morfologia dos quilombos nas ame´ricas xvi xix

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    v.19, supl., dez. 2012, p.259-297 259

    Uma morfologia dos quilombos nas Amricas, sculos XVI-XIX

    Uma morfologia dosquilombos nas Amricas,

    sculos XVI-XIX*A morphology of

    quilombos in the Americas,sixteenth-nineteenth

    centuries

    Manolo FlorentinoProfessor do Instituto de Histria/

    Universidade Federal do Rio de JaneiroLargo de So Francisco, 1, sala 203

    20051-070 Rio de Janeiro RJ Brasil

    [email protected]

    Mrcia AmantinoProfessora/Universidade Salgado de Oliveira

    Rua Marechal Deodoro, 211, bloco A, 2o andar24030-060 Niteri RJ Brasil

    [email protected]

    Recebido para publicao em outubro de 2011.

    Aprovado para publicao em janeiro de 2012.

    FLORENTINO, Manolo; AMANTINO,Mrcia. Uma morfologia dos quilombosnas Amricas, sculos XVI-XIX.Histria,Cincias, Sade Manguinhos, Rio de

    Janeiro, v.19, supl., dez. 2012,p.259-297.

    Resumo

    O presente trabalho parte daconstatao da natureza relativamenteandina dos estudos acerca dosquilombos em sociedades escravistasnas Amricas, os quais no raro juntamem uma nica categoria (quilombos,cumbes, palenques, mainels etc.)estruturas que podiam englobar menosde uma dezena de fugitivos e durar

    semanas ou meses, ou, como no casode Palmares, congregar at 11 milquilombolas e persistir por quase umsculo. Semelhante anomaliaconceitual revela a falta de taxonomiasque encarem os quilombos comoestruturas efetivamente histricas, quepodiam circunscrever-se a meras hordasou evoluir para a condio decomunidades autossustentveis e, pois,capazes de se autorreproduzireconmica e demograficamente porlongos perodos nas Amricas.

    Palavras-chave: quilombos; resistnciaescrava; morfologias da escravido;escravido nas Amricas.

    Abst ract

    The article begins with the finding thatstudies on quilombos in slave societies inthe Americas have been relatively anodyne,not rarely placing in one sole category(quilombos, cumbes, palenques,mainels, etc.) structures that mightencompass anywhere from less than ten

    runaways, and last just weeks or months,or as in the case of Palmares bringtogether up to 11,000 quilombolas andendure for nearly a century. A similarconceptual anomaly is evident in theabsence of taxonomies, which envisionquilombos as effectively historicalstructures, which might have been restrictedmerely to loose groups or have developedinto self-sustaining communities capable ofreproducing themselves economically anddemographically for long periods in theAmericas.

    Keywords: quilombos; slave resistance;morphology of slavery; slavery in theAmericas.

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    Economia fundada na incorporao de estrangeiros como condio fundamental paraa sua reproduo ampliada, ao reger-se por uma lgica de altssimo desperdcio demo de obra, a escravido americana parecia presa a um paradoxo. Afinal, dificultava a

    capacidade de procriao dos trabalhadores e incrementava as taxas de mortalidade dosescravos devido s duras jornadas de trabalho. O trfico transatlntico, no entanto, tornava

    congruente e necessrio o que, primeira vista, se afigurava contraditrio.

    A vigncia do trfico e os baixos preos da mo de obra por ele propiciado teriam

    levado os senhores a assumir peculiares padres de clculo econmico e demogrfico. Em

    termos gerais, especialmente nas reas mineradoras e nas regies mais intensamente voltadas

    para a agroexportao, a reproduo endgena dos escravos estaria comprometida pelos

    altos ndices de desequilbrio entre os sexos. Alm disso, haveria uma grande mortalidade

    de recm-nascidos e infantes que, por no possurem grande valor econmico (em vez

    disso, representavam custos de manuteno), eram negligenciados pela lgica empresarial,com poucos chegando idade produtiva e sexualmente frtil. O desperdcio de mo de

    obra era, no entanto, apenas aparente: a velocidade de amortizao do investimento

    inicial para a compra do escravo era maior, com o benefcio e o reinvestimento realizados

    em menor tempo (Conrad, 1978, p.22).

    Embora varie ao sabor das caractersticas de cada regio sendo o sul dos EUA a exceo

    sempre referida , esse modelo geral poderia ser aplicado ao perodo anterior a 1850. Com

    a proibio definitiva do trfico, ao mesmo tempo em que o preo dos cativos sofria um

    aumento generalizado, os senhores teriam buscado prolongar-lhes a vida til o

    desequilbrio entre os sexos foi diminuindo, e a empresa escravista teria buscado adaptar-se melhoria das condies materiais dos cativos custa de menores ganhos; os ndices de

    sobrevivncia dos recm-nascidos teriam crescido, e o tempo de vida til se prolongado, ao

    mesmo tempo em que se dilatavam as suas potencialidades autorreprodutoras. Tais mudanas

    se traduziriam, por exemplo, na maior incidncia de famlias escravas (Klein, 1978).

    A escravido assim pensada assentava-se em um postulado bsico: a sociedade escravista

    estaria movida por (e o devir histrico, associado a) uma frrea racionalidade econmica,

    sendo seu agente maior, o senhor, o homo economicuspor excelncia. No entanto, se umaimagem puramente econmica se adequa ao empresrio capitalista, a sua transposio s

    fazendas, minas e cidades americanas do passado requer delicados manejos. O homoeconomicus uma criao histrica do capitalismo, uma inveno humana posterior maior parte da histria da escravido moderna. Cabe observar como e por que ao senhor

    de escravos no caem perfeitamente bem essas vestes historicamente to recentes.

    certo que, desejoso de maximizar seus lucros, o senhor de escravos tendia a adotar um

    clculo econmico moderno, j que se achava preso a uma engrenagem econmica mais

    ampla, sobre a qual exercia desprezvel influncia. Sob esse aspecto, parece haver maiores

    similitudes que desajustes entre o escravista e o contemporneo capito de indstria. Mas

    so mais aparncias, na verdade. Os elementos desse clculo no coincidem, pois so

    tradues de sociedades portadoras de racionalidades distintas. O empresrio capitalistano obtm seus lucros mediante a coero extraeconmica: cabe presso surda das

    condies econmicas o papel do feitor (Castro, 1980, p.93-94).

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    O senhor escravista, pelo contrrio, devia obrigar o seu escravo a trabalhar e a obedecer,se quisesse continuar dono de coisas e gente. Diferena analiticamente fundamental, chegaa ser pueril sup-la expressa em clculos puramente econmicos. O clculo senhorial no

    podia ser estritamente econmico. Dos escravos, por definio, no se esperava quetrabalhassem por lhes terem sido furtados os meios de subsistncia e, mesmo, o direitosobre o seu corpo: eram obrigados. As estratgias senhoriais deviam ser, antes de maisnada, polticas. A cultura poltica escravista no pode ser resumida aos custos econmicosda manuteno de um aparato de vigilncia sobre os cativos, que incidiriam sobre a taxade rentabilidade do sistema e contribuiriam para adequar a nveis timos o tratamentoconferido aos escravos. Tornar um fenmeno de natureza poltica (a m vontade do escravoem trabalhar) em uma varivel econmica, simples e apressadamente, significa despolitizaoda poltica e da cultura e no permite constituir legitimamente um problema terico

    relevante, tornando impossvel o conhecimento de seu exato significado para ofuncionamento do sistema.O escravo era uma mercadoria, objeto das mais variadas transaes mercantis: venda,

    compra, emprstimo, doao, transmisso por herana, penhor, sequestro, embargo,depsito, arremate e adjudicao. Era uma propriedade, enfim. O ordenamento jurdicoda sociedade o constitua como tal, exceto no que concerne transgresso da lei. Alis,tm razo os historiadores que consideram que o primeiro ato humano do escravo ocrime sintetizado, por exemplo, no roubo, no assassinato de senhores ou na fuga e naformao de quilombos. A legislao cuidou, verdade, de regular o seu uso, comonormalmente acontece com outros tipos de propriedade. Mas apenas reconheciahumanidade no escravo por ocasio do crime, pois, afinal, nenhuma outra propriedade punvel.

    Pode-se dizer, portanto, que as evases e a constituio de comunidades de quilombolasrepresentavam atitudes do escravo que o humanizavam na lei escravocrata e na imaginaode muitos historiadores. No limite, porm, a recriao temporal da sociedade escravista,mesmo a sua reproduo econmica, era uma questo fundamentalmente poltica, e asatitudes e relaes que os escravos estabeleciam (familiares, religiosas, de resistncia explcitaou no ao cativeiro) cumpriam papis essencialmente polticos.

    Fugas

    Nas Amricas, como na frica pr-colonial, a reproduo do escravismo esteveestruturalmente ligada contnua reiterao do poder. No poderia ser de outro modo,pois, no sendo autorregulvel, a produo escravista pressupunha a constituio de relaespretritas e desiguais de poder antes de ser propriedade o escravo era um cativo de outrohomem. A senhores e escravos unia, antes que o mundo da produo, uma relao depoder fundada em ordem privada e culturalmente legitimada. Por isso, e no apenas porrepresentar um ataque frontal ao direito de propriedade, que essa possibilidade apontava

    para os limites do domnio privado do senhor e garantia ao escravo algum espao para anegociao de demandas. Mas no se deve esquecer que a escravido vicejou nas Amricaspor quase quatrocentos anos quatro vezes mais do que a experincia do trabalho livre,

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    portanto. Logo, de variadas formas, o passado escravista ainda maior do que o presentelivre. Eis a razo pela qual, embora as fugas e as comunidades de escravos fugidosconstitussem formas clssicas de resistncia escravido, de algum modo o seu estudo

    pode igualmente ensinar algo acerca de tamanha estabilidade.Pode-se comear pela capitania do Rio de Janeiro, uma regio altamente integrada aomercado internacional de produtos tropicais. Se em 1789 o total de escravos chegava a 65mil habitantes 15 mil na cidade do Rio de Janeiro , trinta anos depois alcanou-se ototal de 150 mil, quarenta mil na urbe. O trfico de africanos explica tamanho incremento,com mdias anuais de nove mil desembarcados na ltima dcada do sculo XVIII, e de 23mil entre 1808 e 1830, a maior parte prontamente redistribuda pelo sul-sudeste brasileiro(Florentino, 2010, p. 37 e ss.). As listas de cativos constantes de inventrios post-mortemindicam que tal incremento exacerbou a razo de masculinidade e diminuiu a taxa de

    dependncia. Movimento semelhante ocorreu na regio de Taubat, capitania de SoPaulo, uma rea rural voltada para o mercado interno colonial cuja ligao ao trfico deafricanos cresceu igualmente depois de 1808 (Tabela 1).

    Tabela 1: Perfis demogrficos dos escravos de Taubat (1730-1830) e do Rio de Janeiro (1789-1835)

    * Nmero de africanos por 100 crioulos** Nmero de homens por 100 mulheres*** (Total de crianas + Total de idosos)/Total de adultos

    Fontes: Inventriospost-mortem de Taubat, 1730 a 1830; e Inventrios post-mortem do Rio de Janeiro. 1789 a 1835

    Taubat Meio rural do Meio urbano doRio de Janeiro Rio de Janeiro

    1730-1807 1808-1830 1789-1807 1810-1835 1789-1807 1810-1835

    Nmero de 219 91 150 256 120 393inventriospost-mortem

    Porcentagem de 2,3 2,2 0,7 2,7 0,8 1,8inventrioscom fugitivosNmero de escravos 1.431 390 2.212 5.835 867 3.088Razo de africanidade* 26,1 54,3 97,3 147,8 183,5 363,2Razo de masculinidade** 115,4 116,1 136,1 175,9 162,4 188,0Taxa de dependncia*** 1,38 1,0 0,95 0,76 0,64 0,50Porcentagem de 0,6 0,8 0,1 0,2 0,1 0,6escravos fugitivos

    Menos de 3% dos mais de 1.200 inventriospost-mortem da capitania do Rio de Janeiroe de Taubat registravam nomes de escravos fugidos, em um total inferior a 1% dos quase14 mil escravos arrolados pela fonte. Ao derivar de escravos que senhores beira da morteou os seus herdeiros davam por inapelavelmente perdidos, anotados ademais no intuitode dirimir dvidas acerca dos valores a partilhar, esses ndices parecem bastante confiveis.Eles sugerem terem sido menos frequentes do que se costuma supor as evases que permitiamaos cativos se organizar, mais ou menos rapidamente, em bandos, sob a chefia de um

    deles, ou a reunir-se a quilombos preexistentes. Poucas e circunscritas a poucos plantis, aessas fugas definitivas, muitas vezes designadas grands marronages, chamaremos de agoraem diante fugas-rompimento.

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    Fontes qualitativamente distintas dos inventrios post-mortem, os avisos de fugas deescravos publicados em jornais coevos desvelam outros aspectos desse tipo de resistncia aocativeiro. Em primeiro lugar porque, ao assumir que o fugitivo podia ser recuperado, seus

    responsveis obrigavam-se a detalhar as circunstncias das escapadas, as origens e os traosfsicos dos fugitivos, alm das expectativas de captura, aspectos que permitem ao historiadormontar perfis sociodemogrficos e abordar as percepes dos atores envolvidos nas evases.Em segundo lugar, embora abarquem tambm as fugas-rompimento, os avisos permitemmelhor conhecer as ausncias temporrias, muito mais frequentes, resultantes do impactodo desembarque do africano nas Amricas, do humor do cativo ou da natureza do trabalhoa ele demandado, quando no da vontade explcita de mudar de senhor. Parte expressivadas ausncias temporrias derivava do rompimento de acordos fundados na tradio,como o que ocorreu em 1745, na Bahia, quando, em sua conturbada gesto do engenho

    de Petinga, o padre Lus da Rocha vendera uma escrava para um vizinho, fazendo comque seu companheiro fugisse para encontrar a amada e se recusasse a regressar (Assuno,2002, p.126).

    Tambm chamadas petits marronages, ausncias desse tipo eram efetuadas mais

    individualmente do que por reduzidos grupos de escravos, que se escondiam nos arredoresdos locais de trabalho, nas casas de parentes ou nas senzalas vizinhas. Com algumaprudncia, pode-se cham-las fugas-reivindicativas ou escapadelas, pois muitas vezes seuobjetivo final era to somente obter pequenas conquistas tendentes a alargar a autonomiado escravo na escravido. Sem nenhuma garantia de xito, fugia-se para extrair dos senhoresmelhores condies de vida, o que inseria esse tipo de evaso em um conjunto de atitudesde resistncia cotidiana cuja sistematicidade podia reordenar alguns cnones da escravido.Documentos oficiais e eclesisticos confirmam, desde o sculo XVI, na Amrica espanholae no Brasil, a existncia de uma espcie de populao flutuante entre os escravos, indivduosque escapavam das plantations e das minas para unir-se aos cimarrones1 das montanhasprximas, mas que logo regressavam, para visitar parentes ou simplesmente para pressionarseus senhores a, por exemplo, aceder a seus pedidos para casar com escravas de outrosproprietrios.2

    Do reconhecimento da diferena entre as fugas-reivindicativas e as fugas-rompimentofalam as prprias leis coloniais francesas e espanholas, ao prescrever punies distintas

    para ambas. Os jornais da cidade do Rio de Janeiro tambm confirmam que, no incio dosculo XIX, a rebeldia encarnada na fuga no se restringia ao definitivo rompimento como cativeiro. Por meio dos anncios publicados nas edies doJornal do Commercio (RJ) dasdcadas de 1830 a 1860, observa-se que a quantidade de evases anunciadas podia alcanarcerca de 2% da populao escravizada da urbe, cifra mais de trs vezes superior de fugas-rompimento expressa pelos inventrios post-mortem urbanos da poca. De moto prprioou como resultado da infatigvel recaptura, a maior parte dos fugitivos retornava a seusdonos: o vezeiro em escapar, anotado como fujo, calhambola ou muito calhambolanos inventrios, que no raro se escondia com correntes presas ao corpo; o bbado contumaz

    e o demente, que em seus delrios recusavam-se a crer que o futuro era apenas mais passado espera de se repetir e despertavam a quilmetros de casa; o ladro que levava o dinheiroe as joias dos amos na esperana de assim poder recomear vida nova; o espancado, que

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    nos ares da cidade ou da mata secava as fstulas e mitigava a sede de vingana; a mulhergrvida a vagar por becos e vielas na iluso de impedir que o rebento herdasse seu destinoinfeliz; o crioulo ou o africano aculturado que acabaram de ser comprados, regressando ao

    antigo lar para reencontrar parentes e amores; sobretudo o boal, africano com poucosmeses nas Amricas, cujas escarificaes ainda frescas no corpo denunciavam a sua meninez,que apenas balbuciava alguns termos em portugus, errante por ruas que tambmdesconhecia, muitas vezes sem saber sequer o nome de seu dono desconhecendo, portanto,o poder que o encarnava propriedade.

    Delicados so os procedimentos que permitem avaliar quo generalizveis podem ser osnmeros encontrados para a Amrica portuguesa. Isso porque, fascinados pelas grandesrevoltas de escravos e pelas bem estruturadas comunidades de fugitivos, os pesquisadoresgeralmente relegam a plano secundrio a anlise da resistncia quotidiana e no

    necessariamente tendente superao da escravido, como foi o caso da maioria das fugas.Alm disso, muitos aceitam sem prudncia algumas estimativas produzidas por senhores eautoridades coloniais, cujo af de controlar a escravaria s vezes levava-os a superestimar aenvergadura das fugas e dos quilombos. No poderia ser de outro modo, alis, pois asevases frequentemente expunham os limites do poder senhorial. Eis a origem de umaespcie de paranoia senhorial, sempre pronta a exagerar a escala real das fugas, revoltas equilombos nas Amricas. Um dos primeiros a trilhar semelhante caminho talvez tenhasido o castelhano, que em meados do sculo XVI calculou em sete mil o nmero de cimarronesafricanos a habitar assentamentos dispersos pela ilha de La Espaola, cifra dificilmenteaceitvel por estudiosos do trfico atlntico de escravos (Landers, 2001, p.145). Acompanhou-o a Coroa portuguesa ao determinar que, no Brasil de meados do sculo XVIII, por quilombo

    deveria ser entendido todo agrupamento superior a cinco fugitivos que habitasse zonadespovoada, mesmo sem nenhuma evidncia de que se podiam sustentar por si prprios. 3

    Por isso, no surpreende saber que, de setenta insurreies de escravos tidas como ocorridasno Caribe britnico entre 1649 e 1833 incluindo a as de larga escala e a violncia depequeno escopo , 32 tenham resultado da paranoia senhorial ou simplesmente no sematerializaram (Beckles, 1991, p.364).

    Grandes estncias jesuticas do vice-reino do Rio de la Plata apresentavam baixos ndicesde fugas em 1768, logo aps a expulso dos religiosos, no se registravam evases entre os

    escravos que viviam nas estncias de San Miguel de Tucumn e de Santiago del Estero; nade La Rioja, apenas 1,1% dos 273 cativos estavam ausentes (Andrs-Gallego, 1996).A institucionalizao da cultura da manumisso, mais comum em regies de colonizaoibrica e catlica, por certo contribua para frequncias baixas assim. Maiores, mas nempor isso extravagantes, eram os ndices observados em colnias protestantes como as ilhasdinamarquesas de St. Croix, St. Thomas e St. Jan. Em 1789, o pedagogo Hans West reportou1.340 fujes contumazes ou definitivamente evadidos em St. Croix, ou seja, 6% de 22.448escravos. Estimativa mais precisa foi feita em 1792 por P. L. Oxholm, engenheiro militarque depois se tornou governador-geral 96 escravos para sempre evadidos, ou apenas 0,5%

    dos 18.121 escravos de St. Croix. Seu relatrio revelava ainda um total de 2.082 fugas-reivindicativas nesse ano (11,5% da populao escrava), o que torna a quantidade defugas definitivas vinte vezes menor do que a dos fujes que regressavam a seus senhores ou

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    eram capturados. Em 1802, os 86 cativos definitivamente fugidos representavam menos de3% dos 3.150 escravos de St. Thomas (Hall, 1991, p.389).

    Em contextos localizados, os ndices de fugas podiam ser bem maiores do que o expresso

    por esses poucos casos. Tratava-se de evases macias, ocorridas tanto em fases de depressoquanto de expanso econmica, no raro em situaes de pr ou de ps-revolta de escravos,ou ainda no bojo de conflitos entre as diferentes metrpoles coloniais. Por exemplo, fugasmacias seguiram-se derrota dos africanos que, em 1522, visando criar uma repblicaafricana, mergulharam os arredores da cidade de So Domingos em uma onda deassassinatos de senhores e de destruies de colheitas. O mesmo ocorreria 15 anos depoisna Cidade do Mxico, na esteira de uma abortada conspirao de escravos (Klein, 1987,p.227). Quando piratas holandeses saquearam partes de La Espaola, em 1626, muitosescravos aproveitaram para escapar para as montanhas, e outros at acompanharam os

    flibusteiros (Thornton, 1992, p.278). As famosas comunidades marrons da Jamaica surgiramquando das invases inglesas de meados do sculo XVII, ocasio em que inmeros escravosde espanhis fugiram para o interior. Do mesmo modo, muitos quilombos das Guianastiveram origem ao tempo de invases militares estrangeiras, que desestruturavam osmecanismos de controle e vigilncia das plantations e propiciavam evases de dezenas deescravos de uma s vez (Klein, 1987, p.218). Em 1687, Diego de Quiroga, governador daFlrida, informou a Madri que 11 escravos haviam chegado da Carolina em uma canoaroubada e logo requereram seu batismo na verdadeira f catlica. As fugas se incre-mentaram quando o nmero de negros superou o de brancos na Carolina, especialmentedepois de 1741, quando a Coroa espanhola reafirmou a liberdade de todos aqueles[escravos] que no futuro fugirem das colnias inglesas (Landers, 1999, p.24-33).4 Em 1690,na parquia de Clarendon, cerca de quatrocentos escravos atearam fogo em umaplantation,pertencente a um certo Sutton, e logo fugiram para os bosques do centro-sul da Jamaica,onde por algum tempo viveram de roubos s propriedades vizinhas (Schuler, 1991, p.376).Mesmo nas pequenas ilhas dinamarquesas, famlias de plantadores se arruinaram devidoa evases de grupos de 20-25 escravos em uma nica noite, como relata Reimert Haageenssen,que viveu em St. Croix na dcada de 1750 (Hall, 1991, p.391).

    Casos como esses desvelam o quo complexos podiam ser os processos sociais de fugas.Eles ensejam prudncia na generalizao das frequncias detectadas para o Sudeste brasileiro

    e ilhas do Caribe dinamarqus, as quais, para ser analiticamente teis, devem ser tomadas,sobretudo, como ordens de grandeza das evases. Nesse sentido, no de todo implausvelque, em condies normais, no mximo dez entre cada cem escravos se vissem envolvidosem fugas nas Amricas e menos de um deles lograsse abandonar definitivamente o cativeiro.

    A baixa frequncia de fugas era uma das mais contundentes expresses da multissecularestabilidade do escravismo americano, resultante tanto da fora dos mecanismos de controlesocial quanto, em especial, dos processos que aceleravam a aculturao e mitigavam parteda opresso. No limite, era efeito da progressiva afirmao de uma cultura escrava de feiocamponesa ou protocamponesa, expressa na busca de conquistas como o trabalho por

    tarefas e a obteno de tempo livre para se engajar em suas prprias atividades. Tratava-sede um trao cultural presente tanto no Brasil quanto no Caribe e no sul dos EUA, cujavisibilidade tornava-se maior em conjunturas de menor integrao ao trfico atlntico.

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    Dito de outro modo, as atitudes de protesto escravo tendiam a situar-se menos nocampo poltico formal e mais no plano de demandas de relativa autonomia econmica esocial na escravido. Aspirava-se a ser livre, por certo, mas o contedo dessa liberdade

    remetia ao ideal de reproduo de um campesinato mais ou menos independente, ou detrabalhadores que pudessem controlar parcialmente seu tempo e suas atividades (Beckles,1991, p.372). Semelhante elaborao demandava tempo, sobretudo o tempo de se aculturar,de vivenciar na carne e na alma a pedagogia que aos poucos transformava cativo isto ,prisioneiro em escravo.

    Padres

    A Tabela 1 reafirma tambm uma antiga sugesto de clssicos da historiografia, segundo

    a qual haveria uma correlao positiva entre frequncias de fugas e flutuaes dosdesembarques de escravos nas Amricas.5 , portanto, plausvel que, ao concentrar 2/3 detodas as viagens negreiras, o sculo XVIII tenha representado a poca urea das fugasde escravos no continente. O mesmo raciocnio sugere que, embora se registrem fugas emtodas as Amricas, as evases podem ter sido mais frequentes no Brasil e no Caribe do quena Amrica espanhola continental e, sobretudo, do que no sul dos EUA, onde mesmo osquilombos congregavam menores contingentes e obtinham menores xitos do que naquelas

    regies (Tabela 2).J se escreveu que todo recm-chegado da frica um cimarrn de fato ou potencialmente

    (Casimir, 1977, p.401). Afora o romantismo que cerca assertivas desse tipo, remontam aosprimrdios da colonizao registros de fugas de boais ou bozales. Na Guatemala de 1640,por exemplo, entre o porto de desembarque e o interior evadiram-se 17 dos 98 escravos quevieram de Angola no Nuestra Seora de los Remedios y San Lorenzo (cinco morreram). Osjornais caribenhos no raro alertavam para a presena de boais nos arredores dos portosde desembarque, tentando voltar para a frica. O desfecho podia ser trgico: em 1801, naJamaica, quatro fantes convenceram outros africanos a acompanh-los na fuga daplantationpara a qual haviam sido vendidos; dirigiram-se ao litoral e apossaram-se da primeira canoaque encontraram para nela rumarem para a terra natal, sem a menor noo da distnciaque os separava da frica (Mullin, 1994, p.14 e Cceres, 2001, p.92-93).

    A forte presena de boais entre os fugitivos anotados nos inventrios post-mortem e,sobretudo, nos avisos dos jornais sugere terem sido eles os principais vetores da relao decausalidade entre as frequncias de fugas e as flutuaes do trfico atlntico de escravos.Os boais representavam de 20 a 30% de todos os fugitivos denunciados nos jornais do Riode Janeiro das primeiras dcadas do sculo XIX, perfil mais ou menos semelhante aodetectado em diferentes regies de colonizao britnica entre 1730 e 1805. Uma amostragemde quase dez mil fugitivos denunciados em jornais do Caribe britnico e do sul dos EUAmostra que em Barbados e na regio de Chesapeake Bay, onde se logravam saldos positivosentre natalidade e mortalidade escravas, a menor ligao com o trfico atlntico redundava

    em menores frequncias de evases e em menores ndices de participao de africanosrecm-desembarcados entre os fugitivos (3,8%). Na Jamaica, Carolina do Sul e na Gergia,ao contrrio, regies muito mais dependentes do comrcio negreiro, o peso dos boais

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    alcanava um ndice trs vezes superior (12,5%) Tabela 3. Em suma, embora fugirrepresentasse a outra face da escravido colonial, plausvel que em grande medida seescapasse como resposta solido e subtrao dos cdigos culturais que na frica

    estruturavam a vida. At certo ponto, portanto, as evases podem ser encaradas como osefeitos mais tangveis de uma espcie de seasoningcultural, cujo impacto era obviamentemais frequente nas regies escravistas mais caudatrias do trfico atlntico.

    A dinmica das alforrias tambm reforava a correlao positiva entre fugas e grau deintegrao ao trfico, havendo fortes indcios de que a frequncia de evases era tantomaior quanto menor fosse a incidncia de alforrias (Merrick, Graham, 1981, p.76 e ss.). Doponto de vista senhorial, pocas de expanso econmica implicavam no apenas incorporar

    mais mo de obra, mas tambm limitar a sua perda mediante poucas libertaes. Do mesmomodo, a maior frequncia de manumisses nas fases de recesso encontraria justificativa

    em evitar custos de manuteno e/ou em reaver parte do preo pago por cativos agora noto necessrios. Na primeira conjuntura, de elevados preos dos escravos, tendiam a pre-dominar as alforrias gratuitas, e o nmero de forros no era to expressivo quanto na

    Tabela 2: Exportaes (indivduos sados dos portos de origem) e importaes (indivduos chegadosvivos aos portos de destino) de escravos africanos para as Amricas, ilhas do Atlntico e Europa,

    de acordo com as reas de recepo dos cativos, 1501-1866

    Fonte: Eltis et al. s.d.

    1501-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1866 Totais

    01. EuropaExportaes 903 3.639 6.255 - 10.798Importaes 640 2.981 5.239 - 8.860

    02. Amrica do NorteExportaes - 19.956 358.845 93.581 472.381Importaes - 15.147 295.482 78.117 388.747

    03. Caribe britnicoExportaes - 405.117 2.139.820 218.475 2.763.411Importaes - 310.476 1.813.323 194.452 2.318.252

    04. Caribe francsExportaes - 50.356 1.178.519 99.549 1.328.422Importaes - 38.685 995.133 86.397 1.120.216

    05. Amrica holandesaExportaes - 145.980 339.559 28.654 514.192Importaes - 124.158 295.215 25.355 444.728

    06. Caribe dinamarqusExportaes - 22.610 81.801 25.455 129.867Importaes - 18.146 68.608 22.244 108.998

    07. Amrica espanholaExportaes 241.917 313.301 175.438 860.589 1.591.245Importaes 169.370 225.504 145.533 752.505 1.292.912

    08. BrasilExportaes 34.686 910.361 2.210.930 2.376.141 5.532.118Importaes 29.275 784.456 1.989.017 2.061.625 4.864.374

    09. fricaExportaes - 4.312 3.451 171.137 178.901Importaes - 3.122 2.317 150.130 155.569

    10. TotaisExportaes 277.506 1.875.631 6.494.619 3.873.580 12.521.336Importaes 199.285 1.522.676 5.609.869 3.370.825 10.702.656

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    segunda, de predomnio da liberdade comprada. Sem que ainda se possa estabelecer a justadimenso de cada uma dessas etapas, provvel que as sucessivas conjunturas de alta dospreos dos cativos tenham restringido as suas possibilidades de constituir o peclio adequado

    autoaquisio, redefinindo parte das expectativas, opes e atitudes dos escravos frente liberdade. Nesses momentos, fugia-se mais do que quando seus preos eram menores, ea compra da liberdade, mais factvel.

    bvio, semelhante modelo se aplica basicamente a regies onde as libertaes eramelementos culturalmente incorporados s relaes entre senhores e escravos, o que, porexemplo, exclui a Virgnia de fins do sculo XVII. Ali, em 1691, chegou-se a proibir todamanumisso privada, a menos que o senhor deportasse o forro da colnia; mulher brancaque parisse filho mulato era pesadamente multada, ou se tornava serva por cinco anos,seus filhos por trinta (Davis, 1997, p.21-22). Nas colnias catlicas ibricas, ao contrrio,

    as pocas de pouca integrao ao trfico atlntico resultavam em preos relativamentebaixos das alforrias, e os escravos obtinham-nas sobretudo mediante compras. Na Guatemala

    do sculo XVIII, por exemplo, 70% dos escravos manumissos quase sempre mulheres haviam comprado sua liberdade, gerando uma expressiva populao livre de cor. Poucosfugiam, no raro para organizar-se em palenques como os existentes nas imediaes damontanha do Mico, de onde se dedicavam a pilhagens de caravanas, alm de arregimentarnovas fugas nas plantations vizinhas (Palomo-Lewin, 2001, p.203). Do mesmo modo, apennsula de Yucatn (Nueva Espaa) apresentou parca integrao ao trfico, pois o grossode sua demanda por mo de obra era plenamente atendida pelos indgenas. Os poucosescravos ali existentes ou bem eram gratuitamente alforriados ou, caso mais comum,compravam a sua liberdade com o apoio de algum parente ou por meio de fundoscomunitrios de liberdade reconhecidos pela legislao castelhana. Os escassos casos defuga ocorriam tanto dentro quanto para Yucatn, e a maioria dos escravos era devolvidaa seus donos no prazo de duas a oito semanas. No h evidncias confiveis de que emYucatn houvessepalenques, embora seja possvel que San Fernando de los Negros, em Ake,tenha servido de refgio aos fujes (Restall, 2001, p.298).

    Embora homens e mulheres escravizados constantemente fugissem, os adultos do sexomasculino tenderam a predominar no universo dos fugitivos. No Sudeste brasileiro davirada do sculo XVIII, trs entre cada quatro fugitivos que para sempre abandonavam o

    cativeiro eram homens, na maioria congos ou angolanos, devido intensa ligao daregio com a frica central atlntica. Os inventrios post-mortem dos senhores indicamtratar-se de adultos fixados em grandes plantis, nos quais realizavam tarefas diversas epouco especializadas. Alguns traziam no corpo as marcas do trabalho pesado e do choquemicrobiano, e o fato de muitas vezes fugirem em pequenos grupos sugere que parte dasfugas-rompimento obedecia a um planejamento, com definio de destino e amparo logsticoem redes sociais engendradas dentro e fora dos plantis, e que no necessariamente serompiam aps a fuga. No que tange s fugas-reivindicativas, eram homens quatro de cadacinco fugitivos denunciados em jornais do Sudeste brasileiro, com esmagador predomnio

    dos africanos (de cinco a dez para cada crioulo). Embora os congo-angolanos predo-minassem, era igualmente expressiva a quantidade dos oriundos de outras regies africanas(sobretudo de Moambique), alm dos crioulos provenientes de provncias do Nordeste e

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    Uma morfologia dos quilombos nas Amricas, sculos XVI-XIX

    do Sul do Brasil. As crianas entre dez e 14 anos alcanavam 1/3 de todos os fugitivos e45% dos africanos evadidos (Gomes, Soares, 2002, p.8-9). Como os que para sempre partiam,a maioria dos denunciados nos jornais desempenhava tarefas rudimentares, embora alguns

    tivessem ocupaes estveis e especializadas (sapateiros, alfaiates, marceneiros e, sobretudo,marinheiros e domsticos), o que afiana a ideia de que havia escravos que acreditavampoder viver indefinidamente de seu prprio trabalho fora do cativeiro, mas dentro dasociedade escravista. Fugia-se em grupos de dois ou trs, mas sobretudo isoladamente, e,embora alguns recebessem a ajuda de escravos e livres que os escondiam e empregavam, namaioria das vezes a evaso no se fazia de acordo com meticuloso planejamento nem seamparava em redes de sociabilidade slidas ou muito amplas.

    A intensa ligao da Amrica portuguesa com o comrcio negreiro por certo colaboravapara o predomnio dos fugitivos do sexo masculino em idade adulta. Evidncias relativas a

    outras regies americanas sugerem, no entanto, que tal padro no constitua mero reflexoda estrutura sexualmente desequilibrada da populao escravizada. Por exemplo, sabe-seque, entre 1730 e 1805, economias pouco dependentes do trfico atlntico como Virgnia,Maryland e Barbados conheceram uma porcentagem de 85% de homens entre os fugitivos.

    Tratava-se de ndice maior do que os 78% detectados para a Carolina do Sul, Gergia eJamaica, zonas bem mais integradas ao trfico atlntico de escravos onde, ademais, aparticipao de cativos recm-desembarcados entre os evadidos era trs vezes superior detectada em Chesapeake Bay e em Barbados (em todos os casos, os adultos predominavamsobre as outras faixas de idade); cf. Tabela 3.

    Logo, para alm do perfil sexual e etrio demograficamente desequilibrado da populaoescrava, outros fatores deviam colaborar para o predomnio de adultos masculinos entreos fujes. Sintomaticamente, entre os fugitivos da Carolina que fundaram o santurio deGracia Real de Santa Teresa de Mose, em 1738, havia pouqussimas mulheres. Isso se deviaem grande medida ao fato de que os filhos dificultavam a participao de mes nas perigosasjornadas atravs dos pntanos da Flrida, em que somente os mais fortes e velozes escapavamdos caadores de escravos e de predadores naturais (Landers, 1999, p.31). Do mesmo modo,

    Total Nmero de Nmero de Porcentagem de Porcentagem dehomens mulheres homens escravos novos

    1. CaribeJamaica 2.612 1.981 631 75,8 20,1Barbados 431 283 148 65,7 5,1

    2. Chesapeake BayVirgnia 1.280 1.138 142 88,9 5Maryland 1031 901 130 87,4 1,7

    3. Carolina LowcountryCarolina do Sul 3267 2582 685 79 7,4

    Gergia 998 816 182 81,8 11,6

    Total 9619 7701 1918 80,1 10,3

    Tabela 3: Perfis demogrficos dos escravos fugidos constantes emavisos de jornais do Caribe e sul dos EUA (1730-1805)

    Fonte: Mullin, (1994, p.289)

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    Manolo Florentino, Mrcia Amantino

    os inventrios post-mortem de senhores da Amrica portuguesa mostram que, no fim dosculo XVIII, poucos escravos aparentados deixavam o cativeiro definitivamente para trs.Mesmo os jornais poucas vezes anunciavam fugas conjuntas de parentes. Tudo isso sugere

    que, at certo ponto, a famlia escrava operava como um forte mecanismo de estabilizaosocial, criando vnculos de adeso de seus principais componentes mes e filhos aostatus quo escravista.

    A horda quilombola

    Embora alguns fugitivos lograssem se reinventar forros, mudando de nome e passando aviver de ganhos eventuais no campo e nas cidades, e outros, raros, se engajassem em naviosmercantes e regressassem frica, a maior parte dos que jamais foram recapturados encontrava

    alternativa distinta. Do rio da Prata ao sul dos EUA, ospalenques, quilombos, cumbes, marronse mainels se constituam e reconstituam nas franjas dasplantations, minas e cidades. S emNueva Granada, entre os rios Cauca e Magdalena e ao redor de Cartagena, foram identificadosmais de meia centena depalenques entre os sculos XVI e XVIII, dos quais os de San Baslio,La Ramada, Santa Cruz de Mazinga, Betancur, Ur, Matuder e San Jacinto so os maisfamosos (Friedemann, 1998, p.87-89). Em Minas Gerais (Brasil), havia pelo menos 166quilombos entre 1711 e 1795 (Amantino, 2003). Ainda hoje h descendentes de cimarronesvivendo em enclaves no Caribe, Amrica Central e Amrica do Sul.

    Costumavam refugiar-se em bosques e regies pantanosas, ento abundantes nasAmricas. E faziam-no no apenas em busca da necessria proteo contra os caadores deescravos e milcias coloniais, mas tambm por causa da infinidade de recursos quesemelhantes meios ofereciam, representados pela possibilidade de caar e pescar e de obterlenha e cips, por exemplo assim atuando, alguns poucos fugitivos at conseguiamprescindir por anos a fio de todo e qualquer contato social (Barnet, 1986). De fato, seguranae abastecimento eram requisitos iniciais imprescindveis para a sobrevivncia de pequenosassentamentos que, com alguma sorte, podiam transformar-se em ncleos estveis decamponeses autnomos. Devido remoo, pelas plantations aucareiras, das florestas epntanos que at a primeira metade do sculo XVIII garantiam-lhes proteo e alimentos,muitos fugitivos das ilhas de St. Croix, St. Thomas e St. Jan navegavam para Porto Rico ou

    se misturavam s populaes negras das cidades das ilhas dinamarquesas (Hall, 1991, p.389).Movimentos semelhantes ocorreram em Barbados e em Antgua (Thornton, 1992, p.285).

    To frequente quanto ospalenques era a represso que sobre eles se abatia, os recapturadospunidos com centenas de chicotadas, postos a ferros e mesmo mutilados. O Codigo Negrode Santo Domingo (1768) previa que os ausentes por at quatro dias deveriam ser punidoscom cinquenta chibatadas e atados ao tronco at o pr do sol. O nmero de chibatadassubiria para cem se a fuga se estendesse por mais de oito dias, caso em que, ao p doescravo, seria preso, por dois meses, um ferro de 12 libras. Evases por intervalos maiores,porm inferiores a quatro meses e sem contato entre o fugitivo e os quilombolas, eram

    castigadas com duzentas chicotadas, acrescentando-se outras duzentas no caso de associaocom cimarrones. O desterro da ilha de Santo Domingo era o destino em caso de reincidncia.O Code Noirpara a Louisiana (1724) era, de certo modo, mais sinttico e brutal: ausncias

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    Uma morfologia dos quilombos nas Amricas, sculos XVI-XIX

    de mais de um ms implicariam o corte das orelhas do fugitivo, que, alm disso, teria ascostas marcadas com uma fleur-de-lys, o smbolo da realeza francesa. Se reincidisse, umbrao lhe seria amputado e o fujo teria gravada no corpo mais uma fleur-de-lys. A terceira

    fuga redundaria em execuo (Salmoral, 1996, p.172-193). Aoites, marcaes com ferroem brasa, corte de mos e de orelhas, degola de cadveres e exposio pblica das cabeasforam prticas que se sucederam tambm na represso aos quilombos brasileiros durante oSetecentos, em frequncias variveis de acordo com as circunstncias (Guimares, 2002).

    Circunstncias houve em que violncia e persuaso se alternaram, sobretudo ao longodos dois primeiros sculos da colonizao. Em La Espaola de meados do sculo XVI, porexemplo, em resposta aos ataques de cimarrones contra os mineradores e haciendas do valecentral de La Veja, as autoridades locais mesclaram intentos de pacificao, mediante oenvio de religiosos aospalenques, com a mais pura represso militar (Landers, 2001, p.145-

    150). Em 1577, no que hoje o Equador, os sacerdotes estiveram igualmente incumbidosde contatos com os fugitivos que duas geraes antes haviam fundado o palenque deEsmeraldas. Os lderes cimarrones aceitaram os primeiros contatos, participaram de ofciossagrados, fingiram aceitar a f catlica e logo escaparam dos religiosos. Do mesmo modo,em meados do sculo XVII, o arcebispo de La Espaola, Francisco de la Cueva Maldonado,tentou por meios pacficos atrair os cimarrones reunidos em quatro palenques nas fraldasdas montanhas da costa meridional da ilha. Conhecidos como Bahoruco, eles j haviamrejeitado outras ofertas de paz e rechaaram mais essa, argumentando no acreditar empalavra de branco. Pouco tempo depois, os espanhis lanaram uma srie de ataquesquase fatais contra eles, mas as comunidades de cimarrones Bahoruco persistiram at quandobem adiantado ia o sculo XVIII (Landers, 2001, p.145-150).

    Por resultar basicamente da ao de foras repressivas, as fontes para a reconstituioda histria dospalenques so em geral fragmentrias e prenhes de etnocentrismo, sobretudoquando descrevem a dinmica interna dos assentamentos. Em pouqussimos casos particularmente no Suriname e na Jamaica, onde os quilombolas conseguiram estabelecertratados com as autoridades coloniais, ganharam grande autonomia poltica e seusdescendentes sobrevivem at os dias atuais dispe-se de fontes to ricas como a tradiooral. Ainda assim, os interrogatrios de quilombolas da baixa Louisiana oferecem um vivopanorama das situaes experimentadas pelos recm-fugidos e pelos assentamentos apenas

    formados. Na dcada de 1760, aps se evadirem por causa de castigos injustificados e dealimentao inadequada, os escravos vagavam desarmados pelos pntanos, alimentando-se do milho e das batatas que conseguiam levar das plantations e daquilo que coletavam ecaavam. Amide regressavam em menos de um ms. Os que no voltavam construamcabanas ou, mais frequentemente, buscavam integrar-se aos frgeis assentamentos existentesem zonas de ciprestes no muito longe das plantations, ao longo dos rios e das baaspantanosas, de onde continuavam a roubar, sobretudo alimentos das propriedades escra-vistas. Outros abraavam atividades alternativas com que proviam a subsistncia, cultivandoralos campos de milho e de arroz, a maior parte vivendo da caa a jacars e a pequenos

    animais, pescando, coletando palmito. Uns poucos produziam excedentes suficientes evendiam-nos nos mercados de Nova Orleans. Listas de recapturados revelam um perfildemogrfico extremamente desequilibrado, com mais de trs homens para cada mulher.

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    Manolo Florentino, Mrcia Amantino

    Devido fraca insero dos EUA no trfico atlntico, os fugitivos da baixa Louisiana eram

    quase todos crioulos, cujos renitentes contatos com os escravos das plantations contribuam

    para que o esprito de insubordinao no se extinguisse na regio. Na poca da Revoluo

    Americana, surgiu entre os maroons da regio entre a boca do rio Mississipi e Nova Orleans(Bas du Fleuve) a carismtica liderana de St. Mal, fundador de assentamentos como Ville

    Gaillarde e Chef Menteur. Os interrogatrios revelam que a esses locais continuavam chegando

    novos evadidos, no raro trazendo consigo barris de arroz, varas de pescar, mosquetes e

    plvora, alm de facas para caa, o que fazia com que a comunicao entre os quilombolas

    e os escravos dasplantations assumisse feies de suporte para o abastecimento e de mtua

    inteligncia. Havia inclusive quilombolas associados aos donos de serrarias, para quem

    cortavam pinheiros e vendiam as toras (Hall, 1992, p.201-236).

    As normalmente baixas frequncias de evases definitivas e os fortes desequilbrios

    sexuais e etrios tendiam a reduzir quilombolas como os do Bas du Fleuve condio demeras hordas isto , ajuntamentos fundados mais no princpio da adeso do que em

    saldos entre natalidade e mortalidade, mais na coleta, caa e roubos do que na agricultura

    como estratgia de reproduo econmica, ausentes de um poder civil ou militar estvel e

    claramente legitimado. Dos roubos e do mero aproveitamento dos recursos naturais preexis-

    tentes derivava seu nomadismo; da adeso como estratgia de reproduo demogrfica

    resultava a exiguidade dos grupos geralmente inferiores a dez pessoas e a falta de coeso

    adequada, posto que a unio tendia a exercer-se to somente em torno de objetivos ime-

    diatos, como a busca de alimentos e proteo. Tal era a configurao da maioria dos

    palenques, cumbes, quilombos, marrons e mainels americanos, o que, em determinadosaspectos, podia favorecer-lhes. Afinal, reduzidos e socialmente porosos, dispersavam-se

    facilmente quando atacados e tinham grande facilidade para abrigar-se em locais de difcil

    acesso havia quilombolas vivendo em lapas e cavernas. Mas o risco de desapario era

    igualmente constante, e, depois de algum tempo, as dificuldades tornavam-nos presas de

    recaptura, no sem antes ceifar boa parte dos quilombolas devido a inanio, sarampo,

    malria, disenteria e, sobretudo, varola. Eis a razo pela qual as hordas de fugitivos se

    encontravam em uma posio em princpio defensiva, incessantemente buscando refgio

    em zonas cuja geografia dificultasse a sua localizao e destruio. Eis tambm o motivo

    pelo qual, em vez de fundarem seus prprios agrupamentos, boa parte dos recm-evadidosoptava por integrar-se a assentamentos preexistentes (Thornton, 1992, p.282).

    Esconder-se em matas e pntanos podia garantir por algum tempo a sobrevivncia das

    hordas, mas no afianava a sua reproduo demogrfica simples (um por um) e menos

    ainda o seu crescimento. No caso dos fugitivos da baixa Louisiana, por exemplo, St. Mal

    acabou trado e morto. Sintomaticamente, a decadncia dos assentamentos do Bas du

    Fleuve parece ter-se acentuado quando, sob ataque das foras espanholas, auxiliadas por

    milcias de homens livres de cor e por alguns escravos, as comunicaes com as plantations

    foram cortadas e, com elas, o acesso a fontes vitais de informao e suprimentos. A lista

    dos escravos recapturados mostra que pertenciam a senhores facilmente identificveis, emclara aluso a um alto grau de fluidez social. Os quilombolas estavam longe de fincar razes

    por crescimento endgeno positivo, no obstante a agregao de algumas famlias escravas

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    Uma morfologia dos quilombos nas Amricas, sculos XVI-XIX

    formadas ainda no cativeiro. Em meados de 1784, contavam-se 103 capturados, mas talvezhouvesse mais. No total, os quilombolas equivaliam parcela pouco expressiva da populaoescrava da baixa Louisiana (Hall, 1992, p.201-236). Tampouco lograram ultrapassar a

    condio de horda quilombola os cinquenta ou mais escravos do Engenho Santana (Bahia)que, em 1789, liderados por um crioulo de nome Gregrio Luiz, assassinaram o feitor efugiram para as matas prximas. Durante dois anos infernizaram a vida do senhor detodos, Manuel da Silva Ferreira. Acossados por expedies militares, acabaram por enviara este, por escrito, uma notvel proposta de paz por eles elaborada, na qual estabeleciam ostermos pelos quais retornariam voluntariamente ao cativeiro. Pediam melhores condiesde trabalho, a oportunidade de cultivar gneros alimentcios e de comercializ-los, maisconforto material e o direito de brincar, folgar e cantar quando lhes conviesse (Reis,Silva, 1989, p.123-124). Ferreira fingiu aceitar os termos da proposta, viu-os retornar ao

    Santana, vendeu os lderes da revolta para o Maranho, mandou prender Gregrio, e avida no engenho retornou ao normal.Portadoras de menor complexidade demogrfica e social e, por isso mesmo, capazes de se

    disseminar pelas Amricas, as hordas quilombolas encarnavam o principal vetor deintranquilidade da populao livre, especialmente quando se associavam a grupos socialmentedesviantes, como os garimpeiros clandestinos e os bandidos que povoavam as estradas.A afirmao de Souza (1999, p.23) Amide [torna-se] difcil distinguir os homens livrespobres dos escravos e dos quilombolas, sobretudo se os primeiros so forros uma explcitareferncia fluidez dos limites entre as camadas sociais mais pobres e os grupos de fugitivos.De fato, muitas vezes os prprios documentos no deixam claro se eram quilombolas ouhomens livres pobres que viviam margem da sociedade formal, j que, ao abraar formasalternativas de vida e no se submeter facilmente ao controle das autoridades, ambos eramvistos como agentes sociais perniciosos. A esse respeito, a trajetria de Bento Correia de Melona metade do sculo XVIII emblemtica. Bento invadiu a regio do Sapuca, destituiu eprendeu a autoridade local, nomeou um de seus companheiros para o cargo e logo tomouposse das terras e lavras aurferas dos colonos. Os prejudicados remeteram ao governador dacapitania de Minas Gerais uma petio em que solicitavam providncias, alegando que Bentoj havia se envolvido em revoltas e crimes em outra rea, razo pela qual fugira para oquilombo prximo a Sapuca, de onde comandava ataques populao livre (Souto Maior,

    1751). Por outro lado, os sistemas de captura tambm favoreciam a confuso entre o cimarrne o mero fujo, como no Sudeste brasileiro do sculo XVIII, onde o capito do mato recebiavinte oitavas de ouro para cada quilombola apanhado e muito menos nos casos de capturasde simples fujes errantes (Amantino, 2008, p.143). Resultava que quase todo escravocapturado fosse imediatamente classificado como quilombola, o que naturalmente ajudavaa superestimar a quantidade de cimarrones.

    A comunidade quilombola e redes de sociabilidade

    Alguns rarospalenques, de cuja existncia apenas hoje podem ser encontrados indcios,conseguiram permanecer radicalmente isolados, sobretudo no interior da Amrica do Sul.No gratuitamente, porm, o Cdigo Negro de Santo Domingo prescrevia a forca para o

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    fugitivo que, ausente por mais de seis meses, houvesse mantido contato com quilombolas.Outros cdigos espanhis e o Code Noirproibiam dar emprego a fugitivos, impediam osescravos de comercializar qualquer bem sem comprovada autorizao senhorial e o auxlio

    aos quilombolas (Salmoral, 1996, p.168-194). O motivo era simples: ospalenques mantinhamgraus razoveis de interao com escravos, indgenas, forros e homens livres que viviamem seu entorno, e senhores e autoridades coloniais sabiam que as redes que os uniam eramfundamentais para a reproduo e o crescimento dos grupos de fugitivos. Por isso que,em 1795, uma carta ao governador denunciava que os escravos das fazendas de MinasGerais se aliam com os do mato [e com eles] repartem os mantimentos dos paiis de seussenhores (Amantino, 2008, p.149). Outro documento reiterava que pequenos armaznseram estratgicos para a reproduo dos quilombos, sobretudo porque neles secomercializava o resultado dos assaltos e o excedente agrcola e pecurio. As lojas de secos

    e molhados se tornaram to importantes para a reproduo quilombola, que, em 1754, aCmara da cidade de Vila Rica denunciou que cada venda um quilombo (p.147).De fato, redes estveis de sociabilidade e auxlio permitiam a obteno de alimentos,

    armas, munio, dinheiro e informaes que garantiam a sobrevivncia presente e futura.Atravs delas, os cativos eram conduzidos aos quilombos, parentes fugidos e escravizadosse encontravam, e alguns quilombolas vendiam autonomamente a sua fora de trabalhopara as plantations. Por ensejar o escoamento de parte do que se coletava e produzia, taisredes modulavam a insero quilombola no mercado. Em suma, aliadas proteorepresentada por locais de difcil acesso, as informaes e os bens obtidos por meio dainterao com o entorno funcionavam como uma espcie de acumulao primitiva,que sedimentava a eventual transio da horda instvel e constantemente beira da extinopara a comunidade rural quilombola plena de sentido histrico ou seja, para o est-gio de grupo funcionalmente agregado que ocupava um determinado espao e poca,portador de estrutura social e poltica razoavelmente complexa, cujos membros eramconscientes de sua singularidade e identidade. Efetuada a transio, a combinao entreessas redes, a segurana derivada de refgios estrategicamente localizados e a maior capa-cidade de reproduo econmica e demogrfica podiam transformar algumas comunidadesem uma espcie de extenso da escravaria submetida ao cativeiro e vice-versa, permitindo-lhes desfrutar de razovel controle sobre as suas vidas, os seus bens e o seu territrio (Hall,

    1992, p.201-236). Dialeticamente, isso aumentava as chances de agregar novos fujes,processo cuja continuidade reiterava o crescimento econmico e demogrfico autos-sustentvel.

    possvel que ospalenques do Valle de Carabayllo, no Peru, no sculo XVIII, estivessem

    em transio para o estgio de comunidade camponesa estvel. Eram assentamentos nofortificados, cuja defesa parece ter-se apoiado especialmente em sua capacidade de proliferar-se de modo disperso em refgios naturais. A existncia de inmeras fontes de gua potvelfavorecia a sua disseminao, havendo indcios de que cada assentamento controlava umdeterminado territrio ao redor de um manancial. A contribuir para a sedimentao havia

    o fato de que a relativa escassez de mo de obra para o corte de madeira fazia com quemuitos fugitivos de Carabayllo fossem contratados pelos administradores das propriedadesvizinhas. Em troca, eles eram autorizados a vender parte da lenha em seu prprio benefcio,

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    o que por certo ajudava a incrementar as redes de sociabilidade com estratos da sociedadecolonial peruana. De todo modo, em todas as Amricas, a transio para a comunidadenutria-se especialmente das dificuldades de sobrevivncia dos recm-fugidos, que por isso

    geralmente buscavam integrar-se a comunidades quilombolas preexistentes. H boas razespara se julgar que esteja no quilombo do Tijuco, observava, por exemplo, o aviso da fuga deFlix Moambique, referindo-se a um dos vrios grupos de fugitivos que desde o sculo XVIIencontravam abrigo nas montanhas que cercam a cidade do Rio de Janeiro (Anncios...,6 jul. 1830). Sabe-se que, na Jamaica, onde os indgenas desapareceram como comunidadedistinta logo aps a conquista espanhola, tanto por ocasio da invaso inglesa de 1655quanto das violentas revoltas escravas do final do sculo, muitos cativos aproveitaram parafundar novos palenques, enquanto outros, muito mais numerosos, simplesmente se agrega-ram aos assentamentos de marrons das montanhas (Thornton, 1992, p.282-285).

    Nas regies de fronteira aberta, era frequente a criao de redes de interao com ascomunidades indgenas, com as quais os fugitivos se mesclavam e at se diluam, sejaporque o poder militar dos nativos inibia as foras coloniais, seja pelo fato de sua existnciaminorar as dificuldades dos recm-escapados. Trata-se de movimento to antigo na histriacolonial que j em 1503 Nicols de Ovando, governador de La Espaola, denunciavaque africanos encontravam refgio entre os ndios tainos das montanhas da ilha oscimarrones africanos auxiliariam o taino Enrique em sua derrotada sublevao contraos espanhis em 1519-1532 (Landers, 2001, p.145; Thornton, 1992, p.285). Em Porto Rico,aborgines e negros conviviam nas matas, de onde levavam tanto pnico aos colonosespanhis que, em 1526, Francisco de Ortega denunciava estar a ilha se despovoando demetropolitanos (em dezembro de 1550 o governador enviava carta ao rei afirmando que asituao ainda no se resolvera) (Moscoso, 1995). Durante o sculo XVI, cooperao entrefugitivos e aborgines foi igualmente detectada na regio Zapoteca da Nueva Espaa (1523),em Cuba (1529), na Nicargua (1540), na zona venezuelana de Santa Marta (1550) e noPanam (1546-1550) (Thornton, 1992, p.286).

    Mais no Brasil do que em qualquer outra parte, em muitas ocasies, os indgenas serviams autoridades como foras repressoras de quilombolas, como no caso dos tapuias queajudaram os portugueses a destruir o quilombo de Palmares em fins do sculo XVII. Porsua vez, uma carta de Sancho de Alquiza ao rei, de fevereiro de 1612, afirmava que os

    caribes possuam dois mil escravos africanos nas ilhas que habitavam nas Antilhas(Thornton, 1992, p. 290). H evidncias de que, tambm no sul dos EUA, os aborginesmantinham negros fugidos como escravos ou com eles estabeleciam uma espcie de arranjofeudal no qual os negros residiam em seus prprios assentamentos (as aldeias negras de

    que falam as fontes inglesas) e davam tributos anuais e servios aos seus senhores nativos(Landers, 1999, p.68). Em contrapartida, h inmeros episdios de negros escravizados elivres que contribuam para sufocar indgenas inassimilveis, alm dos casos em queautoridades metropolitanas utilizavam-se abertamente dos quilombos para seus prpriosobjetivos, como no Panam de 1570, onde os ingleses conseguiram a aliana dos cimarrones

    contra os espanhis.Como padro geral, quando os indgenas eram finalmente conquistados ou mantinham

    alianas estveis com as autoridades coloniais, tendiam a rejeitar contatos com quilombolas,

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    chegando mesmo a devolver muitos deles aos europeus, como fizeram os caribes na Martinicae em San Vicente aps 1660-1680 (Thornton, 1992, p.286-288). Mas mesmo no sul dosEUA, alguns fugitivos que alcanavam a Flrida durante o sculo XVIII haviam antes

    lutado ao lado dos ndios Yamasee contra os ingleses (Landers, 1999, p.26-27). Na mesmapoca, detectou-se na Louisiana francesa a existncia de assentamento de africanos eaborgines que, juntos, se dedicavam a roubar suprimentos, armas e munio de seussenhores. Em interrogatrio a que foi submetido em 1727, um escravo indgena recapturadorevelou a existncia do assentamento de Natanapall, habitado por 15 outros fugitivosindgenas e africanos fortemente armados. Ainda na Louisiana, em 1748, os choctawocidentais que haviam atacado colonos alemes da Cte dAllemagne igualmente derrotaramuma guarnio militar mandada para captur-los, feito para o qual contaram com oauxlio de fugitivos negros e de escravos indgenas que antes haviam acolhido (Hall, 1992,p.40 e ss).

    Interao ainda mais forte sugerida pela anlise da cermica encontrada em stiosarqueolgicos dos arredores da cidade de Santo Domingo. Embora produzida por cimarronesafricanos, ela incorpora elementos de tradio indgena, em uma configurao que denotaintensas trocas culturais entre ambos, o que inclusive tem levado reavaliao de estilos

    antes tidos como exclusivamente aborgines (Landers, 2001, p.150-151). Cermica indgenatem sido encontrada tambm no corao de Palmares, a serra da Barriga, sugerindo que alia mescla cultural devia ser igualmente intensa a partir do perfil dos prisioneiros capturadospelos holandeses, afirma-se ser de 20% a populao amerndia no assentamento central doquilombo em 1644 (Funari, 1996, p.31-46). Tais exemplos apontam para a possibilidade de

    que cimarrones e indgenas pudessem unir-se a ponto de criar comunidades mestias, perfilefetivamente detectado em outras regies antilhanas, na Amaznia, na Bahia, no Equadore em algumas reas da Flrida colonial (Gomes, 2002, p.43). Quilombos mestios uniamindgenas e cimarrones africanos nas montanhas ao redor das minas de cobre da regio deBuria, Venezuela, em 1552. Comunidades mestias caribenhas parecem ter-se originadode naufrgios de naus com escravos, como os zambos mosquitos da Nicargua (1641) e osblack caribs de San Vicente (1675) (cf. Thornton, 1992, p.284-286).

    A mestiagem era igualmente comum na capitania do Mato Grosso (Brasil), onde, em1770, o quilombo do Piolho fora destrudo pela primeira vez. Embora nessa ocasio tenham

    sido capturados 79 negros e 30 aborgines, os negros que escaparam logo voltaram aoassentamento original e constituram famlias com mulheres indgenas. Vinte e cinco anosdepois, durante uma nova batida das autoridades, foram capturados seis negros idosos, ospatriarcas da comunidade, oito ndios, 19 ndias e 21 caburs (filhos de ndios com negros)com idades de dois a 16 anos (Volpato, 1993, p.188). O elevado nmero de mulheres,

    quando comparado aos oito ndios, sugere a preferncia pela permanncia de mulhe-res indgenas no quilombo, prtica que remetia a um crnico deficitde mulheres negras e incorporao das ndias como recurso demogrfico para a constituio de famlias. Aesse respeito, quando Diego de Fras ocupou o assentamento de rio Pias (Panam), em

    1580, observou que a comunidade possua algumas mulheres indgenas, capturadas emguerras contra nativos das proximidades (Thornton, 1992, p.297). Podiam ter de suprirdeficitsemelhante ao detectado para o Mato Grosso. Em outros casos, a natureza camponesa

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    das comunidades mestias adquiria tons ainda mais destacados, como no caso dopalenquede Esmeraldas, cujas origens remontam ao encalhe na costa do Equador, em 1533, de umaembarcao proveniente do Panam com escravos originrios da Guin. O negro Antn

    liderou a fuga de 16 homens e seis mulheres em direo mata densa, onde se uniram aosndios pidi. De acordo com o relato do sacerdote Miguel de Cabello Balboa, emborainicialmente os africanos tenham servido aos pidi como guerreiros, logo as suas demandaspor recursos e mulheres provocaram conflitos, resultando em enfrentamentos. Os africanosremanescentes mesclaram-se aos nativos da costa, formando o primeiro assentamentocampons mestio de Esmeraldas (Landers, 2001, p.146-147).

    Entre os quilombos que certamente atingiram o estgio de comunidades camponesasestiveram aqueles poucos que conseguiram estabelecer tratados formais de paz com asautoridades de algumas colnias americanas. Em sua forma tpica conforme se registrou

    na Colmbia, Mxico, Brasil, Cuba, Equador, Jamaica, La Espaola e Suriname , os tratadosde paz incluam a aceitao da liberdade dos cimarrones, o reconhecimento da integridadeterritorial do grupo e at mesmo o envio de provises para atender a suas necessidadesimediatas. Em troca, os cimarrones deveriam pr fim a toda hostilidade contra o podercolonial e asplantations, devolver os escravos que dali por diante procurassem refgio entreeles, alm de ajudar a capturar novos fugitivos. No h certeza absoluta de que os tratadostenham sido integralmente cumpridos. Os saramakas do Suriname, por exemplo, emborase tivessem comprometido a devolver aos senhores todos os companheiros que no fossem

    membros de suas comunidades antes do tratado, escondiam dos brancos parcela de suapopulao tida, desde ento, como ilegal (Price, 1996, p.55).

    Um dos primeiros a assinar tratado de paz com o poder colonial foi Yanga (ou anga),um africano possivelmente de linhagem real na frica, que, em 1570, assentou-se comoutros fugitivos na serra de Zongolica, regio aucareira de Orizaba (Nueva Espaa). Em1609, o palenque sofreu um forte ataque por parte das foras coloniais, Yanga liderou aretirada para outro forte prximo e logo estabeleceu um tratado com as autoridades medianteo qual obteve liberdade para todos os que com ele viviam antes de 1608, assim como aincorporao de um povoado (San Lorenzo de los Negros) e de uma igreja consagrada um forte indcio de aculturao. Ele e seus herdeiros governariam o lugar, do qual estariamexcludos os espanhis, exceto em dias de mercado. Em troca, os cimarrones juraram viver

    pacificamente, devolver a seus donos os fugitivos que no futuro ali buscassem abrigo eservir ao rei com armas quando requisitados (Landers, 2001, p.147-149).

    Aps viverem algum tempo por meio de roubos, as centenas de fugitivos da plantationde Sutton, na Jamaica, responderam represso colonial unindo-se sob o comando de umAc de nome Kwadwo. Por anos a fio seus ataques dificultaram o estabelecimento denovos assentamentos ingleses. Impossibilitadas de derrotar os maroons no campo militar,aps inmeros enfrentamentos as autoridades inglesas decidiram que a paz deveria seralcanada. Para tanto, firmaram em 1739 um tratado com Kwadwo garantindo 1.500acres de terra aos quilombolas. Tratado similar foi assinado no ano seguinte com os maroons

    da parquia de St. George. Reconhecia-se assim a liberdade dos cimarrones, os quais,entretanto, no mais poderiam admitir novos fugitivos em suas comunidades. Com-prometiam-se, ademais, a debelar qualquer rebelio escrava na ilha, por sua iniciativa ou

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    sob o comando do governador da Jamaica. A linhagem dos chefes quilombolas foiigualmente reconhecida, e dois europeus escolhidos pelo governador deveriam residir emsuas comunidades, servindo de intermedirios entre eles e os colonos ingleses (Schuler,

    1991, p.376).H exemplos de tratados que na verdade faziam parte de estratgia de extermnio doscimarrones, como no caso do mais famoso palenque da Nueva Granada, San Baslio.Localizado prximo regio de Cartagena, San Baslio foi organizado no incio do sculoXVII por Domingo Bioho, de alegada origem governante na frica, que ali recriou umadinastia com o nome de rei Benkos. Depois de haver chegado a um acordo com Benkos, ogovernador de Cartagena o traiu, enforcando-o em 1619. No obstante a perda de seulder, o assentamento de San Baslio no foi destrudo seno em 1686, depois de sobreviverpor mais de sessenta anos, perodo em que chegou a contar com trs mil habitantes, dos

    quais seiscentos guerreiros (Landers, 2001, p.150-151).Por vezes, as relaes das comunidades com o entorno prescindiam por completo detratados formais para assemelhar-se a tratos relativamente harmoniosos entre camponeses.A esse respeito, de modo bastante sugestivo, uma carta de janeiro de 1770 relatava sautoridades judicirias da Amrica portuguesa a priso de alguns negros que viviam emum quilombo: a informao que passo dos negros apreendidos no Quilombo a que medo alguns moradores da Estrada, que me dizem que no consta que estes negros tenhamfeito mortes, nem roubo, porque meteram-se para aquelas gerais, aonde plantavam paracomer e algodo para se vestir, o que eles assim mesmo indiciavam porque no tinhamarmas e menos vesturio, que s constava de couros e algodo, e por armas, flechas(Cartas e ofcios..., 1770). Embora no se possa saber a exata localizao do quilombo nemseu nome, apenas que se localizava em Minas Gerais, observe-se que o documento sugereum cenrio de plcida convivncia, sedimentada certamente por dcadas de interaoentre camponeses livres e camponeses quilombolas.

    O quilombo de Bacax, na capitania do Rio de Janeiro, tambm exemplifica umainterao razoavelmente pacfica (Monteiro, 1730b). Surgido talvez no sculo XVII, foilocalizado pelas autoridades em agosto de 1730 em uma regio pouco povoada, emborapossuidora de alguns engenhos de cana-de-acar. Habitavam-no mais de sessenta pessoas,entre homens, mulheres e crianas, nmero que, embora restrito, sugere grande estabilidade

    temporal, j que todos haviam nascido no quilombo. Sustentavam-se em parte de suasroas e, em parte, de furtos nas fazendas vizinhas, e ainda assim viviam em relativaharmonia com a populao local (Souza, 1961, p.6). Incomodava principalmente s auto-ridades que, ao se reconhecer impotentes para destru-lo, acabaram por aceit-lo de fato. A

    situao mudou quando dois homens livres foram barbaramente assassinados por umgrupo de indivduos: os negros so muitos e esto situados com casas e roas h muitosanos, o que naturalmente pode ser enquanto no faziam insultos, mas depois destes, impraticvel dissimular semelhantes atrevimentos; vista do que necessrio no sextinguir o dito quilombo, mas prender todos os negros e negras e filhos que tiverem no

    mato, afirmava logo depois uma carta enviada ao governador do Rio de Janeiro. Vinte etrs quilombolas foram presos, mas o restante conseguiu fugir para o mato e para povoadosvizinhos, misturando-se populao local (Monteiro, 1730a).

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    Em concluso, embora os quilombos em princpio representassem ameaa real oupotencial segurana e propriedade de muitos, as comunidades locais de livres serelacionavam com eles de modo desigual, em claro questionamento da ideia de que todo

    quilombo necessariamente constitusse uma espcie de contrassociedade ou foco deinassimilvel resistncia ao sistema escravista. Do ponto de vista dos responsveis pelamanuteno do status quo, ao apontar para alternativas de vida possveis, os quilomboseventualmente expunham as fragilidades da prpria sociedade colonial. Eis por que, emboraa maioria dos quilombos americanos fosse formada to somente por negros em geralcom predomnio dos nascidos na frica, at que o trfico atlntico fosse abolido , existiamalgumas comunidades plenamente constitudas que, alm de ndios, acolhiam brancos emulatos livres pobres. Para no falar nos casos em que colonos e autoridades metropolitanasutilizavam-se abertamente dos quilombos em funo de seus prprios objetivos. Assim, se

    no Panam de 1570 os ingleses conseguiram a aliana com os cimarrones contra os espanhis,em Saint Domingue e nas regies de Chesapeake Bay e da Carolina Lowcountry a fugaassociada de escravos negros e servos brancos ingleses e irlandeses era to antiga quanto aescravido (Landers, 1999, p.33). No Brasil de 1769, uma expedio de combate a um

    quilombo redundou na priso de oitenta pessoas de procedncias diversas, algumas dasquais, mesmo sem serem quilombolas, haviam-se estabelecido em terras do mesmo qui-lombo com famlias, roas, crianas e mulheres, informa uma fonte. Vinte e cinco anosdepois, em Minas Gerais detectou-se a existncia de mais um grande quilombo muito antigo,[formado] no s de negros e mulatos fugidos, mas tambm de alguns brancos, descrevecarta do governador Luiz da Cunha Meneses (Meneses, 1785).

    Comunidade, populao, parentesco e agricultura

    Alm dos variados tipos de relaes com o entorno, a reiterao temporal das grandescomunidades palenqueras repousava na possibilidade de combinar eficientemente umapopulao em crescimento, mantida por sistemas agrrios razoavelmente produtivos, umpanorama de significativo incremento de relaes de parentesco a unir seus membros,hierarquias internas bem estruturadas.

    possvel tomar o nmero de casas, jiraus e ranchos dos assentamentos como um

    importante elemento de aproximao s populaes de grandes quilombos. Em 1645, odirio do capito Johann Blaer, comandante de uma expedio holandesa, descreviao assentamento de Velho Palmares como sendo uma aldeia abandonada de meia milha,com uma rua principal de 2,2 metros de largura, duas cisternas ao centro e um ptio onde orei tinha sua casa e se exercitava militarmente com seus seguidores. Trs dias depois, Blaer(1988, p.22) encontrou o assentamento de Novo Palmares, onde contou 220 casas. Assumindoque cada casa acolhesse cinco pessoas, sua populao alcanaria 1.100 quilombolas, o que,considerando os dez grandes assentamentos de Palmares, sugere um mnimo de 11 milhabitantes para a federao quilombola. Aplicado a Minas Gerais, semelhante procedimento

    indica uma mdia de seiscentos habitantes por grande quilombo da segunda metade dosculo XVIII (Tabela 4). Eram assentamentos cujas origens remontavam ao incio do sculoXVIII, quando das intensas importaes de africanos para a explorao dos veios aurferos.

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    Manolo Florentino, Mrcia Amantino

    Desde ento, vinham crescendo por meio da agregao de novos fugitivos e da reproduonatural. Da expressiva variao dos seus contingentes dos 350 habitantes do Pernabaaos 1.100 do Indai , infere-se que as populaes dos grandes palenques apresentavam

    enorme amplitude, inclusive em uma nica regio. O caso mineiro sugere tambm teremsido poucas as comunidades que congregavam milhares de quilombolas, embora algumaspudessem alcanar o milhar.

    Tabela 4: Estimativas populacionais de alguns quilombos de Minas Gerais, 1766-1770

    Nome Nmero de casas, ranchos ou jiraus Populao mnima estimada

    Quilombo de Paranaba 76 ranchos 380Quilombo do Catigu 150 jiraus 750Quilombo da Tbua 200 casas 1.000Quilombo do Gondu 80 casas 400

    Quilombo do Quebra S 80 casas 400Quilombo do Cascalho 80 casas 400Quilombo das Goiabeiras 90 casas 450Quilombo do Oopeo 137 casas 685Quilombo da Boa Vista 200 casas 1.000Quilombo Nova Angola 90 casas 450Quilombo do Pinho 100 casas 500Quilombo do Caet 90 casas 450Quilombo do Zondu 80 casas 400Quilombo do Cala a Boca 70 casas 350Quilombo do Careca 220 casas 1.100Quilombo do Mamo 150 casas 750Quilombo do Indai 200 casas 1.000Quilombo do Pernaba 70 casas 350

    Fonte: Amantino, 2003, p.259-260.

    Os sistemas agrrios dessas grandes comunidades talvez encontrassem nas famliasnucleares o eixo da repartio dos campos de cultivo, embora no se descarte a existnciade parcelas cultivadas por toda a comunidade. De acordo com o censo populacional dosanturio de Gracia Real de Santa Teresa de Mose, de 1759, vinte anos depois da suafundao persistia o desequilbrio sexual entre os adultos (havia duas vezes mais homensdo que mulheres), em parte devido atrao que continuava a exercer sobre os fugitivosprovenientes da Carolina. Entretanto, pouco mais de uma gerao bastara para que se

    ultrapassasse o panorama de desarraigo familiar de 1738, mediante a afirmao de slidasredes parentais e de expressivo crescimento populacional endgeno. Agora, quase dapopulao tinha menos de 15 anos de idade, todos nascidos no santurio. Treze das suas22 casas eram habitadas por famlias nucleares, e trs em cada quatro moradores viviamcom parentes imediatos em arranjos estabelecidos basicamente no prprio Mose. Registroseclesisticos revelam que os escravos fundadores teceram intrincadas redes entre si, afianadas,sobretudo, por relaes de compadrio, com forte sugesto de prevalncia da anterioridadecomo princpio organizativo fundamental da comunidade (Landers, 1999, p.49 e 261-263).Eis indicaes de que, em determinadas condies, os palenques rapidamente alcanavam

    expressivos ndices de reproduo por meio de famlias nucleares e que essas se hierarqui-zavam, com as mais antigas assumindo papel de destaque nas comunidades, administrandoo mercado matrimonial e promovendo a distribuio das parcelas a cultivar.

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    Manolo Florentino, Mrcia Amantino

    Tambm para Nueva Granada h evidncias de que o essencial da capacidade de reiteraode alguns grandes palenques derivava da trade representada por relaes parentais,populao e interao com o exterior. Antes de ser destrudo por foras espanholas, em

    fins do sculo XVII, o palenque de Matuder congregava cerca de 250 pessoas que, inter-rogadas, revelaram traos de sua organizao. Aparentemente, sofisticadas instituiespolticas e militares se desenvolveram ao longo de muitas dcadas de existncia. Cadafamlia semeava seus prprios campos com milho, arroz, feijo-preto, banana e batata, emum perfil que sugere relaes muito estreitas e antigas entre os homens e a terra. Mantinhamcontatos com os arars de Cartagena, com os quais adquiriam armas e plvora. No difcil que panorama semelhante predominasse no conjunto de assentamentos dasmontanhas de Santa Maria, que em 1683 foi atacado por foras coloniais. Ali foi encontradauma aldeia fortificada, com armamento espanhol que os cimarrones haviam obtido em

    enfrentamentos anteriores, assim como lanas, arcos e flechas. Antes de escapar, os fugitivosqueimaram suas edificaes e destruram as plantaes de milho e mandioca, em um clssicoexemplo de ttica militar quilombola. O panorama vigente no palenque mestio deEsmeraldas durante o ltimo quarto do sculo XVI descortina um xito igualmente calcadona populao, na famlia e no comrcio. Seus membros possuam mais de cem canoaspara a explorao dos recursos fluviais, o que pode indicar a presena de pelo menosduzentos adultos na populao do palenque. Dedicavam-se tambm coleta e caa,cultivavam milho, mandioca e cacau, alm de tabaco, banana, arroz, algodo e cana-de-acar. Praticavam a metalurgia e criavam porcos e galinhas, no apenas para consumointerno como tambm para venda s populaes vizinhas (Landers, 2001, p.146-153).

    Outras comunidades quilombolas do Sudeste brasileiro combinavam largos campos ehorticultura, capacidade de armazenamento e at produo para exportao. Em 1770,nas imediaes de Serra Negra, aprisionou-se um negro que dizia ter fugido de um quilomboe que contou que ele e mais quatro parceiros haviam sido levados a uma grande povoaodos mesmos pretos [onde] h grandes roas e canaviais, bananas, laranjeiras e descaroadorese muito algodo, que sendo como ele diz cousa grande (Cartas e ofcios..., 1770). Vastasplantaes foram igualmente detectadas em um quilombo em Mariana, em 1733 (Carta...,1733). O quilombo de Pitangui (1767) plantava em abundncia milho, feijo, algodo,melancia e outras frutas, assim como os de Catigu (1769) e Santos Fortes (1769) (cf.

    Rebelo, 1767). Mandiocais cobriam os campos de cultivos do quilombo de Samambaia(1769) e do rio da Perdio (1769), onde se plantava algodo. A horticultura era um dosaspectos mais sobressalentes do quilombo de So Gonalo (1769), e os do Campo Grande(1746) e Paracatu (1766) possuam, alm de vastos campos de cultivo, armazns e paiisonde estocavam seus excedentes. O quilombo do Moquim, no Rio de Janeiro, dava-se aoluxo de no apenas possuir plantaes de cana-de-acar, mas igualmente de produzircachaa, o que remete necessria existncia de uma engenhoca em seu interior (Amantino,1996, p.194). Casos como esses pressupem altos graus de diviso social do trabalho, tcnicasagrcolas sofisticadas e contingentes populacionais no apenas expressivos, mas, tambm,

    h muito estabelecidos.A presena de plantaes de algodo sugere a confeco de tecidos e a existncia de

    grupos especializados na realizao de algumas atividades. Nos mapas dos quilombos

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    de Minas Gerais pode-se perceber que tambm as construes expressavam especializao.Alguns mencionam a presena de casas e forjas de ferreiro, aspecto reiterado por achadosarqueolgicos posteriores (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). No quilombo da Cabaa foram encontrados

    dezenas de fragmentos de ferro fundido, chapas de metal e tiras de estanho, alm depanelas, caldeires, chaleiras, colheres e demais utenslios. Alguns desses objetos apre-sentavam reparos feitos com rebite, o que demonstra certo grau de conhecimento dessatcnica pelos quilombolas (Guimares, Lanna, 1980, p.150). O dirio de Johann Blaer(1988, p.22) afirma que, em um dos assentamentos de Palmares, erguia-se uma igreja equatro forjas, havendo entre os habitantes toda sorte de artfices.

    Fontes relativas a reas escravistas mais urbanizadas da Amrica portuguesa so prdigasem enumerar pequenos estabelecimentos comerciais que serviam de palco de encontrosentre mocambeiros e escravos. Em 1769, em Minas Gerais, o conde de Valadares havia

    ordenado ao capito-mor Manuel Rodrigues da Costa que entrasse na fazenda Azevedos elocalizasse os quilombolas que l costumavam buscar contatos com os escravos. Ordenavaainda que fossem utilizados todos os meios possveis para fazer com que os escravosdenunciassem os quilombolas, devendo-se fazer o mesmo com os cativos de outras fazendasdas imediaes e com os roceiros livres do caminho (Cartas e ofcios..., 1769). Em carta de

    Figura 1: Quilombo do rio da Perdio (Anais..., 1988, p.110)

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    Figura 2: Quilombo de um dos braos da Perdio (Anais..., 1988, p.108)

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    1795, enviada ao governador da capitania, o lavrador Marcelino da Costa Gonalvesafirmava que os escravos das fazendas mineiras mantinham aliana com os do mato ... [e]... repartem os mantimentos dos paiis de seus senhores ... [com os quilombolas] (Gonalves,

    1795). Outro documento reiterava que pequenos armazns eram estratgicos para areproduo dos quilombos, sobretudo porque ali se comercializava o resultado de razias eassaltos, e mesmo o excedente agrcola ou pecurio. As vendas se tornaram to importantespara a reproduo dos quilombos que, em 1754, a Cmara da cidade de Vila Rica chegoua denunciar que cada venda um quilombo, no havendo distino entre as vendascontroladas por brancos ou por negros, quase todos acusados de receptao dos furtos dosescravos, fugidos ou no (Documento..., 1754).

    Defesa e hierarquia

    Na capitania brasileira do Rio Grande do Sul da primeira metade do sculo XIX (1829)localizava-se o quilombo do Barba Negra, com cerca de trinta homens e um nmeroindeterminado de mulheres. Durante a poca de maior demanda por mo de obra, dedezembro a fevereiro, eles eram sistematicamente utilizados pelos estancieiros, que lhespagavam salrios. Vrias vezes o quilombo escapou da destruio, pois a populao localsempre os alertava para as expedies que reiteradamente buscavam liquid-los (Bakos,1988, p.167-180). Eis um exemplo de como as redes de interao e sociabilidade dosquilombolas com o entorno por vezes tambm constituam sua principal defesa. Outrascomunidades, ao contrrio, longe de se aliarem aos vizinhos, mostravam-se bem eficientesem atac-los. Para tanto, contribua o fato de que, embora os quilombos constantementemesclassem padres culturais amerndios e europeus, parcela expressiva de seus fundadores

    era africana, e nascer na frica e no em outro lugar conferia uma especial dimenso adeterminadas prticas, crenas e tipos de organizao prevalecentes entre eles. Os contornosespecficos dessa dimenso variavam de acordo com a experincia dos africanos nas Amricas,os padres do trfico atlntico que os reproduzia e, em ltima instncia, a natureza dassociedades africanas das quais provinham. plausvel, no entanto, que uma das maisimportantes contribuies da herana africana se relacionasse destreza militar, pois muitosfugitivos haviam sido soldados na frica. Em muitos casos, as culturas aristocrtica e

    militar herdadas da frica se associavam, influenciando poderosamente no apenas asestratgias de ataque e defesa adotadas pelos quilombolas, mas tambm a emergncia defortes lideranas, de um apurado sentido de hierarquia e, mesmo, da escravido em algunsgrandes palenques (Thornton, 1992, p.273-293).

    Defender-se representava a obsesso dos palenques, e no apenas contra caadores deescravos e milcias coloniais, mas igualmente contra ataques de indgenas e de outrosquilombolas. Para tanto, armas mais toscas, mas nem por isso menos eficientes, comoarcos, flechas e lanas eram por eles prprios produzidas. Plvora e chumbo, para armas defogo j se disse eram obtidos mediante trocas com a sociedade colonial ou resulta-

    vam de ataques peridicos a fazendas, vilas e andarilhos. Em pelo menos um caso, o doscimarrones de La Espaola, destacava-se a cavalaria quilombola, que por volta de 1540fustigava asplantations da ilha (Thornton, 1992, p.294). Os ataques e raptos que perpetravam

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    abalavam a economia de muitas regies, sendo abundantes os relatos acerca de aes quearruinavam colonos. No Brasil, em 1746, as autoridades afirmavam que os quilombolasdo Campo Grande entravam nas pequenas fazendas e nos povoados, deles retirando no

    s os bons escravos e escravas mas [tambm] matando os senhores [e] cuidando em tirarnegros em lotes de 10-12 de cada stio, os quais com pouca violncia os seguem (Andrade,1746). Em 1770, os ataques a fazendas seguiam destruindo tudo, pondo em miservel estado,ultimamente levando os escravos e escravas, sem um s deixarem (Cartas e ofcios..., 1770).

    Os ataques naturalmente despertavam a fria dos escravocratas, que logo retrucavam.Em resposta, os quilombolas se defendiam de modos que variavam de acordo com alocalizao e o tipo de assentamento. Os cimarrones, que em 1603 se defendiam dos espanhisem Cinega de Mantua, Nueva Espaa, faziam-no combinando o uso de espadas e arcabuzese lanas, arcos e flechas (Thornton, 1992, p.296). Muitos lanavam mo de armadilhas de

    origem africana, outros de sistemas de armadilhas prprios da Amrica. No quilomboBuraco do Tatu (1764), na Bahia, os mecanismos de defesa e sua disposio assumiam umaconfigurao e funcionalidade claramente africanas, com armadilhas cobertas e estacaspontiagudas que eram igualmente usadas para proteo de aldeias desde a atual Nigriaat o antigo reino do Congo, e que tambm foram encontradas em Palmares e em outrospalenques das Amricas (Schwartz, 1987, p.74). Em grande nmero de quilombos haviauma rea claramente estabelecida para a localizao dos sistemas de segurana, entre oncleo dos assentamentos e as matas. Em geral, em tal rea se encontravam fortalezas,estrepes e fossos, como no caso do assentamento de Yanga que, segundo relatos do padreJuan Laurencio, resistiu aos ataques ordenados pelo vice-rei Lus de Velasco com defesas

    constitudas por espessos muros de pedra, terrenos plenos de armadilhas em vime, alm dematreiras pontes. Os cimarrones tentavam deter os espanhis utilizando ainda foices, flechascom pontas de metal e pedra (Landers, 2001, p.147-149).

    Mesmo quilombos que no apresentavam semelhantes armadilhas estavam construdosde modo a obter proteo. Na Amrica portuguesa, o quilombo da Tbua, destrudo em1769, possua duzentas casas cobertas com telhas, metade delas protegidas por umafortificao (Cartas e ofcios..., 1770). No Quilombo do Campo Grande, em 1746, foramdetectados mais de seiscentos negros vivendo com fortaleza, cautelas e petrechos tais quese entende pretenderem se defender. Seus membros resistiram aos ataques dos colonos

    por mai