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á uma coisa à qual homem algum é indiferente. Moremos no Brasil ou na Sibéria, nos Estados Unidos ou no Iraque, na Suíça ou no Togo... Há algo em nosso corpo que nos iguala e nos arrebata. Busquemos o espiritismo pela meditação, pelo sexo, pelas drogas ou pelo intelecto... Há algo que, diariamente, nos dá a exata medida da nossa imanência. Sejamos ricos ou pobres, comamos couve ou caviar... Há algo que produzimos onde o resultado final é profundamente democrático. As fezes – ou, carinhosamente, o cocô – são onde ter- minam o que ingerimos. E onde começam alguns dos nossos fascínios. O fim da comida sempre representou um grande mistério para a humanidade. Ele é uma espécie de elo entre todos (afinal, todos evacuam) – e que ten- tamos, a todo custo, ocultar. Cocô é tabu: não se fala no assunto. O ato de fazê-lo é, na maioria das culturas, solitário e vergonhoso. Casais trocam con- fissões, desejos, fantasias, mas poucos levam a intimidade ao nível das fezes. Hoje, algumas famílias chegam a construir suítes com dois ba- nheiros: um para o marido, outro para a esposa. Assim, esconde-se do ser amado aquilo que é abso- lutamente comum a todos. Por que tamanho cons- trangimento? Nos primeiros anos de vida, nossa relação com o cocô é outra. Para o bebê, o ato de defecar é uma f o rma de comunicação com a mãe. Em A criança e seu mundo, o psicanalista Douglas Winnicot expli- ca como deve funcionar essa relação: “O bebê não pode comunicar-se com a mãe à maneira habitual dos adultos, mas encontrou um meio de falar sem palavras. É como se ele dissesse: ‘Creio que vou deixar passar uma descarga. A senhora está inte- ressada?’ E a sua resposta (sem que você o diga claramente) é ‘sim’... Se algo é importante para ele, tem que ser igualmente importante para você”. Em E rotismo anal e complexo de castração, Freud escreveu que “as fezes são a primeira dádiva da criança, o primeiro sacrifício em nome de sua afeição, uma parte do seu próprio corpo que está ISABEL BRANDÃO, JOÃO ROCHA LIMA, MARIA CECÍLIA MALAN E ROBERTO KAZ Quer um pedacinho? 85 Sigmund Freud, considerava o cocô como uma “dádiva” da criança Apesar de sua importância, a última etapa da alimentação permanece um tabu Ritos e mitos do descomer”

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Page 1: Ritos e mitos do descomer” - Portal PUC-Riopuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/25 - ritos e mitos do descomer.pdf · Dicionário de símbolosde Jean Chevalier diz que, em c e rtas

á uma coisa à qual homem algum éindiferente. Moremos no Brasil ou naSibéria, nos Estados Unidos ou noIraque, na Suíça ou no Togo... Há algo

em nosso corpo que nos iguala e nos arrebata.Busquemos o espiritismo pela meditação, pelosexo, pelas drogas ou pelo intelecto... Há algo que,diariamente, nos dá a exata medida da nossaimanência. Sejamos ricos ou pobres, comamoscouve ou caviar... Há algo que produzimos onde oresultado final é profundamente democrático. Asfezes – ou, carinhosamente, o cocô – são onde ter-minam o que ingerimos. E onde começam algunsdos nossos fascínios.

O fim da comida sempre representou um grandemistério para a humanidade. Ele é uma espécie deelo entre todos (afinal, todos evacuam) – e que ten-tamos, a todo custo, ocultar. Cocô é tabu: não sefala no assunto. O ato de fazê-lo é, na maioria dasculturas, solitário e vergonhoso. Casais trocam con-fissões, desejos, fantasias, mas poucos levam aintimidade ao nível das fezes. Hoje, algumasfamílias chegam a construir suítes com dois ba-nheiros: um para o marido, outro para a esposa.Assim, esconde-se do ser amado aquilo que é abso-lutamente comum a todos. Por que tamanho cons-trangimento?

Nos primeiros anos de vida, nossa relação com ococô é outra. Para o bebê, o ato de defecar é umaf o rma de comunicação com a mãe. Em A criança eseu mundo, o psicanalista Douglas Winnicot expli-ca como deve funcionar essa relação: “O bebê nãopode comunicar-se com a mãe à maneira habitualdos adultos, mas encontrou um meio de falar sem

palavras. É como se ele dissesse: ‘Creio que voudeixar passar uma descarga. A senhora está inte-ressada?’ E a sua resposta (sem que você o digaclaramente) é ‘sim’... Se algo é importante paraele, tem que ser igualmente importante paravocê”. Em E rotismo anal e complexo de castração,F reud escreveu que “as fezes são a primeira dádivada criança, o primeiro sacrifício em nome de suaafeição, uma parte do seu próprio corpo que está

ISABEL BRANDÃO, JOÃO ROCHA LIMA, MARIA CECÍLIA MALAN E ROBERTO KAZ

Quer um pedacinho?85

Sigmund Freud, considerava o cocô como uma “dádiva”da criança

Apesar de sua importância, a última etapa daalimentação permanece um tabu

Ritos e mitos dodescomer”

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p ronta a part i lhar, mas apenascom alguém a quem ama”.

A psicanalista Perla Klaudau,especializada no atendimento acrianças, conta que, por voltados cinco anos, a criança co-meça a internalizar as leis domundo, surgindo o recalque em relação a velhosp r a z e res agora proibidos. Ela relata um caso ocor-rido com seu filho: “Flagrei-o com o dedo na bocae perguntei-lhe se, por acaso, estava mastigandomeleca. Para minha surpresa, ele não só concor-dou como me ofereceu um pouco. No começo davida, as crianças vêem as fezes ou a meleca comop roduções suas, o que é motivo de grande ale-gria”.

Essa relação afetiva com as fezes (lembre m - s eque muitos de nós gostávamos de declarar quan-do íamos ao banheiro e nos despedíamos das fezesantes de dar descarga) costuma durar até o inicioda educação da criança. É nessa fase que surg e mos conceitos de vergonha e constrangimento.Então, o que era uma forma prazerosa e incons-ciente de expressar amor torna-se uma maneiraconsciente de demonstrar desprezo e ódio. E,talvez, fruto dessa re p ressão, surja o nosso fascínioem relação às fezes.

A partilha de experiências No s i t e de re l a c i o n a m e n t o s

Orkut, há mais de duas milcomunidades re f e rentes aoassunto. Há desde gente quedetesta fazer suas intimidadesfora de casa (para lá de 500 mil

membros declarados) a pessoas que têm o desejolouco de fazê-las não só alhures, mas na rua e comdestino certo: a cabeça de um pombo. Mas paraquem gosta de fazer suas necessidades no calor dolar, ainda assim sobram inconveniências. Por isso,há comunidades para quem só concretiza o atolendo gibi, para quem não consegue resistir aoinstinto de olhar o produto final ou para quem,estupefato, depara-se com uma privada vazia,mesmo tendo a certeza de que algo deveria estar lá– é a comunidade “Cocô fantasma”, onde se lê aseguinte descrição: “Sabe quando você tem aquelador de barriga cósmica e então, numa total euforiae loucura, corre para o banheiro? Fica orgulhoso,pois sabe que a criatura que está dentro de você éimensa. Então chega na privada, arria as calças ecom toda força que pode existir dentro de você,solta o monstro (é o que, pelo menos, passa por suamente). Depois de algum tempo, você, já suado,aliviado e até cansado, olha para conferir a obra e

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A coprofagia é comum entre alguns insetos, como as borboletas, que comem restos de comida semi-digeridanas fezes dos animais maiores.

A coprofagia é uma excentricidade para o

homem, mas para algunsmamíferos ou insetos, ela é mais que normal

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se dá conta de que ele não está lá... Pois então énessa hora que o cocô fantasma aparece: você osentiu, o produziu, colocou para fora e na hora decontemplá-lo, ele não está lá para fazer parte dessemomento sublime. Se já passou por isso venhafazer parte dessa comunidade, dar o seu depoimen-to e dizer o que sentiu ao ser abandonado pela suacriatura”.

CoprofagiaHá, no entanto, pessoas que são indiferentes ao

expelir as fezes, mas exibem um grande fascíniopelo ato de ingeri-las: são os praticantes dac o p rofagia. No Orkut, há apenas uma dezena quese declara adepta de tais práticas, ligadas, no caso,a fantasias sexuais. Mas em outros lugares, comero cocô alheio nada tem de sexual ou degradante.Pelo contrário, a coprofagia pode re p resentar umato de extremo respeito em relação ao outro. ODicionário de símbolos de Jean Chevalier diz que, emc e rtas culturas, “considera-se que o excre m e n t oesteja carregado de uma parte importante da forçavital daquele – homem ou animal – que o tiverevacuado”. O mesmo dicionário cita o caso dosbambaras, uma etnia de Mali, na África, onde, emum ritual de iniciação, os mais jovens praticam ac o p rofagia como se estivessem engolindo “asforças profundas e ocultas do universo”: “Ta n t omais fermentados e cheios de vermes estiverem osdetritos, tanto mais apreciados serão, pois nissoreside justamente a prova de sua vitalidade”.Assim, a pessoa que ingere as fezes torna-se umaespécie de divindade, pois adquire o poder simbóli-co de absorver o mundo e expeli-lo sob uma novaf o rm a .

A coprofagia é uma excentricidade para ohomem, mas para alguns mamíferos ou insetos,ela é mais que normal. Hamsters comem aspróprias fezes quando em falta de vitamina B.Alguns macacos comem o excremento de cavalosquando precisam de sal. Filhotes de elefantecomem as fezes de suas mães e assim, obtêm a bac-téria necessária para digerir a vegetação dasavana. Borboletas buscam pedaços de alimentossemi-digeridos nas fezes de animais maiores. Ecachorros comem o próprio cocô ou para reporalguma proteína, ou para chamar a atenção do

dono. Segundo a veterinária Raquel Batista Soares,“os cães de pequeno porte, como o maltês e oshitzu, são os que apresentam este quadro commais freqüência”. Raquel diz ainda que o gostocanino é variado, já que os cães tendem a preferiras fezes de humanos e gatos, cujo cheiros são maisatraentes.

Questão íntima ou pública?Mas não é apenas no esgoto e na boca de cachor-

ros que termina o percurso de nossas fezes.Algumas iniciativas mostram que elas podem terum destino bastante nobre. Em Sertão doCarangola, favela situada a 12 quilômetros do cen-tro de Petrópolis, um biodigestor construído comtecnologia chinesa conseguiu transformar o esgotoem gás de cozinha. Diariamente, os dejetos pro-duzidos pelos 4.000 habitantes do povoado sãoarmazenados em tanques, onde sofrem decom-posição. De lá, saem o adubo orgânico usado nahorta comunitária e o biogás, que abastece o fogãode uma creche. A água é devolvida aos rios queatravessam o local, em perfeito estado de balnea-bilidade. Para Francisco Pontes Ferreira, professorde Geografia e um dos mentores do projeto, o biodi-gestor propõe uma relação sistêmica com os detri-tos orgânicos: “Propomos que se deixe de lado

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As fezes do artista italiano Piero Manzoni valem ouro

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aquela visão linear, segundo a qual tudo aquiloque for classificado como resíduo deve ser elimina-do e desaparecer dos nossos olhos”.

Se houvesse eliminado seus resíduos décadasatrás, o italiano Piero Manzoni talvez não tivesseganho reconhecimento por suas criações artísticas.Em 1961, Manzoni defecou em 90 latas de 30 gra-mas, que, após fechadas, foram envoltas com orótulo “merda d’artista”. O que deveria ser umacrítica à banalização do mercado de arte acabou setornando um sucesso de vendas. Em pouco tempo,a obra prima de Manzoni se espalhou mundoafora, sendo vendida a preço de ouro. Hoje, a“merda d’artista” oscila entre 25 e 35 mil dólares.Isso, levando em conta que se trata de umaaquisição artística de risco: com o passar dos anos,mais de metade das latas explodiu por causa dosgases acumulados.

Até chegar às galerias de arte, as fezes perc o r-reram um longo caminho. Os romanos faziamsuas necessidades em “banheiros” mistos e públi-cos, a céu aberto. Eram bancadas com vários furo salinhados, propícios à sociabilidade. Na cort e

francesa, havia um cargo nobre cuja função eraúnica e exclusivamente recolher os detritos do re i ,que os despejava através de um furo em seu tro n o .No Rio de Janeiro do século XIX, alguns escravoseram chamados de “tigres” por estarem constan-temente “listrados”. Eles carregavam as fezes deseus senhores em barris de madeira até a Baía deGuanabara. Como os barris possuíam pequenosf u ros, parte do material escorria, manchando-lhesa pele. No princípio do século XX, o Rio ainda nãotinha sistema de esgoto, os detritos eram jogadosjanela abaixo, e, vez ou outra, um pedestre eraatingido, ficando literalmente enfezado. Quandoassumiu o poder, em 1902, o presidente RodriguesAlves entendeu que a origem de uma série de epi-demias, como a febre amarela, a varíola e a pestebubônica, estava nos cortiços, conjuntos habita-cionais miseráveis, cujos moradores compart i-lhavam o espaço com ratos e dejetos de toda as o rte. Com a re f o rma urbanística realizada pelop refeito Pereira Passos anos depois, a cidade ga-nhou uma rede de esgoto. E a evacuação set o rnou, finalmente, privada!

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Escravos recolhiam esgoto da cidade