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valores urbanos

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Page 1: Valor Es Urbano s

VALORES URBANOS, ÉTICA E MORAL SOCIAL – FUNDAMENTOS HUMANÍSTICOS DA CIVILIZAÇÃO

OCIDENTAL

SIRLENE CRISTINA ALIANE. MEMBRO DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF.

LICENCIADA EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL REI. MESTRE EM EDUCAÇÃO PELO CES-JF.

[email protected]

A Revolução Urbana, processada na Inglaterra na segunda metade do século

XIX, ensejou novos valores, ao redor dos quais passaram a se organizar as

comunidades humanas, tanto na Inglaterra, quanto no resto da Europa, nos Estados

Unidos e pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Tivemos, no início do século XX, o

nosso grande reformador urbano, o prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906,

Francisco Pereira Passos (1836-1913). O Urbanismo, como disciplina científica que

tenta estudar e racionalizar o desenvolvimento da cidade, passou a ser cultuado

pelos planejadores urbanos e administradores públicos.

Mas esse processo não ocorreu no vácuo. Um novo universo de valores foi se

solidificando, no terreno da cultura, e foi sendo aplicado, de maneira sistemática,

pelo setor educacional, a fim de ir formando, na nova mentalidade, as jovens

gerações. Sabemos dos esforços empreendidos, por exemplo, nos Estados Unidos

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por John Dewey (1859-1952), que terminaram inspirando, no Brasil, o trabalho de

educadores como Anísio Teixeira (1900-1971) 1, já adentrado o século XX.

Este breve trabalho pretende ilustrar como foram aparecendo e se

sedimentando os valores urbanos, no terreno da filosofia e da história da cultura.

Procurei, destarte, dar uma contribuição concreta às indagações que o Centro de

Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora levanta, em torno a

assuntos basilares para o nosso convívio coletivo, como é a questão dos valores que

devem imperar no mundo urbano. Esta indagação é tanto mais importante, na

medida em que assistimos, no Brasil hodierno, à agressiva aparição de escalas

axiológicas sustentadas na marginalidade e no ostensivo desconhecimento dos

valores que nos foram legados pela Civilização Ocidental. O domínio que o

narcotráfico exerce cada vez mais sobre áreas populosas e esquecidas das nossas

metrópoles está aí e não me deixa mentir. Desenvolverei dois itens: 1) Ética, moral,

moral social, valores, em que adentrarei nos conceitos filosóficos correspondentes.

2) Os valores urbanos no contexto dos ideais modernos de liberdade e democracia.

ÉTICA, MORAL, MORAL SOCIAL, VALORES.

A noção de valores remonta à Filosofia da Antigüidade clássica, pois, desde

essa época, Sócrates (470 a C – 399 a C), Platão (428 a C – 347 a C) e Aristóteles

(384 a C – 324 a C) já ressaltavam a importância do ser humano apreender o que é

ser virtuoso, desde a infância. Aristóteles reforça ainda mais essa idéia, com o

pensamento de que cada pessoa aprende a ser boa ou má, de acordo com a

educação familiar e social que recebeu, para a formação do futuro cidadão da Pólis.

A respeito, Reale e Antiseri 2 afirmam: “A sabedoria consiste em dirigir bem a vida do

homem, ou seja, em deliberar de modo correto acerca daquilo que é bem ou mal

para o homem”, e isso explica a tendência negativa de algumas pessoas ou grupos,

1 Acerca da obra educacional de Anísio Teixeira, cf. Fátima CUNHA, Filosofia da Escola Nova – Do ato político ao ato pedagógico. (Apresentação de Antônio Paim). Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. 2 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 205.

Francisco Pereira Passos (1836-1913), o grande reformador urbano brasileiro, Prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906.

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que tornam o mundo cada vez mais perigoso e difícil de se viver, pois não

receberam uma formação adequada na infância. Aristóteles afirma ainda que a

virtude é um hábito, isto é, uma disposição tornada duradoura pela prática constante

de atos virtuosos por parte dos membros da comunidade.

Na Época Moderna, Thomas Hobbes (1588–1679), Baruch de Spinoza

(1632–1677) e Immanuel Kant (1724–804) pretenderam chegar a uma tábua de

virtudes e vícios, partindo de uma única premissa geral. Hobbes denominou as

virtudes “leis da natureza”, hierarquizou-as, estabelecendo a questão dos limites e

dos valores, entre os cidadãos, para a constituição de uma Nação democrática.

Spinoza estudou as virtudes, na exposição de seu sistema geométrico, no livro que

denominou de Ética demonstrada à maneira dos geômetras 3, onde parte das

premissas gerais de seu sistema, para chegar à vida social, através da imposição

dos limites. Já Kant acreditava que o cumprimento da lei moral deve ser totalmente

racional, e os deveres do ser humano consistem em dois grandes pilares: em

relação a si mesmo e aos outros, estabelecendo o imperativo categórico, que limita o

universo do ser humano, de acordo com a boa vontade e o direito de cada um e vai

até o limite do outro. A proposta ética e moral de Kant perpassa as noções de Polis e

de Nação e adota uma dimensão cosmopolita, alargando-se a todo o mundo, com a

finalidade de ensejar a formação de uma humanidade ética e moralmente

constituída.

3 SPINOZA, Baruch de. Ética demonstrada según el orden geométrico. (Tradução espanhola de O. Cohan). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1985.

O filósofo ateniense Sócrates (470-399 a. C.), formulador de original proposta para a formação moral dos cidadãos, fato que lhe custou a vida.

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No decorrer da história, a questão dos valores sempre foi discutida, e, hoje,

acima de tudo, no mundo contemporâneo, está em destaque o valor do próprio ser

humano. Jamais o ser humano sentiu-se tão aflito, tão ameaçado, tão rico de saber

e de ciência e, no entanto, tão carente de segurança e tranqüilidade. Em relação ao

domínio sobre a natureza, parecem aumentar cada vez mais os motivos de

preocupação sobre os destinos da espécie humana e das gerações vindouras, pois,

por um certo tempo da história, a humanidade não refletiu sobre as questões éticas

e morais em sua convivência no planeta.

Essa discussão acerca dos valores humanos é concernente à vivência

humana, e mesmo pessoas que não possuem idéia teórica sobre os mesmos,

praticam atos influenciados pelos seus valores apreendidos, durante sua vida, em

todos os âmbitos. Desse debate, surge a Ética como reflexão da atuação moral de

homens e mulheres na sociedade. A moral, que tanto se confunde com o estudo da

ética, antecede a esta e torna-se uma espécie de código de leis de uma sociedade,

em cada época de sua existência, e é o que constitui cada pessoa envolvida nessa

teia de relações humanas sociais. A ética é, pois, um estudo sobre a moral, e, na

maioria das vezes, auxilia na resolução de situações sociais.

Anfiteatro da Biblioteca de Alexandria, que constituiu a grande Universidade do mundo helenístico. A Biblioteca Museu de Alexandria foi fundada no III Século a.C. e espalhou a ciência antiga até o IV século da era cristã, quando foi incendiada por fanáticos religiosos.

O filósofo ateniense Platão (428-347 a. C.), discípulo de Sócrates e formulador de um modelo de educação do cidadão pelo Estado.

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A moral é um conjunto de normas de conduta adotado como absolutamente

válido por uma comunidade humana, numa época determinada 4. Esse conjunto de

normas influencia no comportamento das pessoas, que moram nessas

comunidades, em sua vivência cotidiana. Existe, na moral, um núcleo imutável,

referido àquelas coisas que dizem relação direta à dignidade da pessoa humana;

esse núcleo desaguou, hoje, no que denominamos de direitos humanos de primeira

geração, ou seja, aqueles direitos sem cuja preservação tornar-se-ia impossível ao

ser humano sobreviver com dignidade. É aquilo referido à vida e à dignidade das

pessoas.

Por outro lado, existe na moral ocidental uma periferia mutável, referida

àqueles aspectos que podem ir se acomodando, com o correr dos tempos, sem que

se fira a dignidade da pessoa, são noções de valores que mudam. Certas atitudes

que, até uma determinada época, eram condenadas pela sociedade, posteriormente,

já não são mais condenáveis. A virgindade é um exemplo clássico dessa situação,

pois, durante muito tempo, era um tabu e, hoje, a sociedade já aceita mais

facilmente a não-virgindade, dentre outras situações, como mães solteiras, os casais

separados, os homossexuais.

O comportamento da sociedade mudou, como mencionado no exemplo, no

plano das situações aceitas, normalmente, pelos membros de uma determinada

comunidade. Isso não significa que todos aderem às mudanças. Mas elas vão se

sedimentando paulatinamente no seio da sociedade. A liberdade sexual, quando da

sua primeira formulação, nos anos 60 do século passado, era considerada algo difícil

de ser aceito, no entanto, foi se alargando o alcance da aceitabilidade desta postura,

até se transformar em algo consensual no seio das sociedades ocidentais. Isso não

quer dizer que todos aprovem essas mudanças, mas uma grande parte o faz. E isso

se explica pelos novos costumes que a sociedade adquire, em cada época de sua

história, de acordo com o contexto em que está inserida. E se os costumes mudam,

4 Cf. PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992.

O filósofo macedônio Aristóteles de Estagira (384-324 a. C.), preceptor de Alexandre, o Grande, e formulador de um modelo de ética social alicerçado no ideal de Justiça.

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concomitantemente, os valores também, pois os mesmos se sedimentam em

determinados valores que constituem o seu chão cultural.

A noção de limites e valores é resultante do mesmo processo de

interiorização do ser humano. Centremos a atenção, por um momento, na noção de

valores. Estes constituem entidades ideais, de tipo relacional, hierarquizados e

polarizados, e se atualizam no seio de uma vivência emocional da pessoa, no ato de

valorar 5. No seio do universo axiológico (ou valorativo), os valores fundamentais são

aqueles que dizem relação à autenticidade da pessoa, ou seja, os valores morais,

são os que nos permitem dizer se alguém é fiel a si mesmo, ao seu critério de

comportamento. Uma pessoa é boa ou má, em relação ao fato de ela ser fiel ao seu

critério de comportamento. A autenticidade é a dimensão essencial da moral, pois as

pessoas em sua vivência apreendem noções, que se constituem em seus atos na

convivência em sociedade.

No entanto, mesmo com essa mudança de paradigma, as civilizações 6 ainda

são constituídas de costumes totalmente heterogêneos. Ainda existem países onde

a mulher não possui muitos direitos, no trabalho, nos estudos, na vida social, no

lazer e em outras atividades, e às vezes são até tratadas com crueldade ou

desprezo. Ao passo que no Brasil crimes contra mulheres são julgados e existe até a

Delegacia de Proteção, nos casos específicos de crimes contra mulheres.

Entretanto, o machismo ainda existe, e as mulheres encontram muita

dificuldade em ter acesso a alguns cargos de comando, e a sociedade ainda a

discrimina, de maneira até involuntária, pois são anos de cultura masculina e

retrógrada na sociedade brasileira. Não há dúvida de que as coisas vão mudando.

Existem, efetivamente, alguns lares brasileiros chefiados por mulheres, e grandes

empresas de renome dirigidas por executivas. Um panorama que possui a tendência

de melhorar, ao longo dos tempos, devido à mudança de paradigmas.

Essa questão moral é tão ampla e tão abrangente que muda de cidade para

cidade. Mesmo entre as localidades menores, há uma diferença nos costumes, nos

5 Cf. HESSEN, J. Filosofia dos valores. (Tradução e prefácio de L. Cabral de Moncada). 5a. Edição. Coimbra: Armênio amado, 1980. 6 Por civilização entendemos o conjunto de valores que formam o chão cultural sobre o qual funciona determinado conjunto de sociedades. Existe a Civilização Cristã Ocidental, emergente de duas tradições axiológicas: a judaico – cristã, e a Helenística. Da primeira, a Civilização Ocidental tomou a noção de Pessoa humana; da segunda, a noção de Logos ou de racionalidade.

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valores, no pensamento. E essas mudanças são decorrentes da diferença de cultura

de um lugar para outro. Alguns lugares evoluem, economicamente, mas não no

pensamento educacional, ambiental, isto é, em questões mais amplas. Enquanto

outros lugares fazem movimento inverso, evoluem em áreas relacionadas ao

pensamento educacional, cultural, e não obtêm um bom crescimento econômico.

Devido à diversidade de pensamento na sociedade, a convivência torna-se

muito difícil e isso implica em conflitos para o ser humano. Ora, a situação de conflito

entre representações axiológicas é normal, em todas as comunidades humanas.

Isso constitui a essência da dialética, tão bem estudada por filósofos como Hegel,

em Introdução à História da Filosofia,7 de 1816 e Marx, em A Ideologia Alemã,8

de 1846. Mas é possível, no seio de uma comunidade humana, com interesses

divergentes, se chegar à adoção, de forma consensual, de uma tabela de valores

compartilhada por todos. Não se trata de uma “ética de máximos”, mas de um

consenso acerca daquilo que é essencial à sobrevivência coletiva. Trata-se, como

frisa Habermas 9, de uma “ética de mínimos”, que leve à adoção de um conjunto de

valores compartilhados por todos, que possibilite a adoção de consensos básicos. O

pressuposto para isso é um trabalho prévio de esclarecimento, acerca dos novos

valores a serem adotados.

Surge assim a Ética, somente em momentos de problematização social e até

mesmo individual na sociedade. É uma reflexão crítica das posturas humanas, que

auxilia na condução da história humana. A moral e a ética possuem um estrito e

necessário relacionamento entre si. A ética é definitivamente a reflexão distinta

sobre o comportamento humano e a moral seria pautada pelos valores e normas

práticas que norteiam e conduzem o comportamento do ser humano na sociedade. 7 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à História da Filosofia. (Tradução: Henrique Cláudio de Lima Vaz, Orlando Vitorino e Antônio Pinto de Carvalho). 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Os Pensadores). 8 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas. (Tradução: J. Carlos Bruni e M. A. Nogueira). São Paulo: Hucitec, 1987. 9 Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Tradução de G. de Almeida). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor do Leviatã (1651), o grande tratado de filosofia política que dava sustentação ao absolutismo monárquico moderno.

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Muitas vezes o que é moral não é considerado ético pela teoria. E o que é

considerado ético, não é moralmente aceito pela comunidade. Essa é uma

divergência constante no campo da moral e da ética.

Os valores que constituem a civilização ocidental, em quase todos os países,

são os judaico-cristãos, fecundados pela racionalidade herdada do Mundo

Helenístico. Durante a era medieval, os valores morais pretenderam ser uma lei

obrigatória para todos, sem discussão ética alguma, pois as leis religiosas eram

consideradas leis civis, isto é, os âmbitos misturavam-se entre si. No entanto, com a

Reforma Protestante, com Lutero (1517-1524), as igrejas de maneira geral tornam-

se mais flexíveis, de acordo com o momento de mudança da história humana,

surgindo novos paradigmas.

A pessoa e a comunidade, do ângulo da filosofia ocidental contemporânea,

são definidas como um projeto livre, construído ao redor de determinada ordem de

valores. E essa idéia de pessoa humana como um projeto axiológico livre é

fundamental para a constituição da idéia liberal, pois em seu início nada mais era do

que a constituição de valores que determinavam a liberdade como princípio de tudo.

O ser humano constituído da liberdade incondicional, com limite no outro. Com o

tempo, as noções foram expandindo-se, até se tornarem um postulado de

parâmetros para a convivência do homem em sociedade.

Capa da primeira edição do Leviatã (1651) de Thomas Hobbes. O Soberano Absoluto, que empunha a espada e o báculo (símbolos dos dois poderes, temporal e espiritual), é formado por milhares de cabeças humanas, simbolizando o Contrato Social.

O filósofo inglês John Locke (1624-1704), pai do Liberalismo político e do modelo de governo representativo.

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OS VALORES URBANOS NO CONTEXTO DOS IDEAIS MODERNOS DE LIBERDADE E

DEMOCRACIA.

O conjunto de valores urbanos formado, na Inglaterra, durante a Era

Vitoriana, está embasado na teoria liberal do filosofo inglês Locke, que possui como

cerne a idéia da representatividade do povo, através do governante, defendendo os

seus direitos, não somente os materiais e econômicos, mas também os morais e

religiosos, que se relacionam diretamente com a idéia do interesse bem

compreendido de Tocqueville, que visa ao interesse coletivo do cidadão e à

democracia, superando o extremado individualismo do liberalismo leseferista.10

Todavia, essas idéias liberais de cunho social, com o decorrer do tempo, foram

ofuscadas pelo liberalismo econômico. Convém destacar que os valores urbanos se

sedimentaram, pela primeira vez, na Inglaterra vitoriana. A sociedade vitoriana era

de classe média afluente, onde o traço fundamental é a disseminação da

propriedade. O capitalismo influencia a concentração de mão-de-obra e o

crescimento das grandes empresas. Mas principalmente de múltiplos serviços

prestados por pequenas e médias empresas. É um novo tipo de aglomeração

urbana, com outras necessidades econômicas, políticas e sociais. E

conseqüentemente de valores que norteiem esse novo contexto histórico. Como

afirmam Paim, Prota e Vélez-Rodríguez 11 : “O capitalismo da Era Vitoriana

concentrou igualmente o caminho da paulatina e subseqüente democratização do

exercício do poder, configurado nas reformas eleitorais inglesas.”

10 Expressão francesa, do tempo de Luis XIV, no século XVII, quando os comerciantes criticavam ao ministro Colbert que não os deixava agir, reclamando liberdade de negócios (laissez-faire). Indica o extremado individualismo do comerciante que só enxerga o lucro, sem olhar para a comunidade. 11 PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo.Bases e características da cultura ocidental.Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1999, p. 147.

Martinho Lutero (1483-1546), o grande reformador que deu ensejo ao Protestantismo, alicerçado na idéia do Livre Exame e na crítica ao poder temporal dos Papas.

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Com o advento do Renascimento e do Iluminismo, segundo Jacob

Burckhardt12, a humanidade caminha para um lado contraposto às convenções

vigentes na Idade Média, pois o homem toma consciência da sua racionalidade,

capaz de descortinar tudo no universo, sem a ajuda de um ser superior. A idéia

central dessa época era o progresso da técnica e da ciência, em detrimento de

algumas questões éticas e morais. No entanto, as idéias liberais surgiram

concomitantemente para afirmar que o progresso é importante, mas não destituído

da liberdade, que deve ser inerente à condição humana.

A idéia de liberdade vem atrelada com a idéia de pacto social e interesse bem

compreendido, conforme Alexis de Tocqueville (1805–1859), que afirma, também,

que o ser humano deve possuir seu interesse individual, aliado ao público, sendo a

única maneira de construir uma sociedade mais organizada e direcionada para um

futuro mais próspero e mais justo.

Essas idéias eram perfeitas para o estado francês tornar-se uma nação forte

e solidária, mas Tocqueville deveria buscar um local onde essas idéias teóricas se

relacionassem com uma realidade concreta. A ética tocquevilliana é enriquecida, no

momento em que ele visita os Estados Unidos da América, pois esse estudioso

constata a ligação íntima entre interesse individual e o público, e o patriotismo que

permanece até hoje no país, em que pese a existência de governos de tipo

autoritário, como o atual, presidido por Bush (este regime é justamente contestado

pela sociedade americana, em decorrência da presença, nela, de forte sentimento

patriótico, que enxerga o bem comum, não apenas a conveniência econômica das

grandes empresas petrolíferas e de armamento).

12 Cf. BURCKHARDT, Jacob. La civilisation en Italie au temps de la Renaissance. (Tradução francesa de M Schmitt). Paris: Plon, 1877, 2 vol.

Capa do ensaio de John Locke intitulado Constituições fundamentais da Carolina, no qual o filósofo inglês indica a forma em que se poderia organizar a representação política nas Colônias americanas.

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Tocqueville constata também que a educação dos norte-americanos é voltada

para formar cidadãos, e para reforçar as idéias de interesse social. O processo

educacional nos Estados Unidos era um caminho para a democracia, a instrução de

base estava ao alcance de todos, com igualdade de oportunidades e possibilidades

e mesmas condições de desenvolvimento, isto é, os cidadãos devem possuir os

mesmos direitos. Esse pensamento é totalmente coerente com a proposta de

Tocqueville, cuja reflexão ancorava nos pressupostos da igualdade e da

solidariedade, por isso o autor ficou maravilhado diante de tantas coincidências entre

a realidade observada na América e o seu pensamento 13.

Segundo Tocqueville, as sociedades, que pretendem ser democráticas, no

curso da história, devem ter uma educação mais voltada para os interesses

comunitários. A participação do homem, em assuntos comunitários, é uma

conseqüência da possibilidade anteriormente apontada da emergência de

consensos mínimos acerca do que é essencial à sobrevivência da comunidade. O

homem possui bom uso do seu intelecto, conseqüentemente, trabalha em prol do

interesse de um maior número de pessoas, desde que não tenha uma educação de

cunho individualista e conservador. No entanto, essa proposta vislumbrada, no

surgimento dos estados independentes dos Estados Unidos da América, não vigora

até hoje, pois a sociedade americana é voltada principalmente para os interesses

privados e econômicos, em detrimento dos direitos humanos e ambientais, o que a

caracteriza como uma sociedade individualista, pois a religião é separada da

questão política e prioriza a ética do trabalho, como bem inalienável.

A partir dos estudos teóricos e vivenciais de Tocqueville, as noções de

comunitário tornam-se mais fecundas e sólidas. O poder de formação associativa

substituiria o individualismo, uma forma de defesa dos cidadãos, que buscam

afastar-se das questões sociais, restringindo-se aos problemas familiares e

13 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. Edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.

O pensador francês Alexis de Tocqueville, autor do célebre livro A Democracia na América, cujo primeiro volume foi publicado em 1835, tendo sido publicado o segundo em 1839.

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individuais, e que afasta das questões mais amplas e prioritárias da comunidade em

que vive. As associações, nas sociedades democráticas, oferecem espaço aberto de

participação a todos para o fortalecimento das noções sociais e crescimento do bem

público. O objetivo do princípio do interesse bem compreendido como da democracia

liberal é promover a paz pública, na ampliação dos interesses sociais, como a

melhor forma de governabilidade de uma nação. E realmente o país torna-se melhor

para se governar, pois o dirigente tem o apoio de uma grande parcela da população

em seus empreendimentos.

Ao retornar à França, Tocqueville tinha idéias concretas sobre a ética pública,

aliada ao pensamento que possuía, antes de partir para a viagem, alargando assim

o terreno da reflexão liberal. A idéia de liberdade dos indivíduos, como ponto de

partida para o convívio social, surgiu, no século XVII, na Inglaterra, por influência de

Locke. Mas essa idéia de liberdade não havia sido pensada por este filósofo como

algo democrático. Tocqueville descobre que a idéia de liberdade é vivenciada na

América, junto com a realidade de uma sociedade igualitária naquela época.

Ampliando, destarte, os limites do pensamento liberal, alargando-os até o contexto

da democracia. O seu objetivo consistia em incentivar os cidadãos do seu país natal,

a França, para a defesa concreta da sua liberdade. A liberdade é fundamental para o

ser humano em qualquer época ou situação. Ser livre é uma conquista que deve ser

resguardada por todos, sem distinção de crença, raça ou outra questão. Ele sonhava

que o seu pensamento fosse compartilhado pelos Franceses e, também, pelos

cidadãos de outras Nações. E decide fecundar esse anseio dos pensadores e do

povo pela igualdade, com o ideal da liberdade proveniente da América e da filosofia

lockeana. Essa concepção sobre a questão da democracia na América é

denominada de Primeira Democracia, que constitui a primeira parte da magna obra

intitulada A Democracia na América (publicada em 1835)

A Rainha Victória (falecida em 1901), em cujo longo reinado processou-se, na Inglaterra, a revolução urbana.

Vilarejo de Tocqueville, na Normandia, ao noroeste da França. No Castelo vizinho, Alexis de Tocqueville redigiu a sua principal obra, A Democracia na América.

Page 13: Valor Es Urbano s

No entanto, suas reflexões continuaram, em outro momento, na segunda

parte da obra mencionada, publicada em 1841, onde aprofundará um grave

problema observado, nos Estados Unidos, o despotismo da maioria, pois a

participação maciça do povo, em muitos momentos, é perniciosa, ao se tornar uma

administração excessivamente centralizada, que pode incorrer até em uma tirania da

maioria. Um outro órgão de importância fundamental, nesse país, é o Judiciário, com

poder junto ao povo de destituir até o próprio presidente.

A partir desses princípios de pacto social, de interesse bem compreendido

surgiu o pensamento aliado aos interesses do homem em sociedade. A partir do

século XIX e XX, com o renascimento das aglomerações urbanas e da criação das

cidades propriamente ditas, aparece a emergência dos valores urbanos, pois a vida

em sociedade requer novos valores que adaptem a novas condições de vida. A

partir desse novo âmbito de valoração, surgem vários melhoramentos nas cidades,

como o saneamento básico, o significativo progresso da medicina e o surgimento

dos esportes como prática generalizada. São os novos componentes positivos que

surgem com essa nova forma de viver-se em grupos, que não eram mais como os

da era medieval e muito menos da época clássica da História. No entanto não se

pode negar que os valores nobres dessas épocas devem prevalecer.

Com o crescimento desordenado da população, devido às necessidades das

indústrias, surgem várias doenças como cólera, tifo, febre amarela. No entanto,

várias personalidades mobilizaram-se e moveram-se para a criação do saneamento

básico, fiscalização de condições sanitárias de habitações e construções em geral,

com objetivos como: ventilação, esgotamento sanitário, qualidade no abastecimento

de água, construções mais cômodas, com o intuito central de implementar a higiene

e uma melhor qualidade de vida para o cidadão. Afirmam Paim, Prota e Vélez-

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), o mais importante formulador da moral moderna, alicerçada em princípios racionais e desatrelada da religião.

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Rodríguez 14: “O corpo adquire um valor que se supõe haja existido em certa fase da

Grécia Antiga, para em seguida desaparecer”.

As cidades são reconstruídas para assegurar maior circulação de ar, e com a

preocupação centrada na saúde da população os governantes financiam a abertura

de parques e jardins e a disseminação da prática do esporte. A atividade esportiva,

que era vista somente como um lazer das classes abastadas, passa ter um objetivo

mais amplo, a saúde do ser humano em sociedade, tornando-se um hábito de todas

as classes da comunidade. E essa prática influencia na recriação das Olimpíadas,

em 1896, reportando-se à idéia grega de corpo como realidade complementar em

face do espírito.

Surgem medidas protecionistas para os trabalhadores, pois, nessa época, os

trabalhadores tinham uma carga de trabalho de até doze horas, em condições

precárias, crianças trabalhando indiscriminadamente, sem uma fiscalização

necessária. Sem contar com a falta de amparo, no caso de uma doença do

trabalhador, que geralmente acabava em situação de mendicância. Constata-se que

o direito do trabalhador transcende o direito privado, tornando-se uma obrigação de

órgãos públicos competentes.

Nesse momento, a questão educacional muda de enfoque, tornando-se

acessível às diversas camadas da sociedade. As escolas tornam-se depositárias do

conhecimento de toda a nação, não mais somente dos homens abastados e

poderosos e esse princípio condiciona a universalização do saber nas cidades

inglesas. Esse pensamento é relacionado à idéia liberal, que prioriza a igualdade de

oportunidades e proteção das minorias.

A igualdade entre homens e mulheres é aprovada, pelo Parlamento britânico,

em 1828, pelo menos se inicia uma tentativa de equiparar seres humanos tão

parecidos e tão distintos culturalmente na história da humanidade. Mas a partir

14 PAIM, PROTA, VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Bases e características da cultura ocidental, ob. cit., p. 151.

O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que pensou, de maneira sistemática, a racionalidade do Estado moderno.

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dessa data, as mulheres ainda terão uma longa caminhada para obterem as

mínimas condições de vida e dignidade, na sociedade inglesa daquela época, tão

impregnada da cultura machista e retrógrada, que se constitui como parâmetro no

mundo todo.

O aspecto mais importante era a responsabilidade moral. Os vitorianos agiam

sempre baseados na difundida crença dos imperativos morais da responsabilidade

pessoal, do dever, e de viver em função de algo mais do que a satisfação das

necessidades imediatas. E esse fator condicionava-os para atitudes concernentes

com as práticas que beneficiavam o bem público em sentido amplo.

Deste modo, embora as cidades tenham acabado por apresentar muitos

inconvenientes, constituem importante marco no processo civilizatório. Foram tais

aglomerações que acabaram acarretando uma verdadeira revolução na medicina e

outras áreas. A formação das cidades, juntamente com o liberalismo, cria novos

parâmetros de convivência para o ser humano em seu contexto histórico e social.

Enfim, mudamos de uma valoração centrada no indivíduo para uma ação

comunitária. De uma moral religiosa para uma moral racional, pois os homens e

mulheres amparados na racionalidade tornam-se autônomos, livres, etc. A reflexão

filosófica conduz o ser humano para um caminho de parâmetros éticos e morais,

estabelecidos pela moral consensual que estabelece uma ligação fecunda na

sociedade, pois não existe mais a moral vertical dos poderosos, ditando as regras

para os súditos.

BIBLIOGRAFIA

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