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 1 Memorial do Co nvento Saramago  O Palácio Nacional de Mafra  é um palácio e mosteiro monumental de estilo barroco localizado em Mafra (Portugal ) a cerca de 25 quilómetros de Lisboa. Foi iniciado em 1717 no reinado de D. João V, em consequência de uma promessa que o  jovem rei fizera se a rainha D. Maria Ana de  Áustria lhe desse descendência. Classificado como Monumento Nacional  em 1910, foi considerado uma das Sete Maravilhas de Portugal  a 7 de Julho de 2007. AULA: a construção do convento   obra faraónica No dia 17 de Novembro de 1717, o rei (D. João V) vai a Mafra presidir à cerimónia do lançamento da primeira pedra, acompanhada de procissão e bênção.   Procissão / Bênção da primeira pedra pp.134-135  «Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal… e então se formou a procissão, à frente sessenta e quatro religiosos arrábidos, depois o clero da terra, a cruz patriarcal, seis homens de opas roxas, os músicos, capelães de sobrepelizes, grande cópia de clérigos vários, um espaço livre a preparar o que aí vinha, e eram os cónegos de pluviais de tela branca e outros bordadas, adiante de cada um deles os seus criados nobres, empós, sustentando-lhes as caudas, os caudatórios, e atrás o patriarca com preciosos  paramentos e mitra do maior custo, adornada de pedras do Brasil, depois el-rei com a sua corte, juiz e vereadores da terra, corregedor da comarca, e grande número de gente, passante três mil, se não se enganou quem a contou, e tudo isto por causa de uma simples pedra, (…).  Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em  procissão, de ando r, dentro da urna os dinhe iros do tempo, ouro, prata e co bre, umas medalhas, ouro, ( …)». NOTA: dias antes uma tempestade muito forte fizera-se sentir sobre Mafra e destruiu completamente a igreja de madeira, construída especialmente para a cerimónia de inauguração dos alicerces. No entanto, dois dias depois estava reconstruído. Foi um milagre, como tal D. João V distribuiu moedas de ouro. - página 137  138  A propósito da igreja diz o narrador: isto sim, é um luxo, nem parece barraca  para deitar abai xo depois de a manhã página 139  A origem da sua construção está liga da ao cumprimento de um voto que o Rei teria feito, desconhecendo-se se  para obter sucessão ou se para curar grave enfermidade. Muita tinta tem corrido para explicar os motivos que levaram D. João V a construir o Palácio de Mafra: A hipótese de se ter tratado de um voto para obter sucessão régia - D. Maria Ana Josefa casara-se há três anos com o Rei e não conseguira engravidar - perdurou e ainda hoje é uma explicação por muitos avançada. Mas, ao que tudo indica, a Rainha  já estaria gráv ida quando D. Jo ão V decidiu e rguer o Paláci o.

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Memorial do Convento Saramago

 

O Palácio Nacional de Mafra é um palácioe mosteiro monumental de estilo barroco localizado em Mafra  (Portugal)  a cerca de25 quilómetros de Lisboa.  Foi iniciado em

1717  no reinado de D. João V,  emconsequência de uma promessa que o jovem rei fizera se a rainha D. Maria Ana de Áustria  lhe desse descendência.Classificado como Monumento Nacional em1910,  foi considerado uma das SeteMaravilhas de Portugal  a 7 de Julho de2007. 

AULA: a construção do convento – obra faraónica

► No dia 17 de Novembro de 1717, o rei (D. João V) vai a Mafra presidir à cerimóniado lançamento da primeira pedra, acompanhada de procissão e bênção. 

  Procissão / Bênção da primeira pedra pp.134-135 

«Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal…  eentão se formou a procissão, à frente sessenta e quatro religiosos arrábidos,depois o clero da terra, a cruz patriarcal, seis homens de opas roxas, osmúsicos, capelães de sobrepelizes, grande cópia de clérigos vários, um espaçolivre a preparar o que aí vinha, e eram os cónegos de pluviais de tela branca eoutros bordadas, adiante de cada um deles os seus criados nobres, empós,sustentando-lhes as caudas, os caudatórios, e atrás o patriarca com preciosos paramentos e mitra do maior custo, adornada de pedras do Brasil, depois el-reicom a sua corte, juiz e vereadores da terra, corregedor da comarca, e grandenúmero de gente, passante três mil, se não se enganou quem a contou, e tudoisto por causa de uma simples pedra, (…). Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, quetodas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre,umas medalhas, ouro, ( …)».

NOTA: dias antes uma tempestade muito forte fizera-se sentir sobre Mafra edestruiu completamente a igreja de madeira, construída especialmente para a

cerimónia de inauguração dos alicerces. No entanto, dois dias depois estavareconstruído. Foi um milagre, como tal D. João V distribuiu moedas de ouro. -página 137 – 138 A propósito da igreja diz o narrador: isto sim, é um luxo, nem parece barraca para deitar abaixo depois de amanhã página 139 

► A origem da sua construção está ligada ao cumprimento de um voto que o Rei teriafeito, desconhecendo-se se

 

para obter sucessão ou se para curar grave enfermidade.Muita tinta tem corrido para explicar os motivos que levaram D. João V a construir oPalácio de Mafra:

● A hipótese de se ter tratado de um voto para obter sucessão régia - D. Maria Ana

Josefa casara-se há três anos com o Rei e não conseguira engravidar - perdurou eainda hoje é uma explicação por muitos avançada. Mas, ao que tudo indica, a Rainha já estaria grávida quando D. João V decidiu erguer o Palácio.

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● Deitada por terra esta teoria, outras surgiram, sendo a mais sustentável a que dáconta de um voto do Rei por motivos de saúde. D. João V estaria doente desde 1708,tendo-se agravado o seu estado de saúde em 1711. De acordo com algunshistoriadores, o móbil do voto fora "uma grande aflição" na altura diagnosticada comoflatos hipocondríacos, hoje identificada como sífilis).

  Proposta do Frade e promessa do Rei pág. 14.

«Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se

eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu,Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei,Como sabes, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu souapenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais queresponder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão,não o construa e Deus decidirá. (…) Prometo, pela minha palavra real, quefarei construir um convento dos franciscanos na vila de Mafra se a rainha meder um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todosdisseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser postoà prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei,ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha».

► Em 1711, decreta El-Rei D. João V que por justus motivos se erga na Vila de Mafraum convento a Nossa Senhora e St. António, a ser entregue à Ordem dos Frades Arrábidos. Escolhe D. João V o local (Alto da Vela), compram-se os terrenos e iniciam-se as obras. 

  Rei escolhe local onde será erguido o convento pág. 86.

«El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser levantado o convento. Ficaráneste alto a que chamam Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes edulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não hão-de os franciscanos de cáser de menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S.

Francisco de Assis lhe bastaria um ermo, mas esse era santo e está morto.Oremos».

► O rei dá ordens para que se construa o mais depressa possível o convento,sem olhar a despesas – gasta-se o que for preciso. O trabalho começou a 17 deNovembro de 1717 com um modesto projecto para abrigar 13 frades franciscanos, mas o ouro do Brasil começou a entrar nos cofres portugueses; D. João e o seuarquitecto, Johann Friedrich Ludwig (conhecido como Ludovice que estudara na Itália),iniciaram planos mais ambiciosos. Não se pouparam a despesas. A construçãoempregou 52 mil trabalhadores e o projecto final acabou por abrigar 330 frades.  

  Rei decide aumentar o convento pp.281-282.«Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo dainspiração. E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra,quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de nãomenor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Milfrades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter defazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos,Então quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena paraeles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, seme é permitido o reparo. Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minhavontade. Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens».

► Durante os 13 anos que duraram as obras, operários, mestres, médicos, frades,boticários e animais vieram de todo o país, alojando-se na "Ilha da Madeira". Vivendo

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em condições deploráveis, infra-humanas. Daí advém a promiscuidade e a prostituição – pp. 283 -284.

Para além de albergar as várias oficinas de vidreiros, ferreiros, latoeiros, carpinteiros epintores - tantos eram os fornos de cal que se estendiam até Cascais - e inúmerascasas de pasto, incluía ainda as barracas de campanha para os soldados, uma ermidade madeira, oito enfermarias, boticas e cozinhas, que mal deveriam chegar para os45.000 operários, 7.000 guardas e 1270 bois que ali estiveram enquanto se construíao Monumento.

● Ilha da Madeira pág. 213.«Como é que te chamas, Baltasar Mateus, de alcunha o Sete-Sóis. Podes virtrabalhar na segunda-feira, começas a semana, vais para os carros de mão.(…) Sabia já Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido pelo nomede Ilha da Madeira, e bem posto lhe fora, porque, tirando umas poucas casasde pedra e cal, todo o mais era tabuado, mas construído para durar».

► D. João V mandou os seus homens irem buscar outros homens a todas as partesdo país; estes eram recrutados contra a sua vontade, como escravos, indo assimtrabalhar para as obras do convento, para este estar pronto a tempo. Alguns desteshomens chegaram até a morrer com fome e perdidos ao tentar voltar para casa .

● Por ordem real, todos os homens são convocados para as obras doconvento pág. 302 

«Ordeno que todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam elescarpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, dosseus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendoconsiderações de família, dependência ou anterior obrigação, porque nada está

acima da vontade real, salvo a vontade divina (…)» «Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns,aliciados pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, pordesprendimento de afectos também, à força quase todos».

● Recrutamento de operários pág. 303 

«(…) os homens, atados como reses, folgados apenas quanto bastasse paranão se atropelarem, viam as mulheres e os filhos implorando o corregedor, procurando subornar os quadrilheiros com alguns ovos, uma galinha, míserosexpedientes que de nada serviam (…)» 

● Selecção dos homens pág. 307 

«Juntam-se os homens que entraram hoje, dormem onde calhar, amanhãserão escolhidos. Como tijolos».

► Toda a obra é elevada através da exploração do povo. Primeiramente, ostrabalhadores são recrutados à força. Passados alguns anos, dá-se o transporte deuma pedra enorme destinada a uma varanda sobre o pórtico da igreja  –  SalaBenedictione de onde o patriarca lança a bênção ao povo.

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●  Descrição da pedra de Pêro Pinheiro para Mafra pp. 253-254 

«É a pedra destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja. É a mãeda pedra (…), talvez porque viesse das profundas, ainda maculada pelo barroda matriz, mãe gigantesca” ( …) [de comprimento] sete metros ,  [de largura]três metros, e [ de espessura] sessenta e quatro centímetros (…) e o peso da pedra da varanda a que se chamará Benedictione é de (…) trinta e umatoneladas (…)» 

► Construíram um carro para carregar a pedra, como se fosse uma nau da Índia comcalhas. Foram para lá 400 bois e mais de vinte carros. Ao amanhecer os homenspartiram para cumprir 3 léguas até onde estava a pedra. Diziam que nunca tinhamvisto uma coisa como aquela. Escavaram junto à pedra de forma a levá-la inteira paraMafra. No primeiro dia, não andaram mais de 500 passos. No segundo dia, foi piorporque o caminho era a descer e foi preciso meter calços nos carros. Um homemchamado Francisco Marques morreu atropelado por um carro, a roda passou-lhe sobreo ventre. É recordado na missa e no sermão de domingo (sermão profundamentedemagógico, sendo de realçar a hipocrisia do frade) – pág. 272 – 273.

Quando chegou ao fundo do vale, o carro que transportava a pedra desandouatingindo dois animais, a seguir tiveram que os matar  – foi preciso acabar com eles àmachadada. Depois de esfolados e desmanchados, a carne foi distribuída. – pág. 269.

● Transporte da pedra, trabalho hercúleo pág. 259 

«(…) quem fez as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, seas errou, não foi na falta, não que estejam em sobra” (…) “Neste primeiro dia,que foi só a tarde, não avançaram mais que quinhentos passos».

► Gastaram oito dias entre Pêro Pinheiro e Mafra, quando chegaram parecia que

tinham vindo da guerra, vinham sujos e esfarrapados. Todos se admiraram com otamanho da pedra.

●  Chegada da pedra a Mafra pp.273-274 

«Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias completos. Quando entraramno terreiro, foi como se estivessem chegando duma guerra perdida, sujos,esfarrapados, sem riquezas. Toda a gente se admirava com o tamanhodesmedido da pedra, tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica,Tão pequena».

► O verdadeiro protagonista de Memorial do Convento é o povo trabalhador.Espoliado,  rude, violento, o povo atravessa toda a narrativa, numa construção defiguras que, embora corporizadas por Baltasar e Blimunda, tipificam a massa colectivae anónima que construiu, de facto, o convento. A crítica e o olhar mordaz do narrador

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enfatizam a escravidão a que foram sujeitos quarenta mil portugueses, para alimentaro sonho de um rei megalómano ao qual se atribui a edificação do Convento de Mafra.

● Razão do livro: homenagem colectiva aos trabalhadores pág. 250 “ (…) só para isso escrevemos, torná-los imortais( …)”  

● Significado de MAFRA pág. 306 

« (…) e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizem os eruditos ser issomesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele

nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados,arrastados (…)» 

► Segundo alguns críticos, o povo trabalhador constitui o verdadeiro herói deMemorial do Convento . O herói deficiente, feio, rude e, às vezes, violento: nãotardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco,um maneta, um zarolho…, porém, verdades são verdades.

 Ao escrever o seu Memorial , o ficcionista propõem-se resgatar o papel dosoprimidos, dos 40 mil operários que humildemente sofrem e se esforçam porsobreviver durante a construção do monumento: Deve-se a construção do

convento de Mafra ao rei D. João V,  por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vãoaqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam ovoto, que se lixam.

Não se pense, contudo, que estamos simplesmente perante uma massa colectiva eanónima. Para além de Baltasar e Blimunda, o autor cria uma pequena galeria dehomens-trabalhadores: Francisco Marques, Pêro Pinheiro, José Pequeno, João Anes e outros. São ainda individualmente caracterizados os familiares de Baltasar,residentes em Mafra, e João Elvas, companheiro das primeiras aventuras.

Todos aqueles que não podem ser caracterizados são, ao menos, nomeados,numa derradeira homenagem:  Alcino, Brás, Cristóvão…uma letra de cada um para

ficarem todos representados.

Esta passagem textual pode ser interpretada como síntese da relação História  – Verdade.

(na realidade contemporânea, quantos nomes de trabalhadores anónimos serãolembrados nas cerimónias de inauguração???)

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AULA: A sagração do Convento (22 de Outubro de 1730)

► D. João V queria construir uma basílica igual à de S. Pedro de Roma, masLudovice, aconselhou-o a não construir a basílica, porque demorava muito tempo aconstruir e D. João V poderia já não estar vivo quando acontecesse a inauguraçãodesta.

  Rei expressa vontade de construir uma igreja igual à de S. Pedro deRoma pág. 279 

No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquitecto de Mafra, um tal JoãoFrederico Ludovice, que é alemão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outrosrodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S.Pedro de Roma, e, tendo assim dito, olhou severamente o artista. (…) Porém,há limites, este rei não sabe o que pede, é tolo, é néscio, se julga que asimples vontade, mesmo real, faz nascer um Bramante, um Rafael, umSangallo, um Peruzzi, (…) 

(…) as vidas são breves, majestade, e S. Pedro, entre a bênção da primeira pedra e a consagração, consumiu cento e vinte anos de trabalhos eriquezas…talvez nem daqui a duzentos e quarenta anos o conseguíssemos,estaria vossa majestade morta..

► A 22 de Outubro de 1730, embora as obras ainda estivessem atrasadas, decidiu El-Rei que se celebrasse a cerimónia de Sagração da Basílica, presidida pelo CardealPatriarca D. Tomás de Almeida, participando toda a Família Real, Corte erepresentantes de todas as Ordens. Calcula-se que tenham assistido mais de 20 milpessoas, sem contar com os quarenta e cinco mil operários, numa festa que durou oitodias e onde se ouviu pela primeira vez  o som dos Carrilhões. Aqui se encontra amelhor colecção de estátuas italianas existentes em Portugal no segundo quartel doséculo XVIII. O átrio da basílica é decorado por belas esculturas da Escola de Mafra,

criada por D. José I. Possui um conjunto sonoro de seis órgãos, únicos no mundo,para os quais existem partituras que só aqui podem ser executadas. Os Carrilhões,encomendados por D. João V, são considerados como os melhores do mundo. Tocamvalsas e contradanças. Têm em conjunto 92 sinos e pesam cerca de 217 toneladas.

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● Marcação da data para a sagração da basílica pp. 300 - 301 

Começaram as obras, mas depois o rei decidiu que a inauguração do novoconvento seria no dia dos seus anos, que calhava num domingo, daí a doisanos; após essa data, o seu próximo dia de anos, que calhasse num domingosó seria daí dez anos e poderia ser muito tarde). «(…) a sagração das basílicas se deve fazer aos domingos (…) segundo oRitual, e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário,vinte e dois de Outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, apóscuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a doisanos, em mil setecentos e trinta, Então é nesse dia que se fará a sagração dabasílica de Mafra, assim o quero, ordeno e determino, e quando isto ouviram,foram os camaristas beijar a mão do seu senhor, vós me direis qual é maisexcelente, se ser do mundo rei, se desta gente».  – Os Lusíadas

«(…) o estado da obra não consentia tão feliz previsão, tanto no que tocava aoconvento, cujo segundo corpo se ia levantando lentamente das paredes, comoà igreja, por sua natureza de delicada construção( …) D. João V, … preferiuchamar outra vez os secretários e perguntar-lhes em que data voltaria a cair a

um domingo o seu aniversário (…) Trabalharam eles afanosamente as suasaritméticas e com alguma dúvida responderam que o acontecimento tornaria adar-se dez anos depois, em mil setecentos e quarenta».«Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentoulugubremente, Se ainda for vivo. E por alguns terríveis minutos tornou a subireste rei ao Monte das Oliveiras, ali se agoniou com o medo da morte e o pavordo roubo que lhe seria feito, agora acrescentando um sentimento de inveja,imaginar seu filho já rei, com a rainha nova que está para vir de Espanha,gozando ambos as delícias da inauguração e ver sagrar Mafra, enquanto eleestaria apodrecendo (…)» «E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia

vinte e dois de Outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobrecomo falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem quese alague o mundo ou lhe dê o tranglomango».

► Mafra simboliza o espaço da servidão desumana a que D. João V sujeitou todos osseus súbditos para alimentar a sua vaidade.

  Rei consciente que a vida é curta: receios / vaidade pp. 288 - 289 

D. João V está numa sala do torreão, virada ao rio. Mandou sair os camaristas,os secretários, os frades, uma cantarina da comédia, não quer ver ninguém.

Tem desenhado na cara o medo de morrer, vergonha suprema em monarcatão poderoso. Mas esse medo de morrer não é o de se lhe abater de vez ocorpo e ir-se embora a alma, é sim o de que não estejam abertos e luzentes osseus próprios olhos quando, sagradas, se alçarem as torres e a cúpula deMafra, é o de que não sejam já sensíveis e sonoros os seus próprios ouvidosquando soarem gloriosamente os carrilhões e as solfas, é (…). Vaidade dasvaidades, disse Salomão, e D. João V repete, Tudo é vaidade, vaidade édesejar, ter é vaidade.

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AULA: caracterização D. João V e D. Maria Ana Josefa; relação amorosa

D. João V

Rei de Portugal entre 1706 e 1750, período de grande riqueza, Medita D. João V noque fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza   devidoessencialmente ao ouro, diamantes e demais produtos vindos do Brasil que permitema realização de grandes obras a que este rei ficou associado como a construção:

● do Convento de Mafra (1717 – 1735)● do Aqueduto das Águas Livres (1731)● do Palácio de Queluz (1747)

Não podemos ser levados a crer que todo o país vivia no fausto e na grandeza. Comose lê no Memorial : e se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscosartífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa.

 Apesar de possuir vários filhos bastardos, D. João V preocupava-se com a falta dedescendentes. Por isso, e influenciado pelo poder da Igreja, promete levantar umconvento de franciscanos na vila de Mafra se tiver filhos da rainha.

 A sua pretensão é atendida e o nascimento da princesa Maria Bárbara dá origem aocumprimento do voto régio. A sua relação com D. Maria Ana é retratada como simples cumprimento de um dever,sem qualquer laço afectivo.

Nota:  O acontecimento que originou a construção do convento, o milagre donascimento da princesa, é apresentado como uma fraude em que o rei é o principalenganado, porque todos (os frades e a rainha) sabiam que, à data da promessa, arainha já estava grávida.

 A figura do rei como responsável pela construção do convento é ridicularizada aolongo da narrativa. De facto, a única obra que ele edifica, nos seus momentos de

lazer, sem qualquer esforço ou risco, numa simples exibição das suas habilidades, éuma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma: El-rei tem na sua tribuna uma cópiada basílica de S. Pedro de Roma que ontem armou na minha presença…Dizem -meque el-rei é grande edificador, será por causa disso este seu gosto de levantar com assuas próprias mãos a cabeça arquitectural da Santa Igreja, ainda que em escalareduzida. Muito diferente é a dimensão da basílica que está a ser construída na vila deMafra, gigantesca fábrica que será o assombro dos séculos.

D. João V é retratado de forma múltipla e contraditória:

→ Por um lado, é um devoto fanático  que sacrifica o povo na edificação doconvento, que assiste aos autos-de-fé e que desvia as riquezas pátrias para manter as

pompas do clero;

→ Por outro é o monarca vaidoso, que se compara ao próprio Deus, e luxurioso que desrespeita a Igreja  ao encontrar-se com as esposas do Senhor: bem sabeiscomo as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como aSenhor me recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiramsegurando na mão o rosário, carne mística, misturada, confundida… 

É também o soberano curioso  que protege as pesquisas do padre Bartolomeu deGusmão e contrata artistas como Domenico Scarlatti

D. Maria Ana Josefa Nascida na Áustria, o casamento com o rei português proporciona-lhe o contacto comum país novo, com um clima e uma cultura diferentes.

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 A relação fria e cerimoniosa  com o marido leva-a a transgredir as regras docomportamento  a nível do onírico, pelos sonhos e devaneios com o infante D.Francisco, seu cunhado: D. Maria Ana peca duplamente ao sonhar e ao esconder ossonhos do seu confessor…Sonhos que o próprio infante destrói quando se insinua àrainha aproveitando-se da doença do irmão para ascender ao trono.

Relação rei / rainha - O amor contratual

● unico objectivo – dar um herdeiro à coroa;

● não envolvimento afectivo;● cerimonial;● ausência de amor;● ambiente anti-erótico;● excesso de roupas;● presença de camareiras/camaristas;● artificialismo;

► infidelidade do rei (bastardos) – Madre Paula de Odivelas;Rainha – sonhos (cunhado, D. Francisco)Sente-se atormentada; consciência de estar em pecado (orações, peregrinaçõespelas igrejas).

►D. Francisco vai destruir os sonhos da rainha ao confessar-lhe as suas verdadeirasintenções.

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AULA: O amor Baltasar / Blimunda; caracterização de ambos

 A história do casal está presente em todos os capítulos (excepto nos 3 primeiros).

Baltasar / Blimunda

● r elação à margem das normas sociais;● Casal ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na Igreja - pág 77● amor puro; ● permanecem calados por muito tempo (o silêncio – canal que permite uma comu-

nicação em profundidade);● deixar a porta aberta;● acender o lume; ● servir a sopa; ● esperar pela colher usada de Baltasar  

► não procriam – entregam-se às carícias e aos jogos eróticos sem olharem a limites,lugares ou datas. Vivem um amor sem regras e sem limites, instintivo e natural.

► integração mútua, perfeita. Naturalmente se integram no meio-ambiente, noespaço, dando-se um ao outro sem preocupações, problemas ou complexos.

► Não há discurso amoroso, as palavras tornam-se desnecessárias quando o silêncioé rico de significação, quando entre os dois há apenas amor, paixão, gozo,cumplicidade, entendimento perfeito.

► A união  de Blimunda/Baltasar não se ressente da ausência de um herdeiro, elesdescobriram a plenitude no seu amor, o tempo passa, eles envelhecem, mas o casalcontinua eternamente enamorado e até escandaliza a vila de Mafra.

► Blimunda - (alcunha Sete-Luas, dada pelo padre).

O simbolismo das alcunhas reside no número 7 que representa a totalidade do

universo em movimento (cada fase da lua dura cerca de 7 dias; as células humanasrenovam-se de 7 em 7 anos…).O número 7 associado a Sóis e a Luas confere um carácter universal e mágico a estaspersonagens. Nelas, o número 7 simboliza a perfeição na medida em que cada umapõe ao serviço da outra o melhor de si própria, na humildade da partilha e dareciprocidade mútuas.

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Páginas 100 e 175

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caracterização Baltasar / Blimunda

Baltasar Sete - Sóis

● Tem 26 anos 

● Foi baleado na Guerra da Susseção Espanhola (1704 – 1712) – em que se haveriade decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou umFilipe francês, português é que nenhum - pág 36

● Cortaram-lhe a mão esquerda pelo nó do pulso. Cura a mão em dois meses (homemsaudável) com ervas cicatrizantes e para colmatar esta deficiência, encomenda emÉvora um gancho e um espigão – pág 35 – 36

● Inicialmente vive uma vida aventureira e errante

● pede esmola 

● mata um homem no caminho para Lisboa (em Pegões), mas apenas age emlegitima defesa (servindo-se do espigão)

● serve-se de expedientes para sobreviver (Ex: quando se apercebeu que lhe davammelhores esmolas sem o gancho, guardou-o)

● em Lisboa procura trabalho (açougue) 

● pede uma tença ao rei por intermédio de um clérigo amigo para o compensar dofacto de ser um estropiado de guerra, mas Da tença que pediu, ainda não há sinal edo açougue o mandarão embora não tarda

● assiste a um auto-de-fé(1)  levado a cabo pela inquisição(2)  (Sebastiana Maria deJesus – 8 anos de degredo em Angola e açoitada em público).

(1) Auto-de-fé  – cerimónia solene em que se promulgavam as sentenças do tribunal da Inquisição. Tinhao significado de sanção pública por crimes de heresia ou erros equivalentes. Concluídos os processos,organizava-se uma assembleia, sob a presidência de autoridades eclesiásticas, civis e, por vezes, dospróprios reis, na presença do povo.

(2) Inquisição  – tribunal eclesiástico cujo objectivo era perseguir os hereges. Os tribunais da Inquisiçãoforam patrocinados pela igreja católica. A pena de morte foi introduzida pelo papa Gregório IX em 1231, eestipulou-se que devia ser executada na fogueira.

Páginas 54 a 57

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● É a partir do seu encontro com Blimunda e o Padre que o herói por mérito próprio,supera a sua limitação física (soldado maneta) e se transforma.

Em Síntese: 

Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis é, juntamente com Blimunda, um dosprotagonistas do romance. A sua participação na Guerra da Sucessão salda-se pelaperda da mão esquerda. É uma figura que encarna a crítica à inutilidade da guerra já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios:  Atropa andava descalça e rota…assaltando para comer…por artes de uma guerra emque se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlosaustríaco ou um Filipe francês, português nenhum.

Mandado embora do exército,  por já não ter serventia nele, vagueia, como pedinte,pelo reino até chegar a Lisboa onde conhece Blimunda, com quem partilhará a vida.

Participa entusiasticamente no sonho do padre Bartolomeu de Gusmão, aconstrução da passarola voadora. É Bartolomeu quem concebe o engenho mas é

pelas mãos de Baltasar que ele nasce. O padre explica-lhe os fundamentos para que oobjecto que criarão juntos lhe seja conhecido, nasça também com ele e de dentrodele, e não lhe seja imposto por um saber alheio. É essa a diferença profunda entre otrabalho de construção da passarola e de construção do convento.

Baltasar representa o operário consciente dos objectivos do seu trabalho e que, porisso mesmo, se envolve no projecto do padre Bartolomeu de Gusmão de construir apassarola voadora. Baltasar é humanizado e dignificado pelo trabalho que realizade forma entusiasmada e voluntária, opondo-se assim aos operários quetrabalham na construção do convento que aparecem como escravos, comoanimais de carga porque realizam um trabalho forçado em que não se sentemenvolvidos.

Dois ciclos se abrem, então, caracterizando essa marcha produtiva:

○ aquele em que a acção é irmã do sonho (passarola)○ e outro em que a acção se aliena do sonho (convento)

↓ É o que acontece com os milhares de trabalhadores que ajudam a edificar ummonumento religioso que não lhes diz nada, pois nasce de uma glória pessoal,para o qual são arrastados involuntariamente e no qual se alienam ou perdem avida. Ora presos pela cintura uns aos outros…ora ligados pelos t ornozelos,como…escravos.

Bastasar diviniza-se pela construção da passarola. O padre Bartolomeu ajuda-o aultrapassar a sua deficiência física quando o compara a Deus: Com essa mão e essegancho podes fazer tudo quanto quiseres…só eu digo que Deus não tem  a mãoesquerda, porque é à sua direita…que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mãoesquerda de Deus.

Blimunda Sete - Luas 

Filha de Sebastiana Maria de Jesus, que é condenada pela Inquisição ao degredo, em Angola, acusada de ser visionária e cristã-nova, conhece Baltasar Sete-Soisprecisamente no dia da execução da sentença materna e com ele constitui o par

amoroso que o discurso romanesco opõe ao casal real representante do poder, daordem, da repressão imposta e interiorizada.

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Blimunda é dotada de ecovisão, isto é, da capacidade de ver os outros por dentro(excepto em tempo de lua nova); este dom é por ela aproveitado para recolher asvontades  que farão levantar a passarola e para libertar a vontade de Baltasar, nomomento em que o seu corpo vai ser queimado pela Inquisição.

Quando está em jejum possui capacidades de vidente, no sentido de clarividente, ouseja, o que vê é deste mundo: eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é foradele, céu ou inferno.

Como descobre Marta Maria, Blimunda é uma mu lher que évis ionária da pio r

maneira, porq ue vê o que existe .

É esse afastamento da materialidade que a aproxima da espiritualidade da arte deScarlatti e do sonho de voar do padre Bartolomeu. O único ser que ela se recusa aolhar por dentro é Baltasar, facto que terá a ver com a dificuldade em se “ver” quem seama.

Revela uma sabedoria e uma postura muito próprias que a separam do seu mundo.Como reconhece o padre Bartolomeu: voar é uma simples coisa comparando comBlimunda.

Blimunda ajuda na construção da passarola e partilha com Baltasar as alegrias,

preocupações e tristezas da vida.

Ambos vivem um amor não-cristianizado  mas nem por isso menos sagrado, emiticamente exemplar . Aliás, o seu encontro num auto-de-fé é, desde logo, abençoadopela mãe acusada de feitiçaria que “viu” que aqueles dois tinham nascido para secompletar e, mais tarde, pelo padre Bartolomeu numa cerimónia íntima e inusitada: Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu oque era teu…esperou que Blimunda acabasse de comer da panela as sopas quesobejavam.

 A união com Baltasar confere-lhe um novo nome: tu serás Sete-Luas  porque vês àsescuras, e, assim, Blimunda…ficou sendo Sete- Luas.

Quando Baltasar parte, sozinho, para Monte Junto, para verificar os efeitos do temposobre a passarola e não mais regressa, Blimunda procura-o por todo o lado, numabusca dramática que dura nove anos e com um amor a que nem as chamas dafogueira inquisitorial consegue pôr fim.

Estamos perante uma história de amor que perdura já que a “vontade” deBaltasar “voa” ao encontro da amada: Naquele extremo arde um homem a quemfalta a mão esquerda…Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade deBaltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.Corajosamente, Blimunda quebrou a sua promessa e olhou-o por dentro (já não comiahá quase 24 horas) e Baltasar fica assim a pertencer-lhe de forma definitiva.

 Afinal, conclui o narrador, aquando da despedida dos dois amantes, o amor existesobre todas as coisas.

Nota: Baltasar e Blimunda representam a capacidade de libertação de todo umpovo oprimido. Sete-Sóis e Sete-Luas simbolizam uma totalidade: por serem Sol eLua, astros que complementam a unidade do tempo, feito de dia (de sol) e de noite (delua) e também porque o número 7 simboliza a totalidade humana. Eles representam acapacidade ontológica de lutar de criar um espaço de anti-poder que é aquisimbolizado pela passarola. É essa capacidade libertadora, assente na vontade doshomens, que a narrativa pretende exaltar .

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SÍNTESE

Amor Contratual(Rei/Rainha)

Amor Verdadeiro(Baltasar/Blimunda) 

● unidos por contrato estabelecido entrecasas régias

● Uniram-se de livre vontade

● casaram-se sem se amar ● amaram-se sem se casar

● casados pela igreja ● juntos sem a bênção da igreja

● casados há mais de dois anos ● Blimunda era virgem 

● vida opulenta e luxuosa ● partilha de uma vivência humilde

● vestidos nos encontros amorosos como «trajo da função e do estilo»

● despidos nos actos amorosos

● dormindo em quartos separados, juntavam-se apenas para o acto sexual

● Dormiam sempre juntos eaconchegados

● relação com o fim único de dar umherdeiro à coroa

● espontâneas manifestações de umamor espiritual e carnal

● sexualidade encarada como umaobrigação régia com o fim de procriar

● jogos eróticos sem fins procriativos

● encontros amorosos no quarto darainha

● Encontros amorosos em espaçosmúltiplos e variados

● excesso de formalidades e cerimónias ● vivência activa e espontânea do amor eda sexualidade

Frustração Pessoal Plena Realização Pessoal

Elementos simbólicos: cobertor / colher

Cobertor – liga-se à frieza do amor, à ausência do prazer, escondendo desejosinsatisfeitos. O cobertor torna-se símbolo da separação que marca ocasamento de conveniência daquele casal régio.

Colher – exprime o amor autêntico, uma relação de paixão e, inclusivamente, aatracção erótica dum casal que se complementa sem precisar de reprimir o seuprazer.

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AULA: o sonho do Padre Bartolomeu Lourenço – a construção dapassarola; caracterização da personagem

Cf.● Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos● Pessoa, Sem a loucura que é o homem… ● António Gedeão, Pedra Filosofal

► O padre Bartolomeu Lourenço está com Blimunda entre a assistência que vêpassar a procissão dos condenados. Acompanha-a quando ela regressa a casa e

assiste ao primeiro encontro entre Baltasar e Blimunda, “casando-os” (bênção) logo deseguida. O padre é cúmplice numa situação ilegal aos olhos da igreja. Mas este padreé especial e vai surpreender Baltasar quando lhe pergunta se o quer ajudar, dizendo-lhe que «maneta é Deus e fez o universo».

► A sua amizade com Baltasar e Blimunda revela que tem ideias muito liberais, aindamais numa época em que se vivia o medo e a repressão, numa época em que amentalidade do povo era “dirigida” pelo poder da igreja.

► O padre levou Baltasar a S. Sebastião da Pedreira para ver o projecto da sua

máquina voadora. Entretanto, vai à Holanda, onde os estudos estão mais adiantados,para trazer o «segredo alquímico do éter». Haviam decorrido três anos e depois de irver a abegoaria abandonada (Quinta do duque de Aveiro), vai à procura dos amigospara lhes dar as informações que trouxera da Holanda, nomeadamente a informaçãode que o éter de que necessitam se alcança através das vontades dos vivos. Avontade é a essência do homem, uma força primordial.

► O medo que tem de ser apanhado pela Inquisição é cada vez maior. 

► Estabelece relações com as duas classes que se opõem: a corte e o povo.É funcionário da corte, tem o apoio e a amizade do rei que o incentiva nas suasexperiências, cedendo-lhe a quinta de S. Sebastião da Pedreira.

► Enquanto a corte o olha com incredulidade, menosprezando-o; o povo (Baltasar eBlimunda) acolhe-o, confia e participa do seu projecto.

► Após terem fugido na passarola, e do seu regresso a terra, o padre tenta incendiaro engenho. Após este incidente, o padre embrenhou-se pela serra e desapareceu.

Baltasar procurou-o mas em vão. Sabe-se, mais tarde, que o padre morreu emEspanha. É Scarlatti quem dá a notícia a Blimunda.

Caracterização do Padre Bartolomeu

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão

O século XVIII europeu é geralmente designado por “Século das Luzes” e a

Península Ibérica, embora ensombrada pelo braço persecutório da Inquisição, nãoficou de todo alheia aos contactos com a cultura europeia.

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 Assim, a intolerância inquisitorial  provocou a fuga de muitos intelectuais eletrados para o estrangeiro, colhendo aí as “novas ideias” e “iluminando” as trevasdo nosso atraso.

Em Portugal, aqueles que estavam em contacto directo com os novos conhecimentosque se faziam pela Europa eram apelidados de “estrangeirados”. É o caso do padreBartolomeu Lourenço de Gusmão que, como se pode ler no romance, parte para aHolanda: e lá aprende a arte de fazer descer o éter do espaço, de modo a introduzi-lonas esferas, porque sem ele nunca a máquina voará.

O Padre foi um visionário que acreditava na ciência e nas capacidades do Homem.

Bartolomeu Lourenço também era conhecido por Voador .

 Aliás é o próprio padre que conta a Baltasar o percurso das suas aventuras: Pois eufaz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro quesubiu ao tecto de uma sala do paço…Voaram balões, foi o mesmo que ter voado eu.

O seu projecto foi bem acolhido pelo rei português: por lhe querer bem el-rei, queainda não perdeu de todo a esperanças, …por isso pergunta…Verei voar a máquinaum dia, ao que o padre Bartolomeu Lourenço,…não pode responder mais do que isto,Saiba vossa majestade que a máquina um dia voará,…vossa majestade…não só verá

voar a máquina, como nela voará…el-rei…vai assistir à lição de música de sua filha, ainfanta D. Maria Bárbara,…faz um sinal ao padre para que se junte ao séquito, nemtodos se podem gabar destes favores.

A custo conseguirá evitar a Inquisição tendo-lhe certamente valido a intercessãode D. João V.

Com a ajuda de Baltasar e Blimunda, Bartolomeu consegue construir a sua máquina.Estamos perante um trabalho de equipa (tríade).

 A união, a harmonia que reina entre eles está patente na simbologia do número três (ordem intelectual e espiritual; Deus).

Nota: o padre Bartolomeu é o mais fraco do trio, já que acaba por fugir, renegara sua obra ao tentar destruí-la e ao enlouquecer . 

Blimunda e Baltasar, pelo contrário, irão lutar até ao fim. São eles os verdadeirosheróis que enfrentam preconceitos, dogmas e até mesmo o Santo Ofício.

Para além de inventor, Bartolomeu Gusmão foi um grande orador sacro cuja famao aproximava, na época, do padre António Vieira. A construção da passarola não oimpede de preparar os seus sermões. Várias vezes o vemos a exercitar as suasqualidades junto do casal, apesar de não entender a sua retórica tipicamentesetecentista, não deixa de o ouvir e perceber que o padre Bartolomeu é um homem

interiormente inquieto em matéria de fé: Deus é uno em essência e em pessoa,gritou Bartolomeu Lourenço subitamente. Vieram Blimunda e Baltasar à porta saberque grito era aquele, não que estranhassem as declamações do padre, porém assim,fora, a clamar violento contra o céu, nunca acontecera.

Essa inquietação interior, essa postura nada dogmática que contrasta com o clero daépoca espelha-se nas leituras diversificadas  que faz como se procurasse, destemodo, alcançar a totalidade do Saber : Abandonara a leitura consabida dos doutoresda Igreja, dos canonistas…como se a alma já est ivesse extenuada de palavras…examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamentovelho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco, pelos judeus chamados Tora,e o Alcorão.

De facto, o padre Bartolomeu é um ser fragmentário e atormentado, revelandogrande complexidade e excentricidade: Três se não quatro vidas diferentes tem o

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 padre Bartolomeu…o padre…o académico…o inventor da máquina de voar…esseoutro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas.

Podemos concluir que esta personagem constitui o ponto de intersecção da narrativavisto que estabelece relações com os dois mundos distintos retratados: a corte  e opovo.

Enquanto a corte olha com desconfiança o sonho e as ideias do padre: Tenho sido arisada da corte; o povo, encarnado nas figuras de Baltasar e Blimunda, acolhe eparticipa naturalmente no seu projecto:  A Baltasar convencia-o o desenho, não precisava de explicações

Intrigas e difamações da corte obrigam-no a partir para Espanha onde morre. Anotícia do seu fim é comunicada aos seus colaboradores por Scarlatti: Vim-te dizer e aBaltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido.

Nota: Memorial do Convento, enquanto reflexão sobre a condição humana, é umahomenagem ao poder humano construído na base da vontade:

● é a conjugação de “vontades” que faz subir a passarola;

● é o desejo de permanecerem juntos que faz com que Blimunda, no final, liberte a“vontade” de Baltasar.

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AULA: a conjugação de saberes; Scarlatti, o 4º elemento; outraspersonagens; o casamento Maria Bárbara / D. Fernando VI

Domenico Scarlatti

 À relação ternária constituída por Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, vem juntar-se um quarto elemento, Domenico Scarlatti.

À ciência do padre, ao esforço físico de Baltasar, à magia de Blimunda emrecolher vontades, vem unir-se a arte: tocarei para eles e para a passarola, talvez aminha música possa conciliar-se dentro das esferas com esse misterioso elemento.

Nota: o número quatro é o número da terra, dos pontos cardeais, das fases da lua,das estações, das etapas da vida humana simbolizando, portanto, a plenitude, atotalidade.

→ estas 4 personagens remetem para a ideia de deificação do homem uma vez quesão capazes de se libertar da materialidade.

Será a música de Scarlatti, com a sua acção retemperadora, que curaráBlimunda para que esta possa prosseguir a sua tarefa: muitas vezes veio DomenicoScarlatti…visitar Blimunda…Durante uma semana…o músico foi tocar duas, trêshoras, até que Blimunda teve forças para levantar-se.

Scarlatti assiste à partida da ave, não podendo partilhar o sonho até ao fim, e como apassarola acabará escondida num canto da serra de Monte Junto também o cravopermanece escondido no fundo do poço: levou Scarlatti o cravo até ao bocal do poço…e levantando-o em peso…o precipita a fundo, bate a caixa duas vezes na parede interior, todas as cordas gritam, e enfim cai na água.

Outras Personagens

João Francisco Mateus  – pai de Baltasar

● Recebe o filho de braços abertos e pede a Blimunda que jure que não é judia. Dá-lhe, como teste, um pedaço de toucinho a comer (medo da Inquisição).

● Com a morte da esposa, alheia-se do mundo e da vida.

● Acredita na máquina e no facto do filho ter voado 

● Morre ao dar a bênção ao filho.

Marta Maria  – mãe de Baltasar

● Recebe Baltasar com grande alegria 

● Acolhe Blimunda como uma filha 

● Tem «uma nascida na barriga» que lhe causará grande sofrimento e a levará àmorte

Inês Antónia / Álvaro Diogo – dois filhos (o mais valho chama-se Gabriel e omais novo morre com bexigas, o que causa grande sofrimento à mãe que quasechega a querer mal ao outro filho)

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● Casal mais conservador – Inês Antónia não aprecia a forma como o irmão e acunhada materializam o amor que nutrem um pelo outro, pois nunca quis experimentarcom o marido a novidade, já que Inês e Álvaro são «espíritos quietos e carnesdesambiciosas».

● Álvaro Diogo – pedreiro, bom profissional. Deseja participar na construção doconvento, mas lucidamente reconhece que vêm para aí os frades fornicar as mulherescomo é costume deles.

● Caiu de uma parede do convento (quase 30 metros) e morreu (com a sua morte,Inês Antónia torna-se amarga e triste) – pág. 341

O casamento Maria Bárbara / D.Fernando VI 

● União das famílias reais de Espanha e Portugal;

● O casamento estava marcado desde 1725;

● Cortejo real sai de Lisboa (muitos convidados e muitos serviçais)- página 312 ►Alentejo (miséria, pobreza, os pobres comem os restos) ►Elvas;

● A viagem foi difícil devido: chuva; mau estado das estradas do reino;

● conselhos da mãe à filha  – diálogo inverosímil - página 319 – 320;

● a caminho de Évora, a princesa vê homens atados e pergunta a um oficial quemsão, para onde vão e este responde-lhe que vão para Mafra trabalhar no convento,cuja edificação se deve a ela e ela nunca foi a Mafra - página 325;

● a princesa fica angustiada - página 326

● cerimónia do casamento: casa construída sobre a ponte de pedra que atravessa orio Caia - página 330 

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AULA: a Inquisição; um Auto-de-Fé

Memorial do Convento  denuncia o medo que se vivia na época devido àsperseguições levadas a cabo pelo Santo Ofício. As descrições das procissões dos penitentes e supliciados e também as procissõesreligiosas, como a do Corpo de Deus, são textos de enorme visualismo, pelo rigor depormenor e objectividade.

Blimunda conhece Baltasar no auto-de-fé de 26 de Julho de 1711 e o último encontro

decorre no auto-de-fé de 18 de Outubro de 1739, 28 anos depois de se teremconhecido.

T.P.C.Ler o excerto das páginas 28/30 e responder:

1. Explique o comportamento do povo na procissão e o que ele traduz sobre areligiosidade que se vivia na época.

2. Refira a intenção crítica do autor.

3. Analise o excerto quanto à linguagem, mencionando recursos que contribuempara uma descrição tão visualista e pormenorizada.

►  As vivências religiosas do Portugal de setecentos aparecem retratadas em váriosmomentos da narrativa:

● na perseguição inquisitorial; 

● nos autos-de-fé;

● na vida conventual; 

● nas festas religiosas. 

 A Igreja aparece representada não apenas pelo alto clero (D. Nuno da Cunha) comopelo baixo clero (o frade que assedia sexualmente Blimunda).

Exceptuando a figura excêntrica do padre Bartolomeu de Lourenço,  esta classe édescrita de forma satírica, num rol de acusações.

Critica-se a vaidade e a riqueza ostentadas, como acontece na investiduracardinalícia de D. Nuno da Cunha, em vez da humildade e da pobreza: o cardeal D.Nuno da Cunha que vai receber o chapéu das mãos de el-rei, acompanha-o o enviadodo papa numa liteira toda forrada de veludo de carmesim, com passamanes de ouro,dourados também os painéis…e vêm dois coches castelhanos a deitar por foracapelães e pagens, e à frente da liteira doze lacaios, que somando a isto tudo oscocheiros e o liteiros é uma multidão.

Ridiculariza-se o vocabulário da Igreja que o povo não entende: amito, pluvial eformálio, que saberá o povo destes nomes  e os rituais sem sentido como acrueldade e a tirania dos sacrifícios dos noviços: ..até ficarem os pobres com ascostas em carne viva…e t inham agora de caminhar descalços seis léguas, por montese vales, sobre pedras e lama.

Estes rituais levam o narrador a observar num outro momento da narrativa:  parecemais obra de bruxedo, eu te talho e retalho, do que ritual canónico.

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Criticam-se  ainda as distinções que a Igreja faz entre santos, numa alusão àdesigualdade de tratamento entre homens e mulheres: entre S. Vicente e S. Sebastiãoestão as três santas, Isabel, Clara, Teresa, parecem minorcas ao pé deles, mas asmulheres não se medem aos palmos.

A vida conventual é caracterizada pela ociosidade, hipocrisia  e libertinagem, oque não admira porque a maior parte das mulheres consagravam-se à vida religiosapelas mais variadas razões:

● para escaparem a casamentos impostos; 

● para salvarem a honra ultrajada, por serem viúvas;

● para aliviar partições de heranças, favorecendo o morgadio e outros irmõesvarões

● por vocação (menos vezes) 

Daí que vivessem em desacordo com os ideais que este tipo de vida impõe. Memorialdo Convento apresenta-nos 2 episódios ilustrativos da degradação reinante:

1.  – é o caso das freiras de Santa Mónica que discordam da ordem do rei de se

limitarem as visitas ao convento a fim de se evitar os escândalos;

2.  – é o momento em que, procurando Baltasar desaparecido, Blimunda se cruzacom um frade que, com falsa caridade cristã, lhe indica um abrigo com opropósito de, mais tarde, ir saciar a carne.

 As festas religiosas, como o início da Quaresma ou a procissão do Corpo de Deus,constituem um outro aspecto da sátira anticlerical.

Em vez de elevação espiritual, estamos perante o desregramento, a profanação dosagrado não apenas da parte do povo mas também do próprio clero. Essa profanação

assume diversas formas:

  Desde os pensamentos obscenos do patriarca que dão conta do vazioespiritual reinante;

  Até à vazão dos desejos sexuais reprimidos

Nota: a falta de rectidão moral dos frades e das freiras indicia o logro da vidareligiosa retirando qualquer autoridade à Igreja para promover valoresespirituais. O que se põe em causa neste livro são as atitudes da Igreja e não osvalores espirituais. Sendo assim: 

  o trabalho dos operários na construção do convento aparece como exploraçãofísica dos trabalhadores;

  a fé da população como resultado da ignorância;

  as perseguições da Inquisição como crimes.

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Aula: O Espaço e o Tempo

A acção situa-se em Portugal, no século XVIII, marcado pelo Iluminismo trazidopelos estrangeirados, pelo obscurantismo da população e o medo do poder daInquisição.

Espaço

Neste contexto, simultaneamente ligado à luz do Iluminismo e às sombras daInquisição, aparecem Lisboa  e Mafra  como espaços físicos privilegiados pela

narrativa e pelas personagens centrais, sobretudo Blimunda e Baltasar que fazemconstantes viagens entre as duas localidades. Dentro destes dois espaços destacam-se, em Lisboa, o Terreiro do Paço  e o Rossio, lugares onde se manifesta oobscurantismo do povo e a opressão do poder e S. Sebastião da Pedreira, local daconstrução da passarola, da subversão do poder. Especificando:

Terreiro do Paço: local onde primeiramente trabalha Baltasar na sua chegada aLisboa, descrição pormenorizada e sugestiva da procissão do Corpo de Deus, emJunho. É um espaço fulgurante de vida, com grande importância no contexto dasociedade lisboeta da época.

Rossio: surge no início da obra, relacionado com o auto-de-fé que aí se realiza. Areconstituição do auto-de-fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as sentençasproferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só reconciliados, mastambém relaxados, aqueles que eram entregues à justiça secular para a execução dapena de morte. O dia da publicação do auto era festivo. A procissão propriamente ditasaía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria a cidade de Lisboaantes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das praças centrais. À frenteseguiam os frades de S. Domingos com o pendão da Inquisição. Atrás destes ospenitentes por ordem de gravidade das culpas, cada um ladeado por dois guardas.Depois, os condenados à morte, acompanhados por frades, seguidos das estátuasdos que iam ser queimados. Finalmente os altos menbros da Inquisição, precedendo oInquisidor-Geral. A sorte dos réus vinha estampada nos sambenitos (hábito em forma

de saco, de baeta amarela e vermelha que se vestia aos penitentes dos autos-de-fé)para que a compacta multidão que se aglomerava soubesse o destino doscondenados.

S. Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre BartolomeuLourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadoraque está a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra.

MAFRA – espaço da repressão, da violência física e moral;

≠ 

S. SEBASTIÃO DA PEDREIRA (abegoaria)  –  espaço do trabalho voluntário; espaçodo sonho partilhado, utopia tornada realidade.

 A insatisfação humana é o motor do progresso  –  Ser desc ont ente éser homem  (Mensagem)

 A passarola insere-se na narrativa como um mito, do qual o homem depende paraviver, mito proibido mas que se evidenciará e se deixará ver pelo voo espectacular quese realizará, mostrando que ao homem nada é impossível e que a vida é uma grandeaventura. S. Sebastião da Pedreira era, àquele tempo, um espaço rural, onde nãofaltavam fontes, terras de olival, burros, noras, e onde se situava a quinta abandonada.

 Ali irão as personagens variadíssimas vezes e pelas razões mais diversas.

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Em Mafra, sobressai a Vela, sítio escolhido para edificar o convento e, nas imediaçõesda construção, a “Ilha da Madeira”, onde se alojam os inicialmente 10 000, depois 20000, 30 000 e finalmente 40 000 operários da obra.

 A narrativa também realça o Alentejo, lugar de famintos, mendigos e salteadores, queé atravessado por Baltasar, quando vem da guerra da Sucessão de Espanha e depois,cruzado em sentido inverso, pelo cortejo real, na altura do casamento de D. José e D.Maria Bárbara com os príncipes espanhóis.

 Além destes espaços há outros, nas imediações de Lisboa, como Odivelas,Xabregas, Azeitão ou próximos de Mafra, como Pêro Pinheiro, serra do Barregudo,Monte Junto, Torres Vedras  que são referidos como meros cenários de eventosnarrados.

 Ao contrário destes espaços que são espaços físicos, estáticos, Lisboa, Mafra  e oAlentejo configuram-se como espaços sociais que ilustram o ambiente da época.

Tempo

Verifica-se no romance o aparente desprezo pelo tempo cronológico. Asreferências temporais são escassas ou apresentam-se por dedução. O discurso flui,

recuperando vários fragmentos temporais ou antecipando outros, daí as sucessivasanalepses e prolepses que encontramos no texto.

 As localizações temporais não são precisas:

  Auto-de-fé (1711 ou 12; e 1709 ou 10);

  Baltasar (26 anos / Blimunda 19);

  A batalha de Jerez de los Caballeros – em Outubro do ano passado;

  A chegada da nau de Macau – há vinte meses;

  A família de Baltasar conhece Blimunda  –  minha mãe foi degredada para Angola por oito anos, só passaram dois;

  O nascimento e baptizado de D. Maria Bárbara e de D. Pedro que morrerá comdois anos;

  Cerimónia da bênção da primeira pedra do convento - há mais de seis anosque fiz o voto… 

O tempo da história - dura 28 anos, entre 1711 e 1739;

O tempo do discurso - abre brechas nesse período cronológico para o integrar numtempo uno, em que passado, presente e futuro se misturam.

Nota: podemos relacionar o desprezo pelas datas com a intemporalidade do tema etambém podemos ver, na preocupação em sugerir a passagem do tempo, um sinal daesperança que a obra veicula.

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O Estatuto do Narrador

O estatuto do narrador em Memorial do Convento reveste-se de grande complexidade.Ao longo da narrativa, sentimos a sua presença contínua e controladora.

São inúmeros os momentos em que a instância narrativa desliza da 3ª pessoa dosingular para a 1ª do plural verificando-se, deste modo, uma cumplicidade eproximidade com o narratário e a implicação deste no relato ou uma colagem àspersonagens.

Nos comentários  metatextuais, o narrador reflecte sobre o próprio processo deescrita, desmistificando, assim, o seu papel: O mar está longe e parece perto, brilha, éuma espada caída do sol, que o sol há-de embainhar devagarinho quando descer nohorizonte e enfim se sumir. São comparações inventadas por quem escreve paraquem andou na guerra, não inventou Baltasar .

O controlo da narrativa por parte do narrador é facilmente verificável não apenas noscomentários valorativos ou depreciativos,  juízos de valor   e no tom moralístico que perpassa pelos inúmeros aforismos, provérbios ou profecias mas também nasadvertências ao leitor ou nas “instruções de leitura” que vai tecendo: podemos apostarque a eles os não cingem os rins tão ciliciosamente, isto se devendo ler com muita

atenção para que não escape ao entendimento.

O narrador opta por uma postura irreverente  no modo como relata osacontecimentos evocados. O tom frequentemente irónico ou sarcástico  serve aintenção de parodiar o passado histórico. Exemplo elucidativo da postura irónica donarrador é a descrição do auto- de-fé onde revela a sua discordância em relação aonarrado.

O discurso do narrador é também anti-épico  pois dá voz aos que não sãoconsiderados heróis, ou seja, um soldado maneta, uma vidente e um padre queduvida, assumindo, deste modo, uma postura de contra-poder . O discurso donarrador rebaixa heróis que a História glorifica e nos apresenta como heróis gente

anónima em que se incluem personagens com defeitos físicos ou operários queforam obrigados a trabalhar na construção do Convento de Mafra.

Essa postura do contra  revela-se no discurso dessacralizador   não apenas dopoder régio e do poder religioso mas também do literário através das inúmerasreferências parodísticas a outros escritores, nomeadamente Camões, Padre AntónioVieira e Pessoa. Os textos destes autores consagrados são reconstruídos adquirindooutras significações no novo contexto

O narrador tem uma visão interna, isto é, situa-se dentro do universo do romance. Aocontrário do que seria de esperar, já que quem está dentro tem um ponto de vistarestrito, essa visão interna não é limitativa, porque dentro do universo fictício, onarrador move-se, no espaço, sem limitações e movimenta-se em todos ostempos, tendo assim acesso ao que se passa em espaços interiores e exteriorese obtendo informação total do passado, do presente e do futuro.

Como sabe tudo, é um narrador omnisciente.

 A focalização omnisciente*  implica uma vertente subjectiva  e permite ao narradorseleccionar o que deve narrar. Esta focalização do narrador provém da suaintemporalidade.

* por focalização omnisciente entende-se toda a representação narrativa em que o

narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada,podendo, por isso, facultar as informações que entender pertinentes para oconhecimento da história.

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Linguagem e Estilo

O processo narrativo de Memorial do Convento desenvolve aspectos estilísticos que oaproximam da coloquialidade, estabelecendo uma cumplicidade entre o narrador e onarratário / leitor como se este estivesse lá. Para tal recorre a:

● Hipotipose  –  figura engenhosa que põe sob os olhos com viveza  as coisasrepresentadas e que consiste na utilização de processos capazes de impor o objectodescrito à visão do leitor, de lhe dar a impressão de visualizar o que lê.

● Descrição pormenorizada;

● Uso frequente da forma verbal do futuro, que é sinal do saber omnisciente donarrador e que nos dá a conhecer antecipadamente o destino das personagens e orumo dos acontecimentos; 

● do presente  (raramente se emprega o pretérito perfeito ou imperfeito, os temposespecíficos da narrativa); 

● Uso frequente do discurso indirecto livre  –  discurso híbrido onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambosfalassem em uníssono fazendo emergir uma voz “dual” . (oscilações entre a voz do

narrador e a voz da personagem); 

● Uso singular da pontuação  – que transgride deliberadamente alguns dos princípiosda gramática normativa tradicional, nomeadamente o uso da vírgula, do ponto e dotravessão; 

● estrutura sintáctica  – que infringe intencionalmente a norma, alternando o discursoescrito com um discurso marcadamente oral; 

● Aforismos; Provérbios, Ditados… 

● Recurso frequente de: anástrofe, hipérbato, metáforas, comparações,personificação, enumeração, ironia;

● jogo de palavras e conceitos;

● construção explicativa  –  primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens…esegundo…porque abundam no reino bastardos…; por duas razões. A primeira razãoé…a segunda razão…; 

● construção paralelística  do discurso  –  se vivo fizera caridade, defunto obraramaravilhas;

● Traços latinizantes e superlativos sintécticos  – suavíssimo; abundantíssimo;

● Aproximação brusca dos registos: erudito e corriqueiro;

● período longo...