aquilino ribeiro - filhas de babilonia
TRANSCRIPT
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FILHAS DE
BABILNIA
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7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
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DO
AUTOR
Na
Livraria
Aillaud
c
Bcrtrand
Jardim
das
Tormentas, contos.
A
Via
Sinuosa,
romance
*^t^f*^^AH
.
Terras do
Demo, romance
2.*
ed.
Filhas
de
Babilnia
y
novelas.
NO
PRELO
Kstrada de
S.
Tiago,
contos.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
7/375
A
AQUILINO
RIBEIRO
FILHAS
DE
BABILNIA
NOVELAS
*-fc
^^
Jk91
fv^
i
v^v^-
LTraras
illaud e
Bertra&d
PARIS-LISDOA
LivRARU
Chardroh I
Livraria
Frahcisco
Altes
Porto
I
Rio
de
Janeiro
1920
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
8/375
'967
Todos
os
exemplares
vo
rubricados
pelo
autor.
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JOO
DE
BARROS
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t
Parte
doeste
livro
escrevia-a
ha
anos
em
Paris,
a
Babilnia,
cuja
taa
d'ouro
inebria
toda
a
terra,
como
bradava
e
brada
ainda
do
fundo
dos sculos
a
vo^
irosa
do
profeta;
a
outra parte
em
Por-
tugal,
permitindo-me
de
acrescentar
Cartilha
do
abade
de
Salamonde
a
pa-
gina
velhissima,
to comum
aos
cultos
submersos,
duma
moral
complacente
com
as leis
da
vida.
Daqui,
por
localisao e
por
alegoria,
as
Filhas
de
Babilnia.
Ao
tema
versado
no
propicia esta
hora,
to cheia
da
tilintada
de
dolars
e
gritos
de chacal
de homem
para
homem
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e de
povo
para
povo.
J Ovdio^
escriptor
que
floresceu
na
Edade d'
Ouro
fechada
aos
quatro dias
do
ms
de
agosto do
ano
da Redeno
de
igi4,
expendeu
seu
formoso
engenho
em
restaurar
Ado
e
Eva
no
Paraso.
Sendo
aqui
um seu lon-
ginquo
sequai,
confesso
o
pecado
de
no
engeitar
uma
prosa
feita,
desenfadada
de
mim
e
dos
homens
y
para
um
mundo
que
morreu,
Lisboa,
maio
de
igio.
A.
R.
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
(Caderno
dum
voluptuoso)
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Os
olhos deslumbrados
(Caderno
dum
voluptuoso)
I
Em caminho de ferro,
atravs da
ch
pasmada
de
Castela-a-
Velha.
Todas
as
tristezas
de principio de inverno,
do
en-
tardecer
e
do
deserto,
entraram para a
carruagem, tomaram
os
lugares
vazios^
penduraram-se
aos
espaldares e ao
nosso
pescoo. Quase
que
se
podem
palpar;
teem corporeidade
de
viajantas.
Ainda ouo
e
melhor
vejo
os
taman-
cos
do
chefe que na ltima estao,
de
bandeirola
no
sovaco,
as
mos
encaba-
das
nas
mangas
do tabardo
at
os coto-
velos,
deu com
a
cabea
o
sinal
de
par-
tida.
Eram
de incouras, com
testeiras
douradas, e seu belo sonido
de
matraca
-
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4
FILHAS
DE
BABILNIA
rompia
singular
por
entre
o
fragor
me-
tlico
da
manobra.
Era a
voz
de
pre-
sena
da
Espanha.
H
j
uns
bons
quilmetros
andados
e,
no
obstante,
as montanhas
do
Douro
continuam
a
mover-se
a
oeste,
roncei-
ramente.
S
o
rolar do
infinito sobre
o
infinito ter
aquela
subtil
cadncia
na
mobilidade.
L
vo
correndo
e igu-
ra-se-me
que
um corvo,
empoleirado
alm^
naquele
pinheiro
solitrio,
est
estupefacto
a
v-las
correr.
A
ns,
no,
que
conserva
o
garbo
castelhano
nem
olhar
retaguarda, nem
olhar
em
baixo.
A
plancie
c
o
trem esgalgam-se,
qual
deles mais incansvel.
Surrada
dos
ga-
dos,
com
a sarna
dos restolhos
velhos
e
da urze
a
grisalhar,
parece
que
Deus,
ali,
s semeou
cinzas.
Nem
moita,
nem
casal.
E
uma
sala
de
bailar
dos
ventos.
O
comboio
espalha
o
arfar de quem
foge
com
medo.
Se no
com
medo,
mais melanclico
que
um
heri
no
exlio,
entro para
a
-
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
D
carruagem.
Os
passageiros, que na
adua-
na
socorri
com
a
minha
scincia
das
sete
partidas,
acabaram
de
arrumar
a
complexa
bagagem.
O
pap,
de
bon
em viseira,
mos
cilhadas no
joelho,
tem
esta
fisionomia
oficiosa
do
viajante
que embala
as
horas, rilhando a
idea
da
chegada. Mesmo
mais
do
que
isso^
encontro-lhe
este
ar
de
obsesso
inte-
rior,
aparentemente
semi-desatento,
dos
enfermos
que,
entre
outros
enfermos,
aguardam
na
sala
de espera
dos
m-
dicos
a
vez de consulta.
Ela no,
vive
momento
por
momento. J
seus
olhos
estorninhos
trejeitando
na
neve
voam
sobre
mim
curiosos.
Porque so
floridos
e
grande
regalo
sentir-lhes
o
vo
sobre
ns,
baixo
a
vista,
condescen-
dente,
poiso-a sobre
o
p,
espiritual
como
um
Menino-Jesus
e
to
volup-
tuoso
que
nele
vo
espojar-se
os
cupi-
dinhos
todos do
meu
serralho.
Pouco
h
ainda,
emquanto
o
pap
me
agradecia
murmurando desta
Espa-
-
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6
FILHAS
DE
BABILNIA
nha que no
sabe
lnguas,
nem penetra
a
inteno
prxima
das
coisas, seu
sa-
pato Lus
XV
cantou na
areia
do
cais,
a
par de
minhas
botas
americanas.
Bem
sei
que
foi no
ritmo
quase
acidental
de
passeantes
que
abrem
o
passo
na
mesma
linha.
Embora,
j
marchamos
por
trilhos
combinados,
j
houve
entre ns uma re-
lao
de
simpatia,
e da
nossos sexos
tudo
entre homem e
mulher
se reduz
a
sexo
encetarem
o
jogo
da
conjuno.
Depois,
na
gare
plcida,
beira
do
pi-
quete
de
homens
que
com os
rins
em-
purrava
um
vago
devoluto, deambula-
mos silenciosos,
o
pensamento
de
cada
um
dentro
de seu
jardim.
No
meu
es-
tava
ela
resccndente
e
formosa
; no dela
talvez
eu,
um
carabineiro,
rosadas
teias
de
aranha.
Sinto
que
os olhos
dela
me
passeiam,
procuram
inteirar-sc
do
meu eu
social
pelo
halo
de
caractersticas
imateriais
que
h
cm
lodo
o homem
e
ainda
pelas
luvas,
que
calo,
cor
de
azeitona
verde,
a
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
J
gravata
adrede
desdenhada,
a
fronte
em
vasta
meia
lua,
este
geito
desarticulado
que me deu o
uso
do
florete
e
o
abuso
de
viver. Baldado
esforo,
sou
cispado
como
uma
arca nova
ou
assim
me
jul-
go.
Mas
forma
a
sua
idea
e
nunca
h
iluso
numa idea
que
nasce para
mor-
rer.
Nas
malas-artes
de seduzir
costu-
mava eu, nos bons tempos, abando-
nar-me, assim
como um
ourio
escor-
regando
lentamente
da
couraa,
no
que
havia
de especial
em
mim,
minha
lux-
ria
exaustiva, meu
orgulho,
um
enfado
benignO;
uma
emotividade
toda
orgni-
ca,
feras
domsticas
que
soltava e
en-
jaulava a prazer.
Vezes
sucedia
assom-
br-las,
o
que era
de bom
jogo
; o
as-
sombro
na
mulher
e na
guerra
o pri-
meiro
passo
da
derrota.
A
fascinar
esta
donazinha
de
p
pequennio,
nem
Belial
desejaria
ser.
Um joven cura persuasivo,
um
ingnuo colegial,
um
poeta
romn-
tico,
sim.
Vem-me
mesmo
o receio
de
que
a
assuste;
mas
no?
sinto em
nii-
-
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8
FILHAS
DE
BABILNIA
nhs
carnes
como
raios
intoldveis
dum
sol
nascente
os
raios do seu
olhar.
Desvio
dela
toda
a
suspeita
de
aten-
o,
em
contra do
instinto
marrado
nela
como
podengo
ante
caa
de altanaria.
Alheio-me,
mesmo,
e
ouo
a
msica
br-
bara
do
comboio e
nela
em
seu diab-
lico
volume
colho
uma
cano
doce,
vagabunda.
E
lembra-me
a donzela das
velhas
trovas,
sentada de
cima duma
penha
a
cantar,
emquanto
passa,
com
lusido tropel, um rico
senhor da
Biscaia.
Nas vidra^s^
bcias da
cacimba, de-
buxa-se uma flora
caprichosa.
Por
en-
tre
choupos
e
codeos
emaranhados,
consigo ver
no primeiro
plano
um
gi-
gante
de
barretina
e
perna
de
pau,
to-
cando
gaita
de
foles.
Um homnculo
dansa
e
um
urso.
Depois a
floresta
recua
at
confins
indevassveis
e
tor-
na-se
um
scenrio
mgico,
de
mil cores.
Vejo as
magnlias
de
grandes flores
brancas,
embocadas
como
sinos
de ca-
tedral,
as
olaias
cobertas
de lgrimas
cor
-
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
9
de
vinho
loreno,
laranjais
prenhes
de fru-
tos
maduros.
Minha retina
uma
feiti-
ceira
;
a
abundncia
enfada-me e
tudo
se
esvai como
as riquezas de
Pedro
Cem.
Da
alucinao tica,
descaio
no
jogo
mecnico,
racional,
do
que
h
mais
acti-
vo
em
mim
que
o crebro.
Vou
subme-
tendo
a
cabine
a
clculos
aritmticos.
O
teto
compe-se
de
vinte
e
seis
ripas
ou
vinte
e sete, cmputo feito duma
emenda.
No
ostenta
em
seu
verniz
lu-
zidio
bosques
miraculosos,
mas,
a
um
canto,
uma
mscara de
histrio
depa-
ra-se-me.
Os olhos
so
duas dedadas
de
lampeanista,
a boca uma
junta que
arre-
ganhou
com
um
provvel
descarrila-
mento.
Um.
. . dois.
.
. trs
letreiros.
.
.
trinta
e quatro letras.
A
mnemnica
desta
cifra seria os
trinta dinheiros
de
Judas
mais
os
quatro
evangelistas;
ou
os
nmeros
da
harmonia perfeita,
vene-
rados
dos
pitagricos,
8-4;
muitas
at
a
obssesso. L
ouo, outra
vez,
na
sinfonia
raivosa
do
ao,
a
terna
cantiga
-
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IO
FILHAS
DE
BABILNIA
errante.
Parece
um
hino
flbil a
algum
que
est
longe.
As
malas
dos
viajantes
teem
argolas,
em
que
o
coiro
mareou
com
o
suor das
mos,
cravadas
com
seis
pregos
cada
uma.
A
mais rotunda e
baldeada ostenta
o
rtulo de Coimbra.
.
. Coimbra,
uma
estreloiada
de
cimbalos,
a
Antnia
que
me
conjurava na hora
intima
a
dar-lhe
mordicadas
nos
braos
.
.
.
Onde eu
vou
Uma
das
malas
tecn
a
housse
ponteada
a
vermelho,
quando
a
cr
de
aafro.
Por
baixo,
o
cabedal
est
gasto. As
hous-
ses
foram
renovadas
e
falam baixinho
de
mediania
que
tem
vergonha de se
mostrar.
Plntre elas
vai
amolentada
uma
condecinha
em trana de
vermelho,
branco
e
verde. Talvez
a tecesse um pe-
nitencirio
. .
. um
honrado
cesteiro.
Que
me
importa? Dentro
viajar
o
necess-
rio,
toalha
de
mos,
lencinhos
de assoar,
calas
dela
que
trasbordaram
das
ma-
las.
jL
com
as
calas
deixaria arrancar
o
corao
e
fech-lo dentro,
o
libidinoso
-
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os OLHOS DESLUMBRADOS
I
l
Reflectindo
que seria
louca
presuno
supor
que
os
olhos
dela me passeiem
ainda,
considero que
na
cretone
do
en-
costo,
por detrs
do
pap^
h
uma
quei-
madura de cigarro ou de
charuto,
e
vem-me
o
apetite
de
fumar.
Ainda
saco
da
cigarreira,
mas
no
me decido,
teria
de
pedir-lhe
licena, interromper
com
uma vnia
banal
a
tecitura
misteriosa
da rede
que a seus
sentidos
meus
senti-
dos
vo
lanando.
Volto
a
doidejar
com
o
pezinho que, inadvertido
ou
inocente,
na perna
cruzada,
se
mostra
to
diabo-
licamente tentador. Deve ser
um
p
de
neve
com
unhas
cr
de rosa e veias
de
azul
diludo
em
leite.
E
um
p
que
anda
alto,
duas polegadas
acima
da terra,
e
d
a
seu torso
a
quebradura de
Niobe
espavorida.
Os
felinos inflectem
assim
no
salto.
E
a
linha incidente
da queda.
Este
taco
mavioso
apareceu
tarde.
Mediante
ele, a mulher
teria
ganho
a
batalha
da
Idade-Mdia
entre
as diabruras do
cs~
prito
e
a
divindade
da
carne.
-
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12
FILHAS
DE
BABILNIA
O
p
dela
rechonchudinho
sem
de-
mais;
cabe
na cova
da
mo;
quase
o
cobre
um
beijo.
Se
fosse
a
minha
amante,
os
seus
pantufos, ao desnudar
do
corpo,
bem
sei
quais
seriam.
.
.
as minhas mos
trmulas.
Fatigo-me de
divagar.
Meus
olhos
correm,
afinal,
afoitos
a buscar
os
seus
que
fogem. A volpia
de
v-la,
ao
me-
nos, no
mo
pode
ela
tolher. Visual-
mente
minha
;
sua
pele,
sua
cor,
seu
modelado,
seu
talhe,
ho-de
percorr-los
estes que
a
terra
ha-de
tragar,
to
real
e perfeitamente
como
estando
em
meus
braos.
uma posse e, nela, queira
que
no
queira,
perder
um
pouco
de
sua
capitosa pureza.
No
sei
bem se
mulher
se
criana.
Tem
a
estatura daquela
e
a
expresso
j
desta.
Mas
no
vale
a
pena
rebusca
.Mais
tenro que
ela,
para
divino
gozo,
arrebatou
a
guia
a
Ganimedes.
No
me
lembro bem
cm
quem desfrutei aquela
linha
substantiva,
to
sensual.
Em
An-
-
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
l3
gela'
no,
que
era
uma
trgica.
Tam-
pouco em Mina
que
caa
no
espasmo
an-
glico
dum
querubim
adormecido.
Elsa
range
os dentes
e
solua. Ah I
Agora
me
recorda,
o
rictits
de
Marta, la
petite
alsacienne
au
cinema.
Dizia-me
Tu
m'-
branles
comme
un
]prunier
Eu
aba-
nava-te, tu
sacudias-me
at
as razes
imprescrutveis
da
minha vida, enterra-
das
pelas
campas na
poeira
de
meus
avs,
os
mais
remotos.
A feio
mulheril desta, imvel,
a
de Marta. Transportada,
deve
executar
aquela mesma
pantomima do
deleite
onde
nascia
e
morria
todo
o
geito har-
monioso
de
formao
e
consumpo.
Marta,
porem,
dava-se por
natureza^
sem medida
;
esta
diz-mo sua boca
voluntria
deve pr
uma louca orde-
nao
no
amar.
Seu
grau de
feminilidade,
quase to
vago como
sua identidade,
escapa-me.
O vestido, curto
por moda,
esconde-me
a
sazo em
que
vai
levada.
Traja sim-
-
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14
FILHAS
DE
BABILNIA
pies,
mas com
graa; a
mantinilha
lils,
rolada na
cabea
maneira de
turbante,
assenta-
lhe
sobre o
rosto, mescla
de ce-
reja,
vinho
velho
e
leite,
a
matar.
Ser,
no
ser,
uma
virgem
sem histria,
ou
para
no
ter
histria,
nos
horizontes
dum
honesto burgus,
comerciante, bu-
rocrata,
professor,
marido
a
catar
as
espinhas
da
testa
nos
primeiros
meses
de
noivado.
Tambm
no
identifico
o
pap.
No
denota
luxo,
mas
avisado
o
corte
do
vesturio.
Pedra na
gravata, botes
de
oiro
falam
de muita gente.
Traz pra
passa-piolho,
bem
cuidada, mas
sem
o
quid
mefistoflico
que
d
este
acessrio,
e
dai
intil
como
o
queixo
varrido.
Olhar
lento
a
mover-se,
abdmen es-
correito,
mos muito
brancas e
assea-
das,
mas
um
asseado
quase
de
mani-
curo ou
de
quem
dispe
de tempo
para
se enlevar em
seu
amanho,
nervosas
mas
sem
o
empalme
que
d
o
volante,
seguras
mas
sem
a presa
que
d
o
ouro,
-
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os OLHOS
DESLUMBRADOS
l5
no
est
ali
banqueiro
nem
capitalista,
nem
senhor de roa. Menos um
prn-
cipe.
Aquelas
muitas
malas
falam
de
mediocracia.
Ela,
sim, podia
ser
uma
princesinha, se
no trasse
j
no olhar
a
sensibilidade
pelo
mundo
de
quem
se
sente
baldeada
nele.
Agora reparo,
a
fisionomia
do
pap
ressuma
bondade, um
como doce
lua-
ceiro de
convalescente.
Palpita-me
ali
um
homem
de
profisso liberal, incom-
preendido
ou incompetente^
que
no
soube
vencer.
Esta
idea irrita-me,
fi-
ca-me
a
martelar
no
crebro,
longo es-
pao.
Procuro-lhe
uma
categoria idnea,
alta,
por
simpatia
com
ela, mas no
a
acho.
Nem
a
de gramtico
lhe vai.
Anoiteceu; a
carruagem fica
isolada
do
comboio
e
do
mundo. Consigo fur-
tar-me
idea
mortificante
daquele
ano-
nimato.
Entrego-me
a
ela
e,
sujeito,
meu
pensamento
como
gua
de
re-
presa em que
a
divina
adolescente
se
banha.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
28/375
II
Muitas
estaes, muitas lguas
do-
baram
j
e
nada
ma
roubou
ou
nada
me
roubou a
ela. Quatro
pessoas
insta-
laram-se
na
carruagem,
mas
breve
as
anulei,
lhes risquei
toda
a
existncia
do
livro
dos vivos
e dos mortos.
Em
face,
duas velhas
donas carregadas de
anos
minha
ilharga,
uma
mulheraa loira,
nutrida,
to
rente
a
mim
que
s,
por
torso,
pude
aperceber-me
de
seu
sem-
blante farfalhudo.
Mais
ao largo
um
cura
scismava
.
.
. scismava
com
o
bispo,
as
ementas
de suas
ovelhas, ou um
doce
pecado
de
joven confessada.
Pela
apa-
rncia
de
muito equilbrio, nem
asctica
nem
frageira,
comodamente
abstra
dele.
Tambm,
sem
esforo,
lancei
fora
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
29/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
I7
do
entendimento s
aafatas
tristes.
Os-
tentava
uma dente
de
oiro e, luzente,
sua poalha
era
menos
viva
que
a
chama
piedosa que se lhe
desprendia
da fronte,
a
meio
dos
bands
esfipados como
asa
de
corvacha
j
caduca.
Uma
e
outra
pa-
reciam-se
com as
imagens
xilografadas,
em
velho papel;
que,
nas
galerias,
se
mostram esmorescentes por
trs dum
vidro
empoeirado.
E
passei.
Viajo s
com
ela,
e
esta
carruagem,
articulada de ao,
uma
discreta
liteira
bamboando sobre as
sogas
de
duas
mu-
las
forantes.
Seus
lbios
de
tanto
me
beijar
mostram
os
agravos
das
camlias
sequiosas.
Eu vou
quebrado
dos
rins,
mas meus
espritos
rejuvenescem
a
cada
mirada que
lhe
lano.
Ao
longe,
fraldeja
o
coruto
branco
dum
campanrio rural.
Vamos
em
chouto
medido
pela
estrada
soalheira
e,
andando,
andando, campo-
neses
soltam
a
salvao, desbarretando
a
figura
velazquenha.
domingo,
o
prior
rezou a missa,
casou
uns noivos,
bate
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
30/375
l8
FILHAS
DE
BABILNIA
no
largo
um
fandango, ao
som do
pan-
deiro
infernal. Do
balco
da
pousada,
rescendente
de cravos,
debruamo-nos
ambos
par
a
par.
As
cores, as danas
e
o
sol
estuam,
a
alma
ibrica,
feita de
sangue
e
de
amor^
sobe
at
nossas
almas
e
bebemos
vinhos
rubros, e
nossas
bocas
do
mil
beijos
e
nossos
braos
mil
abra-
os. A
eternidade
suspendeu-se
em
ns.
Assim a
transporto comigo,
na bulha
dum
comboio
aceso,
repleto
de
gente,
batendo o
railhe
com
furor.
Apitos,
esta-
los
de ao,
luzes, vultos.
.
.
uma
estao.
L
entra
um
homem
em
sapatos
que
rugem,
mala
de
cr
sangrenta
em
riste.
No
dos
que
hesitam
s
portas,
mas
vai
direito
ao
lugar
com a
segurana
de
quem
sabe que
o
seu,
ah lhe
est
de
reserva
por um preestabelecimento
concatenado, vindo
do fundo dos
tem-
pos. Abanca
e,
desabotoando
o
casaco
e
palpando a
carteira,
fica
a
olhar sem
antecipao
as
damas
sorumbticas.
Aquele
sobretudo,
a
grossas
leivas ver-
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
31/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
I9
des
e
vermelhas,
cor
de
carne
podre,
irrita-me;
sua
cachaceira
sangunea
en-
furece-me.
Todo
le
assanha
a
minha
antipatia. Por
isso mesmo
no
posso
desfazer-me
dele.
E
entre
mim
e
ela
atranca-se
um
corpo,
uma
afronta,
este
inexplicvel
de
volume,
de
cor
ou
de
som
que
faz
arrancar um
bezerro
e
ga-
nir
os
perus.
No
um
peninsular,
v-se-lhe
na
pelagem do
queixo,
ruiva
e rala
como
erva de
vero
sobre
um
rochedo.
Sinto
ganas
de
lhe preguntar
quem
,
e
para
que
vem
perturbar
meu
embevecimento
de
amor.
L
compe
o
bon
de
quadra-
dinhos e
mostra
o
cciput
calvo
dentro
de
um
aro
de
mechas
brancas
como a
imagem
geomtrica
de Saturno,
o
astro
esbandulhado.
Farejo nele
um
ingls,
um
americano,
destes
que
apodrecem
de ricos
a
explorar
as
terras
pobres do
sul.
Quero que
o
seja
e
basta.
Quedo
a examin-lo
e
meu
crebro
reage
em
simultaneidade, a
perder
de
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
32/375
20
FILHAS DE
BABILNIA
vista.
A
verdade
que eu, se
no
esti-
mo,
admiro estes
cavaleiros
do pro-
gresso, eu o
prdigo volupturio
que
desbaratei a legitima
a correr mundo,
e
das
amantes bailarinas,
semimunda-
nas,
mulheres
respeitadas
podia
reunir
um
bordel copioso.
Perante
eles,
sente-se
como
que
a
potncia
avassaladora
duma
frmula
algbrica
e
sumamente
capi-
toso
v-la
ir-se desdobrando.
A
huma-
nidade
a
sua
lousa
de
operaes
e
nada
mais delirante
que
a
mo
crispada
sobre
o
mundo
fazer
girar o
mundo.
Mas,
re-
presentantes
de uma
civilizao pirata,
bruta que
calcam
em sua madracice
as
raas
da
latinidade;
ou,
emissrios
dos
pases novos,
teem
a
contundente
grosseria
e grotesco
dos
recm-vindos
civilizao.
Sob
suas
botas
fleugmti-
cas
calcam
usos,
costumes,
tendncias
despertas
ou
adormecidas,
abastardando
o
carcter,
coisa
que vale
a luz
elctrica
e
o
bifeteque
a
escorrer
sangue.
Por
isso
os
detesto.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
33/375
os OLHOS
DESLUMBRADOS
21
Eu,
criatura
amoral,
preso
a
tradio
como
um
brmane.
Sofro
de
paixes
histricas
por
uma pgina
de
arte
per-
dida
numa runa ou
num cunhal
de
ci-
dade
morta. Deleitam-me
os
velhssimos
beirais
vermelhos
povoados
de
ninhos
e os vasos
de mangerico
medrando so-
bre
o
encosto de
uma
varanda. E
nunca
faltei
com
o
salve-o Deus ao
lavrador
que, conduzindo
a
rabia do celta,
pra-
gueja
atrs
dos
bois.
Tudo
isto porque
venero nestas
frioleiras
a
procisso
in-
terminvel
dos mortos
que
me
geraram.
L
vai
o
homem
meditando, desfiando
talvez
algarismos.
A
luz,
porem,
de mi-
nhas
consideraes,
sua
personalidade
de
mero
produto quantitativo esvai-se,
e
eu
torno
suave companheira
pela posse
da
qual
daria
todas
as minas,
todo
o
ao,
todas
as
montanhas
de
dlares
das
Am-
ricas, se no
a civilizao
de
meus
avs.
Mais um arranco
vindicativo da
lati-
nidade e
acabo
de riscar de
meu
esp-
rito
a aventesma.
Concentro-me
todo
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
34/375
2 2
FILHAS
DE
BABIlNIA
nela.
S
aqui,
minha espdua,
a
dama
gorda,
sonolenta,
desvirtua
um
pouco
minha
entrega.
Nas
oscilaes
da
mar-
cha,
a
barriga de sua perna toca
ao
de
leve
minha
perna.
So
titilaes
macias,
deleitveis,
e
por
a
se
escoa
um
sopro
da
minha
voluptuosidade.
Um
quase
nada
que
no
consigo vedar,
para
me
dar
a
hipstase
absoluta
com
ela.
Mas
foro a
representao
e,
sentando-a
a
meu
lado,
no
outra,
ao
corpo
dela que meu
corpo
se encosta.
E
ondas
de
deleite sobem em
meus nervos, umas
aps outras,
clidas
e
suaves,
e
meu
c-
rebro
c
um
receptor
embriagado. Mas
o
comboio
penetra
no
torvelim duma
estao, fogos,
choques
brbaros,
rvo-
res de ferro,
discos
coloridos.
O
pre-
goeiro
clama
Salamanca
Salamanca . .
.
Comprei a,
uma vez,
um
Cristo
dulcssimo
de
Morales.
Elsa
pendurou-o
cabeceira
de
nossa
cama,
propiciatrio.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
35/375
III
o
comboio
entorpecera.
Via
decor-
rer
os minutos,
longos como
dias de
ca-
labouo,
cair
do
relgio
ventrudo
da
gare
com a
lentido peganhosa
das
gotas
meladas.
No cais, em
contra
dos vultos
erran-
tes,
s
a
luz
elctrica dava
uma
impres-
so
de presena,
da
estranha
persona-
lidade
objectiva.
Parece
que
exercia
ali
o
papel
animoso
de
preenchimento.
Contra
o
muro, caras de
mulheres
ser-
ranas
vendiam
espasmo; e, pelo asfalto
espelhento
das
chuvas,
um cura desli-
sava mais
manso
que
palmpede
preto
num
charco.
Outros
viageiros.
.
.
mas
eu
mal
me
apercebia
de
seus
vultos
gra-
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
36/375
24
FILHAS
DE
BABILNIA
ves.
Sons,
vozes
da
cantina,
era
como
se partissem do
cabo
do
mundo.
No
se
sentia
o
pulsar da
locomotiva,
o
nosso
pulsar
difuso
de
viajantes. Era
a
impon-
derabilidade.
A
sineta
tangeu
afinal,
e
entrei
em
assonncia com
o
de
fora.
A
fonda
comeou a
revessar
seu mundo,
os
mal-
teser>
de pau
e
manta
que
adoram
o
Me-
nino
nos
quadros
de
Kibera,
os
mar-
chantes
de
borla
no
sombrero^
os
cara-
bineiros
de
filhos
trela.
Uma
chica
passou a cantarolar El alma
de
Dios.
Como
lesma sobre
uma abbora,
o
pon-
teiro negro
avanava
no
mostrador
branco.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
37/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
2
5
ligncia,
pude
guiar
at
ela
provida
ban-
deja
de guas.
No
sei
o
que
murmurou,
ento, sua
voz
enleada; s lhe fixei
o
timbre, a msica
com que
desejaria
sair
os
umbrais
deste
mundo,
para
eterno
gozo
da
minha
alma.
Era
a
voz pura
de
uma criana,
destas
que, em sonhos,
ouo
a
negaciar
minha mocidade mori-
bunda.
Sou
assim monstruoso,
desperto
trago um
arraial comigo, dormindo, es-
cuto e vejo
os
parazos
que se
me
vo
fechando.
J
a
sineta
deu
o
segundo sinal
e,
no
cais,
a
turba multa ordenava-se.
Os
sacos
de
chita
tinham
subido
os
estri-
bos
sujos das terceiras;
um harmnio
chorava. Menino
de
coro,
seminarista,
um
mocinho dirigiu-se
muito desenga-
nado ao
cura
El
senor
obispo
no
viene.
O
cura
abriu os braos
na
mesura
larga
do
oratefratres
e lento,
com a sua-
vidade
oleosa
da
gente
eclesistica,
desa-
pareceu.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
38/375
20
FIHAS
DE BABILNIA
Clareara
novamente a
gare.
Perante
as
cabeas
broncas
de
adorao,
as
serranas
erguiam
um
olhar
de
lgrimas.
O
chefe
dera
dois passos
frente; l
longe, na
noite,
a locomotiva
arquejava,
cuspia
vapor
e
chama,
e
a
hulha
exalava
seu
odor
acre
de
vertigem.
Um
matulo
atirou
a
ltima
bolsa
do
correio
;
no mo-
vimento
inclinado de
alcanar,
uma
se-
nhora,
seguida de
dois
bebs,
acorreu.
Terceiro
repique
:
adios
id
com
la
Virgen
/
e
o
comboio,
estirando os
ten-
des,
desamarrou.
Recuos elsticos
das
vigas
de
ferro
e
dos
letreiros,
saltos s-
peros de barras, a confuso,
os
fogos
todos da cidade cortejando-nos.
Rolamos;
eu ito-a,
ela
fita-me.
.
.
A
dama
retardatria anda em busca
de
lugar.
Vejo, pelo
corredor fora,
sua
bela
cabea
loura
sondando
os
compar-
timentos, temperando
seu
rasgo
dum
sorriso amvel. Atrs,
os
meninos
b-
cas-abertas
e
esgrouviados.
Ainda
ali vo
dois
lugares
devolutos,
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
39/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
27
mas
Deus
a
leve
para
longe.
Gosto
de
crianas,
gosto,
muito
embora
sejam
meninas
e
lous
e
me
levem
a
deses-
perar de mim, data em que sua
pu-
berdade em
flor
coincidir com a
minha
sazo
de
envelhecer.
Neste
momento,
porem,
detestaria
essas
crianas
alvas,
pernaltas, fugidas
dum
retbulo
real
de
Velasquez, se
poisassem
entre
ns.
Quero ir
s
com ela,
sem
anjos
que
me
aborream.
Mas a
bela mam passa
adiante.
(4
Temos,
ento,
o
prazer
de
viajar
com
um
patrcio?
preguntou-me
queima-roupa
o
pap,
atirando
a
gazeta
que lia.
Declinei
uns
breves
dados
sobre
mi-
nha
caderneta
civil
e ele
tornou
(jMas
vive
em
Portugal?
Uns
meses
do
ano,
l
pela
quadra
da
caa e
do
mosto.
O
resto
do tempo
passo-o
ao acaso
da
inspirao,
em
Paris,
em
Berlim, em Veneza,
onde
calha.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
40/375
28
FILHAS
DE
BABILNIA
O
viajante
contemplou-me
com
cir-
cunspeco
e
proferiu
Ns
somos
dos
arredores
do
Porto
e
vamos a
Montmorency,
terra de
minha
mulher.
Estabelece-se,
a
certa
altura,
uma
intimidade
muito fcil,
posto
que
ar-
tificial,
entre
passageiros.
A
vertigem
dir-se-ia
provoca
a
descongelao
de
preconceitos e
reservas
que
o homem
civilizado nutre
para
com
o
homem
ci-
vilizado.
Nestas
tumbas
volantes,
o
trato
social
traz
um
cunho
imperioso
de ins-
tintiva
solidariedade.
Sob
a
alada desta
lei,
se
achava
de certo
o
pap,
quando,
por veredas
quase
rectilneas,
quebrou
o
anonimato comigo.
Era
arquitecto,
e
alardeou um papel
armoriado
dos
Ri-
badalia
ventilando
o
trasteio duma
sala
de
estar
em
sua
vivenda
de
vero.
Eu
ignorava-lhe
a
existncia
e,
tampouco,
lhe vira
o
nome nas
gazetas,
o que
o
cmulo
a
dentro
duma profisso
liberal
na
nossa
terra
de
soalheiro.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
41/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
29
Arquitecto
ignorado
ou
ignorante,
ti-
nha ali
uma
obra
prima
e, admirando
a
ela,
no
podia
abstrair
de todo dele.
Mas
bem
me quisera
parecer,
um
homem
bom
ou, melhor,
um
bom
ho-
mem.
Tem
as
bondades
ticas
do
ho-
mem,
mas
no
dum
homem.
Vou ju-
r-lo :
destes
que
passam
sem
deixar
sombra
;
e,
sendo
desses, e
arquitecto,
quase paradoxal.
Divagamos, eu sei
l
por onde,
da
Catedral
de
Colnia
Ponte sobre o
Tejo. Eu
falava para ela e,
em
arte
e
em
beleza,
era
um arauto
da
feminili-
dade.
Entretanto
estudava-o,
como
subsidirio
da
psicologia
que sobre
a
cabea
loura
de
sua
filha ia
edificando.
Em
todo
o
tempo
s
uma
vez
lhe
vi
desafivelar
a
mscara
de
bondade
que
me
incutia
uma
dor
absurda.
Foi
quando
puxou da
carta dos
Ribadalta.
A
mobi-
lidade
do
rosto
parou-lhe
no
rictus dum
simples.
Mostrou
os
dentes,
sem
riso;
as
gorovinhas da face repuxaram-lhe
os
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
42/375
3o
FILHAS
DE
BABILNIA
lbios;
dilataram-se-lhe as
narinas.
Era
uma
pobre
alma
s
escncaras, des-
vanecida.
Em
hora
normal,
detestaria
esta
cria-
tura.
Nunca
fui sindico
de falncias,
nem
de
casas^
nem
de
ho.nens.
Temo
estes
contactos.
Como sou
supersticioso,
julgo-os
pelo
fenmeno da atraco
sim-
ptica e ico a
duvidar de mim.
A
minha
piedade, aqui,
de
fariseu.
Falando-me, no
tinha a noo do
categrico
que
existe
no
monosslabo;
contestava-me
transigindo;
negava-me
por
uma
longa curva de
afirmativas;
o
sim
e
o
no
eram
idiotismos
na
sua
linguagem.
E
com
o
seu
verdade
todavia desarmava-me.
Dava-me
a
idea
dos
Horcios que
fugiam
para
acometer. Mas
aqui
por
frouxido
de
temperamento
e
no
delicadeza
ou
subti-
leza de animo.
Oh
mas
ela
era
bela
de
ver,
embria-
gante
de
desejar.
Por
seus lbios
e
sua
posse,
durante
minutos,
marcharia firme
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
43/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
3l
ao
cadafalso;
deixassem-ma
abraar
e
abraaria um
leproso;
deixassem-ma
gozar
e
mandassem-me
morrer.
^iComo
no
havia de
perdoar
ao
pobre
arqui-
tecto
de tanto
divino?
E
entregiiei-me
todo
com
lisura,
com
verdade,
que
eu,
quando me
entrego,
sou
mais inocente
que
um
cordeirinho
de
mama.
Trocamos
os cartes e le, lendo
o
meu,
num
esforo remissivo
de mem-
ria
declarou
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
44/375
32
FILHAS
DE
BABILNIA
lembro
Senhor,
admiro-o. Tenho muita
honra
em
conhec-lo.
Ela
sorria-me;
com
nfase,
proferi:
O
teatro
uma arte
fcil,
minha
senhora.
Quatro
pessoas,
uma
corda
que
as
ate,
um
tombo
ao
mar;
umas
que
nadam, outras que
no
sabem
nadar.
.
.
A
est
o teatro
de
tese.
.
.
o meu.
Genoveva
era
minha
leitora;
conhe-
cia
a
meia
dzia
de
trabalhos
publica-
dos,
romances sem viscondessas, contos
serq
padres-curas. Ignorava
o
livro
mais
recente,
e
mais
inofensivo
: O
Pavo
o
rei
dos
animais.
Rasgadamente
fui
mala e
ofereci-lhe
o
exemplar
que levava
para
Elsa.
Depois
o
silncio
poisou
entre
ns,
remoendo eu e
ela nosso conhecimento
de
longe.
O
comboio
devorava.
.
.
de-
vorava
o
railhe.
Quebrantados,
esten-
demo-nos sobre
as
banquetas.
O
sem-
blante
afvel
de
Genoveva
dizia-me:
Ora
quem
o senhor
. Um
homem
ce-
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
45/375
S
OLHOS
DESLUMBRADOS
33
lebrado.
Mas
tem
o
ar
melanclico
.
.
.
jNo
ter
sido
feliz?.
Vaidoso e
infatuado como
lord
By-
ron, tinha
a
veleidade
de
descobrir
isto
e considerei:
Almazinha
que
fiz vibrar
e amar
com
as
figuras
que
desdobrei
de
minha
alma
monstruosa,
onde
irs
tu?
Os nos-
sos
destinos
teem
j
muitos
pontos
de
interseco;
quem
sabe?
Velho
fauno
incorrigvel
dizia-me
a
voz
da cons-
cincia
tu vais
no
pendor quando
ela
comea
a
subir
a
colina
da
vida. Nem
ela
te
alcana, nem
tu
a
podes
esperar.
;
S
uma
Pone
do
fumo,
em
que
escurecesse
vossa
razo
e
vosso
passo,
vos
poderia
levar
um ao
outro
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
46/375
IV
Luminosas, as pupilas
de
Genoveva
fitavam-me.
E
no
me pude tolher
de
assestar
sobre
elas
um
olhar
terno,
olhar
de
genuflexo perante
to
subida
mer-
c,
e
de
agradecimento
beleza
univer-
sal que semeia flores na
vereda
das
feras,
e
faces
pulqurrimas no
trajecto
hostil
das
Espanhas.
E,
novamente
doi-
do-varrido,
o
meu esprito
interrogou
o
j
Qual ser
a rota
desta
almazinha?
jQual
ser, entre
os mais
felizes dos
homens, o
primeiro
a
beber
naqueles
lbios
to
amveis?
Oh no
seria
eu,
homem
amolentado
a
desejar
e
a
possuir,
para
quem
os
trinta
e
cinco anos
comeavam
a
pesar
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
47/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
35
como
trinta e
cinco
robles
vindos
de
No.
jNo,
no
podia
ser
eu
No
meu
peito havia
ainda
fogo para
seduzir
uma
viva
de
major, mais
nada.
Mas em-
bora, ao
sentir
aqueles
olhos lmpidos
debruados
sobre
mim,
uma
ternura
nova
planava
acima de
meu
pensamento
crapuloso
como
sol
sobre gua
choca.
O
trem esfalfava-se
na
campina
cober-
ta
de breu,
e, emquanto
o
esprito
corria
rdea
solta,
o
meu
ouvido
comeou
a
distinguir
no
rumor brbaro
do
comboio
uma
melodia
larga
e majestosa. Nela
se aliava
ao
eco
dos espaos,
batidos
pelos
ventos,
o
esbravejar
das
foras
reprimidas
como
corcis
de
guerra.
E
era
mais
soberana
que
a
voz
do mar,
em
que
mal tremeluz
uma
nota
glori-
ficao
do
homem.
Depois, variaes
sinfnicas,
duma
opulncia
vagneriana,
desenharam-se
a
meus
ouvidos. Coros
riais,
orquestraes
de
alta
dinmica,
as
gamas
todas
do
ao
cantando inspirada-
mente.
^
Porque no
h artista
que
tra-
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
48/375
36
FILHAS DE
BABILNIA
duza as
melodias estranhas
dum
com-
boio projectado
em
blide,
aquele
leit-
motiv
to dominador da corrida,
todo
o batuque ciclpico do
monstro?
Genoveva
Chama-se Genoveva
esta
criana
loura,
que
diante
de
mim
quere
ter
a compostura
de
mulher
afeita
ao
tur-
bilho
das
cousas.
O
nome
perfumado
como as
amendoeiras
em
flor.
^Que ida-
de ter ?
As
espduas
so
de
mulher, os
olhos,
porm,
conservam
toda
a
mobi-
lidade
inestilizvel
das
crianas.
So
quentes,
mas
no
seguros.
No me
fitam
com demora e morrem
pela
curiosidade
de se banhar nos meus.
Seduz-me
dia-
blicamente, porqu
?
Inegavelmente
porque
estou
gasto
e
ela
um
boto
de
rosa
;
porque
sou
depravado
e
ela
pura.
Eu
sou
um
abrir
de
inverno.
O
queixo
dela
,
ao
contr-
rio
do
do pai,
um queixo
de
vontade.
Os
cabelos, enrolados
a
Greuze,
devem-na
cobrir
at
os ps;
todavia,
na
raiz
da
fronte
uma
leve
penugem
infantil
aloira
-
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os OLHOS
DESLUMBRADOS
3/
ainda.
Que
idade
tem?
^i
doze,
quinze,
dezassete
anos?
Impossvel
atinar;
so
assim
as
madonas
de
Mainardi
em
que
to
temerrio assegurar
a
criana
como
entrever
a
mulher. E
uma criana
nos
anos,
mulher,
parece-me
bem,
no
desejo
de ser mulher.
^E
que
a
vida
seno
vontade
?
Que
ardor
dizia
meu
anjo
cnico.
Debaixo de
neve
respondia
lhe
meu
anjo
liai.
Ver-se-iam
j
os
ca-
belos
brancos
em minha cabea,
se
no
fora
os
artifcios
com
que os
encobre
a
toleima.
Ah
j
no
posso
ter
esperana;
i
no
posso, no
quero,
no
devo
iludir-
me
Sou
curioso
de
tudo
o que tem
curiosidade,
l isso
sou
;
gostaria
de per-
ceber,
tactear,
gozar
o
seu
maquinismo
interior,
como
um relojoeiro
; mais
que
isso
no.
H
um
fundo
de
equilbrio
em
mim,
uma voz
sensata
que se
poria
a
berrar,
se fosse
asno
:
s
um
triste
lobo
a
ladrar
madrugada.
'Caiisas-rne
hilaridade
tornava
a
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
50/375
38
FILHAS
DE
BABILNIA
metade
satnica
do
meu
eii
nesse
desespero
to
eloquente.
Como
sempre,
stiro
ladino,
afias
as
unhas,
j
Possas
tu
cair
sobre
a
franganinha
No
No
Bem sei
quanto
um
propsito
moral
pouco
em
par
com
o
vcio
ou
sentimento
desenfreado.
Bem
sei que
o
instinto
dispe
duma
fora
irreprimvel e a razo
uma
folha
no
oceano
interior
que
o
homem
traz
con-
sigo.
Concentrando todo
o
meu
diablico
querer,
talvez orientasse
ou
desorien-
tasse
at
mim
esta
criana,
deslum-
brada
no
limiar
da
vida.
Mas no
quero,
porque
d'ora-avante desejo
moer
at
o
derradeiro minuto
em
aborrecimento, e
quem
diz
aborrecimento diz
paz, os
dias
que me restam
de vida.
i
Que
esforo
de
imaginao
(i
Quando
a
levas
ao
tlamo,
glorioso
bandalho?
Quero encomendar
uma
or-
questra rial.
Maldito
sejas
Genoveva
est-te
nas
garras;
est
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
51/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
3
nas
garras
do
moo
velho
que
no
larga
a
presa,
no
perdoa,
j
Repara
como
o
olhar dela
se
espenuja
^i
Imaginas
tu
que seus
sentidos ainda
no
penetraram
a
traa
em
que a
vais
emaranhando?
Ela
adivinha-te
e
rende-se. Est
rendida
observa-a.
.
.
A locomotiva
silvou; os
semforos
duma gare
imensa
fustigaram a
semi-
obscuridade
do
vago.
O
jogo
das
bielas
amolecia.
Ergui-me
da
banqueta
em
que
as
minhas
duas personalidades,
uma correcta
e
sentimental
de cidado
comum,
outra
luxuriosa e
cnica
de
in-
corrigivel
doido,
disputavam
ao
ritmo
do
ao
rolando
no ao. Genoveva
sor-
ri
a-me.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
52/375
Por
muito tempo, ao
compasso
de
cem
rodas saltando
de
carril
em
carril,
meu
pensamento
tresvariou.
Pesaroso,
umas
vezes, como jogador
que
deixou
sorver
sua
fazenda,
despejado
e
alvar,
outras,
como
grilheta
para o
qual
no
h
apelao nem
agravo.
Genoveva,
dizia
le
quando
na
gaveta
de minha cmoda
se baralharem
com
as
cartas
de
amor hediondas re-
ceitas de
botica,
amar e
ser amada.
Talvez
seja
noiva
e
em
seu
crebro
se
albergue
um lupanar.
jA natureza huma-
na c
assim
Mas
no ser
menos
vir-
gem,
nem
sua
boca
menos cndida.
O
arminho
s
imaculado na
roupagem
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
53/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
4
em
sua vida
animal
no
diferente de
qualquer
imundo
varro.
Em
deleitao
morosa,
dormir
Genoveva
com
seus
cavaleiros
de
baile e com aquele
moo
que tem
fama
de
devasso
e,
um
dia,
ao
cortar
o
ngulo
de
seu
piso, lhe
lanou
to turva
mirada.
Dormir, porventura,
com
o
cocheiro
da casa,
com o
jovem
prior de
que ouve
missa,
e
com
quem
menos
se
deve
deitar
com
seu
noivo
ou
seu
marido.
O
silncio
e
a
noite
le-
varo
sua
cama
um
cortejo de stiros.
E
o
seii
pensamento
acolh-los h
;
por-
que
o
pensamento,
a
noite,
e
o
silncio
so os
trs
conjurados
contra a
casti-
dade.
Se
cruzasse
comigo,
quando
os
dedos
reboludos das
massagistas
ainda
me
no
tamborilavam
na
pele, talvez
dormisse
comigo.
Talvez
dormssemos
em
reali-
dade,
traindo
ela
um
marido,
que
poder
ser
jogador
e frequentar
as
cocottes,
e
rendendo
eu
tributo,
com
meu
corao
inconstante,
si^a
formusura
liberal
a
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
54/375
42
FILHAS DE
BABILNIA
dar-se;
O
tributo dum
corao
inconstan-
te
mais
agradvel
ao amor
que
o dum
corao fiel. A
variedade
em que
se
move a
natureza s
permite
nossa
sin-
ceridade uma
homenagem
passageira.
Trairamos
o
burgus
e
eu
seria,
o
que
est
na
dinmica
do
meu
tempera-
mento,
impetuoso e
dominador.
Nunca
pratiquei
o
amor
mavioso
como
os ron-
ds
de Gluck,
nem Genoveva
iria
buscar
este
fora
do
leito legal.
Esse
tal
que
no
passa
de
gatinho
domstico
repugna-me.
Garra recolhida, blandiciosa,
no
ga-
lanteio,
garra desembainhada, ardida,
no
empalme
foram
o
segredo
de meus
sucessos.
Assim seria
de
verdade,
se eu pudesse
retroceder
como os dons
paladinos
das
romanzas
: eh
torna
atrs,
meu
cor-
cel
Mil
e
um
cavalos arrastam as vidas
e
so
o
tempo.
Deix-lo.
.
.
alguns
anos
mais, quando
eu
recorrer
s
perrucas,
sua
cinta maternal
ser um
autntico
saco
pele
de
crocodilo,
nanja
essa
es-
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
55/375
os OLHOS DESLUMBRADOS
48
galgada
nfora
que
far
tontas
as
mos
que a
toquem,
e secar
de
sede
os
lbios
que a
beijem.
E com
este
blas-
femar
das
leis
da
vida,
me recon-
forto.
Mas
l
est
ela
que
me
fita,
me
fita
porfiadamente,
com
resoluo.
O
seu
olhar
diz-mo a
scincia
dos
pressenti-
mentos
repreende-me;
so
mil
setas
mansas,
suavssimas,
contra
o
scptico
que mora
em
mim
e vinha
rabugento
e
cabisbaixo.
Bem
as sinto e, minha
vir-
gem louca,
eu prometo
matar
esse
scp-
tico
e crer
em ti e
na
redeno dos
corpos
do
tempo
que
passa.
E,
perante
o
teu
olhar
magoado,
ajoelho
em
acto
de
adorao plena,
adorao retirada
de
tudo
o
que
amei
e
venha
a
amar
por
tantas
quantas
faculdades
afectivas,
do
bero
cova,
em
mim
surgiram
e
ho-de
surgir.
Eu
te prometo,
tambm,
que este
olhar
que
te
torno,
se prolongar at
o
ltimo
lampejo de meus
olhos,
guar-
dando-te
assim
doce,
assim
jovem,
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
56/375
44
FILHAS
DE BABILNIA
assim
amvel,
qual hoje te vejo. De
teus
membros
lestos
e
tua
pele
rsea
varro
para sempre
a
que
foi
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
57/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
45
houver
jumentos ^e moleiros
claudican-
do pelos caminhos, h-de-se-lhe
admi-
rar
a
potncia
;
emquanto
se
no
iludir
soberanamente
a
resistncia
da
mat-
ria
h-de se
admirar
seu
flego
gi-
gantesco.
Seu
passo
rompante
tem
mesmo
majestade.
Agora
l
vai
le
por
uma
recta
inquebrantvel
e fugi-
dia.
Sinto-o
na
trepidao toda longi-
tudinal, de
vante
r.
Os
freios
fre-
mem,
e
o
ao rescanha
no
ao.
E'
um
tufo
vinculado
a
um
canal.
A
plancie
deve
estremecer
alucinada
sob
o fra-
gor
da centopeia
ardente.
Deve
estre-
mecer tudo
o
que
h
de
esttica
na
natureza e
no
homem do monstro
novo
que
engole
as
distncias com
impetuosa
ira. O romano, que se
descobria
ao
desfile cadenciado das
legies
triunfan-
tes,
soltaria
o
seu
io.
E'
certo,
rene
os
primores
duma
bela
mquina,
subtileza,
energia, rigor
e isso que
choca em todas
as
obras
primas
do ao e
nas
finas
es-
tampas
do
reino animal,
brusqueria.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
58/375
46
FILHAS
DE
BABILNIA
Falta-lhe,
porm, um
quase
nada
ou
um
quase tudo-
alma.
Neste
particular
quase to
inferior
como
um pio. O
pio
vai onde
o
man-
da
a baraa,
o
comboio
o
seu
piso
inal-
tervel.
Esta
rectibilidade
o
sinal
da
sua
bruteza. Tem um s
trilhar
e
j
o
protozorio
tinha
a
faculdade
de
direc-
o.
E
forte
e
estpido
o
comboio.
O
avio,
na
sua
fase
ainda
embrionria,
dispe
duma
sensibilidade
receptiva,
uma
atitude
ao
arbtrio
que
a
alma;
o aviador o
crebro
;
um
e
um
fazem
um
;
esta
simbiose coloca-se,
na
pro-
gresso
da
scincia,
perto
da
nature-
za.
E
um
pssaro.
Da
o
ser
o
avio
uma mquina
inteligente,
e
o
comboio
parar na escala
dos
primitivos,
como
o
rgido
e interminvel
diplodocus
que
beatamente
se
deixou morrer
em
sua
gigantaria. Tudo vai
assim
avanando
ou
recuando.
Sobre
o
aeroplano
tem
o
comboio,
por
privilgio,
o
desfrute ra-
-
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59/375
os
OLHOS
DESLUMBRADOS
47
cional
dos panoramas,
da
terra e
dos
outros, e
o
aborrecimento
que
o
des-
frute
de ns
mesmos.
J
sobre
o
com-
boio tinha
a
liteira
o
privilgio
da
eternidade, eternidade
bastante,
num
precurso
destes,
a
poder
amar,
noivar,
esposar
esta menina, aborrec-la.
. .
en-
viuvar.
Tempos
ho-de
vir
em
que,
d'asa
hectomtrica,
com
ron-ron
mais
atroan-
te
que
o
Nigara,
veculos
areos,
enor-
mes como
Potsdamer-Bahnhofy
salvaro
as latitudes,
de
continente para
con-
tinente.
Mais adiante ainda,
viajaro
os
corpos no
cu
como
hoje
as
ando-
rinhas,
e
as
almas
no
Paraso.
Dum
quero,
dum vou-me,
pular-se
h
a
Se-
vilha, ao
Cairo,
a Tombuct.
Ser
cmodo e no haver mais
propriedade
rstica e
urbana, indefensvel
a
estes
ies
circulatrios. Eu,
ento,
s
conhe-
ceria
uma janela, a janela
do
quarto
onde
dormisse
Genoveva.
Entramos num
tnel
;
parece
que
h
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
60/375
48
FILHAS
DE
BABILNIA
uma
exaltao de
velocidade
;
o
madei-
rame
trepida
;
a
bulha
horrsona, ras-
pante,
compacta,
sincopada
de
estrpitos
brbaros,
detonantes, e
duma
grita
em
oitava. Interrogo
a
imaginativa
:
um
gigante
perna
de
pau,
perseguido de mil
demnios
a
uivar, que corre,
que tam-
borila
na
calada sua fuga
clere, uni-
jmbica. Rolamos
numa
nebulosa.
Ge-
noveva,
no
tom
ronde-bosse
do
fumo,
semelha-sc
Minerva
dum
dracma
antigo.
-
7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Filhas de Babilonia
61/375
VI
Genoveva
dorme,
mas
eu
no
posso
dormir.
A
isso se ope
o
meu estado de
excitao
e
o
incomensurvel
respeito
que
tenho
por
mim.
O
sono
um
ladro,
e eu
no quero
ser
esbulhado
do
que
granjeei
por
astcia,
engenho e
estudo
prprio
e
dos
outros. O
que
granjeei
este
alinho
imperturbvel
e
ordenao
complexa
de
homem
que
se sente
e man-
tm superior, sobretudo,
esta
mscara
toda
latina,
levemente
irnica
para
ofus-
car,
um
quase
nada
sorridente
para
atrair,
sempre
espiritual,
e
onde
as
ru-
gas
nada teem
que
ver com o tempo,
mas
com
a benignidade
interior
de
que
so
as
iniludveis
vibraes.
Ser
a
ta-
4
-
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5o
FILHAS
DE
BABILNIA
boleta
duma
casa em que
se
concerta a
falncia,
talvez, por isso
mesmo mais
m
ocupo
dela.
Onde
o
sono
me levaria, sei
eu:
ao
detestado
moo-velho
que
escondo em
mim,
amarrado
ao
pelourinho
de
trinta
e
cinco
anos,
cheios
e
pesades
;
insnias
e
noitadas
escritas
na face;
o
topete,
I
rompendo
o escantoado
da
fronte, pe-
*:
nacho de
gavio velho. Talvez
o
lbio,
escorregando,
se
parecesse,
em
sua
con-
gesto de
luxria,
com
uma lesma
en-
goiada;
talvez
da boca se escapulisse
o
hausto
roufenho
dos
realejos
que teem
um
sculo
de peditrio.
Seno
tudo
isto,
mais
temvel
que
ser
surpreendido
a
bi-
far
um
leno de assoar,
pelo
menos
deixaria de ser o
que virtualmente sou.
Seria
eu mesmo, consoante a
madre
natureza,
e
mais
exacto,
mais
idneo,
sou
o que
por
artificio
me fiz,
numa
palavra
o que
no
sou.
Ai
cheguei
por
uma
metamorfose infinitamente
subtil,
quase
subconsciente,
por
isso
-
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os OLHOS
DESLUMBRADOS
5
I
mesmo
incerta
em
teoria.
Que
mo-
ral,
diz-mo
a
intuio que
tenho
de
que
Genoveva, ao
surpreender-me
em
meu
envelope
prprio,
sentiria pena,
a hedionda, a
abjecta pena de
quem
para
quem
no
.
Por
isso
me
resguardo.
E
se
houvesse alguma
vez
de dormir
com
esta
poldra
deliciosa,
antes que
meus
olhos
se
fechassem,
havia de
assegurar-
-me primeiro
com
fatig-la
bem
fatigada
de seu sono solto.
Ou
teria
uma
torre
com
fechaduras
de
segredo
para
me en-
cerrar
e dormir
o sono
dos
justos,
j
Esses
casais
de
burgueses que amam,
dormem
e
acordam
no
mesmo leito
de
ferro,
co-
mo eu
lhes
invejo
a
ingnua animalidade
No
posso
e
no
quero
dormir.
Dei-
x-los
voltejar
bem
vivos
e
aliciadores
sobre
a divina
cabea os
silfos alados
do
meu
desejo.
Em
sono,
abrandariam
a
farndola.
Que
bailem,
que
cabriolem,
que
quebrem
e
se requebrem
at
a em-
briagar,
at
a
enlouquecer,
at
que
ar-
ranquem
roda os
gnios
voluptuosos
-
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52
FILHAS DE
BABILNIA
que,
tmidos
ou
dormentes, h
no
seio
dela.
Ela
dorme
e
a
sempre-mesma.
Tal-
vez um
pouco
mais
anjo na
imobilidade.
Seria
uma
heresia
procurar
reversos.
Nada
de
novo
lhe
encontram
meus
olhos,
mas no
meu sentimento
mais criador
que
o
Padre.
Passo a
passo, a
des-
cubro
horas
loucas
e horas de remansado
carinho,
acolhidas
ternas e
adeus
sus-
pirosos, enlevos
do
esprito e
arrebata-
mentos
dos
corpos,
tudo
o
que
encerra
um tronco
vibrtil e
um
corao
liai.
E
quedo-me
a
sonhar, a sonhar cons-
cientemente,
enquanto
os
olhos divagam
dentro dos quatro
taipais
que
nos levam.
Quem
vai
connosco,
no
sei.
Manchas
esbranquiadas,
manchas
baas,
tremu-
lantes
devem ser
os
passageiros. En-
tre,
s
considero
que
o
arquitecto
vai
tombado
sobre
a
ilharga
como
a
Torre
de Pisa.
O
dispersivo
morreu
em
mim,
desde
que os
olhos
de
Genoveva
come-
aram
a
falar
para
meus
olhos.
-
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
53
Chamo-me
a
juzo
proba
e
sincera-
mente,
tanto mais
que
ningum
est
no
Pretrio. Franco
falar,
o
de
meu
irmo
lavrador
que
tem
a
singeleza
impressio-
nante
do
rei Wamba.
Doido
varrido
Doido
varrido
Cai
em ti,
consulta o
entendimento,
e
hs-de
soltar
risadas
malucas
sobre
esse
disparatado
sonhar.
Ai
vem
o
meu
anjo
da
guar-
da...
no,
Cato.
Mas
disparatado,
porqu
?
Porqu?
vais
a
ludibriar-te e
a
lu-
dibriar
esta criaturinha.
Tu
s
a
volu-
bilidade,
ela
a
inocncia desprevenida.
Conquist-la-ias
hoje
para
a
repudiares
amanh.
Que
se renda
e
breve
chorar
o
cativeiro.
No
vejo, sequer,
a
possibilidade
da
entrega.
.
.
Essa
possibilidade
desenha-se.
O
teu prestgio
de
homem
de
letras des-
lumbrou-a;
a
novidade
do amor sedu-
ziu-a.
Ela
sonha
contigo.
.
.
contigo,
-
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54
FILHAS
DE
BABILNIA
talvez,
marido
rico,
artista,
eternamente
amante,
gloriosa
contigo glorioso.
Prouvera a
Deus
Mas
certo
e sabe-lo
bem.
E,
ouve,
(iprender-te-ias
a
esta rapariga
?
Porque
no?
Seria o
salto
dum
quinto
andar.
Dela
s
sabes
que
bonita,
tem
o
p
espiritual e
o
talhe
voluptuoso.
Imagi-
naste
uma
pilha
de
promitente
sensua-
lidade e
por
a
se
veio
a
atear
o
teu
delrio.
No
duvides,
o
amor chega
nos
deliciosos
pela luxria.
O
que
sabes
dela,
se
o
bastante
para
uma
amante
de
duas
noites,
j
escasso
para
uma
amante
de
oito dias. Para esposa, nada.
Ela
pode-te
ser
diametralmente
oposta,
farfalhuda
quando
tu s taciturno,
to-
leirona
quando
tu s um
delicado,
gos-
tar
de
fadinhos
quando
tu
no
suportas
um
recital
de
rgo.
Pode
ter taras fsi-
cas,
ter medo dos
gatos que
tu
adoras,
tocar
boleros no
piano
que
tu
aborreces,
gostar
de
valsar
o
tango.
A
famlia,
na
-
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os
OLHOS
DESLUMBRADOS
55
actual
linhagem^,
pode
contar
um
heri
ou um santo
coevos
por
igual
detes-
tveis
e
at
a
me,
francesa
de
ex-
portao,
pode
ter
sido
regateira
ou
co-
cotte.
O
que
indubitvel
que
ters de
suportar
a
mediocridade
do
pai,
atei-
oar-lhe,
passo
a
passo,
muletas
para
andar.
.
.
Um horror
E que mais?
Dando
de
barato
que
nenhum
des-
tes
contras
exista,
^
pensaste
j
no
que
seria esta
almazinha inexperiente^
ao
p
da tua,
monstruosa,
insacivel
de
tudo,
cansada
de
tudo?
Pensa
bem.
.
.
aquilo
veio
de
poucas
guas.
Em
curtos
dias, seno
horas, esgot-la-ias,
sua
jucundidade,
seus
meandros de
senti-
mento
e de
sonho,
seus transportes,
sua
compreenso e intuio
das
cousas.
Devassarias
a
sua
alma
to
cedo
como
o
seu
corpo. E tu,
porque
s um
volup-
tuoso,
precisas
alm
dos braos
que
te
apertem,
de almas,
duma alma
que
se
multiplique.
Precisas
da
alma
mil almas.
-
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56
FILHAS DE
BABILNIA
Breve
a
conhecerias
como
as tuas
mos,
e
ela
no
teria
nada
de
novo
a
dar-te^
porque
se
daria
dum
jacto
e
sua inflo-
rescncia
no
lhe
permite, por
ora,
re-
novamentos.
^
Com
que
havia
de
com-
prar-te,
a
pobre,
pelos
tempos
fora,
para
l
da
fcil
lua
de
mel?
Esta
no
te serve.
Quem
me serve? ViUs
Atnythone^
vilis
mihi cndida
CidnOy
Non
oculis
grata
est
Atthis,
ut
ante
mis
Sim,
sim
.
.
.
dessa
espcie,
dobra-
das
de
Corina.
Estou
farto
de
correr
a
aventura
louca
da
insaciedade. Esta bastar-me-ia,
formosa
como
,
tendo
apenas, a mais
o
chilrear
simples
dum
pintassilgo.
Bem,
mas
passando
por
sobre
es-
ses
mil
contraditrios, esta mocinha
tem
necessidade
dum
homem
rico,
terno,
sentimental,
todo
dela.
Consumiste
quase
a
paterna,
a
ponto
que se
no
fora
a
providencia
de
teu
irmo irredu-
tivelmente
celibatrio,
terias
de
recor-
rer
ao
emprego
pblico;
toda
a
preo-
-
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os OLHOS
DESLUMBRADOS
57
cupao
so
os
teus
livros,
as
tuas
cria-
es;
j
ternura, junto
nevrose
de
ar-
tista,
t-la
hs
sempre?
No
sei,
nem
me
importa
saber.
jijQue
o
sentimento
seno
a
mola
oculta
que
nos
empurra
pela
colina
da
vida,
para cair
ou nos
exaltarmos
mais,
equivalentes,
afinal,
do mesmo
trnsito
irrefragvel
?
Obedecer
a
nossa obri-
gao,
a nossa
melhor
obrigao
de
su-
periores.
-
7/26/2019 Aquilino R