aquilino ribeiro - regicidio

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  • 7/26/2019 Aquilino Ribeiro - Regicidio

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    DOCUMENTOS

    O ATENTADO DE 1 DE FEVEREIRODE 1908 (REGICDIO) 1Na verso de AQUILINO RIBEIRO2

    1 Ttulo, sub-ttulos e imagens da responsabilidade da R&L.2 In: Aquilino Ribeiro, Um Escritor Confessa-se. Lisboa, Bertrand, 1974.

    Nessa obra, Aquilino Ribeiro, recorda os tempos do seu forte envolvimento na causa revolucionria republi-cana do incio do sculo e um conjunto de acontecimentos de que esteve ento muito prximo.

    Por ocasio do atentado de 1 de Fevereiro de 1908, devido ao seu envolvimento directo num acidente combombas (exploso da Rua do Carrio), Aquilino Ribeiro, recentemente evadido da priso, andava fugido justia e estava escondido num quarto da Baixa de Lisboa. [ nota R&L ]

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    O ATENTADO DE 1 DE FEVEREIRO DE 1908 (REGICIDIO) na verso deAQUILINO RIBEIRO

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    O CONTEXTO POLTICO E O PLANO DE UM ATENTADO()

    () o decreto que [ Joo Franco ] elaborou depois da malograda tentativa de insurreio de28 de janeiro3, decreto de que houve logo rumor no dia 29, e publicaram as gazetas, refe-rendado pelo rei, () no dia 31, ampliava ao mximo o pretorianismo das atribuies. Nostermos desse ucasse, redigido por uma pena cafreal, o governo ficar habilitado com afaculdade de expulsar do Reino ou fazer transportar(este transportar bem o vocbulo designificao impressionista que quadrava aos homens tratados como coisas pelo senhor doAlcaide)para uma provncia ultramarina aqueles que, uma vez reconhecidos culpados pelaautoridade judicial competente, importe segurana do Estado e tranquilidade pblica e

    interesses gerais da Nao afastar, sem mais delongas este mais delongas politicamen-te inefvel; o mais aqui subentende algumas; quais? do meio em que se mostrarem e tor-narem perigosos e contumazmente incompatveis. No podem, por igual, gozar imunidadesparlamentares aqueles que contra a segurana, do prprio Estado se manifestam ou quecomo inimigos da Sociedade se apresentem.

    Faltava arvorar a forca no alto do Castelo e pelos oiteiros de Portugal comentavam osrepublicanos para ressurgir a era dos capites-mores e da justia de pendo e caldeira.

    Joo Franco

    Naquela manh morna, com os pardais nos beirais daBoa Hora a espreitar o sol e em baixo, na calada, aalcofa dos carroceiros, ouvi que batia porta mo queme no era estranha pelo tonusdas pancadas. Estendio brao mesmo da cama, o pincho interior solevantou-se, e pela porta entreaberta passou o vulto, meio

    3 Em 1908 vivia-se em Portugal um clima de enorme tenso poltica, sendo iminente o desencadear de umconfronto aberto entre aqueles que pugnavam pela mudana de regime, pela revoluo republicana e aque-les que pretendiam a manuteno do regime monrquico constitucional.

    Nesse incio do sculo XX, o pas estava a ser governado por um poder poltico totalmente desacreditado o escndalo da liquidao dos vales da coroa foi o acontecimento mais visvel da situao de descalabroa que ento se chegou e, desde Maio de 1907, estava ainda sujeito a um apertado regime de ditadura,com a constituio e o parlamento suspensos, muitos jornais encerrados e censurados os poucos que sepodiam publicar (Lei de Imprensa de 11 de Abril de 1907), direitos individuais fortemente condicionados, etc.

    No Porto, a 31 de Janeiro de 1891, tinha havido uma primeira tentativa gorada de afirmao revolucionriarepublicana. A 28 de Janeiro de 1908, em Lisboa, teve lugar uma nova movimentao com vista tomada

    do poder pelos republicanos. Em resultado do modo atabalhoado como decorreu, as principais figuras domovimento republicano tinham sido presas e, por decreto acabado de assinar pelo Rei (a 31 de Janeiro de1908), estava-se na iminncia de elas serem banidas do reino, degredadas para frica ou Timor. [ notaR&L ]

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    O ATENTADO DE 1 DE FEVEREIRO DE 1908 (REGICIDIO) na verso deAQUILINO RIBEIRO

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    desengonado, o anlito de opresso que lhe era comum, indicativo de mquina afadigada,de Alfredo Lus da Costa. Aps a troca de cumprimentos, disse-me de salto:

    At que enfim. Tenho o grupo que h-de ir esperar Joo Franco

    Para qu ? Como preldio da revoluo ?

    Estive ontem tarde com Marinha de Campos que me disse : A tropa nega-se a sairenquanto Joo Franco andar solta. fantstico, mas assim mesmo. Os comandantestomaram-se de pavor diante do novo Minotauro. Na nossa terra, basta esbracejar, dar mur-ros na mesa, bramir, romper contra a corrente do bom senso, armar em teso para ganharfama de valentia ou de superioridade, e fama que no fcil de extirpar com duas razes nobestunto do nosso prximo. Aqui tem de que cocas se gera o ascendente de Joo Franco.

    E tem a certeza de que o movimento militar se desencadeia a seguir ? Certeza baseada na promessa solene que me foi feita. Marinha de Campos assegurou-me: Neutralizem de qualquer modo Joo Franco e a revoluo est na rua . E lembro-mebem que acrescentou : Eu, por mim s, no tomava este compromisso e muito menos aresponsabilidade do que lhe digo. o comit militar todo. Eu sou o porta-voz. Por unanimi-dade decidiu-se que no havia outra soluo seno elimin-lo, por uma forma ou por outra.Um sequestro? Um sequestro era oiro sobre azul, mas o mesmo que os ratos conjurarem-se para deitar o guizo ao pescoo do gato. Portanto, tratem de livrar-nos do tirano comomelhor entenderem. Faam obra limpa e poupem o plo que, em matria de remorsos,podemos todos muito bem com ele. Estou persuadido que pondo num prato da balana avida do ditador, do outro as vidas que por sua ordem j foram ceifadas e se vo ceifar, as

    lgrimas das mes e das esposas, o inferno de torturas que nos espera a todos, no falandono dique que pretende opor vaga de libertao do povo portugus, no h equiparaopossvel.

    E voc que pensa ?

    Penso assim.

    No lhe observou: porque no efectuam agaloadosa empreitada ?

    Algum h-de coordenar a manobra, e, por outra,algum h-de dar o corpo ao manifesto. Para o caso,organizei eu um grupo que est pronto primeira

    voz. Vamos esperar Joo Franco, depois do almoo, Rua Alexandre Herculano, para onde mudou.

    Que gente leva consigo?

    Levo o Bua isto dizendo torceu-se todo eolhou para mim como a consultar-me. Levo oBua, mas com certa relutncia. Voc sabe, o Buatem dois filhos menores. Morreu-lhes a me Queseria dos pobrezinhos se o pai perdia a vida naaventura, primeiro desamparados, depois queominoso no os esperava pela vida fora, filhos de

    homicida !? Pois a nossa gente no est imbuda dos ps cabea de pecado original ?

    Acho que raciocina muito bem. Decidiu no o levar ?

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    No decidi. O Bua um homem valente, que no volta a cara, e eu no tenho grandeconfiana nos outros pelo menos em dois.

    Quem so eles ? Conheo-os ?

    No conhece. Eu at ontem tambm os no conhecia. So dois antigos guardas-fiscais,do posto dos Olivais, que Joo Franco demitiu. Vo por vingana, deix-lo ! A questo quedem ao gatilho na devida altura.

    Nada mais precrio !

    Vi-os ontem pela primeira vez, como lhe digo. Deixaram-me a impresso de homens reso-lutos.

    E quem o quinto? O quinto aquele rapaz da Costa do Castelo, Domingos parece que se chama Domin-gos, Domingos Ribeiro Lembra-se dele ?

    Um rapaz bem-parecido, magro, sobre o loiro, de estatura antes mais baixo que alto, queest num armazm de vinhos um pouco acima da S?

    Esse mesmo.

    Eu conversei apenas umas duas vezes com ele

    ()

    Que me diz ao decreto que Teixeira de Abreu levou a Vila Viosa a assinar e ontem publi-

    cado nos jornais ? Eu j sabia h dois dias, pelos nossos informadores, que roda de nava-lhas se estava a armar contra os republicanos.

    ()

    No h dvida. Joo Franco, se o deixam, povoa Timor com republicanos. Consta que jtem fretados dois grandes paquetes para o transporte.

    Algum h-de escapar redada

    As malhas, segundo se diz, so to apertadas que vai muito peixe mido. Figura nas listastudo o que manifestamente republicano ou suspeito disso. Os maiorais so postos na fron-teira : amigos, se quiserem voltar parvnia, regenerem-se. Ho-de enrouquecer primeiro adar vivas Cristina, isto , ao marqus da Bacalhoa !

    Deixe l, organiza-se Timor em repblica. Repblica Portuguesa de Timor. Um dia, quan-do D. Carlos e os seus parasitas tenham acabado de escangalhar a metrpole, vimos por afora todos e escorraamos os vendilhes

    Era uma bonita coisa, era, sim senhor. ()

    ()

    Srio, srio: leu bem o decreto ? O Joo Franco faz de conta que vai dar uma batida aoslobos na serra da Gardunha. Agora, ainda mais responsvel que ele o rei.

    Mais responsvel?

    Salta vista. Este decreto, que seno um pacto de criminosos depois da liquidao

    miservel dos adiantamentos ? Desde esse dia, o rei o capito da quadrilha, que promo-veu Franco a seu lugar-tenente. O que D. Carlos merecia sei eu

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    Tudo o que se fizesse neste momento contra D. Carlos era contraproducente. Lembre-seque nos pases atrasados a tradio tem muita fora. No esquea tambm que este povoest h sete sculos ajoelhado diante do rei como de Deus. Tnhamos todo o mar de senti-mentos, os naturais, os obtusos, os artificiosos, os herdados de nossa av torta encapela-dos contra ns, a favor do trono. A nau republicana, de mau madeiramento, mal calafetada,inexperta nas guas revoltas, ia-se ao fundo irremediavelmente. Ia-se ao fundo debaixo dopeso das responsabilidades com que no sabia, nem teria a coragem, nem a possibilidadede arcar.

    Ficou calado, a ruminar no que eu lhe dizia. E, porque no achasse logo resposta no seuesprito, volveu:

    Depois se ver. Preciso ainda de ir arranjar uma arma. Estamos mal armados. O Bua,

    esse, j l tem a excelente carabina que estava no Heitor. Os homens dos Olivais estoarmados com abbadies, de marca espanhola. A cada passo encravam-se. o rapaz doCastelo que no tem

    Mas coisa decidida.

    Ora essa, duvida da minha palavra !? O Bua at j esteve esta manh a tomar as suasdisposies por escrito uma espcie de testamento. Eu no tenho ningum. Por outra,tenho uma irm menor. Meu tio, que rico, no faz grande favor em olhar por ela.

    E se o Franco lhes falhar na Rua Alexandre Herculano.

    Vamos dar-lhe caa at o descobrir. Nem no meio do inferno nos escapa. Ele h-de ir hojeao Terreiro do Pao esperar a Famlia Real. Fuzila-se mesmo l !

    No pense nisso ! correr grandes riscos

    e no . Assim que a fera esteja em terra, temos a revoluo na rua. A questo aguentar

    Veja l, olhe que isto no a ria do Trovador: Madre infelice, corro a salvarti Supondoque tudo se passa como calcula, estes compassos de espera no obedecem ao relgio.

    ()

    Falta-nos tambm prosseguiu um varino para o Bua esconder a carabina. O FerreiraManso disse-me logo :pegue-o l, mas o Ferreira Manso um friorento. Vou pedi-lo aoLima, que pode muito bem passar sem ele. O Lima bom rapaz, no me diz que no.

    Alfredo Costa estava perfeitamente vontade, sereno, como se combinasse um passeio aVila Franca para ver a tourada. Eu, no fundo, guardava um pouco de cepticismo sobre aque-le empreendimento, que me parecia destinado a gorar como dezenas de tantos outros,inclusive o meu projecto de fuga do Caminho Novo com um automvel que me pusesse emlugar seguro, a gorar mediante um argalho ou uma trave. E vi-o partir na convico de quetudo em Portugal fica em v-lo-emos, e a poltica activa no mais que um imenso vaza-barris das boas e ms intenes, dessas de que est o inferno cheio e doutras que morremin ovo, por falta de bom senso, de nervo, resoluo final, reduzidas muitas delas a cisco porum cabelo, coisa de nada, imponderveis esmagadores como rochedos da Gralheira. E nopensei mais nisso.

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    O ALVOROO

    As horas, por todo aquele dia de meio sol, no meu cesto de gvea4decorriam vagarosasque nem as do alquimista a olhar para as retortas e a cismar, depois de mais um malogroem buscada pedra filosofal. O cativeiro em Babilnia, no Caminho Novo ou naquela man-sarda era sempre cativeiro5. Quando que voltaria a ser livre como os pssaros ? Alagadoem tdio, pensava que uma das condies mais dignas do homem a do cavador, emcomunho constante com os elementos naturais. No que no meu esprito ancorasse preo-cupao sria quanto aventura anunciada de Alfredo Lus da Costa. Em verdade, no meusubconsciente gorgulhava uma ideia de cepticismo por tudo o que se parecesse com golpesde fora antiga, lances de sangue e brutalidade de que supunha de todo incapazes osmeus contemporneos. Eu, como eles, como as geraes antes de mim e havia de sucedercom as geraes depois de mim, pertencia a uma camada sedimentar de dessorados deque havia pouco a esperar sob o ponto de vista de dinmica de eco universal ou intelignciade igual calibre.

    Por isso, sofri um baque de vago e aziago pressentimento quando entrou pela janelaentreaberta da mansarda uma lufada de sons que me pareceu singular. Abri a vidraa e atonde se podia estender o meu raio visual, quebrado pelo ressalto do telhado, vi gente, genteque corria de baixo, singularmente ou por cachos. Vinha do Largo do Pelourinho, da Rua doComrcio, como tocada por um ltego invisvel, e, com maneiras descompostas, deitava acorrer pela Calada de So Francisco e a Rua Nova do Almada, como para pontos de ref-gio. Depois, as golfadas de gente foram-se multiplicando, e era a populao transida, toma-

    da de pnico, a furtar-se, dir-se-ia, a uma hecatombe. Ao mesmo tempo, chegou-me aosouvidos uma zoada, cortada de gritos e estridncias que me no soube explicar. E dissepara comigo : ento sempre era a srio ?

    Mas se tiroteio tivesse havido, o seu eco teria chegado at mim, e eu no o ouvi. De formaque, no obstante nos dois extremos das ruas continuar um movimento de ressaca, atribu-oa qualquer ofensiva da fora pblica, que provocasse aquele corrilrio centrfugo da popula-o como vi que acontecera no Rossio e no Largo de Cames.

    Mas casualmente olhei para as janelas da Boa Hora, onde havia um posto de guarda, enotei que os soldados experimentavam as espingardas abrindo e fechando repetidas vezesa culatra mvel e metendo balas na recmara. E fiquei de todo desassossegado.

    Nos extremos da rua continuava a perpassar gente aodada agora como se s pessoas aspropelisse uma deslocao de ar ou qualquer moto inaudito.

    Subitamente abriu-se a porta de arranco e entrou no meu quarto Tavares de Melo, ao temporedactor da Vanguarda, que era visita da casa :

    Mataram o rei e no se sabe quem mais da famlia real

    Mataram o rei !? Que grande desacerto ! exclamei, no de pasmo nem de afogo, emo-es prprias do sbdito comum de trs dinastias, mas o republicano, que via ir por guaabaixo as suas esperanas e o fruto da messe que alourava.

    Foi no cais, chegada de Vila Viosa. Houve fuzilaria brava.

    4 O quarto de gua-furtada da Baixa onde Aquilino Ribeiro estava escondido. [ nota R&L ]5 Referncia sua recente situao de evadido da priso e de escondido da polcia. [ nota R&l ]

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    Mataram tambm o Joo Franco ? Ouvi dizer que quem morreu tambm foram os assaltantes. Um deles deve ser por l odoido do Alfredo Costa. Ainda ontem eu lhe estive a dizer : no se meta em cavalarias altasque o corpo que lho paga ! Viram-nos mortos, literalmente trucidados

    Ficou-me a olhar, fiquei a olhar para ele siderado de todo e rematou :

    Vinha para prevenir o Meira que figura nas listas do ostracismo. Adeus, vou averiguar oque h !

    Quando os passos de Tavares de Melo se perderam ao fundo da escada, atirei-me de bru-os em cima da cama. Tinha na fronte um cincho de ferro que no me deixava raciocinar eme obsidiava diante do facto assombroso e surpreendente, posto que no ar de Alfredo Cos-ta eu houvesse vislumbrado ao vento do meu cepticismo a fmbria de uma inteno reserva-da. Sim, dava conta agora que, por detrs do objectivo confesso, outro fosforejava, querialanar ncora e arraigar-se.

    Ningum veio durante muito tempo aliviar-me da minha mortal ansiedade e pesadume.Finalmente chegou Meira e Sousa que me ps ao corrente do ocorrido, que l fora era j dodomnio de toda a gente. Repentinamente as torres, quantas torres havia minha volta, a daConceio Nova, a dois passos, com voz gritada de mulher, a da Vitria, criana a chorar, ade S. Julio, frentica, mais longe a de S. Nicolau, voz bem timbrada de pregador, e dosaltos, os sinos do Sacramento e dos Mrtires, ralhadores e cavos, lanavam aos quatro ven-tos, em suas breves notas picadas a defuntos, a nova formidvel: morreu o rei !

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    Escusava de vir-mo dizer ! disse para Meira e Sousa. Bem ouoA abbada sonora erguia no cu uma teia inconstil, dolente e azabumbante, a proclamaruma realidade fora das regras obiturias. Tendo comeado com o anoitecer, prosseguiupela noite dentro o coro de carpideiras celestes, cujo acento fnebre penetrava at aspedras. E na Minha clula de fugitivo, trespassado pelas lanas aceradas de bronze, deiconta que as Eumnides comeavam a entoar o De profundismacabro, sobre mim, sobretoda a Lisboa, acordes que no modulou Wagner, e no sei se os Diabos de mais aladafantasia teriam descoberto para suplcio de revoltados e insubmissos.

    RECONSTITUIO DOS FACTOS

    Pelo que me contou dias depois Humberto de Avelar, pelo que eu sabia, pelo que apurei dorelato dissonante das gazetas e o que eu rectifiquei in lococom um dos conjurados e umfalso regicida, que para o caso tambm conta como havendo elaborado do sucesso a snte-se mais verosmil que convinha ao seu papel, os factos deviam ter-se passado deste modo :Debalde o grupo fora esperar Joo Franco Rua Alexandre Herculano. O ditador, sabendo-se em perigo e acossado de um lugar para o outro, entrou mais uma vez a negacear com osperseguidores. No lhe era difcil, dispondo dos rgos de informao e torcendo-lhes asvoltas. Os seus vrios domiclios permitiam-lhe este jogo do Escondidinho.

    Depois deste primeiro desencontro, havendo abancado momentaneamente no Gelo6, ondeviram que o Bua se refrescara com um bock, acariciando muito a barba com reflexos decobre, o que era sinal de tempestade interior, e, mais ainda, encravando repetidamente a

    mandbula de baixo sob o lbio superior, gesto to seu, e Alfredo Costa engolira um almooapressado, sempre febril, passaram ao Rossio, a grande sala revolucionria, e a delibera-ram em comum ir esperar Franco ao Terreiro do Pao, hora do regresso da Famlia Real.Para Costa, j fazia parte do programa, dada a hiptese de o golpe falhar na rua para ondeFranco anunciara ter mudado da Rua da emenda. Isoladamente, os homens dos Olivaisatrs, e par a par, se dirigiram com boa meia hora de antecedncia para o Terreiro do Pao.Escalonando-se pela praa, Alfredo Costa tomou a posio do fundo, prximo do embarca-doiro, os trs ficaram a deambular ao meio, da esttua de D.Jos para o centro da ala oci-dental contra as arcadas, como ociosos, e Bua postou-se na fmbria norte, no bem sobreo lancil, mas perto ou encostado ao candeeiro, na linha do prolongamento da Rua do Ouro,na atitude de indivduo que espera outro, conforme entrevista marcada.

    Constava do seu plano aguardarem ali Joo Franco, como caminho necessrio para os cais.Cada um deles era sete olhos para quem entrava na praa, particularmente pela faixa oci-dental, e ainda para a rua que a contorna do lado do Tejo. E o tempo foi voando e JooFranco sem aparecer. Refere Rocha Martins que ele deslizara sorrateiramente por baixo dasarcadas, sem que os conjurados o vissem, o que de todo inaceitvel, dado que era preci-samente sobre esse trajecto que eles mais assestavam os olhos. No, sorrateiramente tinhaele entrado pelo porto do Arsenal e da transitado ao embarcadoiro, palmilhando de relm-pago o curto espao a descoberto que d acesso pelo sul ao Pavilho da Marinha. O facto que se lhe esgueirara mais uma vez, como homem experimentado em batidas nos matagaisdo Alcaide.

    6 Caf no Largo do Rossio e na Rua 1 de Dezembro, em Lisboa, que, ao tempo, constitua um dos principaispontos de encontro dos revolucionrios republicanos e, designadamente, dos carbonrios. [ nota R&L ]

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    Entretanto, Costa e Bua fartavam-se de bocejar. S quem conheceu o gnio de um e deoutro pode imaginar qual seria o seu enervamento. Passaram por diante deles o landaucomos dignitrios, ministros, gente a p, o major Dias, agentes da Secreta a avaliar pelos me-neios artificiosos com que armavam em pessoas despreconcebidas, cortesos ou funcion-rios pblicos destacados chegada da Famlia Real. E, por fim, uma sereia estrugiu, anun-ciou a chegada do rei com fragor lanando serenidade da tarde, cerca da ponte de desem-barque, a ronca marinha, amassada, dir-se-ia, de gua salgada, aventura ocenica, gaivo-tas, ondas, e as tgides que escaparam s dragas do senhor Hersent. Alfredo Costa acer-cou-se mais da embocadura, que ali fazia a muralha do cais e o Pavilho. Domingos Ribeiropairava a distncia, pronto a transmitir qualquer palavra aos outros conjurados.

    Apareceu, depois de grandes delongas, que mais agravaram a hiperestesia dos conjurados,

    em daumont, a Famlia Real, os reis lado a lado, os prncipes em frente. Seguiu-se o carrocom os camaristas, em vez do de D. Afonso, que se atrasara. E, no seu ritmo, os dos uli-cos, e toda a cauda cometria de palacianos. E Joo Franco ? Joo Franco sumira-senovamente como um trasgo.

    Desesperado com o malogro, mas ainda retido por um resto de expectativa, a que vulgaratribuir-se a escrpulo de conscincia, Alfredo Costa chegou de dois passos ao p deDomingos Ribeiro :

    Corra l acima dizer ao Bua que o filho dum co tornou a escapar-nos

    Isto dizendo, voltou ao seu posto de atalaia, perto da muralha, a espiar a lufada de pessoasque irrompia da estao flutuante. Mas, ou porque o esporeasse a impacincia ou no seuesprito se desse por intil continuar de atalaia, largou a grandes passadas pelo terreiro dapraa acima, coisa de dois a trs metros banda do lancil. Ultrapassou primeiro o landaureal, aberto, que avanava a pequeno chouto, depois o rapaz que levava o recado. E dumpulo estava ao p do Bua, engoiado no gabo, no jeito inteirio de homem muito crispadopor uma ideia fixa, e repetiu a mensagem :

    O filho dum co escapou-se !

    Decorreu um brevssimo silncio, o tempo de a descarga elctrica da frustrao percorrer osnervos de Bua. Entretanto, aproximaram-se os outros trs conspiradores, persuadidos queno havia mais nada a fazer do que porem-se a cavar. Mas Alfredo Costa, fixando o olharem Bua, tornou:

    E agora ? Se liquidssemos a cambada ?

    O carro aproximava-se lento como a gozar a doura da tarde, os cavalos percutindo a cal-ada a chouto vagaroso. Bua, desencostando-se do candeeiro, respondeu :

    Vamos a eles !

    Fez um gesto a indicar a posio que ia tomar. Costa soprou para os trs :

    Defendam-nos a retaguarda !

    J Bua, de um salto, se plantava, em diagonal para a carruagem, a um tero da largura darua, hirto como um atirador; sacudia para trs as abas do capote e, metendo a carabina cara, visava. Alfredo Costa, por sua vez, caa sobre a carruagem que passava na sua frente.Foi mais rpido do que se conta. Crepitou o tiroteio das armas de fogo e no primeiro minuto

    os assaltantes ficaram donos do terreno. Mas o oficial que galopava estribeira, tenenteFrancisco Figueira, recobrando-se, precipitou-se espadeirada sobre Bua. A polcia,perante a sua acometida, ressarciu-se tambm e rompeu a disparar a torto e a direito sobreos vultos que se lhe afigurou fazerem parte da conjura. Dois agentes, quando Alfredo Costa

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    cambaleava, lanaram-lhe a mo, e ao passo que o arrastavam para a esquadra, iam dispa-rando os revlveres sobre ele, refeitos em seu domnio. Bua continuava a estrebuchar coma carabina, acutilado pelo oficial s ordens, e tentando desenvencilhar-se dum soldado quese lhe viera meter nas pernas.

    D. Carlos tinha cado cerce como um roble, debaixo por certo das balas de Bua, e igual-mente o Prncipe alvejado queima-roupa por Costa. Ento a carruagem real largou desfi-lada, seguida pelas outras, tomadas de terror. Mas a refrega decrescia. O terreno quedavas foras da ordem. Um guarda civil de revlver em punho gritava como num fim de monta-ria :

    J matei um !

    De facto tinham fuzilado s cegas, contando-se entre os mortos um caixeiro de 17 anos, quepassava, e ferido vrios transeuntes. Muitos dos mirones que se encontravam na praa,curiosos acidentais, foram arrebanhados para a esquadra, que fica entre as traseiras daCmara e o Ministrio do Reino, e passaram as piores horas da vida. Viram os polciasespezinhar os dois regicidas e de novo esfoguetearem-nos bala ; depois, voltaram-se paraeles. O chefe do Posto interps-se. Parou ali a ameaa sobre as pessoas filadas ao acasoda mo.

    ()

    DOIS PROTAGONISTAS

    Condenvel por si, pelas leis da vida e as lies da histria, condenvel ainda pelasequncia poltica, at agora nefasta, do regicdio, no quis tecer um libelo com receioduns, e muito menos uma apologia para agrado doutros. Contei o que sabia eapurei com lisura e respeito absoluto da verdade. O regicdio foi a enflorao lgicade ideias, dios e revoltas, semeados a trouxe-mouxe por monrquicos erepublicanos num solo brbaro, propicio violncia Que tinha a esperar uma realezamucilaginosa, atrofienta, cada no hebetismo, sem outras vistas sobre o horizonte doque conservar a pia farta ?O regicdio, em tanto que obra singular, ter de integrar-se no plano de demolio, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espritos livrese esclarecidos, desde a poca liberal at os nossos dias. Os protagonistas foram obrao armado dessa propaganda. Apouc-los ou engrandec-los seria cometimentogratuito, que no cabe em crebro com dois dedos de caco. Mas porque o regicdio emsua nebulosidade, em sua paradoxal concepo e feito, quedaria inexplicvel sem o conhe-cimento psicolgico das dramatis personnae, eu experimento pint-las sob todas as reser-vas do meu fraco entender.

    Pessoas que menos se parecessem : Manuel Bua e Alfredo Costa. Aquele era do Norte ;este do Sul. Um godo ; o outro rabe.

    ALFREDO COSTA

    Foi no corrente de 1906 que Raul Pires apresentou no Gelo um rapaz de vinte e oito anos,alto, desengonado de corpo, duma fisionomia sria, quase triste, a que ningum ligou

    importncia. Grandes olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez que parecia desonmbulo e era de ateno, um nada de barba loura no queixo, o nariz levemente amolga-do sobre a esquerda. provvel que uma tuberculose descurada, traioeiramente seguindo

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    caminho, lhe achatasse o trax, aguasse os ombros e lhe imprimisse s costas uma que-bratura j perceptvel.

    Com ele, ao contrrio de Bua, no h que ter o historiador grandes canseiras psicolgicaspara fix-lo. A sua figura moral inscreve-se num quadriculado de traos largos, quase rectil-neos. Era um homem de uma s pea, crente at o iluminismo interior, instrudo o que bastapara reconhecer que a vida se decompe numa tbua mais ou menos certa de problemas,de resultado dependente da vontade.

    Donde saiu Alfredo Costa ?

    H homens que, mediante uma luta surda e porfiosa com o meio que os acalca na sua con-dio de desvalidos e iletrados, sem mo alheia a gui-los, sem luz externa que os alumie,

    bruscamente se pem em marcha. Qual a fora propulsora, a energtica do milagre ?Um relmpago que fulgurou, a mola da vocao que salta, um argalho, no caminho, que selevantou com o vento.

    Alfredo Costa

    Alfredo Costa foi o homem, atirado para a cidade daaldeia alentejana, e que, dobrando-se sobre si, batidodos baldes, se encontrou a marchar. Atrs, todo oatavismo da alma popular, opresses, tristeza, fata-lismo, mansuetude de cordeiro. Pela frente, o torveli-nho do sculo, luz e sombras, ideias confusas, ideias

    desordenadas, ideias ; a vida com as facetas todas ; ohomem em todos os planos.

    Educou-se como pde, que mais no foi que abrir osolhos ao que via e tratar de compreender. Tudo o queera imediato apreendeu-o ; tudo o que era bradadoalto, ouviu-o. Nada mais receptivo que a simplicidadedo campons ; nada, ao mesmo tempo, maissusceptvel sntese. Para a improvisao intelectual de Costa, a revoluo pregada em19o6-907 devia ser, com suas promessas de resgate, a ideia adequada. E da at a paixo,o estado de conscincia que implica uma aptitude desenganada para todos os extremos, adistncia no era pequena.

    Por uma vereda longa, mas directa, decalcada segundo tais tpicos, chegou Alfredo Costaao regicdio. Olhe-se para ele, l longe, ao despedir da planura alentejana, to cheia deascetismo que parece destinada a implantarem-se ali calvrios ululantes de supliciados.Que trouxe com ele, envolto no roto sudrio mouro, mal passado nas guas crists, que nofosse rebeldia latente, noo da prpria mesquinhez, fome de humanidade ? O transporteda vida para um plano sobrenatural deixa o Alentejano indiferente.

    Siga-se, antes de firmar o p no cho movedio da cidade, na ofuscao e desvanecimentoda sua condio de rstico, em contraste tratado como cachorro malhadio por patres ericaos. Observe-se ao impregnar-se do evangelho revolucionrio, aquecido em sua pobrealma ao calor da propaganda, sentindo o orgulho de tornar-se militante, futuro paladino tal-vez. Estude-se na vontade frrea porventura o que havia de mais vincado nele uma vez

    determinada, concentrando-se ao servio da causa, e compreender-se- que, quando todosfogem, quando tudo falha, estava na lgica da sua pessoa moral cometer o acto terrvel,para ele de dignificao e de sacrifcio.

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    Tinha na sua sina de ser assim. O seu republicanismo acabara por tornar-se exclusivamenteum clima de conscincia, soberano e desptico. No lhe faltava nada para carrasco ouheri : coragem, deciso, porque no duvidava, e o fanatismo que existe sempre que acimado esprito, povoado por vaga florao, paire um s pensamento.

    Alfredo Costa era, alm disso, um puritano estrito a conduzir-se e a avaliar as criaturas e osseus actos. A ameaa era uma das atitudes que mais lhe eram peculiares. Uma perplexida-de, uma quebra de palavra, uma ruptura do dogmatismo a que submetia tudo, sofriam acondenao da sua boca e o correctivo, s vezes, dos seus punhos. Se os senhores repre-sentantes da Nao mais uma vez nos votarem ao olvido, resta-nos a certeza de que osmarmeleiros ainda crescem nos pauis escrevia ele em 1903. Tentar esmag-lo(o opres-sor) num justificado impulso de revolta um dever de todos ns dizia ainda em 1906. Na

    loja manica a que pertencia tornou-se proverbial esta sua espada em riste, no apenas deDmocles. Noutro nmero do jornal escrevia: Sou pelas greves, como sou por todos osmeios de resistncia empregados pelo fraco, pelo oprimido, em defesa dos seus mais leg-timos interesses quando extorquidos pelo forte, arvorado em opressor. [] Sempre que umPatife tenta ferir a nossa dignidade ou um ladro nos quer tirar a bolsa, dever sagradoatirarmo-nos a ele sem olharmos s foras de que dispomos e s consequncias da luta. [] Para os patres burgueses que nos exploram, e ns servimos sabujamente, vai o meumais activo dio e a minha viva repulsa.

    Rgido com os outros, era-o ainda mais consigo. Assim, como salariado, passou dias inteirossem comer, escondido, com vergonha de que o vissem soltar uma queixa, incapaz deestender a mo a quem quer que fosse. Rebelde por ndole, professando o conceito que eraominoso para a sua qualidade de homem aceitar tutelas ou favores, mormente quandotinham a recomend-los as leis do parentesco, quebrara as relaes com o tio, abastadolojista estabelecido em Lisboa, que, parece, o estimava e era benvolo a acolh-lo. Comoempregado, tido em apreo, repugnava-lhe sentir sobre o ombro a mo do patro. Nisto ain-da, palpita-se a submisso excessiva da vontade a uma regra de independncia. Numa dassuas crises de revolta e, consequentemente, de misria, atirou-se certo dia, na Rua Augus-ta, para debaixo do carro elctrico que passava. O guarda-freio travou a tempo, e saltandoabaixo, ao passo que o desancava, apostrofava-o :

    Seu malandro, quer-me desgraar !? Tem razo, homem. Perdoe !

    Alfredo Costa, que era pundonoroso, contava isto, depois, simplesmente, sem ressaibos deamor-prprio, reconhecendo-se merecedor do castigo.

    Tudo o que cintilasse ao seu esprito como uma obra de justia, a praticar ou praticada comele, rendia-o de ps e mos ; para com os outros, apaixonava-o e a causa alheia fazia-asua. Era um romntico, formado para a vida civil nos Mistrios do Povo, para a poltica, aouvir a cantata de Conveno por toda a pliade de idealistas impenitentes. No era umextremista; o seu sentido de ordem social tolerava as espigas altas da seara humana.

    Era um homem dinmico, mas com a actividade pressurosa e febril dos impacientes. Acimade tudo um probo e digno lidador.

    Em Angra do Herosmo fundou um jornal para defesa dos empregados do comrcio, e tobem conduziu a campanha das suas reivindicaes que ao cabo de tempos vigorava ali orepouso hebdomadrio. Em 1903, em Estremoz, fez intensa propaganda republicana e dacomeou a colaborar nos jornais de classe da capital, sempre homem de f e dedicaosem limites. Foi caixeiro-viajante, e presidiu Associao dos empregados do Comrcio deLisboa. Depois, mediante um pequeno capital, emprestado por mo amiga, fundou uma

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    pequena empresa de livraria, A Social Editora, onde foram editados alguns folhetos contra oregime.

    Encetou ainda a publicao em fascculos, distribudos aos domiclios, do romance de ndolepopular :A Filha do Jardineiro. Na empresa embrionria e mal sucedida consumiu Costa oseu peclio, que no era muito. Ainda nesta tentativa transparece o abnegado. Procurava-sedar uma machadada na carcomida rvore real de sete sculos e Costa trazia o que tinha: asua inteligncia modesta, o seu dinheiro a sua vida por fim. A Repblica, ou melhor omundo dos Idealistas, em boa verdade, no pode enjeitar este nome embora morresse emfereza. Depende das vicissitudes duma obra o galardo que a posteridade reserva aos pre-cursores. Assassinos ou Guilhermes Tell, os destinos da Repblica lavraro a Costa e aBua o epitfio definitivo. O qualificativo, porm, depende do bom ou mau xito global das

    Instituies que ajudaram a fundar. Porque desnecessrio demonstr-lo, um sol novo,banhado na prpura que mais aprazia aos antigos deuses, teve naquela tarde trgica deFevereiro o seu oriente, pese bem embora aos senhores pausados, vazios ou bons burgue-ses, que disso e doutros desatinos sobem a sacudir as mos na varanda de Pilatos.

    Planeada a revoluo pelo risco e indstria de Antnio Jos de Almeida7que, para o civil,tinha como lugar-tenente a Luz de Almeida8, Costa arranchava no grupo que devia assaltaro Palcio Real, depois, por uma modificao da estratgia, o Quartel dos Lios. Na noite de28 de Janeiro, data fixada para o movimento que abortou desastradamente no elevador daBiblioteca9, a hoste, grossa de vinte homens, que tinha sua testa Costa e Bua e comoum dos soldados de linha Humberto de Avelar, artista de raa, frgil e delicado como umamulher, experimentou ainda o fogo da Guarda, nas imediaes da Rua de Santa Brbara,quando aguardava que um morteiro desse o sinal de revoluo.

    A partir dessa manh confusa e atarantada, o governo de Franco empreendeu a lgica einevitvel obra repressiva. Foram presos os membros do Directrio, as personagens emevidncia do partido, e da passou-se caa dos revolucionrios subalternos. A desordem eo pavor lavraram ento nas fileiras republicanas, que antes pareciam firmes e ordenadas. OTejo e os quintais foram o coval de infinitas cestadas de bombas. Nos quartos andares, osrevolucionrios davam-se tratos de imaginao para esconder as pistolas e abbadiesdecontrafaco espanhola com que deviam fazer calar as kropatchekse peas de tiro rpidodas foras lealistas. Fugiram para terras nunca vistas nem sonhadas ou sumiram-se pelocho os chefes e subchefes do movimento. Franco triunfava em toda a linha.

    No meio do pnico geral, Alfredo Costa era um dos conspiradores que no arredavam do

    seu posto. Deserta e melanclica quedava a pequena sala traseira do Gelo, sempre to fre-quentada e turbulenta. Estavam presos ou escondiam-se os intelectuais, Ferreira da Silva,Granger, Duque, arredios e avessos, alis, s grandes aventuras cruentas. parte Bua,que abancava imperterritamente, os outros passavam de esfuziote, rpidos e silenciosas.

    Fechados os Centros, suspensos os jornais, prises cunha, pelas ruas viam-se passarrebanhos inteiros de homens, enquadrados por guardas a cavalo.

    7 Na sequncia do Congresso Republicano de Setbal (1907), Antnio Jos de Almeida estava encarregadode organizar a tomada do poder pelos republicanos por via revolucionria. [ nota R&L ]

    8 Luz de Almeida chefiava a Alta Venda da Carbonria Lusitana, onde era secundado por Machado dos San-

    tos e Antnio Maria da Silva. [ nota R&L ]9 O Elevador da Biblioteca (hoje inexistente) ligava a Praa do Municpio (antigo Largo do Pelourinho) e oLargo da Biblioteca , em Lisboa, foi o local onde alguns dos principais revolucionrios republicanos do gol-pe de 28 de Janeiro de 1908 se deixaram encurralar e foram presos. [ nota R&L ]

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    Merc do acaso, imprevidncia da polcia, o descaro com que revestia idas e vindas ou oquase anonimato da sua pessoa, Costa continuava livremente pela cidade, congregando oselementos que, dispersos, sobreexistiam ainda, teimando sempre, mensageiro intrpido eexpeditivo daqueles que acaapados nas luras guardavam uma rstia de esperana. ComMachado Santos e Soares Andrea se encontrou algumas vezes, a recato do sigilo de quecercavam seu asilo.

    Se algum bufo me deita a unha dizia Costa palpando a browningna algibeira da cala queimo-lhe os miolos.

    Em pleno desnimo geral, Costa insistia sempre para que se tentasse o lance. Onde para-vam os dois teros da fora pblica com que Antnio Jos de Almeida contava para derribara Monarquia ? Onde parava toda a vasta e poderosa teia de revolucionrios civis que

    deviam, escalonados contra cada um dos basties do Poder, iniciar o ataque ?O movimento parecia travado com mo de ferro ; Franco continuava a varrer o terrenoimplacavelmente.

    MANUEL BUA

    Conheci Manuel Bua no Gelo. Manuel Bua era dos mais assduos frequentadores dessecafmuito arrumado margem do Rossio tumulturio, que, no obstante o berrante das far-das, conserva ainda hoje o ar plcido de botequim provincial. s suas horas, nas meiasmanhs preguios de Lisboa, quando, lentas e doces, os senhores burocratas vo pelas

    ruas abaixo mais brandos que em liteira, ou noite, depois do jantar, Sua era certo mesa branca, na parte que olha a Rua do Prncipe, um clice de conhaque frente, a fazera correspondncia ou cavaquear alto com conhecidos ou prximos.

    Manuel Bua

    Bua no era desses que se isolam na turbamulta eprecisam da turbamulta para se isolar. O Caf signi-ficava para ele o cenculo, a roda de amigos a quelevava a sua amizade, a vozearia a que misturava avoz. To desptico era nele o instinto de sociabilidadeque no sabia enxotar da sua beira indivduos de mnota e malandrins garantidos. Dentro de si,melanclico ou a cismar, como tantos moinas de caf,na av torta ou em sapatos de defunto, nunca oencontrei, nem tal atitude era compatvel com o seutemperamento vincadamente bulioso e dispersivo. Avida exterior empolgava-o, consubstanciava-se comele, sem lhe deixar um refolho, um canto reservado,em tudo, pensamentos e obras, mais trespassvel vista que o prprio vidro.

    Curioso este tipo de portugus, vindo do Norte, da parte mais resistentemente nacional, cel-ta, suevo que aflorasse na linha longa das geraes, genuno, inquieto e batalhador, do

    nateiro da raa. De corpo, era homem de estatura me, rosto fino, tez branca a que davarealce a barba preta com tons de fogo, na qual as mos lhe tinham o vcio de passear-se, deembrenhar-se, quando a clera o tomava ou ouvia algum do seu agrado. A testa era espa-

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    osa com arcadas superciliares marcadas sem demais, as linhas fisionmicas duma delica-deza que, fora das mulheres, desagrada. A aparncia, toda ela de franzino, mascarava-lheinteiramente o gnio assomadio e a coragem que no era tarda nem jamais foi receosa amedir-se. Parecia um delicado destes homens para produzir os quais a vida das cidadesesculpiu sobre a carne de geraes e geraes, desengrossando, limando, amaneirando eera uma planta vivaz das serras. S os olhos muito mveis e azuis, mas sem crueza, traamnele o nimo expedito e a ndole que, alm de resoluta, era exaltada. Os seus modos espa-lhafatosos seriam detestveis se no houvesse a contrabalan-los uma grande e sincerafranqueza, da mesma forma que aquele dar-se todo torn-lo-ia suspeito se o seu carcterse no descobrisse at os planos mais remotos. Muito mais que a identidade de ideiashaviam-no imposto ao grupo revolucionrio do Gelo, que paradoxalmente via o mundo atra-vs de Nietzsche e dos pensadores russos, as virtudes do homem instintivo, generosidade,

    espontaneidade, poder de estimar e admirar, ao contacto dos quais o homem de pensamen-to se desvanece e toma de estima.

    Bua era republicano o que ao tempo, em muitos, significava poltica da extrema esquer-da , contudo menos por convico profunda que por flneriedo esprito. Para seres e coi-sas que se movessem fora da sua esfera no tinha paixo e muito menos interesse. A suafisionomia peculiar era a de cptico, jogando um desdm vulgar sobre tudo.

    Agora, comprazer com os amigos era nele uma fora cega e desptica at o absurdo. Umafineza que lhe fizessem tornava-se em grilho. A sua vontade, que no era frouxa, desfa-zia-se perante amigos como a cera. Pedissem por boca. Por vezes inflamava-se em ardorrevolucionrio e era ainda por aquela sua necessidade psquica, elementar, de se pr emassonncia com os camaradas.

    Visto nos predicados de sociedade, era Manuel Bua o que se chama o homem moderno.Cavalo rebentio que aparecesse no picadeiro Gagliardi domava-o ele. Os seus pulsos finosaguentavam ainda firmes a espada francesa quando no assalto j os outros fraquejavam.Nas praias, mormente ali naquela Algs, a dois pulos do Gelo, no havia braos de nadadorque mais longe aoutassem o mar.

    Tanto a sua mentalidade como a sua cultura literria no eram comuns. Professor no Col-gio Moderno, dava a impresso de possuir uma inteligncia lesta, muito compreensiva,assimilando sem esforo, mas tambm sem perdurabilidade. Tinha, no entanto, um senti-mento bastante largo da vida que nas horas de excitao costumava traduzir pelos baixosepifonemas dum pessimismo exagerado. Praguejava como um borracho diante da porta

    fechada.No era um esprito raro, mas no to simplista que enfadasse. Em regra, via as coisaslinearmente, menos por incapacidade que por preguia em discorrer. Era, como o carcter,um temperamento todo alotrpico.

    Simpatias granjeava-lhas, em natural reverso, aquela plasticidade simptica para todos e aaurola de destemido ganha em bulhas e desafrontas. Bua era do barro dos Antnios deFaria sempre pronto a dar e a levar. As suas proezas tomavam j tom lendrio, com osadmiradores e aedos de caf a decantar-lhas. Em verdade Bua era valente posto que fan-farro. O fanfarro esconde por via de regra o pusilnime, e aqui anunciava o forte. Sedizia : parto-lhe a cara, partia mesmo a cara ao tipo. No teatro da Rua dos Condes bateu-se uma noite com a plateia toda ; esmurrou, numa tarde de S. Joo, as ventas do adminis-

    trador da Azambuja, que era homem alentado e pimpo, no meio, para mais, da sua roda depimpes ; no caminho ermo de Linda-a-Pastora vi-o avanar contra o revlver, que um revo-

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    lucionrio lhe apontava ao peito, com uma fria to selvagem que, a segur-lo, lhe desno-quei o pulso.

    Era isto tudo, galante, franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parla-pato mais de uma, sem equilbrio na vida, sem disciplina moral, uma ou outra anomaliamedrando a meio de sentimentos que, alm de serem puros, pareciam dever ser inibitrios.Assim Bua, que era pai de famlia extremosssimo, se no exacto, consagrando aos filhosuma adorao sem limites, a pontos de, tresnoitado ou embriagado, o que por vezes suce-dia, se no poder deitar sem os beijar e se abraar neles, prezando a esposa, entabulouainda em vida dela correspondncia delico-doce com uma menina de Lisboa.

    Este marivaudagedo corao d a nota do nimo leve de Buca.

    Em suma, era um misto curioso de nobreza espontnea, mas sem fundo, de grande sensibi-lidade em que entrava por muito a imaginao, de inteligncia fcil e clara mas pouco tenaz.Alm disso, conscincia inclinada prtica do bem e magnanimidade, mas indolente,abandonando-se ao curso das coisas ou procedendo por arrebatamento. A par disto, ausn-cia completa do sentimento de responsabilidades e miopia no prever as repercusses dumacto. Bua era argamassado, em grau extremo, das virtudes e falhas da terra portuguesa,num lineamento ora confuso, ora recto, sendo as contradies a sua lgica, como o ar efe-minado a sua maior mentira.

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