e dizer.

5Cf. G. S. Ogden, Qoheleth, 58s; G. Ravasi, Qohelet, 156. D. Michel prefere uma divisão antitética: 3,19-22 frente a 3,16-18 (cf. Untersuchungen, 248). Por sua parte, H. P. Müller recorda que “segundo uma opinião difusa, 3,18 une o pensamento de 3,16s com o de 3,19-22” (VRe sprach, 518).

6Cf. R. Braun, Kohelet, 93s; N. Lohfink, Kohelet, 34b.

Page 235: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

17 E pensei: o justo e o malvado os julgará Deus.Pois há um tempo para cada assunto e para cada ação um lugar.

16 “outra coisa”: lit. “e ademais”, “em lugar de”: meqom, acusativo de lu­gar, normalmente vai com a preposição be (cf. P. Joüon, 126h). “ali”: shamah, “acusativo adverbial reforçado... com valor local” (R. Meyer, Gramática, 45, p. 169), ou simplesmente “variante enfática de sham” (J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 101).

17 “e pensei”: lit. “e disse eu em meu coração”; LXX(B) e Vg tem o e inicial. Muitos autores consideram 3,17a, sobre o juízo de Deus, glosa acres­centada pela mão de um autor piedoso (cf. G. A. Barton, A criticai, 108; K. Galling, Der Prediger, 96; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 100; A. Lauha, Kohelet, 75; N. Lohfink, Kohelet, 35); J. L. Crenshaw, mi yodea’, 281; Ecclesiastes, 102; D. Michel, Untersuchungen, 250). R. Gordis, porém, defende sua autenticidade, ainda que lhe dê sentido cético (cf. Koheleth — the man, 234s). Outros muitos também admitem a auten­ticidade (cf. J. A. Loader, Polar, 95; A. Schoors, Koheleth, 299; G. S. Ogden, Qohelet, 59s; R. N. Whybray, Qoheleth, Preacher, 90, n. 11. Quanto a 3,17 não se duvida de sua autenticidade, mas seu último vocábulo no TM: sham, interpretou-se de infinitas maneiras. Uns con­sideram sham como advérbio de lugar: “ali” (cf. A. Bea, Líber, 8; R. Gordis, Koheleth — the man, 235; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 172; F. Piotti, Osservazioni [1978] 173; G. S. Ogden, Qoheleth, 60), ou como partícula adversativa “também” (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 396; A. Schoors, Koheleth, 300, ou como substantivo que significa “lugar” (cf. M. J. Dahood, The Poenician, 271; L. Gorssen, La cohérence, 305). Aderimos a essa sentença pelos argumentos internos e porque se adata muito bem ao contexto, já que subministra o segundo termo paralelo a um tempo — (um lugar). Outros mudan shm por sm com o significado de determinar, estabelecer (cf. G. A. Barton, A criticai, 107.111; R. Braun, Kohelet, 92), ou como qal passivo: ser estabelecido (cf. M. J. Dahood, Qoheleth and Northwest, 354). Finalmente, alguns preferem eliminar sham ou substituí-lo por zmn (cf. H. W. Hertzberger, Der Prediger, 101). “para... para...”: I e ‘l; para sua equivalência podem-se ver M. J. Dahood, The Phoenician, 271 e F. Piotti, La lingua, 188.

3,16-17. Estes dois primeiros versículos apresentam-nos Qohélet em ação: observando em primeiro lugar algo tão importante na vida social como o exercício da justiça (v. 16), e refletindo depois sobre o que descobriu em sua observação, algo que pode comover os fundamentos ou convicções mais firmes dos fiéis e sábios: em que sentido se pode falar de juízo de Deus? (v. 17).

16. O versículo está elaborado em suas três partes com precisão ex­traordinária. Em primeiro lugar está a introdução à observação: outra coisa observei sob o sol. Desde 3,10 Qohélet exerce de maneira especial função de inspecção e vigilância, como se observasse a realidade de seu meio social, sob o sol, desde atalaia bem elevada e segura. Segue a ob­

Page 236: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

servação mesma, plasmada em dois versículos paralelos com terminações idênticas. Creio que podemos afirmar com toda segurança que o autor tem presentes primeiramente os lugares de onde se presume que se deva ad­ministrar justiça com toda retidão, ou seja, os tribunais de justiça legiti­mamente constituídos: no lugar do direito... da justiça; em segundo lugar, poder-se-ia referir também a qualquer lugar ou situação da vida social em que entram ou podem entrar em conflito os direitos legítimos de uns e os deveres correspondentes de outros e que em todo caso devem solucionar- se segundo a justiça, ainda que não intervenham juizes ou magistrados.

A grande surpresa de Qohélet manifesta-se na segunda parte dos dois versículos: ali a iniqüidade (duas vezes). Com a repetição da mesma fórmu­la frisa-se clara e estilisticamente uma terrível situação: o domínio pleno da iniqüidade na vida normal dos cidadãos. Qohélet descobre que a injustiça como norma de convivência social de fato se institucionalizou, que a arbi­trariedade impera no que deveria ser a administração da justiça, o que se identifica com uma corrupta parcialidade dos juizes em favor dos poderosos e contra os fracos.7 O direito e a justiça deveriam ser os pilares fundamen­tais em que se sustentariam toda sociedade e todo estado que se chama de direito e se pretende estável. A realidade é bem outra como a história nos ensina e Qohélet confirma: o que na verdade prevalece é a lei do mais forte, que necessariamente gera mais injustiça e violência. Quanto a isso se pode chamar Qohélet com toda razão de herdeiro do mais puro espírito dos profe­tas. A diferença entre Qohélet e os profetas radica em que ele só constata os fatos, como bom observador; os profetas, ao invés, além de observar e cons­tatar, denunciam pessoas concretas ou a sociedade de seu tempo em geral.8

17. O que acaba de constatar Qohélet no v. 16 é para fazer refletir qualquer, muito mais a Qohélet que costuma voltar a suas observações: Como é possível que Deus o permita, se é que na realidade o permite? Qohélet busca desesperadamente solução ao problema da injustiça no mundo do ponto de vista de sua fé. Por isso reflete muito seriamente: E pensei, mais graficamente na literalidade hebraica: “e disse eu em meu coração” ou “disse-me a mim mesmo”, como repetirá também no v. 18.

A resposta, que aparece em 3,17a do TH, tem toda aparência de ser em grande medida satisfatória, pois remete em última instância ao supremo tribunal de Deus, que julgará o justo e o mau. Tranqüilos, pois, nos vem

7Pode-se estabelecer um paralelo com Sb 2,10-11. Veja-se meu comentário a essa passagem em Sabiduría (1990), 161-162.

8Diz Isaías no fim do cântico da vinha (5,1-7): “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, são os homens de Judá sua plantação preciosa. Esperou deles o direito, e aí tendes: assassínios; espe­rou justiça, e aí tendes: lamentos”. Cf. também Is 5,23; 10,1-2; Jr 22,13-19; Am 5,7-12; Mq 3,9-11. O tema do predomínio da injustiça na sociedade é também um lugar comum da literatura do oriente médio antigo e da helenística (cf. R. Braun, Kohelet, 93).

Page 237: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dizer Qohélet, já que é Deus que se encarregará de dar a cada um segundo o que merece. Segundo essa interpretação, 3,17a contém a afirmação de um juízo moral de Deus, como muitos admitiram e outros continuam admitin­do.9 O apelo a esse juízo de Deus resolve, como dissemos, as interrogações que suscitaram a visão de 3,16. Mas aqui é onde começam as grandes dúvi­das, onde surgem as novas e intranqüilizantes perguntas: Afirma realmen­te Qohélet em 3,17a um juízo moral de Deus? Acaso é coerente esse juízo moral de Deus com o contexto próximo 3,16 e 3,18ss, e com os ensinamentos de Qohélet em outros lugares? Um bom número de comentadores modernos respondem negativamente a essas perguntas, arrolando Qohélet em cor­rente abertamente oposta à da tradição sapiencial, reconhecendo nessa po­sição de Qohélet sua originalidade e forte personalidade.10

No entanto, ainda há muitos que admitem um juízo de Deus. Mas temos que continuar nos perguntando: o que se entende por esse juízo de Deus e quando se realiza?11 As possíveis respostas são várias e todas fo­ram defendidas ao longo do tempo. Fundamentalmente se reduzem as opiniões a duas grandes secções: 1) o juízo de Deus é imanente, realiza-se na história, “sob o sol”; 2) o juízo de Deus é puramente escatológico.

Quanto ao juízo de Deus imanente ou histórico é preciso distinguir bem entre o modo tradicional de compreender a ação remuneradora de Deus na história que premia os bons e castiga os maus,12e o modo de falar de muitos modernos. Este segundo ponto é o que nos interessa desenvol­ver, porque é evidente que Qohélet não admite o primeiro, e mais, arreme­te-se contra ele abertamente em 3,18ss; 8,12-14, etc.

Uma primeira posição poderia ser a de F. Festorazzi que admite “a fé do autor [Qohélet] num Deus justo presente nesta terra” e esquiva a ver­

t e r o que diremos sobre 3,17b.“ Esses autores não reconhecem a autenticidade de 3,17a(3, mas atribuem-no à mão de um corre­

tor piedoso; ver nota filológica ao versículo. As palavras de A. Lauha são suficientemente claras e eloqüentes: “A afirmação no v. 17a de que Deus julgará o justo e o mau, não se harmoniza nem com o contexto, nem, sobretudo, com o pensamento de Kohelet. A constatação de que o juízo de Deus repara a injustiça, elimina precisamente a ocasião para o desespero no versículo precedente” (Kohelet, 75).

“ Fazemos uma simples menção da opinião de L. Gorssen que não quer ouvir falar de ‘juízo de Deus”, mas de “disposição divina”. Ele nega que esteja presente em Eclesiastes o esquema: “Deus premia os bons e castiga os maus”. Segundo ele: “Deus julga’ o justo e o mau quer dizer: Deus faz que haja justos e maus; ele dá aos justos e aos maus sua condição própria de Ajusto’ e de ‘mau’. Essa exegese torna mais claro o desenvolvimento das idéias em 3,16-18. Qohélet constata uma grave ano­malia (3,16) e dela dá uma explicação em 3,17a: é uma ação de Deus, diante da qual o homem fica perplexo e tem algo de ameaçante... Segundo a exegese proposta, 3,17 descreve uma ação de Deus que explica uma anomalia constatada anteriormente (3,16)” (La cohérence, 306s).

12Sem sairmos do meio sapiencial podemos ler em Jó: “Recordas de um inocente que tenha perecido? Onde se viu um justo exterminado?” (Jó 4,7); “Longe de Deus fazer o mal, do Tbdopoderoso a injustiça! Deus paga o homem por suas obras, retribui-lhe segundo sua conduta; certamente Deus não opera o mal, o Ibdopoderoso não torce o direito” (Jó 34,10-12). Ou então no Eclesiástico posterior: “Não te comprazas com o insolente que triunfa, pensa que não morrerá impune” (Eclo 9,12), pois “o mal acompa­nha os maus; mas o dom do Senhor é para o justo, e seu favor assegura o êxito” (Eclo ll,16s).

Page 238: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dadeira dificuldade, deixando-a pendente de uma interrogação: “É propria­mente verdade que Deus realiza aqui na terra a salvação do justo, e não é antes verdade que, fora de alguns momentos de alegria, justos e ímpios encontram-se na infelicidade?”13 O que eqüivale evidentemente a deixar o problema sem resolver ou, o que dá no mesmo, a não responder.

J. A. Loader, porém, parece dar um passo avante, ousando identificar o juízo de Deus com a morte.14 Tampouco nos satisfaz essa solução, visto que nos introduz na morte como mistério; o que faz com que suscitem mais sombras do que luz sobre o problema já por si tenebroso da injustiça no mundo. De mais a mais, se o juízo de Deus é verdadeiramente imanente e histórico, parece que nos devemos manter dentro dos limites históricos, ou seja, antes da morte.

Para o crente, Deus é o Senhor da história, na qual exerce realmente seu poder omnímodo sobre a vida de todo homem. Creio que é assim que devemos começar a considerar o que Qohélet entende por juízo de Deus.15 O juízo de Deus não é objeto de observação empírica nenhuma, mas o conteúdo de uma afirmação de fé. Sendo assim, a solução só pode vir desse âmbito e meio de fé. A esse âmbito pertence sem nenhuma dúvida a con­vicção de que Deus é justo,16 ou, se se prefere, que Deus não é injusto: “Um Deus injusto não é Deus para um israelita”.17

A realidade, porém, parece demonstrar o contrário (v. 16). Qohélet encontra-se, portanto, entre a espada e a parede. Sua saída pode parecer incoerente,18 mas não o é para um verdadeiro crente que pode, ao mesmo tempo, afirmar dois extremos aparentemente irreconciliáveis, sem cair em contradição, porque implicitamente está admitindo sua grande limita­ção na ordem do conhecimento.19

A interpretação que acabamos de apresentar sobre o juízo de Deus em Qohélet pressupõe uma fé em Deus muito firme e profunda, uma fé

13La dimensione, 97.14"No contexto dos w. 18-21, estè juízo [o do v. 17] só pode significar a morte, porque essa subsecção

[w. 18-21] em si mesma é reflexão sobre a morte... O juízo de Deus na morte não está pensado ad melius, mas ad peius (cf. Hertzberg [111]). A justiça está suplantada pela injustiça; e então vem a tensão: com a morte ambos, o justo e o culpado, igualam-se, a injustiça do mundo desaparece. Que consolação tão irônica! Este é o supremo hebel. O único consolo para o agravado é o conhecimento de que ele pelo menos morrerá como o malvado” [Polar, 95).

15Cf. O. Loretz, Gotteswort, 142.l6G. S. Ogden faz notar muito agudamente que “Qohélet pode até representar uma posição extre­

ma no espectro da fé. O fato de que ele suscite perguntas inquietantes não significa que tenha aban­donado um dos dogmas de fé mais centrais, a saber, que Deus é justo” (Qoheleth, 59).

17J. van der Ploeg, Prediker, 32. A citação é tomada de L. Gorssen (em La cohérence, 307), que não está de acordo com a maneira de argumentar de J. van der Ploeg. Mas L. Gorssen parece esquecer-se que Qohélet é crente israelita e que, apesar de seu “pessimismo”, afirma mais do que constata, como estamos vendo.

18Por isso para muitos 3,17 é uma glosa.19Como volta a dizer-nos G. S. Ogden: “Por um lado Qohélet crê firmemente que Deus autuará a

injustiça humana; por outro lado, ao mesmo tempo tem que reconhecer que em muitas ocasiões não se

Page 239: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que sabe muito de confiança e de risco, algo de que se fala muito pouco nos comentários ao Eclesiastes.20

O v. 17b confirma em todo caso a interpretação que se tenha dado do v. 17a, já que os dois versículos relacionam-se diretamente, como se pode perceber pela partícula ki: pois, que encabeça 17b. Alguns até descobrem os sentido do v. 17a a partir do v. 17b, mas em concreto pela interpretação do vocábulo shm, que ocupa o último lugar. Estes são sobretudo os que entendem o juízo de Deus do v. 17a como juízo estritamente escatológico.21

Mas também pode-se interpretar o vocábulo sham sem necessidade de relacioná-lo com o mais além.22 Nós interpretamos sham como substan­tivo: um lugar, paralelo a ‘et: um tempo,23 o que nos faz recordar em parte 3,1: “Para tudo há uma hora, e um tempo para todo assunto sob o céu.”24

2. Sorte comum dos homens e dos animais: 3,18-213,18 Pensei acerca dos homens: prova-os Deus

e fá-los ver que por si mesmos são animais.19 Pois a sorte dos homens e a sorte dos animais é a mesma sorte.

Como morrem uns, morrem os outros; todos têm o mesmo alento.E o homem não supera os animais. Tudo é vaidade.

20 Todos caminham ao mesmo lugar, todos vêm do pó e ao pó voltam todos.

21 Quem sabe se o alento do homem sobe ao alto e o alento do animal desce à terra?

vê que se faça a justiça divina” (Koheleth, 60). O mesmo nos diz A. Schoors com outras palavras: “Se mantivermos o versículo [17] como autêntico, então só pode significar que um dia, em tempo indeterminado, Deus julgará o bem e o mal, mas como acontecerá isso, escapa a Kohélet. Assim não diz sequer uma palavra acerca do juízo depois da morte” (Koheleth, 299).

20Ver, todavia, as magníficas reflexões que faz D. Lys a esse propósito em L ‘Ecclésiaste, 388.2IEscreve, por exemplo, R. Gordis: “A chave da passagem [v. 17] está em sham... sham e é referên­

cia ao outro mundo, ao período depois da morte... seu propósito aqui em todo caso, como indica sua posição, é satírico... ‘Há um tempo para todo evento e toda ação — lá!” (Koheleth — the man, 235). O fato de Qohélet dar sentido “satírico” à expressão não diminui em nada o valor da sentença. A D. Michel não desagrada a interpretação de R. Gordis (cf. Qohelet, 138 n. 14). Por sua vez L. Di Fonzo escreve: “Defendemos que Qohelet alude realmente ao juízo de além túmulo, no ‘lugar’ que for fixado por Deus, ou melhor: cremos que ‘há um tempo... fixado lá’, ou seja, estabelecido ‘no céu’ por Deus ou junto a Deus” (Ecclesiaste, 172a). A. Bea diz: “ ‘Ali’: ou seja, na outra vida ou junto de Deus” (Liber, 8) e A. Vaccari: “Ali no céu está decretado o tempo em que se dará o merecido a toda ação” (UEcclesiaste, en La Sacra Bibbia [Florença 1961], 1123 nota ao v. 17).

22Referimo-nos antes à interpretação de A. Schoors, cuja passagem completa diz assim: “Se man­tivermos o versículo como autêntico, então só pode significar que num dia, num tempo determinado, Deus julgará o bem e o mal, mas como acontecerá isso, escapa a Kohélet. Assim, não diz nenhuma palavra acerca do juízo depois da morte. Alguém afirmou que sham: ‘ali’, no fim do versículo faz alusão precisamente ao sheol. Mas, como veremos mais adiante, no sheol não há tempo assinalado para nenhuma coisa, seja lá o que for; ali não sucede nada” (Koheleth, 299). Sobre o sheol pode-se ver também O. Loretz, Gotteswort, 142.

23Também Ch. F. Whitley defende esse paralelismo (cf. Kohelet, 35), como muitos outros autores que o frisam em suas versões.

24Cf. A. Barucq, Ecclésiaste, 86 = Eclesiastes, 85. Cf. também G. S. Ogden, Qoheleth, 58.

Page 240: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

18 “pensei”: lit. “disse eu em meu coração”, cf. 17a. “acerca de”: ‘l-dibrat, preposição composta (cf. também em 7,14; 8,2 e no SI 110,4). R. Gordis vê aqui um aramaísmo (cf. Was Koheleth, 111). Segundo M. J. Dahood, “é evidente que ‘l dbrt encaixa-se no modelo preposicional fenício” (Canaanite-Phoen., 47).“os homens”: lit. “os filhos do homem”.“prova-os”: o mais provável é que o hebraico lebaram seja infinitivo constructo (cf. Ges.-K., 67p; por leboram, cf. P. Joüon, 82-1), precedido por um lamed enfático ou asseverativo [ele prova-os seguramente] e se­guido do sufixo pronominal. O verbo no infinitivo estaria no lugar de um verbo finito, de um perfeito (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 236).“e fá-los ver”: preferimos ler com as versões G Sir e Vg o infinitivo constructo Hifil welar’ot (=ulehar’ot) em vez do infinitivo constructo Qal do TM welir’ot (“e viu”). Quanto à versão por forma finita, o caso é paralelo ao verbo anterior (cf. P. Joüon, 124p).A acumulação de pronomes no final do versículo causou muitos proble­mas; mas não se pode negar propositada aliteração e jogo de palavras. Alguns suprimem vocábulos por crê-los ditografia (cf. G. R. Driver, Pro­blemas, 227: bhmh; W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 175 n. 3: hmh com BH 3a ed., R. Braun, Kohelet, 92; Ch. F. Whitley, Koheleth, 37s); a maioria, porém, aceita o TM como está (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 237; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 101).

19 “a sorte de”: No TH lemos no versículo três miqreh (estado absoluto); as versões lêem miqreh em estado constructo as duas primeiras vezes, que é a forma que dá sentido ao texto e que adotamos com a generali­dade dos autores (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 237s; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 101s; A. Schoors, Koheleth, 300 n. 36).“os homens”: lit. “os filhos do homem”, “e o homem não supera a”: lit. “e não existe vantagem do homem sobre”.A partícula ki, que precede a tudo é vaidade, mais que conjunção casual: porque, pois, parece ser um ki afirmativo ou asseverativo que, ou se traduz por certamente, realmente, ou simplesmente não se traduz, porque a sen­tença em si é suficientemente asseverativa (cf. P. Joüon, 164b; 165; 167s).

20 “Todos caminham”: hakkol holeq no singular e em particípio. Quanto ao uso do particípio pelo yiqtol para expressar ação freqüentativa do presente, cf. P. Joüon, Notes de syntaxe, 225.

21 “Quem sabe se...?”: Corresponde à leitura que todas as versões antigas (G Vg Sir Tg) fizeram de um texto corrigido na vocalização pelos Massoretas. Estes, pelo que tudo indica, por razões dogmáticas, muda­ram os originais interrogativos ha‘lh e havvrdt pelos artigos ha‘olah e hayyoredet (cf., por exemplo, L. Di Fonzo, Quis novit, 261; H. W. Hetzberg, Der Prediger, 102; NH 3a ed. e BHS; A. Lauha, Kohelet, 77; A. Schoors, Koheleth, 300). R. Gordis defende, porém, que a vocalização do TM é correta para os interrogativos (cf. Koheleth, 238).

3,18-21. Cremos que Qohélet polemiza nessa passagem contra cor­rentes doutrinais de seu tempo e de seu meio judaico, as quais tratam de alguma maneira da sorte do homem para além da morte, talvez por influên-

Page 241: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cias externas provenientes do helenismo.25 Por isso, estende-se Qohélet longamente e com profundidade na reflexão sobre um fato tão transcen- dantal na vida do homem como é a morte, do que tirará conclusões que serão para muitos escandalosas.

3,18-21 é uma das principais passagens de Qohélet às quais os comentadores puseram a etiqueta de “crux” pelas dificuldades sintáticas que apresenta26 e, principalmente, pelos problemas dogmáticos que susci­ta entre os intérpretes.27 E não é para menos, pois iguala-se o homem aos animais. Determinar em que sentido o entende Qohélet é tarefa do intér­prete descobri-lo.

18. O que Qohélet vê a seu redor é suficientemente grave para fazê-lo refletir sobre a sorte do homem. Em parte já desvelou no v. 17 as conclu­sões que vai deduzindo de sua análise da realidade; agora no v. 18 conti­nua com suas reflexões centradas no homem, como aparece na repetição da mesma fórmula: Pensei (“disse eu em meu coração”) acerca dos ho­mens. Mas sua análise não fica na superfície das aparências; apoiado em sua fé, descobre a ação de Deus mesmo em a nada edificante vida dos homens, que segundo ele é uma espécie de exame e prova por parte de Deus. Este exame não descobre nada desconhecido por Deus, pois Qohélet sabe muito bem que tudo está patente a seu olhar penetrante (cf. Jr 32,18s; Pr 15,3); que cada um pode dizer com o salmista: “Senhor, tu me sondas e me conheces; conheces-me quando me sento ou me levanto... todas as mi­nhas veredas te são familiares... Tanto saber me ultrapassa, é sublime e não o abarco. Aonde irei longe de teu alento, aonde escaparei de teu olhar? Se escalo os céus, ali tu estás, se me deito no abismo, ali te encontro... Se digo: ‘Que pelo menos a treva me encubra, que a luz faça-se noite em torno de mim’, nem a treva é escura para ti, a noite é clara como o dia” (SI 139,1­3.6-8.11-12; ver também Jó 34,21s).

Sendo assim, Deus bem pode fazer com que o homem veja o que na realidade é: que eles por si mesmos são animais. Os autores acham a afir­mação excessivamente terminante, e por isso tentam por todos os meios limar arestas.28 Antigamente se escandalizaram os Massoretas e a prova disso veremos no v. 21. Muitos autores ainda hoje resistem a pensar que

25Cf. U. KeUeimann, Überwindung, 278-280; D. Michel, Untersuchungen, 116.26R. Gordis a propósito do v. 18 fala de “uma antiga crux” (Koheleth — the man, 236). Na mesma

passagem refere-se também a H. P. Müller dizendo que “as dificuldades exegéticas... parecem insolú­veis” (Wie sprach, 518).

27Estes se concentraram, sobretudo, no v. 21 acerca da doutrina sobre o além.28Afirma, por exemplo, J. A. Montgomeiy: “Por certo, seu final [o dos homens] é o dos animais, mas

não necessariamente suas vidas” {Notes, 242). E escrevia isso em 1924, pouco depois de uma guerra mundial; depois todos aprendemos aonde é capaz de chegar o ser humano, certamente aonde não chegam os animais.

Page 242: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet equipare tão terminantemente homens e animais pelas conse­quências dogmáticas acerca da sorte definitiva, ou seja, do além da morte. Mas este é o tema dos versículos seguintes.

19. A intenção de Qohélet é fazer ver que o homem não é mais que o animal, o que coincide precisamente com a intenção de Deus segundo o versículo anterior; assim o deixa entrever a partícula ki, pois, com que começa o v. 19. Esta é a tese que repete com insistência enfadonha todo o versículo e continuam com variantes os versículos 20 e 21.

Com a sorte ou miqreh está se referindo o autor nessa passagem à morte em concreto; ainda que em outros lugares miqreh possa ter outro significado.29 É a mesma sorte: No texto hebraico um wau (e) precede a miqreh em muitos manuscritos.30 Tanta insistência em falar da mesma sorte, do mesmo destino do homem e do animal não pode ter senão um sentido: a negação da sobrevivência do homem para além da morte.31 A tese causou tal indisposição em tempos posteriores que se procurou por todos os meios fazer com que o texto dissesse o que não diz. Assim o inter­preta, por exemplo, o Targum de Qohélet: “Porque o fim do homem peca­dor e o fim do animal imundo é o mesmo para todos eles”.32

Quanto ao fato mesmo de morrer, a igualdade é total: como morrem uns, morrem os outros. Já tínhamos ouvido falar da mesma sorte do sábio e do néscio em 2,14s; mas a igualdade com o animal é algo novo. E um fato que se contempla cada dia em nossa vida. Qohélet não se contenta com afirmar o evidente; reflete e busca uma explicação que se vai fundamen­tar no mais conhecido da tradição de Israel. Porque a sentença: todos têm o mesmo alento (ruah), sem dúvida se inspira no Gênesis, ainda que nem sempre utilize o termo ruah, mas outros equivalentes. Assim em Gn 2,7 diz-se do homem que se converteu em ser vivo (nepesh hyyah), o mesmo que se diz dos animais em Gn 2,19; também segundo Gn 2,7 o homem tem alento de vida (nishmat hyyim), como o animal segundo Gn 7,22.33Por

29F. Nõtscher escreve: “Em Koh compreende-se com a expressão miqreh tudo o que ‘sobrevêm’ ao homem, tudo o que representa a vida, o estado e especialmente o fim do homem (2,14s; 9,2s). Kohélet descobre que especialmente o fim, a morte, é igual para todos os homens... e, externamente considera­dos, para todos os viventes, também para os animais (3,19)” (Schicksal, 459); o externamente conside­rados é interpretação subjetiva, não está no texto.

30''Perturbadora” chama esse waw H. W. Hertzberg (Der Prediger, 102), mas R. Gordis prefere mantê-lo para maior ênfase da sentença: “ambos têm o mesmo destino” (Koheleth — the man, 237); o sublinhado é nosso.

31Cf. D. Lys, L ‘Ecclésiaste, 388. Os autores costumam recordar que “os epicuristas e os filósofos populares da época helenística gostavam de comparar o homem com os animais. Qohélet não constitui exceção” (R. Michaud, Qohélet, 155); cf. R. Braun, Kohelet, 93-94.

32Targum, 234; ver outros exemplos em H. W. Hertzberg, Der Prediger, 111; D. Lys, UEcclésiaste, 391.“ Referindo-se aos animais Gn 7,15 utiliza a expressão “os que têm alento vital (ruah hayyimf (cf.

A. Lauha, Kohelet, 76). Como escreve A. Schoors: “Kohélet reuniu essas sentenças numa afirmação lapidar sobre a igualdade do homem e do animal” (Koheleth, 300).

Page 243: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

essa razão afirma também Qohélet que o homem não supera os animais-. se o alento vital ou o princípio de vida é o mesmo para uns e para outros, e o final é o mesmo, Qohélet não vê razão alguma para afirmar diferenças nestes aspectos, os fundamentais para ele.

A sentença final: tudo é vaidade, é como a conclusão natural de todo o versículo: no final realmente tudo se dissipará como a fumaça, ainda o que mais se aprecia como a vida mesma.

20. O versículo é confirmação do versículo anterior, sendo ao mesmo tempo esclarecimento mais explícito da sorte comum de homens e ani­mais. Chama a atenção a segurança com que expressa Qohélet o comum destino universal de todo ser vivo.

No versículo podem-se distinguir duas partes que se implicam mutua­mente. Na primeira (v. 20a), o sentido direcional é único: Todos caminham ao mesmo lugar-, na segunda (v. 20b) o sentido é circular: Todos vêm do pó e ao pó voltam todos. Subjaz a 3,20a uma majestosa metáfora (cf. 1,7): a vida no tempo é como uma enchente imensa de seres viventes que se diri­gem indefectivelmente ao mesmo lugar. Este lugar não pode ser outro se­não a morte, o abismo ou sheol?4 Em 1,7 lemos: “Todos os rios caminham ao mar, e o mar não se enche”; aplicando este lugar tão semelhante ao presente, podemos parafrasear: Todos caminham ao mesmo lugar, ao abis­mo ou sheol, e o sheol não se enche. Mas que idéia tem Qohélet do sheol em concreto? Sem dúvida ele conhecia o que a Escritura dizia a esse respeito, e algo teria que dizer sobre tudo isso.35

No v. 20b: Todos vêm do pó e ao pó voltam todos, Qohélet volta-se de novo à doutrina da tradição. Aqui ressoa de modo particular Gn 3,19: “Com

34Dos maus lemos em Sb 49,14-15: “Este é o caminho dos confiados, o destino dos homens satisfei­tos: dispõe-nos como ovelhas para o abismo [o sheol]... descem diretos ao túmulo... e o abismo [o sheol] é sua mansão”. Nosso autor manda a todos: justos e maus, e os animais, ao mesmo lugar.

35Aduzimos o rico resumo que H.-P. Stáhli dos ensinamentos que afloram em muitos lugares da Escritura sobre o sheol e que nos pode servir de ponto de referência quando falamos do sheol em geral ou em Qohélet:

‘Como morto, o homem leva uma existência vaga e espectral no sheol, no ‘mundo subterrâneo’, cuja representação Israel tomou de seu meio ambiente, e para cuja descrição encontram-se no AT apenas referências esporádicas... Encontra-se debaixo da terra (Gn 37,35; 42,38; 44,29.31; Is 7,11; 57,9) como um lugar do abismo e do ‘ocaso’... (SI 88,12; Jó 26,6 [não 2]; 28,22; 31,12; Pr 15,11). Aparece como cárcere com portões e fechaduras (Is 38,10; Jn 2,7; SI 9,14; 107,18; Jó 38,17). Como na epopéia ugarítica de Baal, a Morte abre suas fauces..., assim o mundo subterrâneo abre desmesuradamente sua garganta insaciável (Pr 27,20; 30,16) e ávida sobre as massas (Is 5,14; Hab 2,5). Não é acessível a nenhum vivo, e ninguém volta dele... Segundo o livro de Jó, é indiscutível que ‘não volta o que desce ao reino dos mortos’ (Jó 7,9; cf. 16,22), que há um caminho ‘sem retomo ao país da treva e da escuridão’ (cf. SI 88,13), ‘na terra triste como a negra noite, na escuridão, onde não há meio-dia’ (Jó 10,21s). Sobre tudo se estende um silêncio (SI 94,17; 115,17), um esquecimento (SI 88,13), um sono profundo (Jó 14,12), sem consciência humana, sem que se suscitem sentimentos... (Ecl 9,5s). Restou antes de tudo apenas um reflexo vago e espectral da vida terrestre (cf. Is 14,9ss; ISm 28,14). Ninguém escapa a esse destino, e aquele que a morte devorou, não o devolve outra vez... (Jó 14,12). Só há esperança para os vivos, não para os mortos (Ecl 9,4a), e daí se entende o juízo do Eclesiastes de que ‘é melhor um cão vivo que um leão morto’ (Ecl 9,4b)” (Tod und Leben im alten Testament, ThGl 76 (1986) 177-178).

Page 244: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

o suor de teu rosto comerás o pão, até que voltes à terra, porque da terra foste formado: pois és pó e ao pó voltarás” (cf. também Gn 2,7). Mas este texto venerável influiu especiamente em escritos sapienciais e nos Salmos (cf. SI 90,3; 104,29; 146,4; Jó 10,9; 34,15; Eclo 40,11). Em todo caso, a sentença de Qohélet é original, visto que em nenhum texto anterior se formula com tanta clareza que todos, animais e homens, provêm do pó e a ele retornam.

Depois disso surge uma pergunta: se tudo se resolve em pó, o que fica do homem depois da morte? No v. 21 vamos ver se Qohélet responde a essa pergunta e de que modo.

21. Depois das afirmações tão decididas dos w. 19 e 20 surpreende no v. 21 uma interrogação. Algo não deve estar ainda claro na mente de Qohélet. Sendo assim, a solução não é a de eliminar a interrogação, como fizeram os massoretas, visto que então não teria sentido a tese tão forte­mente defendida por Qohélet em 3,19-20 sobre a igualdade tão radical entre homens e animais.36 As notas filológicas resolveram o problema do texto hebraico.

O que pretende na realidade o autor com essa interrogação? Sobre o que recai fundamentalmente a pergunta? Os intérpretes deram muitas respostas que, a meu ver, não se referem diretamente à pergunta. Por isso, creio que é convincente e necessário esclarecer antes de nada do que não se trata em 3,21.

Em primeiro lugar é preciso afirmar categoricamente que em 3,21 não se trata nem direta nem indiretamente da imortalidade da alma, pois o termo ruah segundo o testemunho unânime dos autores modernos “não é o que nós concebemos que sobrevive à morte do corpo humano”,37 mas alento, sopro vital, princípio de vida.38

Tampouco se trata em 3,21 do tema do sheol, uma vez que “nunca um israelita enviou ao sheol o sopro vital dos animais”.39 Qohélet defenderá a doutrina tradicional sobre o sheol não aqui, mas em 9,10.

De que se trata então em 3,21? A interrogação tem uma única finali­dade: saber se se dá alguma distinção entre alento e alento (ruah). Segun­

36Cf. A. Schoors, Koheleth, 301.37A. Vaccari, UEcclesiaste em La Sacra Bobbia, Florença, 1961,1123, nota ao v. 21.38Sendo assim, não cabe a resposta de L. Di Fonzo: “Qoh... admite sem mais nem menos a supe­

rioridade intelectual e imortal do homem” CEcclesiaste, 176a). O mesmo se deve dizer da sentença de A. Vaccari: “Não duvida [Qohélet] da imortalidade da alma” (UEcclesiaste, 1123, nota ao v. 21), e muito mais do que escreve G. Pérez Rodríguez: “Cohelet não toca na diferença fundamental entre o animal e o homem, que põe este numa ordem superior àquele: a posse por parte do homem de uma alma racional destinada a uma imortalidade de todo feliz” (Eclesiastés, 887). E certo que Qohélet não toca neste problema, mas não pelas razões que crê o autor citado, mas porque disso não tinha nem idéia; isso estava fora dos horizontes do autor” (La Bíblia, paso a paso, 24).

39A. Barucq, Eclesiastés, 86; ver, porém, O. Loretz, Gotteswoii, 143.

Page 245: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

do Qohélet, a única forma de averiguá-lo é saber o destino de um e outro, se um sobe para o alto e outro desce à terra. O texto, sendo assim, não responde; antes teria que se supor resposta negativa,40 pois toda pergunta assim proposta considera-se meramente retórica ou, pelo menos, expressa dúvida que por sua natureza manifesta ignorância.

Para além do própro texto, alguns autores supõem, não sem funda­mento, que Qohélet polemiza com uma nova doutrina, “segundo a qual o alento do homem sobe para cima, para Deus, ao passo que o do animal desce para baixo ao mundo inferior”.41 Essa nova doutrina se alimentaria bem, seja da corrente originada na religião astral mesopotâmica, seja das idéias que pairavam no ar em ambientes helenísticos.42

Prescindindo de possíveis discussões, podemos concluir que à pergunta, que se faz Qohélet, num primeiro momento nem ele próprio sabe respon­der nada; que quando muito responderia com a doutrina tradicional do sheol (cf. 9,10). Com toda certeza, essa doutrina não o satisfaz, razão pela qual continua perguntando, sinal manifesto de que não tem a mais míni­ma idéia do algo positivo para além da morte.43

3. Convite a desfrutar do momento presente: 3,223,22 E assim observei:

que não há nada de melhor que desfruteo homem do que faz: é essa sua parte;pois quem poderá levá-lo a desfrutar do que virá depois dele?

22 “E assim”: lit. “e”, mas com valor conclusivo, “do que faz”: lit. “de sua obra, de seu trabalho”, “quem poderá levá-lo...?”: Ht. “quem o levará...?”

3,22. Depois de observações e reflexões tão pouco alentadoras, como as de 3,16-21, termina a perícope com um raciocínio positivo que se plas­ma num convite a desfrutar pacífica e alegremente do momento presente, o único seguro numa existência azarada.

O versículo 3,22 de certa forma é a conclusão do processo de pensa­mento aberto em 3,16 com a observação do domínio da injustiça na vida social. Por essa razão traduzimos a copulativa we como partícula consecu- tivo-conclusiva: e assim observei.

40J. Steinmann assim o expressa: “A interrogação: ‘Quem sabe se...’ tem o sentido de negação” (Ainsi, 67).

41A. Sehoors, Koheleth, 301; cf. também D. Michel, Untersuchungen, 248.42Cf. O. S. Rankin - G. G. Atkins, The Book, 52; M. Hengel, Judentum, 228.43Aderimos à opinião de A. Sehoors que conclui seu estudo com estas palavras: ‘"Item-se a impres­

são de que, na opinião de Qohélet, a morte é ainda mais final que o é em outros textos do AT. Com Whitley podemos dizer: ‘Passagens como Gn 37,35; ISm 28,3-19 e Jó 3,17-19 concebem certo modo de existência para os que vão ao sheol, mas para Kohélet parece indicar completa extinção, na qual a sorte do homem não se distingue da do animal’. Em suma, na opinião de Kohélet, a morte leva ao máximo as aporias da vida humana” (Koheleth, 303); a citação é tomada de Ch. F. Whitley, Koheleth, 167. Cf. o que diremos a propósito de 9,5-6.10.

Page 246: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Com todo rigor não se pode dizer que o autor nos recomende em 3,22 algo novo; o que nos diz recorda-nos algo já conhecido.44

E verdadeiro exagero equiparar a sensata observação de Qohélet de que nada há de melhor que desfrute o homem do que faz, com o carpe diem de Horácio, ou com os convites egípcios, ou babilónicos, ou gregos ao gozo do momento presente, como o faz A. Lauha.45 Qohélet convida o homem a desfrutar do que faz, da atividade mesma ou do trabalho (cf. 2,24 e 3,13), e de seus frutos naturalmente. Não negamos que implica certa concepção otimista que não está nada mal num autor, a quem amiúde se qualifica de cético ou pessimista. E visto que a determinação do êxito da vida e a pró­pria vida não estão em tnãos do homem, bem pode desfrutar do momento feliz quando lhe chegar, porque verdadeiramente lhe corresponde e é seu: essa é sua parte. “O heleq do homem é um conceito existencial que signifi­ca seu lugar ou a posse dada a ele no mundo”,46 e no momento presente que se vive realmente, mas que escapa, que foge imediatamente. Do de­mais, ainda que seja imaginável e possível, o homem não pode estar segu­ro. A interrogação: Quem poderá levá-lo a desfrutar...?, espera resposta negativa: ninguém, como dizíamos de 3,21. O que vier, será preciso recebê- lo como dom e presente. Quanto ao que virá depois dele, não saímos da esfera intramundana e histórica: depois da morte do indivíduo.47

IV. OUTRAS REFLEXÕES DE QOHÉLET MENOS TRANSCENDENTAIS (4,1-16)

Continua em 4,lss a coleção de observações que, a partir de 3,16, não formam grandes unidades, mas perícopes ou estrofes relativamente pe­quenas, agrupadas por materiais mais ou menos afins, com os recursos estilísticos habituais. As reflexões em primeira pessoa apoiam-se de mais a mais em sentenças proverbiais que se supõem conhecidas pelos leitores,

44"Este versículo... confirma um tema importante já tratado, por exemplo, em 2,24 e 3,12-13” (Bo Isaksson, Studies, 170); “autocitação” chama-o D. Michel em Untersuchungen, 248 e 251.

45Cf. Kohelet, 77s. Ver o que já dissemos a propósito de 2,24 e de 3,12-13.46Bo Isaksson, Studies, 185. Nesta mesma linha está G. von Rad que escreve: “Quanto ‘à parte’

que toca ao homem, ou seja, ao posto que se lhe atribuiu na vida — hoje falaríamos de ‘o sentido da existência’ —, o Eclesiastes dá resposta francamente positiva, já que aqui se pode reconhecer um plano de Deus propício para o homem. O único que se pode chamar de ‘bom’ é ‘que o homem desfrute do que faz’; este é seu pagamento” (3,22; 5,17)” (Sabiduría, 291). Cf. também M. A. Klopfenstein, Kohelet, 106.

47N. Lohfmk assim o entende também: “Como mostra a formulação mais clara do versículo 6,12, semelhante em muitas coisas (‘sob o sol’), ‘depois dele’ significa não ‘depois de sua morte no outro mundo’, mas ‘depois de sua morte neste mundo’ “ (Kohelet, 35b-36a); cf. também D. Lys, L’Ecclésiaste, 406; J. L. Crenshaw, Eclesiastes, 105.

Page 247: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sem que excluamos por isso a possibilidade de que Qohélet mesmo seja o autor de algumas delas.

Qoh 4,1-6 divide-se claramente em dois blocos, a saber, em 4,1-12 e em 4,13-16. O segundo (4,13-16) é formado por uma perícope de cuja uni­dade não se pode duvidar, pois trata de um só tema: o jovem pobre, mas sábio, diante do rei velho, mas néscio. O primeiro bloco (4,1-12) é mais heterogêneo: constituem-no três subsecções de conteúdo diverso, mas for­malmente bem enlaçados por vários recursos: o dos números (dois e um, um e dois) e o do gênero literário (“melhor é... que”, “mais vale... que”). Essas subsecções são: 4,1-3: as penalidades da vida fazem com que seja preferível não viver a viver; 4,4-6: melhor é ter pouca posse mas muita paz, do que muitas riquezas, mas poucas ou nenhuma satisfações; e 4,7­12: má é a sociedade, razão pela qual é preferível a companhia.1

1. Porque são preferíveis os mortos aos vivos: 4,1-3

A visão de uma sociedade sem piedade, sem misericórdia, que oprime e avassala seus membros mais fracos, faz clamar Qohélet como clamavam o profeta Jeremias e o malferido Jó em seus momentos mais amargos.

4,1 E outra vez observei todas as opressões que se cometem sob o sol; e eis as lágrimas dos oprimidos, mas eles não têm consolador; e da parte de seus opressores violência, mas eles não têm consolador.

2 E proclamei os mortos que já morreram mais ditosos que os vivos que ainda vivem,

3 porém melhor que os dois, o que ainda não existiu, o que não viu as más ações que se fazem sob o sol.

1 “E outra vez observei” (cf. também 1,7): Como nos indicam os gramáticos e lexicógrafos, o shub, unido a outro verbo, indica repetição da ação do segundo verbo, que se constrói com waw inversivo (cf. F. Zorell, s. v. shub, 4). Sobre essa primeira sentença do v. 1 veja Isaksson: “Os dois verbos paralelos apresentam uma espécie de hendíade: weshabti bni wa’ar’e, um modo de construção que pode ter funcionado como sintagma, frase feita” (Studies, 63).“as opressões”: ha^shuqim (defectivamente escrito por ha^shuqim), plu­ral de abstração (cf. P. Joüon, 136g-i), que se poderia traduzir no singular, “mas eles não têm consolador”: Alguns autores suspeitam da repetição da frase, razão pela qual introduzem alguma mudança na segunda vez (cf. BH 3â ed., e BHS; G. R. Driver, Problems, 227s); a maioria, porém, mantêm a sentença como está (cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 102; Ch. F. Whitley, Koheleth, 39 e Qoh 13,16).

*Para o estudo da composição e estrutura de 4,1-12 são muito valiosas as considerações que faz G. S. Ogden em Qoheleth [1987], 65s e em The Mathematics, 446-453.

Page 248: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“da parte de”: lit. “da mão de”, “violência”: koah geralmente tem sentido positivo de força, poder, talvez seja essa passagem a única em que tem sentido negativo (cf. A. Lauha, Kohelet, 81).

2 “E proclamei... ditosos”: w‘shabbeah bni, infinitivo absoluto piei seguido de pronome da Ia pessoa. O verbo em infinitivo substitui o verbo finito, uso pouco comum do infinitivo no hebraico bíblico (cf. Ges.-K., 113gg; R. Meyer, Gramática, III103,3s). Segundo M. J. Dahood trata-se de fenicismo (cf. Qoheleth and Northw., 355); R. Gordis admite, porém, que também é “hebraico autêntico” (cf. Was Koheleth, 110). Para maiores matizações, veja- se H. W. Hertzberg, Der Prediger, 102; Ch. F. Whitley, Koheleth, 39-41). “que... vivem” ou estão vivos: sher hemmah hayyim. Ninguém nega que em hebraico, se utiliza amiúde o pron. pess. como cópula. Também no caso presente (e em 7,26): relativo + pron. pess., M. J. Dahood inter­preta o pron. pess. como cópula (cf. Canaanite-Phoen., 196); de novo R. Gordis opõe-se a Dahood e afirma que “o pronome não é cópula de modo algum, mas o sujeito da cláusula” (Was Koheleth, 110); cf. também Ch. F. Whitley, Koheleth, 41. “que ainda vivem”: Não se duvida nem do signifi­cado de ’“denah (v. 2) nem de %den (v. 3), mas de sua origem. A sentença mais comum defende que denah é o resultado da construção de bd henah e %den de ’adhen (cf. léxicos; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 102; C. C. Frederiks, Qoheleth’s, 41). M. J. Dahood não admite a explicação ante­rior, pois crê que “ ’adn... seria advérbio baseado na palavra ’dn do ugarítico e ’dnh representaria a forma com o sufixo terminativo” (Cannanite-Phoen., 48). Por último, Ch. F. Whitley propõe raiz distinta para cada vocábulo: ‘dah para ‘adnh e ‘adad para ‘dn (cf. Koheleth, 41).

3 “Porém melhor”: traduzimos o waw como adversativo. “o que ainda não existiu”: o relativo sujeito vai precedido da proposição ’et, que normal­mente indica o acusativo, mas também pode preceder o nominativo, so­bretudo se se quer dar ênfase (cf. Ges.-K., 117m; P Joüon, 125j; Ch. F. Whitley, Koheleth, 42).

4,1-3. Esses três versículos formam uma pequena unidade, completa em si mesma. Começam com a ação típica de Qohélet: a observação da rea­lidade, e continuam com a simples constatação do observado, sem acrescen­tar conclusões por sua parte. Confirmação de que 4,1-3 constitui unidade independente é o começo de 4,4: outra observação. A afinidade do tema trata­do em 4,1-3 com o que precede (especialmente cm 3,16s), levou alguns auto­res a fazerem de todo ele uma unidade. Mas é evidente que 3,18-22 é outra coisa, razão por que é preciso tornar independente 4,1-3 do precedente.

1. Outra vez observei-. Às muitas observações anteriores (cf. 1,14; 2,13; 3,10.16.22) acrescenta Qohélet esta última que supera em dra- matismo todas as outras. O autor já manifestou que não é indiferente às injustiças humanas (cf. 3,16s); neste versículo sublinha Qohélet comple- xivamente uma das manifestações mais dolorosas dessas injustiças: as opressões dos poderosos sobre os fracos e o efeito dilacerante das lágrimas dos oprimidos.

Page 249: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Evidentemente, Qohélet exagera ao afirmar que observou todas as opressões, mas em seguida se descobre qual é sua intenção: não descartar nenhuma situação da vida real, estigmatizada pelo sinal da opressão. Que esta seja a intenção que preocupa o autor, manifesta-se também no em­prego três vezes repetido de vocábulos com a raiz comum ‘shq, que signifi­ca oprimir injustamente. A primeria vez é particípio-substantivo ha‘ashuqim: as opressões de que viemos falando até agora; trata-se das ações visíveis que se cometem sob o sol e que são injustiças e violências abertamente perpetradas. Mas essas ações opressivas exercem-se sobre pessoas determinadas, que são as vítimas, os oprimidos (segundo ha‘ashuqim) com seus sinais de identidade: as lágrimas. E por último seus opressores Çhoshqehem), os únicos malvados agentes neste drama, unidos inseparavelmente a suas vítimas.

Para completar esse negro quadro, que descreve a situação sociàl de um povo submetido e subjugado, três pinceladas a mais de uma força ex­pressiva incomparável. No povo injustamente tratado, as lágrimas, as amargas lágrimas, imagem sempre dilacerante da dor física e psíquica de uma pessoa derrotada. Da parte dos opressores, a violência, ou seja, o po­der real, material e moral, abusiva, injusta e cruelmente utilizado sobre os que não têm nenhum poder nem possibilidade de reação. E por último a carência absoluta de ajuda, de consolo que mitigue a dor: mas eles não têm consolador, repetido intencionalmente por duas vezes.2

Não sabemos se a Qohélet teria tremido a voz, se tivesse lido o que acabara de escrever; mas parece que seu estado de ânimo se alterou, ra­zão pela qual repete a última observação e, sobretudo, vai mostrá-lo nos versículos seguintes.

2. No presente contexto, alguns autores ousam falar de “escândalo” em Qohélet.3 Já é difícil que Qohélet se escandalize de alguma coisa; em todo caso, proclamar os mortos mais felizes que os vivos é sair da ordem natural e refugiar-se na esfera da fantasia, fugindo da vida real que se considera execrável e indigna de ser vivida.

A redundância do versículo: os mortos que já morreram e os vivos que ainda vivem, é recurso estilístico pretendido por Qohélet, que reforça as­sim a antítese entre os mortos de verdade e os autênticos vivos. Não se trata de discussão em abstrato sobre a morte e a vida, e sim da compara-

2Chama muito a atenção essa repetição, que causou certo desconcerto entre os autores (cf. notas filológicas). A situação é tão extremadamente desconcertante, que faz E. Glasser exclamar com acen­tos de Jó: “Os consoladores que se ocultam são com certeza os homens no poder, responsáveis pelo bem comum, mas o é também Deus” (Le procès, 74). Recentemente F. Bianchi refletiu mais detidamente sobre Qoh 4,1 e reforçou a opinião de E. Glasser (cf. “Essi non hanno...”).

3Escreve D. A. Garret: “Qohélet expressa a profundidade de seu escândalo pela crueldade da es­trutura social nessa passagem” (Qoheleth, 164). Cf. também D. Lys, UEcclésiaste, 416.

Page 250: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ção em concreto de determinadas situações. Se as situações mudam, tam­bém mudará logicamente o juízo de Qohélet. Assim se explica que mais adiante sustente que são preferíveis os vivos aos mortos, como apostila o refrão: “vale mais cão vivo que leão morto” (9,4b). Em circunstâncias mais ou menos normais é preferível, sem dúvida, viver a estar morto, porque, mesmo no pior dos casos, enquanto há vida há esperança de continuar vivos (cf. 9,4a) e até de melhorar; ao passo que os mortos, segundo Qohélet, estão bem mortos, “não sabem nada... seus amores, seus ódios há tempo que acabaram, nunca mais terão parte em tudo o que se faz sob o sol” (9,5­6); “porque não há ação, nem cálculos, nem conhecimento, nem sabedoria no abismo aonde tu te encaminhas” (9,10).

Mas a situação que Qohélet tem diante de si em 4,2 é a descrita em 4,1 que é também distinta da normal que se supõe em Qoh 9,4-10. Já em3,18-20 tinha recordado Qohélet que o homem não era superior aos ani­mais, e sim quando muito igual pelo destino que os aguardava, e ainda pior que eles na ida real, onde a injustiça impera entre os homens. Em 4,1 Qohélet não faz mais que ampliar um pouco seu campo de observação: da prática e administração da injustiça (3,16-17) passa à vida real das víti­mas dessas injustiças e atropelos. E o que vê? Violência, opressão e lágri­mas, absoluto abandono e desconsolo. Neste contexto, que vantagem tem continuar vivos? Um sábio tão comedido como Jesus ben Sira dirá em circunstâncias tão graves como as que refletem Qoh 4,1: “mais vale mor­rer do que viver sem proveito, e o descanso eterno mais que sofrimento crônico” (Eclo 30,17; ver também 41,2s). O refrão castelhano diz: “Melhor é morrer que mal viver”.

Qohélet expressa, portanto, em 4,2 o desafogo natural do homem que sofre e considera a dor como estado antinatural.4

3. Mas Qohélet vai ainda além em sua apreciação e considera melhor que os dois, ou seja, que os mortos que antes viveram e que os vivos que ainda não morreram e que estão sob opressão e sofrimento, o que ainda não existiu, e dá a razão disso: não viu as más obras que se fazem sob o sol, razão por que sequer tiveram a possibilidade de sofrer as injustas opres­sões que acontecem na vida.

A que se refere Qohélet ao falar do que ainda não existiu? Sem dúvida ao que ainda não nasceu, mas que um dia nascerá; de nenhuma maneira faz alusão à teoria da preexistência das almas que ainda não se encar­naram, e que posteriormente defenderá Orígenes.5

4Cf. Heródoto, Histórias, I 31; Sófocles, Antígona, 461-464.5Cf. Orígenes, Hornl. VII in Números, 3: GCS 30,42. Segundo S. Leanza “a expressão ‘qui ne ad

conclusionem quidem vulvae carnalis venit’ [de Orígenes] significa: ‘Aquele que nem sequer foi incluí-

Page 251: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet não chega, porém, a maldizer o dia de seu nascimento, como o fez Jeremias: “Maldito o dia em que nasci; o dia em que me deu à luz minha mãe não seja bendito!” (Jr 20,14); e também Jó: “Morra o dia em que nasci!” (Jó 3,3; cf. também w. 4ss); nem menos ainda insinua sequer o suicídio.6

Sentimentos semelhantes aos de Qohélet em 4,2-3 encontramos na literatura grega e romana. Teógnis diz: “De todas as coisas, a melhor para os homens que nasceram sobre a terra é não ter nascido...”.7 Também Sófocles faz o Coro dizer: “Não ter nascido é a melhor das venturas”.8 E algo muito parecido lemos em M. T. Cícero: “Para o homem o melhor de tudo seria não nascer”.9

2. Nem excesso nem ausência de trabalho, mas tranqüilidade: 4,4-6

A nova observação de Qohélet recai sobre conteúdo novo em compara­ção com o anterior: o trabalho ou atividade humana e suas conotações. Qohélet contrapõe abertamente duas concepções da vida: uma centrada exclusivamente na ação, no trabalho ou laboriosidade; a outra, na con­templação e no desfrute saboroso de vida serena e paz de espírito.

4,4 E observei também que todo trabalho e todo êxito nos empreendimentos não é senão rivalidade entre companheiros.Também isso é vaidade e caça de vento.

5 O néscio cruza os braços e devora-se a si mesmo.6 Melhor é um punhado com tranqüilidade que dois punhados com traba­

lho e caça de vento.4 “os empreendimentos”: lit. “a obra” ou “o que se faz”.5 “a si mesmo”: lit. “sua carne”.6 “um punhado”: lit. “uma mão cheia”. Tanto tranqüilidade (nahat) como

trabalho (‘amai) e caça (r*‘ut) dependem do adjetivo verbal cheia— cheia (melo’)t incluído em punhado.

4,4-6. A segunda estrofe do conjunto 4,1-12 é marcada em seu começo e seu final, constituindo verdadeira unidade. Começa com um verbo típico de Qohélet, especialmente neste contexto: Observei (cf. 4,1 e 7), e termina com e caça de vento (ufr^ut ruah), que forma uma inclusão (4,4 e 4,6).

4. O campo da nova observação de Qohélet é o da atividade ou do trabalho nas relações inter-humanas, especialmente de tipo comercial. De­

do no seio materno’, para distingui-lo do nascido abortivamente, a que Orígenes também alude na passagem exegética, com referência a Ecl 6,3" (Uexegesi di Origem, 38).

6Cf. D. A. Garret, Qohéleth, 163; D. Lys, L’Ècclé$iaste, 418s.7Elegias, 425-428; vejam-se A. Bonora, Qohelet, 102.sEdipo em Colono, 1225.9Tusculanas, I 48, na boca da personagem Marcos.

Page 252: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pois do que acaba de proclamar Qohélet em 4,2-3, a saber, que é preferível o estado dos que não existem ao dos que existem entre desgraças e dificul­dades insuperáveis, não nos pode estranhar que Qohélet não resuma seu ideal de vida (cf. v. 6) na atividade produtiva ou trabalho do homem, de qualquer tipo seja, contanto que vá acompanhada de êxito. O sábio obser­vador descobre que, sob a atividade febril do homem, que busca riqueza e prestígio em tudo o que empreende, esconde-se uma rivalidade agressiva que tudo converte em luta sem quartel; nessa luta já não conta para nada o que entre os homens normalmente mais se costuma estimar: amizade e companheirismo. Em todo homem vê-se um rival que é preciso vencer; a vida é estádio de competição e campo de batalha.

Essas reflexões não são mera retórica, e sim pálido reflexo da vida real, como nós mesmos podemos constatar, quando o que determina a es­cala de vedores na sociedade é o dinheiro, o poder e o êxito. Comprovamos assim que a natureza do homem é a mesma em nosso tempo e no de Qohélet; que são os mesmos os molejos que arrastam o homem, pelos quais se po­dem sacrificar os mais elevados sentimentos.

Conclui, por isso, Qohélet, com grande sabedoria, que também isso é vaidade e caça de vento (cf. 1,2.14). Assim, com uma canetada e com sua frase favorita, desqualifica Qohélet toda uma concepção da vida, sobre que se constrói o tão complicado vigamento da sociedade helenística e, com efeito, da vida social de todos os tempos.

5-6. O autor desenvolve de modo muito original o pensamento do v.4, a tese que está em seu fundo: a futilidade da vida que gira em torno do afã pela produtividade e do êxito a qualquer preço. A técnica do autor é a de propor antiteticamente duas atitudes do homem: uma muito conheci­da no ambiente sapiencial e tida como atitude reprovável: a do vadio (v. 5), e outra menos conhecida, embora não implique novidade absoluta, mas que neste contexto adquire valor extraordinário porque a assume Qohélet e a contrapõe à concepção dominante: “Melhor é um punhado...” (v. 6).

A sabedoria de todos os tempos louvou o laborioso e repreendeu o vadio por sua vadiagem e porque, por certo, vai à ruína. O livro dos Pro­vérbios é fiel reflexo dessa sabedoria universal. Sobre a preguiça e seus efeitos podemos ler: “Mão preguiçosa empobrece, braço diligente enrique­ce” (10,4); também: “a preguiça arruína-se no sono, o vadio passará fome” (19,15; ver também 21,25). Um provérbio, que utiliza a mesma expressão que Qoh 4,5, é Pr 24,33-34: “Dormir um pouco, cochilar um pouco, um pouco cruzar os braços e deitar-se, e chega-te a pobreza do vagabundo, a indigência do mendigo”. O néscio de Qoh 4,5a identifica-se com o vadio ou preguiçoso de Provérbios; os dois cruzam os braços e o resultado mesmo: o

Page 253: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

estado de miséria. A expressão de Qohélet: devora-se a si mesmo, só tem uma explicação; como diz S. Holm Nielsen: “O néscio vadio não consegue nada para comer, exceto sua própria carne”.10

No v. 6 fica, porém, consignada a opinião de Qohélet. Ele não aprova a atitude de quem faz da vida competição ou rivalidade entre companheiros, ou seja, pura atividade em busca de sucesso, poder e riquezas. Mas tam­bém não está de acordo com néscios e vadios; nem o extremo de uns: dois punhados com trabalho e caça de vento, nem o dos outros: o néscio que cruza os braços. Propõe ele via média que é o ideal da aurea mediocritas: um punhado com tranqüilidade.11 Este ideal está muito de acordo com as recomendações de Qohélet sobre o desfrute da vida que Deus nos dá.12 Parafraseando a palavra do evangelho: o que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se dele não consegue desfrutar com tranqüilidade e paz de espírito?13

3. A companhia é preferível à solidão: 4,7-12

O tema central dessa secção gira em torno dos pólos só —- acompa­nhado, dois — um / um — dois. A solidão é uma desgraça, como se vê com relação à herança e em momentos cruciais da vida do homem.

4,7 E observei outra vaidade sob o sol:8 Alguém está só sem companheiro, sem filhos nem irmãos,

no entanto, trabalha sem descanso,não está contente com suas riquezas.Mas “para quem trabalho eu e me privo de satisfações?”Também isso é vaidade e triste tarefa.

9 Melhor dois que um só, visto que terão bom ganho em seu trabalho.10 Porque, se caírem, um levantará o companheiro;

mas ai do solitário que cair, e não houver outro que o levante!11 Ademais, se dois se deitam juntos, aquecem-se;

um só como se aquecerá?12 E, se atacam um, os dois juntos resistirão:

a corda de três cabos não se rompe facilmente.

7 “E observei outra vaidade”: lit. “e observei outra vez a vaidade” (cf. v. 1).

10The Book, 46uCf. H. W. Hertzberg, DerPrediger, 114; N. Lohfink, Kohelet, 37b. Não compreendo como A. Bonora

possa dizer que Qohélet “rejeita o ideal da mediocritas” (Qohélet, 103).12Cf. Introdução, IV 4: sobre as alegrias da vida.13K. Silva escreve em seu singelo comentário ao Eclesiastes: “Nunca me esquecerei do pensamento

que aprendi há muitos anos: ‘Renato gastou saúde para ter dinheiro; depois gastou dinheiro para ter saúde; olhem-no ali, em seu ataúde sem dinheiro e sem saúde” (Eclesiastés, 95).

Page 254: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

8 “sem filhos...”: lit. “nem sequer filho”, “trabalhar sem descanso”: lit. “não há fim para todo seu trabalho”, “não está contente”: lit. “nem sequer seus olhos [no sing. com Qerê] se fartam”.

9 “melhor”: lit. “melhores” em concordância com dois.10 “se caírem”: ou seja, se qualquer deles cai, interpretando yippolu como

partitivo (cf. R. Gordis, Koheleth— the man, 242; Ch. F. Whitley, Koheleth, 43); “ai!”: ’ilo é combinação de duas palavras í lo. ’i está no lugar do antigo ’oy” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 43).

12 “se atacam um”: lit. “se [alguém?] ataca um”, “resistirão”: lit. “estarão firmes frente a ele”.

4,7-12. Que esses versículos formem unidade geralmente há conver­gência de pareceres. A repetição das fórmulas do v. 7 (cf. 4,1a aqui quase literalmente) marca o começo; a fronteira de 4,13, que dá início a outra perícope, indica que 4,12 é o final. O centro ocupa o v. 9 com um provér­bio do estilo “melhor que...”. O tema do trabalho nos w. 8-9 serve de ligação com a secção anterior. Como indicamos na primeira introdução a4,7-12, a antítese um — dois / dois — um e seu significado: solidão — compahia, fazem com que o conteúdo de 4,7-12 seja muito consistente e uniforme.

7. É notável a insistência de Qohélet neste capítulo em apresentar seus ensinamentos como fruto de observações pessoais (cf. 4,1.4 e 15). Não quer dizer que Qohélet seja o descobridor desses ensinamentos, embora o possa ser de alguns, mas que tudo o que afirma passou pelo crivo da refle­xão pessoal. Realmente, Qohélet não é mero repetidor ou transmissor do que outros sábios antes dele observaram.

Outra vaidade: porque no v. 4 falou de algo que mereceu seu veredito de que é vaidade. Tanto no v. 4 como nos w. 8 e 16 o ditame negativo de vaidade segue à constatação do observado; no v. 7, porém, a asseveração de vaidade precede prolepticamente ao que vai considerar como vã e triste tarefa (v. 8). Também repete a fórmula sob o sol, com o mesmo sentido de esfera humana e temporal (cf. 4,1 e 1,3).

8. O versículo explicita com muitos detalhes o conteúdo da nova ob­servação de Qohélet, que se concentra no caso do homem solitário, cheio de riquezas e dominado pela paixão do trabalho. Isso surpreende a Qohélet que, transformado nessa personagem, interroga-se a si mesmo sobre o sentido de sua vida, tal como a vive.

Alguém está só: é a personagem única e, portanto, central de toda a cena. A acumulação de monossílabos neste versículo talvez seja a maior de todo o livro; estão muito de acordo com o tema. Sem companheiro: sem um segundo como ele; não tem por que se referir à carência de esposa ou a seu possível estado de solteiro, pois, como acertadamente comenta A. Lauha:

Page 255: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“shni, ‘o segundo’, ‘o outro’, designa o companheiro ou camarada; de ne­nhuma maneira se relaciona a palavra com a esposa, nem com o filho ou o irmão, que são mencionados imediatamente depois”.14

Trabalha sem descanso: é o que chama a atenção de Qohélet, porque não consegue compreender as motivações de semelhante atitude. Ele apon­ta uma: não está contente com suas riquezas, ou, como diz a metáfora: seus olhos não se fartam. Já tem mais do que necessita, mas desmedidas são as ânsias de possuir mais e mais, que sequer pode saciar ou controlar. Só um golpe em seco, uma freagem repentina fa-lo-á refletir. Naturalmente se trata de uma ficção de Qohélet, mas muito elaborada. A pergunta retórica na primeira pessoa leva implícita a resposta. Para quem trabalho eu e me privo...? Não tem ninguém no mundo por quem se preocupar: a hipótese é que está só e sem herdeiros. Realmente sua maneira de comportar-se com relação ao trabalho e aos frutos desse trabalho: as riquezas, é própria do insensato. Por isso, Qohélet conclui o versículo 8 e a sentença: Também isso é vaidade (cf. v. 7), com o eloqüente acréscimo: e triste ou má tarefa (cf. 13), pois que constitui trabalho sem finalidade que o justifique.

9-12. No v. 8 poder-se-ia pôr o termo da reflexão de Qohélet, pois os dois versículos 7-8 em si mesmos têm sentido completo e estão emoldura­dos pelo juízo de vaidade. Mas pode-se também pensar que 4,9-12 alarga a reflexão sobre as desvantagens do um só, completando-as com as vanta­gens de se estar bem acompanhado.

Sabe a provérbio ou tese o melhor dois que um só (v. 9), e, de mais a mais, na verdade o é, visto que formula lapidarmente o pensamento de Qohélet. Já vimos o que opina ele sobre o solitário que não sabe progra­mar seu trabalho nem devidamente desfrutar de sua fortuna (cf. v. 8); veremos agora porque, segundo Qohélet, a companhia (dois) é melhor que a solidão (um só).

Não creio que pretenda Qohélet aduzir as maiores e as mais fortes razões para provar “sua tese”; as que aduz só são seletivas, a modo de exemplos. Toma-se a primeira do meio comercial e é evidente por si mes­ma: terão um bom ganho (v. 9b), ou seja, dois ganharão mais que um. As três seguintes fazem parte da casuística, tiram-se da vida real e apresen­tam-se como simples exemplos. No v. 10 se nos apresenta o primeiro: no caso de dois caminharem juntos, se um deles cair, o companheio o levanta­rá. Mas ai do solitário se cair, por exemplo, num poço, numa cova que o engula; quem o irá levantar e quem irá pedir ajuda? Este é o célebre ai do solitário!, que se refere à circunstância explicada, mas que tantas aplica­ções pode ter na vida.

uKohelet, 89.

Page 256: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O segundo exemplo no v. 11 translada-nos a um dia muito frio de inverno, seja na hospedaria, seja a céu aberto; o modo natural de aquecer- se durante as noites, se se quiser dormir, é deitar pelo menos dois juntos na mesma cama. Ainda que aqui não se trate de marido e mulher, é bom recordar o exemplo de Davi já velho, que “por mais roupa que se lhe puses­se em cima, não ficava aquecido”, razão por que tiveram que lhe buscar uma jovem donzela, Abisag, a sunamita, para que, ao dormir junto, o aque­cesse (cf. lRs 1,1-4).15 Ora, um só como se aquecerá?

O terceiro exemplo está no v. 12a: Se atacarem um, os dois juntos resistirão. E claro que, em caso de ataque ou de agressão, o número tem grande importância. Mais facilmente resistirão dois ao ataque de um ou de vários que um sozinho. E verdade que a união faz a força.

Qohélet termina essa breve dissertação sobre as vantagens do “dois melhor que um” com um provérbio que contém o número três: o um e o dois chamam o três. Provavelmente esta terá sido a razão pela qual Qohélet aduz esse provérbio neste lugar; já que o número três não se explica pelo contexto de outra maneira; ainda que o sentido dele pareça quadrar com o raciocínio geral. A corda pode constar de um só cabo ou fio retorcido, por exemplo, a de um instrumento musical, ou de mais de um. Lo­gicamente uma corda será tanto mais resistente quanto de mais fios ou cabos for feita, coisa que o provérbio de 4,12a sublinha: a de três não se rompe facilmente.

As idéias que desenvolve Qohélet em 4,9-12 são tão comuns que não se podem chamar de originais. Provavelmente, se percorrêssemos os tes­temunhos literários antigos, encontraríamos mais de uma passagem que poderíamos chamar paralelas. Assim encontram-se, na epopéia babilónica de Gilagamesh, passagens que, ainda que retocadas por estarem incom­pletas, parecem-se com nosso texto: “Se alguém fica só, não pode vencer; mas dois podem. Estranhos dispersam suas forças, amigos as juntam. Um caminho cortado a pique um só não o pode percorrer, mas dois... ajudando- se, o podem. Uma corda tríplice não se pode romper. Mais fortes que seu pai são dois leões novos”.16 Da mesma forma, este outro texto, também de Gilgamesh, diz: “Um navio rebocado não soçobrará, porque um cabo tríplice ninguém conseguirá romper”.17

15D. Buzy recorda em seu comentário: “Quem estranhar essa familiaridade [dormir dois na mes­ma cama], que se recorde que faz talvez menos de um século em certas províncias da França e da Europa as camas da pousada recebiam até quatro viajantes, dois na cabeceira, dois nos pés, cruzados em sentido oposto” (UEcelésiaste, 228). Eu também connheci esse costume na Espanha faz menos de meio século.

I6R. Labat, Les religions du Proche-Orient, Paris, 1970,177.179; tabuinha IV®., col. 5*-6a e tabuinha V3, col. 2S; cf. J. de Sevignac, La sagesse, 322.

17Citado em R. Tbumay, RB 75 (1968) 138; cf. A. Barucq, Eclesistés, 94.

Page 257: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

4. Jovem pobre e sábio diante de rei velho e néscio: 4,13-16

Alguém chamou essa perícope de puzzle ou quebra-cabeça18 e não lhe faltam motivos, como poderemos comprovar se repassarmos um pouco a complicada história de sua interpretação.19 A maioria fala de duas perso­nagens: o rei velho e o jovem adventício;20 uns poucos de três: o rei velho e dois jovens que acedem ao trono sucessivamente.21 Quanto à tentativa de identificação destas duas ou três personagens, vale o que diz E. Kroeber: “E inútil buscar identificações históricas”.22 A perícope é antes um exem­plo parabólico,23 ou “um apólogo sobre o poder”,24 que nos leva a pensar em histórias parecidas com a de José no Egito. Nela há três centros de aten­ção: o rei ou pessoa que governa e sua camarilha, o jovem concorrente com suas circunstâncias e, como pano de fundo, a multidão sem nome, a massa popular governada por um ou outro, que umas vezes dá vivas em favor e outras vocifera contra, mas que sempre sofre as arbitrariedades do pode­roso de turno e de seu mau governo.

4,13 Mais vale jovem pobre e sábio que rei velho e néscio, que não mais sabe deixar-se aconselhar.

14 Pois saiu do cárcere para reinar,embora durante seu reinado nascera pobre.

15 Observei que todos os viventes, que caminham sob o sol, estavam da parte do jovem, o segundo, que ocupou seu lugar;

16 era inumerável o povo, aqueles todos à cuja frente estava.Tampouco os que vierem atrás dele se alegrarão com ele.Pois também isso é vaidade e caça de vento.

14 “o cárcere”: bet hasurim. hasurim = ha^surim (cf. Ges.-K., 35d); esta é a sentença comum. No entanto, M. J. Dahood opina que em hasurim subjaz a raiz ugarítica srr que significa algo como “intestino”, aplicado aqui ao seio materno: “sai do seio materno” (cf. Qoheleth and Northw., 356s). Com modificações importantes seguem essa orientação F. Piotti (cf. La lingua, 190s) e Ch. F. Whitley (cf. Koheleth, 45s).

15 “ocupou seu lugar”: lit. “levantou-se no lugar dele”.

4,13-16. Estamos no segundo bloco de que consta o cap. 4, depois do primeiro (4,1-12). O tema principal da perícope, segundo palavras de N.

18Cf. C. C. Torrey, Theproblem, 175.19Resumos dessa história mais que complexa podem-se ver em A. L. Williams, Ecclesiastes, 56s; H.

W. Hertzberg, Der Prediger, 116-118; F. Ellermeier, Qohelet, 1/1, 217-228.20Cf. R. Kroeber, Der Prediger, 138; O. Loretz, Gotteswort, 147; L. Di Fronzo, Ecclesiaste, 193b; A.

Barucq, Eclesiastés, 95s.21Cf. R. D. Schunk, Drei Seleukiden [um resumo dele em S. Bretón, Qoheleth, 46]; N. Lohfink,

Kohelet, 39a; melek, 539; A. Bonora, Qohelet, 103.22Der Prediger, 138. Assim se deve julgar a tentativa de K. S. Schunk em Drei Seleukiden.23Cf. J. Steinmann, Ainsi, 70; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 193b; e J. A. Loader, Polar, 24.“ Como a chama G. Ravasi (Qohelet, 191).

Page 258: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Lohfink, gira em torno da “veleidade do favor popular e das vicissitudes da fortuna no cimo da política”.25

13. A sentença tem forma proverbial e faz parte do mesmo gênero literário dos versículos precedentes 6 e 9: “mais vale... que”, ou “melhor é... que”. No versículo introduz-se novo tema: o confronto entre o jovem pobre e o rei velho. Não é mero choque de gerações, mas algo mais impor­tante, que concerne ao governo dos povos.

Nem todas as circunstâncias do jovem fazem pressagiar vitória sobre o rei que governa. Ser pobre é fator muito em contra, já que na luta pelo poder precisa-se de muito dinheiro tanto para a defesa como para o ata­que, e para comprar, se necessário for, os partidários do inimigo. A juven­tude é valor ambíguo diante da velhice. A seu favor está o tempo; contra, a falta de experiência, tão decisiva para o bom governo. Mas em nosso versículo 13 se fala de terceiro fator que é decisivo: o jovem é sábio, o rei ancião néscio. E digo fator decisivo não tanto pela sabedoria do jovem como pela nescidade do rei velho; nescidade que não se supre com a sabedoria dos conselheiros, uma vez que, como Qohélet diz, o rei velho e néscio não mais sabe deixar-se aconselhar. O bom governante demonstra que o é se se rodeia de conselheiros competentes26 e sabe discernir bem entre uns con­selhos de outros.

14. O versículo liga-se diretamente com o anterior. Mantemos que o sujeito é o mesmo jovem sábio, e não o velho rei;27 unicamente assim tem sentido o provérbio do v. 13.

As dificuldades do jovem pretendente diante do rei velho, menciona­das já no comentário ao v. 13, a saber, o ser jovem e pobre, acrescenta-se ademais outra nova: a do encarceramento. Esta na realidade já foi supe­rada, pois se diz que saiu do cárcere e saiu para reinar. Como dissemos antes, não temos porque identificar historicamente este jovem que do cár­cere ascende ao trono. Trata-se de paradigma que se repetiu muitíssimas vezes ao longo da história nas lutas pelo poder. Nestes casos, o que primei­ro era obstáculo, converte-se depois em argumento a favor: ter sido perse­guido, entende-se que por razões políticas, é sinal de glória e auréola honorífica diante das massas sempre desejosas de mudanças, uma vez

'lhKohelet, 39a.26Como demonstrou Davi na rebelião de seu filho Absalão. Ele escolheu seu amigo n fiel Cusai e fez

que se enfrentasse o sábio conselheiro Aquitofel, ganhando assim a partida a seu filho e conservando o reino (cf. 2Sm 15,30-37; 16,15-17,24). Um exemplo um pouco diferente é o do insensato Roboão, filho de Salomão, que desprezou o conselho acertado dos anciãos e seguiu o dos jovens insensatos como ele (cf. lRs 12,1-17). Ver o que a propósito dos conselheiros do príncipe escreve N. Maquiavel em O prín­cipe, XXII.

27A segunda sentença é defendida, por exemplo, por D. A. Garret (cf. Qohelet, 164) contra a maio­ria dos autores.

Page 259: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que razoavelmente esperam melhorar a situação. Assim se explica a meteórica carreira ascendente deste jovem astuto (sábio), que se conside­ra predestinado do berço ao trono.

15-16. Os dois versículos finais da perícope explicam as causas da rápida ascensão do jovem sábio. Qohélet, desde seu posto privilegiado de observação, dá-nos sua versão, a interpretação que faz de certos fatos que sucedem com bastante freqüência na vida do homem. A multidão, os indi­víduos convertidos em massas, todos os viventes que caminham sob o sol, ou o povo inumerável,28 põem-se do lado da mudança, favorecem as pre­tensões do jovem, até agora o segundo29 depois do rei, mas que chega a “ocupar seu lugar”, que é o trono naturalmente.

No princípio tudo marcha felizmente e o povo inumerável parece que está contente, razão pela qual se continua estando do lado do jovem já rei, a quem seguem. Mas no v. 16b opera-se mudança brusca na narração. Tampouco os que vierem atrás se alegrarão dele-, a expressão é indubi­tavelmente temporal, mas fica a dúvida se estes que vêm atrás, ou os últimos, são contemporâneos do novo rei ou não. Se são contemporâneos, a desilusão é maior, se não o são, o desengano suaviza-se um pouco; nos dois casos o ensinamento é o mesmo: Não são de se fiar nem as promessas dos que acedem ao poder, nem o ruidoso apoio popular. Depois de um tem­po mais ou menos longo o novo poder, que se apresentara como remédio de todos os males, ou assim pelo menos o tinha suposto o povo que se pusera a seu lado e o aclamara, volta a ser o opressor de sempre, o explorador; por isso tampouco eles se alegrarão dele. O povo voltará a gritar contra o poder estabelecido ou apoiado por ele mesmo, e a esperar novo libertador.30

Este é um começar de novo e um nunca acabar. Quanta razão tem Qohélet ao terminar a perícope com sua cantilena conhecida: Tudo isso é vaidade e caça de vento\ (cf. 1,17 e 2,22).

28Nós diríamos: todo mundo, sem necessidade de ter que explicá-lo como “uma hipérbole oriental perdoável” (A. L. Williams, Ecclesiastes, 55).

“ Existe entre os autores verdadeiro desconcerto sobre o significado deste “segundo”; A. Fernández escreve: “Em 4,15 cria não pouca dificuldade a voz hshn’ interpretada geralmente como ‘segundo’ na ordem do tempo. Se, porém, o considerarmos como simples versão do aramaico tinyana (Sir trayana), obteremos sentido satisfatório para essa obscura passagem” (Es Eclesistés, 45). H. W. Hertzberg con­sidera-o como “o segundo”, depois do rei, ainda que não creia que chegue a reinar (cf. Der Prediger, 116).

30E. Glasser interpreta a passagem de outra maneira, pelo menos em parte; por sua originalida­de transcrevemos aqui o principal: “Qohélet considera que esta mudança política é boa para os contemporâneos do jovem monarca: eles se alegrarão com relação a ele... Mas... ela acontece muito tarde para as gerações anteriores que suportaram o mau governo; e como o novo rei não é imortal, as gerações futuras não se aproveitarão dele. Trata-se, pois, de exceção feliz, cuja possibilidade reconhece-se com prazer, mas que não modifica substancialmente as considerações feitas em 3,16­4,3” (Le procès, 82).

Page 260: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

V. SOBRE O CULTO, AS INJUSTIÇAS E A RIQUEZA(4,17-6,9)

Sobre este bloco temos que repetir o que afirmamos a propósito de3,16-22 e 4,1-16. As razões que nos levam a considerá-lo em capítulo sepa­rado são somente de caráter prático.1 Distinguimos claramente três uni­dades temáticas: 1) sobre o culto ou a religião (4,17-5,6), 2) sobre a prática da injustiça institucionalizada (5,7-8) e 3) sobre os bens e as riquezas (5,9­6,9).

1. Sobre o culto e a religião: 4,17-5,6

Chegamos a uma perícope que pode surpreender a mais de um, visto que não concorda com a concepção estereotipada que vulgarmente se tem de Qohélet. Expressaram-se tantos juízos negativos e aberrantes sobre Qohélet, homem religioso e de fé, que, ao ler agora essa perícope, parece- nos que estamos lendo outro autor. Repetiu-se até à saciedade que Qohélet não se distingue por seu espírito religioso, que não é homem especialmen­te piedoso, ainda que jamais se tenha posto em dúvida sua fé em Deus. Discutiu-se e discute-se sobre o verdadeiro conceito que de Deus tinha Qohélet, chegando-se a afirmar que o Deus de Qohélet não é o Deus de Israel e o contrário.2 A perícope 4,17-5,6 é fundamental para toda essa controvérsia, porque nela podemos descobrir qual é para Qohélet a atitu­de adequada do homem para com Deus. O culto verdadeiro a Deus é coisa muito séria para Qohélet pela concepção tão profunda que tem de sua transcendência e, por conseguinte, da religiosidade autêntica do homem.

4,17 Vigia teus passos quando fores à casa de Deus:aproximar-se para escutar vale mais que o sacrifícioque oferecem os néscios,que não sabem sequer fazer o mal.

5,1 Não te precipites com tua boca nem se apresse teu coração a proferir uma palavra diante de Deus.Porque Deus está no céu e tu na terra.Portanto, sejam tuas palavras contadas.

‘A. G. Wright considera 4,17-6,9 como bloco unitário com título genérico: “Pode-se perder o acu­mulado”; mas seus argumentos são muito frágeis (cf. The Riddle [1968], 325.328s; [1980], 40). Parece- nos mais aceitável a opinião de R. E. Murphy que intitula o bloco 4,11-6,9 “Vária: (duas) Introduções a uma reflexão” (Wisdom, 128, e mais desenvolvido nas pp. 138s). Os autores geralmente tratam das perícopes que compõem o bloco 4,17-6,9 independentes umas das outras, sem se dar unanimidade na delimitação das mesmas.

2Cf. L. Gorssen, La cohérence; a orientação do comentário de A. Lauha é muito negativa. Cf. Excursus V sobre Deus e o temor de Deus.

Page 261: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2 Porque o sono provém das muitas preocupações e nas muitas palavras se escuta ao néscio.

3 Quando fizeres um voto a Deus, não tardes a cumpri-lo; porque não lhe agradam os néscios; o que prometes, cumpre-o.

4 Melhor é que não faças voto nenhum que o faças e não o cumpras.5 Não permitas que tua boca te faça cair em pecado;

não digas depois diante do mensageiro que foi por inadvertência.Não aconteça que Deus se irrite pelo que dizes e destrua a obra de tuas mãos.

6 Pois na multidão de sonhos e vaidades, há realmente muitas palavras. Tu, ao invés, teme a Deus.

4,17 “teus passos” segundo o TH; o Q rgtk é singular: “teu pé”, “teu passo”. M. J. Dahood explica a confusão de alguns manuscritos e versões que lêem o singular, porque “em tempos pós-exílicos a tendência geral fa­voreceu a scriptio plena”, ainda que se tratasse do singular (Canaanite- Phoen., 39). Assim não é preciso mudar o TM. “aproximar-se”: sobre as propostas de interpretação de qarob como infinitivo simplesmente: “aproximar-se”, como infinitivo que faz as vezes de imperativo: “apro­xima-te”, ou como um adjetivo: “melhor ou mais digno de louvor” (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 247). “vale mais que”: No contexto tem-se que suprir (cf. Ges.-K., 133e). “que o sacrifício que oferecem os nés­cios”: lit. “que os néscios ofereçam um sacrifício”, onde o verbo no infinitivo (íeí) vai acompanhado de um sujeito (os néscios) e de um ob­jeto (um sacrifício), (cf. Ges.-K., llõh.i).

5,2 “o sono provém das muitas preocupações”: lit. “o sono vem com a muita preocupação”. Como parece que a sentença não é coerente com o con­texto, alguns autores vêem-se na necessidade de propor modificações no texto hebraico. Assim P. Joüon modifica-o de tal maneira que faz que diga: “Porque a ‘loucura’ (se encontra) na multidão dos ‘pensamen­tos’, e os propósitos insensatos na multidão de palavras” (Notes philologiques [1930], 421). “escuta-se ao néscio”: lit. “a voz do néscio”.

3 M. J. Dahood explica as variantes nas versões gregas (cf. BH), porque “os tradutores trabalhavam com um texto defectivo; de outra forma não se explica que tenham mudado o original ’t por ’th” (Canaanite- Phoen., 39s). A. Lauha prefere a leitura ‘atta (cf. Koheleth, 96).

5 “não permitas”: segundo Ch. F. Whitley “ntn tem aqui o sentido de conceder, permitir” (Koheleth, 48). “te”: lit. “a tua carne”, que está pelo homem inteiro, ou seja, pelo pronome pessoal, “te faça cair”: a forma contracta lahati’ está por lalahHi’ (cf. Ges.-K., 53q). “não aconteça que” ou para que não”: lammah equivale ao clássico pen (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 195).

6 São inúmeras as hipóteses que se formularam sobre 5,6a (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 49s). “há em verdade”: consideramos que o waw tem sentido enfático, “mas, ao invés”: a partícula ki emprega-se aqui com sentido adversativo; o pronome pessoal tu provavelmente se encontra­va no original: ’atta por ’et (cf. versões e A. Lauha, Kohelet, 97. Em absoluto se poderia manter a preposição de acusativo ’et e o pronome tu, contido no imperativo y r a ’ = tu teme.

Page 262: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

4,17-5,6. Essa perícope é breve em palavras, mas muito densa de con­teúdo. Trata em primeiro lugar de alguns atos do culto que o homem pie­doso deve prestar a Deus no templo, especialmente dos sacrifícios (4,17), em segundo lugar, das palavras que o homem dirige a Deus ou da oração (5,1-2), e, por último, dos votos ou promessas que se fazem a Deus (5,3-6).

4,17. Qohélet fala diretamente com o homem piedoso e dirige-se a ele em segunda pessoa.3 O estilo é próprio dos mestres de sabedoria: avisa dos perigos que se precisam evitar e indica qual a atitude correta que se deve adotar.

Vigia teus passos: Forma admonitória que equivale a “tem cuidado”, “presta muita atenção”, seja porque é muito perigoso o que se empreende ou porque é de muita importância. No caso presente é claro que se quer frisar a importância do que segue.

Quando fores à casa de Deus: para o israelita a casa de Deus por antonomásia é o Templo de Jerusalém, como expressamente se diz em Esd 1,4: “A casa de Deus que está em Jerusalém” (cf. também Dn 1,2); mas pode-se referir a qualquer lugar sagrado onde se tributa culto legítimo a Deus, como se depreende de Jz 18,31: “Enquanto esteve em Silo a casa de Deus”.

Ir à casa de Deus ou templo não é ir a um lugar qualquer nem para qualquer coisa; vai-se a um lugar que se sabe sagrado, onde se pode pôr o indivíduo em comunicação com o divino, com o próprio Deus. Sabe-o muito bem Qohélet, que é judeu crente de verdade. Por isso ele crê que dirigir os passos ou dirigir-se à casa de Deus é algo de suma importância, que é preciso fazê-lo com consciência e com o máximo respeito. Não creio que em 4,17a se reflita medo diante do sagrado,4 sentimento ademais muito co­mum no âmbito em que se movia Israel (cf. Ex 19,2; Nm 17,28; ISm 6,19­21; 2Sm 6,6-10); mas antes o respeito que merece todo trato relacionado com Deus, como vai especificar em seguida, ao criticar o falso culto que praticam os néscios.

Quando no templo se celebrava a liturgia em geral e a dos sacrifícios rituais em particular, segundo o espírito devido, a comunidade de crentes que participava nela e os indivíduos crentes, como membros vivos dessa comunidade, renovavam implícita ou explicitamente os compromissos que implicava sua fé em Deus, tornavam presente o pacto ou aliança do povo com Deus, com as implicações necessárias na vida social. Dava-se e conti­nua-se dando verdadeira correspondência entre o culto sincero a Deus e a vida real no meio da comunidade ou sociedade. Por isso qualquer

3Aqui aparece pela primeira vez em Qohélet o discurso em segunda pessoa.4Não opina da mesma maneira A. Lauha em Kohelet, 98.

Page 263: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

desequilíbrio numa esfera necessariamente se refletia no outro. Era im­possível viver cometendo injustiças e celebrar devidamente o culto divino. Se se crê num Deus, Criador e Senhor de tudo, que conhece tudo o que se faz e se maquina entre os homens, é impossível crer que se pode enganá- lo, oferecendo sacrifícios rituais, como sinal de reverência e submissão a seus mandamentos, e ao mesmo tempo praticar entre os homens o que ele tanto abomina e detesta, a injustiça social. Assim se compreende com quan­ta razão ergueram sua poderosa voz os profetas contra o falso culto, aque­le que praticavam os injustos e maus de seu tempo, para tirá-los de seu grave erro, uma vez que Deus não aceita oferendas de mãos iníquas (cf. Os 8,13; Am 5,21-24; Is 1,10-17; Jr 7,4-15.21-22 etc.).5

Deus não tem necessidade de sacrifícios e menos se vêm de povo in­justo (cf. SI 50). O que ele quer, segundo o testemunho unânime dos profe­tas, é vida segundo a justiça: “Porque quero lealdade, e não sacrifícios; conhecimento de Deus, e não holocaustos” (Os 6,6, citado em Mt 9,13 e 12,7; cf. Am 5,21-25; Mq 6,6-8). A vida segundo a justiça identifica-se com seguir a vontade do Senhor, manifestada nas palavras autorizadas de seus enviados, em “escutar a palavra”, que ressoa por todas as partes e de mil maneiras. São reveladoras as palavras do profeta Samuel a Saul, que de­sobedeceu a ordem do Senhor: “Acaso se compraz o Senhor nos holocaustos e sacrifícios, como no escutar a palavra do Senhor? Melhor é escutar que sacrificar, a docilidade que a gordura de carneiros” (ISm 15,22; cf. tam­bém Jr 7,22-28).

No entanto, não se pode concluir levianamente que Deus recuse toda espécie de culto. Isso seria simplesmente não ter entendido a crítica dos profetas. O culto não contaminado com a injustiça é agradável ao Senhor. Deste tratam partes muito importantes da Lei, dos Profetas, dos Salmos e dos Sábios. Mas sempre deverá ficar claro que existe uma escala de valo­res, como o diz um sábio: “Praticar o direito e a justiça Deus prefere aos sacrifícios” (Pr 21,3).

Agora podemos compreender em sua justa medida as palavras de Qohélet em 4,17b: Aproximar-se para escutar vale mais que o sacrifício. O próprio vocabulário nos é familiar. Acaba de falar o autor em 4,17a da visita à casa de Deus; o aproximar-se parece, pois, que diz relação direta a essa visita ao templo. A ação de escutar recorda-nos as passagens de ISm15,22 e de Jr 7,23 que falam de “escutar a palavra” e “a voz do Senhor”

5Comentando Is l,10ss, escreve L. Alonso Schükel: “Nestes pleitos o Senhor levanta problema central: a relação entre culto e justiça social; não se trata de dois problemas ou duas atividades, mas o problema está em sua relação... O texto é claro: enquanto o povo viver na injustiça, todo o culto estará viciado, será tentativa perversa de composição (em termos de Ben Sira, tentativa de suborno: Eclo 35,14s)” (Profetas I, Madri, 1980, p. 119).

Page 264: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

respectivamente. Isso supõe atitude profundamente respeitosa e religiosa de abertura e docilidade do crente diante da presença do Senhor.

O que acabamos de dizer é válido para todo sacrifício que é agradável ao Senhor, porque nele se cumprem todas as garantias que exigem as nor­mas mais rigorosas. Mas Qohélet em 4,17b introduz elemento novo: trata- se do sacrifício oferecido pelos néscios. A nescidade do néscio diz respeito ao próprio sacrifício, uma vez que o que se valoriza não é a vítima em si: um touro, um cordeiro etc., mas a atitude do ofertante, neste caso os nés­cios, que nem sequer sabem fazer o mal. Dentro do negativo o juízo ainda é benigno, pois não afirma Qohélet que os néscios sejam maus, mas somen­te inconscientes. Existé uma controvérsia em torno de 4,17c que, em par­te, apontamos nas notas filológicas. Alinhamo-nos com os que atribuem a Qohélet em 4,17c certo ar de ironia.6

5,1-2. Depois de Qohélet advertir ao que visita a casa de Deus e mani­festar qual deve ser, em sua opinião, a atitude fundamental do fiel para com Deus: atitude de escuta e docilidade (4,17), recomenda nestes dois versículos o uso comedido das palavras dirigidas a Deus. Formalmente, o versículo 2 é a justificação do v. 1 {porque: ki).

Por 4,17 pode-se supor que o tu ou a pessoa a quem se dirige Qohélet em 5,1 está na “casa de Deus”; mas não é necessário interpretar os versículos como seqüência temporal. 5,1 e os versículos seguintes têm va­lor por si mesmos, uma vez que se realizem as operações no templo de Deus ou em outro lugar qualquer.

O tema que une os w. 1-2 é o uso da palavra. Qohélet recomenda a tranqüilidade e medida no falar diante de Deus, em vista da precipitação e da pressa do muito falar, que será atitude própria do néscio. Pois Deus merece o máximo respeito e não tem necessidade de longos discursos para estar adequadamente informado.

A cena que Qohélet imaginativamente tem diante de si parece ser a dos orantes no templo, que recitam apressadamente muitas e longas ora­ções ou discursos, muito palavrório {não te precipites com tua boca), sem coordenação nem sentido {nem se apresse teu coração). Como se Deus não soubesse de nada e fosse necessário informá-lo com nossas próprias pala­vras. Isso é o que criam os sacerdotes de Baal na cena do monte Carmelo (cf. lRs 18,21-29) e provavelmente era crença muito difundida no povo. O próprio Jesus disse: “Ao orar, não faleis muito, como os pagãos, que imagi­nam que por seu palavrório vão ser escutados. Não sejais como eles” (Mt 6,7; cf. Eclo 7,14). O conselho de Qohélet, porém, é sábio: sejam tuas pala­vras contadas', nem mais nem menos, as precisas. A face oposta deste con-

6Cf. N. Lohfink, Warum ist der Tor; G. Ravasi, Qohelet, 196 nota 2.

Page 265: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

selho aparece no v. 2b: nas muitas palavras se escuta o néscio, que tem todas as aparências de ser um provérbio conhecido, razão pela qual se aduz por Qohélet como prova de seu raciocínio.

Sem dúvida, Qohélet conhecia exemplos de orantes-modelo. Todas as grandes personagens, que desfilam pelas páginas das Sagradas Escritu­ras, dirigem-se ao Senhor, seu Deus, em momentos importantes de sua vida. Para apresentar um só exemplo, é comovedor o de Ana, a que seria a mãe de Samuel, segundo nos narra ISm 1. Ela derrama seu coração dian­te do Senhor e Eli, o sacerdote, observa o movimento de seus lábios: “Como Ana falava para si, e não se ouvia sua voz ainda que movesse os lábios, ele creu que estava bêbada e lhe disse: ‘Até quando te vai durar a embria­guez? Quando te vai passar o efeito do vinho? Ana respondeu: ‘Não é as­sim, senhor. Sou uma mulher que sofre. Não bebi vinho nem licor, estava desafogando-me com o Senhor. Não creias que esta tua serva seja uma descarada; se estive falando até agora, foi de pura angústia e aflição” (ISm1,13-16). E o Senhor olhou sua oração (cf. ISm 1,20-28).

E verdade que Qohélet também pode ler em Habacuc: “O Senhor está em seu santo templo: silêncio em sua presença!” (2,20), e em Sofonias: “Silêncio na presença do Senhor!” (1,7); mas este silêncio, que reclamam os profetas diante de Deus, não é mais que expressão de uma sublime confissão da grandeza e transcendência divinas por parte do homem que se sente muito pequeno diante da majestade divina. Qohélet está plena­mente de acordo com essa visão de Deus e expressa-a, não tão poetica­mente como os profetas, mas à sua maneira, como vemos em seguida.

A razão última e de mais peso que fundamenta a atitude tão respeito­sa de Qohélet diante de Deus é formulada por ele em sentença lapidar: Deus está no céu e tu na terra. O conteúdo não é original, a união dos dois extremos e sua expressão, sim; compare-se com o que confessa o salmista: “O céu pertence ao Senhor, a terra deu-a ele aos homens” (SI 115,16). Cer­tamente Qohélet quer frisar a diversidade irreconciliável que existe entre o âmbito ou mundo de Deus e o âmbito ou mundo dos homens. Deus e seu mundo são absolutamente inatingíveis pelo homem, ainda que este viva sempre sob a tentação de querer pegá-los com a mão ou com o pensamen­to, e assim chegar a ser como Deus (cf. Gn 3,5.22). Pois “Deus é Deus e não homem” (Os 11,9; cf. Is 31,3; Ez 28,2.9), ou, como lemos em Jó: “Deus é maior que o homem” (33,12). Com todas essas expressões os autores sa­grados querem dizer-nos o que nós entendemos por transcendência abso­luta de Deus com relação ao homem. O mais freqüente é que recorram à imagem espacial vertical de acima e abaixo; o em cima ou céu sempre está reservado a Deus; o embaixo (abismo e terra), a suas criaturas, especial­mente ao homem.

Page 266: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Tradicionalmente em Israel sempre se considerou o céu como a mora­da do Senhor. Em Dt 26,15 lemos: “Volta os olhos da tua santa morada, do céu, e bendiz teu povo, Israel, e esta terra que nos deste”. Nos Salmos é freqüente essa linguagem: “Nosso Deus está no céu, o que quer ele faz” (SI 115,3). Também concebe-se o céu como o trono do Senhor, ou como o lugar onde está entronizado: “Assim diz o Senhor: o céu é meu trono, e a terra o escabelo de meus pés” (Is 66,1). Essa distância física não significa que não se preocupe com a terra e seus habitantes, os homens. Podemos compro­var que em tempos distantes Raab, a que acolheu em sua casa os espiões de Josué, dizia: “Porque o Senhor, vosso Deus, é Deus em cima no céu e embaixo na terra” (Js 2,11). Nos salmos encontramos também a resposta a nossas possíveis perguntas: “O Senhor pôs no céu seu trono, sua sobera­nia governa o universo” (SI 103,19); e também: “O Senhor está em seu templo santo, o Senhor tem seu trono no céu: seus olhos estão observando, suas pupilas examinam os homens” (SI 11,4). Com orientação ainda mais confiante: “O Senhor olhou do seu excelso santuário, do céu fixou-se na terra, para escutar os lamentos dos cativos e livrar os condenados à mor­te” (SI 102,20-21).

Em todas essas passagens sobressai o uso de antropomorfismos, apli­cados a Deus como a coisa mais natural do mundo. A Qohélet tinha que ser muito familiar essa maneira de falar a respeito de Deus. Por isso, sua concepção de Deus de fato não está muito longe da normal em Israel.7

No v. 2a fala ainda Qohélet do sono que provém das muitas preocupa­ções. Já fizemos notar nas notas filológicas como alguns autores modifi­cam o TH para dar um sentido que esteja de acordo com o contexto; cre­mos que isso não é necessário. A solução mais coerente nos parece a que assinalamos antes ao comentar o versículo 2b. Dizíamos que a sentença: nas muitas palavras se escuta o néscio, era uma frase proverbial, aduzida por Qohélet para dar força à sua recomendação sobre a prudência no falar diante de Deus. Agora mantemos ademais, como mais provável, que o v. 2a forma um único provérbio com o v. 2b e que se cita arrastado por ele. Pode-se descobrir certa coerência: “Como nas muitas preocupações origi­na-se o sono, nas muitas palavras manifesta-se o néscio. E explicação ra­zoável, que tem em seu favor o fato de não alterar o texto hebraico.

5,3-6. Nestes quatro versículos Qohélet manifesta seus reparos dian­te da prática de fazer votos e promessas a Deus (w. 3-5) e sua decidida recomendação do temor de Deus (v.6).

7Rejeitamos inteiramente a opinião de A. Lauha a este propósito, pois escreve: “O Deus de Qohélet é um déspota distante. Ele — no céu — não tem nenhum contato com o homem — na terra” (Kohelet, 99). Se isso fosse verdade, não teria sentido o que Qohélet vai dizer pouco depois nos w. 3-6.

Page 267: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3. 0 versículo reflete prática constante em todos os povos e culturas: empenhar a própria palavra perante a divindade em quem se crê median­te voto ou promessa. Em Israel conhece-se essa prática desde os tempos mais remotos dos patriarcas. Jacó faz um voto solene a Deus em Betei: “Se Deus ficar comigo e me guardar na viagem que estou fazendo:... então o Senhor será o meu Deus... e de tudo o que me deres, pagar-te-ei o dízimo” (Gn 28,20-22). Ana, a mãe de Samuel dirige-se ao Senhor e em sua aflição lhe faz esta promessa: “Senhor dos exércitos, se te fixares na humilhação de tua serva e te recordares de mim, se não te esqueceres de tua serva e derdes a tua serva um filho homem, eu o entrego ao Senhor pela vida e não passará a navalha por sua cabeça” (ISm 1,11). Votos que cumpriram fielmente ao realizar-se a condição que tinham posto.

Na tradição de Israel conhecem-se casos de votos imprudentes, como o de Jefté (cf. Jz ll,30ss), o que implica concepções errôneas, como o de Saul, rompido, sem sabê-lo, por seu filho Jônatas (cf. ISm 14,24-45). Para solucionar as graves dificuldades que daí se podiam derivar, uma minuciosa legislação regularia todo o relativo às promessas e aos votos dentro do corpo legal do A. T. A casuística neste campo podia-se multiplicar até o infinito; por isso fazia-se necessário afinar o mais possível, enumerando vários paradigmas e autorizando a pessoas expertas (os sacerdotes) para que examinassem todas as circunstâncias e pudessem ratificar, comutar ou invalidar votos e promessas segundo os casos (cf. Lv 27; Nm 30,4ss). O tratado Nedarim (votos) da Mishná constitui magnífico testemunho da prática dos votos no judaísmo tardio.

Qoh 5,3 não faz mais do que repetir o que já se disse em outras passa­gens da Escritura: “Isso é o que ordena o Senhor: quando um homem fizer um voto ou se comprometer a algo sob juramento, não faltará à sua pala­vra: como disse o fará” (Nm 30,3); “Se ofereceres um voto ao Senhor, teu Deus, não demores seu cumprimento. (...) o que proferirem teus lábios haverás que cumpri-lo, já que é um voto ao Senhor, teu Deus, o que espon­taneamente tiveres prometido” (Dt 23,22.24).

E notável a atenção que prestam os autores sagrados à presteza com que se deve cumprir o prometido: não tardes, diz Qohélet; “não demores seu cumprimento”, lemos em Dt 23,22. A prontidão e diligência são sinais manifestos de ânimo responsável, disposto e agradecido. Jesus ben Sira chega a precisar: “Nada te impeça de cumprir logo um voto, não esperes até a morte para cumpri-lo” (18,21[22]). Para Qohélet, atrasar cumpri­mento de voto é próprio do néscio, ao admitir, como razão do pronto cum­primento, que a Deus não agradam os néscios. O Deuteronômio é ainda mais rigoroso, pois pressiona os morosos com esta advertência: “Porque o Senhor, teu Deus, to reclamará e carregarás um pecado” (23,22).

Page 268: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O Saltério dá testemunho também de que fazer votos a Deus e cum­pri-los são atos agradáveis ao Senhor e, portanto, sinais manifestos de culto autêntico. Aos fiéis se exorta: “Fazei votos ao Senhor e cumpri-os” (SI 76,12); “Cumpre teus votos ao Altíssimo” (SI 50,14); o próprio fiel procla­ma: “Ele é meu louvor na grande assembléia, cumprirei meus votos diante de seus fiéis” (SI 22,26); “Entrarei em tua casa com vítimas para cumprir meus votos: os que prometeram meus lábios e prometeu minha boca no perigo” (SI 66,13s).

4-5. Acabamos de ver como Qohélet manifesta espírito escrupuloso quanto ao cumprimento do prometido. Por isso é conseqüente ao desa­conselhar fazer votos, se se prevê que não se vai poder cumprir. Ao dizer no v. 4 que é melhor que não faças voto, etc., pelo contexto se deduz que “não é bom fazer voto e não cumprir”. Parece que a isso Qohélet ao prosse­guir no v. 5: Não permitas que tua boca te faça cair em pecado-, em absolu­to, poder-se-ia aplicar à prudência no falar em geral, mas é pouco prová­vel. Esse parecer confirma-se com a passagem do Deuteronômio, citado várias vezes: “Se ofereceres voto ao Senhor, teu Deus, não demores seu cumprimento, porque o Senhor, teu Deus, to reclamará e carregarás um pecado” (Dt 23,22). O suposto é que se faz voto “levianamente”, “irres­ponsavelmente”, razão pela qual não vale a escusa de que se fez por im­prudência (cf. Pr 20,25). A escusa apresenta-se diante do sacerdote, que é quem tem faculdade de comutar ou anular o voto (cf. Lv 27,8ss). Que o termo o mensageiro: hammaVak, esteja aqui por “sacerdote”, além da au­toridade do Levítico, podemos aduzir Ml 2,7 que diz: “Os lábios do sacer­dote hão de guardar o saber e em sua boca se busca a doutrina [a Lei], porque é mensageiro do Senhor dos exércitos”.8

Não aconteça que se irrite Deus pelo que dizes...-. Não é preciso ver, nesse irritar-se de Deus e na destruição subseqüente, uma espécie de te­mor mágico perante a Divindade contrariada. A Escritura acostumou seus leitores ao uso de antropomorfismos, aplicados a Deus. É freqüente ver como os autores sagrados interpretam as desgraças que sobrevêm ao povo

8É grande a controvérsia que se suscitou entre os autores sobre o sentido deste hammaVak = mensageiro. M. J. Dahood entendeu-o como “mensageiro” enviado pelo sumo sacerdote de Jerusa­lém às comunidades judaicas distantes, para controlar o cumprimento dos votos” (Canaanite-Poen., 207; em Bib 47 [1966] 282 muda de opinião, revocalizando a palavra). R. Gordis rejeita a opinião de Dahood, pois “não há provas de que existisse semelhante instituição no judaísmo pós-exllico ou rabínico... O termo ml’k, que se aplica em outros lugares do AT aos sacerdotes ou profetas (Ag 1,13; Ml 3,1), é muito mais plausível que se tome como emissários do templo, que vêm para recolher os votos que não foram pagos” (Was Koheleth, 113; sentença que confirma em Koheleth — the man, 249). Mas não é muito convincente substituir a figura do sacerdote que viaja “para controlar o cumprimento dos votos” pela do sacerdote que também viaja para “recolher os votos não pagos”. Melhor é manter sim­plesmente que “o mensageiro” é o sacerdote, com a terminologia de Ml 2,7 (cf. F. Piotti, Osservazioni [1978], 174-176, com pequenas matizações).

Page 269: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ou aos indivíduos como efeitos da ira ou irritação de Deus, provocada por algo que lhe desagrada. Moisés aplaca ao Deus irado e disposto a destruir o povo por seu pecado, por ocasião do bezerro de ouro (cf. Ex 32,10-14; SI 106,23). Narra-se-nos outro caso parecido em Nm 11,1-3. Assim se inter­pretam a destruição de Jerusalém e a deportação para a Babilônia: “Irado contra meu povo, profanei minha herança, entreguei-a nas mãos [da Babilônia]” (Is 47,6). Narra-se um caso particular em 2Sm 6,7.

Essa leitura teológica da realidade praticamente está presente em todo o Antigo Testamento, especialmente nos Salmos: a desgraça é dada por Deus, mas o homem a provoca. Por isso também Qohélet, que compar­tilha desse modo de pensar, diante da possível falta grave ou pecado do que promete algo a Deus e não cumpre, adverte no v. 5 acerca do enfado de Deus e sua manifestação no fracasso da obra humana.

6. Este versículo 6 pode-se considerar como a conclusão de toda a perícope 4,17-5,6; coloca o broche final a essa pequena secção, dedicada ao culto. De fato retorna aos temas do sono (cf. v. 2) e das muitas palavras (cf. w. 1-2); com enfática recomendação do temor de Deus, parecendo querer superar a concepção mais superficial da prática rotineira e não-refletida dos atos de culto. O v. 6a tem, com efeito, muito de parecido com o versículo 2; também cremos, em consequência, que tem a forma de provérbio,9 cujo sentido seria este: multiplicam-se nos sonhos as ilusões extravagantes e vãs, assim como também as muitas palavras que, naturalmente, são tão vãs como os sonhos em que se sustentam.10

V. 6b. Depois da análise que precede, honestamente não se pode dizer que Qohélet esteja contra as práticas cultuais indiscrimidamente, seja indi­viduais, seja coletivas; mas tampouco se pode apresentar como grande de­fensor do culto oficial. Qohélet não convida ao culto, mas mostra-se antes positivamente crítico e severo para com os que espontaneamente o praticam. Transparece em suas palavras respeito muito grande para com a majestade divina, respeito que se expressa em sua fórmula final: Tu, ao invés, teme a Deus. A fórmula parece alternativa. Salvando o que acabamos de dizer, Qohélet prefere essa atitude, mais pessoal e sempre sincera, do homem para com Deus; atitude que revela respeito máximo para com ele, fundado na convicção da grandeza divina e da pequenez ou nulidade do humano.11

90 provérbio contido no v. 6a provavelmente não é criação de Qohélet; ele o teria adatado melhor ao contexto.

BA. Lauha confessa que “dentro de sua obscuridade o sentido é claro: o muito falar é tão ilusório como os sonhos” (Kohelet, 105).

UR. Gordis diz de todo o versículo “que resume o parecer de Qohélet sobre a religião” (Koheleth — the man, 250); isso vale especialmente da segunda parte, como diz expressamente também A. Bonora: aos néscios de 4,17ss “Qoh contrapõe a essência verdadeira da religião, ou seja, o temor de Deus” (Esperienza, 181).

Page 270: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Se é que alguma vez, interpretando Qohélet, se uniram ao conceito do temor de Deus atitudes humanas que não formam parte da autêntica reli­gião, como são o medo e o terror perante o divino e numinoso, já é tempo de purificar essa concepção pagã da religião e devolver a dignidade que merece à atitude reverente e respeitosa para com Deus que patrocina Qohélet. Deus é incompreensível e majestoso, é verdade, mas positiva­mente interessado pela vida e a história dos homens neste seu mundo ou criação.12

2. Sobre a injustiça institucionalizada: 5,7-8

Os dois versículos destacam-se do contexto por seu conteúdo. Neles se trata da prática da injustiça por parte da autoridade em todo um territó­rio e da função que deveria desempenhar o rei.13

5,7 Se vires numa província a opressão do pobre, a violação do direito e da justiça, não te estranhe essa situação; porque uma autoridade vigia sobre outra autoridade, e sobre elas uma maior.

8 Vantagem de um país em tudo é que o rei esteja preocupado com o campo.

8 [Nota filológica] A principal dificuldade desse versículo oferece-se pelo Nifal ne^bad. Optamos, dentre as inumeráveis propostas, pela seguin­te: ne^bad vai com rei e não com campo (cultivado). O sentido é passivo: o rei está sujeito a, é servo de, está a serviço de, está preocupado com. Quanto ao sentido, praticamente coincidimos com D. A. Garret, ainda que ele, depois de muitas elucubrações, faça com que ne^bad concorde com campo como particípio (campo ou terra cultivada) e não com rei; sua tradução é: “Aqui há algo que em seu conjunto beneficia o país: um rei pela agricultura” (Qoheleth, 166).

7. Qohélet muda de temá: do cúltico-religioso para a administração da jutiça; mas ainda não muda neste versículo o estilo direto em segunda pessoa, que parece ser o mais eficaz na comunicação do mestre com o dis­cípulo ou simplesmente com o presumido leitor. Adverte-se que a Qohélet preocupa muito o modo tão arbitrário de se comportar dos detentores do poder, especialmente o de administrar a justiça. Antes nos comunicou uma de suas observações mais impressionantes: “Outra coisa observei sob o

12Cf. Excursus V § 2 sobre o temor de Deus.13Entre os antigos é digna de nota a discussão e confusão acerca do sentido de 5,7-8 (cf. J. de

Pineda, In Ecclesiasten, 555-558). Não há autor, entre os modernos, que não diga algo sobre a dificul­dade de compreender 5,7-8; sirvam de exemplo os seguintes testemunhos: R. Gordis escreve de 5,8 que é “crux insuperável” (Koheleth — the man, 250); quem por sua vez é citado por muitos; ver tam­bém G. R. Castellino, Qohelet 22; D. A. Garret, Qoheleth, 165; F. Ravasi, Qohelet, 209.

Page 271: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sol: no lugar do direito, ali a iniqüidade; no lugar da justiça, ali a iniqüida­de” (3,16).

Numa província: A palavra medinah (província) é empréstimo do aramaico e designa uma circunscrição administrativa, que se pode aplicar muito bem à Judéia e seus arredores.

Neste versículo Qohélet desce aos casos concretos, e próximos, da vida dos cidadãos. Ainda que fale hipoteticamente: Se vires, não passa de for­ma eufemística; na realidade é o que acontece freqüentemente. A vítima do sistema é sempre a mesma: o pobre, o fraco, o indefeso. O vocabulário descobre-nos que a situação na Palestina é de região ocupada por poder estrangeiro, opressor e injusto, que tem à sua disposição todos os órgãos de decisão no âmbito da política e da economia, e que os utiliza em seu próprio proveito ou no de seus colaboradores. Essa situação enquadra-se muito bem com a do domínio dos Lágidas ou Ptolomeus egípcios do século III a.C.14

A atitude de Qohélet para com panorama tão injusto: não te estranhe essa situação, qualificaram-na alguns de cínica. Creio, porém, que não têm razão. A Qohélet não é indiferente essa situação de injustiça, razão por que a descreve uma e outra vez (3,16); mas está convencido de que nem ele nem seus compatriotas, nem os outros povos submetidos, nada podem fazer contra essa situação deplorável, e sobretudo quando os concidadãos que ainda gozam de certo poder (a família dos tobíadas, por exemplo) só fazem colaborar com a política opressora do dominador e opri­mir eles próprios, a fim de tirarem o máximo proveito.

A justificação que dá Qohélet: porque uma autoridade..., é a própria de um estado totalitário e de espiões, como infelizmente conhecemos nós mesmos em tempos não muito distantes.15

A realidade é que cada pessoa constituída em autoridade, comporta- se em seu nível como tirano; mas ela tem que prestar contas a outra de mais categoria, até chegar à suprema que é o rei ou sua corte, que exige de todos o máximo rendimento no que se refere a tributos e impostos.

8. O versículo parece que justifica em parte a atitude, pelo que parece um tanto cínica, de Qohélet. Em seu conjunto, o sistema de exploração dos campos que impõe o rei, senhor e dono absoluto de toda a terra conquista­da, beneficia o país, ou seja, os habitantes da terra. Pois o rei, ou seus representantes no país, estão muito interessados em tirar-lhe o máximo fruto. Mas é certo que os frutos dessa administração revertem, pelo menos

14Remeto ao Apêndice II: “Síria e Fenícia”, onde tentei descrever a situação real, política e social, da Palestina que Qohélet conheceu. Ver especialmente a secção 3.3.

15L. Alonso Schõkel fala de “um Estado caracterizado por uma pirâmide burocrática bem desen­volvida” (Eclesiastés, 39). F. Ravasi também fala de “pirâmide burocrática” (cf. Qohelet, 208).

Page 272: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em parte, em benefício dos moradores da terra, dos que a cultivam, dos mais fracos nessa longa corrente? Neste aspecto, provavelmente se equi­voca Qohélet, por ser excessivamente benévolo com o sistema, ou princi­palmente porque não sofria, por sua situação econômica desafogada, as duras consequências do implacável sistema de recolhimento de impostos, como as sofriam os mais pobres do país.

3. Sobre os bens e riquezas: 5,9-6,9

O título genérico desta perícope: os bens e riquezas, é motivo suficien­te para conceder certa unidade a todo o conjunto; na realidade, o conteúdo expresso nele distingue com clareza todos esses versículos do que precede e segue.16 Além disso, uma inclusão manifesta confirma a unidade temática, é a expressão típica de Qohélet: Também isso é vaidade [gam ze hebel] (5,96,9).

A disposição geral das unidades menores em que se divide o conjunto5,9-6,9 tem a forma quiástica seguinte:

A. Insatisfação do dinheiro e das riquezas (5,9-11).B. O homem vive em treva e se vai sem nada, como veio (5,12-16).

C. Bênção de Deus ao homem (5,17-19).C’. Negação da bênção de Deus ao homem (6,1-2).

B\ O homem, infeliz dele, comparado com um abortivo (escuridão e trevas), sai perdendo (6,3-6).

A’. Inutilidade do esforço, da sabedoria e dos desejos humanos (6,7-9).17A prova de tudo isso veremos naturalmente ao estudar cada uma das

secções correspondentes.

3.1. Insatisfação do dinheiro e das riquezas (5,9-11)Essa breve perícope estruturalmente se pode considerar de diversas

maneiras. De fato é uma unidade que se opõe quiasticamente a 6,7-9, como se verá ao se desenvolver o conteúdo desta última unidade; ao mesmo tempo 15,9-11 serve de introdução a todo o bloco 5,12-6,9 e às duas secções paralelas entre si, 5,12-19 e 6,1-9. E como a abertura de uma sinfonia que adianta os temas que se tratarão nela.18 Os temas principais são: riqueza- pobreza, satisfação-insatisfação, fugacidade e vantagens. A forma dos três versículos sem dúvida é proverbial e do melhor estilo.

16Assim o expressa D. C. Fredericks, que estudou recentemente (1989) a perícope do ponto de vista de sua estrutura quiástica (cf. Chiasm, 18).

17Cf. D. C. Fredericks, Chiasm, 18-28.18Cf. D. C. Fredericks, Chiasm, 83.

Page 273: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

5,9 O que ama o dinheiro não se farta dele, e quem ama as riquezas não as aproveita.Também isso é vaidade.

10 Quando aumentam os bens, aumentam os que os comem, e o que resta a seu dono senão o espetáculo de seus olhos?

11 Doce é o sono do trabalhador, coma pouco ou coma muito; mas ao rico a abundância não lhe permite dormir.

9 Parece que é preciso admitir uma haplografia na expressão bhmwn por hmwn (cf. R. Gordis, Koheleth— the man, 251; Ch. F. Whitley, Koheleth, 51; BHS, apesar da advertência de A. Lauha em Kohelet, 107.

10 “O que resta a seu dono...?”: lit. “Que resultado para seu dono...?”

9. Com esse versículo começa o autor uma série de reflexões sobre o dinheiro e as riquezas; sobre os bens em suma que o homem acumula ou tenta acumular ao longo de sua vida com o fim determinado de desfrutar deles. Não é esta a primeira vez que Qohélet encara esse tema (cf. 2,4­10.18-21; 4,8), nem será a última (cf. 7,lls; 11,ls); mas é sua passagem principal sobre o dinheiro e as riquezas.

O que ama o dinheiro não se farta dele-. O provérbio pode ser subscrito por qualquer que tenha um pouco de experiência na luta da vida. Por dinheiro entende-se não só a moeda corrente, mas qualquer valor, em metal ou em espécie, por meio do qual se pode adquirir algo apreciável. Faz muitos séculos que a sociedade está organizada de tal maneira que não pode fun­cionar sem sistema financeiro que regule o valor do dinheiro. Com o di­nheiro pode-se conseguir legitimamente todo bem que esteja à venda; à margem da lei ou contra ela, pode-se comprar tudo ou quase tudo, pois o dinheiro abre todas as portas.

Amar o dinheiro é coisa natural como amar o belo ou proveitoso que se pode comprar com dinheiro. Neste caso, ama-se o dinheiro não por si mesmo, por ser um meio, mas por aquilo que se pode conseguir por meio dele. Mas a sentença de Qohélet não se refere a essa espécie de amor ordenado, e sim à avareza, ao afã ou desejo desmedido, ao amor desorde­nado do dinheiro. Se se ama o dinheiro com afã desmedido, quanto mais se tem, mais se quer ter. Essa matéria converteu-se em tópico, como demons­tra a literatura universal de todos os tempos, especialmente na forma de provérbios: “Dinheiro chama dinheiro”. Os clássicos latinos assim o con­firmam: “O avaro sempre precisa de mais”;19“Aumentaram as riquezas e o desejo desenfreado de riquezas, e quanto mais possuem, mais desejam”.20 O dinheiro é como droga, e dura droga, razão pela qual o dinheiro não

19"Semper avaras eget” (Horácio, Epist., 12,56).20Quando Roma chegou a seu esplendor “creverunt et opes et opum furiosa cupido, / et, cum

possideant plurima, plura petunt” (Ovídio, Fasti, I 211s); cf. Vergílio, Eneida, III 56s.

Page 274: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pode saciar a fome de dinheiro, mas desata e aumenta ainda mais o apeti­te por ele.

Quem ama as riquezas não as aproveita: Com pequena variante, re­pete este versículo o anterior em perfeito paralelismo sinonímico. Nova­mente se refere Qohélet ao amor desmedido pela acumulação de bens e riquezas. Essas deveriam proporcionar ao dono o apaziguamento do dese­jo de posse e a segurança de modo de vida confortável; todavia, quando quem está dominado pela avareza conseguiu realizar o sonho de sua vida: encher suas arcas, não sabe aproveitar delas; não implica isso para ele enriquecimento interior, aumento de satisfação, paz e bem-estar, mas muito pelo contrário. Como nos dizia Horácio: “Sempre precisa de mais o avaro”.

Também isso é vaidade: Tanto as riquezas em si mesmas como o dese­jo de possuí-las e conservá-las e seu desfrute são algo de efêmero, passa­geiro e instável. São muitas vezes bolhas de sabão: vistosas ao serem ilu­minadas pela luz, mas bolhas no ar ou mero vazio ao se querer pegá-las. Qohélet terá ocasião, nos versículos que seguem, de demonstrar as inú­meras formas que existem para fazer desaparecer as riquezas mais abun­dantes; agora lhes aplica simplesmente seu juízo de vaidade.

10. Qohélet vai demonstrar nesse versículo, e também nos seguintes, o que já ficou assentado no v. 9: a fortuna, por maior que seja, não pode satisfazer a seu dono e, no final das contas, dissolve-se tudo em nada ou talvez se volte contra seu próprio dono, causando-lhe tormento em vez de prazer.

Quando aumentam os bens, aumentam os que os comem: Essa é ob­servação universalmente admitida. A riqueza e o dinheiro atraem os aproveitadores como o mel as moscas. Quem já não descobriu o grande número de “amigos” que tem na hora do sucesso e da sorte? No livro dos Provérbios lemos: “A riqueza procura muitos amigos, o pobre abandonam- no seus vizinhos”; “Muitos elogiam o homem generoso e todos são amigos de quem dá presentes” (19,4.6). Todos estes são mais amigos da fortuna que do afortunado e estarão dispostos a devorar gratuitamente os bens do agraciado. Que proveito tirará o dono de tudo isso? Qohélet põe-se no hi­potético caso daquele que vê como sua fortuna, conseguida talvez com gran­des sacrifícios, vai se consumindo pouco a pouco, seja porque se multipli­caram inesperadamente os amigos parasitas, seja porque esbanja ele pró­prio seus bens em festas de grande luxo para espetáculo de seus olhos e satisfação de sua grande vaidade. Ahipótese de Qohélet não é descabelada, pois deram-se casos semelhantes em todos os tempos, e continuam se dan­do também em nossos dias, não só na chamada classe alta mas também na menos alta. Em todo caso, não é preciso levar a hipótese até o extremo de pensar que Qohélet supõe que o rico insensato consome totalmente

Page 275: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

seus bens ficando sem nada, só com o espetáculo que vêem seus olhos. O que lhe resta, se é que lhe resta algo, não conta para nada, pois, como disse no v. 19: não as aproveita o rico insensato.

11. Une-se este versículo aos anteriores unicamente porque nele se trata do rico e de seus bens. Introduz-se nele elemento novo: a comparação do rico com aquele que se supõe que não o é porque vive de seu trabalho, reduzindo a comparação ao descanso do sono. Os dois termos comparados são: o trabalhador ou pessoa que precisa trabalhar para poder subsistir, e o rico que vive das rendas de suas posses abundantes. Subjaz a essa com­paração o tópico comum de que sempre tem o pobre sono doce e tranqüilo, reparador de suas forças, ao passo que dele se priva o rico. A causa dessa disparidade é que o pobre não tem preocupações e tem-nas o rico em pro­porção às riquezas que precisa guardar.

A explicação dessa simplificação tão ingênua parece estar em que a Qohélet só interessa frisar os grandes inconvenientes que implica acumu­lar grandes riquezas. E preciso logicamente guardar as riquezas e os tesou­ros para não serem roubados, e supõe-se que esse afã gera tanto mais preo­cupações quanto maiores forem as riquezas que se têm que guardar. Como soem os ladrões agir protegidos pela escuridão, é-lhes a noite o tempo propí­cio. O rico, tão preocupado pela segurança de suas riquezas, não pode conci­liar, portanto, o sono durante a noite. É clássica a figura do avaro abraçan­do a bolsa de seus tesouros e com olhos sempre abertos em permanente vigília. Em Eclo 31,1a lemos: “As vigílias do rico acabam com sua saúde”, e diz-nos o provérbio: “A mais ouro, menos repouso”. O pobre, ao invés, como nada tem que guardar durante a noite, supõe-se que nada o impeça de gozar do doce sono. Concentrou-se tanto o interesse de Qohélet nesse úni­co ponto, que para ele não tem importância que o trabalhador coma ou não coma, coma pouco ou coma muito. O que delata que Qohélet não faz mais que repetir o que se costuma dizer, uma vez que parece ignorar que tanto a fome — comer pouco ou nada — como comer muito podem ser causa de insônia; prescindindo das muitas preocupações que surgem quando se conta com meios insuficientes para subsistir pessoalmente ou promover a família.

3.2. Destino trágico do homem: vai-se como veio (5,12-16)Essa perícope joga quiasticamente com 6,3-6, como já advertimos na

introdução ao bloco maior 5,9-6,9. Começa-se nela a desenvolver o tema das riquezas com referência a seu dono. E negativa a visão em todos os seus aspectos.

5,12 Existe um grave mal que observei sob o sol: riquezas guardadas para o mal de seu dono.

Page 276: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

13 Em mau negócio perde essa riqueza;e fica o filho que lhe nasceu de mãos vazias.

14 Assim como saiu do ventre de sua mãe, nu, assim também tornará a ir-se como veio;e nada levará do trabalho de suas mãos.

15 Também isso é um grave mal.Como veio, assim também irá.E que vantagem terá quem trabalhou para o vento?

16 Ademais, todos os seus dias come em trevas, com grande pena, aflição e desgosto.

12 “grave” corresponde a holah, particípio Qal de halah: ficar doente, es­tar doente, que Zorell traduz por atroz, fatal (cf. Lexicon hebraicum, s. v. halah). “para o mal de seu dono”: lit. “para seu dono, para seu mal”.

13 “e o filho que lhe nasceu...”: lit. “e gerou um filho e em sua mão não tem nada”.

14 “do trabalho de suas mãos”: lit. “de seu trabalho que possa tomar em sua mão”. Para o intercâmbio entre as preposições b e m em hebraico e ugarítico cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 52s).

15 Quanto à expressão k°l‘ummat e suas eventuais origens cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 40.47: F. Zorell, 608a s. v. ‘ummah-, R. Gordis, Koheleth — the man, 111; Ch. F. Whitley, Koheleth, 53.

16 Sobre as dificuldades sintáticas do v. 16b pode-se ver F. Piotti, Osservazioni (1978), 181 e Ch. F. Whitley, Koheleth, 53.

5,12-16. Qohélet continua fiel a seu método: observar primeiro (v. 12) e refletir em seguida (w. 13-16), sem ainda insinuar nenhuma conclu­são que reserva para a perícope seguinte 5,17-19. Na reflexão introduz Qohélet dois elementos novos: o filho (v. 13) e o destino mortal do homem (w. 14-15), à luz do total fracasso nos negócios; volta, de mais a mais, a algo que lhe é muito caro: para que servem tanta fadiga e trabalho? (w. 14-16).

12-13. Sabemos que Qohélet é fiel observador de tudo o que acontece entre os homens, sob o sol. Desta vez descobre um grave mal, mal atroz e fatal (holah), como uma doença.21 Riquezas guardadas-, o mais provável é que se refira ao patrimônio acumulado pelo esforço pessoal (cf. v. 15b), não necessariamente ocultas.22Para mal de seu dono, como explica em segui­

21Assim o traduz N. Lohfink, que comenta: “Aqui e nos w. 15s; em 6,2 aparece de novo a palavra- chave ‘enfermo, enfermidade’. Se um rico não chegasse a desfrutar da vida era designado também pelos cínicos como uma ‘enfermidade’ ” (Kohelet, 44b).

22N. Lohfink em Kohelet und die Banken interpretou o conjunto 5,12-16 em chave bancária. As riquezas foram guardadas em banco que já quebrou, razão pela qual o filho não pode dispor de sua conta corrente. Doravante, portanto, (o filho? o pai? o pai e o filho?) tem que continuar sua vida como veio ao mundo, nu. Não se fala da morte, mas de continuar vivendo. Lohfink, porém, apresenta essa interpretação como “mero ensaio” (cf. p. 492). Preferimos aceitar o vocabulário em seu sentido mais comum, ainda que admitamos que Qohélet em algum momento utiliza a linguagem mercantil: mau negócio, por exemplo.

Page 277: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

da no v. 13. Falou Qohélet na perícope anterior das preocupações causa­das pelas riquezas a seu dono no afã de preservá-las; fala na presente de outro mal, o mal causado pela perda delas, eventualidade muito provável nos homens de negócios. E este o caso que considera agora Qohélet.

Arrisca-se o homem que se presume rico em negócio que se revela mau negócio. Aquele que estava em cima na escala social vê-se da noite para o dia em seu degrau mais baixo: é um pobre. As conseqüências dessa tragédia atingem também a família, especialmente o filho, que parece ser único.23 Numa sociedade, que tanto estima as riquezas e o que com elas se pode conseguir, praticamente tudo, ser pobre ou ter as mãos vazias é ver­dadeiro mal grave, desgraça e desonra; e mais ainda para os que conhece­ram o mel doce da adulação.

Essa nova situação serve a Qohélet para ir mais além em suas refle­xões, elevando-se a temas transcendentais, como o do destino mortal do homem, e o do sentido do esforço ou trabalho na vida.

14. Parece ser para Qohélet mera anedota que se converta o rico em pobre, seja o pai, seja o filho. O que agora importa é o ensinamento transcendental do nascer e morrer. Quanto ao nascer, não há possibilida­de de equívoco no v. 14a: saiu do ventre de sua mãe; quanto ao morrer: voltará a ir-se como veio, parece que tampouco deveria haver equívoco, mas alguns negam que aí esteja Qohélet referindo-se à morte.24 Neste momento da reflexão é muito importante sublinhar o termo da compara­ção, o como nasceu e o como morrerá, ou seja, nu. A nudez ao nascer é natural, ao morrer tem sentido metafórico, mas pregnante. Explica-se no v. 14b: Nada se levará do trabalho de suas mãos. Poder-se-ia expressar a sentença também assim: Saiu de mãos vazias do seio materno, em nudez e pobreza absolutas; voltará a partir da mesma maneira. Ressoam nessa passagem as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei a ele” (1,21) e a do salmista, falando do rico: “Quando morrer, não levará nada” (49,18; cf. Lc 12,17-20; lTm 6,7).

15. Qohélet repete nesse versículo em grande parte a reflexão que acaba de fazer, acrescentando, porém, novos matizes. Constatara no v. 12 um mal grave que observara ele próprio: a bancarrota do rico; diz agora que também isso, ir-se sem nada, como veio, é mal grave, e repete: como veio ao nascer, assim se irá ao morrer. Surge, portanto, a mesma pergunta que já se fez em 1,3, ainda que na pergunta se dê a resposta. Vimos que a vida de quem ama o dinheiro e acumula riquezas é preocupação contínua

23Este filho, nasce ele na miséria, depois da catástrofe econômica, ou antes, quando o pai ainda era rico? A passagem pode-se entender de uma ou de outra maneira (cf. D. C. Fredericks, Chiasm, 25).

24Cf. N. Lohfink, Kohelet und die Banken, 492.

Page 278: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

e supõe-se que se afadiga e se afana em seu trabalho dia e noite. Uma vez que chegou a ser verdadeiramente rico, num mau negócio tudo se perde e em nada tudo se converte, é como se tivesse trabalhado para o vento: tudo foi em vão, trabalhou inutilmente. Qohélet nessa passagem interpreta negativamente o valor do trabalho.

16. Descrição bastante lúgubre da vida. Pode referir-se o autor à vida em nada lisonjeira de quem carece de recursos para qualquer causa que seja, ou então ao rico avarento que, pela paixão de acumular riquezas, leva essa vida de cão.

Todos os seus dias: forma hiperbólica de falar, que indica a maneira de viver, como norma geral. Come em trevas: “Pode-se ler ‘come às escuras’ no sentido literal, ou melhor, no sentido metafórico que parece pedir o contexto”25 que segue. Sugerem as trevas vida de miséria e sofrimentos (cf. Mq 7,8; Is 9,1).26 Com grande pena...: explicita a parte interior e íntima do sujeito do versículo 16: As fadigas e aos desalentos que causa o traba­lho físico esgotante, acrescentem-se os sofrimentos íntimos da alma que geralmente tornam o homem mais infeliz.

Qohélet desenvolveu suficientemente o lado negativo da vida e até agora não descobriu nada de positivo naquilo que costumam os homens mais estimar, a riqueza. Será isso tudo o que nos tem a dizer Qohélet, ou ainda nos reserva surpresas?3.3. Bênção de Deus ao homem (5,17-19)

Se em 5,12-16 era inteiramente negativa a visão de Qohélet, a orien­tação é alegre e positiva na presente perícope 5,17-19. Apresenta-se como conclusão da observação anterior (cf. v. 12). Ademais, no conjunto 5,9-6,9 corresponde quiasticamente a 6,1-2, como se opõe a bênção de Deus à ne­gação dessa bênção.

5,17 Isso é o que compreendi:A felicidade perfeita consiste em comer, beber e desfrutar de todo o trabalho com que alguém se afadiga sob o sol nos poucos dias de vida que Deus lhe deu.E esse seu pagamento.

18 Se a um homem concede Deus riquezas e tesouros e a faculdade de comer deles e levar sua partee desfrutar de seu trabalho; isso sim que é dom de Deus.

19 Pois não pensará muito nos dias de sua vida,já que Deus o tem absorto na alegria de seu coração.

25L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 40.26Cf. F. Piotti, Osservazioni (1978), 179.

Page 279: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

17 “A felicidade perfeita”: lit. “o bem que (é) belo”, “da vida”: lit. “de sua vida”.

18 “Se a um homem...”: lit. “ademais, todo homem a quem...” (cf. R. Meyer, Gramática, 119). “Isso sim que é”: lit. “isso é”.

19 “o tem absorto” é a tradução mais freqüente matanehu (segundo G), que está em lugar de ma‘aneh. Outros preferem traduzir “lhe responde, se lhe revela” (cf. N. Lohfink, Qohéleth 5,17-19,626s; A. Gianto, The theme, 530).

5,17-19. Observa Qohélet e tira suas conclusões; neste caso, em que consiste a felicidade do homem nos breves dias de sua vida, a saber: em poder desfrutar dos bens conseguidos com seu esforço. Qohélet considera isso dom maravilhoso de Deus; por isso, é central a concepção teológica de Qohélet nessa perícope.

17. Depois do sabor amargo que nos deixaram as reflexões de 5,12ss, surpreende-nos Qohélet com conclusões otimistas, luminosas e alegres. Não é algo que levianamente lhe ocorra, mas após madura reflexão sobre a fragilidade e instabilidade dos bens da fortuna e a seriedade da morte.

Não obstante, não renuncia Qohélet à possibilidade de ser feliz. Aisso aspira todo ser humano, pois revela-se, em todo esforço e ensaio de se obter algo, a tendência mais profunda do homem ao bem. Nessa tendência descobrirão os teólogos a radical orientação do homem ao bem absoluto que é Deus, segundo a antiga doutrina de santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e nosso coração está inquieto até descansar em ti”.27 Qohélet nada sabe dessa doutrina; apenas descreve o que descobriu e compreen­deu em sua dilatada experiência, e descobrimos nós sua semelhança.

A felicidade perfeita ou o bem formoso,28 que o indivíduo concreto pode conseguir apesar de todas as limitações reconhecidas pelo próprio Qohélet, consiste em comer e beber e desfrutar... Ensinamento que não é novo em Qohélet, pois já o vimos com pequenas variantes em 2,24s; 3,12s.22 e a voltaremos a encontrar em 8,15 e 9,7-9.29 Qohélet busca o desfrute sadio em tudo o que faz e às vezes o encontra, ainda que seja em pequenas doses, como a abelha o doce néctar na planta silvestre. Que busque o des­frute na comida e bebida não é original, já que corresponde a atividade absolutamente necessária a todo homem que vive sobre a terra; mas que o encontre dentro dos limites razoáveis, demonstra equilíbrio pouco comum. O que parece característica particular de Qohélet é que a atividade do trabalho para ele seja meio adequado para o gozo. Em todas as passagens

27Confissões, I 1.2aNão creio que tenha que relacionar-se necessariamente este “bem formoso” com o ideal grego

kalós agathós.29Ver Introdução, IV 4, sobre as alegrias da vida.

Page 280: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

antes citadas, surge o trabalho como causa de gozo. Deve-se entender o trabalho em Qohélet em toda sua amplidão, ou seja, a atividade mesma do homem e o fruto dessa atividade.30

Os poucos dias da vida: O tema da brevidade da vida está entre os mais recordados por Qohélet,31já que para ele a vida não tem sentido trans­cendente, pois que tudo acaba com a morte. Todavia, não se arreda Qohélet perante esse fato para ele irrefutável; aceita-o com serenidade e naturali­dade comparáveis às dos mais perfeitos estóicos, e com visão religiosa de que careciam os mais ilustres filósofos e tratadistas de seu tempo: consti­tui a vida, longa ou curta, dom de Deus (cf. v. 18).

E esse seu pagamento, sua sorte, seu prêmio:32 o que lhe coube na loteria da vida.

18. O versículo examinará o caso do homem afortunado e feliz segundo as condições e circunstâncias definidas no v. 17. A importância extraordiná­ria do v. 18 está em que nele pressupõe Qohélet sua concepção particular sobre a intervenção de Deus na vida dos homens. Discutiu-se muito sobre a doutrina de Qohélet sobre a incapacidade do homem de conhecer a Deus e seus desígnios sobre o mundo em geral e o homem em particular.33 Todavia,5,18 responde de certa forma à grande questão da capacidade-incapacidade do homem em ordem ao conhecimento de Deus e de seus planos sobre o homem e, pelo que tudo indica, não se leva isso muito em conta no momento de se expor o pensamento completo de Qohélet sobre esse tema.

Recorde-se, antes de tudo, o contexto real de 5,18. Integra esse versículo a perícope 5,17-19.34Diz-se-nos explicitamente em 5,18 que Deus concede riquezas e tesouros, o que não é novo, mas crença comum, visto que tudo vem de Deus, como já repetiu várias vezes Qohélet (cf. 2,24-26;3,13 etc.). A novidade do v. 18 está em que se afirma que as riquezas, os tesouros e todos os bens imagináveis não são suficientes para fazer feliz na vida, se Deus não conceder, além deles, também a faculdade de poder desfrutar deles (cf. 6,2). A quem o concede Deus, concede-lhe ele grande dom (cf. 3,13).35

30C. S. Foresti, ‘amai, 429. Sobre o trabalho em Qohélet veja-se o Excursus III.3lVer Introdução, IV 3.32Já falamos do significado próprio de heleq, cf. comentário a 2,10 e 3,22.33Cf. 3,11b; 5,1b; 8,17-9,1; Introdução, III 2.4: Agnosticismo.“ Cf. N. Lohfink, Qoheleth 5,17-19, 631. Não compartilho, porém, de sua opinião: “É verdade que

Qohélet toca aqui [5,17-19] na teologia só de passagem. A principal linha de pensamento, no contexto, não é teológica. Creio que a concepção teológica nessa parte é fundamental e por isso pode iluminar o problema proposto, como o próprio N. Lohfink dá a entender na mesma página, pelo que tudo indica contradizendo-se: “Deveríamos considerar 5,17-19 como a terceira passagem ‘teológica’ do livro de Qohélet” (sendo a primeira 3,10-15 e a segunda 4,17-5,6).

35L. Gorssen escreve que “esse versículo [18] é mero paralelo de 3,13, do qual toma a expressão mttt ’Ihm Äy’ que aqui tem o mesmo sentido que em 3,13" {La cohérence, 300). Também em ambientes

Page 281: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Não só o vocabulário é comum à doutrina que os teólogos desenvolve­rão mais tarde ao falar da graça de Deus; também o é o espírito, sem que jamais se tenha dito por isso que Qohélet é mestre da graça.

19.0 versículo 19 completa as idéias dos w. 17-18. Dissera do homem infeliz no v. 16 que todos os seus dias eram pena, aflição e desgosto; afirma agora do agraciado por Deus que sequer terá oportunidade de pensar no lado obscuro da existência. E dá a razão no v. 19b: Deus o tem absorto na alegria de seu coração. Equivalentemente afirma Qohélet que essa alegria de seu coração é um dom de Deus, pois que é o resultado do desfrute de que fala o v. 18: verdadeiro dom de Deus.

A sentença fez muitos intérpretes pensar, já desde a versão dos Se­tenta e com razão. Tanto se se admite nossa versão ou se se prefere: “Deus lhe responde (se lhe revela) na alegria de seu coração”, contém o v. 19b mensagem teológica muito importante.36

Segundo nossa versão: Deus o tem absorto (ocupado) na alegria de seu coração, Deus continua sendo o sujeito ativo e a fonte da alegria do cora­ção humano. Assim também Qohélet descobre a pegada e a presença de Deus nas pequenas e momentâneas alegrias da vida do homem, apesar da “má tarefa” (1,13) que lhe impôs o próprio Deus em sua vida.

A perícope 5,17-19 deve-se, pois, chamar com todo direito de “teológi­ca”, não só pelas quatro vezes em que aparece a palavra Hohim, mas tam­bém pela teologização da vida humana, como vimos que faz Qohélet ao apresentá-la em 5,17-19 e continuará apresentando-a na perícope 6,1-2, sua continuação natural.3.4. Negação da bênção de Deus ao homem (6,1-2)

Essa breve perícope segue a anterior 5,17-19 como duas faces de uma moeda; é sua antítese perfeita. De mais a mais, é o começo do bloco 6,1-9 que, como tal, corre paralelo a 5,12-19.

6,1 Há um mal que vi sob o sol e pesa amiúde sobre o homem:2 Alguém a quem Deus dá riquezas, tesouros e honras,

sem que lhe falte nada de tudo que possa desejar; mas não lhe concede Deus comer disso, porque quem o consome é um estranho.Isso é vaidade e grave mágoa.

6,2. “falte nada”: lit. “falta nada à sua alma”.

puramente pagãos admitia-se isso como a coisa mais normal; Horácio escreve a um poeta amigo seu: “Deram-te os deuses beleza, deram-te os deuses riquezas e a arte de desfrutá-las” (Epist., I 4,6-7).

36Na segunda hipótese, a lição seria: “A alegria do coração deve ser algo semelhante à divina revelação. Quando experimentamos a alegria, ainda que em breve instante, chegamos a tocar no sentido das coisas que normalmente só Deus vê” (N. Lohfink, Qoheleth 5,17-19,634; ver também 635. No mesmo sentido pronunciam-se A. Bonora em Qohelet, 91.98 e em Esperienza, 178, e A. Gianto em The theme, 530; mas contra R. E. Murphy, On translating, 578.

Page 282: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

6,1-2. Deparamo outra observação de Qohélet. Trata-se do caso do homem que nada na abundância, mas, por não desfrutar dela, é como enfermo com doença grave a quem só falta o bem mais apreciado: a saúde. Também é muito importante aí o elemento teológico.

1. A nova observação de Qohélet: eu vi, corresponde em primeiro lu­gar à continuação do discurso que vem tratando Qohélet e que começou em 5,17: Isso é o que compreendi (vi). Ao caso concreto do rico feliz, que pode desfrutar de seus bens porque Deus lho concede (cf. 5,17-19), opõe-se o do outro rico, mas infeliz por não poder desfrutar de suas riquezas (cf. Eclo 30,19; Lc 12,16-20). Por outro lado, ao repetir o autor agora em 6,1, quase com as mesmas palavras, o que viu e observou em 5,12: há um mal que vi sob o sol, é claro que quer relacionar ambos os casos: o do rico desa­fortunado nos negócios e do opulento infeliz que não pode desfrutar de sua situação privilegiada.37 Sublinha-se o aspecto negativo das observações com a repetição do mal observado (cf. 5,12a. 15a e 6,1a). A observação particu­lar atinge valor mais geral, pois, a juízo do autor, é algo que ocorre com freqüência, afetando, portanto, o homem.

2. Ao caso referido em 5,18 acrescenta-se o de 6,2. Trata-se de pessoa muito rica, como em 5,18, que goza, além disso, da estima e do reconheci­mento de seus concidadãos, de tal sorte que se possa dizer dele que não lhe falta nada de quanto pode desejar. Essa pessoa deveria considerar-se afor­tunada e feliz; no entanto, não o é. Por quê? O autor aduz duas razões.38 Uma é comprovável: Um estranho o consome, uma pessoa que não faz parte de sua família; outra razão é de ordem teológica: a vontade de Deus favorável, ao conceder-lhe as riquezas; desfavorável, ao não lhe permitir desfrutar delas. Não é necessário descobrir aí um Deus caprichoso, dis­tante e despótico,39 que o mesmo que dá tira ou nega. Repete-se a concep­ção religiosa já conhecida: de Deus provêm os bens e os males, porque sua vontade rege os acontecimentos. Neles descobre o crente a vontade de Deus. Em nosso caso, o fato de que um estranho comsuma os bens de um rico proprietário, equivale a dizer que Deus não lhe concede comer deles.

37D. C. Fredericks insiste no paralelismo entre 5,12 e 6,1: “Frase quase idêntica dá começo a essas secções: ‘Há um mal (repugnante: 5,12a) que vi sob o sol’.

5,12 yesh ra‘a hola ra’iti tahat hashshamesh6,1 yesh ra‘â ’*sher ra’iti tahat hashshameshAs frases são idênticas, em todo o caso, quanto a seu ritmo, visto que a única diferença são as duas

palavras bissilábicas, ritmicamente equivalentes: hola e *sher. Esta frase de 5,12a tem outro paralelo em 5,16 que usa o equivalente holyo também, mas prescindindo da cláusula tahat hashshamesh” (Chiasm, 29-30).

38E inútil querer identificar as causas materiais pelas quais o rico não pode desfrutar de suas riquezas (cf. D. Michel, Untersuchungen, 139-140).

39Contra o parecer de A. Lauha em Kohelet, 114.

Page 283: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Como se vê em 6,2, considera-se o caso contrário ao de 5,18; assim o confirma a conclusão. O autor terminava em 5,18 com a sentença: “Isso sim que é um dom de Deus”; em 6,2 finaliza com a expressão paralela, mas antitética: Isso é vaidade e grave mágoa (h°li), adiantando assim o juízo de vaidade global de 6,9, e sintetizando o pensamento repetido do mal grave (jiolah) do qual falou em 5,12a e 5,15a.

3.5. O homem infeliz é pior que um abortivo (6,3-6)Chegamos com essa perícope ao ponto culminante nas considerações

negativas sobre o homem que, se bem que rico, não goza de suas riquezas. A perícope 6,3-6 contém a terceira antítese do bloco 5,9-6,9; opõe-se a 5,12­16 com uma conclusão surpreendente.

6.3 Suponhamos que um homem tem cem filhos e vive muitos anos, de sorte que sejam muitos os dias de sua vida;mas não pode saciar-se de seus bens,e, embora para ele não haja sepultura, eu afirmo:melhor que ele é um abortivo,

4 pois chega inutilmente e vai-se às escuras; fica seu nome escondido na escuridão.

5 Sequer viu o sol, nem o conheceu; mas este descansa mais que o outro.

6 Ainda que viva dois mil anos, se não é feliz, não vão todos ao mesmo lugar?

6.3 “Suponhamos que”: lit. “Sim”, “os dias de sua vida”: lit. os dias de seus anos”, “mas ele... de seus bens”: lit. “e sua alma... de felicidade”.

6 “dois mil anos”: lit. “duas vezes mil anos”, “se não é feliz”: lit. “mas não desfruta de felicidade”.

6,3-6. O autor finge uma nova situação em que acumula intencional­mente numa pessoa o mais apreciado entre os homens: riquezas, numero­sa prole e longa vida, com a nota negativa de que tal pessoa não pode desfrutar de seus bens. Confronta-o tudo isso com algo tão repugnante e negativo como um abortivo. A conclusão paradoxal de Qohélet é que o abortivo está em melhores condições que o homem rico, prolífico e de lon­ga vida.

3. O autor desenvolverá mais amplamente a hipótese exposta no v. 2, mas com novos elementos que implicam novos pontos de vista. Os novos elementos em grau hiperbólico são a numerosíssima prole (cem filhos) e a vida longa (muitos anos, muitos os dias de sua vida). E comum a insatisfa­ção: não pode saciar-se de seus bens, ou seja, que não é feliz nem com as riquezas nem com os filhos nem com os muitos dias vividos (cf. v. 6). Desta vez o autor não insinua sequer as causas pelas quais ele não pode saciar- se de seus bens. Refere-se à insatisfação como a um fato dentro duma hipó­

Page 284: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tese: Suponhamos... O juízo conclusivo de Qohélet é taxativo: melhor que ele é um abortivo-, afirmação terminante e inesperada num homem que ama tanto a vida, por ser o único bem de que se pode desfrutar enquanto se vive.

Deixou para o final o da carência de sepultura, cujo sentido é tão obscuro que os autores se contradizem. Uns optam por mudá-lo de lugar, já que não parece encaixar-se no v. 3. E o que faz L. Alonso Schõkel que o transfere para o v. 5, aplicando-o ao abortivo: “Não viu o sol nem se intei­rou de nada nem recebe sepultura...A maioria, porém, conserva a sen­tença no v. 3 com o sentido de “ainda que ele não tenha sepultura” (apesar de seus cem filhos!), acrescentando assim um motivo a mais de infelicida­de.41 D. Michel recorda uma interpretação que já conta com certa tradição: “Ainda que não tivesse nenhuma sepultura = ainda que ele não morresse nunca”. E uma vez que estamos supondo, suponhamos também que a pes­soa de quem se fala em 6,3 nem sequer chega a morrer: ainda que para ele não haja sepultura!enterro.42 O processo lógico das hipóteses irreais é as­cendente: “cem filhos”, vida longuíssima (“muitos anos”, “muitos os dias de sua vida”, cf. v. 6: “ainda que viva dois mil anos”); o escalão mais alto, o último: “ainda que nunca morra”. Se supusermos tudo isso, que é o máximo que se pode pensar, se todavia não pode desfrutar de seus bens, a conclusão de Qohélet parece até normal: Eu afirmo: melhor que ele é um abortivo,43

4-5. Estes dois versículos dedicam-se a explicar o que parece inex­plicável: que é melhor o abortivo que o vivente. O sujeito gramatical dos w. 4-5 é sempre o abortivo, que vem e se vai.

Chega inutilmente: chega à vida, à luz; surge o que antes não se via, porque estava no seio materno; mas inutilmente, porque nasce morto, não serve para nada; na realidade não chega a nada, é um morto. E às escuras se vai: melhor se poderia dizer que se foi, já que não pertence ao reino dos vivos, mas ao dos mortos, ao da escuridão e das trevas. Por isso seu nome ou seu “não-nome”, já que não é pessoa nem tem existência pessoal, fica oculto na escuridão da não-existência e do esquecimento.

i0Eclesiastés, 42.41Cf. D. Michel, Untersuchungen, 144-146, onde se pode encontrar variedade quase ilimitada de

matizações e sugestões dos autores.42Cf. D. Michel, Untersuchungen, 146, que trata dessa hipótese e do que pensam A. Gerson (1905),

P. Kleinert (1909), L. Levy (1912) e N. Lohfink (1980).43D. Michel matiza ainda mais a hipótese irreal para Qohélet do “não morrer”; segundo ele “é mais

provável ver aqui uma alusão à representação do arrebatamento, para o qual é característico que o arrebatado não seja enterrado, mas diretamente ‘arrebatado’ por Deus” (Untersuchungen, 147). Resta uma dúvida, que também propõe D. Michel no mesmo lugar, sem que possamos dar resposta adequa­da: Trata Qohélet do arrebatado, como de lugar comum conhecido na tradição (cf. o arrebatamento de Henoc e o de Elias), ou defende de forma controvertida algumas correntes do pensamento de seu tempo?

Page 285: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O v. 5a é repetição conceituai do v. 4 e do que significa ser abortivo. A sentença: sequer viu o sol, tem mais força se a compararmos com outra de Qohélet, para ele a quem vale tanto a luz do sol: “Boa é a sabedoria acom­panhada de patrimônio; e proveitosa aos que vêem o sol” (Qoh 7,11). Qohélet parece um pouco com Jó e com Jeremias, não por certo na paixão que os consome. Diz Jó: “Por que não morri ao sair do ventre ou pereci ao sair das entranhas?... Agora seria um abortivo enterrado, uma criatura que não chegou a ver a luz” (Jó 3,11.16; cf. Jr 20,17).

Qohélet responde no v. 6b às perguntas sobre a razão pela qual o abortivo é melhor que o rico infeliz e em que leva vantagem um sobre o outro. A resposta é: o abortivo descansa com o descanso da morte; o outro em sua vida não tem descanso. Outra vez parece que estamos ouvindo palavras de Jó. Este maldiz o dia de seu nascimento e continua com per­guntas e respostas: se tivesse nascido morto, “agora dormiria tranqüilo, descansaria em paz” (Jó 3,13), como descansam os mortos, nobres ou ple­beus, livres ou escravos, bons ou maus (cf. Jó 3,14-19). O outro, porém, o que tem dezenas de filhos e vive anos sem número entre riquezas que não desfruta, não conhece o descanso, e de novo pode dizer com Jó: “Vivo sem paz nem descanso entre sobressaltos contínuos” (3,26), ou com Jeremias: “Por que saí do ventre para passar trabalhos e penas, e acabar meus dias derrotado?” (20,18). As queixas de ambos são as mesmas de Qohélet, não, porém, as circunstâncias, pois tanto Jó como Jeremias representam o ho­mem a quem persegue a desgraça e por isso termina na derrota, o que só em parte se pode aplicar à personagem de Qohélet. Portanto, a compara­ção de Qohélet entre o abortivo e o homem afortunado em filhos, anos e riquezas, se bem que dessas não desfrutasse, não deixa de ser desmedida. Sabia-o sem dúvida Qohélet; então, o que pretendeu com ela?

6. Este versículo faz culminar a perícope 6,3-6 e, portanto, seu senti­do. A hipótese era a de um homem rico de bens, filhos, anos e até possivel­mente imortal; se não é feliz, nada tem sentido: até o abortivo é melhor! O v. 6 encerra a hipótese, mas o sentido está incompleto, ainda que se supra com facilidade: E ainda que viva dois mil anos, se não é feliz, para que serve?, não vão todos ao mesmo lugar? O sujeito gramatical volta a ser a personagem do v. 3. Não se menciona diretamente o abortivo, talvez esteja implícito em todos do v. 6b. Dois mil anos: Número limitado, mas equiva­lente a número indeterminado, a muitíssimos anos (cf. v. 3). Se não é feliz: A expressão é de maior amplidão que a utilizada no v. 3: “Não pode saciar- se de seus bens”, e, além disso, é mais feliz, por não excluir motivo algum que possa causar a infelicidade.

Não vão todos ao mesmo lugar? O autor não duvida, está seguro de que vão todos ao mesmo lugar, é pergunta retórica. O lugar é a morte;

Page 286: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pode ser o sheol ou simplesmente o túmulo (cf. 3,20). A razão de se falar aqui da morte, como sorte comum, parece que está em motivos estrutu­rais. Como dissemos antes, a perícope 6,3-6 corresponde quiasticamente à unidade 5,12-16, onde detidamente se trata do tema da morte.

3.6. Inutilidade do esforço humano (6,7-9)A breve perícope de três versículos corresponde quiasticamente à tam­

bém breve de 5,9-11, opõe-se agora a inutilidade do esforço do homem;44 comum a ambas as perícopes é o estilo proverbial.

6.7 Toda a fadiga do homem é para a boca, mas o apetite rião se sacia.

8 Pois que vantagem tem o sábio sobre o néscio e o pobre que sabe haver-se na vida?

9 Melhor é o que vêem os olhos que o divagar dos desejos.Também isso é vaidade e caça de vento.

7 “o apetite” ou “a alma”.8 “na vida” ou “em frente a, entre os vivos”.9 “o que vêem os olhos”: lit. “a visão de”, “dos desejos” ou “da alma”.

6,7-9. A última perícope do conjunto 5,9-6,9 é uma espécie de reflexão geral, muito sapiencial, que Qohélet faz após todas as observações prece­dentes. O conteúdo é muito denso e acolhe temas fundamentais do livro: o trabalho ou fadiga do homem, a insatisfação dos desejos, a célebre per­gunta: qual a vantagem?, a oposição sábio-néscio, (rico?)-pobre, o valor do assequível e, finalmente, o juízo de vaidade com sua fórmula mais solene. Realmente 6,7-9 constitui encerramento digno desse bloco de reflexões.

7. A sentença em si mesma tem sentido completo, e pode-se conside­rar por seu estilo como verdadeiro provérbio com paralelismo antitético, já que o segundo membro é complemento do primeiro e principal. Mas o v. 7 adquire no contexto conotações especiais, pois integra a perícope que encerra as reflexões começadas em 5,9.

Toda a fadiga do homem-, E todo esse afanar-se fadigosamente que resume o aspecto duro e ingrato da vida do homem.45 Dizia-o Jó de outra forma: “O homem cumpre um serviço na terra, seus dias são os de um jornaleiro: como o escravo, suspira pela sombra; como o jornaleiro, aguar­da o salário” (Jó 7,1-2). Tudo é trabalho, serviço, contínuo suspirar, espe­rar a hora do descanso. O provérbio de Qohélet descobre, ainda mais pro­saica e realisticamente, que o principal motor do homem em sua atividade febril move-se pela necessidade insubstituível de buscar o sustento para

MD. C. Fredericks, Chiasm, 18-23.45Sobre o conceito amplo de ‘amai em Qohélet pode-se ver o comentário de 1,3 e o Excursus III.

Page 287: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

viver: para a boca,46 que também se estende na realidade ao sustento dos familiares mais próximos. Desse ponto de vista, Qohélet interpreta tam­bém a expressão como o apetite insaciável de posses e riquezas, de que tratou nos versículos anteriores.

Mas o apetite não se sacia-. E claro que Qohélet não se refere à fome fisiológica, porque essa por certo se pode saciar, mas aos desejos e anseios de possuir cada vez mais (cf. 5,9). O apetite-alma, neste sentido, não tem medida; dele se diz o que se diz do mar: “E o mar não se enche”, apesar dos rios e rios que nele desembocam (Qoh 1,7). Este traço é ambivalente, pois manifesta tanto o vazio imenso que é o homem, que não se pode encher com nenhum bem deste mundo: “Nem só de pão vive o homem” (Dt 8,3), como a grandeza deste mesmo homem, cujo vazio infinito é causado por sua própria transcendência. Qohélet não o diz assim, mas põe os funda­mentos para essas conclusões aqui e em outros lugares (cf. 3,11).

8. A pergunta, de grande importância para Qohélet desde o princípio (cf. 1,3), surge espontaneamente depois da constatação de tantas frustra­ções de que falamos no v. 7. O versículo trata explicitamente da antítese sábio-néscio. O autor não descobre vantagem alguma de um sobre o outro na vida real. O segundo hemistíquio 8b fala do pobre como sábio na vida; corresponde, pois, ao sábio do v. 8a. A pergunta, que todo intérprete se faz, é a quem se opõe esse pobre experimentado? Ao néscio do v. 8a ou a um rico que não aparece explicitamente e que seria o néscio-rico? A orientação de Qohélet vai nessa direção: identificar o pobre com o sábio e o rico com o néscio (cf. 4,13).47 Sendo pergunta retórica, sabemos já de antemão a res­posta: nenhuma vantagem. Não se trata com certeza de argumento para continuar lutando na vida, já que elimina todo estímulo para a ação (cf.9,10); mas manifesta-se aí a personalidade de Qohélet que vai contra a lógica, visto que não recua no empenho de buscar o fruto do trabalho, apesar de tudo, e de tentar encontrar essas frações de felicidade que se dão na vida.

9. Qohélet assenta suas moedas no momento presente e vive-o conse­qüentemente. Melhor é o que vêem os olhos-, está, em seu sentido direto, apontando a algo que está aí presente, ao alcance do homem para poder desfrutá-lo.48 Que o divagar dos desejos-, porque se sonha desperto e se dão

46Interpretou-se “a boca” como expressão da insaciabilidade do sheol (cf. P. R. Ackroyd, Two Hebrew notes, 85; M. J. Dahood, Hebrew Ugaritic Lexicography VI, Bib 49 [1968] 368; mas com razão se opuseram Ch. F. Whitley, Koheleth, 58 e R. E. Murphy, On translating, 577-578.

47D. C. Fredericks escreve que “ainda que o contraste entre o rico e o pobre esteja apenas implícito em A’ [6,7-9], o ‘ani [pobre] converteu-se em figura importante” (Chiasm, 23; cf. L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 43.

48Muitos autores dão à raiz ra’ah o sentido de desfrutar de (cf. R. Gordis, Kohelet — the man, 252; D. C. Fredericks, Chiasm, 22; D. Michel, Untersuchungen, 158).

Page 288: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

rédeas soltas à imaginação e a seu cortejo de anseios e desejos. Os autores convêm em que a sentença pode ser um provérbio de significado parecido ao nosso: “Mais vale um passarinho na mão que cem voando”, que se repe­te com variantes em todas as línguas.

Com isso Qohélet não renuncia a ter ilusões na vida, pois sem elas não se pode viver. Mas afirma uma vez mais seu senso da realidade e seu pragmatismo. De puros sonhos não se pode viver, é preciso viver com os pés no chão e saber renunciar a tempo a sonhos impossíveis.

Mas também tudo isso é efêmero, é vento que passa e que não se pode pegar. Também passa a pequena felicidade que entra pelos olhos e está ao alcance da mão. Antes de te dares conta, fugiu de tuas mãos o que crias ter pegado, como o vento. Qohélet quis com essa sua sentença opor a firma no final de todas as suas reflexões sobre a pouca consistência que têm as riquezas e aqueles valores que nelas funda o homem.

Fazemos notar, no final do comentário a 6,9, que com este versículo chega-se à metade do livro de Qohélet.49

VI. O HOMEM DIANTE DO PREDEFINIDO E DO IMPREVISÍVEL(6,10-12)

Qohélet é pensador a quem interessam sobretudo seu presente histó­rico e seu futuro imediato. Todo o passado como o futuro não-imediatos parecem-lhe inatingíveis, como que fazendo parte de certa forma da esfe­ra do divino. Depois do que vimos até agora, a breve perícope 6,10-12 no-lo vai confirmar.

Estes três versículos foram objeto dos juízos mais diferentes e díspares entre os autores. Houve quem os considerasse como “excelentes materiais de construção”, mas meramente amontoados e não-organizados;1 e outros crêem que formam unidade, se bem que independente do contexto:2 por­que serve de encerramento do anterior,3 ou de introdução ao seguinte,4 ou

49A. G. Wright estudou mais que ninguém a razão numérica na estrutura de Qohélet. Também ele põe em 6,9 uma censura que assinala exatamente a metade de Qoh (cf. todo o artigo The riddle [1980. Em todo caso, levemos em conta que a divisão em versículos é algo muito posterior à composição do livro de Qoh.

‘D. Buzy, UEcclésiaste, 240b. Deles diz O. Loretz: “Uma composição de quatro meshalim (Qoh 6,10a; 6,10b; 6,11a; 6,llb.l2), que náo se devem forçar a entrar em relação lógica” (Qohelet, 231 nota 63).

2Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 262; K. Galling, Der Prediger, 105. A. Lauha considera-a unidade temática e estilística (Kohelet, 118).

3Cf. W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 200; D. Michel, Untersuchungen, 161s.4Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 135.144; R. E. Murphy, Wisdòm, 129.139; A. G. Wright,

Additional, 34.36-37.

Page 289: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ambas as coisas ao mesmo tempo.5 Creio que a perícope 6,10-12 constitui unidade,6 muito embora não seja muito homogênea, que ocupa intencio­nalmente este lugar como introdução a 7,lss.

6.10 O nome do que existe faz tempo que foi chamado e sabe-se que é homem,e não poderá enfrentar quem é mais forte do que ele.

11 Quando há muitas palavras, estas aumentam a vaidade.Que aproveita isso ao homem?

12 Pois quem sabe o que é bom para o homem em sua vidanestes dias contados de sua vida tênue que os passa como uma sombra? Pois quem fará saber ao homem o que acontecerá depois dele sob o sol?

10 “O nome do que existe...”: lit. “O que existe, há tempo que se chamou o seu nome”. R. Gordis explica: “ ‘Seu nome... já foi chamado’, por isso ‘veio à existência’ ” (Koheleth — the man, 262).“o que é homem” ou “o que é um homem”: E mais conhecida a proposta de correção do TM que fez M. J. Dahood em 1952: “Em lugar da leitura atual massorética [%sher-hu’ ’adm talvez se tivesse que ler ’ashrehu ’dm, omitindo um ‘aleph que seria resultado de uma ditografia... O versículo teria que se traduzir assim: “...seu destino [do homem] foi conhecido” (Canaanite-Poen., 208). Poucos autores seguiram M. J. Dahood (cf. R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 233; J. J. Serrano, Qohélet, 563 nota 2). O mais normal é que tenha sido refutado (cf. R. Gordis, Was Koheleth, 112; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 138; Bo Isaksson, Studies, 85 nota 62). Mas é preciso constatar que o próprio M. J. Dahood mudou de opinião, voltando a preferir o TM (cf. CBQ 32 [1970] 89). Ch. F. Whitley tampouco aceita a primeira proposta de Dahood e propõe a sua que oferece certa novidade. Ele afirma que podemos aceitar o texto hebraico como está, ainda que rejeitando a pontuação massorética. A primeira linha acaba logicamente em hw’: ‘O que é, foi e é chamado de homem, e é conhecido o que é\ O sujeito da próxima linha começa na­turalmente com ’dm, e o w de u;Z’pode-se considerar asseverativo. Tra­duzi-la-íamos nós: ‘O homem não pode realmente disputar com alguém que é mais forte que ele próprio’ ” (Koheleth, 61). Whitley tampouco melhora o sentido do texto hebraico e tem o inconveniente de ir contra as versões antigas LXX e Vg (cf. Koheleth, 60).“quem é mais forte” com o Qeré shettaqqip; o Ketib shettaqqip dever-se- ia considerar como forma mista de shettaqqip e hattaqqip; outras pro­postas têm muito poucas possibilidades (cf. BH e BHS; R. Gordis, Koheleth — the man, 263; Ch. F. Whitley, 61; J. L. Crenshaw, Eccle­siastes, 131; D. Michel, Untersuchungen, 161).

11 “Quando”: o k i é temporal (cf. P. Joüon, 166,o); absolutamente, poder- se-ia interpretar como ki asseverativo: certamente (P. Joüon, 164. “es-

5G. S. Ogden escreve: “Os versículos 10-12 introduzem nova secção, ainda que não inteiramente independente do que precede” (Qoheleth, 96).

6Um indício de que 6,10-12 constitui unidade pode-se descobrir no uso reiterado de mah e de mi (cf. G. S. Ogden, Qoheleth, 96).

Page 290: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sas aumentam”: corresponde ao particípio hifil de rbm, que concorda com palavras: “Que aproveita isso?”: forma verbal pela original hebraica nominal: “Que proveito?”

12 “em sua vida”: lit. “na vida”, “nesses dias contados”: mispar, acusativo de tempo (cf. 5,17). “Como uma sombra”: segundo o texto hebraico kassel e não a versão grega que supõe bsl. M. O. Wise considera bsl Çshr) um decalque do aramaico btll (zy): porque (cf. A calque, 257). Geralmente reconhece que o relativo *sher 12b é causal e equivale a kl (Ges.-K., 158b).

6,10-12. É muito difícil, para não dizer impossível, reduzir a poucas palavras o conteúdo destes três versículos que isoladamente podem ter sentido autônomo. O título, que escolhemos para a perícope, ressalta a dificuldade do homem diante da realidade já existente e predefinida, su­bentende-se por Deus, e diante do desconhecido do futuro: verdadeiro mis­tério para Qohélet e para todo homem que pisa a terra. Daremos conta, no comentário a cada versículo, das principais dificuldades teológicas que se se suscitaram a propósito.

10. Ocupa o versículo “a metade do livro”, segundo nos recordam os massoretas.7 O v. 10 em sua primeira parte trata da teologia da criação, na qual não se pronuncia o nome de Deus mas está presente no passivo foi chamado (niqra)f o processo que segue é do mais universal: o que existe, no concreto: homem.

O nome do que existe... A sentença no original hebraico é muito dura a nossos ouvidos: “o que existe, há tempo...”, como se explica na nota filológica; por isso a conformamos, em nossa tradução, sem menoscabo do sentido. O que existe tem sentido amplíssimo, ainda que não vá acompanhado do “tudo”, como, por exemplo: “Tudo o que Deus faz” (3,14a), ou “(Deus) tudo fez belo” (3,15a).

Foi chamado: Forma de dizer que foi criado9 segundo o vocabulário especializado do texto sacerdotal e do segundo Isaías (cf. Gn 1; Is 40,26; 43,1). Se, além disso, se alude ao nome, sublinha-se a idéia de criação como ação divina orientada e querida, que manifesta a vontade divina de eleição especial (cf. Is 41,8-10; 43,1; 45,3-4 em seu contexto de criação 45,5-8).

Quanto a se esse “ter sido chamado de antemão” implica determinismo divino e em que sentido, houve autores que defenderam a linha dura da determinação divina de todos os acontecimentos na história e na nature­

7A. G. Wright crê, porém, que a metade do livro coincide como o final da primeira parte em 6,9 (cf. nota 49 no comentário a 6,9).

8Cf. N. Lohfink, Kohelet, 48.90 Enuma Elish, ou epopéia babilónica da criação, começa assim: “Quando nas alturas os céus não

se tinha nomeado, e a terra em baixo não tinha sido nomeada por seu nome” (ANET 60b-61a).

Page 291: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

za, de tal forma que se chega a anular a liberdade humana.10 Outros se­guem orientação mais branda.11 Deve-se buscar a solução na doutrina que saiba tornar compatível a autêntica autonomia limitada da liberdade hu­mana com a onipotência ativa de Deus em sua criação, especialmente na vida dos homens.

E se sabe que é homem-. A equivocidade do original torna muito difícil dar uma só explicação satisfatória da sentença. Da criação em geral no v. 10aa, chegamos à particular do homem que também foi nomeado por Deus e, portanto, criado e eleito entre todos os seres. Quer dizer com isso Qohélet que se sabe o que é o homem? De nenhuma maneira: isso corresponderia antes à versão: “sabe-se o que é o homem”. A expressão, porém, não está tão definida para atribuir a Qohélet conhecimento tão profundo do ho­mem. Amiúde confessa Qohélet as limitações na ordem do conhecimento humano, razão pela qual do homem sabemos mais até onde não pode che­gar do que até onde o pode; bagagem antes pobre. Sendo assim, Qohélet confessa os limites e fronteiras do homem, o que também é uma forma de conhecer que ele é homem e o que é o homem.12

Não poderá enfrentar: Não se diz no texto quem não pode enfrentar o homem, ou o que é o mais forte que ele. A maioria dos autores vê, neste ser mais forte que o homem, a Deus.13 Alguns duvidam14 e D. Michel identifi­ca-o com a morte.15 Creio eu que se refere a Deus, uma vez que todo o texto é teológico (cf. os passivos teológicos). Provavelmente Qohélet tem na me­mória passagens de Jeremias como 12,1; 20,7.14-18 e de Jó como 9,2­3.19.32; 13,22ss, cujas atitudes não considera apropriadas.

11. Quando fala Qohélet com suas próprias palavras, mostra-se qua­se sempre crítico para com o que comumente se aceita na sabedoria tradi­

10Diz K. Galling: “O tema desta reflexão crítica é a predeterminação do ser e a não-liberdade do homem, implicado nela” (Der Prediger, 105); cf. A. Lauha, Kohelet, 119.

uComo G. S. Ogden que afirma: “As coisas são como são, como foram e sempre serão. Essa tese já se propôs em 1,4-11 e funda-se na noção de que Deus é o criador e sustentador da vida” (Qoheleth, 97); cf. R. Kroeber, Der Prediger, 143.

12L. Alonso Schõkel indica, de mais a mais, outra via de interpretação: “Entre todos os seres cria­dos e entre tudo o que acontece, há uma criatura que interessa a Qohélet; ainda que Gn não nos diga que Deus lhe impôs um nome, deduz-se de Gn 2. Recebeu um nome que significa seu ser e destino: esse nome é ‘Adão’, que significa ‘terreno’; por esse nome ‘se conhece’ e se compreende. Porque se chama Adão e o é, não pode superar ao mais forte, a seu destino mortal e a Deus, que o determinou. Segundo essa interpretação, seria preciso traduzir: ‘O que existe tem um nome e o conhecemos: é Adão, e não pode contender com quem é mais forte que ele’ ” (Eelesiastés, 44). Bo Isaksson defende também que ’adam é o nome próprio “Adão” (cf. Studies, 86-88).

13Escreve Bo Isaksson: “O ‘alguém que é mais forte’ é Deus. Reconhece-se isso pela maioria dos comentadores” (Studies, 87 nota 75). EA. Barucq diz que é “Deus sem nenhuma dúvida” (Eelesiastés, 115). A. Lauha chama-o de “déspota celeste” (Kohelet, 119). N. Lohfink recorda a esse propósito a sentença (187) de Menandro: “Não lutes contra Deus” (Kohelet, 48).

14Como H. Lohfink em Kohelet, 48 e G. S. Ogden em Qoheleth, 97.15"0 homem não pode discutir com aquela que é mais forte que ele, ou seja, com a morte” (Qohelet,

148).

Page 292: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cional. Em 7,lss Qohélet vai começar nova série de críticas à sabedoria expressa nos provérbios. O v. 11 marca de fato o início dessa crítica.16

Seria muito fácil acompanhar a forma proverbial do v. 11a com refrões paralelos em todas as línguas, do estilo de “Quem muito fala, muito erra”: “quanto mais palavras, mais vaidade”.17 Se aceitarmos que Qohélet alude no versículo anterior a Jeremias e a Jó, tanto palavrório e tanto discurso serão o ponto de enganche com a presente sentença.

A vaidade, portanto, equivale ao inútil e sem sentido. Por isso se per­gunta Qohélet com razão: de que aproveita isso ao hom em? Não parece que neste lugar a pergunta tão típica de Qohélet tenha função estrutural, nem tampouco sentido tão transcendental como em outros momentos (cf. 1,3; 2,11; 3,9 e 5,15). No entanto, é a primeira de uma série que continuará no v. 12 e todas juntas alcançam significado além e acima do normal.

12. O versículo 12 continua a mesma tônica da pergunta do v. 11: perguntar pelo que é bom ou melhor para o homem é o mesmo que interro­gar-se sobre o proveito ou benefício que uma coisa pode trazer ao homem. Em certo sentido, pois, o v. 12 faz parte da unidade de 6,10-12 assim como da que se abre em 7,1, que constitui uma como resposta às perguntas dos w. 11-12.

Qohélet em seu contínuo buscar na vida, para separar o que lhe con­vém do que não lhe convém, vai descobrindo em todos as esferas de sua azarada vida mais sensabores que qualquer outro sábio até então desco­brira. Daí seu tom agridoce e melancólico em suas conclusões e ensina­mentos. Mais de uma vez já deparamos com afirmações como esta: “Nada há de melhor para o homem que comer, beber e desfrutar de seu trabalho” (2,24; cf. 3,12.22; 5,17); e ainda continuaremos encontrando algumas seme­lhantes (cf. 9,7-9; 11,7-10). Por isso não nos deixa de surpreender ouvir de novo Qohélet perguntar quem sabe o que é bom para o homem...? Mas, numa coletânea de reflexões, como a que constitui o livro de Qohélet, não nos deve estranhar o fato de se repetirem os temas-chave.18

Nesses dias contados de sua tênue vida: Qohélet acumula expressões que sublinham a brevidade da vida, sua fragilidade e futilidade. A essas se somam a comparação da vida com uma sombra, clássica entre os auto­res. Pouco mais adiante no tempo, o autor do livro da Sabedoria porá nos

16Em 6,11 coloca N. Lohfink o começo duma parte importante de sua estrutura (6,11-9,6): a crítica da sabedoria antiga (cf. Kohelet, 48); ver também D. Michel, Untersuchungen, 259.

17Assim traduz L. Alonso Schõkel o versículo 11a. J. L. Crenshaw crê que à crítica Qohélet acres­centa a ironia que a expressa estilisticamente com a aliteração” (cf. Ecclesiastes, 131).

18D. Michel interpreta o versículo 12 de outra forma, atribuindo a pergunta não a Qohélet, mas a hipotéticos defensores de um além, que é como a face oposta do aquém contraditório e sem sentido; o homem encontra a resposta à pergunta não no “breve espaço de tempo de sua vida... mas deve esperá- la da vida futura depois da morte” (Untersuchungen, 164).

Page 293: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

lábios dos que ele chama de ímpios, e aos quais se opõe radicalmente, certas palavras que recordam tematicamente as de Qohélet: “Nosso nome cairá no esquecimento com o tempo e ninguém se recordará de nossas obras; passará nossa vida como rastro de nuvem, dissipar-se-á como ne­blina acossada pelos raios do sol e esmagada por seu calor. Porque nossa existência é a passagem de uma sombra, e irreversível nosso fim; está aplicado o selo, não há retorno” (Sb 2,4-5). Em nosso comentário a essas palavras escrevíamos: “Negada a imortalidade individual, não restará [para os ímpios] sequer a imortalidade da recordação nas gerações futuras. A existência pessoal para eles não tem mais consistência que a do tempo que passa. Essa doutrina sem esperança ilustra-se plasticamente com várias comparações, conhecidas na própria tradição literária de Israel (cf. Os 13,3; Jó 7,9; 8,9; 14,2; SI 39,7; 109,23; 144,4)”.19 A comparação entre Qohélet e Sabedoria aqui é meramente anedótica. Interessa-nos apenas enquanto a concepção da vida como sombra que passa pode ser utilizada tanto por um crente ou temente a Deus, como Qohélet, como pelo libertino. A realidade que se descreve é a mesma, o espírito é abissalmente diverso. Se para Qohélet o presente é como sombra que passa, qual será o futuro temporal do homem que ainda vive e o futuro também temporal do qual não partici­pará quem já morreu? Pois é claro que a pergunta de Qohélet: pois, quem fará saber ao homem o que acontecerá depois dele?, refere-se somente ao futuro intra-histórico: sob o sol, não ao futuro absoluto depois da morte que não cai dentro do horizonte de Qohélet. Nisso Qohélet é fiel a si mes­mo em todo o seu livro: “E grande o mal que ameaça o homem; já, pois, que ele não sabe o que acontecerá, quem lhe vai anunciar quando acontecerá?” (Qoh 8,6-7; cf. 8,17).20

VII. O QUE É BOM PARA O HOMEM (7,1-29)

Acabamos de dizer que 6,10-12 tem como função principal introdu­zir o que segue, ou seja, 7,lss. Com efeito, em 7,1 começa-se a responder à primeira pergunta de 6,12: “Quem sabe o que é bom para o homem?”. A segunda pergunta de 6,12: “Quem fará saber ao homem o que acontecerá depois dele?”, responde Qohélet nos capítulos 8 e 9, algumas vezes com grande clareza e outras nem tanto, pois não nos achamos diante de um

19J. Vílchez, Sabiduría (1990), 156.20D. Michel confirma essa interpretação: “12b corresponde perfeitamente ao que tem Qohélet su­

blinhado continuamente: o futuro está fechado ao homem, só pode ele utilizar-se do momento presen­te. Estaria aí inserida essa atitude cética fundamental contra uma esperança escatológico-apocalíptica” (Untersuchungen, 164).

Page 294: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tratado filosófico que se estrutura de antemão segundo plano determi­nado.1

Dividimos o capítulo 7 em quatro secções que nos parecem ordenar as idéias tão várias de Qohélet; estas secções são: 1) O que é o melhor para o homem? (7,1-14); 2) É bom evitar os extremos (7,15-22); 3) Reconhecimen­to da inatingibilidade da sabedoria (7,23-24); 4) Achados provisórios e acha­do definitivo (7,25-29).2

1. O que é melhor para o homem: 7,1-14

Que 7,1-14 constitui composição unitária, pelo menos quanto à forma se não quanto ao conteúdo, afirmam-no expressamente R. Gordis,3 F. Ellermeier4 e A. Lauha.5 Segundo parece, G. S. Ogden defende para 7,1-13 (14) algo mais que a mera unidade formal que lhe dão os provérbios na forma de “melhor é... que”.6Mas o autor, que mais se destacou na defesa da unidade formal e de conteúdo de Qoh 7,1-14, foi N. D. Osborn.7 Vamos ten­tar, em nossa análise exegética, mostrar também o acerto dessa sentença.

7,1 Melhor é um bom nome do que um bom perfume e o dia da morte do que o dia do nascimento.

2 Melhor é ir a uma casa em luto que ir a uma casa em festas, porque nisso acaba todo homem;e o que ainda vive, reflete.

3 Melhor é o pesar que o riso,pois com a tristeza do rosto alegra-se o coração.

4 O coração do sábio na casa em lutoe o coração do néscio na casa da alegria.

5 Melhor é escutar a repreensão do sábio que escutaro canto dos néscios,

‘Aceitamos apenas algumas sugestões de A. G. Wright a esse respeito, como se pode comprovar pelo exposto na secção VII da Introdução sobre a estrutura de Qohélet (cf. A. G. Wright, The Riddle [1980] 39).

2Praticamente é a distribuição em perícopes que propõe A. Lauha (cf. Kohelet, 121-139; em parte somente a de K. Galling (cf. Der Prediger, 105-109), de R. B. Scott (cf. Ecclesiastes, 234-239) e de J. L. Crenshaw (cf. Ecclesiastes, 132-148).

*Ver seu magnífico estudo sobre “o setenário” no estilo bíblico e rabínico, onde dedica R. Gordis duas páginas a Qoh 7,1-14 (cf. The heptad, 20-21).

4Para F. Ellermeier, “o elemento unitivo neles [Qoh 7,1-14] não é de conteúdo nem de pensamento, mas de cunho formal. No meio da série está sempre a primeira palavra, ou seja, tob” (Qohelet 1/1,104).

5Aíirma com outras palavras o mesmo que R. Gordis e F. Ellermeier (cf. Kohelet, 122s).6Cf. The “Better”-Proverb, 501s.7Com efeito, ainda que reconheça que a análise mais convincente que até agora se fez de Qoh 7,1­

14 foi a de R. Gordis, admite ele não só o “agrupamento de sete unidades literárias básicas”, mas também “continuidade subjacente do pensamento..., reconhecível como fio que mantém juntas as sete séries” (A guide, 186). Proclama, ademais, que “nossa análise tenta esclarecer esse fio e mostrar convincentemente que [7,1-14] é unidade completa em si mesma, formando atraente colar de sete jóias” {Ibidem).

Page 295: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

6 pois como crepitar de gravetos sob o caldeirão assim o riso do néscio.Mas também isso é vaidade.

7 Pois a opressão perturba o sábio e o suborno corrompe o juízo.

8 Melhor é o fim de um assunto que seu princípio, melhor é o paciente que o soberbo.

9 Não te deixes arrebatar pela cólera, porque a cólera aloja-se no peito dos néscios.

10 Não digas: Por que os tempos passados foram melhores que os de agora? Pois não é de sábios perguntar sobre isso.

11 Boa é a sabedoria acompanhada de patrimônio, e proveitosa aos que vêem o sol.

12 Pois à sombra da sabedoria, à sombra do dinheiro;mas a vantagem da ciência é que a sabedoria dá a vida a seu dono.

13 Observa a obra de Deus:Quem poderá endireitar o que ele torceu?

14 No dia bom mantém-te no bem e no dia mau reflete.Tanto um como o outro os fez Deus,de sorte que o homem não possa averiguar nada depois dele.

1 “um bom nome”: lit. “vim nome”, que naturalmente se entende como bom e assim equivale a “renome”, “fama”, “que o do nascimento”: lit. “que o de seu nascer”.

2 “nisso acaba todo homem”: lit. “este é o fim de todo homem”, “reflete”: lit. “(o) dará a seu coração”.

4 “o coração do sábio”: lit. “o coração dos sábios”, “o coração do néscio”: lit. “o coração dos néscios”.

5 “que escutar”: lit. “que alguém escute” (me’ish equivale a mebsher + particípio (cf. R. Gelio, Osservazioni, 7).

7 Alguns suspeitam que o versículo 7 perdeu sua primeira parte, que soa­ria pouco mais ou menos como Pr 16,8: “Melhor é pouco com justiça que muitos ganhos injustos”; assim F. Delitzsch, Commentary, 317; ver tam­bém E. Kroeber, DerPrediger, 145, que opina que os fragmentos de Qumrã o confirmam, ainda que não possam esclarecê-lo pelo mau estado com que se conservou. Tudo isso não passa de mera conjectura, “perturba” ou então “faz enlouquecer”, “suborno”: lit. “dom”, “o juízo”: lit. “o coração”.

8 M. J. Dahood explica “a rareza” de Qohélet: ‘rk rwh, com uma inscrição fenícia do séc. IV a.C. (cf. Canaanite-Phoen., 208s). A isso se opõe R. Gordis: “Em 7,8 ‘erek ruah não é um fenicismo, mas excelente hebraico que significa ‘paciência’, como qoçer ruah em Ex 6,9 significa ‘impaciên­cia’ ” (Was Kohéleth, 110). “o paciente” ou “largo de espirito = longânimo”. “o soberbo”: lit. “elevado de espírito”.

9 “Não te deixes arrebatar pela cólera”: lit. “não te precipites em teu espírito para enojar-te”.

10 “os de agora”: lit. “estes”. “Não é de sábio perguntar-se sobre isso”: lit. “não sabiamente perguntas sobre isso”.

Page 296: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12 “dá a vida”: lit. “faz viver”.13 Os dois pontos depois de Deus correspondem a ki.7,1-14. Já sabemos que o conteúdo desses quatorze versículos gira em

torno da pergunta sobre o que é melhor para o homem. O autor vai expres­sar-se valendo-se de provérbios já cunhados e conhecidos, mas à sua ma­neira ou segundo seu estilo, ou seja, citando no começo a máxima popular e propondo em seguida seu comentário pessoal, paradoxal e sempre su­gestivo.

1. Qohélet começa a série de provérbios que expressam o bom e o melhor para o homem segundo o sentir comum do povo, tal como o consa­grou a sabedoria popular e culta de sempre e em todo lugar. E não pode começar melhor, mesmo estilisticamente. O autor joga intencionalmente com as palavras, construindo uma sentença, cuja sonoridade e rotundidade não se podem refletir na tradução portuguesa: tob shern mishshemen tob (a. b. b\ a’).8

E o nome que identifica um ser, neste caso uma pessoa. Dizer de uma pessoa que se criou um nome é a mesma coisa que afirmar singularidade especial entre os outros. Um bom nome equivale, portanto, à fama, à gló­ria dos grandes homens que logra ultrapassar os limites estreitos duma cidade, duma região e até os limites duma época ou de muitas épocas, ultrapassando inclusive as fronteiras da morte.9

O termo da primeira comparação é um bom perfume, que nessa pas­sagem entende-se metaforicamente, na medida que o bom nome expande sobre os homens a memória da pessoa famosa como o bom perfume expan­de seu odor. Deve-se considerar a sentença afim à tradição sapiencial, cujo ensinamento compendia (cf. Pr 10,7; 22,1). Soíam os sábios valorizar a sabedoria mais que os bens meramente materiais ou sociais; é lógico que antepusessem o bom nome, síntese e compêndio do que há de mais valioso no humano, a qualquer outro valor, aqui simbolizado pelo bom perfume.

Na tradição de todos os povos, e também em nosso tempo, relacio­nam-se o perfume e os aromas com o lado alegre e positivo da vida e com seus momentos mais importantes: com o nascimento,10 com todo tipo de

8L. Alonso Schõkel quis refletir de alguma maneira esse jogo de palavras: “boa fama — bom perfu­me”: e, aludindo ao original hebraico, afirma: “Sem querer recordamos nosso Shem Tbb, judeu de Carrião” (Eclesiastés, 45). Em Ct 1,3 também achamos unidos perfume (shemen) e nome (shem): “Teu nome é perfume que se expande”.

9Qohélet nada diz sobre o modo de se obter esse bom nome, mas pensa-se espontaneamente em grandes façanhas e obras magníficas, em tudo o que sobressai do normal. Também quereríamos pen­sar que o fundamento de todo bom nome está na justiça, como expressamente o disse M. T. Cícero: “O fundamento de perpétua estima e fama é a justiça, sem a qual nada é digno de louvor” (De officiis, II 20, no fim).

10Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 267; N. D. Osborn, A guide, 188.

Page 297: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

festas,11 com os ritos funerários em todas as culturas,12 etc. Por isso mes­mo pode simbolizar o bom perfume a abundância (Jó 29,6), o luxo (Pr 21,17), a felicidade (Qoh 9,8).

Até aqui, como se pode ver, a sentença de Qohélet em 7,1a é apoiada unanimemente por toda a tradição anterior e pelo senso comum de todos os povos, refletido nos costumes sociais mais importantes. Em certo senti­do e com certos matizes também a aceita Qohélet, como o evidenciará a partir de 7,1b.

Com efeito, 7,1b marca mudança, novo ar e novo tom na forma de conceber a vida humana e seus momentos fundamentais: é o modo de pen­sar de Qohélet, muito diferente do tradicional. Não é que Qohélet seja pessimista e homem derrotado. E preciso entender Qohélet antes como crítico implacável, mas irônico; sua crítica é, por conseguinte, satírica, de maneira alguma ressentida ou amarga, mas fina e burlesca. Encarregar- se-ão os versículos lb-4 de demonstrá-lo.

Qohélet tinha dito em 4,2: “Proclamei os mortos que já morreram mais ditosos que os vivos que ainda vivem”. A primeira vista, pode não nos estranhar que se nos diga agora que é melhor o dia da morte que o do nascimento.13 Sendo diversas, porém, as motivações em 4,1-3 e as presen­tes, não podemos colocar as duas setenças no mesmo nível. Está referin­do-se Qohélet em 4,2 a situação muito concreta e negativa da vida: à opres­são injusta que muitos têm que suportar sem sequer vislumbrar horizon­te de esperança; o ambiente aqui em 7,1b é o meio próprio de discussão acadêmica, para não dizer de escola filosófica: estamos dilucidando sobre o que é melhor para o homem. Na resposta intervém tanto a voz da tradi­ção (7,1a) como a voz de Qohélet, que matiza ironicamente sem chegar ao azedume (7,lb-4). Ao bom nome ou fama, em que pensam os sábios que forjaram 7,1a, contrapõe-se Qohélet com sua doutrina do esquecimento total depois da morte (cf. 1,11; 2,16). O bom perfume mantém seu odor durante breve espaço de tempo; não é muita vantagem, portanto, ser me­lhor que um bom perfume. Qohélet pode conceder que o bom nome ou a fama de uma pessoa que morre dure um pouco mais na memória dos vivos que o odor de um perfume que rapidamente se dissipa no ambiente. O que, porém, afirma com toda firmeza é o caráter efêmero da recordação. Assim Qohélet concede um pouco à tradição sapiencial e mantém-se firme

uCom momentos festivos perfeitamente honestos de toda a vida social, como testemunham as próprias Escrituras (cf. Gn 27,27; SI 23,5; Eclo 32,2), ou menos honestos, como se pode ver em meu comentário a Sb 2,7-8, onde se animam os ímpios a desfrutar da vida sem a medida justa (cf. J. Vílchez, Sabiduría [1990], 159, com citações da literatura profana antiga).

12Ver, por exemplo, com relação à sepultura de Jesus, Mc 16,1; Lc 23,56; 24,1; Jo 19,39-40.l30 sentido das duas sentenças é muito diferente, como poderá comprová-lo quem comparar nosso

bem matizado comentário a 4,1-3 com o que agora fazemos de 7,1b.

Page 298: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em seu ensinamento sobre o caráter efêmero de tudo o que se estima entre os homens. Até aqui a conformidade matizada de Qohélet com 7,1a. Não se coforma, porém, Qohélet com isso e quer propor sua opinião, talvez um tanto dissonante.

O bom nome ou a fama foija-se, ao ver dos sábios, ao longo da vida, após realizar-se grandes esforços e obras notáveis. Atinge-se o cimo do bom nome ou da glória no final da vida, não no começo. Qohélet tira a conseqüência segundo sua lógica não-convencional: logo, é melhor o dia da morte, em que já se possui um bom nome, que o dia do nascimento, em que não se tem nome algum, além do que se herda e que em justiça não merece nem honras nem censuras.14 Ainda que pareça mentira e não pelas mesmas razões, Jesus ben Sira não discorda muito da opinião de Qohélet em 7,1b, pois afirma: “Antes de informar-te, não declares feliz a ninguém; mostrará seu desenlace se é feliz ou não; não declares feliz a ninguém antes de morrer; no desenlace conhece-se o homem” (Eclo 11,28).

2-4. O pensamento de Qohélet, expresso em 7,1b, vai se repetindo nesses versículos como as variações de um musical numa obra sinfônica. Qohélet nos diz de várias maneiras que o homem, para ele o sábio, desco­bre o que é e o próprio destino não no ruído e atordoamento das festas, e sim no silêncio que envolve os momentos mais sérios e trágicos da vida.15

2. Qohélet é fiel a si mesmo, tanto quando nos convida à alegria (cf. 2,24; 3,12s; 5,17; 8,15; 9,7-9),16como quando constata as vantagens de pen­sar em nosso destino mortal, refletindo em voz alta sobre a seriedade da morte. Em 3,4 distingue claramente tempos e tempos: Há “um tempo para chorar, um tempo para rir; um tempo para fazer luto, um tempo para dançar”. Qohélet estuda, nessa passagem, a atitude do homem em mo­mentos tão diversos como o luto e a festa, considerando que tem mais importância ou que é melhor ir a uma casa em luto que ir a uma casa em festas.

O luto em Israel era instituição social.17 Distingue-se, pelo menos nas culturas do ambiente bíblico, o luto em casa propriamente das exéquias ou rito religioso, que termina com o enterro, precedido ou não do

uCf. E. E. Murphy, On translating, 576. Não creio que Qohélet estivesse pensando que os detento­res do poder e das riquezas utilizassem a doutrina de 7,1a como se fosse uma espécie de “ópio do povo”, como insinua A. Bonora em Qohelet. 105.

l5N. Lohfink compendia o pensamento de Qohélet dizendo que “a vida deve ser pensada a partir da morte” CKohelet, 51b).

16Cf. Introdução, seção IV.4: As alegrias da vida.17Cf. R. de Vaux, Las instituciones dei A. T.,1, cap. 6.3, onde se recolhem as principais passagens

do A. T., que descrevem os atos de que constava o luto e que manifestam a dor por um morto. Jr 16,5 fala expressamente da casa onde há luto; Ez 24,15-23 das partes mais importantes que o constituíam; Eclo 22,12 esclarece que o luto (oficial?) dura sete dias; cf. também Eclo 38,16-23.

Page 299: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

enbalsamamento. O luto é sinal que manifesta a dor humana perante a separação definitiva de querido, perante seu desaparecimento para sempre dentre os vivos.

A casa em festas é o pólo oposto: se no luto presta-se culto à morte, na festa celebra-se a vida.18 Podem-se celebrar todos os momentos alegres da vida e essa celebração constitui a festa. A vida, no entanto, é breve; seus momentos felizes contados. Qohélet nô-lo repete como estribilho em seu livro. Por isso e para que não se perca a cabeça nos momentos da festa, como sói acontecer quando corre vinho abundante e se dão rédeas soltas a todos os instintos reprimidos, Qohélet diz que ê melhor ir a uma casa em luto que ir a uma casa em festas. O folguedo, o ruído, o atordoamento das festas não favorecem a meditação e reflexão do homem sobre seu próprio destino. No entanto, diante da presença de um cadáver o que ainda vive, reflete. Quem não passou pessoalmente essa experiência? As vezes o sim­ples silêncio diz tudo, até a mente em branco é reveladora; diante desse fato desnudo e brutal, fanfarronices para nada servem. Parecem um epi­táfio as palavras de Qohélet: nisso acaba todo homem, grande ou pequeno, rico ou pobre, sábio ou ignorante. Como disse Davi diante de seu filho morto: “Eu irei aonde ele está, mas ele não virá a mim” (2Sm 12,23; cf. Eclo 7,36 e 28,6).

3. A antítese luto — festa do versículo anterior corresponde perfeita­mente a de pesar — riso do presente. Continua, portanto, o autor a expor seu modo de pensar com nova variação, como dizíamos na introdução. O pesar faz parte da esfera interior, e o riso da exterior. Normalmente ao pesar ou sofrimento interior corresponde semblante triste, não-risonho, e vice-versa. Mas, como argumenta L. Alonso Schõkel: “E preciso superar essa primeira leitura óbvia para chegar ao sentido profundo, ao valor sau­dável das penas, que fazem refletir”.19 E esse o meio espiritual em que se move Qohélet, como já manifestou no v. 2. O pesar ou sofrimento faz o indivíduo adquirir maturidade psicológica que não é dada pelo riso, sím­bolo aqui de frivolidade e leviandade. Por isso melhor é o pesar que o riso, e se se considera isso acertado, também o será o que se formula antite- ticamente: a tristeza serena do rosto é a manifestação de sentimentos muito profundos do coração, que terminam em paz profunda que é o verdadeiro manancial da alegria do coração. Ou como sentencia Qohélet: com a triste­za do rosto alegra-se o coração, que, parafraseando, quer dizer: à tristeza exterior do rosto corresponde a alegria interior do coração. Isso simples-

18Oportunamente também Qohélet exalta esse momento: “Há um tempo para rir; ...um tempo para dançar” (Qoh 3,4); cf. as passagens citadas no começo do comentário a esse versículo 2.

l9Eclesiastés, 45-46.

Page 300: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mente é não confiar nas aparências, visto que essas muitas vezes enga­nam (cf. Pr 14,13).

4. O v. 4 é repetição do v. 2a, mas com novidades significativas. Em primeiro lugar, no v. 2 Qohélet fala abstratamente ou, se se preferir, de modo indeterminado: melhor é ir...-, no v. 4 desce ao concreto do sábio e do néscio. Em segundo lugar, falávamos no v. 2 da atitude interior dos presu­midos protagonistas, deduzindo-a do contexto; no v. 4 Qohélet fala do “co­ração do sábio” e do “coração do néscio”, expressando com isso o mais ínti­mo e próprio da vida pessoal de um e de outro: do sábio, como pessoa madura e plenamente consciente e responsável; do néscio, como pessoa imatura, vã e superficial. Mais uma variação serve para matizar a “casa em festas” do v. 2a, pois no v. 4 trata-se de a casa de(a) alegria20 (cf. 2,lss).

5-7. Os três versículos só contêm um provérbio do tipo “melhor é... que”, o do v. 5; encontramos o próximo no v. 8. O que já parece nos indicar que os versículos 5-7 formam unidade ou, pelo menos, bloco distinto,21 que têm como eixo central a polaridade sábio — néscio, muito diferente do tema morteIluto — vida/alegria de 7,1-4 e do bloco heterogêneo de 7,8ss.

5. Os termos sábio/néscio podem-se considerar como palavras de enganche com a secção precedente de 7,1-4. O novo provérbio faz parte da sabedoria tradicional e seu âmbito natural é o da educação da juventude em sua fase avançada, se bem que não com exclusividade, como facilmen­te se pode deduzir do contexto (cf. Pr 13,1.18; 15,31s; 17,10).

Naturalmente, mais agradável é ser louvado do que repreendido, ou­vir palavras belas e elogiosas do que escutar reprimendas. Mas nem sem­pre o mais agradável é o melhor, nem o desagradável o pior. Di-lo muito bem o provérbio: “Quem bem te quer, te fará chorar; e quem mal te quer, rir e cantar”.

O profeta Natã repreende Davi por sua má ação e Davi aceita a re­preensão do sábio-profeta, e age também ele assim sabiamente (cf. 2Sm12,1-13). No entanto, seu neto Roboão não atende aos conselhos dos sábios anciãos e aceita as palavras aduladoras de seus néscios e irresponsáveis jovens companheiros (o canto dos néscios), e consuma-se assim uma tragé­dia histórica: a divisão do reino (cf. lRs 12,1-16).

6. Qohélet matiza a doutrina consagrada da sabedoria tradicional (v. 5) com seu comentário pessoal (w. 6-7), que formalmente se apresenta como a fundamentação lógica (porque) do v. 5.

20Como acertadamente comenta H. W. Hertzberg: “A atitude de Qohélet não está absolutamente contra a alegria, mas contra a alegria dos ‘néscios’, a alegria ‘insensata’ ” (Der Prediger, 145).

21É esse tema muito debatido entre os autores, como se pode ver em R. Gelio, Osservazioni, 1-4, com muita bibliografia.

Page 301: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet faz alarde de domínio de estilo e linguagem ao comparar o riso do néscio com o crepitar dos gravetas sob o caldeirão, comparação “pitoresca e original”,22 “enfatizada por engenhoso jogo sonoro”, só percep­tível no texto hebraico.23 A comparação é tomada do meio rural, já pratica­mente desaparecido, mas que os mais antigos ainda conhecemos. Nele, o lar ou fogão é o centro da vida familiar.24 O caldeirão ferve ao calor do fogo alimentado pela lenha. Se essa está muito seca, ou consiste de maravalhas, espinheiros ou sarças, é rápido o fogo e violento com ruídos contínuos. O riso do néscio compara-se com esses ruídos, porque soam muito, porém são pouco eficazes por sua curta duração, “muito trovão e pouco raio”; tam­bém isso é vaidade. O juízo de vaidade, característica de Qohélet, encaixa- se perfeitamente após a comparação do v. 6a.25 Talvez pretenda Qohélet prevenir a qualquer excesso de otimismo com relação ao sábio perante o pouco ou nulo significado do néscio; introduz-nos dessa maneira no v. 7.

7. O v. 7 une-se sintaticamente ao v. 6: pois (ki), mais concretamente a seu juízo de vaidade, e contém novo provérbio que nos fala dos perigos reais que na vida social espreitam o sábio: a opressão e o suborno. Por opressão: ‘osheq, pode-se entender qualquer ação violenta que se exerce injustamente sobre alguém (cf. 5,7). Compreende-se que a opressão física faça enlouquecer ou perturbe as faculdades mentais da pessoa se supera sua capacidade normal de agüentar. Constitui o sábio exceção. Não esque­çamos, porém, que se pode exercer a opressão também psicologicamente, chegando assim a perturbar ou a fazer enlouquecer até pessoa sadia. Infe­lizmente, em nossos tempos, revelou-se certa com muita freqüência essa afirmação em sua vertente tanto física como psíquica. Certamente nisso superamos os antigos, marcando tristes recordes.

O suborno é outro perigo que espreita permanentemente toda pessoa influente em qualquer esfera social. O homem, também o sábio, podia ser comprado, subornado, por dinheiro geralmente, nos tempos de Qohélet. Mas também essa não deixa de ser uma constante na obscura história humana: o homem demonstra pertinazmente ser venal e, se alguém se deixa subornar, naturalmente não é mais justo, corrompe-se seu coração e com ele toda a sua pessoa.26

22Segundo A. Barucq em Eclesiastês, 121.23Cf. L. Alonso Schokel, Eclesiastês, 46.24A cena é tão comum que quase todos os autores sagrados nela se inspiraram, especialmente os

profetas: Is 33,12 fala de fogo e espinhos; Jr 1,13 de caldeirão fervendo; Ez 24,3-11 de caldeirão, cheio de cames várias, com lenha e fogo debaixo, em grande ebulição.

25E inacabável a discussão dos autores sobre a autenticidade ou não do v. 6b, e sobre se é este seu lugar original ou não. Eu creio que o v. 6b é autêntico e que se refere ao que precede (cf. R. Gelio, Osservazioni, 2s, com resumo de sentenças); ver também A. Lauha, Kohelet, 126.

2SA idéia de suborno pode ter alguma relação com a da adulação; dessa forma o versículo 7 (subor­no) ligar-se-ia com o versículo 6 (canto dos néscios ou adulação).

Page 302: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Sendo assim, Qohélet indica nesse versículo 7, por um lado, talvez a maior dificuldade que o homem verdadeiro, para ele o sábio, deverá supe­rar na vida: a de não capitular perante ameaças provenientes dos podero­sos e, por outro lado, uma das armadilhas mais perigosas que também deverá evitar o sábio na convivência social: a de não vender por dinheiro sua dignidade.

8-10. Dentro do bloco 7,1-14, podem-se considerar os w. 8-10 como unidade. “As duas comparações twb mn seguem duas advertências nega­tivas com fundados complementos”.27 Essa seria a unidade formal ou es­trutural; a de conteúdo descobre-se pelo fio que conduz o pensamento: antítese fim/princípio, a que se soma uma segunda: paciente/impaciente (fogoso, soberbo), cuja coerência veremos no comentário. A união do v. 9 com o v. 8 em hebraico é evidente pelo uso repetido de ruah, contido em paciente, em soberbo (v. 8) e em não te deixes arrebatar (v. 9). O v. 10 volta ao v. 8: passado /princípio e agora I fim.

8. O versículo contém dois provérbios do tipo “melhor é... que”, prova­velmente recolhido pelo autor por fazer parte do acervo da sabedoria tra­dicional. Achamos, com efeito, formulado seu conteúdo em ditos comuns que abarcam todas as esferas: no campo do esporte, é evidente que não vence quem começa bem, mas quem termina melhor; no confronto bélico: “ganha a guerra quem ganha a última batalha”; nos estudos e outros de­safios pessoais, o importante não é tanto começar quanto terminar. E muito óbvia a razão: se se trata de conseguir algo, o que importa é alcançá-lo, subentende-se que por meios lícitos. De que serve ter intenções muito boas em ordem à consecução de meta, se não se persevera até o fim? A parábola de Jesus em Mt 21,28-32, sobre os dois filhos que o pai envia à vinha, pode ilustrar o que estamos dizendo.

Quanto ao segundo provérbio do v. 8,28 poder-se-ia defender o para­lelismo entre o v. 8 e o v. 8b.29 O paciente em muitas ocasiões é o único capaz de chegar até o final, não, porém, o soòeròo/fogoso, que não espera, mas canta vitória antes do tempo. O binômio antitético paciente / soberbo e sinônimos está atestado na Escritura; Pr 3,34 diz: “Com os arrogantes é também arro­gante” o Senhor “e concede seu favor aos humildes”. Cita-se o provérbio duas vezes no Novo Testamento segundo a versão dos LXX: “Deus resiste aos soberbos, mas concede seu favor aos humildes” (Tg 4,6 e lPd 5,5).

27A. Lauha, Kohelet, 123.28Sáo muitos os autores que preferem os abstratos paciência Isoberba aos concretos paciente I

soberbo.29Defende-a K. Galling, ainda que lhe dê outro sentido: “Deduz-se do paralelismo de 8a com 8b que

com ’erek ruah e ffbah-ruah não se assinala o paciente diante do arrogante, mas a antítese também palpável em Pr 22,24... entre o que se cala e o ardente” (Der Prediger, 107).

Page 303: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

9-10. Qohélet complementa os dois provérbios do v. 8 com duas adver­tências negativas em perfeita correspondência: o v. 9 com o v. 8b e o v. 10 com v. 8a.

A cólera ou ira faz com que o juízo do colérico não seja sereno, razão por que não é a melhor atitude para escolher os meios adequados para conseguir a meta ou fim de que se trata no v. 8. Um dito de R. Eliezer na Mishná parece ser eco do v. 9: “Não te deixes facilmente levar pela ira”.30 Para Qohélet, o sábio é o homem ideal, o homem perfeitamente equilibra­do, que tem pleno domínio de si mesmo, de todos os seus impulsos, mesmo dos mais primários e violentos, como o é a cólera ou a ira; por isso a cólera não dominada só pode alojar-se no peito dos néscios.

Qohélet volta, como já indicamos, na segunda advertência, ao v. 8a, mas com seu selo inconfundível de crítico implacável do que se admite comumente entre os sábios. Quase sempre pensaram os homens que os pri­meiros tempos da humanidade foram melhores que os seus. A isso se deve a tendência de ir em busca do tempo perdido, em busca das origens onde se pensa que se vai encontrar o autêntico e o frescor dos inícios. Plasmou-o o poeta Jorge Manrique em dois versos: “Cómo a nuestro parecer, / cualquiera tiempo pasado / fue mejor”;31 e assim soava nos lábios de Dom Quixote: “Dichosa edad e siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieran el nombre de dorados”, “idade feliz e séculos felizes aqueles aos quais os anti­gos deram o nome de dourados”.32 Sempre sonharam os movimentos român­ticos com utopias perdidas; outros movimentos modernos, em parte já fali­dos, também sonharam com a possibilidade de implantar entre nós essas utopias antigamente sonhadas e de que ainda se têm saudades.

Mas Qohélet é simplesmente realista, e por isso adverte: Não digas: por que os tempos passados foram melhores que os de agora? Demitifica, com uma só penada, esse sonho das idades douradas e dos paraísos perdi­dos. E tão seguro está, que ousa dizer: Não é de sábio perguntar sobre isso. Quantas disputas inúteis se teriam evitado no campo dos estudos da pré- história e história e da interpretação exegética (a de Gn 1-3), se se tives­se levado em conta as sensatas e sábias palavras de Qohélet nesse versí­culo 10!

11-12. Esses versículos rompem com o estilo da série de provérbios comparativos: “melhor é... que” 0tob... min),33 mas aliam-se a ela mediante

wPirqé Abút, 2,10.31Coplas a la muerte de su padre, 1.32M. de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, I, cap. 11. Cervantes, sem dúvida, se inspirou em

Ovídio, Metamorfose, I 89-112; cf. também Virgílio, Geórgicas, 1 125-128.33Essa diferença formal não é suficiente para considerar os w . 11-12 como “corpo estranho” no

conjunto, como opina A. Lauha (cf. Kohelet, 123 e 128), pois a palavra tobah supre fiinção de união, como se diz no texto.

Page 304: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

o vocábulo da mesma raiz tobah: boa, no v. 11a. A estrutura dos w. 11-12 é manifesta: percebe-se claramente a correspondência do v. 11a com o v. 12a e a do v. 11b com o v. 12b. Essa correspondência não é mera repetição, mas ampliação e comentário ao mesmo tempo.

11. No contexto da perícope, que trata do melhor para o homem, não destoa falar também do que é bom, como o é a sabedoria acompanhada de patrimônio. Tão evidente é que a sabedoria em si é boa para o homem, que fica embaraçoso justificar sua afirmação, pois parece inteiramente supér­flua na boca do sábio. Talvez a explicação esteja em que no atual contexto não se considera a sabedoria, mas em união com o patrimônio e os bens herdados, ou seja, com o dinheiro. É provável que o versículo seja eco do comum pensar das pessoas que sem dúvida crêem que é boa a sabedoria, mas muito melhor se vai acompanhada de riquezas, dando-lhe forma pro­verbial. Não é estranho à tradição sapiencial em Israel aliar sabedoria e riquezas (cf. Pr 8,18.21).

A segunda parte do versículo 11: e proveitosa [a sabedoria] aos que vêem o sol, parece que foi cunhda pelo próprio Qohélet, uma vez que a terminologia é tipicamente sua34 e com esse complemento o v. 11 pode fa­zer jogo com o v. 12, como veremos. Qohélet fala só dos vivos: os que vêem o sol, não dos mortos; a estes nem a sabedoria, nem herança alguma, nem todos os tesouros do mundo de nada servem (cf. 2,15-16; 3,19-20; 5,13-15; 9,4-6.10).

12. Esse versículo em seu conjunto surge como prova do v. 11. Nele, Qohélet segue o mesmo sistema que seguiu no v. 11: propõe em primeiro lugar um provérbio: v. 12a, que com bastante probabilidade já era conhe­cido (como no v. 11a); segue-o uma consideração pessoal: v. 12 (como no v. 11b).

No v. 12a as duas categorias: sabedoria e dinheiro, estão no mesmo nível, já que o que pode uma, pode o outro: de certa forma vale o mesmo. Nos lábios de Qohélet só pode soar isso ironicamente.35

A sombra é símbolo de proteção, razão pela qual à sombra de equivale a “sob a proteção de” (cf. SI 17,8; 57,2; 91,1; Is 30,2s; etc.).

Finalmente, Qohélet põe as coisas em seus devidos lugares no v. 12b, em que ciência ou conhecimento é sinônimo de sabedoria. Não é certo que valham igualmente sabedoria e dinheiro: a sabedoria supera o dinheiro. Nisso Qohélet volta a alinhar-se com a corrente tradicional que não admi-

Myoter: proveitosa, é a mesma raiz que jytírora; vantagem, termo muito querido de Qohélet (cf. 1,3); o mesmo se deve dizer de ‘Ver o sol”.

“ Assim parece entender M. O. Wise, ao escrever: “Qohélet cita conhecido provérbio que cinica­mente afirmava que havia duas maneiras, igualmente boas, de assegurar o sucesso na vida: sabedo­ria e dinheiro” (A calque, 256).

Page 305: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

te a equiparação entre a sabedoria e os bens ou riquezas (cf. Pr 3,14s; 8,10s.l9; 16,16; Jó 28,15-19; Sb 7,8-12), pois a sabedoria dá vida a seu dono, ou seja, a quem a possui. O discurso fica truncado, uma vez que se pode facilmente pressupor a segunda parte da sentença: “porém o dinhei­ro não”.

Qohélet fala como mestre (cf. 12,9-10), cuja principal tarefa era a edu­cação e formação de seus discípulos, em geral jovens inexpertos. Conse­guiam-se essas mediante ensino e transmissão da sabedoria, que consti­tui a arte de saber viver e prosperar em todas as circunstâncias da vida.

Pode-se dizer, dentro dessa concepção, com toda verdade, que somen­te o sábio pode sobreviver a todos os azares da vida, ou seja, quem vive graças à sabedoria que possui. Em circunstâncias semelhantes, o dinheiro sem sabedoria não dará vida a seus donos. Qohélet já expôs idéias seme­lhantes (cf. 2,13-14) ou as exporá (cf. 7,19; 8,5b; 9,13-18a; 10,12). Ainda que tudo isso não seja mais que parte de seus ensinamentos, os que estão de acordo com a sabedoria tradicional; chegará o momento em que o Qohélet mais autêntico porá essa mesma sabedoria sob censura e até mesmo a rejeitará.

13-14. Qohélet volta de novo ao estilo exortativo, ligando-se assim com os w. 9-10; utiliza, porém, agora o imperativo e a forma afirmativa. Os novos conselhos põe fim à perícope começada em 7,1. Qohélet recomen­da não só algo bom, mas também o que a seu ver é o melhor para o homem. Se até agora misturara Qohélet sua doutrina com a tradicional, em 7,13­14 expõe parte muito importante de seu pensamento teológico típico.

13. O versículo leva o selo de Qohélet e recorda-nos passagens já co­mentadas, o que felizmente nos facilita sua interpretação.

Vimos como é própria de Qohélet a operação de olhar atentamente e observar tudo o que acontece a seu redor.36 Como bom mestre, vai na fren­te, põe em prática primeiro o que recomenda depois a outros: observar, olhar, contemplar. Surpreende-nos Qohélet apenas em parte ao propor como objeto dessa observação a obra de Deus. Digo em parte, porque a obra de Deus por excelência é a criação, o conjunto de seres e sucessos que chama­mos mundo, no qual estamos imersos como o peixe na água ou a gota de água no mar. Tudo isso é em certo sentido tangível e visível, e cairia den­tro da categoria geral de Qohélet: o que está e acontece sob o sol. Mas a expressão de Qohélet é muito mais ampla e complexa, já que se trata da obra de Deus, afirmação teológica que pressupõe a fé no Deus criador, como pode professá-la um judeu de Jerusalém, que conhece muito bem as

36Cf. 1,14 e seu comentário. Utiliza Qohélet no total o verbo r ’h: ver, observar, 47 vezes.

Page 306: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Escrituras e as tradições de seu povo. A expressão desta mesma fé encontramo-la espalhada por todo o livro (cf. 3,11.14; 8,17; 12,1). Sabemos que este aspecto teológico da visão de Qohélet não pode ser fruto de ne­nhuma de suas múltiplas investigações ou observações, porque forma parte de outra esfera. Qohélet simplesmente vive sua fé, mas não reflete seria­mente sobre ela, nem se todas as suas afirmações relativas à conduta hu­mana estão ou não conformes com ela (cf. 9,1-2).

Para interpretar 7,13b, convém remetermo-nos a 1,15a, onde se en­contra o provérbio: “O torcido não se pode endireitar”. Já adiantávamos, no comentário a essa passagem, que Qohélet tinha direito de reinterpretar o provérbio, adaptando-o a novo contexto; referíamo-nos a 7,13b. O novo contexto conforma-o fundamentalmente a visão teológica de Qohélet. Em 1,15a não se faz nenhuma referência a Deus, mas sim em 7,13b; o que em1,15a se dizia de forma geral, em 7,13b concretiza-se expressamente: Quem poderá endireitar o que ele (Deus) torceu? A resposta evidentemente é: “Ninguém”, já que na mentalidade de Qohélet nada nem ninguém pode comparar-se com Deus.

Neste momento a pergunta é: o que Deus torceu? Pelo contexto, deve­se referir à obra de Deus (v. 13a), em concreto a tudo o que observamos na natureza e na vida dos homens que nos parece que não está bem e não podemos Witar, por exemplo, uma grande catástrofe natural, a morte, o proceder injusto dos homens em geral. O que podemos responder à difi­culdade que implica a mentalidade dos antigos, também a de Qohélet, a esse respeito? A ninguém pode estranhar que quem está acostumado a ler na Lei que Deus endureceu o coração do Faraó (cf. Ex 4,21; 7,3.[13.22]; 14,4), atribua a Deus tudo o que acontece sob o sol.37 O convencimento de que nada se faz nem acontece sem Deus intervir nisso, ensina-o também Jesus em Mt 10,29-30: “Não se vende um par de passarinhos por muito pouco dinheiro? E, no entanto, nem um deles cai na terra sem que o permita vosso Pai. Quanto a vós, até os cabelos de vossa cabeça estão contados”.38

14. O versículo expressa em sua primeira parte (14a) a segunda reco­mendação de Qohélet a seu presumido leitor ou discípulo com formulação

37Recordamos que muitos autores afirmam, sem matizações suficientes, um predeterminismo ab­soluto de Deus com graves implicações teológicas; escreve, por exemplo, A. Lauha a propósito de 1,15: “Sob as palavras de Qohélet oculta-se uma visão amarga: a culpa está na ordenação do mundo. É Deus que torceu os acontecimentos” (Kohelet, 47; ver também p. 129).

38A resposta às acusações de determinismo e fatalismo teológicos em Qoh já a demos na Introdu­ção III.3. Não quer dizer que vejamos tudo claro, ou seja, que a obscuridade, o incompreensível, o mistério tenham desaparecido para nós. Não. Continua sendo-nos opaca a realidade e impenetráveis os desígnios de Deus na história dos homens. Mas sabemos que onde não pode chegar nossa curta inteli­gência está presente Deus, que é maior que nós (cf. Jó 33,12) e que sabe o que se faz e o que não se faz.

Page 307: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

estilística rebuscada; repetição de palavras, aliterações39 e conceitos antitéticos que abarcam a vida humana inteira: dia bom!dia mau (cf. 3,lss).

No dia bom: nos momentos felizes, prósperos, quando tudo vai bem, o mestre aconselha: mantém-te no bem, desfrutando da vida, pois os mo­mentos são aptos como o é o vento que sopra suavemente a vela desfraldada do barco. Todavia, no dia mau, quando é aziaga a sorte e acumulam-se as desgraças, reflete, não mudes de rumo em tua vida, mantém-te firme. Qohélet sabe que, nos momentos adversos e nos dias de tribulação, não são precisamente os bons pensamentos que dão voltas na mente do ho­mem; por isso crê que então é bom pensar, meditar, refletir, considerar os prós e os contras.40

7,14b responde à pergunta sobre a origem do “dia bom” e do “dia mau”: certamente não está no homem que o desfruta ou o padece, mas fora dele. Qohélet é conseqüente com sua teologia, já exposta no comentá­rio a 7,13b: Tanto um como o outro os fez Deus. O fundamento dessa afir­mação é a aceitação da soberania e do domínio absolutos de Deus na na­tureza e na história. Tal é a confissão de Israel desde sempre. Diz Isaías: “Eu sou o Senhor, e não há outro: artífice da luz; criador das trevas, autor da paz, criador da desgraça; eu, o Senhor, faço tudo isso” (45,6-7). O mesmo ensinamento encontramos em Amós 3,6; 9,4; Jó 1,21; 2,10; Eclo11,14; 33,14s.

Também não é novidade o que lemos no v. 14c sobre a impotência do homem acerca do conhecimento do futuro em geral e do seu em particular (cf. 6,12; 8,7; 10,14). Ao dizer que o homem não pode averiguar nada de­pois dele, não se refere ao futuro ou amanhã incerto, que na verdade o é, porém, mais em concreto, ao que acontecerá na história depois de sua morte, quer de bom, quer de mau, como dizíamos no comentário a 6,12, onde encontramos a mesma expressão: depois dele, mas completada por sob o sol.41

A atitude final de Qohélet diante do inevitável e inacessível não é de desespero, e sim de serena resignação de alguém que crê firmemente em Deus, cujos desígnios lhe são totalmente desconhecidos.

39bfyom / beyom (no dia / no dia); tobah (bom / bem)-, ra‘ah / re’eh (mau / reflete).40Os psicólogos e os bons mestres do espírito estão de acordo com Qohélet. Escreve Santo Inácio de

Loyola em seus Exercícios espirituais: “Em tempo de desolação nunca fazer mudança, mas manter-se firme e constante nos propósitos e na determinação em que se estava no dia precedente a essa desola­ção, ou na determinação em que se estava na consolação anterior” (n. 318).

41Não cremos necessária a explicação que alguns autores dão do v. 14c, fundando-se na Vg e através do siríaco (cf. A. Lauha, Kohelet, 129: como nós: R. E. Murphy, On translating, 574: contra nós).

Page 308: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. E bom evitar os extremos: 7,15-22

Qoh 7,15-22 não oferece base para organização indiscutível de seu conteúdo.10 autor soube utilizar elementos preexistentes dispersos com finalidade prática: o ensino duma atitude equilibrada na vida.

Dividimos o conjunto em duas secções homogêneas: a) O justo meio: 7,15-18 e b) A perfeição não existe: 7,19-22.

.1. O justo meio (7,15-18).Pode-se dizer que a perícope constitui unidade em si com perfeita

inclusão: De tudo!de tudo (‘et-hakkol/ ’et-kullam, primeiras e últimas pa­lavras nos w. 15 e 18. Acerca da unidade temática não se pode duvidar: Qohélet estabelece à sua maneira a doutrina do justo meio, da via média, do ne quid nimis latino.

7,15 De tudo vi em minha vida sem sentido:Gente honrada que perece em sua honradez e gente malvada que vive longamente em sua maldade.

16 Não queiras ser excessivamente justo, nem te mostres sábio demais.Por que tens que te destruir?

17 Não queiras ser excessivamente mau, nem sejas néscio.Por que tens que morrer fora de teu tempo?

18 E bom que segures isso e não soltes o outro.Pois quem teme a Deus de tudo sai bem.

15 “em minha vida sem sentido”: lit. “nos dias de minha vaidade”, “gente honrada”: lit. “há um justo”; “gente malvada”: lit. “há um malvado”, “em sua honradez”, “em sua maldade”: lit. a preposição be nos dois ca­sos tem sentido adversativo: “apesar de”, “não obstante”, e não sentido causal: “por causa de”, “por”.

18 “não soltes aquilo”: lit. “não retires tua mão daquilo”, “de tudo sai bem”: lit. “evitará tudo isso”.

7,15-18. Adverte-se nessa perícope a incoerência existente entre o que se repete em Israel quase mecanicamente: existe a retribuição na vida, e o que infelizmente se comprova na triste realidade. Qohélet, fiel a si mes­mo, recomenda certas normas de conduta que se costumam equiparar com as do justo meio helenístico.

15. Qohélet expõe sem complexos o que acaba de descobrir com seu método de observação. Em primeiro lugar, constata de passagem sua de-

1K. Galling apresenta 7,15-22 como a sentença 18a. na divisão que faz de Qoh, cujo tema é a justiça distributiva (cf. Der Prediger, 108). A. Lauha por sua vez intitula a perícope: “o justo meio dourado” e crê que nela se dá “uma estruturação artística” (Kohelet, 13 ls); ainda que confesse: “O trecho consta duma série de advertências em segunda pessoa que originariamente podem ter sido independentes, mas que foram unidas umas às outras segundo seu conteúdo (exceto o v. 19)” (p. 131).

Page 309: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sorientação na vida, pois fala de sua vida sem sentido. Ainda que não pare­ça que essa apresentação seja a melhor para a credibilidade do mestre, em seu caso, porém, o é, pois demonstra com isso que mergulhou na via real que em nada parece com aquela de que nos falam os chamados mestres da tradição e que podemos ver refletidas nas palavras do Deuteronômio: “Guar­da os mandamentos e preceitos que te darei hoje; assim irá bem a ti e aos filhos que te sucederem e prolongarás a vida na terra que o Senhor, teu Deus, te vai dar para sempre” (4,40; cf. Ex 20,12; SI 1; 14; 15; 73; e todas as histórias edificantes: a de José, Tobias, Jó, Daniel, etc.).

As palavras de Qohélet supõem ruptura com essa tradição, ruptura justificada pelo que está farto de ver com os próprios olhos: a fidelidade à lei de Deus não é garantia de nenhum êxito na vida, pois gente honrada perece apesar de sua honradez-, e a não-observância da própria lei não constitui obstáculo a vida longa e próspera, já que gente malvada vive longamente apesar de sua maldade,2

16-18. Depois da observação do v. 15, que podemos constatar também em nossas vidas, Qohélet poderia ter reagido como o orante no SI 73,13­14: “Então, para que limpei eu meu coração e lavei na inocência minhas mãos? Para que agüento eu todo o dia e me corrijo cada manhã?” No en­tanto, “Qohélet não tira as conseqüências de seus conhecimentos revolucio­nários no campo da vida prática”,3 mas mostra sua grande originalidade nos conselhos que dá, pelo menos no meio judaico.

Chama muito a atenção a perfeita construção dos dois versículos 16­17: cada um deles consta de uma linha com os mesmos elementos e na mesma ordem: não Çal)..., nem (we’al)..., por que? (lammah)... Ocorre uma exceção no v. 17b, em que falta o advérbio harbeh (excessivamente).4

Talvez seja conveniente frisar a fina ironia de Qohélet nesses versículos, que pode ser até a chave para sua interpretação.5 Pois, o que é que pretende um sábio como Qohélet ao aconselhar moderação (!) na prática da justiça (v. 16a) e da maldade (v. 17a), moderação (!) na aquisição da sabedoria (v. 16b)8 com a escusa de evitar a ruína da própria vida (v. 16c) ou o morrer antes do

20 autor joga com as palavras e os conceitos antitéticos, conseguindo grande brilho retórico no estilo: honrado / honradez — malvado I maldade — perece / vive.

3M. Hengel, Judentum, 229 nota 135. A. Lauha crê que se deve isso a que “Kohelet está tão enrai­zado nas normas tradicionais que não leva sua doutrina moral às últimas conseqüências niilistas” (Kohelet, 135).

4Pode-se ver análise muito detalhada da construção dos w. 16-17 em R. N. Whybray, Qohelet the immoralist?, 192.

5Falam expressamente da ironia de Qohélet nestes versículos A. Lauha (cf, Kohelet, 135) e N. Lohfink (cf. Kohelet, 54b); não me parece, porém, aceitável a expressão “uma conclusão sarcástica” do mesmo A. Lauha (em o. c., 133). I~\J

6No v. 17b rompem-se o ritmo e o paralelismo na construção da frase, pois lemos: “nem sejasnéscio”, quando era de se esperar: “nem sejas excessivamente néscio”. Não será que talvez para um

Page 310: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tempo (v. 17c)? Não parece que haja aí muita lógica, se não virmos sob tudo isso o Qohélet burlão que, diante da terrível experiência do v. 15, prefere não levar a realidade excessivamente a sério, o que já é uma forma de en­frentar a vida, que se considera sem sentido, e de agir sabiamente.

Qohélet resume essa atitude perante a vida no versículo 18a: Bom é que retenhas isso e não soltes o outro, entendendo por isso o dito no v. 16 e pelo outro o dito no v. 17. Muitos autores descobrem aqui a influência do ambiente helenístico em Qohélet.7 Era muito conhecida nesse ambiente a doutrina e prática do justo meio. Expressava-se ela entre os gregos funda­mentalmente pelo meden agan: “nada em excesso”.8

Ainda que seja conatural ao homem buscar soluções de equilíbrio, não temos razão para fechar totalmente o meio em que se movia Qohélet aos ares que sopravam nos ambientes helenísticos.9 Alude ele ao princípio de moderação após constatar o enorme fracasso que têm na vida real os princí­pios da justiça e da sabedoria.10 Qohélet não utiliza no presente contexto seu conhecido estribilho: “Também isso é vaidade e caça de vento”, mas teria po­dido perfeitamente usá-lo, como o fez ao falar da vida em geral (cf. 2,17; 4,8), dos frutos dela (cf. 2,11.19-23) e dos misteriosos planos de Deus (cf. 2,26).

Sendo assim, quem é capaz de relativizar e pôr o apelativo de vaidade a todos os bens que mais se estimam na vida, pode muito bem aconselhar a moderação no bem e no mal.11

sábio o néscio, pelo próprio fato de sê-lo, já escalou todos os graus da nescidade, razão pela qual para ele na realidade ser néscio ou excessivamente néscio é a mesma coisa?

7Cf. D. Michel, Untersuchungen, 260; R. E. Murphy, On translating, 576. Opõem-se a que Qohélet reflita aqui esta doutrina entre outros R. N. Whybray, Qohelet the immoralist?, 200; N. Lohfínk, Kohelet, 55.

8Assim, por exemplo, Teógnis aconselha: “Não te afanes por nada em excesso; a moderação é o melhor”, ou também: “Não te atormentes demasiado quando os concidadãos estão amotinados, ó Cirno; marcha como eu pelo caminho médio” (Elegias, 335.219s). F. Rodríguez Adrados ilustra essa passa­gem de Teógnis com uma nota que diz: “O célebre meden agan: ‘nada em excesso’, que Teógnis incorpo­ra em suas Elegias aqui [219] e em 335, 401 [...], é atribuído por Crítias (fr. 5) e Aristóteles (Retórica 1389b) a Quilon, um dos Sete Sábios. Teógnis e Píndaro (fr. 216) são os autores em que primeiro aparece” (Líricos griegos elegíacos y yambógrafos arcaicos [siglos VII-V a. C.], Vol. II [Madri, 1959], 183 nota 4 a Teógnis 219). Cf. também Focílides, 12; Píndaro, ístmicas, 6,71 e Píticas, 11,52.

Entre os latinos era proverbial a recomendação da moderação por meio do ne quid [nihil] nimis, do modus ou da mediocritas. Terêncio diz: “Antes de tudo julgo útil na vida esta norma: ‘nada com excesso’ ” (Andria, 61); cf. também Heauton, 519; Cícero, De finibus, 3,73. Horácio, que reflete muito bem o mundo latino, fala daaurea mediocritas em Carm., 2,10,5 e do modus em Sátiras, I l,106s: “Est modus in rebus [nas coisas deve haver moderação]: há certos limites, além dos quais não pode estar o bom”.

9A. Lauha escreve a esse propósito: “E inútil procurar influências literárias diretas. A idéia do ‘equilíbrio’ está viva por todas as partes onde se trata do senso comum” (cf. O. Loretz, Qohelet, 84-86)” (Kohelet, 134).

10G. Ravasi diz que “talvez Qohélet queira simplesmente demitifícar os extremos de justiça e maldade, de sabedoria e nescidade” (Qohelet, 251); ainda que Kohelet já tenha demitificado tudo com seu conceito universal de hebel.

uSe ainda existir alguém a quem não pareça muito “recomendáveis” os conselhos de Qohélet, pode-se ater à interpretação de A. Lauha, quando escreve: “Parece que em certo sentido Qohélet burla

Page 311: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet, porém, não diz com o v. 18a sua última palavra; acrescenta ainda o v. 18b. Nesse versículo, autenticamente de Qohélet,12 funda-se toda a estrutura de seu pensamento. Por não existir, segundo Qohélet, nenhum ponto firme de referência na realidade conhecida pelo homem, este deve recorrer ao único não-relativo nem relativizado pelo próprio Qohélet, ou seja, somente a Deus, a quem se devem máxima reverência e respeito.13 O temor de Deus é, portanto, o único critério seguro que propõe Qohélet para sair de toda dúvida e ambigüidade no intricado emaranhado da vida, com seus caminhos cortados e sem saída, com suas obscuridades e contradi­ções, com seus fracassos e inutilidades. Por isso pode dizer com toda segu­rança que quem teme a Deus de tudo sai bem.

2.2. A perfeição existe (7,19-22)A unidade da perícope é apenas temática; assim o reconhecem de fato

os autores.147,19 A sabedoria faz o sábio mais forte do que dez chefes na cidade.

Realmente não há ninguém no mundo tão honrado que faça o bem sem cometer um só erro.

21 Não dês atenção a tudo o que se diz,já que jamais ouvirás a teu servo quando te maldiz,pois sabes das muitas vezes que também tu amaldiçoaste a outros.

20 O ki inicial é asseverativo: realmente (cf. P. Joüon, 164b). “sem come­ter um só erro”: lit. “e não erre”.

21 “Não prestes atenção”: lit. “não dês teu coração”, “a tudo o que se diz”: lit. “a todas as palavras que dizem”. O versículo começa com gam, que “tem a função de frisar a palavra ou série de palavras que segue” (D. Michel, Untersuchungen, 240; cita-se L. Kõhler - Baumgartner, s. v.) e aqui se poderia traduzir por “a todas as palavras em absoluto ou de igual manei­ra...”. “já que” corresponde ao *sher causal (cf. P. Joüon, 170e).

7,19-22. Qohélet estabelece um princípio: a sabedoria vence o poder (v. 19), e em seguida o comenta (w. 20-22). No comentário, identificam-se o sábio (hakam) e o justo, o honrado (çaddiq). No fundo, pois, a tese que defende Qohélet é que não há justo/sábio perfeito, ainda que os poderosos creiam que o são pelas adulações.

dos conceitos çdyq e rsh‘: não é preciso tomá-los tão a sério como se se devessem excluir mutuamente. A pessoa evita os extremos e vai pelo justo meio dourado, evitando assim tanto os perigos de piedade exagerada (v. 16) assim como também de exorbitante pecaminosidade (v. 17)” (Kohelet, 133s).

12Assim o cremos sinceramente, não a glosa de mão posterior, como ainda parece crer D. Michel (cf. Untersuchungen, 260). Considera-o R. Gordis tão autêntico como o que é “mais importante e o clímax do que precede, sem o que este não teria sentido” (Kohelet — the man, 278).

13Isso é o principal que implica a doutrina de Qohélet sobre o temor de Deus em Qohélet, síntese e compêndio da religiosidade (cf. Excursus V 2).

UN. Lohfxnk intitula a perícope: Sabedoria como proteção (cf. Kohelet, 55) e D. Michel: Nunca se consegue a sabedoria perfeita (cf. Qohelet, 151; Untersuchungen, 261).

Page 312: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

19. O tema da sabedoria e do sábio, tratado amplamente na perícope anterior (w. 15-18), ocupa o lugar principal nesta nova (w. 19-22), sendo assim o fio condutor de que nos valemos para passar duma à outra. Qohélet considera, nesse novo estádio, a sabedoria/sábio em comparação com o poder, como se manifesta realmente na vida social e política. A pergunta que parece formular-se é a seguinte: ocorre com a sabedoria/o sábio, como vimos que ocorre com a justiça/o justo no v. 15? A resposta é negativa. Por isso é evidente que o clima do v. 19 (e seguintes) não é o mesmo do v. 15 (e seguintes). Costuma-se considerar o v. 19 como citação proveniente do meio sapiencial tradicional, otimista por excelência. Sabia-se que a sabedoria valia mais que a força (cf. Pr 24,5; 21,22) ou, como diz nosso provérbio: “mais vale manha que força”. Mas Qohélet adapta pessoalmente o provér­bio a novo contexto: o termo de comparação não é simplesmente “o forte” ou o “forçudo” de Pr 24,5, mas dez chefes na cidade. A expressão mais forte que dez chefes na cidade poderia ter sentido em si mesma: um vale mais que dez, sem referência a nenhuma instituição municipal. O mais prová­vel, porém, é que se esteja veladamente referindo a algum modelo de go­verno, semelhante ao posterior dos deka protoi.15

A cidade não tem porque ser Jerusalém; é melhor manter a inde- terminação.

20. O versículo, considerado isoladamente, constitui outro provérbio que recolhe ensinamento normal muito tradicional em Israel, como facil­mente se pode comprovar. Diz o sábio: “Quem ousará dizer: tenho a cons­ciência pura, estou limpo de pecado?” (Pr 20,9). Para que se veja que se trata do homem perante Deus, lemos em Jó: “Pode o homem levar razão contra Deus? Ou um mortal ser puro diante de seu criador? Em suas mãos anjos descobrem faltas, nem mesmo seus criados acha fiéis” (4,17s; cf. 14,4; 15,14-16); confessa-o o orante claramente diante de Deus: “Ninguém está livre de pecado” (lRs 8,46; cf. SI 51,7; 130; etc.).

Qohélet retoma esse ensinamento com formulação provavelmente já existente. Mas o novo contexto enriquece o velho provérbio, uma vez que, a partir de 7,15, justo e sábio são intercambiáveis.

Segundo isso, o versículo 20, adverte contra a interpretação excessi­vamente otimista do v. 19: se não existe justo perfeito nem justiça consu­mada, tampouco existe o sábio nem a sabedoria, pois, quem pode afirmar que jamais se equivoca? O que equivale a confessar a limitação natural e

15Muitos autores supõem que os “dez primeiros” constituem instituição de governo das cidades helenísticas (cf. R. Gordis, Koheleth — the raan, 279: H. W. Hertzberg, Der Prediger, 141). Mas só se podem aduzir como testemunhos diretos passagens de Flávio Josefo (cf. Antiq., XX 8,11) ou as citadas por J. M. Dahood em The Phoenician, 274s, todas elas bastante tardias (cf. E. Schürer, Geschichte, II § 23, n. 33; H. Volkmann, Dekaprotoi: Der kleine Pauly I, Munique, 1979, col. 1437).

Page 313: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mais radical do homem, que é precisamente ser criatura e não Deus. En­tende-se perfeitamente nesse contexto a conexão com os versículos 21-22.

21-22. Da forma proverbial em terceira pessoa passa Qohélet nesses dois versículos à exortação em segunda pessoa, como nos versículos 16-18: o mestre dirige-se de novo a seu auditório para orientá-lo, depois de obser­var e refletir.

Não dês atenção a tudo o que se diz: Desaconselha Qohélet não o estar atentos ao que acontece a nosso redor, mas fazermos caso de tudo o que se diz, aceitarmos como verdadeiro em concreto e muito especialmente quan­do se fala de nós mesmos. A razão é muito simples: jamais ouvirás teu servo falar mal de ti, quando te maldiz.

O versículo 22 é mero esclarecimento, mas muito convincente, porque faz parte da experiência universal: quem não criticou seu superior ou che­fe nas suas costas? O inferior, se dotado de senso comum, jamais falará mal na presença de seu superior. O que com toda probabilidade fará é falar muito bem dele atingindo as raias da adulação, porque sabe como isso agrada a todos, especialmente aos mais elevados e poderosos. Por isso nem todos os elogios são de se fiar, e muito menos se forçados ou prove­nientes de inferiores que claramente são aduladores; “só os poderosos, que levam excessivamente a sério a opinião de seus subordinados, podem chegar a crer que são perfeitamente justos ou perfeitamente sábios”.16

3. A sabedoria é inatingível: 7,23-24

Estes dois versículos formam pequeníssima unidade, não de todo iso­lada de seu contexto: por meio de sabedoria e sábio podemos ligar com o que precede e o verbo “descobrir” (mçT) remete-nos ao que segue, onde o encontramos outras 7 vezes até 7,29. Quanto ao estilo e em relação ao que precede, é notável a mudança da segunda pessoa na instrução dos w. 21­22 à primeira na confissão pessoal do v. 23, e com relação ao que segue é preciso advertir que o v. 25 começa com sabboti: pus-me a, que indica um início.

7,23 Tudo isso examinei com sabedoria.Eu disse: vou ser sábio, a sabedoria, porém, fica longe de mim.

24 Longe está o que existe e profundo, profundo, quem o descobrirá?

23 “vou ser sábio”: lit. “serei sábio”, “a sabedoria”: lit. “está”, “longe”: lit. ‘longínqua”, “profundo, profundo”: lit. “muito profundo” (cf. Ges.-K., 133k).

16D. Michel, Untersuchungen, 261; cf. também N. Lohfink, Kohelet, 56.

Page 314: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

7,23-24. Os autores em geral crêem que essa pequena unidade refe­re-se ao que precede; creio eu que Qohélet põe com ela o ponto final, mas refletindo e fazendo refletir: Tudo pensei e repensei com sabedoria, com essa sabedoria tão misteriosa e escorregadia que não se pode pegar. Isso parece um enigma, quem o decifrará?

23. Tudo isso: refere-se ao anterior, segundo acabamos de dizer.17 Exa­minei com sabedoria: recorda-nos uma vez mais o método indutivo de Qohélet, sua experiência de sábio inconformista e crítico. A inquietude de Qohélet e sua finalidade expressa-as ele próprio: Eu disse: vou ser sábio, quero ser sábio, ou seja, penetrar os segredos da sabedoria, dominar a sabedoria e ser enriquecido por sua posse. Essa intenção não parece iden­tificar-se plenamente com a manifestada em 1,12-2,12, quando Qohélet se distancia de Salomão. Ali alcança Qohélet sabedoria e poder, tudo com que um homem pode sonhar e desejar (cf. 1,16), ainda que se dê conta em momento posterior de que tudo o conseguido é “vaidade e caça de vento” (2,11). Conseguiu, pois, Qohélet sabedoria que é fumaça e vento; agora o que deseja é sabedoria consistente e permanente, de que não se possa dizer que é vaidade e caça de vento. No entanto, percebe que essa sabedo­ria é como sonho irreal, como realidade utópica: a sabedoria fica longe de mim, como longe fica o horizonte inatingível.

24. Parece que se quer explicar a distância da sabedoria com relação ao homem Qohélet com esse versículo, ligado mesmo verbalmente com o v.23 (longe / longínqua).1* A distância insuperável dá-se em ordem ao co­nhecer, naquilo que o homem Qohélet pretende conhecer ou abarcar com seu conhecimento. E o que se expressa no versículo 24 com o que existe. Se no v. 23 se dizia uma só vez que a sabedoria ficava longe de Qohélet, no v.24 são três vezes que se frisa a grande distância entre o que existe e o homem em geral: longínquo, profundo, profundo. O que quer dizer, com tanta força expressiva, é que é infranqueável a distância ou o abismo exis­tente entre o homem e a sabedoria, entre o entendimento humano e este objeto que se busca com afinco: o que existe. O que encerra o autor nessa sabedoria, nesse objeto do conhecimento inatingível, longínquo e profun­do, profundo? Parece que Qohélet está pensando na sabedoria escondida de Jó 28,1-27, nessa sabedoria que é capaz de explicar e fundamentar o mundo e suas leis, o sentido da vida humana e seus enigmas.19 E chega à

17Cf., por exemplo, H. W. Hetzberg, Der Prediger, 156; A. Bonora, Qohelet, 113. Relacionam-no ao que segue K. Galling, Der Prediger, 109 e A. Lauha, Kohelet, 137.

lsr*hoqah /rahoq; no v. 23 longe corresponde ao adjetivo r^hoqah [longínqua], que concorda com sabedoria.

19Cf. R. Kroeber, Der Prediger, 147; G. Ravasi, Qohelet, 256.

Page 315: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

conclusão de que essa sabedoria está fora da órbita do homem, razão pela qual pergunta retoricamente e generalizando: quem a descobrirá?, saben­do que a resposta é negativa: ninguém simplesmente. Tratar-se-ia talvez de empreendimento sobre-humano? Qohélet não o diz, mas parece insinuá-lo no v. 24 com sua formulação tão enigmática. Pelo menos fica assim a sabedoria envolta no mistério do inatingível, como fica pendente de inter­rogação sem resposta em Jó 28,12.20 e em Br 3,14-23.

4. Achados provisórios e achado definitivo: 7,25-29

Encerra o capítulo 7 de Qohélet uma perícope que causou e continua causando muitos quebra-cabeças pela insegurança de seus limites e por seu sentido mais intricado.1 Quanto aos limites da perícope, discordam bastante entre si os autores, mas se adverte que quanto mais recentes mais aquilatam. Duas são as tendências principais: uma amplia os limi­tes da perícope de 7,23 a 8,l(a);2a outra os reduz a 7,25-29.3 Aceitamos essa segunda sentença, pois cremos que a passagem 7,25-29 tem sentido completo em si mesma e descobrimos nela suficientes recursos formais para justificar sua unidade literária.4 O versículo 25 está orientado ao que segue como sua introdução natural, pois à busca seguirão os achados; a primeira pessoa domina do princípio ao fim; o verbo mç’: encontrar, repe­tido sete vezes nos w. 26-29, dá grande consistência à unidade da perícope.

7,25 Voltei-me interiormente para investigar a fundo e buscar sabedoria e reta avaliação,e para reconhecer que iniqüidade é insensatez e a nescidade loucura.

26 E descubro que a mulher é mais amarga que a morte,pois ela é uma armadilha, e rede seu coração, laços seus braços.O que agrada a Deus libertar-se-á dela, mas o pecador ficará preso a ela.

27 Olha o que averiguei — diz Qohélet — ,quando me pus a averiguar a reta avaliação passo a passo;

28 o que ainda continuo buscando e não encontrei:um homem entre mil encontrei, mas entre todos estes não encontrei uma mulher. .

1D. Michel confessa com toda honestidade: “Da passagem 7,25-29 não posso afirmar que a tenha compreendido totalmente apesar de me ter ocupado dela repetidas vezes. Tampouco brilhante pesquisa que N. Lohfink dedicou a esse texto [War Kohelet ein Frauenfeind?] a esclareceu, a meu ver, definitiva­mente em seu conjunto, não obstante excelentes observações em particular” (Untersuchungen, 225).

2Podem-se ver H. W. Hertzberg, Der Prediger, 156; K. Galling, Der Prediger, 108; N. Lohfink, War Kohelet.

3Defensores dessa sentença entre outros são W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 212; O. Loretz, Gotteswort, 162; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 243b; L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 51s; G. Ravasi, Qohélet, 257-263; D. Michel, Qohelet, 152s; Untersuchungen, 225-238.

4A. G. Wright aponta uma inclusão: heshbon / hishshebonot, no v. 25 e no v. 29 (cf. The riddle [1968] 331).

Page 316: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

29 Olha o único que encontrei:Deus fez o homem reto, mas eles idealizaram muitas maquinações.

25 “interiormente”: welibbi - “e meu coração”: “em meu coração” {cf. BHS). “para investigar a fundo”: lit. “para conhecer e para explorar”. Sobre o significado de hishbwn veja-se R. Gordis, Koheleth — the man, 281; D. Michel, Untersuchungen, 233.235.

26 “mais amarga que”: outros: “mais forte que” (cf. N. Lohfink, War Koheleth, 281s; D. Perdee, The Semitic root MRR and the etymólogy of Ugaritic MR(R)/ IBRK: UF 10 (1978) 264s); Bo Isaksson, Studies, 66 (nota 41). “pois” para o sentido causal de sher ver P. Joüon, 170e; Bo Isaksson, Studies, 66. Também pode eqüivaler %sher aos dois pontos (:), introduzindo assim o discurso direto. Sobre a função do pronome pessoal (hir), cf. o que se disse ao se comentar Qoh 4,2.

27 Preferimos ler com a maioria dos autores ’mr hqhlt (cf. 12,8; BH). “quan­do me pus a averiguar”: limso’ (cf. P. Joüon, 124-1: in inveniendo).

28 “continuo buscando”: lit. “minha alma continua buscando”, “um homem”: ’adam-, o significado de ’adam neste versículo é o de varão, como tsh, já que claramente se opõe a ’ishshah.

29 “mas eles”: o pronome plural masculino hemmah tem como anteceden­te “o homem” Qia’adam), que tem sentido coletivo, como em Gn l,26s.

7,25-29. Quanto ao significado da passagem, há certa convergência de pareceres ao concentrar a atenção na mulher;5 Mas são máximas as divergências dos autores ao tentarem explicar qual seja a opinião pessoal de Qohélet sobre a mulher, como constataremos no comentário.

25. O versículo desempenha dupla função no contexto: ligar com os ver­sículos imediatamente anteriores e introduzir aos seguintes. O autor, com efeito, continua o discurso sobre a sabedoria que mantinha nos w. 23-24.6 Tem-se, de mais a mais, a impressão de que Qohélet quer responder nos w. 25ss à preocupação manifestada no v. 23 sobre a distância da sabedo­ria. Parece, porém, um tanto forçada a resposta por causa dos giros exces­sivamente carregados que utiliza.

O versículo 25 introduz também os w. 26ss, pois nele se estabelece os princípios em que se deve basear o verdadeiro método para adquirir a sabe­doria. Os sábios cimentaram sua doutrina, até o momento em que reflete Qohélet, principalmente na aceitação e assimilação da tradição sapiencial, contida antes de tudo em máximas e provérbios orais ou escritos (cf. o livro dos Provérbios); ele decanta esse material pela via da experiência e reflexão, submetendo a crítica severa o que sempre se disse e ouvimos.7

5A. Lauha adverte que Qohélet em 7,25-8,1 não trata do fracasso de sua vida matrimonial, nem se restringe a repetir doutrina de escola, “mas refere-se à mulher como tal” (Kohelet, 140).

6Cf. especialmente bahokmah (com sabedoria) e ’ehkamah (vou ser sábio) do v. 23 com hokmah do v. 25a.

7É esse o sistema com que nos acostumou Qohélet em sua forma de apresentar a realidade vivida por ele.

Page 317: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Chama a atenção o acúmulo de termos referentes à atividade cognosci- tiva do homem, sobretudo no v. 25a.8 Revela assim Qohélet seu interesse máximo em chegar a ser verdadeiro sábio (cf. v. 23b) e conseguir a verda­deira sabedoria, o que faz com que o v. 25 tenha valor em si mesmo e não seja apenas versículo de transição. E mais ainda se atendermos ao segun­do termo do binário hokmah weheshbon (sabedoria e reta avaliação), obje­to dos três versículos anteriores. Com efeito, heshbon aponta um gênero particular de sabedoria com peso específico próprio: “Uma sabedoria pro­funda que será a soma total da vida”.9

No v. 25b chega Qohélet à mesma conclusão da tradição sapiencial sobre a identificação de iniqüidade com insensatez e de nescidade com loucura-, mas o método de verificação empregado por Qohélet, o método indicado no v. 25a, é diferente da mera tradição, como já indicamos e Qohélet vai demonstrar nos w. 26-29 com sua investigação pessoal sobre a cre­dibilidade ou não de certos tópicos sobre a mulher.

26-29. Qohélet deixou bem assentado no v. 25 que tem a intenção de continuar com a busca da sabedoria apesar dos aparentes fracassos colhi­dos até o momento e que têm a ver com as limitações naturais do ser humano.

No v. 26 começa Qohélet a comunicar-nos uma série de descobrimen­tos e averiguações que fez ele próprio (cf. w. 26.27.29), razão pela qual parece que vai por bom caminho para conseguir o que tanto deseja: chegar a ser sábio (v. 23a), e superar o malefício que faz com que fique a sabedoria muito longe de seu alcance (v. 23b(3). No entanto, também nos comunica que nem todos os seus ensaios de busca terminam em achados (cf. 28).

E muito difícil, para não dizer impossível, poder continuar com flui­dez o fio do discurso que mantém Qohélet nos w. 26-29. Pelo texto não sabemos se os achados ou descobrimentos, de que nos fala Qohélet, são conclusões a que ele chegou pessoalmente em suas observações e reflexões (como parece ser o caso do v. 29) ou são ditos e sentenças que antes dele formularam outros e são de mais a mais de domínio público.

O que, portanto, quer comunicar-nos Qohélet nessa breve mas obscu­ra e tortuosa perícope? E praticamente impossível deparar intérprete que ouse razoavelmente propor como certa uma explicação de Qoh 7,(25)26-

8Sobre se os três verbos lada'at welatur ubaqqesh formam tuna série, ainda que falte ao terceiro termo o lamed, ou então se deve entender ubaqqesh como uma espécie de explicação, uma vez que, a nosso ver, as duas explicações são equivalentes (cf. D. Michel, Untersuchungen, 225).

9Bo Isaksson, Studies, 170. G. S. Ogden explica assim o termo: “Heshbon é termo hebraico tardio, que deriva de raiz que significa “idear, deduzir”. Como aparece aqui junto com hokma, supomos que é sinônimo, ‘compreensão’. Seu matiz especial é de conhecimento obtido por processo de dedução (v. 29). Nessa secção é termo-chave, usado para indicar o conhecimento humano” (Qoheleth, 120). Cf. também N. Lohfink, War Kohelet, 275-277; Ch. F. Whitley, Koheleth, 68; D. Michel, Untersuchungen, 232-236.

Page 318: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

29. O mais a que se pode aspirar é apresentar interpretação provável, reconhecendo, por isso mesmo, que também se podem dar outras interpre­tações até contrárias.

26. Fica claro, depois do que se disse, que o que aqui se propõe não passa de tentativa de aproximação a esse texto difícil de Qohélet. Comuni­ca-nos Qohélet, desde o começo do v. 26, o primeiro descobrimento ou re­sultado dessa intensa busca:10 A mulher é mais amarga que a morte. A sentença é categórica, terminante e lapidar, com tão grande carga de negatividade que supera até a própria morte.

A mulher: Discutem os autores sobre se a expressão a mulher deve-se entender em toda a sua extensão, sem qualquer limitação: a mulher en­quanto tal, ou se se refere a determinado tipo de mulher, à mulher má. Não nos podemos restringir naturalmente à sentença em si do v. 26a, que não oferecia dificuldade alguma em sua generalidade absoluta; faremos as considerações, e assim se fizeram na história de sua interpretação, le­vando em conta o contexto próximo, que se estende até o v. 29.

A tradição multissecular quase até nossos dias viu nessa mulher não a mulher enquanto tal ou em sentido genérico,11 mas determinado tipo ou modelo de mulher que é preciso evitar por todos os meios, uma vez que, por sua perversidade concreta, constitui perigo a todos os que dela se apro­ximam, especialmente aos jovens inexpertos. É, portanto, um estereótipo na linguagem sapiencial.12

10A forma escolhida por Qohélet em hebraico é o particípio umose’, a que acrescenta enfaticamente o pronome pessoal *‘ni, seguido de duplo acusativo: “e descubro eu mais amarga que a morte a mu­lher”; em português: “e descubro que a mulher...”, como no texto. Por que Qohélet preferiu o uso do particípio, o único da perícope, ao perfeito masati que aparece cinco vezes em 7,27-29? Responde-nos H. W. Hertzberg que é porque se trata de caso concreto, o de “um tipo de mulheres” (Der Prediger, 157. A Hertzberg seguiu K. Galling em Der Prediger, 109. Não satisfaz inteiramente essa resposta. A. Lauha rejeita-a inteiramente por razões sintáticas, pois o particípio leva consigo a idéia de permanên­cia (cf. Kohelet, 141, onde cita Ges.-K., 116a) e por motivos exegéticos: segundo ele, Qohélet não julga um tipo de mulheres, mas a “mulher em si” (Ibidem). Opõe-se também Bo Isaksson a H. W. Hertzberg, ainda que por outras razões, pois diz ele que “o particípio inicial é comparável aos particípios em 1,4­7 onde o matiz, indicado pelos particípios, é de repetição e continuação. Donde seria a interpretação adequada de 7,26a: ‘e uma e outra vez eu encontrei...” (Studies, 66). N. Lohflnk também opina assim (cf. War Kohelet, 277s); essa sentença é a que mais nos satisfaz. Matizações a H. W. Hertzberg e a A. Lauha encontramos em D. Michel, Untersuchungen, 227.

“ Representante muito significativo desta radical sentença antifeminista é A. Lauha que nega que Qohélet esteja repetindo nessa passagem as admoestações de escola acerca da mulher briguenta e estranha, “mas refere-se à mulher enquanto tal” (Kohelet, 140). Segundo isso, Lauha tem que reco­nhecer que a maneira de pensar de Qohélet “é mais radical que o ensinamento convencional em Israel” (Ibidem). Para que não haja a menor dúvida de como pensa, insiste: “Inequivocamente Kohelet quer expressar que a mulher em si é sedutora e perigosa. Cada mulher é mulher fatal” (o. c., 141); cf. também seu comentário ao v. 28 e G. Ravasi, Qohelet, 260 nota 8.

12Cf. São Jerônimo, Commentarius, ad locum: CCL 72,311; B. F. Alcuíno, Commentaria, 698; M. Lutero, Annotationes, 148s; J. de Pineda, In Ecclesiasten, 711ss; F. Delitzsch, Commentary, 332-334;H. W. Hertzberg, Der Prediger, 157; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 243b; R. Gordis, Koheleth — the man, 282s; N. Lohflnk, War Kohelet, 260-265; R. E. Murphy, On translating, 574s.

Page 319: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Essa mulher é mais amarga que a morte. Aplica-se metaforicamente à morte o gosto amargo. E o trago amargo por excelência que todos have­remos de beber. Simboliza-se nesse trago todo o horror, o sofrimento, a angústia, a dor de quem se acha a ponto de perder o que percebe ser real­mente valioso e a única coisa que lhe resta: a vida. Agag, rei de Amalec, já fala pouco antes de experimentar a morte da “amargura da morte (mar- hammawet)” (lSm 15,32). Também por extensão pode ser amargo o pró­prio pensamento da morte, como lemos em Eclo 41,1: “O morte, como é amarga tua recordação para quem vive tranqüilo em suas posses”. Pare­ce-nos essa forma de falar até mesmo muito apropriada, pois a quem não lhe sabe doce a vida? Facilmente podemos imaginar que sabor tem para o condenado à morte a notícia de seu indulto.

A sentença de Qohélet move-se neste mundo metafórico de sabores, e leva ao extremo a hipérbole: a mulher é mais amarga que a morte. A forma de falar por certo é muito ousada, pois nada há de pior que a morte e, por conseguinte, nada de mais amargo. Em comparação com ela, é pálida a expressão de Pr 5,4 sobre a “estrangeira” ou prostituta, da qual se diz que “é amarga (marah) como o absinto”.

Como se pôde cunhar fórmula tão contrária à mulher? Uma vez que, se quisermos buscar um símbolo humano da vida, não haverá nenhum mais apropriado que o da mulher, princípio de vida (Gn 3,20). Sabemos que Israel é povo no meio de outros povos. Sua identidade forjou-se ao longo da história, recebendo influências de toda ordem vindas dos qua­tro pontos cardeais. Em concreto, a concepção sobre a mulher, que se reflete em Qoh 7,26, está muito acorde com o sentir comum dos povos do oriente próximo antigo13 e do Mediterrâneo oriental;14 mas insere-se tam­bém numa tradição dentro do povo de Israel, como se pode ver em Pr5,3-6; 7,6ss; 22,14, e que culmina em Jesus Ben Sira, de quem são estas sentenças: “Nenhuma maldade como a da mulher” (Eclo 25,13a); “Da veste sai a traça e da mulher a malícia feminina. Vale mais maldade

13Em todo o Crescente Fértil, da Mesopotâmia ao Egito, a concepção que se tem da mulher era muito pejorativa em seu conjunto; bastem estes exemplos. No campo mesopotâmico: no Diálogo pessimista entre o amo e o criado lemos: “A mulher é um poço, a mulher é uma adaga de ferro — muito afiada — que corta o pescoço do homem” (ANET 438ab). No Egito: na Instrução deAni, “Uma mulher longe de seu marido é como água profunda cujos meandros não se conhecem” (III13: ANET 420a).

14Está como representante desse meio a esplêndida cultura grega antiga e clássica. Simônides nos diz: “Zeus criou essa calamidade superior a todas, as mulheres” (8,96s). As sentenças de Menandro refletem muito bem o sentimento comum; predomina nelas a visão negativa sobre a positiva: “Todos os males são causados pelas mulheres” (134); “Há três coisas más: o mar, o fogo e a mulher” (231): “A mulher é mais feroz que todas as feras” (248); “Nada pior que a mulher, ainda que seja bela” (413); “Fora da mulher não há mal para o varão” (541) (A. Firmin-Didot [ed.], Scriptorum Graecorum Bibliotheca. Menandri... fragmenta, 92ss); Cf. R. Braun, Kohelet, 70s.

Page 320: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

de homem que bondade de mulher” (Eclo 42,13-14; outros suavizam a ex­pressão).15

Podemos deduzir do versículo 26 qual seria a atitude pessoal de Qohélet com relação à mulher? A pergunta é legítima, uma vez que se discute entre os intérpretes atuais sobre se em 7,26a estamos ouvindo diretamente a voz de Qohélet ou a da tradição em forma de citação. A sentença comum e tradicional é que se expressa em 7,26 a convicção de Qohélet; em outras palavras, que 7,26a é a conclusão a que chegou Qohélet após busca incessante. Sendo assim, teríamos que atribuir a Qohélet tudo o que dissemos até agora acerca do sentido negativo de 7,26a.

Mas também afirma-se que 7,26a contém uma citação,16ou seja, que o que descobriu Qohélet é o que corre de boca em boca, o que se diz e está no ambiente que investigou e conhece muito a fundo: que a mulher é mais amarga que a morte.110 importante, porém, e decisivo não é se Qohélet cita ou não um provérbio sobre a mulher, mas se está ou não de acordo com o que diz esse provérbio da mulher. Não podemos encontrar a solução no v. 26, mas devemos esperar ainda o que Qohélet vai descobrir em sua investigação, sobretudo nos w. 27.29.

O resto do v. 26 fundamenta e completa o alcance da primeira parte. Em primeiro lugar, dá a razão pela qual o trato do varão com a mulher é tão amargo, mais que a morte: a causa de tudo é seu poder de sedução, esse poder misterioso que tem a mulher sobre o varão que produz nele ao mesmo tempo tormentos de morte e prazeres que alienam.

Empresta ao autor a arte da caça metáforas apropriadas para desen­volver seu pensamento. Numa cultura de varões, onde tem a mulher valor muito relativo ou considera-se simplesmente como antivalor, já está predefinida a aplicação das metáforas venatórias: o ameaçado (o valor) será o varão; a ameaça (o perigo) a mulher. A mulher é uma armadilha, porque é falsa sua aparência, e o homem fica preso nela fraudulentamen­te. O exemplo de Dalila induzindo Sansão (cf. Jz 16,4ss) é prova convin­cente do tópico. Generaliza o texto convertendo toda mulher em Dalila.

Rede seu coração-. O coração, em paralelismo com ela, simboliza o mais íntimo da mulher: seus sentimentos, mas também a manifestação desses sentimentos, sua paixão amorosa. No contexto atual, coração tem sentido pejorativo ao identificar-se metaforicamente com uma rede de caçador com

15Creio, em todo caso, que é certo o que afirma N. Lohfink da sentença de Qoh 7,26: “É palavra típica duma cultura de homens” (Kohelet, 58a).

16A citação em Qohélet é recurso estilístico reconhecido, a que já aludimos em diversas ocasiões (ver, por exemplo, comentário a 7,1.8). Quanto ao sistema de ciações em Qoh, cf. R. Gordis, Quotations (1939/40) e Quotations (1949).

17Declaram-se abertamente por essa sentença E. Glasser, Leprocès, 125s; N. Lohfink, Kohelet, 56­58; War Kohelet, 278s; A. Bonora, Qohélet, 177; D. Michel, Qohelet, 153; Untersuchungen, 227s.

Page 321: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

o mesmo valor que armadilha. Ele chama a rede de laços ou artimanhas para conseguir prender a presa perseguida, ou seja, o homem ingênuo (!) por ação da mulher astuta. Confirmamo-nos dessa forma em que a argu­mentação, fundada na metáfora da caça e aplicada à mulher, encontra-se na mesma linha da concepção pessimista e negativa da mulher.

O final do v. 26 é conseqüência lógica, pelo que parece, muito afim à sabedoria tradicional, que se encaixa perfeitamente na hipótese bastante provável de que o v. 26 seja uma citação de Qohélet; reflete-se nela com exatidão o que Qohélet encontrou e que se costumava dizer e pensar acer­ca da malícia da mulher. Concederia Deus assim um prêmio ao que se comporta bem e lhe agrada: ser livre dos perigos da mulher, e um castigo ao pecador: deixá-lo incidir nas redes da mulher.

No caso de se preferir defender que o v. 26 não é citação mas afirma­ção de Qohélet, também admite o v. 26c uma interpretação coerente com a maneira de pensar de Qohélet. Não seria necessário recorrer à hipótese do autor piedoso que corrigiria e completaria o Qohélet primitivo.18 Estamos em situação parecida à de Qoh 2,26,19 ainda que naturalmente se mude o dom de Deus: lá era “a sabedoria e a ciência” e “a tarefa” penosa, aqui o ser livre da mulher, do perigo a que conduz sua sedução ou deixar que incida o pecador em suas redes como inseto na teia de aranha.20

27. Qohélet no v. 27 dá um toque de atenção com o imperativo olha (re’eh), que repetirá no v. 29a; ele tem algo a comunicar e a seu ver é muito importante, foi isso que averiguou.21 Qohélet fala em primeira pessoa, como em toda a perícope, mas neste momento acrescenta um primeiro inciso na terceira pessoa: diz Qohélet, para frisar seu próprio testemunho como ver­dadeira autoridade.22 E não lhe faltam razões para tanto, uma vez que se fundamenta em experiência pessoal que se presume longa e profunda, como nos diz ele próprio: Quando me pus a averiguar a reta avaliação passo a passo. Com essas palavras Qohélet descreve-nos, com efeito, o que pretendeu com seu trabalho de busca e em parte o método empregado. O objetivo de toda a investigação de Qohélet é alto: alcançar a reta avaliação (heshbon) ou juízo de valor totalizante da realidade, como comentamos a

18Como continua pensando, por exemplo, A. Lauha em Kohelet, 142.19Observe-se a repetição de vocabulário: tob — hote’.20Veja-se o comentário a 2,26 e os autores aí citados que assim opinam.21Refere-se a algo de que já tratou ou falou? Assim o crêem H. W. Hertzberg, que relaciona o v. 27

ao v. 26c: “O que agrada a Deus...” (cf. Der Prediger, 142 e 158) e A. Lauha, que opina: “A sentença [v. 27] lê-se como irônica confirmação dos versículos precedentes” (Kohelet, 142). A maioria, porém, rela­ciona acertadamente o v. 27 com o que segue.

22D. Michel daí deduz, de mais a mais, a autenticidade das duas palavras, pois escreve: Qohélet “argumenta... aqui com autoridade, poder-se-ia por isso considerar de todo original e com pleno senti­do o singular inciso ’amrah qohelef’ (Untersuchungen, 226s; assim também N. Lohfink, War Kohelet, 261).

Page 322: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

propósito do v. 25. Já dissemos também, quanto ao método, uma palavra no mesmo lugar. Trata-se de averiguar passo a passo, ou seja, de sopesar bem o que captamos diretamente ou nos chega através da tradição, sub­metendo tudo ao crivo da experimentação ou da reflexão crítica antes de afirmá-lo como conseguido.

Mas o v. 27 fica aberto, já que não se nos diz nele o que teria averigua­do Qohélet.

28. Responde o v. 28 à expectativa suscitada pelo próprio Qohélet no v. 27? A interpretação tradicional responde de modo unânime afirmativa­mente, pois considera que se relaciona o v. 28 intimamente com o v. 27 e está em função dele: o v. 28a une-se ao v. 27 por meio da partícula *sher, cujo antecedente é a reta avaliação (heshbon) do v. 27, a qual ainda conti­nuo buscando e não encontrei.23 No v. 28b expressa-se finalmente o achado de Qohélet, que nos anunciava o v. 27, a saber, um homem entre mil... Os autores manifestam-se unânimes em afirmar que 7,28b expressa a ma­neira de pensar em Israel sobre a mulher; as discrepâncias surgem quan­do se tenta determinar o que Qohélet pensa acerca do conteúdo de 7,28b.24

Como já vimos, a interpretação normal, que se fez dos w. 27-28 quase até nossos dias, defende que Qohélet expressa-se a si mesmo em 7,28b; nós, porém, optamos por versão diversa da que prevaleceu durante tanto tempo e por interpretação do texto conforme a essa versão.

Cremos, em primeiro lugar, que a partícula *sher não se refere a ne­nhum antecedente, mas que sua função é introduzir uma proposição substantivada: “o que ainda continuo buscando...” é um “homem entre mil...”.25 Segundo isso, 7,28 deve-se interpretar independentemente do v. 27, voltando a se retomar o fio do v. 27, repetindo as mesmas palavras: Olha o que encontrei.

Sendo assim, Qohélet continua em sua busca incansável, mas tem que confessar que não foi coroado de êxito seu esforço: Continuo buscando e não encontrei. O que é não encontrou? Já temos um precedente nesta perícope que não parece ser alheio ao problema que agora nos propomos, pelo menos no que se refere ao método discursivo de Qohélet. Com efeito, víamos no v. 26 como Qohélet teve que se confrontar com o método tradicio­

23Assim as versões antigas grega e latina, São Jerônimo; entre os modernos, cf., por exemplo, D. Buzy, VEcclésiaste, 248; L. Di Fonzo, Ecelesiaste, 246b; J. J. Serrano, Qohélet, 567.

24E indiferente que a sentença proverbial tenha sido cunhada pelo próprio Qohélet ou por ele encontrada já formulada. O mais provável é que o próprio Qohélet a tenha formulado, dado o uso do verbo mç’ em todo o contexto.

25Cf. P. Joüon, 157a. D. Michel o explica assim: “ *sher serve, conforme o uso lingüístico normal, para substantivar uma frase em que a sentença substantivada tem aqui função de sujeito, o v. 28b é o predicado: ‘O que ainda continuo buscando e não encontrei’ ” (Untersuchungen, 231); entenderam-no anteriormente assim A. Bea, Líber, 17; G. Pérez Rodríguez, Eclesiastés, 905s. Confirma essa interpre­tação R. E. Murphy, On translating, 574.

Page 323: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

nal de pensar sobre a mulher que se resumia numa sentença proverbial: o mulher é mais amarga que a morte. Introduzia-se essa confrontação mediante a expressão e descubro (umose’); agora volta Qohélet a enfrentar a posição dominante, formulada também em provérbio ou sentença pro­verbial: Um homem entre mil encontrei, mas entre todos estes não encon­trei uma mulher, que correspondesse ao que busca e até agora não encon­trou (de novo o verbo mg’).

Qohélet busca a verificação dessas duas sentenças, cujo conteúdo cor­re de boca em boca e entre o povo se aceita como moeda de curso legal. O que se estabelece realmente nestas sentenças? Os intérpretes estão de acordo em que nas sentenças se estabelece um juízo de valor que em ne­nhuma hipótese é favorável à mulher.

Um homem corresponde a 5adam, que se interpreta de modo diferen­te. E certo que ’adam tem sentido genérico (cf. Gn 1,27), mas nesses versículos está por varão (’ish), já que claramente se opõe a mulher (ishshah). Ainda mais importante que essa matização é a opinião geral­mente admitida segundo à qual tanto homem como mulher empregam-se elipticamente por homem “como deveria ser”, “autêntico”, “bom” etc., e por mulher “como deveria ser”, “perfeita”, “irrepreensível”, “boa” etc.26 Se es­sas determinações introduzem elemento moral ou quase moral, não se podem admitir, uma vez que vão além do texto.27

Aceitamos que Qohélet fala do homem-varão e da mulher. Do varão afirma que entre mil encontrou um que é homem autêntico e verdadeiro, sem que se inclua nenhum matiz moral nessa autenticidade; algo assim como o entenderia Diógenes, o da lanterna. Tampouco se deve tomar ma­tematicamente o milhar; trata-se provavelmente de expressão consagra­da: “um entre mil”, que frisa a dificuldade ou rareza.

O dito sobre a mulher está construído como a sentença sobre o varão. Entre todos estes-, fórmula que equivale a “em número igual de mulheres”, ou seja, entre mil.28Não encontrei uma mulher-, interpretamos a sentença da mesma forma que a que se refere ao homem; excluímos, portanto, qual­quer interpretação de ordem moral. Não se encontra uma verdadeira e autêntica mulher, incluindo nesses apelativos as qualidades positivas, excluídas as de ordem moral.

26Cf. F. Delitzsch, Commentary, 334; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 247b; A. Lauha, Kohelet, 143; N. Lohfink, War Kohelet, 280.

27L. Di Fonzo fala claramente da “inferioridade moral” da mulher (Ecclesiaste, 147b); A. Lauha é ainda mais radical ao referir-se a resultados estremecedores, pois afirma que segundo Qohélet rarissimamente se encontraria um homem de considerável valor ético e praticamente nega a existên­cia duma boa mulher” (cf. Kohelet, 143).

28Cf. F. Delitzsch, Commentary, 334.

Page 324: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

No final chegamos a esta conclusão: a sentença proverbial é aberta­mente antifeminista, como corresponde ao modo de pensar sobre a mulher naquele tempo; mas o varão não fica muito bem na coisa.29 Do conteúdo dessa sentença de corte tradicional Qohélet nos diz que não pôde verificar sua certeza: não a pôde encontrar.30 Essa interpretação alivia um pouco Qohélet da imagem misógina que sempre se lhe atribuiu; mas ressalta a visão pessimista que tem da humanidade. Em todo caso, não se esgota seu pensamento aí, visto que vai nos comunicar no v. 29 o que por fim encon­trou como definitivo em seu incessante trabalho de busca acerca do senti­do da vida humana.

29. Chegamos, após alguns versículos obscuros e tortuosos, a final luminoso e reto, como se saíssemos de longo túnel a campo aberto. O versículo 29 é digna conclusão em que confluem e ressoam os temas de toda a perícope.31

Depois do parêntese do v. 28 era preciso repetir o toque de atenção dado por Qohélet no começo do v. 27: Olha o que encontrei, completado, de mais a mais, pela expressão adverbial lebad: o único, que sem dúvida su­blinha a importância do achado, do único achado verdadeiro de Qohélet, no qual se concentra toda a força e intenção estilística do sete vezes utili­zado verbo mç’: encontrar. Por uma vez parece que falha a concepção pes­simista de Qohélet acerca do poder cognitivo do homem (cf. 3,11b; 7,23s; 8,17); acrescente-se que se trata de conhecimento fundamental para uma concepção totalizante da vida do homem e de seu sentido na história. Acom­panhamos Qohélet em suas infatigáveis tentativas de busca, em seus acha­dos que lhe trazem antes frustrações que satisfação (cf. w. 25.26.28); to­dos eram resultados parciais e provisórios. Mas agora estamos diante de achado verdadeiramente definitivo: o único que encontrei. O achado refe­re-se à origem teologal do homem e à sua repercussão na história: duas faces de um achado, a positiva e a negativa, ou dois princípios teológicos que fundamentam uma visão de fé e explicam a realidade do bem e do mal na história humana.

O lado luminoso ou face positiva dessa visão de fé, a de Qohélet, diz assim: Deus fez o homem reto. Repetimos muitas vezes que Qohélet é ho­

29Como comenta R. Gordis: “Passa-se em geral por alto que Koheleth não tem estima muito eleva­da pelo gênero masculino: ‘um décimo do um por cento melhor que a mulher!’ Conclui, tendo atingido esse resultado, que o gênero humano deixa muito a desejar” (Koheleth — the man, 283). Cf. O. Loretz, Gotteswort, 164; A. Lauha, Kohelet, 143.

30Assim pensam, por exemplo, A. Bea, Liber, 17; O. Loretz, Gotteswort, 164; E. Glasser, Leprocès, 126s; N. Lohfink, War Kohelet, 283; D. Michel, Untersuchungen, 231; R. E. Murphy, On translaãng, 574s.

3101ha o que 0~‘ ,eh-zeh): cf. o v. 27a; encontrei (maçati): cf. w. 26a.27ab.28abc; Deus: cf. v. 26c; homem (’adam): cf. v. 28b; eles (varão e mulher): cf. w. 26a (mulher), 28b (varão), 28c (mulher); idea­lizaram (bqshu): cf. w. 25b.28a; maquinações (hishsh‘bonot): cf. v. 25a.27b.

Page 325: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mem crente, enraizado na fé de seu povo. Temos aqui mais uma demons­tração desse fato, demonstração irrefutável para os que ainda duvidas­sem. É muito provável que Qohélet pense em Gn l,26s ao fazer essa afirma- ção-confissão. O conteúdo dela por certo faz parte do legado mais seguro e apreciado de Israel. Como sempre que entramos na esfera das seguranças da fé, temos que confessar que Qohélet tem que superar seus métodos críticos de conhecimento, visto que já não são válidos os princípios de veri­ficação pelos quais normalmente se rege ele próprio. Não é verificável a criação do homem. Qohélet estabelece, portanto, um princípio básico de sua fé: Que o homem foi criado por Deus. O homem em seu sentido genéri­co, ou seja, o varão e a mulher, tal como em seguida especifica: eles, e lemos em Gn 1,27: “E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; varão e mulher os criou”.

Onde fica agora o agravo comparativo entre homem-varão e mulher? Pelo menos genericamente e quanto à origem, não há nenhuma diferença entre o homem e a mulher. Confirma-se nesse sentido a interpretação que fizemos dos w. 26 e 28. As opiniões aí expressas contra a mulher enquanto tal e indiscriminadamente não as pode aceitar quem afirma que Deus fez igualmente retos o homem e a mulher. Com a passagem do tempo e devido a influências culturais, irão se formando opiniões favoráveis ou desfavo­ráveis a um ou outro sexo. E muito prudente Qohélet e não se deixa levar pela corrente abertamente antifeminista.

A opinião de Qohélet não se centra principalmente na afirmação da criação do homem, mas em determinada qualidade do homem criado, sua retidão: Deus fez o homem reto \yasar\. Ainda que o interesse de Qohélet seja o homem que é ele e seus contemporâneos, não duvida em recorrer ao protótipo do homem criado, ao homem primigênio, para explicar o con­temporâneo, ou melhor, o homem como ele crê que saiu das mãos de Deus, ou seja, como Deus o quer ou segundo seus planos. O homem é reto, quer dizer: apto, normal, com todas as suas qualidades propriamente humanas não deterioradas por defeitos morais, capaz de desenvolver-se como ho­mem no meio bom no sentido criacional de Gn 1,31: “E viu Deus tudo o que tinha feito e era muito bom”.32 Qohélet defende assim Deus de qualquer sombra de dúvida sobre sua bondade e prepara adequadamente o terreno para fazer do homem — varão e mulher — o único responsável pelo mal no mundo.

O sentido adversativo do v. 29c é evidente: mas eles. Se no v. 29b Qohélet quis recordar o plano originário de Deus, todo ele ordenado e con­forme à natureza boa de Deus e dos homens, o mas do v. 29c faz-nos pisar

32Cf. F. Delitzsch, Commentary, 334s, cuja interpretação nos parece plenamente aceitável.

Page 326: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

de novo o solo, esta terra prosaica, onde discorre a história de desordens, misérias e trevas, cujos protagonistas são eles, ou seja, os homens e as mulheres de carne e osso. Eles são os únicos reponsáveis33 por suas ma­quinações,34 pelo que idealizaram e também maquinaram, e que tantos frutos amargos produziram entre os próprios homens.

No final Qohélet retornou à dura realidade que lhe é tão familiar. Tinha-nos feito esquecer por um momento o lado obscuro dessa realidade, levando-nos ao manancial puro das origens da humanidade, ao Deus cria­dor, e ao homem criado em pureza e equilíbrio (v. 29b). Assim Oohélet. se bem que seja realista empedernido, descobriu-nos seu interior, i r )if 3- tou-nos sem peias nem equívocos 0 que pensa do homem, quer varão mulher, não obstante 0 que se diga ou se repita numa sociedade em(í leis e os costumes são ditados pelos varões.

VIII. QOHELET DE NOVO P A SABEDORIA TRADICI

Dizíamos de 6,10-12 que sua fun principalera introduzir as refle­xões de Qohélet a partir do cap. . da pergunta de 6,12: “Quemfará saber ao homem 0 que acoiftécí :á depois dele?”, afirmamos que “res­ponde Qohélet nos capítulos 8 e 9\iinaã vezes com grande clareza, outras nem tanto”.1 As perguntas/toifo^que áe inicia 8,1, recorda-nos as de 6,12, e em 8,17b de alguma marK \ a descobrimos a resposta: “O homem não pode averiguar o que se fáz 4ôb.Vsoí’’. Já vimos mais de uma vez que terminou a incessante (b, . • à \ Qohélet em fracasso, que suas tentativas foram querer atingir-p > atmgível. Podemos supor que agora não vai ser dife­rente.

Paíree, portanto, que não valem a pena esforços para acompanhar it no tórtuoso caminho que seguem seus discursos atormentados, ia conclusão, porém, é a armadilha em que não devemos cair, uma

ie 0 grande valor do livro de Qohélet está precisamente em reconhe- que Qohélet é precursor de todos os que estão condenados a caminhar

entre escoinos e trevas numa viaa em que o mai preaomma soDre 0 D e m , e

33Implicitamente parece que Qohélet busca responsáveis pela situação humana histórica. Não se entende a responsabilidade se não se fundamenta na liberdade. Sendo assim, está Qohélet a favor da liberdade.

MComo se sabe, o vocábulo hishshebonot pôs em desacordo os autores (cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 248; H. Lohfink, War Kohelet, 284-286; D. Michel, Untersuchungen, 237s). Cremos que a melhor ver­são de hishshe bonot é maquinações, que participa provavelmente do duplo sentido do original.

KJf. Introdução primeira a 7,1-29.

Page 327: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

para a qual não se encontra justificação nem sentido transcendente. E isso apesar de a fé num Deus que é Senhor dos indivíduos e dos aconteci­mentos.

Entramos assim em novo capítulo, o oitavo, que podemos dividir em três partes: 1- Quem é o verdadeiro sábio? (8,1-9); 2~ Antítese: justos — malvados (8,10-14); 3â Primeiras conclusões de Qohélet (8,15-17).2

1. Quem é o verdadeiro sábio1?: 8,1-9

Cremos que a forma interrogativa da epígrafe corresponde muito bem ao conteúdo da perícope 8,1-9, pois gira por inteiro em torno do sábio ou conselheiro do rei.3 Trata-se de acertar com a atitude mais adequada do conselheiro ou súdito diante do poderoso príncipe, que faz Qohélet, a par­tir do v. 16, extensiva a todo homem perante realidades impalpáveis e incontroláveis que dominam o homem de toda condição e em todas as cir­cunstâncias da vida, como é a morte. Aqui é que o homem mais precisa da sabedoria, onde mais claramente se manifesta quais sejam os verdadeiros sábios.

8,1 Quem como o sábio?E quem é o que conhece a interpretação de um assunto?A sabedoria do homem ilumina seu rosto e transforma a dureza de seu semblante.

2 Eu digo: Observa o mandato do rei pelo juramento diante de Deus.3 Não te afastes de sua presença precipitadamente,

nem te obstines em assunto desagradável,pois ele pode fazer o que lhe aprouver.

4 Porque a palavra do rei é soberana, e quem lhe vai dizer: O que fazes?

5 Quem cumprir o mandato, nada sofrerá de mau;o coração do sábio acerta com o momento e o modo adequado.

6 Com efeito, todo assunto tem seu momento e seu modo adequado, pois é grande o mal que ameaça o homem;

7 já que ele não sabe o que acontecerá,quem, pois, lhe vai anunciar quando acontecerá?

8 O homem não tem poder sobre o vento, de sorte a retê-lo;não existe poder sobre o dia da morte, nem há evasiva na batalha, nem a maldade poderá livrar tampouco o infrator.

9 Tudo isso tenho observado, ao fixar-me em tudo o que se faz sob o sol, enquanto o homem exerce seu domínio sobre outro para seu mal.

2Cf. G. S. Ogden, Qoheleth, 127. Outras divisões do capítulo 8 podem-se ver em L. Gorssen, La cohérence, 286 e R. E. Murphy, Wisdom, 143.

3A. Allgeier fala da sabedoria quanto à vida prática em contraposição com a sabedoria antes teóri­ca ou doutrinal que desenvolverá, segundo ele, nos w. 9-17 sobre problemas de teodicéia (cf. Das Buch, 42s); D. A. Garret é mais concreto e fala do poder político (cf. Qoheleth, 168).

Page 328: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

la “como o sábio”: kehehakam do TM; LXX, Aq, Sym leram koh hakam: “assim, desta maneira sábio”.“transforma”: y shanne’ (= ye shanneh), piei; esta é a leitura da Vg e Jerônimo, ver também BHS e M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 41. Ou­tros preferem manter o pual;yes/m7ie’ do TM: “transforma-se”, ou o nifal yissane’: “é odiado” (G).

2 “Eu digo”: TM bni somente. Desde tempos antigos existe grande contro­vérsia a propósito deste pronome solitário no TM. LXX não o traduz, ou, antes o interpreta como ’et, partícula de acusativo: “Observa a boca do rei”, e também em parte Jerônimo: “Ego os regis custodio” (Vg “Ego os regis observo”). Declaram-se pelo “eu” elíptico, em que se deve substi­tuir o verbo ’amarti: “Eu digo”, F. Delitzsch, Commentary, 338s; R. Gordis, Koheleth — Hebrew, 104; Koheleth — the man, 288 com paralelos rabínicos. Outros atribuem procedência aramaica a este *ni solitário: “ ’nipy-mlk vem de um original aramaico ’npy mlk: o rosto do rei” (J. van der Ploeg, Robert Gordis, 107), confirmado por encontrar a mesma ex­pressão em Ahiqar. Apoiam essa solução, por exemplo, M. J. Dahood, Qohelet and recent, 311 (que aduz também H. L. Ginsberg, Studies in Koheleth, 34) e Ch. F. Whitley, Koheleth, 71s. Muito artificial e pouco prová­vel parece a explicação de A. Lauha que opina que “’ni no TM não é corre­to e poderia ser ditografia do final da última palavra do versículo prece­dente” (Kohelet, 146).

4 “O inicial babsher funciona como ki: ‘porque’, no v. 3c” (G. S. Ogden, Qoheleth, 130; cf. R. Meyer, Gramática, 88,3; 120,2.

5 “o mandado”: lit. “o mandato”, “não sofrerá”: lit. “não conhecerá”, “nada de mau”: lit. “coisa má”, “momento e modo adequado”: ‘et umishpat, in­terpretado como hendíade por LXX: kairon kriseos.

8 Alguns mudam maldade: resha‘, por riqueza: ‘osher; mas essa mudança, além de infundada, é desnecessária (cf. M. J. Dahood, The Phoenician, 277s, que rejeita a mudança do TM, mas admite a mudança de significa­do). “o infrator”, ou então “o que é dono ou fazedor dela” (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 73s).

9 “ao fixar-me”: corresponde a naton... , infinitivo absoluto: “ao dar meu coração, ao pôr a atenção em”; que, segundo G. S. Ogden equivale a natati: “eu dei” (cf. Qoheleth, 134), ou então a um consecutivo que conti­nua o pensamento do verbo precedente: “observei... de sorte que pus minha atenção” (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 74). “enquanto que”: ‘t bsher, acusativo de tempo (cf. Ges.-K., 118.Í; P. Joüon, 126.Í).

8,1-9. Essa primeira parte do capítulo oitavo começa com interroga­ção que se pode considerar introdutória (v. 1); segue uma série de senten­ças bastante homogêneas sobre o comportamento das pessoas próximas ao príncipe ou soberano (w. 2-5), e encerra a secção o comentário do pró­prio Qohélet (w. 6-9).

1. Ainda que tenhamos tomado posição inequívoca a respeito de 8,1, é bom recordar que existe disputa entre autores mais recentes sobre o lugar que deve ocupar esse versículo (mais concretamente 8,1a) na estrutura do

Page 329: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

contexto.4 Uns consideram 8,1a como parte integrante da perícope prece­dente.5 Segundo outros, 8,1a faz parte indiscutivelmente do que segue, e não do precendente.6 Mas, tendo em vista a possível polivalência de 8,1a, facilmente surge uma posição intermédia, que crê que esse versículo de­sempenha função de ponte e transição entre as duas perícopes.7

Tema muito caro à sabedoria tradicional do oriente antigo era o da instrução adequada dos conselheiros e ministros reais, de tal sorte que o protótipo do sábio veio a ser precisamente o bom conselheiro real.8 Nossa perícope tenta averiguar quem é o verdadeiro sábio, e vai identificá-lo em parte com o bom conselheiro que sabe encontrar saída digna em qualquer circunstância embaraçosa.

O sujeito da ação no v. la é o sábio, e a sabedoria o objeto de todos os elogios no v. lb. Quem como o sábio'?-, só a pergunta, ainda que retórica, envolve alta estima pelo sábio, pois é o termo com que se compara a pes­soa apreciada que se busca e não se encontra. A repetição da pergunta: e quem é... ? frisa, por um lado, a importância que o autor dá à sua busca e, por outro, dilucida e matiza o que entende neste momento por sábio: o que conhece a interpretação de um assunto. Conhecer a interpretação de um assunto é o mesmo que conhecer seu sentido e solução.9

Os profetas eram tradicionalmente em Israel os intérpretes dos even­tos; eram capazes de decifrar nos fatos históricos a vontade do Senhor, os sinais dos tempos (cf. Is 7,1-9; 10,20-34; 31; 37; Jr 18,1-12; 21,1-10; 46; etc.). Mas os tempos de Qohélet não conheciam profetas; era papel dos sábios interpretar os assuntos, sobretudo os acontecimentos de alcance mais geral.

Quem são os sábios? Onde estão e como se podem identificar? Pelo que tudo indica, o v. lb responde a essas perguntas. A sabedoria é como a

4D. Michel propõe a dúvida: “O versículo provavelmente fazia parte do texto aceito como pergunta introdutória, mas também seria possível que fosse versículo de transição concebido por Qohélet” (Untersuchungen, 262).

5Por exemplo, K. Galling, DerPrediger, 109; N. Lohfink, WarKohelet, 260 nota 10; melek, 540 nota 20; Kohelet, 56s; mas ele mesmo reconhece que, se se seguir a leitura do TM, faz parte o v. la da perícope seguinte (cf. Kohelet, 59); A. Bonora, Qohelet, 118, onde encerra seu discurso sobre a perícope 7,23-8,la da maneira seguinte: “A conclusão (8,1a) é pergunta retórica: quem é, pois, o sábio? Quem sabe interpretar uma palavra como o dito sobre a mulher”.

6Cf. R. Kroeber, Der Prediger, 148 nota 2, que segue a divisão de F. Delitzsch (cf. Commentary, 336 e especialmente 338) contra M. Lutero e outros; A. Barucq, Eclesiastés, 138; D. A. Garret, Qoheleth, 168: “O versículo é um prólogo adequado para 8,2-8”.

7Assim D. A. Garret: “O v.l é atualmente de transição: conclui a passagem precedente 7,19-29... e olha prolepticamente para a próxima discussão” (Qoheleth, 168) e D. Michel: “Também é possível que [o v. 1] seja versículo de transição” (Untersuchungen, 262).

sVer toda a história do confronto entre Cusai e Aquitofel, quando da rebelião de Absalão contra Davi em 2Sm 15,30-37; 16,15-17,14.

9Ch. F. Whitley escreve: “pesher: ‘interpretação, solução’. A palavra aparece só aqui no hebraico bíblico, mas é comum no aramaico bíblico (cf. Dn 2,45; 4,3; 5,15)” (Koheleth, 71), e ocorre freqüentemente na literatura de Qumrã, como advertem quase todos os comentadores modernos.

Page 330: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

luz; manifesta-se rapidamente com seu esplendor, uma vez que é impossí­vel mantê-la oculta por muito tempo. A sabedoria não existe em abstrato, mas em concreto: é ela que faz o sábio. O sábio reconhece-se em sua ma­neira de agir e em seu semblante, pois, como diz nosso provérbio: “O rosto é o espelho da alma”. Algo assim é o que o autor nos ensina em 8,1b. A sabedoria é, de mais a mais, fonte de luz dentro do sábio, razão pela qual se deve afirmar que a sabedoria do homem ilumina seu rosto (cf. Jó 29,24). A expressão é claramente proverbial, como também o é a sentença parale­la seguinte. Para o sábio não pode ser de outra maneira. O conceito de sabedoria é muito positivo e extremadamente humano, por isso envolve, como sinais manifestatívos de sua presença, a alegria e a doçura que se refletem com toda propriedade no rosto ou semblante do sábio.

Em 8,1b temos, portanto, uma primeira resposta à pergunta genéri­ca: quem é o sábio que é capaz de dar resposta às situações especialmente difíceis e comprometidas da vida? Aquele que pode, nessas circunstâncias especiais, pode mudar a rigidez e a dureza do gesto na doçura e paz do semblante, manifestação externa do equilíbrio interno produzido pela se­gurança encontrada. Qohélet completa, nos conselhos que seguem, a figu­ra do sábio tradicional.

2-5. Os conselhos apresentados aqui não têm porque ser originais de Qohélet; são de senso comum e por isso fazem parte da sabedoria interna­cional.10 Aceita-os Qohélet como soam, ainda que lhes acrescente depois breve comentário (cf. w. 6-9).11

2. Com o eu digo Qohélet quer deixar bem estabelecido que faz pró­prios os conselhos que seguem. Pela forma imperativa: observa, é evidente que se dirige ao aluno ou leitor.12

As circunstâncias sociopolíticas que tinham que suportar os judeus contemporâneos de Qohélet não são nada fagueiras. Era preciso levar muito a sério tudo o que se relacionava com a soberania do rei e os poderes efeti­vos de seus lugar-tenentes provinciais e locais, que mais pesadamente se faziam sentir que os do próprio rei, sobretudo em questões de impostos.13

10D. Michel afirma em concreto que “para a passagem w. 2-5 há muitos paralelos na literatura oriental antiga, que leva a supor que se cita aí parte dessa literatura sapiencial” (Untersuchungen, 100); cf. também R. Kroeber, Der Prediger, 148s.

nO começo do v. 2 demonstra que Qohélet faz seus esses conselhos: Eu afirmo-, mas é mais discu­tível que Qohélet pretenda referir-se a circunstâncias concretas históricas de natureza política: fun­ção de embaixadores judeus em cortes estrangeiras, pois sempre cabe o recurso do exercício escolar em ordem à formação dos que em futuro não muito distante podem exercer funções de liderança política, segundo o permitam as circunstâncias (cf. A. Barucq, Eclesiastés, 139; B. Lang, Ist der Mensch [ThQ], 120s; N. M. Waldman, The dabar, 407; N. Lohfink, melek, 540s).

12Qohélet não utiliza o vocativo meu filho, tão freqüente na literatura sapiencial bíblica e extrabíblica. A fórmula aparece uma única vez no epílogo (12,12), que com toda probabilidade não é do mestre Qohélet, mas dum de seus discípulos.

13Cf. Apêndice II: “Síria e Fenícia”.

Page 331: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“O rei não era parte, mas um tirano com quem não se podia entrar em conflito”.14Por isso Qohélet aconselha: Observa o mandato do rei, ou seja, tudo o que emana da corte do rei, que, se bem que distante, alcança as regiões mais afastadas aonde chegam os rapaces emissários reais. Essa observância implicava a mais meticulosa obediência às leis e ordens reais por motivos religiosos e de conveniência. O motivo religioso é o alegado no v. 2: pelo juramento diante de Deus. O juramento de fidelidade e lealdade ao rei era com toda probabilidade exigido para exercer qualquer cargo público, e supunha-se implícito em todos o súditos pelo mero fato de sê-lo. A doutrina sobre a origem divina do poder real era comum em toda a anti­guidade e em particular em Israel.15

3-4. Nesses versículos Qohélet recomenda extremar o tato e a pru­dência na conduta na presença do poderoso, para evitar que se desperte nele a fera de sua cólera irreprimível. Estava mais que justificado o temor do súdito diante do capricho e da arbitrariedade do príncipe de turno que gozava de poderes absolutos sobre vidas e posses.

A vida na corte e, em geral, o trato com os mais poderosos, regem-se por normas convencionais muito rigorosas, que não se podem transgredir. Trata-se fundamentalmente de lisonjear o poderoso, manifestando-lhe submissão total. Qohélet continua as regras do jogo, pois sabe muito bem que pode perder tudo quem não se submete a essas normas férreas.

O versículo 3 contém duas cláusulas negativas e uma explicativa. A primeira recomenda resignação e paciência justificada ou injustificada diante do poderoso. Não creio que a segunda se refira a rebelião alguma contra o príncipe, mas a que não se deve insistir no que se opõe ao gosto ou à vontade do rei. E tudo isso não por educada cortesia, mas por puro medo de cair na desgraça do poderoso, pois ele pode fazer o que lhe aprouver16 sem ter que prestar contas a ninguém, razão pela qual parece que se jus­tifica qualquer atitude de servilismo nos súditos em defesa própria.

A palavra do rei do v. 4a corresponde ao mandato do rei do v. 2a; dela se diz que é soberana, porque procede de quem é soberano e senhor. Cha­

14São palavras de B. Lang, Ist der Mensch (ThQ), 120.15A este respeito não existem discrepâncias. N. M. Waldman escreve: “E evidente que o fundo de

Ecl 8,2-4 é a bem atestada idéia sapiencial do imponente poder do rei (Pr 14,28.35; 16,10.14.15; 19,12; 20,2; 21,1; 25,5.6; 29,14; Ecl 10,20: Ahiqar [ANET 428s]). O juramento diante de Deus (v. 2) tem sido relacionado com o juramento de lealdade feito pelos vassalos: assírio adü, aramaico ‘dy e possivelmente hebraico ‘dwt" (The dobar, 407). Cf. R. Gordis, Koheleth — Hebrew, 104; D. A. Garret, Qoheleth, 169.

16Segundo A. Hurvitz, “a frase kol <asher hapeç ‘asah encontra-se duas vezes na literatura bíblica, as duas no livro dos Salmos: SI 95,3 e SI 135,6. Numa forma, um pouco modificada, em Is 46,10; Jn1,14 e Ecl 8,3. Nos cinco exemplos, a frase refere-se ou a Deus (Salmos, Isaías e Jonas) ou a um rei terreno (Eclesiastes) e denota o poder ilimitado da suprema autoridade que o capacita “a fazer o que lhe aprouver” (The history, 257).

Page 332: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ma muito a atenção essa maneira de falar sobre o poder do rei, como se se tratasse do próprio Deus.17

5. Os conselhos que acaba de dar Qohélet nos w. 2-4 podem-se cha­mar de vida ou morte; o v. 5 confirma-o em certo sentido, pois é como sua conseqüência natural. Se admitirmos que Qohélet nos w. 2-4 aceitava a doutrina comum do ambiente sapiencial, supostas as circunstâncias e po­der absoluto e omnímodo do soberano, teremos que ser conseqüentes e ad­mitir a mesma coisa no v. 5. Ainda que razoavelmente se possa pensar que nutre Qohélet certas reservas com respeito às sentenças proverbiais do v. 5, como se pode deduzir das observações que faz imediatamente no v. 6.18

Quanto à primeira sentença do v. 5: quem cumprir o mandato, nada sofrerá de mau, não deveria representar nenhuma dificuldade, pelo menos tomada em sua generalidade. Ou seja, num mundo bem ordenado, quem se ajusta ao estabelecido não tem porque temer nada da parte da legítima autoridade. Assim também pensava mais tarde Paulo, ao escrever: “Os magistrados não estão para infundir temor em quem se comporta bem, mas em quem faz o mal. Queres não ter medo da autoridade? Faze o bem e terás sua aprovação, pois ela é instrumento de Deus para ajudar a fazer o bem. Mas, se te comportares mal, teme, pois está dotada de poder eficaz e a serviço de Deus para distribuir justiça e castigar quem faz o mal” (Rm13,3-4; cf. também lPd 2,13-14). Mas do mundo, em que vivia Qohélet, podia-se esperar qualquer coisa, como se vai demonstrar em 8,10ss.

Sobre o provérbio citado no v. 5b: O coração do sábio acerta com o momento e o modo adequado, de certa forma se deve dizer o mesmo que do v. 5a. Numa visão otimista da corrente sapiencial, se existir alguém capaz de acertar com o momento adequado de cada coisa, este será o sábio. Sabe­mos, porém, que Qohélet não está para conceder a ninguém semelhante capacidade de acerto, como vai observar nos w. 6ss.

Na sentença ‘et umishpat o primeiro termo ‘et: tempo ou momento, não cria nenhum problema, uma vez que é coerente com o sentido em 3,lss: tempo ou momento próprio e adequado. No entanto, o segundo ter­mo mishpat apresenta bastante dificuldade. Muitos traduzem-no por juízo, o que, porém, no contexto não tem sentido. Seria preferível alinhá-lo com

17L. Alonso Schökel observou-o aeertadamente: “Várias expressões da passagem usam-se no A. T. aplicadas a Deus: ‘faz o que quer’ (SI 135,6), ‘quem pode exigir-lhe contas?’ (Jó 9,12), ‘guardar o man­damento’ (Dt, Pr). Em contraposição está a impotência humana, sua incapacidade de dispor de sua sorte diante de Deus. O conselho de 5,1 poderia favorecer essa leitura [que se trata de Deus com o título de rei]. Mas também tem sentido o texto referido ao rei humano. E um rei a quem se presta juramento por Deus, que tem poderes quase divinos e autoridade absoluta” (Eclesiastés, 53).

18Pode-se explicar por essas razões a atitude de N. Lohfmk que afirma que o v. 5 é citação com que Qohélet não está de acordo (cf. Kohelet, 60a). D. Michel pensa praticamente como N. Lohfink (cf. Untersuchungen, 99).

Page 333: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

’et e dar-lhe significado paralelo. A interpretação mais aceitável parece ser a que oferecem L. Kõhler - W. Baumgartner: “Modo adequado de proceder”.19

6-9. Cremos que esses versículos contêm um breve comentário de Qohélet ao que precede,20 e que neles manifesta abertamente seu modo de pensar que não nos é desconhecido.

6. Com esse versículo começa um novo enfoque, que é o característico de Qohélet. O autor volta ao tema tratado em último lugar, o do momento e modo adequado, mas a perspectiva já não é a luminosa do versículo 5, e sim a enigmática e tenebrosa do mundo das idéias de Qohélet.

Qohélet ratifica, não nega, com um ki asseverativo: com efeito, o mo­mento e o modo de todo assunto; mas agora sequer lhe ocorre propor como problema se o homem (o sábio) pode ou não chegar a conhecê-lo. Antes nos orienta para o lado negativo das possibilidades humanas. Realiza isso gra­dualmente nos w. 6b-8. O v. 6b afirma de modo muito genérico que o ho­mem vive sem cessar sob a ameaça do mal. Não se trata de mal de cunho moral ou religioso, mas de mal de ordem física e até metafísica, como es­pecificará nos w. 7-8. O grande mal que pesa sobre o homem faz parte de sua própria condição e muito provavelmente Qohélet relaciona-o também com a pesada tarefa que Deus impôs a todo homem (cf. 1,13; 3,10), já que não sobra remédio senão suportá-lo, como se vê nos versículos seguintes.

7-8. Qohélet descobre em primeiro lugar (v. 7) que o mal ou desgraça que pende sobre o homem funda-se principalmente no futuro incerto, pois nem o próprio homem jamais poderá chegar a conhecer o que vai aconte­cer, de bom ou de mau, no tempo que está por vir (cf. 7,24; 8,17); nem haverá ninguém distinto dele que esteja em condições de desvelar esse mistério absolutamente fechado a toda mente humana (cf. 6,12b).

A incapacidade do homem de eliminar as incertas e possíveis desgra­ças que o ameaçam radica não só na esfera do conhecimento, em suas ignorâncias (v. 7), mas também nas limitações de sua natureza em outras esferas, que mostram sua concreta e profunda fragilidade.21 A primeira é que o homem não tem poder sobre o vento, a ponto de poder retê-lo e sujeitá- lo. O hebraico ruah pode referir-se ao vento como fenômeno atmosférico (cf. 1,6; 11,4a) e como espírito vital (cf. 3,19.21; 12,7). Os autores dividem-

19Cf. Hebr. und Aram. Lexikon, 615b; ver também Diccionario bíblico, s. v., p. 443a; J. Pedersen, Israel. Its life and culture. I/TI, Londres, 1926, 350s.

20A repetição da palavra-chave como momento e modo adequado, conhecer (yd’), mal I mau, poder (shilt) etc., são prova evidente disso; cf. D. Michel, Untersuchungen, 100.

210 original hebraico do v. 8 mostra uma construção quase perfeita em suas quatro sentenças. Constroem-se as três primeiras com a partícula negativa ‘en e a quarta com lo’. D. A. Garret interpre­ta a mudança de ’en por lo’ como prova de que “Qohélet move-se em nova direção”, de que ele aí “introduz prolepticamente 8,9ss” (Qoheleth, 170s). Não negamos que o v. 8d adiante de alguma manei­ra o tema do mal; mas não cremos que isso tenha motivado a mudança estilística de ’en por lo’.

Page 334: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se nas preferências. Os que se decidem pelo “espírito vital” descobrem no v. 8a paralelismos com o v. 8b sobre o dia da morte; poder que naturalmen­te se nega ao homem. Os que identificam ruah simplesmente com o vento, sentença pela qual nos declaramos, vêem no v. 8a a afirmação dum fato evidente de grande valor pedagógico. O v. 7 insistia em que o homem não tinha possibilidade de conhecer o futuro; o v. 8a confirma-nos nessa limita­ção humana de grande importância com um exemplo simples e convincen­te.22 Se o homem não é capaz de dominar o vento, que é simples fenômeno da natureza, nem de pegá-lo nas mãos (recordemos a repetida expressão caça de vento), muito menos poderá decifrar o mistério imprevisto do futuro.

Da impossibilidade de reter o vento salta o autor à impotência que o homem experimenta perante o inevitável da morte, perante o não poder sobre o dia da morte. O salto parece ilógico, a não ser que o tenha inspira­do a equivocidade do termo ruah, mencionada antes.

Não há evasiva na batalha: Qohélet enumera algumas impotências do homem: antes de tudo um elemento da natureza, o vento; perante o destino implacável de todo vivente, a morte. Aduz agora o exemplo duma instituição humana: a guerra, e da guerra seu momento culminante, a batalha, que para muitos é o dia da morte, mas que, uma vez começada, não há escusas nem evasivas para dela sair.23

Qohélet não teve até o momento que recorrer à ordem moral para mostrar a incapacidade e radical impotência do homem em certas circuns­tâncias de sua existência. No entanto, na última parte do versículo 8 apa­rece não um caso concreto, mas a afirmação geral de que tampouco a mal­dade poderá livrar o infrator. A sentença, tirada do contexto, tem sentido aceitável: a maldade realiza-se transgredindo o estabelecido e admitido por Deus ou pelos homens como norma e como lei, que se considera como o bem. O homem não se sente libertado, mas livre, para realizar o mal. Ex­presso de forma positiva: só liberta e torna livre o homem a prática do bem. Em Jó 8,32 lemos: “A verdade vos fará livres”.

Lida a sentença no contexto real em que está, não é muito diverso o sentido. As incapacidades, de que trata o v. 8, dão ao homem uma imagem muito negativa de debilidade e impotência, que o fazem escravo e tributá­rio duma realidade a que está preso. Nessas circunstâncias, tampouco o grito de rebelião ou a maldade encarnada no fato da infração da norma ou

22Recordamos como simples associação de idéias a passagem de Jo 3,8: “O vento sopra onde quer; ouves seu ruído mas, não sabes donde vem nem aonde vai”.

23As tentativas tão variadas de tradução que se deram de mishlahat demonstram as dificuldades que apresenta essa passagem: “descargo”, “licença”, “fugida”, “evasão”, “trégua” etc.; cf. R. Gordis, Koheleth— Hebrew, 102 e Koheleth — the man, 291, que aduz um novo: “controle”, mas não é convincente.

Page 335: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

lei, libertam o homem de suas cadeias ou limitações. Qohélet não desce a mais detalhes; mas talvez o versículo seguinte, e sobretudo 8,10ss, lan­cem um pouco mais de luz sobre essa passagem sombria.

9. O versículo certamente põe fim à perícope que comentamos 8,1-9, pois com tudo isso que Qohélet observou está-se referindo ao que precede; a que também alude no v. 9b ao repetir palavras importantes como ‘et, shlt, r’. O que, porém, não impede que o v. 9 sirva também de transição a 8,10ss.

O selo ou a marca de Qohélet está presente em todo o v. 9 com expres­sões favoritas suas, como observei (ra’iti) e tudo o que se faz sob o sol. As observações e reflexões de Qohélet movem-se em âmbito histórico próxi­mo a ele. Pode-se daí deduzir alguma prova para a datação do livro? Creio que não é possível pela escassa determinação dos fatos.24

Qohélet tratou no começo da perícope das relações súditos-soberano (cf. w. 1-4). Nesses versículos pôs de manifesto quão arbitrariamente exer­cem os poderosos seu poder sobre os demais. A isso parece referir-se de novo Qohélet no v. 9b.25

Qohélet expôs, em tudo o que antecede, seu pensamento de forma como que acadêmica; a partir do v. 10 vai corroborar o que pensa, mas com exemplos concretos observados na vida cidadã de cada dia.

2. Antítese: justos — maus: 8,10-14

A perícope 8,10-14 trata da diversa maneira de comportar-se de jus­tos e maus na vida social. Os maus e malvados fazem abertamente o mal, sem temor de Deus e sem nenhuma justificação; os justos e tementes a Deus procuram comportar-se bem perante Deus e os homens. Mas não corresponde o juízo dos homens ao proceder de uns e outros; tampouco parece justo o proceder de Deus, segundo se pode comprovar pelo triunfo dos maus e pelo fracasso dos justos. Qohélet faz verdadeira crítica ao que em seu meio se defende como doutrina oficial da retribuição, segundo a qual cada um recebe prêmio ou castigo de acordo com suas ações. O juízo pessoal de Qohélet é inteiramente negativo, como o demonstra o fato de

24A. Barucq propõe-se essa pergunta e também responde negativamente: “A expressão de 9b: ‘numa época em que um homem domina outro para seu mal’, não permite datar o escrito. A opressão, que sofre o mais fraco pelo mais forte, é desgraça amiúde denunciada pelos profetas, e Qohélet fala em outros lugares de opressões semelhantes, sem que seja possível determinar de que contexto histórico ou social se trata (3,16; 4,1; 10,5-7)” (Ecclésiaste, 150; Eclesiastés, 144s).

25L. Alonso Schõkel frisa a ambigüidade da sentença, mas talvez insinue mais que o próprio texto contém ao perguntar-se e responder da seguinte maneira: “A última frase é de ambigüidade inquié­tante: ‘para seu mal’, de quem? do dominador? do dominado?, ou simplesmente do homem enquanto tal? Qohélet parece indicar que o poder absoluto é uma desgraça para o homem” (Eclesiastés, 54).

Page 336: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que a perícope 8,10-14 começa e termina com este juízo: Também isso é vaidade (cf. w. 10 e 14), dando lugar a uma inclusão. As conseqüências desse juízo negativo veremos em 8,15 e, sobretudo, em 8,lss.

8,10 E então observei: os maus se aproximam e entram e saem do lugar sagrado e gloriam-se na cidade porque agem assim.Também isso é vaidade.

11 Porque não se executam com rapidez a sentença contra as más ações, por isso abunda o coração do homem na prática do mal.

12 Pois o pecador faz cem vezes o mal e no entanto tem vida longa; se bem que eu saiba isso:“Irá bem para os que temem a Deus porque o temem,

13 mas não irá bem ao mau, nem se prolongarão seus dias como uma sombra, porque não tem temor na presença de Deus”.

14 Há uma vaidade que acontece na terra: que há justos a quem toca a sorte dos maus,ao passo que há maus a quem toca a sorte dos justos.Digo que também isso é vaidade.

10 Este é o versículo que mais sofreu modificações. O TM haveria de tra­duzi-lo assim: “Então observei que os maus são sepultados, e entram e saem do lugar sagrado e são esquecidos na cidade os que agem justa­mente. Também isso é vaidade”. O sentido, porém, não é muito aceitá­vel, razão pela qual, segundo o testemunho das versões antigas e de autores, praticamente não fica palavra importante a que não concirna alguma mudança, sempre em busca do sentido coerente. Vamos expô-lo em seguida, seguindo a ordem das palavras.“Então”: ub‘ken, é palavra firme quanto ao significado (cf. M. Wagner, Die lexikalischen, 35[43]). “se aproximam”: qerebim em lugar do TM ifburim (sepultados); é a primeira mudança significativa. Tanto G como Vg estão a favor do TM; mas a idéia da sepultura dos maus não se encaixa no contexto, pois o fato de os maus serem sepultados não é nada de especial; é muito estranho, porém, que junto com a sepultura se fale do “lugar sagrado”. Entre os judeus, consideram-se impuros tan­to os cadáveres como o lugar onde são sepultados. Por essa razão não prosperou a interpretação de R. Gordis, que considera a expressão “lu­gar sagrado” como eufemismo, para dizer “cemitério” (cf. Koheleth—the man, 295; D. A. Garret, Qoheleth, 171), nem tampouco a dos egiptólogos que o identificam com lugar do embalsamamento (cf. K. Galling, Der Prediger, 111; Ch. F. Whitley, Kohelet, 75s). Era muito fácil passar dum original qrbym ao corrompido qbrym (cf. J. J. Serrano, I saw, 170); admi­tem a correção qerebim entre outros G. R. Driver, Problems, 230; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 167 e 170; O. Loretz, Gotteswort, 166; K. Galling, Der Prediger, 111; A. Lauha, Kohelet, 153s.l55s; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 153s; D. Michel, Untersuchungen, 217-221, onde estuda o relativo ao v. 10 e sentencia: “A solução do problema parece-me que foi encontrada por Serrano e Driver” (p. 220).“e entram”: waba’u; alguns preferem o particípio uba’im (como G. R. Driver, Problems, 230; R. Gordis, Koheleth — the man, 295). Outros, a

Page 337: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

maioria dos tradutores, deixam intato o TM. “do lugar sagrado”: mimmeqom (TM). W. Zimmerli (cf. Das Buch des Predigers, 219 nota 1) e A. Lauha (cf. Kohelet, 154.156) crêem que é preciso eliminar a prepo­sição min, porque o m deveria pertencer à palavra anterior (wb’ym em lugar do TM wb’w), ficando maqom como acusativo de lugar: “e entram no lugar sagrado”. Essa correção, porém, é desnecessária.“e se gloriam”: weyishtabbe’hu, em lugar de weyshtakkehu como assegu­ram as antigas versões (LXX, Aq, Sym, Vg, Jerônimo) e muitos ms hebraicos. A explicação dessa mudança é dada outra vez por J. J. Ser­rano, mas com o fundamento firme das versões (cf. I saw, 170). Os au­tores que admitem essa leitura são legião (cf. G. R. Driver, Problems, 230s; D. Michel, Untersuchungen, 218). “agem assim”: ken. Alguns tra­duzem “agem justamente", que também é possível.

11 “a sentença”: pitgam é empréstimo do persa, “as más ações”, no singu­lar em hebraico, “dos homens”: lit. “dos filhos do homem”.

12 “cem vezes”: crêem alguns que é preciso acrescentar pa‘am a me’at (cf. A. Lauha, Kohelet, 154). M. J. Dahood aduz o caso de me’at como exem­plo de ortografia fenícia (cf. Qohelet and, 306), mas R. Gordis rejeita inteiramente a sugestão de Dahood, já que também no hebraico bíblico ocorrem “dezenas de casos em que a antiga terminação at para o abso­luto feminino se conserva no texto” (Qohelet and Qumran, 398). “ainda que”: segundo R. Gordis “ky gm é conjunção subordinada, como seu eqüivalente gm ky, que significa ‘ainda que, mesmo se’ ” (Koheleth — the man, 293); a que se opõe J. Becker, que prefere a versão “porém” (cf. Gottesfurcht, 253). “porque o temem”: lit. “porque têm temor em sua presença”.

10. A nova observação coloca-nos Qohélet em seu mais que prová­vel lugar de residência, em a cidade por excelência para um judeu, ou seja, Jerusalém. E dentro dela o lugar sagrado ou templo, o lugar mais indicado para toda espécie de observâncias, uma vez que diariamente o visitam cidadãos piedosos ou curiosos e todos os estrangeiros que a ela chegam.

Após as modificações aplicadas ao texto, como explicamos nas notas filológicas, não há senão um sujeito ativo de todas as ações observadas por Qohélet: são os maus. Descrevem-se esses entrando e saindo do templo, como se se tratasse de israelitas piedosos. E isso que revolta Qohélet, como devia revoltar a todos os que observavam a mesma coisa, mas que não o diziam ou diziam em voz baixa. Não só o diz Qohélet, mas também o escre­ve: pessoas que são, por seu modo de viver e conviver, ímpios reconheci­dos, mas que ao ir ao lugar sagrado, supomos que para oferecer sacrifícios ao Senhor, desafiam o próprio Senhor, cuja lei transgridem, e os que de coração servem ao Senhor, os justos, provavelmente vítimas de suas ações más. No cúmulo da hipocrisia, esses maus gloriam-se depois na cidade de suas práticas de piedade.

Page 338: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Como Deus continua sem manifestar-se, é de se perguntar onde está a justiça ou que tipo de vida é essa. Para Qohélet está claro que nada disso tem sentido: Também isso é vaidade.

ll-12a. Na unidade que formam os w. 10-14, introduz-nos o v. 10 no mundo íntimo de Qohélet, mundo muito aberto às influências vindas de fora, a tudo o que seus olhos observam e passa pelo crivo de sua razão crítica. Dessa maneira faz Qohélet nos w. 11-12a uma atenta observa- ção-reflexão que continua a resenhada no v. 10. Se Qohélet, com efeito, manifestava no v. 10 seu escândalo religioso pelo desafio blasfemo dos maus que se gloriavam de poder harmonizar seu modo de vida com o culto a Deus em seu Templo, no v. 11 constata fato de grande importân­cia na vida social. Sua observação tem grande valor histórico por ser testemunho fidedigno do que realmente acontecia em seu tempo. Afirma Qohélet que não se executam com a devida presteza sentenças firmes e condenatórias dos juizes. A não-execução rápida duma sentença por si não significa que não se vai cumpri-la; mas sua eficácia por certo já não é a mesma no caso em que se leve a efeito com atraso. A conseqüência dessè fato é lógica. O castigo da má ação deve ser exemplar, e sua execu­ção pelo menos deve ter um efeito secundário dissuasório. Se não se cum­pre esse castigo, ou se atrasa demais sua realização, diminui ou se perde o temor de transgredir as leis e de fazer o mal. Como diz Qohélet: o coração dos homens se enche, e colma-se e transborda de más intenções para fazer o mal. Pior ainda é o fato habitual, o que se repete quase à saciedade: o pecador faz cem vezes o mal, de sorte que pareça ser essa a norma, sobre­tudo se aquele que faz o mal é personagem com grande influência na co­munidade. Não obstante, não recebe o que mereceu, e mais, até alcança longevidade.

Dessa realidade contraditória e sem sentido dá testemunho Qohélet, apesar de a lei humana positiva prescrever o contrário, e a lei, que se considerava divina, ser norma de vida aceita por todos. É aqui que se afasta Qohélet abertamente do caminho trilhado da tradição, conforme o que nos vai dizer em seguida.

12b-13. Dão-se destes versículos duas interpretações fundamental­mente opostas. A primeira segue a corrente tradicional, ou seja: recorda­ria Qohélet nesses versículos o que sempre se disse e repetiu em Israel. Pr 14,27 diz: “O temor do Senhor é fonte de vida, para escapar dos laços da morte”. Eclo 1,13 faz-se eco da mesma doutrina: “Quem teme o Senhor terá final bom, será bendito no dia de sua morte”. Sobre a sorte desigual do justo e do mau repete-nos o Salmo 37 com toda a tradição: “Num mo­mento deixa de existir o mau, busca sua casa e ela já não existe; os humil­des herdarão, ao invés, a terra e gozarão de paz abundante... Fui jovem,

Page 339: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

agora sou velho, e nunca vi desamparado o justo, nem sua linhagem men­digando pão” (w. 10-11.25).26

Outros, porém, crêem que Qohélet estaria citando nos w. 12b-13 a opinião comumente admitida em Israel, mas de que não compartilha, por­que a quem não quiser fechar os olhos impõe-se a realidade com toda a evidência. Compartilhamos desta opinião, como já se pode perceber na própria tradução.27 Sobre a comparação da vida com a sombra, pode-se ver o que escrevemos a propósito de Qoh 6,12.

14. A interpretação desse versículo depende da que se tenha dado dos w. 12b-13. Para os que defendem que se expressa nos w. 12b-13 a opinião de Qohélet, acorde com o ensino tradicional, o v. 14 não passa da constatação de um ou de vários casos em que se cumpre a norma geral. Pelo contrário, para aqueles para os quais o w. 12b-13 seria citação com a qual não está de acordo Qohélet, vêem no v. 14 a confirmação mais clara de sua tese: que não se dá correspondência entre o que se faz, bem ou mal, e o que se recebe na vida, prêmio ou castigo; mas tudo pelo contrário, o que ele chama por duas vezes de vaidade: os justos são tratados como maus e os maus como justos. Esse fato inegável inspirou obras como o poema de Jó e o Salmo 37, mas nenhuma delas tirou as conseqüências de Qohélet, ou, pelo menos, não chegaram até nós.

3. Primeiras conclusões de Qohélet: 8,15-17

Qohélet exporá suas conclusões de forma gradual nas reflexões que seguem. Em primeiro lugar, as de alcance mais imediato, as que concernem ao modo de viver no dia-a-dia (cf. 8,15); em segundo lugar e em dois mo­mentos, Qohélet vai chegar ao fundo do problema: num primeiro momen­to e como fundamento do segundo, confessa Qohélet uma vez mais a impo­tência do homem de vir a abarcar com seu conhecimento “as obras de Deus” ou “o que se faz sob o sol” (8,16-17); num segundo momento, o mais defini-

26J. Becker diz, por exemplo, do comentário de Qohélet: “A doutrina da remuneração é enganosa, pois contradiz aos fatos. Apesar disso, o Eclesiastes defende o valor do temor de Deus nos w. 12b-13” (Gottesfurcht, 253). Da mesma maneira opinam, entre outros, H. W. Hertzberg, Der Prediger, 174; L. Di Fonzo, Ecclesiastes, 258; L. Derousseaux, La crainte, 343; G. S. Ogden, Qoheleth, 137.

27Essa opinião tem bons defensores; cf. R. Kroeber, Der Prediger, 148s; R. Gordis, Koheleth — the man, 293.297: máximo defensor; E. Glasser, Leprocès, 133; N. Lohfink, Kohelet, 62b; G. Ravasi, Qohelet, 273. Creio que J. Steinmann vai muito longe ao dizer: “Evidentemente burla Qohélet do que acaba de dizer. Jamais zombou o velho filósofo das máximas dos sábios com tanto cinismo como quando repete sua máxima sobre a felicidade dos justos e a desgraça dos pecadores — iniciada por um desdenhoso ‘Eu sei’, e cercada por constatações de experiência que lhe dão o mais mordaz desmentido” CAinsi, 94). Não se pode negar que se percebe em Qohélet certa ironia amarga, mas não me parece que chegue à burla e ao cinismo. Tampouco admitimos que 8,12b-13 seja glosa inserida pelo redator para suavizar a dura opinião de Qohélet, como opina A. Lauha (cf. Kohelet, 154.157).

Page 340: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tivo, oferecerá Qohélet a interpretação mais radical que se conhece em todo o A. T. sobre o tema da retribuição (cf. 9,lss).

8,15 Eu louvo a alegria, porque o único bem do homem sob o sol não é senão comer, beber e alegrar-se;isso o acompanhará em seus trabalhos durante os dias de sua vida que Deus lhe regalou sob o sol.

16 Quando me dediquei a conhecer a sabedoria e a observar as tarefas que se realizam na terra — pois os olhos do homem não conhecem o sono nem de dia nem de noite — ,

17 observei todas as obras de Deus:o homem não pode averiguar o que se faz sob o sol;por isso se afadiga o homem buscando, mas nada averiguará;e ainda que o sábio diga que o sabe, não poderá averiguá-lo.

16 “me dediquei”: lit. “dei meu coração”, “as tarefas”: no singular “a tare­fa”: ha‘inyan. “os olhos do homem não conhecem o sono”: lit. “ele não vê o sono em seus olhos”. A expressão “ver o sono” é um hapax no A. T.; os autores costumam citar o poeta latino Públio Terêncio Africano: “somnum hercle ego hac nocte oculis non vidi meis” (Heauton Timotumenos, III 1,82) e M. T. Cícero: “somnum non vidit” (Epistolae ad familiares, VII30). R. Gordis aduz também um exemplo do hebraico michnaico de Tos. Sukk. 4,5 (cf. Koheleth — the man, 298).

17 “Por isso”: bshl ’shr, que segundo os autores constitui um modismo do hebraico tardio (cf. R. Gordis, Kohelet — the man, 299; Ch. F. Whitley, Koheleth, 77). “buscando”: “para buscar”.“ainda que”: gam ‘im, aparece só aqui na Bíblia. M. J. Dahood faz refe­rência ao paralelo fenício ‘f ’m (cf. Canaanite-Phoen., 109s); mas R. Gordis nega, como quase sempre, a necessidade desse paralelismo, dado que existe no hebraico bíblico a expressão gam ki (Was Koheleth, 109s). A F. Piotti não satisfaz essa atitude de R. Gordis e responde muito razoavalmente: “E bastante provável que a língua de Qohélet, posta em contato com a área lingüística norte-ocidental, tenha cunhado, sob a influência do ambiente fenício, e desenvolvido na fala a conjunção gam ’im, junto com a de uso bíblico gam ki. Daí a indiferença com que põe por escrito essa língua, usando ora uma conjunção bíblica (ki gam: 4,14; 8,12), ora uma de cunhagem norte-ocidental (gam ‘im: 8,17)” (Osservazioni [1977], 54).

15. Voltamos a deparar nesse versículo o lado mais amável e lumino­so de Qohélet depois das observações e reflexões tenebrosas dos versículos precedentes (cf.Qoh 2,24; 3,12-13; 5,17; 9,7-9). O Qohélet do v. 15 é o ho­mem alegre que sabe descobrir momentos de felicidade nas alegrias pe­quenas e efêmeras da vida, tais como as de que gozamos ao satisfazer as necessidades mais primárias: na comida, na bebida, no desfrute das oca­siões prazenteiras que se dão aqui e ali, no decorrer das horas agradáveis, sozinhos ou na companhia de amigos e pessoas queridas.

Page 341: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Não se esquece Qohélet de recordar também as satisfações que nos proporcionam as atividades humanas produtivas ou recreativas que cha­mamos trabalho. Todas essas satisfações são como que o condimento da vida, que para Qohélet sempre se considera como presente de Deus.28

16-17. Ao v. 15, claro e luminoso, seguem os obscuros w. 16-17. Houve quem viu neles unidade independente de seu contexto;29 a maioria, porém, relaciona-o com o que precede,30 com o que segue31 ou com ambos ao mes­mo tempo, o que me parece mais acertado. Com efeito, 8,16-17, que for­mam um só período, podem-se considerar como resumo das muitas refle­xões anteriores que tentaram a busca da sabedoria, mas que terminaram em fracasso total; ao mesmo tempo preparam a passagem às importantes reflexões de 8,lss. Sendo assim, constituem 8,16-17 verdadeira ponte en­tre o que precede e o que segue.32

Qohélet no v. 16 está recordando todas as passagens em que se refe­riu ao esforço pessoal que fez como sábio, buscando com afinco a sabedoria e comparando-se ao investigador infatigável que trabalha sem descanso dia e noite. Convenceu-se no final de algo desencorajador: não obstante dedicar-se com todo o esforço que lhe foi possível à observação de tudo o que se realiza entre os homens — na terra ou sob o sol — , o máximo a que chegou foi à convicção final de que a fadiga do homem nessa dura tarefa é inútil, e que não averiguará nada. Qohélet faz, neste momento de sincerida­de total, grandes afirmações quanto à impotência do homem para decifrar o escondido dos eventos nos quais é protagonista, e naquilo que entende por as obras de Deus. Desde a perspectiva do crente em Deus, criador e senhor dos fatos e acontecimentos, identifica Qohélet essas obras de Deus com o que se realiza na terra ou o que se faz sob o sol, pois não existe para ele outra esfera ou outro meio onde se podem realizar e manifestar as ações de Deus e dos homens.

O homem poderá afirmar que sabe muitas coisas, pelas quais deveras se pode chamar sábio; mas essa sabedoria fragmentária não alcança a compreensão total de sua própria existência, a explicação do sentido de sua vida num mundo determinado, mas caótico.

28Cf. as dissertações da secção IV da Introdução § 4 sobre as alegrias da vida e o Excursus III sobre o trabalho em Qoh.

29A. Lauha afirma, por exemplo: “Visto que o conteúdo dos dois versículos [16-17] não está em relação nem com o que precede nem com o que segue, trata-se claramente de unidade independente” (Kohelet, 160).

30Cf. A. G. Wright, The riddle (1968), 331; G. S. Ogden, Qoheleth IX,1-16,158s.31Cf. K. Galling, Der Prediger, 112s; W. Zimmerli, Das Bueh des Predigers, 22 ls; J. J. Serrano,

Qohélet, 570; G. Ravasi, Qohelet, 279. Também L. Alonso Schõkel crê que “se poderiam ler esses versículos [16-17] como nova introdução ao que segue: ao mistério do destino humano” (Edesiastés, 56).

32Ver especialmente D. Michel, que escreve: “8,16-17: Recapitulação e transição ao seguinte” (Untersuchungen, 262; cf. também p. 156); A. Lauha, Kohelet, 160.

Page 342: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Com isso já estamos às portas do tema importantíssimo da retribui­ção do homem diante de Deus, ou, com outras palavras, diante do tema do destino humano.

IX. O SÁBIO QOHÉLET PERANTE O DESTINO COMUM E O PODER (9,1-18)

Começa com 9,1 outra perícope, em que dirá Qohélet sua última pala­vra em questões muito importantes sobre as quais já se pronunciou em várias ocasiões; falará, em concreto, sobre o destino comum e universal de todos os homens independentemente de sua maneira de agir e sobre o valor da sabedoria na vida real, especialmente social e política.

A necessidade ineludível da morte, seu sentido ou sem-sentido inexplicáveis, a opacidade das trevas de tudo o que se relaciona com o além da morte não paralisam, e sim estimulam a mente de Qohélet. De­pois de reflexões tão profundas, volta Qohélet a mergulhar na vida frágil do dia-a-dia para tirar o máximo proveito dos poucos dias de que podemos dispor. Mais impenetrável e misterioso, porém, que a morte é o próprio Deus, em cujas mãos certamente estamos, ainda que o homem como tal, mesmo o mais sábio, não tenha a mínima idéia de seus planos e sentimen­tos. Qohélet porá à prova neste capítulo sua fé na justiça e bondade de Deus, visto que lhe é evidente que todos sem distinção têm o mesmo e único destino.

Como veremos, Qohélet têm razões de sobra para repetir-se em suas reflexões, uma vez que o objeto das mais importantes dentre elas é o que mais interessa ao homem, ou seja: o sentido ou sem-sentido de sua vida e da vida em geral, tema central desse livro.

Podemos dividir Qoh 9 em cinco perícopes, cuja conexão explicaremos no começo de cada uma: 1- Igualdade fundamental e destino comum (9,1­6); 2- Desfrute da vida (9,7-10); 3a Incerteza e insegurança (9,11-12); 4- A sabedoria e o poder (9,13-16) e 5â Debilidade da sabedoria (9,17-lS).1

1. Igualdade fundamental e destino comum: 9,1-6

Encara Qohélet nesses seis versículos o fato cru e desnudo do destino mortal do homem. Nisto não haveria novidade se não fosse a intenção de sublinhar que o destino ineludível é o mesmo para todos, sem servir para

‘Cf. G. S. Ogden, Qoheleth, 143 e D. Michel, Untersuchungen, 157-160, que seguimos apenas em parte.

Page 343: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

nada a qualidade das pessoas: a bondade ou a malícia, a sabedoria ou a nescidade. Acrescenta Qohélet algo de novo às crenças comuns acerca do além?

9,1 Por suposto, sobre tudo isso refleti e vi tudo isso:que os justos e os sábios com suas obras estão nas mãos de Deus.O homem não tem conhecimento nem do amor nem do ódio; tudo está diante dele.

2 Tudo acontece a todos da mesma maneira:um mesmo é o destino para o justo e o malvado, para o puro e para o impuro,para quem oferece sacrifício e para quem não o oferece,para o bom e para o pecador,para o que jura e para o que faz reparos em jurar.

3 Este é o mal de tudo o que acontece sob o sol: que um mesmo é o destino para todose que, ademais, acha-se o coração do homem cheio de maldade, e enquanto vivem pensam loucuras, e depois, vem a morte!

4 Certamente, para quem vive ainda há esperança, pois vale mais cão vivo que leão morto.

5 Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem nada;para eles já não há recompensa, pois sua memória foi olvidada.

6 Seus amores, seus ódios, suas paixões faz tempo que acabaram, e nunca mais terão parte em tudo o que se faz sob o sol.

1 Neste primeiro versículo não só é difícil escolher entre as variantes, mas também pôr certa ordem nas sentenças dos autores. O ki inicial: muitos nem sequer o traduzem; outros dão-lhe sentido causal muito fraco e explicativo, ligando assim o 9,1 com o que precede. Mas também pode ter sentido afirmativo: certamente, por certo (cf. Ges.-K., 159ee).“sobre tudo isso refleti”: lit. “entreguei meu coração a tudo isso”. Essa tradução supõe duas pequenas mudanças no TM, a saber: o primeiro ’et para ’el e, conseqüentemente, ’el para ‘et assim: ky ’el kl zh ntty ’et Iby (cf. alguns manuscritos segundo BHS). “E vi tudo isso”: lit. “e meu coração viu tudo isto”, que corresponde à versão dada por G. O TM tem welabur: infinitivo constructo de bur (esclarecer, comprovar, compreender), pre­cedido d ew el, que continua a ação do verbo precedente e “virtualmente tem valor de forma finita” (P. Joüon, 124p), aqui: “e comprovei, exami­nei... tudo isso”, cf. Versões antigas: Sym Vg Jerônimo Pesitta; F. Delitzsch, Commentary, 354; R. Gordis, Koheleth — the man, 299; A. Lauha, Kohelet, 164, que é muito otimista e opina que “M [o texto hebraico] é... perfeito, de sorte que não se fazem necessárias as conjetu- ras”. No entanto, a versão grega LXX não conheceu essa lição, mas ou­tra, pois traduz: “e meu coração viu (eíden) tudo isso” (com LXX tambémS Sh Co K). Temos, retrotraduzindo, o texto hebraico: wlby r’h ‘t kl zh. “O texto hebraico pressuposto pela LXX realmente pode ter levado por haplografia ao TM, ao passo que mal se explicaria o nascimento do texto da LXX se o TM fosse original” (D. Michel, Untersuchungen, 167). Mui­tos autores preferem a leitura hebraica que pressupõe o texto grego ao

Page 344: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

próprio TM, “dificilmente inteligível” (W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 223).Das duas leituras escolhemos essa segunda pelo testemunho valiosíssimo da LXX e porque nos parece mais simples e coerente com o contexto, “que”: %sher não tem função de relativo, mas é conjunção introdutória (cf. D. Michel, Untersuchungen, 180; P. Joüon, 157c; R. Meyer, Gramáti­ca, 113b; 114.2b). “com suas obras”: lit. “e suas obras”, “diante dele” refe­re-se a “homem” que precede, tomado coletivamente, pelo que temos em hebraico o plural: “diante deles”. A preposição tem sentido local, e não temporal.

2 A versão grega supõe um hebel no começo em vez de kakkol; os autores que seguem a versão G unem geralmente hebel com o final do v.l: “Tudo o que está diante dele é vaidade” (cf. BHS, A. Lauha, L. Alonso Schõkel). Outros suprimem o hakkol (cf. A. Bea); a maioria, porém, conserva o TM tal como está, ainda que crie problemas de compreensão. Aceitamos a interpretação de Franz Delitzsch, que parte da tradução ao latim: Omnia sicut omnibus, e da divisão sic-ut\ escreve: “Tudo é (assim) como aconte­ce a tudo, ou seja, não há distinção de suas experiências nem de suas pessoas; tudo, de qualquer tipo que seja, acontece da mesma maneira, a todos os homens de qualquer classe que seja” (Commentary, 356), cf. especialmente a explicação dada por D. Michel, Untersuchungen, 175. “um mesmo é o destino”: lit. “um é o destino”. Depois de “para o mau” o TM tem latob: “para o bom”, sem o segundo termo da antítese que seria welara‘: “para o mau”, que têm o grego e outras versões (cf. BHS): “exem­plo de correção tácita por um tradutor” (R. Gordis, Kohelet — the man, 300). Não tem sentido repetir duas vezes tob no mesmo versículo; fica, pois, o segundo, não o primeiro (cf. A. Lauha, Kohelet, 164; D. Michel, Untersuchungen, 174). “para o bom e para...”: “assim como ao... assim também ao...”, “faz reparos em jurar”: lit. “teme o juramento”.

3 “os homens”: lit. “os filhos do homem”, “enquanto vivem”: lit. “em ou durante sua vida”, “pensam loucuras”: lit. “loucura em seu coração”. A razão teológica não é suficiente para declarar esse v. 3b, até depois (’aharaw), como correção de R2, como opinam K. Galling, em Der Prediger, 113 e A. Lauha em Kohelet, 167. “morte!”: lit. “com os mortos, ou, a (o lugar de) os mortos”.

4 Sobre o mi inicial escreve R. Gordis: “my ’shr toma-se como interrogativo pela LXX e como pergunta retórica por V (nemo), mas não por P (Pesitta), que corretamente o reconhece como relativo equivalente ao mais clássi­co kl ’shr” (.Koheleth — the man, 304). Entre o Ketib yibbaher: é eleito, e o Qerê yhubbar: está unido a, a maioria inclina-se pelo Qerê que nos parece dar melhor sentido, razão por que o preferimos, “para o que vive”: lit. “aquele que está unido ao conjunto dos vivos”. Admite-se geralmente que o lamed que precede a keleb (cão) é enfático.

5 “mas os mortos”: “ ’en com o sufixo pronominal m repete o sujeito hmtym: literalmente ‘e os mortos, eles o sabem’. Esse uso é característico do hebraico michnaico” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 80).

6 “Seus amores, seus...”: singular no original.

Page 345: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

9,1-6. A unidade da perícope é garantida pelo tema bem armado e consistente e pela clara inclusão nos versículos 1 e 6 com as palavras amor e ódio.2

1. Qohélet com o começo deste versículo: por certo, sobre tudo isso refleti, referenda o que acaba de dizer, e partindo daí começa o novo passo que vai empreender: e vi tudo isso, que... Assim que na primeira parte olha para trás e na segunda para o que viu e sobre o que vai refletir em seguida; com outras palavras: o primeiro tudo isso refere-se às observa­ções que precederam, especialmente às próximas (cf. 8,17), e o segundo tudo isso prolepticamente ao que vem em seguida. Se Qohélet afirmava nas últimas observações a profunda limitação do homem no campo do co­nhecimento (cf. 8,16s), nestas, que agora anuncia, vai confirmar o absolu­to desconhecimento das relações Deus-homem, e propor um problema, sem resposta de sua parte, acerca do comum destino definitivo de todos os ho­mens. De Qoh 9,1a podemos, pois, repetir que constitui ponte literária, como dizíamos de 8,16-17.

Dissemos, em outra ocasião, que as expressões de Qohélet e seu méto­do podem ser enganosos. “Vi”, “observei” não se podem reduzir ao campo da experiência direta do sentido e da mente, mas devem ser extrapolados ao meio que transcende toda experiência direta na ordem do conhecimen­to. Mostra-nos 9,1 exemplo claro disso ao afirmar que Qohélet viu que os justos e os sábios com suas obras estão nas mãos de Deus. Trata-se de afirmação de fé, e não de observação experimental de Qohélet.3

Os justos e os sábios por si se podem pensar como duas categorias de homens: os fiéis à lei de Deus, como traduz N. Lohfink, e os expertos ou peritos em alguma atividade apreciada entre os homens. Mas devem-se tomar ambos neste contexto como sinônimos, pois acham-se em plano de igualdade diante de Deus.4 Deles e de suas obras, ou seja, de suas pessoas e suas atividades Qohélet afirma que estão nas mãos de Deus. Pelas obras se devem entender não só as atividades em si mesmas, mas também e sobretudo o resultado ou fruto dessas atividades,5 uma vez que expressa­mente se admite que tudo o que a eles se refere está nas mãos de Deus,

2Cf. G. S. Ogden, Qoheleth IX 1-16, 161, que por sua vez se apóia em A. G. Wright, The riddle (1968), 331. N. Lohfink (Koheleth, 68a) considera 9,1-6 junto com 12,5-7 como o marco exterior da última parte de sua estrutura: 9,1-12,7, cujo tema é a morte. Encontra-se um estudo pormenorizado da estrutura de Qoh 9,1-6 em G. S. Ogden em seu a. c., 162.

3Quer se tome a sentença como afirmação de Qohélet ou como citação, como opina D. Michel (cf. Qohelet, 33; Untersuchungen, 170-172.179s).

4Cf. Sb 4,16-17, onde também se identificam o justo e o sábio.5Sobre ‘abad escreve G. S. Ogden: “Este termo, usado somente aqui [em todo o A. T.], tem sentido

semelhante ao de ‘amai, ou seja, as ações de alguém e o prêmio ou resultado dessas ações, ainda que talvez por causa do contexto se tivesse que dar maior atenção ao resultado que às ações mesmas” {Qoheleth IX, 1-16, 160).

Page 346: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

depende absolutamente de sua vontade e poder; também, portanto, o fru­to de seus trabalhos.6 Para Qohélet, como para todo israelita, a soberania ou o domínio de Deus sobre toda a criação e sobre os homens em particu­lar, é algo que faz parte do núcleo mais íntimo da fé, e acha-se claramente formulado em escritos tão fundamentais como o Dêutero-Isaías (cf. Is 40­45). Em Qohélet essa soberania sem rival tem por certo matizes diferen­tes aos do Dêutero-Isaías. Se esse frisa mais a confiança sem limites em Deus que, no entanto, é “um Deus escondido” (Is 45,41),7 Qohélet fixa-se sobretudo no aspecto misterioso, oculto, distante e incompreensível de Deus e de seus desígnios sobre o homem.

Por isso, o homem não tem conhecimento nem do amor nem do ódio de Deus, o homem não pode penetrar no mistério mais oculto de Deus que são seus sentimentos. Porque para Qohélet, como para todo crente no Deus vivo, Deus tem sentimentos que se concebem antropomorficamente, como não pode ser de outra forma. O profeta põe nos lábios do Senhor: “Amei Jacó e odiei Esaú” (Ml l,2-3).8Que em Qoh 9,1 se trata do amor-ódio de Deus, discute-se entre os intérpretes. Amaioria opina que se refere Qohélet aos sentimentos em Deus. Essa sentença funda-se na tradição mais anti­ga. A Vulgata latina traduz: “E, no entanto, o homem não sabe se é digno de amor ou de ódio”9 da parte de Deus, naturalmente, como interpreta São Jerônimo.10 E depois dele a tradição quase unanimemente até nossos dias.11

Não cremos que Qohélet 9,1 se proponha sequer o problema, tão dis­cutido posteriormente nas escolas filosóficas, sobre se o homem conhece ou não seu estado de amizade ou inimizade com Deus, de graça ou de pecado. Antes, como diz A. Bea: “O sentido parece ser de acordo com o con­

n u e essa dependência absoluta dos justos e sábios da parte de Deus seja ominosa e nada consoladora, como pensa R. Kroeber (cf. Der Prediger, 150), não se deduz do texto mesmo, mas do conceito geral que se tiver de Deus segundo Qohélet.

7Reatualiza-se essa linha de pensamento pelo Pseudo-Salomão em Sb 3,1: “A vida dos justos está nas mão de Deus” (veja-se J. Vílchez, Sabiduría [1990], 177a).

8Esaú está aqui por Edom e Jacó por Israel. Como é que demonstra Deus amor a Israel e o “ódio” ou enfado a Edom? “Para entendê-lo, finjamos um caso: um pai aborrece-se com alguém que maltrata seu filho, e em seu aborrecimento [ódio] manifesta seu amor, ...Edom foi o irmão que odiava, o fratricida; e Deus não pode olhar indiferente semelhante atitude e ação, se é que ama Israel e quer protegê-lo” (L. Alonso Schõkel, Profetas, vol. II, Mari, 1980, p. 1209). Ver a aplicação que São Paulo faz desta passagem em Rm 9,11-13.

9"Et tamen nescit homo utrum amore an odio dignus est”.10''Este é o sentido... quis saber a quem amava Deus e a quem odiava ele. E descobri que as obras

dos justos seguramente estão nas mãos de Deus; e agora, no entanto, não podem saber se são ou não amados por Deus” (CCL 72,321).

UR. Gordis traduz interpretando: “Não podem os homens estar seguros nem do amor de Deus nem de seu ódio” (Koheleth — the man, 186); e confirma-o na p. 299). O mesmo faz L. Alonso Schõkel: “O homem não sabe se Deus o ama ou odeia” (Eclesiastés, 57). Modernamente surgiram vozes discrepan­tes, a saber: amor e ódio em Qoh 9,1 têm como sujeito ativo não Deus mas o homem (cf. F. Delitzsch, Commentary, 355; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 176; W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 224; F. Zorell, Lexikon hebraicum, 17b; A. Lauha, Kohelet, 166).

Page 347: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

texto: ninguém pode saber se Deus o ama (ou seja, o favorece) ou lhe tem ódio (ou seja, não lhe é benévolo), quanto ao que se refere aos bens desta vida. Não se trata de se o homem possa saber se ‘é digno’ (Vg) de amor ou de ódio (da parte de Deus); nem tampouco do estado de graça, mas de coisas temporais”.12 Sendo assim, parece que Qohélet se opõe à corrente dominante em seu tempo e em todos os escritos de sabedoria, que inter­pretava a prosperidade material como sinal da bênção de Deus e o fracasso na vida como sinal de tudo o contrário. Essa interpretação está de acordo com as observações e reflexões feitas em 8,12-14 e com o contexto imediato que segue a propósito da mesma e única sorte para todos ou que tudo está diante dele, diante de todos os homens e, portanto, “qualquer coisa pode- lhes acontecer”.13 A realidade está aberta diante do homem com todas as suas possibilidades e por isso mesmo ambiguamente, pelo menos numa primeira instância.

2. O versículo une-se ao anterior pela repetição de tudo: (v. 2,aa e v. 3cfJ), e ao seguinte mediante a expressão um mesmo o destino (v. 2a e v. 3b).

Qohélet explica a tese de que não existe retribuição nenhuma na ordem moral com cinco pares antitéticos, pertencentes à esfera ética re­ligiosa.14

O justo e o mau formam a primeira antítese, a mais ampla e genérica, pois abarca a vida inteira do ponto de vista positivo e negativo. Serve de introdução a outras esferas mais determinadas e específicas da vida do homem, tais como a do culto religioso, a individual e a social.

O puro e o impuro: ou seja, o que observa escrupulosamente as pres­crições relativas à pureza legal quanto à alimentação, à higiene e ao culto (cf., por exemplo, a legislação contida no Levítico), e o que não observa essas prescrições.

O que oferece sacrifícios e o que não os oferece-, refere-se naturalmente às pessoas piedosas que, preparadas devidamente, prestam culto a Deus no templo de Jerusalém, apresentando aos sacerdotes e levitas oferendas legítimas, e as outras pessoas que, ou não se preocupam com realizar es­ses atos de culto a Deus, ou estão contra eles.

O bom e o pecador, se se tiver que distinguir o primeiro par (o justo e o injusto), parece que é preciso supor que Qohélet está se referindo ao indiví­duo enquanto tal, ou seja, ao que observa a lei moral em todos os seus aspec­tos e ao que transgride algum deles, provavelmente de modo habitual.

12Liber, 19.13R. Gordis, Koheleth — the man, 300. Como diz D. Michel: “O que está (espacialmente) diante de

alguém, é algo que está à sua disposição ou lhe sobrevêm” (Untersuchungen, 182).14Cf. J. A. Loader, Polar, 102s. Não parece que Qohélet seguiu determinado critério para organizar

os pares; não o descobri, pelo menos.

Page 348: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O que jura e o que faz reparos em jurar: nesta última antítese muda- se a ordem seguida nas duas anteriores (cf. 3,8b), ao pôr em primeiro lu­gar o negativo e em segundo o positivo. Deve servir-nos como ponto de referência o preceito: “Não pronunciarás o nome do Senhor, teu Deus, em falso” (Ex 20,7; Dt 5,11). O juramento era habitual entre os judeus. Já na Lei se diz que “só no nome do Senhor jurarás” (Dt 6,13; cf. Jr 12,16); mas entende-se que é para corroborar testemunho judicial (cf. Dt 21,1-9) ou algum pacto ou contrato solene (cf. Gn 21,23s; Ez 17,13-21). Estava proi­bido severamente o juramento em falso (cf. Lv 19,12).15

Por que Qohélet introduz nessas antíteses os temas do culto e dos juramentos? Será porque existia em seu tempo alguma corrente anticúltica, antecipando-se às que viriam um pouco mais tarde? Alguns pensam que essa passagem já supõe a existência de círculos e grupos de judeus que não ofereciam sacrifícios e rejeitavam a prática do juramento.16 Não exis­tem provas de que existissem no tempo de Qohélet grupos organizados desse tipo; mas é muito provável que houvessem correntes de pensamento de que Qohélet se faz eco. Convém recordar que correntes anticúlticas sempre existiram em Israel (cf. Is l,llss; Jr 6,20; Os 6,6; Am 4,4s; 5,4­6.18-26; SI 51,18-21). Pouco depois de Qohélet os essênios e os moradores de Qumrã afastaram-se do culto oficial de Jerusalém e não mais ofere­ciam sacrifícios,17 mas eles não se opunham aos juramentos.18

A incerteza do homem diante de Deus, como mistério, e diante de sua providência ou maneira de comportar-se com os homens, Qohélet acres­centa agora outro motivo de desorientação: a não-diferenciação ou distin­ção na sorte ou destino de uns e outros; positivamente: a igualdade de todos no destino. Qohélet admira-se que tudo aconteça a todos da mesma maneira e por isso o anota e o desenvolve minuciosamente. Sua atenção concentra-se no que ele vai chamar de destino ou sorte comum (miqreh ’ehad). Por si, miqre significa acidente ou o que acontece por casualidade (cf. ISm 6,9; 20,26; Rt 2,3); em Qohélet, porém, indica algo de mais peso. Por ser conceito mais elaborado, abarca as vicissitudes da vida que de­sembocam na morte; portanto, é o mesmo que destino mortal. Antes Qohélet tratou da mesma sorte do sábio e do néscio (cf. 2,14), do homem e dos animais (cf. 3,19) quanto à sua condição de seres mortais sem nenhuma

15Difundiu-se com muita facilidade o uso do juramento entre os judeus. Talvez por isso Jesus tenha corrigido as disposições antigas: “Mas eu vos digo que não jureis de modo algum” (Mt 5,34; cf. Tg 5,12). A Michná, por sua vez, dedica um tratado inteiro aos juramentos que se chama precisamente sebu‘ot: juramentos.

16Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 177; R. Kroeber, Der Prediger, 150; D. Michel, Untersuehungen, 175. N. Lohfink insinua que talvez o próprio Qohélet fazia parte destes grupos pela pouca simpatia que demonstra em 4,17-5,6 para com os que oferecem sacrifícios ou juram (cf. Kohelet, 65).

17Cf. L. Sabourin, Sacrifice: DBS X 1505-1508.18Cf. A. Barucq, Le livre, 159s; Eclesiastés, 154.

Page 349: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

referência direta à ordem moral. Agora enfrenta de novo o mesmo assun­to: o mesmo destino, mas levando em conta a qualificação moral, o que necessariamente implica alguma referência, ainda que implícita, ao pro­blema da retribuição moral.19 E aqui é que mais se admira Qohélet, pois descobre que na realidade o bem e o mal recebem o mesmo tratamento e a mesma recompensa; o que necessariamente tem que causar escândalo em Qohélet, ainda que não o manifeste com perguntas ou queixas contra Deus, como faz Jó. E muito provável que também seus contemporâneos escan­dalizaram-se de seus ensinamentos.20

3. Não se pode analisar o versículo 3 independentemente do v. 2, por­que se pode considerar como conseqüência lógica dele, pelo menos em sua primeira parte, e une-se literariamente a ele pela repetição do motivo prin­cipal e central: um mesmo é o destino para todos.

Qohélet tem consciência da importância que tem o que acaba de afir­mar no v. 2, e pondera-o com uma sentença de seu repertório e com a repetição do motivo: este é o mal... que um mesmo seja o destino de todos. Que Qohélet só se refira por ora ao que ele e todo homem perspicaz pode experimentar na vida, inclusive o próprio fato de ver outros morrerem, fica manifesto pela expressão consagrada tudo o que acontece sob o sol. Parece certo, portanto, que Qohélet exclui definitivamente qualquer vestígio do ensinamento vigente por tanto tempo em Israel sobre a retribuição chama­da terrestre, temporal, histórica, neste mundo que conhecemos ou coisa se­melhante. Sobre o além da morte não se pronuncia, pelo menos até 9,4.21

Não se contenta Qohélet com fazer constar o fato perturbador de que todos os homens, sem distinção nenhuma, tenham o mesmo destino: o que ja é mal lamentável, mas sem conotação moral. Chegou Qohélet em sua longa experiência a conhecer algo do coração humano, dos sentimentos que definem a qualidade das pessoas também em sentido moral, e consta­ta-o aqui uma vez mais. Vê, em sua visão pessimista, que está o coração de todos os homens cheio de maldade (cf. Gn 6,5 e 8,21) e que dele conseqüen­temente só podem sair maus pensamentos, loucuras e nescidades (cf. 8, 11b) que finalmente desembocarão na morte: depois vem a mortel22

19Veja o Excursus IV sobre a retribuição em Qoh.20Como exclama H. W. Hertzberg, o pensamento de Qohélet de que “as qualidades morais e reli­

giosas de um homem não mudam o destino que se lhe assinalou”, foi “pensamento revolucionário para o A. T!” (Der Prediger, 177). Podemos acrescentar, com J. A. Loader, que “é inteiramente compreensí­vel a forte comoção experimentada no judaísmo pelas palavras de Qohélet (cf. ...Michná, Eduy., 5,3; Yad., 3.5)” {Polar, 103).

21Já temos notícia de sua opinião sobre esse particular por 3,20-21 e algo diremos no final de 9,1 e em 9,10.

22E notável o ex-abrupto a mortel, como certo autor adverte (cf. A. Lauha, Kohelet, 167). Mas não creio que tenha sentido irônico, mas um sentido mais real e trágico: a morte real (contra J. A. Loader, Polar, 103).

Page 350: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet não pode, portanto, apresentar a maldade do coração huma­no como justificação, causa ou motivo do irremediável destino mortal de todos os homens.23 As afirmações de Qohélet no v. 3b são generalizantes e como tais se devem tomar. Qohélet considera o comum destino mortal de todos os homens e a maldade de seus corações como objeto de suas obser­vações e reflexões num mesmo plano lógico. Não há no texto nenhum indí­cio de que Qohélet queira apresentar a maldade do coração humano como motivação ou causa justificativa do destino de morte de todos os homens (v. 3a). Acaba, de mais a mais, de afirmar que o justo, o puro e o bom têm o mesmo destino mortal, o mesmo que o mau, o impuro e o pecador. O desti­no mortal dos homens não depende, portanto, da conduta moral dos ho­mens, seja qual for.

4-6. Qohélet não tolera ficar nas dimensões que lhe apresentaram os w. 2-3: o final é igual para todos. Por isso compara nos w. 4-6 os vivos com os mortos para ver se vale na realidade a vida o mesmo que a morte, para comprovar se é a mesma coisa estar vivo e estar morto.24 O confronto vida- morte delata-se logo pelo vocabulário.25

4. Vimos nos w. 2-3 que Qohélet está plenamente convencido de que não existe no final da vida nenhuma diferença entre os homens, seja santo ou criminoso: “um mesmo é o destino para todos”. A diferença, se houver, deve achar-se antes da morte, entre os vivos. Uma primeira leitura do v. 4, ainda que superficial, revela-nos que é preferível estar vivo a estar morto. As razões são muitas, e cada um poderia enumerar bom número delas, se se lhe perguntasse porque prefere continuar vivendo a morrer; Qohélet dá algumas, não todas, nesse versículo e em todos os seguintes.

Talvez enuncie Qohélet no v. 4a uma das vantagens mais importan­tes de que gozam os que estão vivos e que constitui, de mais a mais, a razão fundamental de querer continuar vivendo: a esperança. Pois que a esperança é horizonte aberto, luz que ilumina esse horizonte humano, for­ça que irresistivelmente atrai de futuro carregado de promessas, impulso vigoroso a esse futuro incerto mas prometedor. A esperança faz com que surjam de nosso interior desejos e ilusões.

23K. Galling afirma, com efeito, que “oferece-se [no v. 3b] uma motivação para o merecido destino mortal dos homens” (Der Prediger, 113); ver também A, Lauha, Kohelet, 167. Negam estes autores razões teológicas e morais que 9,3b seja de Qohélet e atribuem-no ao segundo Redator. A. Schoors, porém, aceita a autoria de Qohélet e segue J. A. Loader (cf. Polar, 103) “que sugere que o mal e a nescidade do homem são conseqüência do mqrh ’hd" (A. Schoors, Koheleth, 299).

24Se compararmos essa passagem com 4,2-3, logo perceberemos que não se pode falar de inconse- qüência na maneira de pensar de Qohélet, e muito menos de contradição. As circunstâncias e os pressupostos são muito diferentes, razão pela qual não pode ser a mesma a resposta. Assim responde­mos, matizando, a A. Lauha erci Kohelet, 167-168.

25Como diz G. S. Ogden: “Os adjetivos opostos hay e met dominam os w. 4-5 que dilucidam o problema particular da vida e da morte, exposto em 9,3” (Qoheleth IX, 1-16,161).

Page 351: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Mas a esperança na Sagrada Escritura une-se indissoluvelmente com Deus, ser pessoal, fundamento incomovível, rocha firme, senhor da vida e da morte. Aesperança converte-se assim em confiança: bittahon, que é a palavra empregada por Qohélet no v. 4 (cf. 2Rs 18,19 = Is 36,4),26 conceito muito afim à fé em Deus no N. T., se é que já não se identifica com ela (cf. Is 7,9).

Aduz Qohélet v. 4b um provérbio, não de todo adequado, pois a corre­lação não é exata; esperar-se-ia algo assim: pois o morto não tem possibi­lidade de esperar.27 O provérbio era provavelmente muito conhecido. Em meio como o semita, o cão é animal impuro e desprezível; o leão é sua antítese: nobre, emblemático, símbolo de poder e realeza. Postos a esco­lher entre o leão, o mais nobre e apreciável mas morto, e o cão, o ínfimo e desprezível mas vivo: vale mais cão vivo que leão morto.28

Já se tinha suscitado nos tempos de Qohélet a hipótese de uma prová­vel retribuição para além da morte? Se assim fosse e Qohélet tivesse conhecimeno dela, ele responderia nesse versículo e no seguinte de forma terminantemente negativa.29

5. Neste versículo Qohélet continua o discurso do v. 4, e dá algumas razões pelas quais estar entre os vivos é preferível a estar entre os mortos. Se, de acordo com o v. 4, os vivos levam vantagem sobre os mortos, porque ainda podem esperar e confiar, o fogo interior ainda não se apagou. No v. 5 fala-se do conhecimento (v. 5a) e da recompensa (= não-recompensa): um motivo pelo qual os vivos superam os mortos e duas razões (três?) pelas quais já não contam nada os mortos. Costuma-se dizer que Qohélet per­manece nos ensinamentos tradicionais no atinente ao além da morte; mas o que vimos até agora no v. 4, o que nos diz o v. 5 e o que nos dirá o v. 6, tudo é absolutamente negativo.

Sobre o conhecimento: os vivos sabem que hão de morrer. Esse saber enquanto tal por certo não constitui causa de consolo e conforto; mas nem todo saber tem de ser causa de alegria e alívio. Neste caso seria melhor não saber nada ou quase nada, ou seja, perder parte de nossa própria natureza e condição de seres humanos. O conhecimento sempre é arma de dois gu­mes. A grandeza do homem está em poder ele por sua liberdade orientar es­se gume cortante para o bem ou para o mal, ou, simplesmente não cortar-se.30

2liCf. as reflexões acertadas que fazem a esse respeito H. Lohfink em Kohelet, 65a e A. Bonora em Esperienza, 176.

27Lemos, por exemplo, em Teócrito: “Os vivos têm esperança, já não a têm, todavia, os mortos” (Idilio VI 42). Eurípedes escreve por sua vez: “Não é o mesmo viver e estar morto; isso é [o] nada, os que vivem têm esperança” (Las Troyanas, 628s).

28Ver o estudo do mashal em G. S. Ogden, The ‘better’..., 502s; Qoheleth, 148s.29Completamos o comentário com o Excursus IV.^Devem-se julgar segundo esses princípios as considerações de J. L. Crenshaw em Ecclesiastes,

161, que nos parecem desacertadas, e as de A. Bonora que aprovamos, como esta por exemplo: “Saber

Page 352: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Os mortos não sabem nada: Como sabe Qohélet que não sabem os mortos nada? Por experiência não pode ser. Repete simplesmente Qohélet o que recebeu, o que se diz? Essa afirmação de Qohélet e as que seguirão sobre a condição dos mortos são muito sérias e, a meu ver, manifestam com toda clareza o que Qohélet crê acerca do que chamamos além. E, para ele, o negativo da vida presente.

Para os mortos não há recompensa, não há salário, não há retribui­ção. Com essas afirmações parece que vai além do que dizia nos w. 2-3: que um mesmo é o destino para todos, pois então parava no umbral da morte e agora o atravessa e penetra no mistério do “além”.

Sua memória foi esquecida: Qohélet faz um jogo de palavras evidente entre skr (recompensa) ezkr (memória, recordação)?1 No entanto, não tem nada de jogo o sentido das palavras. Algo já se disse da memória e do esquecimento como sobrevivência ou aniquilamento dos mortos conforme a mentalidade de Qohélet (cf. 2,16 e 7,1); mas é aqui em 9,5b que aparece com mais clareza o que é para ele a memória de pessoa desaparecida. A memória que têm os vivos dos que morreram é seu único meio de subsis­tência. Mantém um defunto seu nome, sua existência se bem que enfraquecida, à medida que é recordado. Como o tempo gera o esqueci­mento (cf. 2,16), os mortos vão perdendo sua pobre existência debilitada. Quando são de todo esquecidos, morrem definitivamente, ou seja, perdem toda a existência que possuem.

6. O versículo 6 continua perfeitamente o discurso do v. 5, onde está o ponto de referência, o antecedente de todos os sufixos: os mortos. Afirma- se dos mortos que nem amam nem odeiam, que não têm paixões e que jamais participarão de nossa vida temporal e histórica. Quanto a esse se­gundo ponto, não gera dificuldade especial, enquanto não se pensa em algum tipo de volta à vida por parte dos mortos. Quanto à forma de conce­ber o estado dos mortos, ainda continuam afirmando muitos autores que Qohélet só repete aí a doutrina consabida do além-túmulo.32Mas podemos perguntar-nos seriamente se para Qohélet merece uma permanência umbrátil, como a que se supõe ter os mortos no sheol, o nome de existên-

que se deve morrer é um conhecimento de experiência que não termina no niilismo, mas situa o homem perante o mistério. Só a vida vivida na perspectiva da morte adquire toda sua seriedade e só o pensamento da morte pode dar consistência ao convite à alegria” (Qohelet, 176).

3lTodos os autores estão de acordo que Qohélet joga com as palavras. M. J. Dahood tenta explicá- lo por meio do fenício; afirma: “O jogo de palavras entre sakar e zikram percebe-se plenamente quan­do se conhece que a raiz zkr em fenício escreve-se freqüentemente skr. Em outras palavras: o som de sakar em fenício evocaria a um só tempo o conceito de “recordação’ e de “recompensa’ ” (Qoheleth and, 362).

32F. Delitzsch, por exemplo: “O que Kohélet aí apresenta de maneira particularmente dura é a concepção do Hades, predominante no AT” (Commentary, 361). A. Schoors inclui numa conclusão: “Koheleth compartilha da opinião de seu povo, segundo a qual a pessoa morta é apenas sombra que leva no sheol existência inteiramente inativa” (Koheleth, 303).

Page 353: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cia, e de existência humana. Com certeza não o nome de vida, uma vez que exclui atividade que terminou com a morte. O que seria então? Afirmo que seria nada e apenas nada.33

O sheol é uma destas idéias ou concepções que estão muito vivas no sentir dos povos, que se transmitem e sobrevivem através das gerações e se adatam às idéias novas, religiosas ou não, que vão surgindo. De fato a concepção do sheol não contribuirá com nada para as novas orientações que surgirão na Palestina depois de Qohélet, durante o levante dos Macabeus (cf. Dn 12 e 2Mac 7). Nada tem que ver a suposta permanência dos mortos no sheol com a idéia da ressurreição.

A afirmação de Qohélet em 9,6b de que os mortos nunca mais terão parte em tudo o que se faz sob o sol absolutamente poderia relacionar-se com uma possível controvérsia, mantida com algum movimento precursor de Daniel 12,2 e de Is 26,19, que defendiam que os justos receberão “uma re­compensa depois da morte, que — naturalmente depois da ressurreição! — deve continuar sobre essa terra”.34 Mas disso não temos provas suficientes.

E bastante tenebrosa e negativa a perspectiva com que termina essa secção 9,1-6. Qohélet não se deixa, porém, arrastar pelo pessimismo e logo manifesta-se como é: um judeu, amante da vida e temente a Deus.

2. Desfrute da vida: 9,7-10

Depois das duras e amargas reflexões de 9,1-6 sobre o paradeiro co­mum de todos os homens, sejam bons, sejam maus, cai bem um descanso: o convite a desfrutar do único que nos está ao alcance, da vida tal que se nos apresenta.

9,7 Vai, come teu pão com alegria e bebe contente teu vinho, porque Deus já aceitou tuas obras.

8 Em todo tempo vista vestes brancas e não falte o perfume de tua cabeça.

9 Desfruta a vida com a mulher que amas todos os dias de tua vida fugaz que Deus te concedeu sob o sol,

33A idéia, que tinham os israelitas do além-túmulo, identificada com a do sheol, não era originária, mas recebida de seu ambiente cultural. R. Martin Achard escreve: “Criam os israelitas, como a maio­ria dos povos primitivos, que se acham reunidos os mortos em vasto território que se lhes reserva, situado em geral debaixo da terra. O mundo dos mortos, o sheol dos hebraicos, é inteiramente compa­rável ao Hades dos gregos e ao Arallu dos assírio-babilônios. Alguns pesquisadores opinam que toma­ram os israelitas essa noção de um reino das sombras concebido por seus vizinhos; mas no caso de se verificar essa hipótese, o empréstimo é muito antigo e talvez date desde a entrada dos hebreus na Palestina” (De la muerte a la ressurrección según el Antiguo Testamento, Madri, 1967, p. 56 [37-65] com abundante bibliografia); ver também P. Grelot, she’ol: Enciclopédia de la Bíblia 6,610; F. Nõtscher, Altorientalischer und alttestamentlicher Auferstehungsglauben, Darmstadt, 212-215; G. Gerleman, sh’l. THAT II, 841-844.

34D. Michel, ZJntersuchungen, 178.

Page 354: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pois esta é tua sorte na vida e em tuas fadigas com que te afadigas sob o sol.

10 Tudo o que podes fazer, faze-o com empenho,porque não há ação, nem cálculos, nem conhecimento, nem sabedoria no abismo para onde te encaminhas.

7 “contente”: lit. “com bom coração”.8 “vista vestes”: lit. “sejam tuas vestes”, “o perfume” é azeite, utilizado na

unção da cabeça e do corpo com fins higiênicos.9 “Que Deus te concedeu”: lit. “que te concedeu”. No v. 9b depois de “sob o

sol”, repete-se kol-yme hebleka (“todos os teus dias fugazes”), que consi­deramos mera ditografia (cf. BHS; A. Bea, Líber, 20). “em tuas fadigas”: lit. “em teu trabalho” (cf. 1,3).

10 “Tudo o que possas fazer”: lit. “tudo o que tua mão encontre para fazer [que é preciso fazer]”, “faze-o com empenho”: lit. “com tua força, faze-o”. “Oráculos”: segundo J. de Pineda “conta e razão” (In Ecclesiasten, 881a). “no abismo”: “no sheol”.

9,7-10. Não é esta a primeira vez que Qohélet convida ao desfrute da vida (cf. 2,24; 3,12-13; 5,17; 8,15).35Mas é a passagem mais longa do carpe diem qoheletiano, a única que está no imperativo, razão pela qual predo­mina o uso da segunda pessoa. Pode-se observar como inclusão o emprego das raízes hlk e ‘sh nos w. 7 e 10.36

7-9. Já conhecemos por passagens anteriores, como acabamos de dizer, esse Qohélet amável e amante das alegrias da vida.37 Anima Qohélet nesses três versículos seu leitor, ou seja, todos os homens, a desfrutar dos prazeres mais simples e universais da vida quotidiana. Não é tão ingênuo para crer que a vida possa converter-se em festim ou banquete perpétuo;38 mas exorta a que façamos com alegria o que necessariamente fazemos todos os dias: comer e beber, a que desfrutemos do prazer duma higiene singela: vestes brancas e cabeça perfumada, e da vida em família com a mulher que amas.

Levando em conta as circunstâncias socioeconômicas do tempo, dirige- se Qohélet a pessoas da classe média alta; mas em absoluto também aos mais pobres podem-se aplicar o conselho de Qohélet à medida de suas possibili­dades. A vida é o bem mais precioso que possuímos. Tudo o que ajudar a

35Cf. Introdução, secção IV 4.36Cf. G. S. Ogden, Qoheleth IX, 1-16, 163. Consignamos, de mais a mais, a advertência que faz E.

Glasser sobre a importância de Qoh 9,7-10: “Importante por seu conteúdo, essa passagem o é também para a estrutura da obra: os w. 7-10 anunciam, com efeito, a matéria da última parte. A exortação que é preciso empreender (v. 10) será desenvolvida na secção 11,7-12,7” (Le procès, 1^6). Segundo N. Lohfink aqui em 9,7 começa a última parte do livro, a parte ética: 9,7-12,7. (Kohelet, 10.67b).

3TVer especialmente o comentário a 8,15.38E tão freqüente na literatura antiga esse gênero de exortações, que se pode falar do gênero

literário banquete; crê N. Lohfink que Qohélet nele se inspira: “Quanto à forma e ao conteúdo, apóia- se 9,7-9 nos cantos, com que em todo o oriente antigo e na antiguidade, convidava-se ao desfrute da vida nos festins” (Kohelet, 70b), e cita como exemplo a epopéia mesopotâmica Gilgamesh e Os cantos do harpista egípcios.

Page 355: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

manter-nos na vida, simbolizado aqui pelo pão e pelo vinho, deve ser motivo de alegria. E na verdade não há nada de mais nosso do que o que comemos e bebemos: nosso pão e nosso vinho; tão nosso que se converte em nós mes­mos.

Costumamos distinguir entre necessidades primárias e secundárias, e entre bens primários e secundários segundo satisfaçam a umas e outras necessidades. O comer, o beber e o vestir-se (do aqui referido) fazem parte das necessidades primárias; mas a maneira de satisfazê-las atinge muitos níveis. Com o desenvolvimento e a civilização, elevamos, os homens, con­sideravelmente esses níveis, e criamos, de mais a mais, outras necessida­des que se podem chamar primárias com relação ao nível alcançado, por exemplo, a cultura. Nos tempos de Qohélet já se tinha conseguido grau ou nível bastante elevado de cultura, se bem que nem todos desfrutassem dele da mesma maneira. O detalhe das vestes brancas e do perfume na cabeça faz parte deste nível elevado de cultura no ambiente determinado da Palestina. O desfrute da vida com a mulher que amas não tem frontei­ra nem quanto à ordem social nem quanto ao nível de cultura alto ou baixo; é simplesmente humano.

Perguntam-se os autores sobre as fontes literárias em que se teria inspirado Qohélet. Uma primeira resposta poderia ser que Qohélet não precisou de nenhuma fonte literária especial de inspiração, uma vez que surge espontaneamente da própria vida o convite ao desfrute dos prazeres mais simples da vida. Prova convincente disso é que não existe nenhuma civilização, conhecida por testemunhos escritos, que não tenha legado tes­temunhos que nos exortam a desfrutar da vida. Por isso mesmo têm razão os que defendem que podemos descobrir em Qoh 9,7-9 influências prove­nientes de culturas estranhas a Israel. No entanto, será necessário cons­tatar, antes de sairmos de Israel, que existe uma forte tradição israelita em que se pode inserir Qoh 9,7-9 com todo direito. Segundo H. W. Hertzberg, a referência ao pão, ao vinho e ao azeite apontam a Palestina, visto que são produtos normais da região.39 Quanto ao vinho e aos banquetes, veja- se Am 6,6; Is 22,13; sobre o uso de vestes limpas e brancas lemos, por exemplo, em Est 8,15: Mardoqueu “esplendidamente vestido de púrpura violeta e linho branco... e manto de linho fino”; cf. Gn 27,27; 41,42. Acerca do uso do azeite para fins cosméticos, como perfume, vejam-se 2Sm 12,20; Jud 10,3; Am 6,6; SI 23,5; Pr 27,9.40

E muito provável que a tradição israelita seja continuação da mais antiga cananéia e síria, como sustenta O. Loretz.41 Tampouco se pode nem

39Cf. Palästinische, 66s; Der Prediger, 179; ver também SI 104,15.40Posterior a Qohélet é Sb 2,7-9, cujo comentário pode-se ver em J. Vílchez, Sàbiduría (1990),158s.41Cf. Altorientalische, 271 (citado por H. P. Mülller em Der unheimliche, 452 nota 41).

Page 356: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

se deve descartar a influência provinda do Egito, especialmente na época helenística.42Mas o lugar paralelo extrabíblico mais citado e conhecido é o poema babilónico Gilgamesh, que na Tabuinha X,3 diz:

“Gilgamesh, para onde corres?A vida que buscas não a encontrarás.Quando os deuses criaram a humanidade, guardaram a vida em suas mãos.Tu, portanto, Gilgamesh, (deixa) que teu ventre se encha,dia e noite diverte-te;cada dia faze uma festa jubilosa,dia e noite dança e toca (música).Que estejam limpas tuas vestes,tua cabeça lavada, estejas bem banhado.Presta atenção ao jovem que toma tua mão.Que tua esposa se deleite em teu seio.Esta é a tarefa da humanidade!”43

O tema naturalmente aparece nas literaturas grega e latina44 e sem dúvida se poderiam aduzir testemunhos de todas as culturas de todos os povos e de todos os tempos até nossos dias.

Sendo assim, postos na perspectiva de Qohélet, “não se vive mais que uma vez: não se tem, portanto, mais que uma oportunidade de ser feliz”.45 Portanto, é lógico que Qohélet pense que a alegria, o contentamento, a satisfação, a festa em suma, devam fazer parte de nossa vida, pelo menos nestes momentos privilegiados, poucos ou menos poucos, de que todos po­demos dispor em nossa azarosa vida.

No entanto, distingue-se Qohélet notavelmente de todos os antigos ao convidar à festa e ao desfrute da vida. Em todas as passagens, em que repete esse convite, não falta sequer uma só vez a menção de Deus, que é quem concede esse presente (cf. 2,24; 3,13), outorga a vida (cf. 5,17; 8,15; 9,9), e mostra-se benévolo para com o homem ao aceitar suas obras: por­que Deus já aceitou tuas obras (9,7b).46

A propósito de a mulher que amas (v. 9a) discutiu-se e discute-se mui­to sobre se mulher refere-se à esposa ou a outra mulher. Pelo que tudo indica, a solução não pode vir do próprio texto, já que em hebraico ’ishshsah

42Cf. H. P. Miiller, Neige, 254; Der unheimliche, 452 nota 41, com referência particular ao papiro Insinger e aos Cantos do harpista, cujos motivos sobrevivem nos tempos helenísticos.

43Segundo a tradução de R. Labat; cf. J. de Savignac, Lo sagesse, 320; ANET 90.■“ Cf. Eurípedes, Alcestis, 782-798; Horácio, Odes 15,2; II, 11.14.16s; Sátiras II 2,60s; Marcial, VIII

77,2s.45E. Glasser, Le procès, 143.4eNão estamos de acordo com a interpretação que faz dessas passagens B. Langem IstderMensch

(ThQ), 117, onde fala da “alegria de Kohelet vazia e distante de Deus, se bem que dada e querida por ele”, preferindo, ao meu modo de entender, o Deus de Platão, ao Deus de Qohélet.

Page 357: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sem artigo é termo ambíguo, que pode significar tanto mulher (LXX, Jerônimo) como esposa (Vg).47 Mas, levando-se em conta o ambiente sociocultural de Qohélet, a maioria absoluta dos autores antigos e moder­nos opina, e creio que com razão, que Qohélet está se referindo à própria esposa.48

A mulher que amas: J. de Pineda diz bela e acertadamente que “é perífrase de a esposa querida”.49 Isso mesmo nos recorda a passagem de Ezequiel na qual chama sua esposa de “o encanto de seus olhos” (Ez 24,16 e 18). Qohélet não é misógino, como se repetiu até à saciedade. Se, ao comentar 7,26-29, não se dissiparam todas as dúvidas a esse respeito, creio que com 9,9 fica patente que Qohélet é homem normal ou, se se pre­ferir, fora do normal de seu tempo em sentido positivo.

Devemos notar ainda que detectamos em 9,9 o vocabulário mais au­têntico de Qohélet, nele se concentrando de modo extraordinário múlti­plos temas que percorrem todo o livro. Além dos já comentados, sobres­saem o da fugacidade da vida,50 o da sorte ou pagamento da vida e o das fadigas ou trabalho sob o sol.51

10. Além do desfrute da vida nos prazeres da mesa, nas festas com os amigos e na família (w. 7-9), Qohélet exorta à ação (v. 10), enquanto se pode, ou seja, durante a vida; depois da morte só há morte, não há possibi­lidade de nada, porque cessa absolutamente toda atividade no homem. Uma vez mais Qohélet manifesta seu amor e apreço pelo trabalho, por qualquer atividade produtiva, frisando esse amor com a expressão faze-o com empenho, com todas as tuas forças, pois esta é a afirmação mais firme de que ainda se está vivo, o maior bem do homem e a condição sine qua non para o desfrute e a alegria.52

Expressa-se a razão para isso claramente em 9,10bc. Este é o lugar clássico e único de Qohélet em que fala do abismo ou sheol, lugar para o qual todos estamos a caminho. Já nos expressamos sem rebuços no co­

47Assim N. Lohfink, Kohelet, 70b; todavia, M. J. Dahood crê que ’shh não exige artigo porque em fenício ’sht sem artigo significa “esposa” e não “mulher” (cf. Canaanite-Phoen., 211).

48Cf. J. de Pineda, In Ecclesiasten, 877; H. W. Hetzberg, Der Prediger, 179: “Nada leva a deduzir aqui que se pensa em outra coisa senão na esposa”; A. Lauha, Kohelet, 169: “A doutrina de Kohelet não deixa nenhum espaço para a livre vida sexual”. Contudo, alguns discordam, como Ch. F. Whitley, que, após citar a explicação de M. J. Dahood, continua: “No entanto, não há razões fortes para admitir que Kohelet está se referindo aqui à ‘esposa’; mas se assim fosse, há muitos exemplos no hebraico bíblico em que se usa ‘ishshah sem artigo para ‘esposa’, por exemplo, Gn 21,21; 24,3.37; Lv 20,14” (Kohelet, 80). E em especial R. Gordis, que escreve: “E bastante provável que ‘shh sem artigo signifique ‘mu­lher’ e não ‘esposa’ ” (Koheleth — the man, 306).

i3In Ecclesiasten, 877b.50Duas vezes aparece o tema, se admitirmos como autêntico o que nas notas filológicas considera­

mos ditografia: “todos os teus dias fugazes”.51Desses temas já falamos antes; ver 5,17 e lugares ali citados.52Veja-se nosso Excursus III.

Page 358: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mentário a 9,5-6 sobre o que pensamos sobre a idéia que Qohélet se faz dos que morreram. Repetimos aqui em parte o que já dissemos e o comple­tamos, se é que é necessário.

E opinião comum entre os intérpretes que Qohélet em 9,10 apenas repete o ensinamento tradicional em Israel sobre o estado dos mortos no sheol (cf. SI 88,12-13; 115,17; Jó 10,21.22, etc.).53 Sendo assim, Qohélet frisa a ausência absoluta de qualquer atividade entre os mortos no sheol; ali não há possibilidade de agir em nenhuma esfera propriamente huma­na: nem na do entendimento (nem cálculos, nem conhecimento, nem sabe­doria), nem na da vontade (nem esperanças [w. 4-5], nem amores, nem ódios, nem paixões [v. 6], sequer na esfera da atividade física (nem ação [v. 10]). O morto está verdadeiramente morto. Por isso me pergunto, como o fazia ao comentar 9,6, se essa suposta permanência dos mortos no sheol para Qohélet “merece o nome de existência, e de existência humana... Eu afirmo que é nada e somente nada”.54

3. Incerteza e insegurança: 9,11-12

Começa o autor nova observação que se estende até a próxima no v. 13; inicia com expressão já conhecida shabti (cf. 4,1.7). Ele volta a usar a primeira pessoa, como em 9,1, e no v. 11 vale-se de novo do recurso estilístico da enumeração, como em 9,2, para expor uma série de paradoxos, cujo sentido o homem não compreende. O v. 12 ressalta magistralmente a im­potência do homem diante de seu destino imprevisível.

9,11 Eu vi outra coisa sob o sol:que a corrida não a ganham os mais velozes,nem a batalha os mais fortes,nem é para os sábios o pão,nem para os inteligentes a riqueza,nem para os expertos o favor,porque o tempo e a sorte alcançam a todos.

12 Porque, ademais, o homem não conhece seu momento: como peixes que foram apanhados na rede funesta e como pássaros presos no laço, assim são apanhados os homensquando um mau momento cai sobre eles repentinamente.

53Escreve R. Gordis, por exemplo: “Koheleth em geral adere à antiga concepção hebraica (e semita) do além como uma existência vaga, tenebrosa, carente de interesse e atividade” (Koheleth— the man, 307).

MR. Kroeber afirma sem titubear que “o sheol em Qohélet está livre de representações míticas e não passa de designação alegórica da morte” (Der Prediger, 151); cf. A. Lauha, Kohelet, 170: sheol é igual a estar morto; e ainda mais terminantemente J. L. Crenshaw afirma: “Para Qohélet, o sheol era o lugar do nada” (Ecclesiastes, 163).

Page 359: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

11 “Eu vi outra coisa”: shabti wera’oh, verbo finito seguido de infinitivo absoluto (cf. Bo Isaksson, Studies, 67s). “a corrida não a ganham”: lit. “a corrida não é para...”, “os mais velozes..., os mais fortes...”: lit. “os velozes..., os fortes...”. Diz-nos, porém, F. Ellermeier que “devem-se tra­duzir os conceitos no superlativo..., como dizemos dos alunos: não são sempre os melhores que triunfam na vida” (Qoh 1/1, 245).

12 “seu momento”: lit. “seu tempo”, “assim são apanhados”: lit. “como es­tes são apanhados”. Sobre yuqashim (particípio qal ou pual) Ch. F. Whitley crê que “é possível aceitar o texto atual em vista de que omdo particípio pual caiu às vezes, como, por exemplo, Ex 3,2 [’ukkal]” (.Koheleth, 81). “os homens”: lit. “os filhos do homem”, “quando o mau momento cai...”: lit. “num mau momento, quando cai...”.

9,11-12. Os dois versículos formam unidade minúscula, bem encaixa­da no contexto próximo tanto quanto à forma,55 como quanto ao conteúdo que prolonga com variações o tema dos w. 1-6: as incertezas e inseguran­ças do homem na vida, depois das exortações de 9,7-10.

11. Depois de recordar o sheol, lugar sem retorno, volta Qohélet a seu meio natural: sob o sol, para comunicar-nos outra de suas experiências. Apresenta-se essa, como ele costuma fazer, em forma de observação re­pousada e profunda. A observação é muito ampla, pois parece que a inten­ção de Qohélet é fazer juízo bastante geral sobre a vida humana. O veredito é muito negativo, à medida que detecta as clamorosas incoerências que vigoram e dominam na vida social que nos foijamos, os homens.

Os cinco exemplos do v. 11 podem-se distribuir em dois blocos. Os dois primeiros: a corrida e a batalha, referem-se à guerra;56 os outros três: os sábios, os inteligentes e os expertos, à paz. A força da quíntupla observação ra­dica na não-correspondência do segundo termo com o primeiro, quando normalmente se deveria dar correspondência recíproca: as corridas ga­nham-nas em boa lógica os mais velozes, e as batalhas, os mais fortes; e, segundo as regras ou normas sábias, pelas quais se rege a sociedade bem organizada, os mais preparados deveriam prosperar em todas as esferas da vida privada e pública: assim sendo, merecem os sábios que se lhes assegure o alimento necessário; os inteligentes, o sucessso nos negócios e por conseguinte as riquezas; devem-se reconhecer aos expertos, ou mais preparados para aconselhar em assuntos importantes e delicados, o pres­

55Sábios (v. 11a) — sabedoria (v. 10b); a raiz yd‘: expertos (v. 11b) — conhecimento (v. 10b). Quanto ao contexto remoto dentro do capítulo 9 cf. G. S. Ogden, Qoheleth IX, 1-16, 165.

56Alude Qohélet, com a corrida, aos jogos atléticos, praticados pelos gregos nos ginásios e em especial os jogos olímpicos? O mais provável é que Qohélet tivesse conhecimento dessas práticas tão difundidas no mundo helenístico, ainda que na Judéia só vieram a estabelecer-se muito depois (cf. lMc l,14s; lMc 4,12). Para entender a passagem, não se requer em absoluto a referência direta às competições atléticas, pois todo guerreiro tinha que correr e muito nas escaramuças bélicas.

Page 360: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tígio e a fama. Não é isso, porém, que Qohélet constata no mundo em que vive, mas muito pelo contrário.

O linguajar de Qohélet é verdadeiramente retórico, e mais próprio do mestre de sabedoria que deseja demonstrar uma tese, que do observador imparcial da realidade. Todos os exemplos são fracassos, sem que se consi­ga sequer um sucessso. Encontramos a razão de tudo no final do versículo: o tempo e a sorte.

O tempo {‘et): conceito bem conhecido dos leitores de Qohélet (cf. 3,lss) como “momento adequado” ou “ocasião oportuna”. O segundo elemento da sentença: pega‘ (cf. lRs 5,18): “sucesso”, “sorte”, “casualidade”, é muito importante, porque matiza o primeiro, de forma que houve quem visse aí uma hendíade,57 ou ao menos “conotações negativas”.58 O tempo e a sorte são, portanto, dois elementos que intervêm como variáveis importantíssi­mas em todos os momentos e atividades dos homens: alcançam a todos, e o homem não as pode absolutamente controlar. Pelo contrário, está à mer­cê deles o homem, razão pela qual o resultado final de tudo o que fizer ou empreender sempre será imprevisível. Nem o tempo nem a sorte precisam significar diretamente o destino mortal dos homens, podem, porém, manifestá-lo segundo as circunstâncias.59

12. Liga-se bem o versículo com o final do anterior: ao tempo do v. llg corresponde o tempo ou momento do v. 12a e c; por isso mesmo o v. 12 dá forma ao que ficara indeterminado no v. 11 e concretiza-o. Se o homem não pode prever o que lhe vai acontecer em futuro incerto, é porque não conhe­ce o momento que lhe é propício nem quando lhe tocará o tempo adverso ou o mau momento; estaria preparado, em caso contrário, para não ser pego de improviso como ocorre com o peixe e o pássaro.

Tomam-se as duas comparações da prática da pesca e caça, freqüentes na Palestina. O autor não só faz as comparações; também as aplica ao ho­mem e as explica. Delas não é lícito deduzir que seria o destino do homem na vida como o dos peixes na água e dos pássaros na natureza aberta, ne­gando qualquer possibilidade de liberdade verdadeira. Trata-se de compa­rações e não de definições filosóficas. Em todo caso, a visão de Qohélet sobre o homem, sobre todo homem na vida é bastante sombria e fatalista. O que, porém, não é nenhuma novidade; já o dissera no poema de 3,lss.

O ser pego dito dos homens refere-se somente aos momentos de des­graça, quando um mau momento cai sobre eles. Dever-se-á fazer uso, nos demais momentos da vida, da filosofia prática de Qohélet, a saber:

57Cf. E. Glasser, Le procès, 147: “contratempo”; A. Lauha, Kohelet, 173.58R. Gordis, Koheleth — the man, 307.“ Contra a interpretação de G. S. Ogden em Qoheleth IX, 1-16,165; cf., todavia, N. Lohfink, Kohelet, 71.

Page 361: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

aproveitá-lo o máximo possível para desfrutar em paz e harmonia dos dons que cada dia Deus nos regala.

4. A sabedoria e o poder: 9,13-16

Sabe-se que a sabedoria antiga (e os sábios) em Israel e em todo o oriente médio antigo (semita e não-semita) esteve muito ligada ao poder: nas cortes de reis e potentados os sábios eram ministros e conselheiros. A tradição, por conseguinte, atribuía muita importância ao poder da sabe­doria e dos sábios em vista da influência que exerciam sobre os que deti­nham o poder. Qohélet, porém, vai desiludir em 8,13-16 seus contemporâ­neos que ainda continuavam pensando dessa maneira.60

Qoh 9,13-16 forma uma pequena unidade, que se pode identificar bem por seu conteúdo: o exemplo do sábio pobre perante o poder, e por sua estrutura: tema no v. 13; ilustração nos w. 14-15, e conclusão no v. 16.61

Pergunta prévia à interpretação de 9,13-16 é se se trata no trecho de fato histórico e real que ainda se recorda, ou, se não é antes um caso de ficção literária, que Qohélet aduz para demonstrar sua tese acerca da des­valorização da sabedoria perante o poder real e fático. Na história da in­terpretação dessa passagem defendeu-se tanto a historicidade de 9,13­15,62 como sua não-historicidade.63 Esse segundo modo de ver considerou9,13-15(16) como exemplo, anedota ou parábola, paradigma.

9,13 Também observei sob o sole foi para mim exemplo de sabedoria importante:

14 Havia uma cidade pequena e nela poucos habitantes; veio contra ela um rei grande; cercou-a e construiu diante dela grandes fortificações.

15 Encontrava-se nela um homem pobre mas sábio que teria podido salvar a cidade com sua sabedoria; mas ninguém se lembrou daquele homem pobre.

16 Então eu me disse:A sabedoria é melhor que o poder, mas a sabedoria do pobre é desprezada e ninguém faz caso de suas palavras.

13 “para mim”: li, que substitui ’elay do TM, formou-se pela repetição do alef precedente (cf. A. B. Ehrlich, Randglossen, 95; G. R. Driver, Problems, 231). “um exemplo de sabedoria importante”: lit. “sabedoria e grande”.

60Cf. R. Braun, Kohelet, 73; N. Lohfink, Kohelet, 72b.61Cf. G. S. Ogden, QohelethlX, 1-16,166.62Praticamente todos os intérpretes até os tempos modernos. Tentou-se muito seriamente identi­

ficar o episódio narrado com algum fato histórico bíblico ou extrabíblico.63Entre os modernos é a sentença dominante. Dão resumos das sentenças J. A. Loader, Polar, 23­

24 e Bo Isaksson, Studies, 97.

Page 362: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

15 “Encontrava-se”: umaça’ (suprimimos a copulativa e por razões de esti­lo). Discutiu-se muito sobre esse verbo umaça’. A versão grega LXX considerou-o Qal perfeito ativo, cujo sujeito é o rei do versículo anterior: “o rei encontrou”. Mas essa solução foi descartada porque não se encai­xa o sentido no contexto narrativo. Tanto as outras versões como a generalidade dos intérpretes dão-lhe sentido passivo. Isso levou alguns a mudar o texto para Nifal: nimsa’ (cf. BH, não BHS), ou a considerá-lo Qal passivo, mudando a vocalização: perfeito muça’ (cf. J. M. Dahood, The Phoenician, 278; Ch. F. Whitley, Koheleth, 82), particípio masu’(cf. G. R. Driver, Problems, 231). Prefiro a sentença de R. Gordis que afir­ma: “Em 9,15 umaça’ é um exemplo de autêntica construção hebraica impessoal (cf. Gn 48,1.2), e não há necessidade de postular aí um Qal passivo obsoleto para criar paralelo com o ugarítico” (Qohelet and, 399); ver também H. W. Hertzberg, Der Prediger, 182s, onde se aduz a auto­ridade de Ges.-K., 144d. Resumo de opiniões em Ch. F. Whitley, 81s. “e ele teria podido salvar (umillat-h’)’ a maioria dos autores com­preende assim o perfeito millat, como perfeito ou mais-que-perfeito po­tencial (cf. Ges.-K., 106p; H. W. Hertzberg, R. Kroeber, A. Bea, W. Zimmerli, K. Galling, A. Lauha, N. Lohfink [alternativa], D. Michel). Este é o único sentido com que se explica satisfatoriamente o v. 16. O pronome pessoal, acrescentado ao verbo, pode não ser enfático, mas “em 9,15 hu’ é enfático: esse pobre homem era capaz de salvar a cida­de” (R. Gordis, Koheleth — the man, 105).

16 “ninguém faz caso de suas palavras”: lit. “e suas palavras não são escu­tadas”.

9,13-16. Qohélet ilustra magnificamente com esse exemplo parabóli­co a nula eficácia da sabedoria (e dos sábios) se não acompanhada de po­der real, ainda que por si pudesse ser causa de salvação.64

13. O versículo introduz a narração parabólica, convertendo-a em ob­jeto de sua nova observação.65 Qohélet chama o que observa de exemplo de sabedoria, que extrapola ao normal e é muito importante, razão por que enriquece muito seu espírito, aumentando o acervo de sua experiência e saber.

14. Havia uma cidade... A narração começa com fórmula muito pareci­da à de nossos contos: “Era uma vez...”, e desempenha efetivamente a mesma função.66 O que se vai contar não precisa ter existido, ainda que sejam verossímeis todos os traços presentes em a narração. Foi isso que confundiu tantos intérpretes que tentaram ou ainda tentam identificar essa pequena cidade.

“ Cf. H. W. Hetzberg, Der Prediger, 185; K. Galling, Der Prediger, 115; A. Lauha, Kohelet, 175. 65Cf. A. Barucq, Ecclésiaste, 164 (Eclesiastés, 158); R. Braun, Kohelet, 73; J. A. Loader, Polar, 24;

W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 230.“ A. Lauha, Kohelet, 177; D. Michel, Qohelet, 161.

Page 363: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Um rei grande-, os autores costumam recordar que basileus megas era um título que se dava aos reis assírios e, nos tempos de Qohélet, aos reis helenísticos.67No conto, o título de grande é muito apropriado ao rei que vem apoderar-se de cidade pequena. O autor joga nesse versículo 14 com os antônimos pequeno — grande: cidade pequena — rei grande, grandes fortificações; diante dos poucos habitantes supre a imaginação os muitos guerreiros que acompanhariam o rei grande.

15. O antagonista verdadeiro do rei grande nessa narração não é a cidade, nem seus poucos habitantes, e sim esse homem pobre mas sábio que se encontrava na cidade. Aqui está o elemento-surpresa da narração, que supre o mágico em todos os contos. Porque esse homem pobre teria podido salvar a cidade com sua sabedoria das garras do poderoso rei, ape­sar de seu exército e de suas armas. O modo como o teria logrado não se explica nem interessa saber, segundo a lógica dos contos. O ensino que Qohélet deseja dar reside precisamente aqui: postas frente a frente a for­ça bruta dos soldados e das armas, de um lado, e a sabedoria inerme, de outro, essa sai vitoriosa, como se dirá no v. 16 e se repetirá no v. 18.

O grande erro daqueles cidadãos foi não ter sabido descobrir o sábio, que os teria podido salvar e não os salvou, porque era pobre. Essa é a acerba crítica de Qohélet a seus contemporâneos, e também aos nossos: ter identificado sem mais a riqueza e o poder com os únicos valores que salvam e beneficiam o homem, e não ter reconhecido que os verdadeiros valores humanos podem estar desprovidos dos falsos brilhos do poder, da fama, do nome, como o estava naquele homem pobre mas sábio de que ninguém se lembrou.

16. Qohélet propõe conclusão no v. 16 em forma de monólogo: eu me disse, na primeira pessoa como estava na introdução do v. 13. A sabedoria é melhor que o poder: o provérbio resume o ensinamento dos w. 13-15 e equivale ao provérbio “mais vale manha que força”. No caso presente, su­põe-se que a sabedoria é a do homem pobre que se encontrava na cidade, e o poder o dos cidadãos que resistiram, mas não puderam com o rei grande-, a não ser que sutilmente se esteja referindo ao poder e à força do rei que conquistou a cidade como símbolo de todos os que dominaram pela força o povo judeu.

O solilóquio ou o monólogo de Qohélet termina com a amarga constatação de que a sabedoria do pobre é desprezada e que normalmente se demonstra não se fazendo caso de suas palavras, de seus conselhos. Jesus ben Sira no-lo disse de outra maneira: “Fala o rico, e o escutam em

67Cf. H. Lohfink, Kohelet, 72b.

Page 364: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

silêncio, e põem nas núvens seu talento; fala o pobre, e dizem: quem é este?” (Eclo 13,23).

5. Fraqueza da sabedoria: 9,17-18

Os dois versículos que compõem essa secção contêm vários provérbios parecidos quanto à forma (melhor que...-, em hebraico evidente no v. 18, implícito no v. 17), mas que o autor uniu em razão de seu conteúdo. Dá com eles por terminadas as reflexões do capítulo IX68 e liga-se ao mesmo tempo com o versículo seguinte (10,1) quanto ao sentido. E costumeira essa técnica em Qohélet (cf. 8,16-17).69

9,17 As palavras tranqüilas dos sábios escutam-se melhor que os gritos de um capitão de néscios.

18 Melhor é sabedoria que armas de guerra, mas uma só falha põe a perder muito bem.

17 “tranqüilas”: lit. “com tranqüilidade”, “de um capitão de néscios”, ou então: “de um chefe ou poderoso entre néscios”.

18 “falha” ou pecado corrige o TM hote’: “pecador”, por het: “falha, erro, pecado”.

9,17-18. O autor já demonstrou na perícope anterior que a sabedoria por si mesma não pode resolver os problemas graves dos homens, precisa­mente por causa de sua nescidade; insiste-se de novo, nos versículos pre­sentes, em que a sabedoria ainda pode fracassar por falhas humanas, mesmo sabendo que ela vale mais que as próprias armas.

17. Este versículo nada tem que ver com o contexto precedente; só motivos meramente formais: repetição de palavras, foram a causa de ele ocupar este lugar. Ao não escutar as palavras do sábio no v. 16, corresponde o escutar as palavras do versículo presente; mas o contexto pressuposto nos dois versículos são muito diferentes. A interpretação deverá ser por conseguinte independente.

O autor joga no v. 17 com os contrastes: às palavras tranqüilas con­trapõem-se os gritos-, aos sábios o capitão de néscios. Pode-se supor facil­mente que a atitude dos sábios seja de sossego, paz e tranqüilidade, diver­samente da do capitão que grita, que é de violência, furor e ira. É natural, nessas circunstâncias, que se escutem e se aceitem com mais boa vontade

680s w. 17-18 estão, outrossim, intimamente unidos ao que precede: palavras (w. 17a e 16b); sábios/sábio (w. 17a e 15a); escutam-se (nishma‘im: v. 17a) / ninguém faz caso (‘enam nishma‘im: v. 16b); melhor (w. 16 e 18 duas vezes); sabedoria (w. 18a e 16 duas vezes).

69Emtodo caso, é preciso reconhecer que 9,17-18 não é um modelo decomposição, como demonstra a falta de acordo entre os autores na hora de determinar os limites da perícope (cf. G. S. Ogden, Qoheleth IX,17 — X,20, 28s. 31).

Page 365: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

as palavras medidas e sossegadas do sábio, que os gritos ruidosos dum furibundo entre néscios. J. de Pineda parafraseia saborosamente a passa­gem: “Fez mais o sábio com meia palavra que o governador com seu vozerio e seus gritos”.70

18. Esse versículo é uma espécie de conseqüência lógica do v. 17, pois “os sábios” chamam à sabedoria, e “um capitão” às armas de guerra. Mas revela-se também como variante do v. 16b, uma vez que, se “a sabedoria é melhor que o poder” (v. 16), melhor é sabedoria que armas de guerra, en­tendendo por armas de guerra uma forma concreta de poder. Dessa forma pelo menos insere-se 9,18a bem no contexto.

O provérbio, em si e isoladamente, tem valor e sentido e não perdeu mas aumentou sua vigência apesar dos séculos transcorridos. Constata­mos infelizmente em nosso tempo que a sabedoria está a serviço do poder, que se empregou a inteligência dos sábios mais para o progresso das armas que para a qualidade da vida das pessoas. Só indiretamente se beneficiou a humanidade do que em princípio estava dirigido à morte e destruição. Provavelmente não teria a ciência adiantado tanto em nosso século se não fosse pela pesquisa de novas e mais poderosas armas de guerra. Pe­las conseqüências fatais dessas armas deu-se razão a Qohélet, pois che­gou-se precisamente à conclusão de que vale mais a sabedoria do que as armas de guerra, uma vez que com a sabedoria mal empregada o homem pode chegar a descobrir outras armas de guerra ainda mais poderosas. Terrível constatação se é que os homens não mostram um pouco de cor­dura. Por sorte, parece que por ora (1993) se freou a corrida para a des­truição na qual alguns loucos, mas poderosos, tinham embarcado a huma­nidade inteira; ainda que para tanto tenha influído mais o medo que a sabedoria.

Em Sb 6,24 lemos que “multidão de sábios salva o mundo”. Pode ilu­minar esse provérbio a passagem que comentamos. A propósito de Sb 6,24 escrevia eu não faz muito tempo: “Na primeira parte do livro [da Sabedo­ria] identificava-se o sábio com o justo (cf. Sb 4,16s). Neste sentido pode afirmar o autor com toda razão que uma multidão de sábios é a salvação do mundo, sobretudo se recordarmos o dito em Sb 5,23c.d, que é como que o negativo da afirmação do v. 24: ‘A iniqüidade arrasará toda a terra e os crimes derrocarão os tronos dos soberanos’. ...O sábio não pode desdenhar nenhum conhecimento sobre o mundo a que possa chegar a mente huma­na (cf. Sb 7,17ss; lRs 5,9-14). O conhecimento da criação enobrece aquele que é rei da criação (cf. Sb 9,2), e a ciência verdadeira não se opõe aos valores humano-divinos, mas, pelo contrário, os corrobora. Também é ver-

nIn Ecelesiasten, 922a.

Page 366: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dade neste sentido que a multidão dos sábios ajuda a aclarar as ambigüi­dades que podem levar o homem a cometer graves erros históricos, espe­cialmente os relacionados com a injustiça e opressão, constituindo assim a salvação do mundo”.71

O segundo hemistíquio do v. 18 confirma o que acabamos de dizer; sublinhado com o mas adversativo. A leitura escolhida parece mais prová­vel que o TM, porque assim se introduz no versículo um elemento pessoal: “um pecador”, diante de sabedoria, abstrato. Em todo caso, afinal é pouco relevante que se trate de uma falha ou pecado (uma ação), ou de “um pecador” (um autor), uma vez que não varia o sentido: tanto uma só falha como “um só que falhe oú aja mal” numa cadeia de atos, põem tudo a perder. Nosso J. de Pineda volta a nos esclarecer com um exemplo cava­lheiresco e bélico ao mesmo tempo: “Um único cravo arruina a ferradura do cavalo; a ferradura o cavalo; o cavaleiro a cidade; a cidade o reino”.72

Introduz assim Qohélet o elemento que une 9,18 com 10,1, como vere­mos em seguida.

X. VARIAÇÕES SOBRE TEMAS DE SABEDORIA TRADICIONAL (10,1-20)

Ao começar o estudo de Qoh 10,1-20, temos que nos perguntar antes de tudo porque propomos estes 20 versículos em certo sentido como bloco. Sabe-se que os autores não consideram este capítulo 10 como unidade literária maciça e indiscutível, nem nós tampouco; mas dão-se diferenças muito notáveis entre uns e outros. Assim, por exemplo, G. A. Barton crê que 9,17-10,20 é formado em partes iguais por material de Qohélet e de um glosador;1 A. B. Ehrlich duvida seriamente de que haja alguma maté­ria de Qohélet a partir de 10,8 até o fim do livro, pois, segundo ele, todo esse trecho foi formado por acumulação de acréscimos e interpolações;2 K. Galling, com muitos outros, considera que 9,17-10,20 tem a unidade que lhe dá o fato de ser “a livre compilação de diversos provérbios”,3 de mate­rial tradicional. Esta é a sentença dominante.4

71J. Vílchez, Sabiduría (1990), 242.12In Ecclesiasten, 924b.

lCí. A criticai, 165.169.2Cf. Randglossen, especialmente p. 98; ver R. Gordis, Koheleth — the man, 317.3Der Prediger, 116; cf. W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 232.40 juízo de R. Gordis é que “a variedade de conteúdo e a falta de organização lógica nessa secção

[10,2-11,6] eram normais na literatura da sabedoria oriental, como demonstram o hebraico Livro dos Provérbios e o egípcio Máximas de Amenemope” (Koheleth — the man, 317).

Page 367: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

G. S. Ogden fez esforço pouco comum ao defender a unidade de 10,1- 20;5mas o mais que conseguiu foi demonstrar unidade meramente formal, a que proporcionam várias inclusões em sentido lato, ou seja, a referência a moscas em 10,1a, à serpente em 10,8.11, e a pássaros em 10,20, ou, como ele escreve: “Mediante as inclusões 10,1.8-11.20 mantém-se unido o mate­rial, que à primeria vista parece díspar e desconexo”.6

Levando em conta as observações anteriores, dividiremos o capítulo em perícopes breves, a saber: 10,1-3; 10,4-7; 10,8-11; 10,12-15 e 10,16-20. Ao longo do estudo tentaremos detectar as relações íntimas que as unem e que fazem do capítulo X algo mais que mero mosaico literário.

1. A nescidade (o néscio) perante a sabedoria (o sábio): 10,1-3Estabelece-se manifesta e brevemente, nesses versículos, dupla antí­

tese, em que é maior a atenção à nescidade e ao néscio que à sabedoria e ao sábio.

10.1 Moscas moribundas fazem com que cheire mal, que fermente o óleo do perfumista;um pouco de nescidade é de mais peso que a sabedoria, que a honra.

2 A mente do sábio vai à sua direita,a mente do néscio vai à sua esquerda;

3 ademais, por qualquer caminho por que vá o néscio, falta-lhe a sisudez; e diz a todos: “É um néscio!”

10.1 Todas as versões antigas conservam 2fbube mawet, mas põem no plu­ral os dois verbos seguintes. Entre os autores modernos, fizeram-se essencialmente duas propostas que não mudam o texto consonântico, porém o modo de dividir as consoantes e a vocalização: la.) 2fbubyamut: “uma mosca que morre” (cf. K. Galling, Der Prediger, 116; A. Lauha, Kohelet, 179.180); 2a.) z?bub met: “uma mosca morta” (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 42, que acrescenta: “Em ortografia fenícia as con­soantes mt poderiam estar pelo particípio mt ou pelo nome absoluto hebraico mwt)”. Essa segunda leitura é aconselhada por BHS e de fato aceita por muitos autores em suas versões.Cremos, porém, que não é preciso inventar nenhuma justificação para mudar ou eliminar os dois verbos que seguem no singular, ainda que seja contrário o testemunho das versões antigas, pois encontra-se essa irregularidade também no hebraico clássico (cf. Ges.-K., 145,5; F. Delitzsch, Commentary, 371; R. Gordis, Kokeleth — the man, 314). Sobre shmn rwqh escreve M. J. Dahood: “Essa expressão é idêntica ao ugarítico shmn rqh ‘óleo de perfumista’. O nomen opificum rqh encon­tra-se em fenício e em púnico não menos de cinco vezes” (Canaanite- Phoen., 212; cf. também The Phoenician, 278).

5Cf. G. S. Ogden, Qoheleth IX17-X20, pp. 31-32.6Qoheleth I X 17-X 20, p. 37; resumo de pareceres sobre os limites da perícope e de seu grau de

integração pode-se ver nas pp. 27-29.

Page 368: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“um pouco de nescidade”: lit. “nescidade pequena”.A tradução de yaqar por “estimado”, “precioso” não tem sentido; tem sentido, porém, se traduzirmos por “grave”, “pesado” (cf. verbo yaqar). Sendo assim, já não é necessário corrigir o TM.2 “a mente” duas vezes: lit. “o coração”.3 “por qualquer caminho...”: lit. “no caminho, quando o néscio cami­nha”; já que keshe em keshskl equivale a k sher: “quando”. Quanto ao Qerê keshessakal e ao Ketib keshassakal (composto de Qerê e da varian­te kehassakal, ver BHS), os dois são válidos, “em todo caso, parece pre­ferível o Ketib que incorpora o artigo” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 84) e também “por motivos eufônicos, ao separar as duas sibilantes” (R. Gordis, Koheleth — the man, 318).“falta-lhe sisudez”: lit. “seu coração é deficiente”, “diz a todos”: desta sentença fizeram-se muitas versões; asssim Vg traduz: omnes stultos aestimat e São Jerônimo aceita a interpretação de Símaco: suspicatur de omnibus quia stulti sunt. Quanto ao sentido, são muito poucas as variações, exceto na LXX; preferimos o que parece mais fiel ao TM (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 193; Cf. F. Whitley, Koheleth, 84).

10,1-3. Recorda-nos essa breve perícope o tema dos versículos ime­diatamente precedentes, 9,17-18: a fraqueza da sabedoria, e desenvolve-o confrontando a sabedoria com seu antagonista natural, a nescidade. Mas descè o autor ao concreto, para não ficar em meras especulações. Surge Qohélet aqui e nas perícopes seguintes como verdadeiro mestre de sabe­doria que lança suas raízes no humus da tradição.

1. Absolutamente, 10,1 poder-se-ia unir a 9,18b, como de fato o unem muitos autores, pois confirma-se no versículo que uma coisa pequena, de pouco valor e desprezível (moscas ao ponto de morrer), põe a perder algo de muito valor e precioso (um perfume). É preferível, porém, separar 10,1 de 9,18, ainda que o argumento anterior prove a conexão lógica que existe entre o final do capítulo IX e o começo do X.

10,1 compõe-se de duas sentenças: a primeira constata uma observa­ção (v. la), a segunda está formulada de modo proverbial (v. lb); sob o colo­rido da observação e além da sentença proverbial, faz o autor crítica da vida social. Da observação direta no v. la (uma mosca que cai e morre dentro de um vaso de perfume e põe a perder seu valioso perfume) passa ao autor no v. lb ao figurado, ou seja, ao que ocorre normalmente na vida real entre os homens. Segundo uma escala de valores, admitida por todos o menos teori­camente, a sabedoria e a glória ou a honra deveriam ter maior influência, pesar mais nas decisões práticas da vida social que a nescidade ou “a arro­gância da nescidade”.7 Mas a realidade não é essa por desgraça (ou pela

’ Segundo a expressão de F. Ravasi, Qohelet, 306.

Page 369: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

nescidade dos homens), mas muito pelo contrário e com mais freqüência que o que se pode imaginar: um pouco de nescidade decide mais que muita sabedoria, como mais adiante vai confirmar o próprio autor a propósito do governo de um país (cf. 10,5ss). Descobrimos nesse versículo, desse ponto de vista, um indício, ainda que leve, da mão de Qohélet.

2. Também reflete-se neste versículo a doutrina tradicional da escola, e com bastante probabilidade pode até a própria formulação fazer parte da tradição sapiencial.

As duas sentenças, de que consta o versículo, podem fazer parte de qualquer cultura conhecida. E evidente que o autor não dá lição de anato­mia, pondo o coração (a mente) do sábio no lado direito e o do néscio no lado esquerdo. Tampouco se refere, ao menos primordialmente, à esfera da moral, atribuindo à direita o bem e à esquerda o mal moralmente fa­lando. O autor recolhe neste provérbio de dupla face a opinião comum, do ponto de vista prático, de que a sabedoria conduz o homem (o sábio) ao sucesso e a nescidade, pelo contrário, faz com que o homem (o néscio) ter­mine no fracasso. Não se excluem, certamente, nem o bem nem o mal moral, enquanto o bem se considera um sucesso e o mal um fracasso; re­cordemos o juízo das nações em Mt 25,33.

3. O versículo 3 liga-se estreitamente ao v. 2b {ademais), de que se pode considerar ampliação.

O autor faz breve esboço do néscio, descrevendo simplesmente sua atitude, sua forma de proceder, “de caminhar”. O néscio sempre será nés­cio, vá por onde for, faça o que fizer;8 a razão fundamental é que lhe falta a sisudez. Concebe o autor essa falta de inteligência e bom senso como defeito congênito, como segunda natureza. Sendo assim, a deficência mental do néscio volta a pôr a acentuação discursiva fora da esfera da moralidade, confir­mando também de certa forma a interpretação que demos do versículo 2.

Vimos nas notas filológicas que se pode interpretar o v. 3b de várias maneiras. Em qualquer hipótese, o néscio manifesta sua nescidade por seu modo de agir, seja porque sai por aí chamando de néscio o mundo inteiro, ou porque a todos diz que é um néscio ele próprio.

O tema da nescidade com suas manifestações serve de ponte para a secção seguinte.

2. A nescidade no poder: 10,4-7Essa secção distingue-se perfeitamente de seu contexto anterior e

posterior, por tratar-se nela dos que detêm o poder. O trecho 10,5-7 forma unidade literária clara e uniforme, como se vê pelo paralelismo de seus

80 adagiário espanhol diz: “Aunque la mona se vista de seda, mona se queda”.

Page 370: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

versículos, pela dupla antítese e por uma evidente inclusão (vi — vi: v. 5a e v. 7a). 10,4 constitui provérbio independente, mas encaixa-se muito bem no conjunto 10,5-7, razão por que se lhe deve unir, ao menos formalmente, e não se estudar isoladamente.

10,4 Se quem manda se enfurecer contra ti, não deixes teu posto, pois a calma cura graves erros.

5 Há um mal que vi sob o sol,um erro de que é responsável o soberano:

6 A nescidade é posta nos mais altos postos, ao passo que os ricos sentam-se em baixo;

7 vi escravos a cavalo,enquanto príncipes andavam a pé como escravos.

4 “se quem manda”: lit. “se o espírito de quem manda”.5 “um erro”, não “como um erro”, visto que o kaph em kshggh não é de

comparação, mas asseverativo. “de que é responsável o soberano”: lit. “que sai da presença do soberano”.

6 “a nescidade” corresponde ao TM hassekel (abstrato); LXX e Vg tradu­zem “néscio”: sakal (concreto). Neste caso é preferível a lectio difficilior ou o TM que, além disso, é um exemplo de abstrato por concreto, “nos mais altos postos”: Seguimos as versões LXX e Vg, considerando rabbim como adjetivo qualificativo de bmrwmym, mas também poderia relacio­nar-se com o v. 6b e formar par com os ‘shyrym: “nobres, ricos”.

7 “a pé”: lit. “sobre a terra”.

10,4-7. Na secção podemos distinguir bem o conselho do v. 4 da obser­vação que se descreve nos w. 5-7. Pode-se dizer em linhas gerais, que têm na perícope mais presentes os altos funcionários do rei distante que o pró­prio rei, ainda que de nenhuma maneira se exclua certa referência a ele.9

4. O conselho, que se dá nesse versículo 4, retoma-se muito provavel­mente do fundo comum sapiencial, pois o encontramos com variações no próprio livro dos Provérbios.10

Apresenta-se um caso hipotético: Se quem manda se enfurecer contra ti. O mestre ensina aos discípulos, que se preparam para desempenhar cargos públicos de responsabilidade, como comportar-se devidamente em qualquer circunstância, especialmente nas adversas. Quem manda é o chefe; nas províncias são os altos funcionários com poder delegado do rei. No caso de irar-se o chefe e enfurecer-se contra o subordinado, qual deve­ria ser a resposta adequada do inferior, a atitude corrreta a tomar? Qohélet aconselha: Não deixes teu posto. O conselho já o conhecemos, pelo menos

9Desta maneira matizamos as afirmações um tanto radicais de N. Lohfink, quando defende que “aqui não se fala do ‘rei’, mas claramente dos altos funcionários” CKohelet, 74; cf. melek, 542).

10Quanto à interpretação do conteúdo de 10,4, remetemos ao que dissemos antes sobre 8,2-5.

Page 371: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em parte, pois, falando do súdito diante do rei, lemos em Qoh 8,3: “Não te afastes de sua presença precipitadamente”. A primeira coisa a conseguir é não aumentar a ira do superior, pois trata-se de salvar a posição social e talvez a própria vida. Se o inferior fugir precipitadamente, deixa plantado o superior que se enfurecerá ainda mais; é como lançar mais lenha na fogueira. E precico procurar imediatamente acalmar o furor e a ira de quem manda. Conhece-se desde tempos muito antigos a receita para apa­ziguar o irado: diante da dureza a brandura, diante da ira a calma, pois a calma cura graves erros. Pr 15,1 diz: “Resposta branda acalma a ira, pala­vra que fere atiça a cólera”; em Pr 16,14 lemos: “A ira do rei é arauto de morte, o homem sensato consegue aplacá-la”, e em Pr 25,15: “Com paciên­cia se convence a um governante; a língua branda quebra os ossos” (cf. também Pr 15,18).

Perante o capricho e prepotência do mais forte não há defesa mais eficaz que dobrar-se e humilhar-se, como fazem os ramos da flexível e humilde giesta diante do vendaval. Tratava-se nos tempos de Qohélet de sobreviver num mundo em que o poderoso considerava-se onipotente e não respeitava nada nem ninguém.11

5-7. Encontramos nesses versículos o autêntico Qohélet: tanto o voca­bulário como a observação que aí se descrevem são típicos e muito pró­prios de Qohélet.

A observação de Qohélet refere-se sem dúvida ao estado político da comunidade judaica de seu tempo. Ele qualifica a situação como má {um mal), como equivocada {um erro), e por isso de tudo responsabiliza o sobe­rano. Quem é este soberano (hashshalit)? Diretamente só se refere ao de­tentor do poder, e este pode ser ou o oficial de alto gabarito que representa o rei (na esfera política, militar, financeira) ou o próprio rei que confirma e respalda seus representantes.12

Descreve Qohélet plasticamente nos w. 6-7 o que no v. 5 qualificou como um mal e um erro no modo de dirigir a vida pública. O recurso estilístico utilizado é o das antíteses, estática ou em repouso a do v. 6 e dinâmica ou em movimento a do v. 7.

A nescidade é abstrato, ousadamente personificado, como já fez em3,16 com a iniqüidade. Na versão deve-se conservar o original abstrato, para que o recurso estilístico não perca sua força expressiva.

“ Creio que N. Lohfink tem razão ao escrever: “Aqui... se recomenda a cooperação. A alta camada social, a que se dirige Kohelet, devia perguntar-se amiúde se tinha de buscar mais influência política ou antes retirar-se aos assuntos econômicos e ao comércio, e empregar-se unicamente na esfera priva­da ao desfrute da vida” (Kohelet, 74s).

12Até que ponto o rei-soberano, selêucida ou lágida, é verdadeiramente responsável pela nomea­ção de seus representantes, ou, antes tem que aceitar o que as circunstâncias sociopolíticas impu­nham em cada caso, é problema que aqui não podemos resolver.

Page 372: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A surpresa de Qohélet é maiúscula, como a de quaquer observador imparcial: os postos de maior responsabilidade política estão ocupados pela nescidade. O mundo ao revés. Se para algo deve servir a sabedoria é para a boa administração dos povos. Vê Qohélet, porém, com assombro que na frente da administração está a inépcia. Dissemos em várias oca­siões que Qohélet não é profeta, mas neste momento sua atitude é a de profeta; está apontando com o dedo umas das piores cicatrizes da socieda­de: a ineptidão de seus governantes, de que são responsáveis as mais ele­vadas autoridades.

Na segunda face desse primeiro quadro ou antítese (v. 6b) esperar-se- ia que se fizesse menção da sabedoria — o antitético de nescidade — , todavia encontramos ricos que se sentam em baixo. A diferença é dupla: em vez dum abstrato no singular — sabedoria — temos um concreto e no plural — ricos — .Não vamos justificar Qohélet por essa incongruência; tampouco é necessário. Numa sociedade como a de Qohélet só os ricos, os bem situados teriam acesso à instrução e à cultura, que era, na opinião dos sábios, o único meio que possibilitava aos cidadãos governo acertado e justo.

Por outro lado, o fato de Qohélet considerar um mal, um erro (v. 5) que os ricos ocupem o último lugar na sociedade: sentem-se em baixo (v. 6b), que os príncipes andem a pé (v. 7b), enquanto os escravos vão a cava­lo,13 manifesta “seus sentimentos aristocráticos”.14

Portanto, Qohélet testemunha, com seu agudo espírito de observa­ção, que a sociedade de seu tempo está muito mal organizada, que nela reina a desordem.

3. A perícia não exclui o fracasso: 10,8-11

Interrompe-se em 10,8 bruscamente o tema sociopolítico e começa coisa muito diferente nesta perícope 10,8-11; é muito provável, no entanto, que a idéia da desordem, desenvolvida ao longo da primeira perícope anterior (10,4-7), seja o elemento de união com essa nova secção (10,8-11), pois de fato desempenha papel importante a desordem ou o não-devido nas ativi­dades que se enumeram em seus versículos. 10,8-11 forma uma verdadei­ra secção, cuja unidade não se funda no conteúdo, e sim na forma. Consta de dois grupos de sentenças: o primeiro (w. 8-9) é uma série de quatro

13Em tempos muito antigos, a cavalgadura nobre era o asno e o burro (cf. Jr 5,10; 10,4; 2Sm 18,9; IRe 1,38; Zc 9,9); mudou-se posteriormente para o cavalo (cf. 2Cr 25,28; Est 6,8-9; Jr 17,25).

“ Comenta A. Lauha: “A queixa de Qohélet, segundo a qual membros da classe nobre e rica sejam excluídos do poder e de que a nescidade seja premiada com altos postos, delata seus sentimentos aristocráticos” (Kohelet, 184s).

Page 373: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sentenças participiais; o segundo (w. 10-11) constitui-se de duas senten­ças condicionais, relacionadas entre si por uma expressão antitética: yitron — vantagem (v. 10b) e ‘en yitron — não-vantagem, nada vale (v. 11b). Es­tão, por sua vez, os dois grupos estreitamente relacionados e enlaçados: o machado ou instrumento de ferro está explícito no v. 10a e supõe-se implí­cito no v. 9b — o lenhador — , e uma magnífica inclusão abarca a perícope inteira: morder-lhe-á uma serpente (nshk-nhsh: v. 8a) / se morde a serpente Cnshk-nhsh: v. 11a).15

10,8 Quem cava uma fossa, cairá nela,a quem derruba um muro, morder-lhe-á a serpente,

9 quem remove pedras ferir-se-á com elas, quem corta lenha corre perigo com ela.

10 Se o machado está cego e não se amola seu fio, é preciso fazer muito esforço,mas uma vantagem da sabedoria é corrigir.

11 Se morde a serpente antes de ser encantada, de nada vale o encantador.

9 “com elas”: bahem; fazemos notar que o sufixo masculino plural tem por antecedente um nome feminino. Este gênero de concordância não é infreqüente no hebraico em geral (cf. Ges.-K., 135-o) nem em Qohélet em particular, de fato nunca utiliza o sufixo feminino da 3â pessoa plu­ral (cf. M. J. Dahood, Canaante-Phoen., 43).

10 “o machado”: lit. “o ferro”, “não se amola seu fio”: lit. “e ele não afila (suas) faces”. Como solução à dificuldade do v. 10b aceitamos em parte a que dá A. Frendo em The “Broken”, 544s.

11 “antes de ser encantada”: lit. “sem encantamentos”, “nada vale”: lit. “não há vantagens para”, “o encantador”: lit. “o senhor de (o que tem poder sobre) a língua”. Literariamente são notáveis as duas rimas: hannahash / lahash e yitron / hcãlashon.

10,8-11, A série de provérbios que compõe esta perícope revela o meio rural onde se forjou; as atividades que se descrevem são típicas do campo: cavar, derrubar muros ou sebes, remover pedras, cortar lenha, trato com serpentes. Mas chama a atenção que, apesar de serem executadas estas atividades por entendidos e peritos na matéria, nenhuma delas prospera; em todas resulta o que não deveria ser, porque nem sempre a perícia al­cança o sucesso.

8-9. Os quatro provérbios, de que constam esses dois versículos, fo­ram independentes em sua origem. Cada um tem pleno sentido em si mesmo.16 A intenção do autor os justapôs e os uniu, como dizíamos na in-

15Cf. A. Lauha, Kohelet, 187; G. S. Ogden, Qoheleth IX 17-X 20, p. 34; Qoheleth (1987), 168.16Quase com as mesmas palavras encontramos o v. 8a em Pr 26,27a; Eclo 27,26a; para o v. 8b cf.

Am 5,19 e para o v. 9a cf. Pr 26,27b.

Page 374: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

trodução. Todos têm em comum a fina advertência de que não se pode confiar cegamente na perícia pessoal, razão por que é preciso ficar sempre alerta e jamais depor a vigilância nem descuidar da devida atenção ao que se faz; do contrário, pagar-se-á muito caro, pois pode-se cair no buraco que a própria pessoa cavou; o que é ainda pior, pode a serpente, escondida entre as pedras, morder quem muito confia; podem as pedras esmagar-lhe a mão ou algum dedo; pode a ferramenta deslizar e ferir o lavrador.

Como se deduz do anterior, para compreender corretamente o sentido dos provérbios que ameaçam com eventual desastre, devem completar-se, pelo menos mentalmente, por um condicional, ou seja, “se se descuida” ou algo semelhante.

10-11. A condicional que se deve pressupor nos w. 8-9 está explícita nestes dois versículos.

O provérbio do v. 10a apresenta um caso evidente e elementar, mas compensa-se de fato pela dificuldade de 10,10b.17 Parece que a versão que preferimos resolve a dificuldade que outros têm encontrado e quanto ao sentido está conforme com a idéia aglutinadora dos outros provérbios. A arte do lavrador, que faz uso de seus instrumentos de trabalho — aqui o machado — de modo racional, com sabedoria, evita o desgaste do esforço inútil. Certamente um ponto a favor da sabedoria.

Ponto que não se pode pôr na conta do encantador de serpentes (cf. Eclo 12,13) que, apesar de sua reconhecida perícia em dominar a astúcia da serpente, pode falhar e falha, com efeito, infelizmente com grave perigo para sua vida. E nesse caso que mais claramente aparece confirmado o título que demos a essa perícope: “A perícia não exclui o fracasso”.

E nova e peremptória chamada à vigilância constante e à atenção em tudo o que fazemos, mas com a segura convicção de que também nisso podemos fracassar: pensamento totalmente concorde com o modo de pen­sar de Qohélet.

4. Palavras do sábio, palavrório do néscio: 10,12-15

Reaparecem em confronto o sábio e o néscio em 10,2-3.O motivo, pelo qual essa pequena coleção ocupa o lugar atual, talvez

se possa descobrir considerando o texto hebraico, pois, como se vê pelas notas filológicas, a correspondência literal do final do v. 11 é: “senhor da língua”, e o começo do versículo 12: “as palavras da boca do sábio”.

17Alguns autores exageram ao ponderar a dificuldade lingüística de 10,10: “Lingüisticamente este é o versículo mais difícil do livro” (G. A. Barton, A criticai, 177); cf. J. J. Serrano, Qohélet, 575; Ch. F. Whitley, Koheleth, 86.

Page 375: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

10,12 As palavras do sábio ganham estima,mas os lábios do néscio lhe causam ruína;

13 seu exórdio é uma nescidade, sua conclusão, loucura funesta.

14 O néscio tagarela sem medida;o homem não sabe o que vai acontecer, o que acontecerá depois dele, quem lho anunciará?

15 O trabalho do néscio o afadiga,porque não acerta com o caminho da cidade.

12 “do sábio”: lit. “da boca do sábio”, “ganha estima”: pelo simples subs­tantivo “graça” ou “favor”, “lhe causam ruína” (Pballeíenu): lit. “o ar­ruina” no singular, ainda que fosse de esperar o plural, porque o sujei­to está no plural: lábios. Em hebraico pode-se encontrar forma femini­na singular do verbo com o sujeito no plural (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 86).

13 “seu exórdio”: lit. “o começo das palavras de sua boca”, “sua conclusão”: lit. “mas o final de sua boca”.

14 “tagarela sem medida”: lit. “multiplica suas palavras”.15 A primeira sentença do versículo causou desde sempre muitos proble­

mas aos tradutores e intérpretes (cf. LXX Vg Jer): sujeito masculino Camai) com verbo no feminino (cf. preformativo te); sufixo verbal singu­lar (-nu) com suposto antecedente plural (hakkesilim). Os autores ten­taram solucionar as dificuldades com toda sorte de mudanças no TM; mas também se encontraram soluções sem ter que mudar o texto hebraico. Quanto ao sujeito masculino singular R. Gordis propõe que se assuma “que ‘amai é comum no gênero, como muitos outros nomes” (Koheleth — the man, 100); Ch. F. Whitley por sua vez afirma como possível “que tenhamos que recorrer ao t preformativo de Pyagg nnu um singular masculino de 3a pessoa do tipo *taqtul” (.Koheleth, 88). Complicada parece também a solução ao suposto plural hakkesilim; na realidade não estamos perante um plural, mas um singular: hakkesil com a antiga terminação do caso genitivo y (cf. Ges.-K., 90k-l)” (Ch. F. Whitley, Koheleth, 88), a que se acrescentou um mem enclítico, “que é tão comum no ugarítico e que também se encontrou no fenício e em numerosas passagens bíblicas” (M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 194; ver também R. Gordis, Koheleth — Hebrew, 100; Was Koheleth, 110. “não acerta com o caminho”: lit. “não sabe ir a”.

10,12-15. Qohélet reúne aqui quatro provérbios sobre um tema muito tratado pelos sábios; haure, portanto, na fonte comum da tradição. Mas não esquece Qohélet de apôr sua firma a essa breve coleção (cf. v. 14).

12-13. Que o confronto entre o sábio e o néscio seja assunto freqüen­temente tratado pela sabedoria não nos pode estranhar, antes seria o con­trário que deveria admirar. Quanto às palavras de um e outro, ver, por exemplo, o que dizem Pr 13,3; 14,3; 21,23. Apesar de nossa cultura não ser mais oral, mas sobretudo escrita e visual, ainda podemos compreender o

Page 376: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

significado especial da palavra em outras culturas que se fundam quase exclusivamente na palavra, como a de Qohélet. O uso da palavra na forma de conversa, diálogo, discursos, narrações e lições era o meio natural de intercâmbio entre as pessoas e de comunicação de idéias e saberes. Cita­mos uma passagem de Jó, que frisa poeticamente a importância da pa­lavra. Jó recorda com saudade no meio de sua dor “os velhos dias” de es­plendor,

“quando saía à porta da cidade e tomava assento nas praças...Os chefes abstinham-se de falar tapando-se a boca com a mão;ficavam sem voz os notáveis e prendia-se-lhes a língua ao paladar.Ouvido que me ouvia me felicitava...Escutavam-me na expectativa, atentos, em silêncio, a meu conselho;depois de eu falar, não acrescentavam nada,minhas palavras gotejavam sobre eles”(Jó 29,7.9-11,21-22).

A palavra era, portanto, de modo eminente a medida do homem. Pe­las palavra se manifesta o que cada um é: o sábio como sábio e o néscio com néscio. Mas enquanto as do primeiro ganham estima, as do néscio — os lábios do néscio — causam-lhe a ruína.

O próprio autor encarrega-se de explicar a dura expressão sobre a ruína, valendo-se de outras duas sentenças proverbiais, as do v. 13, em perfeito paralelismo: tanto o começo como o final do discurso do néscio são nescidade e loucura funesta. Essa doutrina faz parte da tradição sapiencial mais genuína é paradigmática. Prova disso é que Pr 18,6-7 pode ser um bom comentário dos versículos de Qohélet: “Os lábios do néscio se metem em pleitos e sua boca chama os golpes. A boca do néscio é sua ruína, em seus lábios enreda-se ele próprio”.18

14. Este versículo é híbrido, é composto de duas partes claramente diferenciadas. A primeira: o néscio tagarela sem medida, faz parte da sa­bedoria comum como os versículos anteriores de que é continuação; ape­sar de a ruína vir ao néscio por suas palavras, estas não têm limite, não pára de falar o néscio e multiplica suas palavras. Por isso se pode aplicar ao néscio o dito de que “pela boca morre o peixe”.

A segunda parte do versículo é propriedade de Qohélet,19 uma vez que volta a repetir ensinamento que lhe é característico: o homem diante de

18L. Alonso Schõkel comenta, por sua vez, os ditos de Provérbios: “O néscio, à força de dizer tudo, de falar sem pensar, mete-se em disputas e rixas das quais sai mal, e se tenta defender-se, o que diz piora a situação, cai ele próprio em sua própria armadilha” (Provérbios, Madri, 1984, 372).

19Que Qoh 10,14bc contenha ensinamentos genuínos de Qohélet admitem geralmente os autores; R. Kroeber diz, por exemplo: “Mas entre provérbios tradicionais (w. 12-13.15) há um autêntico pro­vérbio de Qohélet: ‘O homem não sabe o que...’ (v. 14)” (Der Prediger, 153).

Page 377: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

seu futuro imediato e, sobretudo, diante do futuro depois de sua morte, depara-se perante enigma insolúvel: nem ele próprio nem ninguém, exceto Deus, pode conhecer a resposta; veja-se o que se disse a propósito de 2,22c; 6,12b; 7,14c e especialmente 8,7.

15. Retorna, após o quase-parêntese do v. 14bc, o ensino tradicional sobre o néscio, mas agora não se trata mais da esfera da palavra, mas da esfera do trabalho e de outras atividades. 10,15a pode ligar-se de certa forma ao palavrório do néscio. Acaba de dizer o v. 14a que “o néscio tagare­la sem medida”; o que, sem dúvida, constitui grande trabalho para o nés­cio, razão pela qual tem que necessariamente acabar cansado. Não se es­gota, porém, aí o trabalho do néscio, pois, como qualquer pessoa, também o néscio tem em sua vida outras tarefas que, por não as organizar devida­mente, acarretam-lhe mais quebra-cabeças e cansaços.

10,15b parece simples, mas não deixa de ser enigmático. A interpre­tação mais comum e tradicional é retomada por F. Delitzsch em seu co­mentário: “Não conhecer como ir à cidade equivale a não ser capaz de encontrar a aberta ma pública... O caminho para a cidade é via notissima et tristíssima. Grotius diz corretamente, como Aben Esra: Torturam-se muitos com problemas difíceis, quando sequer conhecem o mais simples, como é o caminho de ida à cidade”.20

Parece ser menos provável e mais artificiosa a interpretação de N. Lohfink que por ir ou mudar-se para a cidade entende “linguagem prover­bial para dizer ‘fazer-se rico’ e ‘ascender’ socialmente”.21

Terminam aqui as especulações de Qohélet sobre o néscio; mas, ao deixar-nos em “a cidade”, preparou a entrada da perícope seguinte sobre o país e o rei.

5. Ditos sobre a administração do reino: 10,16-20

Ainda que nem todos os autores admitam que se pode formar com10,16-20 um bloco unitário, nós o defendemos, se bem com matizações. O material de que se compõe a perícope é heterogêneo; mas uma mão, a de Qohélet, deu-lhe uma unidade de composição. O fio condutor do conjunto é a idéia do exercício do poder político; o rei aparece explicitamente forman­do uma inclusão nos w. 16a. 17 e 20a; acompanham o rei sempre príncipes e poderosos. Os versículos que oferecem alguma dificuldade a este respei-

wCommentary, 385; o texto de Grotius é citado em latim: Multi quaestionibus arduis se fatigant, cum ne obvia quidem norint, qualis est iter ad urbem. Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 324s; A. Barucq, Eclesiastés, 170.

2lKohelet, 77b.

Page 378: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

to são o 18 e o 19, mas logo veremos no comentário como também podem- se compaginar com os demais sem nenhuma violência.

10.16 Ai de ti, país, onde reina um joveme teus príncipes madrugam para comer!

17 Feliz és tu, país, onde reina um nobree teus príncipes comem à sua hora, virilmente e não como bêbados.

18 Pela preguiça derruba-se o tetoe pela negligência tem a casa goteiras.

19 Para divertir-se celebram-se banquetes, e o vinho alegra a vida,e o dinheiro responde por tudo.

20 Nem sequer em tua mente fales mal do rei,nem na intimidade de tua alcova fales mal do rico, porque um pássaro leva a voz e um ser alado conta o que se disse.

10.16 “país” ou “terra”, “onde reina”: lit. “cujo rei teu”, “madrugam para co­mer”: lit. “pela manhã comem”.

17 “país” ou “terra”, “onde reina”: lit. “cujo rei teu”, “um nobre”: lit. “um filho de nobres” ou “de nobre linhagem”.

18 “Pela preguiça”: por ser dual subentende-se “pelas mãos preguiçosas” (cf. E. F. C. Rosenmüller, Scholia, 207). “o teto” ou madeirame da casa. “pela negligência”: lit. “pela negligência das mãos”, “tem goteiras”: lit. “goteja”.

19 “Para divertir”: lit. “para o riso”, “celebram-se banquetes” traduz uma sentença participial: ‘osim lehem. Segundo R. Gordis, é giro tardio que, por estar no plural, é impessoal (cf. Koheleth — the man, 328; também Ges.-K., 116t). O particípio expressa que a ação é repetitiva (cf. P. Joüon, Notes de syntaxe, 225).

20 “um pássaro”: lit. “um pássaro dos céus”, “o que se disse”: lit. “(a) pala­vra”. Sobre alguns problemas filológicos do versículo ver D. W. Thomas, A note; G. R. Driver, Problems, 233; O. Keel, Die Võgel, 94.

10,16-20. Qohélet reúne aqui, como nas unidades anteriores, mate­rial da tradição visto a partir da ótica da administração do poder; fará constar, porém, sua personalidade, sobretudo no v. 20.

16-17. Os dois versículos contêm o primeiro exemplo de material he­terogêneo nessa composição literária de conjunto. Formam pequena uni­dade, fechada e completa em si mesma, que por si nada tem que ver nem com o que precede nem com o que segue.22 Pode-se dizer que é bem lograda a estrutura dos versículos. A lamentação do v. 16 corresponde a felicitação do v. 17; segue depois a explicação tanto da lamentação como da felicita­ção em paralelismo perfeito dos elementos; só no final do v. 17 um peque­

22Cf. Ch. C. Torrey, The problem, 177.

Page 379: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

no acréscimo esclarecedor: dominados..., rompe com o equilibrio e a har­monia.

16. A lamentação, como recurso estilístico, é elegante e de mais a mais muito eficaz para chamar a atenção. E muito estilizada nos discursos di­retos e veementes, especialmente nos profetas (cf. Is 5; no NT Mt 23). Dirige-se o autor, em nosso caso, a país de que não dá o nome, mas que é país determinado em sua mente. Evita astutamente, com esse artifício retórico, os mais que prováveis perigos que poderiam ameaçá-lo por parte do poder real.

Onde reina: o texto fala diretamente do rei (ver nota filológica), a cuja determinação temos que aplicar o que acabamos de dizer do país. Os in­térpretes tentaram identificar este rei que é um moço (na‘ar).23 na‘ar po­der-se-ia em absoluto traduzir por “escravo”, como o exigiria o paralelismo estrito com um nobre do v. 17. Mas aqui não se trata de frisar a antítese entre um rei de origem plebéia (um escravo) e outro de origem nobre, mas governo de uma pessoa impotente e irresponsável (um jovem imaturo) e governo de uma pessoa com autoridade e de respeito (um nobre),24 como claramente se demonstra pelo comportamento indigno destes príncipes, pessoas relevantes, funcionários reais que são os que na verdade detêm em mãos o poder. Aproveitam-se eles da fraqueza do rei — é moço — , para dedicar-se a seus banquetes, festas e comilanças: madrugam para comer, sinal inequívoco “de frivolidade e dissipação”.25 Nessas comilanças pela madrugada ocupa naturalmente lugar muito importante o vinho (cf. v. 17b: como bêbados). Pela mesma razão recrimina Isaías seus contemporâ­neos: “Ai dos que madrugam em busca de licores!” (5,ll).26

17. Ao quadro anterior, de desordem e decomposição dum reino em seus dirigentes, contrapõe-se outro de dita e felicidade, em que o reino é presidido pela nobreza dum rei e pelos costumes morigerados de seus co­laboradores mais imediatos, os príncipes. Um nobre: sublinha-se não só a origem ou a nobre linhagem do rei, mas em primeiro lugar e implicita­mente a forma de governar: autoridade incontestável, razão pela qual os

230s que opinam que Qohélet está se referindo veladamente a personagem histórica identificam o rei moço com Ptolomeu V Epífanes (204-180), que começou a reinar com cinco anos de idade (cf. Apêndice I 3.1; K. D. Schunck, Drei Seleukiden, 200s; S. Bretón, Qoheleth studies, 46; N. Lohfink, Kohelet, 78a; melek, 540). Outros, porém, crêem “mais provável que nosso autor esteja se referindo a uma situação geral de má administração” (F. Ravasi, Qohelet, 317); A. Lauha, Kohelet, 194.

24Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 196; A. Lauha, Kohelet, 194.25A. Lauha, Kohelet, 195.26Cf. também Is 5,22; 22,13; 56,9.11-12. São célebres também no mundo clássico latino as orgias

que ocorriam pela manhã; diz M. T. Cícero: “Ab hora tertia bibebatur, ludebatur, vomebatur” (Philipp., I I41); cf. Juvenal, Sátiras, 1459. A hora normal para esse tipo de desordens era a partir da caída da tarde; certamente não pela manhã; daí o esclarecimento de At 2,15: “Estes não estão bêbados; não é mais que meia manhã”.

Page 380: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mais altos dignitários do reino são seus dignos colaboradores para o bem do país — feliz és tu, país — . Em aberto contraste com o v. 16, neste quadro os príncipes comem a sua hora e devidamente, ou seja, virilmente, com poder e domínio sobre si mesmos, sem deixar-se levar covardemente por seus instintos como bêbados.21

18. Como diz L. Alonso Schõkel e admitem sem dificuldade os intér­pretes: o versículo 18 “pode ter sido provérbio independente, no estilo de Pr 20,4; 21,25”.28 A vadiagem e a preguiça sempre foram objeto de crítica e burla por parte dos mestres de sabedoria. Constrói-se o v. 18 em perfeito paralelismo sinonímico; suas duas sentenças descrevem o efeito destrutor da preguiça na casa do vadio, quadro bastante freqüente em cidades e vilas. O abandono, de que sofre a casa do vadio, percebe-se por qualquer transeunte, ao ver o teto desmoronando e a água que em tudo penetra em tempos de chuva.

O contexto, porém, dá-lhe de fato outro sentido, pois pode-se conside­rar o v. 18 como comentário e complemento do v. 16. Se os governantes só pensam em si mesmos, em seus banquetes e orgias, e abandonam o cuida­do do reino, que é “a casa do rei”,29 só se pode esperar com o tempo sua ruína.30

19. Podemos repetir, acerca desse versículo 19, o que acabamos de dizer do v. 18: tem duas leituras e interpretações independentes, conforme se leia como versículo independente, que sem dúvida pode ser, ou à luz do contexto. Como texto independente, constata realidades da vida sem se­gundas intenções críticas. Por si não há nada de censurável na diversão, em celebrar banquetes, em beber vinho com moderação (cf. 9,7ss). Os ban­quetes sempre se celebraram por ocasião de acontecimentos de todo tipo (cf. Gn 24,54; 43,24; Jó 1,13; Tb 7,[10]14; 10,8; Eclo 32,1-13). Os grandes sacrifícios ao Senhor convertem-se na realidade em grandes banquetes (cf. lRs 8,62ss com 2Cr 7,8).

Do vinho a Escritura faz grandes elogios e de muitas de suas virtudes se cunharam provérbios. Os testemunhos do Eclesiástico são magníficos e repetem quase literalmente o de Qohélet: “A quem dá vida o vinho? Ao que bebe com moderação. Que vida é quando falta o vinho, que foi criado no

27Ironicamente clama o profeta Isaías: “Ai, os campeões em beber vinho, os valentes para deglutir licor” (Is 5,22; cf. também 28,1.7-8).

28Eclesiastés, 63.29N. Lohfink crê que “a ‘casa’poderia ser no v. 18 imagem do Estado, especialmente porque, segun­

do a ideologia ptolemaica, considerava-se o Estado como a oikia, a casa do rei” (Kohelet, 78b). D. Michel também opina que “talvez ‘casa’ seja palavra que designa o Estado” (Qohelet, 164).

30Pode-se ver o que dissemos no v. 16 sobre uma provável referência a Pnésciomeu V, que pouco depois de subir ao trono perdeu seu domínio sobre a Cele-Síria, tendo sido essa conquistada por Antíoco III (cf. Apêndice 13.1).

Page 381: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

princípio para alegrar? Alegria, gozo e euforia é o vinho bebido a seu tem­po e com tento” (Eclo 31,27s); “O vinho e o licor alegram o coração” (Eclo 40,20a); cf. SI 104,15: “Assim tira [o homem]... vinho que alegra o ânimo”.

E proverbial que o dinheiro tudo pode e abre todas as portas. Dele diz F. Delitzsch: “O dinheiro responde a toda demanda, ouve todo desejo, con­cede qualquer coisa que se deseja, serve para tudo. Como diz Menandro: ‘a prata e o ouro — estes são em minha opinião os deuses mais úteis — ; se estes têm lugar na casa, deseja o que quiseres, tudo será teu”.310 latino Horácio também diz: “É claro que uma mulher com dote e crédito, e os amigos, e a linhagem, e a beleza, outorga-os a deusa Pecunia”.32

Mas Qoh 10,19 admite uma segunda leitura dada pelo contexto, ou seja, se considerarmos o versículo como aplicação do v. 16. Nesse caso, os que se reúnem para divertir-se e celebrar banquetes são os príncipes que madrugam para comer. O tom, portanto, é de crítica mordaz.

20. O versículo, como os dois anteriores, tem sentido em si mesmo; mas recordamos a função estrutural que lhe outorgamos, já que forma inclusão com 10,1 (moscas em 10,1a) e ser alado em 10,20b.33

Os conselhos do sábio — talvez do próprio Qohélet — de não falar mal do rei, do rico, nem no mais íntimo da família: no dormitório, nem sequer de pensá-lo com o pensamento, não se fundam em motivos reli­giosos; pelo menos a proibição de maldizer ao rei poder-se-ia fundamen­tar no fato de que é o ungido do Senhor (cf. 2Sm 19,22 com 2Sm 16,10 e lRs 2,8s). Na realidade, o motivo destas recomendações é o medo de ser descoberto e o temor bastante fundado de represálias, mesmo da morte, por parte do rei e do rico ou poderoso. Os sistemas policiais e de denún­cias secretas não são exclusivos de tempos modernos; existiram em to­dos os tempos.34

O final de 10,20, que fala do pássaro descobridor de segredos e do ser alado que os torna públicos, parece frase proverbial já existente anterior­mente, parecida à nossa: “as paredes ouvem”. Os autores (desde Hugo Grotius?35) fazem referência à história grega de Ibico: “A referência à saga do descobrimento dos assassinos do cantor Ibico por meio das grulhas, invocadas por ele no transe da morte como vingadoras, encontra realmen-

31Commentary, 389.32"Scilicet uxorem cum dote fidemque et amicos et gei^us et formam regina Pecunia donat” (Epist.

I 6,36s). A versão é de A. Cuatrecasas, que em nota diz: “Recordemos o poderoso cavalheiro Dom Dinheiro de Quevedo” (Horácio, Obras completas, Barcelona, 1986, 278).

33G. S. Ogden, Qoheleth IX17-X20, pp. 36-37.34N. Lohfink diz a este respeito: “Em 205 a.C. subiu ao trono Ptolomeu V Epífanes, de cinco anos,

e começou época de desgraça. Agatocles, o tutor do rei, governava antes de tudo com ajuda de serviços secretos e denunciantes, o que conviria a 10,20” (melek, 540).

35Adnotationes a Qoh 10,20.

Page 382: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

te o sentido da linguagem figurada em Qoh 10,20 que procede, pelo que parece, de saga antiga, difundida no oriente e ocidente.36

Assim termina o capítulo que intitulamos variações sobre temas de sabedoria tradicional. Comprovamos, ao longo de sua explanação, que Qohélet manifesta-se, quando quer, como verdadeiro conhecedor da rica tradição sapiencial e que encontra também nela motivos em consonância com os motivos que o preocupam.

XI. OUSADIA E PRUDÊNCIA (11,1-6)

O autor convida-nos nestes versículos a sermos diligentes na ação, a sermos ousados mesmo no caso de que não tenhamos assegurado de ante­mão o sucesso em nosso empreendimento, mas também aconselha-nos a sermos prudentes; portanto, ousadia e prudência. No comentário tentare­mos determinar a que ação se refere o autor, se é à ação benéfica,1 à ação mais concreta do negócio ultramarino,2 ou simplesmente à ação por algum motivo arriscada.3

11,1-6 constitui unidade literária suficientemente destacada em seu contexto. Muitos autores assim o reconheceram implicitamente, sem se deterem para apresentar as razões.4

O primeiro indício sério de que algo de novo está começando é a mu­dança material de conteúdo e temas: deixamos as antíteses entre sábio e néscio e as considerações referentes aos poderosos que predominaram no capítulo 10 e o encerraram, e passamos a exortações de tipo pessoal nas quais o autor recorre com generosidade à natureza e suas manifestações: aparecerão o mar, a terra, as nuvens, a chuva, as árvores, os pontos car­deais, o vento, a manhã e a tarde. Também significativa é a referência a Deus criador.

Indícios formais da novidade e unidade na perícope 11,1-6 são o uso de imperativos (w. 1.2.6), de sentenças aos pares (w. 1-4), de afirmações

36D. W. Staerk, Zur Exegese, 217. Cf. especialmente O. Keel, Die Võgel, 99-102, onde se coligem muitas outras lendas de pássaros que de muitas maneiras revelaram crimes ocultos.

'Segundo a tradição judaica (cf. Targum) e cristã (cf. São Jerônimo); cf. G. A. Barton, A criticai, 181s; W. Staerk, Zur Exegese; O. Loretz, Gotteswort, 180.

2Cf. F. Delitzsch, Commentary, 392; W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 240; R. Gordis, Koheleth— the man, 330; N. Lohfínk, Kohelet, 79.

3Cf. A. Motais, L’ecclésiaste, 174b; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 200s; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 303s; F. Ellermeier, Qohelet H l, 267; K. Galling, Der Prediger, 119; E. Glasser, Le procès, 159b; A. Lauha, Kohelet, 201; G. S. Ogden, Qoheleth [1987], 185s; D. Michel, Untersuchungen, 207s.

4G. S. Ogden dedicou estudo especial ao tema e cremos que seus argumentos principais são verda­deiramente válidos (cf. Qoheleth X I 1-6: VT 33 [1983] 222-230).

Page 383: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

numéricas (w. 2.6), de repetições verbais como saber/conhecer — não sa­ber/conhecer (w. 1.2.5.6), de palavras-chave e união dos versículos en­tre si.5

11.1 Joga teu pão na superfície das águas, que ao cabo de muito tempo o encontrarás.

2 Divide-o em sete e até em oito partes,pois não sabes que desgraça pode acontecer na terra.

3 Se as nuvens vão cheias, descarregam a chuva sobre a terra, e se uma árvore cai para o sul ou para o norte,no lugar onde cair a árvore, aí ficará.

4 Quem observa o vento não semeará, quem contempla as nuvens não ceifará.

5 Como não conheces qual é o caminho do vento, como se formam os ossos no seio da mulher grávida, tampouco conheces a obra de Deus que faz tudo.

6 Pela manhã semeia tua sementee pela tarde não dês repouso a tuas mãos, pois não sabes qual prosperará, se esta ou aquela, ou se terão ambas igual sucesso.

11.1 O ki depois do imperativo parece antes deítico-discursivo (segundo D. Michel, Untersuchungen. 208) do que adversativo (como crê H. W. Hertzberg, Der Prediger, 201). “ao cabo de muito tempo”: lit. “em mui­tos dias”.

2 “Divide-o...”: lit. “dá parte a sete e mesmo a oito”.3 O final do versículo é muito discutido. M. J. Dahood opinava que se

teria que ler shami hu-. “é seu próprio lugar” (cf. The Phoenician, 271); no entanto, é mais provável que yhw’ seja imperfeito Qal de hwh I “cair” ou de hwh II “chegar a ser”, “permanecer”, com o acréscimo de alef (Ges.-K., 23i), como em formas da língua posterior (cf. J. A. Montgomery, Notes, 244; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 199; Ch. F. Whitley, Koheleth, 93; BHS).

5 “como se formam os ossos”: lit. “como os ossos”, que tenta traduzir o TM ka çamim. Alguns Ms e o Targum têm ba çamim: “nos ossos” (cf. GHS). Apesar da dificuldade estilística, deve-se preferir o TM (que tam­bém é a leitura da LXX e Vg) como lectio difficilior. “no seio da mulher grávida”: lit. “no ventre da prenhada”; mele’ah: adjetivo substantivo = mulher cheia, grávida, “a obra de”: ma seh no singular, como TM, apesar das versões e Jerônimo que têm o plural: ma seh.

6 “a tuas mãos”: traduzimos no plural, porque soa melhor em português, mas em hebraico é preferível o singular do TM (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 42). “terão igual sucesso”: lit. “igualmente boas”.

5G. S. Ogden, Qoheleth IX 1-6, 183.222s.227. Alguns destes indícios são exclusivos da perícope11,1-6, outros não; por essa razão D. C. Fredericks utiliza os argumentos esgrimidos por G. S. Ogden em favor da unidade independente de 11,1-6 para demonstrar que é preciso integrar esse conjunto na unidade maior 11,1-12,8 (ver seu artigo Life’s de 1991). Apesar disso, continuamos mantendo a inde­pendência de 11,1-6 com relação ao contexto seguinte.

Page 384: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

11,1-6. Qohélet propõe uma espécie de tese com dupla face nos w. 1-2: o que como homem não podes saber / o que podes saber; os w. 3-5 são ilustração dessas teses quase formais; o v. 6 contém uma exortação final à ação.

1. Falamos na introdução da mudança de perspectiva de Qohélet nes­sa nova perícope. Do meio fechado de 10,20 passamos ao aberto e dilatado deste 11,1; da proibição: “não fales mal”, ao imperativo: joga (divide no v. 2 e semeia no v. 6a). Mas o grande problema do versículo 1 está em determi­nar seu significado, uma vez que sua linguagem não só é figurada mas também enigmática; deram-se interpretações tão variadas dele que o lei­tor e o comentador ficam perplexos, sem saber com certeza a que ater-se.6

Descartamos sem titubear a sentença que defende que Qohélet em11,1 recomenda a prática da beneficência. Nem do texto nem do contexto deduz-se isso necessariamente, nem muito menos está de acordo com a maneira de pensar de Qohélet a idéia de recompensa, que se pressupõe na doutrina sobre a prática da beneficência.

A linguagem metafórica do provérbio induziu muitos autores a desco­brir no v. 1 uma recomendação do comércio através do mar.7 Mas tampouco satisfaz, pois não se vê como se pode descer a atividade tão concreta e inequívoca a partir do texto e coerentemente com o v. 2. Propomos, portan­to, o nosso parecer, que consideramos mais provável que os anteriores, em perfeita coerência com toda a perícope e com o modo de pensar de Qohélet.

Antes de tudo parece razoável afirmar que o v. la é não só “expressão idiomática”,8 e sim também provérbio ou sentença derivada de algum pro­vérbio. A dificuldade para determinar seu significado radica em que não se encontrou nenhum paralelo,9 razão por que se deve interpretar com a ajuda do contexto. Neste sentido são decisivos os w. 2.5 e 6, já que o v. 1 tem no v. 2 sua antítese, e a idéia (cardeal na perícope e muito própria de Qohélet) do “não-saber” do homem, de sua incapacidade de compreender o futuro, os mistérios ocultos da natureza e, em geral, “a obra de Deus”, ajuda magnificamente a dar sentido do próprio v. 1.

Jogar o pão na água, se não é para alimentar os peixes, é ação absur­da e sem sentido; Qohélet, porém, diz que se recuperará, e, além disso,

6G. S. Ogden, que conhece perfeitamente o estado da questão, chega a afirmar que “o intérprete... parece estar perplexo para encontrar um critério objetivo razoável para descobrir o significado do versículo” (Qoheleth [1983], 184).

7Os pricipais defensores dessa sentença são citados na nota 2.8F. Ravasi, Qohelet, 322.9Cf. D. Michel, Qohelet, 165; Untersuchungen, 267. Por sua conta e risco, F. Piotti afirma que 11,1a

é “provérbio fenício” (La lingua, 188) e J. de Savignac que é grego por sua parecença com a expressão de Teógnis: “semeia no mar” (w. 106s), que ele emprega em sentido literal (cf. La sagesse, 318s). Mas é evidente que “semear no mar” não é o mesmo que ‘ jogar o pão na água”.

Page 385: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

depois de muito tempo. Aceita-se o inverossímil como norma; por isso o or­dena no imperativo: joga teu pão... O sentido do v. 1 completa-se com o v. 2.

2. O versículo contém outro provérbio, provavelmente adatado ao con­texto criado pelo v. 1. A composição estilística de ambos os versículos é semelhante: proposição no imperativo seguida de outra explicativa com ki, que no v. 2 é causal (pois). Conceitualmente, o v. 2 é antítese ou con­traste do v. 1: o âmbito do v. 1 é o mar: a superfície das águas, o do v. 2 éa terra\ diante da ação temerária e sem sentido do v. 1: jogar o pão na água, o v. 2 mostra-nos extremada prudência: divide-o em sete e até em oito partes}0 A razão dessa prudência é precisamente a insegurança e a ignorância quan­to ao futuro: pois não sabes que desgraça pode acontecer. Aqui temos a chave para a interpretação de toda a passagem, como se confirmará nos w. 5 e 6 com a repetição do mesmo verbo (yd’): não sabes, não conheces.

Apesar das medidas de prudência e precaução que possamos tomar na vida, não podemos saber se acertamos ou não com a determinação cor­reta, porque definitivamente o futuro não depende do homem. Essa tese sempre a defendeu Qohélet, e de fato se identifica com o juízo de vaidade tão repetido nos primeiros capítulos do livro. Vemos assim como os versículos 1 e 2 se complementam e são como que as duas faces do pensa­mento de Qohélet.11

Todavia, a incerteza acerca do futuro em nenhum momento prende Qohélet na inatividade, porém, muito pelo contrário; como vimos, impele à ação e ao risco.12

O que Qohélet acaba de esboçar nos w. 1-2, e interpretamos como sua tese ou pensamento central, será ilustrado e desenvolvido nos versículos seguintes.

3-4. Os versículos reúnem quatro provérbios relacionados com fenô­menos atmosféricos e com atividades agrícolas, divididos em dois grupos de dois pares cada um. A origem rural é evidente. Esses dois versículos ilustrariam a parte positiva da tese geral de Qohélet: o que o homem pode chegar a conhecer em seu meio limitado: sobre a terra, e depois de perma­nente observação.

“ Quanto ao caráter numérico da sentença é bastante comum o gênero na Sagrada Escritura; a utilização da escala numérica 7 e 8 aparece só aqui e em Mq 5,4. Todavia, como adverte M. J. Dahood: “Essa série particular parece ter sido muito popular em ugarítico, onde aparece 6 vezes” (Cannanie- Phoen., 212).

uCom palavras de D. Michel: “Algo, pelo que parece, absurdo, pode mostrar-se surpreendente­mente razoável [v. 1] e algo, pelo que parece, razoável [v. 2], pode mostrar-se surpreendentemente inútil” ([Untersuchungen, 207; ver também pp. 165 e 267s).

12Segundo E. Glasser: “Em nossos dias Qohélet diria talvez a seu leitor que empreendesse um negócio a fundo perdido” (Le procès, 160); ainda que tenhamos que pôr de nossa parte todos os meios a nosso alcance para que o que empreendermos tenha bom êxito.

Page 386: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3. O versículo consta de duas sentenças condicionais, unidas aqui redacionalmente; cada uma delas é um provérbio independente, mas com afinidades quanto ao conteúdo: fenômenos atmosféricos. O autor também procurou a união formal do v. 3 com o v. 2: na terra / sobre a terra e com o v. 5: vão cheias / grávida (“a cheia”: v. 5ay).

O primeiro fenômeno natural que é objeto da consideração do autor é o da chuva. Na Palestina uma experiência, que se repete várias vezes no ano, ensinou os homens do campo que, quando aparecem pelo oeste espes­sas nuvens a cobrirem o céu, vem a chuva sobre a terra ressequida. O fenômeno acontece uma e outra vez, sem que o homem possa fazer nada para evitá-lo, ainda que o possa prever, como demonstra a própria formu­lação do provérbio.

O segundo fenômeno da natureza, resenhado no v. 3b, é o da árvore caída sem a intervenção do homem. Pode acontecer isso ou porque a árvo­re já é velha e seu tronco carcomido não aguenta mais o peso dos ramos, ou um forte vendaval arranca pela raiz as árvores frondosas. A árvore caída: para o sul ou para o norte, como caiu fica: ela pode ser símbolo da impotência que nem pode evitar a desgraça nem, uma vez presente, a pode remediar.

Pretende o autor com esses exemplos ensinar algum tipo de de­terminismo que vá além do que exigem as leis naturais observáveis? Creio que não. O autor fica na natureza observada, da qual nada pode mudar; mas não faz nenhuma extrapolação ao homem enquanto tal, a seu ser livre ou não-livre.

4. Se no v. 3 as duas sentenças eram condicionais, no v. 4 as duas são participiais: o que observa, o que olha, construídas segundo o paralelismo sinonímico. Uma e outra sentença encaixam-se perfeitamente no conjun­to: o v. 4a com o v. 5a (vento / vento) e com o v. 6a (não semeará / semeia tua semente), e o v. 4b com o v. 3a (nuvens / nuvens).

O versículo em seus dois aforismos apresenta o agricultor indeciso: este não faz mais que observar e olhar passivamente os fenômenos natu­rais, talvez esperando o momento ideal para semear. Mas não chega esse momento e o camponês, que observa em excesso, fica sem semear. Natu­ralmente, quem não semeia não colhe.

O autor reprova implicitamente a inatividade, ainda que se queira justificar essa com a prudência; e convida igualmente à ação, ao risco, de que é modelo a vida do verdadeiro agricultor. E preciso, pois, agir, ainda que não se esteja totalmente seguro do sucesso da ação. Desta maneira, o v. 4 confirma a doutrina defendida no v. 1.

5. Nessa pequena antologia de provérbios que o autor reuniu com bastante artifício, mas com um fio condutor quase subliminar, chama a

Page 387: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

atenção o v. 5, porque rompe o ritmo e o estilo dominante dos versículos em pares e além disso introduz dois temas da máxima importância: a for­mação do homem no seio materno e o mistério da obra de Deus. Contrasta fortemente com a singeleza e simplicidade dos fenômenos atmosféricos e dos trabalhos do campo. Em todo caso, o autor, como domina com suficiên­cia o uso dos recursos estilísticos, introduz no v. 5 os temas transcendentais por meio de um que não o é tanto, ainda que sua explicação completa não esteja ao alcance do homem: qual é o caminho do vento.

Ainda que o v. 5 quebre o ritmo da perícope e introduza no discurso temas tão diversos dos demais, não quer dizer que não esteja em seu lu­gar; prova disso é a conexão com o que precede e com o que segue.13

O versículo 5 em sua primeira parte é complicado e deu lugar a con­trovérsias, como se pode ver na nota filológica. Fala Qohélet do caminho do vento e do desenvolvimento dos ossos, do embrião, no seio da mãe grá­vida, ou somente do modo misterioso como o alento ou o sopro de vida entra nos ossos ou no embrião no seio da mãe grávida?14 A primeira sen­tença é defendida geralmente pelos autores que seguem o TM e versões antigas, como fizemos nós; a segunda pelos que corrigem o TM no v. 5a, segundo anotamos nas notas filológicas.15

Qual é o caminho do vento?ie Quem pode prever para onde vai se diri­gir o vento em seu contínuo girar e girar (cf. 1,6)? Que coisa pode haver mais dentro da esfera do homem, sobre a terra, que o vento?; e, no entan­to, não conhecemos — tu não conheces — sua rota e seu caminho.17

Maior enigma que predizer a rota do vento é, sem dúvida, a maneira de acontecer a gestação do feto no seio materno.18 Para o mundo antigo, a origem do homem, sua gestação e formação no seio materno, foi sempre acontecimento envolvido no mistério, e com toda razão. A propósito de Sb7,1 escrevia eu em 1993: “O processo embrionário do homem, oculto no mistério, foi tema central nas especulações sapienciais de todos os tem­

13V. 5act. não conheces: 'eyn'ka yode‘, repete-se no v. 6b (não sabes); v. 5aß vento: ruah, também no v. 4a; v. 5ay. grávida (“a cheia”): hammele’ah, cf. com v. 3a vão cheias: ymmal’u; v. 5b. tampouco conhe­ces: lo’ teda’, repetido no v. 2b: não sabes.

14A dupla pergunta é comum entre os autores.15Assim traduz, por exemplo, L. Alonso Schökel: “Se não entendes como um alento entra nos mem­

bros num seio prenhe, tampouco entenderás...” (Eclesiastés, 65).16Preferimos traduzir aqui ruah por vento e não por “alento ou sopro vital”, porque são duas as

interrogações que apresenta a versão escolhida e porque, como diz A. Lauha: “Já que rwh no versículo anterior significa Vento’ e não se deve supor mudança repentina no uso, no v. 5 trata-se claramente também de ‘vento’ e de seus caminhos incalculáveis (cf. 1,6)” (Kohelet, 202).

170 mesmo exemplo aparece em Jo 3,8 para explicar um mistério de Deus: “o vento sopra onde quer; ouves seu ruído, mas não sabes de onde vem e para onde vai”.

18R. Gordis crê que “Koheleth chama a atenção aqui para o maior de todos os milagres, a origem da vida, que permanece mistério” (Koheleth — the man, 331).

Page 388: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pos. Na literatura bíblica sapiencial, trata-se amiúde do tema (cf. Jó 10,8­12; 31,15; SI 119,73; 139,13-16; Ecl 11,5)”.19

Também para nós, que estamos às portas do século XXI, continua sendo motivo de assombro tanto o fato da geração, como todo o processo da gestação do homem e, em geral, de todo ser que vem à vida. Nem sequer a ciência mais avançada tem a chave que abre o mistério da vida e de sua transmissão. O sábio de hoje só pode confessar com o sábio Qohélet: “Tu não conheces, tu não sabes como...”.

Os intérpretes descobriram a importância do versículo 5 na presente perícope, porque nele viram a chave de interpretação dela inteira; ou seja, o mistério oculto de Deus, a que o homem não pode chegar, e o caráter inabarcável de suas obras, de toda sua criação. Esse ensinamento é fami­liar a Qohélet, como se pode ver em 3,11; 8,17; 9,1. Assim se explica que no v. 5 predomine o tema: não-conhecer, e que se relacione diretamente com o que precede e com o que segue na perícope ll,l-6).20

A última parte do v. 5 é confissão de fé em Deus, criador de tudo, precisamente em contexto em que se afirma a impotência do homem na ordem do conhecimento: o homem não pode chegar a conhecer a obra de Deus, mas pode afirmar claramente que Deus é criador de tudo, que ele faz tudo (cf. 2,24s; 3,11.14; 7,13; 8,17; 12,1).

6. O versículo apresenta certa analogia estrutural com os w. 1-2, pois apresenta duas formas imperativas: semeia e não dês repouso (imperfeito negativo), seguidas de um ki com sentença negativa: pois não sabes (ki lo’ teda’ / ki ’eyneka yode‘), com o que “o arco do ciclo que começa nos w. 1-2 estende-se elegantemente até o v. 6”.21

O autor volta ao tom menos transcendental da vida normal de um lavrador, que aqui representa o homem em geral, todo homem, em sua vida de cada dia e momento. O v. 6 liga-se tematicamente com o v. 4: se no v. 4 o lavrador indeciso ficava sem semear, no v. 6 insiste-se com ele (incluído no tu) para que semeie.

Pala manhã / pela tarde são expressões polares que têm função me­ramente estrutural e estilística; não se deve tomá-las como divisão tempo­ral do dia. Assim mesmo à atividade de semear corresponde o não dar repouso às mãos.

19J. Vílchez, Sabiduría (1990), 245. Pode-se ver aí um resumo do que se pensava nos tempos helenísticos sobre a fecundação, a duração do período de gestação humana; cf. F. Vattioni, “La sapienza e la formazione dei corpo humano”, Augustinianum 6 (1976) 317-323.

“ Quanto à possível influência grega em 11,5, como defende J. de Savignac em La sagesse, 318s, não basta o uso de vocábulos tão genéricos como ruah = pneuma e hakkol = to pan, que se explicam perfeitamente dentro do campo semítico, como vimos.

21A. Lauha, Kohelet, 203.

Page 389: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A razão que se dá no v. 6b para não permanecer inativo: a ignorância do resultado, não se encaixa logicamente no contexto, já que o resultado final da semeadura não depende de que o lavrador se preocupe mais ou menos com ela, mais ainda, porém, de outros fatores imponderáveis, in­dependentes da vontade humana, como a umidade do solo, a temperatura, a qualidade e as condições da semente etc. A intenção do autor, ao instar e aconselhar que se semeie, vai além da esfera meramente agrícola; é a con­firmação da tese que propôs no começo da perícope, e que sutilmente desen­volveu nos versículos intermédios: o convite à ação, mesmo à ação arrisca­da, como o é a de todo lavrador que lança sua semente à terra, sem saber se terá ou não boa colheita. “O sentido [do v. 6] é, portanto: Faze o que tens que fazer, sem que te faças ilusões sobre a segurança dos resultados”.22

Qohélet está muito longe da sabedoria tradicional que em toda ação perseverante veria resultado seguro (demais otimista); mas também está longe de qualquer pessimismo derrotista, que reduz o homem à esterilida­de da inatividade e do passivismo. Qohélet dá mostras uma vez mais de ser sábio realista, que enfrenta confiadamente com os mistérios e obscuri­dades da vida, empenhando-se no trabalho diário, o único que, nessa vida sem horizontes, lhe trará alguma satisfação.

XII. JUVENTUDE E VELHICE (11,7-12,7)

É preciso antes de tudo justificar a extensão da perícope: onde come­ça e onde acaba. Que o início seja 11,7 não nos oferece dificuldade depois do que se defendeu na introdução a 11,1-6. A mudança de tema e estilo em11,7 com referência ao imediatamente anterior é radical.1

Quanto ao final da perícope, os autores duvidam entre 12,8 e 12,7. O único argumento de peso a favor de 12,8 como final de perícope é de ordem estilística.2 Porém, como veremos, ao comentar 12,8, esse versículo tem função mais importante no conjunto do livro, razão por que parece mais lógico dar-lhe entidade em si mesmo e considerá-lo independente da

22D. Michel, Untersuchungen, 212; ver também F. Ravasi, Qohelet, 321.

'Segundo afirma M. Gilbert: “A maioria dos comentadores modernos fazem começar a última grande perícope da obra de Qohélet em 11,7” (La description, 97). Alguns autores, poucos na verdade, põem o começo da perícope final em 11,1; entre estes ultimamente D. C. Fredericks, cujos argumentos não nos convencem (cf. Life’s, 95-99).

2G. S. Ogden expressa-o assim: “Em vista da função da sentença hbl através do documento como um uso conclusivo, eu preferiria incluir 12,8 dentro dos limites da perícope” (Qoheleth xi 7-x 8, 28; cf. Qoheleth [1987], 193). Pela mesma razão explícita ou implicitamente opinam outros muitos au­tores.

Page 390: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

perícope que lhe precede.3 A questão não tem grande importância, razão pela qual às vezes um autor no mesmo contexto fala da unidade 11,7-12,7 ou 11,7-12,8.4

A perícope 11,7-12,7 é uma das mais belas e estilisticamente mais bem logradas de todo o livro do Eclesiastes. J. R. Busto Saiz provavelmen­te foi o autor que estudou mais detidamente o poema do ponto de vista estilístico. Em seu estudo, sério e equilibrado, Busto Saiz tenta descobrir a estrutura métrica do poema e chega afinal à conclusão de que conseguiu seu propósito.5

Quanto à determinação da forma literária do poema, remetemos ao que vamos dizer a respeito de 12,1-7.

Quanto à divisão do poema, poucas são as divergências. Divide-se em geral em duas partes, a saber: l â) 11,7-10, cujo tema central é a juventude e 2ã) 12,1-7, que trata fundamentalmente da velhice.6 Outros critérios, como o convite à alegria (smh) e a recordação (zkr) ou o termo hbl confirmam na prática a divisão anterior do ponto de vista temático.7 Vamos vê-lo em por­menor ao analisar cada uma das partes.

1. Desfruta da juventude, enquanto podes: 11,7-10

Esta é a primeira parte em que dividimos o poema de 11,7-12,7;8 pre­domina nela o tom positivo e exortativo do convite a desfrutar da vida, que lembra outras passagens importantes de Qohélet (cf. 2,24; 3,12s; 5,17; 8,15; 9,7-9). Duas características distinguem, no entanto, essa perícope das anteriores: a vinculação do desfrute à etapa da juventude e a inserção do tema da recordação dos dias obscuros e do juízo de Deus.

3J. R. Busto afirma-o de modo inequívoco: “Alguns opinam que se deve acrescentar ao poema o versículo 12,8, aludindo, em favor dessa inclusão, o fato de esse versículo terminar com a palavra hbl, que também aparece encerrando os versículos 11,8 e 11,10. Mas é razão fraca. O termo em questão: ‘vaidade’ é o fio condutor de Qohélet e 12,8, a meu ver, não encerra o poema, e sim o conjunto do livro” (Estructura, 19s).

4Assim, por exemplo, M. V. Fox diz: “A unidade 11,7-12,7 como um todo diz...” (Aging, 62; cf. Qoheleth and, 299) e no mesmo lugar: “Aunidade mais longa é 11,7-12,8” (Aging, 71 nota 1; cf. Qoheleth and, 277).

5E manifesta-o assim: “A regularidade métrica do poema é anular. A alternância de versos de 8, 7 e 6 pés métricos não é mera variação ou irregularidade, senão que envolve regularidade perfeita” (Estructura, 24). Ele mesmo encarrega-se de avisar que “na análise dos poemas é preciso buscar regularidade métrica, mas precisamente aquela de que o poeta dotou o poema” (Ibidem). Um magní­fico esquema da alternância de acentos do poema pode-se ver na p. 21 do mesmo artigo.

6Cf. J. R. Busto Saiz, Estructura, 19. É muito curiosa a anotação de A. Lauha, que se inspira em H. W. Hertzberg: “A passagem consta de duas partes, que parece ter sido imitada pela primeira estrofe do hino dos estudantes, como presume com razão H. W. Hertzberg: ‘Gaudeamus igitur, iuvenes dum sumus’ 11,7-10 e ‘Post mortem non habebit humus’ 12,1-7" (Kohelet, 206).

7Cf. G. S. Ogden, Qoheleth xi 7-xii 8, 28; M. V. Fox, Aging, 71.8Dela diz J. R. Busto Saiz: “A primeira parte (11,7-10), de acordo com a visão tradicional, identifica-se

com a primeira estrofe, que se encerra por um tríptico de 9 pés métricos (3 + 3 + 3)” (Estructura, 20).

Page 391: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

11.7 Realmente é doce a luz e agradável aos olhos ver o sol;8 pois, ainda que o homem viva muitos anos, que desfrute de todos,

mas lembre-se dos dias escuros, que serão muitos.Tudo o que vem é efêmero.

9 Desfruta, jovem, durante tua adolescência, e sê feliz nos dias de tua juventude;vá por onde diga teu coração e vejam teus olhos, mas saibas que por tudo isso Deus te levará ajuízo.

10 Afasta as penas de teu coração e alheia o mal de teu corpo, pois a adolescência e a juventude são efêmeras.

11.7 “Realmente”: Por começar no v. 7 nova unidade, é melhor traduzir o waw como partícula de intensidade antes que como copulativa. Sobre o lamed diante do inf. constructo (lir’ot) ver P. Joüon, 124m.

8 “os dias escuros”: lit. “os dias de obscuridade”.9 “sê feliz”: lit. “teu coração te faça feliz”, “por onde diga teu coração”: lit.

“pelos caminhos de teu coração”, “vejam teus olhos”: lit. “nas visões de teus olhos”.

10 “a juventude”: shaha rut, hapax leg. que pode significar “cor negra” dos cabelos, própria da juventude, ou “aurora” da vida; está em ambos os casos por “juventude”.

11,7-10. Esta parece ser a mais importante entre todas as passagens em que Qohélet exorta a desfrutar da vida; advertimos, porém, ao mesmo tempo que também é a mais matizada: convida Qohélet a passar bem du­rante a juventude e recorda que ela é fugaz, que são muito mais os anos obscuros da vida, e que Deus sempre se mantém vigilante.

7-8. Pode-se perguntar razoavelmente se 11,7-8 constituiu em algum tempo unidade independente,9 visto que os dois versículos formam aí pe­quena unidade subordinada, como se descobre pela sentença com hebel que os encerra10 e, sobretudo, pela função introdutória que exerce no con­junto.11 Essa função reflete-se na expressão literária, a saber, no uso dos verbos smh (desfrutar) e zkr (recordar); 11,8a: que desfrute (yismah, jussivo), a que corresponde 11,9-10: desfruta... (semah imperativo) e 11,8b: mas lembra-te (weyizkor, jussivo) e seu correspondente 12,1: lembra-te (uzekor, imperativo).

7. O versículo consta de dois membros em perfeito paralelismo sinonímico, ainda que irregulares quanto à extensão; breve o primeiro: doce — a luz, o dobro da extensão o segundo: agradável aos olhos — ver o

9A. Lauha dá-o como provável em Kohelet, 206; inclino-me antes por unidade meramente contextuai.10Geralmente admitem os autores que hebel em 11,8 e 10 tem função estrutural como final de

perícopes (cf. M. Gilbert, La description, 97; G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 28; tem-na também em 12,8, porém não da mesma maneira, como veremos em seu lugar.

u"Abertura do grande cântico final de Qohélet”, chama F. Ravasi a 11,7-8 (Qohelet, 332; cf. A. Lauha, Kohelet, 206; J. A. Loader, Polar, 66; G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 30.

Page 392: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sol. A correspondência dos termos é singela: a doce corresponde agradável e à luz, o sol. Não está expresso o termo em cuja relação a luz é doce, mas o está para o que o sol é agradável, para os olhos. Algo é doce em relação ao paladar; é claro que doce toma-se aqui em sentido figurado, pois a luz não tem sabor (cf. também Is 5,20), mas é agradável e prazenteira, suave e causa de alegria e bem-estar etc. a quem pode percebê-la. Definitivamen­te, a luz é doce para todo ser vivente que a percebe, em especial para o homem; da mesma forma o sol é agradável para todo vivente que tem olhos para vê-lo, em especial o homem.12

Considera o autor a luz como entidade absoluta em si, independen- demente do sol, que ademais é fonte evidente de luz e de calor? A pergunta não é ociosa nem meramente curiosa, já que desde tempos muito antigos havia no oriente a crença de que a luz era independente em seu ser das luminárias principais, do sol e da lua. “Que exista a luz. E a luz existiu”, diz Gn 1,3; e pouco depois em Gn 1,14-18 são criados o sol e a lua “para reger o dia e a noite, para separar a luz das trevas” (Gn 1,18). A pergunta fica sem resposta, que de modo algum é necessária para captar a força significativa das realidades luz-sol.

A luz é uma realidade primária, como o são a terra, a água, o vento, o fogo; o recurso literário a ela não se pode qualificar de original, ainda que sim de fino e de bom gosto (cf. Is 60,1-3; Br 6,59; Tb 13,13; Sb 6,12; 7,26).13

O profundo valor simbólico da luz foi reconhecido pelos autores sa­grados. Representa-se a glória de Deus sob a imagem da luz (cf. Is 60,lss). Deus está sempre do lado da luz que é o bem, a norma, a lei (cf. SI 36,10; Pr 4,18; 6,23; Is 51,4).

As sentenças “dar à luz”, “ver a luz” estão diretamente relacionadas com o nascimento de uma nova criatura, com a vida real, em todas as culturas, também na israelita (cf. Jó 3,20). A luz é símbolo de alegria, felicidade e plenitude (cf. SI 97,11; Pr 13,9; 15,30; Is 9,ls). Tanto a luz como a expressão “ver o sol” são metáforas que significam viver (cf. Qoh 6,5; 7,11; SI 58,9).

A convicção de Qohélet sobre a beleza e a bondade da luz e da vida é total, por isso a partícula inicial waw traduz-se melhor por realmente do que por “e”.14

8. Para este v. 8 vale de maneira eminente o que dissemos há pouco dos w. 7-8 sobre a função introdutória; manifestam-no a composição e estrutu­

12Cf. Gilgamesh, Tabuinha X: ANET 89b; Teógnis 569: uma vez morto, “abandonarei a formosa luz do sol”; Eurípedes, Ifigênia en Áulide, 1218s: “Pois é agradável contemplar a luz”.

1JVeja-se o comentário a Sb 6,12 e 7,26 em J. Vílchez, Sabiduría (1990), 231s.261s.14Assim também K. Galling (cf. Der Prediger, 120) e A. Lauha (cf. Kohelet, 206.208) que conside­

ram o waw partícula de intensidade.

Page 393: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ra do versículo. Encabeça o versículo uma sentença temporal (muitos anos: v. 8aa); seguem os enunciados do primeiro tema: o desfrute (v. 8aß), do se­gundo tema: a lembrança (v. 8ba); retorna a sentença temporal (dias... mui­tos: v. 8bß) e termina com uma inclusão: tudo... é efêmero (v. 8by).15

Com o v. 8 não creio que Qohélet queira pôr em surdina a visão lumi­nosa e otimista do v. 7. Tudo o que de positivo que se diz da luz e da vida continua em pé, se bem que agora no contexto real da existência humana. Dentro desse contexto, na opinião de Qohélet, o homem deve tentar des­frutar da doçura da luz, da agradável visão do sol, ou seja, dos momentos bons da vida, dos poucos ou muitos anos de vida que aprouver a Deus lhe conceder (cf. 5,17; 8,15; 9,9) e com as matizações que fará depois em 11,9-10.16

Mas lembra-te\ E o segundo tema que se enuncia aqui brevemente e que se desenvolverá depois com mais amplidão em 12,lss. O que recomen­da agora Qohélet que o homem tenha presente em sua memória são os dias escuros que serão muitos. O que são esses dias escuros ou de obscuri­dade? Referem-se à morte, opinião mais generalizada,17 ou às inúmeras dificuldades que tecem a vida humana, especialmente em sua etapa final ou velhice? Parece-nos a nós mais provável essa segunda sentença, a que melhor se explica no contexto e a mais coerente com o modo de pensar de Qohélet sobre o além da morte.18

Com efeito, os dias escuros ou de obscuridade coincidem com os dias maus, com os anos de 12,1, que certamente se referem à velhice e estão na passagem que amplia o tema da lembrança, cujo objeto no v. 8 são os dias escuros. A grande antítese em todo o poema 11,7-12,7 é precisamente ju- ventude-velhice: a juventude é o tempo apropriado para desfrutar da vida (cf. 11,9), em contraposição à velhice em que não mais será possível des­frutar normalmente dos bens da vida (cf. 12,2ss).

Dos dias escuros Qohélet afirma que serão maus. Não é necessário ter garantia alguma do futuro (como supõe R. Gordis que é preciso ter), nem ser profeta para afirmar que serão muitos os dias escuros em nossa vida futura, pois é clara a intenção do autor, a de sublinhar que na vida de

15Cf. G. S. Ogden, Qoheleth xi 7-xii 8 ,29s; Qoheleth (87), 193s.l6J. A. Loader (cf. Polar, 66) e outros autores falam neste contexto do carpe diem de Horário (cf. Odes,

I 11.8); mas adverte em seguida sobre a diferença entre Qohélet e Horácio pela concepção religiosa é transcendente que Qohélet tem da vida e pelo convite à lembrança que faz logo em seguida.

17R. Gordis diz que “ymy hhshk (os dias escuros) não podem significar ‘velhice’ (contra Ehrlich)”, e dá duas razões: a primeira, “porque não há garantia de que seriam muitos”; a segunda, porque “hshk [escuridão] é um epíteto para ‘morte’ (cf. Qoh 6,4; ISm 2,9; Jó 10,21; 17,13; 18,18; SI 88,13; Pr 20,20)” (Koheleth — the man, 334s). Outros autores só remetem a R. Gordis e repetem os mesmos argumen­tos. A. Lauha também admite que os dias escuros, “como antítese de Ver o sol’, relacionam-se com a morte e com o nada sem fim no sheol” (Kohelet, 208); mas em seguida reconhece pelo menos a possibi­lidade de que “poderiam também aludir a eventual destino dificultoso da vida e aos achaques da velhice (cf. 12,3s)”.

18Cf. A. B. Ehrlich, Randglossen, 102; A. Bonora, Qohélet, 135.

Page 394: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

qualquer homem são mais os dias maus que os bons, sobretudo quando já se ultrapassou a juventude.

Segundo o que vimos que Qohélet pensa acerca do homem para além da morte, ainda poderia ter sentido a lembrança dos dias escuros como recordação da morte; mas não tem nenhum sentido acrescentar que serão muitos estes dias obscuros da existência do morto no sheol. Ver o que Qohélet diz: “O homem não supera os animais” (3,19); “um mesmo é o destino para o justo e para o mau” (9,2); “os vivos sabem que devem mor­rer, mas os mortos não sabem nada; para eles já não há recompensa... seus amores, seus ódios, suas paixões faz tempo que acabaram” (9,5-6); “não há ação, nem cálculos, nem conhecimento, nem sabedoria no abismo para onde te encaminhas” (9,10).

Sendo assim, Qohélet estimula ao desfrute da vida enquanto for pos­sível, ou seja, enquanto captarmos a doçura da luz e a formosura do sol, com a lembrança de que a juventude logo passa e está próxima a idade aziaga com seus achaques.

Por tudo isso termina o v. 8 com a sentença emblemática de todo o livro: Tudo o que vem é efêmero, é vaidade. Qohélet repete o célebre estri­bilho, se é que ainda restava alguma dúvida: não só o passado é apenas memória, sombra, nada; também o futuro, que está por vir carregado de promessas, que se espera e por que se anseia, também ele é efêmero, pas­sará como flor de um dia, como nuvem que não deixa rastro, como sombra inconsistente. Só nos resta o presente, ainda que tenha este a consistência do vento que corre veloz, que se desvanecerá como sombra, que se extin­guirá como a luz. Daí a urgência para tomá-lo e desfrutá-lo em sua brevi­dade própria e única, como nos repetirá em 11,9-10.

9. Após a introdução, proposta nos versículos precedentes, o autor con­vida diretamente o jovem ao gozo e à felicidade na vida. Serve de enganche o verbo principal em todo o versículo: desfruta (smh; cf. desfrute no v. 8a). São muito notáveis o desdobramento e o avanço que se faz no v. 9 do pensa­mento do desfrute. Do suave jussivo: que desfrute, passa-se ao urgente im­perativo direto: desfruta; a 3a pessoa converte-se em 2a; o homem genérico do v. 8 é aqui o jovem; o amplo desejo, de que o homem desfrute durante todos os anos de sua vida, restringe-se agora aos poucos anos da adolescência e juventude.19Tem-se a sensação de que há pressa, porque corre veloz o tempo e não se pode recuperar, não pára nem retorna. E é verdade, porque é co­mo flor a juventude e dela só se pode desfrutar enquanto durar seu verdor.20

19Cf. J. A. Loader, Polar, 109; G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 31; Qoheleth, 195.20O lírico Teógnis disse: “Vou dar um conselho aos homens: que enquanto tiverem a flor brilhante

da juventude, tenham pensamentos alegres, desfrutem de suas riquezas; pois não permitem os deu­ses aos mortais alcançar a juventude duas vezes nem livrar-se da morte” (1007-1010).

Page 395: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Jovem propriamente é o moço que deixou de ser menino e ainda não é homem maduro, nem está casado. Logicamente seu período de tempo cha­ma-se e éjuventude. O menino ou adolescente por si é menor que o jovem, já que ainda não chegou ao período da juventude, mas permanece na ado­lescência. No entanto, no v. 9 entende-se jovem mais amplamente, pois dele são a adolescência e a juventude, entendidas aqui praticamente como sinônimos.

Como pode o jovem desfrutar de seus anos de moço e ser feliz na flor da vida? Qohélet explicá-lo-á de forma afirmativa no v. 9b e de forma ne­gativa em 11,10. Sendo assim, a sentença imperativa: vá por onde diga teu coração e vejam teus olhos, é a configuração concreta do urgente e genérico desfruta, a forma prática de vir a realizar o objetivo de ser feliz; abarca a vida inteira do jovem, toda a sua conduta: a interior guiada pelo coração,21 e a exterior pelos olhos.

Estamos diante do convite ao desfrute e à alegria de viver mais aber­to e valente que se faz em toda a Sagrada Escritura e naturalmente não podia soar bem aos ouvidos dos israelitas, acostumados a outros discur­sos. Estes discursos advertiam os filhos de Israel quanto aos graves peri­gos que implicava deixar-se levar pelos desejos do coração que surgem perante o agradável que vêem os olhos. Em Nm 15,39 ordena-se aos israelitas que levem certos sinais exteriores: “Quando os virdes, recordar- vos-ão os mandamentos do Senhor e ajudar-vos-ão a cumpri-los sem ceder aos desejos do coração e dos olhos, que vos costumam seduzir”. O severo Jó confessa: “Fiz um pacto com meus olhos de não fixar-me nas donzelas” (31,1) e apela ao juízo divino para que veja se “afastei meus passos do caminho, se atrás de meus olhos foi meu coração” (31,7). Explica-se, por conseguinte, que o convite de Qohélet tivesse que ser completado com al­guma anotação esclarecedora, para evitar eventuais interpretações que convidassem à libertinagem.

Esta é a função do v. 9c: Mas sabe que por tudo isso Deus te levará a juízo. Surge agora grave problema exegético. Essa sentença, que certa­mente se distingue de seu contexto imediatamente anterior e posterior como cunha no centro dos w. 9-10, seria do próprio Qohélet ou teria sido acrescentada por mão posterior?

São poucos os autores entre os modernos que defendem a autentici­dade qoheletiana do v. 9c; entre eles sobressai H. W. Hertzberg.22 Da mes-

21Cf. A. Gianto, The theme, 531.22Hertzberg afirma sem arredar-se: “A representação dum juízo de Deus, seja durante a vida, seja

na morte... [não depois da morte], é algo evidente para Qoh. Assim a sentença 9b [9c] é perfeitamente possível no quadro da teologia de Qoh” (Der Prediger, 209).

Page 396: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ma maneira pensa J. A. Loader.23 Com efeito, Deus é, segundo Qohélet, o Senhor absoluto e a vida do homem está em suas mãos, por conseguinte qualquer disposição sua intra-histórica pode chamar-se e ser juízo (cf. 3,17 e comentário). Em todo caso, não nos deixa essa solução plenamente satis­feitos, razão por que buscamos a solução por outro caminho.

Recorremos assim à outra sentença que sustenta que 11,9c não é de Qohélet mas de redator posterior, muito provavelmente do mesmo autor de 12,14.24

Sinceramente cremos que interpretar 11,9c como glosa é a melhor solução exegética. 11,9c não deixa de ser estranha afirmação nesse con­texto de exortação ao sadio e bem entendido desfrute da vida, e supérflua apostila para os que conhecem o verdadeiro modo de pensar de Qohélet. Se bem que a interpolação pudesse também interpretar-se não como cor­reção do pensamento de Qohélet, e sim como ajuda a leitores pouco avisa­dos para não interpretarem mal a Qohélet e não caírem em libertinagem grosseira.

10. À pergunta que fazíamos ao comentar o v. 9: “Como pode desfru­tar o jovem em seus anos de moço e ser feliz na flor da vida?”, responde Qohélet no v. 10 de forma negativa: deve evitar o jovem tudo aquilo que se opõe ao gozo e à alegria. Para isso Qohélet utiliza a forma verbal domi­nante nessa secção, a imperativa. As duas sentenças abarcam a globalidade da vida do jovem, o aspecto interior: Afasta as penas de teu coração, e o exterior: alheia o mal de teu corpo. Como se vê, as duas sentenças estão construídas segundo o paralelismo sinonímico.

Afasta, alheia: duas atitudes de rejeição total e sem titubeios, porque o objeto ou termo de semelhantes ações percebe-se como abertamente con­trário ao desfrute gozoso e alegre da vida. Com efeito, as penas são tudo aquilo que pode causar dor, aflição, tristeza interior, aspecto que aqui se expressa muito adequadamente pelo coração. Pensamentos afins lemos

23Em controvérsia com K. Galling, escreve: “Uma vez mais isso [que 11,9c; 10b e 12,1a sejam interpolações de QR2] não se deveria aceitar. Os w. 9c e 10b devem-se entender à luz do contexto imediato (v. 8b), que faz de mishpat o juízo na morte. Ademais, o juízo de Deus no fim da vida [não depois da vida] é inteiramente compatível com o que Qohélet diz em outros lugares (cf. 3,17...)” {Polar, 109).

24D. Michel escreve: “A maioria dos intérpretes vêem em 11,9b (11,9c) uma glosa ortodoxa visando a proteger da falsa interpretação dos libertinos; ela poderia proceder do segundo epiloguista (cf. 12,14)” (Untersuchungen, 268 nota 31); cf. também K. Galling, Der Prediger, 121; A. Lauha, Kohelet, 205.209. H. Witzenrath, Süss ist, 4; N. Lohfink, Kohelet, 83b. R. B. Salters acrescenta que o tradutor grego do TH “ficou tão incomodado com os termos de 11,9 e tão pouco convencido do resultado da piedosa interpolação aí, que ademais modificou o texto. Ele traduz: ‘Caminha nas sendas de teu coração sem censuras e não no olhar de teus olhos’, mudando assim toda a índole da passagem” (Qoheleth, 342a). J. R. Busto Saiz crê que também a métrica está a favor de que o v. 9c seja glosa e acrescenta: “Ao menos neste caso... o livro de Qohélet sofreu uma modificação para adequar seu pensamento atípico à con­cepção teológica dominante no judaísmo” (Estructura, 25).

Page 397: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

em Eclo 30,21-23: “Não te deixes vencer pela tristeza nem abater por tua própria culpa: Alegria de coração é vida do homem, o gozo alarga os anos; consola-te, recupera o ânimo, afasta de ti a pena, porque a muitos matou a tristeza, e não se ganha nada com a pena”.

A segunda sentença imperativa: alheia o mal de teu corpo, completa a anterior à medida que nela se frisa o aspecto exterior da pessoa ao falar de corpo (carne no original). Pelo mal parece óbvio que se compreenda o mal físico como causa: tudo o que produz ou pode produzir mal físico, ou como efeito: o mal no corpo, na carne, como pode ser a doença, a dor.

O versículo está, portanto, recomendando que o jovem procure com todas as forças e meios possíveis a plena saúde psíquica ou mental e física, o equilíbrio perfeito interior e exterior. A medida que se consiga este ideal, poder-se-á desfrutar, segundo Qohélet, da alegria do viver em suas múlti­plas facetas.

O v. 10 termina com uma sentença causal: pois a adolescência e a juventude são efêmeras, que na verdade concerne também ao v. 9,25 razão por que também este v. 9c surge como elemento estranho. A fugacidade dos primeiros anos da vida: adolescência e juventude, a sensação que se tem de sua inconsistência pela rapidez com que passam, são, ao ver de Qohélet, argumento mais que suficiente para buscar com todo afinco o desfrute da vida. Passada a juventude, já será tarde, porque logo virão os “anos escuros”, “os dias maus” da velhice.26

2. Evocação da velhice: 12,1-7

12,lss liga-se estreitamente à perícope anterior. O segundo tema enun­ciado em 11,8: o da lembrança, volta-se a tomar e desenvolve-se a partir de 12,1a: Lembra-te; a luz aparece em 11,7a e em 12,2a; Deus em 11,9c, em 12,1a (Criador) e em 12,7b.27

Há quem se encarrega de sublinhar sua grande dificuldade: “Qoh 12,1­8 é a passagem mais difícil de um livro difícil”.28 Prova de sua dificuldade é a diversidade de interpretações que houve ao longo da história entre judeus e cristãos.

25Cf. G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 32. Observe-se a inclusão que forma adolescência com o v. 9.26Ao terminar essa primeira secção (11,7-10) do poema final, vale recordar a mensagem tão positi­

va e extraordinária de Qohélet com palavras de R. Kroeber: “A última coisa que Qohélet tem a dizer aos homens, em especial à juventude, é uma exortação à alegria na vida e na luz, enquanto há tempo. Como foi amante agradecido do ser este grande crítico da vida!” (Der Prediger, 154s).

27Cf. M. Gilbert, La description, 98s. M. V. Fox acrescenta que “As duas secções [A: 11,7-10 e B:12,1-8] estão unidas sintaticamente em 12,1. A série de imperativos da secção A continua em 12,1a. Em 12,1b começa uma série de sentenças temporais que descrevem o envelhecimento (secção B); tudo isso motivará o conselho da secção A” (Aging, 71 nota 1).

28M. V. Foz, Aging, 55.

Page 398: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Sempre predominou a interpretação alegórica; por isso foi quase limi­tada a dispersão de pareceres.29 Continua-se mantendo em nosso tempo a interpretação alegórica, se não inteiramente e pura, pelo menos mista.30 Pretender converter todo o poema 12,1-7 em alegoria, de sorte que cada pormenor tenha correspondência alegórica determinada, é insustentável.31 De fato, os autores tentaram outras soluções.32

D. Buzy creu que Qohélet nos legava em 12,1-7 não uma alegoria, e sim uma bela pintura, um retrato ou quadro da velhice.33 No entanto, J. F. A. Sawyer vê na passagem a descrição de casa arruinada, como parábola sobre o fracasso dos esforços humanos mais que como alegoria sobre a velhice.34

Creio não se poder classificar o poema enquanto tal em nenhuma for­ma literária uniforme, seja como for. Por isso se deve deixar ao estudo particular de cada passagem a determinação do gênero ou da forma literá­ria em que se expressa.35

A estrutura de 12,1-7 é bastante singela e clara: No cabeçalho uma sentença imperativa: Lembra-te (12,1a); seguem secções temporais com o mesmo encabeçamento: Antes que (‘ad ^sherlo0 em 12,1b, 12,2a e 12,6a.36

29São Jerônimo já dizia em seu tempo: “Tbt sententiae, paene quot homines” (Commentarius in Ecc XII,1: CCL 72,349). Referências à história da exegese podem-se ver em R. Gordis, Koheleth — the man, 338.341-349; A. Lauha, Kohelet, 207; M. Gilbert, La description, 96s; M. V. Fox, Aging, 56s; G. Vajda, Ecclésiaste (expõe a interpretação alegórica do judeu andaluz Isaac Ibn Gayyat); M. Gómez Aranda, Eccl 12,1-7, 121 (a propósito de Abraham Ibn Esra).

30Assim a chama L. Di Fonzo (cf. Ecclesiastes, 316). Defensores duma interpretação alegórica são, por exemplo, R. Gordis, Koheleth — the man, 338: “Alegoria da velhice”; A. Bea, Líber, 25s (w. 3-5); W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 246 (w. 2-5); H. W. Hertzberg, Der Prediger, 211s (w. 3-4a); L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 316-328 (w. 2-5.6-7); A. Lauha, Kohelet, 207 (w. 3-4a); N. Lohfink, Kohelet, 84a (w. 2-4).

31Como diz A. Lauha: “Este caminho levou ad absurdum, razão pela qual se deve buscar a solução em outro rumo” (Kohelet, 207). Também afirma que “a alegoria em geral não faz parte dos meios estilísticos preferidos de Kohélet” (Ibidem); mantém, no entanto, o sentido alegórico de 12,3-4a. Ne­gam explicitamente o sentido alegórico de 12,1-7, por exemplo, D. Buzy, Le portrait, 340; J. F. A. Sawyer, The ruined, 520; M. Gilbert, La description, 108; M. V. Fox, Aging, 56s.67s.

32M. A. Fox, consciente da dificuldade com que se confrontava, confessou honestamente que “ne­nhuma interpretação deste poema é totalmente satisfatória; nenhuma (inclusive a que vou apresen­tar) resolve todas as dificuldades” (Aging, 59); e dá as razões de seu ceticismo: “As obscuridades do poema devem-se em parte ao número de problemas filológico-textuais, em parte ao estado fragmentá­rio de nosso conhecimento dos costumes e símbolos do luto israelita, e em parte ao caráter enigmático do poema, cuja abundância de símbolos únicos ou raros sugere que podem ser pretendidos” (Ibidem).

33Ver seu artigo, Le portrait, especialmente p. 340. Nessa mesma linha é preciso pôr R. Pautrel (cf. UEcclésiaste, 38 nota b); M. V. Fox, Aging, 57.

34Cf. The ruined, especialmente p. 521.35Como nos diz L. Alonso Schõkel: “O autor parece mover-se da descrição direta ao símbolo profun­

do passando pela alegoria miúda e engenhosa. O efeito da peça é algo estranho pela mistura de proce­dimentos de estilo; é possível que fosse menos estranho para os contemporâneos o tecido das alusões” (Eclesiastés, 66).

36Cf. M. Gilbert, La description, 99; G. S. Ogden, Qoheleth xi 7-xii 8, 32; Qoheleth, 197; M. V. Fox, Aging, 71s nota 1; vejam-se também L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 66s; R. E. Murphy, Wisdom, 148; Eclesiastés, 52 ls.

Page 399: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12, 1 Lembra-te de teu Criador nos dias de tua juventude, antes que cheguem os dias maus e te alcancem os anos em que dirás: “Não lhes tiro mais gosto”;

2 antes que se obscureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e voltem as nuvens depois da chuva;

3 quando tremerem os guardiães da casa, e se encurvarem os robustos,e pararem as que moem, porque são poucas, e ficarem às escuras as que olham pelas janelas;

4 e se fecharem as portas da rua, enquanto se apaga o ruído do moinho, e se enfraqueça o canto do pássaroe forem se calando todas as canções.

5 Também terão medo desde na e terror na rua.Enquanto floresce a amendoeira, arrasta-se o gafanhoto e estala a alcaparreira; porque o homem vai para sua morada eterna e os que lamentam andam às voltas pela rua.

6 Antes que se rompa o fio de prata e se quebre a taça de ouro,e se despedace o cântaro na fonte e se destroce a roldana no poço;

7 e volte o pó à terra como erae volte o alento a Deus que o deu.

12,1 “Lembra-te”: lit. “e lembra-te”, pois por razões de estilo pode-se deixar de traduzir o waw copulativo (cf. Ges.-K., 154b). “teu Criador”: bor*’ eyka. Essa expressão, a única vez que aparece no hebraico bíblico, é o particípio ativo plural de br’ em Qal, mais sufixo da 2a. pessoa singu­lar = “teus criadores”; todavia, as versões antigas traduzem unanime­mente no singular, “teu Criador”, como se lessem no original bora ka (cf. Is 43,1 em paralelismo comyoçerka: teu formador) segundo o teste­munho de alguns Ms e como de fato defendem Ges.-K. 124k e Ch. F. Whitley, Koheleth, 95 nota 1 e 95s.Com toda razão qualificou-se essa passagem de crux dos intérpretes, pois é muito difícil decidir-se por uma ou outra solução. As hipóteses propostas são várias. A primeira e principal é manter o TM por ser a lectio difficilior. F. Delitzsch interpretou o plural como plural de majes­tade, “igual que ‘osim, com uma designação do Criador (cf. Jó 35,10; Is 54,5; SI 149,2)” (Commentary, 402); ver também W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 242 nota 4; A. Lauha, Kohelet, 210; N. Lohfink, Kohelet, 83b; M. Gilbert, La description, 100. R. Gordis crê, porém, que “este uso pode não ser ‘o plural de majestade’, mas antes o sufixo acrescenta­do a uma forma l’y” (Koheleth — the man, 340).Propuseram-se desde tempos muito antigos algumas correções ao TM que não chegam a convencer: bwrk = “tua fossa”, ou b’rk = “teu poço” (cf. BH; H. P. Müller, Wie sprach, 513 nota 1; Ch. F. Whitley, Koheleth, 95). Ultimamente J. R. Busto defendeu que bwr’yk é o plural de bwry com sufixo da segunda pessoa. O termo hebraico pós-bíblico bwry (“for-

Page 400: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ça”, “saúde”, “estado normal”) já teria sido utilizado por Qohélet; Qoh 12,1a diria, pois: “Sê consciente de tua boa saúde nos dias de tua ju­ventude” (J. R. Busto, bwr’yk, 87); cf. também F. Zimmermann, The original, 78 em F. Piotti, Osservazioni [1977], 120. Apesar de tudo, a leitura do TM é a mais firme de todas.

2 “depois da chuva”: R. B. Y. Scott prova que algumas vezes ’ahar signi­fica “com” melhor que “depois”; segundo ele, Qoh 12,2c seria um desses casos: “com a chuva” (cf. Secondary, 178). Poucos aceitaram a sugestão, entre estes M. J. Dahood (cf. Qoheleth and, 363s).

3 “Quando”: lit. “no dia em que” (cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 213). “porque são poucas”: M. Gilbert interpreta mVetu como um im­pessoal, a saber: “porque há pouca gente”, com o que desfaz a alegoria fisiológica (cf. La description, 104).

4 “as portas” corresponde ao dual dHatayim: “as duas folhas da porta”, “e se enfraqueça” corrige a pontuação do TM, a saber: weyiqmal qol (cf. BH e F. Piotti, Osservazioni [1977], 124); o TM em absoluto também tem sentido: “e se levante ao canto do pássaro”, mas então rompe-se o paralelismo com o membro seguinte e forem se calando: wyishshahu (cf. Ch. F. Whitley, Kohelet, 97). “canções”: lit. “as filhas do canto” (cf. F. Piotti, Osservazioni [1977] 125).

5 “terão medo” com Vg; o TMyr’«) é defectivo poryi^ u (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 97). “terror na rua”: lit. “terrores no caminho”. “Enquanto”: corresponde ao waw que se pode considerar “waw concomitantiae” (cf. Ges.-K., 154 nota l.b) ou “modal” (cf. R. Meyer, Gramática, 112,4a). “floresce”: preferimos o Qerê yaneç (imperfeito Hifil de nçç) com mui­tas versões ao Ketibyn’ç (imperfeito Hifil deyn ’ç: depreciar) (cf. Ges.- K., 73g; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 207; A. Lauha, Kohelet, 205; Ch. F. Whitley, Koheleth, 98). Mas M. Gilbert com outros prefere o Ketib (cf. La description, 105). “estala”: propõe-se também tuppar: “rom­pe-se” e “torna-se ineficaz” (cf. versões antigas; BH; F. Piotti, Osservazioni [1977], 125s). “sua morada eterna”: lit. “à casa de sua eternidade”.

6 “se rompa”: com as versões lemosyinnateq, já que o textoyeraheq: “está longe”, não dá sentido (cf. BH; BHS; R. Gordis, Koheleth — the man, 347; Ch. F. Whitley, Koheleth, 100); “se quebre”: com a maioria dos autores em vez de taruç: “corre”, lemos teroç, provavelmente Nifal de rçç: “romper-se” (cf. A. Lauha, Kohelet, 205).

7 “e volte”: como advertem os autores, aqui se esperaria não o jussivo weqashob (TM), mas o imperfeito weyashub (cf. tashub do hemistíquio seguinte). Mas também o jussivo pode-se usar no lugar do imperfeito, especialmente no começo da sentença (cf. Ges.-K., 109k; Ch. F. Whitley, Koheleth, 101; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 208, que apostila: “Em todo caso não se exclui que aqui se entenda: isso não somente é assim, mas também deve ser assim” (Ibidem).

12,1-7. Desta perícope, segundo quadro do grande poema final (11,7­12,7), fizeram-se os maiores elogios: “Talvez a sentença poética mais im­

Page 401: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

pressionante do livro”.37 Trata-se fundamentalmente de evocação da ve­lhice.38 A análise seguinte pode nos convencer da profundidade e beleza do poema.

1. O versículo começa com o imperativo lembra-te (uzfkor), que se re­laciona com mas lembra de 11,8b, como já adiantamos ao comentar este versículo. Trata-se do segundo tema da grande perícope 11,7-12,7: o tema da lembrança; o primeiro é o da alegria de viver (cf. desfruta: 11,8a e 11,9- 10).39Mas a grande novidade está no objeto dessa lembrança: lembra-te de teu Criador. E tanta a novidade, tão inesperada a referência direta a Deus Criador, que boa parte dos intérpretes antigos e modernos não conside­ram autêntica a passagem, mas tenta de mil formas substituir o TM por outras conjeturas.40

O autor confessou tantas vezes sua fé em Deus, que intervém na vida dos homens (cf. 1,13; 2,24-26; 3,13.17s; 6,2; 8,15; 9,1.7-9), em Deus criador de tudo o que existe e em particular do homem (cf. 3,11.14; 7,13s.29; 8,17), que não deveria estranhar que no final do livro e na última recomendação que faz insista com o jovem que se lembre de seu Criador.41 Apesar disso, chama bastante a atenção o tom com que Qohélet fala de Deus já a ponto de terminar seu livro. Dirige-se ao jovem, o mesmo de 11,9, como se desco­bre na repetição da fórmula nos dias de tua juventude (ll,9ap e 12,lap). E se antes se convidava o jovem a desfrutar da vida e a ser feliz nos anos de sua mocidade, insiste-se agora com ele que se lembre de seu Criador en­quanto é jovem. Não são de modo algum os convites contraditórios, nem o segundo desempenha papel de moderação sobre o primeiro; constituem antes dois convites complementares.42

37M. Schubert, Schopfungstheologie, 130.38Ou, como diz L. Alonso Schükel, do “canto triste e melancólico da velhice” (Eclesiastés, 66).39A primeira coisa que percebemos é que é premente e urgente esse convite.40Vejam-se as notas filológicas. O Tratado da Mishná Abot diz em 3,1: “Acabias, filho de Maalalel,

dizia: Considera três coisas e não cairás no pecado. Precisas saber de onde vens, aonde vais, diante de quem terás que prestar contas. Donde procedes? Duma gota corrompida. Aonde vais? Ao lugar do pó, da corrupção, dos vermes. Perante quem prestarás contas? Diante do Rei dos reis, o Santo, “bendito seja!’ ” Essa passagem é citada no Tratado Sotah 2,2 do Talmud de Jerusalém com alusão expressa a Qoh 12,1: “Por que o emprego da água, da terra e da escritura? A água deve recordar à mulher sua origem; a terra alude a seu destino futuro, aonde ela irá; o escrito indica que ela se encontra diante daquele a quem mais tarde deve dar conta de sua conduta. Em outro lugar [Abot 111,1; Rab. Lev., 18] se ensinou: ‘Acabias, ben Maalalel fala de considerar três coisas para evitar o pecado’. R. Aba, filho de R. Papi, e R. Josué de Siknin diz em nome de R. Levi: Acabias deduziu as três coisas de um só e mesmo versículo (Ecl 12,1): Lembra-te de teu Criador, este último termo pode ser lido (no texto hebraico) de três maneiras: 1®) ‘tua fonte’ (b’rk), de onde tu vens; 2-) ‘tua fossa’, aonde vais; 3a) “teu Criador’ (bwr’yk), a quem um dia darás conta de tua conduta”. Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 341, que menciona essas passagens.

41Sobre a coerência de 12,1 com o modo de pensar de Qohélet veja-se H. W. Hertzberg, Der Prediger, 210. Existe semelhança de Qohélet com Gn 1 no uso do verbo br’ e no mesmo espírito positivo com relação à criação em geral e à do homem em particular (cf. H. P. Müller, Theonome, 17s; Der unheimliche, 453).

42H. P. Müller diz: “O chamado à alegria de viver (ll,9aa) interpreta-se em 12,1a como chamada a pensar no Criador; 12,1a é, portanto, ...convite à alegria da vida, não advertência contra a irres­ponsabilidade no gozo da vida” (Der unheimliche, 452 nota 40).

Page 402: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A recordação do Criador não é a sombra de um pesadelo, nem o moti­vo para converter a alegria e o gozo serenos em prantos e lamentações, mas o firme fundamento teológico do chamamento ao desfrute e à alegria na vida. Muito poucos foram os autores que frisaram esse aspecto teológi­co de Qohélet que faz com que o Deus, aparentemente distante segundo5,1, esteja perto dos momentos felizes do jovem e de todo homem em sua vida sob o sol; proximidade acentuada pelo uso da 2- pessoa: teu Criador. O jovem deve pensar, pois, em Deus como seu Criador, com a convicção de que existe entre os dois relação íntima, próxima e pessoal;43 Deu-lhe ele a vida e tudo aquilo que nela é causa de alegria e gozo. Nos dias de tua juventude não indica tempo exclusivo fora do qual não se deva recordar o Criador, mas o período próprio do jovem. Poder-se-ia dizer que tem a ex­pressão unicamente função estrutural, enquanto para trás nos recorda11,9a e para adiante se contradistingue da expressão antes que..., que ar­ticulará a perícope até o final (cf. 12,lb.2a e 6a).

Sendo assim, 12,1 é como o gonzo sobre que gira a perícope,44uma vez que encerra as considerações sobre o jovem e seu tempo, a juventude, em sua segunda parte abre-se às reflexões sobre a velhice neste magnífico poema, carregado de belas imagens, metáforas e símbolos.

Antes que... abre o poema sobre a velhice e acompanhará as reflexões poéticas sobre o homem no último trecho da vida. Antes que cheguem os dias maus. O que são estes dias maus que hão de vir? Os autores dividem- se em suas opiniões.45 Duas, porém, são as sentenças que vale a pena re­cordar. Uma sustenta que Qohélet referindo-se à morte com os dias maus, da mesma forma como em 11,8b com os dias escuros.*6 Contudo, é maior o número dos que opinam que os dias maus aqui só podem significar “os dias da velhice”.47 Aceito essa sentença, primeiro porque o próprio versículo12,1 o está indicando, pois 12,1b está em paralelismo sinonímico com 12,1c: e te alcancem os anos..., que não podem referir-se senão à velhice; e em segundo lugar porque em todo o grande poema àjuventude, centro de 11,7­10, somente se pode opor a velhice, centro de atenção de 12,1-7.

A ancianidade é venerável, mas é a época de achaques, fraquezas de saúde, perda do frescor dos sentidos corporais. Por isso pode dizer o ancião com verdade que já não lhe dão gosto os anos, porque nem seu corpo nem

43H. P. Müller escreve: “O sufixo pronominal -ka ...parece designar giro de religiosidade individual familiar” (De unheimliche, 453s).

“ Cf. M. V. Fox, Aging, 71 nota 1.45Pode-se ver breve resumo dessas em G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 33s.46Cf., por exemplo, G. S. Ogden, Qoheleth xi 7- xii 8, 33s; Qoheleth (87), 198s; H. P. Müller, Der

unheimliche, 452.47Cf. W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 245s; R. Gordis, Koheleth — the man, 341; L. Di Fonzo,

Ecclesiaste, 315a; L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 67; A. Lauha, Kohelet, 210.

Page 403: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

sua mente respondem aos estímulos exteriores como nos anos do vigor da juventude. E realidade confirmada pela experiência antiga, moderna e contemporânea, apesar da diferença tão abissal da qualidade de vida de antes e de agora; ainda é válido o testemunho do grego Mimnermo: “Quando chega a hora da dolorosa velhice, que deforma até mesmo o homem formo­so, sempre lhe rondam o coração tristes inquietudes e já não se regozija contemplando os raios do sol”.48

2. Se o v. 1 nos introduzia de modo geral na esfera da ancianidade, o v. 2 nela nos instala de modo particular. O autor repete pela segunda vez a expressão antes que, seguida de duas observações de fenômenos naturais: o escurecimento da luz, como conseqüência do escurecimento das fontes dela durante o dia e a noite, e a aparição do céu nublado mesmo depois da chuva. Esses fenômenos da natureza têm pleno sentido em si mesmos, mas utiliza-os aqui o autor por seu valor metafórico, facilmente perceptí­vel. O primeiro binômio: o sol I a luz,49 que nos recorda o começo do grande poema em 11,7, remete-nos ao dia natural e solar; o segundo binômio: a lua / as estrelas, transladam-nos imaginariamente à noite. Como se po­dem escurecer o dia e a noite? Unicamente se o céu se cobre de nuvens, o que costuma acontecer de maneira permanente no hemisfério norte só durante o inverno, se este for normal. Muito relacionado com o fenômeno anterior está o segundo, nublado depois da chuva, mas neste o centro de atenção não é a luz / escuridão, e sim a persistência das nuvens. Fora do tempo invernal, normalmente depois da chuva o céu fica mais ou menos claro em pouco tempo. Somente depois dos mais persistentes temporais do inverno, à chuva não segue tempo claro sem nuvens, mas o céu perma­nece coberto de nuvens e ameaça com novas chuvas e aguaceiros. Qual­quer observador dos fenômenos atmosféricos pode constatar a veracidade dessas afirmações.

Mas a pergunta surge espontaneamente: porém o que pretende Qohélet com essas claras alusões ao inverno meteorologico? No atual contexto, sua intenção é claramente metafórica, ou seja: Qohélet vale-se do poder suges­tivo do inverno metereológico para falar-nos do inverno simbólico do ho­mem, que é sua velhice. De modo semelhante aò inverno real, na velhice predominam não a luz, e sim a escuridão, não o tempo agradável e sereno (a saúde), mas o borrascoso e tormentoso (a doença e os achaques).

O valor metafórico não passa daí, porque naturalmente ao inverno metereológico segue a primavera, não segue, porém, à velhice uma nova

^Elegias, I, 5-8. Tradução de F. Rodríguez Adrados, em Líricos griegos, I, Madri, 1981, 218.49Pode-se entender como hendíade: “a luz do sol” (assim L. Alonso Schõkel, Eclesiastés, 67), ou

como duas entidades independentes (ver interpretação de 11,7).

Page 404: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

juventude; a esperança morre nela, não há mais porvir e futuro espe­rançoso.

3-4. Com o v. 3 muda o mundo das imagens: do amplo mundo dos fenômenos da natureza (v. 2), passa-se ao âmbito reduzido de moradia na cidade (w. 3-4). O que dissemos na introdução a 12,1-7 sobre a variedade de interpretações ao longo da história, tem sua mais plena aplicação a partir de 12,3. Esta é a passagem que mais abertamente se interpretou como alegoria fisiológica da velhice.

Conseguiu-se, dentro da indiscutível variedade, entre os intérpretes antigos e modernos certa convergência de pareceres quanto à correspon­dência entre o texto: uma casa com seus moradores e suas atividades, e os membros corporais do ancião. Por “guardiães da casa” geralmente se en­tendem os braços e a mão (o tremor das mãos é algo típico dos anciãos); “os robustos” são as pernas; “as que moem” são os molares (com o tempo vão ficando poucos dentes na boca do ancião); “as que olham pelas janelas” são os olhos que pouco a pouco perdem sua capacidade de visão; “as portas da rua” são ou os lábios ou os ouvidos; “o moinho” é a boca e seu ruído a fala que no ancião cada dia é mais fraca.50

Mas a interpretação alegórica certamente não é a única possível e alguns, como vimos na introdução, até a rejeitam inteiramente. Não se pode negar que o texto nos apresenta uma casa em decadência: é o exem­plo ou a parábola, porém o texto mesmo não a entende alegoricamente, porque não se detém em dar correspondências significativas. O autor não se detém na mera descrição dos traços, das situações, dos símbolos, mas com estes elementos significativos e sugestivos nos quer introduzir no mundo da velhice, da decrepitude do homem que está chegando ao final de suas possibilidades vitais. O contexto próximo assim o indica: o jovem deve recordar-se de seu Criador no tempo de sua plenitude, de sua juven­tude, antes que chegue o tempo da impotência e da decadência vital, ou seja, a velhice; quando... e aduz o exemplo da casa em outro tempo toda atividade e vida (o jovem em plena atividade), agora a ponto de ser fecha­da definitivamente (o ancião decrépito). Este momento ainda está longe, mas apresenta-o o autor à consideração do ainda jovem que na mente de Qohélet é o leitor.

Em 12,3 Qohélet fala dos habitantes da casa,51 que se supõe grande, solarenga, como glorioso passado, cheia de vida, mas que já não o é, já que seus guardiães, os que vigiavam por sua segurança dia e noite, agora são

50Cf. correspondências alegóricas em H. W. Hertzberg, Der Prediger, 211s; A. Lauha, Kohelet, 211­213; R. E. Murphy, Eclesiastés, 522; J. A. Loader, Polar, 110; N. Lohfink, Kohelet, 84.

51Cf. M. Gilbert, La description, 103.

Page 405: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

seres trêmulos não por medo, porém por falta de forças. Aos criados- guardiães correspondem os senhores, os robustos, que já não o são porque estão encurvados, sinal de que são muito velhos. Ao mundo masculino da casa grande (criados-senhores) segue o mundo feminino: as que se ocu­pam da moenda,52 trabalho cada dia menos urgente, porque tanto elas como suas senhoras e inquilinos em geral são menos.53

E ficarem às escuras as que olham pelas janelas: preferimos a inter­pretação que descobre aí o tópico da mulher que se assoma à janela (cf. Jz 5,28; 2Sm 6,16; 2Rs 9,30; Pr 7,6) ao da interpretação alegórica.54Ficam às escuras ou porque na casa não há mais atividade, ou porque também as senhoras com os anos vão perdendo a vista.

12,4 faz parte do mesmo período gramatical que o v. 3 e segue seu ritmo. Se fecharem as portas:55 Dos moradores da casa saltamos para a casa que vai ficando em silêncio profundo; de fora não entra o ruído, já que as portas se fecham, e dentro cessa toda atividade alegre e ruidosa: o ruí­do do moinho.

Aversão que preferimos no v. 4b mantém o paralelismo com o v. 4a: ao fechar das portas corresponde o fato de quase não se ouvir o canto dos pássaros (de fora para dentro) e dentro de casa ao cessar o ruído do moi­nho o cessar de todas as canções. Também conserva-se o paralelismo entre as duas sentenças de 12,4b: se enfraquecer / forem se calando-, o canto do pássaro / todas as canções.

Em resumo. A descrição com matizes poéticos da decadência da casa solarenga constitui magnífico recurso literário para descrever a progres­siva decadência da vitalidade humana, sem que seja necessário fazer um esquema de equivalências como na interpretação alegórica fisiológica.

5. O versículo muda de sujeito, que pelo sentido do contexto só pode ser “os anciãos” aos quais metaforicamente (ou alegoricamente) se referi­ram os versículos anteriores.56 Qohélet refere-se no v. 5a ao simbolizado nos w. 2-4 e que resumimos no comentário ao v. 4. O homem manifesta seu estado de desvalimento e insegurança ao chegar à velhice, entre ou­tras formas pelo medo das alturas e pelo horror e pavor ao trânsito pelas ruas e praças.

52“Trabalho próprio das mulheres no oriente, cf. Mt 24,41" (cf. F. Zorell, Lexicon hebraicum, 284a; F. Piotti, Osservazioni [1977], 121.

53M. Gilbert, ha description, 104.“ Cf. M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 213s contra F. Piotti, Osservazioni [1977], 123.55Não é necessário recorrer a interpretações engenhosas sobre se são duas ou uma as folhas das

portas na Palestina; só se frisa o fato da falta de comunicação com o exterior.56Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 344. J. F. A. Sawyer defende, porém, que não ocorre mudança

de sujeito gramatical do final do v. 4 ao v. 5, mas que é o mesmo, ou seja, os pássaros que “olham para baixo desde o céu” e contemplam a casa arruinada (cf. The ruined, 527s), mas ele ficou só com sua nova interpretação.

Page 406: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12,5b é uma das passagens mais controvertidas e obscuras de Qohélet.57 Começa o versículo estabelecendo simultaneidade entre a situa­ção psíquica do ancião e uma série de fenômenos da natureza vegetal e animal.58 Segue a passagem obscura, cuja interpretação plasmou-se em duas correntes inteiramente divergentes. Uma que podemos qualificar de pessimista e negativa: no primeiro membro sobre a amendoeira ou se se prefere o Ketib e se traduz “a amendoeira causa asco”,59 ou o Qerê: “a amen­doeira floresce”, mas explica-o alegoricamente com referência à cabeça encanecida do ancião.60 Sobre o gafanhoto que se diz que se torna pesado, aludindo ou diretamente à debilidade do estômago do ancião, a qual se torna pesada como o gafanhoto,61 ou se interpreta alegoricamente, enten­dendo a imagem do pesadume do gafanhoto como a vagareza do ancião, que se manifesta sobretudo em seu andar cansado.62 Por último se diz que a alcaparreira perdeu seu efeito como remédio culinário da inapetência, própria do ancião,63 ou como inútil afrodisíaco para excitar o apetite se­xual, também extinto (!) no ancião.64

A outra corrente de interpretação estabelece claro contraste entre o estado de caducidade do ancião, que se encaminha a seu fim irreversível, a morte, e a evocação poética da natureza vegetal e animal, que surge vigorosamente à vida na primavera e verão, como no-lo diz o autor em suas referências diretas à amendoeira, ao gafanhoto e à alcaparreira. A amendoeira floresce realmente em pleno inverno, como adiantamento da primavera; o gafanhoto vive e multiplica-se no verão. O gafanhoto mais que voar arrasta-se desajeitadamente entre os restos de colheitas e mata­gais secos do verão. A alcaparreira amadurece em pleno verão; suas ba­gas, muito apreciadas entre os camponeses, materialmente se arreben­tam, espalhando pelo solo suas sementes fecundas.65

57Dele escreve Ch. F. Whitley: “Obscura alegoria e incerteza textual combinam-se para fazer desta linha uma das mais difíceis de Koheleth” (Koheleth, 97s), e R. Gordis: “os estíquios c, d e e [12,5b] obviamente são figurados, mas o significado está longe de ser claro” (Koheleth — the man, 344).

58Ver esclarecimento em Nota filológica a enquanto.59Cf. M. Gilbert, La description, 105.“ Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 345; L. Di Fonzo, Ecelesiaste, 321s; R. E. Murphy, Eclesiastés,

522.61Cf. M. Gilbert, La description, 105.62Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 322; R. E. Murphy, Eclesiastés, 522.63Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 322a; R. E. Murphy, Eclesiastés, 522; M. Gilbert, La description,

105.“ Cf. especialmente R. Gordis, Koheleth — the man, 345-347, que se fundamenta em autores antigos.65H. W. Hertzberg nos diz que “o sentido é inteiramente claro: fora é primavera, é verão; o tempo

da floração e maturação aí está, mas o ancião já não participa dele, ele morre? (Der Prediger, 213); cf. K. Galling, Der Prediger, 122. Aproximam-se bastante dessa interpretação, ainda que com matizes próprios, J. F. A. Sawyer, The ruined, 528s; A. Lauha, Kohelet, 213s; J. A. Loader, Polar, 110; N. Lohfink, Kohelet, 84b.

Page 407: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

O autor utiliza muito bem a técnica dos contrastes neste v. 5: a descri­ção da primavera e do verão como o despertar da natureza à vida e a chegada à sua plenitude (v. 5b) acha-se intercalada entre os temores e terrores do ancião (v. 5a) e a alusão direta à morte e aos ritos funerários (v. 5c). Esta última linha do v. 5 desvela sem metáforas o destino último do homem, sua morada eterna, “firme designação do túmulo”,66 onde se pen­sa que repousará para sempre. Assim se expressa a Escritura: “O sepulcro é sua [do morto] morada perpétua e sua casa de idade em idade” (SI 49,12; cf. Tb 3,6: “eterna morada”; Ez 26,20).

No final do v. 5 descreve-se uma das principais cerimônias fúnebres, a do pranto ritual pelo morto, executado principalmente por mulheres, mas também por varões. Esse costume está bem atestado pela Sagrada Escritura (cf. Am 5,16; Zc 12,10-14; Jr 9,16-18; 22,18; 34,5).67

6-7. Chegamos à última secção da perícope 12,1-7, como no-lo indica a expressão antes que (cf. 12,1b.2a). O tema inequívoco é a morte, a que o homem, todo homem, destina-se ineludivelmente. Esta se expressa no v. 6 com várias metáforas e no v. 7 diretamente segundo o uso já consagrado na Sagrada Escritura. Quanto à construção das sentenças nos w. 6-7, ob­serva-se grande regularidade que faz com que o estilo literário seja bom: verbo + sujeito + um complemento, menos no v. 7b: sujeito + verbo + com­plemento.68

6. O versículo consta de quatro sentenças que decididamente se deve entender em sentido metafórico, como no-lo revela a chave de interpreta­ção, o v. 7: “Neste versículo descreve-se metaforicamente a chegada da morte”.69 Os quatro verbos praticamente são sinônimos e expressam a idéia de destruição.

Vale-se o autor de uma ou de duas imagens no v. 6? Segundo R. Gordis, a imagem em que se sustenta a visão do autor é uma só.70 Parece, porém, mais objetivo falar de duas imagens, cada uma das quais se desenvolve em dois quadros.71 A primeira imagem é a de uma lamparina (a taça de

66N. Lohfink, Kohelet, 85a.67Cf. R. de Vaux, Les institutions, I, cap. VI.5, pp. 99s; F. Piotti, Osservazioni [1977], 127.68Cf. M. Gilbert, La description, 106, que também observa que “em 12,6-7 há alternância contínua

de masculino e feminino; 6a: masc.-fem.. 7: masc.-fem”. (Ibidem). Por essas razões crê M. Gilbert que se deve excluir qualquer hipótese que não considere o v. 7b como autêntico (cf. a. c., 106s), como faz, por exemplo, H. P. Müller em Der unheimliche, 443 nota 9.

69R. Gordis, Koheleth — the man, 347; cf. D. Buzy, Le portrait, 338.70"[L.] Levy, seguindo Ibn Ezra, defende convincentemente que aqui existe somente uma imagem,

a do poço que funciona com uma corda atada a uma roda; um extremo da corda sustenta um cântaro, o outro uma bola (...) como contrapeso. Quando se rompe a corda, o cântaro e a roda caem todos ao fundo do poço e espatifam-se” (Koheleth — the man, 348).

71Os materiais preciosos: prata e ouro, são decisivos para admitir duas imagens e não uma só, pois o fio de prata não pode ser a corda que sustenta o balde para tirar a água, nem o balde ou cântaro convém o apelativo de taça de ouro (cf. N. Lohfink, Kohelet, 85a).

Page 408: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

ouro) que pende duma corda, dum fio de prata (primeiro quadro); rompe-se o fio de prata, a lamparina também se rompe (segundo quadro). A segunda imagem é a da roldana fixa em cima do bocal do poço ou da cisterna, com uma corda que deslisa pelo entalhe da roldana e que num extremo leva ligado um cântaro ou vaso de barro para tirar a água do fundo. Se o meca­nismo que sustenta a roldana se rompe, despedaçar-se-á o cântaro ao ba­ter contra as pedras que rodeiam a boca do poço (terceiro quadro) e cairá destroçada a roldana ao fundo do poço (quarto quadro).72 As imagens são verdadeiramente expressivas do fato da morte, como se manifesta no versículo seguinte.

7. Este versículo inspira-se em Gn 2,7; 3,19 e em outras passagens da Escritura, onde se reflete a concepção antiga circular: com a morte volta- se ao ponto de origem, o pó ao pó (cf. 3,20b e comentário), e o alento de vida a Deus que o deu (cf. SI 104,29s; Jó 34,14s; Eclo 40,11), pois ele é o verda­deiro e único Criador dos viventes.73 Esse retorno do alento vital do ho­mem a Deus não significa “senão que Deus volta a tomar com a morte a vida emprestada à criatura”.74 De nenhuma maneira sequer insinua Qohélet o tema da imortalidade pessoal. Muitos autores manifestam-se com clareza;75 outros, porém, ainda continuam mantendo que o pensamento último de Qohélet sobre a sobrevivência individual além da morte não se diferencia do comum sentir da tradição israelita acerca da existência umbrátil dos mortos no sheol.76

Aqui termina o poema de Qohélet sobre a velhice. Mas recordemos que todas as reflexões sobre a ancianidade e a morte estão subordinadas ao imperativo inicial de 12,1a: “Lembra-te de teu Criador nos dias de tua juventude”, razão pela qual o pensamento de Qohélet no final do livro e antes da palavra final em 12,8 é claramente positivo.

72Cf. A. Bea, Liber, 26; R. E. Murphy, Eclesiastés, 522. N. Lohfink diz a respeito da roldana do poço que “essa inovação técnica foi introduzida pela primeira vez na Palestina no século III [a.C.]” (Kohelet, 85a). O dado é muito importante para a datação de Qohélet, mas não se aduz nenhuma documentação histórica ou arqueológica que o prove (ver também A. Bonora, Qohélet, 139).

73Cf. M. Gilbert, La description, 100, que chama acertadamente a atenção para o fato de que “o contexto certamente está em relação com o ato criador [12,1], De mais a mais, a ruah foi dada precisa­mente na criação”.

74R. Kroeber, Der Prediger, 156. Sobre o conceito de vida emprestada pode-se ver meu comentário a Sb 15,8 em J. Vílchez, Sabiduría (1990), 399s.

75R. Kroeber afirma: “O pensamento duma imortalidade pessoal, duma permanência da indivi­dualidade em qualquer forma, não se dá. A morte, a permanente ameaça obscura no contexto da vida, significa o fim absoluto de todo ser” (Der Prediger, 156s). Assim também se expressa J. Steinmann: “O destino pessoal de cada um termina com a morte, porque escapa à repetição do ciclo vital” (Ainsi, 116). Também L. Alonso Schõkel: “Isso não implica sobrevivência nem imortalidade da alma” (Eclesiastés, 68); R. E. Murphuy, Eclesiastés, 522; A. Schoors, Koheleth, 302; N. Lohfink, Kohelet, 85.

76G. Pérez Rodríguez, Eclesiastés, 926s. Ver Qoh 3,21 e 9,10 e meus comentários correspon­dentes.

m

Page 409: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12,8 Vaidade das vaidades — diz Qohélet — , tudo é vaidade!

Já falamos de 12,8 como sendo a palavra final do livro, pelo menos em duas ocasiões: no começo, ao estabelecermos que 1,2 e 12,8 constituíam o marco que encerrava o livro em sua totalidade,1 e por fim a propósito do final da perícope anterior 11,7-12,7, em sua introdução.2

Como recurso estilístico, a repetição em 12,8 da sentença Vaidade das vaidades... dá lugar a uma inclusão, “a grande inclusão do livro com 1,2”,3 “que define o limite do livro”.4 Sendo assim, fica claro “que se com­pôs a passagem para servir de final de todo o livro”.5 Mas quem seria na realidade o autor de 12,8? A opinião mais comum entre os autores con­temporâneos é que se deve essa inclusão, esse marco, à perícia do aluno­editor da obra.6 Não se pode, porém, descartar absolutamente, que o au­tor de 12,8 (assim como também de 1,2) seja o próprio Qohelet.7

Quanto ao sentido da sentença Vaidade das vaidades... remetemos ao Excursus II sobre hebel. O sentido deve ser neste momento final mais transcendental. Segue imediatamente a afirmação terminante do fato da morte como selo final da vida, a única vida do homem sobre a terra. Se o mais apreciado que o homem possui, a própria vida, dissipa- se com a morte como a brisa ou o vento, o que há entre tudo o que existe ou possa existir, exceto Deus, que possa merecer juízo positivo? Nada, absolutamente nada. Por isso diz Qohélet com toda razão que tudo é vaidade.

Recordávamos as palavras de F. Ravasi: “Com efeito, indica seu começo (1,2) e põe o selo em seu final (12,8)” (Qohelet, 21). Ver também K. Seybold, hebel, 342; K. Galling, Der Prediger, 84; A. Lauha, Kohelet, 30; Bo Isaksson, Studies, 106s; D. Michel, Untersuchungen, 2 e 40.

2Com palavras de J. R. Busto Saiz: “12,8, a meu ver, não encerra o poema [11,7-12,7] mas o conjun­to do livro” (Estructura, 20).

3M. Gilbert, La description, 97.4G. S. Ogden, Qoheleth x i7 - xii 8, 35. Fazem referência à inclusão de 1,2 e 12,8 autores como B.

Pennacchini (cf. Qohelet, 495), A. G. Wright (cf. The riddle [1980] 43); J. L. Crenshaw (cf. Ecclesiastes, 57 nota 3, p. 58); G. Ravasi (cf. Qohelet, 25 nota 16); W. Vogel, Performance, 369; cf. também J. A. Loader, Polar, 8.

5J. A. Loader, Polar, 109.6Cf. F. Ellermeier, Qoheleth 1 1, 94ss; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 122s; K. Galling, Der Prediger, 84;

A. Barucq, Eclesiastés, 29 = Ecclésiaste, 27; R. Albertz, hebel, 468; A. Lauha, Kohelet, 30; O. Kaiser, Die Sinnkrise, 93s; Bo Isaksson, Studies, 106s; J. L. Crenshaw, Eclesiastés, 58; D. Michel, Untersuchungen, 40. Que esse aluno-redator seja o primeiro dos dois redatores de Qoh ou o único, é disputa de somenos importância. Este problema está relacionado com o que já dissemos na Introdu­ção, secção V, sobre a Composição de Qoh 3.2.C.

7Diz D. Lys: “Se se trata de afirmação favorita de Qohélet, é muito provável que tenha ele mesmo emoldurado o seu livro com ela... sem esperar as atenções de discípulo para fazê-lo” {L’ Ecclésiaste, 87). No mesmo sentido expressam-se G. Ravasi (cf. Qohelet, 23 nota 16) e L. Di Fonzo (cf. Ecclesiaste, 122s).

Page 410: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Encerrado o livro com 12,8, o que vem a seguir é verdadeiro apêndice ou epílogo do livro. Os sinais que demonstram que 12,9-14 constitui acrés­cimo reconhecem-se geralmente por todos.1 As discrepâncias versam sobre se esse acréscimo é de Qohélet ou provém de outra mão, e, nessa segunda hipótese, se intervieram um ou vários autores.

A pergunta sobre o autor ou autores de 12,9-14 e sobre sua unidade ou diversidade deram-se muitas e variadas respostas desde fins do século passado.

Consignamos, em primeiro lugar, a sentença que repete o que tradi­cionalmente se vinha dizendo: 12,9-14 são palavras do próprio Qohélet.2 No entanto, a opinião dominante majoritária no presente defende que o epílogo 12,9-14 não foi escrito por Qohélet, e sim por outro ou outros auto­res, segundo especificamos a seguir. Continuam, com efeito, os autores perguntando se Qoh 12,9-14 constitui um só apêndice ou não é formado antes por dois ou três epílogos acrescentados ao corpo do livro por mãos distintas e em tempos diversos.

Que Qoh 12,9-14 forme um só epílogo ou apêndice, defendem, além dos que o atribuem ao próprio Qohélet, outros autores que vêem nele mão distinta da do autor principal do livro, com muita probabilidade a de um discípulo e admirador do mestre Qohélet.3

São maioria, porém, os intérpretes que descobrem em 12,9-14 dois epílogos, acrescentados à obra geral por autores diferentes e com diversa finalidade.4 Aderimos a essa sentença pelas razões que aduziremos no co­mentário.

lOs principais são: nos w. 9-10 não fala Qohélet, mas fala-se de Qohélet. No v. 12 chama-se o discípulo de “meu filho” pela primeira e única vez em Qoh; no mesmo versículo introduzem-se, de mais a mais, temas novos: o dos muitos livros e da fadiga no estudo. A orientação fundamental dos w. 13-14 não se encaixa bem com a doutrina de Qoh em todo o livro; fala-se também pela primeira vez de “mandamentos” de Deus.

2Assim, por exemplo, F. Delitzsch em 1875 (cf. Commentary, 206s e 429s). Também J. J. Serrano alinha-se com Delitzsch (cf. Qohélet, 581).

3Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 351: “E melhor considerar o epílogo inteiro como unidade”; E. Glasser, Le procès, 176s: “Mantemos para esse breve apêndice a unidade de autor. Este sem dúvida é colega e amigo de Qohélet a quem o nosso sábio confiou a edição de sua obra”; cf. R. E. Murphy, Eclesiastés, 523; G. H. Wilson, ‘The words’, 175s.

4W. Zimmerli defende que 12,9-11 foi escrito por um discípulo (cf. Das Buch des Predigers, 249) e 12,12-14 por um segundo epiloguista para que o livro pudesse entrar sem dificuldades no cânon (cf. a. c., 250). Sustenta essa mesma visão, entre outros, R. Kroeber, Der Prediger, 157; K. Galling, Der Prediger, 124 (QR1 é o discípulo que escreve 12,9-11) e 125 (QR2 é um mestre de sabedoria que escre­ve 12,12-14); S. Holm-Nielsen, On the interpretation, 169s; The book, 49.52s; A. Lauha, Kohelet, 217.220 (12,9-11 procede de um discípulo: Rl) e 221 (12,12-14 é de um segundo redator: R2); N. Lohfink, Kohelet, 85b-86; G. S. Ogden, Qoheleth [1987], 208; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 189s; D. Michel, Qohélet, 168; Untersuchungen, 268s.274-277; Problems, 6.

Page 411: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Finalmente, são menos os que falam de três epílogos, atribuídos a outros tantos epiloguistas.51. Primeiro epílogo: 12,9-11

Esses três versículos formam o primeiro epílogo, que se distingue cla­ramente do segundo. A palavra inicial no v. 9: weyoter ([e] além de), repete- se tal qual no v. 12, assinalando novo começo, o do segundo epílogo ou apêndice (12,12-14).6

12,9 Qohélet, além de ser sábio, instruiu permanentemente o povo; e escutou com atenção e investigou, e compôs muitos provérbios;

10 Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto.

11 As palavras do sábio são como ferrõese como cravos fixados os ditos das coleções; são dados por um só pastor.

9 “instruiu”: lit. “ensinou ciência”, “escutou”: we’izzen, alguns relacionam o verbo com mo’zfnayim: “balança”, e traduzem-no por “pesar”, “ponde­rar”. Mas isso cria inconveniências no contexto, além de representar um hapax legomenon. E melhor dar ao verbo o significado normal de “ouvir” e em Piei “escutar”, fazendo assim jogo com os outros dois ver­bos em Piei (cf. Ch. Dohmen, Der Weisheit, 14; Ch. F. Whitley, Koheleth, 102; também O. Loretz, Qohélet, 138; N. Lohfink, Kohelet, 85-86).

10 “e escrever”: supõe uma modificação não no texto consonantal, mas na vocalização do TM, ou seja, wekatob (infinitivo absoluto) em vez de wekatub (particípio passivo). Este versículo depende de biqqesh:procu­rou, o mesmo que limço’: encontrar (cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 352s; M. J. Dahood, Canaanite-Phoen., 50; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 216; Ch. F. Whitley, Koheleth, 102). M. J. Dahood em 1966 ainda tentou justificar a vocalização do TM katub para o infinitivo ab­soluto por influência da ortografia fenícia (cf. The Phoenician, 281). Costumam-se aduzir de mais a mais 5 Ms e versões como Aq Sym Vg que lêem o perfeito wekatab: “e escreveu”, “a verdade”: lit. “palavras de verdade ou verdadeiras”, “com acerto”: yoser, é acusativo adverbial (cf. Ges.-K., 118m).

11 “os ditos das coleções”: baHey bsuppot; a expressão é muito discutida já desde tempos antigos. Nós a entendemos como paralela à anterior: as palavras dos sábios... Outros interpretam baHey suppot como “diri­

5H. W. Hertzberg distingue três epílogos: 12,9-11, apologia de Qohélet por um aluno; 12,12, uma espécie de correção dos w. 9-11, e 12,13-14 complemento do v. 12 (cf. Der Prediger, 219s); L. Di Fonzo por sua vez, também admite três epílogos, mas distribuídos assim: 12,9-10, elogio de Qohélet (cf. Ecclesiaste, 329b), 12,11-12, elogio da sabedoria (p. 333a) e 12,13-14, resumo moral do livro (p. 338a).

6Cf. G. S. Ogden, Qoheleth [1987], 208; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 189; Ch. Dohmen, Der Weisheit, 14.7H. W. Hertzberg diz que “realmente se tem a impressão de que aqui se faz uma apologia de Qoh”

(Der Prediger, 219); S. Holm-Nielsen fala de “um epílogo quase como memorial post mortem de seu venerado mestre” (On the interpretation, 169); enquanto que A. Lauha opina que “RI só quer assegu­rar a seu mestre um bom nome” (Kohelet, 220).

Page 412: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

gentes ou mestres das assembléias” (cf. G. R. Driver, Problems, 235; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 333s).

12,9-11. O conteúdo da pequena unidade versa sobre Qohélet como sá­bio e sobre sua atividade como mestre e escritor. Tudo flui com naturalida­de e na terceira pessoa até 12,11b, descobrindo-se com facilidade atrás das palavras elogiosas7 um fiel discípulo e amigo,8 provavelmente o que editou pela primeira vez a obra do saudoso mestre.9

9. A partir do v. 9 fala, portanto, um conhecedor direto da pessoa de Qohélet, de sua atividade de ensino e pesquisa, e de sua obra.10

O autor deste primeiro epílogo fala, em primeiro lugar, de Qohélet como sábio. Que Qohélet seja sábio não carece de prova, demonstra-o o livro inteiro e expressamente se afirma em 1,16 (fá-lo na terceira pessoa). Em segundo lugar, parece que o epiloguista quer fazer constar certo tra­balho docente do sábio Qohélet em relação ao povo. O último aspecto deste suposto ensino de Qohélet é o que dividiu os intérpretes. Com efeito, não há dificuldade em admitir que Qohélet tivesse discípulos, como todo sábio em seu meio cultural. Mas estes em geral faziam parte das classes altas e acomodadas, não do povo simples e comum. Teve, ademais, Qohélet ativi­dade pública como mestre das classes menos elevadas ou populares se­gundo o modelo dos filósofos ambulantes do tempo helenístico? Apenas os comentadores modernos propuseram o problema nesses termos.

P. Joüon distingue em Qohélet dois aspectos ou atividades, “a de dou­tor do povo ou... de pregador popular” e “a de sábio ou filósofo”.11 Também N. Lohflnk admite dupla atividade docente de Qohélet, o hakam: uma privada como professor da escola no templo para a juventude da classe acomodada e outra como professor das classes inferiores nas praças e ruas.12

8Cf. W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 249; K. Galling, Der Prediger, 124.9Cf. S. Holm-Nielsen, On the interpretation, 169; E. Glasser, Le procès, 176s; A. Lauha,

Kohelet, 217.10Muitos autores subscreveriam sem reparos o que escreve R. Gordis: ‘Temos [no epílogo] uma

fonte primeira de informação sobre a vida e a obra de Koheleth, que procede de seu própro tempo, provavelmente de contemporâneo que o conheceu pessoalmente” (Koheleth — the man, 349). Cremos que era um discípulo que venerava muito o mestre (cf. notas 7-9).

uS«r le nom, 53; Qohélet, como sábio e filósofo, centrava sua atenção na educação de jovens sele­tos, a elite intelectual; como mestre popular dirigia-se ao “povo, à assembléia popular — qhl — , donde seu nome Qohélet (cf. a. c., 53s).

12Kohelet, 12, onde se pergunta: “Teria sido, portanto, Qohélet primordialmente ou sempre mestre da escola do templo? O que fez ‘além disso1? Talvez... tenha aberto o caminho a novos grupos das classes inferiores. Este foi mais tarde um ponto programático do partido fariseu... Em nosso contexto é mais provável que Kohelet tenha apresentado seu ensino como os filósofos ambulantes nas praças publicamente (= ao povo), naturalmente por preço razoável como estes”; ver também p. 85a. O mesmo pensam G. S. Ogden (cf. Qoheleth. [1987], 208 J. L. Crenshaw que escreve: “Este versículo [12,9] descreve a atividade profissional de Qohélet. Ele não era apenas sábio, provavelmente responsável pela educação de juventude; Mas também comunicou seu ensinamento ao povo comum Qia’am)” (Ecclesiastes, 190).

Page 413: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Outros, porém, não distinguem no sábio e mestre de sabedoria Qohélet duas atividades docentes: uma para alunos ricos e outra para o povo pobre e simples. Pois pensam que qualquer mestre de sabedoria ou sábio que se preze não pode fazer distinção entre auditório e auditório.13

O epiloguista faz, com efeito, o elogio de seu mestre Qohélet, conside­rando-o mestre ideal de sabedoria em sua atividade como docente e como escritor. Do seu ponto de vista, não se podia excluir ninguém de seu ma­gistério, seja por palavra, seja por seus escritos.14

Desta forma parece que se salva uma dificuldade objetiva de grande peso: como pode ser mestre do povo simples um sábio de tão difícil com­preensão? O escrito permanece escrito para todos sem distinção de situa­ções socioculturais.15

Sabe Qohélet escutar com atenção, como convém ao verdadeiro sábio. Também descobrimos sua paixão de investigador ao longo do comentário, principalmente nas passagens em que nos fala o próprio Qohélet em pri­meira pessoa de seu afã por adquirir conhecimento (cf. 1,13; 2,11-12; 4,1.4; 7,23.25-29; etc.).

Compôs muitos provérbios. Os intérpretes antigos recordavam a esse respeito a atividade literária de Salomão (cf. lRs 5,9-14) ou referiam a passagem ao livro dos Provérbios; mas não é preciso sairmos de nosso livro, onde se demonstra com largueza a atividade literária de Qohélet, criadora de provérbios.16

10. O discípulo, após falar em geral do mestre e de sua plural ativida­de com palavra e escritos (v. 9), volta sobre o mesmo assunto no v. 10, para frisar a fineza de Qohélet em seu trabalho literário. No v. 10a com pala­vras amenas refere-se sem dúvida à atividade de Qohélet como mestre da

13Como escreve M. V. Fox: “Os escritores de sabedoria nunca consideram seu trabalho instrutivo limitado a certas classes sociais (ainda que conservem uma inconsciente orientação classista). O co­nhecimento e as virtudes da sabedoria são acessíveis a todos (Pr 8-9). Nunca hakarn diz relação a um mestre profissional de gente acomodada, oposto ao mestre do povo comum” (M. V. Fox, Qoheleth and his contradictions, 322); cf. também D. Michel, Probleme, 7 nota 1; Ch. Dohmen, Der Weisheit, 14 nota 6.

uAssim nos parece que entende R. Gordis o primeiro epílogo, razão pela qual não foram bem interpretadas suas palavras sobre 12,9 (referimo-nos especialmente a M. V. Fox em Qoheleth and his contradictions, 322 e a D. Michel em Probleme, 7 nota 1). R. Gordis fala certamente do duplo ensina­mento a ricos e a plebeus, mas passa por alto o matiz de um e outro ensinamento: um é principalmen­te oral e o outro é por escrito, pois diz: “Ficamos sabendo pelo epílogo que Koheleth era hakam, mestre de sabedoria (v. 9a.b). Não se contentava com a atividade profissional que se limitava aos descenden­tes das classes altas, mas esforçava-se para ensinar ao povo, h‘m, por meio de sua obra literária, colecionando (...) provérbios e fazendo contribuições originais para esse tipo de literatura (v. 9b)” (Koheleth — the man, 350; o longo grifo final é nosso).

15A esse propósito escreve L. Alonso Schõkel: “[Qohélet] de profissão era sábio — ou pensador — , mas dedicou-se também ao ensino (veja-se a distinção em Sir 37,22-23). Alguns comentadores opõem ‘povo’ a classes superiores, mas não parece que Qohélet tenha sido ‘popular’ em nenhum sentido” (Eclesiastés, 68-69).

16H. W. Hertzberg nos recorda assim: “Antigos intérpretes pensaram com os mshym no livro mshly [Pr]; o que não se justifica. Não se trata em absoluto de provérbios de outrem, mas de seus próprios” (.Der Prediger, 218).

Page 414: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

palavra, mas não exclusivamente. Essas palavras agradáveis, ditas pri­meiro, foram depois com toda probabilidade escritas.

A segunda parte do versículo refere-se apenas à atividade literária de Qohélet enquanto tal, destacando dela seu conteúdo: a verdade de suas palavras (“palavras de verdade”), e a forma adequada: com acerto.11 Dessa maneira o mestre de sabedoria, segundo a opinião de seu incondicional discípulo, uniu o agradável ao belo e verdadeiro. Creio que aqui já se pode descobrir certa tendência apologética no epiloguista.18

11. Duas vezes falou expressamente o discípulo epiloguista de as pa­lavras de Qohélet no v. 9: palavras agradáveis e “palavras de verdade agora no v. 11a trata das palavras do sábio em geral. Pode-se razoavel­mente presumir uma intenção laudatória no aluno ao identificar, sem dizê-lo, as palavras de Qohélet com as palavras dos sábios; para ele é Qohélet realmente sábio, que, como pessoa, merece o máximo respeito e cuja dou­trina deve ser aceita por todos, como são aceitas as palavras dos sábios consagrados na tradição de Israel.

As palavras dos sábios correspondem em perfeito paralelismo os di­tos das coleções. Esses ditos são o fruto do trabalho anônimo de gerações de colecionadores de palavras de sabedoria dispersas na tradição popular. A eficácia do ensino dos sábios ou de suas palavras realçam-se mediante duas comparações, tiradas do meio pastoril ou camponês e da vida nôma­de. O ferrão normalmente serve para instigar e guiar bois e cavalos. Os cravos fixados no solo garantem a segurança da tenda do nômade perante as inclemências do meio. Assim são as palavras dos sábios com relação aos discípulos em particular e aos ouvintes ou leitores em geral. Ao mesmo tempo instigam e guiam os remissos e desorientados, e dão segurança e confirmam os que escolheram o reto caminho e querem firmar-se nele.

Parece que se serve de material já proverbial, que neste caso aplica à mais que provável controvérsia sobre o valor normativo dos ensinamentos de Qohélet.19

A última expressão: são dados por um só pastor, refere-se aos ditos das coleções, e com muita probabilidade a Deus, o verdadeiro e único pas­tor de Israel e de todos os povos, como único Senhor.20 Com o que, ainda

17Alguns autores dão ao acusativo adverbial yosher: com acerto, sentido moral (cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 332b). Mas parece mais provável que o prologuista só se refira à forma de expressão. O conteúdo moral está implícito em a verdade das palavras.

18É muito provável que nas escolas de sabedoria de Jerusalém se ensinassem modelos literários helenísticos como o que o discípulo atribui a seu mestre. Mais adiante o poeta romano Horácio escre­verá: “Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, lectorem delectando pariterque monendo” (Ars poética, 343s).

19Cf. D. Michel, Probleme, 6.20Assim pensa a maioria dos intérpretes na opinião de D. Michel em Probleme, 7 nota 2; cf. A. Bea,

Líber, 27; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 219.

Page 415: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

que a alguns pareça ousado e estranho,21 pode-se pensar que o epiloguista esteja defendendo a doutrina de Qohélet como proveniente da única fonte última de sabedoria que é Deus, elevando-a virtualmente ao que vai se chamar posteriormente doutrina normativa e inspirada.22

2. Segundo epílogo: 12,12-14

Já o próprio começo com o termo Wyoter: “além disso”, indica que se inicia algo distinto do anterior (cf. 12,9). Também a invocação meu filho transfere-nos a mundo diferente do primeiro epílogo e do livro em seu conjunto.23 Acorde com essa apreciação está o uso dos dois imperativos nos w. 12a e 13b, que mudam o estilo narrativo e informativo do primeiro epílogo pelo estilo direto e exortativo do segundo. Um pouco mais adiante faremos menção da diversidade de conteúdo do segundo epílogo analisan­do-o detidamente.

12,12 Além disso, meu filho, toma cuidado:escrever muitos livros não tem fim e estudar demais cansa o corpo.

13 Em conclusão, depois de ouvir tudo:Teme a Deus e guarda seus mandamentos, porque isso é ser homem.

14 Pois Deus julgará todas as ações, mesmo as ocultas, boas ou más.12 “Além disso”: lit. “ademais disso”, ou seja, como acréscimo ao prece­

dente. “estudar demais”: lit. “o muito estudo”.13 “Em conclusão”: lit. “fim do discurso”, “depois de ouvir tudo”: lit. “tudo

foi escutado”, forma pausai da 3a. pess. sing. Nifal de shm‘ (cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 104s). “ser homem”: lit. “todo o homem”.

14 “julgará”: lit. “levará ajuízo”, “todas as ações”: lit. “toda ação”, “até as ocultas”: lit. “sobre todo o oculto”.

12,12-14. São notáveis a mudança de tom a partir de 12,12, como já observamos em parte, a aparição de novos temas (a observância dos man­damentos divinos) ou o tratamento novo de alguns já conhecidos (o temor de Deus e o juízo divino).24

21Cf. L. Alonso Schükel, Eelesiastés, 69.22Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 219; G. R. Driver, Problems, 235; D. Michel, Probleme, 6.23Cf. A. Lauha, Kohelet, 221; G. H. Wilson, The words’, 175s; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 190.í'4S. Holm-Nielsen parece que tem razão ao notar que se trata nesse segundo epílogo “de um reda­

tor tardio que achou o ensino de Qohélet excessivamente duro e heterodoxo e por isso quis advertir contra ele ou simplesmente dar ao escrito final ortodoxo” (Ore the interpretation, 169s), e matiza a K. Galling que “diz dos versículos que foram imaginados para tomar o livro ‘apto para a sinagoga’ [Stand und Aufgabe, 358]; eu acrescentaria: apto para o cânon” (a. c., 170); ver também do mesmo S. Holm­Nielsen, The Book, 53 e A. Lauha, Kohelet, 222. O juízo de J. L. Crenshaw, porém, parece-nos exage­rado, pois escreve: “O ponto de vista do primeiro epílogo é o de aluno fiel, que reflete sobre a atividade de Qohélet. O segundo epílogo parece ser a obra de um detrator, que pensa que os ensinamentos de Qohélet são inadequados e perversos talvez” (Ecclesiastes, 190).

Page 416: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

12. Podemos dar por concedido que o autor dos versículos finais do livro, os que constituem o que chamamos de segundo epílogo (12,12-14), é autor distinto do discípulo de Qohélet que elogiou seu mestre como sábio. A ele parece que não importa muito que Qohélet fosse sábio; o que busca acima de tudo é a retidão de sua doutrina e de sua vida (cf. w. 13-14).

Entende-se melhor o v. 12, se supusermos que se passou certo tempo desde a primeira publicação de Qohélet (devida quase com toda certeza ao primeiro epiloguista). Surgiram muitas discussões acerca da doutrina de­fendida por Qohélet e provavelmente sobre o próprio Qohélet. O autor dessse segundo epílogo pertence a escola mais tradicional que a de Qohélet, razão pela qual utiliza o meu filho para dirigir-se aos discípulos, como se costuma fazer no livro dos Provérbios. Não está muito de acordo com a orientação geral de Qohélet e por isso a matiza nos w. 13-14; todavia, defende o livro em seu conjunto e faz o possível para que se mantenha e inclusive se propague. Pode-se considerar com razão como seu segundo editor.

Contudo, o segundo epiloguista adverte o leitor: toma cuidado. Refe­re-se a outros livros distintos de Qohélet ou o inclui também? Diretamen­te parece que se refere a outros livros, a esses outros que tanto proliferam por aí. No entanto, absolutamente também poderia referir-se a Qohélet, do qual vai esclarecer alguns pontos fundamentais para que se possa con­siderar plenamente ortodoxo, segundo dissemos na última introdução.

Escrever muitos livros...: Estranha sobremaneira que no final de um livro de sabedoria encontremos juízo tão negativo sobre a produção literá­ria e o estudo sério. E não vale dizer que o autor de 12,12 o que não aprova são os exageros, ou seja, “escrever muitos livros” e “estudar demais”-, não era preciso para tanto acrescentar novo epílogo ao livro. Mais acertada- mente parece que se expressa D. Michel, ao afirmar que o segundo epiloguista “não é amigo de longas discussões eruditas”,25 de que “eviden­temente estava cansado”.26 Harmoniza-se bem tudo isso com o que apon­távamos acerca das disputas que devem ter surgido logo após a primeira publicação dos escritos de Qohélet.

13. Tem consciência neste momento o epiloguista de que chegou ao final e tem que concluir; emprega por isso expressão que podemos qualifi­car de técnica: em conclusão ou resumindo, completada pela sentença: depois que “tudo foi escutado”. O autor, também ele mestre de sabedoria, exporá seu próprio parecer, levando em conta as opiniões de todos os de­mais, especialmente as de Qohélet; mas vai fazê-lo concentrando-se o mais

25Probleme, 7.26D. Michel, Untersuchungen, 268.

Page 417: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

possível no que crê ser o mais importante. Bastar-lhe-ão dois imperativos e uma cláusula que os fundamente.

Teme a Deus: Dirige-se ao discípulo interpelado carinhosamente no v.12 como meu filho. Não se trata de querer incutir medo ou terror para com a divindade, mas de sublinhar a necessidade de aceitar a supremacia ab­soluta e soberana de Deus, como em seguida se evidencia pelo segundo imperativo: guarda seus mandamentos.

O epiloguista descobriu que o temor de Deus é tema familiar em Qohélet (cf. 3,14; 5,6; 7,18; 8,12s); mas não podemos saber até que ponto tem cons­ciência de que Qohélet não pensa como ele nesse assunto tão importante de sua concepção religiosa, pois jamais Qohélet relaciona o temor de Deus com a observância dos mandamentos,27 razão por que o epiloguista chegou à conclusão de que Qohélet era sábio teologicamente ortodoxo.

No v. 13 termina com uma sentença causal: porque isso é ser homem, que expllica a razão profunda desse resumo tão breve de todo o livro. A sentença em si é “obscura” e foi interpretada de mil formas.28

A meu ver, é evidente a intenção do autor de sintetizar ao máximo os ensinamentos do livro, a partir de seu particular ponto de vista. Ele crê que o essencial de toda concepção religiosa está no temor de Deus, de­monstrado na guarda de seus mandamentos. Quem fizer isso, cumpriu tudo, realizou o plano ou desígnio de Deus sobre o homem, ou seja, levou a termo o ser do homem: isso é ser homem.

14. O versículo apresenta-se como uma segunda cláusula causal de­pois do v. 13c (cf. ki: pois). Parece, portanto, mais conveniente interpretar o v. 14 como sentença dependente de a relacionada com os imperativos do v. 13. Quem teme a Deus e guarda seus mandamentos nada tem a temer nem do futuro incerto nem de Deus que há de julgar todos os homens, porque é o homem fiel e cabal, onde tudo é transparente e nada tem que ocultar a quem perscruta tudo, o manifesto e o oculto, o bem e o mal.

E evidente que o autor do v. 14 não pensa o mesmo que Qohélet.29 O segundo epiloguista afasta-se da linha inconformista e crítica do autênti-

27Essa é a convicção repetida uma e outra vez no Deuteronômio (cf. Dt 5,29; 6,2; 8,6; 10,12; 13,5, etc.); cf. L. Derousseaux, La crainte, 343.

28Cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 105. F. Delitzsch, depois de resenhar praticamente todas as inter­pretações conhecidas em seu tempo, conclui: “Porque isso é cada homem, ou seja, segundo seu destino e obrigação; muito bem Lutero: porque isso faz parte de todo homem” (Commentary, 439s); só outros pequenos matizes em G. A. Barton, A criticai, 199; R. Gordis, Koheleth — the man, 355; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 216. Uma interpretação muito singular é a de A. Lauha, que, pelo que parece, teve muito pouca aceitação: “A expressão kl-h’dm refere-se claramente não a toda a humanidade, pois seria impossível esperar dos não-judeus o cumprimento da lei” (Kohelet, 223).

29Como muito bem diz R. E. Murphy: “Na realidade o ‘juízo’ de Deus (14) é muito mais misterioso para Qohélet que para este outro escritor, que se serve deste conceito segundo à maneira tradicional dos sábios” (Eclesiastés, 523).

Page 418: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

co Qohélet; segue, porém, a corrente tradicional que pode estar represen­tada muito bem por Jesus ben Sira, contemporâneo ou quase contemporâ­neo seu.30

Não podemos saber com certeza até que ponto o epiloguista tem cons­ciência de que se afasta do pensamento de Qohélet e o corrige. O que, porém, parece pelo menos provável é que a essa intervenção do epiloguista visa a que se recebesse Qohélet no cânon dos livros sagrados.31

30G. T. Sheppard defende que o redator de 12,13-14 ou conhecia o livro de Jesus ben Sira ou, pelo menos, compartilhava de sua forma de pensar (cf. The epilogue, 127). Não creio que o segundo epiloguista pudesse ter chegado a conhecer o livro de Jesus ben Sira, mas pode ter pertencido a algum dos círculos de sabedoria afins ao Sirácida, apesar das avaliações contrárias de M. V. Fox em Qoheleth and his contradictios, 320.

31Cf. D. Michel, Probleme, 7.

Page 419: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

EXCURSOS

Page 420: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

I EXCURSO SOBRE QOHÉLET

O nome de Qohélet aparece sete vezes no livro de Qohélet: sem artigo em 1,1.2.12; 12,9.10; com artigo em 7,27(?) e em 12,8. Mas o que significa Qohéletl Tentou-se desde muito tempo responder a essa pergunta, sem ain­da se ter encontrado resposta definitiva. Talvez nossa nova tentativa não consiga senão aumentar a tinta que se derramou com este empenho. Mas é preciso que uma vez mais procuremos, se não resolver “o antigo quebra- cabeça”,1 pelo menos conhecer o estado da questão e as diversas soluções que se propuseram. Neste aspecto tinha razão D. Buzy ao confessar que a explicação da palavra Qohélet é uma das tarefas mais árduas da filologia bíblica.2 G. A. Barton foi mais radical, ou talvez simplesmente realista, ao admitir que Qohélet... é uma crux,3 como o prova o fato de que, depois de tantos esforços, “o nome Qohélet continua sendo hoje tão enigmático como antes”.4 Apesar ou por causa disso, entramos agora na questão, não com o pessimismo absoluto de O. S. Rankin, que chega a afirmar que “o conteúdo exato do significado da palavra Kohelet nunca se poderá determinar”,5 mas com a confiança de que encontraremos, pelo menos, solução aceitável.

Trataremos da forma gramatical de Qohélet, de sua origem e, final­mente, de seu significado.

1. Forma gramatical

Quanto à forma gramatical,6 Qohélet é um particípio feminino Qal da raiz qhl; disso ninguém duvida. Começam as dificuldades ao se constatar que o verbo qhl não se encontra no A. T. em sua forma primeira ou funda-

1R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 192; cf. E. Glasser, Le procès, 16.2Cf. VEcclésiaste, 203.3Cf. A criticai, 67. O grifo é nosso.4R. Gordis, Koheleth, 203; cf. R. Kroeber, Der Prediger, 2. G. von Rad admite também que “o

sentido preciso dessa denominação continua sendo enigma” (Sabiduría, 286) e A. Barucq sentencia: “O enigma do nome permanece” (Qohéleth, 611).

sThe Book, col. 3a.6Ou do ponto de vista da estrutura (structurally), como diz F. Whitley (cf. Koheleth, 4).

Page 421: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

mental (qal), ainda que sim na forma reflexiva-passiva Niphal: reunir-se (cf. Ex 32,1), e na forma causativa Hiph.il: reunir, convocar (por exemplo, lRs 8,1; 12,21).7

A forma feminina de Qohélet constitui escolho não desprezível8 no caso de um nome que certamente é de homem.9 Veremos mais adiante a solução.

2. Origem da palavra Qohélet

O recurso principal para descobrir o sentido de uma palavra é verifi­car a raiz, suas origens, ou seja, explicá-la etimologicamente. Não se trata de aplicar os métodos modernos da filologia a processos que ocorreram há milênios, mas de rastrear as conotações que suscitam as raízes das pala­vras, tal como se utilizavam naqueles tempos.

Há os que defendem que a língua original do livro seria o aramaico.10 Esses autores aplicam essa teoria à origem do feminino Qohélet e são prin­cipalmente F. Zimmermann e H. L. Ginsberg.11 A teoria não tem funda­mentos suficientes, razão por que a descartamos. Qohélet é palavra he­braica, como vimos ao falar de sua forma gramatical; a raiz é qhl. Deriva-se diretamente do substantivo qahal ou do verbo qahal? Há autores que só designam genericamente a raiz fundamental, ou ficam indecisos;12 outros decidem-se pelo substantivo qahal.13 Por último estão os que fazem provir Qohélet diretamente do verbo qahal.14,

Se qhl é na verdade verbo denominativo, creio que já está dada a resposta: qahal substantivo -»• qahal verbo -» Qohélet.15 O que significa, então, Qohélet?

7Cf. Ch. F. Whitley, Koheleth, 4; D. Michel, Qohelet, 2.8G. Gietmann chega a dizer que “talvez ninguém possa oferecer explicação certa” (Commentarius, 61).9Constrói-se com verbo no masculino em 1,2; 12,8-9; em 1,1 se diz que é “filho de Davi” e “rei em

Jerusalém” (cf. D. Michel, Qohelet, 2). Sobre 7,27 ver o que se diz em Comentário.“ Disso já falamos na Introdução, X.2.1.“ Zimmermann faz derivar o hebraico Qohélet do aramaico kanshâ. Sobre essa opinião e sua rejei­

ção escreve Ch. F. Whitley (cf. Kohelet, 5). Sobre o erro de tradução, em que se apóia H. L. Ginsberg e que aceita E. Ullendorf (cf. The meaning, 215), escreve D. Michel: “Um tradutor deve ter trocado o Status determinatus pela terminação feminina e em hebraico escolhido um particípio feminino sem artigo em vez do correto particípio masculino com artigo. No entanto, é dificilmente imaginável, a meu ver, que um tradutor tenha cometido igualmente em várias ocasiões erro tão elementar em pala­vra tão importante para o livro (pois se trata do autor)” (Qohelet, 3).

12V. Zapletal escreve: “qhlt relaciona-se manifestamente com qahal e qahal" (Das Buch, 3); A. Bea reflete a indecisão ao escrever: Qohélet “ou deriva de qahal (assembléia, congregação), ...ou segundo outros se relaciona com o verbo qahal (congregar, reunir)” (Liber, VT).

13Cf. E. Podechard, UEcclésiaste, 132; P. Joüon, Sur le nom, 53; D. Buzy, L’Ecclésiaste, 203a; L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 120b; E. Glasser, Le procès, 16; D. Lys, UEcclésiaste, 54s.

14Como E. Sellin - G. Fohrer, Einleitung, 366; R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 192; R. Gordis, Koheleth— the man, 204; A. Lauha, Kohelet, 1.

15Cf. H. P. Müller, ThWAT II s. v. qahal, 610; W. Baumgartner - J. J. Stamm, Hebräisches und aramäisches Lexikon zum A. T.,s. v. qhl, 1008b; D. Michel, Qohelet, 4.

Page 422: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3. Significado de Qohélet

Segundo o que acabamos de dizer, o menos que podemos afirmar é que o nome Qohélet tem a ver com qahal: assembléia, comunidade, reu­nião do povo. O contexto e o conteúdo do livro são os únicos meios que temos à disposição para determinar de que tipo de qahal se trata.16 Mas os autores atribuem a Qohélet mais conotações significativas. Destas, mui­tas se devem rejeitar, ou porque são meramente fictícias, ou porque sim­plesmente não têm fundamento lingüístico; outras são mais ou menos pro­váveis segundo convenham ao contexto geral do livro ou ao mais concreto de cada passagem em que se encontra a palavra Qohélet. Apresentamos em seguida um compêndio (não exaustivo) das opiniões mais relevantes, começando pelas que consideramos não aceitáveis.

3.1. Qohélet é SalomãoAludimos em primeiro lugar àquelas opiniões que identificam Qohélet

com Salomão idoso e enfermo;17 também as que têm algo de cabalística, como a de que Qohélet é abreviatura de um nove desconhecido, como o é Rashi de Rabi Shelomo ben Isaac (f 1105) e Radaq de Rabi David Quimhi (f 1235),18 ou jogam com o valor numérico das letras;19 por último mencio­namos as opiniões que dão a Qohélet sentido ligado ao gênero feminino.203.2. Qohélet é membro da assembléia

Outro conjunto de sentenças atém-se mais ao significado da raiz qhl\ mas também aqui é notável a dispersão de pereceres. Dizíamos que Qohélet tinha a ver com qahal. Alguns consideram Qohélet simplesmente como um membro da assembléia, um membro distinguido. Essa opinião aduz como prova a tradução grega de Qohélet: ekklesiastes.21 Este termo já era

16Sobre o plural significado de qahal, cf. J. P. Müller, qahal Asamblea: ThHAT II, 609-619; W. Baumgartner - J. J. Stamm, Hebräisches und aramäisches Lexikon, s. v. qahal, pp. 1009-1010. D. Michel escreve: ' A palavra qahal pode designar uma corporação reunida para a guerra, um tribunal, uma comunidade cultual e uma assembléia plenária da comunidade cultual judaica, mas infelizmen­te também um 13ando de malfeitores’ (SI 26,5)” (Qohélet, 4s).

17Cf. G. Gietmann, Commentarius, 63-64, onde se enumeram autores como Pineda, Lorinus, C Schmidt e outros.

18Cf. E. Renan, L’Ecclésiaste, llss.19Quem aplicou com mais detalhe a gematria foi F. Zimmermann na tentativa de provar que a

língua original de Qohélet é o aramaico: qhlt é a versáo de knshh cujo valor numérico é 375 (k = 20, n = 50, s/i = 300 eh = 5), o mesmo que shlmh (Salomão) [sh = 300, l = 30, m = 40 e h = 5) (cf. The Aramaic, 44). Adere a essa explicação C. C. Torrey com algumas variantes (cf. The question, 156).

20O autor Qohélet personifica a sabedoria Qikmh), por isso está no feminino (cf. G. Kuhn, Erklärung, 3), ou uma espécie de associação: o academia (J. C. Döderlein), a assembléia (T. Tyier, Ecclesiastes, 57; A. Allgeier, Das Buch, 20). R. Pautrel crê que Qohélet é “o representante da Assembléia, o Público personi­ficado... que, cansado do ensino clássico, por sua vez vai tomar a palavra” (JJEcclésiaste [1974], 935).

21Cf. Z. Zapletal, Das Buch, 3s, que se apóia também na autoridade de São Jerônimo; H. Duesberg— I. Fransen, Les Scribes, 538.

Page 423: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

conhecido na Grécia clássica: Aristóteles22 fala do ekklesiastes colocando-o à altura do juiz (dikastes), como cidadão de pleno direito e investido de certa autoridade, ou, como ele mesmo diz, de magistratura indefinida. Antes Platão falara de ekklesiastes como de um membro da assembléia popular, entre os juizes e a massa popular, sem mais especificações.23

3.3. Qohélet e o verbo qahalOutros autores relacionam diretamente Qohélet com o verbo qahal, o

que, porém, suscita algumas dificuldades prévias:a) Qohélet: Qal por Hiphil. Existe uma dificuldade de ordem lingüís­

tica que os autores mencionam e resolvem de diversas maneiras. Como notamos antes, Qohélet é particípio feminino Qal da raiz qhl. Ora, o verbo qhl não se encontra no A. T. em sua forma primeira e fundamental (qal). O significado que se atribui a Qohélet: o que reúne ou convoca, faz parte da forma causativa Hiphil.24

b) Qohélet: forma feminina e significado masculino. A segunda difi­culdade parece de mais peso e poder-se-ia formular da maneira seguinte: como um termo que tem forma inequivocamente feminina: Qohélet, pode ter um significado certamente masculino?25 Os autores, porém, admitem no hebraico tardio, a que pertence Qohélet, um fenômeno lingüístico, aná­logo ao do árabe quanto aos títulos em forma feminina.26 E não só os títu­los, mas também os nomes de ofícios, como se desenvolverá em seguida.27

22Cf. Política, 3.1: 1275a.b.23Cf. Eutidemo, 290a; Górgias, 452e.Z4Nota-o D. Lys (cf. UEcclésiaste, 54 e 56), mas não dá resposta. Parece-nos razoável a postura de

R. Kroeber, que escreve: “A forma Qal em vez do esperado Hiphil não é inquietante. E conhecido que o Qal nos nomes próprios é usado freqüentemente no sentido do Hiphil” (Der Prediger, 1); a citação é de F. Delitzsch em Koheleth, 212 (Commentary, 203).

25 J. Pedersen percebeu a dificuldade, mas não soube encontrar via de solução: “O título de Cohélet não se pode interpretar com certeza. Essa expressão de forma feminina designa um ser masculi­no; fenômeno linguístico freqüente no árabe, mas sem analogia certa em hebraico” (Scepticisme, 328).

26Expressamente o afirma R. Meyer em sua Gramática hebraica, aduzindo como exemplo o nome de Qohélet: “Da mesma forma que em árabe, os títulos tem muitas vezes formas femininas, mas são masculinos: Qohélet ‘Pregador’ ” (Gramática, 94,2g, p. 317). R. Kroeber confirma a mesma coisa, ao não poder resolver a dificuldade a partir do hebraico bíblico: “Uma construção paralela de transferên­cia de um coletivo a um indivíduo no uso do sentido de um ofício ou função é oferecida pelo conceito de mshtmh (cargo de fiscal) numa fase da língua hebraica próxima a Qohélet, que aparece no livro da Regra de Qumrã (1QS III 23) e no escrito de Damasco... como conceito coletivo” (Der Prediger, 1-2, nota 6).

27E. Philippe escrevia em fins do século passado: “A forma feminina (de Qohélet) explica-se prova­velmente pelo uso hebraico, bastante recente, de pôr no feminino os nomes de ofícios e dignidades” (Ecclésiaste [1899], 1533). D. Buzy repete quase as mesmas palavras: “A forma feminina da palavra {Qohélet) explica-se pelo gosto do hebraico tardio por essas palavras aplicadas a nomes de funções: assim os nomes próprios pós-exílicos Sopheret (2Esd 7,57), Pokeret-haçabarim (Esd 7,59),petáh (pachá, governador)” (UEcclésiaste, 203b). Cf. também D. Gonzalo Maeso, Manual, 172; H. Duesberg — I. Fransen, Les scribes, 538.

Page 424: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Não se nega a analogia com o árabe, mas ratifica-se, ao frisar o aspecto de intensidade, implicado na forma feminina.28

3.4. Qohélet é cargo ou ofícioA explicação mais convincente parece ser a que relaciona a expressão

Qohélet com a forma de designar em hebraico tardio um cargo ou ofício, como se consigna em Esd 2,55.57 e Ne 7,57.290s autores insistem cada vez mais nos exemplos de Esdras e Neemias, pois o paralelo é exato. Que pri­meiro houve o nome do ofício e depois o nome próprio repetem-no os auto­res como que em estribilho: “Uma palavra pode significar tanto uma ativi­dade como a pessoa que a realiza. O exemplo mais conhecido é Qohélet, particípio feminino de qhl, que originalmente é a ação de dirigir a assem­bléia geral e o discurso nela, e aplicou-se depois à pessoa que realiza essa atividade, o diretor e orador da assembléia. O mesmo vale também para a palavra soferet e pokeret haççebayim (Esd 2,55.57)”.30

Para terminar, podemos dizer com D. Michel: “O próprio autor utili­zou a palavra qohélet, que propriamente não era nome próprio, como nome próprio [esp. 1,12]”.31

4. Objeto do verbo reunir

Se qahal significa reunir, Qohélet designaria (o que) o que reúne?2 Os autores, porém, perguntam-se sobre o objeto do verbo reunir: objeto pesso­al ou não pessoal? Há os que preferem um complemento não pessoal; as­sim Qohélet significaria “coletor de sentenças ou aforismos”,33 ou “coletor

28Cf. P. Joüon, Sur le nom, 53 e H.-P. Müller, Theonome, 3.29Diz O. Loretz: “A forma do nome Qohélet com a terminação em -t (cf. sprt = ‘escriba’ Esd 2,55;

pkrt hç’ym = ‘caçador de gazelas’ Esd 2,57) indica que este homem desempenhou um oficio ou teve uma posição respeitável” (Das Buch, 121).

30G. F ohrer, Twofold aspects of Hebrew words, em Words and meanings. Essays presented to D. W. Thomas, Cambridge, 1968, 97-98; cf. E. Sellin - G. Fohrer, Einleitung, 366; O. Eissfeldt, Einleitung, 606. O uso ou não-uso do artigo diante de Qohélet parece ser uma nova confirmação (sem artigo: 1,1.2.12; 12,9.10; com art.: 12,8 e 7,27 [corrigido]). R. Gordis compendia: “De nomes próprios no hebraico bíblico tardio tais como soferet (Esd 2,55; Ne 5,57) e pokeret haççebaym (Esd 2,57; Ne 7,59), fica evi­dente que os particípios femininos foram usados para designar funcionários e oficiais e depois se converteram em nomes próprios. Como esses nomes conservam algum significado funcional, ‘escriba’ e ‘caçador (?) de gazelas’, também Koheleth ainda retém algo de sua força original verbal. Por isso aparece com o artigo em 12,8 e 7,27 (que se deveria ler ’mr hqhlt). Assim também o árabe ba’krai, ‘inspetor’, ha’lifa, ‘sucessor, califa’ ” (Koheleth, 204). Além dos paralelos de Esdras e Neemias aduzem- se outros no meio semita, tanto aramaico como árabe. Cf. também K. Galling, Der Prediger, 75; Ch. F. Whitley, Koheleth, 4-5: magnífico resumo, e igualmente D. Michel, Qohelet, 2.

31Qohelet, 4. E muito provável que se tenha dado o nome ao mestre por seus próprios discípulos, como opina N. Lohfink (cf. Kohelet, 12).

32Assim R. Gordis afirma que “o significado (de Qohélet) parece ser ‘speaker’ ou ‘o que reúne', mas é melhor deixar a palavra sem traduzir” (Koheleth, 204) (grifo nosso); cf. R. Kroeber, Der Prediger, 1­2 e N. Lohfink, Kohelet, 11, que o confirmam com ÍRs 8,1.

33Cf. V. Zapletal, Das Buch, 8, que também cita H. Grotius.

Page 425: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

de experiência, de sabedoria”.34 Mas, como diz A. Barucq: “qahal designa unicamente uma reunião de pessoas”.35 Sendo assim, temos que escolher entre as sentenças que proponham como objeto de o que reúne termo que seja pessoal.

Qohélet certamente faz parte da assembléia ou qahal, mas exerce al­guma função específica nela?

A sentença, mais comum já desde muito tempo, apresenta Qohélet como o que reúne a assembléia.36 A assembléia ou congregação convoca-se para alguma coisa. Segundo o parecer dos exesretas é impossível determi­nar com clareza essa finalidade, porque a maioria dos fins que se prc põ( n não se excluem, mas se incluem ou são sinônimos. O testemunho mais antigo que temos é o de São Jerônimo, citado já em parte, e que integridade diz: “Eclesiastes em grego diz-se de quem reúne a aé imoieia, ou seja, a ecclesia; a esse podemos chamar de ‘contionator’, úgkí - fala ao povo e seu discurso não se dirige especialmente a um so,vnás sa odos em geral”.37

Qohélet, portanto, é o que convoca a palavra, o Contionator. Essa opinião foi exegetas;38 se bem que seja verdade que ne: do. Especialmente desde o momento por Prediger (em português -

dirigir-lhe a aior parte dos

he dão o mesmo senti- Lutero traduziu Qohélet

inglês = Preacher), deslizou-se o sentido do grego ekklesiastes e do látL~ Ecclesiastes ao campo do estrita­mente eclesiástico-, ou sej , converteu-se Qohélet num Pregador ao estilo da época barroca e S( ;u iite l^azão pela qual os autores começaram a matizar.39 .........

águndo opina C. A. Barton em A critical, 67.“ Assim RashieiHXGrotii 35Ecclésiastey“ Em , - .es ií e itetiça os autores costumam aduzir a antiga tradição rabínica: “Por que se deu

o nome de Qohéle. I íLSalomão)? Porque suas palavras foram pronunciadas em público (bqhl), como iJr reuniu (yqhl) os anciãos de Israel’ (lRs 8,1)”. (Midrash Rabba, Eclesiastes)

ós ler em Ch. F. Whitley, Koheleth, 4 nota 1). Já o dizia São Jerônimo: “Eclesiastes em Squele que reúne a assembléia, ou seja, a ecclesia” (Commentarius, 250). Toda a tradição

ina seguiu São Jerônimo (cf. Gregório Magno, Diálogos IV 4: J. de Pineda, In Ecclesiasten, ! Delitzsch, Commentary, 203; V. Zapletal, Da Buch, etc.). Se prescindirmos da finalidade desse

ini i asssembléia, devem-se incluir nessa secção todos os autores que especificam essa finalidade, seja qual for; R. B. Y. Scott diz, por exemplo: “ ‘Qohélet’ parece significar... ‘alguém que reúne uma sociedade ou congregação' ” (Ecclesiastes, 192), ainda que ele se retira a grupos de alunos.

37(CCL 72,250,5.9: PL 1063 [1011],38Confessa honestamente Ch. F. Whitley em Koheleth, 5, ainda que ele não seja dessa opinião.39G. A. Barton diz que Contionator é “praticamente sinônimo de Preacher, mas já lhe dá sentido

não-eclesiástico, ao acrescentar que Qohélet é um speaker oficial numa assembléia” (A criticai, 68); cf. O. S. Rankin - G. G. Altkins, The Book, 3b; W. J. Fuerst, Ecclesiastes, 102-103; R. Gordis, Koheleth, 204. Por sua vez, V. Zapletal aprova a tradução de São Jerônimo, pois ‘contio’ é ‘reunião’, ‘assembléia popular’ e também ‘a dissertação’ que nela se faz, e ‘contionator’ é ‘orador popular’ ” (Das Buch, 4); mas aí mesmo rejeita inteiramente a tradução e interpretação de M. Lutero e dos que o seguiram. Mais duro mostra-se R. Kroeber: “A tradução do nome do autor com a palavra ‘Prediger’ é inexata por motivos lingüísticos e de conteúdo. Nenhum autor do A. T. é menos inclinado a pregar” (Der Prediger,

Page 426: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Outros acrescentam, outrossim, a idéia de diretor, presidente, líder da assembléia,40 ou dão a Qohélet sentido excessivamente restritivo, limi­tando-se a um aspecto certamente importante do autor, mas não o único: o cético, o polemista.*1 Por último estão os que vêem em Qohélet o mestre au­têntico de sabedoria, ou porque fazem dele “o mestre ideal”,42 ou simples­mente um mestre, rodeado por um círculo de discípulos que o respeita na vida e conserva sua doutrina e memória depois de sua morte (cf. 12,9-10).43

II EXCURSO SOBRE HEBEL

A palavra hebel, fundamental em Qohélet, não é termo cunhado por Qohélet, mas está bem assentado na Bíblia antes dele. Em que sentido é utilizado pelos autores bíblicos independentemente de Qohélet? O que se disse acerca deste vocábulo tão significativo?

1. Sentido geral de hebel fora de Qohélet

Os lexicógrafos determinam, como regra geral, o sentido dos vocábu­los etimologicamente, ou seja, a partir do sentido da raiz quando existe ou se conhece, e do contexto em que se encontra, que é o fator que matiza o suposto sentido etimológico. Quanto ao sentido original e primário de hebel, pode-se dizer que há unanimidade entre os lexicógrafos e intérpretes: “O sentido fundamental de hebel é ‘vento’, ‘sopro’, aura, brisa”.1 Confirma-se esse sentido principalmente pelos lugares paralelos e pelos sinônimos, que podemos, se bem que raramente, encontrar. Assim em Is 57,13b: “Porque o vento (ruah) os levará a todos e um hebel os arrebatará”, a ruah (vento) corresponde hebel: sopro {aura na Vg); em Pr 21,6: “Tesouros ganhos por

1). Para P. Joüon “Qohelet seria ‘o homem da assembléia popular’, o Orador ou o Pregador por exce­lência” (Sur le nom, 54).

40Cf. K. Galling, Der Prediger, 75.41Qohélet significa o cético segundo Ch. F. Whitley (cf. Koheleth, 6), a que adere D. Michel (cf.

Qohelet, 8); cf. também J. Pedersen, Scepticisme. Outros preferem o polemista. E. Ullendorf escreve: “Seria difícil imaginar um nome mais apropriado para o suposto autor do livro do Eclesiastes que ‘o polemista’ (‘the arguer’)” (The meaning, 215), e mais recentemente ainda G. Ogden: “O ‘polemista’ parece tradução mais apropriada (cf. Ne 5,7)” (Harper’s Bible Dictionary [San Francisco], 1985,236­237). Também E. H. Plumptre, segundo G. A. Barton (A critical, 68).

42Cf. P. Joüon, Sur le nom, 54; D. Buzy, L’Ecclésiaste, 203.43Cf. R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 192-193; R. Braun, Koheleth, 178; N. Lohfïnk apresenta Qohélet

como mestre “segundo o estilo dos filósofos gregos ambulantes”, que oferece “seus ensinamentos pu­blicamente (‘ao povo’) nas praças” (Kohelet, 11-12). A D. Michel não parece desagradar essa sentença (cf. Qohelet, 6), nem a nós em parte tampouco.

1R. Albertz, hebel, 467; cf. K. Seybold, hebel, 335; G. Bertrand, Hebrãischer, 30.

Page 427: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

boca embusteira são hebel que se dissipa”, hebel só pode ser vapor, exala­ção ou algo semelhante. S. Holm-Nielsen, referindo-se a essas mesmas passagens de Isaías e Provérbios, chama com razão esse sentido de hebel “neutro”,2 o que terá importância muito grande ao tratarmos diretamente do uso que faz Qohélet de hebel e da maneira como o interpretaram os primeiros tradutores.

Mas o deslizamento do significado de determinada palavra (a evolu­ção semântica) numa língua viva, como foi o hebraico enquanto era língua falada, ocorre com muita facilidade e quase sem perceber-se. De fato são poucas as passagens do A. T. que mantêm o sentido primário de hebel.3 Percebemos a passagem neste deslizamento quando os próprios autores sagrados explicam seu conceito de hebel com outros mais conhecidos.

Hebel na esfera do efêmero. Assim lemos: “O homem é um como que sopro (hebel), seus dias, sombra que passa” (SI 144,4); “Consumiu seus dias num sopro (bahebel), seus anos num momento” (SI 78,33).4

Hebel na esfera do inútil e nulo, como nos mostra o significado dos vocábulos que o acompanham: “...o Egito, cujo auxílio é vazio (hebel) e vão (riq)” (Is 30,7); “Enquanto eu pensava: ‘Em vão (leriq) me cansei, em nada e em vento (letohu wehebel) gastei minhas forças’ ” (Is 49,4).5 Os últimos textos dão pé à reflexão de Ch. F. Whitley: “hbl usa-se com tohu ‘nada’ em Is 49,4, e em Is 30,7 com riq ‘vazio’ ...Essas referências indicam que hbl denota não só o que é vaporoso e evanescente, mas também o que é sem substância e falso”,6 dando um passo a mais para o deslizamento hebel = falso, mentira, ou seja, para o significado claramente metafórico. No SI 62,10 lemos: “Os homens não são mais que hebel (sopro), os nobres são aparência [mentira]”. Nessa direção hebel dir-se-á dos ídolos e falsos deu­ses dos gentios (cf. Dt 32,21; lRs 16,13.26; 2Rs 17,15; Jr 2,5; 8,19; 10,3.15; 14,22; 51,18; Jn 2,9; SI 31,7).

2Escreve S. Holm-Nielsen: hebel originariamente significa “brisa, vento, algo que é tirado repenti­namente, cf. o siríaco ‘nuvem de pó’. Neste sentido — neutro — encontra-se algumas vezes no A. T., como, por exemplo, Is 57,13; Pr 21,6” (The Book, 46).

3A. Lauha fala da passagem do concreto ao abstrato: “O significado fundamental da palavra é o concreto ‘sopro de vento’ e daí o abstrato ‘efêmero’, ‘nulidade’, ‘caducidade”’ (Kohelet, 18).

4R. Gordis comenta: “O alento é a) insubstancial e b) transitório. Portanto, de a) hbl deriva o significado de Vaidade’ (Eclpassim; SI 94,11), de b) o sentido de ‘efêmero’. Este último sentido encon­tra-se no SI 144,4: ‘O homem é como o alento’, e também deve reconhecer-se em Jó 7,16: ‘meus dias são um sopro’ ” (Koheleth — the man, 205); e R. Albertz: hebel “chega a igualar-se com inútil e efêmero (SI 62,10; 144,4; Pr 21,6; cf. acad. sharu, J. Hehm, ZAW 43,1925, 2228; O. Loretz, Qohélet, 127s)” (.hebel,467).

5Confirmado por K. Galling: “Mais raramente se encontra em hebel a acentuação de algo vão (Is 30,7; 49,4, demonstrado com riq e tohu}”. (Der Prediger, 79). Por essa mesma razão, O. Loretz diz de hebel que é “expressão interessante para designar o que é efêmero, leve, sem peso, sem valor, vazio, o que é fraco e desvalido; em suma, uma palavra para o nulo e o fraco” (Qohelet, 84).

6Kohelet, 7.

Page 428: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Sentido geral de hebel em Qohélet

Como acabamos de ver e repetimos, hebel já. se acha consagrado pelo uso que dele faz a Bíblia antes de Qohélet; mas podemos perguntar legiti­mamente se Qohélet se afasta do uso tradicional de hebel ou antes frisa um aspecto particular de seus múltiplos sentidos.

Hebel é o termo mais representativo de Qohélet e é por ele que “Qohélet deve ter-se distinguido... de seus contemporâneos”.7 Com efeito, das 73 vezes que hebel aparece no texto hebraico do Antigo Testamento, mais da metade, 38, encontramos em Qohelet.8 Mas qual é o sentido de hebel em Qohélet?

Sem dúvida, Qohélet conhece o sentido original de hebel, como o de­monstra ao unir e relacionar hebel com ruah (vento) (cf. 1,14; 2,17; 4,4;6,9). Mas significaria isso que, para ele, hebel iguala a ruah em seu senti­do originário, pelo menos em algumas passagens? Parece que K. Seybold o admite para os casos em que hebel se relaciona com ruah, pois afirma: “Uma comparação [de hebel] com qualquer outro emprego mostra que Ecl conhece e utiliza todo o círculo oscilante. A união com ruah, na fórmula de1.14 e outras, evoca a concreta e plástica representação fundamental; a referência ao ser criatural (3,19, cf. 3,21) associa o pensamento ao alento vital”.9 Ainda que evocação, ou associação, não seja afirmação.

Creio que o máximo a que se pode chegar, se Qohélet de fato fez de hebel a chave de interpretação de boa parte de suas reflexões, é precisa­mente ao poder de evocação de hebel como metáfora ou símbolo. Estamos, portanto, em esfera derivada de significação.10 R. Gordis fala claramente de significados derivados: “hbl é ‘alento’, ‘vapor’... O alento é a) insubstantial e b) transitório. Portanto, de a) hbl deriva o significado de ‘vaidade’ (Ecl passim; SI 94,11), de b) o sentido de ‘efêmero’ ”.11

7D. Michel, Untersuchungen, 40.«Estes são: Qoh 1,2 (5x).14; 2,1.11.15.17.19.21.23.26; 3,19;4,4.7.8.16; 5,6.9; 6,2.4.9.11.12; 7,6.15;

8.10.14 (2x); 9,9 (2x); 11,8.10; 12,8 (3x).Fora de Qoh são 35 vezes, a saber: Dt 32,21; lRs 16,13.26; 2Rs 17,5; Is 30,7; 49,4; 57,13; Jr 2,5;

8,19; 10,3.8.15; 14,22; 16,19; 51,18; Lm 4,17; Jn 2,9; Zc 10,2; SI 31,7; 39,6.7.12; 62,10 (2x); 78,33; 94,11; 144,4; Jó 7,16; 9,29; 21,34; 27,12; 35,16; Pr 13,11; 21,6; 31,30.

Como nome próprio Abel 8 vezes: Gn 4,2 (2x).4(2x).8(2x)9.25.Como verbo hahal na forma Qal4 vezes: 2Rs 17,15; Jr 2,5; SI 62,11 e Jó 27,12; em Hiphil uma vez:

Jr 23,16. Cf. A new concordance to the Bible, ed. por A. Even-Shoshan, Jerusalém, 1989, s. v. hebel, p. 279; R. Albertz, hebel, 335.

9hebel, 340.10Cf. S. Holm-Nielsen, The Book, 46; K. Galling, Der Prediger, 79. A. Barucq escreve: “A palavra

hevel designa nulidade, inexistência, algo, pelo menos, que se acha muito perto do nada” (Eclesiastés, 29; Ecclésiaste, 27).

nKoheleth— the man, 204s. Dentro já do sentido metafórico e derivado de hebel em Qoh, J. Lévêque apresenta uma análise ainda mais detalhada, pois opina que em Qoh hebel “designa ao mesmo tempo o que é efêmero, o que não tem proveito, e o que é inseguro, estes três sentidos que matizam uma

Page 429: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Quase no extremo do sentido metafórico encontramo-nos com N. Lohfink que introduz nossa palavra hebel na esfera quase filosófica.12 Como repre­sentante dos que afirmam que hebel em Qohélet chegou ao final da evolu­ção semântica, seria preciso colocar R. Pautrel, para quem hebel “não tem valor nenhum de imagem; não tem mais que o sentido de decepção”.13 Assim como o temos diante dos olhos, é pura imagem lexicalizada, um fóssil.

3. Versões em concreto de hebel em Qohélet

Pode-se afirmar, sem temer equívoco, que predomina entre os auto­res certo sentido negativo. O fato é compreensível, uma vez que se utiliza na maioria dos casos hebel “para qualificar experiências humanas e fatos fundamentais”14 que são, em geral, muito negativos para o homem. O le­que de interpretações e versões de hebel vai desde “o inconsistente” até “o absurdo” e “sem sentido”, passando pelo “efêmero”, “inútil” e “vazio”.15 De fato, traduziu-se hebel de múltiplas maneiras, a cada uma das quais subjaz uma visão do mundo que se acredita ser a mesma de Qohélet.

Tentando ordenar de certa forma essa variedade de matizes nas ver­sões — não para rejeitá-las em primeira instância, mas para ver a riqueza de conteúdo de hebel — , dever-se-ia mencionar em primeiro lugar, pelo menos logicamente, as que crêem que hebel qualifica a realidade das coi­sas em si mesma, se não com exclusividade pelo menos primordialmente, donde se deriva depois a aplicação à esfera humana.16

Diante dessa visão, que poderíamos chamar objetiva, porque, pelo que parece, parte do exterior ao homem, está a que sem dúvida é a inter­pretação dominante e que chamaremos de subjetiva.17

Nessa esfera relacional, sublinha-se com insistência o fator do conhe­cimento, ou melhor, o fator da incapacidade do homem de conhecer seumesma noção de base que é a inconsistência. Hebel é o alento, o vapor, a exalação” (La sagesse, 666). R. Albertz, hebel, 467s; D. Michel, Untersuchungen, 51.

12"A palavra [hebel] em Qohélet é quase conceito filosófico. Contudo, mantém sempre algo de seu sentido originário de imagem: sopro de vento, que se dissipa, passa, surge logo como ilusão, e mais, como mentira e nada” (Von Windrauch, 26). Em seu comentário escreve: “1,2 precipita o leitor num mundo, cujo sistema de referências o seduz, mas lhe fica inteiramente obscuro” (Kohelet, 20a).

13L’Ecclésiaste, 15 nota a.14R. Albertz, hebel, 468.15Cf. R. Albertz, hebel, 468; A. Barucq, Eclesiastés, 57 = Ecclésiaste, 55s; W. Vogels, Performance,

369s (faz um reconto quase exaustivo de interpretações, com bibliografia na nota 36).16"Em hebel designa [Qohélet] ao mesmo tempo o que é efêmero, o que não tem proveito e o que é

inseguro, estes três sentidos... matizam uma mesma noção de base que é a inconsistência” (J. Lévêque, La sagesse, 666).

17Hebel refere-se de preferência ao mundo das relações humanas: “Vaidade não significa que o mundo é inconsistente..., mas que ele se oculta ao esforço da inteligência do sábio, não lhe oferecendo mais ponto de apoio que um sopro; oculta-se ele também aos desejos do homem, cuja mão só pode agarrar o vento. Vaidade qualifica a relação do mundo com as aspirações e inteligência humanas, como o confirmam os dois sinônimos unidos às vezes ao vocábulo: perseguição do vento e idéia de vento. Vaidade significa a impotên­cia do homem e o caráter decepcionante do mundo onde vive” (E. Glasser, Le procès, 206).

Page 430: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

meio ambiente: “Hebel é... o juízo de Qohélet sobre uma coisa que se sub­trai ao conhecimento e ao poder do homem”.18

Do agnosticismo passa-se com facilidade ao ceticismo, e vice-versa. D. Michel opina que, diante da pretensão da sabedoria tradicional de que o homem pode chegar a conhecer as leis postas por Deus na natureza, “Qohélet estabelece a posição de um ceticismo teórico do conhecimento; utiliza a palavra hbl sempre ao demonstrar que essa pretensão não se pode conhecer”.19 Não nos pode estranhar, portanto, que creiam muitos autores que a melhor tradução de hebel seja a de absurdo.20

Se o homem confronta-se, em sua experiência dolorosa do dia-a-dia, com tantas situações absürdas e sem sentido, é lógico que sinta no mais profundo de sua alma vazio imenso e decepção total. Já o experimentara Qohélet, razão pela qual alguns traduzem hebel por vazio, decepção.21

4. Hebel em Qohélet não tem sentido ético

Se levarmos em conta o sentido originário de hebel, que os autores reconhecem, e também os que dele se derivam imediatamente, não parece que se deva concluir que hebel nos introduz na esfera do ético e moral: antes é preciso manter para hebel o sentido “neutro” de que nos fala S. Holm-Nielsen.22 No entanto, a tradição pré-cristã e cristã não manteve a neutralidade moral do texto hebraico. A raiz dessa corrente de interpreta­ção moralizante a encontramos primeiramente na versão grega do TH.

R. Albertz não duvida em afirmar que “a LXX traduz hebel antes de tudo por mataiotes, mataios. Acrescenta-se-lhe com isso certo matiz mo­ral; já não se pensa tanto na insuficiência criatural como na insuficiência moral”.23

18N. A. Klopfenstein, Die Skepsis, 104; cf. G. S. Ogden, Qoheleth, 21. Klopfenstein emite esse juízo ao rejeitar o mais drástico de W. E. Staples, que, segundo ele, “defendeu a tese de que hebel no livro do Eclesiastes tem ressonância agnóstica e designa em especial o mistério e a incompreensibilidade de um assunto” [The “vanity", 95]” (Ibidem).

19Untersuchungen, 51.20Assim A. Barucq em Eclesiastés, 29s.57 = Ecclésiaste, 27.55. Cf. também B. Pennacchini, Qohelet,

496; D. Michel, Untersuchungen, 51. M. V. Fox também opina que “a melhor tradução equivalente a hebel no uso de Qohélet é ‘absurdo’, ‘o absurdo’, entendido em sentido próximo ao dado ao conceito de absurdo na descrição clássica de Albert Camus, O mito de Sísifo” (The meaning, 409; cf. Qohelet, 31). Ao mesmo tempo distingue entre absurdo e incompreensível com estas palavras; ‘ “Incompreensível’ admite a possibilidade de que um fenômeno seja significativo; ‘absurdo’ nega que tenha significado e sugere suas amargas implicações para a existência humana. Zofar diz que as ações de Deus são in­compreensíveis; Jó que são absurdas” (The meaning, 413; cf. Qohelet, 35).

2lCf. R. Pautrel, UEcclésiaste, 15 nota a: “decepção”. J. Cantó Rubio, Sapienciales, 158: “Decepção das decepções e tudo é decepção”.

22Cf. The Book, 46.23hebel, 469. Segundo o mesmo R. Albertz, esse deslizamento de o caduco a o pecaminoso ocorre

também no campo hebraico, pois “em Qumrã identificam-se ainda mais diretamente a caducidade com a pecaminosidade (IQS 5,19; 1QM 4,12; 6,6; 9,9; 11,9; 14,2)” (Ibidem).

Page 431: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Já se manifestara, antes de R. Albertz, G. Bertram no mesmo senti­do: salto do caduco, simbolizado pelo sopro de vento etc., ao imperfeito na ordem moral, também causado pela versão grega. Seguindo o texto hebraico, a vida do homem é sopro que, segundo Gn 2,7, vem de Deus e por ele é retomado (cf. SI 104,29). Ora, essa imagem e essa série de relações eliminam-se com o conceito da LXX da mataiotes e ocupa seu lugar a mais abstrata representação da vaidade, nulidade, caducidade do ser terrestre. Não somente se pensa assim na debilidade do organismo humano, que por natureza não passa de sopro (vapor), mas em sua imperfeição moral e na vaidade de seu caráter. Os homens são não apenas sopro ou sombra segun­do o SI 144,4, mas são também, segundo o SI 61,10 [grego], mataioi e pseudeis,u inseguros e falazes; manifesta-se esse aspecto antes de tudo em sua relação com a balança. Dessa forma, a LXX converteu um juízo biológi­co geral sobre a nulidade do homem em juízo ético sobre sua maldade”.25

Parece que traduções posteriores ao grego tentam voltar ao sentido originário do texto hebraico: “E característico que nas traduções de Áquila, Teodocião e Símaco traduz-se hebel por atmis (-os): ‘úmido, vapor’ ”.26

A tradução da Vg: vanitas, corre paralela à grega mataiotes quanto ao significado moral que se lhe atribui, especialmente a partir de santo Agos­tinho. O santo não desconhece o valor primário de vanitas, mas carrega as tintas no aspecto moral.27

As versões do Eclesiastes para línguas vernáculas seguiram a LXX e Vg até os tempos modernos, e, com a versão, a interpretação. Os autores reconhecem sob esse aspecto a influência que teve a versão de M. Lutero ao alemão: Eitelkeit, eitel.28

Também é muito antiga e conhecida a tradição sobre a doutrina espi­ritual cristã do “desprezo do mundo”, que pretende fundamentar-se na doutrina do Eclesiastes. Neste momento não pretendemos fazer uma crí­

24G. Bertram adverte em nota que “o TM do SI 62,10 diz, porém: ‘Sáo sopro os homens e os filhos do homem aparência, na balança mais leves que um sopro’ ” (Hebräischer, 32 n. 1).

25Hebräischer, 31s. Da mesma forma e com a mesma clareza manifesta-se reiteradamente S. Holm­Nielsen: “...mataiotes em outros lugares da LXX traduz palavras como hwh, ryq, shw’, as três com o significado do que é eticamente mau” (The Book, 58s).

26S. Holm-Nielsen, The Book, 46.27L. Chevalier e H. Rondet escrevem a respeito do que pensa Santo Agostinho: “A vaidade opõe-se

à verdade, como o efêmero ao duradouro, o nada ao ser. Mas a palavra expressa também o orgulho pueril de uma criatura que quer parecer maior, presumir de suas forças, inflar-se de vento, quando na verdade não é nada e passa como sombra” (L’idée de vanité dans l ’ouevre de saint Augustin, RevEAug3 [1957] 221. São Jerônimo, porém, em seu Comentário a Ecl 1,2 atém-se ao texto hebraico, não segue a Septuaginta, mas as outras traduções gregas = atmos (de Aq, Th, e Sym) (cf. Commentarius, 252s).

28Citemos K. Galling, que nos informa do deslizamento que ocorreu no significado de hebel por causa das versões: “Nas versões (G Vg) desliza-se o teor da afirmação de nulidade. Mataiotes kai proairesis pneumatos aponta à vaidade dos sentimentos e ao capricho do homem, o mesmo que vanitas et adflictio spiritus (Bertram). Por isso também é melhor prescindir da tradução de Lutero, que tra­duz hebel por eitel [vão], que em último termo retorna à Vg” (Der Prediger, 79).

Page 432: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tica à doutrina em si do “desprezo do mundo”. O que negamos, porém, é que Ecl 1,2 sirva de fundamento escriturístico para essa doutrina, apesar de autores antigos repetirem como estribilho o “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” para provar sua tese De contemptu mundi, sobre o desprezo do mundo. Citamos como o lugar mais célebre a passagem da Imitação de Cristo:

“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade, a não ser amar e servir somente a Deus. A suprema sabedoria consiste em aspirar a ir aos reinos celestiais pelo desprezo do mundo. Logo, vaidade é buscar riquezas perecedouras e esperar nelas, também é vaidade desejar honras e enaltecê-las vãmente. Vaidade é seguir o apetite da carne, e desejar aquilo por onde depois te seja necessário ser castigado gravemente. Vaidade é desejar longa vida, e não prever o vin­douro. Vaidade é amar o que tão depressa passa, e não buscar com solicitude o gozo perdurável”.29

No quase harmônico concerto dos intérpretes modernos, que não atri­buem à palavra-chave de Qohélet hebel nenhum sentido ético, desafina a voz de A. Lauha, que defende com insistência a corrente da tradição secular.30

v

5. A maneira de conclusão

Entre tantos titubeios, impulsiona-nos nosso afã desmedido de segu­rança a buscar solução a que nos aferremos. Eu diria que estamos irremissivelmente tentando fazer-nos a pergunta que com toda clareza formula G. Ravasi: “Qual é o sentido exato deste vocábulo [hebel] tão qoheletiano que veio a ser quase o emblema desse autor?”31 Como se se tratasse de problema matemático que só tem uma solução exata, sendo falsas todas as outras! Não se pode classificar Qohélet absolutamente en­tre os afins ao espírito grego, herdado pelo chamado espírito cartesiano; a atitude de espírito de Qohélet dista anos-luz dessa lógica domesticada pelas coordenadas de espaço e tempo. Por conseguinte, não podemos dar uma só versão como a única válida. Qohélet é sábio observador da complexa reali­dade humana, com suas inesgotáveis circunstâncias e facetas. Pela análi­se do vocabulário, certamente prevalece uma visão da existência humana não muito lisonjeira.

29Livro I, cap. 1.30"Quando Qohélet qualifica toda ação como hebel, o contexto mostra amiúde que sua palavra

inclui expressamente também a luta por um ideal ético... Os valores da vida sofreram uma deprecia­ção. Não vale a pena apaixonar-se nem esforçar-se, pois a vida não vai melhorar nem obter sentido nem valor” (Kohelet, 19; o grifo é nosso). Também defende, logicamente, as versões antigas: “As anti­gas... traduções abstratas de hbl, como mataiotes no G., ‘vanitas’ na Vg e ‘Eitelkeit’ em Lutero, correspondem na maioria dos casos à mais profunda intenção do pensamento de Qohélet” (Kohelet, 18s; cf. também p. 30).

31Qohelet, 22.

Page 433: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Se se admite o parecer de tantos autores que mantêm que o fio condu­tor do Eclesiastes é marcado pela sentença de 1,2, só pode ser negativo o tom dominante do livro. Conhecemos qual é a opinião mais generalizada nos séculos de cristianismo: afirmou-se sem titubeios a negatividade do­minante no livro; e ainda hoje em dia continua sendo a sentença mais comum, quase unânime.32 Mas também há juízos que são menos severos e menos negativos; sobretudo a partir da não-plena identificação entre o termo hebraico hebel e a versão latina vanitas.33

III EXCURSO SOBRE O TRABALHO EM QOHÉLET

1. A raiz ‘ml em Qohélet

Constatemos antes de tudo um fato notável: a freqüência com que aparecem em Qohélet derivados da raiz ‘ml é proporcionalmente muito maior que nos outros livros hebraicos do A. T.1 Encontramos o substantivo ‘amai 54 vezes no Texto Hebraico, das quais 21 estão em Qohélet;2 o verbo ‘amai 20 vezes no TH e destas 13 em Qohélet.3 Portanto, é do máximo interesse averiguar qual é o sentido mais radical e profundo de alguns morfemas que são tão usados por Qohélet e que se ligam com a tradição literária mais autêntica hebraica em particular e semítica em geral.

Com efeito, o sentido originário e primário da raiz ‘ml parece ser o de “trabalho” ou de ação humana.4 A ordem lógica não precisa ser necessaria­mente a ordem genética ou semântica. Assim, deveremos pôr em interro­gação o que parece insinuar S. Holm-Nielsen, de que ‘ml teria no início sentido neutro de “labor, trabalho”.5 O trabalho humano, porém, desde que

32R. Albertz escreve, por exemplo: “Por causa da experiência, da observação e da reflexão, o Eclesiastes chega às vezes a um juízo demolidor, quase sempre acerca de coisas muito concretas [gam] ze hebel ‘[também] isto é vão]’ Ecl 2,15.19.21.23.26; 4,4.8.16; 5,9; 6,2.9; 7,6; 8,10.14; cf. 2,1; 11,10); só ocasionalmente se estende mais ou menos (hakkol hebel ‘tudo é vão’ 2,11.17; 3,19; cf. 11,8)” {hebel,468); cf. K. Galling, Der Prediger, 79.

33Cf., por exemplo, S. Holm-Nielsen, The Book, 46, e nossas matizações ao longo de nossa exegese.

Contamos com uma série de bons estudos sobre ‘ml, de que nos servimos; os mais importantes em ordem cronológica são: W. E. Staples, “Profit” (1945); G. Bertram, Hebräischer (1952) 35-38; O. Loretz, Qoheleth (1964), 42s; R. Braun, Kohelet (1973) 48s; F. Foresti, ‘amai (1980); além dos léxicos hebraicos e os comentários ad loc.

2A saber, em 1,3; 2,10 (2x).ll; 2,18.19.20.21.24; 4,4.6.8.9; 5,15.17.18; 6,7; 8,15; 9,9; 10,15 (cf. G. Bertram, Hebräischer, 36; R. K. Johnston, Confessions, 19).

38 vezes como verbo: 1,1; 2,11.19.20.21; 3,13; 5,14.17; 8,17; cinco vezes como adjetivo verbal (‘amei): 2,18.22; 3,9; 4,8; 9,9.

4F. Foresti confirma-o: “Agrupando os diversos significados da raiz ‘ml, segundo seus diversos morfemas, observa-se que em sua base há um denominador comum semântico, que é a idéia de ‘traba­lho’ ” (‘amai, 425). Que este seja humano deduz-se do contexto.

5Cf. The Book, 47.

Page 434: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

tem recordação o homem, em geral acarreta desgaste e, portanto, cansa­ço.6 Sistemática e ordenadamente o expuseram com acerto os que estudaram mais recentemente ‘amai. Assim F. Foresti propõe-nos o seguinte resumo: “Podem-se agrupar os significados [de ‘ml] em duas categorias, segundo os dois diferentes aspectos que caracterizam o trabalho: esforço ou eficácia- rendimento. Provisoriamente fazemos a seguinte proposta para a evolu­ção semântica da raiz:

(esforço) -» trabalho pesado -» pena, aflição -* opressão , , „ (de outros)

0 (eficácia-rendimento) -* produto -»• bens, riqueza -* benefício -» contribuição”.7

Inspirando-se em G. Fohrer, B. Otzen faz análise mais profunda do processo semântico e escreve: “O significado fundamental da raiz é hipo­teticamente ‘estar cansado’ ou ‘chegar a estar cansado’, e em torno deste significado fundamental há uma série de significados que se relacionam semanticamente: ’ml designa, por um lado, aquilo pelo que se chega a estar cansado, ‘o trabalho’ (e o verbo ‘trabalhar’), mas, de mais a mais, o estado em que alguém se encontra quando se afadiga, portanto, ‘fadiga’, ‘aflição’ e ‘calamidade’. Finalmente, ‘ml pode indicar os resultados positivos do trabalho penoso: ‘ganho’ ou ‘aquisição’... Quando se expressa um conceito pelos semitas, ressoam todos os aspectos do conceito, ainda que esteja em primeiro plano determinado matiz no conceito correspondente”.8

Concerne de tal maneira à esfera de significados de ‘ml o homem, que R. Braun eleva suas reflexões ao plano filosófico e conclui que “ ‘ml desig­na na maioria das vezes na literatura sapiencial a penosa estrutura fun­damental do ser humano”.9 Com essa orientação tão própria do Antigo Tes­tamento sintoniza-se o pensador e mestre Qohélet, como atesta desta vez G. Bertram: “Segundo o texto hebraico, o conteúdo da vida humana desde o princípio até o final é ‘amai. Esse vocábulo e o verbo correspondente determinam a concepção que Qohélet tem da sorte terrena do homem”.10

6G. Fohrer afirma de fato que “ ‘ml designa em primeiro lugar o ‘esforço’ ou a ‘fadiga’; em segundo lugar, aquilo aonde leva o esforço” {Zweifache Aspekte hebräischer Wörter, BZAW 155 [1981] 209. G. Bertram matiza detidamente o tipo de fadiga: a raiz hebraica [W ] designa a fadiga que alguém se impõe, ou que se lhe advém, seja com cargas externas ou internas, sem culpa ou com ela (Hebräischer, 36). Também I. Di Fonzo opina: “Em hebraico, o verbo e substantivo ‘amai, ‘fadiga, trabalho’ duro e pesado, também esforço penoso e trabalho (cf. o francês ‘travail’)” (Ecclesiaste, 123); N. Lohfxnk tam­bém observa que “a palavra radical hebraica abarca tanto o trabalho fatigante do homem, como seu resultado, a posse” (Kohelet, 20).

''‘amai, 42.s‘amal, 214.sKohelet, 48.10Hebräischer, 35s. Cf. K. Galling, Der Prediger, 85; F. Foresti, ‘amai, 421; A. Barucq, Eclesiastés, 58.

Page 435: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qual é, em concreto, o significado dos derivados da raiz ‘ml em Qohélet? No essencial, Qohélet acomoda-se ao uso comum da raiz ‘ml, com as trans­formações próprias de uma língua viva que evolui. Portanto, a priori não se pode excluir a pluralidade de significados, como de fato confessam os autores.11 Estes fundamentalmente se reduzem a dois: 1) o trabalho ou esforço em si mesmo e 2) o fruto deste esforço ou trabalho.12 A relação de ambos os significados é estreita: um leva espontaneamente ao outro.13

Não podemos, portanto, ser exclusivistas ao traduzir ou interpretar o uso que faz Qohélet do substantivo ‘amai e do verbo ‘amai. Umas vezes sublinhamos sem dúvida a fadiga, o esforço de toda atividade do homem, com ou sem o matiz pejorativo de frustração. Mas alguns insistiram mais no segundo aspecto de ‘ml, ou seja, no resultado do trabalho humano, do que na ação mesma, geralmente penosa e fatigante.14 Contra essa tendên­cia reagiram muitos autores, alguns deles com bastante violência.15

2. O amor ao trabalho em Qohélet

Qohélet descobre paradoxalmente no trabalho um pouco de felicida­de, mas não a felicidade completa que sabemos ser utopia.

Nem todas as coisas na vida são importantes, muitas temos que repe­tir infinidade de vezes ao longo do dia. O que verdadeiramente importa então é como as fazemos. Se eu sei que uma coisa me pode dar dez, não devo esperar dela mais que dez; meu desencanto será maior à medida que vai superando os dez de sua medida máxima.

Há também coisas que são grandes e muito apreciadas entre os ho­mens. Qohélet conta com a amarga experiência de que, depois de tê-las conseguido, não é mais feliz que antes (cf. 2,4-11), porque a felicidade não está nas coisas; se fosse assim, o pseudo-Salomão não confessaria na ple­nitude de sua glória: “Tudo é vaidade e caça de vento, nada se tira sob os sol” (2,11).

uTalvez se deva excluir H. L. Ginsberg que diz, por exemplo: “O verbo ‘amai e o substantivo ‘amai significam quase sempre ‘ganhar ou adquirir’ e ‘ganho ou aquisição’ respectivamente” (The structure, 140).

12Cf. F. Foresti, ‘amai, 430; G. Bertram, Hebräischer, 38; M. V. Fox, The meaning. 415; S. Schwertner, ‘amai, 333.

13F. Foresti escreve: “Os dois significados estão estreitamente relacionados um com o outro: o primeiro deu origem ao segundo, conforme processo em grande parte atestado na lingüística semita” (‘amai, 430).

l4Cf. H. L. Ginsberg, The structure, 140; O. Loretz, Das Buch, 208 nota 15; N. Lohfink, Kohelet, 20b.15B. Otzen crê que ‘amai no SI 105,44 significa certamente ‘aquisição’ (do mesmo tempo que Qohélet),

mas a intenção de H. L. Ginsberg [cf. Studies, lss, e Supplementary, 35-39) de traduzir quase sempre ‘amai por ‘aquisição’ ‘soa artificialmente’ (cf. ‘amai, 220); ver também R. Kroeber, Der Prediger, 115; D. Lys, VEcclésiaste, 99 nota 74; M. V. Fox, Qohelet, 55.

Page 436: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Correm nesta órbita as reflexões de Qohélet sobre o trabalho, que para ele é qualquer atividade humana, seja de ordem física, seja espiritual, “que se faz sob o sol”.16 Por isso, o trabalho é tão importante para o homem, pois sem cessar é equivalente à morte: “Os mortos... nunca mais terão parte em tudo o que se faz sob o sol”, “porque não há ação, nem cálculos, nem conhe­cimento, nem sabedoria no abismo aonde te encaminhas” (9,5-6.10).

Segundo uma tradição de Israel, o trabalho foi imposto ao homem pecador: “Disse [o Senhor Deus] ao homem: Porque fizeste caso de tua mulher e comeste da árvore proibida, maldito o solo por tua culpa: come­rás com fadiga enquanto viveres; ele fará brotar para ti cardos e espinhos e comerás erva do campo. Com o suor de tua fronte comerás o pão...” (Gn 3, 17-19). Qohélet interpreta-o como uma tarefa que tem de cumprir. “Uma triste tarefa deu Deus aos homens para que se atarefem com ela” (1,13; cf.5,10). Mas essa tarefa deve ter um sentido e Qohélet tenta descobri-lo e avaliá-lo já desde o começo de suas reflexões: “Que ganho tem o homem de todas as fadigas com que se afadiga sob o sol?” (1,3; cf. 2,22). Qohélet reco­nhece que às vezes o fruto do trabalho é grande, mas isso não só não faz feliz quem o realiza (cf. 2,4-11; 4,8; 5,9-12; 6,2), mas também converte-o em amargurado e desenganado (cf. 2,18-20; 5,14-15). Porque pôs toda sua confiança egoisticamente no que afinal é como a fumaça: sem consistên­cia. Mas se pensa menos em si mesmo e mais nos outros, para comparti­lhar com eles de seu esforço e resultados, o juízo começa a ser positivo. Qohélet pergunta-se intencionalmente: “Para quem trabalho eu e me pri­vo de satisfações?” (4,8) Sua experiência é decepcionante; seu ensinamento, porém, quer corrigir erros de princípio; por isso continua: “Melhor dois que um só, visto que terão um bom ganho em seu trabalho” (4,9; cf. w. 10-12).

Apesar de tudo isso, também encontra Qohélet, no trabalho e seus frutos, motivos de gozo, os quais, ainda que passageiros, mostram o lado amável da vida.17 Em todas as passagens de Qohélet sobre as alegrias da vida, faz-se referência ao trabalho que se avalia positivamente: “Não há nada melhor para o homem que comer e beber e desfrutar de seu trabalho. Também observei que isso vem da mão de Deus” (2,24; com pequenas va­riantes 3,12s; 5,17s; cf. também 8,15).

Não se pode considerar mau, nem sequer indiferente, o que é “dom de Deus” (2,24; 3,13), o que é “sua parte” ou “pagamento” (5,17) e o que “Deus aceitou” (9,7). Tudo isso se diz do trabalho do homem (e de seus frutos), que em si mesmo é agradável e produz satisfação.18

16Para N. Lohflnk, o trabalho inclui o esforço humano e seu fruto ou resultado (cf. Kohelet, 20b).17Escreve J. L. Crenshaw: “Poder-se-ia até dÍ2 er que ele [Qohélet] entendeu o trabalho como um

dos verdadeiros prazeres da vida” (Old Testament, 142).18Cf. P. J. Siméon, Le don de vivre, 24; E. Glasser, Le procès, 206.

Page 437: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Nem em tempos de Qohélet nem em nossos concebe-se que uma pes­soa se ache a gosto senão trabalhando, ou seja, realizando aquelas tarefas que a plenificam. Mas não se pode dizer que o trabalho, mesmo o mais gratificante, produza satisfação absolutamente plena; é, nesse sentido, valor relativo e, por isso mesmo, vaidade, segundo o modo de falar de nos­so autor.

IV EXCURSO SOBRE A RETRIBUIÇÃO EM QOHÉLET

Sempre pareceu baluarte inexpugnável que o mal jamais prevalece­ria sobre o bem, que nunca deixariam de receber seu prêmio os bons e seu castigo os maus (cf. Pr 13,25; 10,3). Na perspectiva de Qohélet, a realiza­ção da retribuição (prêmio aos bons e castigo aos maus) deve realizar-se antes da morte, uma vez que, segundo ele, não existe vida além da morte. Essa afirmação tão terminante pesa como a lousa do sepulcro.

Com efeito, o tema da morte, e do vazio absoluto após a morte, é per­manente em Qohélet do começo ao fim, está presente em todas as suas reflexões, é oprimente. A sorte não distingue durante a vida entre inocen­tes e culpados (cf. 9,2-3); tampouco faz ela distinção entre sábios e néscios: “Compreendi também que uma mesma sorte toca a todos. Então pensei comigo: como a sorte do néscio será também a minha. Então, por que sou sábio? Onde está a vantagem? ...Como é possível que tenha que morrer o sábio como o néscio?” (2,14-16). “Não vão todos ao mesmo lugar?” (6,6). A morte é a grande niveladora, não só de justos e injustos, sábios e néscios, mas também de homens e animais: “Pensei acerca dos homens: Deus os prova e os faz ver que eles por si mesmos são animais. Pois a sorte dos homens e a sorte dos animais é a mesma sorte. Como morrem uns, mor­rem os outros; todos têm o mesmo alento. E o homem não supera os ani­mais... todos caminham ao mesmo lugar, todos vêm do pó e todos voltam ao pó” (3.18-20).1

Segundo Qohélet, a morte é o final absoluto, a aniquilação total do indivíduo, a liquidação de toda esperança: “Para os que vivem ainda há esperança... Os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem

*A interrogação que segue: “Quem sabe se o alento do homem sobe para cima e o alento do animal desce à terra?” (3,21), não encerra suspeitas de sobrevivência do alento do homem, mas suspeitas de distinção entre alento e alento, que num e noutro caso se desvanece inteiramente (veja-se 12,5-7). Houve um tempo em que se discutia se neste lugar Qohélet admitia a sobrevivência pessoal depois da morte. Hoje em dia existe unanimidade moral entre os exegetas: Depois da morte nada; cf. H. F. Pfeiffer, The peculiar, 104s; A. Bea, Liber IX-X; F. Festorazzi, In margine, 70s; D. Michel, Im Angesicht des Todes, I (S. Ottlien, 1987), 642s, com suas matizações.

Page 438: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

nada; para eles já não há recompensa, pois sua memória foi esquecida... Tudo o que puderes fazer, faze-o com empenho, porque não há ação, nem cálculos, nem conhecimento, nem sabedoria no abismo aonde te encami­nhas” (9,4-10).

Se não existe vida além da morte, não se pode apelar a ela para resol­ver o problema da retribuição, como se fará no livro da Sabedoria. Qohélet é coerente e radical também nesse capítulo: tampouco existe retribuição na vida antes da morte. Esta é uma das mais graves conclusões a que chega Qohélet em suas reflexões, e expressa-a, de mais a mais, com tal clareza que não deixa lugar à dúvida razoável.

Qohélet sabe perfeitamente que se confronta com a doutrina da tradi­ção sapiencial: “Ainda que eu saiba disso: ‘Irá bem para os que temem a Deus porque o temem...’ ” (8,12-14). Mas ele, e todos os que quiserem abrir os olhos à realidade da vida cruel de cada dia, constatou todo o contrário: “De tudo vi em minha vida sem sentido: gente honrada que perece em sua honradez e gente malvada que vive largamente em sua maldade” (7,15; cf. também 2,15s; 3,16-21; 4,1-3; 8,10-14; 9,2-6).2

A conclusão de tudo isso não se fará esperar. Na tradição de Israel apresenta-se Deus como garante do ensinamento sobre a retribuição,3 o que parece fundamental para que permaneçam como válidos os valores transcendentais da vida mesma, da justiça e tudo o que está do lado do bem e contra o mal. Que valor pode ter até os próprios preceitos da Lei de Deus, se não se garante que não vão ter a mesma sorte os que cumprem esses preceitos e os que livremente os violam?

Qohélet encontra-se entre a espada e a parede, mas não se atemoriza; afirma ao mesmo tempo sua fé em Deus e a não-discriminação entre o injusto e o justo, o néscio e o sábio, o impuro e o puro, o não-religioso e o religioso (cf. 9,1-3; também 2,14-16; 3,18-21).4

Surge, pois, a pergunta: Para que serve o exercício da justiça, do cul­to, da fidelidade, da virtude? Ou, como diz o salmista: “Para que limpei meu coração e lavei na inocência minhas mãos? Para que agüento todo dia e corrijo-me cada manhã?” (SI 73,13-14). Outro salmista também lamen­ta-se da sorte dos maus: “Vede: os sábios morrem, do mesmo modo pere­

2Cf. R. H. Pfeiffer, The peculiar, 106.3Que sentido pode ter, se é que tem, o apelo ao juízo de Deus nos Profetas, e a própria memória das

promessas feitas aos Pais e acompanhadas de juramento por parte de Deus? (cf. M. A. Klopfenstein, Die Skepsis, 101s).

4Antes de Qohélet, apresentara o autor do poema de Jó de forma dramática suas dúvidas e críticas à doutrina tradicional sobre a retribuição. Ainda que Jó se refira fundamentalmente a seu problema pessoal, seria ele paradigma? Não podemos indicar aqui e agora as semelhanças e diferenças entre Jó e Qoh a este respeito. Cf. A. Lauha, Die Krise, 183-191; J. M. Rodríguez Ochoa, Estúdio, 39-44.50s; J. Lévêque, La sagesse, 662-664.

Page 439: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

cem os ignorantes e os néscios, e legam suas riquezas a estranhos. O se­pulcro é sua morada perpétua e sua casa de idade em idade, ainda que tenham dado nome a países. O homem não perdura na opulência, mas perece como os animais. Este é o caminho dos confiados, o destino dos homens satisfeitos: são um rebanho para o abismo, a morte é seu pastor, e descem direto à tumba; desvanece-se sua figura, e o Abismo é sua casa” (SI 49,11-15). Para Qohélet não há distinção entre justos e ímpios: todos têm a mesma sorte. Não se logrou ainda divisar o que parece insinuar o salmista: “Mas a mim Deus me salva, tira-me das garras do Abismo e me leva consigo” (SI 49,16), quer se refira ao além da morte, quer continue ainda no estádio presente.5

V EXCURSO SOBRE DEUS E O TEMOR DE DEUS EM QOHÉLET

Para Qohélet, Deus “não é investigável”; fala, porém, muitas vezes de Deus. Podemos perguntar, portanto, com razão: Que conceito tem Qohélet de Deus e o que pensa das relações do homem com Deus?

1. Conceito de Deus em Qohélet

Os autores partem do pressuposto verdadeiro de que Qohélet crê em Deus. O problema surge quando se quer determinar o que entende Qohélet por Deus.1 Segundo alguns, não podemos saber nada disso, pois “no Ecl Deus não só é desconhecido do homem pela revelação, mas também não se pode conhecer pela razão”.2 Todavia, fala, ainda que negativamente, de Deus. Assim têm razão os que tentam determinar, à medida do possí­vel, qual é a idéia que Qohélet tem de Deus. O leque de opiniões é amplíssimo.

Mencione-se, em primeiro lugar, os que afirmam que o Deus de Qohélet é impessoal ou pelo menos que assim parece ser,3 reduzido à frialdade “de um Princípio Metafísico”.4 Depois vêm aqueles para os quais o Deus de

5Cf. D. Michel, Im Angesicht des Todes, I (S. Ottilien, 1987) 655s.

xCf. D. Michel, Gott bei Kohelet, 32.2R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 191.‘Este Deus de Qohélet em muitas sentenças tem a aparência de uma força impessoal do destino”

(R. Kroeber, Der Prediger, 29), ou então: “O Deus do Eclesiastes é um ser sobremaneira transcendente [5,11] e impessoal, o Deus absconditus, de impenetráveis desígnios [3,10s; 8,17]” (A. M. Figueras, Eclesiastes, 1052); cf. K. Galling, Prediger, 1828.

4E. Glasser, Le procès, 204.

Page 440: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Qohélet é um Deus pessoal, com tantos matizes quantos são os autores que trataram do tema. Desaparecem assim os possíveis equívocos acerca do ser pessoal de Deus: primeiro tenuemente,5 depois mais abertamente.6 Não podemos passar por alto a corrente de opinião que atribui a esse Deus pessoal certos traços e atributos que não nos parecem conformes plena­mente com o Deus venerado pelo povo de Israel, tal como aparece, pelo menos, em Profetas e Salmos.7 Esse Deus de Qohélet foi chamado de “dés­pota distante e indiferente”,8 “o absoluto e arbitrário dono do destino”,9 “um longínquo e incompreensível déspota, um ser arbitrário”.10 Coerente­mente, essa corrente de intérpretes considera que não tem nada a ver o Deus de Qohélet com o Deus que se presume conhecer em Israel pela reve­lação,11 o Deus dos Patriarcas e Profetas,12 ou o Deus de Jó.13

Porém existe outra corrente de interpretação de Qohélet, a mais cos­tumeira por ser a tradicional, mas que se renova, que vê em Qohélet “um genuíno testemunho veterotestamentário”.140 Deus de Qohélet não é es­tranho ao A. T., “mas o Deus vivo e concreto da fé israelita”;15 e, se compa­rarmos Qohélet com Jó, F. Crüsemann nos dirá que “as posições teológicas

5"Para Qohélet Deus é uma pessoa, mas sua personalidade está muito mais atenuada que a ativa personalidade moral que conheceram os profetas dos séculos VIII e VII” (O. S. Rankins - G. G. Atkins, TheBook, 18a).

6Como, por exemplo, o nada suspeito A. Lauha: “Para dizer a verdade, nunca Qohélet usa o nome próprio israelita de Deus: Iahweh, normal no resto da literatura sapiencial. No entanto, com seu ’Ihym refere-se a um Deus pessoal e não a vim indeterminado conceito de divindade” (Koheleth, 17). Também todos os que identificam o Deus de Qohélet com o Deus de Israel e os que admitem a possibi­lidade de estabelecer um diálogo com Deus.

7Assim R. H. Pfeiffer nos diz que “o Eclesiastes discorda mais radicalmente mesmo da teologia judaica: para ele Deus é dotado de poder ilimitado, mas sua atividade não revela nenhum vestígio de justiça e misericórdia, nem sequer de sabedoria” (The peculiar, 101).

8Pedersen, Scepticisme, 360.9H. L. Ginsberg, The structure, 147.10A. Lauha Die Krise, 186; cf. Kohelet, 17; J. L. Crenshaw, Ecclesiastes, 30, que está de acordo.

Para H. H. Schmid, o Deus de Qohélet “tem traços quase fatalistas” (Wesen, 192). Não assim outros muitos que rejeitam energicamente essa concepção de Deus, atribuída a Qohélet, cf. F. N. Jasper, Ecclesiastes, 270; N. Lohfink, Kohelet, 15-16; A. Bonora, Qohelet, 92.

“ Escreve L. Gorssen: “Nota-se logo a ausência [em Qoh] de uma ação tipicamente bíblica, a do Deus da aliança e da história da salvação” (La cohérence, 314). De outro Deus, distinto de Iahweh, “o Deus do pacto de Israel”, fala também R. B. Y. Scott (Ecclesiastes, 191). D. Michel parece identificar- se com o leitor de Qohélet que faz essa pergunta: “O que busca no Antigo Testamento esse filósofo cético, cujo conceito de Deus distingue-se tão fundamentalmente do conceito de Deus do resto do Antigo Testamento?” (Kohelet, 116; cf. Gott bei Kohelet, 35). A. Lauha expressa-se assim: “Seu Deus [o de Qohélet] não é o Deus da fé israelita” (Kohelet, 17). A. Schmitt não chega a tanto, só diz que para Qohélet “Deus é de outra maneira” (Zwischen, 127); cf. H. H. Schmid, Wesen, 192.

12Cf. A. M. Figueras, Eclesiastés, 1052: “Estamos longe do Iahweh dos Patriarcas”; D. Michel volta a escrever: “O Deus de Qohélet... não é precisamente o Deus de Abraão, nem o Deus de Isaac, nem o Deus de Jacó, nem o Deus de Jesus Cristo” (Qohelet, 100).

13Cf. H. P. Müller, Wie sprach, 521; E. Glasser, Le procès, 203s.14São palavras de um dos mais recentes comentadores de Qoh, de M. Schubert em

Schõpfungstheologie (1989), 5.15A. Bonora, Qohelet, 86. F. Festorazzi por sua vez afirma: [Em Qoh] deve-se pensar Deus como se

concebe comumente em Israel” (II Qohelet, 177).

Page 441: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

do poeta de Jó e de Qohélet são tão semelhantes que se podem e se devem interpretar mutuamente”.16

As diferenças existentes entre Qohélet e os outros autores do A. T., mesmo acerca do conceito de Deus, não são razões suficientes para dei­tar fora Qohélet do mundo da fé de Israel, mas antes prova da riqueza da Sagrada Escritura, que, com sua multiplicidade e variedade, contém a revelação do insondável mistério de Deus, cujas infinitas facetas ja­mais nosso pequeno entendimento poderá esgotar. Cabe, pois, a diversi­dade, o tenteio e balbucio quando se fala de Deus, mesmo na Sagrada Escritura.

As reflexões do sábio Qohélet certamente distam muito do espírito que alentava os Profetas de Israel. Mas é que sua função é outra, sem que isso o leve necessariamente a negar o espírito dos Profetas. Quem agora fala é o homem da experiência histórica descarnada, reduzido à sua esfera natural, de uma história feia e suja, dura e execrável, que tantas vezes provoca náuseas a Qohélet-, daí seu tudo é vaidade, vazio, vento, caça de vento, absurdo, sem sentido, etc.

Todavia, Qohélet nos lança a toalha. Há quem talvez diga que incon­seqüentemente. Pode ser; mas é que as inconseqüências e as contradições são ingredientes da própria realidade. Qohélet não crê que estas contradi­ções da realidade da vida humana, essas incongruências e incompati­bilidades, por exemplo, entre a concepção de um Deus, em cujas mãos onipotentes estamos todos, e a acumulação das misérias humanas sem o horizonte esperançoso de que se fará justiça de uma ou de outra maneira (esta é a doutrina da retribuição), não crê, repito, que sejam argumento para pôr em dúvida, e muito menos negar, a existência de Deus. Aqui volta a manifestar-se a profunda fé religiosa de Qohélet. Nisso estava de acordo com o salmista, para quem negar a existência de Deus é coisa de néscios: “Diz o néscio para si: ‘Deus não existe’ ” (SI 14,2). O fato de não sermos capazes de resolver as contradições na vida prova várias coisas: que a vida é mais complicada do que podemos imaginar, que os homens somos muito limitados em nossas possibilidades, e que nada sabemos acerca do domínio e governo de Deus sobre sua criação e, em especial, sobre o homem; mas jamais será argumento razoável para forçar-nos a negar a existência de Deus.17

16Hiob und Koh., 381, que continua: “O ponto de partida para o pensamento de Kohelet é o que se conseguiu nos discursos de Deus do livro de Jó. Kohelet tira as conseqüências de Jó”.

17Também é provavelmente verdade que não existe argumento de razão que nos obrigue a afirmar a existência de Deus; pelo que parece, tem razão Qohélet ao pôr como pressuposto fundamental: Deus não é investigável.

Page 442: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Sobre o temor de Deus

Em muitas ocasiões falamos da sinceridade de Qohélet como verda­deiro crente, como autêntico filho de Israel; agora dedicamos essa secção exclusivamente a seu modo de entender o temor de Deus, que nos esclare­cerá ao mesmo tempo sobre seu modo de conceber a Deus.2.1. Qohélet fala do temor de Deus

Entre os temas importantes que afloram várias vezes em Qohélet está o do temor de Deus. Cinco são as passagens em que aparece:

3,14 “Assim Deus fez com que o temam”.5,6 “Tu, ao invés, teme a Deus”.7,18 “Pois quem teme a Deus de tudo sai bem”.8,12a “Ainda que eu saiba disso [eu sei bem que]:18Irá bem para os

que temem a Deus porque o temem, mas não irá bem ao mau, nem se prolongarão seus dias como uma sombra, porque não tem temor na presença de Deus’ ”.

12,13 “Teme a Deus e guarda seus mandamentos”.

Tendo em vista os textos de Qohélet, não se pode negar que “o temor de Deus” ocupa lugar importante em sua concepção global da vida. J. Becker chega a afirmar: “Justiça e sabedoria são para ele [Qohélet] discutíveis; o temor de Deus, pelo contrário, ele o recomenda incondicionalmente como norma de vida prática”.19 Os autores recordam a este propósito as pala­vras um tanto exageradas de F. Delitzsch: “Pode-se chamar o livro de Kohélet de ‘o cântico do temor de Deus’ ”.20 Palavras sem dúvida belas, mas em seu conjunto não de todo exatas por exorbitadas.21

2.2. Sentido do temor de Deus em QohéletNão é fácil dar com a chave de interpretação de Qohélet. Separam-

nos muitos séculos, e as maneiras de pensar acompanham o tempo e as mudanças das circunstâncias na esfera das relações inter-humanas e, con­seqüentemente, no modo de conceber as relações religiosas. Os vocábulos

18A versão depende de que essas palavras se interpretem como introdução a uma citação, ou então à opinião de Qohélet (cf. J. Becker, Gottesfurcht, 253).

19Gottesfurcht, 253.20Koheleth, 190; Commentary, 183. Com isso parece estar de acordo A. Bonora, pois segundo ele:

“Com o conceito de ‘temor de Deus’, achamo-nos no centro do pensamento de Qohélet” (Qohelet, 73). Ai mesmo Bonora continua: “Qohélet contrapõe a essência de toda religião: o temor de Deus. Quem tem o temor de Deus possui a verdadeira sabedoria. Este é o centro do pensamento de Qohélet: sem a relação com Deus, tudo é ilusão, obra inútil, palavra vazia. Se há temor de Deus, a busca humana de sentido... converte-se em maravilhosa aventura”.

2lDesse mesmo parecer é J. Becker que opina que “não se pode afirmar que [o temor de Deus] seja a questão mais importante do livro, nem que o Eclesiastes seja ‘o cântico do temor de Deus’ ” 6Gottesfurcht, 250).

Page 443: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

yir’ah (temor) eyr (temer) não têm as mesmas conotações para nós e para Qohélet.

Os intérpretes, como era de esperar, não entendem o temor de Deus em Qohélet da mesma maneira. Em grande parte depende do conceito de Deus que atribuem a Qohélet. Diz-nos L. G. Perdue: “Temor de Deus para Qohélet é temor atual, temor diante de um poder impenetrável que tem capacidade de destruir ou premiar, de dispensar alegria ou de negá-la”.22 Estamos diante de concepção da divindade que infunde pânico e terror. O homem, perante a transcendência divina, só pode calar e ter medo, “medo de um Deus incompreensível como o apresentado na teologia do tempo”.23 Aceita-se, pois, a palavra “temor” no sentido psicológico mais primário. J. Pedersen perguntava-se em nome do Eclesiastes respondendo ao mesmo tempo: “Como pode o homem arrumar-se diante dessa Onipotência? A res­posta é clara: submeter-se. No pleno sentido da palavra, temer a Deus. Lê- se em outros livros do A. T. que é preciso temer e amar a Deus. Para o Eclesiastes, só resta o temor. Repitamo-lo por ele: Deus dirige o mundo de maneira arbitrária, para que os homens o temam (3,14)”.24

Essa concepção de Deus gera a religião do medo que dominou a hu­manidade grande parte de sua história e, infelizmente, ainda continua vigorando.25 Neste contexto não parece que o homem tenha outra saída senão a submissão incondicional, com temor e tremor. “O temor de Deus converte-se em resignação”.26

Mas não é essa a única maneira de interpretar Qohélet. Parece que os intérpretes anteriores esqueceram algo tão importante como a experiência religiosa, que, ainda que seja a de Qohélet, é a experiência religiosa de um israelita.27 Pelo menos devemos supor o mínimo num homem profundamen­te crente, que, se critica tão a fundo a religião e a concepção tradicional de conceber as relações do homem com Deus, é porque não lhe são indiferentes.

No entanto, corremos o perigo de ir ao extremo contrário, amaciando as duras expressões de Qohélet. Mantenhamo-nos em justo meio.28 Qohélet

22Wisdom, 180.23F. Festorazzi, II Qohelet, 189, que continua: “3,14; também assim em parte 5,6 no contexto glo­

bal; o mesmo significado está também em 7,18”.24Scepticisme, 361.25"Uma religiosidade sem entusiasmo por parte do homem é a conseqüência inevitável dessa con­

cepção de Deus. O temor de Deus reduz-se a ‘guardar-se daquele que pode dar não importa que sorte’. No comportamento cultual (4,17-5,6), corre-se o risco de provocar a Deus com uma palavra apressada” (L. Gorssen, La cohérence, 323).

26H. P. Müller, Wie sprach, 520; veja-se também L. G. Perdue, Wisdom, 180.2,F. Festorazzi não adverte que “temos vários motivos para indicar uma experiência espiritual

profunda na fé de Qohélet: o primeiro é sua relação com Deus, expressa no tema do ‘temor de Deus’, ainda que esse Deus seja misterioso” (In margine, 71).

28L. Derousseaux diz-nos que “Qohélet volta ao vocabulário que evocava o pavor do homem diante da Majestade divina tremenda e fascinante ao mesmo tempo... Porque é preciso levar Deus a sério...

Page 444: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

fala de Deus, o Senhor e Criador (cf. 12,1), cuja grandeza e transcendência ultrapassam toda possibilidade humana de compreensão. Qohélet fala assim: “Compreendi que tudo o que Deus faz durará para sempre: nada se lhe pode acrescentar e nada se lhe pode tirar. Assim Deus fez que o te­mam” (3,14).29

O temor de Deus em Qohélet significa, pois, essa especial sensação reverenciai que experimenta o homem crente e, portanto, religioso, peran­te a Majestade divina, percebida numa experiência religiosa.30 Quando Qohélet nos diz: “Tu, ao invés, teme a Deus” (5,6), devemos pensar que não se trata simplesmente de deixar o campo. Está encerrada neste conse­lho toda uma mensagem ou um programa de vida, que não exclui absolu­tamente o modo de viver a fé numa comunidade de crentes israelitas (cf. 12,13).

VI EXCURSO SOBRE ‘OLAM EM QOH 3, Haß

Qoh 3, Haß diz: “Também pôs (Deus) o ‘ólam em seu coração”. O que quis significar Qohélet com esse ‘olam que Deus pôs no coração dos ho­mens? As versões antigas e modernas dividem-se fundamentalmente em dois lados:1 as que preferem traduzir ‘olam por mundo, encabeçadas pelas latinas (Vg: mundum, Jerônimo: saeculum) e as que se decidem por eter­nidade, precedidas talvez pela grega: aion.2 A dificuldade, porém, perma­nece, porque o que quer dizer que o mundo ou a eternidade estejam no coração dos homens?3 E preciso, pois, tentar determinar mais precisamen­te o significado de ‘olam*

E preciso, portanto, receber tudo de Deus, tanto as pequenas como as grandes coisas, a adversidade como a alegria, porque ‘se Deus não tem que prestar contas, tem que pedi-las” (La crainte, 344); a citação no último lugar é de R. Pautrel (L ‘Ecclésiaste, 12).

29A. Bonora parece que vai além de Qohélet na interpretação do “temor de Deus”; diz, por exemplo: “O ‘temor de Deus’, que Qohélet recomenda como atitude diante de Deus, não é ‘saber’ sobre Deus, mas antes confiança esperançosa em Deus” (Qohelet, 87). Neste ponto, a crítica de Festorazzi parece- me justa (cf. In margine, 68).

30E. Glasser descreve-a assim: “Fundamentalmente, o temor de Deus é a atitude religiosa pela qual se reconhece a transcendência de Deus, que ultrapassa infinitamente o homem, e pela qual a pessoa se submete a seu governo” (Le procès, 203).

1S. Holm Nielsen escreve: “O problema aqui é o significado de ‘wlm, ‘mundo’ ou ‘eternidade’. Exa­tamente não é claro o que o autor quis dizer” (The Book, 50).

2Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 231; F. Ellermeier, Qohelet 1/1, 311.314.3Não podemos passar por alto que ‘olam em 3,11 é objeto do verbo dar (natan), a única vez que

aparece como substantivo singular e não em composição preposicional (cf. E. Jenni, Das Wort, 246).■•Panorama da diversidade de opiniões sobre ‘olam pode-se ver em F. Ellermeier, Qohelet 1/1, 311­

317; Bo Isaksson, Studies, 179s.l83s; D. Lys, Uecclésiaste, 306-308; Ch. H. Whitley, Koheleth, 31-33; D. Michel, Untersuchungen, 61-63; M. Schubert, Schöpfungstheologie, 139s.

Page 445: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Que ‘olam signifique mundo não carece de probabilidade (cf. Vg e São Jerônimo). E certo que só se verifica esse sentido a partir do Hebraico Michnaico;5 mas, como apontam O. S. Rankin e G. G. Atkins, “visto que o hebraico do Eclesiastes diferencia-se tão claramente do de outros livros do A. T. e algumas palavras do Eclesiastes não foram encontradas em nenhu­ma outra parte do A. T. — por exemplo, ‘injan = ‘tarefa’, ‘assunto’, expres­são comum na linguagem de Qohélet e na pós-bíblica — este argumento carece absolutamente de peso”.6

No entanto, na hora de explicar o significado de mundo diversificam- se de novo as opiniões. V. Zapletal pensa em o mundo como o objeto do conhecimento do homem.7 Já vimos como R. Gordis pensa que ha‘olam equivale a “amor do mundo”; pelo mesmo sentido decide-se R. Kroeber: “inclinação pelo mundo”.8

Outros vêem em ‘olam um termo de alguma maneira relacionado com a duração ou com o tempo ou com ambos, como explicamos em seguida. A duração é permanência que se pode entender de três maneiras: l9 como permanência estática ou espacial; 2S como permanência dinâmica, relacio­nada com o tempo; 39 como permanência sintética espácio-temporal.

I9 ‘olam como permanência estática: os que traduzem ‘olam por mun­do implicitamente preferem a permanência ou duração estática, que po­deria ser a permanência da terra segundo Qohélet 1,4.

22 ‘olam como permanência dinâmica: não temos necessariamente porquê identificar o ‘olam-mundo com a permanência estática ou espa­cial. M. A. Klopfenstein no-lo mostra indiretamente, uma vez que traduz ‘olam por “o senso da permanência no tempo”, e em contraste com R. Kroeber (“senso do mundo”), justifica-se: “No entanto, o significado da palavra [‘olam\ está muito mais ligada ao aspecto ‘tempo’ que ao aspecto ‘mundo’ ”.9 O contexto que cerca ‘olam é fundamental para captar o senti­do mais radical e as matizações que o acompanham,10 Segundo Bo

5Cf. R. Gordis, Koheleth — the man, 231; Bo Isaksson, Studies, 180.sThe Book, 46; cf. V. Zapletal, Das Buch, 128. Pelas mesmas razões R. Gordis crê que “parece

preferível traduzir him aqui por ‘o mundo, o amor ao mundo” (Koheleth — the man, 231s); na versão do texto escolheu “o amor ao mundo” (p. 156). Da mesma forma, sem excluir outras possíveis versões, L. Alonso Schõkel traduz ha’olam por o mundo-, também S. Holm-Nielsen (The Book, 50) e N. Femández Marcos. Todavia, E. Jenni rejeita resolutamente que Qohélet pudesse utilizar ‘olam com o significado de mundo simplesmente ou com matizações acrescentadas (cf. Das Wort, 24s).

7Uma vez que o coração é o órgão do conhecimento (cf. Das Buch, 128). Do mesmo parecer é L. Alonso Schõkel (cf. Eclesiastes, 30). Isso leva alguns autores a pensar que o homem converte-se em microcosmos (cf. V. Zapletal, Ibidem; O. S. Rankin — G. G. Atkins, The Book, 46, que rejeita essa inerpretação).

sDer Prediger, 85 e 116.9Kohelet, 106 e sua nota 25.10Parece que o autor quer assinalar algum gênero de relação (antitética?) entre o ‘olam e o ‘et,

centro do poema 3,1-8, postos um atrás do outro no v. 11a. Os autores admitem essa antítese, ainda

Page 446: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Isaksson no contexto da palavra ‘olam... “o tempo está presente em to­das as partes”.11

Muitos concebem esse tempo como duração indeterminada, sem aten­der aos limites ou não-limites do começo ou do fim,12 ou admitindo os limi­tes mais distantes numa ou noutra direção,13 ou como o conjunto e globalidade do tempo.14 Resumindo todos esses elementos, cada um dos quais tem seu grau de verossimilhança, poder-se-ia apresentar o ‘olam como “a duração indeterminada do tempo, simultaneamente o passado, o presente e o futuro”.15

32 ‘olam como permanência espácio-temporal. O significado anterior de duração dinâmica ou simplesmente de duração indeterminada poder- se-ia considerar como a ponte entre ‘olam-mundo e o ‘olam-duração espácio- temporal ou sintética. Dificilmente se pode conceder que no tempo de Qohélet se desse conceito tão abstrato como o de tempo sem mais ou de uma duração ilimitada e indeterminada.16 O que conta para Qohélet são as coisas com mais ou menos duração, a vida humana mais ou menos longa, ou então a terra que tem permanência estável ou duradoura. Pare­ce, pois, o mais provável que a idéia do tempo, seja curto ou longo, longín­quo ou muito longínquo, vai inseparavelmente unida à coisa tangível e visível. Com outras palavras, que Qohélet não separa o temporal do tangí­vel, mas que para ele formam uma só entidade.17

Mas também a sentença que compreende o ‘olam como permanência dinâmica é boa introdução à sentença que interpreta o ‘olam como eterni­dade, com todas as matizações que sejam necessárias e que vamos ver. Também se pode considerar como passagem intermédia o conceito àe per­petuidade, tal como o expressa F. Ellermeier: “Deve-se aceitar que este

que não a interpretem da mesma forma, cf. R. E. Murphy, The Pensées, 188 nota 10; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 106; K. Galling, Der Prediger, 95; D. Michel, Untersuchungen, 64; M. Schubert, Schõpfungstheologie, 139.

uStudies, 180; e o comprova recordando-o: “Apassagem 3,1-8 já foi mencionada. Dentro do v. 3,11 encontramos a frase b‘ ’itto, e também mero’sh we’ad sop que tem certo matiz temporal. Em 3,14 deparamo-nos com a frase le’olam com, pelo que parace, sentido temporal. Em 3,15 também k‘bar e nirdap. O contexto global está invadido pelo tempo. A interpretação, que mantiver o sentido temporal em ‘olam deverá, portanto, ter prioridade” (Ibidem).

12Cf. L. Di Fonzo, Ecclesiaste, 167a; D. Lys, UEcclésiaste, 306; A. Lauha, Kohelet, 69; F. Piotti, Osservazioni (1978), 172; O, Kaiser, Die Sinnkrise, 103s.

I3Cf. H. W. Hertzberg, Der Prediger, 106; G. von Rad, Sabiduría, 290, nota 54.14Cf. E. Jenni, Das Wort, 27; W. Zimmerli, Das Buch des Predigers, 172; J. M. Rodríguez Ochoa,

Estúdio, 61; B. Pennacchini, Qohelet, 507s; L. Rosso Ubigli, Qohelet, 226; H. P. Müller, Theonome, 14.15A. Barucq, Eclesiastés, 81.16E. Jenni adverte que “o hebraico não tem a expressão abstrata aqui [em 3,11] necessária” (Das

Wort, 27).l7Aí expõe finalmente Bo Isaksson seu pensamento sobre 'olam em Qoh: “Minha tese é que ha‘olam,

usado isoladamente e sem proposição, sempre se referiu à obra, à criação em seu sentido mais amplo, no tempo e no espaço, à história criada que continua, ao cosmo mero‘sh w‘ ‘ad sop” (Studies, 183).

Page 447: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

significado de ‘wlm como ‘duração perpétua’ acha-se também em 3,11, ates­tado precisamente também em 3,14”.18

Realmente, eternidade é aversão mais comum de ‘olam. H. W. Hertzberger diz textualmente: “A palavra empregada em 11b: ïm é, originariamente, o instante longínquo seja do passado, seja do futuro (...); assim será entendi­da a fórmula usual de ‘eternidade a eternidade’ E um pouco mais adian­te: “Aceita-se também para o v. 11 o sentido fundamental: ‘instante mais longínquo’. Aproxima-se do significado de ‘eternidade’ que sempre será a melhor tradução”; aceita-a ele, conseqüentemente, em seu texto.19 Mas ou­tra vez temos que repetir a pergunta que fizemos a respeito de ‘olam em geral: o que pode significar que Deus põe eternidade no coração dos homens?

Há uma corrente que pressupõe que o coração do homem se refere à sede da inteligência, razão por que interpreta a eternidade, que está na tradução do texto, como “a noção de eternidade” que Deus deu para que investiguem com o entendimento todas as coisas.20

Uma das interpretações, que mais eco encontraram entre os autores, foi a de F. Delitzsch, que identifica a eternidade com o desejo de eternida­de. Se aceitarmos essa opinião, a obscura sentença iluminar-se-á e deixa­rá de ser a cruz dos intérpretes, pois quem não entenderia essa sentença: “Deus pôs o desejo de eternidade no coração dos homens’? Como diz F. Delitzsch: “Este dito [v. Haß] relativo ao desiderium aeternitatis, plantado no coração do homem, é uma das expressões mais profundas de Kohélet. De fato, o impulso do homem mostra que suas necessidades mais profundas não podem ser satisfeitas pelo temporal. Ele é ser limitado pelo tempo, mas, quanto à sua natureza mais profunda, relaciona-se com a eternidade”.21

Muito próximos a F. Delitzsch encontram-se os que vêem em eterni­dade “o senso do eterno”, do não-temporal, como o fazem H. Duesberg e I. Fransen22 e também R. E. Murphy.23 Outros tendem a identificar a eterni-

lsQohelet l/l, 320.lsDer Prediger, 106 e 107. W. Zimmerli julga criticamente Delitzsch e Hertzberg como muito

especulativos; mas também traduz ‘olam por “eternidade” e explica-a como “amplo decorrer do tempo” (cf. Das Buch des Predigers, 172).

20Cf. A. Bea, Liber, 7; R. H. Pfeiffer, The peculiar, 107. Talvez se refira a isso L. Alonso Schökel, quando explica que “Deus deu... à mente humana o tempo sem limites” (Eclesiastés, 30). Essa parece ser a opinião de D. Michel, pois traduz: “Mas também ele pôs em seu entendimento a eternidade” (Qohelet, 137), dando a essa significado de “duração ilimitada” em oposição a instante dado (cf. Untersuchungen, 62.64). Próxima ao entendimento está.a memória, como defende J. Steinmann: “Trata- se somente da memória que permite ao homem dominar a sucessão temporal dos diversos momentos de sua vida” (Ainsi, 63).

2lCommentary, 26. No entanto, rejeitam resolutamente essa equiparação de ‘olam-eternidade = desejo de eternidade, entre outros, A. Barueq (cf. Eclesiastés, 81) e Bo Isaksson (Studies, 180).

22“Deus introduziu, pois, no homem o senso do eterno, do não-temporal e, para sair do tempo cronológico que não passa de uma medida, o senso de infinito” (Les scribes, 578).

230 qual traduz: “Deus pôs ‘o eterno’ no coração humano” e em seguida comenta agostinianamente: “Enormes aspirações, pequenos logros. Há algo de infinito no homem; Santo Agostinho haveria de

Page 448: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

dade com algo divino, como seu tempo24 ou o modo de ser de Deus, presente em todas as coisas por sua imanência no mundo.25

Por último resenhamos a sentença dos que crêem que se deve tradu­zir ‘olam por obscuridade ou ignorância,26 enigma ou coisa semelhante;27 mas estes supõem ou uma correção do TH ou uma mudança no significado etimológico, como notamos na nota filológica ao v. 11, razão pela qual não admitimos essas sentenças.

continuar essa direção de pensamento até perceber que anda o coração humano inquieto e sem repou­so até descansar em Deus. Nosso filósofo hebraico não estava muito longe dele” (The Pensées, 188).

24“E o tempo de Deus [...]. E o tempo total que só Deus pode abarcar, enquanto o homem passa, e o tempo absoluto...” “O tempo de Deus, ou seja, ...o que pode ser válido aos olhos de Deus eternamen­te”. “ ‘olam’ não é o tempo primordial, mas a totalidade do desenvolvimento da história segundo o plano de Deus” (D. Lys, L’Ecclésiaste, 309.310.312 nota 47); cf. também M. Hengel, Judentum, 221.

25Assim A. Bonora que afirma: “O ‘espírito’ criador de Deus difunde em toda coisa uma harmonia, um sentido oculto que só a experiência não consegue alcançar em sua totalidade. ‘Deus pôs em toda coisa a eternidade’ (3,11), ou seja, uma participação de seu sentido e de sua duração”. “Traduzimos aqui por ‘eternidade’ o termo hebraico ‘olam... Preferimos aqui o sentido de ‘eternidade’ como modo de ser de Deus, ...em toda coisa há uma participação estável da eternidade de Deus”. “Se o homem chegar a descobrir essa ‘eternidade’ presente na mudança das coisas, então conseguirá ter o termor de Deus...” (Qohelet, 70.88.89).

26Cf. G. A. Barton, A critical, 105s; L. Gorssen, 293; Ch. F. Whitley, Koheleth, 32s.27Cf. R. B. Y. Scott, Ecclesiastes, 220s.

Page 449: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

APÊNDICES

Page 450: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

I APÊNDICE:A PALESTINA DOS PTOLOMEUS E DOS SELÊUCIDAS

O último terço do século IV a.C. foi testemunha de acontecimentos importantes para a história da bacia oriental mediterrânea, desde a Grécia, Ásia Menor, Síria, Palestina e Egito até a índia. O protagonista principal desses acontecimentos foi Alexandre Magno,1 que submeteu com seus exér­citos o império persa de Dario III e todos os reinos compreendidos neste vasto espaço geográfico.

Unido a Alexandre está o fenômeno da helenização de todos os povos por ele submetidos, ainda que em sua maior parte tenha sido muito super­ficial e de permanência efêmera por não ter havido tempo suficiente para se inserir profundamente nas culturas e formas de vida de tanta varieda­de de povos; houve, porém, povos em que a transformação cultural foi se tornando plena e profunda com o passar do tempo. Chama-se helenismo a nova cultura emergente.2 O espaço onde floresceu com mais vigor o helenismo estende-se por todas as regiões ribeirinhas do Mediterrâneo, desde o sul da Itália até o Egito, ficando no centro a parte que nos interes­sa, a Síria e a Fenícia, de que faz parte a Palestina.

A finalidade deste Apêndice é conhecer o ambiente histórico em que se compôs Qohélet. Na secção IX da Introdução, sobre lugar e data da composição de Qohélet, defendemos que o lugar de sua origem é a Palesti­na, e nela Jerusalém, e, como tempo mais provável de sua composição,

'Alexandre III da Macedônia, filho de Fillipe II e de Olímpias, nasce em Pela em 356 a.C. Aos 11 anos tem como preceptor Aristóteles. Sucede a seu pai em 336, e em um ano investe-se de todo o poder dos helenos a sangue e fogo; em 335 é proclamado rei dos gregos; em 334 já é senhor da Ásia Menor. Atravessa o Taurus em 333 e apresenta-se no planalto de Issos para enfrentar o exército imenso capitaneado pelo rei dos persas, Dario III, que derrota em novembro do mesmo ano. Desse momento em diante tudo parece um como que passeio triunfal que leva Alexandre Magno aos territórios banha­dos pelo Mediterrâneo, incluindo o Egito, onde funda Alexandria; volve sobre seus passos e, após ganhar muitas batalhas, chega ao Indo, Bias e Hidaspes. Regressa por fim à Babilônia, onde morre de febre altíssima a 13 de junho de 323, aos 33 anos de idade.

2Assim descrevia eu o que entendia por helenismo: “No sentido mais restrito, entende-se por helenismo o espírito e as idéias filosóficas, religiosas, morais, sociais e culturais que se estendiam do oriente ao ocidente como ar inovador desde a morte de Alexandre Magno em 323 a.C. até o advento de Augusto no ano 30 a.C.” (Sabiduría, 501).

Page 451: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

uma data muito próxima ao ano 200 a.C. Os dados que apresentamos a seguir iluminam o ambiente histórico desta data assim como também o tempo em que supomos ter vivido Qohélet.

1. Alexandre Magno e a Palestina

Abrem-se, com a vitória de Alexandre Magno sobre Dario III (333 a.C.), as portas do oriente ao jovem conquistador vindo do ocidente. Mas, como bom estrategista, Alexandre procura assegurar-se a retaguarda an­tes de marchar para a conquista do coração do império persa. “Avançou, conseqüentemente, pelo sul ao longo da costa mediterrânea. Todas as ci­dades fenícias capitularam, exceto Tiro, que se submeteu após sete meses de assédio. Alexandre continuou pressionando na direção sul, através da Palestina, e, após demora de dois meses em Gaza, entrou no Egito sem resistência (332). Os egípcios, fartos inteiramente do domínio persa, rece­beram-no como libertador proclamando-o faraó legítimo”.3

Pouco nos disseram os historiadores antigos sobre a conquista da Palestina.4 Parece que, fora a faixa costeira de Tiro a Gaza, o interior do território não tinha muita importância militar ou as circunstâncias sociopolíticas pelas quais passava esse pequeno território não inquieta­ram muito Alexandre.

Com boa lógica, porém, os autores, que por outras razões se interes­sam pela história do interior da Palestina, falam da conquista por Alexan­dre dessa Palestina ou da sujeição voluntária ao novo senhor. M. Stern escreve: “A conquista da Palestina por Alexandre no ano de 332 a.C. foi rápida. As cidades não ofereceram resistência, com a única exceção de Gaza, onde se defendeu desesperadamente a guarnição persa. Alexandre não permaneceu por muito tempo na Palestina; a conquista foi completa­da por seus generais que também assentaram as bases para o governo helenístico do país”.sFlávio Josefo narra uma visita de Alexandre ao tem­plo de Jerusalém, uma invenção dele segundo os próprios historiadores judeus modernos.6 Na realidade, pouco ou nada mudou no governo da cir­cunscrição semi-autônoma da Judéia do império persa com a mudança de dono.7

3J. Bright, La historia, 437.4Cf. F.-M. Abel, Histoire, 13.5Palestina, 221; cf. W. W. Tam, Hellenistic, 41s.6Cf. F.-M. Abel, Histoire, 1 10, que cita F. Josefo, Antiq., XI, 8,3-6; XII, 1,1; XIII, 3.4,7Cf. P. Schafer, The Hellenistic, 569; V. Tcherikover, Hellenistic, 45.420 nota 17; M. Hengel, Juden,

16-19.

Page 452: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Os diádocos e a Palestina

Com o período das lutas entre os diádocos, generais companheiros e sucessores de Alexandre, sobrevêm verdadeiro caos em todo o império desmembrado de Alexandre Magno. Estende-se esse período de 323 a.C., ano da morte de Alexandre, até 301 a.C., ano da batalha de Ipsos em que morre o rei Antígono e triunfa a coalizão capitaneada por Seleuco e Lisímaco.8

Todos os livros de história descrevem as lutas intestinas destes am­biciosos e intrigantes generais macedônios, que às vezes ganham e às ve­zes perdem e quase sempre assolam os territórios que pretendem manter ou conquistar.9

Depois da morte de Alexandre Magno (323 a.C.), Ptolomeu aceitou com prazer a Satrapia do Egito, que se ia da Líbia pelo oeste até a região oriental do istmo de Suez, limítrofe com a Arábia e Nabatéia. Gaza, porta da Pales­tina, ficava fora de suas fronteiras pelo nordeste.10 Logo (em 322), Ptolomeu anexou pelo oeste a Cirenaica e também a ilha de Chipre; sua ambição empurrava-o rumo ao leste. Em 321 foi assassinado Perdicas, defensor do sonho da unidade do império de Alexandre; no ano seguinte (320), Ptolomeu penetrou na Síria, mas dentro de pouco tempo teve que voltar ao Egito pela pressão de Antígono, que se apoderou de todas as satrapias da Ásia. Seleuco, a quem coubera a parte oriental do império, fugiu da Babilônia para o Egi­to, onde Ptolomeu o recebeu como companheiro de armas. Em 312 Ptolomeu, juntamente com Seleuco, decidiu invadir de novo a Palestina e apoderar-se de toda a Fenícia e Síria. Batalhou em Gaza contra o jovem filho de Antígono, Demétrio, derrotando-o fragorosamente. Tbmada Gaza na primavera de 312, ficou livre a entrada para Fenícia e Síria.11 Ptolomeu conquistou a Palestina e a parte sul de Síria. Mas teve que abandoná-las em 311 pelo compromisso de paz que fizeram todos os generais contendentes em todas as frentes do império desmembrado.12

8Ptolomeu é partidário dos coligados, mas não participa da batalha de Ipsos, ainda que não tenha deixado de aproveitar-se dela, anexando-se, definitivamente e depois de muitas vicissitudes, não só a Palestina, mas também toda a Celessíria, que por acordo anterior cabia a Seleuco (cf. M. Hengel, Juden, 30).

9M. Stem resume assim esse período, postos os olhos na Palestina: “Depois da morte de Alexan­dre, ocorrida em 323, sacudiu o oriente uma onda de guerras, as guerras dos diádocos e sucessores, que disputavam sua herança. A Palestina mudou várias vezes de mãos, com desastrosos resultados para suas cidades e seus habitantes” (Palestina, 221). Para todas as vicissitudes das disputas e guer­ras dos diádocos, pode-se ver M. Hengel, Juden, 25-35.

l0Cf. F.-M. Abel, Histoire, 122.nNeste mesmo ano de 312, Seleuco, ajudado por Ptolomeu com seu exército, marchou para a

reconquista da Babilônia que conseguiu. Em recordação deste fato, a era selêucida começa no primei­ro dia do mês Dios (setembro/outubro) de 312 (cf. A.-M. Abel, Histoire, I 30; G. Ricciotti, Historia II, parágr. 36, p. 48).

12Cf. G. Ricciotti, Historia, II, parágr. 29, p. 43; F.-M. Abel, Histoire, 132s.37.

Page 453: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Assassinados em 306 todos os herdeiros de Alexandre Magno, Antígono Monoftalmo apressou-se em dar-se a si e a seu filho Demétrio Poliercetes o título de rei. “Os outros Diádocos fizeram o mesmo pouco depois (305), ou seja, Ptolomeu [Egito], Cassandro [Europa], Lisímaco [Trácia] e Seleuco [Babilônia] que, como resposta ao gesto de Antígono [resto da Ásia] pro­clamaram-se ‘reis’ também eles, cada um no respectivo território de sua jurisdição. Desmembrou-se assim oficialmente a herança de Alexandre Magno”.13

Antígono não se resignou e tentou apoderar-se do Egito, mas foi rechaçado por Ptolomeu. Entretanto, Lisímaco passou da Trácia à Ásia Menor; Seleuco da Babilônia veio com seu exército reunir-se com Lisímaco. Ptolomeu atacava pelo sul da Palestina rumo ao norte. No verão de 301 ocorreu a batalha definitiva, entre Lisímaco e Seleuco por um lado e Antígono e seu filho Demétrio por outro, em Ipsos, coração da Frigia (Ásia Menor). Nela morreu o ancião Antígono e seu filho Demétrio fugiu. Ptolomeu, entrementes, conquistou a Síria e a Fenícia, ou seja, toda a região que se estende desde o Líbano-Antilíbano-Damasco até o sul.14 Lisímaco ficou com toda a Ásia Menor até os montes Taurus; Seleuco com a Capadócia, Armênia, Mesopotâmia e Síria.15 Resolveu-se assim para o futuro o problema da herança de Alexandre Magno na Ásia e no Egito.

3. A dinastia dos Ptolomeus e dos Selêucidas

Ipsos (301 a.C.) foi a última grande batalha deste período obscuro e tormentoso. Não se pode afirmar que com ela acabaram as guerras e se instaurou a paz, mas constitui certamente período importante: encerrou- se uma era e abriu-se outra em que predominaram espaços de paz sobre os bélicos, pelo menos no que se refere ao Egito e à Palestina.

Dois homens sobressaem nesse período e alargar-se-ão suas sombras por todo um século, dando nome a dinastias. V. Tcherikover nô-lo conta:

13G. Riceiotti, Historia, II parágr. 29, p. 43.l4Sobre a conquista da Palestina por Ptolomeu I e suas conseqüências sociais para os judeus escre­

vi em outro lugar: “Segundo V. Tbherikover (Hellenistic, 55s.272s), existem duas tradições sobre a conquista da Palestina por Ptolomeu I: a primeria é menos provável e é patrocinada por Hecateu; diz que ‘os judeus encabeçados pelo sumo sacerdote Ezequias seguiram voluntariamente a Ptolomeu’; a segunda, mantida por Agatárquides e Aristeas, afirma que Ptolomeu subjugou com mão dura os ju­deus e levou cativos grande número deles para o Egito. Aristeas (12-14) fala de 100.000, dos quais 30.000 em idade militar destinou à defesa de fortalezas; o resto, meninos e anciãos, reduziu-os à escravidão. O número é bastante exagerado, mas não parece que se possa excluir um núcleo histórico, fundado nas conquistas da Palestina nos anos de 320,312,302 e 301 por Ptolomeu I (cf. S. Applebaum, The legal status, 422s. J. Marlowe, The Golden Age, 44s)” (J. Vílchez, Sabiduría, 470 nota 5).

l5Toda a Síria — a alta, ou do norte, e a baixa — pertencia legitimamente a Seleuco; mas da baixa apoderara-se Ptolomeu e Seleuco não a reclamou. Talvez fosse pela ajuda que lhe dera Ptolomeu em momentos difíceis. Não consta, porém, que tenha renunciado Seleuco a seus direitos.

Page 454: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

“Dois homens — Ptolomeu e Seleuco — saíram finalmente vitoriosos do período tormentoso dos Diádocos e seus nomes ficaram unidos na história com os reinos que fundaram. Não foram os maiores homens da época, mas prudentes homens de estado que souberam como escolher seu momento e contentar-se com uma parte em vez de ambicionar o todo”.16 Desse mo­mento em diante, no que a nós interessa, falar-se-á de duas dinastias: a dos Ptolomeus,17que reinará no Egito até a época romana (30 a.C.), e a dos Selêucidas, que estenderá seus domínios pela Síria e por toda a parte oriental, da qual se irão desprendendo pequenos reinos ao longo do século III a.C. até desaparecer a dinastia também sob o domínio dos romanos (64 a.C. Pompeu).

3.1. Dinastia dos PtolomeusA história da Palestina durante todo o século III está ligada ao Egito:

“Os Ptolomeus foram donos de Celessíria durante todo o século III a.C., já que o ponto de partida de toda essa ocupação é o ano da batalha de Ipsos (301) e seu termo a vitória de Antíoco III em Pânion em 198”.18 Não foram, porém, cem anos de paz absoluta, pelo menos em todo o território pales- tinense. A paz reinou provavelmente na parte interior montanhosa, por­tanto em Jerusalém, sua capital, até a quarta guerra síria (219-217 a.C.) entre Antíoco III e Ptolomeu IV. Parece que compartilham dessa opinião entre outros V. Tcherikover19 e M. Hengel.20

Ptolomeu I Soter (rei desde 305) foi, pois, dono e senhor do Egito ininterruptamente de 323 até sua morte em 282 a.C.

A dinastia dos Lágidas foi-se firmando cada vez mais e teve papel preponderante na política do século III a.C. em todo o âmbito helenístico. O Egito talvez tenha sido o reino helenístico mais estável e florescente pela homogeneidade relativa de sua gente e pela importância econômica, derivada da riqueza de seu solo e da rede comercial com todos os reinos do leste e oeste. Ptolomeu I procurou defender bem as fronteiras naturais do Egito, indo para além delas: “Todas as outras regiões conquistadas por

16Hellenistic, 10.17Ptolomeu era filho do macedônio Lagos e de Arsinoe (que fora concubina de Filipe II, pai de

Alexandre Magno); daí provém o nome da dinastia Lágida.18F.-M. Abel, Histoire, I 44. J. Bright também afirma que “depois disso [a batalha de Ipsos] a

Palestina foi governada pelos Ptolomeus durante quase um século” (La história, 438). Cf. R. H. Pfeiffer, History, 9; M. Stem, Palestina, 221.

19Escreve: “Os Ptolomeus governaram a Palestina durante cem anos. Politicamente, foram anos de paz e tranqüilidade. Fora da destruição de Samaria por Demétrio em 296, não temos notícia de nenhum acontecimento militar ou político (antes de 219) que implicasse diretamente a região. As guerras entre os Ptolomeus e os Selêucidas, que continuaram, com intervalos, de 275 a 240 aproxima­damente, foram feitas em diveros lugares no grande império e não penetraram no interior da região” (Hellenistic, 59).

20Cf. Juden, 35-53 = Political, 52-64.

Page 455: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Ptolomeu — África do norte (Cirene), Celessíria, as ilhas do Egeu e as ilhas ao longo da costa do mar Vermelho — tornaram-se dependentes do Egito e, além de sua importância econômica, tinham também valor estra­tégico, como posições defensivas nas vias que conduziam a ele”.21

O maior esplendor do Egito veio com Ptolomeu II Filadelfo (282-246 a.C.),22 promotor e amigo das ciências e das artes, continuador entusiasta das obras começadas por Ptolomeu I (especialmente o Museu e a Bibliote­ca). Não obstante, não foi rei pacífico. Suas ambições expansionistas leva­ram seus exércitos aos domínios do selêucida Antíoco I (281-261), provo­cando a chamada primeira guerra síria (283-271). Pelo que tudo indica, Ptolomeu apoderou-se de Damasco, mas logo a recuperou Antíoco,23 para reconquistá-la de novo Ptolomeu, antes de terminarem as hostilidades.24 O certo é que suas fronteiras ficaram mais firmemente defendidas.

Morto Antíoco I, seu sucessor e filho Antíoco II (261-246 a.C.) invadiu as cidades que o Egito possuía ao longo da costa da Ásia Menor. Começou assim a segunda guerra síria (260/259-253 a.C.), que se desenvolveu na Ásia Menor e no mar Egeu. Vê-se, pelos papiros de Zenão (259 a.C.), que a Palestina e a Síria até Damasco estavam em paz e em poder de PtolomeuII.25 A guerra terminou em casamento. Ptolomeu II entregou a Antíoco II como esposa sua filha Berenice e como dote suas posses na Ásia Menor; em troca, Antíoco devia repudiar sua esposa Laodice e, conseqüentemen­te, negar o direito de sucessão aos filhos tidos com ela. Celebrou-se o casa­mento na primavera do ano de 252 a.C.26

Ptolomeu III Evergetes (246-222 a.C.) sucedeu no trono do Egito a seu pai Ptolomeu II. Viu-se logo envolvido na terceira guerra síria ou de Laodice (246-241 a.C.). Antíoco II, pouco antes de morrer, voltou a reconhecer sua esposa Laodice e como sucessor seu filho Seleuco II (246-226/5 a.C.). Rechaçada, Berenice luta pelos direitos de seu filho pequeno e chama em ajuda seu irmão Ptolomeu III; mas tanto a mãe como o filho são assassi­nados. Para vingar-se dessas afrontas e mortes, Ptolomeu começa a guer­ra contra Laodice e Seleuco II. Ptolomeu apoderou-se da Selêucia e da capital Antioquia no Orontes, e foi bem acolhido pelo povo e pelos princi­pais no reino. Mas um levantamento no Egito obrigou-o a voltar à sua

21V. Tcherikover, Hellenistic, 10. A Síria e a Fenícia chamavam-se durante a dominação persa Celessíria. “Síria do sul, quando esteve nas mãos dos Ptolomeus, era conhecida na linguagem oficial dos departamentos egípcios como ‘Síria e Fenícia’, e entre o povo simplesmente como ‘Síria’ ” (V. Tcherikover, Hellenistic, 60s e 428 nota 55).

22Cf. M. Hengel, Juden, 37.23Cf. J.-M. Abel, Histoire, I 45.24Cf. M. Hengel, Juden, 37s.25Cf. F.-M. Abel, Histoire, I 46s; M. Hengel, Juden, 38.26Cf. F.-M. Abel, Histoire, I 47; M. Hengel, Juden, 46.

Page 456: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

terra. Foi ganhando entrementes Seleuco II para sua causa os reis da Capadócia e do Ponto; recuperou a capital e pôs ordem no império. Co­brando ânimo, atacou a Celessíria; mas reagiu Ptolomeu III vencendo Seleuco. Ptolomeu ofereceu-lhe a paz e aceitou-a Seleuco em 240 a. C.

As coisas ficaram melhores do que como antes da guerra para Ptolomeu, pois, além da Síria e Fenícia, domina parte das costas da Ásia Menor no Egeu (Efeso) e no Mediterrâneo (litoral lício, cário e Selêucia, porto de mar de Antioquia no Orontes). Seleuco II teve que lutar muito contra as aspirações de seu irmão Antíoco Hierax. Ptolomeu III dedicou­se, por sua vez, ao governo pacífico de seu reino e ao fomento das artes e ciências na cidade de Alexandria.27

Ptolomeu IVFilopátor (222-205 a.C.) tinha apenas 17 anos ao subir ao trono e nenhuma afeição pela política e pela administração, ou seja, pelo governo de seu reino, razão pela qual foi chamado “rei ocioso”. Teve a má sorte de ser contemporâneo de Antíoco III, o Grande, que se propôs recuperar o que legalmente lhe pertencia: a Síria do sul e a Fenícia. De fato, em 221 Antíoco ocupou a Beqá ou o planalto entre o Líbano e o Antilíbano, mas não só não pôde avançar mais, mas teve que retroceder ao ponto de partida. Na primavera de 219 começou a quarta guerra síria (219-217 a.C.), reconquistando a cidade de Selêucia. Daí se dirigiu o selêucida à Celessíria e conquistou grande parte dela: toda a Síria do sul, Fenícia e alguns lugares menos importantes da Palestina, não o interior. Tudo aconteceu muito rapidamente pela ajuda que lhe prestou Teódoto, que passou das fileiras de Ptolomeu IV às de Antíoco III. Estabeleceu-se uma trégua de quatro meses durante o inverno de 219/218. Terminada a trégua, Antíoco recomeçou a campanha de recuperação do resto do territó­rio da Palestina, chegando até as partes orientais do Jordão, limítrofes com os árabes, e à kleruquia (colônia)-feudo dos Tobias, a Amanítis, que também ocupou, passando depois à Samaria. Não se menciona neste caso nem a Judéia nem Jerusalém, provavelmente porque careciam de impor­tância militar. Antíoco III passou o inverno de 218 em Ptolemaida.

O ano de 217 foi decisivo em toda essa campanha da quarta guerra síria. Reagiu Ptolomeu IV; saiu de Pelúsio para o leste, Antíoco desceu com seu exército pela costa mediterrânea rumo ao sul. Em 22 de junho de 217 encontraram-se os dois exércitos na fronteria sul da Palestina junto a Ráfia, onde foi derrotado fragorosamente Antíoco. O rei selêucida refu­giou-se primeiro em Gaza e depois voltou a Antioquia. Firmou a paz com Ptolomeu IV, que não soube ou não quis aproveitar-se da inferioridade de

27Cf. F.-M. Abel, Histoire, I 47-49; H. W. Hertzberg, Der Prediger, 51; M. Hengel, Juden, 46s; H. Volkmann, Der Kleine Pauly, I s. v. Berenike (2), col. 864; Laodice (2), cols. 479s.

Page 457: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

seu adversário; só se contentou com recuperar os territórios perdidos da Síria, Fenícia e Palestina; não reclamou, porém, Selêucia. Durante quatro meses o rei Ptolomeu IV e Arsinoe, sua esposa, percorreram triunfalmen­te parte destes territórios, cujos habitantes preferiam cordialmente o do­mínio de Alexandria ao de Antioquia. O relato de 3Mc 1,8-2,24 tem traços de novela, provavelmente sobre um núcleo histórico.

Até o ano de 202 a.C. houve paz relativa entre os dois reinos, enreda­dos que estava cada um com suas lutas internas particulares.

Em 205 a.C. morre Ptolomeu IV Filopátor e sucede-lhe Ptolomeu V Epífanes (204-180 a.C.), menino de cinco anos.

Antíoco III, já com o apelativo de “o grande rei”, com a auréola de suas vitórias no oriente e da pacificação de todo seu império, aproveitou-se da fraqueza do rei do Egito Ptolomeu V para levar a cabo o que inutilmente tentara desde o começo de seu reinado: a anexação definitiva de todas as posses dos Ptolomeus no sul da Ásia Menor e a província de Celessíria.

Em 202 a.C. começou a quinta guerra síria (202-198). Antíoco III apos­sou-se sem resistência de todos esses territórios; somente Gaza opôs resis­tência e por fim também capitulou.

O general egípcio Scopas aproveitou-se do descanso invernal de 201/ 200 para reconquistar a parte sul da Palestina, inclusive Jerusalém, cuja população estava dividida entre os Ptolomeus e os Selêucidas. Scopas, porém, foi derrotado por Antíoco III no ano de 200 a.C. em Pânion, junto das fontes do Jordão, e em 199 firmou as capitulações. Assim terminou o domínio ptolemaico sobre o território da Síria e Fenícia, que passou defi­nitivamente aos selêucidas até a conquista dos romanos em 64 a.C.

A situação da população no território da Síria e Fenícia durante o domínio egípcio foi muito desigual. A faixa baixa da população, não porém a alta, manteve sentimento pró-egípcio, que se manifestou ao chegar os novos senhores do norte, os selêucidas. Atesta F. M. Abel que “segundo Políbio, as populações sírias teriam tido inclinação mais assinalada pelos Lágidas. A sidônios e judeus interessava conservar o favor dos Ptolomeus [Políbio V 71]”.283.2. Dinastia dos selêucidas

Em parte já tratamos da dinastia dos selêucidas, pois sua história está necessariamente enleada com a dos Ptolomeus. Fazemos um resumo até Antíoco III, o Grande.

wHistoire, I 79; cf. W. W. Tam - G. T. Grifíith, Hellenistic, 213. M. Stem escreve: “A dominação ptolemaica na Palestina foi mais duradoura e contínua que a de qualquer outra potência estrangeira desde a queda da Pérsia até começos da dominação romana, e tanto as normas e instituições como a influência cultural e econômica do período ptolemaico mantiveram-se em vigor até o período romano CPalestina, 222).

Page 458: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Seleuco I Nicátor (306-281 a.C.) na repartição do império de Alexandre Magno recebeu em Triparadisos (321 a.C.) a satrapia da Babilônia. Em 316 refugiou-se no Egito junto de Ptolomeu I, com quem cooperou em seus em­preendimentos bélicos e que o ajudou em 312 a recuperar a satrapia da Babilônia. Essa data marca o início da era selêucida. Em 305 tomou o título de rei como os outros diádocos. Em 301 interveio na batalha de Ipsos, junto com Lisímaco (Trácia) e Cassandro (Europa) contra Antígono, que foi venci­do e morreu na refrega. Depois disso, Celessíria foi confirmado em seu reino do leste e se lhe atribuíram Síria e Seleuco, objeto de disputa no século seguinte entre Selêucidas e Ptolomeus. Fundou Selêucia na Piéria como porto do mar e Antioquia no Orontes, como capital do reino (300 a.C.).

Em 293 nomeou seu filho Antíoco co-regente e colocou-o à frente dos territórios a leste do Eufrates. Seleuco apoderou-se pouco a pouco da Ásia Menor: em 294 anexou-se a Cilicia, que pertencia a Demétrio; em 281 venceu Lisímaco e apoderou-se das partes restantes da Ásia Menor. Em sua tentativa de apoderar-se da Trácia e da Macedônia foi assassinado por Ptolomeu Keraunos em 281 a.C.29

Antíoco I Soter (281-261 a.C.) sucedeu como rei a seu pai Seleuco I. Lutou contra Ptolomeu II na primeira guerra síria (274-271), mas sem nada conseguir. Sucedeu-lhe no trono seu filho menor Antíoco.

Antíoco II (261-246) lutou também contra Ptolomeu II na segunda guerra síria (260-253). Essa termina com o acordo de paz que se revelou instável: Antíoco II repudiou sua legítima esposa Laodice para casar-se com a filha de Ptolomeu II, Berenice. Ptolomeu renunciou em favor de Antíoco a suas posses da Ásia Menor ocidental e Antíoco a suas pretensões sobre a Celessíria. Mas antes de morrer (246 a.C.) Antíoco revogou o con­vênio, nomeando sucessor seu filho mais velho (e de Laodice) e deserdando Berenice e o filho pequeno de ambos.

Seleuco II Calínico (246-226 a.C.) herda o reino de seu pai e as conse­qüências funestas do rompimento do pacto com os Ptolomeus: a guerra de Laodice (246-241) contra Ptolomeu III. Começou em seu tempo a desmembrar-se seu império tanto da parte do oriente como da do ocidente ou da Ásia Menor. Sua insidiosa mãe Laodice também foi causa de guerra com seu irmão Antíoco Hierax (241-249?), a quem nomeara rei e co-regente nos territórios da Ásia Menor. Em 226 morreu Antíoco II ao cair do cavalo.30

Seleuco III (226-223 a.C.), filho de Seleuco II, em vão lutou para recu­perar os territórios perdidos da Ásia Menor. Morreu envenenado por seus cortesãos.

29Cf. H. Volkmann, Der Kleine Pauly, V, s. v. Seleukos (1), col. 86s.30Cf. H. Volkmann, Der Kleine Pauly, I, s. v. Seleukos (3), cols. 87s.

Page 459: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.), segundo filho de Seleuco II e irmão de Seleuco III. Desde que subiu ao trono propôs-se restabelecer o poder dos Selêucidas em toda a área do império e conquistar os territórios sempre em litígio com os Ptolomeus, tanto na Ásia Menor como na Síria, Fenícia e Palestina. Não recuou apesar da derrota sofrida em Ráfia (217 a.C.) contra Ptolomeu IV Filopátor. Pôs em ordem o império em sua parte oriental e, chegando o momento oportuno, anexou-se definitivamente a Celessíria, após ganhar a batalha de Pânion em 200 a.C. Antíoco III selou a paz com o Egito, dando sua filha Cleópatra como esposa a Ptolomeu V em 194 a.C. “Suas conquistas na Ásia Menor, a passagem ao Helesponto em 196, e a sujeição da Trácia em 194 levaram-no em 192 a confrontar-se com os romanos que lhe exigiram a liberdade das cidades gregas da Ásia Menor... Acompanhado por Aníbal, entrou na Grécia, mas teve que voltar à Ásia Menor depois da derrota nas Termópilas. Foi vencido pelos roma­nos em Magnésia no ano de 190. Na paz de Apaméia (Síria), Antíoco teve que renunciar em 188 à Ásia Menor a este lado do Taurus, mas manteve a Síria, a Mesopotâmia e o oeste do Irã”.31 Essa paz teve grandes repercus­sões nas relações de Antíoco III com os judeus porque se viu obrigado a aumentar os impostos. Antíoco morreu assassinado em Susa (187 a.C.) no ano seguinte à paz de Apaméia.

AAntíoco III sucedeu seu filho Seleuco IVFilopátor (187-175 a.C.) e a este seu outro filho Antíoco IVEpífanes (175-164 a.C.), em cujo reinado se sublevaram os judeus da Judéia sob o comando dos Macabeus. Mas esses acontecimentos escapam do marco de nossa história.

II APÊNDICE: “SÍRIA E FENÍCIA”

Fala-se, nos documentos da época, de “Síria e Fenícia”, de “Celessíria e Fenícia”, nada ou quase nada da Palestina. Com este apêndice respon­demos a algumas perguntas que nos fazemos: Por que se fala assim? Que significado tinha a Palestina entre os povos da região?

1. “Síria e Fenícia”, unidade administrativa

“Síria e Fenícia” formavam uma unidade administrativa sob os Ptolo­meus e os Selêucidas. O nome mudou um pouco; segundo V. Tcherikover, a “Síria do sul, quando esteve em mãos dos Ptolomeus, era conhecida na

31W. Sontheimer, Der Kleine Pauly, I, s. v. Antiokos (4), cols. 388s.

Page 460: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

linguagem oficial dos departamentos egípcios como ‘Síria e Fenícia’, e en­tre o povo simplesmente como ‘Síria’ ’’-1 Com a mudança de senhor da re­gião, mudou muito pouco quanto ao nome e administração; assim opina M. Stern: “Em linhas gerais, a administração helenista não sofreu muitas mudanças com a conquista da Palestina pelos selêucidas. Os distritos que tinham sido dos Ptolomeus receberam a denominação coletiva de Celessíria e Fenícia”.2

No que diz respeito aos limites da grande região, flutuaram segundo a época e os donos; sabemos, na realidade muito pouco, quanto aos deta­lhes. “Os papiros de Zenão, na opinião de V. Tcherikover, capacitam-nos para determinar as fronteiras da região, se não com precisão exata, pelo menos em suas linhas gerais. Três pontos, mencionados nos arquivos de Zenão, fixam a fronteira norte entre a Síria ptolemaica e selêucida; estes são as cidades de Trípoli...; o planalto de Masias, ou seja, o vale entre o Líbano e o Antilíbano...; e Damasco... O limite mesmo não se conhece com precisão”.3

Discutem os especialistas se o território ptolemaico da Síria e Fenícia já estava organizado como “província” no sentido posterior romano; V. Tcherikover nega que se possa provar;4 admitem-no, porém, outros auto­res, como é o caso de M. RostovtzefT: “O rei era representado na Síria e Fenícia por um strategos, pelo menos no que dizia respeito ao governo e à administração militar”.5

A organização administrativa da Síria e Fenícia supõe-se que era se­melhante à do Egito, com variantes mínimas: “Síria e Fenícia estavam divididas em hiparquias, pequenas unidades administrativas cujos limi­tes correspondiam provavelmente à divisão histórica do país estabelecida nos primeiros tempos. As hiparquias dividiam-se por sua vez em nomos ou toparquias, unidades administratias menores. Essa divisão manteve- se, no essencial, até fins do período do Segundo Templo”.6

1Hellenistic, 60s.2Palestina, 225.3Hellenistic, 61. A Síria ptolemaica é a do sul, a Síria selêucida a do norte.4Cf. Hellenistic, 61 e 428 nota 60.5The social, 344. M. Stern tem a mesma opinião: “A administração da Síria e Fenícia estava a

cargo de um governador que tinha o título de strategos e exercia o poder supremo, no nível civil e militar. Por causa das guerras freqüentes com as potências vizinhas, soía o strategos ser soldado experimentado. Ajudava-o um chefe de finanças que se ocupava com as altas rendas do Estado” (Pa­lestina, 222s).

6M. Stem, Palestina, 223. A frente de cada uma dessas unidades administrativas havia um funcionário de nível correspondente. Assim o afirma M. Rostovtzeff: “No campo econômico e das finanças, seus representantes eram provavelmente um dioiketes local (encarregado das receitas reais, prosodoi) e naturalmente um ecónomo para cada hiparquia. A organização é quase a do Egito” (The social, 344).

Page 461: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

2. Palestina e seu valor estratégico

A Palestina não tinha significado especial nem político nem adminis­trativo. Diz-nos outra vez M. Stern: “Com o regime ptolemaico, a Palesti­na não era distrito administrativo separado dentro do reino. O nome ‘Pa­lestina’, bem conhecido por escritores clássicos como Heródoto e Aristóteles, não teve no período helenístico nenhuma importância, nem política nem administrativa. Para os Ptolomeus, o território fazia parte da região que nos documentos ptolemaicos se denomina ‘Síria e Fenícia’. As fronteiras da Síria e Fenícia não eram fixas, flutuavam segundo o equilíbrio do po­der militar entre os reinos ptolemaico e selêucida. Em todo caso, é certo que, durante a maior parte do século III, a Palestina ocidental e a Trans- jordânia, assim como também Tiro e Sidônia, estava incluídos na Síria e Fenícia ptolemaica”.7

No entanto, o território da Palestina sempre teve valor estratégico muito alto. Desde os tempos dos antigos impérios no Egito e na Meso- potâmia, a Palestina fora lugar de trânsito e lugar estratégico, sobretudo para o Egito. Por isso, tem razão R. Gordis ao dizer que “a Palestina, situada entre a Síria selêucida e o Egito ptolemaico, constituiu permanente maçã de discórdias”.8 Em todo caso, 80 anos de paz quase absoluta é muito tem­po para não se notar de alguma maneira, ainda que seja em região sem muitos recursos como a Palestina. Apesar da carga pesada de impostos, “a Palestina participou da prosperidade econômica do reino ptolemaico na época de sua grandeza”.9 Isso se manifestava no tráfego contínuo rumo ao Egito dos produtos da terra, como o azeite que era de muito boa qualidade, o piche, utilizado para embalsamar os mortos, o bálsamo procedente de Jericó e Engadi, e o menos nobre tráfico de escravos — crianças e servas — para o serviço doméstico.

Pela Palestina, como estação de trânsito, passavam outras mercado­rias rumo ao Egito, como cereais da Síria, ou artigo de luxo vindos dos

7Palestina, 222. Não quer dizer que a Palestina não tivesse personalidade jurídica nenhuma. O próprio M. Stem escreve: “Antes da rebelião asmonéia, a Judéia formava uma unidade administrati­va separada, uma das tantas que integravam a divisão administrativa ptolemaica da Síria e da Fenícia e, posterioremente, uma das unidades da província selêucida da Celessíria e Fenícia. A identidade da província Jahud (Judéia) estabeleceu-se desde a época da dominação persa..., e até seu nome grego, Ioudaia, era semelhante. Para os Ptolomeus e os selêucidas, a Judéia, com sua população de ioudaioi, era uma nação (ethnos), com centro em Jerusalém” (Estructura social, 229).

&Koheleth — the man, 64. Nessa passagem R. Gordis coincide com M. Stem que escreve: “Os selêucidas não podiam ficar indiferentes para com a instalação ptolemaica num país tão próximo a seu centro vital. Para os ptolomeus, como desde tempos imemoriais para todos os governantes egíp­cios..., a Palestina tinha grande importância estratégica como base avançada para a defesa do Egito; e seu valor econômico não era inferior a seu peso militar. O país converteu-se na maçã de discórdia entre as duas grandes dinastias helenísticas” (Palestina, 222).

9M. Stern, Palestina, 226.

Page 462: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

países mais orientais, como perfumes, especiarias, sedas e marfim. À Pa­lestina chegavam também produtos que consumiam a população de ori­gem grega e as guarnições das fortalezas aí instaladas, especialmente o vinho de Rodas, de Cnido e de Tasos.10

Ao passar toda a região ao poder dos selêucidas, nada mudou admi­nistrativamente.11 No ambiente popular, porém, é muito provável que ao território da Síria e Fenícia em geral e ao da Palestina em particular te­nha sido chamado de “província” pelos naturais do país; Qoh 5,7: “Se vires numa província a opressão do pobre, a violação do direito e da justiça, não te estranhe essa situação; porque uma autoridade vigia sobre outra auto­ridade, e sobre elas uma maior”.

3. A Palestina e o poder estrangeiro

Distingue-se de certa forma o governo interno dos habitantes da Pa­lestina, judeus em sua imensa maioria, do resto do território da “Síria e Fenícia”? Alguns assim o crêem, e outros não se pronunciam.

P. Schäfer já nos fala do tempo de Alexandre Magno: “Na província autônoma persa de Jahud (Judá), a mudança política de autoridade [com Alexandre Magno] não causou alterações decisivas no começo... Provavel­mente ele se terá contentado com aceitar o reconhecimento do senhorio grego por parte do sumo sacerdote como representante do povo (Ant. XI 329-332), deixando intacta, em todas as ordens, a estrutura organizativa de Judá com o sumo sacerdote e o ‘conselho de anciãos’ à frente do Esta­do”.12 Dos tempos seguintes não temos informações de mudanças na forma de governar-se os judeus em seu pequeno território ao redor de seu Tem­plo. Como nos diz M. Stern: “O eixo da vida religiosa, política e social da Judéia era o Templo. Políbio, historiador grego do século II a.C., definiu os judeus como nação que vivia em redor do famoso Templo de Jerusalém (citado por Josefo em Ant., 12.136)”.13

l0Cf. M. Stem, Palestina, 226s.u"Em linhas gerais, a administração helenística não sofreu muitas mudanças com a conquista da

Palestina pelos selêucidas. Os distritos, que tinham sido dos Ptolomeus, receberam a denominação coletiva de Celessíria e Fenícia. A administração ficou a cargo de um governador real com o grau de strategos, que também desempenhava o cargo de sumo sacerdote do culto real no distrito sujeito à sua autoridade. Residia, pelo que parece, em Acre (Ptolemaida). Os selêucidas não mudaram, em geral, a divisão administrativa do país existente com os Ptolomeus. Esta só foi abolida depois da vitória dos asmoneus, provocando a desintegração da anterior organização administrativa e a criação de novas fórmulas apropriadas às novas condições” (M. Stem, Palestina, 225s).

12The Hellenistic, 569. Cf. V. Tbherikover, Hellenistic, 49; M. Hengel, Juden, 18s.lsEstructura social, 232. N. Lohfink fala de “Estado-Templo”: “No século III o pequeno Estado-

Templo da ‘Judéia’ (capital: Jerusalém), como parte da província da ‘Síria e Fenícia’, fazia parte do reino ptolemaico (capital: Alexandria). Gozava de ampla administração própria. Vivia-se segundo as leis dos Pais” (Kohelet, 7).

Page 463: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

3.1. Autonomia relativa da Palestina (a Gerusia)É conhecido o espírito tolerante dos reis helenistas para com os povos

dominados quanto a suas leis e costumes, contanto que não se pusesse em risco sua soberania e o recolhimento dos impostos. Segundo E. Schürer: “Os monarcas helenistas deixavam às cidades considerável liberdade quan­to aos assuntos internos e contentavam-se com que se lhe fossem pagos os tributos e reconhecida sua soberania”;14 e, com respeito aos judeus nô-lo confirma M. Stern: “A monarquia estrangeira confirmava as ‘leis avitas’ dos judeus como código obrigatório para todo o território de Judéia autô­noma. Essas leis avistas eram as interpretações da lei de Moisés feitas pelos chefes reconhecidos da Judéia. Em virtude de sua confirmação real, as autoridades autônomas de Jerusalém tinham poder inclusive de obri­gar toda a população da Judéia a cumprir os preceitos da Torá e proscre­ver a idolatria em todo o país”.15

Não tinham os judeus grandes aspirações de independência; certa­mente reconheciam sua impotência diante dos reis helenistas, razão pela qual se adaptavam facilmente às circunstâncias cambiantes. “A própria Judéia, cuja extensão geográfica... correspondia em grande medida à ou- trora província persa Jehud, também não era politicamente independente dentro do reino ptolemaico, nem dava o primeiro passo para a indepen­dência política sob o sumo sacedote como ‘pequeno monarca’ no cume. A Judéia constituía, de mais a mais, o território central de um ‘ethnos’ e podia, ao mesmo tempo, ser tratada como ‘estado sagrado’ [Tempelstaat]”.16

A forma de governo dos judeus era a gerusia.11 Em que consistia essa gerusial Diz-nos F.-M. Abel que “enquanto ethnos, os judeus da Judéia viviam sob regime aristocrático. Eram dirigidos e representados por um corpo que compreendia os chefes das principais famílias leigas e sacerdo­tais chamado gerusia, nome que correspondia ao latim senatus, ‘assem­bléia de anciãos’, ‘conselho de anciãos’... A administração estava em mãos dessa aristocracia, em que os dirigentes das famílias sacerdotais teriam, mais cedo ou mais tarde, a preeminência, patrocinada por quem entre eles exercesse a função de sumo sacerdote”.18

uHistoria, II 274.18Estructura social, 231; também o afirma em Palestina, 223: “Nas regiões de caráter étnico preci­

so, as autoridades ptolemaicas viam-se obrigadas a levar em conta as tradições e os dirigentes locais”.1SM. Hengel, Judentum, 45. Essa mesma tese desenvolve M. Stern em Los decretos, 242.17Segundo E. Schürer, “a primeira menção da gerousia entre os judeus aparece em Josefo, referida

à época de Antíoco o Grande [223-187 a.C.] (Ant. XII 3,3 [138])” (Historia, II 273).lsHistoire, I 91. Em E. Schürer lemos: “Na Judéia, porém, existiu durante o período grego um

conselho aristocrático, uma gerousia. E muito verossímil que esta instituição tivesse suas origens em época pré-helenística, ou seja, persa. Experimentaria depois algumas mudanças, mas seria de caráter essencialmente pré-helenístico” (Historia, I I273).

Page 464: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

A presidência dessa gerusia num Estado-Templo cabia naturalmente ao chefe natural ou cabeça deste Estado sagrado, ao sumo sacerdote. Os autores aduzem o testemunho imparcial e antigo de Hecateu de Abdera, contemporâneo de Ptolomeu I Soter, e transmitido por Diodoro Sículo: “Moisés escolheu os homens mais afáveis e mais capazes para dirigir toda a nação e investiu-os das funções sacerdotais. Atribuiu-lhes o serviço do templo, do culto divino e dos sacrifícios. Confiou-lhes igualmente o julga­mento das causas mais importantes, a guarda das leis e dos costumes. Os judeus nunca deviam ter rei; sempre se deveria atribuir o governo da na­ção àquele dentre os sacerdotes que se considerasse o mais sábio e virtuoso. Dá-se-lhe o nome de sumo sacerdote e considera-se esse como o mensagei­ro das ordens de Deus. É ele que, nas assembléias e nas outras reuniões, transmite os mandamentos de Deus”.19Essagerasza converte-se no Sinédrio com a dominação romana.203.2. O regime tributário (os Tobíadas)

Já aludimos à tolerância dos reis helenistas para com os povos subju­gados, mas condicionava-se sempre essa tolerância ao pontual pagamento dos impostos: o mais pesado jugo que tinham que suportar os vassalos. Falando dos judeus, M. Stern escreve: “Além dos direitos que o governo outorgava aos judeus, também lhes impunha deveres. A Judéia, integran­te do reino ptolemaico, ou do selêucida, tinha que pagar impostos onero­sos ao tesouro real; essas cargas pesaram sobre os granjeiros enquanto durou o domínio estrangeiro”.21 Até tal ponto chegou o afã de arrecadar fundos de onde quer que fosse, que W. W. Tarn diz dos Ptolomeus que “trataram o Egito como máquina de fazer dinheiro”.22 O que não foi exclu­sivo dos Ptolomeus nem só quanto ao Egito, como o confirma M. Hengel,

19Em Diodoro Sículo, XI 3,4-6; cf. F. M. Abel, Histoire, 192.14. V. Tcherikover cita também Hecateu e fala da prostasia ou representação do povo, conferida ao sumo sacerdote (cf. Hellenistic, 59). Ver também D. Buzy, UEcclésiaste, 200; M. Stern, Estructura social, 229s, que põe em dúvida a priorida­de do sumo sacerdote: “Com o sumo sacerdote colaborava o conselho dos anciãos. E possível que ofi­cialmente sua hierarquia fosse superior à daquele: era-o pelo menos em fins do século III. Além dos dirigentes do sacerdócio, integravam o conselho os chefes das famílias que representavam os interes­ses do povo do interior da Judéia. Nos documentos dos reis helenistas, costuma figurar em primeiro lugar o conselho de anciãos e depois o sumo sacerdote; quando a dinastia asmonéia consolidou sua posição e o cargo de sumo sacerdote passou a ser desempanhado por seus membros, os documentos começaram a nomear primeiro o sumo sacerdote e em segundo lugar o conselho. Essa mudança refle­tia o novo equilíbrio de poder imposto na Judéia depois da rebelião asmonéia” (Estructura social, 230s).

20Cf. M. Stern, El Estado, 266s; também em Historia dei pueblo judio, 1294-296.21Estructura social, 231. J. Bright comenta: “Não sabemos a que tributos estiveram sujeitos os

judeus. Mas enquanto os pagaram e se mantiveram em ordem, os Ptolomeus, pelo que parece, não intervieram absolutamente nos assuntos internos da Judéia. E, pelo que sabemos, os judeus foram súditos submissos e gozaram de plena paz” (La historia, 439).

22Hellenistic, 179; cf. M. Hengel, Judentum, 68.

Page 465: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

falando da Síria e Fenícia: “Em conjunto, deduz-se um quadro que é muito semelhante ao do Egito. Os Ptolomeus introduziram até o detalhe aquele superorganizado sistema de impostos e arrendamentos, que também os selêucidas — que segundo uma primitiva ordem fiscal espremeram ainda mais o país — continuaram e que, em seus traços fundamentais, subsistiu até a época romana”.23 A pressão dos impostos fez com que muitos do povo de classe baixa, especialmente os lavradores, tivessem que se vender como escravos.24

Coletores de impostos houve em todas as partes, estrangeiros ou na­tivos. “Os impostos se pagavam em parte no templo (que também enviava um tributo ao rei), em parte diretamente ao governo central”.25 O mais comum era que os coletores fossem funcionários do Estado, ou se conside­rassem como tais os que conseguiam, como um privilégio, ser nomeados oficialmente os encarregados de cobrá-los. Para isso instituíram os Ptolomeus um sistema muito eficaz; assim nô-lo descreve M. Stern: “Para tornar mais eficaz a cobrança de impostos e taxas nos diversos distritos, instituíram os Ptolomeus organizações coletoras muito ramificadas, ba­seadas nas modalidades aplicadas no Egito. Fizeram inclusive atribuir às classes altas locais a responsabilidade pela soma total dos impostos rece­bidos em seus distritos, e deram em arrendamento os impostos dos povoa­dos e aldeias a pessoas de posse, que viajavam para Antioquia para rece­ber esses privilégios. Os impostos de um povado ou distrito atribuíam-se às cidades principais que faziam a maior oferta; às vezes também eram contratados por outras cidades. Estes coletores, que respondiam com seus bens pela soma total das entradas, tinham interesse em elevar ao máximo as somas recolhidas porque o resto, que sobrava depois do pagamento com­binado ao tesouro real, ia parar nos próprios bolsos. Assim foi-se criando uma classe de capitalistas que cooperavam com o goveno real e em geral eram odiados pelo povo”.26

Entre os judeus temos um claro exemplo destes cobradores na família dos Tobias, que desde tempos muito antigos moravam na Transjordânia ao sul de Galaad. E muito provável que os Tobias do século III a.C. descen­dam de Tobias que se confrontou com Neemias.27 O Tobias do século III

2SJudentum, 41.24Cf. M. Hengel, Judentum, 40.25N. Lohfink, Koheletva 7s. J. Bright diz que “o sumo sacerdote..., pelo que parece, tinha responsa­

bilidade pessoal pela arrecadação do tributo para a coroa” (La historia, 438).26Palestina, 225.27Em Esd 2,59s lemos: “Quanto aos seguintes que vinham de de Tel-Mela, Tel-Harsa, Querub,

Adon e Emer, não puderam provar que sua família e sua estirpe eram de origem israelita: filhos de Dalaías, filhos de Tobias e filhos de Necoda” (cf. Ne 7,61s). Neemias entrega as cartas do rei Artaxerxes aos governadores da Transeufratina, “quando Sanabalat, o horonita, e Tobias, o funcionário, foram informados disso, mostraram-se muito aborrecidos, pelo fato de ter chegado alguém para trabalhar

Page 466: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

a.C. era um destes grandes senhores locais, que facilmente pactuavam com o dominador poderoso e dos quais tinham necessidade os reis para estabelecer firmemente seu domínio nas novas terras conquistadas. Foi contemporâneo de Ptolomeu II Filadelfo. “Trata-se, pois de um senhor lo­cal, de um chefe poderoso, que não é inteiramente autônomo”.28 Seu poder e influência evidencia-se pelo parentesco com a família do sumo sacerdote em Jerusalém, Onias II, casando-se com sua irmã, e pelo fato de ser o comandante dos colonos veteranos ptolemaicos na Amanítis.29

Uma fonte de informação, confiável e de primeira mão, constituem os papiros de Zenão.30 Zenão, grego de origem (Cária no sudoeste da Ásia Menor), era administrador e homem de confiança de Apolônio, ministro das finanças do rei Ptolomeu II Filadelfo. Viaja, em janeiro de 259 a.C., à província da Síria e Fenícia; consta-se que em 25 de abril esteve na forta­leza de Tobias, onde passou vários dias. Pela correspondência de Tobias com Zenão, sabemos que Tobias teve relações pessoais com Ptolomeu.31

Mas foi com José, filho de Tobias, que a casa de Tobias chegou ao cume de sua fama e poderio. Fala Flávio Josefo longamente de toda a história de José e de seu filho Hircano, mas quase tudo não passa de nove­la.32 G. Ricciotti escreve a esse respeito: “Desnudado da lenda, diz o relato que José Tobias foi durante alguns anos coletor dos tributos devidos pela Palestina aos Ptolomeus; que, talvez, por esse motivo tirou a seu tio, o sumo sacedote Onias II, toda ingerência nos assuntos políticos e adminis­trativos; fez crescer muito o poder econômico e civil dos Tobíadas; e teve um filho chamado Hircano”.33

Segundo a cronologia de V. Tcherikover,34por 242-240 começa o desa­cordo entre Onias II (já pró-selêucida) e Ptolomeu III, ao negar-se a pagar os impostos ao Egito. Por então José teve que transladar-se com toda sua família (esposa e sete filhos) a Jerusalém. José, como seu pai Tobias, con­tinuava fiel aos Ptolomeus. M. Stern diz-nos que “quando as relações en­tre o sumo sacerdote Onias II e as autoridades ptolemaicas tornaram-se tensas, Yosef soube encontrar outros canais para suas ambições. Conse-

em benefício dos filhos de Israel” (Ne 2,10; cf. 3,35; 4,1; 6,1.12-14.17-19; 13,4-9). Cf. G. Ricciotti, Historia, II parágr. 218, pp. 223s; V. Tcherikover, Hellenistic, 430 nota 71.

28G. Ricciotti, Historia, II parágr. 218, p. 224; cf. M. Stem, Estructura social, 234.29Cf. V. Tcherikover, Hellenistic, 64s; M. Hengel, Judentum, 487; R. Michaud, Qohélet, 89.30A bibliografia sobre os papiros de Zenão é abundante; cf. V. Tcherikover, Hellenistic, 60-72; M.

Hengel, Judentum, 76-79; Juden, 38-46; T. C. Skeat, Greek papyri in the British Museum (now in the British Library), VII: The Zenon Archive, Londres, 1974; Cl. Préaux, Les Grecs en Egypte, Bruxelas, 1947, pp. 87-90.

31Cf. P. Scháfer, The Hellenistic, 572; M. Stern, Estructura social, 234.32Cf. Ant. XII 4,2s: 158-236.33Historia, II parágr. 220; cf. P. Schãfer, The Hellenistic, 573.“ Cf. Hellenistic, 130.

Page 467: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

guiu reduzir consideravelmente o campo de atividades do sumo sacerdote e inclusive obteve o apoio da assembléia do povo reunida no pátio do Tem­plo, que o autorizou a representar a Judéia diante da corte real”.35 Come­çavam assim as tensões entre os Tobíadas e os Oníadas, que encabeçam as duas tendências políticas de Jerusalém: os partidários dos Ptolomeus (Tobíadas) e os dos Selêucidas (Oníadas).

Em torno de 239, José foi nomeado pela corte de Alexandria coletor geral dos impostos na Judéia e em outras cidades gregas.36 José trabalha­va afanosamente para as arcas do rei e para a sua própria, que ia se en­chendo rapidamente. Seu zelo coletor chegou a extremos de verdadeira crueldade.37

Parece que durante a quarta guerra síria (219-217) entre Antíoco III e Ptolomeu IV, José inclinou-se em favor de Antíoco, que no começo ia ganhando, mas em 217 foi derrotado em Ráfia por Ptolomeu, que terá causado seu desaparecimento da vida pública. Morreu em 210 a.C.

Por então sucedera a Onias II, no sumo sacerdócio de Jerusalém, Si- mão II, seu filho (cerca de 220). A esse Simão dedica Jesus ben Sira seus máximos elogios em Eclo 50. Simão recobra em parte o prestígio que seu pai Onias II perdera. Permaneceu fiel às tendências pró-selêucidas, ape­sar dos reveses da causa.

Ao desaparecer José, filho de Tobias, da cena política, substituiu-o seu filho mais novo e preferido, Hircano. Este foi tão astuto como o pai. Em 210 já recuperara o favor de Ptolomeu IV Filopátor. Põe-se à frente do partido ptolemaico e confronta-se com todos os seus irmãos que eram pró- selêucidas. Depois da vitória de Antíoco III em Pânion (200 a. C.), Simão II é confirmado sumo sacerdote e os judeus são muito bem tratados pelo vencedor.38 Hircano, ao invés, retira-se para o seu feudo da Transjordânia à espera de tempos melhores.

Depois da paz de Apaméia (188 a.C.), imposta pelos romanos a AntíocoIII, muda o clima em Jerusalém. O selêucida precisa recolher muito dinhei­ro e pressiona os judeus.39 O novo sumo sacerdote Onias III, filho de SimãoII, pressionado por Hircano, filho de José Tobias, põe-se a favor de Ptolomeu V. O que desencadeou a ruína de Onias III e de Hircano, o tobíada.40

35Estructura social, 234.36M. Stern crê que o maior poderio de Yosef procedia dos cargos que ostentava fora da Judéia.

Yosef atuava como arrendatário real de impostos em escala nunca vista na Judéia helenística. O âmbito de suas atividades compreendia inclusive as cidades gregas; gozava do apoio da administração real e desenvolvia assombrosa determinação em suas atividades fiscais (Estructura social, 234).

37Cf. P. Schäfer, The Hellenistic, 573s; M. Stem, Estructura social, 23438Cf. F.-M. Abel, Histoire, 188-91.96; V. Tcherikover, Hellenistic, 80-82; P. Schäfer, The Hellenistic,

577; Ch. Saulnier, La crisis, 15b.39Cf. F.-M. Abel, Histoire, I 106s.40Cf. P. Schäfer, The Hellenistic, 578s.

Page 468: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

Sucedem-se os selêucidas Seleuco IV (187-175) e Antíoco IV Epífanes (175-164). Desta época escreve M. Stem: “Na época dos Selêucidas, Hircano tomou partido pelo sumo sacerdote Onias III contra os irmãos, os quais queriam destruir Onias e substituí-lo por um sumo sacerdote da família sacerdotal que compartilhasse de seus critérios e aspirações. Nomeado governador do Templo um dos membros dessa família, Simão, Antíoco Epífanes designou sumo sacerdote Menelau, irmão de Simão. Os dois ir­mãos colaboraram com os tobíadas para extirpar os princípios da vida iudaica que t in h flm estabelecido Esdras, N fip .m ia s p r r u s su p p ssn rp s” 41

Os Tobíadas desaparecem definitivamente da história com o levante dos Macabeus.42 \ \

enjfe com id, quando em que os

3.3. A situação da Palestina segundo QohéletA situação que acabamos de descrever encaixa-se peri i

a que pressupõe o livro de Qohélet; tem, pois, razão R* diz que “o autor Qohélet, sábio de Jerusalém, viv( i ria Tobíadas faziam e desfaziam na Palestina”.4?, ^ \ \ w

A prosperidade e a riqueza de um povogerak mritérião vão unidas à paz e ao bem-estar social geral; são poucos sé enriquecem e muitosos que se empobrecem. Neste aspecto/o^iym-do Eclesiastes é magnífico testemunho de seu tempo. R. Gtíçdjià ^creve: “Objetivamente considera­das, as observações de Qohélet sobre^^stado podem ser reflexo da situa­ção política sob os Ptoloir ps os selêucidas. Em todo caso, a impressão de circunstâncias estóvei ( oep)que tudo indica permanentes, estão mais de acordo com o estamròmberante durante a primeira metade do século III, quando o 1 ^tóptolemá o era o soberano, que com o último período, durante o qu

44vdòú de mãos três vezes (249, 217 e 198 a.C.) em 50

anos'".44 IUnrretramaas condições reais em que viviam as classes ricas do país

faz i. Lang: “Política e economicamente, a Palestina era província olemaico, cujo centro estava no Egito. Não se dava absoluta-

participação da aristocracia judaica no processo de decisões políti- . O rei não era uma parte, mas um tirano, com quem não se podia

ilEstructura social, 235; cf. P. Schãfer, The Hellenistic, 279s; 2Mc 3,4-40.“ Hircano suicidou-se antes com a vinda de Antíoco IV. V. Tcherikover faz uma patética descrição

de Hircano em Hellenistic, 139.461 notas 49 e 50. Cf. M. Hengel, Judentum, 496; Juden, 59.43Qohélet, 86.44Koheleth — the man, 64. Precisa-se confrontar a segunda parte da citação de R. Gordis com o

parecer de outros autores. E verdade que os selêucidas tentaram apoderar-se da província da Síria- Fenícia, mas só conseguiram conquistar zonas limitadas e em geral por pouco tempo. Quanto à Pales­tina, essas lutas entre selêucidas e ptolomeus “não a atingiram, sobretudo a região montanhosa” (H. W. Hertzberg, Der Prediger, 51), até o ano de 198 a.C., em que Antíoco III dela se apoderou definitiva­mente.

Page 469: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

entrar em conflito. O próprio Qohélet aconselha a jamais contradizer o rei (8,2-5), nem sequer dizer má palavra contra ele em segredo — em qual­quer lugar pode haver espias (10,20). Os judeus deviam sentir-se inteira­mente dependentes do rei estrangeiro, e Kohélet afirma lapidarmente: contra o rei não existe uma instância, ninguém pode perguntar-se: ‘tu, o que fazes?’ (8,4). Kohélet confessa sua impotência diante da autoridade estatal sem limites. O braço do poder do Estado atinge até a mais remota Província. Não se deve maravilhar da exploração da Província, diz Kohélet, pois ‘o poderoso é coberto por mais poderosos, atrás dos quais há mais poderosos ainda’ (5,7). Evidentemente, Kohélet pensa no aparato dos fun­cionários de impostos, que exploram o país. Em que grau a vida econômica na aristocracia judaica alimentava o sentimento de impotência, não se pode afirmar com segurança. Todavia, é um fato o domínio dos traficantes estrangeiros e da grande empresa ptolemaico-estatal. Os Papiros de Zenão da metade do século terceiro mostram uma vida econômica na Palestina tão agitada como florescente, na qual os grandes ganhos não vão parar em mãos judaicas”.45

E se isso acontecia aos poderosos dentre os judeus, já podemos imagi­nar o que tinham de passar os indefesos agricultores e a grande massa dos despossuídos da fortuna: “E outra vez observei todas as opressões que se cometem sob o sol; e eis as lágrimas dos oprimidos, mas eles não têm con­solador” (4,1); “Se vês numa província a opressão do pobre, a violação do direito e a injustiça, não te estranhe essa situação” (5,7).

Essa forma de viver parece que não vale a pena, razão pela qual o autor afirma: “E proclamei os mortos que já morreram mais ditosos que os vivos que ainda vivem, mas melhor que os dois, o que ainda não existiu, o que não viu as más obras que se fazem sob o sol” (4,2-3).

Muitos na realidade terminavam na escravidão, uma vez que não podiam responder com os bens às dívidas e aos fardos dos impostos.46 Es­creve M. Stern: “A cobrança dos impostos provocava amiúde fricções e con­tribuía para agravar a tensão que existia entre governantes e governa­dos”.47 Da parte dos governantes sempre estavam os privilegiados colonos gregos e, de uma ou outra maneira, as classes altas da população; os opri-

45/sí der Mensch (ThQ), 120s; cf. W. W. Tarn — G. T. Gritfith, Hellenistic, 213; M. Hengel, Juden, 50. Não nos esqueçamos, porém, dessa alta classe judia que se enriquecia apesar de tudo, à qual pertencia Qohélet: “A pessoa de Qohélet pode-se caracterizar com mais precisão por sua pertença à classe acomodada de Jerusalém, antiga vila real e lugar das atividades mercantis da civilização helenístico-fenícia. O poder político pertence aos Diádocos e a seus colaboradores indígenas. De modo que a antiga nobreza — ou burguesia — local, para não colaborar diretamente, busca sua liberdade na expansão econômica” [cf. 7,12 e 2,1-12] (J. Chopineau, Uimage, 599).

46Cf. M. Hengel, Judentum, 79-81 sobre o tráfico de escravos na Palestina; também N. Lohfink, Kohelet, 8.

47Palestina, 225.

Page 470: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

midos eram, pelo contrário, a população geral ou comum: “Uma ordem do rei Ptolomeu Filadelfo [282-246] informa-nos sobre a tensão que existiu entre ambos os setores e sobre a luta da população autóctone para não ser escravizada pelos colonos gregos. O governo tomou partido pela população local e não permitiu às classes altas que a explorassem a seu bei prazer. A ordem proibia, em termos categóricos, o avassalamento da população lo­cal”.48

48M. Stem, Palestina, 224; cf. M. Rostovtzeff, The social, I 341-343; Ch. Saulnier, La crisis, 15a.

Page 471: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

57

1111121213141515161718191920202323232323242627283131

ÍNDICE

Abreviaturas e siglas Prólogo

INTRODUÇÃO

I. TítuloII. Autor de Qohélet

1. O autor de Qohélet é Salomão2. Começa-se a duvidar da autoria de Salomão3. Salomão não é o autor de Qohélet4. Dados pessoais de Qohélet

4.1. Qohélet é judeu, de Jerusalém4.2. Qohélet é aristocrata ou da classe acomodada4.3. Estado civil de Qohélet4.4. Profissão de Qohélet4.5. Personalidade bem definida de Qohélet

5. Atitude de Qohélet na vida5.1. Pressuposto fundamental5.2. Qohélet é bom observador5.3. Qohélet é crítico radical

III. Como se julgou Qohélet1. Introdução ao tema2. Acusações contra Qohélet

2.1. Contradições2.2. Pessimismo2.3. Ceticismo2.4. Agnosticismo2.5. Determinismo e outras qualificações

3. Defesa de QohéletIV. Aspectos positivos de Qohélet

1. Qohélet e sua personalidade sadia2. Qohélet busca o sentido da vida3. A vida não tem sentido transcendente4. Qohélet e os parciais mas alegres sentidos da vida

Page 472: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

34 V. Atualidadade de Qohélet35 1. Qohélet analisa a realidade criticamente35 2. Afinidade de Qohélet com o homem contemporâneo36 2.1. Testemunhos37 2.2. Porque Qohélet é tão atual38 2.3. Qohélet, mestre e guia38 VI. Composição de Qohélet39 1. A voz da tradição39 2. Ruptura com a tradição40 2.1. Desde D. C. Siegfried a D. Buzy42 2.2. Resistência da tradição43 3. Nova situação43 3.1. Insucesso das posições extremadas43 3.2. Aquisições irreversíveis45 VII. Estrutura de Qohélet 45 1. Estado da questão45 2. Qohélet não tem estrutura ou plano geral46 3. Qohélet tem estrutura ou plano geral48 4. Posição intermédia sobre estrutura em Qohélet49 5. Conclusão: nossa posição50 VIII. Gênero ou gêneros literários em Qohélet51 1. E possível classificar Qohélet num gênero literário?51 1.1. Diálogo52 1.2. Diatribe52 1.3. Testamento régio53 1.4. Coleção de sentenças54 1.5. Reflexões56 2. Pluralidade de gêneros literários em Qohélet57 3. União dos gêneros literários em Qohélet

57 IX. Estilo inconfundível de Qohélet58 1. Singularidade do estilo de Qohélet60 2. Qohélet domina múltiplos recursos literários60 2.1. A contradição como recurso literário61 2.2. Outros recursos estilísticos comuns61 3. Qohélet é escrito em prova ou verso?61 3.1. Qohélet é livro poético62 3.2. Qohélet, como livro, é escrito em prosa

63 X. Língua original de Qohélet63 1. O hebraico de Qohélet é de transição64 1.1. Estamos longe do hebraico clássico64 1.2. Características do hebraico de Qohélet66 2. E original o hebraico de Qohélet?66 2.1. A língua original de Qohélet é o aramaico67 2.2. A língua original de Qohélet é o hebraico68 2.3. O autor de Qohélet é bilingüe

Page 473: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

70 XI. Data e lugar de composição de Qohélet71 1. Data da composição de Qohélet71 1.1. Qohélet foi escrito antes do séc. III a. C.71 1.2. Qohélet foi escrito depois do séc. III a. C.72 1.3. Qohélet foi escrito entre o séc. III e o séc. II a. C.72 1.4. Qohélet foi escrito no séc. III a. C.73 2. Lugar de composição de Qohélet73 2.1. Qohélet foi escrito fora da Palestina74 2.2. Qohélet foi escrito na Palestina74 2.3. Qohélet foi escrito em Jerusalém74 XII. Fontes de inspiração de Qohélet75 1. Abertura indiscutível de Qohélet76 2. Qohélet e fontes não-bíblicas76 2.1. Qohélet e o helenismo78 2.2. Qohélet e a literatura mesopotâmica79 2.3. Qohélet e a literatura egípcia80 2.4. Qohélet e a influência fenícia80 3. Qohélet e o Antigo Testamento81 3.1. Qohélet e o Antigo Testamento em geral81 3.2. Qohélet o Antigo Testamento mais em particular84 XIII. Canonicidade de Qohélet85 1. Testemunhos acerca de Qohélet85 1.1. Testemunhos contra Qohélet86 1.2. Testemunhos a favor de Qohélet88 2. Consagração de Qohélet na liturgia judaica90 3. Qohélet e o cânon cristão do Antigo Testamento90 3.1. Qohélet e o Novo Testamento90 3.2. Qohélet e os primeiros escritores cristãos91 3.3. Qohélet e Teodoro de Mopsuéstia92 XIV. Bibliografia92 1. Comentários93 2. Estudos especiais

TEXTO

111 Texto de Qohélet

COMENTÁRIO

129 I. Preâmbulo de Qohélet (1,1-2)129 1. Título do livro: 1,1131 2. Quadro de Qoh 1,2

136 II. A grande unidade (1,3-3,15)136 1. Pergunta temática 1,3139 2. Poema introdutório 1,4-11

Page 474: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

140 2.1. Observação da natureza 1,4-7149 2.2. Observações sobre a história 1,8-11161 3. Ficção salomônica 1,12-2,26163 3.1. Auto-apresentação de Qohélet 1,12165 3.2. Experiência original de Qohélet 1,13-2,2165 3.2a.Experiência de todas as atividades 1,13-15171 3.2b.Experiência sobre a sabedoria 1,16-18176 3.2c. Experiência sobre a alegira o desfrute 2,1-2179 3.3. Reflexões sobre a experiêcia original de Qohélet 2,3-21180 3.3a.Reflexões sobre a alegria e o desfrute 2,2-11193 3.3b.Reflexões sobre a sabedoria 2,12-17202 3.3c. Reflexões sobre o esforço humano e seus resultados 2,18-21206 3.4. Resumo teológico 2,22-26213 4. Tempo determinado, duração limitada 3,1-15214 4.1. Poema sobre o tempo 3,1-8224 4.2. Repetição da grande pergunta 3,9225 4.3. Reflexões teológicas de Qohélet 3,10-15

236 III. Reflexões sobre problemas humanos (3,16-22)237 1. A inustiça imperante e o juízo de Deus 3,16-17242 2. Sorte comum dos homens e animais 3,18-21248 3. Convite a desfrutar do momento presente 3,22

249 IV. Outras reflexões de Qohélet menos transcendentais (4,1-16)250 1. Porque são preferíveis os mortos aos vivos 4,1-3254 2. Nem excesso nem ausência de trabalho, mas tranqüilidade 4,4-6256 3. A companhia é preferível à solidão 4,7-12260 4. Jovem pobre e sábio diante do rei velho e tolo 4,13-16

263 V. Sobre o culto, as injustiças e a riqueza (4,17-6,9)263 1. Sobre o culto e a religião 4,17-5,6273 2. Sobre a injustiça institucionalizada 5,7-8275 3. Sobre os bens e riquezas 5,9-6,9275 3.1. Insatisfação do dinheiro e das riquezas 5,9-11278 3.2. Destino trágico do homem: vai-se como veio 5,12-16281 3.3. Bênção de Deus ao homem 5,17-19284 3.4. Negação da bênção de Deus ao homem 6,1-2286 3.5. O homem infeliz é pior que um abortivo 6,3-6289 3.6. Inutilidade do esforço humano 6,7-9

291 VI. O homem perante o predefinido e imprevisível (6,10-12)

296 VII. O que é bom para o homem (7,1-29)297 1. O que é melhor para o homem 7,1-14311 2. E bom evitar os extremos 7,15-22311 2.1. O justo meio 7,15-18314 2.2. A perfeição não existe 7,19-22316 3. A sabedoria é inatingível 7,23-24318 4. Achados provisórios e achado definitivo 7,25-29

Page 475: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

329 VIII. Qohélet de novo diante da sabedoria tradicional (8,1-17)330 1. Quem é o verdadeiro sábio? 8,1-9338 2. Antítese: justos-maus 8,10-14342 3. Primeiras conclusões de Qohélet 8,15-17

345 IX. O sábio Qohélet perante o destino comum e o poder (9,1-18)345 1. Igualdade fundamental, destino comum 9,1-6356 2. Desfruta a vida 9,7-10361 3. Incerteza e insegurança 9,11-12364 4. A sabedoria e o poder 9,13-16367 5. Fraqueza da sabedoria 9,17-16369 X. Variações sobre temas de sabedoria tradicional (10,1-20)370 1. A nescidade (o néscio) diante da sabedoria (do sábio) 10,1-3372 2. A nescidade no poder 10,4-7375 3. A perícia não exclui o fracasso 10,8-11377 4. Palavras do sábio, palavrório do néscio 10,12-15380 5. Ditos sobre a administração do reino 10,16-20

385 XI. Ousadia e prudência (11,1-6)

392 XII. Juventude e velhice (11,7-12,7)393 1. Desfruta da juventude, enquanto podes 11,7-10400 2. Evocação da velhice 12,1-7

412 XIII. Palavra final de encerramento (12,8)

413 XIV. Apêndice a Qohélet (12,9-14)414 1. Primeiro epílogo 12,9-11418 2. Segundo epílogo 12,12-14

EXCURSOS

425 I EXCUSO SOBRE QOHÉLET425 1. Forma gramatical426 2. Origem da palavra Qohélet427 3. Significado de Qohélet427 3.1. Qohélet é Salomão427 3.2. Qohélet é membro da assembléia428 3.3. Qohélet e o verbo qahal429 3.4. Qohélet é cargo ou ofício429 4. Objeto do verbo reunir431 II EXCURSO SOBRE HEBEL431 1. Sentido geral de hebel fora de Qohélet433 2. Sentido geral de hebel em Qohélet434 3. Versões em concreto de hebel em Qohélet435 4. Hebel em Qohélet não tem sentido ético437 5. A modo de conclusão

Page 476: Eclesiastes ou qohélet   grande comentário bíblico - josé vílchez líndez-1 (1)

438 III EXCURSO SOBRE O TRABALHO EM QOHÉLET438 1. A raiz de ‘ml em Qohélet440 2. O amor ao trabalho em Qohélet

442 IV EXCURSO SOBRE A RETRIBUIÇÃO EM QOHÉLET

444 V EXCURSO SOBRE DEUS EM QOHÉLET444 1. Conceito de Deus em Qohélet447 2. Sobre o temor de Deus447 2.1. Qohélet fala do temor de Deus447 2.2. Sentido do temor de Deus em Qohélet449 VI EXCURSO SOBRE VLAM EM QOHÉLET 3,11AB’

APÊNDICES

457 I. A Palestina dos Ptolomeus e dos Selêucidas458 1. Alexandre Magno e a Palestina459 2. Os diádocos e a Palestina460 3. As dinastias dos Ptolomeus e dos Selêucidas461 3.1. Dinastia dos Ptolomeus464 3.2. Dinastia dos Selêucidas466 II. “Síria e Fenícia”466 1. “Síria e Fenícia”, unidade administrativa468 2. Palestina e seu valor estratégico469 3. Palestina e o poder estrangeiro470 3.1. Autonomia relativa da Palestina (a Gerusia)471 3.2. O regime tributário (os Tobíadas)475 3.3. A situação da Palestina segundo Qohélet481 índice analítico 495 índice de autores