o novo constitucionalismo pluralista latinoamericano

Upload: belinni

Post on 21-Feb-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    1/156

    0

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO DO RECIFEPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    PEDRO AUGUSTO DOMINGUES MIRANDA BRANDO

    O NOVO CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA LATINO-AMERICANO: PARTICIPAO POPULAR E COSMOVISES

    INDGENAS (PACHAMAMA E SUMAK KAWSAY)

    Dissertao de Mestrado

    Recife

    2013

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    2/156

    1

    PEDRO AUGUSTO DOMINGUES MIRANDA BRANDO

    O NOVO CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA LATINO-

    AMERICANO: PARTICIPAO POPULAR E COSMOVISESINDGENAS (PACHAMAMA E SUMAK KAWSAY)

    Dissertao apresentada no Programa de Ps-graduao em Direito da Faculdade de Direito do Recife/Centro de Cincias Jurdicas da

    Universidade Federal de Pernambuco comorequisito parcial para obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Sociedade, Democracia e Direitos HumanosOrientador: Prof. Bruno Galindo

    Recife

    2013

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    3/156

    Catalogao na fonteBibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832

    B817n Brando, Pedro Augusto Domingues MirandaO novo constitucionalismo pluralista Latino-Americano: participao popular e

    cosmovises indgenas (Sumak Kawsay e Pachamama) / Pedro AugustoDomingues Miranda Brando. Recife: O Autor, 2013.

    154 folhas : foto.

    Orientador: Bruno Csar Machado Torres Galindo.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito,

    2013.

    Inclui bibliografia.

    1. Direito constitucional - Amrica Latina. 2. Viciano Pastor, Roberto. 3.Martnez Dalmau, Rubn . 4. Fajardo, Raquel. 5. Estado (direito internacionalpblico). 6. Direito constitucional - Interpretao e construo. 7. Constituio -Doutrinas e controvrsias - Amrica Latina. 8. Direito constitucional - Filosofia. 9.Constituio - Aspectos sociais. 10. Direitos fundamentais. 11. Nativos - AmricaLatina. 12. Nativos - Direitos fundamentais. 13. Constituies - Colmbia -

    Venezuela - Equador - Bolvia. 14. Integrao regional - Amrica Latina. I. Galindo,Bruno Csar Machado Torres (Orientador). II. Ttulo.

    342.085 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-020)

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    4/156

    2

    PEDRO AUGUSTO DOMINGUES MIRANDA BRANDO

    O NOVO CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA LATINO-

    AMERICANO: PARTICIPAO POPULAR E COSMOVISESINDGENAS (PACHAMAMA E SUMAK KAWSAY)

    Dissertao apresentada no Programa de Ps-graduao em Direito da Faculdade de Direito do Recife/Centro de Cincias Jurdicas da

    Universidade Federal de Pernambuco comorequisito parcial para obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Sociedade, Democracia e Direitos HumanosOrientador: Prof. Bruno Galindo

    A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidncia do primeiro,submeteu o candidato defesa em nvel de Mestrado e a julgou nos seguintes termos:

    Prof. Dr. , Dr. UFPEJulgamento: ____________________________ Assinatura: _________________Prof. Dr. , Dr. UFPE

    Julgamento: _____________________________Assinatura: __________________

    Prof. Dr. , Dr. UFPE

    Julgamento: _____________________________Assinatura: __________________

    MENO GERAL: __________________________________________________________

    Coordenador do Curso:

    Prof. Dr. Marcos Nbrega

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    5/156

    3

    AGRADECIMENTOS

    Todo trabalho , em certa medida, uma tarefa coletiva. Esta dissertao,em grande medida, foi fruto das experincias que tive com cada uma das pessoas abaixoelencadas (e outras que seria impossvel citar). O trabalho foi forjado, alm do silncioda biblioteca e nas madrugadas da rua da aurora, em cada caf, aula, reunio poltica,mesa de bar e viagens Brasil afora.

    Foram anos difceis, mas extremamente prazerosos. O importante, oimportante mesmo, que tudo foi feito com muita alegria e entusiasmo, Entre outras

    coisas, aprendi que um ttulo apenas um ttulo. O que fica no caminha muito maisimportante: alegria, amizades, companheirismo e humildade. Em uma academiamarcadamente egocntrica e teimosamente conservadora que tende a invizibilizarconhecimentos fora dos padres cientficos conheci e me aproximei de muita genteque sente prazer em compartilhar o conhecimento e que sabe, seguindo Paulo Freire,que no pode haver educao sem amor.

    Posso ver cada um dos meus/minhas amigos/amigas em cada trecho dadissertao. O meu agradecimento sincero a todos/as que fizeram parte dessa jornada!

    Ao Muda, Zoada, Coletivo de Lutas Comunitrias (CLC) e ao CentroPopular de Direitos Humanos (CPDH). Laura, Thiago, Carla, Jlia, Pedro Josephi,Severino, Gabriela, Rafael e todos/as que dedicam os melhores dias de suas vidas paralutar por um mundo mais justo. Por mostrarem, cotidianamente, que a academia nobasta. Pelo exemplo de dedicao e militncia aos Direitos Humanos e, principalmente,

    por acreditarem que nada impossvel de mudar.Aos professores/as, funcionrios/as e amigos/as da Universidade Catlica

    de Pernambuco, onde tudo comeou. Especialmente, Jamile e aos meus amigos dedebates jurdicos, Rafael Dias, Arthur Lima, Felipe Bechara e Rafael Bezerra.

    Aos bons amigos que o Mestrado em Direito me trouxe, carinhosamenteapelidado de G4: Ticianne Perdigo, Manuela Abath e John Heinz. Tenho certeza de

    que o futuro reserva um lugar de destaque para vocs na academia, meus amigos.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    6/156

    4

    Comisso de Estudos Constitucionais da OAB-PE, pelo empenho naefetivao da Constituio, especialmente, a Marcelo Labanca amigo e exemplo deprofessor.

    Aos funcionrios e professores do Programa de Ps-Graduao emDireito/UFPE, em especial, ao Prof. Arthur Stanford, pelo exemplo de dedicao; e aoProf. Ivo Dantas, pelo amor contagiante ao Direito Constitucional.

    Todos/as que fizeram parte do grupo de estudos sobre o NovoConstitucionalismo Latino-Americano, na Faculdade de Direito do Recife.

    Cesar Baldi, um dos precursores do estudo sobre as Constituies

    Andinas no Brasil, pelo constante dilogo, pelas crticas e pelas excelentes sugestesbibliogrficas.

    Ao professor Fernando Dantas, pela honra de participar da minha banca epela articulao da Rede pelo Constitucionalismo Democrtico, que visa emancipar oConstitucionalismo das garras da monoculturalidade. H braos e mentes nesta luta.

    Especialmente, aos professores Gustavo Ferreira Santos e Joo Paulo

    Allain Teixeira, que tanto contriburam para esta dissertao, pelo conhecimento jurdico e pelo entusiasmo no debate sobre Constitucionalismo e Democracia.

    Ao meu orientador, Prof. Bruno Galindo, exemplo de acadmicodedicado e sensvel, pelas sugestes e pela pacincia.

    CAPES e ao povo brasileiro, por terem investido na minha formaoacadmica atravs da Universidade Pblica. Espero, sinceramente, que as experincias

    aqui estudadas possam contribuir para uma concepo mais justa, plural e igualitria desociedade.

    Pelo apoio incondicional da minha famlia: meus pais, Eduardo e Rosana,e meus irmos, Paulo e Duda. Se pude enxergar longe, porque estava amparado nosombros de gigantes.

    Sumak Kawsay (Bem-viver) e andereko (vida harmoniosa)!

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    7/156

    5

    Para essa pessoa que, pela insuficincia de mimmesmo, recorro a Fernando Pessoa: Amo comoama o amor. No conheo nenhuma outra razo paraamar seno amar. Que queres que te diga, alm deque te amo, se o que quero dizer-te que te amo?.

    Laura Morais, por ter lido e corrigido cadavrgula, acento e pargrafo desta dissertao. Por sero que .

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    8/156

    6

    Soy Amrica Latina,

    Un pueblo sin piernas, pero que camina

    T no puedes comprar al vientoT no puedes comprar al sol

    T no puedes comprar la lluviaT no puedes comprar el calorT no puedes comprar las nubesT no puedes comprar los coloresT no puedes comprar mi alegraT no puedes comprar mis Dolores (...)Vamos caminando

    Aqu se respira luchaVamos caminandoYo canto porque se escuchaVamos caminandoAqu estamos de pieQue viva la amrica!No puedes comprar mi vida...

    Latinoamerica, Calle 13.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    9/156

    7

    RESUMO

    Brando, Pedro.O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano: participao

    popular e cosmovises indgenas (Sumak Kawsay e Pachamama). 2013. Dissertao deMestrado Centro de Cincias Jurdicas / Faculdade de Direito do Recife, UniversidadeFederal de Pernambuco, Recife.

    A dissertao tem o objetivo de analisar as inovaes Constitucionais do NovoConstitucionalismo Pluralista Latino-Americano, que resultado da fuso da concepode Novo Constitucionalismo Latino-Americano, proposto Roberto Viciano e RubensDalmau, centrada na participao popular e nos mecanismos democrticos contidos nasrecentes Constituies da Amrica-Latina, com a percepo de Constitucionalismo

    Pluralista, de Raquel Fajardo - mais interessada no protagonismo indgena e naformao do Estado plurinacional. O presente trabalho tambm busca caracterizar asdiferentes concepes tericas sobre o fenmeno, comparando-o com oNeoconstitucionalismo de matriz europeia e destacando suas diferenas, atravs dorecorte plurinacional e intercultural que permeia as novas Constituies Latino-Americanas. Nesse sentido, demonstramos que esse movimento surgiu como uma fortereao popular s polticas neoliberais adotadas, principalmente, nos anos noventa, ecomo tal reao reverberou em textos constitucionais comprometidos com aparticipao popular e a cosmoviso indgena, tendo em vista que este grupo foi ogrande protagonista nessas reaes sociais. Sob esta perspectiva, analisamos,primeiramente, as Cartas Constitucionais da Venezuela e da Colmbia queapresentaram significativos avanos normativos, embora no sejam efetivamenteconsideradas parte do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-americano tendo emvista que no incorporaram as cosmovises indgenas em seus textos Constitucionais -,alm de, no primeiro caso, as recentes reformas constitucionais tenderam a enfraquecero poder popular e fortalecer o poder presidencial e, no segundo caso, a formaomonocultural das instituies estatais, ainda que a Corte Constitucional propicie algunsavanos no campo dos Direitos sociais e na questo indgena. Em seguida, estudamos asConstituies do Equador e da Bolvia que, efetivamente, rompem com o modelo doconstitucionalismo tradicional e propem novas e criativas possibilidades de pensar oConstitucionalismo de acordo com os postulados da descolonizao eplurinacionalidade, positivando nessas Constituies o Sumak Kawsay (Bem-viver),que orienta uma nova concepo de desenvolvimento alternativa ao capitalismo, aPachamama (Me-terra), que rompe com o antropocentrismo moderno e torna anatureza sujeito de Direitos, e a intensificao da participao popular, por meio deinstituies que buscam controlar o estado e a economia, alm de possibilitar aparticipao indgena no seio do Estado.

    Palavras-chave: Constitucionalismo, latino-amrica, Democracia, Pachamama, SumakKawsay.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    10/156

    8

    ABSTRACT

    The dissertation aims to analyze the innovations of the New Constitutionalism

    Constitutional Pluralist Latin American, which is the result of the fusion of design "NewLatin American Constitutionalism," proposed by Roberto Viciano and Rubens Dalmau,focused on popular participation and democratic mechanisms contained in recentconstitutions of Latin America, with the perception of "Pluralistic Constitutionalism"Raquel Fajardo - more interested in the role and training of indigenous multinationalstate. This study also seeks to characterize the different theoretical conceptions aboutthe phenomenon, comparing it with the European neoconstitutionalism array andhighlighting their differences through intercultural and plurinational cut that permeatesthe new Latin American Constitutions. Accordingly, we demonstrate that thismovement emerged as a strong popular reaction to the neoliberal policies adoptedmainly in the nineties, and as such reaction reverberated in constitutional textscommitted to popular participation and indigenous worldview, a view that this groupwas the great protagonist in these social reactions. From this perspective, we analyze,first, the Constitutional Letters of Venezuela and Colombia that, although they are notactually considered part of the New Constitutionalism Pluralist Latin American - a viewthat does not incorporate the indigenous worldviews in their Constitutional texts -besides, in the first case, the recent constitutional reforms tended to weaken the powerof the people and strengthen presidential power and, in the second case, the stateinstitutions still being formed by single culture, even if their triggers someConstitutional Court in the field of social rights and indigenous issues showedsignificant normative advances. Then we studied the constitutions of Ecuador andBolivia, which effectively break with the traditional model of constitutionalism andpropose new and creative possibilities of thinking Constitutionalism in accordance withthe postulates of decolonization and plurinationality, these Constitutions makingconstitutional the Sumak Kawsay (Well -live), which guides the development of a newdesign alternative to capitalism, the Pachamama (Mother Earth), which breaks with themodern anthropocentrism and nature makes the subject of rights, and increased popularparticipation, through institutions that seek to control the state and the economy, andenable indigenous participation within the state.

    Keywords: Constitutionalism, Latinoamerica, Democracy, Pachamama, SumakKawsay.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    11/156

    9

    SUMRIO

    Introduo ..................................................................................................................... 101. Delimitando o nosso objeto de estudo .................................................................. 15

    1.1. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano na perspectiva de RobertoViciano e Rubens Dalmau .......................................................................................... 161.2. O Constitucionalismo Pluralista e os ciclos constitucionais de Raquel Fajardo .

    ......................................................................................................................... 231.3. Um breve dilogo com Roberto Viciano, Rubens Dalmau e Raquel Fajardo . 291.4. O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano: entre a participaocidad e as cosmovises indgenas a concepo adotada neste trabalho ................. 311.5. Outras concepes tericas sobre o tema......................................................... 36

    1.6. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo: diferenas e aproximaes......................................................................................................................... 43

    1.7. O contexto poltico de surgimento do Novo Constitucionalismo PluralistaLatino-Americano: uma reao ao projeto neoliberal ................................................ 50

    2. A Constituio Colombiana de 1991 e a Constituio Venezuelana de 1999 .. 572.1. A Constituio Colombiana de 1991 e a Corte Constitucional Colombiana ... 57

    2.1.1. Direitos indgenas: previso normativa e aplicao Constitucional ......... 642.2. O caso Venezuelano ......................................................................................... 71

    2.2.1. Processo Constituinte e a Constituio da Repblica Bolivariana daVenezuela de 1999 ......................................................................................................

    .................................................................................................................. 722.2.2. Tenses entre a participao popular e o hiper-presidencialismo ............ 762.2.3. A Constituio Bolivariana e a questo Indgena ..................................... 87

    3. Constituies da Bolvia e do Equador: O Novo Constitucionalismo PluralistaLatino-Americano ......................................................................................................... 93

    3.1. Sumak Kawsay/ Suma Qamaa/Bem-Viver ...........................................................98 3.1.1. TIPNIS: tenses entre o desenvolvimentismo e o Sumak Kawsay ........ 110

    3.2. Pachamama .................................................................................................... 1163.3. Refundao do estado e desenho institucional............................................... 124

    Consideraes finais ................................................................................................... 137Referncias .................................................................................................................. 140

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    12/156

    10

    Introduo

    A histria da Amrica Latina fortemente marcada por perodos deinstabilidade institucional e por construes desiguais nas relaes de poder. AsConstituies, em nosso continente, so, majoritariamente, representadas porconcepes elitistas e coloniais em detrimento de compreenses de mundohistoricamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a cosmoviso indgena ea cultura negra.

    O Estado perifrico Latino-Americano tem razes distintas do Estado-

    nacional Europeu. Enquanto aquele foi construdo como fruto da instrumentalizao dopoder das matrizes ibricas (sem uma sociedade nacional) e subordinado aos interessesmercantis das metrpoles, este foi construdo pela ascenso de uma burguesiaindividualista e liberal que substituiu a aristocracia feudal. Nesse cenrio, a tradiobrasileira e latino-americana das instituies jurdicas , de um lado, uma conflunciaentre a herana colonial ibrica burocrtico-centralizadora e, de outro, uma tradioliberal-individualista utilizada a servio dos detentores do poder (Wolkmer, 2008, p. 20-

    30).

    No plano constitucional, as antigas Cartas Latino-Americanas, em geral,foram baseadas na Constituio dos Estados Unidos, marcadamente liberal e elitista(Gargarella, 2009, p. 4). O Constitucionalismo semntico ou nominal marcou a histriaLatino-Americana durante parte do sculo XIX e XX, assinalando uma contraposioentre o Constitucionalismo dos pases avanados, com fora normativa e vinculante, eo Constitucionalismo dos pases subdesenvolvidos, nulo de efetividade (Pisarello,2009, p.1).

    Esse velho Constitucionalismo, portanto, caracterizado porConstituies que concretizam privilgios para classes detentoras do poder econmico epor concepes culturalmente monolticas e excludentes, colocando as concepes demundo no eurocntricas como subordinadas e submissas1. Nesses casos, opera-se a

    1

    De acordo com R. Viciano e R. Dalmau En general, las constituciones del viejo constitucionalismosolo cumplieron los objetivos que haban determinado las elites: la organizacon del poder del Estado y elmantenimiento, em algunos casos, de los elementos bsicos de um sistema democrtico formal (Viciano

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    13/156

    11

    constitucionalizao como forma de submeter as diferentes formas de pensar o mundo aum pensamento nico, sem nenhuma perspectiva de pluralidade ou interculturalidade.

    Com o objetivo de questionar essas premissas apresentadas, o giro

    paradigmtico do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano busca propornovas alternativas para resoluo desses conflitos, priorizando perspectivas que foramignoradas ao longo da histria jurdica em nosso continente, bem como demarcando oespao reivindicatrio e transformador do Constitucionalismo, que se aproxima daDemocracia, ao contrrio do discurso jurdico formado historicamente, revelador de umDireito Constitucional comprometido com a manuteno dos privilgios e sem o intuitode combater desigualdades sociais e de positivar concepes de mundo no

    eurocntricas2.

    Observaremos, no decorrer da dissertao, que as Constituies do NovoConstitucionalismo Pluralista fundam novas lgicas jurdicas e polticas - para ospases andinos que, em grande medida, ainda vivem as contradies acima elencadas,mas tenta super-las de forma democrtica e participativa, com frmulas constitucionaisabsolutamente originais e criativas.

    O Novo Constitucionalismo Pluralista, diante deste cenrio, apresenta umcarter transformador diante das prticas constitucionais presentes em nosso continente.No entanto, importante destacar, desde logo, que h uma pluralidade de entendimentosacerca do tema, com contribuies de diversos autores.

    por isso que, na primeira parte de nosso trabalho, como modelosrepresentativos de diversas concepes acerca do tema, estudaremos as perspectivas deRoberto Viciano e Rubens Dalmau, que demonstram uma preocupao central com asassembleias constituintes democrticas e com as novas formas de interveno popular, ea concepo de Raquel Fajardo, centrada no reconhecimento dos direitos indgenas,como desdobramento de um Constitucionalismo Pluralista. Essas duas contribuies

    e Dalmau, 2010, p. 22-23). Nas palavras de Neves: O que caracteriza a democratizao dos pases sul-americanos a inexistncia de uma esfera pblica universalista, que pressupe ampla incluso social dapopulao nos sistemas funcionais (Neves, 2008, p. 213) 2 por isso que nos serve o alerta de Wolkmer: A importao de estruturas coloniais assimiladas pelas

    elites locais (matrizes eurocntricas e norte-americana) tem favorecido e alimentado formas dedominao econmica e de excluso social, inviabilizando o desenvolvimento de uma cultura jurdicaautenticamente latino-americana (Wolkmer, 2008, p.20).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    14/156

    12

    so, na nossa perspectiva, as mais valorosas no mbito da sistematizao desse novomovimento.

    No temos o objetivo, por bvio, de homogeneizar as diferentes

    propostas constitucionais, mas de verificar os traos comuns na construo desse novomovimento. Posteriormente, com o intuito de criar uma concepo de NovoConstitucionalismo Pluralista que abarque a riqueza das experincias que ocorrem emnuestra America, definiremos a concepo que pretende guiar a presente dissertao.

    No obstante, analisamos outras concepes tericas sobre o tema, desdeautores latino-americanos, at os autores, passando pela incipiente experincia brasileirasobre o novo movimento. Em que pese a primeira parte deste trabalho constituir umestudo mais descritivo sobre as diferentes abordagens a respeito do NovoConstitucionalismo, mais adiante, buscaremos uma anlise mais crtica e reflexiva sobreo tema.

    Feito esse percurso terico sobre as diferentes concepes sobre o tema,nos preocupamos, por rigor metodolgico, em distinguir o Neoconstitucionalismo doNovo Constitucionalismo, demonstrando que este movimento, ao contrrio daquele,

    dimensiona, como polo concretizador da Constituio, a participao popular e as lutassociais, e no o poder judicirio.

    Na ltima parte do primeiro captulo, analisamos o surgimento do NovoConstitucionalismo Pluralista como uma reao imediata s polticas neoliberais que sepropagaram emnuestra Amrica nos anos 90. Demonstramos como a participaopopular e a reorganizao dos movimentos de massa foi importante para criao deprocessos constituintes democrticos e participativos em nosso continente quereverberam em Constituies comprometidas com o reconhecimento de direitos sociais,indgenas e com a interveno do Estado na economia.

    Dedicamos o segundo captulo para tratar das Constituies Colombianae Venezuelana. Analisamos, no caso Colombiano, a atuao protagonista da sua CorteConstitucional na efetivao dos postulados constitucionais e, ainda, o desenvolvimentoda normativa Constitucional sobre os povos indgenas naquele pas.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    15/156

    13

    No caso da Carta Venezuelana, analisamos a questo indgena, tanto naConstituio como nas normas infraconstitucionais que regulamentam os dispositivosConstitucionais, referentes autonomia indgena. Os mecanismos de participaopopular tambm so destrinchados nesse processo, notadamente, em relao s recentesreformas constitucionais ocorridas na Venezuela, que aumenta o poder presidencial edificulta a participao popular no processo democrtico.

    Demonstra-se, assim, que tais reformas constitucionais distanciam-se dospostulados do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, notadamente, em relao aintensificao da interveno cidad. Dessa forma, esses processos so importantesprecedentes do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, mas no

    cumprem os ideais descolonizadores e interculturais que so as principais marcas dessenovo movimento.

    Reservamos para o ltimo captulo o estudo sobre as Constituies doEquador e da Bolvia e os seus mecanismos descoloniais e interculturais, desenhados aolongo da primeira parte de nosso trabalho.

    O Sumak Kawsay (Bem-viver) analisado em suas diversas dimenses,

    especialmente, a partir da perpesctiva indgena/andina, destacando a importncia de suapositivao para uma nova lgica Constitucional e perpassando o delicado conflito deTIPNIS, na Bolvia, em que concepes indianistas e marxistas de desenvolvimentoentram em rota de coliso. A Pachamama, que busca superar o antropocentrismo doConstitucionalismo tradicional, analisada nos textos da Constituio do Equador e daBolvia.

    Por fim, diante desssas inovaes, mostramos como o EstadoPlurinacional se redimensiona para receber as novas perpesctivas acima citadas. A partirda, analisamos a reconfigurao do Estado a partir do protagonismo indgena e daparticipao popular que se desdobram em mecanismos institucionais que intensificama participao cidad na vida poltica desses pases.

    Ressaltamos que a nossa inteno no fazer uma anlise comparativaentre as constituies do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano e o

    caso brasileiro, muito menos pretendemos fazer um exame histrico ou completo do

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    16/156

    14

    Constitucionalismo da nossa regio - no nosso intuito analisar minuciosamente oprocesso constitucional nesses pases.

    O que nos interessa so as novas contribuies para a teoria da

    Constituio naquilo que h de inovador e original. O nosso recorte busca analisar odenominador comum no Constitucionalismo desses pases: a positivao dos Direitos daPachamama, do Sumak Kawsay e a intensificao da participao popular no processoconstitucional3.

    3 Nesse contexto, importante salientar o papel da academia que pode, ao contrrio de seu pretexto oficialde difundir conhecimento, atuar muito mais como sufocadora de outros conhecimentos possveis, sob oargumento da necessria cientificidade e racionalidade. O que guia a presente dissertao o respeitoa outros conhecimentos produzidos fora das linhas acadmicas, por isso respeitamos e buscamos oconhecimento dos povos indgenas que no se enquadram em um modelo estreito de produo acadmica.Estudar esses novos modelos, tambm representa, nas palavras de Raquel Sieder: [...] una critica al saber jurdico dominante monocultural, racista y exclusivo y um compromiso aunque sea todavia al niveldiscursivo - de valorrar las epistemologias o ls saberes distintos que historicamente han sido negados,discriminados y desvalorizados (Sieder, 2011, p. 316). necessrio, portanto, um papel crtico emrelao prpria academia e a produo do conhecimento.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    17/156

    15

    1. Delimitando o nosso objeto de estudo

    A problemtica da definio do Novo Constitucionalismo Pluralistaperpassa por diversas nuances, de ordem terica e prtica, que pretendemosdesenvolver, tendo em vista, como ressalta Rodrigo Uprimmy, que a intensidade dessasreformas constitucionais no so acompanhadas por um processo satisfatrio desistematizao dos pontos de convergncia desse movimento (Uprimmy, 2011, p. 110).

    O que buscamos, diante da complexidade do assunto e da dificuldade desua definio, principalmente por se tratar de uma experincia recente, ressaltar as

    diferentes contribuies para o mundo jurdico e traar parmetros minimamentedemonstrveis para definir o que chamaremos de Novo Constitucionalismo PluralistaLatino-Americano.

    H variadas denominaes para esse novo movimento: i) NovoConstitucionalismo Latino-Americano (Viciano e Dalmau, 2010; 2011; 2011b; Dalmau2008); ii) Constitucionalismo Mestio (Baldi, 2009); iii) Constitucionalismo Andino(Wolkmer, 2010)4; iv) Neoconstitucionalismo Transformador5 (Santamaria, 2011); v)Constitucionalismo do Sul (Pissarelo, 2008); vi) Constitucionalismo Pluralista(Fajardo, 2011); vii) Constitucionalismo Experimental ou ConstitucionalismoTransformador (Sousa Santos, 2010c) viii) Constitucionalismo Plurinacional eDemocracia consensual plural do novo Constitucionalismo Latino-Americano(Magalhes, 2011) ou Novo Constitucionalismo Indo-afro-latinoamericano (Magalhes,2010); ix) Constitucionalismo Pluralista Intercultural (Wolkmer, 2010, p. 154); x)Constitucionalismo Indgena (Clavero, 2011); xi) Constitucionalismo PlurinacionalComunitrio (Chivi Vargas, 2009); xii) O Novo Constitucionalismo Indigenista(Ramirez, 2009) e xiii) Constitucionalismo da Diversidade (Uprimmy, 2011).

    Cada autor, a seu modo, analisa as recentes reformas e transformaesconstitucionais ocorridas na Amrica Latina, de diferentes mbitos tericos e pordiversas perspectivas ideolgicas, tendo em vista que, como afirma Cesar Baldi:

    4 Wolkmer no faz referncia a um autor especifico, apenas afirma que so expresses que vm sendo

    utilizadas.5 O autor explica que tomou o termo Transformador emprestado de Boaventura de Sousa Santos(Santamaria, 2011, p. 15).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    18/156

    16

    justamente sobre sua caracterizao ou periodizao que existem profundasdivergncias, algumas de cunho epistemolgico (Baldi, 2011, p. 11).

    Os trs autores que analisaremos em seguida (Rubens Dalmau, Roberto

    Viciano e Raquel Fajardo), porm, foram os que tentaram sistematizar, no campoConstitucional, de forma melhor sucedida, tais reformas, contextualizando com umaviso crtica sobre os processos recentes ocorridos na Amrica Latina.

    Posteriormente, analisaremos a diferena desse novo movimento com oNeoconstitucionalismo de matriz europeia e o contexto poltico de seu surgimento.

    1.1. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano na perspectiva deRoberto Viciano e Rubens Dalmau

    Os precursores do desenvolvimento terico do Novo Constitucionalismoso os juristas da Universidade de Valencia, na Espanha, Roberto Viciano e Rubens

    Dalmau. Obviamente, j havia autores que trabalhavam essas experincias no mbitodos pases latinos, mas parece-nos que Dalmau e Viciano foram os primeiros, a partir daTeoria da Constituio, que buscaram sistematizar os avanos normativos dasConstituies Andinas, principalmente com a experincia acumulada como assessoresconstituintes dos processos Constitucionais do Equador, Bolvia e Venezuela.

    Inicialmente, os autores diferenciam o Novo Constitucionalismo doNeoconstitucionalismo. O Neoconstitucionalismo seria uma teoria do Direito e no uma

    teoria da Constituio, pois visa uma anlise da dimenso positiva da Constituio. Nobusca uma ruptura, apenas converter oEstado de Direito em Estado Constitucional de Direito, embora reconhea a centralidade e o fortalecimento da Constituio,principalmente com a forte presena dos princpios no ordenamento jurdico (Viciano eDalmau, 2010, p. 17-18).

    O Neoconstitucionalismo uma corrente doutrinria fruto da academia,dos professores de Direito Constitucional, enquanto o Novo Constitucionalismo ummovimento surgido das reivindicaes e manifestaes populares. Todavia, ressaltam os

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    19/156

    17

    autores, uma corrente constitucional em perodo de construo doutrinaria, comelementos comuns, mas sem um modelo hermtico (Viciano e Dalmau, 2011b, p. 4;2011, p. 312-313).

    O Novo Constitucionalismo, ao mesmo tempo em que absorve algunscomandos do Neoconstitucionalismo, notadamente, a infiltrao da Constituio noordenamento jurdico, ostenta, como preocupao central, a legitimidade democrtica daConstituio, garantindo a participao poltica de forma que s a soberania popularpode determinar a alterao da Constituio e recuperando a origem democrtico-radical do Constitucionalismo Liberal Revolucionario Jacobino. Trata-se, portanto, deuma teoria (democrtica) de la Constitucin (Viciano e Dalmau, 2010, p. 18/19).

    Essa Teoria, com alguns obstculos, tem se materializado nos processosconstituintes da Venezuela, Bolvia e Equador, pelo que os autores denominam deNovo Constitucionalismo Latino-Americano.

    Assim, umas das principais diferenas que marca o velhoConstitucionalismo da Amrica Latina, em relao ao Novo Constitucionalismo, serefere aos processos constituintes. Enquanto aquele era fruto de um acordo de elites,

    baseado em interesses comuns, este faz parte de uma dinmica participativa e marcadapor tenses. Nas palavras de Dalmau es um constitucionalismo sin padres, onde s opovo pode sentir-se progenitor da Constituio, em contraposio aos pais daConstituio do velho Constitucionalismo (Viciano e Dalmau, 2010, p. 22; 2010b, p. 9-13; Dalmau, 2008, p. 6).

    Nesse sentido, fazendo a relao entre a ativao do poder constituinte eo carter revolucionrio dessas Constituies, aps afirmar que somente o povo legtimo para fazer alteraes Constitucionais mediante processos constituintesdemocrticos e participativos, afirma Rubns Dalmau:

    Fronte a unha constitucin dbil, adaptada e retrica, propia do velloconstitucionalismo latinoamericano, o novo constitucionalismo, froito dasasembleas constituintes comprometidas con procesos de rexeneracin social epoltica, expn un novo paradigma de Constitucin forte, orixinal evinculante, necesaria nunhas sociedades que confiaron na mudanzaconstitucional a posibilidade dunha verdadeira revolucin6 (Dalmau, 2008, p.5-6).

    6 O autor, neste caso, utiliza a lngua galega.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    20/156

    18

    A precursora desse processo foi a Constituio Colombiana de 1991 -impulsionada pela mobilizao da sociedade civil, notadamente o movimento septimapapeleta que gerou uma Assembleia Constituinte plenamente democrtica, ainda quesem o referendo de ratificao popular, ncleo legitimador daquelas Constituies(Viciano e Dalmau, 2010, p. 23-24; 2010b, p. 16-17).

    A Constituio Brasileira de 1988, na percepo dos autores, ainda queanuncie alguns traos essenciais, no considerado um exemplo desse NovoConstitucionalismo, devido ao seu processo constituinte deficitrio de legitimidadedemocrtica em sua Assembleia Nacional Constituinte, condicionada pelas regrasditatoriais7 (Viciano e Dalmau, 2011, p. 318-319; 2010b, p. 11-12). Sobre o tema,

    comenta Luis Roberto Barroso:

    No prevaleceu a ideia, que teve amplo apoio na sociedade civil, de eleiode uma constituinte exclusiva, que se dissolveria quando da concluso dostrabalhos. Ao revs, optou-se pela formula insatisfatria de delegao dospoderes constituintes ao Congresso Nacional, a funcionar, temporariamente,como constituinte, inclusive com a participao de senadores eleitosanteriormente sua instalao, por se encontrarem no curso de seus mandatosde oito anos (Barroso, 2009, p. 41).

    Sem dvidas, o resultado do processo constituinte de 1988 foi satisfatrioem muitos aspectos, notadamente, na garantia da ordem democrtica e dos direitosfundamentais que iniciou uma nova institucionalidade na nossa recente democracia. Opapel dos movimentos sociais e das mobilizaes populares, principalmente naafirmao dos Direitos sociais, foi fundamental para uma Constituio que garantisse oEstado Social e Democrtico de Direito.

    No entanto, no obstante tais avanos, o Processo Constituinte Brasileiro

    que originou a Constituio de 1988 no cumpriu os requisitos exigidos pelos autorespara se enquadrar no Novo Constitucionalismo Latino-Americano, tendo em vista: i) aparticipao de representantes da ditadura militar que macularam a composio doProcesso Constituinte; ii) a ausncia de consulta popular para a ativao do Poder

    7 No mesmo sentido, os autores entendem que o texto constitucional Peruano foi manipulado pelo regimegolpista fujimorista e, no caso da reforma argentina de 1994, no houve a ativao direta do poderconstituinte. No caso da Constituio equatoriana de 1998, no h a ratificao do texto final, parecidacom o caso Colombiano. Esses exemplos demonstram, portanto, que no h um carter linear ou temporalno Novo Constitucionalismo latino-americano (Viciano e Dalmau, 2011, p. 319-320).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    21/156

    19

    constituinte que foi realizado pela Emenda Constitucional n 26; iii) ausncia deratificao popular do projeto final da Constituio.

    Efetivamente, o primeiro processo Constitucional de acordo com os

    postulados do Novo Constitucionalismo foi na Constituio da Venezuela de 1999,cujas caractersticas so as seguintes: i) referendo ativador do processo constituinte; ii)referendo de aprovao do texto Constitucional; iii) rigidez para a reformaConstitucional, de modo que o poder constituinte derivado no possa reformar aConstituio. Nesse caso, somente o poder originrio pode modificar o textoconstitucional, retirando-se dos poderes constitudos, por si s, a possibilidade de alterara Constituio, tendo em vista que todas as alteraes devem se submeter ao crivo

    popular8 (Viciano e Dalmau, 2010, p. 25-33; 2010b, p. 12).

    Dessa forma, os autores consideram o poder constituinte-constitudo umadas grandes falacias de las ciencias sociales, pois s a soberania popular deveria ter opoder de alterar a Constituio. O poder constituinte delegado ao legislativo perde a suaessncia, pois o deveria ser, teoricamente, indelegvel e intransfervel, com o objetivode mantienen viva la relacin entre el pueblo y su Constitucin (Viciano e Dalmau,2008b, p. 107-109). Assim, h a eliminao do poder constituinte-constitudo(constituinte derivado ou poder reformador), articulando-se como nico legtimo para areforma, o prprio poder constituinte originrio, por isso a denominao doConstitucionalismo de transio9 , tendo em vista a necessidade de constantesmudanas para resolver problemas que esto historicamente enraizados (Viciano eDalmau, 2010, p. 32-34).

    Posteriormente, essas experincias foram materializadas nos processos

    constituintes do Equador (2007-2008) e da Bolvia (2009), nos quais, segundo osautores: Teora y prctica se unem, por lo tanto, em el nuevo constitucionalismolatinoamericano (Viciano e Dalmau, 2011, p. 321).

    8 por isso que os autores entendem se supera el concepto de Consttucin como limitadora de poder(constituido) y se avanza em la definicion de la Constitucon como frmula democrtica donde el poderconstituynte - la soberania popular expresa su voluntad sobre la configuracion y limitacin del Estadopero tambin de la propria sociedad (Viciano e Dalmau, 2010, p. 16). Trabalharemos as possibilidadesde modificao Constitucional na Constituio da Venezuela, de forma aprofundada, em tpico especificomais adiante. 9 Viciano e Dalmau explicam o seguinte: El objetivo de la constitucin, por lo tanto, no era estabelecer

    el modelo final, sino possibilitar que este modelo pudiera ser pensado, com ms tiempo y sin amenazainminente de um regresso al viejo sistema (Viciano e Dalmau, 2008b, p. 106). Na j citada expresso deBoaventura de Sousa Santos Constitucionalismo experimental (Sousa Santos, 2010c).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    22/156

    20

    A Constituio Boliviana, no artigo 408, determina que a reforma total daConstituio - aquela que afeta sua base fundamental - deve ser feita atravs daAssembleia Constituinte Originaria Plenipotenciria, ativada mediante referendopopular que pode ser convocado: i) por 20% do eleitorado; ii) pela AssembleiaLegislativa Plurinacional; iii) pelo Presidente ou Governador. O mesmo artigo garanteque a entrada em vigor da alterao Constitucional necessita de ratificao popularmediante referendo.

    Portanto, as Constituies Boliviana e Venezuelana eliminaram o poderconstituinte-constitudo. Os autores fazem uma pequena ressalva quanto ao casoequatoriano, em que permitida a alterao da Constituio por meio dos poderes

    constitudos, exceto suas clausulas fundamentais, includas restries a Direitos egarantias fundamentais, estrutura e elementos fundamentais do Estado, ou procedimentode reforma da Constituio (Viciano e Dalmau, 2010a, p. 33; 2011b, p. 18; 2010b, p.18). Dalmau entende que essas possibilidades, todavia, no se mostram preocupantestendo em vista a impossibilidade de se alterar pontos essenciais na Constituio daquelepas (Dalmau, 2008, p. 14).

    De acordo com o art. 441 da Constituio do Equador, a emendaConstitucional que no altere os elementos acima citados, pode ser realizado mediantereferendo, desde que seja convocado: i) pelo presidente da repblica; ii) pelos cidados,com no mnimo 8% das pessoas inscritas no registro eleitoral; iii) pelos membros daassembleia nacional, com um nmero no inferior a tera parte de sua composio. Emtodas as hipteses, o projeto s ser aprovado se obtiver dois teros dos votos daassembleia nacional, passando por dois debates, sendo o segundo impreterivelmente 30(trinta) dias depois do primeiro.

    No caso das reformas constitucionais, previsto no art. 442 daConstituio do Equador - que tem como limites direitos e garantias constitucionais, amodificao do procedimento de reforma constitucional - pode ser iniciado: i) peloPresidente da Republica; ii) por 1% dos cidados inscritos no registro eleitoral; iii)mediante resoluo aprovada pela maioria dos integrantes da Assembleia Nacional. Areforma tambm tramita em dois debates, sendo o segundo at 30 (trinta) dias depois doprimeiro. Se aprovado, deve-se convocar referendo nos 45 dias seguintes, sendonecessrio, para sua aprovao, mais da metade dos votos vlidos.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    23/156

    21

    J o artigo 444 prev que a Assembleia Nacional Constituinte pode serconvocada atravs de consulta popular, que tambm deve estipular a forma de eleiode seus representantes, e pode ser solicitada pelo Presidente da Republica, por doisteros da Assembleia Nacional, ou por 12% das pessoas inscritas no registro eleitoral.Igualmente, o mesmo artigo afirma que para a entrada em vigor da Nova Constituio,fruto da ANC, deve ser aprovada por referendo popular.

    Reformas constitucionais compe o ncleo de lutas sociais, que implicammudanas em vrios campos e esferas da vida social. Os processos constituintes so aponta de iceberg dos conflitos para a transformao de paradigmas societrios, quevisam institucionalizar novos modelos polticos (Barbosa et al, 2009, p. 178-191).

    Trata-se, como se pode observar, do desenvolvimento da participao popular nombito da reforma da Constituio, pois o povo convocado para toda e qualqueralterao no campo constitucional10.

    por isso que os autores colocam a necessidade da continuidadeConstitucional pois o legislador ordinrio no poder reformar a Constituio eliminando o poder constituinte-constitudo/poder constituinte derivado.

    Ademais, surge como caracterstica formal dessas Constituies i)originalidade, com novas formulas Constitucionais; ii) amplitude, que tambm estrelacionada com a necessidade de manuteno da vontade do poder constituinte,limitando o campo de atuao dos poderes constitudos tanto o Parlamento quanto oTribunal Constitucional11; iii) complexidade, de cunho institucional, embora com umalinguagem acessvel; iv) rigidez Constitucional (Viciano e Dalmau, 2010, p. 24-26).

    10 uma experincia interessante, principalmente para o caso brasileiro, em que as inmeras reformasconstitucionais ocorreram sem a menor preocupao com as consultas populares. No Equador, porexemplo, o ento recm-eleito Presidente Rafael Correa assumiu a presidncia e convocou uma consultapopular para saber se a populao desejava uma nova Constituio. O sim foi vitorioso sendo,posteriormente, eleito os representantes da assembleia nacional constituinte, com forte presena earticulao dos movimentos sociais (Barbosaet al, 2009, p. 180-181). Na Bolvia, em julho de 2006,foram eleitos 255 representantes da assembleia constituinte, com forte presena indgena em suacomposio e presena de 84,51% da populao, a maior participao poltica da histria da Bolvia10 (Barbosaet al, 2009, p. 187/188). Como j ressaltado, o caso Venezuelano, que tem fortes caractersticasparticipantes, ser analisado em tpico especifico.11 Roberto Gargarella, referindo-se a extenso dos novos direitos nas Constituies, afirma que embora

    novos Direitos no se convertam magicamente em realidade, a ausncia de positivao de tais Direitos,tende a trabalhar contra a sua concretizao (Gargarella, 2010, p. 13). Ressalta-se, no entanto, que no sonovos Direitos, o que novo a potivivao Direitos.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    24/156

    22

    Assim, o Novo Constitucionalismo, aproximando-se doConstitucionalismo revolucionrio do sculo XVIII, fortemente influenciado peloPositivismo, coloca-se contra duas teses reinantes no Direito Constitucional clssico:textos sintticos e delegao do poder constituinte (Viciano e Dalmau, 2008b, p. 109).

    J as caractersticas materiais do Novo Constitucionalismo buscamintensificar a participao popular no mbito democrtico, construindo umaaproximao entre o governo e a soberania popular, mediante novas formas dedemocracia e participao cidad. Nesse cenrio, com o desenvolvimento de umademocracia participativa, os partidos polticos tm o seu papel reduzido, pois limitadopela interveno direta da populao (Viciano e Dalmau, 2010, p. 34-35).

    Como consectrio do incremento da democracia participativa, tem-se ummaior protagonismo da participao de grupos historicamente marginalizados, como ospovos indgenas, atravs da especificao de seus Direitos, alm da recepo de tratadosinternacionais e aes constitucionais protetivas de tais Direitos. Os povos indgenas,historicamente excludos, tambm so reconhecidos atravs de institutos antesdesconhecidos do Direito Constitucional.

    Por fim, ainda como caracterstica material, observa-se o controle daeconomia pelo estado como forma de reduzir as desigualdades econmicas atravs daimplantao de novas e variadas formas de economia solidria, inclusive com oresguardo dos recursos naturais, fruto da luta dos movimentos sociais contra oneoliberalismo, pois, como afirmam os autores las condiciones sociales em Amricalatina no dejan muchos resquicios para la esperanza, pero uno de ellos es el papel de umconstitucionalismo comprometido (Viciano e Dalmau 2010, p. 37/38; 2011b, p. 5).

    de se ressaltar, que o Novo Constitucionalismo proposto pelos autores,no se resume as experincias latino-americanas que pretendemos desenvolver nessadissertao. Trata-se de uma teoria explicativa e no propriamente cientfica - que teveseu primeiro desenvolvimento a partir das experincias citadas, mas nada indica que selimitem aqueles experimentos.

    A definio desses autores, no entanto, no passa imune a crticas. No

    tpico especfico sobre a nossa definio do Novo Constitucionalismo Pluralista,traaremos nossa anlise sobre suas propostas.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    25/156

    23

    1.2. O Constitucionalismo Pluralista e os ciclos constitucionais de RaquelFajardo

    A autora peruana12, Raquel Fajardo, tem uma preocupao fundamentalem analisar a dinmica dos povos indgenas e a sua insero no processo constitucionalde alguns pases Latino-Americanos. uma preocupao que visa combater o longoprocesso de invisibilizao desses povos, resultante tanto de um processo de etnocdiocultural que usou da violncia para exterminar os povos indgenas quanto de uma

    doutrina integracionista, que busca a integrao dos indgenas civilizao e, apesarde mais sutil, igualmente devastadora para a cultura indgena.

    Segundo a autora, as novidades constitucionais introduzidas pelasrecentes ondas de reformas constitucionais se propem a superar tanto oConstitucionalismo liberal monista do sec. XIX, quanto o Constitucionalismo socialintegracionista do sec. XX, ainda marcados por uma forte herana colonial,notadamente, com os instrumentos jurdicos de subordinao e tutela dos povosindgenas (Fajardo, 2011, p. 139). Nesse sentido, convm o alerta de Antonio CarlosWolkmer em relao formao jurdica dos pases de colonizao ibrica:

    Constatou-se, assim, que a imposio e o favorecimento dos pressupostos doDireito aliengena colonizador, alm de discriminar grande parte da prpriapopulao nativa, desconsiderava as prticas costumeiras de um Direitoautctone, largamente exercidas em incontveis comunidades de ndios epopulaes negras escravizadas. Naturalmente tratava-se dos traos reais deuma tradio subjacente e marginalizada de experincias jurdicas informais,que no chegaram a influenciar, tampouco foram reconhecidas e

    incorporadas pela legalidade oficial. Sufocaram-se, assim, as tradies de umDireito nacional mais autntico proveniente das comunidades indgenas, emfuno do Direito estrangeiro, trazido pelo colonizador, e que no expressavaas genunas aspiraes da populao nativa que aqui vivia (Wolkmer, 2008,p. 29).

    12 Sabemos que atualmente no indicado, pelas melhores regras acadmicas, a indicao danacionalidade ou qualquer outra qualificao acompanhando o nome do autor. Todavia, entendemos queos autores do Sul- inclusive, os latino-americanos - foram to invisibilizados no cenrio acadmico,notadamente no campo Constitucional, que necessrio demarcar a sua origem e seu local de fala. Dessaforma, buscamos tirar a capa de invisibilidade da intelectualidade de alguns pases, mostrando que ao Sulh produo acadmica, reflexo e pensamento sobre os problemas envolvendo o Direito.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    26/156

    24

    Dessa forma, as doutrinas liberais e o Constitucionalismo poltico noforam capazes de reproduzir textos constitucionais capazes de refletir os anseios demaiorias polticas, como as populaes indgenas, as afro-americanas, e os diversosmovimentos do campo e urbano (Wolkmer, 2010, p. 147).

    O Constitucionalismo liberal na Amrica Latina surgiu no contexto daindependncia, com forte carter questionador do poder da metrpole e com o intuito deimpor limites ao poder absolutista, em prol da luta emancipatria dos povos da colnia,mas com algumas diretrizes, influenciadas pelas ideias europeias, como o liberalismoeconmico, o dogma da livre iniciativa, a limitao do poder centralizador e aconcepo monista de Estado de Direito (Wolkmer, 2010, p. 148).

    Os estados liberais, portanto, se organizaram sob a tutela do monismo jurdico, pois a ideologia do Estado-nao no permitia mais de um sistema normativovigorando no mesmo espao territorial. Um modelo importado, com forte cargamonocultural, que exclua do processo poltico e jurdico: mulheres, afrodescendentes epovos originrios. Do ponto de vista constitucional, havia trs formas de manter estasujeio: i) abolir as terras coletivas, na inteno de evitar levantes indgenas; ii)assimilar, civilizar e cristianizar os indgenas; iii) estabelecer guerras contra as naesindgenas (Fajardo, 2011, p. 140).

    J Constitucionalismo social, questionou o marco do constitucionalismoliberal, assimilacionista e individualista, ampliando e reconhecendo direitos coletivosdos povos indgenas13. Todavia, o seu objetivo era integrar os indgenas ao Estado e aomercado, sem romper com a identidade do Estado-nao. Ou seja, no se questionou amonoculturalidade e a tutela estatal sobre os povos indgenas (Fajardo, 2011, p. 140).

    Todas essas caractersticas refletem uma forte lgica econmica. Para alm da alta cargaculturalmente homognea e do componente religioso, tinham a clara inteno de anexarterras e retirar dos indgenas os seus territrios ancestrais, disponibilizando para adinmica mercadolgica os seus territrios.

    13 O senso-comum terico ainda firma o incio do Constitucionalismo social com a Constituio deWeimar de 1919, quando, na verdade, foi iniciado com a Constituio Mexicana de 1917. Mostra-se,alm do desconhecimento da realidade constitucional latino americana, uma alta carga de colonialismoconstitucional.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    27/156

    25

    Um questionamento efetivo monoculturalidade, ao colonialismo14, e prpria configurao do Estado tem incio (e caminha de forma progressiva) apenas nofinal do sculo passado (1980) at o presente momento, embora com diversascontradies e tenses (Fajardo, 2011, p. 141). A partir da, a autora divide a nova fasedo Constitucionalismo na Amrica latina em trs ciclos principais, que analisaremos aseguir.

    O primeiro ciclo (1982-1988) denominado de ConstitucionalismoMulticultural, e tem como principais caractersticas a abertura das Constituies para adiversidade cultural e o reconhecimento de vrias lnguas oficiais. So exemplos desseciclo, a Constituio da Guatemala (1985) que reconhece a configurao multietnica e

    multicultural do pas, e a da Nicargua (1987) que declara a natureza multitnica dopovo e seus Direitos culturais, lingusticos e territoriais15 (Fajardo, 2011, p. 141).

    No h, entretanto, maiores avanos no reconhecimento dos Direitosindgenas nem do pluralismo jurdico.

    O segundo ciclo (1989-2005) foi fortemente influenciado pelaconveno 169 da OIT (1989) que, dentre outras coisas, positivou a necessidade de

    consulta prvia aos indgenas e tem como principal caracterstica a introduo defrmulas de pluralismo jurdico que rompem com a ideia de monismo jurdico e,consequentemente, passam a reconhecer as tradies, os costumes e as autoridadesindgenas. O reconhecimento desse sistema foi uma grande conquista para a populaoindgena, tanto para reafirmar seus direitos territoriais quanto para frear a criminalizaode suas lideranas (Fajardo, 2011, p. 142-3).

    Foram determinantes para o desenvolvimento desse segundo ciclo i) aslutas indgenas; ii) o desenvolvimento do Direito Internacional sobre povos indgenas;

    14 Colonialialismo, na concepo de Boaventura de Sousa Santos es todo sistema de naturalizacin de lasrelaciones de dominacin y de subordinacin basadas em diferencias tnicas o raciales. El estadomoderno es monocultural y es colonial em ese sentido, porque sus instituicones siempre han vivido apartir de uma norma, que es uma norma eurocntrica que no celebra sino, al contrario, oculta ladiversidad (Sousa Santos, 2012b, p. 21) 15 Segundo a autora, a Constituio brasileira de 1988 encontra-se no limiar do primeiro para o segundociclo (2011, p. 141), embora no desenvolva os avanos e limites da Constituio brasileira na proteodos Direitos indgenas. Para Ricardo Verdum, a Constituio brasileira: como outras Constituieslatino-americanas, foram incorporadas a diversidade tnica e os direitos especficos no novo textoconstitucional, sem tocar nas estruturas polticas de dominao (Verdum, 2009, p. 97)

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    28/156

    26

    iii) a expanso do multiculturalismo16 e as reformas do Estado e da justia so exemplosdesse novo ciclo: as Constituies da Colmbia (1991)17, Mxico e Paraguai (1992),Peru (1993), Equador (1998) e Venezuela (1999) (Fajardo, 2011, p. 143-144).

    Essas Constituies reconheceram s comunidades indgenas osseguintes Direitos: i) a constituio de autoridades e instituies prprias e legtimas; ii)organizao jurdica de acordo com as suas tradies e costumes; iii) possibilidade deexercer funes jurisdicionais jurisdio autnoma. Todos esses reconhecimentosproduziram a superao do Estado monista do sculo XIX, que foi substitudo por umaespcie de pluralismo jurdico interno, ainda que de forma inorgnica e desorganizadano corpo constitucional (Fajardo, 2011, p. 146).

    Porm, essas Constituies tambm estabeleceram restries autonomiaindgena, defendendo que a mesma seja limitada Constituio e lei, seguindo omodelo da Conveno 169 da OIT, que impe como limite autonomia indgena osdireitos humanos e fundamentais. Dessa forma, cria-se uma espcie de pluralismo jurdico subordinado colonial (Fajardo, 2011, p. 147). So as clusulas de freio, queso incorporados nos textos constitucionais como limites aos direitos indgenas(Wilhelmi, 2009, p. 141). Algumas Constituies ainda criaram leis de compatibilizao(Equador/94) e harmonizao (Colmbia e Peru), estabelecendo uma espcie de relaohorizontal entre essas instncias. O problema que, na prtica, os conflitos passam a serdecididos pela jurisdio ordinria, ou seja, no houve solues adequadasinterculturalmente para a resoluo dessas colises (Fajardo, 2011, p. 148).

    16

    Multiculturalismo diferencia-se de interculturalismo, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos: Aocontrrio do multiculturalismo que pressupe a existncia de uma cultura dominante que aceita, toleraou reconhece a existncia de outras culturas ao espao cultural onde domina a interculturalidadepressupe o reconhecimento recproco e a disponibilidade para enriquecimento mtuo entre vriasculturas que partilham um dado espao cultural (Sousa Santos e Menezes, 2010, p. 9) No mesmosentido, referindo-se diferenciao entre a interculturalidade e o multiculturalismo, Bruno Galindoafirma: Considerando a conexo sinttica e a dimenso semntica dos termos envolvidos e tendo emvista o aspecto lxico, poderamos afirmar que o multiculturalismo seria um sistema de compreenso daexistncia de uma multiplicidade de culturas, ao passo que o interculturalismo denotaria a idia de umsistema entrelaador de culturas, estabelecendo necessrios influxos entre elas. (Galindo, 2006, p. 94)17 A Constituio colombiana de 1991 cumpre um papel primordial e, porque no, vanguardista nessesegundo ciclo proposto por Fajardo. Devido a sua importncia e as suas peculiaridades, principalmenteem relao atuao ativista da sua Corte Constitucional, desenvolveremos em tpico especifico mais

    adiante.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    29/156

    27

    Tais previses podem ser extremamente predatrias em relao aosDireitos e autonomia indgena, pois sob o argumento de violao lei e Constituio, pode-se vulnerar as conquistas indgenas daqueles pases. Se por um ladono seria desejvel a criao de um mundo apartado, sem dilogo com as normasinternacionais e constitucionais, por outro, tal previso constitucional pode ceifarqualquer possibilidade da verdadeira autonomia indgena. O grande desafio, portanto, interpretar interculturalmente as normas Constitucionais que, como ser analisadoadiante, tem o Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano como uma alternativaintercultural a esse conflitos.

    Dessa forma, esse segundo ciclo traz avanos importantes para a questo

    indgena na Amrica Latina, mas tem limites epistemolgicos e institucionais latentesna afirmao e garantia dos povos indgenas, tendo em vista que a constitucionalizaodesses Direitos no foi acompanhada de mecanismos institucionais que efetivaram taisavanos.

    Alm disso, essas conquistas constitucionais no foram traduzidos emavanos reais para as comunidades indgenas, tendo em vista o concomitante avano depolticas neoliberais que acabaram por bloquear aqueles progressos no campoconstitucional (Fajardo, 2011, p. 143).

    O terceiro ciclo (2006-2009), denominado ConstitucionalismoPlurinacional, marcado pelo giro paradigmtico na teoria da constituio, pois no secaracteriza somente pela ampla positivao dos direitos indgenas, mas pelainternalizao do conhecimento e da cosmoviso indgena nesse processo. representado pelas Constituies do Equador (2008) e da Bolvia (2009), que buscam a

    refundao do Estado com base na plurinacionalidade e no protagonismo indgena.Diante do avano de polticas neoliberais, iniciadas na dcada de 90, os

    novos clamores sociais foram centrados em direitos sociais e um papel ativo do Estadocapaz de enfrentar o poder econmico e as empresas multinacionais. Como traduodessas demandas, foi positivado, nessas Constituies, o direito gua e seguranaalimentar, alm dos direitos indgenas e o reconhecimento de sua Cosmoviso como oBuen Vivir e a Pachamama - que foi alada a novo sujeito de Direitos no Equador

    (Fajardo, 2011, p. 149). De acordo com a autora:

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    30/156

    28

    Al definirse como un Estado plurinacional, resultado de un pacto entrepueblos, no es un Estado ajeno el que reconoce derechos a los indgenas,sino que los colectivos indgenas mismos se yerguen como sujetosconstituyentes y, como tales y junto con otros pueblos, tienen poder dedefinir el nuevo modelo de Estado y las relaciones entre los pueblos que loconforman. Es decir, estas Constituciones buscan superar la ausencia de

    poder constituyente indgena en la fundacin republicana y pretendencontrarrestar el hecho de que se las haya considerado como menores de edadsujetos a tutela estatal a lo largo de la historia (Fajardo 2011, p. 149).

    Essas Constituies, portanto, tm um claro projeto descolonizador eintercultural, estabelecendo a jurisdio autnoma indgena igualitria com a ordinriae, no caso Boliviano, o estabelecimento do Tribunal Constitucional Plurinacional18 com representantes paritrios da jurisdio indgena e ordinria e, na Constituio

    Equatoriana, com igualdade de gnero, de maneira a garantir a igualdade tnica e degnero, respectivamente (Fajardo, 2011, p. 150-154).

    Ademais, foi implementado por esses textos alm da clssicademocracia representativa novas e diversas formas de participao poltica, como ademocracia comunitria, os referendos, as consultas e o reconhecimento das eleies eda autoridade indgena, de acordo com o seu prprio Direito e procedimento, que antesera monoplio do Estado19 (Fajardo, 2011, p. 150-154).

    Nas Constituies do Equador e da Bolvia, os direitos indgenasperpassam toda a Constituio e constroem, efetivamente, uma nova concepo deEstado e de sociedade, em que a velha lgica colonial e patriarcal superada emdetrimento de uma leitura intercultural do Direito Constitucional.

    18

    A autora ressalta, entretanto, alguns retrocessos na dinmica poltica devido s resistnciasconservadoras, que impossibilitaram o pleno desenvolvimento da jurisdio autnoma indgena naBolvia, tal qual era o projeto original, como, por exemplo, o limite territorial, pessoal e material imposto jurisdio autnoma indgena (Fajardo, 2011, p. 150-154).19 interessante notar que Antonio Carlos Wolkmer tambm se refere a ciclos do Constitucionalismolatino-americano. De acordo com o autor o Constitucionalismo Pluralista intercultural tem 3 ciclos. Noprimeiro ciclo insere a Constituio Brasileira e Colombiana como propulsoras desse processo; nosegundo inclui a Constituio da Venezuela de 1999, de caracterstica participativa e pluralista; j noterceiro ciclo coloca a Constituio do Equador e da Bolvia, com suas caractersticas interculturais e dopluralismo igualitrio jurisdicional (Wolkmer, 2010, p. 153). H diferenas pontuais entre estaclassificao e os ciclos propostos por Raquel Fajardo, j que nesta se insere a Colombiana no primeirociclo (Fajardo insere no segundo). O terceiro ciclo, entretanto, idntico: a constituio da Bolvia e doEquador so pioneiras no processo de afirmao dos indgenas como atores constitucionais, ponto centraldo nossa dissertao, pelo que se constroem sociedades interculturais e com pluralismo jurdicoigualitrio. Todavia, o autor no desenvolve a diferenciao desses ciclos, bem como no se aprofundanas diversas caractersticas dessas Constituies.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    31/156

    29

    Sob esta temtica, objetiva-se, portanto, construir um novo modelo desociedade e de Estado em que os protagonistas dos processos Constitucionais sejamaqueles historicamente excludos e marginalizados - notadamente os indgenas, asmulheres e os campesinos. Esse ciclo representa de forma significativa o quepretendemos trabalhar na presente dissertao, notadamente no nosso ltimo capitulo.

    1.3. Um breve dilogo com Roberto Viciano, Rubens Dalmau e RaquelFajardo20

    Se por um lado, o Novo Constitucionalismo proposto por RubensDalmau e Roberto Viciano revela-se progressista e democrtico, visando frmulas quemaximizam a participao cidad e oferecem um suporte terico para o controle dosatos estatais e dos representantes populares em prol da efetividade Constitucional; poroutro, entretanto, ainda defende uma concepo de Direito homognea e monocultural,negando as contribuies transformadoras do Constitucionalismo Equatoriano eBoliviano para a Teoria da Constituio, notadamente, a interculturalidade eplurinacionalidade - resposta indgena a um Constitucionalismo eurocentrado.

    bem verdade que diversas Constituies ao redor do mundoreconhecem direitos aos povos originrios. Todavia, as Constituies da Bolvia e doEquador no se limitam a isso, elas internalizam prticas, costumes e tradies dospovos indgenas, historicamente excludos do processo de produo/aplicao doDireito.

    Tais conquistas, entretanto, parecem no gerar maiores reflexes nasobras dos professores espanhis, j que parecem no destacar a importncia doprotagonismo indgena e da nova institucionalidade plurinacional. Esse o nossodesacordo fundamental com os autores, vez que, como afirma Cesar Baldi:

    Ignorar determinados parmetros inovadores das duas Constituies e querercolocar no mesmo parmetro a Constituio colombiana de 1991, quereconhecia de forma limitada a diversidade cultural (inobstante o

    20 Para uma anlise dos conflitos entre diferentes as concepes de Raquel Fajardo, Roberto Viciano eRubens Dalmau: Baldi (2011).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    32/156

    30

    desempenho da Corte constitucional ser um dos mais avanados captulos doconstitucionalismo do continente) obscurecer o evidente protagonismoindgena e a luta por um padro descolonizador e plurinacional de Estado. E,assim, questionar fundamentalmente os parmetros eurocentrados doconstitucionalismo (Baldi, 2011, p.3).

    Nessa linha, certamente o ponto de maior ciso entre o nossoentendimento e o dos professores citados, disposto em tpico especfico, reside no papeldas conquistas constitucionais originadas das lutas dos povos indgenas.

    Essas novas concepes constitucionais, nas palavras de Cesar Baldirompem com uma viso eurocentrada do mundo e admitem a incluso de vises atento marginais na teoria constitucional, fruto tambm do forte protagonismo dascomunidades indgenas (Baldi, p.1, 2009b). E no se trata apenas de ressaltar oprotagonismo indgena, mas como sua filosofia est entrelaada diretamente com umanova concepo de conhecimento e desenvolvimento (Sieder, 2011, p. 314), comoanalisaremos em seguida.

    Negar essas contribuies para o processo democrtico interpretarmonoculturalmente as Constituies desses pases e recusar o maior avano que essas

    Cartas alcanaram: o respeito aos povos ancestrais e a suas tradies. Como afirmaRaquel Sieder:

    Um renovado esfuerzo por analizar el derecho em Amrica latina no debe nipuede dejar por fuera ls derechos indgenas. Uma de las especificidades yfortalezas de la regin es la sobrevivncia y pervivencia de los pueblosindgenas (Sieder, 2011, p. 316).

    Dessa forma, a concepo dos autores citados parecem estruturas que

    revelam implicaes polticas mais ligadas a uma esquerda marxista ortodoxa, que noconsegue reconhecer a contribuio indgena para o processo Constitucional, tendo emvista que envolve o conhecimento e o respeito aos povos ancestrais - que tem outradinmica de produo econmica e de interao com o meio ambiente21. So resquciosdo eurocentrismo que encobre outras perpesctivas de mundo22.

    21 Desenvolveremos a tenso entre verses mais dogmticas do marxismo e o indianismo no tpico:TIPNIS: tenses entre o desenvolvimentismo e o Sumak Kawsay.22 O Professor Roberto Viciano, ministrou mini-curso na Faculdade de Direito do Recife (FDR/UFPE)durante trs dias, no qual pde expor as linhas mestras do Novo Constitucionalismo, com nfase no

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    33/156

    31

    Esses so, portanto, os principais pontos de tenso em relao abordagem dos professores Roberto Viciano e Rubens Dalmau. Todavia, importanteressaltar que as crticas acima destacadas no tm o condo de negar o NovoConstitucionalismo aventado pelos autores, mas avanar naqueles pontos queacreditamos essenciais para a construo de um direito plurinacional. S entopoderemos traar novos rumos e aperfeioar os caminhos j existentes.

    Nesse sentido, as contribuies de Raquel Fajardo e diversos outrosautores andinos so marcantes na presente dissertao.

    Todavia, se por um lado Roberto Viciano e Rubens Dalmau noincorporam as experiencias indgenas na sua abordagem, Raquel Fajardo parece limitaro seu Constitucionalismo Pluralista s experincias indigenas. claro que esse umponto essencial no debate, mas certamente no nico, ou seja, primordial, mas no exclusivo23.

    Portanto, se Raquel Fajardo analisa esse processo constitucional comnfase na questo indgena e, por outro lado, os professores espanhis do nfase participao popular no controle do estado e da economia, entendemos que aliar essas

    duas caractersticas seria o ideal para a nossa definio de Novo ConstitucionalismoPluralista Latino-Americano.

    1.4. O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano: entre aparticipao cidad e as cosmovises indgenas a concepo adotadaneste trabalho

    processo constitucional da Venezuela, Equador e Bolvia. Quando questionado sobre a possibilidade das jurisdies autnomas nestes pases, afirmou que optava por uma aplicao mais homognea do Direito.Ora, a autodeterminao dos povos indgenas, incluindo a jurisdio especial, uma das maioresconquistas para esses povos. A jurisdio indgena autnoma foi prevista e fortalecida nas Constituiesdo Equador (art. 171) e da Bolvia (art. 199), e garante o respeito cultura e as tradies desses povos,sendo um dos instrumentos mais importantes e originais no constitucionalismo desses pases.23 necessrio ressaltar que a diviso em ciclos proposta pela autora no autoriza uma interpretaolinear da histria, que j demonstrou que a possibilidade de avanos e retrocessos no so demarcadastemporalmente. Os ciclos, na nossa interpretao, buscam sistematizar de forma didtica os diferentesavanos e propostas das recentes reformas constitucionais na Amrica Latina, de forma que no pode ser

    compreendida como uma sequncia lgico-histrica.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    34/156

    32

    Mesclando os dois entendimentos acima mencionados, desenvolvemosaquilo que denominamos O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano.

    O sculo XXI se inicia com grandes experincias no campo poltico eConstitucional emnuestra Amrica. Mas a histria, longe de ser linear, pode prepararsurpresas para essas novas experincias jurdicas do sucesso ao fracasso que s ofuturo ir responder. O nosso papel, enquanto investigador socio-jurdico, analisar sem nenhuma pretenso de neutralidade os avanos e retrocessos desses experimentos,destacando o que a populao desses pases, notadamente aqueles que foramhistoricamente marginalizados no campo poltico e jurdico, tem a ganhar (ou perder)com esse novo movimento constitucional.

    Esse movimento surgiu de uma necessidade histrica de, por um lado,apropriar-se constitucionalmente de alguns instrumentos de lutas e reivindicaespopulares, para garantir o controle popular do poder e da economia e, por outro,salvaguardar conhecimentos e prticas histricas das comunidades ancestrais. Esses soos dois principais pontos que convergem para a caracterizao da nossa definio sobre

    o Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano.

    por isso que a nossa proposta dialoga com os mecanismosconstitucionais de democratizao do poder e, ao mesmo tempo, reafirma o grandemarco dessas Constituies: o protagonismo indgena e o giro descolonizador eplurinacional. Tornar visvel o que era invisvel. Entender a lgica dos povos ancestraise positivar na Constituio seus conhecimentos: esta, sem dvidas, parece-nos maiorcontribuio desse novo movimento poltico e constitucional surgido emnuestraAmrica.

    Na busca por um modo alternativo de produo, relacionado diretamentecom o respeito natureza, surge o Novo Constitucionalismo Pluralista como fruto daluta dos povos ancestrais e em contraponto a concepes totalizantes e monoculturais doDireito, com a positivao de lgicas das comunidades indgenas como o SumakKawsay (Bem-viver) e a Pachamama (Me-terra).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    35/156

    33

    importante observar que no h apenas o anuncio da descolonizao,plurinacionalidade ou interculturalidade. Palavras sem o intento efetivo de refundaro Estado e desconstruir a colonizao no so suficientes para o nosso projeto. H,efetivamente, a construo de novas formas de arquitetar o Constitucionalismo nessespases - com sofisticados meios institucionais para sua implementao.

    Historicamente, as diferentes concepes e culturas indgenas propostaspelos ordenamentos no foram traduzidas institucionalmente, ou seja, foramneutralizadas pela ausncia de meios concretizadores no plano institucional, aindamarcado pela monoculturalidade (Fajardo, 2011, p. 148). Por isso, as mudanas delgica nas Constituies Equatoriana e Boliviana tambm inauguram a necessidade de

    uma verdadeira reengenharia do sistema legal, pois essas Constituies no apenasanunciam direitos, mas traam os caminhos para concretiz-los (Walsh, 2009, p. 2/5)como analisamos no ltimo capitulo do nosso trabalho.

    O Estado, portanto, foi redesenhado a partir da perspectiva indgena - eseu esforo plurinacional e descolonizador - nas Constituies do Equador e da Bolvia(Sieder, 2011, p. 308). O debate que historicamente era conduzido sobre o que o Estadopode fazer para os indgenas, transforma-se naquilo que esses povos podem contribuirpara o desenvolvimento da sociedade e a refundao do Estado, pois o realmenteinovador das novas Constituies equatoriana e boliviana no tanto a introduo denovos elementos, mas sim o intento de construir uma nova lgica e forma de pensar sobparmetros radicalmente distintos (Walsh, 2009, p. 1/7).

    Nesse ponto, portanto, no se trata do Estado proteger o ndio e suastradies e costumes, mas muito alm disso, trata-se do Estado ser pensando a partir das

    concepes indgenas. E ai repousa o grande diferencial das Cartas do Equador e daBolvia24.

    Portanto, nos limites dessa dissertao, buscamos aprofundar aquilo queentendemos que h de mais original nestas Constituies: a positivao da cosmovisoindgena nas Constituies desses pases e as consequncias jurdicas dessa nova formade pensar o direito constitucional, com foco na Pachamama e Sumak Kawsay, que so

    24 A populao indgena na Amrica latina corresponde a 11% de sua populao, em mais de 400comunidades, e encontram-se entre os setores mais pobres e excludos da Amrica latina (Sieder, 2011, p.

    304).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    36/156

    34

    em nossa opinio as maiores representaes constitucionais da inteno descolonizadorae emancipatria do Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano.

    Por isso, a ltima parte do nosso trabalho tem como foco os direitos

    indgenas e suas conquistas, mas sem deixar de perceber a importncia do controle doEstado e da economia atravs da participao cidad para alm da questo indgena. Ouseja, a intensificao das formas tradicionais do Constitucionalismo, como o referendorevogatrio e as novas formas de interveno popular tambm sero trabalhadas.Obviamente, essas questes, muitas vezes, esto entrelaadas25.

    De acordo com esses critrios, entendemos que as Constituies doEquador (2007/2008) e da Bolvia (2006/2009) cumprem esses requisitos. Aliamparticipao cidad e democrtica a um giro paradigmtico e mais criativo dessemovimento: reconhecimento das cosmovises indgenas, que reconfiguram a prpriateoria da Constituio e o papel do Estado, sendo as Constituies da Colmbia (1991)e da Venezuela (1999) os precedentes dessse processo26.

    Essas linhas iniciais so fragmentos da nossa definio, como umaintroduo para que o leitor compreenda as diversas abordagens e concepes sobre o

    tema ora em anlise. As suas principais caractersticas sero analisadas na ltima partedo nosso trabalho.

    Desde j, porm, ressaltamos que a expresso Novo ConstitucionalismoPluralista no tem nenhuma pretenso totalizadora ou de uniformidade. Tal expresso o somatrio de diferentes perspectivas e concepes, que tm pontos de interseo econtato. fundamental esclarecer que a denominao adotada na presente dissertaono tem o condo de tornar unitrio ou homogneo as ricas concepes daqueles pases.

    No pretendemos negar o bvio. As dessemelhanas so muitas. Mas assimilitudes tambm o so, os processos polticos desde a era colonial at a dependncia25 A diviso feita no tem o intuito de separ-las de outras perspectivas e possibilidade do NovoConstitucionalismo Pluralista, mas apenas de analis-la da forma mais clara possvel, sempre tendo emvista que as aproximaes entre os diferentes temas so essenciais para a compreenso do tema.26 necessrio ressaltar, tambm, que a no insero de determinados processos Constituintes no queclassificamos de Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, como, por exemplo, o casoBrasileiro, Colombiano e Venezuelano, no significa, necessariamente, que tais processos so menosdemocrticos, mas apenas que no correspondem s caractersticas desse campo terico-metolgico que

    expusemos notadamente no campo das conquistas indgenas e dos esforos descolonizadores.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    37/156

    35

    neocolonial. O que nos conduz um continente marcado, antes de tudo, pela exploraohistrica e pela desigualdade que originaram outros dramas sociais que ainda assolam anossa sociedade a qual, como afirmou Eduardo Galeano especializou-se em perderdesde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalanaram pelomar e fincaram seus dentes em sua garganta (Galeano, 2010, p. 17)

    Porm, ainda pode-se objetar, com razo: porque um ConstitucionalismoLatino-Americano, se as experincias se resumem a Bolvia e Equador ? A respostapode-se dividir em duas partes: i) essas Constituies surgem, em boa medida, comofruto das reivindicaes de movimentos sociais de toda Amrica Latina que, direta ouindiretamente, contriburam para a construo desses novos modelos que resultaram nas

    Constituies do Equador e da Bolvia; ii) o carter emancipatrio dessas Constituiessurgem como exemplo para nosso continente. No como modelo que se deva reproduziracriticamente, mas como caminho trilhado para Constituies que retratem a pluralidadeda sociedade e combata as desigualdades sociais to marcantes emnuestra America.

    Dessa forma, so duas as dimenses desse novo processo. No planoLatino-Americano; existe, na verdade, um Novo Constitucionalismo Pluralista que secontrape ao antigo Constitucionalismo Latino-Americano, marcado pelo elitismo, pelaausncia de participao popular e pela subordinao das prticas, saberes econhecimento dos povos indgenas. Portanto, a leitura do ttulo do nosso trabalho deveconjugar o Novo Constitucionalismo com o contexto Latino-Americano. Por outro lado,existe a pretenso de destacar o real surgimento de um Novo Constitucionalismo nahistria constitucional (embora, de acordo com o seu desenvolvimento, essapossibilidade possa ser descartada), encontrando respostas constitucionalmenteadequadas para sociedades complexas e dando respaldo jurdico e poltico para setores

    historicamente marginalizados, como a populao indgena27.

    De toda forma, sempre haver crticas sobre a escolha da denominaoque optarmos. O que podemos fazer, na medida do possvel, esclarecer as nossasescolhas e torn-las mais densas teoricamente. Mas, sabemos dos limites das definies,especialmente, em temas complexos e ainda pouco estudados pelos juristas, como opresente caso.

    27 Basta observar, por exemplo, como Gerardo Pisarello entende que as experincias constitucionais doSul so respostas criativas para a recente crise europia e suas constituies oligrquico-financeiras,

    retomando o protagonismo dos grupos populares e das resistncias sindicais (Pisarello, 2011, p. 189/205).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    38/156

    36

    Por fim, bom alertar que o Novo Constitucionalismo Latino-Americanocumpre um papel importantssimo na afirmao de um Direito Constitucional de acordocom nosso tempo e espao, mas devemos evitar ufanismos que proclamemsalvacionismos normativos/constitucionais. A Amrica latina e o nossoConstitucionalismo ainda tm muito que caminhar para a concretizao desses Direitos.

    1.5. Outras concepes tericas sobre o tema

    Alm dos autores analisados nos pontos anteriores, h diversos outrosque, em termos gerais, concordam que o marco diferencial desse movimento oprotagonismo indgena - representado principalmente nas Constituies do Equador eda Bolvia e a intensificao da participao popular. Porm, tais autores noprocuram aprofundar a sistematizao desse novo movimento e utilizam conceitosdiversos para classificar o que chamamos de Novo Constitucionalismo PluralistaLatino-Americano.

    bvio que h diversos pesquisadores que tratam isoladamente tanto daConstituio do Equador quanto da Bolvia, mas o que nos interessa no presente estudo a formulao terica que faz a ponte entre essas duas Constituies, demonstrandosuas caractersticas descolonizadoras, com o reconhecimento da cosmoviso indgena ecom um novo projeto societrio.

    O termo Novo Constitucionalismo Latino-Americano tambm utilizadopor Roberto Gargarella e Gerardo Pisarrelo, muito embora, como ressaltado, no seestendam sobre a fundamentao da escolha conceitual sobre o tema.

    Segundo Pisarello, o Constitucionalismo semntico ou nominal marcou ahistria latino-americana durante parte do sculo XIX e durante o sec. XX, assinalandouma contraposio entre o Constitucionalismo do Norte, com fora normativa evinculante, e o Constitucionalismo dos pases perifricos, sem efetividade e com forteexcluso da participao popular e de minorias (ou maiorias) tnicas (Pisarello, 2009,

    p.1).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    39/156

    37

    Nos ltimos 30 anos, as Constituies ao redor do mundo demonstramforte preocupao na manuteno dostatus quo e desrespeito natureza e aoecossistema. Se no Norte, avanam as Constituies nesse sentido, ao Sul hexperincias que vo na contramo desse processo e reestabelecem medidas de controledo poder econmico e de respeito ao processo democrtico (Pisarello, 2011, p. 189).

    Tanto que o autor reconhece a Constituio Brasileira e a Colombianacomo as primeiras experincias do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, muitoembora tambm reconhea a centralidade do processo Venezuelano, Boliviano eEquatoriano, impulsionada pelos atores constituintes movimento do campo,sindicatos, indgenas, movimentos de desempregados, feministas e pela necessria

    reconstruo do Estado e rompimento com suas experincias anteriores (Pisarello, 2009,p.2-3; 2011, p. 191).

    Pisarello entende que muitas propostas no Novo Constitucionalismo noso totalmente originais e remontam ao Constitucionalismo Social do sculo XX naEuropa e na Amrica-latina e das revolues dos sculos XVII e XVIII, como asrevolues Inglesa, Americana e Francesa, na linha de um Constitucionalismodemocrtico radical (Pisarello, 2011, p. 193).

    De toda forma, reconhece como caractersticas centrais desse novomovimento Latino-Americano: i) um amplo rol de direitos individuais e coletivos,inclusive, os culturais, sociais e ambientais; ii) a influncia dos tratados internacionaisde Direitos Humanos; iii) o aperfeioamento das garantias desses direitos e aimplementao de mecanismos originais de participao cidad iv) o controle popularsobre os recursos produtivos e a inteno de ampliar a integrao latino-americana28

    (Pisarello, 2009, p. 2).Essas caractersticas, alis, so resultados da organizao dos

    movimentos indgenas nesses pases e a positivao do Sumak Kawsay e daPachamama, que questionam o crescimento capitalista baseado no desenvolvimentismo

    28 O autor reconhece, entretanto: Estas transformaciones, en definitiva, contribuiran a la gestacin de unnuevo constitucionalismo social latinoamericano que, si bien est lejos de ser inmune a regresionesautoritarias o elitistas, ha despertado fuertes expectativas democratizadoras y garantistas (Pisarello,2009, p. 8). Cita o exemplo da Constituio Portuguesa de 1976 que tinha forte contedo social edemocrtico e, aps 6 reformas constitucionais la narrativa emancipadora del texto constitucional se fuediluyendo en un lenguaje que apostaba por la integracin en el nuevo tipo de capitalismo que se estabagenerando a escala europea (Pisarello, 2011, p. 171).

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    40/156

    38

    e podem contribuir para superar as Constituies oligarquico-financeiras do Norte,notadamente aps a crise de 2008 (Pisarello, 2011, p. 197-204).

    Por sua vez, Roberto Gargarella entende que o Novo Constitucionalismo

    Latino-Americano formado pela recente onda de reformas Constitucionais no nossocontinente, mas ainda permeado por dvidas e reflexes sobre o tema, tendo em vistaque a histria do Constitucionalismo demonstra que as Constituies surgem emmomentos de ruptura e buscam resolver problemas polticos e sociais29 (Gargarella,2009, p. 1-2).

    As Constituies do sculo XIX (fundacionais) excluram do seuprocesso de elaborao os setores poca marginalizados, como os indgenas e asmulheres, ignorando as diversas demandas sociais existentes. No incio do sculo XX,houve uma primeira onda de reformas Constitucionais na Amrica latina, notadamentecom a Constituio do Mxico de 1917, que inclua direitos sociais, econmicos eculturais, como resposta s grandes mobilizaes operrias - ainda que tenham sidobloqueadas por um projeto liberal-conservador (Gargarella, 2009, p. 8; 2011, p. 290).

    A segunda onda procurou inserir clusulas participativas, como os

    plebiscitos e os referendos, revalorizando os Direitos Humanos, notadamente aps asditaduras militares em nosso continente, porm com limites institucionais que nogarantem o efetivo protagonismo popular, como, por exemplo, o fortalecimento dosmecanismos de reeleio presidencial30 (Gargarella, 2009, p. 8; 2011, p. 291-292).

    Dessa forma, h uma clara necessidade de reinveno dos pressupostosclssicos do Constitucionalismo para aproximar os representantes e os representados epara, dentre outras coisas, fortalecer o debate pblico na Amrica Latina. O autorconsidera que, em geral, as reformas Constitucionais recentes no nosso continentederam contribuies ainda pobres para um constitucionalismo de cunho igualitrio,

    29 No mesmo sentido, de acordo com Miguel Carbonel: hay um momento em la historia de ls pases emel que se genera nuna crisis profunda que da lugar a la creacin de nuevos textos constitucionales. Lascrisis son manifestaciones del malestar existente em la sociedad pero tambin son faros de esperanza emel derecho, em la justicia, em la possibilidad profunda de renovacin jurdica e institucional y deconstruccin de sociedades nuevas basadas em el respeto a ls derechos de todos (Carbonel, 2010, p.49).30 Temos, como exemplo, dessa primeira onda, a Constituio do Mxico de 1917 e, posteriormente, aConstituio Brasileira de 1937, Boliviana de 1938, Argentina em 1949 (Gargarella, 2009, p. 8; 2011). Nasegunda onda, entre outras, podemos citar a reforma da Constituio Brasileira de 1988, a Equatoriana de1978, a Argentina de 1994, a Colombiana de 1991. (Gargarella, 2009, p. 8). Desenvolveremos a tensoentre hiper-presidencialismo e participao popular no tpico destinado ao caso Venezuelano.

  • 7/24/2019 o Novo Constitucionalismo Pluralista Latinoamericano

    41/156

    39

    democrtico e justo, muitas vezes influenciado desnecessariamente por institutoseuropeus ou por objetivos de curto prazo31 (Gargarella, 2009, p. 1-5; 2011, p. 292).

    Todavia, entende que as Constituies do Equador e da Bol