a produÇÃo iconogrÁfica do jesuÍta florian …

134
A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE: UM REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA DOURADOS 2019

Upload: others

Post on 23-Nov-2021

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE:

UM REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII

SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA

DOURADOS – 2019

SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA

A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE: UM

REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍS NO SÉCULO XVIII

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História da Faculdade de Ciências Humanas da

Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como

parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em

História.

Área de concentração: História Indígena e do Indigenismo

Orientador: Prof. Dr. Protásio Paulo Langer

DOURADOS – 2019

Silva, Scheilla Guimaraes da A Produção Iconográfica do Jesuíta Florian Paucke: Um Registro Visual dos Mocovís no Século

XVIII / Scheilla Guimaraes Da Silva. Dourados, MS: UFGD, PPGH, 2019.

133p

Orientadora: Protásio Paulo Langer.

Dissertação (Mestrado em História) -Universidade Federal da Grande Dourados, 2019.

Disponível no Repositório Institucional da UFGD em: https://portal.ufgd.edu.br/setor/biblioteca/repositorio

1. . Iconografia - Jesuíta - História - Séc. XVIII. 2. . Florian Paucke. 3. . Gran Chaco. 4. Registro

Visual. 5. Índios Mocoví - História. I. Langer, Protásio Paulo. II. Título

SCHEILLA GUIMARÃES DA SILVA

A PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO JESUÍTA FLORIAN PAUCKE: UM

REGISTRO VISUAL DOS MOCOVÍS NO SÉCULO XVIII

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em ______ de __________________ de _________

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador:

Professor Doutor Protásio Paulo Langer (UFGD)

__________________________________________

2º Examinador:

Alexandre Coello de La Rosa (Dr. UPF-Espanha)

_____________________________________________

3º Examinador:

Fabiano Coelho (Dr. UFGD)

_____________________________________________

Aos meus filhos e filha, razão maior da minha

existência. A eles e a ela, consagro meu amor.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus filhos Laio, Marina e Vinício pelo imprescindível

incentivo e compreensão. À vocês a quem amo e dedico todos os meus esforços. Obrigado pela

paciência, apoio e força espiritual!

Ao Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD), onde pude contar com o estímulo de vários professores, dentre os quais o meu

orientador, Prof. Dr. Protásio Paulo Langer, a quem agradeço especialmente.

Aos colegas acadêmicos pelos momentos de companheirismo e partilha.

Ao companheiro de jornada e pai dos meus filhos José Daniel de Freitas Filho pelas

sugestões e críticas que muito contribuíram para conclusão desse trabalho.

Aos professores que aceitaram participar da banca examinadora e dedicar suas atentas

leituras a este trabalho.

“Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.”

Manuel de Barros

RESUMO

O relato “Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767”, do jesuíta

Florian Paucke, que foi missionário nas reduções mocoví de San Francisco Javier e de San

Pedro no Gran Chaco, constitui um rico material etnográfico que registra a cultura mocoví e

sua estada por dezoito anos na Redução de San Javier no atual território argentino. Além das

informações minuciosas, seus escritos são acompanhados de uma rica iconografia: Paucke

produziu 104 aquarelas em que os textos visuais se integram à descrição de uma rede de práticas

culturais e sociais que revelam importantes aspectos do funcionamento da sociedade colonial

espanhola assim como da vida vegetal, animal e humana do Gran Chaco no século XVIII. São

registros que nos permitem perceber a construção de conhecimentos sobre o outro, que

contemplam vários âmbitos no convívio entre Paucke e os mocoví. Este trabalho tem como

objetivo analisar o conteúdo das obras pictóricas de Florian Paucke em que ele representou as

festas e celebrações dos mocoví. A combinação entre as imagens dessas celebrações nos

permitem realizar uma confrontação entre aquelas que representam a “barbaridade’ e as que

representam a transição para uma “civilidade cristã”. Realizamos uma pesquisa bibliográfica e

documental tendo a obra de Florian Paucke como fonte para os nossos estudos. A problemática

que perpassa esse trabalho é avaliar o valor histórico e etnográfico dessa série de aquarelas

criadas por Paucke que, ao que tudo indica, foi produzida a partir da memória do autor, sete

anos após sua saída do continente americano.

Palavras-Chave: Florian Paucke. Cultura indígena mocoví. Imagem.

ABSTRACT

The account “Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocovíes -1749-1767”, by

Jesuit Florian Paucke, who was a missionary in the San Francisco Javier and San Pedro Mocoví

Reductions in the Gran Chaco, is a rich ethnographic material that records the Mocoví culture

and its stay for eighteen years in the San Javier Reduction, located in the present Argentine

territory. In addition to detailed information, his writings are accompanied by a rich

iconography: Paucke has produced 104 watercolors in which visual texts integrate with the

description of a network of cultural and social practices that reveal important aspects of the

functioning of the Spanish colonial society as well as plant, animal, and human life from the

eighteenth century Gran Chaco. These are records that allow us to perceive the construction of

knowledge about the other, which contemplate various areas in the interaction between Paucke

and the mocoví. This paper aims to analyze the content of the pictorial works of Florian Paucke,

in which he represented the parties that occurred in the Reduction and the celebrations of the

mocoví. The combination of the images of these celebrations allows us to make a confrontation

between those that represent "barbarity" and those that represent the transition to a "Christian

civility". We conducted a bibliographic and documentary research with Florian Paucke's work

as a source for our studies. The problem that permeates this work is to evaluate the historical

and ethnographic value of Paucke's work, which, it seems, was produced from the author's

memory, seven years after his departure from the American continent.

Keywords: Florian Paucke. Mocoví indigenous culture. Image.

RESUMEN

El relato “Hacia allá y para acá. Una estadía entre los indios Mocovíes -1749-1767”, del jesuita

Florian Paucke, quien fue misionero en las reducciones de San Francisco Javier y San Pedro en

el Gran Chaco, es un rico material etnográfico que registra la cultura mocoví y su estadía

durante dieciocho años en la reducción de San Javier en el actual territorio argentino. Además

de la información detallada, sus escritos van acompañados de una rica iconografía: Paucke

produjo 104 acuarelas en las que los textos visuales se integran con la descripción de una red

de prácticas culturales y sociales que revelan aspectos importantes del funcionamiento de la

sociedad colonial española, así como la vida vegetal, animal y humana del Gran Chaco en el

siglo XVIII. Estos son registros que nos permiten percibir la construcción del conocimiento

sobre el otro, que contemplan diversas áreas en la interacción entre Paucke y los mocovíes. Este

trabajo tiene como objetivo analizar el contenido de las obras pictóricas de Florian Paucke en

las que representó las fiestas que tuvieron lugar en la reducción y las celebraciones de los

mocovíes. La combinación de las imágenes de estas celebraciones nos permite confrontar a

quienes representan la “barbarie” y los que representan la transición a una “civilidad cristiana”.

Realizamos una investigación bibliográfica y documental con el trabajo de Florian Paucke

como fuente de nuestros estudios. El problema que impregna este trabajo es evaluar el valor

histórico y etnográfico de esta serie de acuarelas creadas por Paucke, que, al parecer, fue

producido de la memoria del autor, siete años después de su partida del continente americano.

Palabras clave: Florian Paucke. Cultura indígena mocoví. Imagen.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Os Trinta povos das Missões..................................................................... 30

Figura 2 – Planta Baixa de uma Redução................................................................... 31

Figura 3 – Mapa do Gran Chaco e a distribuição de alguns grupos indígenas........... 34

Figura 4 – Edição original da crônica de Florian Paucke.............................................. 48

Figura 5 – Florian Paucke. Carro de boi..................................................................... 55

Figura 6 – Florian Paucke. Indumentária mocoví....................................................... 58

Figura 7 – Florian Paucke. Índios levando cavalos para o curral............................... 61

Figura 8 – Florian Paucke. Tatuagem mocoví............................................................. 63

Figura 9 – Florian Paucke. Lapacho............................................................................ 66

Figura 10 – Florian Paucke. Tigres das Américas....................................................... 67

Figura 11 – Florian Paucke. Índios e missionários atravessando um rio.................... 68

Figura 12 – Florian Paucke. Pesca a cavalo.................................................................. 68

Figura 13 – Florian Paucke. Caçada de Tigres............................................................ 71

Figura 14 – Florian Paucke. Caça de gafanhotos e preparação de charque................... 72

Figura 15 – Florian Paucke. Arrebanhando cavalos..................................................... 74

Figura 16 – Florian Paucke. O cacique e sua esposa.................................................. 77

Figura 17 – Florian Paucke. Combate indígena.......................................................... 78

Figura 18 – Florian Paucke. Simulação de combate na Redução .............................. 82

Figura 19 – Florian Paucke. Vista de San Javier ........................................................ 100

Figura 20 – Florian Paucke. Celebração na praça de San Javier................................. 102

Figura 21 – Florian Paucke. A Borrachera ............................................................... 118

Figura 22 – Florian Paucke. A Borrachera II.............................................................. 119

Figura 23 – Florian Paucke. Construção na Redução................................................. 113

Figura 24 – Florian Paucke. Tatuagens e adornos de face mocoví............................. 114

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12

Capítulo 1

A COMPANHIA DE JESUS E O MISSIONEIRO DOS MOCOVÍ

1.1 A Companhia de Jesus no Novo Mundo................................................................ 24

1.2. As Reduções entre os Guarani............................................................................... 28

1.3. A Redução de San Javier....................................................................................... 33

1.4. Florian Paucke e as experiências entre os Mocoví............................................... 36

Capítulo 2

A ESCRITA NA ORDEM JESUÍTA: A CRÔNICA DO MISSIONÁRIO

2.1. A escrita na Companhia de Jesus.......................................................................... 42

2.2. A crônica de Florian Paucke.................................................................................. 45

2.3. Sumário da crônica de Florian Paucke................................................................. 52

Capítulo 3

OS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII

3.1. Caçadores e coletores............................................................................................. 71

3.2. A mobilidade e o território.................................................................................... 74

3.3. A organização social dos Mocoví e as lideranças................................................. 76

3.4. Elementos étnicos................................................................................................... 79

3.4.1. A guerra.......................................................................................................... 80

3.4.2. Os cativos....................................................................................................... 83

3.5. A redução dos Mocoví............................................................................................ 83

Capítulo 4

ICONOGRAFIA: A FESTA DE SAN JAVIER E AS ASSEMBLEIAS MOCOVÍ

4.1. História e imagem................................................................................................... 85

4.2. Visões do Passado: do visual ao imaginário........................................................ 89

4.2.1. O imaginário europeu do Ameríndio.............................................................. 91

4.3. Iconografia: lendo imagens.................................................................................... 97

4.3.1 A festa de San Javier....................................................................................... 100

4.3.2. As assembleias Mocoví.................................................................................. 108

CONCLUSÃO................................................................................................................ 117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 121

ANEXO – ÍNDICE DA OBRA HACIA ALLÁ Y PARA ACÁ, DE FLORIAN

PAUCKE........................................................................................................................

127

12

INTRODUÇÃO

A imagem sempre exerceu sobre mim estranho fascínio. Ela sempre desperta minha

curiosidade, me conta histórias para além da sua aparência factual. A necessidade de

compreender a imagem me fez cursar Artes Visuais e me tornar por mais de duas décadas

professora especialista da disciplina de História da Arte em um curso de graduação na cidade

de Dourados. Em 2014 resolvi ingressar no curso de História da UFGD, com o objetivo de dar

continuidade à minha formação e entrar em contato com possíveis áreas de estudo, buscando

assim, um orientador que me auxiliaria na pesquisa, visto que me encontrava há muito tempo

longe dos estudos acadêmicos. Devido à proximidade com a problemática das populações

indígenas, voltei meus interesses para História Indígena. Mas o que pesquisar frente a tantas

possibilidades e perspectivas? Foi estudando para uma das avaliações semestrais da graduação

que me surgiu a obra do jesuíta Florian Paucke. Quase por um acaso, as imagens feitas para

ilustrar sua crônica1 Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767

apareceram na tela do meu computador. Sua obra, já nesse primeiro contato me suscitou

interesse devido ao caráter “primitivo” e ingênuo 2de suas imagens. Quanto mais lia, mais ficava

empolgada com a sua produção, principalmente pelo fato dele representar os modos de vida de

um dos grupos guaicuru – os mocoví3 no século XVIII, cuja existência desconhecia.

Ao investigar possíveis autores que pesquisavam sua obra no Brasil, descobri apenas o

livro de Bringman (2005), que traz fragmentos traduzidos para o português da crônica que

Florian Paucke escreveu em 1774. Quanto à análise de suas imagens, encontrei um artigo de

Marta Penhos (2007), pesquisadora da Argentina que analisa como as imagens dos corpos

indígenas foram concebidas por Paucke.

O tema das missões jesuíticas, que inclui as vivências dos missionários junto às

comunidades indígenas, as formas de vida daquelas sociedades indígenas, os contatos

1 Crônica – relato de fatos registrados em ordem cronológica, gênero literário onde os fatos são apenas narrados,

conservando-se sua ordem cronológica. Texto publicado em jornal ou outro tipo de periódico sobre fatos reais ou

imaginários da atualidade (LAROUSSE CULTURAL, Dicionário da Língua Portuguesa, p. 294). 2 O termo ingênuo que utilizei aqui, aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua,

original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação acadêmica no campo das artes. Essa expressão tenta descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de

pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico. (ZANINI, História geral da arte no Brasil, p.808). 3 Mocoví – um dos grupos integrantes do tronco linguístico guaicuru. Por volta do século XV ocuparam a atual

província argentina do Chaco e parte de Santiago del Estero. Eles adotaram uma economia baseada na caça e coleta

de frutos, raízes e sementes. O cavalo foi um dos elementos mais significativos que incorporaram possibilitando

ampla mobilidade no território, ampliando os meios de subsistência e intervindo na configuração social e na forma

de relacionamento com outros grupos caracterizado por lutas constantes (CALVO; BENZI, Florian Paucke: un austríaco em tierras mocovíes p. 4).

13

evangelizadores e suas relações com a sociedade colonial, constitui objeto de vários estudos na

elaboração da historiografia sobre as missões. Embora Paucke tenha mencionado em sua

crônica os contatos e as relações que estabeleceu com as missões guaranis, não encontramos

até o presente momento estudos sobre esse intercâmbio ou sobre o relato desse jesuíta em nosso

país. Acreditamos que nosso trabalho possa auxiliar futuras pesquisas devido a relevância do

tema na construção de uma História Indígena, pois observa-se um avanço significativo da

produção científica dos estudos indígenas no Brasil, assim como o crescimento da formação de

pesquisadores especialistas da área, e a ampliação do número de instituições envolvidas neste

tipo de pesquisa.

Os desenhos que mais despertaram nosso interesse foram aqueles que representam as

festas ocorridas na redução e as celebrações dos mocoví pois percebemos que essas imagens

estão a serviço de um discurso que contrapõe a barbaridade ao cristianismo. Tanto o texto como

as ilustrações das festas dos mocoví estão atravessados por um juízo negativo que essas práticas

mereciam segundo o olhar do missionário, que as percebeu como meras reuniões que os índios

realizavam com o objetivo de se embriagarem. Nos propusemos, então, a analisar o conteúdo

dessas obras pictóricas buscando elementos etnográficos e gráficos que representam a

barbaridade e aqueles que representam a transição para uma “civilidade alcançada” após a

cristianização indígena. Paucke relatou que escreveu e ilustrou sua crônica aproximadamente

sete anos após seu regresso à Europa devido à expulsão dos jesuítas da América espanhola.

Nosso olhar se volta para essa especificidade do seu relato e de suas ilustrações. Poderíamos

considerar suas imagens como um documento etnográfico mesmo que elas tenham sido feitas

de memória?

O primeiro capítulo deste trabalho dissertativo traz uma síntese da implantação,

organização e atuação da Companhia de Jesus na América espanhola e a biografia de Florian

Paucke. Quem foi Florian Paucke? Qual a sua formação? Qual o contexto sócio histórico e

cultural de que ele fazia parte? Como chegou ao continente americano? Quais foram suas

primeiras impressões ao chegar ao Novo Mundo?

No segundo capítulo evidenciamos a importância da produção escriturária para a

Companhia de Jesus como um método de informação e de união entre seus discípulos.

Apresentamos também, nesse capítulo, a crônica de Paucke: Hacia allá y para acá. Uma estada

entre los índios mocobíes (1749-1767) que relata desde a sua saída da Europa no ano de 1748,

passando por sua chegada às Índias Ocidentais, até o seu retorno em 1767, após a expulsão da

Ordem Jesuítica do continente americano. A primeira tradução para o castelhano da obra

completa de Paucke foi feita por Edmundo Wernicke e publicada entre 1942 e 1944 pela

14

Universidade Nacional de Tucumán e do Instituto Germano-Argentina. Para nossa pesquisa

utilizamos um exemplar de sua crônica publicado em 2010 pelo Ministerio de Innovación y

Cultura de la Provincia de Santa Fe. Abordamos aqui as seguintes questões: Em que condições

Paucke escreveu seu relato? Para quem e para que ele escreveu sua crônica?

A crônica escrita por Florian Paucke se configura como um testemunho da memória,

pois a escreveu em 1774, cerca de sete anos após regressar à Europa. Para desenvolver esta

questão da memória na concepção da escrita da história, se faz necessário construir um diálogo

fundamentado nas ideias de alguns autores que elaboraram uma reflexão teórica-conceitual a

respeito do papel da memória na construção historiográfica. A temática da relação entre história

e memória já foi examinada por vários pesquisadores. Trago aqui alguns autores que

contribuíram para nossas reflexões sobre as relações entre história e memória na construção de

narrativas, e que nos auxiliaram na construção de algumas análises sobre a produção escriturária

de Florian Paucke e sua relação com a memória.

O sociólogo Maurice Halbwachs, um dos pioneiros nos estudos sobre memória social,

traz como contribuição as análises quanto às diferenças entre memória e história, com realce ao

caráter social da memória. Em seu livro A Memória Coletiva, Halbwachs (2003) evoca o

depoimento da testemunha, que só tem significação em relação a um grupo do qual a

testemunha faz parte, pois o evento vivido em comum será reconstruído de acordo com o

contexto de referências no qual transita o grupo e o indivíduo que atesta esse evento.

Para Halbwachs o indivíduo participaria de dois tipos de memórias:

Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras:

tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de

vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são

imagens parciais (HALBWACHS, 2003, p.71).

Essa obra orienta nossas observações quanto aos processos que Paucke utilizou para

construir sua narrativa. Seu relato foi elaborado a partir de suas lembranças que teriam lugar no

contexto de sua personalidade ou vida pessoal, mas em certos momentos ele se comportou como

membro de um grupo evocando lembranças impessoais, na medida que estas interessaram a

esse grupo, lembrando que através dos seus escritos os jesuítas justificaram e demonstraram a

importância de sua missão: evangelizar o Novo Mundo.

Pierre Nora em seu livro Entre Memória e História (1993) traz uma análise das

diferenças entre história e memória e da fragmentação e desaparecimento das memórias

15

grupais. Para o autor, os grupos se mantêm unidos pela memória mas essa memória é tanto

coletiva quanto individualizada, sofre alterações e modificações:

A memória é a vida sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em

permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente

de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações,

susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA, 1993, p. 9).

Nora nos faz perceber que a memória de Paucke foi a matriz de sua narrativa, sendo um

canal de reapropriação do passado narrado por ele, mas que sua memória foi instruída pelo

grupo ao qual pertenceu. A Paucke foi conferido, por seus superiores hierárquicos, o dever de

não esquecer e fazer de suas memórias uma afirmação de unicidade dos processos civilizatórios

prestados à coroa espanhola pela Ordem Jesuítica. Ele foi assim imbuído do dever moral da

memória, a fim de fazer “justiça” aos trabalhos desenvolvidos pela Companhia de Jesus. As

imposições retóricas da escrita de Paucke, presentes também em outros relatos jesuíticos,

forneceu legibilidade ao seu texto e visibilidade aos eventos que narrou, por vezes em

detrimento da complexidade e da opacidade do passado vivido por ele. Esse passado foi relatado

de um modo pacífico, sem cólera, por mais doloroso que tenha sido para ele. Paucke assumiu

o dever de não esquecer o passado vivido entre os mocoví exaltando sempre o trabalho

missionário realizado por ele e seus colegas.

Loiva Otero Félix (1998) sintetiza em sua obra História e Memória – A Problemática

da Pesquisa a relação entre a história e memória, construindo uma relação dialética entre as

duas, afirmando que a história capta e estuda a memória, construindo-se através da memória.

Segundo a autora, a temática da memória já habitava o imaginário das sociedades humanas

desde o século V a. C., sendo alvo de interesse de filósofos e historiadores gregos, mas será no

século XX que as reflexões sobre o tema ganharão relevância entre os objetos de estudo das

ciências humanas. Ao perguntar pelo passado, a história tenta responder a angústia da busca

pelo sentido de nossa vida individual e coletiva. E essas perguntas que fazemos ao passado

refletem a perplexidade do que estamos vivendo no presente. Mas o passado está morto, não

pode ser resgatado como um menino que se perdeu na mata, só pode ser revisitado e visto pelo

olhar do presente, e esse olhar será construído e direcionado pela memória. Para Loiva: “O

sentido da história, o olhar para trás, ir em busca do tempo, com as vivências do presente e

poder tomar conhecimento de que o passado se recria pela memória, única forma de retê-lo, de

apreendê-lo” (FÉLIX, 1998, p.33).

16

A obra de Loiva contribui para nossa compreensão de que a memória de Paucke, o “seu

olhar para trás”, liga-se à lembrança das suas vivências, e essas estão atadas por laços afetivos.

Em seu relato ele se colocou como pertencente também ao grupo mocoví. A dimensão do

pertencimento social, criado por esses laços afetivos mantêm essas lembranças no seu presente

gerando uma memória vivida e compartilhada. Embora o fator de diferenciação das fronteiras

socioculturais tenha sido demarcado de forma sistematizada na sua narrativa, ele organizou e

descreveu os referenciais de identidade presentes nos espaços sociais da família, do lazer, do

trabalho e da religiosidade dos mocoví.

Os conceitos de memória presentes na obra História e Memória de Jacques Le Goff

(2000) nos auxilia de forma significativa quantos aos aspectos sobre memória abordados nesse

trabalho de pesquisa. Nessa obra, Le Goff aborda vários conceitos em forma de verbete. São

ensaios que ele escreveu para Enciclopédia Einaudi entre 1977 e 1982. Para Le Goff o estudo

de memória envolve várias ciências: a psicologia, fisiologia, neurologia e a biologia.

O conceito de memória nos reporta a um fenômeno individual e psicológico que

possibilitaria ao indivíduo a revisão de vivências passadas: “A memória, como capacidade de

conservar certas informações, recorre, em primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas,

graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, que ele representa

como passadas”. (LE GOFF, 2000, p.9).

A obra de Le Goff veio se juntar aos outros autores que colaboram para edificar nossas

ideias de que Paucke, no seu relato, recuperou informações, emoções e fatos vivenciados por

ele que indicaram que o aprendizado adquirido por meio da experiência pessoal persistiu através

do tempo. Os laços afetivos que ele criou na convivência diária com os mocoví e os apelos da

Ordem Jesuítica, presentes no momento em que Paucke escreveu sua narrativa, determinaram

as escolhas dos fatos passados que deveriam ser lembrados e registrados por ele em sua crônica.

O texto de J. H. Elliot, A Conquista Espanhola e a Colonização da América4 nos auxilia

na compreensão do contexto histórico da colonização da América a partir de elementos que

permitem caracterizar os principais processos de formação da sociedade colonial e as suas

dinâmicas de reprodução. Com o texto de Elliott nos foi possível ter uma visão mais ampla

sobre o processo colonizador espanhol, bem como o envolvimento dos indígenas nesse

processo, que nem sempre foi passivo. O autor faz um apanhado, desde os elementos que

4 ELLIOT, A Conquista Espanhola e a Colonização da América. In: Leslie Bethell (ed.) História da América

Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação

Alexandre de Gusmão, 2001.

17

favoreceram a conquista, até seu processo de consolidação. Elliott apontou as relações de

trabalho na América Espanhola como a mita e a encomienda e o papel dos jesuítas nestas

relações. Este texto nos fornece a fundamentação teórica para nossas considerações sobre o

papel da Companhia de Jesus no Novo Mundo.

A obra de Klaas Woortmann (2004) – O Selvagem e o Novo Mundo, é fundamental para

nosso entendimento sobre o imaginário medieval, herdado do pensamento antigo, sobre os

habitantes das antípodas que veio a ser projetado sobre os povos da América. O capítulo As

representações europeias do ameríndio nos deu o respaldo teórico quanto ao processo de

percepção e interpretação dos indígenas pelos olhares europeus. O argumento central desse

capítulo, é expor a ambiguidade fundamental entre o novo olhar renascentista e o velho olhar

medieval, a partir da compreensão europeia desse “outro” que habitava o Novo Mundo. O autor

aborda como as noções de selvageria e a ausência de civilização e humanidade reaparecem para

caracterizar os indígenas americanos: canibalismo, demonologia, monstruosidade, tudo é

transposto para América. O texto de Woortmann, nos auxilia a compreender como os

estereótipos dos ameríndios foram criados. Esses estereótipos se espalharam por toda a Europa

e povoaram as imagens pictóricas dos indígenas entre os séculos XVI e XVIII. Ao buscarmos

os significados subjacentes, através da análise das aquarelas que Paucke criou sobre as

festividades que ocorriam na redução e as assembleias mocoví, as ideias de Woortmann sobre

selvageria e civilidade foram primordiais para trazer à luz esses conceitos inseridos nas

representações pictóricas do jesuíta, onde a imagem converte a expressão subjetiva em

comunicação objetiva.

Durante nossos estudos encontramos vários trabalhos de pesquisa que utilizaram como

fonte a crônica de Florian Paucke. Comentaremos aqui alguns desses estudos devido à

relevância que têm nas nossas reflexões sobre a narrativa de Paucke.

Las memorias de Florian Paucke: Uma crônica singular de las missiones jesuítas del

Gran Chaco Argentino é o título do artigo da Professora Susana Zanetti (2013) da Universidad

Nacional de La Plata e da Universidad de Buenos Aires. Nesse artigo, a autora traz uma síntese

da crônica de Paucke, sua biografia e alguns comentários de outros autores sobre as ilustrações

que compõem a obra deste missionário, que contribui para o nosso entendimento sobre sua vida

e o tipo de relações sociais que ele estabeleceu com os mocoví e a sociedade espanhola.

As pesquisadoras Rosso e Cargnel (2012) analisam em seu artigo Historiadores y

etnógrafos: escrituras jesuíticas en el siglo XVIII. Los casos de Pedro Lozano y Paucke como

18

os discursos foram construídos sobre o território do Gran Chaco5 a partir das obras dos jesuítas

Lozano e Paucke, demarcando as diferenças entre um espaço selvagem e outro civilizado, que

inclui tanto as cidades espanholas como as reduções indígenas. As autoras entendem que tanto

Paucke como Lozano podem ser entendidos como historiadores e etnógrafos e que seus escritos

constituem observações da realidade vivida por cada um deles. Segundo as autoras, Lozano é

considerado pela comunidade científica como historiador, devido à relevância de suas obras

como fontes de pesquisa na construção da historiografia colonial desta região. Pois em 1730 e

1752, Lozano foi designado para o ofício de historiographus provinciae dedicando-se aos

trabalhos históricos da Companhia. Quanto a conceber Paucke como proto-etnógrafo, as autoras

relatam que as produções jesuíticas são vistas por vários autores como “quase” etnográficas,

caracterizando a figura dos missionários como etnógrafos. A partir da ideia de Certeau de que

as crônicas dos viajantes constituem “proto-etnologias”, as autoras consideram que se pode

falar de Paucke como um etnógrafo. Esse artigo serve para fundamentar nossa ideia de que

podemos considerar as imagens criadas por Paucke como documentos etnográficos, sem deixar

de nos ater ao fato de que a memória de Paucke é instruída e que tem como objetivo realizar

um esforço de unidade física dos membros da Ordem Jesuítica que compartilhavam lembranças

singulares, como as que estão presentes na obra de Lozano e Labrador.

No terceiro capítulo apresentamos o grupo mocoví e suas principais características

étnicas enquanto caçadores e coletores habitantes do Gran Chaco. Esse grupo foi descrito em

várias crônicas jesuíticas, mas Paucke além da sua narrativa verbal sobre os mocovís, produziu

104 aquarelas que ilustram as formas da vida vegetal, animal e humana da região no século

XVIII. Os elementos etnográficos específicos dos guaicuru presentes em suas ilustrações

confere a elas, o status de documentos históricos e etnográficos.

Como fonte importante para estudos antropológicos e etno-históricos do grupo mocoví,

destacamos a obra de Florencia Sol Nesis (2005): Los grupos mocoví en el siglo XVIII. Essa

obra nos forneceu valiosas informações para a reconstrução da história cultural dos povos pré-

hispânicos. A autora contextualiza os grupos mocoví antes da fundação da redução de San

Javier e analisa as formas de mobilidade, territorialidade e assentamento desses grupos. Ela

5 O Chaco se estende em uma extensa planície. No oeste seus limites são as serras subandinas, para leste os rios

Paraná e Paraguai e ao sul com o rio Salado; para o norte, estende-se além do rio Pilcomayo. Os rios que cruzam

esta região longitudinalmente delimitam três zonas diferenciadas por sua vegetação. O Chaco Boreal há o

predomínio de bosques cerrados; o Chaco Central tem mais florestas abertas; o Chaco Austral com predominância

de estepe. O extremo oeste apresenta bacias fluviais de grande profundidade dada a força com que os rios descem

das montanhas. No extremo leste é mais seco, baixo e úmido. O clima é quente e as estações seca e chuvosa são

bem definidas. Em relação aos recursos, o Chaco apresenta uma grande variedade de fauna e flora (NESIS, Los grupos Mocoví em siglo XVIII, p. 13).

19

centraliza seu estudo no século XVIII e examina as relações que foram construídas entre a

sociedade hispanocriola, indígenas e jesuítas na instalação de San Javier. Nosso objetivo visa

realizar uma exploração historiográfica da sua obra, a fim de apresentar um panorama mais

amplo do olhar dos jesuítas sobre os grupos guaicuru e destacar os aspectos que Florian Paucke

evidenciou em seu relato.

No quarto capítulo deste estudo propomos um exame sobre a materialidade de algumas

de aquarelas criadas por Paucke, cuja temática são as festas ocorridas na redução e as

celebrações feitas pelos mocoví. Suas imagens, assim como o texto verbal, produziram ideias.

A imagem, tal qual o texto, é polissêmica: ela elucida aspectos que o texto não consegue

expressar, comunica de forma rápida detalhes de um processo complexo que o texto escrito

levaria maior tempo para descrever (BURKE, 2017, p. 125). Sendo suas ilustrações textos não

verbais, próprios do campo imagético e que requerem interpretações específicas, elaboramos

uma análise dos elementos visuais que o autor usou em suas composições e destacamos os

traços pictóricos que representam a barbaridade e os que representam a transição para uma

cristandade civilizada.

Um artigo que orienta nossa investigação sobre as celebrações desenhadas pelo jesuíta

Florian Paucke é Cuerpos de Fiesta: Entre el desfile y la borrachera en el testimonio del jesuíta

Florian Paucke (1749-1767), de Marta Penhos (2007), doutora em História e Teoria da Arte da

Universidade de Buenos Aires. Nesse artigo, a autora observa a combinação de texto e imagem

realizadas por Paucke, utilizando ferramentas específicas da História da Arte para avaliar os

desenhos do jesuíta. Esse estudo direciona nossa análise de como Paucke construiu o espaço

composicional e como ele distribuiu os elementos da composição dentro do campo pictórico.

Paucke criou representações segundo sua percepção e valorização dos espaços que

ocupava. Essas representações foram construídas a parti de uma relação entre o representante e

o representado. Segundo Ricoeur, podemos conceituar representação como:

Uma evocação de uma coisa ausente por meio de uma coisa substituída que é o seu

representante padrão, de outro lado, a exibição de uma presença oferecida aos olhos,

a visibilidade de coisa presente tendendo a ocultar a operação de substituição que equivale a uma verdadeira substituição do ausente (RICOEUR, 2007, p. 242).

Aqui os representados são os indígenas e as representações imagéticas criadas sobre eles

foram construídas através de uma longa tradição, já encontradas na cartografia que ilustram

vários livros e crônicas de viajantes desde o século XVI até o século XVIII. Supomos que

Paucke tenha tido contato com essas imagens, devido ao caráter de erudição que marca a

formação dos membros da Companhia de Jesus, e que esse imaginário tenha servido como fonte

20

inspiradora para a criação de suas aquarelas. A obra de Roberto Gambini (1988), O Espelho

Índio, é primordial para a compreensão das representações dos indígenas americanos no sentido

de fundamentar os aspectos por nós analisados das aquarelas que Paucke criou das festividades

mocoví. Gambini, em sua obra, analisa trechos de algumas cartas jesuíticas numa perspectiva

jungiana, constatando que os missionários viam nos indígenas, através da teoria de projeção,

tudo o que não conseguiam reconhecer em si próprios: erotismo, o sagrado feminino,

espiritualidade, a espontaneidade, entre outros aspectos. São dois universos, níveis de

consciência, duas partes opostas da humanidade que se encontraram e construíram uma relação

complexa e delicada ocorrida entre os jesuítas e os habitantes originários da América.

Outro aspecto que abordamos é que as intenções de Paucke na produção de suas imagens

estão, no nosso entendimento, condicionadas pelos fatores históricos e sociais de uma época

num determinado espaço e tempo.

Para Burke (2017):

Como no caso de retratos de indivíduos, representações da sociedade nos dizem algo

sobre uma relação, a relação entre o realizador da representação e as pessoas

retratadas. A relação pode ser igualitária, mas no passado ela frequentemente foi

hierárquica. [....] O que vemos é uma opinião “pintada”, uma “visão de sociedade” num sentido ideológico mas também visual. (BURKE, 2017, p. 181-182).

Suas imagens, inspiradas pelo meio social em que ele transitou, estão vinculadas às suas

percepções individuais, à sua intuição sensível e às suas impressões enquanto um ser social

inserido num determinado contexto que se apoiava numa espécie de lógica espacial, ideológica

e histórica. Da mesma forma, as nossas percepções de suas “intenções” estão também

vinculadas às nossas experiências individuais, bem como ao lugar que ocupamos no nosso

tempo histórico. Em sua obra Testemunha Ocular, Peter Burke (2017), estudioso da história

cultural inglesa, mostra o valor das imagens como evidência histórica. Assim, ele afirma que o

livro é “escrito tanto para encorajar o uso de tal evidência, quanto para advertir usuários em

potencial a respeito dos possíveis perigos” (BURKE, 2017, p.17). Burke faz referência aos

iconografistas da Escola de Warburg, dando destaque aos níveis pictórico pré-iconográfico,

iconográfico e iconológico de Erwin Panofsky. Lanço mão desse livro como suporte teórico

para minhas considerações de que as imagens das celebrações mocoví produzidas por Paucke

podem ser consideradas como evidências históricas e etnográficas.

A obra O Significado nas Artes Visuais de Erwin Panofsky (1976), é fundamental para

nossa interpretação e análise das imagens criadas por Paucke das celebrações. Panofsky criou

um método historiográfico e iconológico que consiste em realizar a interpretação dos objetos

21

artísticos, arquitetura, pintura ou escultura, a partir da decomposição das imagens e

reconstrução de seus percursos no tempo e no espaço. Panofsky identifica tanto nas imagens da

obra de arte, quanto nas imagens da vida cotidiana, três níveis de significado ou tema, criando

um quadro semiótico para interpretação da iconografia e da iconologia das imagens:

Quadro 1 – Quadro semiótico para interpretação da iconografia e iconologia das imagens.

OBJETO DA

INTERPRETAÇÃO

ATO DA

INTERPRETAÇÃO

EQUIPAMENTO PARA

INTERPRETAÇÃO

PRINCÍPIOS

CORRETIVOS DE

INTERPRETAÇÃO

(HISTÓRIA DA

TRADIÇÃO)

I. Tema primário ou natural- (A) factual, (B)

expressional –

constituindo o mundo

dos motivos artísticos

Descrição pré-iconográfica (e análise

pseudoformal)

Experiência prática (familiaridade com

objetos e eventos)

História do estilo (compreensão da

maneira pela qual, sob

diferentes condições

históricas, objetos e

eventos foram expressos

pelas formas)

II. Tema secundário ou

convencional,

constituindo o mundo

das imagens, estórias e

alegorias

Análise Iconográfica Conhecimento de fontes

literárias (familiaridade

com temas e conceitos

específicos)

História dos Tipos

(compreensão da

maneira pela qual, sob

diferentes condições

históricas, temas ou

conceitos foram

expressos por objetos ou eventos)

III. Significado

intrínseco ou conteúdo,

constituindo o mundo

dos valores “simbólicos”

Interpretação iconológica Intuição sintética

(familiaridade com

tendências essenciais da

mente humana),

condicionada pela

psicologia pessoal e

weltanschauung

História dos sintomas

culturais ou “símbolos”

(compreensão da

maneira pela qual, sob

diferentes condições

históricas, tendências

essenciais da mente

humana foram expressas

por temas e conceitos

específicos).

Fonte: Panofsky, 1976.

O autor entende que o mundo das imagens pode ser ordenado, sendo possível fazer uma

história das imagens. Panofsky propôs que a partir da imagem se pode reconstruir seu contexto

histórico, assim como seu processo de produção e elaboração.

Outro livro que nos serve de aporte teórico-metodológico para a análise das aquarelas

de Paucke é Imagem, de Jacques Aumont (2011). O autor analisa nesta obra a multiplicidade

de estruturas da análise visual que engloba desde os processos fisiológicos do olho na percepção

visual, a mecânica da luz, até aos fatores psicossociais que estão relacionados ao olhar e às

representações estéticas ao longo da história.

22

Para desenvolvermos a análise formal das imagens criadas por Paucke, a obra de Dondis

(2003), Sintaxe da Linguagem Visual, nos fornece informações sobre as maneiras de

apreendermos a informação visual, através do conhecimento da linguagem visual e seus

códigos. No tópico “Alfabetismo visual”, ela aponta a complexidade que envolve a linguagem

visual, e que compreender e criar mensagens visuais é algo natural até certo ponto, mas que é

preciso o estudo das teorias de análise das imagens para ampliar nossa percepção das

representações visuais.

Ao analisarmos as aquarelas das festas de San Javier, comparando com as

representações das celebrações dos mocoví, a obra de Dondis norteia nossa percepção dos

elementos visuais que Paucke usou para representar dois espaços: um espaço civilizado e outro

selvagem. As cerimônias dos mocoví são representadas como ocasiões em que todos os

excessos, comum aos seres selvagens, poderiam ser praticados. Observamos que as festas

mocoví serviam para fortalecer os laços sociopolíticos entre os vários grupos do tronco

linguístico guaicuru. Foram nomeadas por Paucke de assembleias e, em sua crônica, assim

como em suas imagens, essas práticas foram observadas pelo jesuíta segundo um juízo de valor.

No contexto das missões, essas festividades e as bebedeiras representavam obstáculos à

evangelização e à civilização. As bebedeiras causavam desordem que se opunha à ordem que

os jesuítas tentavam estabelecer nas reduções.

As imagens que Paucke criou para ilustrar sua crônica são abertas a várias

interpretações, necessitando, às vezes, do texto verbal a fim de direcionar o olhar e a leitura do

observador, mas mesmo sendo associada ao texto a imagem pode suscitar outras possíveis

associações e sentidos na sua recepção pelo leitor. Imagens são textos, mas textos cujos vários

sentidos são conferidos por nossas interpretações.

Uma peculiaridade que merece ser contextualizada no cenário da produção

científica/artística do século XVIII são as inscrições, à moda de legenda explicativa, que Paucke

inseriu em suas aquarelas. Dessa maneira, o jesuíta criou uma textualidade híbrida em parte

verbal e em parte visual ao fixar essas inscrições em seus desenhos. Sendo assim, seu texto

visual se justapõe à sua narrativa verbal. Ao inserir um texto explicativo em suas imagens teria

Paucke a intenção de levar o leitor de sua crônica a “ler” suas imagens de forma “correta”? Não

seria uma tentativa de controlar os significados dessas imagens para o leitor? Paucke estaria

induzindo a “recepção” exata que o leitor deveria ter frente a suas imagens? Supomos que

Paucke produziu essas imagens para conferir veracidade à sua narrativa verbal, mas a utilização

de verbetes explicativos nas imagens tem outros precedentes, busco como exemplo dessa

prática a ilustração que Oviedo fez, em 1535, do ananás em sua obra A História Geral das

23

Índias. Nessa obra vemos as relações entre escrita e imagem como forma de compor os sentidos

que rodeiam as circunstâncias comunicativas. No seu labor classificatório, Paucke manifestou

um interesse documental pela imagem. Mas suas representações de homens, animais e plantas

compartilham um mesmo lugar nas suas observações e nos seus registros. O curioso é que sua

obra não foi publicada. Ou seja, ele escreveu um livro à mão com aquarelas que, por sua vez,

têm legenda, seu texto verbal e visual se cruzam a todo o momento em sua narrativa.

Florian Paucke como humanista descreveu a terra e seus habitantes com detalhes de

paisagista e retratista. Na sua iconografia, observamos a diferença de forma ambivalente entre

natureza e cultura no tratamento dos personagens quanto a sua humanidade e ao lugar que

ocupam no mundo. As formas de expressão plástica que ele criou representam, ao mesmo

tempo, uma experiência de ordem estética e social, pelas quais nos possibilita investigar as

diferenças culturais, primordiais à concepção da identidade étnica. O interesse da história por

aspectos materiais e culturais dos grupos sociais encontra na imagem a representação de dados

fundamentais sobre a organização social e os modos de pensar dos sujeitos que dela fazem

parte. O método de estudo utilizado por historiadores e antropólogos se baseia na observação

dos coletivos humanos e suas construções sociais e culturais. Sendo assim, o conjunto de

criações imagéticas construídos pelos e sobre os coletivos humanos, nos permite pensar a

imagem como documentos visuais que levaria a reflexões históricas e antropológicas. Paucke

nos provoca com sua obra, e nos lança um desafio de compreendê-lo por meio de suas criações.

São registros etnográficos que nos revelam um mundo culturalmente rico e complexo em suas

relações de alteridade.

A associação entre essas imagens e a memória de Paucke é objetivada a serviço de sua

narrativa. Essas imagens dotadas de conteúdos da consciência sensível, têm a capacidade de

fixar estados de coisas e representar o passado vivido por Paucke. Só retemos na memória o

essencial, o que nos confere sentidos. No processo de criação de imagens enfatizamos certos

aspectos e excluímos outros. Esse conceito de ênfase e exclusão se aplica à memória sensorial

e nos auxilia na compreensão das representações de Paucke. O tempo, os espaços e as culturas

se encontraram em seus relatos e em suas imagens, marcadas pelo seu olhar sensível.

24

Capítulo 1

A COMPANHIA DE JESUS E O MISSIONEIRO DOS MOCOVÍ

Neste capítulo nos propomos a destacar a atuação da Companhia de Jesus na América e

o papel das reduções na transformação das formas de organização econômica, política e social

das sociedades indígenas do Gran Chaco no século XVIII. Apresentamos ainda a biografia do

jesuíta Florian Paucke, autor da crônica Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios

Mocobíes -1749-1767, fonte da nossa pesquisa.

1.1 A Companhia de Jesus no Novo Mundo

A organização e a instalação da Igreja católica na América espanhola no século XVI

seguiu as principais características da Igreja da Península Ibérica no período das conquistas dos

territórios americanos, as quais foram legitimadas pelo Conselho de Trento em 1545.

O papado, através das bulas do papa Nicolau V (1455) e do papa Calisto III (1456),

interveio nas expedições de conquista, centralizando seus interesses nos aspectos humanitários

e religiosos das populações submetidas à ocupação europeia enquanto conferia legitimidade às

ações conquistadoras e dominadoras de Castela e Portugal. A estrutura básica de como seria o

processo evangelizador na América foi definida nas bulas papais de Alexandre VI em 1493 e

1501; de Júlio II em 1508; e de Adriano VI em 1523, que outorgaram a Castela os direitos

reivindicados para tomada e exploração do continente americano. Em troca dessa concessão os

reis católicos deveriam promover a conversão dos povos ditos “bárbaros” e manter e proteger

a Igreja sob o regime do patronato real. O patronato era um privilégio que o papa concedia aos

monarcas espanhóis que outorgava à coroa o controle da Igreja na América, especialmente para

nomeação de bispos. Além da nomeação de bispos a coroa poderia indicar candidatos a todos

os outros cargos religiosos, mas deveria assumir os salários, a construção e manutenção das

catedrais, igrejas, mosteiros, colégios e hospitais através do recolhimento do dízimo cobrado

sobre as produções agrícolas e pecuária, estreitando os laços entre a política eclesiástica e a

política colonial coordenada pelo conselho das Índias em 1524 (BARNADAS,A Igreja católica

na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América

Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação

Alexandre de Gusmão, 2001, p.186).

25

Segundo Barnadas:

À Igreja na América fora confiada uma missão prática: apressar a submissão e a

europeização dos índios e pregar a lealdade à coroa de Castela. Qualquer resistência

por parte da Igreja ao cumprimento dessa função era considerada um problema

político e seria tratada de maneira correspondente. (BARNADAS, A Igreja católica

na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília,

DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.186).

Esse ajuste não era muito desejável pela Igreja, mas sob o patronato real o clero

desfrutava de certa tolerância religiosa e era ouvido nos processos administrativos da coroa.

Um dos primeiros conflitos entre a Igreja e a coroa foi a legalização da encomienda feita pelo

rei Fernando. O regime de encomienda permitia que os índios fossem obrigados a trabalhar para

os colonos que poderiam exercer sobre eles direitos quase vitalícios, embora não fossem

considerados legalmente escravos. Muitos religiosos saíram em defesa dos indígenas como o

frade dominicano Antônio de Montesinos (1511) e Bartolomé de Las Casas (1514). A coroa

tentou intervir em 1512 com a Leis de Burgos que buscava mediar os conflitos e interesses

antagônicos. As duas décadas seguintes foram decisivas para Castela na consolidação do

domínio da América. A descoberta de sociedades complexas e organizadas a partir de sistemas

completamente estranhos ao europeu, além do conhecimento da extensão territorial, levaram a

Igreja a perceber a dimensão de sua tarefa evangelizadora no Novo Mundo. A conquista militar

e a espiritual eram simultâneas, mas as ordens religiosas só eram instauradas após o

estabelecimento da autoridade espanhola na região. Sendo assim, tanto a coroa quanto a Igreja

necessitavam uma da outra para executarem seus serviços. Para os missionários, conquistar as

populações indígenas significava servir a fé (Deus), ao monarca de quem eram vassalos, aos

indígenas, cujas almas salvavam, e a si próprios, como homens honrados (ELLIOT, Espanha e

América no século XVI e XVII, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina: América

Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação

Alexandre de Gusmão, 2001, p.22).

A Península Ibérica viveu vários movimentos reformistas na segunda metade do século

XV e na primeira metade do século XVI. A própria Castela reformou o episcopado,

selecionando mais rigorosamente seus representantes e exercendo uma maior austeridade no

uso do padroado. No século XVI, com os primeiros sinais da cisma luterana, o catolicismo

espanhol tentou restaurar e revigorar a prática cristã. Para muitos o Novo Mundo se apresentava

como uma oportunidade de restauração da Igreja primitiva, cujo cristianismo se mostrava puro

e imaculado. A própria Companhia de Jesus era produto desse ideal reformador, procurando

26

desenvolver um cristianismo impoluto dos erros que se estabeleceram na Fé europeia. Essa

utopia floresceu nas Reduções jesuíticas principalmente do Paraguai no século XVII e a sua

estrutura hierárquica rígida condizia com o modelo de cristianismo indicado pelo Concílio de

Trento em 1545. Pode-se observar várias tendências assumidas pela Igreja na América

Espanhola do modelo apontado pelo Concílio como a liturgia realizada em latim, que restringia

o acesso a palavra de Deus pelos fiéis, mas que consolidava a ortodoxia teológica. Com a

ascensão do protestantismo a Igreja Católica reafirmou as crenças e práticas que o

protestantismo criticou e aboliu. Esse movimento foi chamado Contrarreforma. Essas práticas

consistiam em procissões, venerações aos santos, indulgências e a devoção às almas do

purgatório (BARNADAS, A Igreja católica na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell

(ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da

Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.189).

A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola em 1534 e em 1540 foi

aprovada pelo Papa Paulo III. Com o seu lema Ad Majorem Dei Gloriam (Para a maior glória

de Deus) as características da Ordem de Jesus assentavam-se numa metodologia de agir e estar

no mundo. Essa forma de agir é marcada por um romanismo: devoção ao papado, abnegação e

obediência total ao papa (CALVO; BENZI, 2016, p. 2).

Segundo Gambini:

Como se sabe, Inácio de Loyola destacava a obediência e a disciplina como sendo as

principais virtudes dos Soldados de Cristo, cujas vidas deviam ser guiadas pela mística

do serviço. A ação, para os jesuítas, é um imperativo categórico acima de qualquer

discussão (GAMBINI, 1988, p. 67).

Na ação evangelizadora, os jesuítas acreditavam que a guerra entre Deus e Lúcifer era

travada na alma dos indivíduos, sendo assim, a conversão ao cristianismo e divulgação da

mensagem Deus era a missão maior dos religiosos. A Companhia exerceu grande influência

por quase dois séculos, no campo político, religioso, social e cultural dos países em que esteve

atuando. “Seus membros tinham sólida formação acadêmica e forte disciplina intelectual

baseada em exercícios espirituais escritos pelo fundador” (CALVO; BENZI, 2016, p. 3).

Quanto à formação educacional de seus membros, a Companhia de Jesus elaborou o

Ratio studiorum (1551-1599) cujo programa determinava os conteúdos das humanidades latinas

considerados primordiais na instrução de seus discípulos. Com o surgimento de vários colégios,

principalmente na Europa, a Companhia elaborou esse plano de estudos a fim de unificar suas

ações, centralizar decisões e seguir uma única matriz filosófica. O Ratio studiorum entrou em

27

vigor em 1599, mas na sua elaboração as artes mecânicas ou ofícios não foram contemplados.

No entanto, já em 1570 a Monumenta pedagogica trazia a sistematização das regras que

deveriam ser aplicadas aos ofícios. Na América Espanhola, por imposição do meio, os jesuítas

tiveram que contar com as oficinas mecânicas. Eles possuíam fazendas, colégios, residências e

igrejas. Para garantir a manutenção dessas unidades se fez necessário criar as oficinas de ofícios.

As oficinas ensinavam os ofícios e fabricavam mercadorias, interligando o trabalho manual

com o intelectual. Os oficiais mecânicos eram compostos por colonos livres, indígenas,

escravos negros e pelos próprios jesuítas. Os membros da Companhia de Jesus eram formados

numa rígida disciplina de obediência aos cânones teológicos escolásticos para atuarem no

mundo temporal, mas para a prática do processo evangelizador era necessário ter uma sólida

condição material de existência, do contrário, o projeto de catequização não teria êxito. Para

sobreviver num meio condicionado pelas relações mercantis, a Companhia criou estratégias

para manter e adquirir propriedades produtoras de mercadorias manufaturadas com o objetivo

de produzir capital para financiar seus bens e suas ações (FERREIRA; BITTAR, 2012, p. 693-

704).

As ações dos jesuítas eram justificadas e legitimadas pela necessidade urgente de

evangelizar as almas que viviam tão distantes do criador. Para tal empreitada tiveram que

desenvolver estratégias e métodos para doutrinar os indígenas e implantar os conceitos cristãos

de céu e inferno, e para se alcançar o céu, o único caminho possível seria a obediência a um

Deus único representado pelos missionários. O sistema educacional implantado pelos jesuítas

foi essencial para a conversão dos grupos indígenas, mas o batismo seria o rito que garantiria o

sucesso da catequização, por conseguinte, a salvação eterna dos catecúmenos. Mas a

cristianização dos indígenas não ocorreu de forma voluntária e permanente. A manutenção de

práticas indígenas consideradas pecaminosas como a poligamia, nudez e bebedeiras

dificultaram a tarefa dos missionários.

Relatar por escrito as experiências vividas era uma das tarefas fundamentais que os

jesuítas deveriam realizar em suas missões. Essa orientação esteve presente desde a fundação

da Companhia de Jesus e se tornou obrigatória entre os membros da Ordem. O ato de escrever

tornou-se fundamental para os missionários. Esses escritos deveriam narrar os trabalhos

realizados pelos membros da Companhia, informando à sede da Ordem as decisões e os feitos

dos seus discípulos nas diversas províncias. Havia as cartas, as epístolas edificantes, epístolas

administrativas e as crônicas. Os relatórios de atividade que cada provincial enviava

periodicamente ao preposto geral da Companhia, as chamadas cartas anuais, eram aprimorados

e largamente divulgados. Surgiu, assim, uma extensa correspondência que mantinha a união da

28

nova ordem religiosa que ascendia rapidamente (ROSSO; CARGNEL, 2012, p. 63). O

intercâmbio epistolar entre missionários e seus superiores tinha como objetivo informar sobre

as dificuldades enfrentadas pelos religiosos na obra catequética e de tudo que ocorria nas

missões. Os jesuítas não se limitaram a só esse tipo de informação já que descreviam também

o clima, a geografia, a fauna e a flora e as especificidades dos costumes e modos de vida dos

nativos habitantes do Novo Mundo. Nesses escritos é possível observar as lentes que os jesuítas

usavam para descrever os seres que habitavam o Novo Mundo, qual seja: missionários europeus

enviados (jogados às feras) para salvar as almas de seres humanos que viviam como animais

mais ou menos mansos ou ferozes.

A Companhia de Jesus iniciou sua missão evangelizadora na América Espanhola em

1566, após várias restrições do Conselho das Índias. A primeira viagem foi para Flórida. Saindo

da Europa, os jesuítas enfrentavam nessas longas viagens, distintos infortúnios como

tempestades, aprisionamento por corsários, guerra e morte. Era escassa a periodicidade dessas

viagens por ordem da Coroa Espanhola a fim de resguardar sua frota dos inimigos. Geralmente

os barcos em que viajavam os missionários jesuítas eram protegidos por uma forte armada.

Essas viagens eram dirigidas por um Padre Procurador, eleito em sua província de origem.

Foram numerosos os embarques de jovens jesuítas que partiram para várias partes da América.

No caso do Paraguai, entre os séculos XVII e XVIII, foram realizadas cerca de 20 viagens com

a ida de mais de sessenta missionários (PAGE, 2007, p. 3).

1.2 As Reduções entre os Guarani

As reduções tiveram sucesso quanto à pacificação das constantes lutas entre os grupos

indígenas e os espanhóis, mas as reduções também se configuraram como espaços de controle

e proteção desses grupos contra a exploração e os maus tratos dispensados aos indígenas.

Protegiam os índios contra a encomienda ou qualquer outra forma de escravidão, isentando os

mesmos de tributos que deveriam ser pagos à coroa espanhola, do serviço pessoal prestado a

colonos e da mita.

Segundo Elliot (2001), uma das bases da colonização espanhola foi o sistema de

encomienda. Esse sistema fundamentava-se em conceder “povoações mouras a membros de

ordem militares na Espanha medieval”. No Novo Mundo, esse regime não incluía a distribuição

ou arredamento de terras, era uma concessão do Estado espanhol, que consistia no repartimento,

ou distribuição dos índios. Era um ato de favor da corroa concedido inicialmente aos

29

conquistadores como recompensa. A encomienda foi um regime de mão-de-obra compulsória

indígena confiada a espanhóis particulares que deveriam “cuidar dos índios e instruí-los na fé”:

A coroa deveria recompensar seus homens com mão-de-obra indígena perpétua, na

forma de encomienda hereditárias. Os encomenderos, de seu lado, teriam uma

obrigação dupla: defender o país, poupando à coroa as despesas de manutenção de

um exército permanente, e cuidar do bem-estar espiritual e material de seus índios

(ELLIOT, A Conquista Espanhola e a Colonização da América. In: Leslie Bethell

(ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da

Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.183).

Além do sistema de encomienda, de acordo com Elliot (2001) havia o princípio da mita:

tradicional nas sociedades andinas, baseava-se em turnos, tempo ou período, que os grupos

étnicos trabalhavam para os nobres, chefes, viúvas e órfãos. A mita era uma forma de tributação

instituída aos indígenas que deveriam pagar seus tributos com turnos trabalho a coroa

espanhola. Devido às lastimáveis condições de vida proporcionada por esse tipo de relação de

trabalho no período colonial, ocorreu uma severa diminuição das populações indígenas. Leis

foram criadas para restringir o trabalho compulsório dos índios, mas não puseram fim à

“escravidão” indígena. No século XVIII as reduções desempenharam o papel de proteger os

indígenas de tais abusos. Nas reduções, os caciques que ali se estabelecessem, juntamente com

seus índios, seriam reconhecidos como vassalos do rei da Espanha e defendidos de seus

agressores.

A atuação missionária da Companhia de Jesus no Novo Mundo é um tema relevante da

historiografia americanista analisado em sua dimensão cultural, econômica, social e política

Das várias missões fundadas pelos jesuítas nas Américas as missões guarani da Província do

Paraguai ocupam um espaço significativo como tema de investigações historiográficas. No

início do século XVII foram fundadas as primeiras reduções dos guaranis. Até o início do século

XVIII, índios e jesuítas fundaram um conjunto de povoados que foi chamado de Trinta Povos

das Missões. Alguns desses povoados prosperaram e se mantiveram estáveis, chegando a

concentrar um número considerável de indígenas. Os métodos administrativos, econômicos,

arquitetônicos e religiosos empregados pelos jesuítas nessas reduções tiveram êxito e serviram

de modelo para as futuras reduções que fundaram ao longo da primeira metade do século XVIII

na região do Gran Chaco. Portanto, sentimos a necessidade de dispor sobre as reduções guarani,

já que a experiência com os guarani reduzidos serviu de padrão para a fundação da redução de

San Javier, em 1743.

Os jesuítas fundaram as primeiras reduções entre os guarani no Guairá, em 1610, a

pedido do governador de Assunção Hernandarias de Saavedra. Nas reduções, os índios

30

deveriam jurar obediência aos reis católicos e à fé católica. A autoridade real era confundida

com a divina, pois os jesuítas ensinavam aos índios que o rei é a representação de Deus na terra.

A submissão dos indígenas à coroa espanhola requereu que fossem organizados em

comunidades regidas pelas leis espanholas e que aceitassem a hierarquia administrativa

imperial.

As reduções apresentavam uma disposição de seu conjunto de edificações bem

semelhantes umas das outras. O que as diferenciavam eram as condições de subsistência e de

produção de artigos e insumos que geravam riquezas pela comercialização desses produtos. Até

o momento da expulsão dos jesuítas, havia trinta reduções nos territórios do Paraguai, Buenos

Aires e Brasil que compunham os trinta povos das missões. Na figura 1, podemos observar a

localização no mapa dessas reduções.

Figura 1 – Os Trinta povos das Missões.

Fonte: Sete povos das Missões. pousadamissoes.blogspot, 2014. Acesso em 02/2019.

A igreja era ligada ao colégio dos missionários, havia dois pátios internos quadrados

bem espaçosos e os aposentos dos padres ficavam nos edifícios próximos à igreja. Ao redor do

primeiro pátio ficavam as oficinas de armas, armazéns e as escolas. As oficinas comunais

31

ficavam ao redor do segundo pátio. O cemitério e a casa das reclusas ficavam do lado oposto

aos pátios. Um grande quadrilátero central era a praça pública, onde se erguia uma escultura

do padroeiro da redução e quatro cruzes nos quatro cantos da praça. Ao redor da praça ficava

as casas dos indígenas. Esse modelo de distribuição arquitetônica dos edifícios estava de acordo

com a legislação colonial. A figura 2 mostra uma planta baixa de uma típica redução dos trinta

povos das missões. As ruas retas e largas diminuíam o perigo de incêndios e facilitavam a

vigilância por parte dos missionários. A divisão da redução em duas partes distintas deixava

estabelecido que, de um lado, se tinha o domínio de Deus, representado pelos jesuítas, e, do

outro lado, os indígenas, seus súditos (HAUBERT, 1990, p. 76-196).

Figura 2 – Planta Baixa de uma Redução.

Fonte: Noticias.leocavallini.com. Guaranis - parte-1-2017. Acesso em 02/2019.

Normalmente, a redução era administrada por dois padres que governavam esses

grandes vilarejos que as vezes comportavam de mil a oito mil índios. O encargo material para

se manter a redução era enorme, e isso explicava o sistema econômico implantado pelos

jesuítas. A terra para o plantio era distribuída entre os índios pelo cacique, mas, segundo os

32

missionários, poucos índios se dispunham a arar a terra. Isso tem a ver com a própria

organização social do trabalho guarani em que as mulheres atuavam predominantemente nas

práticas agrícolas. Os jesuítas instituíram funcionários que fiscalizavam o plantio de cada

família, pois o cristão tinha o dever de trabalhar para ter o pão de cada dia, e caberia aos padres

obrigar os índios a fazê-lo, para isso recorriam frequentemente aos castigos.

Comercializavam a yerba ou a erva dos jesuítas (erva mate) que, desde 1620, se

constituiu em um dos principais artigos de exportação. As reduções também vendiam artesanato

e artigos para montaria para sua subsistência. O abastecimento de carne era feito pelas suas

estancias de gado. Mas esse comércio não bastava para suprir todas as necessidades da redução,

pois era preciso adquirir o sal, produtos manufaturados como anzóis, facas, armas, medalhas,

vinho, cera, óleo e as vestimentas para o culto cristão. Praticava-se o escambo, pois a moeda

praticamente não circulava na região. Mas, como vassalos do rei da Espanha, os guarani

deveriam pagar tributo, se apresentar ao serviço militar ou poderiam trabalhar nas construções

públicas por ordem dos governadores. O valor do tributo era fixado em um peso por cabeça.

Eram obrigados a pagar o tributo todos os vassalos do sexo masculino de dezoito a cinquenta

anos. Apenas os caciques e seus primogênitos eram isentos, assim como também os magistrados

municipais, sacristãos e corregedores. Para o pagamento do tributo real, os jesuítas

supervisionavam os trabalhos necessários para a aquisição dos produtos que seriam vendidos

nas cidades coloniais. (HAUBERT, 1990, p. 201-204).

Segundo Haubert:

A organização das “reduções” não é original em si: nem a palavra, nem a coisa são

uma invenção dos jesuítas. Mas as reduções entre os guaranis constituem a legislação

imperial finalmente aplicada, no sentido mais favorável ao bem temporal e espiritual

dos indígenas e à glória da companhia, que nelas imprime a marca de seu totalitarismo,

enquanto a cultura e a história missionária dos guaranis pesam, com toda a sua

pressão, sobre a administração da cidade (HAUBERT, 1990, p. 197-198,).

A rotina nas reduções era austera, com horários rígidos para os serviços religiosos, as

cerimônias do culto cristão, as visitas aos doentes e a inspeção dos campos e das oficinas. Mas

a concepção geral é que os índios eram crianças, incapazes de gerir sua própria vida, seres sem

leis, sem escrita, e, por isso, sem história, incapazes para tudo. Assim, cabia aos jesuítas agirem

como tutores, verdadeiros pais de família, papel esse que lhes foi imposto pela legislação

colonial (HAUBERT, 1990, p. 202-268).

33

1.3 A Redução de San Javier

A Ordem Jesuíta se estabeleceu em Santa Fé – Argentina, em 1610. O centro das

atividades jesuíticas se localizava em Córdoba, que mantinha a comunicação e o controle das

atividades das reduções e das escolas do amplo território platino ou paraguaio. A Ordem se

destacou entre as ordens religiosas coloniais por causa da complexidade e transcendência de

seu trabalho, tendo participação ativa na conciliação da paz entre os espanhóis e os grupos

indígenas da região. Desse processo várias cidades e reduções foram fundadas. A redução de

San Javier, criada em 1743, no Gran Charco, foi uma das primeiras reduções mocoví.

O Gran Chaco abrange os atuais territórios da Bolívia, Argentina, Brasil e Paraguai.

Apresenta uma ampla diversidade de fauna, flora, tipos de solo e climas. É dividido em: 1)

Chaco Boreal, que se prolonga até o rio Pilcomayo, estendendo-se até territórios boliviano e

paraguaio e possui florestas densas; 2) Chaco Central, que compreende a área entre o rio

Pilcomayo e o rio Bermejo, abrangendo território boliviano e argentino contendo florestas mais

abertas e 3) Chaco Austral, que fica entre o rio Bermejo e a confluência entre o rio Salado e o

rio Paraná entre a Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil, com predominância de estepe. O clima

é quente, mas devido ao regime de ventos continental e sazonal que vem da Antártica possui

variação de temperatura entre o dia e a noite e entre as estações do ano. Os principais rios que

citamos nascem nos Andes e alcançam o rio Paraguai e Paraná. Nesse amplo território,

diferentes grupos indígenas coexistiam com suas práticas e costumes característicos, alguns

desses grupos desenvolviam práticas agrícolas e outros eram caçadores e coletores como o

grupo linguístico Guaicuru formado pelos Mocoví, Toba, Payaguá, Abipone e Mbayas-

Guaycurú. Os Payaguá, além de caçar e coletar alimentos, vivam também da pesca. O espaço

geográfico tradicional habitado por esses grupos era o Gran Chaco paraguaio, área onde

predominam planícies e abrange cerca de 7000.000km² nos territórios do Paraguai, Bolívia e

Argentina. Nas fronteiras orientais do Chaco paraguaio predomina a influência cultural dos

Guarani. No ocidente, temos a atuação dos indígenas andinos e no sul dos indígenas pampianos,

predominantemente falantes da língua guaicuru (SILVA, 2014, p. 42). Por terem adotado o

cavalo6, tiveram maior domínio do território e acesso aos meios de subsistência, conseguindo

também resistir fortemente às tentativas de colonização e manter sua autonomia por mais de

três séculos. Esses grupos, caçadores e coletores, sequestravam o gado dos colonos e, quando

6 Entre os séculos XVI e XVII o cavalo europeu foi inserido no território chaquenho e possibilitou o aumento do poderio bélico e do território dos grupos indígenas da região (SILVA, A Reserva Indígena Kadiwéu, 2014, p. 43).

34

perseguidos, rapidamente entravam na selva e dificilmente eram capturados (NESIS, 2005, p.

13).

Segundo Zanetti:

Los textos coloniales españoles coinciden en condenar los rasgos culturales de estos

grupos nómades, recolectores y cazadores, cuya enorme destreza para la guerra no

pudo evitar la expansión española de la frontera tucumano-chaqueña a comienzos

del siglo XVIII, y la consiguiente mutilación del territorio étnico original (ZANETTI,

2013, p. 181).

No início do século XVIII os grupos mocoví se estabeleceram na região oeste do Chaco

entre os rios Pilcomayo e o rio Bermejo. Praticavam ataques, na região fronteira de Tucumán,

que geraram entradas pelos colonos que possuíam um corpo de milícia para sua defesa. Em

1710, alguns grupos mocoví foram expulsos dessa região e se alojaram perto das cidades de

Santa Fé e Assunção no Chaco oriental. A figura 3 mostra, no mapa, a distribuição de alguns

dos grupos indígenas da região.

Figura 3 – Mapa do Gran Chaco e a distribuição de alguns grupos indígenas.

Fonte: Mapa-del-Gran-Chaco. researchgate.net ,2017. Acesso em 02/2019.

35

As cidades dessa região estavam localizadas às margens dos rios ou em torno deles e

possuíam uma área rural para as atividades agrícolas. Eram alvo de contínuas hostilidades dos

grupos indígenas chaquenho, sendo que as possibilidades defensivas da sociedade

hispanocriola7 não conseguia conter o avanço desses grupos sobre seus assentamentos. Quanto

aos indígenas, a invasão do seu território trouxe a degradação e o desiquilíbrio ambiental, assim

como o desenvolvimento de várias epidemias, como a da varíola, que causou a diminuição do

contingente populacional indígena. A ascensão espanhola no território indígena fez com que

esses grupos ficassem encurralados em áreas pequenas e propensas a inundações, gerando

constantes conflitos interétnicos. A necessidade de sobrevivência desses grupos forçou a

mobilidade dos mesmos, dificultando ainda mais a pacificação e a cristianização dos indígenas

(NESIS, 2005, p. 14).

Para conter o aumento das hostilidades, a sociedade hispanocriola usou como recurso

acordos de paz e a criação de reduções. Caberia aos jesuítas, encarregados das reduções,

pacificar os indígenas do Chaco. Florian Paucke relata em sua crônica os constantes conflitos

ocorridos entre os indígenas da região e os moradores da cidade de Santa Fé:

Estos indios que llevan el nombre amocovit y por los españoles son llamados también

mocovíes aunque también se quiere llamarlos guaicurru, vivían en la extremidad del

gran valle llamado Chaco, distante quinientas leguas de la ciudad de Santa Fe. Pero

esta distancia no les impedía asaltar frecuentemente la ciudad, matar a maza y lanza

varios vecinos, y llevar consigo los niños como esclavos. Si bien estos mocovíes eran

muy numerosos, se aliaban con otros indios colindantes, a saber con los abipones,

cuyo verdadero nombre es acallagaec y con los tobas que en realidad se llaman

natocovit. Así marchaban a hostilizar los contornos de la ciudad de Santa Fe y a

asesinar cuantos llegaban a su alcance (PAUCKE, [1774], 2010, p. 152).

Devido aos interesses econômicos e militares da região ficou estabelecido, na

implantação das reduções, que os indígenas manteriam os acordos de paz e forneceriam ajuda

militar contra os grupos de índios não reduzidos que costumavam assaltar as cidades. Quanto

aos moradores das cidades, ficou acordado que deveriam fornecer provisões necessárias a

pequenos grupos de indígenas e que os jesuítas teriam a tarefa de converter os “bárbaros” e

manter o sustento das reduções através das práticas agrícolas e da comercialização de produtos

fabricados nas reduções (NESIS, 2005, p. 16).

7 Sociedade hispanocriola – Grupo social formado por espanhóis e criolos na América espanhola no período

colonial. Os espanhóis nativos da Espanha eram chamados de peninsulares e os brancos nascidos nas colônias de

criolos (ELLIOT, Espanha e América no século XVI e XVII, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina:

América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.24).

36

Assim nasceu a redução de San Javier, em 1743, às margens do rio de mesmo nome, no

Norte da presente província de Santa Fé, Área Sul do Chaco argentino, pertencente à província

jesuíta do Paraguai. Em 1765, a redução mocoví de San Pedro foi incorporada à redução de San

Javier. As autoridades coloniais buscavam no trabalho civilizatório dos jesuítas a submissão

dos grupos indígenas de caçadores e coletores, abrindo assim, o caminho para a posse da região,

permitindo também satisfazer a cobiça dos colonos de obter o trabalho dos índios

“domesticados". Florian Paucke chegou em 1750, nos momentos finais do estabelecimento da

redução de San Javier. Quinze anos depois, ou seja, em 1765, Paucke iniciou a fundação de

outra redução, a de San Pedro, mas não pôde concluir seu assentamento pois, em 1767, chegou

a ordem do rei Carlos III, que determinou o exílio de todos os jesuítas do território americano.

O papa Clemente XIV, em 1773, dissolveu a Companhia através da carta papal Dominus ac

Redemptor. Paucke retornou à Europa e passou a viver no mosteiro de Neuhaus, na Boêmia,

onde escreveu sua crônica. Antes de sua morte, entregou seus escritos ilustrados ao prior do

mosteiro de Zwettl na Áustria, no qual se encontram preservados em sua biblioteca (CALVO;

BENZI, 2016, p. 8).

1.4 Florian Paucke e as experiências entre os Mocoví

Quem foi Florian Paucke? Foi um jesuíta oriundo da Europa Central que, tão logo

ingressou na Companhia de Jesus, solicitou sua ida aos territórios hispano-americanos a fim de

desenvolver suas atividades missionais. Preparou-se para executar suas missões com a

aprendizagem de vários ofícios, mas sua especialidade foi a música. Foi compositor, interprete

de órgão, violino, trompa marinha e flauta transversal. A ele coube ir à Província do Paraguai,

onde permaneceu por dezoito anos no país dos Mocobíes, situado ao norte da atual Província

de Santa Fé. Sua estadia na América foi suspensa devido à ordem de expulsão da Companhia

de Jesus, em 1767, que afetou milhares de missionários jesuítas das colônias hispano-

americanas, como já havia ocorrido com os missionários que estavam nos domínios

portugueses.

Sobre sua biografia Bajo enuncia:

Posiblemente la más exacta síntesis cronológica de la vida de Florian Paucke es la

que nos ha llegado por intermedio del Padre Guillermo Furlong S.J.: Entre los

Mocobíes de Santa Fe. (Según las noticias de los Misioneros Jesuitas Joaquín

Camano,. Manuel Canelas, Francisco Burgés. Romáll Arto, Antonio Bustillo y

Florian Baucke), Buenos Aires, 1938. Los datos fueron extraídos del trabajo del "[...]

Padre José Vrastil, historiador checoslovaco, algunas noticias interesantes [...]

Archivos de Austria y publicados en la revista mensual Dobroslav (1922-1923) [...]"'

37

(pág. 208, in fine). A la información básica de J. Vrastil, se le pueden incorporar los

datos obtenidos por investigaciones especializadas, las de G. Furlong, R.W. Staudt,

Edrnundo Wernicke, C. Leonhardt, Vicente Sierra, etc. (BAJO, 1995, p. 226).

Florian Paucke nasceu em 24 de setembro de 1719 em Winzig, Silésia, região que

pertencia ao Império Austríaco. Winzig, é uma vila de Wolów County, localizado a 48 km de

Wroclaw, Baixa Silésia, agora no sudoeste da Polônia. No século XVIII, essa região da Silésia

pertencia ao reino da Boêmia e à Casa da Áustria. Após várias guerras, Frederico, o Grande, rei

da Prússia, arrebatou a Silésia e toda a Áustria.

Aos dezessete anos, em 9 de outubro de 1736, Paucke ingressou na Companhia de Jesus

em Brün, capital da Moravia. Entre 1739 e 1741 estudou filosofia em Praga, capital da Boêmia.

Em 1743 e 1744 ensinou letras em Breslau, capital da Silésia e em Neisse na Alta Silésia, onde

também lecionou a disciplina de gramática. Em 1745, foi professor de Sintaxes. Nos anos de

1746 a 1748, estudou Teologia em Breslau e em Olmütz. Para R. W. Staudr, Paucke deve ter

estudado essa disciplina em latim ou alemão, pois o ensino secundário e universitário na Áustria

no século XVIII não utilizava outro idioma e o checo estava excluído desde 1620.

Em 1747, obteve permissão do Vaticano para viajar à América. Ordenou-se sacerdote

em Brün (atualmente a maior cidade da República Checa) em 6 de janeiro de 1748. No dia 20

do mesmo mês, ainda devendo seis meses de curso, recebeu a permissão de partir para a

província Paraquaria, nome dado ao extenso território que compreende as atuais repúblicas do

Paraguai, Argentina, Bolívia e do Uruguai.

Florian Paucke chegou ao porto de Livorno em Toscana (Itália) em onze de fevereiro

de 1748, e partiu com destino à Lisboa. Nessa jornada, o grupo se deslocava a pé ou às vezes a

cavalo, e Paucke descreveu a ribeira espanhola, as paisagens amenas e perfumadas de Portugal,

a comida, a beleza das procissões religiosas, pois se encontrava em plena quaresma, a

arquitetura das cidades e o famoso porto de Cádiz, importante centro de importação de ouro e

prata da época, considerado o primeiro e mais rico porto da Espanha (PAUCKE, [1774], 2010,

p. 26-30).

Em 18 de setembro, Paucke partiu de Lisboa em um buque espanhol juntamente com

uma frota de cinquenta e três embarcações em direção a Colonia del Sacramento, as margens

do estuário do Prata a cinquenta quilômetros de Buenos Aires. A colônia foi fundada pelos

portugueses no século XVII durante as constantes lutas entre Portugal e Espanha pelo domínio

do rio da Plata. Os portugueses fundaram um forte para defesa da costa do rio da Prata e controle

sobre as entradas aos rios Uruguai e Paraná. A região foi alvo de várias disputas entre os

portugueses e espanhóis por quase um século. Após quatro meses de navegação, além da

38

viagem por terra a cavalo ou em carretas puxadas por bois, chegou a Buenos Aires em primeiro

de janeiro de 1749.

Paucke residiu por um pequeno período no Colégio Jesuíta em Buenos Aires. Logo

depois, Paucke viajou em direção à cidade de Córdoba e permaneceu no Colégio Máximo de

Córdoba por quatro anos para completar seus estudos em teologia. Ficou por quinze anos na

redução de San Javier entre os anos de 1752 e 1767. Em 1765, participou da fundação do Pueblo

de San Pedro, a oeste da redução de San Javier.

Paucke relatou que o encontro com os mocoví, tão ansiosamente aguardado, o fascinou.

Em suas aquarelas representou os índios, seu cotidiano, suas festas e ritos nos possibilitando

pensar em outras culturas, outras formas de agir e estar no mundo. Em suas reflexões sobre as

diferenças do outro, percebemos um processo de comparação que termina por qualificar esse

outro como menos instruído, menos civilizado ou menos desenvolvido, que perturbava o olhar

europeu por sua excentricidade.

Nos primeiros contatos, o desconhecimento do idioma mocoví dificultou a comunicação

entre ele e os indígenas. Com a ajuda do Pe. Burges, o cura da redução de San Javier, ao término

de dois anos, Paucke pôde, enfim, ensinar no idioma mocoví o catecismo às crianças indígenas.

Após três anos na redução, o missionário tornou-se professor, ensinando leitura, escrita e

música, organizando assim a primeira escola daquela região. Formou também a primeira

orquestra de vinte rapazes mocoví que, em 1755, se apresentou na cidade de Buenos Aires.

Paucke relatou todos os contratempos que teve que enfrentar para realizar essa viagem e a

dificuldade de obter a permissão dos pais para viajar com seus filhos. Descreveu com orgulho

a admiração do bispo de Buenos Aires e dos ouvintes em perceberem que seres bárbaros

poderiam possuir habilidade para uma arte tão harmoniosa e delicada como a música.

Paucke relata:

La música de mis muchachos fue para la admiración y diversión de todos los

huéspedes y [éstos] hubieran creído jamás que entre semejantes bárbaros se

encontraría tal habilidad para un arte armonioso tan difícil si ojos y oído no los

hubieran convencido. (PAUCKE, [1774], 2010, p. 359).

A representação do indígena como um bárbaro já se encontrava presente nos primeiros

relatos da colonização. A pintura, a cartografia e as crônicas de viagens produzidas desde o

século XVI reproduziram os combates ferozes entre os europeus e os nativos das Américas. O

índio foi concebido como selvagem de semblantes demoníacos em rituais canibalescos ou em

disputas animalescas (RAMINELLI, 1996, p. 56). Como contraponto, veio a admiração geral

39

que indígenas tivessem a capacidade musical, ou seja, uma arte tão sutil e requintada para seres

tão brutalizados e incivilizados. Acreditamos que essas representações imagéticas dos indígenas

serviram também para justificar o domínio, a violência, a espoliação e o aprisionamento dos

povos americanos.

Os argumentos de Paucke foram construídos em confrontação às críticas provenientes

dos grupos que exerciam o poder colonial. Em sua crônica evidenciou que conhecia outros

textos jesuíticos sobre a conquista do Chaco, mas realçou a importância de sua missão,

apresentando a riqueza da fauna, flora, do território, valorizando seus habitantes, se

contrapondo, algumas vezes, às avaliações negativas e ao imaginário europeu que concebia o

homem americano como fraco, doentio e bárbaro. Segundo Raminelli (1996), no decorrer dos

primeiros séculos da colonização, inúmeros relatos procuravam destacar a natureza bestial e

bárbara dos índios. Raminelli cita como exemplo de uma dessas “avaliações negativas”, os

depoimentos do padre Simão de Vasconcelos que, em sua Crônica da Companhia de Jesus

(1668), descreveu os índios como feras desumanas, vivendo:

Sem fé, sem lei, sem rei, correndo soltos na natureza como manadas, nus, possuidores

de inúmeras perversões, dados à preguiça, à mentira, à gula e à bebedeira. São brutos,

sátiros com orelhas, faces e beiços esburacados onde encaixavam paus e pedras de

várias cores (RAMINELLI, 1996, p. 27).

Paucke trabalhou na introdução da agricultura no cultivo da erva-mate e cana-de-açúcar.

Ao longo de sua estadia na redução, Pe. Florian criou várias oficinas. Os produtos

manufaturados nessas oficinas contribuíram para melhoria das condições de vida na redução,

como a criação de novas construções de alvenaria e na produção agrícola devido ao uso de

ferramentas fabricadas pelos indígenas. Os produtos excedentes produzidos na redução como

mantas, cobertores, artefatos de couro, alimentos e gado vacum, eram comercializados com as

missões dos Guarani, mantendo relações comerciais constantes com os mesmos, pois trocava

anualmente o gado por tabaco, algodão e erva-mate (ZANETTI, 2013, p. 182).

Com o aumento das tensões nas relações entre os jesuítas e os fazendeiros que queriam

utilizar a mão de obra indígena em suas fazendas em regime de semiescravidão, a rejeição e a

rivalidade entre os espanhóis e os jesuítas aumentaram. Na Espanha, as perseguições à

Companhia de Jesus se iniciaram em 1765 e, em 1767, por decreto do rei Carlos III, os jesuítas

foram expulsos da América e da Europa. Portugal decretou a expulsão dos jesuítas em 1759 e,

a França, em 1764. Da América partiram muitos jesuítas, que tiveram que sair apressadamente

do continente americano (CALVO; BENZI, 2016, p. 2). A expulsão de Paucke das Índias

40

ocorreu em setembro de 1767. Sob escolta militar, chegou em Buenos Aires em outubro do

mesmo ano. As autoridades espanholas permitiram o retorno aos seus países originários dos

padres nativos da Europa Central em 1769 e, em 1770, Paucke estava de regresso a Bohemia.

Paucke relembrou com pesar de sua expulsão e de seus companheiros jesuítas.

Segundo Barnadas (2001), para os regalistas reformadores ilustrados, o amplo poder dos

jesuítas no campo educacional e na orientação das consciências representava um empecilho

para o poder estatal sobre a Igreja. As raízes do ódio aos jesuítas desenvolvido pelas classes dos

governantes não se encontravam apenas no campo teórico das discussões ideológicas, ou seja,

entre o despotismo ilustrado e a tradição escolástica da doutrina jesuítica. Para o autor, outra

possível explicação seria “a compacta estrutura hierárquica da Companhia” que a isolava das

manipulações políticas vinda de Madrid e a tornava resistente à burocracia real. Os jesuítas

também eram independentes do poder episcopal e mais devotos ao papado, poderosos tanto nas

colônias como nas metrópoles. O “estado jesuítico” paraguaio seria mais um pretexto político

criado pelos acusadores da Companhia do que uma realidade em si. Os jesuítas construíram um

sólido patrimônio socioeconômico – missões, colégios e fazendas - sua ruína interessava ao

governo espanhol e a vários outros setores da sociedade e do clero (BARNADAS, A Igreja

católica na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.) História da América Latina:

América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF:

Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.205).

A “Pragmática Sanção” de 27 de fevereiro de 1767, promulgada por Carlos III, que

atendendo aos seus ministros, expulsou todos os inacianos de seus domínios na Europa e na

América.

De acordo com Barnadas (2001):

As Universidades, colégios e missões se viram privados de mais de 2.500 padres que

formavam parte de seu pessoal, a maioria crioulo, cosmopolitas, bem qualificados,

disciplinados e eficientes. Em realidade a derrota dos jesuítas foi a derrota de uma das

forças da Igreja que melhor podia lutar contra as aspirações autoritárias do novo

regalismo (BARNADAS, A Igreja católica na Hispano América colonial, In: Leslie

Bethell (ed.) História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I.,

Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão,

2001, p.205).

Sendo assim, sem o poderio jesuítico, nas últimas décadas do governo colonial, a Igreja

e o seu alto clero espanhol se mostraram subordinados ao poder do Estado. Sem os inacianos,

a Igreja adentrava praticamente indefesa à “etapa pré-independentista”.

De retorno a terra natal em 1771 Paucke tornou-se diretor da Congregação Mariana de

Olmütz.

41

Segundo Calvo e Benzi:

Quando a Companhia de Jesus é suprimida por Clemente XIV, ele se mudou para

Neuhaus, também no sul da Boêmia, onde vive modestamente com uma pensão

concedida pela imperatriz Maria Teresa da Áustria. Durante esses anos, ele escreve

seus registros etnográficos e desenha as folhas que o acompanham (CALVO; BENZI,

2016, p. 7).

Começou a receber sua pensão do governo de Viena em 1774 e tornou-se hóspede do

mosteiro de Zwettl. Por solicitação de seus protetores, iniciou a escrita de suas memórias.

Paucke, já idoso, reviveu suas lembranças e escreveu sua crônica. Ao lermos sua obra, a

imagem mental que obtemos de Paucke é a de um sujeito curioso e zeloso no registro de suas

experiências de viagem e de vivência entre os indígenas. Suas imagens revelam atitudes e

auxiliam na reconstrução da cultura dos mocoví e nos permite imaginar o passado desse grupo

de forma mais vívida.

Antes de morrer, o autor entregou seu manuscrito ao Prior Plácido Assem do mosteiro

de Zwettl, em cuja biblioteca sua crônica se encontra até hoje. Florian Paucke faleceu em 14 de

abril de 1780, na cidade de Neuhaus, Bohemia, aos 61 anos de idade (ZANETTI, 2013, p. 181).

Seu relato traz um passado que toca nosso tempo. Como cronista, Paucke cumpriu sua missão:

descreveu e informou sobre o novo mundo americano, tarefa imprescindível para os membros

da Companhia de Jesus.

42

Capítulo 2

A ESCRITA NA ORDEM JESUÍTA: A CRÔNICA DO MISSIONÁRIO

Neste segundo capítulo delineamos a importância da escrita para a Companhia de Jesus

observando que na produção escriturária estaria a base de um método missionário para manter

a união, informar, estimular e enaltecer a Ordem Jesuíta. Nessa perspectiva, apresentamos a

obra de Florian Paucke e elaboramos um breve sumário da sua extensa crônica para que se tome

conhecimento dos assuntos abordados por ele.

2.1 A escrita na Companhia de Jesus

A Companhia de Jesus nasceu sob o domínio da escrita como forma de comunicação,

ação e registro. O seu próprio fundador, Inácio de Loyola, era um homem de ação e das letras,

escreveu seis mil oitocentas e quinze cartas entre 1524 e 1556, e acreditava na comunicação

como forma eficaz de ação. Escreveu as Constituições que continham as diretrizes

regulamentadoras da Ordem, as Instruções aos membros da Companhia para manter a unidade

e os Exercícios Espirituais, a fim de ensinar aos padres a prática espiritual que deveria nortear

seus apostolados. Escreveu também seus diários, na busca de compreender sua própria

espiritualidade. A escrita, para os membros da Ordem, além de informar, tinha o objetivo maior

de unir todos em torno da procura da vontade de Deus em suas obras e ações apostólicas.

Segundo Londoño:

Incluindo o próprio Loyola, os primeiros jesuítas eram todos mestres em letras. Nas

gerações seguintes já estariam presentes também os doutores. Os chamados primeiros

companheiros valorizaram desde o início os aspectos relacionados com as letras, o que compreendia escrever e ler em vernáculo e em latim, ter conhecimento de outras

línguas e de textos existentes em grego e latim. Assim, obrigações comuns aos padres

de maior grau, os chamados professos, como o de viver de esmolas, não se aplicava

aos jovens que deveriam dedicar-se ao estudo. Para isto, se buscou doações e

proteções que foram constituindo um patrimônio destinado a ser investido na

formação dos jovens (LONDOÑO, 2002, p.15-16).

Portanto, a Companhia de Jesus desde a sua formação era constituída por homens

letrados e se configurava como uma Ordem descentralizada mas também hierárquica, onde a

escrita era uma das tarefas fundamentais de seus membros. Tal prática foi encorajada por seu

fundador desde o início. Nas Constituições da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola (1539-

1540) expôs os ideais jesuíticos e os princípios norteadores da organização e estruturação da

43

Ordem. Loyola estabeleceu: o vínculo entre súditos e superiores através da obediência (número

659); o incentivo do “espírito de corpo”; a uniformidade de vida e doutrina e o combate às

divisões (números 663-665 e 671-672); a chamada “união dos ânimos” e a comunicação

permanente através de cartas (números 662 e 673-676). As Constituições complementam os

Exercícios Espirituais8, escritos também por Loyola, que cuidam da parte espiritual dos seus

componentes9 (LONDOÑO, 2002, p. 14).

Inácio de Loyola havia determinado que todos os jesuítas deveriam manter uma

correspondência frequente, informando sobre suas tarefas missionais, os lugares onde estavam

e como eram recebidos nessas regiões. Os primeiros escritos tinham o propósito de formar uma

identidade e foram regulamentados dentro das Constituições, mas também trazia os objetivos

da Companhia no Novo Mundo. Além disso, a comunicação escrita entre os missionários servia

para enfrentar o desafio da dispersão dos seus membros em situações tão diversas no

cumprimento de suas missões. As cartas escritas pelos membros da Ordem informavam sobre

suas residências, sobre os afazeres cotidianos, sobre o modo de vida dos colonos e dos

indígenas. Outras relatavam aos superiores eclesiásticos e ao governo espanhol as necessidades

da colônia como a criação de residências, o envio de padres, a nomeação de superiores, a

carência de auxílio e de algumas correções face a abusos e desvios. Mas, além de informar, as

cartas deveriam primeiro edificar e consolar mostrando aos padres e irmãos a glória da missão

divina que cabia à Companhia. Essas cartas eram lidas e interpretadas por muitos, por isso

aquele que escrevia deveria se conter ao relatar suas inquietações espirituais e seu cotidiano,

pois essas cartas seriam lembradas e usadas como estímulo para jovens discípulos em suas

missões (LONDOÑO, 2002, p. 15).

8“Os Exercícios tinham a finalidade principal de purgar os pecados do discípulo e ajudá-lo a descobrir o que Deus

queria dele - o que em muitos casos consistia exatamente em entrar na Companhia, onde todos conheciam a

vontade de Deus. Trata-se de um pequeno livro sem maiores sofisticações intelectuais, antes um manual destinado

a ser usado. Já houve quem chegasse a considera-lo um guia de ginastica espiritual. Mas como salienta Jung em

seu seminário, os Exercícios podem causar um profundo impacto na consciência porque giram em torno de alguns

dos mistérios centrais do cristianismo, constituindo-se num dos poucos equivalentes europeus das técnicas

orientais de meditação, tanto que já foram chamados de ioga ocidental. Esse aspecto e sem dúvida procedente, mas

na minha opinião os Exercícios Espirituais contribuíram, quando seus praticantes são missionários com a ideia

fixa de converter indígenas, não para uma ampliação da consciência, mas para uma imputação fácil aos índios, via

projeção, de tudo aquilo que supostamente deve o meditante confrontar e trabalhar em si mesmo - e não no Outro”

(GAMBINI, O Espelho Índio,1988, p. 99). 9“Os Exercícios Espirituais eram na verdade um método escrito para disciplinar o espírito daquele que o praticava.

O praticante dos Exercícios deveria meditar sobre três pecados ligados a desobediência: Os anjos rebelados, Adão

e Eva e o homem no inferno. Para isso era necessário o praticante ficar em retiro espiritual por um mês e ter um

mentor para orientar em caso de dúvidas e apoiar nas suas experiências místicas mais intensas” (GAMBINI, O

Espelho Índio, 1988, p. 103).

44

As Regras da Companhia de Jesus não só regulamentavam a vida dos jesuítas mas,

também, como deveriam escrever. Os escritos jesuíticos, segundo Martín Morales10, se

caracterizavam por um “mostrar e encobrir”. Essas Regras definiam o que era autorizado narrar,

o que era permitido ser mostrado e profícuo para a Ordem, omitindo os conflitos e oposições

internas. Para Morales, toda produção escrita pela Companhia era regulamentada, exceto as

cartas entre os padres, embora estas também fossem revisadas. Assim sendo, todas as cartas,

relatórios, livros e crônicas fizeram circular informações e conhecimentos que comunicavam

uma imagem de uma ordem religiosa unida e compacta (ROSSO; CARGNEL, 2012, p. 66).

Esta importância dada à escrita pela Companhia gerou uma grande quantidade de

manuscritos, relatos e livros que circulavam entre as províncias e a sede da Ordem em Roma.

Esses escritos registravam as experiências vividas pelos padres ante o desconhecido, assim

como a convivência com os nativos do Novo Mundo. Todavia, além dos registros, os

missionários descreviam o meio ambiente, a flora e fauna, as características físicas e os

costumes dos indígenas. Sendo assim, os escritos tornaram-se fontes de informação e

documentação que foram e são usadas para reconstruir o passado colonial referentes aos séculos

XVI, XVII e XVIII. Os jesuítas tinham a missão de evangelizar, classificar e informar a Europa

sobre a América, construindo, através das letras, um Novo Mundo.

Ernesto Maeder11classificou de forma didática essa documentação separando os escritos

de acordo com suas funções e objetivos. Nesse sentido, dividiu esses documentos em: 1) Cartas

Annuas que eram informes anuais, bianuais e trianuais que os provinciais deveriam enviar à

Roma. 2) Las primeras crónicas y testimonio: os diários de viagem dos primeiros missionários.

3) Las historias de la Compañia: as quais foram escritas por padres designados oficialmente

para essa tarefa e, finalmente, 4) Las obras escritas en el exilio: é nessa categoria que a crônica

escrita por Floriam Paucke é classificada. A literatura de exílio é caracterizada pela necessidade

de justificar a atuação da Companhia ante sua expulsão das Américas (ROSSO; CARGNEL,

2012, p. 67).

10 MORALES, Martín María SJ. A mis manos han llegado Cartas de los PP. Generales a la Antigua Provincia

del Paraguay (1608-1639), Monumenta Historica Societatis Iesu. Nova Series, vol. I, Madrid-Roma,

Universidad Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, 2005, p. 45. 11 MAEDER, Ernesto J. A. Manual de História Argentina Colonial. Cuadernos Docentes. Resistencia - Chaco, Instituto de Investigaciones Geohistóricas (IIGHI) CONICET - UNNE, 2018, p. 330.

45

2.2 A crônica de Florian Paucke

O termo crônica tem origem grega: khronos – tempo, sendo um gênero literário que se

caracteriza por ser uma narrativa dos acontecimentos humanos em ordem cronológica. Nas

crônicas históricas o conteúdo era documental e o cronista era um documentarista da sua época,

do seu contexto social e histórico. Com o passar do tempo, o gênero se afastou da ideia de

documento mas manteve uma relação com a temporalidade, se firmando como relato que narra

o cotidiano sendo um testemunho de uma vida ou um documento de uma época. O cronista tem

liberdade de escrita e o cotidiano será registrado por meio de uma linguagem prosaica, simples,

estabelecendo, às vezes, uma interlocução com o leitor (BECKER, 2013, p. 12).

A crônica escrita por Florian Paucke utiliza o recurso do diálogo para argumentar

propondo uma relação entre o escritor e o leitor, mas as vezes ele narrou os acontecimentos

como num conto. A figura do autor é fortemente delineada e mostra uma apropriação dos

indígenas e do espaço da redução quando escreve “mis indios, mi Reducción”, mas, em alguns

momentos de sua narrativa, sua imagem é silenciada e o indígena é mostrado como um ser

capaz de dialogar desde que conduzidos por um interlocutor capacitado como é o jesuíta, seu

guia e mestre.

Para Certeau (1982, p. 191) a série de relatos de viagens que foram escritos pelos jesuítas

demarca “uma arqueologia da etnologia”, sendo eles os protos-etnólogos que construíram os

primeiros textos sobre a vida social e os seres que habitavam o Novo Mundo. Sendo assim,

alguns pesquisadores consideram Paucke como um etnógrafo.

Hacia allá y para acá. Una estada entre los indios Mocobíes -1749-1767, é o título da

crônica que Florian Paucke escreveu em 1774. O título completo do manuscrito resume os

sentimentos mistos de suas memórias ao descrever a sua permanência de dezoito anos na região

do Charco argentino:

Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos) amargados y entristecidos.

Noticia fielmente dada por un misionero en su partida desde Europa en el año 1748

hacia la América Occidental, en particular a la provincia del Paraguay y en su

retorno a Europa en el año 1769 por la cual él relata especialmente su estada por

dieciocho años en la Provincia Gran Chaco entre los Indios Mocobíes o llamados

Guaycurúes, su labor, el paganismo y cristianismo de los mencionados Indios; viaje

de retorno a Europa como también el clima, terreno, aguas, productos, bosques,

animales (cuadrúpedos), aves, peces, sabandijas reptantes y voladoras, junto con

otras exóticas y especiales condiciones, intercalada con diversos grabados, dividida

en seis partes (PAUCKE, [1774], 2010, p. 7).

“Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos) amargados y

entristecidos”. Nessa frase o autor expressa um sentimento de amargura, impotência, tristeza e

46

frustação que provinha da expulsão violenta e do exílio forçado a que se viu submetido. Além

do fato da proibição de exercer suas práticas missionárias até o fim dos seus dias, devido à

determinação da monarquia da Espanha em relação à Companhia de Jesus. Mas esse “allá” e

esse “acá” também indicam a organização do seu relato. Inicialmente, o oceano Atlântico

representa o corte entre o “cá” e o de “lá”, ele divide o mundo Antigo do Novo: o autor iniciou

contando a história da travessia: as tempestades, a pirataria, os navios. Cada capítulo relatou a

estranheza frente à agua, ar, peixes, pássaros, homens etc. A diferença se apresentou como

princípio gerador da sua narrativa. Nos capítulos em que o autor relatou os modos de viver dos

indígenas ele manifestou o mesmo princípio marcando a dissemelhança de maneira sistemática

ao longo texto. A comparação com as formas e os modos europeus criou uma cisão entre os

universos de cá e de lá. O conjunto da narrativa apresentou a divisão desses universos em toda

parte e mostrou que no trabalho de regressar à Europa o autor retornou ao mesmo.

A sua crônica se configura como um testemunho da memória, pois a escreveu cerca de

sete anos após regressar à Europa. O texto de Paucke, como todos os escritos produzidos pelos

jesuítas do século XVIII após a supressão da Companhia de Jesus, reafirma a todo o momento

o êxito da evangelização e o trabalho civilizatório das reduções. Vale lembrar que, nessa

situação, os atos de memórias não são inocentes, pois se caracterizam como tentativas de

convencer o leitor, do sucesso do empreendimento sacerdotal dos jesuítas nas Américas e assim

formar a memória de outrem. Além disso, as memórias são transformadas através das regras da

escrita. A ação principal da memória de Paucke se apresentou no comportamento narrativo que

ele criou para comunicar a outrem informações de acontecimentos ausentes. A sua narrativa

possui uma função social de informar, através da linguagem escrita, o que foi armazenado em

sua memória. As suas lembranças e os seus esquecimentos foram influenciados de forma

consciente ou inconsciente pelos seus interesses e as do grupo a que pertencia, por sua

afetividade, inibições e censuras que acabaram por direcionar sua memória individual.

Para Chartier (2009, p. 23-24), no reconhecimento do passado pela memória e na

representação do passado através do relato, deve-se considerar as figuras de retórica, imagens,

estruturas narrativas e metáforas, que irão determinar o regime ao qual o texto descritivo está

submetido. A memória assegura a certeza da existência do passado e se configura como “matriz

da história”, mas os paradigmas estruturais que regem a operação narrativa e a memória são

irredutíveis. Não se pode conceber prioridade ou superioridade de uma sobre a outra. Portanto,

o conhecimento histórico produzido através da memória se afigura como um dos aspectos das

relações que as sociedades mantêm com o passado. Através de seus instrumentos, suas

convenções e suas técnicas, a narrativa construída por Paucke criou sentidos através da forma

47

linguística empregada por ele. A sua memória individual é a fiadora da existência de um

passado em que o discurso produzido encontra certificação imediata e evidente.

A primeira tradução da obra completa de Paucke foi feita por Edmundo Wernicke entre

os anos de 1942 e 1944, mas, segundo Bajo (1995, p. 228.), até a década de quarenta daquele

século havia sido publicado, em diferentes momentos, apenas alguns textos que foram

selecionados do seu manuscrito como mostramos no quadro abaixo:

Quadro 2 – Textos da obra de Paucke publicados até a década de quarenta do século XX.

ANO AUTOR OBSERVAÇÕES

1829 Padre Juan Frast É a chamada Edição de Viena, o padre Frast era do convento de

Zwettl e tratou de melhorar a linguagem antiquada dos textos que ele

selecionou da crônica de Paucke.

1870 Padre A. Koblers A Edição Alemã, as anotações do padre Koblers consistem de

uma transcrição livre e com uma linguagem mais moderna de fragmentos

textual da obra de Paucke.

1908 Padre Augustín Bringmann

Edição de Friburgo de Brisgovia nessa edição os conteúdos etnográficos e de história foram excluídos, Bringmann deu ênfase a ação

missional de Paucke.

1900 Padre Juan

Auttweiller

Publicou Memorias del Padre Florian Baucke, missioneiro de la

Companía de Jesús(1748-1767).

1935 Padre Guillermo

Furlong

Furlong publicou em Buenos Aires: Iconografia colonial

Rioplatense. 1749-1767. Costumbres y trajes de españoles, criollos e

índios. Nesse fragmento publicado por Furlong da crônica de Paucke o

autor retrata as especificidades dos tipos humanos que compunham a

sociedade colonial espanhola e os grupos indígenas que manteve contato.

Essa edição contém algumas reproduções em preto e branco de seus

desenhos.

1938 Padre Guillermo

Furlong

Furlong publicou Entre los Mocobís de Santa Fe. Según las

noticias de los missioneiros jesuítas Joaquín Camaño, Manuel Canelas,

Francisco Burgés, Román Arto,Antonio Bustello y Florian Paucke.

1942-1944

Edmundo Wernicke

Wernicke publica em castelhano a obra completa de Florian Paucke pela Universidade Nacional de Tucumán, Departamento de

Investigaciones Regionales com a colaboração da Institucíon Cultural

Argentino-Germana de Buenos Aires, a obra está dividida em três

volumes contendo 706 páginas, com a reprodução de todas as 104

aquarelas feitas por Paucke, respeitando as medidas originais.

Fonte: Bajo, 1995.

Em 2016, tivemos acesso à edição de Edmundo Wernicke quando visitamos a biblioteca

da Universidade Nacional del Nordeste – UNNE, que é uma universidade pública da Argentina

com sede nas cidades de Corrientes e Resistencia, Províncias de Corrientes e de Chaco,

respectivamente.

Page pontua que:

A extensa obra de Paucke apenas se publicaria na sua língua em 1959, com

reproduções nas cores originais, ainda que o texto tenha sido alterado. Só dois tomos,

copiados da edição Argentina, foram publicados em 1999 e 2000, até à publicação da

48

obra completa em 2010, composta pelas 104 ilustrações, que se conservaram, exceto

uns rascunhos em lápis, junto com um CD dos textos da tradução de Wernicke (PAGE,

2019, p. 408).

Utilizamos na nossa pesquisa a edição de 2010, publicada por Espacio Santafesino

Ediciones, Argentina.

Nas primeiras páginas de sua crônica, Paucke relatou que, atendendo a um pedido de

seus favorecedores12 do mosteiro de Zwettl na Baixa Áustria, escreveu sobre sua viagem à

América e seu trabalho durante dezoito anos nas reduções:

Hasta ahora no había tenido ningún impulso para tomar la pluma y dar a conocer a

alguien mi viaje a la lejana América; pero después, a causa de las múltiples

solicitaciones de mis muy estimados y apreciados favorecedores, me he dejado

animar a acceder a su pedido dentro de mis posibles y darles a conocer tanto mi viaje

hecho por el mar mediterráneo y el mar Grande [océano atlántico] como también por

tierra en América Occidental hacia las provincias de Buenos Aires, Tucumán y

Paraguay, pero principalmente para relatarles mi actitud durante diez y ocho años en las reducciones (PAUCKE, [1774], 2010, p. 9).

Em sua crônica, o missionário descreveu vários momentos da sua vida sacerdotal, suas

relações com a sociedade colonial, as formas de vida dos mocoví, assim chamados de guaicuru,

e as campanhas evangelizadoras e conquistadoras que empreendeu naquele espaço geográfico.

Além das informações escritas, Paucke produziu 104 aquarelas, todas inseridas na edição

original, como se observa na figura 4. A edição original se encontra na Biblioteca del Convento

Cisterciense de Zwettl na Áustria.

Figura 4 – Florian Paucke. Edição original da crônica de Florian Paucke.

Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 03/2019.

12 Segundo Furlong em sua: Notícias biográfica e bibliográfica do Padre Martín Dobrizhoffer edição de 1967-

1970, teria sido Dobrizhoffer, através de suas boas relações com a coroa Austríaca quem consegui uma pensão

para Paucke. Pressupõe-se que Dobrizhoffer tenha incentivado Paucke a escrever suas memórias a fim de justificar o subsídio público que ele recebia.

49

O jesuíta construiu, assim, dois textos: um escrito e outro visual. Suas imagens, além de

ilustrar seu texto verbal, exercem também a função de contribuir para o entendimento e

interpretação do texto escrito. Concebemos e analisamos o texto visual e escrito como duas

linguagens independentes, possuidoras de códigos específicos que circulam nos processos da

comunicação.

Ao lermos a obra de Paucke, os detalhes do seu relato nos leva a pensar que ele levava

um diário onde tudo anotava e que essas anotações tenham sido usadas na construção de sua

narrativa. Embora ele tenha afirmado que, quando foi expulso de Buenos Aires, em 1767, todos

os seus bens foram sequestrados:

Yo tenía muchos libros que en parte había traído conmigo desde Europa, en parte

adquirido en Las Indias o había recibido de regalo por buenos amigos. Yo tenía tres

lindos fusiles de los cuales uno solo había costado veinte y cinco pesos fuertes; yo

tenía también muchos instrumentos musicales desde Europa como ser violín, flauta

traversa, mandora, viola d’amour327 y otros más los que los presentes se

repartieron entre ellos; a la par de éstos tenía yo mucha herramienta para trabajos

de ebanista y escultor. Todo esto junto com aquello que yo tenía de otras cosas como ser instrumentos matemáticos un instrumental entero con el círculo proporcional

[¿compás?] que por sí solo costó seis ducados en Augsburgo y era completamente

dorado, todo me fue quitado y en mi presencia secuestrado; sólo se me dejaron el

crucifijo, un antiguo breviario y dos pequeños libritos eclesiásticos (PAUCKE,

[1774], 2010, p. 470-471).

É difícil aceitar, sem questionamentos, que ele não tenha preservado anotações feitas

durante sua viagem e permanência na missão. Isso porque é capaz de descrever datas, horários,

graus náuticos, o clima, a flora e fauna e a geografia dos terrenos em que transitou. Podemos

supor que ele tenha enviado essas anotações e que, ao retornar ao mosteiro de Zwettl, tenha tido

acesso a elas enquanto escrevia sua crônica. Caso contrário, devemos considerar que o cronista

possuía uma memória notável, muito acima da normalidade. Finalmente, nesse exercício de

crítica das fontes é importante aventar a hipótese de que, ao tramar sua obra, o autor recria

cenários supondo e acreditando que assim tenha sido.

O texto de Paucke apresenta, em alguns momentos, imprecisões que são apontadas por

Bajo (1995, p. 230). Mas essas incorreções não desqualificam o trabalho de Paucke. Trata-se

de um relato construído pela sua memória que nos atraiu pelo rico material etnográfico que

compõe seu informe e o amplo conjunto de aquarelas que foram feitas para ilustrar os temas

que tratou em sua narrativa: a fauna e flora, os costumes dos indígenas, as vestimentas, os

transportes, os personagens das diversas castas existentes na América espanhola, os povoados,

as fortificações, as festas cristãs e pagãs, os desfiles militares, as lutas entre os grupos indígenas,

as armas, os vasilhames, os artefatos de montaria fabricados pelos indígenas, as práticas da

50

tatuagem entre os mocoví, as técnicas de construção etc. Paucke relatou sua experiência de

viver em um mundo distante e desconhecido. Seu olhar sensível sobre os seres e as coisas que

o rodeavam indicam que Paucke era um personagem de vasta formação artística e cultural. A

vastidão de temas abordados e o esmero do relato tornam sua obra valiosa para diversas áreas

do conhecimento como História, Geografia, Botânica, Zoologia etc.

Eduardo Bajo (1995, p. 231) assinala algumas questões que poderiam ter influenciado

no atraso da publicação da obra completa de Paucke. As dificuldades na tradução devido a

expressões idiomáticas e regionais da época utilizada por Paucke levaram os primeiros

tradutores de sua obra a classificar seu estilo como deficiente. Bajo também supõe que Paucke

teve pouco tempo para escrever sua extensa obra, além da quantidade e qualidade dos seus 104

desenhos que deve ter exigido dele um período de tempo mais prolongado comprometendo,

assim, a qualidade gramatical do seu manuscrito. Podemos então pensar que o manuscrito de

Paucke pode ter sido visto como um esquema geral para sua obra e que possivelmente o autor

esperava que ele seria corrigido, revisado, aprimorado e ampliado. Sua morte, em 1780, afetou

o curso de sua obra que deveria ser concluída e editada, mas o texto ficou incompleto e não

havia ninguém que possuía interesse pessoal em gerenciar a edição de sua obra. Além disso, as

mudanças políticas, econômicas e sociais que ocorriam na sociedade e nos mosteiros poderiam

ter contribuído para a demora da tradução e edição da crônica de Paucke.

Outra questão apontada por Bajo (1995, p. 234) é que a expulsão da Companhia de Jesus

em 1767 e, posteriormente, sua dissolução em 1773, foram medidas que envolveram muitas

monarquias europeias e o papado de Roma. Sendo assim, nos anos que se seguiram a essas

deliberações, a Companhia manteve em seus escritos e publicações uma atitude evasiva e

cautelosa sobre esse assunto. Como exemplo dessa atitude podemos citar o livro do padre

Domingo Muriel S. J.13, que trabalhava na obra de Pedro Francisco de Charlevoix S. J.,

“História do Paraguai”, entre os anos de 1586 a 1747, mas Muriel acrescentou a “Continuação”

que cobria o ano de 1747 a 1766. Em 1779, o conjunto das obras de Charlevoix foi traduzido

para o latim e publicado em Veneza. Sobre o tema da expulsão, o editor de “História do

Paraguai”, edição de 1910, aponta que: “De la expulsión no habló, porque era materia que

podía impedir la impresión de lo restante y acarreara todavía mayores disgustos [...]” (Nota

do Editor, em Charlevoix, 1910, p. 10).

13 O padre Domingo Muriel foi o último provincial da Província do Paraguai e o último Procurador a voltar para

Europa, coube a ele o doloroso ministério de ouvir e aceitar o ofício de intimação da extinção do papa Clemente XIV (“Advertência” do editor contida no livro “História do Paraguai” de Charlevoix, 1910).

51

Por sua vez, o livro História de los Abipones. Una nación ecuestre y belicosa de

Paracuaria, de Dobrizhoffer, que foi publicado alguns anos depois do livro do padre Muriel,

traz poucas informações sobre a questão da expulsão da Companhia do Paraguai. O autor

pontua que:

Aunque el decreto real por el que se nos ordenaba regresar a Europa por causas

todavía desconocidas y que estarán ocultas en el corazón del Rey, nos pareció más acerba que cualquier muerte [...] A nosotros que desterrados de Paracuaria vivimos

incólumes hasta hoy por Gracia de Dios, nos es muy dulce recordar los trabajos en

que estuvimos sumidos cuando por espacio de muchos años [...] (DOBRIZHOFFER,

[1783], 1967, p. 377-378, tomo III).

Portanto, Dobrizhoffer, assim como T. Falkne, em 1774, J. Jolis, em 1789, e J. Sanchez

Labrador, em 1772, que tiveram suas memórias publicadas após a expulsão, não abordaram o

assunto da expulsão de forma contundente e descritiva como Paucke o fez em sua narrativa

(BAJO, 1995, p. 234).

Paucke dedicou a esse tema a quinta parte da sua crônica, com cerca de sete capítulos e

64 páginas, com o título Los jesuitas expulsados de Paracuaria. O autor descreveu as

dificuldades enfrentadas na prisão, na viagem de regresso e a tristeza que assolava a todos diante

de um futuro de incertezas. Paucke ([1774], 2010, p. 482) questionava a todo o momento do

porquê dessa decisão real: “¿Cuál fue el motivo? No lo conocían ni ellos ni nosotros”, ou seja,

ele sabia que estava enfrentando um exílio por problemas políticos, não fez concessões ao poder

real que o punia, não aceitou as limitações nem censuras. Supomos que talvez tenha sido esse

um forte motivo para que sua obra não tenha sido publicada em seu tempo. Se observarmos o

título significativo de sua obra “Hacia allá (fuimos) amenos y alegres, para acá (volvimos)

amargados y entristecidos” percebemos que estamos diante de um caso típico de um exilado

por questões ideológicas.

A obra de Paucke é uma crônica de exílio, segundo a classificação de Maeder, e como

já dissemos, se afigura como um testemunho da memória, ele foi testemunha dos fatos que

narrou, ele relatou o vivido por ele naquele espaço e tempo buscando na sua memória os

referenciais para construir sua narrativa. Nesse contexto, Halbwachs (2003, p. 29-71) afirma

que as memórias são recordadas pelos indivíduos que determinam o que é memorável, como e

quais eventos deverão ser lembrados, ou seja, os acontecimentos públicos de importância para

o grupo. Para Halbwachs, o relato criado pela testemunha só tem significação se a mesma tiver

participado do evento real junto a um determinado grupo. As lembranças da testemunha

dependerão do contexto de referência em que ela transita e das representações coletivas de sua

52

própria cultura no momento de reconstruir o passado. Paucke na construção da sua memória

escolheu os fatos a serem lembrados ou esquecidos de acordo com as razões políticas e

históricas do grupo a que pertencia. Através de suas memórias, Paucke realizou um esforço de

unidade com os membros da Ordem Jesuíta que compartilhava com ele lembranças singulares,

vemos isso nas obras de outros jesuítas como na de Sánchez Labrador.

É no exílio que Paucke recebeu incentivo para consagrar através de suas lembranças o

grupo a que pertencia. Os apelos do seu exílio explicam porque sua memória retirou do passado

apenas alguns elementos que puderam lhe dar uma configuração ordenada e coerente na

construção de uma identidade de grupo, principalmente quando situações externas tentam

danificar ou caluniar os elementos que unem esse grupo. Ou seja, “as memórias são marcadas

pelas fronteiras do poder e passíveis de manipulações por interesses políticos e de grupos”

(FÉLIX, 1998, p. 97).

2.3 Sumário da crônica de Florian Paucke

Florian Paucke representou em sua crônica várias personalidades como militares,

padres, marinheiros, administradores coloniais e os indígenas. Esses registros das

peculiaridades culturais e o exotismo dos povos que viviam no continente americano ajudaram

a construir uma concepção política, social e religiosa do outro que caracterizou o tipo de

relações que os europeus que vieram para a América a fim de colonizá-la ou de evangelizar

mantiveram com os povos originários. Sua crônica está dividida em seis partes14. Para cada

parte ele atribuiu um título que, por sua vez, dividiu em uma série de capítulos. Cada capítulo

difere um do outro em número de páginas. Ao lado de suas narrativas verbais o autor inseriu

seus desenhos ilustrativos feitos em aquarelas. Além disso, quando descreveu as tatuagens na

terceira parte de sua crônica, ele representou na lateral esquerda do texto descritivo os modelos

de desenhos que os mocoví usavam para tatuar seus corpos.

O seu relato é um testemunho e como tal necessita ser analisado dentro de uma série de

contextos: cultural, político, econômico e religioso. Além disso, devemos levar em

consideração as questões da retórica, da função do texto, da credibilidade concedida à

testemunha ocular dos fatos e da memória. Quanto à questão da memória, Flamarion e Vainfas

(2012, p.325) assinala que os historiadores iniciaram seus estudos sobre memória e história oral

na década de 1960, e foram aprofundando seus estudos na década seguinte sob inspiração da

14 O Índice da obra Hacia allá y para acá, de Florian Paucke, está no Anexo deste trabalho.

53

historiografia francesa. A crítica tradicional imposta aos documentos históricos serviu de

parâmetro para averiguação e elaboração de críticas confiáveis da reminiscência. A memória

também será estudada como um fenômeno histórico, levando-se em consideração que é preciso

identificar os fatores de seleção, as interferências sofridas pelos grupos nas relações do espaço

e o passar do tempo.

Quanto ao caso do testemunho e da relação de credibilidade outorgada à testemunha dos

fatos e suas declarações, Paucke, já na introdução de sua crônica, solicitou o “status de verdade”

e de credibilidade ao seu relato:

Pero a lo que yo me obligo especialmente durante el transcurso de este relato e información será a observar la sincera verdad de mi informe, la que no se basará

sobre noticias ajenas recogidas sino sobre la experiencia propia. si acaso se

incluyera algo que fuera conocido por informes extraños, será mi deber el no

ocultarlo al lector y dejar establecida la verdad de aquellas cosas allí donde y por

quien me han sido comunicadas (PAUCKE, [1774], 2010, p. 9).

Mas a aceitação da palavra do seu testemunho como verdadeira só ocorrerá após passar

pelo crivo crítico dos pesquisadores de sua obra que utilizaram os critérios de validação e

regimes de provas encontrados em outras fontes de pesquisa.

A Primeira Parte da crônica tem como título: Partida desde Europa hacia las Indias

Occidentales de América. Essa parte é composta por quinze capítulos e 137 páginas onde o

autor relatou sua saída da Europa até sua chegada em primeiro de janeiro de 1749 na redução

de San Javier, ao norte da província de Santa Fé, no atual território argentino. Paucke tinha 29

anos e navegou por quatro meses com outros missionários, entre eles, Martín Dobrizhoffer15.

Paucke descreveu o buque, as condições da alimentação e da água oferecida à tripulação, as

grandes tormentas que sofreram na passagem do Mediterrâneo e na chegada ao trópico de

Capricórnio e as dificuldades que enfrentaram na travessia do Estreito de Gibraltar. Nessa parte

se ocupou também de especificar as condições do tempo, da água do mar, de descrever alguns

tipos de peixes e de explicar como os marinheiros captavam água da chuva para consumo:

El 15 de octubre el cielo estaba cubierto por fuerte nublazón [y] comenzó a llover.

Nos alegramos entonces por haber podido captar bastante agua para nuestra bebida.

Pudimos a la vez asear nuestra ropa pues el agua de mar quema mucho el lienzo y tampoco limpia tanto como el agua dulce. Para captar el agua cada uno usaba su

sábana blanca que se ataba de las cuatro puntas en los cabos y se colocaba debajo

una vasija en la cual se escurría el agua. Hoy fue imposible hacer una observación

mediante el cuadrante. Poco antes de medio día experimentamos de nuevo una calma.

A mediodía nos visitaron otra vez muchas tuninas que trajeron con ellas un fuerte

15 Martín Dobrizhoffer é autor da História de los Abipones. Uma nación ecuestre y belicosa de Paracuaria (1783) onde relatou seu trabalho evangelizador na Província Paracuaria.

54

chaparrón; también los manteles tuvieron que ayudar entonces a captar el agua y

captaron lo suficiente para beber pues el agua que se daba en la mesa consistía de

dos vasos cerveceros lo que era muy poca para tanto calor que día y noche nos

exprimía bastante sudor (PAUCKE, [1774], 2010, p. 60).

Observamos no relato de Paucke que ele citou a data dos acontecimentos, isso é uma

redação de diário e reforça a ideia que ele deva ter feito anotações escritas desses pormenores.

O autor relatou a escassez de água doce e potável, além das péssimas condições em que a mesma

era armazenada, causando problemas intestinais na tripulação. Essa forma de obter água que o

autor descreveu, as dificuldades enfrentadas nas viagens marítimas e a situação insalubre em

que os tripulantes eram submetidos durante a travessia entre a Europa e a América estão

presentes em vários relatos de jesuítas, como nas cartas do padre Antônio Sepp:

No quiero hablar mucho aquí del agua potable, que a menudo hedía como un chaco.

¡Cómo hemos agradecido al Cielo genereso cuando llovía y podíamos recoger el

agua de lluvia en sábanas, sombreros y vajilla! Tampoco quiero hablar mucho de las

otras molestias que nos deparaban los mosquitos, chinches, pulgas y la “menta

blanca” de los soldados, piojos e ladillas. Nos molestaban día y noche […] (SEPP,

[1691], 1972, p. 117).

A carta do padre Antônio María Fanelli sobre sua viagem de 1698 também descreveu

como era a captação de água da chuva no navio e as condições de seu armazenamento. Ou seja,

há diversos relatos de jesuítas que descreveram as várias situações a que se sujeitavam na

passagem do Atlântico, desde as tempestades, aprisionamento por corsários, guerras, a

insalubridade e a escassez de água e comida, as péssimas acomodações até o clima, a fauna

marinha e a cor da água do mar. O relato de Paucke faz parte dessa tradição narrativa dos

membros da Companhia de Jesus.

Em cada cidade que aportou, Florian Paucke descreveu sua arquitetura e suas belezas

naturais, narrou pormenores das cidades de Málaga, Lisboa e seu porto, Córdoba, Tucumã,

Santa Fé e a cidade de Buenos Aires, que o impressionou de certa maneira:

Buenos Aires es en todo el territorio de Paraquaria la más grande y más notable

ciudad, mayor que Praga en Bohemia pero no tan magnífica aunque más ordenada pues las calles son rectas como a cordel de modo que desde la plaza puede mirarse

hasta la campaña y desde esta hasta la plaza sin obstáculo (PAUCKE, [1774], 2010,

p. 95).

Em relação às descrições que Paucke fez dos vários espaços que percorreu, abordamos

a importância do espaço na transmissão e na construção das memórias. Para Halbwachs (2003,

p. 159) cada pormenor, cada detalhe de um lugar tem um sentido que só é compreendido para

55

o membro de um determinado grupo, porque os espaços que ele ocupou condiz a outros aspectos

diferentes e estáveis da vida de sua coletividade. Para o autor “não há memória coletiva que

não aconteça em um contexto espacial” (2003, p. 170), pois o espaço é uma realidade que dura.

O ambiente material em que o Paucke viveu, os espaços que ocupou, percorreu, foram fixados

em seu pensamento e que através das lembranças desses espaços Paucke pode em sua

imaginação, revisitar o passado e assim reconstruí-lo por meio da escrita.

O caminho para Córdoba foi feito de carroça, sendo que Paucke desenhou e narrou esse

meio de transporte de forma pormenorizada. Na aquarela da figura 5, além do desenho do carro

puxados por quatro bois e das lanças com adornos coloridos, ele criou um verbete explicativo.

Figura 5 – Florian Paucke. Carro de boi.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

Ele mostrou interesse pelas singularidades e costumes locais nos seus registros e essa

conduta sustenta em grande parte o interesse por seu manuscrito. Foram essas singularidades

que levou o pesquisador e professor da Universidade Nacional de Córdoba, Eduardo Bajo, a se

interessar pela obra de Paucke. Ele nos informa:

Hace aproximadamente un tercio de siglo accedí a la obra de Florian Paucke, parte

de un amplio conjunto de memorias y descripciones de viajes que estaba consultando

en razón de una investigación histórica sobre las vías de comunicación y los medios

de transporte en el territorio cordobés (BAJO, 1995, p. 225).

56

Além dos meios de transporte, Bajo encontrou na obra de Paucke informações sobre a

toponímia, metrologia e cartografia do período colonial do que hoje se constitui o território

argentino. O conjunto de aquarelas que compõe a crônica de Paucke despertou em Bajo o desejo

de analisar de forma particularizada sua obra e, em 1995, ele publicou o artigo La Obra del

Padre Florian Paucke S.J. pela revista Estudios do Centro de Estudios Avanzados de la

Universidad Nacional de Córdoba. Nesse artigo, Bajo analisa várias possibilidades da não

publicação da crônica de Paucke em sua época e aborda a estrutura geral e as soluções narrativas

de sua obra enaltecendo seu trabalho.

No capítulo XV, Paucke descreveu as condições da redução de San Javier. Caracterizou

as construções cujas paredes feitas de couro de gado com telhado de palha exalavam um odor

desagradável. Expôs as condições precárias da aldeia, a falta de limpeza do terreno, os inúmeros

cachorros, galinhas e bois que circulavam livremente pela redução. O calor constante, os

barulhos noturnos que os animais faziam, os insetos e as moscas que ele referiu como o quinto

elemento existente no Chaco. Mas contou que “A pesar de todas estas incomodidades yo no

puedo decir que me fuera difícil permanecer en esta región desiert” ([1774], 2010, p. 150).

Essa frase de Paucke evidencia aqui um caráter contraditório de sua prosa, pois apesar das

péssimas condições em que se encontrava a aldeia, ele não sentiu dificuldades para executar

sua missão, estava preparado para tal empreitada. Observamos que as descrições de tais

empecilhos serviram para que o leitor de seu manuscrito percebesse o tamanho dos obstáculos

e incômodos enfrentados pelos jesuítas e o quanto eles estavam aptos para suas missões. A

despeito de todos os riscos e desconfortos a que foram submetidos, seus trabalhos missionários

foram realizados com êxito.

Aqui a memória de Paucke se fundamenta no espaço, no gesto, na imagem, no objeto,

nos fatos vividos por ele, mas ela aflora de um grupo que ela une – os jesuítas. As narrativas

são sempre seletivas e, às vezes, contraditórias, devido à própria configuração que o texto

narrativo oferece, Paucke não pode lembrar de tudo e é incapaz de tudo narrar. Na composição

do seu trabalho narrativo encontram-se as estratégias do esquecimento, como a evasão e fuga

de alguns assuntos. Paucke se deparou com a dificuldade de narrar a ele próprio, seus

sentimentos, na maioria das vezes, estão ausentes no seu relato. Sua prosa nos transmite a ideia

de que ele observou os fatos de um lugar que a superioridade de sua condição de civilizador e

evangelizador lhe conferiu. Mas, segundo Pierre Nora, a memória é afetiva, é a vida sempre

carregada pelos sujeitos, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento:

57

A memória é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam;

ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares

ou simbólicas, sensíveis a todas transferências, cenas, censura ou projeções. A

história, porque operação intelectual e laicizante demanda análise e discurso crítico.

A memória instala a lembrança do sagrado, a história a liberta, e a torna sempre

prosaica (NORA, 1993, p.9).

Sendo assim, Paucke fez uma reconstrução parcial e problemática do passado, de algo

que não existia mais no momento em que ele escreveu sua crônica, mas sua memória é atual na

altura de sua escrita e mantém uma conexão com o seu presente. A distância temporal e espacial

entre o momento em que ele escreveu seu relato e a experiência vivida no continente americano

é marcada pela necessidade de validação do trabalho missionário presente nas crônicas

jesuíticas escritas no exílio. No texto de Paucke notamos que a história do seu passado pessoal,

as referências à sua terra ou aos eventos após os anos americanos praticamente estão ausentes,

ele se concentra em relatar seu apostolado e só no título de sua crônica “para acá” ele se refere

ao retorno à sua casa.

A Segunda Parte da narrativa de Paucke se intitula Mi estada y trabajo en Paracuaria.

Possui dezesseis capítulos e 103 páginas em que o autor narrou a fundação de San Javier, em

1743. É uma narrativa histórica que Paucke fez segundo o relato de seu fundador, o padre

Francisco Burges, que o recebeu quando ele chegou à redução. Ao narrar esse começo de San

Javier, Paucke acentuou a sua importância, pois com a redução dos mocoví os ataques à cidade

de Santa Fé por esses indígenas diminuíram consideravelmente. As forças militares apoiaram a

fundação de San Javier, pois os militares não tiveram sucesso para impedir os ataques indígenas,

que logo que se viam perseguidos entravam nas matas, pois conheciam muito bem o território

e isso lhes asseguravam proteção e subsistência. Os textos coloniais ou os relatos jesuíticos

rejeitam as características culturais dos grupos nômades, coletores e caçadores como os mocoví,

que embora possuindo destreza para guerra, não conseguiram evitar a expansão do domínio

espanhol na fronteira Tucumán-Chaco no início do século XVIII. Essa expansão diminuiu o

território indígena e os deslocou para as zonas inundáveis do Chaco. Com o encolhimento do

território e a necessidade de melhorar os meios de subsistência, os conflitos entre os grupos

indígenas chaquenho aumentaram e forçou a mobilidade constante desses grupos, dificultando

o controle e a pacificação dos assentamentos jesuítas (ZANETTI, 2013, p. 181-182).

Paucke enfatizou a necessidade de ensinar aos mocoví as várias práticas culturais

europeias a fim de sedentarizar os indígenas, ajudar na sua manutenção e na da redução,

facilitando a incorporação dos índios à sociedade espanhola, pois relatou que frequentemente

os indígenas eram enganados, explorados e mal tratados pelos espanhóis. Para isso ressaltou os

58

ofícios, como meio de domesticação e inserção dos nativos. Paucke ensinou música e organizou

oficinas de carpintaria, sapataria, olaria, tecelagem, escultura, pão, fabricação de tijolos, sabão,

velas e nos trabalhos de construção. Como já citamos no primeiro capítulo, a produção dessas

oficinas mantinha boa parte das necessidades da redução e o excedente era comercializado para

pagar tributos à coroa, comprar materiais religiosos, roupas para os padres, vinho, anzóis etc.

No capítulo XIII ele descreveu o labor diário dos mocoví na agricultura. Mas

observamos que, com o processo de colonização e a redução do seu território, estes grupos

acabaram por incorporar os produtos europeus provocando, assim, mudanças políticas,

econômicas e sociais nas relações interétnicas. Segundo Calvo e Benzi (2016, p. 5), os guaicuru

aproveitaram o desenvolvimento da economia colonial, baseada principalmente na pecuária, e

inseriram a bovinocultura e a criação de cavalos nos seus usos e costumes. Passaram a utilizar

o couro bovino na construção de suas casas, nas vestimentas e a carne bovina na alimentação.

Anteriormente, usavam o couro de onças ou veados somente para confecção de suas

indumentárias. Paucke criou uma série de aquarelas representando a vestimenta, tanto da

sociedade colonial, como as dos mocoví. A figura 6 mostra os adornos coloridos de cabeça,

confeccionados em couro, enfeitados com penas de pássaros da região e o tipo de túnica de

couro que os homens mocoví usavam.

Figura 6 – Florian Paucke. Indumentária mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

59

Paucke narrou que, além da pecuária, os mocoví pescavam e passaram a praticar a

agricultura introduzida pelos missionários baseada em corte e queimada, aproveitando a clareira

para o plantio de várias espécies vegetais.

Esta segunda parte o autor termina com a descrição do cacique Nalangain e a sua

aceitação ao batismo. Em relação ao estilo textual da narrativa, vale destacar que Paucke

utilizou, nalgumas passagens, o recurso de um suposto diálogo: “si las preguntas se siguen em

buen orden, la capacidade memorativa podrá contestar con mayor facilidade”16. Supomos,

como já havíamos comentado, que Paucke utilizou esse recurso para demonstrar aos europeus

que os indígenas podiam dialogar, desde que conduzidos por ele. Muitos diálogos entre Paucke

e os indígenas apareceram em sua narrativa em formato de reflexões quase filosóficas. Vale

exemplificar com o debate que manteve com o cacique Nalangain.

Segundo Paucke, esse cacique o informou que em sua terra selvagem os seus

companheiros também acreditavam que suas almas não morriam e que seria preciso buscar

alimentos nos bosques, mas, para que a alma pudesse caçar, era necessário ter em sua sepultura

a lança e as armas para caça. Além do mais, seria necessário o cavalo que durante a vida serviu

ao índio, por isso abatiam também o cavalo que seguiria seu dono no além. Paucke continua

através do diálogo com o cacique Nalangain a ponderar sobre a animalidade dos indígenas antes

da redução, as concepções da vida após a morte dos mocoví, as diferenças entre os índios, os

animais e a superioridade do Deus cristão:

Yo he reflexionado bien todo —dijo él— y en muchas noches en vez de descansar he

comparado nuestra vida salvaje con la vida cristiana; he encontrado también la gran

diferencia entre nuestra vida y la vida cristiana y conocido que nosotros no somos

gentes sino animales que no tienen leyes. Pero he observado también que no somos

animales sino algo mucho más elevado porque somos los amos de todos los animales

que deben obedecernos y en parte servir para nuestra alimentación, en parte ayudar

a buscar nuestra alimentación. Ahora si somos amos de ellos no debemos vivir como

los animales sino como sus amos que no tienen un modo de vivir igual a los animales;

ahora como somos diferentes a los animales en el vivir, no debemos tampoco ser iguales a ellos en la muerte. Yo bien he oído de ti que nosotros, los seres humanos,

somos completamente diferentes en el alma pues cuando éstos son muertos o crepan

[revientan] ha terminado todo tanto su cuerpo como su alma, pero cuando nosotros

morimos, permanece viva nuestra alma que jamás ha de morir (PAUCKE, [1774],

2010, p. 249-250).

O argumento que Paucke coloca na fala dos indígenas se traduz numa força que legitima

sua própria fala, que através da cristianização dos indígenas eles se tornariam humanos, saindo

do estado animalesco e que assim teriam suas almas salvas. Como já foi dito, a narrativa de

16 PAUCKE, F. Hacia allá y para acá – 1ªed. - Santa Fe: Ministerio de Innovación y Cultura de la Província de Santa Fe. Parte III, p. 258, 2010.

60

Paucke foi construída durante seu exílio. Suas memórias tinham uma finalidade pedagógica e

estavam condicionadas às situações do seu presente. Ao narrar os diálogos que manteve com o

cacique Nalangain, essas lembranças que foram fragmentadas e selecionadas são apresentadas

como se fossem o próprio acontecimento e não uma versão deste construída após vários anos

do ocorrido.

Na Terceira Parte da crônica de Florian Paucke – De la manera de vivir, usos y

costumbres de los indios americanos en el paganismo, o autor faz uma descrição De la figura

y color dos indígenas da região do Gran Chaco. Esta parte da crônica possui vinte capítulos e

146 páginas. Em todos os capítulos Paucke descreveu os modos de ser e viver dos mocoví. As

comparações com o modelo europeu permeiam todo o texto e se justificam pela tentativa do

autor de tornar o desconhecido conhecível a partir de um modelo preexistente. Apesar das

diferenças descritas por Paucke em relação ao modelo europeu, ele se reconheceu nelas, pois a

diferença é o elemento fundamental na percepção da igualdade entre os homens e mulheres. Ao

se deparar com os costumes dos indígenas, Paucke se deparou com os seus próprios costumes.

Como exemplo das diversidades descritas por ele trazemos esse trecho de sua crônica

no qual iniciou seu relato com o questionamento: “¿Los indios son pues, hombres como

nosotros?” Sua resposta é afirmativa quanto aos aspectos físicos dos índios, mas apontou as

distinções em relação aos valores culturais e espirituais dos europeus:

Lo que concierne a su alma y a la conformación de los miembros del cuerpo, ellos

son hombres como todos nosotros aunque tengan escaso parecido con nosotros en su

color, modo de vivir y otras costumbres porque se han desarrollado en selvas

conforme a sus impulsos sin la menor instrucción, mientras nosotros hemos sido

inducidos a una conducta moral por la educación y la enseñanza, por la vida moral

de otros, por lectura de las historias y hechos de nuestros antepasados. (PAUCKE, [1774], 2010, p. 258)

Segundo Todorov (1996, p. 100), nas relações de alteridade, a diferença percebida parte

antes de tudo na busca de semelhanças, mas, para buscar a igualdade entre os seres, se faz

necessário um olhar interior dos nossos próprios modos de viver e de se relacionar com esse

outro. Ou seja, é a partir do conhecimento de nós mesmos que concebemos o outro e suas

especificidades. As relações com o outro se dão em vários aspectos. De início, tende-se a fazer

um julgamento de valor: o outro é igual a mim ou inferior a mim, o outro é bom ou mau, gosto

ou não gosto do outro. Num segundo momento, há aproximação ou distanciamento do outro,

nessa ação pode ocorrer a identificação com o outro ou assimilação do outro, ou ainda a

submissão do outro impondo a imagem daquele que quer subjugar, ou a submissão ao outro.

Num terceiro momento nas relações de alteridade, pode haver indiferença ou neutralidade ao

61

outro, ou seja, conheço mas ignoro a identidade do outro. Sendo o mocoví, o outro que deveria

ser subjugado ao europeu colonizador e evangelizador. Habitante tradicional do Gran Chaco

paraguaio, era conhecido na época colonial como índios cavaleiros. A adoção do cavalo por

esse grupo possibilitou uma grande mobilidade que facilitou a subsistência e determinou certo

tipo de organização social caracterizado por lutas com outros grupos indígenas. Na figura 7

Paucke representou os mocoví no trato com os cavalos, e, da forma como ele construiu a

composição, percebemos a mobilidade pelo deslocamento dos personagens sobre linhas

diagonais, que induz o olhar do observador para o canto esquerdo do quadro onde ele pintou o

curral.

Figura 7 – Florian Paucke. Índios levando cavalos para o curral. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

Paucke reconheceu, em seus registros, a habilidade dos índios no manejo das armas e

nas caçadas, sua inteligência, seus corpos e rostos bem formados, seus cabelos e olhos negros,

sua indumentária, seus adereços, suas capacidades manuais, sua vida familiar, sua organização

social e sua doçura habitual quando não estavam borrachos. Esse ato de reconhecimento das

qualidades dos indígenas é um pensamento que se insere na corrente renovadora da Companhia

62

de Jesus no século XVIII (ZANETTI, 2013, p. 183). Ele relatou que os índios foram aceitos

pela Ordem como “niños de tutela y mediante muchas prescripciones reales, mandamientos y

decretos fueron libertados de semejante esclavitud” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 375), então

destacou essa atitude da Ordem diante dos indígenas por se contrapor ao julgamento que os

espanhóis faziam dos nativos como declarou neste trecho de seu relato:

Al principio en el descubrimiento y la conquista de estos países no fueron

considerados gentes sino animales y así también se condujeron los españoles para

con ellos pues los viajeros les echaron sobre los hombros la carga; ellos debieron

hacer viajes de larga duración y el calor más grande; si algún indio quedaba padeciente de sed y la carga lo echaba al suelo, retiraban la carga de él, la echaban

sobre algún otro y abandonaban en el campo al debilitado (PAUCKE, [1774], 2010,

p. 374).

O governo espanhol ou o português utilizava o argumento em que negava a inteligência

e a capacidade de aprendizagem dos índios para justificar a exploração do trabalho indígena.

Paucke enalteceu o seu trabalho missionário quando contou que enfrentou constantes riscos por

se opor a essa justificativa.

Nesta parte da crônica o autor relatou sobre as tatuagens e os adereços corporais que os

mocoví ostentavam. Seu relato são registros que transmitem informações da cultura desses

indígenas. Mas as tatuagens corporais dos indígenas foram descritas por outros jesuítas, como

Sanches Labrador17, que descreveu em sua crônica o gosto que os índios tinham pelos grafismos

que enfeitavam seus corpos. Labrador relatou que essas tatuagens corporais eram traços

indicativos de castas, comunicando o status e o prestígio que o indivíduo possuía dentro da

sociedade Guaicuru. As cativas, por exemplo, traziam como marcas de sua condição raias na

face que eram feitas com espinhas de peixes. Sendo assim, a relação entre as cativas e seus

senhores deveriam ser representadas pelo grafismo corporal e regras de convivência. Mas

Paucke não faz essa associação das tatuagens como meio de comunicação do status que o

indivíduo ocupava na estrutura social do seu grupo. Assim ele descreveu as tatuagens:

Los hombres se hacen tatuar tres rayas entre los ojos por sobre la nariz, dos debajo

de cada ojo como también dos al lado del ojo izquierdo y derecho. Luego se hacen

tatuar la barba inferior junto con el labio inferior a comenzar desde el interior del

labio hasta debajo del mentón o hasta el comienzo de la garganta en derechura hacia

abajo de manera que conforme a la anchura de la boca se ven una raya tras la otra

de las cuales hay a veces de doce a quince (PAUCKE, [1774], 2010, p. 262).

17 José Sánchez Labrador - autor de o El Paraguay Natural Ilustrado e El Paraguay católico (1760-1766). A

partir do volume 3, há uma edição datada de Buenos Aires em 1910 e, posteriormente, outras edições foram feitas.

63

Além de detalhar as tatuagens, a técnica utilizada pelos mocoví e como pigmentavam

os pontos feitos na pele, ele desenhou os padrões que os índios tatuavam em seu rosto e no

corpo. Na figura 8 ele representou duas mulheres mocoví: uma delas com padrões tatuados no

colo e nos braços, usando longos brincos feitos de rodelas de madeira como adereço, tatuando

outra que se encontra deitada no solo.

Figura 8 – Florian Paucke. Tatuagem mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

Sobre a tatuagem feminina ele relatou os cuidados e a alimentação que as mulheres

deveriam ter a fim de não infeccionar os pontos tatuados. Comparou essa forma de ornamento

com os enfeites e adereços que as mulheres europeias utilizavam e comentou que “Ahora yo

preguntaría qué diferencia habría entre una locuela por las modas europea y una india

americana. Yo digo: [no hay] ninguna porque ambas son fantaseadoras y quieren ser bellas

mediante la fealdade” ([1774], 2010, p. 263). Aqui o autor confrontou universos culturais

distintos, compostos por diferentes códigos e significações mas que se fundiam na ideia

equivocada, segundo o jesuíta, da beleza feminina de ambos os continentes.

Em relação a borrachera, dedicou dois capítulos nesta terceira parte, em que descreveu

as plantas utilizadas no preparo das bebidas, as técnicas de fabricação e como era o índio quando

ficava embriagado. Assembleias foi o nome dado por Paucke às reuniões entre os mocoví e

outros grupos guaicuru, em que havia troca de conhecimentos, disputas de jogos e a realização

64

de tatuagens. O que aqui apontamos é que o que ele relatou sobre esses encontros não tem

referência alguma com as duas aquarelas que ele produziu para ilustrar essa parte do seu texto18.

O autor relatou a dificuldade em aprender o idioma mocoví, repetiu o seu desejo de ser

proficiente na linguagem. O que assinalamos aqui é que em seu relato reproduziu suas

conversas com os indígenas e inseriu frases no idioma mocoví, revelando as impressões da

experiência que viveu através da lembrança e as tensões de argumentar os sentimentos diante

da memória da coisa vivida. No prefácio de sua crônica ele afirmou que foi o conhecimento da

língua mocoví que possibilitou que ele narrasse o que havia vivido com “sincera verdade”, mas

compreende a diversidade dos povos e línguas no espaço em que habitou. Em um ponto,

referindo-se a língua, mostrou os seus limites de compreensão da alteridade, descrevendo de

forma discriminatória o idioma mocoví como primitiva e bárbara.

A Quarta Parte da crônica traz como título: Del cristianismo de los indios. Consta de

dez capítulos e 53 páginas. Paucke especificou as questões relacionadas ao processo

evangelizador e explicou como ocorria a aceitação do cristianismo pelos indígenas. Relatou as

estratégias que utilizou no processo de cristianização e a atitude dos mocoví face às pautas

culturais que desejava impor a eles. Para Paucke, a transferência dos mocoví de suas aldeias

tradicionais modificou suas relações e os tornaram “limpos” para receber a mensagem cristã.

Apesar desse desarraigamento sofrido pelos mocoví já no século XVIII, eles conseguiram,

segundo o autor, agarrar-se à parte de sua cultura e de suas memórias. Para o jesuíta, esses

fatores prejudicavam sua tarefa civilizadora e evangelizadora. Hoje esses fatores são fatores de

resistência, pois os membros desse grupo indígena se identificam como Mocoví com seus

modos de ser, pensar e fazer. Muitos ainda falam sua língua, e atualmente existe um forte

movimento de recuperação cultural e de seus territórios (ZAMUDIO, 2017, p. 1).

Ele finalizou essa parte de sua crônica contando sobre a fundação da nova redução de

San Pedro: as dificuldades do terreno, as negociações com o governo espanhol e as dificuldades

nos trabalhos de construção. Paucke não chegou a concluir esse projeto, estava trabalhando

quando chegou a ordem de expulsão dos jesuítas do continente americano.

A Quinta Parte: Los jesuitas expulsados de Paracuaria possui sete capítulos e 64

páginas, e nela Paucke contou todos os infortúnios que teve que passar durante sua viagem de

retorno à Europa: a revolta e o choro dos mocoví com sua partida, os incômodos das viagens,

sua prisão, o sequestro de todos seus bens, suas tristezas e lágrimas. Paucke começou um dos

seus comentários sobre a expulsão questionando o motivo para tal. Ele sabia que estava

18 Sobre esse assunto, trataremos com maior profundidade no quarto capítulo deste estudo.

65

chegando ao fim o trabalho dos jesuítas nas missões da América espanhola e através de sua

crônica procurou afirmar e legitimar o bom trabalho que ele e seus companheiros haviam

realizado no Gran Chaco como podemos observar nesse fragmento de seu relato:

Yo no quiero detenerme más en un mayor relato de los servicios que los indios han

prestado al Rey y su país, son suficientes estas pruebas para que se extermine la

conspiración que en la Corte se había producido contra las misiones y se reconozca

claramente cuán vano ha sido el rumor que los jesuitas con sus indios trataban de

cercar los españoles para destruirlos finalmente. Ningún español que ha estado en

Paracuaria y que ha observado las reducciones de los indios, los incansables trabajos

y peligros de los misioneros, podrá decir que él hubiera notado la menor señal por la

cual él podría deducir que estas misiones fueren más para el provecho propio de los

jesuitas y no para la utilidad de las almas y del Rey (PAUCKE, [1774], 2010, p. 402).

Paucke relatou os benefícios que os indígenas deram à coroa e o quão importante foram

os serviços prestados pelos jesuítas. Novamente o missionário valorizou sua missão expondo

os constantes riscos que enfrentava ao se opor aos interesses coloniais de explorar o trabalho

indígena. Quanto aos missionários jesuítas enviados à América, ele destacou o conhecimento e

as condições físicas dos mesmos, como pontua nesse fragmento do seu relato:

Tal vez se cree que un misionero de Indias no precisa otra cosa que realizar una

buena doctrina cristiana porque se considera a los indios unas gentes incapaces y de

ningún modo inteligentes. ¡No! se necesita algo más pues los indios incapaces pueden

dar también buenos bocados a mascar tanto en lo que concierne a la ciencia y la

virtud del maestro, como también a la paciencia y la mansedumbre [del mismo]

(PAUCKE, [1774], PV Cap.VI, 2010, p. 517).

Nesta quinta parte de sua crônica, Paucke voltou a reconhecer a capacidade intelectual

dos indígenas, legitimando o esforço do trabalho missionário. Ele revelou também os problemas

enfrentados com o governo de Santa Fé e, quando as hostilidades com a Companhia de Jesus

se fizeram presentes de forma mais contundente, ele discutiu abertamente as acusações de que

a Ordem pretenderia ter um reino próprio na Paracuaria. Por fim, narrou o cumprimento da

ordem real de expulsão pelo governador de Buenos Aires, que com a chegada dos missionários

jesuítas na cidade, dispôs da prisão dos mesmos até serem embarcados para o exílio. No entanto,

insistiu em apontar a dor dos seus índios e a comoção dos moradores da cidade: “Entretanto se

originó un alboroto general en la ciudad; el pueblo se reunió en la plaza donde estaba el

Collegium; todo fue pleno clamor llorar y lamentarse; otros maldecían de tal proceder para

con los jesuitas y compadecían íntimamente nuestro destino” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 460).

66

O reconhecimento do papel pacificador das missões por parte de uma parcela da

população não diminuiu a rejeição daqueles que queriam o controle sobre a não de obra

indígena, acentuando a rivalidade entre os comandantes da Coroa e a poderosa e rica

Companhia de Jesus.

A Sexta Parte finaliza a crônica de Paucke, que tem como título: Descripción del Gran

Chaco en Paracuaria e é a maior parte do seu relato, possuindo vinte três capítulos e 180

páginas. Paucke mostrou em sua narrativa um pesquisador, amante das ciências naturais.

Relatou sobre o rio Paraná, o rio da Prata, o espaço geográfico, e solo que compunha o Chaco.

Os tipos de plantas que descreveu e desenhou: as terrestres, as silvestres. A figura 9 mostra que

ele pintou um Lapacho, árvore da América do Sul, que no Brasil é conhecido como Ipê ou Pau

d’arco e nessa aquarela ele também criou um verbete explicativo, à moda das enciclopédias

ilustradas.

Figura 9 – Florian Paucke. Lapacho. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

O jesuíta também descreveu e pintou as plantas comestíveis, as medicinais, as plantas

que se encontravam nos campos, nas selvas e os frutos que ele encontrou no Chaco. Descreveu

67

o clima, os ventos e as tormentas que o assustaram tanto. Quanto à fauna, criou uma série de

ilustrações e um texto verbal rico em detalhes: os peixes, os répteis, os porcos, os animais de

caça, as aves como a ema, que ele chamou de avestruz, e os louros. Na aquarela da figura 10

ele representou as onças que ele nomeou no seu relato como “o tigre das Américas”. Na imagem

vemos duas onças pintadas: uma bebendo água e outra que descansa nas margens de uma lagoa.

Figura 10 – Florian Paucke. Tigres das Américas. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 03/2019.

Enfim, Paucke descreveu com originalidade e intensidade os habitantes do Chaco no

século XVIII. Se a tarefa do cronista é descrever e informar, Paucke o fez de forma assertiva.

Descreveu a natureza, mas também as cidades e seus edifícios, os costumes de seus habitantes

e as instituições religiosas que visitou com seus músicos indígenas.

Mas o que se percebe no relato de Paucke é que ele foca o seu interesse nas formas

típicas que os habitantes do Gran Chaco encontravam para solucionar questões práticas do

cotidiano, tais como o tipo de carro de madeira puxado por bois que usavam para transporte

que ele descreveu e desenhou ou, ainda, as construções da redução feitas de couro ou um tipo

de bolsa de couro que os indígenas usavam para atravessar o rio.

Descreveu também uma estranha embarcação mocoví de couro de boi que ele utilizou

para atravessar os rios da região como representou na figura 11. O que nos chama a atenção

nesta aquarela é que somente os missionários foram representados vestidos, os indígenas estão

nus juntos aos cavalos e bois.

68

Figura 11 – Florian Paucke. Índios e missionários atravessando um rio. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

A habilidade dos indígenas em atirar bolas para caçar onças e emas, como também a

pesca a cavalo também foi narrada e desenhada por Paucke com riqueza de detalhes. Na figura

12, vemos a pesca a cavalo, a cidade no plano de fundo da composição e, a frente, dois carros

puxados por bois. Esse meio de transporte causou certo espanto e curiosidade ao jesuíta, tanto

que ele descreveu e pintou de forma detalhada esses carros de madeira usados na região.

Figura 12 – Florian Paucke. Pesca a cavalo. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

69

Em sua narrativa, dois territórios separados pelo tempo e pelo espaço se uniram, duas

culturas, diferentes modos de vida, diferentes crenças que se juntam em seu escrito.

O Gran Chaco é o que a escrita de Paucke diz ser, esse espaço natural se faz presente no

mosteiro de Zwettl, o espaço onde o autor escreve, de onde ele se lembra da experiência vivida

entre os mocoví. Sua narrativa é moldada pelos deslocamentos da viagem de ida e de volta à

Europa, para depois emergir na experiência que viveu naqueles espaços de coisas estranhas e

belas.

Para Zanetti (2013, p. 188), “cuando el texto relata la vida en la reducción, muy pocas

veces se vuelve hacia el espacio propio del narrador, sólo permanece en los paradigmas

culturales que dirigen su mirada y sus juicios”. Paucke afirmou que a obra evangelizadora só

seria garantida se os indígenas vivessem nas reduções sob a obediência dos jesuítas. A sua ação

envolveu interações impostas pela sua própria concepção cultural. Sua crônica deixa poucos

espaços para os conceitos próprios dos mocoví. Quando menciona os caciques, sempre o faz

acentuando as diferenças entre os indígenas mansos e evangelizados em oposição aos não

subjugados. Enrique Palavicino (1964), em sua “Breve noticia sobre los mocovíes actuales”

informa que, após a expulsão dos jesuítas, as missões declinaram, os indígenas voltaram às

florestas e aos seus antigos costumes. Trinta anos depois San Javier não existe mais. Essa

resistência cultural dos mocoví mostra que a interação cultural que Paucke descreveu foi por

ele compreendida de forma limitada e equivocada (ZANETTI, 2013, p. 188).

Florian Paucke criou um texto histórico a partir de sua memória. Ankersmit (2016, p.

243) analisa o texto histórico e suas relações com a realidade, compreendendo-o como uma

representação, utilizando a filosofia da linguagem para o entendimento da narrativa histórica.

A narrativa histórica deve estabelecer pontes com a realidade através da investigação e do

estudo da representação de aspectos do mundo. A crônica escrita por Paucke representou o

imaginário suscitado nas relações sociais estabelecidas pelo jesuíta, mas, segundo Ankersmit

(2016, p. 253), as representações históricas mantêm certo grau de acesso ao passado. Este autor

entende que representar é uma operação mais ampla do que apenas descrever, pois cria sentidos

e requer a participação do leitor em relação a certos conceitos e áreas do conhecimento. No

texto narrativo de Paucke, segundo reflexões da linguística apontada por Ankersmit, se pode

perceber diferentes componentes: descrição, explicação e representação do passado. Ankersmit

assinala que a representação é uma ação que compõe três estados: 1) uma representação define

o que é apresentado, interferindo no modo de como o outro vê o que foi representado; 2) a

representação é relacionada à metáfora, que confere atributos e conceitos ao que é representado,

interferindo na atitude do espectador frente aos sujeitos representados e 3) o texto é concebido

70

como metáfora, uma ponte entre o olhar de quem lê o mundo. Sendo assim, a construção de

diferentes narrativas amplia a compreensão do passado.

A lembrança de tudo que Paucke viu, ouviu, experimentou, aprendeu e adquiriu evoca

uma experiência ausente por meio de uma coisa substituída, ou seja, um representante, que no

caso seria a sua escrita e o desenho. A memória de Paucke é a matriz de sua escrita e também

um canal de representação do seu passado. Mas sua memória estava ligada a um

posicionamento sócio-histórico à instituição que lhe conferiu autoridade. Seu discurso

expressou sua formação ideológica e os sentidos históricos e sociais que ele conferiu à situação

de contato com os grupos indígenas do Chaco. Sua fala é de autoridade, pois ele se colocou na

posição de portador de uma verdade única, superior, civilizadora e progressista. Essa autoridade

lhe foi atribuída pela Instituição Jesuítica que permitiu que ele desenvolvesse essa função. Seu

relato tem o propósito de transmitir informações e conhecimentos bem aos moldes do século

XVIII.

Sua narrativa nos remete a aspectos do passado vivido por ele e as suas descrições ele

requisitou o status de veracidade. Mas fazer história sob a perspectiva da memória implica uma

ideia de construção do passado através da escrita e da leitura. Esse fazer é uma operação

intelectual, que permite a crítica e a reflexão sobre as narrativas memorialistas. A memória é

afetiva, particular, se liga ao meio físico, à vivência. A história tem caráter universal, se agrega

às relações das coisas e nas continuidades temporais. Portanto, a história se utiliza de diferentes

memórias para sua construção, mas história e memória não se equivalem. A obra de Paucke é

o registro de suas memórias, suas representações imagéticas funcionam como metáforas pois

as evidências pertencem ao mundo. São representações que jogam com nossos sentidos e

rompem o espaço demarcado entre linguagem e realidade. Através da análise e investigação do

passado, enquanto uma experiência vital, das relações com outras memórias e através do

exercício de questionar e pensar dos historiadores da atualidade, sua obra foi transformada em

registro histórico que possibilita a compreensão dos modos de ser e viver da sociedade colonial

espanhola e seu convívio com os mocoví no Gran Chaco no século XVIII.

71

Capítulo 3

OS MOCOVÍ NO SÉCULO XVIII

No Gran Chaco, os Mocoví, Tobas, Mbayá-Guaicuru, Abipones e Payaguás

compunham os grupos integrantes do tronco linguístico Guaicuru. O Chaco tornou-se um

espaço multiétnico de grande mobilidade interna. No início do século XVIII os grupos mocoví

se estabeleceram na região oeste do Chaco entre os rios Pilcomayo e o rio Bermejo. Neste

capítulo apresentamos alguns dos componentes étnicos característicos dos grupos mocoví.

3.1 Caçadores e coletores

Entre os mocoví a caça e a coleta eram formas de subsistência, que mesmo após o

contato com os europeus foram mantidas. Essas atividades baseavam-se no padrão tradicional

da divisão sexual do trabalho. Os homens caçavam os grandes animais (onças, antas, jacarés,

porco do mato e veados) enquanto as mulheres se ocupavam da coleta ou da caça de pequenos

animais (cobras, pássaros, gafanhotos e larvas de insetos). Usavam em suas caçadas, laços,

boleadeiras, o arco e flecha e lanças. Florian Paucke em seu relato aponta indícios da atuação

das mulheres nas grandes caçadas junto aos homens, mas normalmente a caça era uma atividade

masculina, relacionando-se com o tipo de organização social dos mocoví. Na aquarela que ele

representou a caçada às onças (Figura 13) vemos os mocoví executando uma de suas práticas

tradicionais. Três indígenas são representados nus e estão a pé, enquanto os que estão a cavalo,

um animal trazido pelo europeu, estão vestidos.

Figura 13 – Florian Paucke. Caçada de tigres. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

72

Paucke representou a nudez indígena de forma seletiva: quando os indígenas estavam

executando tarefas na redução, ou seja, num espaço civilizado, eles os pintou usando suas

vestimentas; quando faziam seus rituais ou suas práticas tradicionais, eles estavam nus, como

homens naturais e selvagens. O uso das linhas curvas que ele utilizou nessa composição sugere

o movimento e o dinamismo das caçadas indígenas.

Os caçadores distribuíam livremente os produtos da caça, comumente aquele que abateu

o animal ficava com o quarto posterior e a pele, o restante repartia com seus companheiros. Não

havia qualquer tipo de autoridade, como os caciques e seus familiares, que fossem beneficiados

na partilha. A carne era consumida logo após a caçada, ou era transportada e consumida em um

tempo mais ou menos curto. Para conservar e armazenar a carne por um período maior as

mulheres se ocupavam de secá-la ao sol sem o uso do sal (NESIS, 2005, p. 53).

Os couros eram utilizados pelas mulheres na confecção de roupas ou para trocas

comerciais. Os couros de onça eram usados como parte do pagamento de uma noiva. Era

símbolo de bravura do homem e de sua aptidão para caça, além de significar que ele era capaz

de sustentar a família. As penas dos pássaros eram usadas na fabricação de flechas, armadilhas

e como tornozeleira, pois acreditavam que as penas nos tornozelos tornariam os caçadores mais

velozes. Os dentes de jacaré eram apreciados devido a crença de que eles possuíam capacidades

curativas.

As mulheres eram responsáveis pela coleta de frutos, raízes e a caça de gafanhotos. A

figura 14, representa no primeiro plano as mulheres mocoví preparando a charque, ao fundo do

plano pictórico estão as mulheres e crianças capturando gafanhotos, que podiam serem

consumidos imediatamente ou conservados.

Figura 14 – Florian Paucke. Caça de gafanhotos e preparação de charque. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

73

Paucke descreveu como as mulheres caçavam e preparavam os gafanhotos:

Los indios cazan de la siguiente manera las langostas nuevas que aún no pueden volar

sino que sólo saltan por el campo: ellos cubren un sitio grande con paja, las mujeres

y los niños se colocan en derredor, desde una distancia comienzan a arrear las

langostas hasta que todas han llegado a la paja extendida; encienden luego la paja

por todos lado y asan las langostas. Luego se sientan ahí al lado y las devoran completamente o medio quemadas cuantas pueden [comer], juntan las restantes, las

llevan en bolsas a sus chozas y se mantienen con ellas mientras tienen existencia

(PAUCKE, [1774], 2010, p. 297).

As mulheres atuavam também na coleta de mel e das frutas (chañar e algarroba)

utilizadas para produção de bebidas alcoólicas. Elas ocupavam um lugar importante nessa

atividade, mas quanto a consumir a bebida temos os relatos de Lozano e Paucke, nos quais não

ficou claro essa questão. De acordo com Lozano ([1745], 1941, p. 86), o que diferencia as

mulheres mocoví das outras mulheres indígenas do Chaco é sua disposição para embriaguês:

“En la nación de los Mocobíes llega a ser el exceso en la embriaguez más notable que en las

demás pues no solo se embriagan los varones, sino también las mujeres contra lo que las demás

estilan”.

Ao contrário de Lozano, Paucke ([1774], 2010, p. 219) indicou que em princípio, as

mulheres se abstinham de beber, no entanto, após esta afirmação sugeriu que as mulheres mais

velhas se embriagavam: “Muchas mujeres, especialmente las más viejas, tenían también a veces

un buen “habemus”19 y comenzaban a librar entre ellas una ‘batalla’ en la plaza pública”.

Entretanto, em outro momento do seu relato, ele informou que as mulheres mais velhas

ocupavam um lugar importante dentro do grupo mocoví e eram encarregadas da preparação das

bebidas que seriam usadas nas reuniões festivas dos indígenas ([1774], 2010, p. 308).

A partir do século XVII, a criação de gado e cavalos nos campos veio se juntar às

atividades de caça, coleta e pesca, sendo a carne bovina logo inserida na dieta dos mocoví. Os

indígenas souberam aproveitar o desenvolvimento das economias coloniais, baseadas

principalmente na pecuária. As áreas de criação de gado e cavalo pelos espanhóis tornaram-se

espaços de negociação e pilhagem, não apenas com relações pacíficas, mas também violentas.

No início do século XVIII, os grupos mocoví conseguiram se inserir à rede comercial

colonial, abastecendo a demanda pecuária de militares e proprietários de terra; modificando

assim sua própria economia. Segundo Nesis (2005, p. 62) uma das modificações que ocorreram

na economia indígena foi a comercialização de couros de onças. Como já mencionamos, esses

couros firmavam o “preço da noiva”. Com a demanda por esse produto pelo comércio colonial

19 O editor esclarece que esse termo foi usado no jargão da época para designar uma embriaguez.

74

e a introdução da criação de gado e cavalos, o preço da noiva sofreu modificações, segundo

Paucke ([1774], 2010, p. 324): “el pago son ya algunos cueros de tigre, ya uno o dos caballos;

si ellos tienen vacas, dan también una o dos”. Ou seja, os mocoví buscaram bens novos e

diversificados, que dentro do seu grupo, assumiram não só valores econômicos mas também

simbólicos. Os grupos indígenas do Chaco, mesmo mantendo seus padrões tradicionais,

conseguiram desenvolver relações, embora muitas vezes conflitantes com a sociedade

hispanocriola, adaptando-se as novas realidades.

3.2 A mobilidade e o território

No final do século XVI o cavalo foi adotado pelos Guaicurus, ocasionando várias

mudanças nas relações econômicas, políticas, sociais e interétnicas. Com a mobilidade

conferida pelos cavalos, os guaicurus desenvolveram uma superioridade militar e econômica

sobre os grupos que permaneceram pedestres.

Na figura 15, Paucke representou os indígenas no trabalho com os cavalos utilizando o

laço com boleadeiras. Nesta composição as linhas diagonais marcadas pela cor do solo,

contrastam com as linhas horizontais e verticais da moldura do papel. As linhas diagonais

determinam a direção do olhar do observador, tornando a composição mais dinâmica e

sugerindo movimento.

Figura 15 – Florian Paucke. Arrebanhando cavalos. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

75

Com a mobilidade as atividades de caça deixaram de dar origem aos rituais, pois os

grupos se dispersavam durante o inverno para captura de animais. A primavera passou a marcar

os rituais, os acordos, as alianças, os casamentos, os torneios de jogos e o intercâmbio entre

diferentes grupos. Como já assinalamos, era na primavera que ocorria a coleta de frutas e mel

para fabricação das bebidas usadas nesses agrupamentos. Paucke ([1774], 2010, p. 307)

comentou: “Cuando comienza la primavera suelen los indios acercarse más entre sí que en

tiempo de invierno donde se ocupan más de la caza que del beberaje”.

As epidemias também ocasionavam a mobilidade e dispersão das famílias. Os

constantes movimentos dos grupos não implicavam no domínio dos espaços, mas sim na

aquisição de recursos e sobrevivência. No entanto os guaicurus reivindicaram direitos

exclusivos sobre certos territórios de caça e coleta exercendo efetivo controle dessas áreas.

Segundo Lozano os Abipones:

Son muy dados a la milicia, ejercitándose de continuo en la guerra sobre leves causas, que las más ordinarias son sobre si vino a pescar o cazar dentro de sus límites. Estos

los amojonan con unos horcones largos, y en ellos cuelgan las cabezas de los muertos,

por haber violado los términos de ajena jurisdicción (LOZANO [1745], 1941, p. 94).

A questão da territorialidade é abordada por Lozano como um limite demarcado para a

exploração dos recursos naturais, sendo a invasão desse limite causas para guerra entre os

grupos indígenas. Mas Paucke em seu relato, embora tenha narrado vários episódios em que

percorre com os mocoví amplas distâncias do território chaquenho, não mencionou a entrada

de territórios demarcados por outros grupos da região. Para Nesis (2005, p. 65-66), as alianças

estabelecidas pelos guaicuru determinaram locais de livre circulação nos quais a caça e a coleta

eram realizadas sem gerar conflitos.

A territorialidade também é marcada pelo local de sepultamento de seus mortos. De

acordo com Paucke:

Ellos entierran sus muertos en un lugar [fijo] aunque dista algunas leguas. Si ellos

distan más del lugar, entierran entonces el cuerpo en un bosque en dondequiera que

fuere. Después del tiempo en que ellos creen que el cuerpo se pudre y sólo quedan los

huesos, viajan al sitio, sacan los huesos y los trasladan al lugar donde están sus

compañeros de estirpe […] Cuando los indios parten a un distante lugar español o a un diferente dominio indio para librar allá un combate y tienen que emprender la

huída, dejan echados sobre el campo sus muertos […] luego se ponen en movimiento

los amigos de los muertos y viajan por tan largo camino para juntar únicamente los

esqueletos de sus compatriotas para transportarlos a su Gólgata (PAUCKE, [1774],

2010, p. 340).

76

Segundo o autor dessa citação, o enterro dos ossos dos ancestrais demarcavam um

território fixo pertencente aos parentes dos mortos. Esse espaço agora se tornava a aldeia dos

mortos, o mundo dos antepassados. Na concepção indígena, na morte o índio iniciava uma nova

existência, desligava-se quase que totalmente dos vivos, inaugurava um novo espaço marcado

por festas e pela relação com seus parentes consanguíneos.

3.3 A organização social dos Mocoví e as lideranças

Nos grupos mocoví, o indivíduo se constrói por relações de identidade que estabelece

com os outros membros do grupo. Os mecanismos sociológicos constituídos pelos líderes de

linhagem se articulam a vida social e a história do próprio do grupo. A organização social dos

mocoví se estabeleceu a partir de um sistema constituído por um grupo de líderes de linhagem.

A adoção do cavalo fortaleceu esse grupo por aumentar sua mobilidade, seu domínio bélico e

poder econômico, determinando os modos de relacionamento entre os líderes e os membros da

comunidade mocoví.

A sociedade mocoví era composta por um grupo de linhagem, um grupo de indivíduos

comuns e cativos20. Os nobres (aqueles que demonstravam coragem na guerra) usava o sufixo

“in” em seus nomes como: Aletin e Cithaalin. Os nomes dos seus filhos também traziam essa

marca de distinção social (NESIS,2005, p.78). O casamento constituía outro meio de

diferenciação social, desde que não fosse realizado com pessoas de diferentes estratos sociais.

Os relatos jesuíticos afirmam as restrições impostas aos casamentos entre nobres mocoví com

pessoas “comuns”, ou com cativos ou ainda com indivíduos pertencentes a outros grupos

indígenas. Segundo o relato de Bustillo:

Los nobles no se juntan con consorte de menor gradación y mucho menos con gente

plebeya: celando por decoro el extremo sus familias. Los indios plebeyos toman

fácilmente mujer de otra nación: no así los nobles, porque colocan parte de su

nobleza en no mezclarse con sangre extraña [...] Loado un indio noble su linaje, no

produjo otra prueba de su nobleza que ascender solo de mocobíes, sin que se divisase

en toda su ascendencia sangre extraña. Tanto prevalecía en su juicio esta pureza. Y

era indio en la realidad tal a quien nadie le disputaba su nobleza y todos le respetaban

por ella (FURLONG21 1938, p. 90).

20 Segundo Paucke ([1774], 2010) havia dois tipos de cativo dentro dos grupos mocoví: aqueles que foram

aprisionados de outros grupos, e aqueles que sendo mocoví foram presos por outros grupos de indígenas ou por

espanhóis e retornaram ao seu grupo de origem. 21 FURLONG, Guillermo. Entre los mocovís de Santa Fe. Buenos Aires, S. de Amorrortu. 1938.

77

O casamento dos nobres era restrito a linhagens de prestígio. Na figura 16, Paucke

representou o cacique, sua esposa e seu filho com a indumentária típica dos mocoví. O cacique

se encontra no lado esquerdo da composição, usando uma túnica e um chapéu como adorno de

cabeça; sua esposa veste uma pantalona, segundo Paucke, com o rosto e o corpo tatuados, sinal

de sua nobreza.

Figura 16 – Florian Paucke. O cacique e sua esposa. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

Os líderes e seus filhos podiam ter várias esposas, enquanto os demais homens só tinham

uma esposa, embora pudessem ter algumas concubinas. A esposa, diferente das concubinas,

moravam com o marido, enquanto aquelas residiam com sua família e continuavam ligadas ao

seu grupo de origem. As restrições entre uniões com indivíduos de grupos indígenas diferentes

ou com cativos só se aplicava ao grupo de líderes de linhagem nobre.

Paucke relatou essas peculiaridades em relação aos casamentos:

Mientras los indios son hombres jóvenes, quedan con una sola mujer, excepto los

hijos de los caciques o los que ya antes en sus años de jóvenes son valientes y

animosos; pero cuando son hombre en sus mejores años toman una o dos concubinas

pero por lo general él vive con una [sola] la que él tiene consigo en su choza, las

otras quedan con sus padres (PAUCKE, [1774], 2010, p. 326).

A endogamia parece ter continuado no período das reduções. Segundo o relato de

Paucke ([1774], 2010, p. 324) os líderes Aletin, Cithaalin e Nevedagnac mantiveram seu

parentesco político e de sangue quando foram viver na redução. Os três eram parentes pois

78

Cithaalin casou-se com uma irmã de Aletin e desposou também a irmã de Nevedagnac. Paucke

narrou sobre o casamento de Sebastián filho de Cithaalin e Estefanía, filha de Nevedagnac, que

como observamos, eram cunhados. Havia os laços consanguíneos, mas para se tornar uma

liderança efetivamente, os líderes deveriam possuir outras qualidades.

Nos relatos jesuíticos sempre afirmaram a falta de governo civil e político em que os

grupos indígenas do Chaco viviam. As narrativas aludem que só havia algum tipo organização

política no período de guerra. Segundo Lozano: “Generalmente no tienen gobierno alguno

civil, ni observan vida política; sólo en cada tierra hay un cacique, a quien tienen algún respeto

y reverencia, que solo dura mientras se les da alguna ocasión de disgusto” (LOZANO, [1745],

1941, p. 62).

Paucke também se referiu em seu relato a falta de uma liderança política e sua relação

com as atividades bélicas entre os mocoví: “Sólo en ciertas circunstancias cuando el cacique

los invita a cometer un robo o a pelear contra otros o a invadir las estancias españolas y matar

los habitantes, entonces todos corren junto a él” (PAUCKE, [1774], 2010, p. 335).

A capacidade de organizar guerras ou grupos de caça conferia prestígios aos guerreiros

e caracterizava sua liderança. Na figura 17, Paucke representou a guerra entre os mocoví e

outros índios que ele denominava de “pagãos e selvagens”. O que nos chama atenção é que só

os líderes são representados com sua indumentária e seus adornos, o restante dos personagens

se apresentam nus, num todo que se mistura. As linhas diagonais vigorosas das lanças sugerem

intenso movimento e conferindo dinamismo à composição.

Figura 17 – Florian Paucke. Combate indígena. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

79

A associação entre a liderança e a organização dos assaltos, aparece nos relatos

jesuíticos sobre os grupos caçadores e coletores, apropriado ao grupo mocoví para o período

anterior ao estabelecimento das reduções.

Os líderes faziam longos discursos acompanhados de uma linguagem gestual. A maneira

cordial nas petições, o tratamento amável e o reconhecimento dos sinais de repulsa entre aqueles

que estavam ouvindo os discursos, eram elementos nos quais os lideres deveriam saber como

lidar (NESIS, 2005, p. 82).

Os elementos que qualificavam os indivíduos para a liderança política entre os mocoví

eram a linhagem nobre, a coragem e a capacidade de comando nas guerras e nas caçadas, a

eloquência para os discursos e a prática da distribuição igualitária entre os membros do grupo.

Portanto, os grupos Mocoví possuíam uma organização política, mas devido à

necessidade dos grupos se afastarem em determinados períodos do ano, em busca de

subsistência ou em situações de conflito, suas relações sociais eram instáveis.

3.4 Elementos étnicos

Os critérios de identificação de um grupo foram socialmente definidos e modificados

ao longo do tempo. O estabelecimento desses critérios dependerá das diferentes definições que

são estabelecidas pelo grupo ou por agentes externos. Os elementos étnicos servem para

delimitar as características do grupo, mas não enrijece seu conteúdo cultural, pois a cultura está

sempre se transformando pela incorporação de novos elementos ou pelo desaparecimento de

outros.

Os jesuítas adotaram como critério étnico para classificar os indígenas do Chaco o

idioma, os traços fisionômicos, as marcas físicas, a cor da pele, as tatuagens, as perfurações,

adereços e vestimentas. Nesse fragmento de sua crônica, Paucke descreveu as diferenças das

faces de vários grupos indígenas:

También se puede deducir más o menos de la forma de la cara de qué nación es el

indio. Los mocovíes que eran mis hijos espirituales, tenían cara alegre y bien

formada. Los abipones y jaucanigos se conocían por sus ojos que estaban

notablemente mas hundidos. A los quichicaches se les conocía por su corta estatura

pues toda la nación se constituye por puras personas chicas; ellos llevan siempre un cabello desgreñado porque jamás se peinan ni sacan la roña de la cabeza, tienen

caras cortas y anchas y la nariz en manera de los calmucos. Los guaraníes, tapes y

tobatines se reconocían también por sus caras porque en su mayor parte tenían unas

caras como si fueren impresas en una misma forma (PAUCKE, [1774], 2010, p. 261).

80

Paucke também utilizou, além das características físicas, as tatuagens, perfurações e

adereços utilizados pelos mocoví, reconhecendo e estabelecendo atributos étnicos por meio

dessas práticas:

A más los indios no admiten ningún pelo en sus caras; ellos arrancan de raíz las

cejas, la barba y aún los pelos de las pestanas [...] los hombres se hacen tatuar tres

rayas entre los ojos por sobre la nariz, dos debajo de cada ojo como también dos al

lado del ojo izquierdo y derecho [...] Las mujeres padecen un martirio aún más

grande, Por sobre la frente tienen también su seña tatuada. Después que la cara está

tan llena de puntos y sangre que no tiene lugar ninguna otra figura, se hace la

operación sobre el pecho desde un hombro al otro y por ambos brazos[...]En el labio inferior de la boca tienen una pequeña abertura que atraviesa de un lado al otro; en

ésta meten una larga astilla de madera o algunas largas plumas de avestruz, no para

ser bellos sino para hacerse terroríficos ante los otros.[...] Las mujeres llevan

también sus pendientes pero tan grandes y redondos como una gran caja redonda de

tabaco (PAUCKE, [1774], 2010, p. 263-264).

Dobrizhoffer ([1783], 1968, p. 44) também qualificou etnicamente os Abipones por

esses trabalhos no corpo (tatuagens, perfurações, adornos com plumas e ossos, etc.): “Aquellas

pinturas y punciones son familiares entre los abipones para distinguirse entre unos y otros

pueblos y respetan las costumbres de sus mayores”.

Os critérios adotados pelos jesuítas para classificação dos grupos indígenas não foram

aplicados uniformemente. Eles foram sobrepostos uns aos outros e multiplicaram os nomes

dados aos agrupamentos. Além dos critérios físicos para identificação dos grupos, os temas da

guerra, das relações com os cativos e dos casamentos, nos possibilitam abordar outras

características étnicas das relações dentro dos grupos e com os outros grupos indígenas do

Chaco.

3.4.1 A guerra

A guerra entre os grupos indígenas do Chaco no século XVIII constituiu uma das formas

de organização social e permitiu a redefinição das próprias identidades. Nos escritos jesuítas as

descrições sobre a guerra destacam a importância da bravura para esses grupos e indicam a

realização de rituais e cerimônias antes dos confrontos tais como: a existência dos troféus de

guerra como: escalpos, cabeças, orelhas, narizes, bem como o canibalismo ritual.

Quando os guerreiros mocoví voltavam com seus troféus de guerra, impulsionava uma

dinâmica que retroalimentava a excitação guerreira e conferia prestígio aos guerreiros e

afirmava a posição dos líderes de linhagem que organizavam a expedição, configurando-se

como uma rede de relações e hierarquia social (NESIS, 2005, p. 134).

81

A coragem era expressada nos rituais pela realização de tatuagens que marcavam a

entrada na idade adulta dos homens, a incisão da língua, a unção dos braços e pernas com o

sangue que também era ingerido pelo grupo no ato do corte na língua:

En cuanto se perforan con él la lengua, no pueden retirar más el aguijón porque los

dientes no son derechos sino inclinados; por esto ellos deben arrancar el aguijón

cortando la lengua de modo que los dos pedazos cuelgan separados. Con la sangre

de esto untan su pecho y brazos [y] dicen que con ella quedan resistentes contra la

bala y la lanza. Otros expelen la sangre dentro de una vasija, beben de nuevo la

sangre ya ellos, ya algún otro que al igual de un copero saca en tales borracheras el

beberaje y lo brinda (PAUCKE, [1774], 2010, p. 317).

Segundo Paucke, esses rituais serviam para demonstrar a capacidade de suportar a dor

e a coragem dos guerreiros. Para Lozano ([1745], 1941, p. 73) as nações do Chaco travaram

uma guerra "com crueldade bárbara”. Paucke ([1774], 2010, p. 391) relatou que os grupos se

reuniam e celebravam a borracheira, durante as quais se realizavam os rituais e danças. Os

homens contavam suas façanhas como guerreiros e celebravam suas vitórias. Antes dos ataques

os líderes faziam discursos aos seus seguidores e as “índias velhas” realizavam suas danças

acompanhadas de cantos e gritos.

Quando os mocoví retornavam das expedições vitoriosos, havia também celebrações

onde os troféus tradicionais de guerra obtidos nos confrontos circulavam entre os participantes.

As cabeças dos vencidos eram entregues pelos guerreiros a suas mulheres que os colocavam

em frente as suas cabanas. Os troféus eram sinais importantes de superioridade dos guerreiros

na guerra.

A prática de antropofagia ritual foi descrita por vários jesuítas. Para Lozano, os mocoví

eram “caribes”, ou seja, comedores de carne humana:

Al tiempo que los varones de noche se ocupan de asar al fuego las carnes de sus

enemigos, para darles sepulcro racional en sus brutales vientres, suelen estar las

viejas, que son ordinariamente hechiceras, y las veneran como sacerdotisas,

cantando toda o casi toda la noche los triunfos contra sus enemigos (LOZANO,

[1745], 1941, p. 85-86).

Essa questão foi possivelmente um tabu para os jesuítas, eles não compreendiam bem

essa prática e seu valor na guerra. Paucke também fez alusões a essa prática:

En esta ocasión a un anciano, de nombre Paulus Conoquin, un generalmente muy

devoto y buen cristiano (que era manuductorde los muchachos y diariamente estaba

presente con ellos en la doctrina cristiana) le instigó el antiguo apetito de comer

carne humana, buscó entre los muertos los más gordos, les cortó la piel de la frente junto con la carne la tiró sobre el fuego y la comió así asada. (PAUCKE, [1774],

2010, p. 401).

82

A narrativa de Paucke contrasta, em certa medida, com a descrição de Lozano. Paucke

mencionou que o consumo do corpo dos vencidos era feito após a batalha, mas sem a

participação de outros indivíduos. Os mocoví acreditavam na possibilidade de incorporar as

forças dos guerreiros que eram temidos ou tidos em alta estima.

No contexto das reduções esse retorno das expedições vitoriosas foi recriado nas

festividades de San Javier onde a dinâmica social associada à guerra era reativada, como

podemos observar na figura 18. Nessa imagem, vemos em primeiro plano dois personagens que

simulam uma batalha, ao fundo do quadro os personagens lidam com os cavalos, todos estão

vestidos, pois se encontram no espaço civilizado da redução.

Figura 18 – Florian Paucke. Simulação de combate na Redução. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 03/2019.

Segundo Paucke:

Al lado de la iglesia estaban parados a ambos lados todos los niños de la aldea; de

un lado los varones, del otro las niñitas, pero las mujeres esperaban la entrada en el

centro de la plaza, en parte con calabazas huecas en las cuales tenían granos de

cucurus [maíz] y hacían un ruido; en parte con las cabezas de sus enemigos muertos

en la mano o sobre varas, bailaban en derredor de la entrada y cantaban victoria en su lengua (PAUCKE, [1774], 2010, p. 415).

83

Paucke na sua narrativa, nos permite perceber como os rituais da guerra, da vitória e o

prestígio conferido aos bravos guerreiros fora reconfigurados no contexto da redução, em que

as celebrações indígenas foram redefinidas seguindo o padrão configurado no âmbito colonial.

3.4.2 Os cativos

Os relatos jesuíticos nos informam que os mocoví faziam seus prisioneiros de guerra de

escravos. Mas Lozano afirma que normalmente os mocoví matavam os que foram capturados:

En el primer encuentro a cuantos pueden haber a las manos, excepto a los muchachos, que reservan para criarlos conforme a sus costumbres y aumentan así su nación

casándolos con sus hijas, y si de las mujeres adultas dejan alguna con vida, es para

venderlas después a otras naciones, a quienes sirven de criadas (LOZANO, [1745],

1941, p. 73).

Essa afirmação de Lozano confronta às de Paucke relativas ao tratamento dos cativos

na redução de San Javier. De acordo com Paucke os cativos viviam com os mocoví, não eram

maltratados, mas era um grupo separado dentro da sociedade indígena. Mesmo sendo um

mocoví que foi aprisionado pelos espanhóis e retornou ao grupo, ele não era reintegrado ao seu

grupo de origem. Os cativos pertenciam ao nível social mais baixo, e não podiam ascender

socialmente dentro grupo.

3.5 A redução dos Mocoví

No processo de conquista, o contato dos grupos indígenas do Chaco com os invasores

coloniais não pode ser circunscrito ao binômio extermínio e mestiçagem. Desde as primeiras

relações de trocas, o desespero das epidemias, as alianças guerreiras, cada grupo reagiu ao

contato de forma particularizada, dinâmica e criativa. O contato criou novos desafios e novas

possibilidades para esses grupos, exigindo iniciativas de seus líderes em defesa dos interesses

de seus grupos. Com a limitação dos seus territórios devido a invasão espanhola, esses grupos

sofreram intensas mudanças nas relações econômicas, políticas, sociais e interétnicas. Para

sobreviverem incorporaram novas mercadorias e estabeleceram novos vínculos com a

sociedade hispanocriola e indígena. Como já citamos, a admissão do cavalo foi significativa no

estabelecimento dessas novas conexões.

O estabelecimento das reduções permitiu o desenvolvimento de novas atividades

produtivas, além da pecuária, da criação de cavalos e do comércio de peles e penas de animais

84

que já era praticado pelos mocoví antes das reduções. A produção agrícola missioneira das

reduções gerou novas atribuições ao cacique: a distribuição de terra para o plantio para as

famílias e disponibilização do trabalho dos indivíduos do grupo. Na redução os líderes não

foram liberados de suas atribuições tradicionais, mas a aquisição de bens de prestígios e a

responsabilidade de fornecer informações quando solicitados pelos agentes coloniais, foram

aspectos que os posicionaram em um novo lugar de destaque na redução.

A redução, os novos meios de produção e a implantação de redes comerciais, acabaram

por gerar mudanças no plano social dos grupos indígenas reduzidos. Com a expulsão da

Companhia de Jesus, os grupos se dispersaram, fato esse que supomos, contribuiu para

desintegração social dos grupos Guaicuru do Gran Chaco.

No século XX, as atividades de caça e coleta foram substituídas pelo trabalho em

fazendas ou em obras nas cidades. Devido a integração cultural e a invisibilidade étnica,

segundo Calvo e Benzi (2016, p. 6), é difícil saber com segurança os lugares onde os grupos

mocoví estão assentados, no entanto apontam para algumas colônias indígenas do Chaco:

Departamento Veinticinco de Mayo, alguns bairros de Rosario, o bairro Mocoví de Recreo em

Santa Fé e alguns pontos da província de Buenos Aires, como a Comunidade Mocoví de

Berisso. Nas cidades de Santa Fé, Rosario, Venado Tuerto, Recreo, Reconquista, Melincué,

Firmat, Casilda e em algumas cidades menores, as comunidades mocoví ainda falam seu

idioma, embora estejam cada vez mais sujeitos à influência do castelhano. Na Colônia de

Dolores eles representam 90% da população urbana e procuram manter sua cultura. “Em San

Javier, onde existe também uma comunidade importante, eles conservaram as transmissões

orais históricas de El Último Malón. Seus artesãos se destacam por seus trabalhos manuais, sua

destreza e seu valor de identidade” (CALVO; BENZI, 2016, p. 6).

85

Capítulo 4

ICONOGRAFIA: A FESTA DE SAN JAVIER E AS ASSEMBLEIAS MOCOVÍ

A imagem nos leva à descoberta do visível. Tem como função consolidar e precisar a

nossa relação com esse visível. Essa relação é fundamental à nossa atividade intelectual, pois a

imagem permite aperfeiçoar e dominar as funções do intelecto como a memória e o raciocínio,

como também as funções sensoriais.

A obra de Florian Paucke é objeto de numerosos trabalhos que analisam diferentes

questões, a partir de objetivos e perspectivas diversas, para obter informações sobre o passado

colonial e a vida missionária dos jesuítas. Além das descrições, o autor criou uma rica

iconografia que complementa sua narrativa. O relato do jesuíta é um dos poucos trabalhos que

apresentam imagens que ilustram o cotidiano das missões e as atividades indígenas, sendo suas

imagens utilizadas para ilustrar várias obras.

Neste capítulo vamos centrar nossa atenção na temática das festividades, em que o autor

construiu um discurso pictórico em relação aos espaços, através do uso e da distribuição dos

elementos visuais dentro de suas composições, diferenciando um espaço selvagem e outro

civilizado, que incluem tanto as festas ocorridas na redução como as assembleias mocoví.

Utilizando como referência o método criado por Panofsky para interpretação de imagens, nosso

objetivo é desvendar os significados intrínsecos contidos nestas imagens.

Outro aspecto que levamos em consideração é que podemos, a partir do pensamento de

Certeau (1982, p. 191), que sugere que as crônicas dos viajantes constituem “proto-etnologias”,

falar de Paucke como um etnógrafo. Portando, concebendo a imagem como um texto que

também pode ser lido, fundamentamos nossa ideia de que podemos supor que as imagens

criadas por Paucke são documentos etnográficos, mesmo que tragam os estereótipos de

selvageria e civilidade, construídos ao longo do tempo pela sociedade europeia.

4.1 História e imagem

Imagem – do latim imago, significa a representação22 visual de um ser ou de um objeto.

Na Grécia antiga, a palavra imagem corresponde ao termo eidos que constitui a raiz etimológica

da palavra idea ou eidea. Esse conceito foi formulado por Platão, que considerava a ideia de

22 Abordaremos aqui a representação como um processo pelo qual se institui um representante que, num certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa (AUMONT, A Imagem, 2011, p. 201).

86

algo, e a imagem que a representava, como sendo uma projeção mental. Para Aristóteles, a

imagem era a representação mental de um objeto real que era apreendida pelos nossos sentidos.

A imagem, como representação mental e visual dos seres e dos objetos, pode apresentar

vários sentidos. Ela se abre a várias significações, e uma leitura da imagem terá que levar em

conta essa polissemia, tornando mais complexa a ordenação das informações do texto verbal e

da produção de conhecimento na interação entre o pesquisador e a imagem. Nesse contexto, a

leitura de imagens se configura na construção de um olhar compartilhado, resultado da interação

e do confronto entre universos culturais e temporalidades distintas entre aquele que produziu

as imagens e aquele que agora as lê. A leitura de imagens oferece alternativas nos modos de

ver, de elaborar e de construir o conhecimento.

Se levarmos em conta que as representações visuais são construções culturais e sociais,

o conjunto de códigos e significações fundamentados na experiência visual construído pelas

sociedades nos permite pensar a imagem como um objeto fértil para a reflexão histórica e

antropológica. As imagens criadas pelos grupos sociais representam os modos de pensar dos

sujeitos que compõem esses grupos e revelam dados sobre sua organização social. Portanto,

para a história cultural, a imagem acrescenta novas dimensões às interpretações do universo

simbólico criado pelos grupos sociais. Ao lermos a crônica de Florian Paucke observamos que

a representação de suas relações sociais e de suas práticas são registros de alteridade do

imaginário suscitado na situação de contato entre Paucke e os mocoví.

Segundo Porto Alegre (1994, p. 66), os primeiros mapas produzidos no século XVI

traziam representações de seres humanos, símbolos e alguns elementos da cultura material dos

povos americanos. As xilogravuras contidas nos livros de André Thévet (1556), Hans Staden

(1557) e Jean de Léry (1558) estão entre as primeiras representações imagéticas dos homens e

mulheres que habitavam o continente americano. Em 1593, o gravador Theodore de Bry editou

um livro de viagem contendo várias gravuras fantasiosas dos ameríndios. Foi através desse

conjunto de gravuras que o imaginário europeu foi projetado sobre os povos da América:

canibalismo, promiscuidade, ritos sanguinários, idolatria, tudo era transposto para o Novo

Mundo.

No século XVII, Frans Post, Albert van der Eckhout e Zacharias Wagener que

acompanharam Maurício de Nassau (1637-1644), criaram representações mais naturalistas dos

indígenas, da flora, fauna e do espaço geográfico em que habitavam. Albert Eckhout morou no

Brasil e pintou grandes telas de casais indígenas. Esse fato originou um mito de que suas obras

representavam uma imagem fidedigna dos índios. Acreditava-se que ele havia criado essas

imagens in loco, legitimando essas imagens como registros documentais e fiéis do natural. Isso

87

raramente acontecia, pois a maioria dos pintores nunca tinha visto um índio. Entretanto, havia

aqueles que estiveram na América, mas só criavam suas imagens após o regresso à Europa,

como aconteceu com as ilustrações das primeiras edições das obras de Staden, Thevet e Léry.

Embora a construção dessas imagens dos índios seguisse as convenções estéticas do século

XVII, tais imagens serviram como modelo para uma nova visualidade até o surgimento dos

pintores viajantes no final do século XVIII.

Os pintores viajantes objetivavam criar imagens documentais e históricas dos

ameríndios, mas vários fatores interferiram no valor documental dessas obras, pois vários

desses desenhos não foram feitos através da observação direta. Muitos foram feitos a partir de

descrições de terceiros, ou mesmo da imaginação do autor. Essas imagens também sofreram

deformações provocadas pelos processos de reprodução ou foram adulteradas para causar

impacto nos leitores europeus, agravando assim o debate sobre a humanidade dos indígenas e

sua ascendência satânica. Mas apesar destas questões, foi no século XVIII que a imagem visual

começou a afirmar o seu potencial intelectivo.

Segundo Meneses (2012, p. 251), o Século das Luzes manifesta um interesse

documental pela imagem, principalmente na França, com a Encyclopédie, de Diderot e

D’Alambert (1759-1795), que utilizou a imagem para esclarecer e validar informações contidas

em verbetes, como técnicas e ferramentas de trabalho. As imagens relativas à Revolução

Francesa também foram coletadas e arquivadas servindo, mais tarde, de fontes para os

historiadores.

No século XIX, os novos viajantes eram artistas, escritores e homens de ciência que

lançaram um novo olhar sobre os ameríndios. Observavam e detalhavam o meio natural,

procurando decifrar os signos exteriores, as relações sociais e as mentalidades. Representavam

os corpos com exatidão anatômica, definindo alteridades.

Segundo Porto Alegre:

[...] o pintor-etnógrafo do século XIX é um observador que classifica indivíduos a

partir da morfologia do crânio, desenha corpos, sistematiza traços, investiga e constrói

a representação da identidade através do corpo humano, buscando na superfície o sentido da interioridade invisível (PORTO ALEGRE, 1994, p. 67).

A imagem transporta um valor de documento, quase forçado, mas variável. As imagens

representativas buscam imitar as características da visão natural, mas são sempre construções

visuais que se utilizam de processos geométricos e analógicos. Portanto, nenhuma imagem,

assim como o texto verbal, é uma representação verdadeiramente fiel da realidade, ela fornece

88

um traço fiável da realidade, mas são indícios da realidade. As imagens dos indígenas

produzidas pelos pintores etnógrafos do século XIX serviram para construir plasticamente, a

partir do estudo da face e da anatomia dos selvagens americanos, o conceito do homem

degenerado justificando, assim, a discriminação e o controle desses povos pelas classes

dominantes.

Com o aprimoramento das técnicas fotográficas, no final do século XIX, a imagem

assume um novo papel.

Meneses assinala:

Mas somente no século XIX que a imagem assume com intensidade sua capacidade documental, em especial com a rápida divulgação da fotografia, abundantemente

empregada em geografia, antropologia, etnografia, arqueologia, ciências biológicas,

astronomia, história da arte, arquitetura e urbanismo, e assim por diante (MENESES,

2012, p. 251).

Essas imagens darão origem aos arquivos fotográficos que assumem o compromisso de

serem evidências históricas. No século XX, com o grupo dos Annales, a imagem visual foi vista

como fontes históricas e os termos iconografia e iconologia foram relançados. O termo

“iconologia” foi lançado pela primeira vez no livro intitulado Iconologia de Cesare Ripa em

1593, já o termo iconografia só entrou em uso no século XIX. Na década de 1930, iconografistas

de Hamburgo compartilharam o interesse pelas formas simbólicas, dentre eles, Erwin Panofsky,

que publicou em 1939 seu famoso ensaio Studies in Iconology, onde distingue três níveis de

interpretação da imagem: a descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação

iconológica (BURKE, 2017, p. 56-57).

Embora o grupo dos Annales tenha concebido a imagem como uma fonte histórica, um

documento visual, segundo Meneses (2012, p. 252), o que se observa ainda hoje é o uso da

imagem como ilustração de textos, como se a visualidade não produzisse conteúdo. A imagem

é tratada como mera perfumaria, enfeite, como que desprovida do conteúdo simbólico que

carrega e que representa das sociedades humanas.

Portanto, as representações imagéticas sobre os ameríndios foram construídas através

de uma longa tradição. Presentes na cartografia e nos primeiros relatos da colonização, essas

representações transformaram-se em clichês que se espalharam por toda a Europa, deixando

raízes de longa duração em nossa memória social, que tanto remetem à busca de um passado

original, como a questões atuais sobre o lugar da identidade étnica nas culturas latino-

americanas.

89

4.2 Visões do passado: do visual ao imaginário

No século XVIII, a Idade das Luzes, os filósofos pregavam o evangelho da razão e da

lógica. Os cânones estéticos europeus da época estabeleciam a construção naturalista das

formas. A representação da natureza seguia a maneira clássica e idealista. Os artistas desse

período possuíam uma formação específica nas academias de artes, a fim de poderem desenhar

com “exatidão” as formas naturais.

A arquitetura e a arte da América Ibérica refletiam as tradições predominantes nas

metrópoles peninsulares. No entanto, a observação direta, a análise racional e experimental da

natureza e do espaço cultural e geográfico difundida pelo Iluminismo europeu deu início ao

processo de secularização na arte. Esse processo propagou-se e se fez sentir na produção

artística das missões do Novo Mundo. Se por um lado, a arte continuava servindo à Igreja no

processo de evangelização indígena, por outro, a secularização foi representada pela arquitetura

e pela configuração do espaço urbano (ADES, 1997, p. 86)

As nações europeias no século XVIII, em busca de informações confiáveis para a

exploração das riquezas americanas, passaram a enviar expedições que combinavam a

exploração geográfica com os trabalhos de artistas que objetivavam registrar as formas

desconhecidas da vida vegetal, animal e humana. A arte e a ciência se tornaram interesse da

aristocracia europeia a fim de facilitar o entendimento e a percepção daquele mundo novo.

No entanto, o imaginário construído pelos europeus sobre os ameríndios converteu a

expressão subjetiva em comunicação objetiva, criando as formas que povoam as imagens

pictóricas dos indígenas entre os séculos XVI e XVIII. Para Aumont (2011, p. 49) “no sentido

corrente da palavra, o imaginário é o terreno da imaginação, entendida como faculdade criativa,

produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis”. A pintura, a cartografia, as

crônicas de viagens reproduziram em detalhes os combates ferozes entre os europeus e os

nativos das Américas. O índio foi concebido como selvagem de semblante demoníaco em

rituais canibalescos ou em disputas animalescas (RAMINELLI, 1996, p. 56).

Os jesuítas, além da educação religiosa, estudavam latim, teologia, gramática e retórica,

e deveriam ter o domínio de simples atividades manuais como, por exemplo, a carpintaria. A

formação nas chamadas artes plásticas não fazia parte do currículo dos jesuítas. Mas dentro do

espírito iluminista, alguns missionários jesuítas como Sánchez Labrador, Ignacio Tirsch e

Florian Paucke buscaram objetivamente representar, através do desenho, a vida animal, vegetal

e humana dos habitantes da América. Nas ilustrações deixadas por esses missionários se

90

observa a carência de uma formação própria para o desenho realista. São representações de um

realismo sublimado onde os seres são representados por analogia e não por duplicação.

Nas aquarelas de Paucke, essas analogias são construídas ordenando elementos do

espaço onde se dá o contato intercultural e as relações de domínio entre jesuítas e indígenas.

Na construção de suas aquarelas o jesuíta utilizou sua memória sensorial. Os modos de

representação que ele utilizou derivaram de uma estrutura sensorial organizada pela sociedade

da qual ele fazia parte, pois a memória é ativada por atos e por uma prática material que é

culturalmente mediada. As imagens criadas por ele se inserem numa tradição iconográfica que

persiste ao longo do tempo. Por conseguinte, sua memória visível opera na esfera de uma prática

cultural estabelecida.

Florian Paucke produziu suas aquarelas com o intuito de ilustrar sua crônica. Entretanto,

a visualidade de suas imagens também produziu conteúdos além daqueles que sua produção

textual postulou. Com efeito, o texto verbal e o texto visual pertencem a sistemas de

representação diferentes, logo, comunicam informações e significados diversos. Há um conflito

entre palavras e imagens, e esse confronto se dá entre razão e emoção, racionalidade e

sensorialidade, pensamento lógico e pensamento mítico. Esse conflito está na base da sociedade

europeia e derivou do movimento medieval iconoclasta. Com a ideia do Deus único o panteão

antigo dos deuses e suas imagens foram rejeitadas. O suporte que representará esse Deus será

a palavra sagrada, o livro sagrado, em que todas as verdades são reveladas, com um repertório

definitivo e imutável. A sensorialidade, ou seja, a percepção, foi relegada a um nível inferior

em comparação com as funções reflexivas da razão. A valorização da racionalidade residiu no

pensamento de que o que distingue os seres humanos de outros animais são suas faculdades

cognitivas, o que sugere a depreciação das capacidades que os humanos compartilham com os

animais, ou seja, a percepção dos sentidos (MENESES, 2012, p. 252-253).

Outra peculiaridade que podemos citar entre o texto verbal e o visual de Paucke é que

suas imagens foram construídas no espaço onde os seres, objetos, os eventos e suas relações

são revelados de imediato em sua totalidade; já o seu texto verbal se construiu dentro de um

tempo, em pequenas partes sequenciais, em que as relações temporais são exploradas com

maior eficácia. Logo, o seu texto verbal e o visual descortinaram aspectos diversos de sua

narrativa.

Os desenhos de Paucke constituem um acervo de aquarelas, como já citamos, que podem

ser agrupadas em séries: são representações da fauna, da flora, da vista da San Javier, dos

desfiles oficiais, do vestuário dos espanhóis, das roupas e adereços dos mocoví, das borracheras

dos indígenas, dos afazeres diários na redução, das caçadas, da pesca a cavalo, do lazer, das

91

tatuagens, dos adornos de corpo dos mocoví etc. Os indígenas foram representados ora como

uma alegoria da domesticação e, por isso, humanizados, ora como uma alegoria da selvageria

e da barbárie. Ao selvagem, esse semelhante distante, muitas vezes opaco e exótico, se atribuiu

valores opostos, e é essa ambivalência que torna a obra de Paucke tão instigante até hoje.

4.2.1 O imaginário europeu do Ameríndio

A partir da descoberta do Novo Mundo, uma nova humanidade surgiu no horizonte

mental europeu. A descoberta do ameríndio fez surgir um novo selvagem, com a transposição

para a América do selvagem já existente no pensamento medieval europeu: o antigo irlandês.

Mas como explicar essa nova humanidade?

Segundo Woortmann (2004, p. 58-59), no século XVI, embora a história da humanidade

estivesse fundamentada na Queda e no Dilúvio bíblico, as Sagradas Escrituram passaram a ser

objeto de discussão, pois os fatos naturais contradiziam os fatos revelados no Gênesis. Nos anos

de 1500 ressurgiu a ideia de que o final dos tempos estava próximo e o encontro dessa nova

humanidade foi visto como um sinal de que o fim do mundo estava perto. Portanto, para

entender a existência dos indígenas americanos em face ao dilúvio, se fez necessário retornar

ao pensamento medieval.

Para Santo Agostinho, a Arca de Noé era um símbolo da Igreja. A arca havia recebido

animais irracionais que perpetuaram essa irracionalidade, mas a Igreja recebeu homens que,

embora brutos e irracionais, foram transformados por ela.

Woortmann assinala que:

No interior da arca, tal como no interior da Igreja, eram proibidas as relações sexuais.

O corvo, o cão e Cam, filho maldito de Noé, foram punidos por terem infringido o

interdito. Os filhos de Cam teriam se tornado negros, e os negros africanos foram

percebidos como amaldiçoados. Filhos de Cam seriam também os ameríndios, num

dos registros de sua apreensão (WOORTMANN, 2004, p. 60).

Os ameríndios, assim como os negros, seriam os descendentes de Cam, portanto,

possuíam uma linhagem maldita. O encontro com os ameríndios suscitou novas interpretações

bíblicas e a história da humanidade foi revista. Com o aumento da escatologia e da demonologia

no pensamento europeu, a associação entre maldição e monstruosidade se mostrou mais intensa.

Os monstros foram identificados no continente americano. O exotismo tradicional foi uma das

tentativas de domesticar e explicar esse novo ser humano: o ameríndio. O imaginário medieval

sobre os habitantes que viviam do outro lado da Terra, um mundo diametralmente oposto à

92

Europa, veio a ser lançado sobre os povos americanos. Devido a esse imaginário, ficou difícil

buscar uma objetividade nos relatos renascentistas, mesmo por parte de autores que defendiam

o indígena, como Bartolomeu de Las Casas.

A fim de caracterizar os indígenas da América, as noções de selvageria e da inexistência

de humanidade e civilização, tais como os gregos descreveram os Citas23, os romanos que

especificaram os germânicos e os medievais que descreveram os distantes irlandeses,

reapareceram nas concepções da Renascença. Demonologia e monstruosidade, tudo foi

transportado para o Novo Mundo. Daí a profusão de relatos sobre ilhas habitadas por monstros

acéfalos, tribos de mulheres guerreiras, como as Amazonas, seres com semblantes caninos, que

obviamente nunca existiram, mas que estavam presentes nos relatos da Antiguidade e da Idade

Média e que retornaria a existir nas representações dos ameríndios. Mas, apesar do debate sobre

a humanidade dos indígenas, se eles possuíam ou não uma alma que pudesse ser salva do

domínio de satã pela conversão ao cristianismo, um novo pensamento renascentista surgiu. O

pensamento humanista da Renascença formaria uma nova visão sobre o indivíduo, a

humanidade, a religião, a cultura, a civilização, e sobre a barbárie e a selvageria. Essas questões

foram analisadas na época, estabelecendo um diálogo com as fontes clássicas e os relatos sobre

os povos americanos, postulando uma nova moral e uma crítica à sociedade europeia, como na

obra de Montaigne sobre os Tupinambá do Brasil (WOORTMANN, 2004, p. 98-100).

Os conceitos civilizado, bárbaro e selvagem foram construídos a partir de características

do comportamento, usos, costumes e atributos físicos dos povos ditos civilizados em relação

aos ditos não civilizados. O selvagem foi relacionado ao deserto, à selva, lugar maligno e

maldito, onde moram as bestas e as feras. O civilizado é o morador da Civita. O selvagem se

opõe ao civilizado: enquanto este prospera e é agricultor sedentário, o selvagem destrói pois, é

caçador, não planta, posto que é errante. O selvagem tem feições grosseiras, é feio e violento e

feiura e violência são provas da maldição. Ele é feio porque sua herança é maldita, veio daquele

que se rebelou contra Deus, ele representa a corrupção da espécie em contraposição às espécies

perfeitas e puras da ordem, o selvagem representa a desordem. Um exemplo é o gigantismo,

pois a existência de gigantes poderia ter sido o motivo que teria levado Deus a provocar o

Dilúvio. Os selvagens possuem uma linguagem indecifrável, confusa, gutural como a de certos

animais. Uma linguagem que podia expressar sentimentos, mas não ideias. O selvagem andava

nu ou vestia peles de animais e comia alimentos crus. O homem civilizado usava roupas

23 Citas - Designação genérica dos povos nómades do norte da Europa e da Ásia (LAROUSE, Dicionário da língua

Portuguesa, 1992, p. 227).

93

confeccionadas com tecidos coloridos, sua comida era cozida, e expressava suas ideias através

de uma linguagem compreensível.

Para o pensamento medieval, o universo físico era ordenado por princípios morais numa

concepção teológica. O mundo era dividido entre civilizados e selvagens, cristãos e pagãos.

Civilizados e cristãos possuíam história e estavam dentro dela. Os selvagens e pagãos estavam

fora da história. O cristianismo, em face aos que caíram ao estado selvagem, apresentava uma

oportunidade de redenção através dos Sacramentos. Essa atitude caridosa era, no entanto,

etnocêntrica e teocêntrica. Ou seja, aqueles que surgiram a partir da Queda dos anjos podiam

ser perdoados, desde que aceitassem a autoridade da Igreja e o domínio europeu. Portanto, os

selvagens e pagãos só eram importantes como candidatos à cristianização, pois mesmo com a

degeneração física e moral a alma permanecia em sua graça e poderia ser reconduzida à luz

divina. Redimidos pela graça divina, mesmo monstruosos, seriam inscritos na história. As raças

monstruosas: homens com os pés voltados para trás, pigmeus, os que possuíam os olhos e boca

no tórax, ou os que tinham orelhas tão grandes que se cobriam com elas, todos possuíam uma

humanidade essencial, portanto, poderiam ser redimidos pela conversão ao cristianismo. A

força desse imaginário das raças monstruosas permaneceu por séculos. Na segunda metade do

século XVIII Florian Paucke informou a seus leitores que nunca viu esses seres:

Mas de aquellos que (como se quiere creer en nuestros países) se sirvieran de una

oreja para sábana pero de la otra para frazada durante el sueño o que tuvieran el ojo

sobre el pecho, [que tuvieren] las rodillas atrás y no delante [que] también pudieran correr ligeros como los avestruces, no he oído durante toda mi estada hasta cerca de

veintiún años24 en Las Indias americanas [y] menos los he visto (PAUCKE, [1774],

2010, p. 257 - 258).

Possivelmente, Paucke supunha que seus leitores queriam saber a sua posição a esse

respeito. Ou seja, tanto para ele, como para seus leitores, esse era um tema pertinente.

Segundo Woortmann, as raças monstruosas foram imaginadas pelos antigos gregos que

descreveram os akephaloi, que viviam em lugares distantes como a Índia ou na Etiópia. Mas na

medida que essas regiões se tornaram mais familiares e os monstros não foram encontrados

nelas, os europeus dos séculos XV e XVI, recolocaram no Novo Mundo as raças monstruosas:

Homens sem cabeça, com a boca e os olhos no peito ou no estômago, os gastrocéfalos

eram tão populares quanto os centauros, cinocéfalos homine caudatis ou monoculi.

Com os gigantes, eles reaparecem na América. Em 1500, o homem sem cabeça é

retratado no mapa múndi de Juan de la Cosa. É o primeiro mapa onde aparece o

continente americano, construído segundo o conhecimento geográfico da época. Onde

24 Paucke conta os anos desde sua saída e a volta à Europa.

94

deveriam estar as ilhas encontradas por Colombo, estava o reino de Gog e Magog25,

este último descrito como sem cabeça, canibal e nu, num significativo retrato do

homem selvagem medieval (WOORTMANN, 2004, p. 77).

Vários mapas do século XVI localizaram as raças monstruosas na América, entre eles

citamos o mapa Piri Reis, de 1513. Em 1615, num mapa do Brasil, surgiu Magog transfigurado

em um índio. Numa gravura de Neive Welt und Amerikanische Historien, de 1615, Magog

tornou-se um habitante da Amazônia, sem cabeça, que vivia na terra de Iwaipanoma. Os

monstros sobreviveram por séculos. Em 1724, Lafitau, um jesuíta francês, etnólogo e

naturalista, afirmava que na América do Sul existiam homens sem cabeça (WOORTMANN,

2004, p. 77).

Portanto, não podemos estranhar a percepção distorcida e estereotipada de Paucke dos

ameríndios no século XVIII, visto que está alicerçada em uma longa tradição icnográfica. A

ideia das raças monstruosas foi aceita e divulgada por vários séculos. Podemos ver as imagens

atuais de alienígenas, como um desdobramento do estereótipo das raças monstruosas. Desse

modo, continuamos a conceber o outro culturalmente distante de nós em termos estereotipados.

O indígena americano, embora visto como ser selvagem, originário de algum lugar entre

a humanidade propriamente dita, cristã e civilizada e os monstros ou bestas, ao longo dos

séculos, passou a ser classificado como primitivo, uma evidência dos primeiros humanos,

pertencentes a uma ancestralidade ampliada, não só aquela citada no Velho Testamento.

Os selvagens incapazes de pensar e falar, que praticavam o canibalismo, que

executavam ritos sanguinários, viviam em promiscuidade sexual e que eram idólatras, eram, no

entanto, passíveis de salvação. Paucke definiu em vários momentos da sua narrativa a natureza

selvática do indígena:

[...] Porque aun sin esto el indio en sus hábitos asemeja a un animal indómito, en su

índole se muestra sanguinario, vengativo, iracundo y belicoso. [...] yo no debo

nombrarlos gentes sino animales salvajes, indómitos e iracundos, hasta mulares y

burros que no tienen entendimiento alguno. [...] (Se encuentran entre ellos unas

lenguas tan confusas e incomprensibles que el misionero sin la real ayuda de Dios

pudiera aprenderlas casi imposiblemente. Apenas si se entiende una sílaba o una letra

de ellas cuando conversan y uno cree que sólo fuere un graznido de gansos o de otros

animales (PAUCKE, [1774], 2010, p. 85 - 307).

25 Magog era um neto de Noé (Gênesis 10:2) p 22. Os descendentes de Magog se estabeleceram no extremo norte

de Israel, provavelmente na Europa e no norte da Ásia (Ezequiel 38:15). Magog eventualmente se tornou o nome

da terra onde os seus descendentes se estabeleceram. O povo de Magog é descrito como guerreiros habilidosos

(Ezequiel 38:15; 39:3-9). Gog é o nome de um futuro líder em Magog que irá liderar um exército para atacar Israel.

O Senhor prediz a condenação de Gog: "Filho do homem, volve o rosto contra Gog, da terra de Magog… profetiza contra ele" (Ezequiel 38:2) (BÍBLIA SAGRADA, 1999, p. 1129-1130).

95

Encontramos várias contradições no relato de Paucke sobre a aparência física dos

ameríndios. Ele afirmou que, quando pintados e ornados para guerra, eram horrorosos e se

pareciam com o diabo (Paucke, [1774], 2010, p. 267). Mas no capítulo “La forma y color de

los indios”, Paucke descreveu os mocoví, os comparando com os tipos europeus: “bem

formados”, brancos ao nascer, com feições e corpos harmoniosos. Narrou as várias

características físicas dos povos chaquenho: a cor dos olhos, o formato do rosto e dos cabelos,

a cor da pele e o feitio dos corpos. Outra ambivalência que assinalamos é entre como ele

apresentou os corpos indígenas em sua narrativa e como ele os representou nas duas de suas

aquarelas em que ele ilustrou as celebrações mocoví. Nas assembleias, seus rostos são

grotescos, os corpos são apresentados distorcidos, os gestos são extravagantes, não são

monstros, são seres bestiais. O que se destacam são os glúteos. As diversidades físicas e étnicas

desapareceram. Todos possuem o mesmo traçado para representar seus corpos, todos têm a

mesma cor de pele e o mesmo tipo de cabelo, não usam nenhum adereço, não estão raspados e

tatuados. Não se pode identificar nem sexo ou idade dos participantes. Mas sua aparência física

bestial e sua índole selvagem foram atenuadas pela cristianização, quando são representados

nas aquarelas que retratam as festas ocorridas na redução. No contexto da cristandade são mais

homens em seu estado natural do que bestas.

Portanto, para Paucke, o selvagem era um pagão, não porque recusava a palavra de

Cristo, mas porque a desconhecia. Era mais um humano bestial do que um monstro ou um

demônio, tendo sido cristianizado pelo pensamento teológico europeu. De acordo com

(WOORTMANN, 2004, p. 68-106), os sinais demoníacos foram transladados para a América.

Tal como a mulher selvagem foi transformada em bruxa, os xamãs e pajés eram vistos como

agentes de satã. Paucke reafirmou esse pensamento ao se referir as mulheres idosas como

bruxas e aos pajés como feiticeiros que influenciavam negativamente os índios, dificultando

seu trabalho evangelizador.

Para Burke (2017, p. 184-186), no encontro de grupos culturalmente diferentes ocorrem

duas reações opostas: Uma seria a negação das diferenças e assimilação do outro a nós mesmos

através de analogias. Por meio da analogia esse outro exótico se torna decifrado e domesticado.

A segunda atitude é construir consciente ou inconscientemente a cultura do outro como oposta

a nossa própria cultura. Criam-se imagens mentais do outro que são antíteses das nossas. Mas

para reconstruir essas imagens mentais é necessário criar imagens visuais. Enquanto o texto

escrito pode esconder as diferenças sob uma descrição impessoal, a imagem visual da forma

que é concebida adota uma posição clara na qual representa o outro e sua cultura como

96

semelhante ou diferente daquele que criou a imagem. Nesse contexto, é provável que a imagem

que cada cultura criou da outra seja estereotipada.

Burke assinala que “a palavra ‘estereótipo’ (originalmente uma placa da qual uma

imagem podia ser impressa), como a palavra clichê (originalmente o termo francês para a

mesma placa), é um sinal claro da ligação entre imagens visuais e mentais” (BURKE, 2017, p.

185).

O estereótipo amiúde exagera nos traços ou esconde outros, que às vezes não são

totalmente falsos, mas podem ser violentos e rústicos. Entretanto, o mesmo modelo pode ser

usado em situações diversas culturalmente uma das outras, como no caso de algumas gravuras

europeias combinarem aspectos de índios de várias etnias para criar uma única imagem geral.

Segundo Jung (1964, p. 20), o ser humano utiliza, além das palavras, sinais e imagens

para expressar o que deseja transmitir. A imagem torna-se símbolo26 quando expressa algo além

do seu significado imediato. O imaginário, como terreno da imaginação, cria imagens

representativas e simbólicas que nos permite visualizar o mundo imaginário. A imagem, como

objeto material que contém traços de similaridade com o real, mantém uma relação ambígua

com o imaginário. A imagem representativa, embora sendo objetiva, ocupa o lugar do

imaginário, da imaginação. Mas a noção de imaginário remete à relação do sujeito com as suas

identificações formadoras. A imagem provoca redes identificadoras que suscitam a

identificação do observador consigo mesmo. Paucke, ao representar as festas ocorridas na

redução e as celebrações dos mocoví, reproduziu através dos elementos plásticos o imaginário

que foi construído dos ameríndios. Portanto, os conceitos de selvagem e civilizado são

expressos através de suas imagens, os quais podemos identificar através do uso e da distribuição

dos elementos visuais em suas composições. Ao analisar tais imagens, não podemos esquecer

o conceito “olhar” numa perspectiva lacaniana em que se considera as intenções daquele que

produziu as imagens, ou sobre as diferentes maneiras que os grupos olhavam para essas imagens

(BURKE, 2017, p. 186).

Portanto, podemos aqui pensar sobre o olhar dos membros da Ordem Jesuíta, o olhar

colonial, o olhar de cunho científico ou etnográfico. Não existe um olhar inocente ou neutro. O

olhar do espectador pode expressar atitudes que podem não ser conscientes para ele, como os

medos, ódios, repulsas ou desejos que são projetados sobre o outro: esse ser desconhecido.

26 O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida

diária, embora possua conotações especiais além do significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós (JUNG, O homem e seus símbolos,1964, p. 20).

97

4.3 Iconografia: lendo imagens

O termo iconografia, em sua raiz etimológica: eikon, imagem; grafia, descrição, é o

estudo descritivo das imagens que busca classificações, comparações, tradições, meios de

circulação, a identificação dos elementos visuais e dos significados interno através dos

significados externo das imagens. O termo iconologia (eikon, imagem; logia, estudo), surgiu

antes que o termo iconografia. A iconologia se dedica a analisar a iconografia de um modo

interpretativo no contexto histórico e social e não apenas estético.

Portanto, “e assim como a exata identificação dos motivos, é o requisito básico de uma

correta análise iconográfica, também a exata análise das imagens, estórias e alegorias é requisito

essencial para uma correta interpretação iconológica (PANOFSKY, 1976, p. 54).

Tanto a iconografia quanto a iconologia tratam a imagem como um suporte sígnico e

tentam identificar peculiaridades intrínsecas que se mantêm estáveis nas imagens. Ampliando,

assim, a compreensão do uso da expressão visual no contexto cultural das sociedades.

Para os iconografistas, as imagens não foram criadas para serem apenas vistas, mas para

serem lidas. Mas antes de ler as imagens e de usá-las como evidência histórica, é importante

compreender seu sentido: elas foram feitas para comunicar.

A leitura de imagens, hoje uma ideia muito comum, remonta a um longo tempo. Na

Idade Média, a arte tinha uma função pedagógica, as imagens nas paredes das catedrais serviam

não apenas para embelezar o espaço sagrado, elas ilustravam as histórias bíblicas, sendo

utilizadas como ferramenta para a educação religiosa da população. Poucas pessoas sabiam ler,

mas a Igreja estava interessada em evangelizar o maior número de pessoas. O papa Gregório

Magno explicou que “as pinturas podem fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que

sabem ler”; ou seja, as pessoas simples poderiam receber, através das imagens, as mensagens

divinas (WOODFORD, 1983, p. 8).

O método criado por Panofsky (1976, p. 50-52) de interpretação de imagens, a partir da

decomposição de suas partes, se insere no que ele chamou de “ato de interpretação”. Ele

distinguiu três níveis de significações para o processo de interpretação das imagens.

O primeiro nível ou descrição pré-iconográfica é a análise descritiva da temática e dos

elementos da composição. É voltada para o significado natural consistindo na identificação de

objetos e eventos. O segundo nível é o da análise dos conceitos, convenções, cânones, motivos

e temas. É orientada para o reconhecimento do significado convencional das imagens ou dos

eventos. O último nível é o da interpretação iconológica e se volta para o significado intrínseco,

oculto, que revela formas simbólicas, que representa uma realidade reconstruída, crenças

98

religiosas ou filosóficas, um pensamento, uma cosmovisão do inconsciente coletivo, de um

período ou de uma classe social. Para Panofsky, as imagens são parte de uma cultura e não

podem ser entendidas sem o conhecimento daquela cultura. Logo, para iniciarmos uma análise

das aquarelas produzidas pelo jesuíta Florian Paucke se fez necessário apresentar o contexto

cultural em ele viveu e as condições em que produziu sua obra. Portanto, o terceiro nível de

análise foi construído ao longo do nosso trabalho. Neste capítulo, além trazermos algumas

informações do contexto cultural em que Paucke produziu suas aquarelas das festividades de

San Javier e das assembleias mocoví, realizamos uma análise descritiva ou pré-iconográfica

dessas pinturas.

Ao longo do tempo, o termo iconologia foi empregado pelos historiadores da arte de

forma distinta. Foram inseridos na análise pré-iconográfica o reconhecimento dos elementos

formais das composições artísticas que carregam em si sentidos subjacentes estudados pela

comunicação visual.

Segundo Dondis (2003, p. 3) para se ter um conhecimento mais amplo das

características essenciais que compõem a expressão visual, se faz necessário examinar os

elementos visuais básicos, as estratégias e opções das técnicas visuais e suas implicações

psicológicas na composição.

Ao buscarmos o significado das aquarelas de Paucke abordamos também os níveis mais

simples na construção das formas como a cor, a linha, a textura, a proporção, a perspectiva e o

contexto dos meios que atuaram como cenário visual para as decisões relativas às

representações criadas pelo jesuíta. Como ele manipulou essas unidades básicas na construção

de suas aquarelas, revelam também, através da relação formal e compositiva, os significados

que ele pretendia consciente ou inconscientemente comunicar. Portanto, os elementos básicos

da composição pictórica podem ser aprendidos e compreendidos, melhorando assim a

compreensão das mensagens visuais criadas por Paucke.

Numa tentativa de compreender melhor as representações que Paucke construiu sobre

as festividades no espaço reducional e as celebrações indígenas, incluiremos na nossa descrição

pré-iconográfica uma análise formal de suas imagens, a fim de facilitar e direcionar o nosso

objetivo. Para tanto, utilizamos os critérios estabelecidos por Heinrich Wölfflin, que no início

do século XX criou alguns princípios que ajudaram a caracterizar as diferenças entre os estilos

artísticos. Esses critérios nos fornecem categorias objetivas que nos permitem articular nossas

observações de forma menos imprecisas e genéricas. Wölfflin criou conceitos que se

apresentam em pares, as categorias analíticas são comparativas e opostas como: linear e

99

pinturesco27, planar e recessional28, forma aberta e forma fechada, multiplicidade e unidade.

(WOODFORD, 1983, p. 90-91). Para análise formal das aquarelas de Paucke utilizaremos

alguns desses critérios, não de forma comparativa, pois não se trata aqui de comparar e analisar

dois estilos opostos de pintura. A utilização dessas categorias analíticas pode frequentemente

aguçar nossa visão e ajudar-nos a perceber as estruturas de suas obras.

A representação dos desfiles civis, celebrações e rituais que Paucke construiu compõe

um rico material vinculado à temática das festividades. Essa temática ele representou em uma

série de quatro de suas aquarelas. Nosso objetivo é analisá-las quanto a sua materialidade e seus

princípios formais, procurando desvendar os conceitos de civilidade e selvageria inseridos

nessas composições.

A técnica utilizada pelo jesuíta foi a aquarela29. A técnica de desenhar a cores diluída

em água foi utilizada por navegadores, topógrafos e naturalistas, que ilustravam seus diários de

viagem ou suas crônicas. Supomos que a preferência pela aquarela seria por ser

economicamente mais viável que a tinta a óleo, fácil de transportar e de secagem rápida. Por

secar rapidamente, a aquarela não permite correções, sendo portanto, uma técnica de expressão

mais livre. Na pintura a óleo o pintor pode corrigir imperfeições e reconsiderar sobre como irá

expressar aquilo que deseja. Nesse processo seus pudores estéticos e seu compromisso com

aqueles que irão ver seu trabalho se comportam como formas de censura. O pintor de aquarela,

devido à característica própria do material30, não tem tempo para esse repensar. Sua expressão

é mais solta, livre, instintiva e emocionalmente mais verdadeira.

27 Esse termo segundo Wölfflin significa tudo que é característico de um pintor e de sua técnica na aplicação

maciça de cores com uma textura superficial espessa e áspera, em contraste com a qualidade lineares que realçam

o delineamento e o contorno das formas (WOODFORD, A Arte de ver a Arte,1983, p. 90). 28 Relaciona-se à disposição das figuras dentro do quadro. Na construção recessional as figuras colocadas em

ângulo em relação ao plano do quadro vão se distanciando do plano frontal a parti de uma linha diagonal que se

desloca de uma ponta a outra do quadro (WOODFORD, A Arte de ver a Arte, 1983, p. 91). 29 Não há uma data precisa do surgimento da aquarela. Suas raízes estão ligadas ao grafismo oriental, a descoberta

dos pinceis de pelo de coelho usado na escrita chinesa, e a história do papel. Na China era executada sobre seda,

tábuas ou papel. Na antiga Persa foi utilizada na criação de iluminuras de seus incunábulos. No Egito antigo foi

usada para decorar as paredes dos monumentos, estelas, papiros e objetos de madeira. Muitos artistas do

Renascimento realizaram aquarelas como Rubens e Dürer. Também no século XIX Daumier e Rodin fizeram desenhos coloridos com aquarela. Os mestres impressionistas e pós-impressionistas do final do século XIX,

também usaram a aquarela como forma de expressão. No século XX, Matisse, Picasso, Kandinsky, Miró, Klee e

outros executaram trabalhos utilizando essa técnica. No Brasil, os artistas estrangeiros e viajantes como Rugendas

e Debret cultivaram essa técnica criando belas composições das nossas paisagens e da nossa vida cotidiana. Os

artistas nacionais como Porto Alegre, Meireles, Bernadelli e Visconti praticaram a aquarela esporadicamente. Na

atualidade muitos artistas e ilustradores utilizam a aquarela e ela é hoje, matéria obrigatória no ensino das artes

visuais (MOTTA, Iniciação à pintura, 1976, p. 95-97). 30 A tinta da aquarela consiste de um pigmento no qual é adicionado um aglutinante extraído da árvore acácia: a

goma arábica. É adicionado ao aglutinante água, glicerina ou mel de abelhas e um fungicida natural como o extrato

de alho. O suporte tradicionalmente utilizado na aquarela é o papel. É essencial a transparência na pintura com

aquarela, por isso só é admitido o emprego de três aplicações de cor sobre as figuras, a fim de não perder sua pureza e luminosidade (MOTTA, Iniciação à pintura,1976, p. 98-99).

100

4.3.1 A festa de San Javier

Vamos analisar duas aquarelas de Paucke sobre as festividades ocorridas na redução: a

festa de San Javier (Figura 19) e a Celebração na praça de San Javier (Figura 20). Em primeiro

lugar vamos fazer algumas considerações como Paucke aborda a representação do espaço na

figura 19.

Figura 19 – Florian Paucke. Vista de San Javier. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.

.

Ele representa o espaço através de uma perspectiva31 linear, as formas são distribuídas

a partir de uma linha de base que se desloca no plano conferindo a ilusão de profundidade. Não

lhe interessa a representação de um espaço tridimensional ou a ilusão de um espaço real. Os

planos são rebatidos e cobertos de detalhes que se espalham por toda a folha do papel. O recurso

de duplicação ou rebatimento dos planos foi utilizado amplamente nas estampas e mapas a fim

de resolver a questão representativa do espaço. Para mostrar San Javier, ele utilizou uma

31Método de representar a ilusão de profundidade espacial numa superfície plana. A perspectiva linear reproduz

os fenômenos óticos pelos quais os objetos parecem menores, e as linhas paralelas convergem, à medida que a

distância aumenta. A perspectiva aérea imita o efeito pelo qual os objetos distantes parecem mais claros e

esmaecidos (CUMMING, Para entender a Arte,1995, p. 101). Paucke utilizou uma linha de base, e a partir dela distribuiu as figuras no espaço bidimensional da folha de papel.

101

perspectiva topográfica: a redução é vista do alto, não há uma linha demarcatória do horizonte

e o espaço representado ocupa todo o papel.

É uma visão de amplitude que abarca essa pequena área do vasto território americano:

uma maneira eficiente de representar seu controle e domínio sobre a redução. O desfile que

acontece na redução se encontra no centro da composição e ocorre no mesmo sentido, é o

momento em que acontecem as homenagens ao rei da Espanha.

Segundo Penhos (2007, p. 183-185), no mundo hispânico as celebrações associadas à

monarquia espanhola eram ocasiões destacadas no calendário laico. Essas festividades duravam

vários dias com apresentação de desfiles, peças teatrais, banquetes e bailes. As festas serviam

para reforçar a autoridade real ausente, assim como o poder hierárquico que elas simbolizavam.

Outro meio utilizado para o poder monárquico se fazer presente, era através da exposição do

retrato do rei em espaços públicos e privados. Na América espanhola, devido a distância da

sede da monarquia, a invisibilidade real se tornava mais intensa. Desse modo, as comemorações

de feitos militares, nascimentos, batizados, matrimônios e o dia do padroeiro das cidades

tornaram-se um meio de confirmar os vínculos de lealdade entre os vassalos e seu rei.

Nas reduções as chamadas festas reais não eram tão grandiosas e luxuosas como as que

ocorriam nas cidades coloniais. Para os jesuítas era de grande importância o culto religioso e

mesmo em eventos sociais se cumpria um programa cerimonial religioso. O relato do jesuíta

Antônio Sepp ([1691], 1972, p. 7) nos informou sobre as danças, os trajes e adornos, e outros

elementos utilizados nessas ocasiões: “Aquí es particularmente necessário entusiasmar a los

infieles com tales cosas, transmitirles e inculcarles, junto con la pompa cristiana exterior, un

inclinación interior hacia la religión cristiana”.

Um dos marcadores de civilidade era a religião. Paucke não representou as festas reais,

mas sim as festas religiosas dedicadas ao patrono da redução San Francisco Javier. O

missionário dedicou o capítulo três da parte quatro de sua crônica: Del cristianismo de los indios

para descrever essa festa:

Al uso de las ciudades españolas yo comencé a introducir en mi pueblo la costumbre

de realizar anualmente una procesión a objeto y fin que los indios como vasallos

españoles presentaran al Rey de España una especie de homenaje. Hay la costumbre

en Las Indias y sus ciudades españolas que en el día del patrono de su ciudad que en

Santa Fe era el Santo Hieronymus (PAUCKE [1774], 2010, p. 414).

Essa festividade na redução foi uma iniciativa inovadora de Paucke ([1774], 2010, p.

417): “Tal costumbre no la hubo aun en ninguna de las nuevas reducciones que fueron

establecidas en este valle del Chaco”. Mas, para organizar essa festa, ele buscou referências

102

nas festas dos padroeiros que se realizavam na Espanha e nas cidades da América espanhola.

Porém, na redução essas celebrações assumiram um caráter singular. Ele representou o desfile

equestre (Figura 19) no plano médio32 do papel, acentuado a sua importância na cena. Esse

desfile era liderado por um cacique, a quem Paucke nomeou de Alferes Real:

[...] se realice una procesión por todos los habitantes y las personas del Magistrado

que aparecen todas a caballo en compañías con sus oficiales nombrados entre los cuales ha sido elegido uno de los más nobles que representa la persona real y se

denomina Alférez Real o Köeniglicher Faehndrich [y] que tiene también durante el

año una diferencia y excepción entre los otros (PAUCKE, [1774], 2010, p. 414).

Segundo Paucke ([1774], 2010, p. 414), nos desfiles participavam de quinze a dezesseis

companhias, formadas por vinte e cinco cavaleiros e um oficial que cavalgava sobre um cavalo

de cor diferente da dos outros. As companhias dos vassalos tinham cavalos da mesma cor, assim

como suas vestimentas. Havia a presença de mulheres e de crianças que acompanhavam o

desfile. Destacamos aqui a diferença quanto à representação dos corpos dos mocoví (Figura

20).

Figura 20 – Florian Paucke. Celebração na praça de San Javier. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.

32 Plano médio: é a área que fica entre o primeiro plano e o plano de fundo da composição (CUMMING, Para entender a Arte, 1995, p. 101).

103

Nas festividades ocorridas na redução, os homens apareciam vestidos à moda europeia,

enquanto que as mulheres eram exibidas seminuas, no meio da procissão, executando suas

canções e danças que faziam parte dos rituais guerreiros da vitória, como indicado pela presença

dos maracás em suas mãos, objetos sagrados utilizados na prática do xamanismo; além de

trazerem as cabeças dos inimigos33 nas mãos, cantando vitória em sua língua.

Não é de admirar a aparente indiferença com que Paucke se refere aos troféus macabros,

porque os jesuítas foram muito cautelosos em remover, pouco a pouco, os costumes tradicionais

dos indígenas. Essas festividades não eram uma mera reprodução das festas para padroeiro que

ocorriam nas cidades espanholas. Elas possuíam no contexto reducional um sentido maior: era

uma adaptação e uma ressignificação de alguns dos rituais indígenas em que havia a formação

de alianças entre os grupos indígenas e a consolidação das lideranças. Esse novo ritual trazia

elementos significativos dos antigos e tradicionais rituais indígenas. As tradicionais batalhas

indígenas eram representadas durante os festejos como batalhas ritualizadas a cavalo e a pé,

que os mocoví executavam para o assombro dos presentes e orgulho do jesuíta.

Paucke representou o cacique que foi corporificado como sendo o alferes real (Figura

19), rodeado por seus ajudantes, assistindo a apresentação dos cavaleiros das diferentes

companhias. Os cavaleiros estão dispostos em duas linhas diagonais paralelas. As linhas

diagonais normalmente são utilizadas para representar a profundidade do espaço em que as

figuras diminuem de tamanho à medida que se afastam do plano frontal do quadro. Mas Paucke

usou as linhas diagonais nessa composição para indicar uma direção, pois as figuras não

diminuem de tamanho, o objetivo é levar o observador a olhar diretamente para o alferes real.

Observamos ainda que os personagens levavam bandeiras reais para homenagear o cacique.

Esse recurso técnico que Paucke utilizou demonstra o quão importante e honroso era esse cargo

nos festejos. Portanto, o jesuíta soube adaptar o ritual indígena de fortalecimento das lideranças

em proveito dos seus objetivos missionais.

Durante as festividades, o comandante espanhol e sua comitiva, vindos de Santa Fé,

eram recebidos solenemente e se confessavam e comungavam antes dos indígenas. Havia a

entrega de vários presentes aos caciques. Se faziam vários brindes com vinho e Paucke,

preocupado que o vinho espanhol despertasse a “fúria índia”, o diluía com água, a fim de aliviar

as borracheras. Afinal, era necessário manter a ordem, pois todos estavam num espaço onde

33 Paucke não especifica quem eram esses inimigos, nem como essas cabeças eram conservadas. Não encontramos

em outras fontes essas informações. Na terceira parte de sua crônica, nos capítulos: Servicios de los indios en la

guerra e De los enseres y armas de los indios ele se refere as “contienda con indios salvajes y paganos”, não nomeando os inimigos dos mocoví.

104

predominava a civilidade cristã. O missionário representou em sua aquarela uma cena onde se

vê claramente a ordem, dentro de um evento onde há bebidas alcoólicas, no qual possivelmente,

poderia ocorrer conflitos e desordens (PAUCKE, [1774], 2010, p. 419-420).

O jesuíta representou todos os homens vestidos com roupas coloridas, adornos e chapéus

vistosos, à moda da Alemanha e da Espanha. As mulheres foram representadas com o dorso

desnudo e, segundo o missionário, emitiam “gritos jubilosos”. Como já citamos, a vestimenta

é própria do homem ilustrado, sendo um traço de distinção entre a selvageria e a civilidade. A

dialética entre o vestido e o desnudo está presente em várias imagens criadas por Paucke. Ele

representou a vestimenta como sinal de identidade étnica, diferenciação social e civilidade. Em

oito de suas aquarelas ele apresentou as vestimentas usadas no Gran Chaco, como os álbuns de

trajes e costumes que estavam em uso na Europa no final do século XVIII (PENHOS, 2007, p.

185). Paucke representou as figuras de homens e mulheres aos pares e inseriu legendas que nos

permite identificar os modelos e as cores que eram usadas pelos vários atores sociais: criolos,

galegos, alunos dos colégios, jesuítas, militares e os indígenas. Embora o vestuário esteja

associado ao modelo social europeu, a vestimenta reforçou o valor do ornamento para os

mocoví. Segundo Penhos:

Respecto del significado general del vestido em Paucke y como funciona em las imágenes podemos decir que éste distingue a los españoles de acuerdo com su origen

o lugar em la sociedade colonial, señalando a la vez em los indios el éxito de la

cristianización y su incorporación a la misma (PENHOS, 2007, p. 185).

A representação cuidadosa que Paucke fez (Figura 20) do vestuário indica o lugar de

destaque que o traje dos indígenas representava no âmbito dos festejos. Os mocoví utilizavam

suas tatuagens, adornos de penas, ossos e madeira para destacarem sua posição entre os grupos

de indivíduos. Esses sinais eram vistos como marcas de selvageria, que nesse contexto, foram

resignificados pelo uso de vestimentas e adornos coloridos, transferindo assim o código social

europeu para o universo cultural indígena.

Outra forma de expressão que o missionário aplicou foi a representação de texturas

(Figura 20). Ele empregou a textura ótica34 nas roupas, adornos e nos cavalos. A pintura da

aquarela35, devido à especificidade da diluição dos pigmentos, só permite operar esse tipo de

34 A textura é o elemento visual que com frequência serve de substituto para as qualidades de outro sentido: o tato.

Na verdade, porém, podemos apreciar e reconhecer a textura tanto através do tato quanto da visão, ou ainda

mediante uma combinação de ambos. É possível que uma textura não apresente qualidades táteis, mas apenas

óticas, como no caso das linhas de uma página impressa, dos padrões de um determinado tecido ou dos traços

superpostos que preenchem a imagem (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual,2003, p. 70). 35 A pintura com aquarela, consiste em aplicar pigmento em forma líquida a uma superfície, a fim de colori-la, atribuindo-lhe matizes, tons e texturas.

105

textura. Ao texturar esses elementos, Paucke nos reafirma a importância que ele conferiu ao

vestuário dos mocoví.

As figuras representadas no desfile (Figura 20) se agregam ao espaço. A luminosidade36

é difusa, não há um foco de luz definido, pois no espaço da religião reina a luz como num todo:

a luz da verdade, a luz dos seres ilustrados e iluminados. Essa luminosidade difusa ajuda a isolar

as figuras, o que Wölffin chamou de multiplicidade das formas, ou seja, cada figura é composta

por partes distintas, cada uma plena, acabada per se, com sua cor própria e local determinado

(WOODFORD, 1983, p. 92).

Através do efeito da luminosidade podemos perceber os matizes37. Paucke coloriu de

forma uniformizada as imagens. Para dar ideia de volume, ele usou muito pouco os sombreados,

obscureceu algumas zonas, mas não apelou para um foco de luz definido. As variações de luz

ou de tons são meios pelos quais distinguimos a complexidade da informação visual do

ambiente. A luz acentua o colorido das formas, as cores são quentes, representando a

luminosidade e o calor dos trópicos, a vida, o trabalho e um mundo vivo, em movimento e

construção.

Para dar a noção de distância (Figura 19), ele dispôs os personagens em linhas

horizontais paralelas ao plano frontal do quadro, deslocando sequencialmente as formas,

levando o olhar do observador para o fundo da cena. Não se observa uma relação ilusionista

entre as figuras humanas e outros elementos como as construções ou árvores que possa

completar a aclimação da cena. Ele construiu a cena a partir da visão do rio Dulce, hoje San

Javier, no qual vemos a redução em uma de suas margens. A imagem introduz o observador

num mundo regido por uma ordem. Essa ordem é percebida pelo equilíbrio em que os seres são

representados no plano pictórico38. Paucke usou aqui uma composição equilibrada, calculada e

geométrica39. Esse tipo de composição e o uso de formas fechadas40 transmitem uma impressão

de estabilidade e equilíbrio e há uma tendência para disposição simétrica, embora ela não seja

36 A luminosidade é a propriedade de refletir a luz. Através desse efeito o ser humano configura, percebe e imagina

aquilo que reconhece e identifica no meio ambiente, isto é, todos os elementos visuais: linha, cor, forma, direção, textura, escala, dimensão e movimento (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual,2003, p. 30) 37 Por matiz, me refiro aqui, à cor “pura”, sem adição dos tons de preto e branco. 38 Plano pictórico: A superfície plana na qual o quadro é pintado. O plano vertical é imaginado como uma janela

entre o observador (ou o pintor) e a cena representada no quadro (CUMMING, Para entender a Arte,1995, p. 101). 39 Esse tipo de composição foi utilizado como método científico no Renascimento que estipulava regras fixas para

disposição das imagens. O método consiste em dividir ao meio o plano pictórico através de uma linha vertical e

outra horizontal. Ambos os lados, direito e esquerdo, superior e inferior, devem conter o mesmo número de

imagens, com valores tonais e pesos visuais opostos mas que se equilibram (LETTS, O renascimento, 1981, p.

38). 40 Na forma fechada, todas as figuras estão equilibradas dentro da moldura do quadro. A composição baseia-se em

verticais e horizontais que repetem a forma da margem do papel e sua função delimitadora (WOODFORD, A Arte de ver a Arte, 1983, p. 91).

106

rígida, como se nota na aquarela Celebração na Praça de San Javier (Figura 20). Sabemos que

Paucke, assim como outros jesuítas, não possuía uma formação acadêmica em artes visuais,

mas pressupomos que ele tenha tido acesso à visualização de obras artísticas e gravuras

religiosas em que esse tipo composição era utilizada.

Dondis, em relação a questão do equilíbrio na composição pontua que:

A mais importante influência tanto psicológica como física sobre a percepção humana

é a necessidade que o homem tem de equilíbrio, de ter os pés firmemente plantados

no solo e saber que vai permanecer ereto em qualquer circunstância, em qualquer

atitude, com um certo grau de certeza (DONDIS, 2003, p. 32).

Portanto, a referência visual mais estável na percepção humana seria o senso intuitivo

de equilíbrio. Ao fazer avaliações visuais, o ser humano, consciente ou inconscientemente,

percebe de forma exata, rápida e automática o equilíbrio. O equilíbrio na composição, assim

como o uso de linhas retas, representa estabilidade. Ou seja, essa estabilidade é construída por

uma lógica matemática. O uso de linhas retas representa o domínio da razão sobre as emoções

naturais, representada pelo uso de linhas curvas e sinuosas41. Na vista da redução (Figura 19)

as linhas retas foram utilizadas para construir a igreja e suas dependências e na representação

do desfile. Mas esse mundo seguro, equilibrado e racional é colocado dentro de um círculo que

é marcado pelo rio e pela vegetação. A representação da curvatura do horizonte, nas respectivas

áreas, foi utilizada para unir o espaço representado com o mundo terrestre.

Para Penhos (2007, p. 187), o uso da forma circular que envolve a redução poderia estar

relacionado com o imaginário da natureza selvagem e indomada do Gran Chaco. O círculo, para

Aniela Jaffé (1964, p. 240), “expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos,

incluindo o relacionamento entre homem e a natureza”42. Paucke utilizou em muitos das suas

aquarelas a forma circular, principalmente naquelas onde ele representou os modos de vida

tradicionais dos mocoví. Nas aquarelas das celebrações indígenas (Figuras 21 e 22) ou da caça

de gafanhotos (Figura 14) podemos ver as mulheres sentadas em círculo para trabalhar e manter

41 Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza, uma enorme energia. Onde quer que seja utilizada, é o

instrumento fundamental da pré-visualização, o meio de apresentar, em forma palpável, aquilo que ainda não

existe, a não ser na imaginação. Sua natureza linear e fluida reforça a liberdade de experimentação. Contudo,

apesar de sua flexibilidade e liberdade, a linha não é vaga: é decisiva, tem propósito e direção, vai para algum

lugar, faz algo de definitivo. A linha, assim, pode ser rigorosa e técnica, servindo como elemento fundamental na

comunicação visual. A linha pode assumir formas muito diversas e expressar uma variedade de estados de espírito.

Pode ser imprecisa, delicada, ondulada, curva, reta, ou grosseira. A linha reflete a intenção do artista, seus

sentimentos e emoções mais pessoais. (DONDIS, Sintaxe da Linguagem visual, 2003, p. 55-56). 42 O círculo está presente na religião, na arte, na arquitetura, nos mitos, nos sonhos, na astrologia e na astronomia,

ele indica sempre o mais importante aspecto da vida: sua extrema e integral totalização (JAFFÉ, O Simbolismo nas artes plásticas. In: Jung, C.G.(Org.) O Homem e seus símbolos,1964, p. 240).

107

o fogo. As mulheres mocoví mostradas pelo jesuíta, seriam, nessa contextura, as guardiãs das

antigas tradições.

A festa de San Javier se mostra, no relato de Paucke, uma experiência sincrética: os

mocoví tocavam seus chocalhos (maracás) feitos de cabaças com grãos de milho, um

instrumento usado nas práticas xamânicas, o que contrastava com os instrumentos musicais

europeus que Paucke introduziu na redução.

De acordo com Gambini (1988, p. 162), os jesuítas treinavam os indígenas para

reproduzirem o gestual religioso que deveriam executar durante os ofícios sagrados, mas não

compreendiam que o maracá representava a própria voz do espírito, logo, um objeto sagrado.

Portanto, o toque dos chocalhos na festa de San Javier possuía um caráter ritualístico, embora

Paucke ([1774], 2010, p. 414) considerasse que eles serviam apenas para fazer ruídos:

“calabazas huecas en las cuales tenían granos de cucurus [maíz] y hacían un ruído”.

Outro aspecto do sincretismo da festa de San Javier está no fato das mulheres carregarem

as cabeças dos inimigos, mortos em batalhas, nas mãos ou em varas, cantado a vitória, como

Paucke relatou:

Al lado de la iglesia estaban parados a ambos lados todos los niños de la aldea; de

un lado los varones, del otro las niñitas, pero las mujeres esperaban la entrada en el

centro de la plaza, en parte con calabazas huecas; [...] en parte con las cabezas de

enemigos muertos en la mano o sobre varas, bailaban en derredor entre la entrada y

cantaban victoria en su lengua especialmente cuando llegaba el Alférez Real

(PAUCKE, [1774], 2010, p. 414-415).

São elementos de práticas antigas indígenas, aceitas numa festa religiosa cristã. Nessas

celebrações públicas, os indígenas eram considerados vassalos do rei. Usavam roupas europeias

e realizavam uma parada militar. O jesuíta permitiu que os mocoví reduzidos desenvolvessem

alguns dos seus rituais, mas de forma ordeira e planejada, talvez querendo mostrar aos

espanhóis como estavam civilizados.

Portanto, a festa ao patrono de San Javier se situa na confluência de uma celebração

simultaneamente religiosa, laica e indígena. Na densa presença de elementos simbólicos desse

universo reside a riqueza do registro verbal e iconográfico de Paucke.

108

4.3.2 As assembleias Mocoví

Paucke produziu duas aquarelas que ilustram as celebrações mocoví: A Borrachera –

Figura 21 e a Borrachera II – Figura 22. Em contrapartida, e de uma maneira analógica às

representações das festas em San Javier, essas aquarelas reproduzem os excessos e a selvageria.

Na terceira parte de sua crônica: De la manera de vivir, usos y costumbres de los indios

americanos en el paganismo, Paucke dedicou o décimo capítulo as “Sus ceremonias durante la

borrachera”. Ele nos informou sobre o estado em que ficavam os indígenas após embebedar-

se: “Las ceremonias que ellos usan al tiempo de beber en exceso a emborracharse consisten en

cosas inhumanas y muy deshonestas” (Paucke, [1774], 2010, p. 309).

Figura 21 – Florian Paucke. A Borrachera. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.

109

Figura 22 – Florian Paucke. A Borrachera II. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.

Em seu texto se referiu várias vezes ao quanto os indígenas em geral apreciavam as

bebidas fermentadas, esclarecendo seus esforços para erradicar seu consumo na redução. Uma

das suas táticas foi introduzir o té paracuario. Outra estratégia que ele utilizou foi designar

alguns meninos para informá-lo quando em uma choça seria preparado o napé ou chicha, a fim

de impedir sua fabricação. O jesuíta associou a embriaguez à violência, e os rituais à selvageria

e à imoderação:

Lo mismo que en la comida los indios son muy entregados a la inmoderación también al beber: cuando ellos [tienen] los materiales para susodichas bebidas y mientras

tienen una existencia de ellas, beben de continuo. Lo más se emborrachan tan

inhumanamente que la naturaleza expulsa de si por todas las vías lo superfluo y ellos

se asemejan más a una bestia que hombres (PAUCKE, [1774], 2010, p. 309).

As cerimônias de bebidas ocorriam na primavera, nas quais participavam outros grupos

indígenas, além dos mocoví. A elaboração do napé era feita por mulheres. Elas maceravam as

sementes de chañar e as da algarroba secas ao sol, misturavam com água e deixavam fermentar

sob o sol. As bebidas exalavam um forte odor e Paucke sabia de antemão em qual choça elas

estavam sendo preparadas. As bebidas feitas de sementes de milho eram preparadas pelas índias

110

velhas que mascavam suas sementes e depois acrescentavam água e as colocavam também ao

sol para fermentar. Também faziam o napé ou chicha da fermentação do mel silvestre ou

campestre. Elas pegavam um couro cru de tigre (onça pintada) ou veado, esticavam em quatro

estacas de madeira, de modo que o couro formasse uma espécie de sacola. Derramavam o mel

com a cera e deixavam fermentar sob sol por cerca de três a quatro dias (PAUCKE, [1774],

2010, p. 307-308).

Nesses encontros ocorriam jogos e desafios verbais, em que as habilidades e a coragem

dos guerreiros eram demonstradas. Sobre os jogos, Paucke inicia seu texto afirmando:

Pregunta: “¿tienen los mocovíes también un juego para su diversión? Respuesta: en

semejantes ocasiones de borracheras no tienen ni danza ni juego sino que únicamente, cuando

han llegado a reunirse, comienzan a golpearse lastimeramente a puños entre ellos” (PAUCKE,

[1774], 2010, p. 323).

Mais adiante em seu relato ele se contradiz informando que:

En general tienen la costumbre de tirar sus nepun, o sea garrotes (con los cuales

matan caza silvestre y gentes); aquel que tira más lejos, gana lo dispuesto. El premio

consiste en lazos, boleadoras, flechas, corales de vidrio o cosas semejantes. [...] Pero

cuando después mis mocovíes se habían conocido mejor con los españoles, habían

tratado más frecuentes veces con ellos y visto diversos juegos, ya se veían juegos de

naipes, dados, bolos y otros semejantes juegos de pasatiempos (PAUCKE, [1774], 2010, p. 323).

Além dos jogos, havia também duelos ritualizados. Os caciques e seus guerreiros se

submetiam à feitura de tatuagens e escarificações. As escarificações eram uma maneira de

demonstrar coragem e adquirir as forças animais, como por exemplo, ao usar o osso de uma

arraia, as qualidades desse animal seriam incorporadas ao guerreiro. O uso do sangue nos rituais

poderia estar relacionado com a aquisição de força e bravura e proteção durante a guerra

(SCALA, 2019, p. 77).

As cerimônias também eram acompanhadas de música:

Ellos tienen también su música durante esto pero ningún baile. Los instrumentos

musicales son silbatos, cuernos de buey y tambores. Los tambores son una olla llenada de agua a la mitad, cubierta arriba por un cuero de oveja. Cuando se toca se

le oye desde lejos pero no tiene el sonido igual al de un tambor común y se parece

más a un [tambor] turco pero no tan ressonante (PAUCKE, [1774], 2010, p. 317).

Embora o missionário considerasse essas reuniões, que ele chamou de “asamblea”,

como meras reuniões de borrachos, Scala (2019, p. 76-77) nos informa que esses encontros

111

serviam para reforçar as lideranças políticas e fazer novas alianças. Esses novos acordos

também eram celebrados com os antepassados mortos, celebração essa possivelmente baseada

em rituais xamânicos. Mas ao nomear esses encontros de assembleias, Paucke percebeu o

significado coletivo dessas reuniões, pois identificou a participação de outros grupos externos,

como os mataguayos.

Dessas festividades, segundo o jesuíta, as crianças não participavam, pois se escondiam

dos violentos participantes do ritual e as mulheres escondiam as lanças de seus maridos:

Frecuentemente los emborrachados chocan tan furiosamente que por no hallar lanzas

algunas (porque las mujeres se las han escondido y han apartado cuanto fuere útil

para herir) van con el puño los unos contra los otros, se arañan lastimeramente y se

golpean las caras (PAUCKE, [1774], 2010, p. 309).

Em sua crônica, assim como em duas de suas aquarelas (Figura 21 e 22), Paucke

representou essas práticas festivas segundo um juízo negativo. De acordo com Gambini (1982,

p. 127), numa perspectiva junguiana da teoria da projeção, os jesuítas viam suas “sombras”

refletidas no “espelho dos índios”. Esse processo seria o contra movimento interno do ideal

sagrado dos missionários da Companhia. O jesuíta, ao olhar para o indígena, esse espelho

obscuro, de uma maneira mais consciente, iria realçar as diferenças entre ambas as partes, e

levar à identificação da bondade e retidão43de uma e à condenação da outra. Mas

inconscientemente, nesse espelhar-se, o jesuíta via o seu ideal e seu lado obscuro refletidos no

índio.

Num primeiro momento, observamos nas aquarelas um discurso que se contrapõe à

selvageria com o cristianismo. Visto que para o missionário essas assembleias eram a

personificação da selvageria. Porquanto, para ele o índio quando borracho retornava ao seu

estado primitivo e animalesco.

Na representação da festa de San Javier o desfile ocupa todo o plano pictórico (Figura

20), plasmando visualmente o universo controlado, ordeiro e civilizado da redução. Na festa

religiosa, cada participante tinha uma função e um lugar pré-determinado no desfile. Cada

momento desse dia especial era regulado. A festa organizada por Paucke pretendia suplantar as

celebrações mocoví, na qual, para o jesuíta, ocorria toda espécie de atos desumanos e

degradantes.

43 “Nos Exercícios Espirituais o meditante era incentivado a usar seus sentidos imaginários para visualizar o

Inferno com todos os detalhes climáticos, temperatura, sons, odores etc. Psicologicamente, esse exercício

corresponderia a uma projeção através da função de sensação, isto é, trata-se de um treino da sensação para

produzir uma percepção do mundo dogmaticamente prescrita ao invés de realista” (GAMBINI, O Espelho Índio, 1988, p. 162)

112

Como na maioria de suas composições plásticas, o jesuíta empregou o recurso do plano

rebatido para representar as reuniões festivas dos mocoví (Figuras 21 e 22). A composição da

cena da figura 21 foi feita a partir de um movimento centrípeto, isto é; os participantes da festa

estão dispostos dentro de um círculo44. Na cena da figura 22, a composição foi elaborada com

base num círculo maior e pequenos semicírculos de bebedores, músicos e participantes.

As composições que retratam as assembleias foram construídas usando formas

circulares e linhas curvas que sugerem intenso movimento e são mais dinâmicas do que aquelas

que são criadas com base em linhas retas e figuras que se fecham em uma forma retangular.

São composições, segundo os critérios de Wölfflin, abertas, ou seja, as figuras não estão

contidas na moldura do papel, observamos que alguns personagens (Figura 21) são cortados

nos lados das margens verticais e da margem horizontal inferior. As figuras distribuídas em

círculo aparentam estar em um movimento contínuo, de certa forma, desordenado. A função e

o lugar dos participantes não foram determinados, a festa transcorre livremente, não existe

controle nesse mundo natural e selvático.

Paucke representou a nudez feminina de forma parcial em várias de suas aquarelas

(Figuras: 8-14 e 16-20), mas nas aquarelas das assembleias a nudez é total e comum a todos os

participantes. Para Gambini (1982, p. 128), o preconceito cristão contra o corpo e a sensualidade

reside no paradigma do homem natural, por isso associado aos instintos animais e ao mal. O

jesuíta, tendo excluído essa particularidade do seu próprio eu, vê no outro esse aspecto de forma

negativa. Portanto, tenta destruir no indígena aquilo que destruiu em si.

Observamos uma ambivalência em respeito à representação da nudez segundo a

percepção e valorização dos indígenas por parte do missionário. O jesuíta representou a nudez

índia de diferentes modos. Nas cenas em que os índios executam trabalhos na redução só há um

indígena desnudo. A composição é equilibrada, há o uso intenso de linhas retas e os elementos

visuais estão numa ordem, que representa o espaço civilizado (Figura 23).

44 O círculo expressa a união dos opostos, a união do mundo pessoal com o mundo impessoal. É o símbolo da

psique. Representa movimento, os ciclos da natureza, da vida e a transformação trazida pela morte. É a primeira

forma abstrata que o ser humano percebe: o óvulo e o útero materno têm forma circular. O círculo está relacionado

com a representação da leveza, pois ele está no céu, no alto: é a forma do sol e da lua cheia (JAFFÉ, O Simbolismo

nas artes plásticas. In: Jung, C.G.(Org.) O Homem e seus símbolos,1964, p. 249).

113

Figura 23 – Florian Paucke. Construção na Redução. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Colecciones Paucke. pueblosoriginarios.com, 2016. Acesso em 05/2019.

Nas, nas cenas em que representou as práticas tradicionais dos mocoví, como as caçadas

(Figura 13), três personagens estão despidos. Na cena de guerra (Figura 17), só os líderes estão

com suas vestimentas e adornos de cabeça, os demais estão todos nus, assim como nas cenas

das assembleias. Como representação iconográfica a nudez servia para demonstrar as virtudes

próprias de uma humanidade em seus primórdios, ou como critério determinante de selvageria

animal. Em toda a sua narrativa, Paucke se refere aos indígenas em geral como selvagens e

bárbaros, negando sua condição humana, principalmente quando descreve o índio embriagado:

“yo no debo nombrarlos gentes sino animales salvajes” ([1774], 2010, p. 309).

Nas aquarelas das cerimônias de bebidas (Figuras 21 e 22), os corpos indígenas

representados contrastam fortemente com o relato de Paucke em que ele descreveu a aparência

física dos indígenas: “La forma y color de los índios”. Na figura 21, se pode identificar, devido

114

ao relato de Paucke, algumas mulheres sentadas em círculo, no canto inferior direito45 do papel,

ocupadas com a fabricação da bebida cerimonial, ou seja, uma tarefa tradicionalmente feminina

dentro da sociedade indígena. São, também, as únicas figuras nessa aquarela que estão

parcialmente vestidas.

Paucke não utilizou nenhum modelo no qual pudéssemos caracterizar os personagens

das aquarelas que retratam as cerimônias mocoví. Supomos que o jesuíta, de forma consciente,

representou os indígenas em suas assembleias e operando suas práticas tradicionais,

desprovidos de suas marcas pessoais, como se fossem um uno selvático. O que não ocorreu na

aquarela em que ele representou os mocoví tatuados e raspados com seus atributos físicos

singulares (Figura 24).

Figura 24 – Florian Paucke. Tatuagens e adornos de face mocoví. Século XVIII. Aquarela sobre papel.

Fonte: Serie signos santafesinos. espaciosantafesino.gob.ar, 2016. Acesso em 05/2019.

45 A colocação de figuras no canto inferior direito intensifica a percepção do observador. As figuras, por estarem

fora do centro do plano pictórico, atrai mais atenção do observador (DONDIS, Sintaxe da Linguagem Visual, 2003, p. 38).

115

A divergência entre o texto verbal e o visual de Paucke sobre a aparência dos indígenas

é marcante. Entretanto, ele dedicou alguns parágrafos, e duas de suas aquarelas, para detalhar

as características específicas e étnicas dos homens e mulheres mocoví (Figura 24). Essas

aquarelas se configuram como registros etnológicos do grupo mocoví no século XVIII.

Observamos nessa aquarela (Figura 24) um domínio maior do desenho das faces e dos detalhes

do rosto que conferem personalidade aos retratados. Tanto no seu texto escrito, como nessa

imagem, o jesuíta nos revelou a técnica de tatuagem utilizada pelos mocoví.

Se compararmos as aquarelas da festa de San Javier, o vestuário disciplina os corpos

mocoví, determina seu pertencimento ao sistema civilizado e cristão. O círculo desordenado de

figuras nuas em que não se identifica idade ou sexo, em várias posições grotescas, com gestos

brutalizados (Figuras 21 e 22), demostra visualmente o olhar de Paucke sobre essas cerimônias

tradicionais indígenas, que ele denominou de bestiais, em que o indígena perdia sua condição

de humanidade. De acordo com Gambini (1988, p. 129), durante os Exercícios Espirituais, os

jesuítas deveriam lutar contra os seus instintos e pecados: como o da gula e o gosto para as

bebidas e danças. Portanto, para o autor, seria essa a explicação para o olhar do jesuíta sobre as

assembleias:

O animal repudiado (o instinto) está também por trás da incapacidade missionária de apreciar e compreender a alegria de viver do índio ao brincar, cantar, dançar e beber.

Não seria nem preciso penetrar no significado ritual de tais práticas, bastaria aceita-

las pelo que são - mas isso só consegue quem de alguma forma lhes conhece o gosto.

Quem já não sabe brincar não admite mais brincadeira alguma (GAMBINI, 1988, p.

129, grifo nosso).

O imaginário do selvagem e do civilizado estão inseridos plasticamente nas

representações pictóricas de Paucke. Como animais, ele nos apresenta os indígenas, não com

suas identidades próprias, mas como parte de um conjunto, de uma espécie. Para ele, homens

ainda vivendo de forma comunal, em harmonia com o ambiente era um traço de animalidade.

Para Gambini (1988, p. 133), “os jesuítas, vivendo numa comunidade exclusivamente

masculina baseada em votos e hierarquia, sentem-se chocados com a vida comunal dos índios”

Não há nenhuma marca, sinal exterior, vestimenta ou ornato da cultura mocoví descrito e

representado em sua crônica (Figuras 6 e 16) que tenha sido mostrado nas cenas das

assembleias. Paucke relatou que suportava essas assembleias porque elas funcionavam como

um chamariz para atrair os índios infiéis que perambulavam pelas matas para a vida na redução

(PAUCKE, [1774], 2010, p. 318).

116

Através das imagens das cerimônias mocoví, o homem primitivo foi visto e representado

pelo olhar “civilizador” do missionário. Ao analisarmos essas imagens em seus elementos

constitutivos, trouxemos à superfície os estereótipos que Paucke possuía dos mocoví. Portanto,

uma leitura social, cultural e estética das aquarelas que ele criou sobre as festividades, amplia

o sentido da leitura verbal de sua narrativa. Flexibilidade, fluência, elaboração, todos esses

processos mentais envolvidos na criatividade do missionário, são mobilizados no ato de

decodificação dessas aquarelas.

As relações entre o tempo e as aquarelas do jesuíta se estabelecem, se conservam e se

transformam, pois cada pessoa em cada época tem direito à sua interpretação, desde que

justificada formalmente; portanto, é necessário ler claramente os elementos formais e de

composição. Essa leitura formal auxilia na busca de conceitos e significados mais profundos ou

mais abstratos que o jesuíta consciente ou inconscientemente quis comunicar. Logo, a descrição

dos conceitos sobre civilidade e selvageria elaborados pela sociedade europeia demarcou a

diferença entre ver e ter um olhar sobre a obra de Florian Paucke: a diferença entre ver, sentir

e compreender os significados intrínsecos que suas imagens carregam.

Por fim, a obra de Paucke pode dar satisfação, agradar ou não, surpreender, ampliar

nossa compreensão de um tema ou enriquecer nossa percepção de formas. Mas acima de tudo,

ela nos revela todo um novo mundo de sentimentos e visão. Qualquer pessoa que queira

explorar os significados de sua obra ficará surpresa com a quantidade de pontos de vista

apresentados, pois sua obra é fonte para várias áreas do conhecimento. Mas cada indivíduo tem

o direito de levar para suas composições plásticas o que quiser levar através do olhar e de sua

experiência, e guardar o que decidir, no nível pessoal. O conhecimento da história, das

habilidades técnicas e o acesso à visibilidade das obras artísticas ampliam essa experiência

pessoal. Mas se a dimensão pessoal ou mesmo espiritual se perder, então olhar a obra de Paucke

não é mais significativo do que olhar um problema de palavras cruzadas e tentar resolvê-lo.

Paucke, em suas representações, não obedeceu a regras fixas, ele simplesmente intuiu o

caminho a seguir para adentrar nesse mundo excitante, com suas estranhas leis, em suas próprias

aventuras. Para apreciarmos as suas composições, devemos ter o espírito leve, prontos a captar

qualquer indício sugestivo oculto em suas imagens. Um espírito que não esteja petrificado por

palavras e frases feitas. Propomos aqui a abrir os olhos, não soltar línguas. Mas cada um ver

aquilo que deseja ver. Olhar uma imagem com olhos de novidade é uma aventura, uma viagem

de descobertas. Não é uma tarefa fácil, mas compensadora. É imensurável o que se pode trazer

de volta dessa jornada.

117

CONCLUSÃO

Nosso interesse neste trabalho foi ampliar a disposição para o uso de fontes não

tradicionais, como a imagem, na pesquisa histórica. A imagem cada vez mais vem conquistando

seu lugar ao lado de textos literários e testemunhos orais. A história do corpo, da cultura

material e das mentalidades tornar-se-ia virtualmente inviável sem as evidências de imagens. A

imagem, devido ao seu caráter polissêmico, que motiva várias interpretações, ainda é pouco

aceita como evidência histórica (BURKE, 2017, p. 18). Há poucas pesquisas que usam arquivos

fotográficos e imagens pintadas ou impressas, comparadas ao número de pesquisas que fazem

uso de repertórios de documentos escritos. Relativamente, poucos pesquisadores aproveitam a

oportunidade de utilizarem a imagem como um documento histórico. Quando o fazem, tratam

as imagens como meras ilustrações, que reproduzem em suas pesquisas, sem nenhuma análise.

Mas, apesar disso, alguns pesquisadores já se valeram da evidência das imagens, principalmente

aqueles que pesquisam épocas em que os documentos escritos eram escassos ou inexistentes.

Portanto, as imagens são indícios do passado no presente, que nos permite imaginar o passado

de forma vívida.

Há muitas maneiras de olhar para uma pintura. Podemos começar a indagar a finalidade

de uma pintura. No caso das aquarelas produzidas por Paucke, ele as criou para ilustrar seu

texto narrativo. Através do método criado por Panofsky de interpretação de imagens, a partir

da decomposição de suas partes, analisamos as aquarelas que representam a festa de San Javier

e a Assembleia dos mocoví, não só como imagens ilustrativas, mas sim, como representações

que transmitem uma máxima moral: a ordem e o equilíbrio do mundo civilizado e o caos e os

excessos do mundo selvagem.

Realizamos uma análise formal das pinturas do jesuíta, que Panofsky chamou de pré-

iconográfica, na qual descrevemos os elementos da composição e a temática. Examinamos, em

termos de construção, o modo como formas, linhas e cores foram usadas para comunicar as

diferenças entre o espaço civilizado da redução e o espaço natural e selvático dos mocoví.

Seguindo os níveis de significações criados por Panofsky, trouxemos os aspectos históricos,

políticos, sociais e religiosos da época em que Paucke produziu sua obra. Suas aquarelas não

só ilustram seu relato, ela nos fala de forma expressiva e significativamente como um membro

da Companhia de Jesus, uma sociedade religiosa intelectualmente refinada, que usou a escrita

e as imagens para justificar e validar seu projeto civilizador no Gran Chaco. Embora, em

primeiro lugar, nós vejamos suas imagens primordialmente em função do tema, nos

118

123

concentramos em mostrar aspectos de forma e composição que não são facilmente apreendidos

ao primeiro olhar. Pelo caminho, expusemos conceitos subjacentes, que foram vitais para uma

compreensão e fruição de suas pinturas.

Desenvolvemos uma análise das aquarelas que representam as borracheras, associando

os aspectos rituais e políticos da vida dos mocoví, fazendo algumas referências às partes do

relato de Paucke que estão relacionadas com elas. Confrontamos os significados do seu relato

escrito sobre o assunto com as imagens dessas cerimônias. As aquarelas de Paucke representam

a percepção dos corpos indígenas e o papel da vestimenta como fatores civilizadores do espaço

das reduções. Sua narrativa, assim como estas aquarelas, refletem uma realidade intermediada

por um contato intercultural e das relações de poder entre o jesuíta e os indígenas.

Demonstramos a ambivalência na maneira como ele representou as festividades: de um lado,

podemos perceber suas limitações acerca da interação cultural, religiosa e política, que as

Assembleias significavam para os mocoví, e, de outro, o desfile da festa de San Javier, uma

celebração religiosa cristã que permitia elementos sincréticos, funcionando como um

estratagema para evangelização e para as práticas civilizadoras que os indígenas deveriam

executar.

Cremos que este tipo de análise contribui para abrir novas e amplas perspectivas na

produção historiográfica sobre as relações sociais que se estabeleceram entre os jesuítas e os

grupos indígenas do Gran Chaco no século XVIII.

O tema das missões jesuíticas, as relações entre os missionários e as comunidades

indígenas, as formas de vida das sociedades indígenas, constitui objeto de vários estudos na

elaboração da historiografia sobre as missões e na construção de uma História Indígena. Neste

contexto, as imagens produzidas destes contatos, trazem uma multiplicidade de significados e

podem ser tratadas como elementos constitutivos das sociedades representadas, sendo, portanto,

documentos históricos. Desse modo, procuramos trazer nesse trabalho algumas criações

produzidas por Florian Paucke, analisando também suas imagens como formas importantes de

evidência histórica, no que se refere aos aspectos étnicos dos mocoví. Ele nos apresentou vários

traços étnicos dos mocoví em suas aquarelas, que comparamos com outras fontes históricas

escritas por jesuítas sobre os grupos guaicuru no século XVIII.

Convém ressaltar que limitar a imagem apenas a uma função documental diminui as

inúmeras variáveis que definem sua natureza e a sua importância em várias áreas do

conhecimento. Portanto, acreditamos que nosso trabalho possa auxiliar futuras pesquisas

quanto ao estudo da imagem permitindo, assim, novas concepções na produção de

conhecimento histórico. Pois, é possível observar que, à medida que a visualidade foi sendo

119

percebida como fonte capaz de encaminhar a problemática histórica, os estudos sobre a

dimensão visual e seus efeitos têm mostrado um avanço significativo da produção científica

envolvida no estudo de fontes visuais.

O jesuíta Florian Paucke acreditava que na América encontraria seres sub humanos e

que a sua missão seria transformá-los em seres cristianizados e civilizados. O nosso trabalho

foi seletivo, optamos por analisar algumas aquarelas criadas por Paucke em busca de vestígios

ocultos, onde através de suas representações plásticas dos modos de vida tradicionais dos

mocoví, pudéssemos desvendar os estereótipos construídos acerca dos atributos do que seria o

ser humano civilizado ou selvagem.

Numa perspectiva jungiana, o mecanismo de projeção ocorre quando nos defrontamos

com o desconhecido. Segundo Gambini (1988, p. 127), os jesuítas projetaram na figura do

índio, num processo de espelhar-se inconsciente, seus ideais e suas sombras. Foram essas

sombras, ou esse contra- movimento inconsciente do sublime ideal cristão que criaram os

preconceitos contra os ameríndios, expressão arquetípica do homem natural, sempre associado

ao mal, ao selvagem e ao bárbaro. Os jesuítas, com seu projeto civilizador, cujas bases estavam

apoiadas na religião cristã, acumularam suficientemente saberes, através da convivência que

mantiveram com os povos indígenas, para produzir tratados doutrinários que justificavam,

conforme a religião, a escravização dos negros e a exploração dos selvagens primitivos das

Américas.

Paucke deixou claro em seu relato a crença de que a única proteção relativa que os

mocoví poderiam encontrar, seria se tornando cristãos e participando, tanto economicamente,

quanto na execução de trabalhos produtivos para sociedade colonial espanhola.

Portanto, não nos limitamos a ver passivamente as pinturas de Paucke. Ao descrever e

analisar suas aquarelas, nosso olhar se tornou ativo e discernido. Cremos que atingimos nosso

objetivo, visto que, a proposta essencial que a nossa pesquisa defendeu e ilustrou, é a de que as

imagens trazem conteúdos, as vezes consciente ou inconsciente, dos modos de ver e perceber o

mundo, tanto daquele que produziu as imagens, como daquele que as vê. Não concordamos

com a frase que afirma que uma imagem vale por mil palavras, pois acreditamos que uma

imagem é uma imagem, com um sistema de elementos próprios da linguagem visual, e palavras

são palavras. Estamos pois, lidando com sistemas de códigos diferentes, que necessitam de

ferramentas diferentes para serem decifrados. Uma imagem, as vezes comunica o que não pode

ser dito por palavras. Através de sua plasticidade é que a comunicação se faz de forma mais

efetiva, abrangente e específica.

120

Toda imagem pintada é, essencialmente, uma pincelada de cor num plano

bidimensional, um efeito de luz que nossa retina capta, que dispara a ilusão da descoberta ou

de uma recordação de quem somos. De todo modo, esse fenômeno não explica, nem nos oferece

pistas sobre o que ocorre em nossa mente quando vemos as aquarelas de Florian Paucke, que

implacavelmente, parecem exigir de nós uma reação, uma tradução, um entendimento. Só temos

uma certeza: essa jornada que fizemos para entender e analisar suas obras nos trouxe um tipo

de aprendizagem única, nos levou para um mundo distante do nosso, no tempo e no espaço.

Pelas inquietações que o olhar de Paucke nos suscitou, viajamos para países distantes, visitamos

os lugares por onde ele andou, vimos as mesmas e distintas paisagens mais de duzentos anos

depois dele. Tentamos, levando em consideração os limites de nossas possibilidades e dessa

empreitada, sentir o que ele sentiu e ver o encanto e a beleza que seu olhar vislumbrou.

121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna, 1820-1980. São Paulo: Cosac &Naife

Edições. 1997.

ANKERSMIT, Franklin R. A escrita da história: a natureza da representação histórica.

Tradutores: Jonathan Menezes. [et al.] – Londrina: Eduel,2016.

AUMONT, Jacques. A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Lda, 3. ed.2011.

BAJO, Eduardo F. La obra del Padre Florian Paucke S.J. Centro de Estudios Avanzados de

la Universidad Nacional de Cordoba. Estudios; Nº 5. Julio 1995.

BARBOSA, Andrea. Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006.

BARNADAS, Joseph. A Igreja católica na Hispano América colonial, In: Leslie Bethell (ed.)

História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade

de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001, p.186.

BECKER. Caroline V. A crônica e suas molduras, um estudo genológico. Revista Estação

literária- Londrina, Volume 11, jul. 2013, p. 12-17.

BÍBLIA SAGRADA – Edição Pastoral. Gráfica Paulus. 1999.São Paulo. SP.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.

BRINGMAN, A. Pe. F. Paucke, O grande missionário dos mocovís. Tradução Arthur

Rabuske- 1. ed. São Leopoldo-RS, Editora Unisinos, 2005.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso da imagem como evidência histórica. São Paulo:

Editora Unesp, 2017.

CALVO, Luis M. e BENZI, Marina. Florían Paucke: Un austríaco em tierras mocovíes.

Departamento de Estudios Etnográficos y Coloniales. Dirección Provincial de Patrimonio y

Museos.Provincia de Santa Fé. Argentina. 2016.

122

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

CHARTIER, Roger. Defesa e Ilustração da Noção de Representação. Revista: Fronteiras,

Dourados, MS, v. 13, n. 24, jul. /dez. 2011, p. 15-29.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução: Cristina Antunes – Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. Rio grande do Sul. Editoração eletrônica: Fernando

Piccinini Schmitt.2002.

CUMMING, Robert. Para entender a Arte. São Paulo: Editora Ática, 1995

DOBRIZHOFFER, Martin. História de los Abipones. Uma nación ecuestre y belicosa de

Paracuaria. Traducción de Edmundo Wernicke, Advertencia editorial del Profesor Ernesto J.

A. Maeder: Universidad Nacional Del Nordeste :Facultad de Humanidades - Departamento

De História, Resistencia (Chaco), Argentina - Año 1967.

DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: 3 ed. Martins Editora, 2003.

ELLIOT, John. A Conquista Espanhola e a Colonização da América. In: Leslie Bethell (ed.)

História da América Latina: América Latina Colonial. 2. ed., v. I., Editora da Universidade de

São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001.

FÉLIX, Loiva O. História e Memória :a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf,

1998.

FERREIRA Amarilio JR. e BITTAR, Marisa. Artes liberais e ofícios mecânicos nos colégios

jesuíticos do Brasil colonial. Revista Brasileira de Educação v. 17 n. 51, p, 1-26,2012.

FLAMARION, Ciro C. e VAINFAS Ronaldo (organizadores). Novos Domínios da História.

Rio de Janeiro: Elsevier,2012.

123

FRANCO. Hilário Jr. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2 ed. São Paulo:

Brasiliense,2001.

GAMBINI, Roberto. O Espelho Índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de

Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.

GOMBRICH, Ernst H. História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou, São Paulo:

Centauro, 2003.

HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no tempo das missões. São Paulo: Companhia das

Letras: Círculo do Livro, 1990.

JASON, Horst. História da Arte. Lisboa: Editora Martins Fontes, 1992.

JAFFÉ, Aniela. O Simbolismo nas artes plásticas. In: Jung, C.G.(Org.) O Homem e seus

símbolos, 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1964.

JUNG, Carl G. Org. O Homem e seus Símbolos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,

1964.

LAROUSSE Cultural. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural,

1992.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. IIº Volume, Edições 70, LDA. Lisboa, Portugal.

2000.

LETTS, Rosa M. O Renascimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1983.

LIMA, Elda C. A Correspondência Jesuítica Na Construção De Um Novo Mundo:

Evangelizar, Classificar, Informar (1553-1596) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História, da Universidade Federal de Goiás, 2010.

124

LONDOÑO, Fernando T. Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI.

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 43, 2002, p. 11-32.

LOZANO, Pedro. Descripción corográfica del Gran Chaco Gualamba. Tucumán, Instituto de

Antropología, [1733] 1941.

MARTINS, Mirian C. Didática do ensino de arte: a língua do mundo: poetizar, fruir e

conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.

MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis:

Vozes, 1981.

MENESES, Ulpiano T. B. História e imagem: iconografia\iconologia e além. Novos

Domínios da História-organizadores Ciro Flamarion Cardosos, Ronaldo Vainfas. –Rio de

Janeiro: Elsevier,2012, p.243-262.

MOTA, Edson e SALGADO, Maria L. G. Iniciação à pintura. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1976.

NESIS, Florencia S. Los grupos Mocoví em siglo XVIII – 1ªed. Buenos Aires: Sociedad

Argentina de Antropología, 2005.

NORA, Pierre. Entre memória e História - A problemática dos lugares. Projeto História, São

Paulo, dez 1993.

OLIVEIRA, Wencelao M. Jr. Dossiê: A Educação pelas Imagens e suas Geografias. Pro-

Posições, Campinas, v. 20, n. 3, 2009.

PAGE, Carlos A. Los Viajes de Europa a Buenos Aires segúnlas crónicas de los jesuitas de

los siglos XVII y XVIII – la ed. – Córdoba: Báez Ediciones, 2007.

PAGE, Carlos A. A literatura dos jesuitas expulsos da provincia do Paraguai: Memórias de

um labor intenso. Coletânea: Jesuítas e Ilustração: Rupturas e continuidades / coordenadores:

José Eduardo Franco. [Et al.]; prefácio de Pierre Antoine Fabre. - São Leopoldo, RS:

Ed. UNISINOS, 2019. 454 p.

125

PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva S.A.

1976.

PAUCKE, Florian. Hacia allá y para acá – 1ªed.- Santa Fe: Ministerio de Innovación y

Cultura de la Província de Santa Fe. 2010.

PEIRCE, Charle S. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1977.

PENHOS, Marta. Cuerpos de Fiesta: Entre el Desfile y La Borrachera em el testimonio del

jesuíta Florian Paucke (1749-1767). Revista do IV Encuentro Internacional sobre o Barroco,

2007 Artigo disponível em: http://dadun.unav.edu/bitstream/10171/18480/1/19_Penhos. pdf.

Acesso em abril 2017 e julho 2019.

PORTO ALEGRE, Maria S. Imagem e representação do índio no século XIX. In: CUNHA,

M. C. (Org.). História dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

p. 50-74.

RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a

Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahard Ed., 1996.

ROSSO, Cintia e CARGNEL, Josefina. “Historiadores e etnógrafos”: escrituras jesuíticas

em el siglo XVIII. Los casos de Lozanoy y Paucke. Anuário de La Escuela de História

Virtual-Año 3-nº3 2012, p.62-77.

SCALA, María J.F. La reducción jesuítica de San Javier de mocovíes. 1a ed. - Ciudad

Autónoma de Buenos Aires: Lidia Rosa Nacuzzi, 2019. Libro digital, PDF - (Itinerarios).

SEPP, Antonio. Relación de viaje a las missiones jesuíticas, edición crítica de las obras del

padre Antonio Sepp SJ misionero en la Argentina desde 1691 hasta 1733, a cargo de Werner

Hoffmann, Tomo 1, Eudeba, Buenos Aires, 1972, p. 117 a 158.

SILVA, Giovani J. A Reserva Indígena Kadiwéu (1899-1984): memória, identidade e

história. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2014.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo, SP: Martins

Fontes, 1996, 263p.

126

WOODFORD, Susan. A Arte de ver a Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1983.

WOORTMANN, Klaas. O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e escatologia.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.

ZAMUDIO, Manuel. Povos indígenas dentro do território nacional. http://www.elsolabc.com/nota/item,6040/seccion,4/subseccion,0/titulo,los-pueblos-indigenas-

dentro-del-territorio-nacional. Acesso em maio de 2019.

ZANETTII, Susana. Las Memorias de Florian Paucke: Una crónica singular de las misiones

jesuitas del Gran Chaco Argentino. América sin nombre, nº18(2013) 178-189. Argentina,

2013.

127

ANEXO – ÍNDICE DA OBRA HACIA ALLÁ Y PARA ACÁ, DE

FLORIAN PAUCKE

128

129

130

131

132

Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 10 de agosto de 2019.

__________________________________________

Scheilla Guimarães da Silva