o gÊnero e a moral nos primÓrdios do sÉculo xx

13
O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX: OBSERVAÇÕES DO MÉDICO NICOLAU VERGUEIRO Marinês Dors Rede Mun. Ed. Passo Fundo/ Unisinos [email protected] Resumo: No arquivo pessoal de Nicolau Araújo Vergueiro encontram-se documentos referentes ao seu exercício da medicina e da política. Como político, ele desempenhou inúmeros mandatos eletivos: conselheiro municipal, intendente, deputado estadual e federal. No campo da saúde, foi o primeiro médico passo-fundense diplomado: formado em 1905, destacou-se por ser cirurgião, parteiro e, ainda, ao tratar doenças sexualmente transmissíveis e infantis, ocupando o cargo de médico da municipalidade por vinte e nove anos. Entre as fontes que compõem seu arquivo, priorizamos a análise dos manuscritos de memórias intitulados “Notas íntimas – algumas reminiscências clínicas”. Elas abrangem desde sua formação acadêmica até o ano de 1937. Procedemos a seleção e exame de alguns relatos em que a questão do gênero se sobressai no discurso médico. Trabalho, família, moral, sexo, violência, saúde e eugenia serão algumas temáticas abordadas. Palavras-chave: Nicolau Araújo Vergueiro; medicina; memória; gênero. O primeiro médico natural de Passo Fundo foi Nicolau Araújo Vergueiro. Entre 1900 e 1905, ele integrou a segunda turma da Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Em sua tese, apresentada para obter o grau de doutor em ciências médico-cirúrgicas, enfocou a “Contribuição ao estudo da anestesia geral pelo keleno. A inscrição na placa de bronze identificando o médico enfatiza a realização de cirurgias e partos (figura 1). Figura 01: Placa de identificação do “Dr. Vergueiro” Fonte: AHR, fotografia elaborada pela autora.

Upload: dinhkhuong

Post on 28-Jan-2017

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX:

OBSERVAÇÕES DO MÉDICO NICOLAU VERGUEIRO

Marinês Dors

Rede Mun. Ed. Passo Fundo/ Unisinos

[email protected]

Resumo:

No arquivo pessoal de Nicolau Araújo Vergueiro encontram-se documentos referentes ao

seu exercício da medicina e da política. Como político, ele desempenhou inúmeros

mandatos eletivos: conselheiro municipal, intendente, deputado estadual e federal. No

campo da saúde, foi o primeiro médico passo-fundense diplomado: formado em 1905,

destacou-se por ser cirurgião, parteiro e, ainda, ao tratar doenças sexualmente

transmissíveis e infantis, ocupando o cargo de médico da municipalidade por vinte e nove

anos. Entre as fontes que compõem seu arquivo, priorizamos a análise dos manuscritos

de memórias intitulados “Notas íntimas – algumas reminiscências clínicas”. Elas

abrangem desde sua formação acadêmica até o ano de 1937. Procedemos a seleção e

exame de alguns relatos em que a questão do gênero se sobressai no discurso médico.

Trabalho, família, moral, sexo, violência, saúde e eugenia serão algumas temáticas

abordadas.

Palavras-chave: Nicolau Araújo Vergueiro; medicina; memória; gênero.

O primeiro médico natural de Passo Fundo foi Nicolau Araújo Vergueiro. Entre

1900 e 1905, ele integrou a segunda turma da Faculdade de Medicina de Porto Alegre.

Em sua tese, apresentada para obter o grau de doutor em ciências médico-cirúrgicas,

enfocou a “Contribuição ao estudo da anestesia geral pelo keleno”. A inscrição na placa

de bronze identificando o médico enfatiza a realização de cirurgias e partos (figura 1).

Figura 01: Placa de identificação do “Dr. Vergueiro”

Fonte: AHR, fotografia elaborada pela autora.

Page 2: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

Os documentos, como a placa de identificação do médico e, suas memórias, as

quais chamou de “Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas” tornaram-se

acessíveis devido a doação feita pela família Vergueiro Malheiros, no ano de 2011. O

Arquivo Histórico Regional (AHR), mantido pela Universidade de Passo Fundo (UPF),

foi a instituição escolhida como depositária das fontes. Trata-se do arquivo privado de

Vergueiro, composto por móveis, acervo bibliográfico, manuscritos de reminiscências,

álbuns contendo diversos documentos: recortes de jornais, fotografias, correspondências,

etc. É sobre esse acervo que versa nossa tese, em vias de conclusão. A documentação

sobre o titular deste acervo delineia sua participação no processo de desenvolvimento da

região norte do Rio Grande do Sul.

Nicolau Araújo Vergueiro (1882-1956), teve como bisavôs dois Senadores –

Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859) e João da Silva Machado, conhecido

como Barão de Antonina (1782-1875) –, proeminentes políticos do período imperial. Essa

origem revela sua condição econômica abastada e, ainda, a tradição política da família.

Embora Vergueiro tenha optado pela formação em medicina, também investiu na

carreira política. Sua ação política se processou no interior de duas agremiações: o Partido

Republicano Rio-grandense (PRR) e o Partido Social Democrático (PSD). Sua adesão ao

PRR ocorreu nos anos iniciais do século XX e, a partir de 1920, assumiu a chefia do PRR

local. Após o Estado Novo, Vergueiro participou da fundação do PSD e, a seguir, assumiu

a presidência da agremiação.

Destacamos que, entre 1908 e 1920, presidiu o Conselho Municipal; no período

de 1909-1928, desempenhou mandato como deputado estadual; esteve à frente da

Intendência de Passo Fundo no período de 1920 até 1924 e, novamente entre 1928 e 1932;

posteriormente, atuou na Câmara Federal, desde 1930 até 1950, excetuando-se o período

de suspenção do legislativo (1937-1946). Esses dados ratificam o exercício de diferentes

funções políticas no mesmo período.

A atuação de Vergueiro, como médico e parlamentar, contribuiu para o

desenvolvimento e modernização da região de Passo Fundo. Isso decorreu dos

investimentos em obras públicas, visando a integração com o restante do país (ferrovias,

aviação, instalação da agência de Correios e Telégrafos), ou na captação de verbas para

suprir demandas da população local (no que tange a educação, saúde, etc.).

Page 3: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

Destacamos sua participação na Comissão de Saúde Pública da Câmara em 1936

e 1937, oportunidade em que defendeu um projeto de regulamentação do exame-médico

pré-nupcial. A autoria do projeto estava em consonância com a pauta dos debates

intelectuais sobre a eugenia. Vergueiro não era uma voz isolada no seu apoio às práticas

eugênicas. Realmente vários intelectuais, políticos e médicos incumbiam-se da “missão

de salvar a nação”, “regenerar a república” ou mesmo “civilizá-la” sugerindo a adoção de

práticas eugênicas. (PÉCAUT, 1990, p.21; WEBER, 1999, p. 70; MACIEL, 1999, p. 123;

MATOS, 2001, p. 27; GAGLIETTI, 2007, p. 333). No entanto, as interpretações sobre o

ideal eugenista não foram unânimes: critérios higienistas, raciais e sanitaristas muitas

vezes foram confundidos num mesmo projeto (MACIEL, 1999, p. 134).

A fim de propalar a ideia do exame pré-nupcial Vergueiro proferiu vários

discursos na Câmara Federal, publicando, ainda, uma série de artigos no jornal Diário da

Manhã, de Passo Fundo. O médico escreveu sobre a eugenia, a necessidade de uma

educação eugênica no Brasil, embasando-se nos ideais propostos por Renato Kehl. Assim,

pretendeu esclarecer a população sobre doenças contagiosas, que possuíam elevados

índices no país, tais como lepra, sífilis, tuberculose e alcoolismo.

Temas como a eugenia, doenças transmissíveis e psíquicas, saneamento básico,

partos, ferimentos provocados por armas de fogo são abordados com frequência nas

narrativas do médico, que como comentamos receberam o título de “Notas íntimas”. Essa

fonte consiste em um conjunto de doze manuscritos dos quais somente oito foram

preservados e doados ao AHR, integrando o acervo privado de Vergueiro. Ao final das

duzentas páginas enumeradas de cada volume, foi registrado um índice. O mesmo indica

o número do texto, seguido de título e página onde iniciou o registro.

Escritos diariamente entre 1935 e 1937, narram memórias de Vergueiro acerca de

pessoas e acontecimentos, totalizando trezentos e vinte e quatro notas. Na composição

dos volumes há reminiscências do autor, transcrição de artigos e reportagens jornalísticas,

cartas escritas por seu pai, sonetos que recebeu, dedicatórias de sua autoria, discursos que

proferiu, etc.

Nos volumes um, dois, três e sete destacam-se relatos do trabalho de Vergueiro

como médico (ver figura 02). A elevada quantidade de textos em que as narrativas

mantém relação com a medicina é fruto de um projeto pessoal, a forma escolhida por ele

Page 4: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

para comemorar trinta anos de “laboriosa e ativa clínica”. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p.

100-103). É sobre eles que pretendemos discorrer.

Figura 02: Gráfico demonstrando a incidência de reminiscências sobre a clínica médica

Fonte: Elaborada pela autora com base nos dados extraídos das “Notas íntimas”.

As “Notas íntimas” diferenciam médicos diplomados, formados e, aqueles que

obtiveram licença, de acordo com a “094 Relação Nominal” apresentada por Vergueiro.

O Rio Grande do Sul concedia liberdade profissional e religiosa, permitindo assim a

implantação de variadas práticas de cura combatidas e proibidas nos outros Estados do

Brasil (WEBER, 1999). Em muitos textos, percebemos acontecimentos marcantes para o

autor, cuja versão adquire tom de denúncia, ao enumerar equívocos cometidos por outros

médicos e, também, por pacientes. Em geral tais pessoas adotaram comportamentos,

ideias e opiniões divergentes dos costumes e da moral predominante. A esse respeito

comenta:

Eu não participo da opinião de Talleyrand, que astuciosamente entendia ser a

palavra um dom feito aos homens, não para a expressão de seus pensamentos,

mas para ocultá-los. Em todas as ‘Notas’ sem cuidar de estilo apurado, vazei

meu pensamento em palavras claras, límpidas e sem rebuços, com a

preocupação apenas da verdade na constatação dos fatos, alguns pilhéricos,

outros tristes e outros escabrosos. (VERGUEIRO, 1935, v. 3, p. 19-29).

90,00%

69,23%

33,33%

0,00% 2,50%

18,75%

58,62%

11,76%0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

90,00%

100,00%

V1 V2 V3 V4 V5 V6 V7 V8

Medicina

Page 5: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

O narrador, embora negue preocupação com o estilo literário, confere tom

humorístico a algumas situações descritas nas suas reminiscências. Lembramos que além

de autor, ele é um personagem, pois descreve as próprias vivências da profissão. Assim,

adentrando no espaço privado, enuncia a realização de atendimentos domiciliares aos

pacientes de distritos ou cidades próximas, comenta as condições das viagens, incluindo

locais visitados, o meio de transporte, as pernoites. Segundo os relatos, sentiu-se

constrangido em situações inusitadas, decorrentes da falta de saneamento básico,

iluminação, saúde coletiva e instrução pública.

O médico era bem recebido, convidado a ingressar na casa e, na intimidade dos

pacientes e familiares, como no caso “106 Vá entrando”, oportunidade em que o médico

foi chamado para atender uma criança com sarampo e, o pai do enfermo guiando-o, abriu

a porta e pediu-lhe que entrasse no quarto. No interior do aposento a mãe do enfermo,

fazia despreocupadamente uma lavagem vaginal. A partir desta situação ele assegura que

passou a ter “precauções acauteladoras”. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 121-123).

Como as visitas eram domiciliares, nem sempre o valor cobrado pela assistência

médica era consensual, resultando em ameaças à vida dos médicos. O memorialista expõe

que reações violentas não eram incomuns, pois nem sempre os pacientes restabeleciam

sua saúde ou adoeciam de outros males o que, no entanto, não era aceito por alguns

familiares (conforme os textos “47 Reichmann”, “48 Caso das vacas”, “85 Vítima

inocente”, “92 Caloteiro”,”116 Espertalhão”, entre outros).

Quanto a relação entre o médico e seu paciente, ele afirma que procurava seguir o

“preceito de curar alguma vezes, aliviar outras e consolar sempre”. (VERGUEIRO, 1935,

v. 2, p. 30-32). No início do século XX, o médico ia ao encontro dos pacientes quando

era chamado para atender aqueles que estavam impossibilitados de comparecer ao

consultório, anexo a farmácia. Quando Vergueiro iniciou seu trabalho como médico, não

havia hospitais em Passo Fundo. O Hospital de Caridade, atual Hospital da Cidade (HC),

e o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), foram fundados com sua participação como

sócio, respectivamente, em 1914 e 1918.

Figura 3: Anúncio médico de Vergueiro

Page 6: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

Fonte: A Voz da Serra. Ano II, n. 71, Passo Fundo, 16 maio 1917.

Inicialmente, fazia atendimentos infantis e realizava partos, mas devido à

demanda de pacientes que haviam contraído doenças sexualmente transmissíveis,

especializou-se, oferecendo diagnósticos precisos, através de exames microscópicos e

tratamentos modernos à época de acordo com o disposto em seu anúncio publicado no

jornal A Voz da Serra (figura 03).

Existe um grande número de notas abordando a assistência de partos por

Vergueiro. Nessas situações registra acontecimentos constrangedores, do mesmo modo:

parturientes a expressarem-se de forma inapropriada, como nos casos “016 Assopra-me”

e “089 Por onde saiu?”. No primeiro texto a parturiente é designada como “rica, feia,

desbocada” pois dava ordens e lançava “saraivada de descompostura” no marido e, após

Page 7: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

os médicos concluírem seu parto, gritou com eles também. (VERGUEIRO, 1935, v. 1, p.

35-38). No segundo, a comadre do médico, que era também professora municipal,

“botava a boca ao mundo, tendo expressões capazes de fazer corar, estremecer e rir até

um frade de pedra”. Pois ela tinha a impressão de que iria evacuar ao sentir as contrações

(VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 36-38).

Também em relação aos partos, Vergueiro narra aplicações de fórceps, conclusão

de assistências iniciadas por licenciados e parteiras, ou ainda a extração de placentas. As

reminiscências que revelam tais ocorrências são, entre outros, “011 Placenta cara”, “018

Um parto”, “038 Um caso em Libres”, “051 Grande erro”, “054 Entendida”, 060 Mãe e

filha”, “133 Mãos de anjo”, “253 Um agradecimento”.

O texto “133 Mãos de anjo” narra a aplicação de fórceps para o nascimento do

filho de outro médico. Vergueiro discorre sobre a trajetória deste, que caracteriza como

um canalha por ter abandonado sua esposa e raptado uma mulher casada. Este, pouco

tempo depois, passou a viver com um rapaz. Nas “Notas íntimas” a única alusão a

homossexualidade é feita neste conto: “Para finalizar, refiro que, em certo tempo, em

Carazinho, Wladimyr passou a viver, de modo escandaloso, com certo mocinho bonito,

que dengoso, faceiro e requebrado, o acompanhava por toda parte... Uma pá de cal”.

(VERGUEIRO, 1935, v. 3, p. 65-71).

A falta de conhecimento a respeito da anatomia humana foi assinalada pelo

médico nas notas “024 Útero”, “079 Pedro Pinto”, “222 Confusão com apêndice”. Os

textos revelam que as pessoas desejavam explicar ao médico onde sentiam dor, no

entanto, empregavam termos errôneos, denominando enfermidades e órgãos do sexo

oposto no próprio corpo. Da mesma maneira alguns casos demonstram incompreensão

dos procedimentos, do discurso e do receituário médico, como lemos em “05 Não

escreva”, “045 Sopa”, “086 Aos pacotes”.

Outras narrativas dizem respeito a pessoas que morreram. Ao tomar conhecimento

desses óbitos o autor elabora breves biografias desses indivíduos que, ou superaram

problemas como alcoolismo, envolvimento com prostitutas e jogos de azar, e passaram a

ter uma vida digna (“052 Oscar”). Ou, ao contrário, abandonaram sua família,

contrariando a moral e os costumes da época, contraindo doenças, cometendo adultério

(“103 Triste fim de vida”).

Page 8: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

Tanto comportamentos masculinos quanto femininos foram observados e

registrados pelo médico. Notamos que existiam famílias que não seguiam o padrão moral

da época, ou seja, homens com condição financeira abastada, amigavam-se à moças

pobres, negras ou caboclas. Dessas uniões resultavam, também filhos. Os textos “123

Uma mulher infeliz” e “132 Só para os ‘gusanos’” fazem referência a casais que viviam

amigados, conforme definiu Vergueiro.

O primeiro relato trata da violência doméstica cometida por ciúmes:

Quando eu estava no exílio, em 1933, na Argentina, foi acometido de moléstia

pleuro pulmonar, que, novamente, o levou ao Hospital de Caridade, onde

permaneceu cerca de quatro meses, tendo estado entre a vida e a morte.

Entre os seus amigos, que desvelavam-se, com dedicação, à sua cabeceira,

estava o "Cato", seu colega de profissão.

Em uma noite, de boa melhora, já às 2 horas, o doente pediu à mulher que fosse

para casa dormir e cuidar das crianças, por isso que ele ia passar bem. Cato

ofereceu-se então para conduzi-la em seu carro particular e, só a instâncias de

Procoro, ela aceitou.

Ao chegarem, o moço pediu um copo de água e, ao servi-lo, foi de inopino,

abraçada e beijada por ele. Repeliu-o com energia, disse-lhe alguns desaforos

e correu para o interior, onde, a chorar, amanheceu.

Toda a cena foi vista por uma vizinha bisbilhoteira, que se acordara com o

barulho do carro.

No dia imediato, o enfermo teve o seu maior transe, chegando mesmo a ser

desenganado. Nessas circunstâncias, a infeliz nada quis comunicar ao amigo,

pois seria fazê-lo piorar ainda mais. Conteve-se, guardou a sua amargura,

sofreu calada a afronta, apesar da sua indignação: a sua nobreza de alma foi

grande, assim como grande foi também a elevação de seu caráter.

Com o restabelecimento, continuou com o segredo, receando um desfecho fatal

entre aqueles homens, ambos geniosos e valentes.

O atrevido sedutor nunca mais a molestou.

O caso parecia ter tido o seu ponto final, mas a vizinha, no entanto, deu de

língua, e, passados muitos meses, o fato foi ao conhecimento do maior

interessado.

O homem desesperou, perdeu o equilíbrio normal e teve um gesto de loucura:

inquiriu a companheira, que tudo lhe expôs, com calma e verdade, e deu-lhe

uma tremenda surra de chicote, atando-a, pelos braços e pernas, de pé, durante

horas, no interior da garagem. Ao cair da noite, D. Maria, apesar de exausta,

na mais justa das revoltas, recriminou o seu algoz.

Este, não mais homem, mas fera, não satisfeito, fez-la, amarrada, embarcar no

próprio auto, levando-a para um mato, distante meia légua da cidade. Ai, atada

a uma árvore, repetiu a dose do relho, esmurrando-a, pelo rosto e pelo tórax, à

vontade.

Queria, exigia uma confissão, que a mísera não poderia, de modo algum, fazer,

porque era uma vítima e uma inocente. Nesse miserável estado, trouxe-a para

casa de um outro oficial de justiça, por nome Bernardino, a cuja mulher

entregou aquela ruinaria.

Como seu estado se agravasse, fui chamado para atendê-la: era um montão de

carnes machucadas, extensas e negras equimoses cobriam-lhe o corpo, todo

edemaciado, os lábios e pálpebras enormemente inchados, os olhos eram uma

poça de sangue, a cabeça fraturada, grande contusão no fígado, aumentado de

volume e extremamente doloroso, vômitos, febre, pulso pequeno... Enfim num

quadro grave, além de medonho e incrível.

Contou-me toda a sua tragédia; implorou a minha proteção; tinha medo das

garras do malvado.

Page 9: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

Por maior caiporismo estava grávida, e o aborto não se fez esperar.

Mandei-a conduzir para a maternidade da Drª Nathalia Bonella, onde operei-

a: teve uma tão grande hemorragia uterina que, se não fosse atendida com a

presteza necessária, teria certamente morrido.

Conferenciei com Procoro, e, com a maior energia, o acusei pela sua

selvageria, pelo seu banditismo, e durante mais de uma hora, ouviu calado

todas as minhas recriminações, por vezes, ásperas e grosseiras, como se faziam

precisas.

De cabeça baixa, não me disse uma só palavra, e chorou muito.

Custei a vencer a sua obstinação: depois falou... estava agitado, inquieto e a

incerteza o atormentava.

O amor fê-lo perder o senso comum, e confessou o seu erro, arrependido,

acreditando, afinal, na honra da mãe de seus filhos, e, na presença desta e de

Drª Nathalia, fi-lo pedir perdão e jurar pela sua honra que, em hipótese

nenhuma, nunca mais tocaria nem sequer num fio de cabelo de D. Maria, a

quem continuaria dispensar o mesmo amor e carinho.

A pobre mulher teve que se submeter: ama doidamente aos filhinhos e não tem,

na vida, nem um irmão para protegê-la. (VERGUEIRO, 1935, v.3, p. 19-29).

Neste excerto verificamos a subordinação da mulher que mesmo agindo de acordo

com os preceitos morais e precaução para preservar a vida do seu marido, foi vítima dele.

O homem, no seu ideal de masculinidade supunha ser proprietário da esposa,

considerando-a adúltera. Como a mulher continuou a alegar sua inocência, revoltando-se

foi, novamente, vítima da violência. O companheiro tomado de suspeitas só estabelece

um diálogo com outro homem – o médico a quem sua mulher havia recorrido para

sobreviver e pedir proteção – admitindo seu comportamento inapropriado. Aqui notamos

que o homem não respeita sua companheira, apesar da sua condição de gestante. E

Vergueiro admite a desigualdade entre mulheres e homens ao comentar essa situação de

vulnerabilidade.

A outra narrativa representa, como a primeira, uma mulher dotada de moral,

fragilidade, recato, sensibilidade, submissão e, por isso mesmo, dirigida e controlada pelo

homem. (COLLING, 2014, p. 45). No entanto, ambas foram vítimas da incredulidade de

seus companheiros, por causa de terceiros, que questionaram sua fidelidade. Esta nota

refere-se a uma senhora que foi diagnosticada com uma “infecção blenorrágica no ânus”:

Certo amigo meu, comerciante residente em município vizinho, vive há cerca

de quatro anos, amigado com uma rapariga que, não sendo um tipo de beleza,

apresenta, no entanto, um conjunto tão discreto de traços e de linhas

esculturais, que a tornam uma silhueta harmoniosa, apreciável e atraente.

Ela, por amor ou por inteligência, procede com impecável correção; ele

procura adivinhar-lhe os pensamentos, e assim, nesse ambiente de

encantamento, passam felizes os dias.

No fundo desse azul surgiu, porém, inesperadamente, uma nuvem escura,

ameaçadora de tempestade próxima. Logo depois, e isso em dezembro de

1934, apareceram-me no consultório.

Page 10: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

A expressão daquele rosto, que tinha sempre nos lábios o esboço de um sorriso,

agora fechado, com fundas olheiras, que pareciam feitas com carvão,

denunciava o seu sofrimento moral, mas conservava na voz o timbre sereno,

altivo e distinto, de quem não está mentindo, de quem, vítima das

circunstâncias de momento, está inocente.

Tratava-se de um sério caso clínico, que, deste modo, me foi exposto.

Há mais ou menos dois meses, sentindo contínuas dores agudas no ânus e

observando suas calças manchadas de pus, procurou a um médico que, depois

do exame local e bacteriológico, fez um tremendo estardalhaço, sobre a

moléstia: "você, menina, vai mal; se não se cuidar, já e já, apodrecerá em vida;

você está com uma infecção blenorrágica no ânus". Apesar da rapariga

protestar a sua virgindade, como dizia, nesse lugar, e mais de não ter nenhum

corrimento vaginal, e ainda de seu amigo não estar enfermo, e, por último,

afirmar a sua fidelidade e respeito ao amante, o diagnóstico foi mantido e

iniciado o tratamento: pequena lavagem com solução de permanganato de

potássio com seringa de borracha, uma por dia, em consultório.

No fim de um mês não havia a menor melhora; ao contrário, o mal se agravara.

Em casa a pressão era alta e fortes discussões foram travadas, entre lágrimas e

desaforos mútuos, e a separação esteve eminente.

Queriam, finalmente, a minha opinião franca, sincera e decisiva, fosse qual

fosse.

Antes de tudo, solicitei o resultado do exame de laboratório, que haviam feito,

e disseram-me que o médico não lhes quisera entregar, apesar de reiterados

pedidos, rasgando-o na sua presença.

Ao exame local, constatei o seguinte: a mucosa retal apenas ligeiramente

irritada e congesta, e na margem externa do ânus um pequeno abscesso

hemorroidário, já fistuloso. Do novo exame da secreção, controlado

diretamente por mim, a presença de bacilos banais do pus, estafilococos e

estreptococos, mas ausência completa dos diplococos de Neisser.

Externei lhes então, com toda a segurança, o meu modo de pensar, inteiramente

contrário ao do "ilustre" colega, que, a meu ver, errara crassamente ou, o que

é pior, sem o menor escrúpulo, dera ao caso um tamanho tão grande e tão

escandaloso, para melhor poder explorar o bolso do rico cliente.

Operei-a, em seguida, no Hospital de Caridade, larga abertura, curetagem, etc.

e, em poucos dias, com algumas injeções de vacina antipiogenica mista de

Bruchettini, teve alta, radicalmente curada, regressando, para sua residência,

satisfeita e feliz, com a virgindade do seu ânus, de que tanto fazia questão e

alarde, como ponto de honra, padrão do seu orgulho de hetaira [hétera]

elegante, e, ainda uma vez, me repetiu: "isso, Dr., só para os "gusanos"

[vermes]. De dentro para fora era natural função fisiológica, mas de fora para

dentro, só o espéculo"...

Neste fim de narrativa, lembro-me que talvez fosse mais certa uma das

epígrafes: tempestade em copo d'água, ou um cu atrapalhado. (VERGUEIRO,

1935, v. 3, p.61-65).

Segundo o autor, o outro médico sugeriu tal diagnóstico devido à condição

econômica do companheiro da paciente que apresentava um pequeno abcesso. Nesses

casos torna-se visível o discurso masculino sobre a maneira como as mulheres deveriam

se portar e relacionar com o sexo oposto.

Mas Vergueiro também se reporta a mulheres que não aceitavam esse tipo de

identidade e dominação. Isso pode ser compreendido como uma espécie de transgressão

ao modelo da mãe e esposa dedicada. São mulheres que não desejam a maternidade, tem

Page 11: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

libido, independência financeira, escolhem seus parceiros, emitem opiniões. O

contraponto a “rainha do lar” era representado por “Eva, debochada, sensual, constitui a

vergonha da sociedade. Corruptora, foi ela a responsável pela queda da humanidade do

paraíso”. (COLLING, 2014, p. 13). Todavia, a resistência ao domínio masculino e ao

modelo imposto às mulheres não significa que elas foram bem sucedidas nas tentativas

de tornarem-se autônomas. Por exemplo, uma mulher negra chamada China, traiu o

esposo, deu à luz a um filho branco e, para não enfrentar seu marido, enforcou-se.

(VERGUEIRO, 1935, v. 1, p. 125-126).

Em outro caso, uma esposa, após o nascimento do filho, não aceitou manter

relações sexuais com o marido (primo de Vergueiro) que, resolveu procurar outra mulher.

O companheiro desta, de sobreaviso, alvejou-o com quatro tiros. Apesar de sobreviver ao

procedimento cirúrgico, o marido suicidou-se, na sequência, na presença da esposa. A

mulher que fora procurada pelo primo de Vergueiro para satisfazer seus desejos sexuais,

também pode ser englobada entre as mulheres que não aceitavam a condição que lhes era

imposta. Assim, foi qualificada como “uma depravada, uma libertina, uma devassa: em

pouco tempo, conseguira fama e direito à ‘rainha’ do mais baixo lupanar [casa de

tolerância] (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p. 171-179).

Além destes, outro relato refere-se a uma moça mulata que foi raptada, deflorada

e afirmava que não queria casar para não se tornar escrava do marido, entretanto ela se

prostituiu, tornou-se alcoólatra e foi infectada pela sífilis. (VERGUEIRO, 1935, v. 2, p.

12-15). A partir destes relatos e de outros, verifica-se que a convenção social, aceitava o

sexo extraconjugal praticado pelos homens, no entanto, para as mulheres, essa

possibilidade era vista como inapropriada e inaceitável. Isto está expresso nos textos que

citamos e, ainda, em “043 Mordida de aranha”, “069 Tamancos”, “073 Não quero china”,

entre outros.

Ao descrever a história de uma mulher gaúcha, esposa de um fazendeiro, no conto

“069 Tamancos”, o autor define “o verdadeiro tipo da mulher-lar: boa e meiga, alegre e

ponderada, morena e esbelta – fausse maigre – trabalhadora e digna”. Ela, ingênua, foi

enganada pelo marido que contraiu gonorreia numa “extra travessura matrimonial”. Com

a confirmação do médico, o marido afirmou que ao colocar os “pés quentes no lodo frio”

“sentiu-se mal da bexiga”. Após o tratamento de dois meses, que a esposa acreditava ser

para “cistite aguda”, esta presenteou-lhe com “uma interessante dádiva: um par de

Page 12: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

tamancos para que, recomendação especial, nunca mais pisasse no barro, com os pés

descalços...”. (VERGUEIRO, 1935, v. 1, p. 163-165).

As memórias do médico Nicolau Araújo Vergueiro dão visibilidade a homens e

mulheres de diferentes classes sociais e diferentes origens étnicas que viveram no século

XX. Elas instituem um testemunho das relações sociais, dos costumes e das normas

vigentes nesta época. No entanto, fornecem a visão, balizada pela cultura e pelo discurso

médico científico de um homem.

Fontes

JORNAL A Voz da Serra. Ano II, n. 71. Passo Fundo: 16 maio 1917.

VERGUEIRO, Nicolau Araújo. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas.

Manuscrito. v. 1: iniciado em 11/07/1935, encerrado em 6/8/1935. Rio de Janeiro. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 2: iniciado em

07/08/1935, encerrado em 04/09/1935. Rio de Janeiro. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 3: iniciado em

05/09/1935, encerrado em 19/10/1935. Rio de Janeiro/Passo Fundo. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 4: iniciado em

20/10/1935, encerrado em 06/11/1935. Passo Fundo. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 5: iniciado em

07/11/1935, encerrado em 08/12/1935. Passo Fundo. 200p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 6: iniciado em

09/12/1935, encerrado em 05/03/1936. Passo Fundo. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 7: iniciado em

07/03/1936, encerrado em 20/11/1936. Passo Fundo. 200 p.

___. Notas íntimas – Algumas reminiscências clínicas. Manuscrito. v. 8: iniciado em

21/11/1936, encerrado em 03/11/1937. Passo Fundo/Rio de Janeiro. 200 p.

Referências bibliográficas

COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção histórica do

corpo feminino. Dourados: UFGD, 2014. 114 p.

GAGLIETTI, Mauro. Dyonélio Machado e Raul Pilla: médicos na política. Porto

Alegre: IEL, EDIPUCRS, 2007.

Page 13: O GÊNERO E A MORAL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX

MACIEL, Maria Eunice. A eugenia no Brasil. In: Anos 90. n. 11, Porto Alegre:

UFRGS. p. 121-143.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade.

2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. 112 p.

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São

Paulo: Ática, 1990. 335 p.

WEBER, B. T. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República

Rio-grandense – 1889-1928. Santa Maria: UFSM. Bauru: EDUSC, 1999. 250 p.