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Tancredo, Lula e perspectiva de tempo
Fbio Wanderley Reis
Em artigo de jornal publicado em agosto de 1984, s vsperas das
convenes partidrias que escolheriam os candidatos disputa no Colgio
Eleitoral, eu me atormentava com os riscos que o momento envolvia (e inclua
como fecho at o anelo, que viria a frustrar-se, de que Tancredo tivesse
sade). Em particular, havia o temor de que o ento chamado sistema,embora reduzido a um bunkeracossado de todos os lados (ou por isso
mesmo), viesse a recompor-se no desespero e a reafirmar com dureza o
potencial de coeso militar que se tinha revelado antes em situaes de crise.
Como mostram matrias recentes na imprensa, em que se apontam as
disposies golpistas que continuavam a existir, o momento exigia dos
agentes empenhados na transio o equilbrio apropriado entre ousadia e
firmeza, de um lado, e agudo realismo, de outro. A aspirao por esse
equilbrio no faz mais que traduzir em termos de virtudes pessoais um dilema
entre perspectivas de tempo que sempre desafia a ao poltica mais
ambiciosa: mesmo se visa a desdobrar-se em consequncias num horizonte de
longo prazo e a resultar em construo slida, a ao se desenvolve sempre na
conjuntura, e tem de estar atenta aos constrangimentos impostos por ela.
Evocando Tancredo em artigo naFolha h alguns dias, Rubens
Ricupero citava Milton para lembrar o importante papel eventualmente
cumprido tambm por aquele que apenas senta e espera. O prprio Tancredo
transmitia idia anloga em expresso utilizada para referir-se aos eventos
ento em curso, falando da necessidade de deixar que o processo poltico
brasileiro decantasse. Naturalmente, essa postura no redunda na mera
passividade que a idia de sentar e esperar talvez sugira,* e a maneira hbil
em que Tancredo se envolveu em iniciativas dirigidas aos inimigos da
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transio democrtica e em negociaes com eles clara demonstrao disso
embora o equilbrio surja tambm com clareza na disposio que o levou
ocasionalmente, por exemplo, a ocupar a tribuna do Senado para fustigar
duramente as lideranas do regime. Mas a postura envolve, sem dvida, o
empenho de realismo na ao.
Na bonana democrtica que agora experimentamos, em que
aparentemente superamos a face pretoriana e mais feia de nossa vida poltica,
somos por certo devedores, em medida aprecivel, da atuao de Tancredo
(cuja provao final, por outro lado, com a comoo nacional produzida, foi
mais um fator a se opor, no momento seguinte, a tropelias golpistas). E se a
bonana contm a promessa de ser duradoura certamente porque a
decantao tancrediana continua em processo, permitindo a gradualconsolidao do enquadramento institucional de nossa democracia.
De minha parte, no tenho dvida de que esse desenvolvimento propcio
tem como ponto decisivo o teste representado pela conquista da Presidncia da
Repblica por Lula e o PT, destacando-se a o fato de que, no obstante a
origem radical e a proposta revolucionria do partido, essa conquista se
transformou no esforo de administrao realista do pas. H, naturalmente, os
que entendem que, se temos tal transformao, ento no h teste. Mas essa
posio (que faz lembrar as fantasias de Roberto Mangabeira Unger a respeito
da Constituio de 1988, que supostamente deveria consagrar a subverso
permanente) contm a implicao de que s teramos democracia
consolidada se as instituies democrticas fossem submetidas a iniciativas
propriamente revolucionrias e resistissem. Ora, no cabe dvida de que, neste
caso, elas no resistiriam. E as experincias democrticas mais bem-sucedidas
como tal so justamente aquelas em que a inicial inspirao revolucionria de
partidos de orientao socialista ou afim veio a ser substituda, na
socialdemocracia, pela gradual incorporao dos anseios sociais e igualitrios
atuao de governos realistas e eficientes. Atuao que se v, alis, exposta
necessidade de novos ajustes realistas com as novas condies mundiais da
atualidade.
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H, contudo, uma qualificao importante. O amadurecimento na esfera
institucional pode (e deve) contar com forte dose de decantao e justificar
certa passividade atenta ao longo prazo, at como condio de que, no plano
da psicologia coletiva, mecanismos e regras institucionais artificiais venham
a impregnar o contexto em que se do as aes do dia-a-dia e a transformar-seem parte efetivamente relevante dele ou de uma cultura democrtica. Os
desafios da administrao eficiente, porm, no tm como dispensar o esforo
ativo e hbil a cada passo. Ora, a democracia mais do que um fenmeno
cultural, ou mesmo poltico-institucional em sentido estreito, ela sobretudo
acomodao institucional de conflitos de interesses, o que faz que a dimenso
social e a emergncia do anseio de igualdade como problema real no possam
ser vistas como algo secundrio ou lateral. Administrao eficiente, portanto,
no pode significar, em perspectiva democrtica consistente, a meraadministrao rotineira do capitalismo e de sua dinmica espontnea, que
supe desigualdade e tende a produzi-la. E o desafio a posto se agrava de
modo especial nas condies sociais singularmente perversas de nosso pas.
Seja qual for a complicao nas relaes a se estabelecerem entre as
perspectivas de curto e de longo prazo, h urgncias a serem atendidas. E,
como adverte a violncia que se difunde, urgncias desatendidas podem
comprometer as chances de amadurecimento daquilo que seria preciso esperar
amadurecer.
Folha de S.Paulo, 21/4/2005
*Notar a correo da citao do verso de Milton publicada por Rubens Ricupero em artigono caderno Dinheiro daFolha de S.Paulo, 15/5/2005, agradecendo a Wolfgang Gruen:
They also serve who only stand and wait. A idia antes a de erguer-se e estar atento:
tomar tento, diria Guimares Rosa.