individualismo anonimato e violencia

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 6, n. 13, p. 15-29, jun. 2000

    INDIVIDUALISMO, ANONIMATO E VIOLNCIA NA METRPOLE

    Gilberto Velho

    Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional Brasil

    Resumo: Este artigo discute algumas questes chaves dos estudos urbanos,especialmente sob o ponto de vista antropolgico. Tem como foco principal as relaesentre vida metropolitana, individualismo e anonimato. Em seguida, a partir dessa

    problemtica, examina o tema da violncia no meio urbano, privilegiando aexperincia brasileira contempornea.

    Palavras-chave: cidade, individualismo, violncia e mudana.

    Abstract: This article deals with some crucial questions in the area of urban studies,specially through an anthropological point of view. Its main focus is on the relationsbetween metropolitan life, individualism and anonimity. Following, it examines thetheme of violence in the urban millieu, focusing the contemporary brazilian experience.

    Keywords: city, individualism, violence and echange.

    IIIII

    Desde, pelo menos, Georg Simmel e Max Weber, os cientistas sociais tmse debruado sobre a especificidade do fenmeno urbano. A Revoluo Indus-trial, com o acelerado crescimento das cidades, acompanhado de novas for-mas de organizao e interao social, delineia questes e desafios associadosa prpria fundao das Cincias Sociais.

    importante, por exemplo, relembrar a gnese e o desenvolvimento dachamada Escola de Chicago, marco crucial na histria das Cincias Sociais,particularmente dos estudos urbanos. Em paralelo s motivaes cientficas ede produo de conhecimento h uma forte preocupao com a questo socialevidenciada com o crescimento problemtico de Chicago. Sobretudo a partirdo final da Guerra Civil Americana (1861-1865), atravs da chegada de levas

    de migrantes europeus e americanos, negros e brancos do Sul, cresceu vertigi-

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    1 A Universidade de Chicago criada em 1892, j desde o incio com o seu Departamento deSociologia e Antropologia.

    nosamente a cidade e sua populao. Vai se constituindo, em poucas dcadas,uma metrpole , que apresenta uma sociedade heterognea, complexa, e

    diversificada em termos tnicos, econmicos e culturais. A macia presena demigrantes introduz, entre outras variveis, uma forte diversificao lingustico-cultural expressa no prprio mapa da cidade, com bairros tnicos e guetos.Esse estabelecimento de fronteiras internas cidade, com forte dimensosegregativa, um dos focos de ateno dos pesquisadores de Chicago.1 Adimenso da organizao social do espao ser um dos temas fundamentaisdos estudos urbanos, bastante marcados pela experincia de Chicago. A noode regio moral, desenvolvida por Park exemplo significativo dessa tendn-

    cia quando indivduos com determinadas caractersticas scio-psicolgicas, cujasorigens podem ser diversificadas, tendem a concentrar-se em reas especfi-cas da cidade. A preocupao com a ecologia das populaes, as relaes como meio-ambiente e a lgica de seus deslocamentos so parte dessa viso signi-ficativamente orientada para a organizao social no espao (ver Park, 1967).

    Uma das questes mais interessantes, a partir dessa vertente, , portanto,compreender a dinmica social dessas populaes, suas relaes com a cidadecomo um todo e entre elas prprias. O acelerado crescimento urbano produz,assim, grandes cidades e metrpoles que ocupam reas vastas com um nmero

    de habitantes que chega, em vrios exemplos, casa dos milhes. Estabelece-se o contraste com as aldeias e pequenas comunidades.

    Entre outras anlises, alm de Simmel e Park, h que se registrar a dis-cusso sobre o chamado contnuo folk-urbano com Robert Redfield (1941),Oscar Lewis (1951) e Horace Miner (1952), sobretudo. A identificao devariveis que assinalam maiores ou menores nveis de urbanizao, sua com-parao e diferentes combinaes constituem um campo de discusso amplo,diversificado e duradouro. Certamente um dos aspectos mais sublinhados nes-se processo trata da maior ou menor impessoalidade nas relaes sociais, nosdiferentes pontos do contnuo, ficando a metrpole no plo mximo dessaimpessoalidade. O relacionamento pessoal, direto, face to face, seria tpicode pequenos grupos, comunidades, aldeias etc. enquanto na cidade, especial-mente na metrpole, encontraramos a distncia, a impessoalidade e o anoni-

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    mato. Assim, haveria tambm um contraste entre a predominncia de vidagrupal, comunitria, com forte presena de laos familiares e de parentesco e

    um individualismo que chegaria na vida metropolitana a formas agonsticas,com perda ou desagregao de redes de parentesco e de reciprocidade. Assim,os indivduos tenderiam a se organizar em famlias nucleares ou mesmo a ficarcada vez mais isolados, estabelecendo relaes mais impessoais e distantes.

    O trabalho de pesquisa da Escola de Chicago constitui, por si mesmo, umaextraordinria contribuio com observao direta, coleta de dados , entrevis-tas, histrias de vida etc. Alm disso, ou melhor, associada, existe uma viso dasociedade como um processo em que os indivduos esto permanentemente

    interagindo, doing things together, em harmonia ou conflito, mas sempre atra-vs de relaes sociais que so as unidades da vida social e no o indivduoisolado. A forte influncia de Simmel clara e, embora muitas vezes explicitada,est mais implcita e at subterrnea em boa parte dos trabalhos ver, porexemplo, Becker (1977, 1996).

    Quando Simmel fala em individualismo(s), coloca no plural, diferencian-do tipos mas, antes de Dumont, dando destaque ao seu desenvolvimento nasociedade europia moderna (Simmel, 1971). Dumont, por sua vez, retomando,de certo modo, a clssica oposio de Tnnies comunidade e sociedade, apro-

    priada pela Escola Sociolgica Francesa, assinala a dimenso ocidental-mo-derna do individualismo, caracterizando-o como fenmeno scio-cultural es-pecfico e singular. O autor, como se sabe, estabelece a oposio individualismoe holismo, tomando a sociedade de castas na ndia como paradigma do sistemahierrquico. Seu trabalho sobre a gnese do individualismo no Ocidente estabe-lece novos patamares de anlise, permitindo dilogo com a obra de Simmel eseus herdeiros interacionistas.2

    I II II II II I a partir desse quadro de referncia que podem ser examinadas as rela-

    es entre individualismo e metrpole. O desenvolvimento das ideologiasindividualistas est associado, entre outros fenmenos, urbanizao da socie-dade, entendida no s como o crescimento fsico das cidades mas como tam-

    2 Dumont (1966). Sobre as relaes entre as obras de Simmel e Dumont, ver Velho (1981, 1994).

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    bm a difuso de valores ligados ao meio urbano. Na realidade, os individualis-mos aparecem como dimenso fundamental de uma cultura urbana, expresso

    de uma sociedade em que o florescimento do comrcio, a expanso martima, adiversificao de atividades e ocupaes desde, pelo menos, o final da IdadeMdia, marcam um processo de mudana acelerado em relao s estruturastradicionais do feudalismo europeu.

    A importncia da obra de Weber [sobretudo A tica Protestante e oEsprito do Capitalismo (1967) e The City (1958)], para a compreensodesse processo fundamental, mostrando como variveis scio-econmicas,ideolgicas e/ou culturais somaram-se e potencializaram essas transformaes.

    No cabe aqui analisar todas as nuances, matizes, idas e vindas na ex-panso do individualismo com suas variantes nacionais, regionais e sociolgicasem geral. As citadas obras de Simmel e Dumont, cada qual com seus objetivosprprios, contribuem de maneira decisiva para esse mapeamento.

    Admitindo-se com Dumont a singularidade da experincia ocidentalmoderna, por outro lado pode-se acompanhar Simmel na sua diferenciao deindividualismos. Dumont, por sua vez, identifica a presena de individualismona sociedade hindu, atravs da figura do renunciante e tambm analisa varian-tes do individualismo em diferentes contextos nacionais, complexificando omodelo bsico de oposio entre individualismo e holismo (Dumont, 1966).

    Certamente um dos modos de encaminhar essa discusso verificar asrelaes entre contextos pblicos e privados na sociedade metropolitana comsuas diferentes representaes de indivduo associadas a desempenhos de pa-pis. Assim voltamos Escola de Chicago e aos possveis desdobramentos deseus trabalhos diante de outras indagaes e perspectivas. Ningum melhor doque Goffman examinou a questo do desempenho de papis, mais ou menospblicos, e suas relaes com a privacidade e subjetividade (Goffman, 1959,

    1969). Os papis so diversos, os contextos diferenciados e o anonimato umasituao, em princpio, tpica de grande cidade em uma sociedade complexamoderno-contempornea. Um dos pontos bsicos de Simmel mostrar que odesenvolvimento dos valores individualistas est associado possibilidade doindivduo poder transitar entre diferentes grupos, no sendo englobado, dira-mos ns, apenas por um deles. Essa experincia estimula e refora uma per-cepo de si mesmo como ser independente. Aproximando Simmel e Dumontpara anlise do meio urbano, confirma-se que o indivduo, agente emprico,

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    aparece cada vez mais como indivduo-sujeito moral, unidade mnima da vidasocial, em termos de representaes e prticas sociais.

    o trnsito e circulao entre diferentes grupos e meios sociais que causa e conseqncia, num processo circular, de expanso dos valores indivi-dualistas. Ora, na cidade que esse fenmeno se d mais caracteristicamente.Evidentemente no se trata de um desenvolvimento linear. A presena doslaos de parentesco, de compadrio, e a importncia dos bairros, das localida-des, so variveis que estabelecem limites sociolgicos e psicolgicos a essaliberdade individual. Logo o modo de internalizar e viver essas ideologiasindividualistas variar em funo de diferentes situaes, contextos e trajetri-

    as. Escrevamos eu e Machado da Silva, em artigo de 1976:

    [...] Mais ainda, mostram como os indivduos podem desempenhar diferentespapis, mesmo os aparentemente mais contraditrios. Um mdico pode ser pai-de-santo, um engenheiro ser adepto da astrologia etc. Eis a um ponto interessantepara contextualizar na cidade. Embora em nenhuma sociedade seja possvel falarde um indivduo desempenhando exclusivamente um papel, a grande metrpolecontempornea oferece caractersticas peculiares. No estamos mais falando deurbano em geral. Isto porque na cidade pr-industrial de Sjoberg, por exemplo,

    ou mesmo na pequena cidade contempornea, embora as pessoas desempenhempapis diferentes, estes so, em princpio, conhecidos pelo grupo social inclusivo.A rotina da cidade do interior consiste, exatamente, nisso. As expectativas socumpridas cotidianamente. Sabe-se que o dono do armazm vai igreja tododomingo, joga sinuca toda quinta-feira com as mesmas pessoas, casado, temtantos filhos etc. Mesmo suas atividades mais clandestinas so, basicamente,controladas. difcil esconder, por muito tempo, de todos os conhecidos, umaligao, um hbito etc. Sem dvida, na metrpole existem pessoas que vivemdentro de esquemas semelhantes em reas da cidade habitadas por grupos sociais

    cujo estilo de vida implique nesse tipo de rotina. bvio que nem todos osurbanitas tm as mesmas possibilidades de usufruir uma liberdade de ir e virirrefreada, deslocando-se de meio social para meio social ao seu bel-prazer. Afinalde contas trata-se de uma sociedade estratificada com fronteiras internas bemmarcadas. Mas o carter altamente diferenciado da organizao da produo nasgrandes cidades da sociedade industrial, com o seu gigantismo paralelo, vai gerara possibilidade de um anonimato relativo que parece ser peculiar. Seria ilusrioatribuir esta caracterstica ao fenmeno urbano em si. As cidades das sociedadesescravocratas, feudais etc., no s pela menor diferenciao da organizao da

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    produo, como pelo tamanho, tipo de organizao espacial, neste ponto nodifeririam tanto da situao do campo. O que seria caracterstico, ento, da grande

    metrpole a possibilidade de desempenhar papis diferentes em meios sociaisdistintos, no coincidentes e, at certo ponto, estanques. Isto o que seriaanonimato relativo. No seria absoluto, exatamente porque a prpria mobilidadeque, de um lado, favorece o deslocamento do indivduo entre diferentes meiossociais, dificulta a existncia de reas exclusivas. (Velho; Machado da Silva, 1977,p. 79-80).

    No se trata da cidade, simplesmente, mas da experincia originalmentevivida na Europa ou, pelo menos em parte dela, sobretudo a partir do sculosXIII/XIV, acelerando-se com as Revolues Comercial e Industrial. A desco-berta da Amrica, a Reforma Protestante, a expanso martima e comercial, asnovas tecnologias de produo, o desenvolvimento do capital financeiro e aindustrializao esto entre as principais alavancas dessa transformao queanuncia uma economia cada vez mais global. Uma das manifestaes do indi-vidualismo a mobilidade social, tanto horizontal como vertical. Indivduos epopulaes deslocam-se, migram, mudam de bairro, cidade e pas, conhecendonovas realidades e trazendo suas experincias, valores e aspiraes. No con-

    texto dos grandes conglomerados urbanos os indivduos convivero com locais,situaes e outros indivduos at ento desconhecidos, muitas vezes difceis declassificar. Devido dimenso e complexidade do meio, ter, proporcionalmen-te, muito menos conhecidos e ele, por sua vez, ser em princpio um annimo.Ser classificado pela cor de sua pele, pelas roupas, lngua, modo de andar, porsua apresentao em geral. Essa classificao poder implicar em tratamentohostil e discriminao, embora isso possa no ocorrer, em funo de variveishistrico-culturais. De qualquer forma ser classificado como membro de algu-

    ma categoria, num mundo urbano heterogneo e diversificado. Na aldeia, novilarejo, na pequena cidade, tambm seria, forosamente membro de uma ca-tegoria, s que muito mais ancorado em uma rede de relaes pessoais, onde,por exemplo, seria conhecido pelo nome e por seus laos de parentesco e vizi-nhana. Uma das tarefas que os antroplogos tem enfrentado estudar siste-mas de classificao relacionados construo de identidades grupais e indivi-duais. Diferentes grupos e categorias sociais tem, historicamente, lidado com aproblemtica do anonimato, da visibilidade e do reconhecimento. Desde Simmele, mais recentemente, Goffman e Sennet (1978) e Lasch (1978), pensadores

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    tem examinado a relao entre culturas subjetiva e objetiva, entre esferaspblica e privada e os modos de relacionamento do indivduo com apolis.

    A indiferena, o egosmo, o narcisismo aparecem como expresso do indi-vidualismo associados especificidade da vida metropolitana, separao dedomnios, fragmentao de papis, perda de laos de comunidade, a defor-maes do capitalismo competitivo, massificao, entre outros. Portanto, deum lado temos o individualismo(s) como fora positiva de transformao, vin-culado s idias de liberdade e igualdade, rompendo com a opresso e rigidezde sistemas tradicionais de dominao e organizao social como o feudalismo.De outro, o individualismo aparece como produtor de situaes de desagrega-

    o e anomia sociais, rompendo com valores e redes de reciprocidade e deatuao pblica. Obviamente, em se tratando de pblico e de privado, a ques-to da propriedade em uma sociedade capitalista, com seu corolrio social ponto chave nessa discusso sobre direitos individuais e necessidades sociais.

    I I II I II I II I II I I

    Ao trazer alguns desses temas para a metrpole brasileira contempor-

    nea h que inseri-los no quadro mais geral de expanso do capitalismo para asdiferentes regies do mundo, com as Revolues Comercial e Industrial.A sociedade tradicional brasileira, desde suas origens, nos sculos XVI e

    XVII, faz parte de um sistema econmico-poltico internacional. Os trabalhosde Fernando Novais (1979), Evaldo Cabral de Mello (1998) e Luis Felipe deAlencastro (1979, 1980, 1992), entre outros, mostram com clareza e riqueza anatureza e peculiaridades dessa insero. A relao cidade/litoral e campo/interior, por sua vez, eixo central, para o processo social brasileiro. GilbertoFreyre (1933), Srgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jnior (1942)so os autores clssicos que delinearam as linhas mestras dessa discusso. Ofato de o Brasil s ter abolido a escravido em 1888, independentemente dosaspectos tico-morais, produz um forte efeito na constituio de sua sociedade,como experincia radical de desigualdade. Florestan Fernandes (1965) anali-sou as ambigidades desse processo de passagem e coexistncia de uma soci-edade de castas para uma de classes. Efetivamente, hoje sabemos das ambi-gidades dessas relaes sociais, onde a questo da cidadania sempre foi bas-tante problemtica para negros e brancos. Quanto mobilidade, h que salien-

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    tar a importncia dos deslocamentos e migraes dentro do territrio nacionalcomo mostrou, por exemplo, Srgio Buarque de Holanda (1958), e da ascenso

    do mulato como analisada por Gilberto Freyre, sobretudo em Sobrados eMucambos (1936). O sistema escravocrata integrante de uma sociedade emque a hierarquia valor fundamental, mas h no s brechas como contextosem que valores individualistas so decisivos. O fato de se reconhecer a exis-tncia de mobilidade social complexifica a viso da sociedade tradicional brasi-leira, mostrando que tanto pelo deslocamento geogrfico como por caminhosda estrutura social, particularmente nos centros urbanos, houve alguma fluideze mecanismos de mudana atuando. Essas mudanas se aceleram com o ciclo

    do ouro, com a chegada da corte portuguesa em 1808, com a independncia,com as lutas nas regncias e com o processo de modernizao do SegundoReinado, particularmente a partir de meados do sculo XIX (Queirz, 1968). Aguerra do Paraguai (1864-1870), a abolio da escravido (1888) e a procla-mao da repblica (1889) configuram uma sociedade em que as mudanas jso mais evidentes. O processo de urbanizao se acelera com a industrializa-o, com a crescente imigrao europia e migraes internas, agravadas pe-las desigualdades regionais. No sculo XX, a partir do final dos anos quarenta,incio dos anos cinqenta, comea a inverso da proporo das populaesrural e urbana. O nmero de habitantes das cidades se multiplica com a explo-so demogrfica e com a acelerada migrao do campo e das pequenas cida-des para as grandes metrpoles, sobretudo o Rio de Janeiro e So Paulo, mastambm Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e,depois de 1960, Braslia, a nova capital. Os que migram buscam trabalho emelhores condies de vida, como aqueles que iam para Chicago no final dosculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX. No Brasil ps-abolio h umanumerosa populao de origem africana, pouco qualificada em geral, a que se

    junta a corrente de nortistas e/ou nordestinos, vtimas da seca a da falta deoportunidades. Esses grupos vo compor a maioria da populao pobre, debaixa renda, que vai morar nas favelas, nos subrbios e na periferia das gran-des cidades. Habitao, sade, educao e trabalho so as demandas bsicasque, embora sempre precariamente atendidas, vo se deteriorando ainda maiscom o crescimento urbano e com as sucessivas crises econmicas.

    As relaes sociais tradicionais de patronagem, com expectativas de pro-teo e regras bsicas de reciprocidade se esboroam diante da enormidade do

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    fenmeno de urbanizao que extravaza os limites anteriores. O poder pblico,por sua vez, no consegue atender minimamente as necessidades bsicas des-

    sa populao, por ineficincia, falta ou m administrao de recursos. Por con-seguinte, uma das conseqncias desse veloz e desordenado crescimento uma crise de mediaes, afetando toda a estrutura social.

    Instituies tradicionais como a igreja catlica, tambm por razes prti-cas e simblicas, perdem grande parte de seu poder de atuao sobre a popu-lao. A grande expanso dos cultos afro-brasileiros e, mais recentemente, dasigrejas evanglicas altera o panorama religioso do pas. A tradicional famliapatriarcal das elites, o poder pblico e a igreja catlica no do conta das novas

    realidades e desafios, sendo obrigados a tentativas de reformulao. Pode-seconsiderar que, entre outras razes, o regime militar foi uma tentativa de con-trolar os novos atores e foras emergentes. O processo de redemocratizaoencontra uma sociedade repleta de problemas, com grave iniqidade social ecom dramtica crise de valores. O impressionante desenvolvimento da culturade massas, especialmente da televiso, introduz temas e linguagens que seroabsorvidos de modos distintos pelos diferentes segmentos da populao mas,de qualquer forma, cria referncias comuns como as telenovelas. As relaesentre os nveis de cultura so intensas sem prejuzo das particularidades degrupos de status e categorias sociais, assim como dos mecanismos de discrimi-nao existentes. Hermano Vianna mostra, por exemplo, como o samba ex-pressa esse encontro de valores e experincias de grupos diferenciados emtermos sociolgicos e culturais (Vianna, 1995).

    Mesmo com o final do regime militar fica patente que as relaes com ascamadas populares, apesar de trocas e interaes, tm uma natureza cada vezmais explosiva. H um enorme crescimento da criminalidade, com ampla di-vulgao pela mdia, tornando o cotidiano, especialmente nas grandes cidades,

    tenso e perigoso. Com o crescimento do trfico de drogas associado ao dearmas, montam-se redes criminosas com ramificaes por todo o pas, envol-vendo contrabando, seqestros, que geram atmosfera de grande insegurana.A violncia se d em vrios nveis, entre as prprias camadas populares, comgrande nmero de mortos entre homens jovens, decorrentes tambm do con-fronto sistemtico com a polcia e com os furtos, assaltos, seqestros e agres-ses de todos os tipos contra as camadas mdias e superiores (ver Velho;Alvito, 1996).

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    A criminalidade e a insegurana nas ruas no chegam a ser uma absolu-ta novidade, mas nos ltimos vinte anos tem atingido dimenses epidmicas,

    afetando toda a sociedade. J so feitas comparaes com a violncia naColmbia e os ndices, em geral, so alarmantes. A represso policial, por suavez, extremamente violenta e constantemente indiscriminada em se tratan-do das camadas populares. H constantes denncias sobre a ao policial, ascondies das prises e a lentido da justia, alimentando ainda mais o nvelde descontentamento, especialmente dos jovens das camadas populares. Osmais enrags tendem a reagir contra qualquer tentativa de enquadr-los nomodelo assistencialista do poder pblico e das igrejas ou por parte das gera-

    es mais velhas. H vrias pesquisas e depoimentos (ver, por exemplo,Zaluar, 1985) que mostram o grau de animosidade, at suicida, daquelesengajados nas gangues ligados ao trfico de drogas. O recente documentriode Joo M. Salles,Notcas de uma Guerra Particular(1998), mostra, comvigor, o acirramento j atingido no confronto entre esses jovens e o poderpblico. preciso salientar que essa violncia, ao lado de eventuais medidasfilantrpicas do trfico, exercida, sobretudo, sobre as prprias camadaspopulares que ficam, assim, entre dois fogos em verdadeiras batalhas que sotravadas nas favelas e na periferia das cidades. Algumas das gangues oualguns de seus membros apresentam-se como protetores de suas comunida-des contra a violncia da polcia e atendendo as suas carncias mais imedi-atas. O fato que encontram apoios nessas localidades, confirmando, porexemplo, que laos de parentesco podem ter ainda importncia, paralelamen-te s mudanas mencionadas. Sem querer simplificar uma complexa proble-mtica, h que chamar ateno para o lado de performance da atuaodesses jovens, para serem reconhecidos no s no seu meio, mas na socieda-de maior, onde, atravs da mdia, atingem notoriedade, por mais efmera e

    melanclica que nos possa parecer. No esto englobados pelas famlias nempor redes de parentesco ou compadrio. Trabalham diretamente para bandi-dos com quem mantm laos ambguos e precrios de lealdade, sobretudolevando-se em conta a grande mortalidade do seu meio, seja por lutas entrefaces, seja por ao da polcia. So individualistas agonsticos, demandan-do o consumo de bens como vesturio, calados de griffe e, em crculo vici-oso, de armas cada vez mais poderosas que so smbolos de poder que refor-am o seu prestgio junto aos seus companheiros e junto s mulheres jovens

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    que namoram intensamente. claro que a prpria droga, principalmente acocana, moeda de troca fundamental nesse circuito, fazendo e desfazendo

    com grande rapidez, alianas e quadrilhas. H polmicas entre os especialis-tas sobre o grau de coordenao ou centralizao desse mundo do crime.Para alguns, por exemplo, Comando Vermelho (CV) apenas uma marca,enquanto outros acreditam na sua existncia como organizao de tipo mafiosa(ver Zaluar, 1999). As ligaes dessas atividades, seja com bicheiros sejacom empresrios que atuam nos bastidores, muito difcil de ser esclarecidanesse momento e se constitui em grande desafio para o poder pblico e asociedade civil. Assim como em Chicago nos anos vinte, h forte

    interpenetrao de interesses da criminalidade e de setores dos rgos desegurana, mas com a dimenso da misria terceiro mundista, da iniqidade eda crise social, atinge propores que instituem novos parmetros.

    Pode-se dizer que nessa conjuntura o lado predador do individualismoaparece com nitidez, mais ou menos associado ao tipo de capitalismo queaqui se desenvolve, muito pouco sensvel aos chamados problemas sociais,voltado, sofregamente, para lucros cada vez maiores e mais rpidos. O indi-vidualismo das camadas mdias e das elites est, por sua vez, voltado paraum consumo cada vez mais incentivado pela mdia e pela propaganda e pelabusca de prestgio e poder em seus crculos de atuao. No h nada pareci-do com as preocupaes dos reformadores liberais americanos e menos ain-da com o New Deal. Organizaes no-governamentais (ONGs) e movi-mentos em defesa da cidadania mobilizam uma frao muito limitada da soci-edade brasileira. O relativo enfraquecimento da igreja catlica diante do cres-cimento dos evanglicos, provocou a reao do movimento carismtico que a tentativa de recuperar ou criar novos canais de comunicao com o povo,atravs de rituais celebrados com msica, dana e at mesmo formas de

    transe. De qualquer forma, hoje h uma pluralidade de cultos nas grandescidades, desde os diferentes rituais afro-brasileiros, espritas, passando pelocatolicismo, inclusive com suas novas manifestaes, abarcando a variedadede igrejas e movimentos protestantes neo-pentecostais, evanglicos etc., semcontar orientalismos, santo daime e outros cultos menos difundidos. No en-tanto, nem essas religies nem o Estado, nem a sociedade civil, separados oujuntos, conseguiram produzir uma viso de mundo e uma escala de valoresminimamente compartilhadas em torno de uma tica individual e social que

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    estabelea um espao de dilogo democrtico, mais efetivo, onde poderiahaver lugar para o confronto e negociao das diferenas, diluindo a violn-

    cia fsica generalizada.A situao crtica da sociedade brasileira manifesta-se com particular

    dramaticidade nos grandes centros urbanos, cenrios e produtores de novasformas de interao social onde o conflito assume propores assustadoras.As ideologias individualistas, ao lado de seu papel inovador e muitas vezescriativo, no produziram uma cidadania poltico-cultural onde houvesse,simultaneamente, maior igualdade poltico-econmica e espao mais legtimopara a riqueza e complexidade culturais se desenvolverem com plenitude.

    Este , hoje, um dos maiores desafios para os cientistas sociais e para todosaqueles, de algum modo, envolvidos ou interessados em polticas pblicas.

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