artigo o espectador emancipado

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    O ESPECTADOR EMANCIPADO

    Artigo de Jacques Rancire

    Traduo de Daniele Avila

    Jacques Rancire, nascido em 1940 na Arglia, professor

    emrito de esttica e poltica na Universidade de Paris VIII, onde

    lecionou de 1969 a 2000. autor, entre outras obras, de Os nomes

    da Histria, Polticas da escrita, O desentendimento, A partilha do

    sensvel e o Mestre ignorante.

    A nota na revista ArtForum de maro de 2007, onde este texto

    foi publicado, diz: "O espectador emancipado foi apresentado

    originalmente, em ingls, na abertura da Quinta Academia

    Internacional de Artes de Vero, em Frankfurt, no dia 20 de agosto

    de 2004. O texto se apresenta aqui de uma forma levemente

    revisada.

    "Eu chamei esta conversa de "O espectador emancipado". A

    meu ver, um ttulo sempre um desafio. Ele apresenta o pressupostode que uma expresso faz sentido, de que h uma conexo entre

    termos separados, o que tambm significa entre conceitos, problemas

    e teorias que primeira vista no parecem ter qualquer relao

    direta entre si. De um modo, este ttulo expressa o quanto fiquei

    perplexo quando Mrten Spngberg me convidou para dar a palestra

    que deve ser a "linha diretriz" desta escola. Ele disse que queria que

    eu iniciasse esta reflexo coletiva sobre "a condio do espectador"

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    porque ele ficara impressionado com o meu livro O mestre ignorante

    [(Le Mitre ignorant (1987)]. Eu comecei a me perguntar que

    conexo poderia haver entre a causa e o efeito. Esta uma escola

    que rene pessoas envolvidas no mundo da arte, do teatro e daperformance para pensar a questo da condio do espectador hoje

    em dia. O mestre ignorante foi uma reflexo sobre a teoria excntrica

    e o destino estranho de Joseph Jacotot, um professor francs que, no

    incio do sculo XIX, agitou o mundo acadmico ao afirmar que uma

    pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ela

    mesma no conhecia, proclamando a igualdade de inteligncias e

    exigindo a emancipao intelectual no lugar da sabedoria recebida noque diz respeito educao das classes mais baixas. Sua teoria caiu

    no esquecimento em meados do sculo XIX. Achei necessrio

    reaviv-la nos anos 1980 para instigar o debate sobre a educao e

    suas balizas polticas. Mas que uso pode ser feito, no dilogo artstico

    contemporneo, de um homem cujo universo artstico poderia ser

    resumido a nomes como Demstenes, Racine e Poussin?

    Pensando bem, me ocorreu que a prpria distncia, a falta de

    qualquer relao bvia entre a teoria de Jacotot e a questo da

    condio do espectador hoje em dia pode ser promissora. Ela poderia

    proporcionar uma oportunidade para estabelecer uma distncia

    radical entre o que se pode pensar e os pressupostos tericos e

    polticos que ainda sustentam, mesmo sob um disfarce ps-moderno,

    a maior parte das discusses sobre teatro, espetculo e a condio doespectador. Eu fiquei com a impresso que de fato era possvel que

    esta relao fizesse sentido, contanto que tentssemos reconstituir a

    rede de pressupostos que colocam a questo da condio do

    espectador numa interseo estratgica na discusso da relao entre

    arte e poltica e tentssemos esboar o principal padro de

    pensamento que por muito tempo emoldurou as questes polticas

    em torno do teatro e do espetculo (e eu uso estes termos aqui num

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    sentido bem generalizado - para incluir a dana, a performance e

    todos os tipos de espetculos desempenhados por corpos atuantes

    diante de um pblico coletivo).

    Os numerosos debates e polmicas que tm levantado a

    questo sobre o teatro ao longo da nossa histria podem ter suas

    origens em uma contradio muito simples. Vamos cham-la de

    paradoxo do espectador, um paradoxo que pode se provar mais

    crucial do que o famoso paradoxo do ator e que pode ser resumido

    nos termos mais simples. No existe teatro sem espectadores

    (mesmo que seja apenas um, nico e escondido, como na

    representao ficcional de Le fils naturel (1757) feita por Diderot).

    Mas a condio do espectador uma coisa ruim. Ser um espectador

    significa olhar para um espetculo. E olhar uma coisa ruim, por

    duas razes. Primeiro, olhar considerado o oposto de conhecer.

    Olhar significa estar diante de uma aparncia sem conhecer as

    condies que produziram aquela aparncia ou a realidade que est

    por trs dela. Segundo, olhar considerado o oposto de agir. Aqueleque olha para o espetculo permanece imvel na sua cadeira,

    desprovido de qualquer poder de interveno. Ser um espectador

    significa ser passivo. O espectador est separado da capacidade de

    conhecer, assim como ele est separado da possibilidade de agir.

    A partir deste diagnstico possvel tirar duas concluses

    opostas. A primeira que o teatro em geral uma coisa ruim, queele o palco da iluso e da passividade, que deve ser posto de lado

    em favor daquilo que ele probe: conhecimento e ao - a ao de

    conhecer e a ao conduzida pelo conhecimento. Plato chegou a

    esta concluso h muito tempo: o teatro o lugar em que pessoas

    ignorantes so convidadas para assistir pessoas que sofrem. O que

    acontece no palco um pathos, a manifestao de uma doena, a

    doena do desejo e da dor, que no nada alm da autodiviso dosujeito causada pela falta de conhecimento. A "ao" do teatro no

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    nada alm da transmisso dessa doena atravs de outra doena, a

    doena da viso emprica que olha para as sombras. O teatro a

    transmisso da ignorncia que torna as pessoas doentes atravs do

    meio da ignorncia que a iluso de tica. Portanto, uma boacomunidade aquela que no permite a mediao do teatro, uma

    comunidade cujas virtudes coletivas so diretamente incorporadas

    nas atitudes vivas dos seus participantes.

    Esta parece ser a concluso mais lgica para o problema. Ns

    sabemos, no entanto, que esta no a concluso a que se tem

    chegado com maior freqncia. A mais comum a seguinte: o teatro

    envolve a questo da condio do espectador e a condio do

    espectador uma coisa ruim. Portanto, precisamos de um novo

    teatro, um teatro sem a condio do espectador. Precisamos de um

    teatro em que a relao tica - implcita no termo theatron - esteja

    subordinada a outra relao, implcita no termo drama. Drama

    significa ao. O teatro o lugar no qual uma ao realmente

    desempenhada por corpos vivos diante de corpos vivos. Estes ltimospodem ter abdicado do seu poder, mas esse poder recuperado por

    aqueles outros na performance, na inteligncia que esta performance

    constri, na energia que ela transmite. O verdadeiro sentido do teatro

    deve ser atribudo a este poder que atua. O teatro deve ser trazido de

    volta sua verdadeira essncia, que o contrrio daquilo que

    normalmente conhecido como teatro. O que se deve buscar um

    teatro sem espectadores, um teatro onde os espectadores vo deixaresta condio, onde vo aprender coisas em vez de ser capturados

    por imagens, onde vo se tornar participantes ativos numa ao

    coletiva em vez de continuarem como observadores passivos.

    Esta virada foi compreendida de duas formas, em princpio

    antagnicas, apesar de freqentemente misturadas na prtica teatral

    e na sua legitimao. Por um lado, o espectador deve ser libertado dapassividade do observador que fica fascinado pela aparncia sua

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    frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser

    confrontado com o espetculo de algo estranho, que se d como um

    enigma e demanda que ele investigue a razo deste estranhamento.

    Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo eassumir o papel do cientista que observa fenmenos e procura suas

    causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero

    observador que permanece parado e impassvel diante de um

    espetculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domnio delirante,

    trazido para o poder mgico da ao teatral, onde trocar o privilgio

    de fazer as vezes de observador racional pela experincia de possuir

    as verdadeiras energias vitais do teatro.

    Ns reconhecemos estas duas atitudes paradigmticas

    sintetizadas pelo teatro pico de Brecht e pelo teatro da crueldade de

    Artaud. Por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por

    outro, deve perder toda distncia. Por um lado, deve mudar o seu

    modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve

    abandonar a prpria posio de observador. O projeto de reformar oteatro oscilou incessantemente entre estes dois plos de

    questionamento distante e incorporao vital. Isto significa que os

    pressupostos que sustentam a busca por um novo teatro so os

    mesmos que sustentaram a rejeio do teatro. Os reformadores do

    teatro mantiveram, de fato, os termos da polmica de Plato,

    rearrumando-os ao tomar emprestada do platonismo uma noo

    alternativa de teatro. Plato estabeleceu uma oposio entre umacomunidade potica e democrtica do teatro e uma "verdadeira"

    comunidade: uma comunidade coreogrfica na qual ningum

    permanece como espectador imvel, na qual todos se movem de

    acordo com um ritmo comunitrio determinado por uma proporo

    matemtica.

    Os reformadores do teatro reapresentaram a oposio platnicaentre choreia e theater como uma oposio entre a essncia viva e

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    verdadeira do teatro e o simulacro do "espetculo". Assim o teatro se

    tornou um lugar onde a condio passiva do espectador teve que se

    transformar no seu oposto - o corpo vivo de uma comunidade que

    desempenha o papel do seu prprio princpio. Lemos na carta deintenes desta escola: "O teatro permanece como o nico lugar de

    confronto direto do pblico com ele mesmo enquanto coletivo."

    Podemos dar um sentido restritivo a esta frase, que iria apenas

    contrastar o pblico coletivo do teatro com os visitantes individuais

    de uma exposio ou a simples coleo de indivduos assistindo um

    filme. Mas claro que esta frase significa muito mais. Ela significa

    que "teatro" continua sendo o nome para uma idia de comunidadecomo um corpo vivo. Ele transmite a idia de comunidade como uma

    presena de si mesma em oposio distncia da representao.

    Desde o advento do romantismo alemo, o conceito de teatro

    tem sido associado idia de comunidade viva. O teatro apareceu

    como uma forma da constituio esttica - no sentido da constituio

    sensorial - da comunidade: a comunidade como um meio de ocupar otempo e o espao, como um conjunto de gestos vivos e atitudes vivas

    que esto acima de qualquer forma ou instituio polticas; a

    comunidade como um corpo performtico e no como um aparato de

    formas e regras. Deste modo, o teatro foi associado noo

    romntica de revoluo esttica: a idia de uma revoluo que no

    mudaria apenas as leis e instituies, mas transformaria as formas

    sensoriais da experincia humana. A reforma do teatro significou,deste modo, a restaurao da sua autenticidade como uma

    assemblia ou uma cerimnia da comunidade. O teatro uma

    assemblia onde as pessoas adquirem conscincia da sua condio e

    discutem os seus prprios interesses, diria Brecht depois de Piscator.

    O teatro uma cerimnia onde se d comunidade a posse das suas

    prprias energias, afirmaria Artaud. Se o teatro defendido como o

    equivalente da verdadeira comunidade, como o corpo vivo da

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    comunidade em oposio iluso da mimesis, no de se

    surpreender que a tentativa de restaurar o teatro sua verdadeira

    essncia tenha tido como pano de fundo terico a crtica do

    espetculo.

    Qual a essncia do espetculo na teoria de Guy Debord? a

    externalidade. O espetculo o reino da viso. Viso significa

    externalidade. Agora, externalidade significa a desapropriao do

    prprio ser de uma pessoa. "Quanto mais um homem contempla,

    menos ele ", diz Debord. Isto pode soar antiplatnico. claro que a

    principal fonte para a crtica do espetculo a crtica da religio de

    Feuerbach. o que sustenta aquela crtica - a saber, a idia

    romntica da verdade como inseparabilidade. Mas esta prpria idia

    se mantm de acordo com o descrdito platnico quanto imagem

    mimtica. A contemplao que Debord denuncia a contemplao

    teatral ou mimtica, a contemplao do sofrimento provocado pela

    diviso. "A separao o alfa e o mega do espetculo", escreve.

    Aquilo que o homem contempla neste esquema a atividade que lhefoi roubada; a sua prpria essncia que lhe foi arrancada, que se

    tornou alheia, hostil a ele, que consente com um mundo coletivo cuja

    realidade no nada alm da desapropriao mesma do homem.

    Atravs desta perspectiva, no h contradio entre a busca

    por um teatro que pode dar-se conta de sua prpria essncia e a

    crtica do espetculo. O "bom" teatro postulado como um teatro quedispe de sua realidade distinta com o objetivo nico de suprimi-la,

    para transformar a forma teatral em uma forma de vida da

    comunidade. O paradoxo do espectador parte de uma disposio

    intelectual que , mesmo em nome do teatro, compatvel com a

    rejeio platnica do teatro. Esta estrutura est construda em torno

    de algumas idias essenciais sobre as quais devemos nos questionar.

    De fato, devemos questionar o prprio fundamento no qual estasidias esto baseadas. Estou falando de toda uma gama de relaes,

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    firmando-me em equivalncias e oposies chaves: a equivalncia

    entre teatro e comunidade, entre o ato de ver e a passividade, entre

    externalidade e separao, mediao e simulacro; a oposio entre

    coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade epassividade, conscincia de si e alienao.

    Este conjunto de equivalncias e oposies endossa uma

    dramaturgia muito complicada de culpa e redeno. O teatro

    acusado de fazer com que seus espectadores sejam passivos,

    contrariando a sua prpria essncia, o que consiste, segundo se

    alega, na auto-atividade da comunidade. Como conseqncia, ele se

    prope a tarefa de reverter seu prprio efeito e compensar sua

    prpria culpa devolvendo aos espectadores sua autoconscincia e

    auto-atividade. O palco do teatro e a cena teatral tornam-se ento a

    mediao evanescente entre o mal do espetculo e a virtude do

    teatro verdadeiro. Eles apresentam, para uma platia coletiva,

    espetculos que pretendem ensinar aos espectadores como eles

    podem deixar de ser espectadores para que se tornem atores de umaatividade coletiva. Ou, de acordo com o paradigma brechtiano, a

    mediao teatral torna a platia atenta situao social em que o

    prprio teatro se encontra, dando a deixa para a platia agir

    conseqentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz

    com que eles abandonem a condio de espectador: eles no esto

    mais sentados diante de um espetculo, esto cercados pela cena,

    arrastados para o crculo da ao, o que devolve a eles sua energiacoletiva. Em ambos os casos, o teatro uma mediao que se auto-

    suprime.

    Este o ponto em que as descries e proposies da

    emancipao intelectual entram no quadro e nos ajudam a

    remoldur-lo. Obviamente, esta idia de uma mediao que se auto-

    suprime muito conhecida entre ns. Ela precisamente o processoque deve acontecer na relao pedaggica. No processo pedaggico,

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    o papel do professor colocado como o ato de suprimir a distncia

    entre a sua sabedoria e a ignorncia do ignorante. Suas lies e

    exerccios visam diminuir continuamente a lacuna entre

    conhecimento e ignorncia. Infelizmente, para diminuir a lacuna, eledeve seguir renovando-a sempre. Para substituir a ignorncia pelo

    conhecimento adequado, ele deve se manter sempre um passo

    frente do aluno ignorante que est perdendo sua ignorncia. A razo

    para isto simples: no esquema pedaggico, o ignorante no

    apenas aquele que no conhece aquilo que ele no conhece; mas

    tambm aquele que ignora como conhecer. O mestre no apenas

    aquele que sabe precisamente o que permanece desconhecido para oignorante; ele tambm sabe como fazer com que isto seja conhecvel,

    a tal hora e em tal lugar, de acordo com tal protocolo. Por um lado, a

    pedagogia apresentada como um processo de transmisso objetiva:

    um pouco de conhecimento depois de mais um pouco de

    conhecimento, uma palavra depois da outra, uma regra ou teorema

    depois do outro. Este conhecimento deve ser transmitido diretamente

    da mente do mestre ou da pgina do livro para a mente do aluno.

    Mas esta transmisso igual est baseada numa relao de

    desigualdade. Apenas o mestre conhece o modo certo, o tempo certo

    e o lugar certo para esta transmisso "igual", porque ele conhece

    algo que o ignorante jamais conhecer - a no ser que ele mesmo se

    torne um mestre - algo mais importante que o conhecimento

    transmitido. Ele conhece a distncia exata entre ignorncia e

    conhecimento. Esta distncia pedaggica entre uma determinada

    ignorncia e um determinado conhecimento , na verdade, uma

    metfora. uma metfora de uma lacuna radical entre o caminho do

    aluno ignorante e o caminho do mestre, a metfora de uma lacuna

    radical entre duas inteligncias.

    O mestre no pode ignorar que o aluno dito ignorante que est

    sentado sua frente na verdade conhece muitas coisas que ele

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    aprendeu sozinho, olhando e ouvindo o mundo sua volta,

    adivinhando os significados do que ele via e ouvia, repetindo o que

    ele ouviu e aprendeu ao acaso, comparando o que ele descobre com

    o que ele j sabe, e assim por diante. O mestre no pode ignorar queo aluno ignorante adquiriu, atravs destes mesmos meios, o

    aprendizado que a condio prvia para todos os outros: o

    aprendizado da sua lngua materna. Mas, para o mestre, este

    apenas o conhecimento do ignorante, o conhecimento da criancinha

    que olha e escuta coisas aleatoriamente, compara e palpita ao acaso

    e repete por hbito, sem entender a razo dos efeitos que ele

    observa e reproduz. O papel do mestre romper com este processotateante de tentativa e erro. ensinar ao aluno o conhecimento do

    conhecvel, ao seu prprio modo - o modo do mtodo progressivo,

    que dispensa todo tatear e todo acaso, explicando itens dentro de

    uma ordem, do mais simples ao mais complexo, de acordo com o que

    o aluno capaz de entender, levando em considerao sua idade ou

    sua formao social e suas expectativas sociais.

    O conhecimento fundamental que o mestre possui o

    "conhecimento da ignorncia". o pressuposto de uma lacuna radical

    entre duas formas de inteligncia. Este tambm o conhecimento

    fundamental que ele transmite ao aluno: o conhecimento de que as

    coisas devem ser explicadas a ele para que ele entenda, o

    conhecimento de que ele no consegue aprender sozinho. o

    conhecimento da sua incapacidade. Deste modo, a instruoprogressiva a verificao sem fim do seu ponto de partida: a

    desigualdade. Esta verificao sem fim da desigualdade o que

    Jacotot chama de processo de embrutecimento. O oposto do

    embrutecimento a emancipao. Emancipao o processo de

    verificao da igualdade de inteligncia. A igualdade de inteligncia

    no a igualdade de todas as manifestaes de inteligncia. a

    igualdade em todas as suas manifestaes. Isto significa que no h

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    lacuna entre duas formas de inteligncia. O animal humano aprende

    tudo do mesmo modo que aprendeu a sua lngua materna, como se

    aventurou pelas florestas das coisas e signos que o rodeiam para

    assumir seu lugar entre seus companheiros humanos - observando,comparando uma coisa com a outra, um signo com um fato, um

    signo com outro signo, e repetindo as experincias que ele encontrou

    primeiramente ao acaso. Se a pessoa "ignorante" que no sabe ler s

    sabe uma coisa de cor, mesmo que seja uma simples orao, ela

    pode comparar este conhecimento com algo que ela ainda ignora: as

    palavras da mesma orao escritas num papel. Ela pode aprender,

    signo por signo, a semelhana daquilo que ela desconhece com aquiloque ela conhece. Ela pode fazer isso se, a cada passo, observar o que

    est sua frente, dizer o que viu, verificar o que lhe disseram. Entre

    a pessoa ignorante e o cientista que constri hipteses, sempre a

    mesma inteligncia que est trabalhando: uma inteligncia que cria

    formas e faz comparaes para comunicar suas aventuras intelectuais

    e para entender o que outra inteligncia est tentando comunicar-lhe

    de volta.

    Este trabalho potico de traduo a primeira condio para

    qualquer aprendizado. A emancipao intelectual, como concebida

    por Jacotot, significa a ateno e a declarao daquele poder igual de

    traduo e contra-traduo. A emancipao traz uma idia de

    distncia oposta quela embrutecedora. Animais falantes so animais

    distantes que tentam se comunicar atravs da floresta de signos. este senso de distncia que o "mestre ignorante" - o mestre que

    ignora a desigualdade - est ensinando. A distncia no um mal

    que deve ser abolido. a condio normal da comunicao. No

    uma lacuna que demanda um especialista na arte de suprimi-la. A

    distncia que a pessoa "ignorante" precisa atravessar no a lacuna

    entre sua ignorncia e o conhecimento do mestre; a distncia entre

    o que ela j conhece e o que ela ainda no conhece, mas pode

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    aprender pelo mesmo processo. Para ajudar seu aluno a atravessar

    esta distncia, o "mestre ignorante" no precisa ser ignorante. Ele s

    precisa dissociar seu conhecimento do seu domnio. Ele no ensina o

    conhecimento dele aos alunos. Ele inspira estes alunos a que seaventurem pela floresta, digam o que esto vendo, digam o que eles

    pensam sobre o que j viram, verifiquem isto e assim por diante. O

    que ele ignora a lacuna entre duas inteligncias. a conexo entre

    o conhecimento do conhecvel e a ignorncia do ignorante. Qualquer

    distncia uma questo de acaso. Cada ato intelectual entrelaa um

    fio casual entre uma forma de ignorncia e uma forma de

    conhecimento. Nenhum tipo de hierarquia social pode se firmar nestesenso de distncia.

    Qual a relevncia desta histria quanto questo do

    espectador? Os dramaturgos de hoje em dia no querem explicar

    sua platia a verdade a respeito das relaes sociais e os melhores

    meios para acabar com a dominao. Mas no suficiente que se

    percam as iluses. Pelo contrrio, a perda das iluses muitas vezesleva o dramaturgo ou os atores a aumentar a presso sobre o

    espectador: talvez ele venha a saber o que deve ser feito, se ele

    mudar a partir do espetculo, se ele se destacar da sua atitude

    passiva e se a cena fizer dele um participante ativo no mundo

    pblico. Este o primeiro ponto que os reformadores do teatro

    compartilham com os pedagogos do embrutecimento: a idia da

    lacuna entre duas posies. Mesmo quando o dramaturgo ou o atorno sabe o que ele quer que o espectador faa, pelo menos ele sabe

    que o espectador tem que fazer alguma coisa: trocar a passividade

    pela atividade.

    Mas por que no virar as coisas ao contrrio? Por que no

    pensar, neste caso tambm, que exatamente este esforo para

    suprimir a distncia que constitui a prpria distncia? Por queidentificar o fato de uma pessoa estar sentada, imvel, com

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    inatividade, se no pela pressuposio de uma lacuna radical entre

    atividade e inatividade? Por que identificar "olhar" com "passividade",

    se no pela pressuposio de que olhar significa olhar para uma

    imagem ou para uma aparncia e isso significa estar separado darealidade que est sempre atrs da imagem? Por que identificar o ato

    de ouvir com ser passivo, se no pela pressuposio de que agir o

    oposto de falar, etc.? Todas estas oposies - olhar/saber; olhar/agir;

    aparncia/realidade; atividade/passividade - so muito mais que

    oposies lgicas. Elas so o que eu chamo de partilha do sensvel,

    uma distribuio de lugares e de capacidades ou incapacidades

    vinculadas a estes lugares. Em outros termos, so alegorias dadesigualdade. por isso que voc pode mudar os valores dados para

    cada posio sem mudar o significado das prprias oposies. Por

    exemplo, voc pode trocar a posio do superior e do inferior. O

    espectador geralmente desmerecido porque ele no faz nada,

    enquanto os atores no palco - ou os operrios l fora - fazem alguma

    coisa com seus corpos. Mas fcil inverter a questo afirmando que

    aqueles que agem, aqueles que trabalham com seus corpos, so

    obviamente inferiores queles que so capazes de olhar - isto ,

    aqueles que conseguem contemplar idias, prever o futuro, ou ter

    uma viso global do mundo. As posies podem ser trocadas, mas a

    estrutura continua a mesma. O que conta, na verdade, apenas a

    afirmao da oposio entre duas categorias: existe uma populao

    que no pode fazer o que a outra populao faz. Existe capacidade de

    um lado e incapacidade de outro.

    A emancipao parte do princpio oposto, o princpio da

    igualdade. Ela comea quando dispensamos a oposio entre olhar e

    agir e entendemos que a distribuio do prprio visvel faz parte da

    configurao de dominao e sujeio. Ela comea quando nos damos

    conta de que olhar tambm uma ao que confirma ou modifica tal

    distribuio, e que "interpretar o mundo" j uma forma de

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    transform-lo, de reconfigur-lo. O espectador ativo, assim como o

    aluno ou o cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele

    interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas

    que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaos. Elefaz o seu poema com o poema que feito diante dele. Ele participa

    do espetculo se for capaz de contar a sua prpria histria a respeito

    da histria que est diante dele. Ou se for capaz de desfazer o

    espetculo - por exemplo, negar a energia corporal que deve

    transmitir o aqui e agora e transform-la em mera imagem, ao

    conect-la com algo que leu num livro ou sonhou, viveu ou imaginou.

    Estes so observadores e intrpretes distantes daquilo que seapresenta diante deles. Eles prestam ateno ao espetculo na

    medida da sua distncia.

    Este o segundo ponto-chave: os espectadores vem, sentem

    e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o

    poeta o fez, como os atores, danarinos ou performers o fizeram. O

    dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem estesentimento, entendessem esta lio a partir do que eles vem, e que

    partam para esta ao em conseqncia do que viram, sentiram ou

    entenderam. Ele parte do mesmo pressuposto que o mestre

    embrutecedor: o pressuposto de uma transmisso igual, no-

    distorcida. O mestre pressupe que aquilo que o aluno aprende

    precisamente o que ele ensina. Esta a noo de transmisso do

    mestre: existe algo de um lado, em uma mente ou em um corpo -um conhecimento, uma capacidade, uma energia - que deve ser

    transferido para o outro lado, para outro corpo ou mente. A

    pressuposio que o processo de aprendizado no simplesmente

    o efeito de sua causa - ensinar - mas a transmisso mesma da causa:

    o que o aluno estuda o conhecimento do mestre. Esta identidade

    entre causa e efeito o princpio do embrutecimento. Em

    contrapartida, o princpio da emancipao a dissociao entre causa

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    e efeito. O paradoxo do mestre ignorante est a. O aluno do mestre

    ignorante aprende o que o mestre no sabe, j que o mestre fala

    para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu

    no caminho, enquanto o mestre verifica se ele est realmenteprocurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do

    ensinamento do mestre. Mas ele no aprende o conhecimento do

    mestre.

    O dramaturgo e o ator no querem "ensinar" nada. De fato,

    eles esto mais que cautelosos hoje em dia quanto a usar o palco

    como um meio de ensino. Eles apenas querem proporcionar um

    estado de ateno ou uma fora de sentimento ou ao. Mas eles

    ainda supem que aquilo que vai ser sentido ou entendido ser o que

    eles colocaram no prprio roteiro ou performance. Eles pressupem a

    igualdade - ou seja, a homogeneidade - entre causa e efeito. Como

    sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigualdade. Ela se

    baseia no pressuposto de que h um conhecimento adequado e uma

    prtica adequada no que diz respeito "distncia" e s formas desuprimi-la. Agora, a distncia toma duas formas. H a distncia entre

    o ator e o espectador. Mas h tambm a distncia inerente prpria

    performance, visto que ela um "espetculo" meditico que se

    encontra entre a idia do artista e o sentimento ou a interpretao do

    espectador. Este espetculo um terceiro termo, a que os outros

    dois podem se referir, mas que impede qualquer forma de

    transmisso "igual" ou "no-distorcida". uma mediao entre eles eesta mediao de um terceiro termo crucial no processo de

    emancipao intelectual. Para evitar o embrutecimento preciso que

    exista algo entre o mestre e o aluno. A mesma coisa que os conecta

    deve tambm separ-los. Jacotot colocou o livro como o algo que fica

    no meio. O livro a coisa material, exterior tanto ao mestre quanto

    ao aluno, atravs do qual possvel verificar o que o aluno viu, o que

    ele disse a respeito, o que ele pensa sobre o que disse.

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    Isto significa que o paradigma da emancipao intelectual

    nitidamente oposto outra idia de emancipao na qual a reforma

    do teatro tem sido freqentemente baseada - a idia de emancipao

    como a reapropriao de um eu que fora perdido num processo deseparao. A crtica Debordiana do espetculo ainda se baseia no

    pensamento Feuerbachiano da representao como alienao do eu:

    o ser humano se separa da sua prpria essncia ao forjar um mundo

    celestial ao qual o mundo real dos homens est submetido. Do

    mesmo modo, a essncia da atividade humana distanciada,

    alienada de ns na exterioridade do espetculo. A mediao do

    "terceiro termo" aparece ento como a instncia da separao,expropriao e traio. Uma idia de teatro firmado na idia do

    espetculo concebe a externalidade do palco como um tipo de estado

    transitrio que tem que ser abolido. A supresso desta exterioridade

    se torna, assim, o telos da performance. Este programa demanda que

    os espectadores estejam no palco e os atores na platia. Ele

    demanda que a prpria diferena entre os dois espaos seja abolida,

    que a performance acontea em qualquer lugar que no seja um

    teatro. Certamente, muitos avanos da cena teatral resultaram desta

    derrubada da distribuio tradicional de lugares (no sentido dos locais

    e dos papis). Mas a "redistribuio" de lugares uma coisa; a

    demanda de que o teatro alcance, como sua essncia, a reunio de

    uma comunidade una outra. A primeira provoca a inveno de

    novas formas de aventura intelectual; a segunda provoca uma nova

    forma de distribuio platnica dos corpos em seus prprios lugares -

    ou seja, em seu lugar "comum".

    Esse pressuposto contra a mediao est conectado a um

    terceiro, o pressuposto de que a essncia do teatro a essncia da

    comunidade. O espectador tem que se redimir quando deixa de ser

    um indivduo, quando reintegrado no status de membro de uma

    comunidade, quando ele arrebatado no fluxo da energia coletiva ou

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    levado posio de cidado que age enquanto membro do coletivo.

    Quanto menos o dramaturgo souber o que os espectadores devem

    fazer enquanto coletivo, mais ele sabe que eles devem se tornar um

    coletivo, que eles devem transformar sua mera aglomerao nacomunidade que eles virtualmente so. J tempo, eu acho, de

    questionar a idia do teatro como um lugar especificamente

    comunitrio. Espera-se que ele seja tal lugar porque, no palco, corpos

    vivos e reais atuam para pessoas que esto fisicamente presentes e

    juntas no mesmo lugar. Desta forma, espera-se que ele proporcione

    uma sensao nica de comunidade, radicalmente distinta da

    situao do indivduo assistindo televiso, ou das pessoas que vo aocinema, que se sentam diante de imagens desencarnadas,

    projetadas. Por incrvel que parea, o amplo uso de imagens de todos

    os tipos de meios na cena teatral no colocou este pressuposto em

    questo. As imagens podem substituir os corpos vivos na cena, mas

    enquanto os espectadores estiverem unidos ali, a essncia viva e

    comunitria do teatro parece estar a salvo. Assim, parece impossvel

    escapar da questo: o que acontece especificamente entre

    espectadores num teatro que no acontece em outro lugar? Existe

    algo mais interativo, mais comunitrio, que acontece entre eles do

    que entre indivduos que assistem o mesmo programa na TV ao

    mesmo tempo?

    Acho que esse "algo" no nada alm do pressuposto de que o

    teatro comunitrio em si e por si mesmo. A pressuposio do que o"teatro" significa sempre corre na frente da cena e prediz seus efeitos

    reais. Mas, num teatro, ou diante de um espetculo, assim como num

    museu, numa escola, ou na rua, existem apenas indivduos, abrindo

    seu prprio caminho atravs da floresta de palavras e coisas que se

    colocam diante deles ou em volta deles. O poder coletivo comum a

    estes espectadores no o status de membro de um corpo coletivo.

    E tambm no um tipo peculiar de interatividade. o poder de

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    traduzir do seu prprio modo aquilo que eles esto vendo. o poder

    de conectar o que vem com a aventura intelectual que faz com que

    qualquer um seja parecido com qualquer outro, desde que o caminho

    dele ou dela no se parea com o de mais ningum. O poder comum o poder da igualdade de inteligncias. Este poder une os indivduos

    na mesma medida em que os mantm separados uns dos outros; o

    poder que cada um de ns possui na mesma proporo para abrirmos

    nosso prprio caminho no mundo. O que tem que ser colocado

    prova pelas nossas performances - seja ensinar ou atuar, falar,

    escrever, fazer arte, etc. - no a capacidade de agregao de um

    coletivo, mas a capacidade do annimo, a capacidade que fazqualquer um igual a todo mundo. Esta capacidade atravessa

    distncias imprevisveis e irredutveis. Ela atravessa um jogo

    imprevisvel e irredutvel de associaes e dissociaes.

    Associar e dissociar em vez de ser o meio privilegiado que

    transmite o conhecimento ou a energia que torna as pessoas ativas -

    isto sim poderia ser o princpio de uma "emancipao do espectador",o que significa a emancipao de qualquer um de ns como

    espectador. A condio do espectador no uma passividade que

    deve ser transformada em atividade. nossa situao normal. Ns

    aprendemos e ensinamos, atuamos e sabemos, como espectadores

    que ligam o que vem com o que j viram e relataram, fizeram e

    sonharam. No existe meio privilegiado, assim como no existe um

    ponto de partida privilegiado. Em todos os lugares h pontos departida e pontos de virada a partir dos quais aprendemos coisas

    novas, se dispensarmos primeiramente o pressuposto da distncia,

    depois, o da distribuio de papis e, em terceiro, o das fronteiras

    entre os territrios. Ns no precisamos transformar espectadores em

    atores. Ns precisamos reconhecer que cada espectador j um

    ator em sua prpria histria e que cada ator , por sua vez,

    espectador do mesmo tipo de histria. No precisamos transformar o

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    ignorante em instrudo ou, por mera vontade de subverter coisas,

    fazer do aluno ou da pessoa ignorante o mestre dos seus mestres.

    Deixe-me fazer um pequeno desvio atravs da minha prpria

    experincia poltica e acadmica. Eu perteno a uma gerao que

    ficou suspensa entre duas perspectivas que competiam entre si: de

    acordo com a primeira, aqueles que possuam a inteligncia do

    sistema social deveriam passar este aprendizado para aqueles que

    sofriam sob este sistema, para que estes ento passassem a agir

    para derrub-lo. De acordo com a segunda, as pessoas supostamente

    instrudas eram na verdade ignorantes: como eles no sabiam nada

    sobre o que era explorao e rebelio, eles tinham que se tornar

    alunos dos trabalhadores ditos ignorantes. Portanto, eu primeiro

    tentei re-elaborar a teoria marxista para tornar suas armas tericas

    disponveis para um novo movimento revolucionrio, antes de sair

    para aprender com aqueles que trabalhavam nas fbricas o que

    significava explorao e rebelio. Para mim, assim como para muitas

    outras pessoas da minha gerao, nenhuma destas tentativas seprovou muito bem-sucedida. Foi por isso que eu decidi investigar a

    histria do movimento operrio, para entender os motivos do

    desencontro contnuo entre os trabalhadores e os intelectuais que os

    visitavam, fosse para instru-los ou para serem instrudos por eles. Eu

    tive sorte ao descobrir que esta relao no era uma questo de

    conhecimento de um lado e ignorncia de outro, e tampouco era uma

    questo de saber versus agir ou de individualidade versuscomunidade. Num dia de maio nos anos 1970, enquanto eu

    pesquisava a correspondncia de um operrio dos anos 1830 para

    determinar o que fora a condio e a conscincia dos trabalhadores

    naquela poca, eu descobri algo bem diferente: as aventuras de dois

    visitantes, tambm num dia de maio, mas uns cento e quarenta anos

    antes que eu me deparasse com suas cartas nos arquivos. Um dos

    dois correspondentes tinha acabado de entrar para a utpica

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    comunidade dos Saint-simonistas e ele recontava a um amigo o seu

    cronograma dirio na utopia: trabalho, exerccios, jogos, canto e

    estrias. Seu amigo respondeu escrevendo sobre uma viagem que ele

    tinha feito com outros dois trabalhadores para aproveitar o domingode lazer. Mas no se tratava do lazer corriqueiro de domingo em que

    o trabalhador procura recuperar suas foras fsicas e mentais para a

    prxima semana de trabalho. Era, na verdade, uma ruptura para

    outra forma de lazer - a de estetas que desfrutam de formas, luzes e

    sombras da natureza, a de filsofos que passam o tempo trocando

    hipteses metafsicas numa pousada no campo e a de apstolos que

    saem para comunicar sua f aos companheiros ocasionais queencontram ao longo do caminho.

    Aqueles trabalhadores que deveriam ter me fornecido

    informao sobre as condies de trabalho e formas de

    conscientizao de classe nos anos 1830 me deram, no lugar disso,

    algo muito diferente: uma noo de semelhana ou igualdade. Eles

    tambm eram espectadores e visitantes, dentro da prpria classe.Sua atividade como propagandistas no podia ser separada da sua

    "passividade" como meros transeuntes ou contempladores. A crnica

    do seu lazer provocou uma reconfigurao da relao mesma entre

    fazer, ver e dizer. Tornando-se "espectadores", eles subverteram a

    dada partilha do sensvel, que diz que aqueles que trabalham no

    tm tempo livre para passear e olhar ao acaso, que os membros de

    um corpo coletivo no tm tempo de se tornar indivduos. isso queemancipao significa: o embaamento da oposio entre aqueles

    que olham e aqueles que agem, entre os que so indivduos e os que

    so membros de um corpo coletivo. O que aqueles dias

    proporcionaram aos nossos cronistas no foi conhecimento e energia

    para uma ao futura. Foi a reconfigurao hic et nunc da distribuio

    de Tempo e Espao. A emancipao dos trabalhadores no dizia

    respeito a adquirir o conhecimento da sua condio. Tratava-se de

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    configurar um tempo e um espao que invalidasse a velha partilha do

    sensvel que condenava os trabalhadores a no fazer nada com as

    suas noites alm de restaurar suas foras para trabalhar no dia

    seguinte.

    Compreender o sentido desta quebra no corao do tempo

    tambm significava colocar em jogo outro tipo de conhecimento, que

    no baseado no pressuposto de qualquer diferena, mas no

    pressuposto da semelhana. Estes homens, tambm, eram

    intelectuais - como qualquer pessoa . Eles eram visitantes e

    espectadores, assim como o pesquisador que, cento e quarenta anos

    depois, leria suas cartas numa biblioteca, assim como os que visitam

    a teoria marxista ou que esto aos portes de uma fbrica. No

    existia distncia a vencer entre intelectuais e trabalhadores, atores e

    espectadores; no existia distncia entre duas populaes, duas

    situaes ou duas pocas. Pelo contrrio, havia uma semelhana a

    ser reconhecida e colocada em jogo na prpria produo de

    conhecimento. Colocar isso em jogo significava duas coisas. Primeiro,significava rejeitar as fronteiras entre disciplinas. Contar a

    histria/estria dos dias e noites destes trabalhadores me forou a

    embaar os limites entre o campo da histria "emprica" e o campo

    da filosofia "pura". A histria que estes trabalhadores contaram era

    sobre o tempo, sobre a perda e a re-apropriao do tempo. Para

    mostrar o que isso significava, eu tive que colocar o relato deles em

    relao direta com o discurso terico do filsofo que, muito tempoatrs na Repblica, contou a mesma histria ao explicar que, em uma

    comunidade bem organizada, todo mundo deve fazer uma coisa s,

    que ele ou ela deve cuidar da prpria vida, e que os trabalhadores em

    todo caso no tinham tempo para gastar em nenhum outro lugar que

    no fosse o prprio local de trabalho ou para fazer qualquer outra

    coisa que no fosse o trabalho que se encaixava na (in)capacidade

    com a qual a natureza os dotara. A filosofia, ento, no podia se

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    apresentar como esfera do pensamento puro separada da esfera dos

    fatos empricos. E tambm no era a interpretao terica daqueles

    fatos. No havia fatos nem interpretaes. Havia duas formas de

    contar histrias.

    Embaar as fronteiras entre disciplinas tericas tambm

    significava embaar a hierarquia entre os nveis de discurso, entre a

    narrao de uma histria e sua explicao filosfica ou cientfica ou a

    verdade que est por trs ou por baixo dela. No havia metadiscurso

    explicando a verdade de um discurso de nvel inferior. O que tinha

    que ser feito era um trabalho de traduo, mostrando como histrias

    empricas e discursos filosficos se traduziam mutuamente. Produzir

    um novo conhecimento significava inventar a forma idiomtica que

    tornaria a traduo possvel. Eu tive que usar esse idioma para contar

    a minha prpria aventura intelectual, sob o risco de que o idioma

    permanecesse "ilegvel" para aqueles que queriam saber qual era a

    causa da histria, seu verdadeiro significado, ou a lio que se

    poderia tirar dela e que desencadearia uma ao. Eu tive queproduzir um discurso que fosse legvel apenas para aqueles que

    fariam sua prpria traduo a partir do ponto de vista da sua prpria

    aventura.

    Este desvio pessoal pode nos levar de volta ao cerne do nosso

    problema. Estas questes que envolvem o ultrapassamento de

    fronteiras e o embaamento da distribuio de papis socaractersticas que definem o teatro e a arte contempornea hoje,

    quando todas as habilidades artsticas se desviam do prprio campo e

    trocam de lugar e de poderes com todas as outras. Temos peas sem

    palavras e dana com palavras; instalaes e performances no lugar

    de obras "plsticas"; projees de vdeos transformadas em ciclos de

    afrescos; fotografias transformadas em quadros vivos e pinturas

    histricas; escultura que se transforma em show meditico; etc.Agora, existem trs formas de entender e praticar esta confuso de

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    gneros. Existe o renascimento da Gesamtkusntwerk, que se

    presume ser a apoteose da arte como uma forma de vida, mas que

    se prova, pelo contrrio, como a apoteose de fortes egos artsticos ou

    um tipo de consumismo hiperativo, seno as duas coisas ao mesmotempo. H a idia de uma "hibridizao" dos meios da arte, que

    complementa a viso da nossa poca como uma poca de

    individualismo de massa que se expressa atravs de trocas

    incansveis de papis e identidades, realidade e virtualidade, vida e

    prteses mecnicas, e assim por diante. Do meu ponto de vista, esta

    segunda interpretao nos leva em ltima anlise para o mesmo

    lugar da primeira - para outro tipo de consumismo hiperativo, outrotipo de embrutecimento, na medida em que efetua o atravessamento

    das fronteiras e a confuso de papis meramente como uma forma

    de aumentar o poder do espetculo sem questionar seus

    fundamentos.

    A terceira forma - a melhor forma do meu ponto de vista - no

    tem como objetivo a amplificao do efeito, mas a transformao doprprio esquema causa/efeito, com a rejeio do conjunto de

    oposies que sustenta o processo de embrutecimento. Ela invalida a

    oposio entre atividade e passividade assim como o esquema de

    "transmisso igual" e a idia comunitria de teatro que na verdade

    faz dele uma alegoria da desigualdade. O atravessamento das

    fronteiras e a confuso de papis no deveriam levar a uma espcie

    de "hiperteatro", transformando a condio (passiva) do espectadorem atividade ao transformar a representao em presena. Pelo

    contrrio, o teatro deveria questionar o privilgio da presena viva e

    trazer o palco novamente para um nvel de igualdade com o ato de

    contar uma histria ou de escrever e ler um livro. Ele deveria ser a

    instituio de um novo estgio de igualdade, onde os diferentes tipos

    de espetculo se traduziriam uns nos outros. Em todos estes

    espetculos, na verdade, a questo deveria ser ligar o que uma

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    pessoa sabe com o que ela no sabe; deveria se tratar, ao mesmo

    tempo, de atores que apresentam suas habilidades e espectadores

    que esto tentando encontrar o que aquelas habilidades poderiam

    produzir em um novo contexto, entre pessoas desconhecidas.Artistas, como pesquisadores, constroem o palco onde a

    manifestao e o efeito das suas habilidades se tornam dbios na

    medida em que eles moldam a histria de uma nova aventura em um

    novo idioma. O efeito do idioma no pode ser antecipado. Ele

    demanda espectadores que so interpretadores ativos, que oferecem

    suas prprias tradues, que se apropriam da histria para eles

    mesmos e que, finalmente, fazem a sua prpria histria a partirdaquela. Uma comunidade emancipada , na verdade, uma

    comunidade de contadores de histria e tradutores.

    Eu tenho conscincia de que tudo isso deve soar como palavras,

    meras palavras. Mas eu no levaria isto como um insulto. Ouvimos

    tantos oradores passarem suas palavras adiante como algo mais que

    palavras, como senhas que nos habilitariam a entrar em uma novavida. Vimos tantos espetculos que se gabavam por no serem meros

    espetculos, mas cerimoniais de uma comunidade. Mesmo hoje em

    dia, apesar do chamado ceticismo ps-moderno quanto a mudar

    nossa forma de viver, pode-se ver tantos shows que posam como

    mistrios religiosos que talvez no seja to escandaloso ouvir, para

    variar, que palavras so apenas palavras. Romper com os fantasmas

    da Palavra transformada em carne e do espectador transformado emator, saber que palavras so apenas palavras e que espetculos so

    apenas espetculos talvez nos ajude a entender melhor como

    palavras, histrias e espetculos podem nos ajudar a mudar alguma

    coisa no mundo em que vivemos.