oficina de mosaico

12
 Oficina T erapêutica de Mosaico de P apel: o lugar da materialidade no campo da Terapia Ocupacional Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa (a)* 2014; 18(49):431-41 43 1 COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO         c         r             i         a         ç            ã         o DOI: 10.1590/1807-57622014.0336 * T odas as fotos des ta seção são de autoria de Claudia Pereira Martins Ribeiro e Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa (a) Terapeuta Ocupacional. Vida/Casa de Apoio da Granja Viana, Cotia. Rua Fernando Caldas, 116, Bairro Jardim Rolinópolis. São Paulo, SP, Brasil. 05535- 060. [email protected]

Upload: dalilla-matilde

Post on 07-Oct-2015

217 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

artigo de Terapia Ocupacional

TRANSCRIPT

  • Oficina Teraputica de Mosaico de Papel:o lugar da materialidade no campo da Terapia Ocupacional

    Maria Cecilia Martins Ribeiro Corra(a)*

    2014; 18(49):431-41 431COMUNICAO SADE EDUCAO

    cria

    o

    DOI: 10.1590/1807-57622014.0336

    * Todas as fotos desta seo sode autoria de Claudia Pereira

    Martins Ribeiro e Maria CeciliaMartins Ribeiro Corra

    (a) Terapeuta Ocupacional.Vida/Casa de Apoio da Granja

    Viana, Cotia. Rua FernandoCaldas, 116, Bairro JardimRolinpolis. So Paulo, SP,

    Brasil. 05535- [email protected]

  • CRIAO

    432 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):431-41

    Eu perguntei um dia ao neurologista Oliver Sacks o que, doseu ponto de vista, era um homem normal. Ele me respondeuque um homem normal talvez seja aquele que capaz decontar sua prpria histria. Ele sabe de onde vem (tem umaorigem, um passado, uma memria em ordem), sabe ondeest (sua identidade) e acredita saber aonde vai (ele temprojetos e a morte no final). Est, portanto, situado nomovimento de um relato, ele uma histria e pode diz-lapara si mesmo1.

    Envolvida na ideia de contar uma experinciaclnica como terapeuta ocupacional, mesurpreendeu a visita da palavra ponto... Ponto departida, ponto de encontro, ponto de apoio, pontocruz, ponto cardeal, ponto de parada, ponto devista, ponto final... Ponto, segundo o dicionrio2, a menor marca; lugar determinado (p. 699)..Lugar determinado...ou ser o comeo docaminhar pr beira de outro lugar3.

    DalillaSelecionar

    DalillaSelecionar

    DalillaSelecionar

  • cria

    o

    2014; 18(49):431-41 433COMUNICAO SADE EDUCAO

    Ponto de partida

    Lugar, do ponto de vista de Winnicott4 (p.31), uma posio bsica a partir da qual apessoa opera, condio para o vir a ser, para o desenvolvimento de um sentimento deser existente, ponto de partida. Para falar sobre um trabalho clnico, considero importanteclarear a partir de que lugar se opera, isto , quais so os princpios que o norteiam.

    Independentemente do contexto - sade coletiva, consultrio particular ou trabalhoinstitucional - minha experincia clnica como terapeuta ocupacional orienta-se nopensamento psicanaltico, mais especificamente no MiddleGroup da psicanlise inglesa,sobretudo no autor Donald D. Winnicott.

    Partilho de sua concepo sobre o ser humano. Para ele, o ser humano um sercriativo, em constante amadurecimento e dependente, para efetivao dessa tendnciainata, da comunidade em que vive. A respeito do ser criativo, Winnicott nos fala dacapacidade e necessidade humanas de criar o mundo, criar sentidos prprios para seu vivera partir da sua apreenso singular do mundo compartilhado, mundo que inclui o realmaterial e os processos inconscientes, afetivos, corporais, imaginrios envolvidos nessaexperincia. Dessa forma, ser criativo no se refere ao fazer artstico, mas sim aoaparecimento do singular de si mesmo, experincia que envolve coragem e implica osriscos do viver.

    Ao considerar a criatividade uma das condies fundantes do ser humano, posso dizerque o potencial criativo fonte de sade. Assim, sade passa a se relacionar com modosde ser, com bem estar prprio e completo, implicando uma continuidade e as conexesentre os aspectos biolgicos, culturais, sociais, psicolgicos e ambientais; deixa de sercoisa da doena e passa a ser garantia de vida, de qualidade de vida. Essa viso, que secontrape ao ideal de sade, isto , compreenso que define sade como ausncia dedoena e que concebe o corpo como uma mquina que deve ser consertada, caso dalgum defeito, apresenta a noo que nosso corpo no uma mquina, um mecanismo,mas um complexo vivo e singular. Assim, podemos estar enfermos etimologicamenteno firmes e ainda assim estarmos capazes, criativos e saudveis em diversos outrosaspectos de nossa vida ou atividade5.

    Coerente com os pressupostos acima, minha prtica clnica norteia-se pelo respeito singularidade do paciente, pela considerao de suas necessidades. Trata-se de umarelao de cuidado genuna, um encontro interhumano em que o terapeuta relaciona-sede igual para igual com seu paciente, vendo-o como potente, integral, que busca as suassolues para sua vida, pois ele sabe mais sobre si do que qualquer um. Isso implica naassuno de um compromisso tico diante da pessoa em sofrimento, no estabelecimento ena manuteno de uma situao teraputica que favorea a continuidade de ser, aesperana de o paciente se sentir vivo e real; isto , ir sendo-se no seguimento do tempoe no espao compartilhado com o outro na sua comunidade.

    DalillaSelecionar

    DalillaSelecionar

  • CRIAO

    434 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):431-41

    Ponto de referncia

    A experincia que relato aqui, ainda em curso, teve incio em agosto de2005, quando fui chamada por uma instituio sem fins lucrativos do terceiro setorpara realizar atividades com um grupo de pessoas com deficincia fsica, adultosque viviam em situao de excluso e vulnerabilidade social.

    Na primeira entrevista com os responsveis da instituio, observei que opedido era de entretenimento para os pacientes e respondia a uma necessidadeinstitucional de v-los ocupados durante todo o dia. Tratava-se, portanto, de umaviso que desconsidera necessidades humanas fundamentais, sendo coniventecom prticas clnicas objetivantes, o que no aceitvel, nem do ponto de vistada clnica, nem eticamente. Contudo, encontrei espao institucional para iniciar osencontros de acordo com meus princpios, buscando resgatar nos pacientes acondio de seres humanos criadores.

    Desde ento, essa interveno, que denomino Oficina Teraputica de Mosaicode Papel, acontece em grupo, sendo este aberto(b) e formado no mximo por dezpacientes de ambos os sexos e na faixa etria compreendida entre quarenta esetenta anos. At 2012, todos os participantes apresentavam deficincias fsicas,em sua maioria adquirida e decorrente de diferentes etiologias, como: acidentevascular enceflico, aneurismas ou leso medular devido a traumas. Atualmente, oenquadre permanece o mesmo, porm o grupo composto exclusivamente porparticipantes idosos, com ou sem deficincias fsicas.

    A oficina teraputica que apresento neste relato, a primeira de uma srie quevenho realizando na mesma instituio, ocorria uma vez por semana, com umahora e meia de durao. A atividade que propus foi o mosaico de papel. Oprincipal critrio para escolha da atividade foi minha afinidade, experincia econfiana no potencial transformador do material. Penso que, independentementedos contextos ou objetivos teraputicos, a escolha inicial por um material e/ouatividade no est s relacionada a uma tcnica, pois no existem pacientes iguaisou terapeutas iguais. Envolve, sempre, a apresentao de modos de ser doterapeuta - sua pessoa, sua histria, sua vivncia com o material e/ou atividade, asteorias que o acompanham, sua atitude de cuidar e a capacidade de considerar asnecessidades fundamentais dos pacientes.

    Os papis coloridos foram apresentados aos participantes do grupo, junto comum convite para que, a partir de suas histrias de vida, criassem uma figura sobreo suporte - uma folha de papel Kraft de 1,20m X 0,90m com uma linha traadaem seu sentido longitudinal, que denomino linha do horizonte.

    A imagem com mosaico de papel foi criada e confeccionada coletivamente,com todos os pacientes acomodados ao redor de uma mesa, tendo o papel Kraftao centro. Cada um contribuiu para construo do painel de mosaico de acordocom sua possibilidade e disponibilidade. Assim, existem alguns pacientes quepodem cortar e colar papis, outros podem pintar ou cortar e h tambm aquelesque podem narrar o que est sendo construdo pelo grupo.

    O objetivo inicial do atendimento foi propiciar um ambiente favorvel comunicao, ao relacionamento entre as pessoas do grupo e entre estes e aterapeuta, ao acolhimento das diversas formas de expresso, ao alvio dosofrimento e ao desenvolvimento da capacidade de brincar.

    Posso dizer que a Oficina Teraputica de Mosaico de Papel, alm de cumprircom os objetivos, surpreendeu-me ao revelar uma qualidade de potencialteraputico que justifica ser seriamente pensado e recriado em diferentescontextos, pois responde a algumas necessidades que vm sendo delineadas eencontradas na clnica contempornea da terapia ocupacional.

    (b) O grupo aberto notem prazo para trmino epermite que dele entreme saiam pessoas aqualquer momento dodesenvolvimento daproposta.

    DalillaSelecionar

  • cria

    o

    2014; 18(49):431-41 435COMUNICAO SADE EDUCAO

    Ponto de encontro

    Walter Benjamin6, refletindo sobre a narrativa, diz que uma forma artesanal decomunicao sendo sua matria prima a experincia. Sendo o vivido sua matria prima, anarrativa coloca todos ns na posio de donos de um saber originado na prpria experincia. Anatureza viva das narrativas permite, a cada leitura, a atualizao da experincia, pois possibilita areflexo, o desvelamento de novos sentidos e a construo continuada do conhecimento sobreo vivido narrado.

    Sendo assim, lano mo das narrativas para registrar os encontros clnicos. Ao escrever, reflitosobre meu trabalho, o paciente e/ou grupo e as experincias alcanadas. Elas so elaboradas emmomento posterior s sesses, com base nas lembranas dos encontros teraputicos. Nestaexperincia, a narrativa foi realizada aps a finalizao da construo do painel.

    Trago aqui, ento, o relato da construo do primeiro quadro da Oficina Teraputica deMosaico de Papel:

    Fui chamada para entreter um grupo de pessoas adultas, descrito assim: deficientes fsicos,desvitalizados, que passavam o dia desocupados e entediados. Atendo o chamado. Vou para ainstituio acompanhada da f no ser humano, de meus princpios, de alguns conceitos epreconceitos e, tambm, de papis coloridos e cola.

    Na minha imaginao, as limitaes fsicas seriam grandes obstculos, fato que logo setransformou, pois encontrei pessoas vivas que queriam conversar, contar suas histrias - seupassado, seu presente e, quem sabe, desenhar seu futuro. Queriam ateno, necessitavam detempo e disponibilidade afetiva. Nesse primeiro encontro, dentro de mim, proponho-me a vivercom esse grupo uma experincia no tempo que ele demandasse.

    Iniciamos nosso primeiro encontro conversando sobre nossas origens: nosso nome, ondenascemos, como ramos chamados, como vivamos, do que brincvamos, o que cantvamos,causos que ouvamos e tudo mais que viesse tona. Em meio a um turbilho de falas e memrias,abriu-se no grupo a possibilidade de apresentao e compartilhamento dos seus diferentesuniversos e tambm dos seus pontos em comum, sendo a vivncia da roa, do campo, partilhadapela maioria. A partir desse lugar, dessa marca em comum, definimos o tema da paisagem a sercoletivamente construda, usando o mosaico de papel: um campo.

    O grupo estava desconfiado, porm entusiasmado, e aps esclarecimento sobre o que ummosaico de papel e como seriam nossos encontros, iniciamos o trabalho: picar papis e col-los nosuporte, um papel Kraft grande, que ocupava praticamente toda a mesa, com uma linhadesenhada a qual chamo de linha do horizonte. Durante a construo do cu e do cho, o fundoda nossa paisagem, um grupo esperanoso, embora muito hesitante, emerge e, surpreendido pelaexperincia brincante, arrisca-se e faz, possibilitando-me vislumbrar seu potencial criador atravsda dimenso ldica alcanada.

    O cu e o cho da nossa paisagem vo aparecendo, e junto com eles a confiana na terapeuta e asdificuldades de realizao. Imps-se, em nossos encontros, a doena, o limite, o corpo impedido eestranho, a vida tragicamente interrompida. Porm, a plasticidade caracterstica do mosaico de papelpermite adequar os fazeres com as disponibilidades, possibilidades e limites do grupo, favorecendoas relaes, criando um clima de cumplicidade e coeso entre os participantes e garantindo acontinuidade da oficina.

    Conclumos o fundo e junto surgiu a questo: quais figuras vo compor esse fundo? O quehabitar essa paisagem? O momento de pr vida no lugar, de colar as figuras no fundo.Assim,cada pessoa escolhe um animal para colocar no quadro.

    Depois dessas escolhas, me dei conta da aproximao existente entre o animal e o paciente queo elegeu. Sendo assim, vou usar os animais escolhidos para representar e apresentar cada pacientedo grupo:

  • O Cavalo o paciente viajante. No pode rasgar, colar e nem se locomover.Imagina e fala com e pelo grupo, h diferenas no seu nvel sociocultural, escreveno computador e, alm de enriquecer o grupo com suas colocaes, topaescrever uma narrativa dos nossos encontros, vamos ver...

    O Pavo a paciente vaidosa. Fala sem parar, diz que sua mo ficou boba(c).Aceita minha ajuda para colar os papis e acolhe, durante o grupo, minhasinterferncias em seu monlogo, abre sua fala para um dilogo: olha para o grupo,escuta.

    O Passarinho a paciente delicada. Fala muito pouco, no tem autonomia parase locomover. Mostra lindos olhos azuis e um sorriso tmido que me encantam. Temuma fala mansa, baixinha, difcil de entender, mas, tmida, rasga e cola o papel nosuporte com autonomia marca sua presena naquele espao sua maneira:silenciosa, delicada e livre.

    A Arara a paciente barulhenta. Lembra-se e fala de sua histria, conta causose canta: Saudades, palavra triste.... Fala de seu passado: boa filha dedicada,agora solteira e solitria. Revela-se brincalhona, participativa, acolhe as ideias dogrupo, rasga e cola os papis com autonomia. Surpreende-se e encanta-se com apaisagem colorida que vai sendo construda. Ranzinza, afasta-se temporariamentedo grupo.

    A Ona Pintada o paciente hbil. De nome difcil de lembrar, tambm tem moboba. Alegre, pedreiro com muito orgulho, habilidoso e caprichoso assentadorde papis. Vejo-o assentando tijolos enquanto cola papis.

    O Elefante a paciente densa. Curiosa, desconfiada,subjetivamente pesada, tem autonomia, mas sem andar.Por necessidade e empatia creio eu topou de imediato aexperincia, ajuda-me muito com sua atitude colaborativa,com suas conversas. Mineira, olha-me pelo canto dosolhos, a sensao que tenho de que ela v tudo;companheira.

    A Arara tambm a paciente viva. No pode tocar emnada, tudo di. Conta para o grupo sua histria de amor emovimento esposa de um caminhoneiro, vivia com elepelas estradas da vida. Surpreendente, denuncia: um dia

    acordei assim, com um corpo que no o meu! Presena viva e espontnea nogrupo sofre.

    E eu, passarinho tambm. Passarinha sutil, zelosa e atenta s necessidades dogrupo. Alimenta-o em doses diminutas, acredita no potencial do grupo para alarvoos.

    Apresentado o grupo, continuo nossa histria.Iniciamos pelas rvores. Olhamos nosso trabalho de perto, contemplamos de

    longe, conversamos sobre nossas rvores preferidas, observamos atentamente umquadro do Monet da parede da nossa sala, falamos sobre a paisagem do campoque estamos construindo e escolhemos o lugar das rvores: as grandes nas pontase as pequenas no centro.

    Meu sentimento era de tenso, atravessvamos um momento de risco? A arara, apaciente barulhenta, no quer mais participar. Sero ressonncias da lucidez arespeito da precariedade da vida? Ser o momento colar figuras no fundo? Serum mal estar geral da convivncia em grupo? No sei.

    Sentia-me inteiramente comprometida com nossa experincia; juntos,experimentvamos a visita da ansiedade e da angstia. As rvores que fizemos ecolamos nesse dia no sobreviveram - no satisfizeram o grupo e foram retiradasdo mosaico no encontro seguinte.

    (c) Mo boba termode senso comum usadono grupo para se referir sequela fsica adquiridaem um dos membrossuperiores.

    CRIAO

    436 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):221-236

  • Questiono (comigo mesma) se colar as rvores naquele momento no estava a servio de remendar oque vivamos: nossa imerso nas dvidas quanto qualidade de nossos vnculos e, consequentemente,quanto confiana na continuidade da experincia. Sendo assim, como colar a figura? Como aparecer nogrupo? Como prosseguir?

    A partir daqui, o universo de vivncias desse grupo passa a ser compartilhado durante as colagens: asdificuldades com escaras, e o paciente que necessitou amputar suas pernas porque no cuidou delas. Asinfeces urinrias, e a paciente que foi hospitalizada. A dificuldade de enxergar e de ir ao oculista. A raivae a dor de, um dia, repentinamente, acordar com um corpo que no reconhece como seu e que noresponde sua vontade acordar sem entrever a liberdade.

    A minha abertura e disponibilidade verdadeiras para estar com o grupo, somadas continuidade dosnossos encontros, possibilitaram a explicitao, cada vez mais profunda e intensa, das suas questes: avida interrompida, a discriminao e excluso social, a submisso e invaso pelo outro, a falta de sentidopara a fatalidade, o potencial precocemente morto, a solido. Dessa vez, compartilhando as sofridasexperincias humanas, encontramos soluo para tronco, folhas e flores da nossa paisagem, que agradoua todos. As rvores sobreviveram e ns tambm!

    Nesse momento, aparece no grupo a valorizao do nosso processo, a surpresa com a paisagem quevem sendo construda e o pedido de fazer a colagem nos dias em que no estou na instituio. Acolho opedido, deixo os materiais com a enfermagem.

    Estamos chegando ao fim: as rvores na paisagem esto praticamente prontas, resta colar os animaisescolhidos. A arara, a paciente barulhenta, visita o grupo, admira-se e surpreende-se com a paisagem,retoma entusiasmada a atividade. O grupo, paradoxalmente, parece no finalizar, surgem novas ideias.Pergunto-me: estamos adiando o fim? Ser um novo projeto? Estamos nos aprontando para irmos embora?

    Colamos os animais, cada paciente escolhe um lugar para o seu. Reflito e falo para o grupo sobre aimportncia de enriquecermos nossa paisagem com animais, seres de movimento que inspiram liberdade,e como foi rico imaginar o que tinham para contar do lugar a partir do qual podiam olhar e interagir com apaisagem criada.

    Solitria, olho para o quadro e lembro-me do artista Milton Dacosta, da sua obra intitulada Roda7 .Um paciente brinca, com seu olhar e imaginao, de encontrar pessoinhas e outras figuras nos pedacinhosde papel que compem nossa paisagem e acaba por lamentar a ausncia de pessoas, expressando odesejo de inclu-las no mosaico.

    Com essa fala, sinto-me autorizada a apresentar para o grupo a Roda. Na sesso seguinte, trago aimagem. Todos gostam, brincam, lembram-se de suas cirandas. A figura recortada e colada,acrescentamos mais dois meninos e, assim, todos do grupo esto l humanizados a vida, a brincadeirainstala-se em nosso encontro.

    ltimo dia, celebramos o fim. Entrego para cada paciente um carto postal com a imagem do nossomosaico, o ttulo da nossa obra colocado Um lugar, O Campo.

    Chegamos ao fim: Fazer um fim fazer um comeo, como disse Elliot8 (p.153), o poeta. As ideias queme animam agora so aberturas para novos projetos com esse grupo.

  • CRIAO

    438 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):431-41

    Ponto final?

    o barrotoma a formaque voc quiservoc nem sabeestar fazendo apenaso que o barro quer8 (p. 107)

    De fato, essa experincia abriu novos mundos para a minha experincia a respeito da clnica, dossofrimentos e condies existenciais experimentadas pelas pessoas com deficincia - e para o grupo no alcance de novos fazeres, de novas posies diante do outro, de algum acesso e convvio com acomunidade.

    Na clnica, uma das situaes que se abriu para minha reflexo e aprofundamento foi aapresentao e uso dos materiais. Como contei antes, me apresentei ao grupo com os papis coloridose cola, material e terapeuta juntos, disposio dos pacientes, para acolher e testemunhar seus gestoscriativos, seus processos singulares de criao, de retomada do potencial criativo, do processo deativao da sade.

    Safra9 fala sobre a relao profunda entre o ser humano e a materialidade, destacando que osmateriais esperam a ao humana, com sua criatividade, para ganhar significado. Nessa condio, estoabertos para receber o gesto e tornarem-se narradores do trabalho para as geraes futuras. Quando omaterial reduzido sua funcionalidade ou sua esttica, ele se torna impessoal, perde seu estatuto,

    no veicula mensagens, objetifica-se, adoece o ser humano. Sendo assim, nasituao clnica, o material que traz a marca do convvio com o terapeuta carregasentidos e significaes, auxilia no cuidado do sofrimento humano.

    Considerando que o material carrega marcas do terapeuta, destaco anecessidade de refletirmos sobre a importncia da constncia do material e daatividade, oferecidos pelo terapeuta ao paciente, dentro do enquadre clnico de umprocesso teraputico, o que nem sempre observamos nas salas de atendimento daterapia ocupacional. A experincia que abordo aqui usa o mosaico de papel desdeseu incio, em 2005, sendo que a diversificao e ampliao do uso dos materiaisaconteceram, ao longo do tempo, sempre a partir do reconhecimento de umademanda dos pacientes assentada no desejo de melhorar a expresso plstica daatividade em realizao.

    Conhecido de todos ns, o mosaico de papel ganhou sentido singular para essegrupo. Passou a ser metfora de sua experincia - tanto os papis so rasgados eencontram, atravs do grupo, novas formas quanto essas pessoas foraminterrompidas na continuidade de suas vidas e criam/encontram, no uso dos papis,novas maneiras de ser, de fazer e de estar no mundo. O grupo se deu um nome Coletivo Mosaico de Ns.

    Penso que o enquadre teraputico composto por aspectos objetivos, taiscomo o material, a atividade, as caractersticas do grupo e, nesse caso, dainstituio, como tambm de aspectos subjetivos representados pela presenaautntica do terapeuta. A constncia do enquadre, somada a sustentao, ao longodo tempo, da experincia de encontro inter-humano e de criao que permite oestabelecimento de um vnculo de confiana, o vislumbre da esperana e dacondio da capacidade de brincar. nessa experincia de confiana e estabilidadeque surge um coletivo, que, na sua ao sobre a materialidade, articula as histriasvividas a momentos criativos, descobre modos prprios e diversos de fazer e decomunicar, brincar e imaginar10. Arrisca-se e pe em marcha seu desenvolvimento,sua continuidade de ser.

  • cria

    o

    2014; 18(49):431-41 439COMUNICAO SADE EDUCAO

    Winnicott11 diz que brincar fazer alguma coisa em algum lugar e que istoleva tempo. Estamos nessa brincadeira h nove anos. Na sala de atendimento,tudo possvel e transformvel. Mundos so imaginados, criados e construdos,sempre atravessados pela vida alm da sala lembranas, amores, dores, histrias,encontros e desencontros; tudo anima nossas sesses.

    Fora da sala de atendimento, o mundo compartilhado. Os encontrosteraputicos possibilitaram a construo de um acervo de catorze painis demosaico de papel e o blog12: mosaicosdenos.blogspot.com.br. Este acervoimprimiu transformaes nas vidas dos participantes, pois abriu condio tanto paragerao de renda (atravs de venda de postais e calendrio) como para aparticipao na vida cultural, a partir das exposies dos painis construdos emespaos pblicos da cidade. Expor seus painis deu ao grupo visibilidade social,acesso vida cultural, restaurou a dignidade dos pacientes a partir do fato depoderem mostrar comunidade produtos de sua capacidade criadora. O Blogpermitiu uma conversa entre o coletivo e a comunidade. Instala-se um lugar -uma posio a partir da qual se opera.

    Para finalizar, digo que essa experincia tambm inaugurou um lugar para estaterapeuta, o trnsito com seus pacientes pelo mundo de dentro e de fora, nainterface da Arte e Produo da Sade, levando seus princpios em qualquercontexto de trabalho.

  • CRIAO

    440 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):431-41

    Ponto de apoio

    1. Machado R. Acordais: fundamentos terico-poticos da arte de contar histrias. SoPaulo: Difuso Cultural do Livro; 2004.

    2. Larousse Cultural. Dicionrio da Lngua Portuguesa. So Paulo: Editora NovaCultural; 1992.

    3. Gil G. Lugar comum. Gilberto Gil ao Vivo. [CD] So Paulo: Universal; 1974.

    4. Winnicott DW. Tudo comea em casa. So Paulo: Martins Fontes; 1996.

    5. Martins A. Biopoltica: o poder mdico e a autonomia do paciente em uma novaconcepo de sade. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):21-32.

    6. Benjamin W. O narrador: observaes sobre a obra de Nikolai Leskow (1936). In:Benjamin W, editor. Magia e Tcnica, arte e poltica: ensaios sobre a literatura e histriada cultura. So Paulo: Brasiliense; 1985. p. 197-221. (Obras Escolhidas, v .1)

    7. Dacosta M. Roda [leo sobre tela]. In: Jordo VP, organizador. A imagem da criana napintura brasileira. Rio de Janeiro: Salamandra Consultoria Editorial S/A; 1979. p. 70-3.

    8. Eliot TS. Little gidding. In: Safra G, organizador. A face esttica do self: teoria eclnica. So Paulo: Unimarco Editora; 1996. p. 153-6.

    9. Leminsky,P. Toda poesia. So Paulo: Schwarcz; 2013.

    10. Safra G. A Po-tica na clnica contempornea. Aparecida: Editora Ideas e Letras;2004.

    11. Castro ED, Lima EMFA. Resistncia, inovao e clnica no pensar e no agir de Niseda Silveira. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):365-76.

    12. Winnicott DW. Tudo comea em casa. So Paulo: Martins Fontes; 1996.

    13. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.

    14. Corra MCMR. Mosaico Mapas de Ns. Mosaico de Ns Blogspot [Internet]; 2012[acesso 2014 Abr 25]. Disponvel em: http://mosaicosdenos.blogspot.com.br/

  • cria

    o

    2014; 18(49):431-41 441COMUNICAO SADE EDUCAO

    Este artigo versa sobre uma experincia clnica denominada Oficina Teraputica deMosaico de Papel, concebida para atendimento grupal de pessoas com deficinciafsica, em situao de excluso e vulnerabilidade social. Esta interveno, ainda emcurso, ocorre no mbito da Terapia Ocupacional, orientando-se no pensamentopsicanaltico, sobretudo em Winnicott. O artigo discute os temas: escolha e uso dosmateriais na terapia ocupacional, anlise do potencial teraputico e alcance desteenquadre clnico. Aproxima-se destas questes por meio da narrativa da construocoletiva do primeiro quadro da oficina. Os encontros abriram novas dimenses daexperincia da clnica e das condies existenciais e dos sofrimentos experimentadospelos participantes. A efetividade teraputica dessa interveno, que transita nainterface entre arte e produo de sade, mostra-se pela possibilidade de novosfazeres, de novos papis diante do outro, de participar mais de perto da vidacomunitria.

    Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Oficina Teraputica. Arte. Produo de Sade.

    Paper Mosaic Therapeutic Workshop:the place of materiality in the field of Occupational Therapy

    This paper examines a clinical intervention model, Paper Mosaic TherapeuticWorkshop, developed to assist people with physical disability and experiencingexclusion and social vulnerability. This ongoing intervention belongs to the field ofoccupational therapy and is based on psychoanalytical theory, specifically that ofDonald Winnicott. The choice and use of materials in occupational therapy andanalysis of the therapeutic potential and reach of this intervention are discussed. Thesetopics are approached through a narrative of the collective construction of the firstworkshop paper mosaic. The group meetings opened new dimensions regardingclinical experience and existential conditions and suffering experienced by theparticipants. The therapeutic effectiveness of this intervention, operating in theinterface between art and health production, was confirmed by the acquisition of newabilities and roles in relation to others, and closer participation in community life.

    Keywords: Occupational Therapy. Therapeutic Workshop. Art. Production of health.

    Taller Teraputico de Mosaico de Papel:el lugar de la materialidad en el campo de la Terapia Ocupacional

    Este artculo versa sobre una experiencia clnica: el Taller Teraputico de Mosaico dePapel para la atencin grupal de personas con discapacidad fsica en situacin deexclusin y vulnerabilidad social. Esta prctica transcurre como Terapia Ocupacional yse orienta segn el pensamiento psicoanaltico, basndose en Donald Winnicott. Seabordan estos temas: eleccin y uso de los materiales en terapia ocupacional, anlisisdel potencial teraputico y alcance del encuadre clnico. Se efecta una aproximacin atravs del relato de la construccin colectiva del primer cuadro en el taller. Losencuentros abrieron nuevos mundos en la clnica en relacin con los sufrimientos delos participantes y sus condiciones existenciales. El alcance de nuevos quehaceres,nuevas posturas frente al otro, un cierto acceso y la convivencia con la comunidadmuestra la eficacia teraputica de esta propuesta situada en la interfaz arte-produccinde salud.

    Palabras clave: Terapia Ocupacional. Taller teraputico. Arte. Produccin de salud.

    Recebido em 12/05/14. Aprovado em 14/05/14.