relatório yvy katu final-2

Upload: ana-estrela

Post on 15-Oct-2015

46 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    1/94

    1

    Relatrio Antropolgico de Reviso de Limites da

    T.I. Porto Lindo (Jakarey) que resultou na identificao da

    TERRA INDGENA GUARANI-ANDEVA

    YVY KATU

    Portaria N 724/PRES

    Fabio Mura - Antroplogo Coordenador do Grupo Tcnico

    Rubem F. Thomaz de Almeida Antroplogo Colaborador

    VOLUME I

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    2/94

    2

    Relatrio Antropolgico de Reviso de Limites da

    T.I. Porto Lindo (Jakarey) que resultou na identificao da

    TERRA INDGENA GUARANI-ANDEVA

    YVY KATU

    Portaria N 724/PRES

    Fabio Mura - Antroplogo Coordenador do Grupo Tcnico

    Rubem F. Thomaz de Almeida Antroplogo Colaborador

    VOLUME II

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    3/94

    3

    Sumrio

    VOLUME I

    Introduco-----------------------------------------1

    Parte I: Dados Gerais

    1.1 - Os Guarani andeva --------------------- 4

    1.2 - Origem e localizao Guarani ------------------------ 5

    1.3 Os Guarani e a realidade colonial ------- 8

    1.3.1- ------------------ 91.3.2- "Redescoberta" dos Guarani -------------------------------- 11

    1.4 - SPI e FUNAI: indigenismo de integrao ----------------------------- 15

    1.5 - Sistemtica de desapropriao de terras Guarani no MS ------- 19

    1.6. - Algumas consideraes sobre os fatos histricos e as fontes escritas ---- 20

    1.7 - Da criao da reserva indgena Jakarey (Porto Lindo) configurao dotekoha de Yvy Katu ----------------------- 23

    1.7.1 - Fontes escritas e depoimento de regionais sobre a terra dos ndios ----- 23

    1.7.2A configurao do tekohade Yvy Katu ---------- 28

    Parte II: Habitao Permanente

    2.1Cosmologia e relao com a terra --------- 33

    2.2 - Morfologia social, organizao social e distanciamento espacial ----- 35

    2.3 - Tekoha e tekoha guasu:duas importantes categorias nativas na definioterritorial ----------------------------------- 39

    Parte III: Atividades Produtivas

    3 - Atividades econmicas ------------------------- 50

    3.1 - Agricultura ---------------------------- 50

    3.2 - Caa, pesca, e coleta ---------------------------------------- 52

    3.3 - A relao com o mundo dos brancos, problemas atuais e a necessidade daterra ------------------------------------ 54

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    4/94

    4

    Parte IV: Meio Ambiente

    4.1 - Caracterizao regional -------------------------------- 58

    4.2 - Impactos ambientais --------------------- 58

    4.3 - A situao ambiental no caso de Yvy Katu ----------------------- 59

    4.3.1 - Proposta para recuperao de espaos florestais e importncia da reaidentificada ------------------------------------ 64

    4.4 - Ocupao da rea ------------------------ 66

    4.5 - Intervenes de apoio ---------------------------------- 68

    Parte V: Reproduo Fsica e Cultural

    5.1 - Situao demogrfica ---------------------- 715.1.1 - Desapropriaes de terra e crescimento populacional ------------- 71

    5.1.2 - Diminuio da taxa de mortalidade ----------------------- 73

    5.2 - Relevncia da rea identificada para a reproduo fsica e cultural ---- 73

    Parte VI: Levantamento Fundirio

    6.1 - Levantamento fundirio ---------------------------- 76

    Parte VII: Concluso e Delimitao

    7.1Concluses ------------------------------------------- 797.2 - Proposta de limites de Yvy Katu --------------------------------- 83

    Bibliografia --------------------------------- 85

    VOLUME II

    Anexo 1Diagramas de Parentesco

    Anexo 2Transcrio das Entrevistas

    Anexo 3Cpias de Documentos em Microfilme do Museu do ndio

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    5/94

    5

    Anexo 4

    Mapa da T.I. Porto Lindo

    Anexo 5

    Documentao Fornecida pela FUNASA

    Anexo 6

    Relatrio de Caracterizao Ambiental

    Anexo 7

    Levantamento Fundirio

    Anexo 8

    Mapa e Memorial Descritivo de Delimitao da T.I. Yvy Katu

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    6/94

    6

    Parte I

    Dados Gerais

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    7/94

    7

    1.1. Os Guarani andeva

    Os Guarani fazem parte da famlia lingstica Tupi-Guarani e hoje podem ser

    classificados em trs subgrupos: os Guarani-Kaiowa (autodenominam-se Pa-

    Tavyter), os Guarani-Mbya e os Guarani-andeva. Seu territrio abarca o Paraguai

    Oriental (Kaiowa, andeva, Mbya), norte da Argentina (Mbya) e o sul do Brasil Rio

    Grande do Sul (Mbya), Santa Catarina (Mbya), Paran (Mbya e andeva), So Paulo

    (Mbya e andeva), Rio de Janeiro, Esprito Santo (Mbya) e Mato Grosso do Sul

    (Kaiowa e andeva) (v. Mapa 1). Trata-se de um universo populacional de

    aproximadamente 50/55.000 indivduos.

    No Mato Grosso do Sul, onde est o maior contingente Guarani, somam perto de

    25/28.000 pessoas. Aqui estaremos focando apenas os andeva (perto de 9/11.000

    indivduos) e, mais especificamente, aqueles referidos s terras de Yvy Katu (v. Croqui

    1; Mapa 2 e 3) que engloba a reserva indgena conhecida na FUNAI como Porto Lindo,

    cuja reviso dos limites este relatrio pretende fundamentar. Os ndios, por seu turno, se

    referem a ela com o topnimo Jakarey, em decorrncia do crrego homnimo que

    determina um de seus limites. Por tal razo nos referiremos sempre a esta reserva com o

    nome indgena, acrescentando a denominao oficial entre parnteses, para no gerar

    mal entendidos.

    O territrio atual dos andeva compreende os rios Jejui Guasu, Corrientes e

    Acaray, no Paraguai, e, no Brasil, o Rio Iguatemi e seus afluentes (v. Mapa 1), sendo

    encontrados tambm nas proximidades da juno deste com o Paran. Bartolom (1977)

    fala de um "habitat histrico" localizado ao sul do Jejui Guasu, ao longo do Alto Paran

    e ao sul do Iguasu. H tambm assentamentos andeva no interior do Paran e de So

    Paulo, e no litoral deste ltimo.

    Estes Guarani-andeva podem ser reconhecidos na literatura etnogrfica por

    diferentes nomes. Metraux (1948) os denomina Chiripa; Susnik (1979-80) refere-se a

    esse subgrupo como Chiripa Guaraniou Ava Katuete; este ltimo nome tambm

    utilizado por Bartolom (1991); Ava Guarani, segundo Cadogan (1959), a

    autodenominao utilizada por eles; Schaden (1974) informa que o nome andeva , que

    significa "ns todos [os Guarani]", auto denominao de todos os Guarani, porm a

    nica forma usada pelas comunidades que falam o dialeto registrado por Nimuendaju

    com o nome de Apapukuva" (Schaden, 1974:2) referindo-se s comunidades do

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    8/94

    8

    Iguatemiygua, isto , que pertencem ao Rio Iguatemi, mais especificamente regio

    compreendida pela banda direita deste rio, no MS (v. Mapa 2). Os Guarani das aldeias

    de Ocoy e Tekoha Aetete, no Paran, so enfticos em afirmarem-se como Chiripa,

    termo rechaado pelos que vivem nas aldeias de Bananal e Ararib (So Paulo) e

    Jakarey, Pirajuy, Cerrito, Amambai e outras no Mato Grosso do Sul, que se reconhecem

    como Ava Guarani. Tanto no Mato Grosso do Sul como no Paran, parecem

    desconhecer denominaes como apapukuva ou oguaiuva (v. Nimuendaju, 1987;

    Gadelha, 1980).

    Em territrio brasileiro no Mato Grosso do Sul onde se concentra o maior

    nmero de andeva. Exceo feita aos Postos Indgenas Jakarey (Porto Lindo) e

    Pirajuy, onde no h significativa presena Kaiowa, os andeva no MS vivem nasexguas reas dos PIs de Dourados, Amambai, Caarapo, Limo Verde e Ramada, todos

    demarcados no incio do sculo passado, com predominncia marcante desse outro

    subgrupo Guarani. H ainda reas recentemente ocupadas por grupos macro familiares

    andeva, resultado de seu empenho em se reapropriar de terras de onde foram, no

    passado, compulsoriamente retirados (v. adiante), tais como Cerrito, Sete Cerros e

    Potrero Guasu. Observam-se diferenas entre os andeva localizados no extremo sul do

    estado, isto , nas proximidades do Rio Iguatemi (os Iguatemiygua), e os situados mais

    ao norte (os Mbarakajuygua), em reas prximas aos rios Amambai, Dourados e

    Brilhante. De igual modo, so observadas diferenas entre os andeva do MS e do

    Paran.

    1.2. Origens e localizao dos Guarani

    Os Guarani contemporneos tm origem "nos matos tropicais que recobrem as

    bacias do Alto Paran, do Alto Uruguai e a borda do planalto meridional brasileiro"

    (Schmitz 1979, 57). Foram encontrados em stios arqueolgicos elementos que revelam

    caractersticas distintivas do grupo tnico a partir do sculo V (anos 400 d.C), j

    claramente diferenciado dos outros grupos pertencentes ao tronco lingstico tupi-

    guarani.

    As populaes "proto Guarani" que deram origem aos Guarani (cf. Susnik 1979-

    80) realizaram intensos movimentos migratrios. Dados arqueolgicos informam que j

    nos anos 1.000/1.200 a.C., expandindo-se ao sul a partir de regies hoje localizadas no

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    9/94

    9

    oeste brasileiro (cabeceira dos rios Araguaia, Xingu, Arinos, Paraguai), esses grupos

    indgenas ocuparam extensos territrios que hoje constituem partes do Sul e do Centro-

    Oeste brasileiro, do norte da Argentina e da Regio Oriental do Paraguai (Cf. Smith,

    1978; Susnik 1979-80).

    Em pocas pr-colombianas, a ausncia de povoadores no indgenas, o

    ecossistema formado por florestas subtropicais favorveis ao cultivo de roados, a

    abundncia de matas, aspectos demogrficos e o relacionamento intertnico com outros

    grupos autctones, interferiram diretamente na organizao territorial dos Guarani

    histricos (v. Susnik 1979-80).

    Quando no havia "fatores perturbadores como superpopulao e a conseqente

    diminuio de reas de roa, calamidades naturais que incitavam ao novo oguata("caminhar", "andar") migratrio, ou a presso agressiva do gentio vizinho, reafirmava-

    se a estabilidade do gura" (Susnik 1979-80: p.16), isto , a apropriao, por grupos

    macro familiares ligados entre si, de uma regio determinada onde se assentam em

    carter definitivo; por exemplo, pode-se falar dos gura do Rio Paran, isto , o

    conjunto de grupos que esto assentados nas proximidades do rio Paran e seus

    afluentes, denominados Paranaygura (cf. Montoya, 1876:130), ou os

    Yguatemigurada atualidade, ou seja, os grupos andeva assentados na bacia do RioIguatemi. Ao lado desses fatores, a assimetria introduzida nas relaes intertnicas pelo

    domnio colonial exacerbou as atividades ritualsticas, de carter salvacionista, dirigidas

    por prestigiosos xams que, em alguns casos, provocaram migraes e traslados (

    Susnik 1979-80; Melia 1986).

    Nos momentos que antecederam a chegada do europeu, os Guarani estavam

    assentados em extensas florestas, espalhados em aglomeraes macro familiares, por

    terras compreendidas entre os Rios Paraguai, Miranda, Paran, Tiete-Aemby, Uruguai,Jakui e afluentes (v. Mapa 1), assim como no litoral do sul do pas. (Cf. Susnik 1979-

    80). Por sua localizao, ser um dos primeiros povos contatados pelo conquistador

    espanhol e portugus. Cabeza de Vaca (1971), indo de Santa Catarina (atual

    Florianpolis) a Assuno em 1542, registra sua passagem pelos Rios Iguau, Paran,

    ent relugaresdeindiosdel a generacin delos

    guaranes -115). No

    identificados ncleos populacionais com especificidades e p

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    10/94

    10

    diferenciados, mas com identidades que os tornavam pertencentes ao mesmo povo

    Guarani (cf. Susnik 1979-80; Azara 1969; Cabea de Vaca 1971; MCA 1951/1970,

    entre outros).

    As especificidades da organizao espacial dos Guarani histricos, fator de

    extrema relevncia para o presente relatrio de identificao, so descritas

    sumariamente nas crnicas da poca. Uma das descries mais expressivas aquela

    fornecida em breves linhas pelo padre jesuta Antonio Ruiz de Montoya, em seu livro

    Note- ndios que, vi vendo sua antiga usana em selvas,ser ras e vales, junto aarroiosescondidos,em trs,quatro ou seiscasasapenas,separadosunsdos - dos padres a povoaes no pequenas e vida poltica (civilizada) ehumana, beneficiando algodo com que se vistam, porque em geral viviam na

    destaque nosso).

    Um outro jesuta annimo, contemporneo de Montoya, em uma carta-relatrio

    datada de 1620 descreve as atividades econmicas e o modo de habitar dos indgenas

    oferecendo-nos detalhes significativos. Eis alguns trechos dessa carta:

    labradora, siemp resembra en montesy cada tresaospor lo menosmudanchacara. el modo de hacer sus sementeras es: primero arrancan y cortan losarboles pequeos y despus cortan los grandes, y ya cerca de la sementera como

    estan secos los arboles pequeos (aunque los grandes no lo estan mucho) les

    pegan fuego y se abraa todo lo que han cortado, y como es tan grande el fuegoquedan quemadas las races, la tierra hueca y fertiliada con la enia y alprimer aguaero la siembran de mais, mandioca y otras muchas races ylegumbresqueellost ienemuy buenos: dasetodo con grandeabundancia .

    Habitan en casas bien hechas armadas en ima de buenos horcones

    cubiertas de paja, algunas tienen ocho y diez horcones y otras mas o menos

    conforme el cazique tiene los basallos porque todos suelen vivir en una casa, no

    tiene division alguna toda la casa, esta esenta de manera que desde el prinipio

    se vee el fin: de horcon a horcon es un rancho y en cada uno habitan dos

    familias una a una banda y otra a otra y el fuego de estambos esta en medio:

    duermen en unas redes que los espaoles llaman hamacas las quales atan enunos palos que quando haen las casas dejan a proposito y estan tan juntas y

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    11/94

    11

    entretejidas las hamacas de noche que en ninguna manera se puede andar por lacasa. Tienen por los lados tapia franesa y cada aposento tiene dos puertas una

    de cada lado pero no tienen ventanas. no tienen puerta ni caja ni cosa cerrada.Todo esta patente y no ay quien toque a cosa de otro. Suspoblacionesantesdereduirseson pequenasporquecomo siemp resiembran en montesqu ierenestar pocosporque no se les acaben y tambien por tener suspescaderos ycaaderosacomodados (MCA, pp. 166-167, destaques nossos).

    A situao de vida indgena apresentada pelas passagens citadas apresentava-se

    como antittica s conc

    alvo de diversas intervenes coloniais na procura de transformar seus costumes e

    mesmo escraviza-los.

    1.3. Os Guarani e a realidade colonial

    Nos trs sculos seguintes chegada do europeu, a histria dos povos Guarani

    ser marcada por uma forte presena cristianizadora missionriajesutica, pelo assdio

    de "encomenderos" espanhis e por ataques de bandeirantes portugueses. Para

    jesutas, os ndios eram objeto de catequese, almas a serem salvas para Cristo; para

    "encomenderos" vindos de Assuno, e bandeirantes, vindos de So Paulo, os ndios

    em espec ial os Guarani representavam fora de trabalho escravo, nica riqueza

    encontrada nesta regio americana.

    A literatura (cf. MCA 1951) permite identificar cinco grandes subgrupos

    Guarani na chegada do europeu (v. Mapa 1). Os C A R IO S, localizados nas

    proximidades do Rio Paraguai e cidade de Assuno (1537), os TAPES, no atual Rio

    Grande do Sul e adjacncias e os P A R A N , assentados nas proximidades do rio de

    mesmo nome, foram rapidamente dizimados. Mais ao norte, entre o Rio Mbotetey, atualMiranda, e o Rio Apa, estavam localizados os Guarani da provncia do I T A T I M que

    viriam a se constituir nos atuais Pa-Tavyter ou Kaiowa (v. Meli et Alii 1976; Susnik

    1979-80; Thomaz de Almeida 1991). Um quinto subgrupo Guarani colonial, que o que

    nos interessa aqui, ocupava a Provncia paraguaia do G U A I R A, aqui considerados

    " ascendentes " dosatuaisGuarani andeva queconfiguram a comunidadede Yvy

    Katu.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    12/94

    12

    bandeirasA "Provncia del Guair" fazia parte do territrio paraguaio e abrangia os atuais

    estados brasileiros de Santa Catarina, Paran, Mato Grosso do Sul e So Paulo.

    Localizava-se entre "os rios Paranapanema, Paran, Iguau e a indeterminada linha

    demarcatria que dividia as terras portuguesas e espanholas, imposta pelo Tratado de

    Tordesilhas, correspondendo, em rea, aproximadamente, 85% do atual territrio

    ocupado pelo Estado do Paran" (Blasi, 1977: 150). Antes e depois do europeu, eram

    terras ocupadas por populaes Guarani (cf. Blasi 1977: 153; v. Cardoso 1969 e MCA

    vol. I) que chegavam, em 1557, a aproximadamente "quarenta mil fogos", (cf. Perasso,

    16:1987) alcanando perto de 200.000 indivduos.

    Assim como a Provncia do Itatim, o Guair tambm adquiria, na situao

    histrica que se configurava no final do sculo XVI e incio do XVII, funo estratgica

    e importncia geopoltica de destaque. Para espanhis era via de acesso entre Assuno

    e a Europa, assim como para estreitamento das relaes com o Brasil; controlada, a

    regio propiciaria defesa contra o avano paulista rumo a oeste, razes pelas quais

    colonos espanhis investem na ocupao desses espaos para configurao da nova

    colnia e na explorao do trabalho indgena, destacando-se o fato de que era esta a

    nica riqueza disponvel em toda a regio sob influncia de So Paulo/So Vicente, de

    um lado, e Assuno, de outro. O prprio governador do Paraguai "faria uma excurso

    subindo o Rio Paran, ultrapassando o Grande Salto de Iguau [onde] firmou aliana

    com os caciques Guarani locais, repartindo-os depois em 'encomiendas' de ndios"

    (Gadelha, 1981: 82). No sentido de dominar a regio, os espanhis criam as vilas de

    Ontiveros e Ciudad Real, nas proximidades da foz do Rio Piquiri, e fundam (1576) a

    Vila Rica do Esprito Santo, na foz do Iva com o Corumbata. Certamente que aspretenses expansionistas dos espanhis no passaram despercebidas aos paulistas. No

    segundo quartel do sculo XVII, estes "inquietavam-se com os encomenderos que

    chegavam s proximidades da vila (SP) para se servirem de ndios", (Belmonte, 1948:

    151) principalmente aps a fundao de Villa Rica.

    Os padres jesutas, por sua vez, acompanharo esse interesse pelo Guair. Em

    1603 o governador do Paraguai, "renunciando a los medios militares, propuso el envio

    de misioneros que redujeran los salvages por la predicacin religiosa" (Garay in

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    13/94

    13

    Gadelha, 1980:30). Esperava-se da Cia. de Jesus o mesmo desempenho de outras ordens

    religiosas atuantes na Amrica espanhola. Dentro do modelo econmico hispano-

    americano, as redues religiosas deviam facilitar o cumprimento das "encomiendas"

    servindo de depositrios de ndios, abastecendo o mercado de fora de trabalho escravo

    sobre o qual se apoiava o modelo econmico. Entre 1608 e 1768 a Cia de Jesus

    implantou dezenas de redues nas "provncias" do Guair, Paran, Itatim e Tapes.

    No Guair fundaram as redues de San Igncio e Nossa Senhora de Loreto, s

    margens dos Rios Paranapanema e Tibagi. Juntas, essas misses abrigavam perto de

    10.000 Guarani em 1614 (cf. Gadelha, 1980). A partir de Loreto, percorreram bacias e

    vales do Tibaxiva (Tibagiba), Pirap e Paranapan (Paranapanema) e encontraram 23

    ajuntamentos Guarani, o mais distante a 80 lguas (480 km).Mas os jesutas no corresponderam s expectativas desse modelo econmico e,

    "na medida em que as redues foram sendo implantadas, os religiosos revelaram

    facetas contrrias ao ideal colonial, despertando sentimentos de averso nos hispanos

    paraguaios" (Thomaz de Almeida, 1991:10). O projeto jesuta, apesar de "reduzir e

    catequizar", contrariava o modelo colonial ao impedir o fluxo de mo de obra escrava,

    minando "a base sobre a qual se estruturava a economia colonial e [colocando] em risco

    o futuro dos colonos". (cf. Thomaz de Almeida 1991:10; v. Gadelha 1980; MCA 1951),o que acarretou uma ferrenha oposio de "encomenderos". Em Ciudad Real e Villa

    Rica as redues jesutas bloquearam o "descimento" de aproximadamente 40.000

    ndios, um potencial econmico respeitvel.

    As redues "nasceram a partir da situao de encomienda -

    encomienda" (Meli 1986: 119); desempenharam, com efeito, o papel esperado, porm,

    no para os colonos espanhis, mas sim, posteriormente, tornando-se tal qual "viveiro

    de ndios cevado pelos padres" (Cassiano Ricardo 1970:280), sendo til apenas aosbandeirantes paulistas (cf. Thomaz de Almeida, 1991).

    A busca de ndios por "encomenderos" espanhis nas proximidades de So

    Paulo, num contexto possessrio de territrio apenas parcamente definido pelo Tratado

    de Tordesilhas (1494), teria sido um dos motivos da organizao das bandeiras. Em

    1628 Antonio Raposo Tavares e Manuel Preto dirigiro a primeira bandeira destinada

    ao Guair contendo 900 paulistas e dois mil ndios (cf. Belmonte 1948); antes de 1630

    "los portugueses de So Paulo asoladores de estas tierras destruyeron a la dicha

    Provincia del Guair" (MCA 1951, Vol. II: 31).

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    14/94

    14

    Os povos indgenas do Guair foram sensivelmente afetados pela presena

    europia, "parte muerto con extraordinarias crueldades a manos de los portugueses, y

    sus indios Tupis, parte consumido de hambre, huyendo por los montes, parte llevado en

    colleras y cadenas..." (Anais do Museu Paulista, 1925). No Guair, "encomenderos"

    teriam apresado entre 200.000 e 1.000.000 de indivduos Guarani; os jesutas teriam

    reduzido perto de 50.000 e os bandeirantes levado perto de 60.000 (cf. Meli 1986); s

    o "assalto de 1629 [ao Guair] teria custado a liberdade de mais de 50.000" (Taunay

    1951, Vol. I: 61).

    Ao findar o sculo XVII e com a descoberta de pedras e metais preciosos no

    Mato Grosso, os ndios deixam de atender os interesses dos planaltinos. O carter das

    expedies paulistas mudar substancialmente, encerrando um "ciclo despovoador"

    interessava a predao de ndios, transformando o perfil poltico, administrativo e

    econmico da colnia. Os ndios da regio passaro a ser importunados apenas quando

    deles se necessita ou quando constituem obstculo aos planos do colonizador (v.

    Thomaz de Almeida 1991).

    1.3.2. "Redescoberta" dos Guarani

    O Tratado de Madrid (1750), entre Portugal e Espanha, operou significativas

    mudanas nas relaes entre as duas metrpoles e, conseqentemente, na Amrica

    colonizada. Modificou fronteiras e deu condies polticas para a expulso de jesutas,

    acarretando intensa mobilizao dos Guarani estruturados nas "redues" e o

    redimensionamento da realidade daqueles que no haviam sido "reduzidos". Foi

    visando redefinir a fronteira entre Brasil e Paraguai. Embora de carter genrico, essas

    expedies permitiram o ressurgimento de informaes sobre os Guarani, depois de

    dcadas sem registros conhecidos de sua distribuio territorial. Os dirios da Comisso

    mencionam vestgios dos ndios montezes, aqueles habitantes dos "montes" (em

    espanhol entendido como floresta), vales e afluentes dos Rios Paran, Iguatemi,

    Amambai, Dourados, Brilhante, Apa; todos no MS atual. Nos dirios da expedio

    relativos a novembro de 1754 se dizia:

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    15/94

    15

    itante por aqui, so os Montezes, hegente a p, vivem em os bosques, no duvidamos, que seria sua habitao esta

    montanha, e assim no tnhamos suspeita deles seno quando se entrava entre os osso).

    No ms seguinte, em dezembro, a mesma comisso assim relatava:

    havio visto, e relao seguinte. Navegro gua a baixo pelo Aguarahy desde

    onde estavamos acampados todo o dia 9, (...) Achro caminhos encontrro

    (...)

    O dia 12 viero ao acampamento os geografos que havio tomado a

    vertente referida acima para por ella sahir ao Rio da Demarcao. (...) seu fundo

    ou cho he aspero, e desigual; nestesitio viro rastros de ndios Montezes

    frescos, e alguns roados em que tinho postos laos para a caa deanimaes; bem conhecro que no estava longe alguma toldaria ou ranchariadelles, e assim hio com grande cuidado, e maior desejo de colher alguns, para

    informar-se do que solicitavo neste labyrinto. O dia 11 o conseguiro: sahro

    4 Indios dos bosques visinhos a hum roado (...).

    (Academia Real de Cincias, 1841, p. 533, destaque nosso).

    pelos sculos seguintes

    a denominao mais difusa para indicar as populaes que viviam nas regies limtrofesentre Brasil e Paraguai, sem conseguir perceber as peculiaridades culturais e sociais dos

    diferentes subgrupos guarani que habitavam aquelas regies. Esse ndios eram

    chamados de Caingua, Ka'aiwa, Kayua, Kayov, Kaiow ou outras equivalncias

    fonticas e ortogrficas do termo Guarani ka'a (mato) gua (do, de), "aquelesqueso

    ou pertencem ao mato" (v. Fonseca 1937; Bartolom 1977; Thomaz de Almeida

    1991).

    Quase um sculo depois da demarcao da fronteira, uma expedioencomendadapelo Baro de Antonina com o objetivo de encontrar uma rota apropriada

    que comunicasse Mato Grosso com Paran, entrou em contato com os indgenas em

    questo. Vejamos a descrio que fornece daquele encontro, ocorrido em 1848, um dos

    encarregados daquela viagem, o sertanista Joo Enrique Elliot:

    encontrmos muitos vestgios de ndios dobrando uma volta, os avistmos de repente lavando-se no Rio: Seriam

    cincoenta, e correram para o mato da barranca, ficando alguns mais corajosos

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    16/94

    16

    por verem smente uma cana com quatro pessas dentro. Confiados na fortunaque nos tm seguido passo a passo em todas estas exploraes, nos

    approximmos praia, e saltando em terra os abramos, e os brindmos commantimentos, muitos anzes, facas e alguma roupa que traziamos de resto. Eram

    es que encontrmos nas margens do Rio Ivahy

    em 1845, tinham o labio inferior furado, e traziam dentro do orificio umbatoque de rezina, que primeira vista [parecia] alambre, cobriam as partes queo pudor manda esconder com panno de algodo grosso; os cabellos eram

    compridos e amarrados para traz (...) Suponho que elles tm relaes com agente do estado do Paraguay, porque tendo elles no pescoo e nos braos alguns

    -me castilhano eapontaram par o rumo de S.O. (...) Fallei algumas palavras de lingua guarany, e

    entenderam-me perfeitamente (...) Estesndiosparec iam deboa ndole,f ce isdereduzir,epodem ser muito teisaosnavegantes: resta queo governo dboas providencias a respeito, para que os no hostilise, matando uns,captivando outros,eaffugentando o resto

    Dois anos depois, uma outra expedio encomendada pelo Baro de Antonina e

    comandada pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, embrenhando-se no Rio

    Iguatemi, fornecia mais informaes sobre os ndios por ele encontrados:

    chamado, porque as casas acham-se disseminadas e como por bairros.

    Entramos em um rancho coberto de folhas de caet, sendo outros cobertos defolhas de jeriv.

    A alda collocada entre as suas roas ou lavouras, que abundam

    especialmente em milho, mandioca, abobora, batatas, amendoins, jucutup,

    cars, tingas, fumo, algodo, o que tudo plantado em ordem; e toda poca

    prpria fora a sementeira (...)

    (...) os terrenos que habitam vo at o Iguatemi junto Serra deMaracaj deve seguir sempre pela terra firme e boa, desviando os pantanos; pela margemd

    grande agua, mas que encontrando por ahi os indios cavalleiros, de quem se

    1850, pp. 320-321, destaques nossos).

    As viagens realizadas pelos dois sertanistas forneceram informaes que

    despertaram interesses nos governantes da poca, suscitando avaliaes morais e

    polticas sobre esses ndios. Em 1848 o Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato

    Grosso, falando dos indgenas que habitavam as regies banhadas pelo Rio Iguatemi e

    seus afluentes, denunciava o pouco conhecimento que se tinhasobre aquela populao e

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    17/94

    17

    a necessidade de com ela realizar contatos duradouros. Em uma passagem do seu

    relatrio, ele se exprime do seguinte modo:

    Rio Iguatimy; consta com tudo quehebastantenumeroza deindolepacf ica,dada a vida sedentaria e agricola, dotada de constncia , qualidaderarissima ent re os Indigenas. Continuando a irem se povoando os nossosterrenos do Sul de Miranda ho de tomar incremento as nossas relaes com os

    Cayvs e hedeesperar quea sua cathequezese ja to fcil como vantajoza(Relatrio de Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato Grosso, 1848,

    destaques nossos).

    1870 proclamando a derrota do Paraguai, dando lugar a uma ulterior reviso das linhasde fronteira. Em uma situao ps-belica, que instaurava um clima de claro controle

    territorial na faixa de fronteira, o presidente da provncia de Mato Grosso assim se

    exprimiu sobre a presena dos indgenas naquelas regies:

    habito o territrio inculto da Provncia, entretanto, creio que no haver

    exagerao em elevar esse nmero de 50.000, porque s as numerosas tribus

    dos Caiugus, Coroados e Guaranys, provvel que excedo aquellacomputao.

    No estado, porm, em que vivem, so completamente inuteis eprejudiciaes sociedade pelas suas frequentes correrias, trazendo

    continuadamente em sobressalto os lavradores do interior da Provncia.

    C reio que o nico meio de chamal-os civilisao ser o dapersuao, procurando se modificar os seos habitos por intermedio deM issionrios que possuidos da verdadeira f christ , se internem nossertes com o fim de aldear e catechisar esses infeli zes Presidente da Provncia de Mato Grosso, 1879, p. 33, destaque nosso).

    Finda a Guerra do Paraguai e aps a redefinio dos limites internacionais com

    aquele pas, o governo federal ofereceu, em regime de concesso, imensas pores de

    terra para a explorao da erva-mate ao provisionador da comisso de demarcao, o Sr.

    Thoms Larangeiras, que funda, em 1892, a Companhia Matte Laranjeiras (v. Correa

    Filho, 1969). As regies onde a Cia. operava coincidiam com os lugares onde os ndios

    Kaiowa e andeva habitavam. A Cia., no tendo como objetivo a posse da terra, no

    tentou expulsar os ndios; muito pelo contrrio, estabeleceu com estes relaes detrabalho, haja vista tambm os conhecimentos disposio do grupo indgena sobre o

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    18/94

    18

    manejo dos ervais. Nas primeiras dcadas do sculo XX a Cia. perdeu o monoplio

    sobre essas terras, sendo que muitos ervateiros passaram a trabalhar por conta prpria,

    muitas vezes estabelecendo parcerias com a prpria Matte Laranjeiras, que lhes garantia

    a distribuio da erva fora do mercado regional.

    O fim do monoplio acarretou a perda dos poderes conferidos Cia. que, por

    dcadas, obstruiu a entrada e impediu a permanncia de colonos ou concorrentes nas

    reas exploradas (cf. Thomaz de Almeida, 1991). Deste modo, nas primeiras dcadas do

    sculo XX, paralelamente a essa transformao das atividades extrativistas, e de modo

    significativo, a regio foi palco de uma incipiente imigrao de colonos provenientes do

    sul do pas, que passaram a ocupar parcelas de terra implementando progressivamente a

    pecuria. Foi assim que o cone sul do Mato Grosso do Sul, que por longo tempo foihabitado unicamente pelos ndios Guarani, constituindo seu territrio, passou a ser

    sistematicamente desapropriado pelos brancos, seguindo uma lgica neocolonial

    favorecida pelas polticas de estado atravs das prticas indigenistas oficiais.

    1.4. SPI e FUNAI: indigenismo de integrao

    Trabalhando especificamente sobre as polticas indigenistas, Lima (1987) assim

    se exprime a respeito das aes efetuadaspelo estado em face dos ndios:

    projetos indigenistasvisavam, ainda, atingir trs objetivos:(a) abrir terras colonizao do interior, no sentido de viabiliza-la, ao pr fim

    aos atritos entre os ndios e brancos; (b) realizar, tomando a expresso de Jorge

    conferir- -175).

    Em um outro trabalho (1995), o autor coloca em evidncia como o primeiro dos

    objetivos citados justificava plenamente as ltimas trs letras da sigla original adotada

    pelo rgo tutelar, que era SPILTN (Servio de Proteo aos ndios e Localizao de

    Trabalhadores Nacionais). Logo aps (1918), o Servio tornou-se apenas SPI.

    Para pr em prtica este primeiro objetivo, o SPI devia, portanto, territorializar

    os ndios. Como justamente define Oliveira, terr itorializao

    insofismvel) um territrio bem determinado a um conjunto de indivduos e

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    19/94

    19

    No caso dos Guarani do atual Mato Grosso do Sul, estas prticas levaram ao

    aldeamento dos ndios, obrigando-os a residir em espaos restritos com fronteiras fixas,

    seguindo a lgica ocidental e neocolonial.

    Uma das primeiras medidas do SPI foi criar a 5 Inspetoria Regional, com sedeem Campo Grande, para atender populaes indgenas do sul dos estados do ento Mato

    Grosso e de So Paulo. Relatrios das primeiras dcadas do sculo XX revelam que

    entre Ponta Por e Guair (extenso de mais de 600 km), havia, "espalhados pelos

    ervais, semresidncia fixa, uma quantidade imensa de indivduos Caius" (Estigarribia

    1928)

    Apesar do esforo do SPI em reservar e garantir terras para essa populao, a

    viso positivista de integr-los sociedade nacional definiu procedimentos geradoresdos problemas fundirios que vive hoj

    apropriado. As terras reservadaspelo Estado e que depois se tornariam

    os Postos Indgenas, eram entendidos como o lugar onde pudessem tornar-se produtivos

    (Idem). Havia, assim, a suposio de que os ndios assentados "evoluiriam" at a

    "assimilao" total "civilizao". A "aldeia" como concebida pelo SPI no era "umlugar ocupado por ndios", seu habitat ou lugar de assentamento tradicional, mas sim

    uma rea escolhida por funcionrios (Relatrio de Inspetoria 1924) que podia ou no

    coincidir com a ocupao dos ndios. A "aldeia" concebida pela poltica indigenista

    oficial constitui-se, assim, numa unidade administrativa, sob controle de funcionrios de

    governo. Os critrios para sua escolha (cf. idem) eram: qualidade da terra, salubridade

    da regio e vias de comunicao, e, como dito, o lugar era definido por funcionrios,

    sem consulta aos ndios.Os resultados dessa poltica revelaram-se insatisfatrios, pois a "prostituio que

    se nota em to alta escala nas aldeias fundadas por ns, a conseqncia forosa do

    aldeamento, que (traz) vida sedentria (...) homens que no tm as artes necessrias

    para viver nela" (Magalhes 1913:142). Apesar dessa constatao, a ao indigenista de

    Estado, inclusive aps 1967 com a FUNAI, persistiu na mesma linha desfavorvel aos

    ndios, que consistiu em no reconhecer ocupaes e concepes territoriais tradicionais

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    20/94

    20

    Acreditava-se que as oito reas reservadas pelo SPI at 1928 respectivamente

    Amambai (Decreto n 401 de 10.05.1915), Dourados (Decreto n 404 de 03.09.1917),

    Caarapo (Decreto n 684 de 20.11.1924), Jakarey (Porto Lindo), Pirajuy, Ramada

    (Sassor), Takuapiry e Limo Verde (Decreto n 835 de 14.11.1928) , para os Kaiowa

    e andeva do extremo sul do Mato Grosso, seriam suficientes para solucionar questes

    fundirias. Alm disso, apesar dos decretos reservarem 3.600 ha (cf. Correa Filho,

    1924) para cada uma das reas indgenas reservadas pelo SPI, j no procedimento de

    demarcao excetuando-se os casos de Dourados e Caarap todas sofreriam

    drsticas redues em funo de arranjos entre agentes de governo e interesses de

    colonos e empresas regionais.

    Para os andeva localizados no extremo sul do MS aqui focados, foram criadasas reserva de Pirajuy, com um total de 3.600 ha, demarcada, porm, em 1930, com

    2.188 ha, e Jakarey (Porto Lindo), tambm identificada com 3.600 ha, demarcada com

    2000 ha, e atualmente medindo 1648 ha. Ambas foram escolhidas por Pimentel

    Barboza, funcionrio do SPI, em viagem de reconhecimento da regio, em 1927. Em

    seu relatrio dirigido ao inspetor interino da 5 Inspetoria Regional do SPI, o Sr.

    Estigarribia, assim se pronunciava Barboza sobre Pirajuy:

    Escolhi, tambem, na regio de Ipehum, outra area de terras destinadasaos indios, que em numero superior a quinhentos, vivem nas margens dos riosPirajuy, Taquapery, Aguar e outros.

    Esses indios esto em servios de herva de Marcellino Lima e no tmalda propriamente dita. Formam pequenos nucleos, espalhados, quereunidos em uma s propriedade formaro um numero elevado talvez amaisdemi l,ser eunidosforem todos.

    So limites dessas terras escolhidas: Ao Nascente uma matta devoluta;

    ao Norte terras de matta devoluta; ao Poente da cabeceira do Corrego Pirajuy,onde foi ter o limite Norte, uma linha recta que v ter linha divisoria da

    republica do Paraguay; ao Sul pela linha divisoria da republica do Paraguay.

    As terras acima constam de matta de cultura e herval, e devem ter a

    7, p. 24, destaques nossos).

    Com relao reserva de Jakarey (Porto Lindo) a passagem que segue nos

    interessa aqui, sobremaneira; trata-se de fonte documental que explicita como esta rea

    teria sido concebida pelo Estado brasileiro, e que, aliada s descries e fontes orais de

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    21/94

    21

    indgenas e regionais, torna irrefutvel a ocupao andeva do atual tekoha do Yvy

    Katu:

    j disse, h muitos ndios dispersos pelos hervaes e que necessitam de terrasonde possam se localisar e cuidar de suas lavouras.

    Por isso,escolhi, tambm,na margem direita do Iguatemy uma areade 3.600 hec ta res, com os seguintes limites: ao Nascente pelo cr rego o doporto desse nome; ao Norte pelo rio Iguatemy; no Poente pelo Corrego (idem: p. 71, destaques nossos)

    O relatrio de Pimentel Barboza e do Inspetor do SPI Estigarribia (1928), que

    nele se baseava, relatam a presena de ndios tidos como dispersos. Na tentativa de dar

    tutor no respeitou nem considerou padres tnicos de ocupao do habitat tradicional

    (v. parte II), e seguindo a "ideologia indigenista de aldeamento", mobilizou as famlias

    indgenas "dispersas" sobrepondo-as nas nicas duas reas reservadas para toda a

    regio.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    22/94

    22

    1.5. Sistemtica de desapropriao de terras Guarani no MS

    Com o fim do monoplio de explorao do mate pela Cia. Matte Larangeira a

    partir da metade da dcada de 1910, tem incio uma sistemtica dedesapropriaode

    terras ocupadas pelos Guarani no sul do atual MS, concomitante ao aumento no nmero

    de colonosos primeiros ttulos de propriedade so concedidos a partir de meados dos

    anos 1920. Os Guarani, uma vez mais em sua histria, procuram distanciar-se do karai

    (branco) e "esconder-se" nas matas existentes em seu territrio; com a implantao de

    empresas agro-pecurias, estas florestas sero derrubadas e os Guarani paulatinamente

    "redescobertos". Os Guarani so apreciadores das florestas (), tudo o que estas

    representam e contm, seu entorno e suas representaes simblicas. Tanto a literatura

    como a experincia prtica junto a eles revelam uma tendncia permanente e contumaz

    na busca do isolamento e distanciamento tanto quanto possvel do karai(branco). So

    inmeros os exemplos, contemporneos e histricos, do surpreendente que ao karai

    (branco) encontrar Guarani onde supunha no existir. Os que se tornam proprietrios

    podem mesmo reconhecer que a regio territrio indgena, mas argumentam,

    invariavelmente, que em suas terras "nunca houve ndios" (v. Thomaz de Almeida,

    1984, 1985, 1985a). A "descoberta" constatada com a derrubada da mata. Os

    fazendeiros, ao encontrar ndios, ou os expulsam de imediato ou utilizam sua fora detrabalho em atividades no especializadas e mal remuneradas como derrubadas de

    matas, corte de postes, plantao de pastos e outras atividades no especializadas que, a

    rigor, beneficiariam apenas as terras indgenas que se tornaram fazendas.

    Verificam-se diferentes modalidades para retir-los de terras literalmente

    ocupadas h sculos. O espectro dessa sistemtica abrange de aes no beligerantes e

    oficiais de despejos e traslados, at expulses violentas com homens e armamentos. A

    expulso pode vir precedida de avisos para que os ndios saiam, e de ameaas de quesero retirados fora. Se ineficazes, seguem-se atos de violncia, como visitas de

    homens armados e eventuais espancamentos ou humilhaes para demonstrar a

    veracidade das intenes. Muitas vezes os ndios perambulam dentro dos espaos de

    ocupao tradicional que, no entanto, se tornaram fazenda (v. item 2.3), mudando-se de

    um lugar para o outro na tentativa de driblar o fazendeiro e permanecer na terra. Diante

    da resistncia dos ndios procede-se expulso: indivduos remunerados pela fazenda e

    no raro armados, constrangem ou foram, homens, mulheres e crianas a subir emcaminhes que os despejaro nas proximidades de algum Posto Indgena ou na beira de

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    23/94

    23

    estradascomo ocorreu com os Kaiowa do Yvykuarusu, antiga Fazenda Paraguasu, os

    quais foram literalmente despejados dos caminhes de gado que os havia transportado

    beira da estrada que liga Pedro Juan Caballero a Assuno, no Paraguai (v. Thomaz de

    Almeida, 1984).

    O Estado brasileiro participou dessa sistemtica ao pretender "aldear ndios

    dispersos". A FUNAI, at no muito tempo, ao deparar-se com ndios "desaldeados",

    invariavelmente se prontificava a convenc-los a mudarem-se para Postos Indgenas,

    sem questionar a origem das famlias encontradas, subtraindo seus direitos terra,

    corroborado com os despejos de comunidades, construindo e legitimando uma

    sistemtica de desapropriao de terras Guarani.

    Segundo o senso comum na regio, o direito dos ndios se reduz s minsculas"terras reservadas", nas "aldeias" ou PIs da FUNAI. Esta barreira, construda pelo

    pensamento regional, at pouco tempo inibia intentos dos ndios procurarem seus

    direitos. Valia o argumento de que "no era terra indgena" e que ndios deveriam

    dirigir-se aos PIs.

    Esta dinmica, contudo, vem sendo rompida pelos ndios. De 1977 para c (cf.

    Thomaz de Almeida, 1984, 1985, 1985a, 1991) constata-se uma pertinaz disposio dos

    Guarani em garantir suas terras, no s relutando em sair de onde esto como tambm

    mobilizando-se, a partir de onde esto, para recuperar terras que foram obrigados a

    abandonar no passado. O acompanhamento desse processo tem possibilitado desvendar

    conceitos Guarani de "terra", "comunidade", "territrio", "mato" e outros, bem como

    conhecer melhor suas atuais formas de organizao social, abrindo, por sua vez, a

    possibilidade de reconsiderar procedimentos de agncias indigenistas, oficiais ou no,

    frente temtica fundiria desta populao. Nos ltimos vinte anos, doze reas

    tradicionais Guarani foram recuperadas.

    1.6. Algumas consideraes sobre os fatos histricos e as fontes escritas

    No correr desta primeira parte do relatrio foram apresentadas informaes

    procedentes, em sua maioria, de fontes documentais histricas muito heterogneas. As

    fontes escritasespecialmente aquelas produzidas por viajantes ou agentes missionrios

    e de governo que no passado transitaram pelos territrios indgenas , antes de serem

    utilizadas, devem ser cuidadosamente analisadas. Como foi possvel ver,

    freqentemente nas crnicas das viagens se descrevem as populaes indgenas

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    24/94

    24

    encontradas com a lente da poca e a partir dos interesses dos organismos que

    financiaram as expedies. Missionrios, militares, exploradores, sertanistas e

    indigenistas, exprimem com freqncia juzos e consideraes analticas sobre o objeto

    das suas observaes, que manifestam uma clara viso etnocntrica, projetando as

    prprias categorias sobre a realidade social e cultural observada. A propsito, so muito

    teis as seguintes advertncias de Oliveira:

    etnografia moderna (e no corresponda a uma induo do prprio cronista ou do

    pesquisador atual), necessrio que ela seja localizada em um eixo que abranja

    tempo e espao. Isso requer efetivamente deixar o material falar sobre aquilo

    que est sendo observado, as situaes sociais concretas, deixando de lado tanto

    as generalizaes duvidosas feitas pelos prprios cronistas, quanto a pretensodo antroplogo de reunir informaes procedentes de diferentes tribos e

    diferentes momentos num monstro mecnico e artificial (a sociedade ou a

    -89)

    Considerando tais advertncias, procuramos oferecer ao longo da argumentao

    uma seleo de trechos1que reputamos significativos para salientar as descries feitas

    em vrias pocas do modo de distribuio espacial e as atividades desenvolvidas pelos

    Guarani, assim como, paralelamente, sobre as atitudes manifestadas pelos narradores

    sobre aqueles indgenas.

    Finalizando esta parte histrica, nos parece oportuno sumarizar as caractersticas

    das atividades e dos modos de habitar relativos a esses ndios, colocando em evidncia,

    atravs de uma viso de conjunto, suas importantes implicaes.

    As passagens selecionadas e aqui apresentadas ilustram com uma certa clareza a

    continuidade temporal de ocupao guarani nas regies limtrofes entre os atuais

    estados-naes Brasil e Paraguai. Seguindo simplesmente as descries feitas pelosautores daquelas viagens (como aconselhado por Oliveira, citado anteriormente),

    emergem as seguintes caractersticas:

    1) Estes eram sedentrios e agricultores. Utilizavam o mtodo da coivara, que

    consiste em abater as rvores, queim-las, e com as prprias cinzas fertilizar o solo.

    Uma vez que a fertilidade do solo diminui em decorrncia do seu uso, d-se um

    1 Parte das passagens selecionadas so apresentadas tambm por Monteiro (1981), numa rica e

    interessante coletnea de fontes histricas sobre os Guarani do Mato Grosso do Sul.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    25/94

    25

    deslocamento para outro lugar, deixando-se aquele campo em repouso por alguns anos

    para que recupere as suas caractersticas originrias atravs do seu reflorestamento

    espontneo. Assim, posteriormente se o reocupa, recomeando o ciclo descrito antes.

    Esta atividade agrcola ainda a base da subsistncia dos Guarani, embora geralmente

    seja aplicada com variantes devido impossibilidade de cultivar em reas florestais

    como no passado. No obstante isto, a lgica da rotao permanece a mesma.

    2) Os Guarani viviam em grandes casas onde se alojava toda uma famlia

    extensa. Estas casas distanciavam-se umas das outras, uma, duas ou mais lguas2. No

    caso das descries mais recentes, a caracterstica da habitao grande j no aparece

    como distintiva de um modo de habitar. Na passagem de Lopes anteriormente citada

    (1950: pp. 320- casas acham- parece indicar uma forma de distribuio similar atual. Neste caso, as habitaes das

    famlias nucleares distribuem-se em torno da residncia do chefe da famlia extensa,

    ocupando uma determinada regio ou parte desta.

    No item 2.2. dedicaremos a ateno a explicitar as caractersticas e as

    implicaes do modo de distribuir-se no espao, fato fundamental para compreender

    como a comunidade indgena em questo concebe o territrio.

    Existem ainda outros dois elementos significativos que emergem das fontes

    citadas, provenientes dos juzos manifestados pelos narradores. O primeiro refere-se

    quilo que descrevem como no correspondendo imagem de aldeia presente em seus

    pensamentos. De fato, tanto Lopes em 1850, quanto Pimentel Barboza em 1927

    conforme citado acima

    O segundo elemento, ligado de certo modo ao primeiro, constitudo por uma

    prtica colonial e neocolonial que pretende, ao colocar os indgenas todos juntos,

    obrig-los a assumir modos de vida e de distribuio espacial que so prprios aos

    povos ocidentais. Nas passagens de Montoya (1639), Elliot (1848), do Relatrio de

    Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato Grosso (1848), do Relatrio de Presidente

    da Provncia de Mato Grosso (1880) e de Pimentel Barboza (1927), v-se claramente

    expressas estas intenes.

    2Uma lgua corresponde a 6 km.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    26/94

    26

    A ocupao sistemtica das regies de fronteira aqui em jogo, a interveno do

    rgo indigenista oficial do estado brasileiro do qual Pimentel Barboza era um

    representante, e as atividades missionrias implementadas naqueles lugares trazem luz

    uma tentativa de reduzir aqueles indgenas a modos de vida diversos. Embora os xitos

    nesta direo tenham sido escassos, os efeitos sobre os Guarani foram significativos, j

    que favoreceram elaboraes culturais especficas dos mesmos como fruto dos

    processos de terr itorializaopelos quais passaram, elaboraes estas que sero objeto

    de ateno da segunda parte do presente relatrio.

    No prximo item nos dedicaremos ao caso especfico das famlias andeva que

    reivindicam os espaos por elas ocupados tradicionalmente e que so considerados

    exclusivos atravs da categoria nativa detekoha

    3

    1.7. Da criao da reserva indgena Jakarey (Porto Lindo) configurao

    do tekoha de Yvy Katu

    1.7.1- Fontes escritas e depoimento de regionais sobre a terra dos ndios

    Entre os espaos escolhidos por Pimentel Barboza (v. item 1.4) para reservas

    indgenas havia, como vimos, um localizado na margem direita do Rio Iguatemi.

    Confrontando a descrio daquele indigenista com o Croqui 1 e o mapa da A.I. Porto

    Lindo (v. Anexo 4), verifica-se que os limites definidos por ele no correspondem aos

    que cercam a atual reserva. Constata-se que os procedimentos demarcatrios realizados

    posteriormente no se orientaram pelas informaes e limites apresentados por PimentelBarboza, ocasionando no s uma reduo drstica na superfcie da rea Indgena, mas,

    principalmente, provocando o afastamento dos grupos familiares que residiam nas

    cabeceiras e ao longo dos crreg

    mencionados pelo indigenista em suas primeiras intenes. Calculando-se que a terra

    devia medir, segundo os padres do SPI, 3600 ha, tendo como limites a oeste o corrego

    Guasori, a sul terras devolutas e a norte o Rio Iguatemi, para obter essa superfcie, o

    3Sobre esta categoria nativa e sobre seu uso contemporneo como categoria que expressa espacialidade

    ver o item 2.3.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    27/94

    27

    corrego indicado por Pimentel Barboza como limite leste, no podia que ser o que os

    ndios indicam como Naranjaty, que desemboca num lugar por eles denominado de

    Para poder entender a mudana de posio na formao da reserva indgena, nopodemos limitar-nos a considerar as arbitrariedades na escolha dos lugares e sobre as

    dimenses que estes deveriam ter segundo a tica do SPI. No caso da reserva de Jakarey

    (Porto Lindo) incidiu tambm outro fator: a presena na regio de ricos ervais e do Rio

    Iguatemi. Estas terras, ento consideradas devolutas, eram objeto de explorao da erva

    mate por parte de ervateiros do Brasil e do Paraguai, coincidindo com o declnio da

    Companhia Matte Laranjeira, que perdia o monoplio sobre a regio. Trata-se, a rigor,

    de ex-funcionrios da Cia. que passaram a explorar a erva por conta prpria. Dadoimportante a ser considerado o fato de que o escoamento da produo de erva-mate

    era feito, em grande medida, atravs dos cursos fluviais que se tornavam, como no

    poderia deixar de ser, relevantes para a economia regional. Nesse sentido, controlar as

    margens e os portos4desses escoadouros era importante.

    A explorao da erva mate na regio onde foi constituda a reserva Jakarey

    (Porto Lindo) era conduzida pelo Sr. Ataliba Viriato Baptista, ex-funcionrio da Cia.

    Matte. Este ervateiro comeara a explorar os exuberantes ervais das proximidades doPorto Lindo anos antes da formao da reserva indgena, e teve participao ativa na

    definio do local, estabelecendo gestes junto ao SPI e na defesa de seus interesses. No

    intuito de controlar espaos convenientes explorao dos ervais prximos ao Rio

    Iguatemi, Ataliba arquitetoucomo afirmam veementes os ndios para que a reserva

    indgena pretendida fosse delimitada a aproximadamente 5 km de distncia da margem

    do rio, localizando-se mais ao sul do que fora sugerido por Pimentel Barboza. A rea

    escolhida banhada principalmente pelo crrego Jakarey (ver Croqui 1), razo pela qualos ndios referem-se a ela com este nome.

    Apesar da existncia da reserva oficial destinada aos ndios, por dcadas grupos

    macro familiares andeva permaneceram em seus lugares de origem, de onde foram

    sendo progressivamente expulsos.

    4Alm do Porto Lindo, conforme depoimentos dos ndios, entre os crregos Guasori e Jakarey, haviaainda outros dois portos: Porto Novo e Porto Moreno (v. Croqui 1).

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    28/94

    28

    Segundo depoimentos do regional Fabiano Pereira5, nascido em Iguatemi no

    ano de 1923, nas terras exploradas por Ataliba existiam numerosas famlias indgenas

    vivendo, inclusive aps a sada do ervateiro, ocorrida na dcada de 1950. Quando jovem

    este regional, junto com seu pai, transportava boiadas entre o Iguatemi e o Paran para a

    Cia. Matte Laranjeiras, atravessando esses lugares. Durante essas viagens o Sr. Pereira

    constatou a ocupao, por parte dos nativos, das regies que iam do crrego Guasori ao

    Remanso Guasu (v. Croqui 1), escolhendo os ndios, sempre segundo o regional,

    lugares que pudessem garantir caa e pesca. Segundo o Sr. Pereira, quando saiu do local

    o ervateiro Ataliba Viriato Baptista, as famlias indgenas restantes ainda eram

    numerosas, sendo que muitas delas distribuam-se no muito longe da atual ponte no rio

    indicaram ser o Porto Novo (ver Croqui 1). Um documento relativo implementao

    de projetos de desenvolvimento rural em reas indgenas, datado de 1963, enumerando

    no oramento as comunidades Guarani a serem beneficiadas, menciona, alm de Porto

    Lindo, aquelas de Porto Novo e Iguatemi (v. Anexo 3), sendo a primeira

    presumidamente referida justamente aos lugares expostos pelo Sr. Fabiano Pereira (cf.

    Croqui 1).

    Ocorre que, alm dos moradores da reserva instituda pelo SPI, uma enorme

    quantidade de ndios vivia no ento distrito de Iguatemi. No relatrio do funcionrio do

    SPI, Joaquim Fausto Prado, de 1948, consta que, de fato, existiam, na poca, numerosas

    rapidamente ocupadas, sendo os

    de Mato Grosso, que vive fora dos Postos, em terras tidas como devolutas, em reservas

    sem instalaes do SPI e em fazen

    distrito) a estimativa era 1500 ndios. Progressivamente estes ndios foram sendo

    duo dessas famlias indgenas para as reservas

    5A transcrio da entrevista encontra-se em Anexo 2.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    29/94

    29

    da regio, forando-as a se mudarem no s para Porto Lindo como tambm para o PI

    Sassor ou, como conhecida pelos ndios, aldeia Ramada6.

    A prtica de aldeamento compulsrio nessa regio foi, assim, procedimento

    corriqueiro, como apresentado tambm pelo testemunho de outro regional, o Sr.Alexandre Dias7. Este regional trabalhou em Cerrito (v. Mapa 2) contribuindo no

    desmatamento dessa regio. Nesse local, segundo seu depoimento, existiam vrias

    famlias indgenas que depois, na dcada de 60, foram expulsas pelos fazendeiros e

    conduzidas a Jakarey (Porto Lindo), o que contribuiu para o aumento populacional

    dessa exgua reserva. Quando mais jovem o Sr. Alexandre trabalhou tambm como peo

    de Ataliba V. Baptista, e na sua entrevista nos oferece alguns pequenos mas importantes

    detalhes sobre a vida dos ndios nas terras exploradas por esse ervateiro. Segundo oregional, os ndios prestavam servio nos ervais e, ao mesmo tempo, mantinham suas

    prprias atividades agrcolas. Com relao aos locais de moradias dos andeva, nos

    oferece uma descrio similar quela relatada pelo Sr. Fabiano, com os ndios vivendo

    -se a residir apenas

    nos limites da A.I. Jakarey (Porto Lindo). Segundo informao do prprio regional, uma

    das causas da no permanncia de numerosos andeva nesses limites era devida ao fato

    de que a reserva carecia de fontes de gua, indispensveis ao assentamento das unidades

    domsticas .

    De fato, como aconteceu em muitas outras situaes, as tentativas de reduziros

    Guarani a espaos limitados no apresentaram os resultados esperados, j que muitas

    famlias indgenas se mantiveram por muitos anos em seuslugares, seguindo parmetros

    da prpria organizao social e distribuio espacial8.

    Como foi possvel ver, as fontes documentais e os depoimentos de regionais

    deixam clara a massiva presena indgena no antigo distrito de Iguatemi e de modoespecfico nos espaos adjacentes reserva Jakarey (Porto Lindo), reserva esta criada

    justamente para concentrar os indgenas em um s local, com o intuito de liberar as

    6

    N 18 de

    e Santa Ceclia, 7A transcrio da entrevista encontra-se no Anexo 2.8Ver mais adiante item 2.2.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    30/94

    30

    terras tradicionalmente por eles ocupadas, a fim de que fossem tomadas em posse pelas

    frentes coloniais.

    O testemunho dos regionais Fabiano Pereira e Alexandre Dias colocam em

    destaque tambm o fato de que os ndios costumavam viver em todos os lugares ondefosse possvel ter acesso caa, pesca e coleta, assim como a fontes de guas e terras

    aptas para agricultura caractersticas estas de fundamental importncia para se

    entender como esses ndios concebem e se distribuem no espao, bem como

    desenvolvem suas atividades econmicas. Na segunda e terceira partes deste relatrio

    explicaremos em detalhe a importncia dessas caractersticas.

    As descries dos regionais, porm, nos oferecem informaes sobre famlias

    indgenas genricas, no chegando a precisar nomes e lugares onde estas estavamassentadas. Como ocorre normalmente, os regionais, inclusive os que trabalharam junto

    com indgenas (caso do Sr. Alexandre), mantm com estes ltimos, quando muito,

    relaes individuais superficiais. No horizonte cultural destas pessoas, as caractersticas

    da organizao social Guarani no so percebidas, nem de interesse chegar-se a tal

    conhecimento. Por esta razo, as redes de relaes que ligam as diversas famlias

    indgenas, assim como o vnculo que cada uma delas estabelece com a terra, no so

    percebidas, fatos que, ao contrrio, nos interessam aqui sobremaneira. Neste sentido,para poder reconstruir as relaes que se estabeleciam e se estabelecem ainda entre as

    famlias indgenas com os lugares de ocupao tradicional, temos necessariamente que

    nos apoiar nos depoimentos dos prprios andeva, legtimos depositrios da memria

    histrica que lhes diz respeito e sobre as lgicas por eles utilizadas na construo de

    seus espaos territoriais.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    31/94

    31

    1.7.2.- A configurao do tekohaYvy Katu

    Segundo os depoimentos dos indgenas, existiam, antes da formao da reserva

    de Jakarey, numerosas famlias que se distribuam em diversos lugares nas cabeceiras e

    ao longo dos crregos da regio. Por comodidade descritiva denominaremos esses

    lugares de micro-regies, cada uma com caractersticas ecolgicas e recursos naturais

    especficos9. A amplitude dessas micro-regies depender, assim, mais dos limites

    impostos pela natureza (rios e crregos) do que das atividades humanas nelas

    desenvolvidas. Durante o trabalho de campo foram identificadas 12 micro-regies, cada

    uma delas objeto de ocupao tradicional. Entretanto, nem todas elas configuram o

    tekohade Yvy Katu. Vejamos-las na seqncia:

    Micro- - Vivia neste local um importante lder

    religioso (anderu) chamado Gregrio Martins10. Um dos mais antigos do lugar, estava

    cercado de enorme famlia extensa e construra sua casa a aproximadamente 2 km da

    ponte que atualmente cruza o Rio Iguatemi (v. Croqui 1). Parente de Gregrio,

    de descendncia encontra-se reconstruda no Diagrama de parentesco 1. Junto com ela

    moraram nesse local os filhos Eduardo Martins e Maria Luza Martins, esta com seu

    esposo, Fernando Fernandes. Moradores antigos dessa micro-regio eram tambm os

    ascendentes, por via materna, da esposa de Eduardo, como a me, Leonora Benites, o

    pai, Remisio Recarte, que tambm era um importante xam, e o pai da me, Mateo

    9Como ser argumentado na segunda parte deste relatrio, antigamente os ndios no tinham necessidade

    de constituir espaos territoriais bem delimitados e etnicamente exclusivos. Somente a partir das

    condies impostas pela ocupao neocolonial e pela lgica ocidental de subdiviso da terra os ndios

    passam a conceber os espaos onde se estabelecem as relaes comunitrias como espaos fechados,

    embora com dimenses variveis. Este processo de construo territorial leva os ndios progressivamente

    a incorporar essas micro-

    fechados que constituem os atuais tekoha.Estes espaos, uma vez que se encontram numa rea delimitada

    com usos tnico e familiarmente exclusivos, tornam-

    conforme foi definido por Thomaz de Almeida (1991).10Como todo xam Guarani, possua em sua residncia um espao cerimonial (jeroky hpe) para danas

    rituais (jeroky) e outras relevantes manifestaes religiosas. Como se poder ver na segunda parte deste

    relatrio, as cerimnias religiosas desempenham um papel central no processo de integrao social do

    grupo tnico em pauta.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    32/94

    32

    Urquiza, sendo que este ltimo morou, no fim de sua vida, na micro-regio 5,

    denominada Limaty.

    Micro-regio 2, denominada Potrerito - Era habitada principalmente pelos

    Rodriguez. No Diagrama de parentesco 2, reconstrumos a descendncia de EliRodriguez, que pertencia quele lugar. Junto com ele chegou a morar o filho, Celestino

    Rodrigues, e os netos, Dominga Rodrigues e Julio Rodrigues.

    Micro-regio 3, denominada Naranjaty - Era um lugar onde estavam

    assentados os Tapari. Quase na desembocadura do crrego, num local definido

    da rea delimitada, antes que fosse instituda a reserva Jakarey (Porto Lindo). Em

    Naranjaty, viveram tambm os irmos Eusbio e Gervsio Tapari, parentes de Alperes,cujas linhas genealgicas reconstrumos no Diagrama 3. Junto com Eusbio chegou a

    residir em Naranjaty seu filho com sua esposa, respectivamente, CaetanoTapari e Rita,

    cujo sobrenome no foi lembrado pelos informantes. Com Gervsio moraram nesse

    local sua esposa, Luza Riberto, e seu filho, Geraldo Tapari.

    Micro-regio 4,denominada Remanso Guasu- No foi lugar onde estiveram

    assentadas famlias. Constitudo essencialmente por floresta estacional, este lugar foi, e

    ainda , importante para a prtica da caa, da coleta e, na beira do rio Iguatemi, da

    pesca. Sendo adjacente a Naranjaty, a micro-regio Remanso Guasu fazia parte, mais

    que tudo, do raio de ao dos Tapari, que nela desenvolviam parte significativa das

    atividades de subsistncia. Este local, porm, era alvo tambm das atividades dos

    moradores de Limaty, Yvu e Kaxikue que, no tendo disposio grandes cursos de

    gua, podiam ocasionalmente dirigir-se ao Remanso descendo o crrego Jakarey,

    procura de antas e lugar onde realizar pescarias significativas.

    Micro-regio 5, denominada Limaty, e micro-regio 6, denominada Yvu -

    Foram reas de ocupao sobretudo dos Recarte (v. Diagrama 4), que ainda esto a

    assentados. Esses lugares encontram-se no interior da reserva Jakarey (Porto Lindo),

    sendo que hoje os Recarte dividem o exguo espao disposio com outras famlias

    indgenas procedentes das micro-regies internas rea objeto de delimitao ou de

    outros antigos tekoha da regio dos quais foram expulsas ou de onde migraram,

    incorporando-se em Jakarey (Porto Lindo). Em Limaty, por exemplo, est assentada

    grande parte dos descendentes dos Tapari, alm de um bom contingente do antigotekoha de Sombrerito. Por outro lado, no Yvu encontram-se representantes dos Villalba,

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    33/94

    33

    procedentes de Cerrito (bem antes de que este fosse demarcado), e outras famlias de

    Sombrerito. Entre o Yvu e a cabeceira -se famlias de Garcete

    Kue (tekoha

    nas proximidades da desembocadura do rio Iguatemi), bem como de Potrerito e do

    -regies que compem a reserva de Jakarey (Porto

    Lindo), encontram-se tambm famlias que procedem de reas indgenas situadas em

    territrio paraguaio, especialmente de Guavira Poty, Bajada Guasu e Fortuna,

    localizadas na proximidade da fronteira. No Mapa 2, com um crculo vermelho

    indicamos as reas de origem das famlias mais relacionadas com aquelas de Yvy Katu.

    A micro-regio 7,denominada Kaxi Kue- Era rea ocupada pelos Jara, cujo

    topnimo deve-se justamente ao nome de um antigo morador pertencente a essa famlia,o Sr. Cassimiro (Kaxi) Jara. Depois de sua morte, a maior parte dos parentes de Kaxi

    migraram para reas localizadas no Paraguai, sendo que no local permaneceu o irmo,

    Otcio Jara, do qual foi possvel reconstruir a genealogia (v. Diagrama 5).

    As micro-regies 8 (ngela Kue), 9 (Pakova), 10 (Sanja Hu), e 11 (Avelina

    Kue), so tambm indicadas pelos ndios como de antiga habitao por parte de famlias

    indgenas. A micro-regio 12, sendo adjacente a Avelina Kue, constitua-se em rea de

    explorao econmica dos moradores dessa micro-regio.

    Das famlias que ocupavam estas ltimas micro-regies, contudo, no existem

    hoje descendentes localizveis. So locais de ocupao mais antigos com relao aos

    configurados no interior do permetro da identificao, de cujos moradores no se pode

    estabelecer uma relao direta com os atuais habitantes de Jakarey (Porto Lindo). Nesse

    sentido, os prprios ndios indicando essa distncia temporal e social para com os

    ocupantes desses lugares, no manifestaram interesses para uma eventual incluso

    dessas terras na rea identificada.

    Cabe observar que as demandas pela terra, sendo conduzidas pelas famlias

    extensas (emoare) por linha genealgica vinculadas a lugares especficos, pretendem

    recuperar, em primeiro lugar e de modo imprescindvel, os espaos antigamente

    ocupados pelos prprios antepassados. Por outro lado, h que se levar em conta as

    condies impostas pela dominao neocolonial que, como foi visto mais acima, no

    correr de dcadas tem constrangido os andeva a espaos cada vez mais reduzidos.

    Recuperar os espaos de antiga ocupao no tarefa fcil considerando-se a

    hostilidade poltica a nvel regional manifestada para com os ndios especialmente

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    34/94

    34

    quando esto em jogo as terras que foram ocupadas pelas frentes coloniais , e a

    lentido burocrtica e jurdica que caracteriza os processos que levam demarcao de

    terras indgenas, especialmente no MS. Todas estas dificuldades no so despercebidas

    pelos Guarani, inclusive pelos de Yvy Katu. Assim sendo, os ndios proporcionam as

    prprias demandas fundirias em funo das situaes histricas, de modo que estas

    possam ser minimamente atendidas.

    As consideraes feitas at aqui nos ajudam a compreender as motivaes

    histricas que levaram configurao do tekohade Yvy Katu. Na prxima parte nos

    dedicaremos especificamente s caractersticas cosmolgicas e aos elementos de

    organizao social dos Guarani contemporneos, salientando os processos de construo

    das categorias de espacialidade entre esses ndios, fato que nos permitir contextualizare compreender as caractersticas organizativas que do um sentido social, histrico e

    religioso rea objeto desta identificao.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    35/94

    35

    Parte II

    Habitao Permanente

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    36/94

    36

    2.1Cosmologia e relao com a terra

    Os rituais Guarani constituem formidvel elemento de organizao social e

    integrao desse grupo humano. Entre os mais importantes figuram aqueles daconsagrao do milho e das plantas novas (emongarai, avatikyry), enquanto cultos

    agrrios, e, fora do perodo da colheita, tambm os jeroky, cerimnias estas prepostas

    em grande medida manuteno do equilbrio csmico. Manter em equilbrio o mundo

    para os Guarani significa criar os pressupostos ticos e morais positivos (teko por) que

    possibilitam a manuteno de uma conduta sagrada (teko marangatu), expressa atravs

    das aes e atividades humanas, para que a terra (yvy) no sofra males que, em ltima

    instncia, poderiam vir a dar-lhe fim.A yvy11 deve ser entendida como a parte do cosmo criada e destinada aos

    cuidados dos ndios por ande Ru Guasu (Nosso Grande Pai), a entidade suprema do

    panteo indgena. Segundo os andeva, a entidade suprema realizou este ato

    cosmognico jogando sobre uma tarimba de bambu ( takuara) um punhado de terra

    (entendida neste caso como matria inorgnica). A ampliao do espao ocupado por

    esse punhado de terra foi obra do kyvu kyvu, um inseto que, num continuado movimento

    para dar a forma atual da yvy(terra). ande Ru Guasu criou tambm os prprios Ava

    (Homem Guarani), que emergem das primeiras sementes por ele plantadas nessa terra,

    ato este que institui a relao entre os ndios e o solo, como relao telrica que serve

    como base para a construo do sentimento de autoctonia.

    Dessa forma, a terra assume sentido especial para os ndios e, diferentemente de

    uma concepo ocidental, esta no pode ser considerada como parcela ou como

    propriedade cuja posse estaria nas mos de um indivduo ou conjuntos destes. Aocontrrio, os Guarani indicam com insistncia que so eles que pertencem terra, sendo

    a prpria ao fator central para a sua conservao (da terra). Assim sendo, as atividades

    11Para os Guarani,yvy contemporaneamente terra (matria inorgnica), mundo e solo. A distino entre

    uma ou outra caracterstica se faz atravs da contextualizao lingstica da palavra yvyou, no caso do

    solo, atravs da adjetivao que permite diferencia-los; por exemplo, yvy morot (terra branca), yvy pyt

    (terra vermelha), yvy h (terra preta) e yvy sayju (terra amarela), cada um com propriedades especficas

    para a agricultura, atividade esta que permite e d sentido a essa classificao.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    37/94

    37

    xamnicas e ritualsticas sintetizam, de algum modo, as condies que cada comunidade

    vive e as prprias dificuldades em manter tal equilbrio csmico.

    O risco eminente de uma catstrofe apocalptica, denominada ,

    mancomuna os diversos grupos guarani em torno da necessidade de conservar umaordem moral cuja base organizativa encontra sua razo de ser numa concepo cultural

    que cria um vinculo osmtico entre os seres humanos prediletos (os prprios Guarani) e

    a terra, entendida no simplesmente como espao fsico, mas como um ser vivente.

    As metforas utilizadas pelos Guarani para indicar as caractersticas da terra so

    geralmente ligadas ao corpo humano, onde as funes primrias de comer, descansar e

    alimentar passam a ser atributos importantes para sua fisiologia. Nesse sentido, os

    ndios permitem que a terra se alimente durante o descanso previsto nas tcnicas decoivara, mediante o qual haver um reflorestamento espontneo (denominado pelos

    ndios de omboka'aguyjevy: que o mato se refaa por ele mesmo), enquanto no lugar

    plantado ser a prpria terra que alimentar os ndios. Os rituais (como os emongarai e

    os jeroky),por sua vez, permitiro que a terra no adoea, mantendo o equilbrio nessa

    relao osmtica. As plantas, como o milho, que para eles sagrado, so tratadas como

    crianas, colocando-se mais uma vez em destaque a viso antropomorfa dos elementos

    da natureza.

    Outro fator importante a ao xamnica dirigida a estabelecer contatos

    constantes com mundos meta-histricos, aes com vistas muitas vezes a superar os

    impasses da vida cotidiana, incluindo tambm os que so atribudos ao enfraquecimento

    da relao osmtica com a terra e, por conseqncia, do ande reko

    Guarani. Pode-se dizer que em proporo s condies vividas pelos ndios em cada

    situao local (possibilidade ou no de: acessar a terra, manter e/ou implementar as

    atividades agrcolas, de caa, de pesca e de coleta, respeitar as relaes de reciprocidadeentre os grupos macro-familiares, etc.) podem ser ativadas manifestaes rituais

    prolongadas visando alcanar outros mundos, considerando a iminente destruio da

    superfcie da terra atravs de fenmenos metericos (na seqncia, vento, fogo e gua)

    ou, no sentido contrrio, exercer fortes presses para que esta se conserve atravs da

    repetio constante e extenuante de oraes () e cantos evocativos (mborahei).

    Embora o fim do mundo (enquanto destruio da superfcie da terra) seja

    continuamente esperado, na maioria dos casos o que mais se procura manter o

    equilbrio csmico, tendo o risco da catstrofe como advertncia moral a partir da qual

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    38/94

    38

    articular a prpria tica e modo de ser (ande reko). Estas advertncias morais

    enunciam com muita nfase algo que pode ser exposto sob forma de uma equao que

    se demonstra muito significativa: a terra reduzida /modo deser (teko)enfraquec ido.

    Por conseqncia, um teko (modo de ser) enfraquecido no pode contribuir

    adequadamente manuteno do equilbrio csmico. Neste sentido, a perda de acesso

    terra devido s condies da dominao colonial que tm constrangido os Guarani,

    implica um risco crescente de catstrofe. A luta para recuperar terras tradicionais leva

    consigo, desta forma, a necessidade de continuar ou manter relacionamento constante

    com este ser vivo e que deve ser bem tratado para que no adoea, procurando

    restabelecer, na medida do possvel, as condies da sua morfologia social que

    neste caso, de Yvy Katu.

    O fato de os ndios, para obter essas condies, procurarem uma distribuio

    sarambi) das famlias, coloca em evidncia a peculiaridade

    morfolgica das relaes sociais dos Guarani, como veremos no seguinte item.

    2.2. Morfologia social, organizao social e distanciamento espacial

    A morfologia social (a forma que a sociedade assume fisicamente no espao) de

    um grupo humano no algo definitivamente dado e imutvel. Sua formao um fato

    histrico, em contnua transformao e adaptao s condies do contexto territorial

    onde tal grupo desenvolve suas atividades. de se destacar a importncia que revestem

    neste processo os princpios de organizao social como elementos bsicos para a

    agregao dos indivduos e a fixao dos traos culturais necessrios para a

    consolidao de um determinado sentido de pertencimento (familiar, comunitrio,

    tnico, nacional, etc.) e de uma determinada viso do mundo.

    Os aspectos sociais e a viso do mundo (cosmologia) de um determinado grupo

    humano, que vo se constituindo historicamente, podem, portanto, ser sublimados de

    determinadas caractersticas culturais que discriminam outras formas de organizar as

    relaes entre indivduos e indivduos, entre famlias e famlias e entre os grupos

    sociais. Criam-se, assim, formas especficas de distanciamento (e aproximao) social

    que vm determinar o que denominado espao social. Este no construdo

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    39/94

    39

    abstratamente; encontra as condies da sua expresso em um espao fsico a partir das

    condies ecolgicas e geogrficas, das caractersticas das atividades econmicas

    adotadas pelo grupo, e das limitaes ou possibilidades oferecidas pelo eventual contato

    intertnico (guerra, comrcio e/ou troca, relaes de trabalho, de dominao, etc.).

    No caso dos Guarani temos uma morfologia social baseada na disperso das

    reas residenciais em espaos territoriais considerados passveis de serem percorridos

    pelos indivduos para desenvolver as suas atividades econmicas e efetuar as visitas

    cotidianas e peridicas aos parentes, estabelecendo alianas matrimoniais e polticas

    necessrias construo do sentimento comunitrio e intercomunitrio. Na base da

    organizao social destes indgenas est a famlia extensa12, denominada (termo

    utilizado pelos Kaiowa) ou em

    oare (como a denominam os andeva), que,dependendo da coeso social e do contexto histrico, pode encerrar em seu interior at

    cinco geraes. Com a morte do tami, lder da famlia extensa, diminui o vnculo entre

    os filhos do falecido, favorecendo a formao de novas famlias extensas espacialmente

    independentes.

    Antigamente os integrantes das famlias extensas viviam sob um mesmo teto,

    numa habitao denominada ogajekutuou oygusu(Schaden 1974; Thomaz de Almeida

    1991; Mura 2000). Susnik (1979-80) considera que a organizao entre os Guarani dopassado era expressa por uma unidade poltico-territorial, o gura, um amplo espao

    territorial onde relacionavam-se unidades formadas por famlias extensas, unidades

    estas definidas pela autora como -ga, isto , o constituindo a famlia extensa e

    oga, representando a habitao comum que abrigava a totalidade do grupo familiar13.

    Localizando-se os -gaa varias lguas de distncia um do outro como descrito

    no item 1. 2, no trecho citado de Montoya , os encontros entre eles efetuavam-se

    periodicamente, especialmente em ocasio de convites para as festas religiosas eprofanas, assim como para determinar alianas e expedies guerreiras. Na vida

    quotidiana as atividades econmicas (agricultura, caa, pesca e coleta) e tcnicas

    (construo de artefatos) eram fruto da cooperao do grupo domstico constitudo

    simplesmente por um -ga, este garantindo, assim, uma autonomia relativa para

    com a unidade maior do Gura.

    12Sobre o tema, ver: Nimuendaju 1987 [1914]; Schaden 1974 [1954]; Melia et Alii 1976; Meli 1986;

    Susnik 1979-80, 1983; Bartolom 1977; Thomaz de Almeida 1991, 2001; Chamorro 1995; Reed 1995;

    Mura 2000.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    40/94

    40

    As transformaes de ordem material advindas nos territrios onde vivem

    aqueles indgenas devidas circulao de objetos provenientes do exterior, assim como

    sucessiva presena do homem branco com suas atividades, introduziram novas

    possibilidades de subsistncia para os ndios, constitudas num primeiro momento pela

    troca, e em seguida pelo estabelecimento de relaes de trabalho temporrio com os

    novos colonos, denominadas de changa (Thomaz de Almeida 2001; Mura 2000).

    Contrariamente ao que o senso comum normalmente afirma, o engajamento dos

    indgenas nestas novas atividades no implica no abandono do sentimento tnico, e

    muito menos numa mudana radical do estilo de vida guarani (Thomaz de Almeida

    2001). Os indgenas passam progressivamente a transformar a organizao das unidades

    domsticas, tornando-as mais flexveis e adaptadas s novas circunstncias.

    Desse modo, tem-se a passagem do viver todos em uma nica cabana

    distribuio das famlias nucleares em cabanas menores em torno da residncia do

    tami, lder da famlia extensa (Thomaz de Almeida 2001; Mura 2000). Esta

    transformao, sendo o fruto de uma integrao na vida indgena de novas atividades,

    implicou tambm numa adaptao das novas formas habitacionais s condies do

    trabalho agrcola, da caa, da pesca e de coleta, reproduzindo no interior do espao de

    domnio da famlia extensa as mesmas regras que eram adotadas para distanciar estas de

    outras. Isto ocorre porque cada famlia nuclear se estabelecer em um espao que possa

    garantir o cultivo dos campos, a colocao de armadilhas, a coleta de plantas

    medicinais, de frutos selvagens, de mel, etc.

    A nova configurao espacial, portanto, d continuidade lgica de apropriao

    do territrio perpetuada pelos Guarani. Verifica-se, de fato, a formao de grupos

    macro-familiares que se estabelecero preferencialmente nas nascentes de rios e

    crregos, distribuindo-se as famlias nucleares ao longo e ao redor destes cursos fluviaisou minas de gua. O espao intercorrente entre os lugares de domnio de uma famlia

    extensa e os de outra tende a seguir as caractersticas da rede fluvial, podendo ocorrer,

    portanto, que os grupos possam estar muito distantes um do outro. O que une estes

    grupos familiares entre si fisicamente uma rede de trilhas ( )atravs das quais

    os indgenas se comunicam e mantm elevada circulao de pessoas, seguindo a lgica

    do oguata (andana), que determina a amplitude das relaes de parentela e

    comunitrias. O ir de uma residncia a outra, justamente o oguata, uma instituio

    13Ver no item 1.2 interessante descrio de uma habitao Guarani feita por jesuta annimo em 1620.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    41/94

    41

    motivada culturalmente, cujos reflexos esto presentes na cosmologia guarani. Nas

    narraes mticas, as divindades do panteo indgena percorrem caminhos que os levam

    de residncia em residncia, e atravs disto fundam as instituies para a humanidade,

    bem como as relaes desta com a natureza (Bartolom 1977).

    O aspecto religioso, em virtude de seu papel central na manuteno do equilbrio

    csmico, fundamental na formao e manuteno das relaes sociais e econmicas.

    justamente por ocasio das cerimnias religiosas, s quais freqentemente se seguem

    festas profanas, que os indivduos provenientes de vrios lugares podem travar

    conhecimentos e solidificar alianas, dando lugar a unies matrimoniais e alianas entre

    grupos.

    As regras das relaes comunitrias, por outro lado,so efetuadas atravs deaty(reunies formais) das quais todos podem participar, mas que exprimem principalmente

    as linhas polticas dos lderes das famlias extensas. Durante estas reunies se designa,

    com base em qualidades pessoais, um mburuvicha (lder comunitrio), que ir

    coordenar atividades comuns e representar externamente as polticas da comunidade.

    Por ocasio de conflitos entre as diversas famlias extensas que do vida aos liames

    comunitrios, podem efetivar-se as seguintes situaes: 1) simplesmente interrompem-

    se as relaes, ficando o grupo minoritrio isolado, 2) em ausncia de fronteiras fsicasque se interponham entre os indgenas e a natureza da qual obtm a sua subsistncia, os

    grupos minoritrios podem deslocar-se para nascentes ou margens de rios mais

    distantes, ou 3) a partir da sua localizao, o grupo minoritrio estabelece novas

    relaes com famlias extensas mais distantes, incorporando-se nelas ou dando vida a

    uma outra relao comunitria.

    Estas caractersticas da vida poltica comunitria e intercomunitria que foram

    descritas at aqui espelham as exigncias da morfologia social do grupo em situaesnas quais, como foi evidenciado, existe uma continuidade territorial e ecolgica que no

    impe aos indgenas barreiras indevassveis obrigando-os a estar em espaos reduzidos

    e com fronteiras bem delimitadas. Os Guarani, como foi visto na primeira parte deste

    relatrio, foram progressivamente levados a essas ltimas condies pela poltica

    desenvolvida pelos organismos indigenistas oficiais do Estado brasileiro, coadjuvado

    pelas atividades missionrias que se implantaram na regio14 a partir das primeiras

    14Ver Brand 1997 e 2001; Thomaz de Almeida 1991; Lima 1995.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    42/94

    42

    dcadas do sculo XX. No tocante a situao dos Guarani no Paraguai, verifica-se em

    certa medida algo anlogo, embora o INDI (Instituto Nacional Del Indgena), organismo

    indigenista desse pas, tenha iniciado suas atividades somente nos anos 70 do sculo

    passado. Ao mesmo tempo as relaes compulsrias com as frentes coloniais tm

    produzido efeitos significativos na maneira dos ndios entenderem e conceituarem o

    espao onde desenvolvem sua existncia. Porm, contrariamente aos entendimentos

    mais corriqueiros, os Guarani no tm adotado outra tica cultural (sabidamente a das

    frentes coloniais); ao contrrio, o conhecimento adquirido com as relaes de contato

    tem permitido aos grupos macro-familiares refletir sobre suas categorias espaciais

    tradicionais, produzindo ricas e detalhadas formulaes expressas atravs da noo

    nativa de tekoha

    2.3 Tekoha e tekoha guasu: duas importantes categorias nativas na

    definio territorial

    Apresentamos a seguir uma definio sobre tekoha, resultado de pesquisas

    realizadas nos anos 1970 entre os Pa-Tavyter (Kaiowa) do Paraguai, em situaes no

    muito diferentes daquelas vividas pelos mesmos ndios no lado brasileiro:

    Su tamao puede variar en superficie [...], pero estructura y funcin semantienen igual: tienen liderazgo religioso propio (tekoaruvixa) y poltico

    grandes fiestas religiosas (avatikyry y mit pepy) y las decisiones a nivel

    poltico y formal en las reuniones generales (aty guasu). El tekoha tiene un reabien delimitada generalmente por cerros, arroyos o ros y es propiedad comunal

    exclusiva (tekohakuaaha); es decir que no se permite la incorporacin o la

    i 1976: 218)

    Em seu contedo, como nos parece, esta definio no considera devidamente as

    condies histricas nas quais os ndios constroem suas categorias e instituies. Os

    autores apresentam anlises resultantes do trabalho desenvolvido pelo Proyecto Pa-

    Tavyter15

    15Pa-Tavyter , como mencionado anteriormente, a autodenominao dos Kaiowa.

  • 5/25/2018 Relat rio Yvy Katu Final-2

    43/94

    43

    na regularizao das Colnias (terras indgenas) dos Pa-Tavyter (Kaiowa) no

    Paraguai.

    Das 24 reas demarcadas at 1975, apenas uma superou os 11.000 ha, e assim

    mesmo por condies especiais e com a interveno de militares simpatizantes dosndios; uma outra foi legalizada com pouco mais de 5.800 ha. Superior a 2000 ha

    somente outras duas, sendo seis as que oscilaram entre 1000 e 2000 ha. As 14 reas

    restantes oscilam entre 52 e 846 ha. A situao apresentada naqueles anos de 1970 deixa

    evidente a necessidade de negociao dos espaos demarcados (v. PPT/PG 1977). As

    medidas reduzidas das superfcies legalizadas esto umbilicalmente ligadas

    impossibilidade de superar barreiras definidas pela situao de subordinao ao domnio

    16

    .Este estado de coisas no se limita s regies onde vivem os Pa. Em um recente

    trabalho, Richard K. Reed (1995), que realizou suas pesquisas junto aos Chiripa

    (Guarani andeva) no Paraguai, apresenta um mapa que ilustra um certo nmero de

    comunidades do entorno da Colonia Itanarmi, as quais foram abandonadas em

    decorrncia das presses exercidas por brancos (ver Mapa 4). Tomando em

    considerao a dimenso da rea atualmente em posse dos ndios que foi legalizada

    com 1642