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    TICA

    SUMRIO

    1. INTRODUO ................................................................................................................... 02

    2. CONCEITOS: TICA, MORAL, VALORES E VIRTUDES ..................................................... 06

    3. TICA APLICADA ............................................................................................................. 18

    4. CDIGO DE CONDUTA DA ALTA ADMINISTRAO FEDERAL ........................................ 29

    5. EXERCCIOS ..................................................................................................................... 34

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    A tica est em todos os discursos. A propsito de qualquer

    acontecimento, levantam-se as vozes dos moralistas a invocara necessidade de reforo tico. tica, infelizmente, moedaem curso at para os que no costumam se portar eticamen-te. Por isso, compreensvel que muitos j no acreditem notermo tica. Trivializou-se o chamado tica, para servir aqualquer objetivo. Alm disso, a utilizao excessiva de certasexpresses compromete o seu sentido, como se o empregofreqente implicasse em debilidade semntica. Isso pareceocorrer com os vocbulos JUSTIA,LIBERDADE, IGUAL-DADE, SOLIDARIEDADE, DIREITOS HUMANOS e tam-bm com o termo TICA.

    A invocao exagerada a tais palavras, nos contextos os maisdiversos, conseguiu banalizar seu contedo. Situam-se emtodos os discursos, ensaios e manifestaes. No h maisfronteiras ideolgicas entre elas: todos se valem do prestgiode seu contedo. Ante seu pronunciamento, os ouvidos seamparam em certa insensibilidade, pois acredita-se no maishaver necessidade dessa reiterao. Alm de cansativa, seriadesnecessria. Os conceitos j teriam sido adequadamenteassimilados.

    O ncleo comum a todas essas palavras sua evidente cargaemotiva. So expresses que se impregnam de sentimento.Distanciam-se do sentido racional. No guardam enunciadosingelo. Encerram a complexidade prpria s questes ditasfilosficas. Reforam a convico de que o objeto prprio dafilosofia o estudo sistemtico das noes confusas. Comefeito, quanto mais uma noo simboliza um valor, quantomais numerosos so os sentidos conceituais que tentam defi-ni-la, mais confusa ela parece.

    Entretanto, nunca foi to urgente, como hoje se evidencia,reabilitar a TICA. A crise da Humanidade uma crise deordem moral. Os descaminhos da criatura humana, refleti-dos na violncia, na excluso, no egosmo e na indiferena

    INTRODUOINTRODUO11pela sorte do semelhante, assentam-se na perda de valores

    morais. A insensibilidade no trato com a natureza denota acontaminao da conscincia humana pelo vrus da mais cruelinsensatez. paradoxal assistir proclamao enftica dosdireitos humanos, simultnea intensificao do desrespeitopor todos eles. De pouco vale reconhecer a dignidade da pes-soa, insculpida como princpio fundamental da Repblica, se aconduta pessoal no consegue pautar se por ela.

    Somente se vier a ser recomposto o referencial de valoresbsicos de orientao do comportamento, ser vivel a for-mulao de um futuro mais promissor para a humanidade,perplexa diante de um inesgotvel incremento das descober-tas cientficas, a dominar tecnologias mais avanadas masainda envolta no drama da incapacidade de superao dasangstias primrias.

    Prometia-se um terceiro milnio de paz, harmonia e cio sau-dvel. Em lugar disso, o inesperado surge para aturdir. Vio-lncia e medo se aliam para trazer desconforto alma e aslida sensao de falncia da moral. No foi apenas o 11 desetembro de 2001 a mostrar a vulnerabilidade de todos osesquemas de uma invivel segurana. So Paulo, a unidademais desenvolvida da Federao, teve o seu dia fatdico em15 de maio de 2006. Reforar o aparelho repressivo, construirmais presdios, reduzir a maioridade penal, agravar as penas,tudo isso representa paliativos para os efeitos. Muito maisdifcil combater as causas. Dentre estas, no menor ainsuficincia do papel familiar de transmisso de valores, deformadora da cidadania, de edificao de uma nova elite mo-ral. (A incompetncia da educao para incluir a vasta legiodaqueles chamados excludos mas que, na verdade, nuncachegaram a ser includos na sociedade cidad, outro fatorde imprescindvel enfrentamento.) Permeia todas as anlisesa carncia tica de uma sociedade cada vez mais egosta,materialista e consumista. Despert-la para uma responsa-bilidade individual, cidad e social o papel da TICA nesteterceiro milnio, que no parece corresponder s expectativasdos otimistas, mas reservar prenncios nada animadores paraa famlia humana.

    tica a cincia do comportamento moral dos homens em so-ciedade. uma cincia, pois tem objeto prprio, leis prpriase mtodo prprio, na singela identificao do carter cientficode um determinado ramo do conhecimento. O objeto da tica a moral. A moral um dos aspectos do comportamentohumano. A expresso moral deriva da palavra romana mores,com o sentido de costumes, conjunto de normas adquiridaspelo hbito reiterado de sua prtica.

    Com exatido maior, o objeto da tica a moralidade positiva,ou seja, o conjunto de regras de comportamento e formasde vida atravs das quais tende o homem a realizar o valor dobem. A distino conceituai no elimina o uso corrente dasduas expresses como intercambiveis. A origem etimolgicade tica no vocbulo grego ethos, significa morada, lugaronde se habita. Mas tambm quer dizer modo de ser ou

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    carter. Esse modo de ser a aquisio de caractersticasresultantes da nossa forma de vida. A reiterao de certoshbitos nos faz virtuosos ou viciados. Dessa forma, o ethos o carter impresso na alma por hbito. Como os hbitos sesucedem, tornam-se por sua vez fonte de novos hbitos. Ocarter seria essa segunda naturezaque os homens adquiremmediante a reiterao de conduta.

    Sob essa vertente, moral e tica significam algo muito se-melhante. Por isso a aparente sinonmia das expresses valor

    moral e valor tico, normas morais e normas ticas. To-davia, a conceituao de tica ora adotada autoriza distingui-la da moral, pese embora aparente identidade etimolgica designificado. Ethos, em grego, e ms, em latim, querem dizercostume. Nesse sentido, a tica seria uma teoria dos costu-mes. Ou melhor, a tica a cincia dos costumes. J a moralno cincia, seno objeto da cincia. Como cincia, a ticaprocura extrair dos fatos morais os princpios gerais a elesaplicveis. Enquanto conhecimento cientfico, a tica deveaspirar racionalidade e objetividade mais completas e, aomesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos sistemti-cos, metdicos e, no l imite do possvel, comprovveis.

    Poder-se-ia mesmo indagar: Por que, alis, tica e no moral?

    Impem-se aqui algumas definies, suficientemente abertase flexveis, para no congelar, desde o princpio, a anlise. Aetimologia no poderia nos guiar em nada nesta tarefa: tath (em grego, os costumes) e mores(em latim, hbitos)possuem, com efeito, acepes muito prximas uma da outra:se o termo tica de origem grega e o moral, de origemlatina, ambos remetem a contedos vizinhos, ideia de cos-tumes, de hbitos, de modos de agir determinados pelo uso.

    A distino mais compreensvel entre ambas seria a de quetica reveste contedo mais terico do que a moral. Pretende--se a tica mais direcionada a uma reflexo sobre os funda-mentos do que a moral, de sentido mais pragmtico. O quedesignaria a tica seria no apenas uma moral, conjunto deregras prprias de uma cultura, mas uma verdadeira meta-

    moral, uma doutrina situada alm da moral. Da a primaziada tica sobre a moral: a tica desconstrutora e fundadora,enunciadora de princpios ou de fundamentos ltimos.

    A tica uma disciplina normativa, no por criar normas, maspor descobri-las e elucid-las. Seu contedo mostra s pesso-as os valores e princpios que devem nortear sua existncia.

    A tica aprimora e desenvolve o sentido moral do compor-tamento e influencia a conduta humana. Alis, identificar astarefas da ticapode clarear o seu conceito. Para Adela Cor-tina, entre as tarefas da tica como filosofia moral so essen-ciais as que seguem: 1) elucidar em que consiste o moral, queno se identifica com os restantes saberes prticos (com o

    jurdico, o poltico ou o religioso), ainda esteja estreitamente

    conectado com eles; 2) tentar fundamentar o moral; ou seja,inquirir as razes para que haja moral ou denunciar que noas h. Distintos modelos filosficos, valendo-se de mtodosespecficos, oferecem respostas diversas, que vo desde afir-mar a impossibilidade ou inclusive a indesejabilidade de fun-damentar racionalmente o moral, at oferecer um fundamen-to; 3) tentar uma aplicao dos princpios ticos descobertosaos distintos mbitos da vida cotidiana.

    Se a tica a doutrina do valor do bem e da conduta humanaque tem por objetivo realizar esse valor, a nossa cincia no, seno uma das formas de atualizao ou de experincia devalores ou, por outras palavras, um dos aspectos da Axiologiaou Teoria dos Valores. Assim, o complexo de normas ticas se

    alicera em valores, normalmente designados valores do bom.H conexo indissolvel entre o dever e o valioso. Pois per-gunta o que devemos fazer? s se poder responder depoisde saber a resposta indagao o que valioso na vida?

    Toda norma pressupe uma valorao e, ao apreci-la, surgeo conceito do bom - correspondente ao valioso - e do mau- no sentido de desvalioso. E norma regra de conduta quepostula dever.Todo juzo normativo regra de conduta, masnem toda regra de conduta uma norma, pois algumas das

    regras de conduta tm carter obrigatrio, enquanto outrasso facultativas. As regras a serem observadas para acessara internet ou para viabilizar um programa de software, porexemplo, so de ordem prtica e exprimem uma necessidadecondicionada. Elas se incluem no conceito de regras tcnicas,ou seja, preceitos que assinalam meios para a obteno de fi-nalidades. As regras tcnicas contrapem-se as normas e pre-ceitos cuja observncia implica um dever para o destinatrio.

    A noo de norma pode precisar-se com clareza se comparadacom a de lei natural, lembra Garcia Mynez. As leis naturais,ou leis fsicas, so juzos enunciativos que assinalam relaesconstantes entre os fenmenos. Sob o enfoque da finalidade,as leis fsicas tm fim explicativo e as normas tm fim prti-

    co. As normas no pretendem explicar nada, mas provocarum comportamento. As leis fsicas, ao contrrio, referem-se ordem da realidade e tratam de torn-la compreensvel. O in-vestigador da natureza no faz juzos de valor. Simplesmentese pergunta a que leis obedecem os fenmenos. Ao formu-lador de normas do comportamento no importa o procederreal da pessoa, seno a explicitao dos princpios a que suaatividade deve estar sujeita.

    A norma exprime um dever e se dirige a seres capazes decumpri-la ou de viol-la. Se o indivduo no pudesse deixarde fazer o que ela prescreve, no seria norma genuna, maslei natural. De maneira anloga, careceria de sentido decla-rar que a distncia mais curta entre dois pontos deve ser a

    linha reta, porque isso no obrigatrio, seno necessrioe evidente. da essncia da norma a possibilidade de suaviolao.

    Outra diferena pode ser apontada entre a norma e a lei natu-ral ou fsica. A lei fsica suscetvel de ser provada plos fatose a norma vale independentemente de sua violao ou ob-servncia. A ordem normativa insuscetvel de comprovaoemprica. As normas no valem enquanto so eficazes, senona medida em que expressam um dever ser. Aquilo que deveser pode no haver sido, no ser atualmente nem chegar aser nunca, mas perdurar como algo obrigatrio.

    Torna-se mais fcil compreender a distino quando se acena

    com o ideal da paz perptua ou da absoluta harmonia entreos homens. quase certo no se convertam nunca em rea-lidade, mas a aspirao a atingi-las plenamente justific-vel, pois tendente a concretizar algo valioso. No h relaonecessria entre validez e eficcia da norma. A validez dospreceitos reitores da ao humana no est condicionada porsua eficcia, nem pode ser destruda pelo fato de que sejaminfringidos. A norma que violada segue sendo norma, e oimperativo que nos manda ser sinceros conserva sua obriga-toriedade apesar dos mendazes e dos hipcritas. Por isso sediz que as excees eficcia de uma norma no so ex-cees sua validez.J as leis naturais, s se validam se aexperincia as no desmente.

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    A possibilidade de inobservncia, infringncia ou indiferen-a humana pelas normas no deve desalentar aqueles queacreditam na sua imprescindibilidade para conferir sentido existncia. O homem um ser perfectvel. Esse pressupostoadquire relevncia extrema numa era em que as criaturas secomportam em desacordo com as normas. Pese embora amultiplicao de maus exemplos, a crena a de que todoser humano - por integrar a espcie - pode tornar-se cada diamelhor. E essa sua vocao espontnea. A criatura tendenaturalmente para o bem. O papel confiado aos cultores dacincia normativa reforar essa tendncia, fazendo reduzir onvel de inobservncia, infringncia ou indiferena perante aordem do dever ser. Ainda que o ndice de espontneo cum-primento dos ditames ticos no seja o ideal, h sempre pos-sibilidade de sua otimizao, mediante o compromisso ntimode observ-los na vida individual. E o grupo tem de atuar nosentido de estimular a boa prtica, no auxlio quele que seafastou do trajeto, para reconduzi-lo senda original.

    A potencialidade de converso de um ser humano - aparente-mente vulnervel -, para comportar-se eticamente em seuuniverso, uma hiptese significativa de trabalho. Ainda queaparentemente a prtica possa demonstrar o contrrio, a hu-manidade s avana se uma grande maioria se convencer de

    que o homem pode ser recuperado. A luta da parcela sensvelda humanidade ampliar esse espao de trabalho comuni-trio e por diminuto possa parecer tal espao, tantos e todesalentadores os maus exemplos, o bom combate continuavlido. Sob esse prisma, se justifica o estudo, a pregao e avivncia tica.

    MORAL ABSOLUTA OU RELATIVA?

    Moral expresso que todos conhecem. Adela Cortina subli-nha que o moral, mais que a moral, posto se tratar de umfenmeno e no de uma doutrina - acompanha a vida doshomens e captado pela reflexo filosfica em vrias di-menses. Na filosofia do ser, a dimenso humana pode ser

    definida como dimenso moral; na filosofia da conscincia,fala-se em conscincia morale aceita-se mesmo um tipo delinguagem que pode ser identificada como linguagem moral.Integram essa linguagem expresses de uso corrente, como

    justo, mentira, lealdade. intuitiva a qualquer pessoa con-siderada normal, a compreenso do que se pretende dizerquando se pronuncia a palavra moral.

    A intuio moral to presente na conscincia humana que sepode sustentar carecer de sentido a expresso amoralismo.Ou seja, pode haver homens imorais em relao a determi-nados cdigos vigentes, mas no existem homens amorais,no existem homens para os quais carea de sentido a lingua-gem moral . Todos tm uma determinada moral e a qualquer

    pessoa importante manter preservado o seu moral. Parasimplificar, moral a formao do carter individual. aquiloque leva as pessoas a enfrentar a vida com um estado denimo capaz de enfrentar os revezes da existncia.

    Mas torne-se moral como objeto da tica. A moral comomatria-prima desta cincia do comportamento das pessoasem sociedade.

    Os preceitos ticos so imperativos. Para serem racionalmen-te aceitos plos destinatrios, precisam estes acreditar deri-vem de justificativa consistente. A norma de conduta moralprovm de um valor objetivo ou decorre de uma fixao arbi-trria? Ela norma vlida para todos, em todos os tempos e

    lugares, ou sua validade historicamente condicionada?

    Existem ao menos duas posies antagnicas: uma absolutis-ta e apriorista e outra relativista e empirista. De acordo comesta, a norma tica tem vigncia puramente convencional e mutvel. De acordo com a primeira, a validez atemporal eabsoluta. Uma outra diferena entre ambas: a corrente abso-lutista proclama o conhecimento da norma tica a priori. A re-lativista acredita seja de ordem emprica. O empirismo advogaa existncia de vrias morais e, portanto, do subjetivismo. O

    absolutismo, em lugar disso, prope a moral universal objetiva.

    Para o absolutista, cada ser humano - ao menos o huma-no considerado normal pelo senso comum, ou seja, poupadode qualquer estado patolgico - provido de certa bsso-la natural que o predispe a discernir, naturalmente, entreo que certo ou errado. A figura do semforo moral eluci-dativa. Cada pessoa dotada de um mnimo de conscincia jse defrontou com esse fenmeno ntimo. Em oportunidadesmltiplas da existncia, a pessoa sabe que precisa se definire optar. Sente-se e identifica-se um sinal verde a indicar pas-sagem livre, um sinal amarelo a determinar precauo e umaluz vermelha com o significado de vedao. Cada pessoa sabeque tanto pode observar como deixar de atender aos sinais.

    Basta atentar para a sua conscincia estimativa, onde reside oseu sentido de valor. Por isso que, entendendo-a como sen-sao, Hemingway conceituou moral de maneira bem com-preensvel, como aquilo que nos faz sentir-nos bem depois eimoral aquilo que nos faz sentir-nos mal depois.

    No se poderia falar do bom e do mau, da virtude e do vcio,no houvesse um critrio de estimao e uma instncia - aconscincia humana - capaz de intuir o que vale. Sem essanoo, no h como prosseguir no estudo da tica.

    J os relativistas entendem no haver sentido falar-se emvalores margem da subjetividade humana. Cada qual sabe-ria estabelecer a sua hierarquia valorativa, de acordo com as

    circunstncias pessoais. O bom e o mau no signifi

    cam algoque valha por si, mas so palavras cujo contedo condicio-nado por referenciais de tempo e espao. O bem fruto decriao subjetiva e a norma moral mero convencionalismo.

    O resultado dessa contraposio de ideias que a tese ob-jetivista conduz, no terreno epistemolgico, conclusode que no h criao nem transmutao de valores, senodescobrimento ou ignorncia dos mesmos. Os valores no secriam nem se transformam; se descobrem ou se ignoram.Uma das misses capitais da tica consiste precisamenteem afinar no homem o rgo moral que torna possvel taldescobrimento. Enquanto isso, a tese subjetivista postulaautntica criao de valores por vontade dos homens. Estes

    formulam, medida do necessrio ou do oportuno, a escalaque lhes servir de parmetro na conduta inserta naquelemomento histrico e de acordo com o estamento a que per-tencerem, alm de outros fatores condicionantes da opoconcreta em cada oportunidade.

    O desafio perene e deve trazer ao menos certa angstiaao homem imerso numa sociedade em que o relativismoabrange dimenses inesperadas. Uma das caractersticas dacontemporaneidade conferir ao foro ntimouma supervalia.Como se todas as escolhas se justificassem diante da irrestritaautonomia da vontade. pessoa tica deveria corresponderuma conduta compatvel com um ncleo comum de valoresconsensualmente aceitos e com permanncia na histria da

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    humanidade, em lugar da lassido extrema dos achismos. Alegitimar-se toda e qualquer ao em nome da liberdade deescolha, corresponder a deslegitimao da normatividadetica e jurdica. Seria a porta de retorno ao caos e barbrie.

    A CLASSIFICAO DA TICA

    A Cincia dos deveres admite tantas classificaes quantas asescolas, ideologias ou correntes de pensamento existentes. A

    classificao presente leva em considerao as quatro formasfundamentais de manifestao do pensamento tico ociden-tal, adotada nos estudos de Eduardo Garcia Mynez elas rece-bem o nomWe de: tica emprica, tica de bens, tica formale tica valorativa.

    O agrupamento das doutrinas morais sob essas quatro deno-minaes tende a considerar sob uma viso particular do au-tor o desenvolvimento do pensamento moral. uma escolha,dentre muitas possveis. No h inteno de se excluir qual-quer outra classificao adotada por outros pensadores. Ao

    se estudar tica, o mais importante fazer com que o serhumano se conscientize da necessidade de desenvolver umaconscincia moral cada vez mais convicta e exigente do quesemear erudio.

    Classificar compartimentar o conhecimento para que eleseja facilmente encontrado nos escaninhos da memria,quando se mostrar necessria a sua recuperao. Por isso aarbitrariedade das classificaes. No se deve confiar, tam-bm, na ortodoxia dos critrios distintivos entre cada classe.

    Os diferentes tipos se interpenetram e podem se apresentarcomo formas eclticas. O sentido da separao tentar fa-cilitar o estudo da tica, mediante contemplao do aspectopreponderante a ela conferido por certas doutrinas. Alis, aadvertncia serve a qualquer classificao. Ao se classificar,reitere-se, a pretenso do classificador delimitar as reasdo conhecimento e sistematiz-la, de maneira a tornar maisfacilitada a sua localizao. As subdivises atendem ainda auma finalidade pedaggica: o treino da capacidade de memo-rizao e da estratgia de ordenamento das informaes, comvistas sua utilidade futura e permanente.

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    DEFINIO

    A tica a parte da filosofia que estuda a moralidade dosatos humanos, enquanto livres e ordenados a seu fim ltimo.De modo natural, inteligncia adverte a bondade ou malciados atos livres, haja vista o remorso ou satisfao que seexperimenta por aes livremente realizadas. Cabe sempre advida, no entanto, sobre o que o bem e o mal, ou por quetal ao boa ou m. A resposta a tais questes conduz a umestudo cientfico dos atos humanos enquanto bons ou maus.

    tica a parte da filosofia que estuda a moralidade doagir humano; quer dizer, considera os atos humanos en-quanto so bons ou maus.

    (RODRIGUEZ, 1972)

    Cabe uma diferena entre os atos humanos, objeto da ti-ca, que so as aes livres em que o homem decide fazerou omitir, e os atos que so aes no livres, seja por faltade conhecimento ou voluntariedade (como so os atos deum deficiente mental, por exemplo), seja porque escapem aodomnio direto da vontade (crescimento, digesto, circulaodo sangue).

    Voltada para a retido moral dos atos humanos, a tica umacincia prtica, de carter filosfico. Sob esse prisma sabe-seque o conhecer no tem sentido em si, mas sim por se dirigir ao, buscando o bem do homem. Assim, a atividade hu-mana pode ser encarada como um fazer uma obra (filosofiada arte), ou agir (moral ou tica), no caso em que as aesrealizada pelo homem orientam-no para atingir seu bem ab-soluto e supremo.

    TICA COMO CINCIAA filosofia prtica visa definir o bem do homem. Abarca, por-tanto, a obra a produzir e a ao a realizar, constituindo estao objeto da moral. Observe-se que a tica uma cincia prti-ca, embora no essencialmente prtica. Ela especulativa, noque diz respeito a seu mtodo e objeto, porm, no abrangea o ato concreto de produo de uma obra. No entanto, atica passa categoria de arte, uma vez que seu fim residena definio das regras gerais da ao, mas no em sua apli-cao, a qual de domnio das artes essencialmente prticas.

    Assim, como cincia prtica, a tica no se detm no conhe-cimento da verdade em si, mas em sua aplicao na condutalivre do homem, fornecendo-lhe as normas necessrias para oreto agir. , por esse aspecto, uma cincia normativa.

    Aristteles j dizia que no se estuda tica para saber o que a virtude, mas para aprender a tornar-se virtuoso e bom; deoutra maneira, seria um estudo completamente intil.

    Sabendo que o homem social por natureza e dirige-se paraseu fim ltimo em unio com os outros homens, entende-se que a tica, ou a Filosofia Moral, seja estudada em doisaspectos: Moral Geral, que analisa os princpios bsicos da

    CONCEITOS: TICA, MORAL,CONCEITOS: TICA, MORAL,VALORES E VIRTUDESVALORES E VIRTUDES2moralidade dos atos humanos (o fim ltimo, a lei moral, a

    conscincia, as virtudes), e a Moral Especial ou Social, queaplica tais princpios vida do homem na sociedade (famlia,bem comum da sociedade, autoridade e governo, leis civis, aordem moral da economia e das organizaes).

    FONTES E MTODOS DA TICAPode-se dizer que a principal fonte da tica a realidade hu-mana, na qual a razo encontra e conhece os princpios mo-rais, universais e certos. Deles derivam os princpios da tica,cumprindo a funo de explicar, justificar e manifestar a ex-perincia moral do homem. Como fontes secundrias, estoa Psicologia, a Sociologia, a Histria, uma vez que a prpriaexperincia moral, interna e individual, ou externa e social,desenvolve-se na sociedade e na histria. Como cincia te-

    rico-prtica, a tica segue o mtodo emprico especulativo,tomando por ponto de partida a experincia moral. Baseia-seno que efetivamente ocorre na conscincia e na sociedade,em termos dos atos humanos, valores e ideais do homem, seusentido do dever, e procura chegar ao sentido e explicaoltima de tal experincia ou ato, recorrendo aos princpiosuniversais e certos que a razo humana descobre.

    A tica contempla a natureza, as condies universais da ati-vidade moral, seu contedo (tica Geral), para ento aplicarestes princpios aos diversos campos em que a atividade dohomem se realiza e concretiza (tica Especial).

    NATUREZA DO HOMEM

    Pode-se chamar lei a tudo que regule um ato ou operao,seja qual for sua espcie. Assim, possvel falar-se de leisfsicas, tcnicas ou morais. Enquanto a lei fsica determinao comportamento de um agente puramente natural (lei dagravidade, por exemplo), a lei tcnica ordena um ato humanopara um fim restrito, no o fim ltimo (constituem exemplostodas as regras das artes). A lei moral, no entanto, regula osatos humanos enquanto humanos, ou seja, de acordo comseu valor absoluto, realizados por um fim ltimo, e no se-gundo um valor relativo.

    A lei se encontra no ser que a estabelece e que, medianteela, ordena ou orienta os atos humanos. Como a ordem danatureza humana foi disposta por seu Criador, pode-se dizerque, de um modo participado, a lei encontra-se naquele que regido por ela. Constituindo uma inclinao impressa emsua natureza, todo homem conhece em si a existncia de talordem, denominada por isso lei natural.

    Puelles traa um diferencial entre a lei natural e a lei civil.Em primeiro lugar, pode-se provar a existncia da lei naturalpela experincia, pois nos dado conhecer nossas inclinaesnaturais, no plano da atividade propriamente humana. Almdisso, porm, por nossa natureza racional, devemos conhecernosso prprio ser, suas tendncias e inclinaes impressas narazo pelo Criador de toda a natureza e ordenadas para seufim ltimo. A ordem dos preceitos dessa lei pode ser conhe-

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    cida pelo homem, seguindo a ordem de tais inclinaes. A leicivil origina-se na necessidade de organizar a sociedade emque o homem vive, pois a isso ele est destinado em funoda prpria lei natural.

    A lei civil , portanto, uma determinao, uma concretizaodessa exigncia de organizar a sociedade, porm elaboradalivremente pelo homem. Atribuir lei civil apenas um carterpoltico, desvinculado da lei natural, contrariar a tica. Essaexigncia natural de uma ordem que favorea a convivncia

    social implica a subordinao da lei civil lei natural. Uma leicivil que contrarie a ordem natural moralmente ilcita, de-sobrigando, por isso, qualquer cidado de seu cumprimento.

    Deduzir a lei natural com base na natureza humana procederem conformidade com os mesmos princpios de investigaoda realidade e da experincia, que outras cincias empregampara estabelecer suas leis. Assim, a lei da natureza humana o modo de agir da natureza do homem, de acordo com o quesua plena realizao exige, ou seja, a perfeio essencial desua vida e sua felicidade.

    Cardona afirma que no fcil definir o bem, pois sua noo das mais simples e primrias. Para qualificar alguma coisaboa, no entanto, possvel e conveniente que se analisem asrazes que levam a isso; que princpios a toma apetecvel atodos; qual a sua perfeio.

    fato da experincia diria, prpria e alheia, que o homemage no sentido de alcanar determinado fim. H diversos tiposde fins e uns esto subordinados a outros de acordo com umahierarquia de valores. bastante completa a finalidade doagir humano, pois o homem almeja fins mltiplos, guardandoentre si uma ordem. Quais so, ento, os bens que as pessoasalmejam? O homem, consciente do que ele por natureza,busca a felicidade perfeita. A perfeio no somente o bem,mas o bem do prprio homem, isto , o bem conhecido, ama-do e degustado com plena conscincia da sua conveninciapara com o fim de sua natureza. Essa ideia completa-se com

    a conhecida formulao de Leibniz: a felicidade para as pes-soas o que a perfeio para os seres.

    Em outras palavras, considerando-se as potncias da inteli-gncia e vontade, temos que a primeira tende para a verda-de, e a ltima para o bem. Quanto mais o homem conseguiratingir essas realidades, a verdade e o bem, tanto mais pr-ximo estar de sua realizao plena e, portanto, mais pertode alcanar a felicidade. Em termos simples, a inteligncia,iluminada pela verdade, considera todas as circunstncias queenvolvem a ao. A conscincia julga a validade moral dessaao. A liberdade confere ao homem a capacidade de escolha.

    A vontade livre adere ao, praticando-a se for boa (tica)ou desprezando-a, se for m (antitica). Se no houvesse li-

    berdade, o homem no poderia fazer esta opo pelo bem oupelo mal. Por essa razo, a ao que no se revista de liber-dade est destituda de um dos componentes essenciais dasaes ticas. O homem ser tanto mais livre quanto mais suaescolha aproximar-se de seus fins existenciais.

    Verifica-se, com isso, que o bem est associado naturezadas coisas ou dos seres. De fato, a felicidade procurada portodos os homens, uma tendncia instintiva, representa seufim ltimo subjetivo. Outros bens concretos so apenas fontesde felicidade para o homem.

    Ao se questionar o motivo de determinada ao ser moral-mente m, o homem necessita aprofundar seus conhecimen-

    tos na esfera da lei natural moral. Aristteles resumiu todosos bens essenciais da natureza humana em um: a felicidade.Como a tendncia felicidade pode ser satisfeita com diferen-tes formas de amor que tm por objeto bens especficos emcada caso (pessoa, dinheiro, poder, beleza, fama, diverses), importante que o homem tenha o exato conhecimento daescolha dos bens, a reta razo, para acionar a fora de suavontade no sentido do verdadeiro bem.

    Se a vontade a sede do instinto fundamental do homem, a

    boa vontade a que se dirige habitualmente para o bem, avirtude, a ordem do amor, a ordem objetiva dos fins. A vonta-de busca os fins que, subjetivamente, definem a inteno daconduta do homem. A boa vontade, ou a reta inteno moral,procura que os fins subjetivos e objetivos coincidam, para quehaja moralidade na conduta humana. Se os fins forem objeti-vamente maus, os atos humanos sero maus. Dessa relaorecproca entre fins objetivos e subjetivos, conclui-se que osfins no podem justificar os meios.

    Por a se v que, se a ao humana no estiver informadapela reta vontade, que lhe confere orientao para o sumobem, a ao poder ser m. Com efeito, pode-se resumir emtrs os fatores que dificultam a adeso da vontade ao bem:

    a ignorncia, a debilidade e a malcia. Se os aspectos naturale racional da lei moral no forem devidamente conjugados, possvel que ela no chegue a ser entendida. Por isso, oconhecimento moral sofre forte influncia da ordem ou desor-dem da liberdade do homem, no que tange a seus fins natu-rais. Uma vida moral desordenada indica que a vontade de-cidiu livremente afastar-se do bem, levando a um necessrioobscurecimento das verdades que se referem ao fim ltimodas pessoas, s da lei moral. Persistir em uma conduta m di-ficulta o conhecimento moral concreto, chegando a um embo-tamento da conscincia. Assim, em um af de auto-justificar-se, em face de suas ms aes, o homem tende a corrompera prpria cincia moral, considerando-se autor de uma novanorma, na realidade subjetiva, que abrange toda sua vida.

    Nasce da a obrigao de todo ser humano de esclarecer todae qualquer dvida a respeito de aplicaes da lei natural emsituaes concretas, muitas vezes complexas, evitando umaignorncia culpvel que o levaria a atuar sem liberdade.

    A lei natural orienta a conduta humana para a ordem do amor,fazendo com que os fins subjetivos correspondam aos finsexistenciais objetivos, de forma que a natureza humana atinjasua plenitude. A atuao humana, apoiada na razo e comvontade livre, dirige-se para um fim. O especfico da pessoahumana agir consciente e livremente por um fim.

    Dotado, por natureza, de inteligncia e vontade, o homembusca, de modo consciente e livre, sua perfeio e os bensnecessrios a sua prpria atuao. Sua conduta, portanto,

    no fruto de simples instinto ou coao de outrem, mas seorienta para o bem. A vontade humana procura o que a razolhe indica como sendo bom, ainda que isso constitua apenasum meio para atingir um fim maior. Dessa forma, o lucro e aformao profissional so meios para alcanar o fim de deter-minado empreendimento.

    CRITRIOS DE ETICIDADE

    Determina-se a moralidade ou eticidade dos atos humanoscom base na considerao de seu objeto, as circunstncias ea finalidade. Naturalmente, fundamental conhecer o objeto,a realidade perseguida pelo ato. H, porm, diversos fatores

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    tica

    ou modificaes que afetam o ato humano, as circunstncias:quem age, onde, como, por qu, quando, com que meios.Dependendo das circunstncias, pode-se agravar ou atenuara moralidade de um ato. A finalidade ou fim a inteno quemove o agente a realizar o ato, podendo ou no coincidir como objeto da ao.

    Para que um ato seja bom, conclui-se que devem ser bons oobjeto, as circunstncias e o fim. Se qualquer um desses trselementos for caracterizado como mau, o ato tambm ser

    mau. O roubo de dinheiro do caixa da empresa, feito com aboa inteno de dar o dinheiro para os pobres, configura umato no tico. Da mesma forma, se algum ajuda seu colegade trabalho sem a inteno de prestar ajuda, no est secomportando bem, ainda que a ao seja boa. prefervel,no entanto, que se pratique uma ao boa, ainda que cominteno pouco reta, do que realizar uma ao m com boainteno. Isso significa, de um lado, que a inteno funda-mental para caracterizar a ao tica, e de outro, que o fimno justifica os meios.

    O critrio de moralidade permite definir uma hierarquia de fins,apoiada na ordem essencial da prpria natureza humana, emque atribudo um lugar a cada fim existencial concreto. Todos

    osfi

    ns orientam-se para ofi

    m ltimo do homem, que a possedo bem supremo, sua plena realizao como ser humano.

    Para se compreender as inter-relaes que se estabelecementre os indivduos e os grupos sociais, mister pensar nasociedade como tal, e na ordem social em si. Toda sociedadedepende dos homens que a integram e dos fatores que lhedo vida e que causam sua atividade. A teoria da sociedadee a tica Social permitem compreender a natureza, o fim e aordem da vida social. Esta a razo do estudo da filosofia eda conduta humana, pela tica, j que as empresas, as orga-nizaes ou instituies so agentes da sociedade que depen-dem de homens de carter bem formado, livres, inteligentes,competentes e eficazes.

    A TICA E A VIDA

    O LUGAR DA TICA NA VIDA

    O pensamento flosfico-jurdico liberal reserva ao direito umafuno reduzida. A satisfao dos interesses humanos devese basear no uso espontneo da liberdade e autonomia indi-vidual. Liberdade e vontade valem mais do que lei e limite. Odireito ser chamado a intervir quando a esfera da autonomiaindividual vier a falhar. Por isso que a sociedade uma dasfontes produtoras do direito. O cumprimento espontneo dasobrigaes deveria ser a regra. Assim no fosse e o mundoprecisaria ser convertido em um enorme Tribunal.

    O que se afirma do direito poder-se-ia dizer tambm, guarda-das as devidas propores, do prprio Estado. O melhor direitoseria o direito mnimo, embora eficiente e eficaz, e o Estadoideal seria aquele propiciador do mximo de liberdade ao ho-mem. Mas esse ideal inalcanvel, se o homem se utilizar malde sua liberdade. A nica forma possvel de se limitar o limite tornar o homem mais consciente de suas responsabilidades. Ehomem consciente de suas responsabilidades o homem tico.

    A tica pode tornar dispensvel a juridicizao da vida. Com-portar-se eticamente pode ser a receita para evitar que odireito venha a disciplinar todas as condutas e a sancionar

    todas as infraes. O Direito no panaceia para todos osproblemas. Sua produo moderna, sob a forma de lei, extir-pou-lhe a caracterstica de relao necessria que deriva danatureza das coisas para ser resposta pontual, casustica econtingente a uma questo localizada. O produto do processolegislativo longe est, hoje, de corresponder expectativa dacomunidade. Mesmo porque um Estado se compe de in-meras comunidades, plurais e antagnicas, cada uma delaspodendo nutrir conceito prprio de ordenamento, heterog-neo em relao quele nutrido pelas demais.

    Poucos conseguiriam, modernamente, sustentar que a lei aexpresso da vontade geral. A lei feita de encomenda, aten-dendo a um determinado grupo ou a um interesse localizado,muitas vezes se afasta do bem comum. Este no coincide, ne-cessariamente, com todas as aspiraes em jogo e represen-tadas no Parlamento atual. Por isso o protagonismo aparen-temente excessivo dos operadores do direito, notadamenteo juiz. Este se v obrigado a ser co-criador da lei, reduzindosuas incertezas e colmatando as deficincias, pois o emba-te dos interesses s consegue produzir uma obra inacabada,provida mesmo de certa ambiguidade. Assim no fora e nolograria se converter em lei.

    Relevante enfatizar a distino entre direito e tica. O direito monoplio estatal. Exterioriza-se formalmente. Nem semprereveste legitimidade, embora sempre legal. A tica produzi-da pela reta razo. Impregna a conscincia. sempre legti-ma, no padecendo de conflitos de ilegitimidade.

    A tica poder conduzir o ser humano vida solidria que seespera venha a irmanar os ocupantes do mesmo planeta, acuja sorte esto indissoluvelmente encadeados. E talvez ohomem do amanh se sentir vinculado, espiritualmente vin-culado, bem mais que autoridade de um Estado soberanoque faz cair do alto seus comandos e suas sanes, estru-tura igualitria e anti-hierrquica de uma comunidade solid-ria, organizada racionalmente e eticamente disciplinada: uma

    comunidade na qual ele ter o conforto de sentir-se valor ab-soluto, membro necessrio e insubstituvel, pessoa entre pes-soas, igual entre iguais. Uma comunidade assim poderia vir aser regulada por leis que, antes de refletirem querer externoe soberano, espelhassem o interesse humano comum coma racionalidade, alimentada por verdadeiro esprito fraterno.

    Somente o prprio homem - e ningum por ele - poder con-vencer-se disso, pois ser essencialmente livre. A liberdade o grande tema da tica moderna. Contrapondo-se ao homemdo medievo, o homem moderno se considera esprito livre.Isso significa que nenhum valor da vida ter, efetivamente,valor se no vier a ser espiritualmente aceito pelo homem.

    O caminho para a verdadeira liberdade, ou atravs do quala liberdade se liberta e transcende o mundo historicamentedado no a via revolucionria, mas a via asctica, enten-dendo-se por ascese o exerccio e a ao exemplar. Aoexemplar, ao que suscetvel de constituir modelo para osdemais, aquela ditada pela reta conscincia.

    Conscincia expresso de utilizao constante. A conscin-cia psicolgica espontnea, enquanto intuio que o espritotem de seus estados e de seus atos. conscincia psicolgicareflexiva, quando, ciente da oposio ntida entre o que co-nhece e o que conhecido, faz uma anlise do objeto do co-nhecimento. E conscincia moral seria a propriedade do es-prito humano de dar juzos normativos, espontneos e ime-

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    diatos sobre o valor moral de atos individuais determinados.

    Toda pessoa normal possui uma conscincia moral. Todos sotitulares dessa propriedade do esprito de distinguir entre obem e o mal. Somente os anormais no sentem remorso, osinal indicativo de que se agiu em desconformidade com obem. Possuindo conscincia moral, a pessoa h de pautar-se por ela. Para isso, estimulando o desenvolvimento de suacoragem moral, recusando-se a ceder ao medo e a qualquercoisa outra que no a verdade. Spinoza quem chama de fir-

    meza de alma, esse desejo pelo qual cada um se esfora porconservar seu ser sob o exclusivo ditame da razo. No hhomem que no tenha a liberdade de obedecer sua razo.

    A tica, por ser fruto da liberdade e da conscincia, umaalternativa eticamente superior ao direito, que fruto de umavontade exterior e que, muita vez, pode se incompatibilizarcom certas conscincias.

    Pode-se sustentar, como argumento de persuaso, ser vivela vida sem direito. Mas no haver vida humana sem tica.Sem sinalizao interior do campo do proibido e do permitido,pouco significado moral tero as regras positivas. Podero sercumpridas mediante imposio e fora, mas ser invivel aaferio de sua conformidade com a conscincia e elas norevestiro legitimidade.

    A TICA E O BRASILA tica universal e pertine ao gnero humano. No faz senti-do, por isso, falar-se em tica brasileira. Todavia, algumascaractersticas nacionais poderiam sugerir peculiaridades sus-cetveis de reflexo na conduta do brasileiro.

    No se est a cogitar do carter nacional, resultante da mes-cla das trs etnias bsicas, temperada pelos trpicos e pelainfluncia da imigrao. Nem se fala da tica do jeitinho, oudo levar vantagem em tudo. Alm do subjetivismo da opo,com base nitidamente emprica, ela poderia sugerir imagem

    no muito favorvel formulao moral nativa. H de se con-templar algo de mais objetivo e palpvel, assim como a mis-ria, a excluso social e a inqua repartio de rendas, dadosincontornveis da realidade brasileira.

    Para algum privilegiado com uma ocupao remunerada,com educao universitria, teto e automvel, participandodo banquete dos mais reconhecidos bens da vida, a respon-sabilidade tica para com a misria deve constituir motivo dedesconforto. O Estado brasileiro conseguiu, em poucas d-cadas, ampliar a legio dos miserveis, hoje contados aosmilhes. Em relao a esses irmos sem teto, emprego, pro-priedade ou perspectiva de vida, os favorecidos pelo sistemacontraram dvida moral. Dvida a ser paga de muitas formas.

    No empenho concreto para o encaminhamento dos proble-mas da excluso. Na participao comunitria. Na cobranade atuao mais efetiva de parte do poder pblico. Na forma-o de uma conscincia coletiva direcionada a minorar a in-

    justia. E at mesmo atravs da concesso de auxlio materiale donativos.

    Quem que possui alguma coisa, num pas de desvalidos, podese considerar rico. Pois rico aquele que em seus bens temmais do que necessita para o sustento, posio e decoro pr-prios e de sua famlia. E o rico tem deveres ticos muitoevidentes para com o pobre. Um deles o dever de repartirseus dons.

    Esse dever de repartir no quer dizer abrir mo daquilo quelhe necessrio, para se converter em um pobre a mais. Adoao para o pobre no consiste apenas na entrega de bensmateriais, mas pode se manifestar sob a forma de arrumarum emprego para o necessitado, um abrigo para o desvalido,uma palavra de apoio para quem dela necessita. Tudo aquiloque contribua para o bem-estar do necessitado.

    Santo Toms j assinalava a existncia de trs virtudes emordem a fazer bem ao necessitado: A esmola, a beneficncia

    e a magnificncia. As duas primeiras se complementam, mastambm a terceira, que cai admiravelmente aos capitalistas,tem sua aplicao para os ricos que gozam de bens suprfluose pode com eles exercitar-se, dando, com a inverso de suasrendas, trabalho aos necessitados e, sobretudo, procurando,ao fazer suas inverses, no tanto regul-las pelo princpioda rentabilidade, quanto pelo princpio de fazer o bem. Assim como a virtude da magnificncia tem verdadeiro valor. lio antiga a de que ao no fazer dos nossos bens o uso quedevemos, pecamos contra a sociedade. Todos devemos so-ciedade. Graas a ela somos, em grande parte, o que somos.E temos a obrigao de convert-la em algo de melhor, maisdigno e mais humano.

    Mostra-se imprescindvel reverter a tendncia brasileira deo privilegiado se no comover com a situao do miservel,nem de, espontaneamente, fazer retornar sociedade aquiloque lhe foi oferecido. Uma tendncia altrusta pode ser encon-trada em alguns outros pases. Aqui, o apelo das universida-des quando conclamam seus ex-alunos a comparecerem, pro-curando minorar suas dificuldades financeiras, quase sempreressoa no vcuo da insensibilidade.

    A comunidade jurdica tem outro dever moral. O de aprimoraro sistema, para que a inqua repartio de rendas no se per-petue, aprofundando o fosso que separa os possuidores dosdespossudos. legtima, portanto, a interveno do Estado,mediante correo do ordenamento, para que o acesso dosexcludos partilha dos bens da vida seja facilitado.

    s do homem do direito que poder provir uma contribuioefetiva nesse sentido. No o homem apenas tecnicamentepreparado, mas imbudo de verdadeira responsabilidade mo-ral. O senso de responsabilidade base indispensvel de umaverdadeira vida moral. s mediante essa atitude fundamen-tal de maturidade que tudo ganha a sua plena seriedade, asua profundidade verdadeira.O ser humano responsvel serincapaz de se no comover com a situao de milhes de se-melhantes desprovidos dos bens da vida mais bsicos, sem osquais no existe existncia digna. Outro nome dessa comoo sensibilidade moral, que Von Hildebrand chama estado deviglia moral e considera pressuposto indispensvel da realcapacidade de apreender e possuir valores. O estado de viglia

    moral impedir que as conscincias amorteam e deixem deindignar-se com o embrutecimento do mundo.

    Sobretudo, uma questo de justia. E, recorrendo ao magis-trio de Kant, (...) se a justia desaparece, coisa sem valoro fato de os homens viverem na Terra. Assim no fora e seriauma questo de amor. A melhor e mais curta definio davirtude esta: a ordem do amor.

    O CAMINHAR TICO

    Existe uma forma de se aprimorar eticamente? Qual a trilha aseguir se eu quiser crescer eticamente?

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    Novamente se reafirme: no h receitas infalveis, nem rem-dios miraculosos. Se algum descobrisse uma vacina paraimunizar a conduta de qualquer falha tica, teria aberto umasenda para a transformao da humanidade. Humanidadeque atingiu tanto progresso, mas que ainda padece de enfer-midades notrias no seu processo civilizatrio. Pois progressono se confunde com civilizao.

    Cada qual pode adotar a sua prpria vereda. O essencial que todo ser humano tenha a sua diretriz tica de perfectibi-

    lidade. Ningum nega, em s conscincia, a vontade de vivereticamente. At aqueles que no se detm sobre a questoe j se acreditam irrepreensveis, pois crem numa naturalpureza de esprito.

    Se para algo puder valer, ouso fornecer algumas linhas paraa busca desse crescimento. A primeira delas, o exame deconscincia cuja periodicidade ela mesma ditar. necessrioinquirir a esse juiz interior se, em cada ato da existncia, nose feriu eticamente o semelhante.

    Para que esse debate contnuo com a prpria retido tenhaproveito, h de se percorrer, com certa assiduidade, o de-psito dos valores. Os valores so bens da vida aos quaisemprestamos afeio. Fala-se em valor positivo, no em valornegativo. Esses bens da vida no so somente ideias. Ou, nalinguagem de Ortega y Gasset, se os valores so elementos

    justificadores das normas sociais que regulam a vida do gru-po, eles so crenas, no apenas ideias.

    Todos se conduzem de acordo com sua escala de valores.Para identific-la, basta algum verificar onde est sendo apli-cado o seu tempo, onde est sendo gasto o seu dinheiro, oque lhe d alegria. Quase sempre poder identificar os valoresde sua vida nesse exerccio.

    Como existe uma crise de valores na sociedade, os valoresindividuais tambm podem estar em crise. Ela se caracterizapela falta de homogeneidade moral em relao a certos te-

    mas. Basta mencionar o aborto, a eutansia, o casamento, aunio civil homossexual, a virgindade, o adultrio, o antimili-tarismo, para se concluir que nossa era longe est de consen-sualizar tais questes.

    Ao se enfrentar a chamada crise dos valores, h de se indagarse os valores deixaram de existir ou se o que ocorre o fatosocial constatvel consistente na perda de f ou de entusias-mo ante eles por parte de grande nmero de pessoas. Estaparece a vertente correta. As pessoas aparentemente no sesentem impelidas a lutar por seus valores.

    O sacrifcio na intensidade dos valores decorre, em grandeparte, da ampliao excessiva no desenvolvimento da perso-nalidade individual. A sociedade cobra sucesso. E sucesso no um valor cristo. Pois a concepo de xito que impera emnossos dias a do xito puramente externo, ornamental, dapessoa individual. um ideal narcisista, que se v apoiadopela presena contnua das individualidades relevantes nosmeios de comunicao. Obtm-se destaque na mdia no emvirtude de altrusmo, seno por se alcanar dinheiro e poder.Poder poltico, econmico ou poder derivado de se titularizarum ideal de beleza ou de sucesso na sociedade de consumo.Como diz bem Gregorio Robles, substituiu-se o xito do idealpelo ideal do xito. difcil reverter esse quadro? Sim. Masno impossvel.

    Para o mesmo autor, a causa ideolgica da crise dos valores

    a exacerbao do relativismo moral e da concepo utilitriada felicidade. A causa psicolgica a perda do sentido dodever e o consequente fortalecimento do sentido dos direitos.O relativismo moral prega a impossibilidade de se estabelecercom segurana e objetividade os contedos de uma moral aser aceita por todos. Assim, a nica instncia julgadora dosprprios atos o indivduo mesmo. No h instncia superior minha conscincia, sou eu quem decide o que bom e oque mau, o que est bem ou o que est mal. O bom no bom porque seja bom em si, seno porque eu decido que bom em virtude de minhas prprias razes, que so aque-las que a mim me convencem. J a concepo utilitria dafelicidade, embora com alguns pontos positivos, reconduz aoegosmo perverso orientador da sociedade contempornea.Pois a concepo atual de felicidade a identifica com o xitomaterial, com a admirao social obtida por quem possui bensmateriais e poder. Os outros s entram em cogitao quandopossam auxiliar a consecuo dos objetivos individuais.

    Psicologicamente, o indivduo se arma, acreditando-se desti-nado integral satisfao de suas necessidades e aspiraese, para isso, deve cuidar de satisfazer os prprios direitos. Odiscurso em torno categoria dos direitos fundamentais nodeixa de ser hipcrita, quando so desprezados os deveresque, cumpridos por todos, assegurariam o mnimo de desfrutedos direitos por parte dos despossudos.

    A recuperao dos valores partir de uma reformulao devida. Redescobrir os prprios valores. Verificar aqueles queforam abandonados por inexata compreenso da realidadeou por egosmo. Procurar pautar-se plos valores reais. Aban-donar o egosmo cruel e exercer a solidariedade. Pensar maisnos outros. Descobrir que a felicidade interior pode ser conse-guida quando se busca a felicidade do outro.

    No faz mal transigir em alguma coisa com o utilitarismo deBentham, para quem o ideal social era a obteno da maiorfelicidade possvel, para o maior nmero de pessoas poss-

    vel - formulao boa em se com a concepo economicistada vida. Pode auxiliar o crescimento tico anotar diria ousemanalmente as falhas e as vitrias, por pequenas possamelas parecer.

    Regra singela de se atender a de intransigncia com asfaltas ticas: prprias, em primeiro lugar; alheias, ao depoisdisso. A leitura dos jornais terreno frtil para se verificar aquantidade de deslizes ticos neste final de milnio. A faltade tica na poltica, nas comunicaes, na publicidade, nodesempenho das profisses liberais, em quase todas as ativi-dades humanas.

    Exerccio vlido formar hemeroteca de exemplos, tambmabrindo espao para os eventualmente positivos. Alm depropiciar a discusso, cumpre adotar atitude prtica. Sempreque possvel, uma admoestao tica h de ser endereadaao agente, para que possa reformular sua conduta. Quandoele for algum a cuja eleio se contribuiu, essa postura re-presentar real contributo a seu crescimento tico. Muita vez,a explicao fornecida para justificar-se poder satisfazer ocrtico, fazendo-o reformular seu ponto de vista.

    Por ltimo, o estudo da tica necessrio. No se estima aqui-lo a que se no conhece. necessrio mergulhar nos estudosdesenvolvidos pela humanidade em torno ao tema permanen-te. As primcias do gnero humano se devotaram ao aprendiza-do tico e puderam, a final, produzir obras teis ao seu ensino.

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    tica

    Todos esses procedimentos podem colaborar para o retorno tica. Ao menos para obter um consenso mnimo, isto ,um consenso sobre um ncleo de critrios morais que repre-sentem os valores bsicos para uma convivncia realmentehumana. Hoje a tica se transformou em uma necessidade ra-dical, pois sem ela o gnero humano sucumbir destruio. preciso um novo pacto: o pacto que nos impulsione con-templao da humanidade como um todo e nos permita sal-varmo-nos juntos. No um pacto a favor do Estado, como osmodernos, seno um pacto a favor da humanidade. hora detrocar o princpio do prazer pelo princpio da responsabilidade.Todos somos responsveis plos descaminhos da sociedade,fico da qual somos elemento concreto, como indivduos.

    Em sntese, esta humilde proposta recomenda, como se fos-sem singelos mandamentos ticos: 1. Exame de conscincia;2. Reviso da escala de valores; 3. Pautar-se pelos valoresreais; 4. Aferir objetivamente a observncia desses valores;5. No transigir com os deslizes ticos; 6. Estudar tica; 7.Reconhecer a urgncia no retorno vida tica.

    Poder ser pouco para salvar o mundo. Mas estar salvo oseu mundo, aquele espao fsico e temporal em que se desen-volve a sua personalidade, e cuja transformao qualitativa

    depende exclusivamente de sua vontade. Vontade exercidapasso a passo. O passo o movimento natural do homem. Esem o primeiro deles, no se inicia a caminhada.

    VALE A PENA SER VIRTUOSO?

    Era comum a quem se propusesse a estudar tica indagar-se:a virtude pode ser ensinada!Ou, em outras palavras, podeensinar-se o comportamento moral?Sinal dos tempos, a per-gunta foi substituda por vale a pena ensinar a virtude?

    A modificao no destituda de importncia. Parece havercrescido o desalento em torno possibilidade de se insistirnuma conduta moral. Como se isso no mais condissesse coma realidade presente. Tempos melanclicos de predomnio

    do egosmo, da desenfreada busca pelas vantagens e pelosprazeres. Chegaria a ser cmico falar-se em comportamentomoral para uma sociedade imersa em desfrutar, at o exauri-mento, o universo das sensaes.

    Na anlise de Adela Cortina, a metamorfose da pergunta pa-rece obedecer a um dos signos dos tempos - o do progressotcnico e sua crescente complexidade - que leva a pais e res-ponsveis polticos da educao a convencer-se de que maisvale transmitir aos jovens quantas habilidades tcnicas sejamcapazes de assimilar para poder defender-se na vida e alcan-ar um nvel elevado de bem-estar. O triunfo da razo ins-trumental, que Adorno e Horkheimer detectaram, parece serum fato indiscutvel, e ademais, com repercusses no campopoltico, j que a distino entre pases pobres e ricos noguarda j relao com a riqueza dos recursos naturais, senocom a capacidade tecnolgica.

    O abandono dos fins ltimos para o treino da sobrevivnciaestaria destinado a prevalecer num Estado-Nao onde osintelectuais ocupam o humilhante ltimo plano na escala dosvalores sociais. Vem primeiro o dinheiro e seus detentores.Dinheiro conseguido sob qualquer forma. No se indaga deonde saem as grandes fortunas. Sabe-se apenas que, imedia-tamente aps seu surgimento, os donos passam a ser cultua-dos na mdia e tm espao reservado nas relaes de figurascarimbadas para as festas dos emergentes.

    O dinheiro, tenha ele sido conseguido no se sabe como, sersempre bem-recebido. Ingressa em todos os lugares, no h,para ele, portas cerradas.

    A resistncia a esse descalabro, entretanto, pode valer apena. Alguns basties da lucidez continuam a pregar a ne-cessidade de uma converso moral para salvar o mundo. Nohaver sociedade democrtica, aceno potico do constituintede 1988, to criticado e to pouco implementado, se o cresci-mento moral deixar de ser perseguido como meta.

    Cumpre indagar: quer-se uma gerao de profissionais provi-dos de destreza e prontos a ganhar a vida ou pretende-seedificar uma comunidade solidria, integrada por seres huma-nos capazes de auto-realizao? Mais singelamente, maisimportante vencer na vida ou ser feliz?

    Quem optar pela segunda verso, precisa investir na educa-o moral. Educao moral que precisaria recordar, ao menos,o seguinte:

    1. Moral capacidade para enfrentar a vida frente desmora-lizao. Educao moral significa, pois, neste primeiro senti-do, ajudar a modelar o carter, de modo que a pessoa se sintaem forma, desejosa de projetar, ciosa de seus projetos de

    auto-realizao, capaz de lev-los a cabo, consciente de quepara isso necessita contar com outros igualmente estimveis.

    O cultivo da auto-estima criar pessoas saudveis, imunes aqualquer dependncia, capazes de relacionamentos fecundos,pois so amorveis. Gostam de si mesmas, respeitam-se e porisso tm condies de amar aos outros.

    2. Moral busca de felicidade. No se est impondo juventu-de, que precisa ser alegre e continuar a colorir o mundo, aabsoro de cdigos rgidos, proibitivos e castradores.

    No existe princpios ticos materiais, seno procedimentais. por isso que o educador, ao treinar o educando para serfeliz, no tem o direito de inculcar como universalizvel o seu

    modo de ser feliz. Cabem aqui a exortao e o conselho, odilogo e a troca de experincias, o ombro amigo e, principal-mente, um ouvido disponvel, pois vive-se uma era em queningum dispe de tempo para ouvir. Cada qual est mui-to empenhado em seu prprio micro-universo inexpugnvel,onde problema alheio no tem acesso, voz ou vez.

    Tenha-se presente que no existe um padro universal defelicidade. A natureza humana to diversa que se poderiaduvidar qualquer generalizao sobre a classe de carter queconduz felicidade que pudesse ser aplicada a todos os sereshumanos.

    O mximo admissvel a demonstrao de que felicidade um dom, o dom da paz interior, espiritual, da conciliao oureconciliao com tudo e com todos e, para comear e paraterminar, conosco mesmos

    3. Moral desenvolvimento de capacidades em uma comuni-dade. Consequncia do asserto anterior. O ser humano mo-derno est perdendo o sentido de pertencer a uma comuni-dade e com isso sente-se isolado, desagregado, sem vnculoscom o seu prximo.

    Nasce-se no seio de uma comunidade que herana de gera-es, calcada em hbitos, modelos e virtudes. A ruptura desseethos mortal para a vivncia sadia de qualquer pessoa.

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    Reitere-se, no h receitas prontas nem modelos definitivospara inculcar no ser humano um compromisso tico, ao me-nos uma preocupao de, alm de viver sem prejudicar osemelhante, sentir-se irmanado com ele e importar-se pelodestino alheio.

    A solidariedade mostra-se essencial neste milnio em que sevislumbram sinais de esperana. Enquanto houver quem de-fenda uma rvore, um animal em extino, se condoa de umacriana, procure sanar o mal do mundo - seja ele violncia,

    enfermidade, preconceito ou indiferena - h sinais de quenem tudo ainda est perdido.

    POR UMA TICA DE SOLIDARIEDADEPLANETRIA

    Torna-se ao ponto de partida. A discusso tica no foi inter-rompida, mas recrudesceu. Continuam os rankingsde corrup-o elaborados por organizaes no governamentais em v-rios pases, a mostrar que esse mal continua a sugar recursosimprescindveis redeno dos mais pobres. Evidencia quepases mais desenvolvidos e providos de doutrina tica pre-tensamente consolidada e inserida em seus cdigos de con-duta atenuam os seus pruridos quando negociam com pases

    de desenvolvimento heterogneo. H um padro tico para oscivilizadose outro padro tico para os emergentes.

    No momento em que a mais poderosa nao no mundo serecusa a cumprir o Protocolo de Kyoto, continuando a emitirgases que vo comprometer - e mais rapidamente do que sepensa - o futuro da Humanidade, constata-se quo deficitria a responsabilidade tica, praticamente ausente na consci-ncia dos poderosos.

    Impe-se, portanto, um reforo no protagonismo individual egregrio. Cada pessoa consciente precisa se imbuir da certezade poder transformar o mundo, se tiver vontade e fora. Cadaum est sendo chamado a salvar o mundo, literalmente. A es-tria do beija-flor que pretendia apagar o incndio da floresta

    mediante gua que traria em contnuas viagens, guardadaem seu bico, bastante ilustrativa. Um pssaro apenas tal-vez seja impotente. Se forem milhes deles, os efeitos serooutros.

    O mundo hoje est imerso num incndio. Chamas simblicasqueimam os valores, as certezas, fazendo crescer a fome, aexcluso, a violncia, o descrdito, o deboche e o acinte. Cha-mas reais esto prestes a surgir, diante da criminosa destrui-o da natureza. Os incndios nas florestas e margem dasrodovias so apenas o comeo. A continuar o festival de insa-nidades perpetradas contra o ambiente, j no haver muitoo que defender dentro de reduzido lapso temporal.

    A moral individualista pouco tem a oferecer. Ela s defende ointeresse pessoal e, articulada com a moral essencialista dasinstituies modernas, produz progressos tcnicos que geraminjustias sociais e aplicaes cnicas de normas e princpiosque pioram ainda mais a situao dos pobres e dos mais fra-cos.A moral em voga at o momento produziu esse quadrotriste com o qual se tem de conviver: o salve-se quem puder,o cada um porsi, a insensibilidade e a banalizao da violn-cia e da vida. Um grande statusde indignidade com o qual seconvive, na convico de que ningum pode alterar o rumonatural das coisas.

    O ser humano tem uma destinao mais nobre do que aquelaque est se desenhando neste incio de dcada, de sculo e

    de milnio. A juventude precisa ter esperana de contar comeducao de qualidade, lugar e espao para se desenvolver,ocupao garantidora de subsistncia, liberdade para amar,divertir-se, transitar por ruas e praas sem receio de seques-tros relmpagos e de ser vtima da violncia.

    Os pais tm o direito de dormir tranquilos, mesmo sabendoque seus filhos ainda no chegaram. Tem o direito de sonharcom o futuro, com uma velhice hgida e digna, na companhiados filhos e netos e, se a Providncia permitir, dos filhos dos

    netos.Os enfermos precisam contar com assistncia, assim comoos abandonados e os desvalidos. Os infortnios precisam sercompensados com assistncia efetiva. dever do Estado eeste haver de ser fiscalizado e cobrado. H recursos paratodos, quando bem administrados. O que no se justifica acontinuidade dos desvios, da corrupo e da m utilizao doErrio. No se justifica o gasto excessivo com propaganda,quando bens da vida essenciais ainda no foram asseguradosa todos os ocupantes deste solo.

    Aps dedicar-se leitura destas reflexes ticas, cada qualpoder imbuir-se de alguns princpios ticos. Sem princpio

    no haver ao. A ao decorre da opo consciente por umprincpio.

    Mas s isso no basta. necessrio atuar em grupo. Cadaqual precisa se colocar no lugar do outro, sobretudo do outroexcludo, despossudo, angustiado e necessitado de cuidados.

    Abandonando-se a postura egostica, ainda que imbuda decerta tica, mas uma tica individual, poder-se- caminharpara a tica de responsabilidade solidria. Ser solidrio signi-fica se colocar no lugar do outro, daqueles que so as maioresvtimas dos processos sociais de excluso, as minorias tni-cas, as mulheres, os pobres, as geraes futuras e a natureza,que tambm vtima da ao humana. Impregnando-se deresponsabilidade solidria, adquirir-se- a certeza de que

    possvel construir um mundo melhor do que este.Milhares de brasileiros j sentiram esse chamamento. Multipli-cam-se as organizaes no governamentais e 2001 foi esco-lhido como o ano do voluntariado. O trabalho voluntrio spode ser alimentado por um denso ncleo de conscincia ti-ca. E tica solidria, pois a solidariedade implica ao coletivaexprimindo-se em movimentos de toda ordem, notadamenteos sociais em defesa dos mais fracos: direitos humanos, eco-logia, minorias, combate fome e violncia. Tais movimen-tos atendem no s a uma exigncia de pr em prtica nossaindignao tica, mas tambm a uma necessidade existencialdo ser humano de construo do seu ser. Ns nos humani-zamos quando humanizamos o mundo. Ss, talvez poucospossam os bem intencionados. Juntos, cada qual se apoiandono companheiro, a caminhada ser exitosa.

    Milhares de novas ONGs esto disponveis, carecendo de tra-balho voluntrio. Se nenhuma delas atender aos objetivosidealizados, tarefa das mais fceis formar uma nova, instnciaprivilegiada de reflexo conjunta, espao saudvel de conv-vio. Estes espaos de convivncia solidria podem implodira lgica do sistema como um todo. Pode parecer absurdoacreditar que milhares de movimentos sociais pulverizadospelo mundo todo possam construir uma nova sociedade ba-seada numa tica da responsabilidade solidria. Tambm eraabsurda para os gregos antigos a ideia de uma sociedadesem escravos. Quem sabe os nossos netos ficaro chocados

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    ao saberem que houve um tempo em que crianas morriamde fome.

    O espao inicial o da prpria casa, de onde se pode aces-sar -por infovia - qualquer autoridade local, regional, estadualou federal, sugerindo, cobrando, elogiando ou recriminando.Est provado que, se difcil compelir o detentor de poder afazer o bem, relativamente fcil impedi-lo de fazer o mal. Osprotestos, as manifestaes e os libelos contra atuao lesi-va ao interesse coletivo resultam em retrocesso nas medidas

    temerrias ou em reexame daquilo que, no fosse a reaoadversa da comunidade, passaria in albise se converteria emato irreversvel.

    Depois da casa, o trabalho, a escola, o clube, o grupo deamigos. At que tais crculos, ampliados, alcanassem umadimenso planetria.

    Esta seria uma reviravolta tica global. Uma globalizaomoralou a edificao de uma tica planetria. Tudo o queacontece a um ser humano, atinge a humanidade toda. ATerra um planeta frgil e j est extenuada de emitir sinaisde exausto. Parecemos surdos aos seus pedidos de socorro.

    urgentssima a rpida maturao tica da conscincia coleti-

    va, rumo a uma tica de solidariedade planetria.Os seres humanos lcidos no esto ainda convencidos deque podem vir a ser acusados amanh - se houver um ama-nh - de uma cegueira moralou de uma irresponsabilidadeticaque pode ser um crime omissivo.

    Aquilo que nos tinha enchido de horror h dez anos foi: ofato de que o prprio homem pudesse ser um encarregadode um campo de extermnio e um bom pai de famlia, queesses dois fragmentos no se obstaculizassem mutuamente,porque j no se reconheciam mais. Essa atroz inocncia daatrocidade no mais um caso parte. Ns, todos, somosos sucessores desses esquizofrnicos, no verdadeiro sentidoda palavra. Se as coisas esto assim, se no queremos quetudo seja perdido, o dever moral determinante, nos dias dehoje, consiste no desenvolvimento da fantasia moral, isto ,na tentativa de vencer o desnvel, adequar a capacidade e aelasticidade da nossa imaginao e do nosso sentir s dimen-ses dos nossos produtos e imprevisvel desmedida daquiloque podemos perpetrar.

    A advertncia de Gnther Anders atual, embora emitidaem meados do sculo passado. Reflete o estado permanentede dissociao e de irresponsabilidade dos homens de nossapoca. Desde ento, os problemas do mundo s se torna-ram mais srios e mais urgentes. Enquanto isso, a margemde tempo para uma mudana de caminho mostra-se sempremais exgua. As feridas mais dilacerantes da contemporanei-dade podem ser recapituladas no quadro seguinte articuladoem dez pontos:

    1. A invaso e os efeitos perturbadores de uma ordemeconmica mundial que, para assegurar a opulncia a umaparte minoritria da humanidade, produz para todos os outrosa fome, o subdesenvolvimento, o desemprego, a degradaodo trabalho;

    2. A crise ecolgica, com intolerveis danos biosfera e scondies de sobrevivncia das diversas formas de vida sobrea terra;

    3. A crise demogrfica, com a crescente desproporo entre

    a populao e os recursos disponveis;

    4. O aguar-se das tenses tnicas e religiosas, dasdiscriminaes de casta e de sexo, e tambm a traduo ir-responsvel do princpio de autodeterminao dos povos;

    5. A crise das relaes inter-humanas de solidariedade e aexcluso de faixas inteiras da sociedade;

    6. O recurso guerra como resoluo das controvrsiasinternacionais;

    7. A existncia de regimes ditatoriais e o repetir-se da viola-o dos direitos humanos em muitos pases;

    8. A expanso das organizaes criminais transnacionais edo mercado mundial das drogas;

    9. O monoplio ocidental do sistema informativo-comunica-tivo e a homologao das culturas sob a liberalidade absolutado Ocidente;

    10. A dificuldade de enderear as dinmicas e os xitos daspesquisas cientficas e tecnolgicas ao bem comum da huma-nidade.

    Quem pretender examinar esses dez pontos e circunscrev-los apenas realidade brasileira constatar que este belssimoBrasil possui uma das mais inquas distribuies de renda emtodo o mundo. Os ricos, est provado, tornam-se cada vezmais providos de bens e de poder. Os pobres esto abaixo dalinha da dignidade humana.

    O meio ambiente vem sendo continuamente lesado. Sob afalcia do progresso e do desenvolvimento, acaba-se com aFloresta Amaznica, assim como j se sacrificou toda a Mata

    Atlntica. A ignorncia e a cupidez - esta, a raiz de todos osmales - se aliam para destruir o que resta daquela exuberan-te reserva transformada em deserto em apenas quinhentosanos. Espao muito curto para caracterizar uma civilizao. A

    nossa, seria chamada de civilizao destruidora.As cidades vo se transformando em massas cinzentas de po-pulao excluda. A periferia um outro mundo, com a totalausncia do Estado. As instncias de poder so confiadas criminalidade. A conurbao vai criando uma subumanidadeenferma, desvalida e infeliz.

    Alguns segmentos so ainda mais sacrificados do que os ou-tros. Minorias enfrentam preconceitos e discriminaes. So-lidariedade um tema retrico, presente no discurso, quaseausente na prtica.

    O clima de guerra civil j existe nas grandes cidades. A tri-vializao das chacinas, consideradas limpezade marginais.

    O crescimento da segurana privada. A blindagem de carros.O medo, a incerteza de se voltar para casa, transformada emfortaleza e, mesmo assim, sem garantia alguma de preservara vida e o patrimnio de seus moradores.

    A tortura, os maus-tratos, a cifra negrada criminalidade, aimpunidade, a corrupo, o flagelo da droga, as filas parapedir emprego, para conseguir uma senha de atendimentopelo sistema nico de sade, os esmoleres a cada esquina, agarotada a limpar os pra-brisas, implorando uma esmola eservindo-se de qualquer instrumento para ameaar os tran-seuntes, quando no atendidos.

    Esse panorama quase ignorado pela grande mdia, mais

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    interessada em divulgar o extico, a sensualidade, o climaemocional produzido plos esportes. A sociedade do entre-tenimento, feio nova da sociedade do espetculo, vive daimagem e da aparncia. Quase no h espao para divulgarvalores, o correto e o bem. Assim, a conscincia exposta mensagem televisiva corre o risco de dar consistncia de reali-dade fico do espetculo e, no final, pode confundi-lo; esterisco ameaa, sobretudo, a conscincia incerta e frgil dos mais

    jovens e aquela que no estruturada por claras orientaesde valor. A criao de uma conscincia tica sensvel e despertapara as exigncias da contemporaneidade a alternativa aocaos que adviria da preservao do quadro atual.

    Todos so chamados a esse protagonismo. Um protagonis-mo verdadeiramente herico, pois implica em nadar contraa correnteza do consumismo, do narcisismo e da insensibi-lidade.

    Depende de cada um inverter o sentido da trajetria, ou man-t-la rumo ao desaparecimento da espcie.

    VALORES, VIRTUDES, DEVERES EPOSTURA PROFISSIONAL

    A TICA DOS VALORESA classificao tica dos Valores poderia representar umaaparente inverso da tese kantiana. Para Kant, o valor de umaao depende da relao da conduta com o princpio do dever,o imperativo categrico. Para a filosofia valorativa, o valor mo-ral no se baseia na ideia de dever, mas d-se o inverso: tododever encontra fundamento em um valor.

    S deve ser aquilo que valioso e tudo o que valioso deveser. A noo de valor passa a ser o conceito tico essencial.E valor no arbitrariamente convencionado. Pois o que va-lioso vale por si, ainda quando seu valor no seja conhecidonem apreciado. A filosofia valorativa separa cuidadosamenteo problema da intuio dos valores - que epistemolgico -daquele da existncia do valor - que ontolgico.

    nossa conscincia que nos adverte da existncia dos valo-res. Mas no foram criados por ela, seno por ela descober-tos. S pode ser descoberto o que j existe. Quase impossvelconceituar-se o valor, como j o reconheceu Mestre Reale:

    Deveramos, primeira vista, ter comeado por uma defini-o do que seja valor. Na realidade, porm, h impossibilidadede defini-lo segundo as exigncias lgico-formais de gneroprximo e de diferena especfica. Nesse sentido, legtimoque fosse o propsito de uma definio rigorosa, diramoscom Lotze que do valor se pode dizer apenas que vale. Oseu ser o Valer. Da mesma forma que dizemos que ser o que , temos que dizer que o Valor o que vale. Por que

    isto? Porque ser e valer so duas categorias fundamentais,duas posies primordiais do esprito perante a realidade. Ouvemos as coisas enquanto elas so, ou as vemos enquantovalem; e, porque valem, devem ser. No existe terceira posi-o equivalente.

    A EXISTNCIA DO VALORAs grandes questes da axiologia clssica podem ser resumi-das a quatro e so elas que merecero agora ligeiro exame.Existem os valores? Eles existem e isso facilmente cons-tatvel por qualquer pensante. No se vinculam a qualquerforma de exteriorizao. Podem ser meramente sentidos ou

    intudos. Isso explica a simpatia ou antipatia natural diante deuma pessoa ou a emoo perante uma obra de arte.

    longeva a distino entre o mundo da matria e a ordem doideal. Os valores integram a esfera supra-sensvel do mundoimaterial que, suscetvel de ser intelectualmente concebido,no se pode visualizar ou submeter ao tato. A filosofia atualreconhece dois tipos de existncia: o ser real e o ser ideal.Pertencem ao primeiro todas as coisas e sucessos que ocu-pam lugar no espao ou no tempo. O ser real se encontra, por

    isso, espacial e temporalmente localizado. Por sua mesma n-dole, pode ser objeto de um conhecimento sensvel. Na esferaprtica tm essa forma de existncia os atos humanos, ou,mais precisamente, as variadssimas manifestaes do agir:intenes, propsitos, decises voluntrias, juzos estimati-vos, sentido de responsabilidade, conscincia da culpa etc.J os valores no integram a ordem da realidade. Diante dela,situam-se como ideais.

    O perigo concluir que s existe o que real. Assim, o idealno teria existncia. Isso pensamento ingnuo, como tam-bm o seria confundir-se idealidade com subjetivismo. Idealno s aquilo que objeto da representao. Na ordemlgica e matemtica, a tese da idealidade tem alicerces con-

    sistentes. Quando se afi

    rma: o todo maior do que a parte,independentemente de algum imagin-lo ou pensar assim, opostulado continua vlido e existente. Os valores submetem-sea uma hierarquia. No que possam ser eleitos, mas a hierarquia objetiva. Entre os critrios determinativos dessa escala, indi-ca Scheler os seguintes: Um valor tanto mais alto: a) quantomais duradouro ; b) quanto menos participa da extenso e dadivisibilidade; c) quanto mais profunda a satisfao ligada intuio do mesmo; d) quanto menos fundamentado se achapor outros valores; e) quanto menos relativa seja sua percep-o sentimental posio de seu depositrio.

    A durabilidade do valor tem a ideia de permanncia. No teriasentido o amante declarar que ama agora ou durante certotempo. O valor mais elevado quanto menor a necessidadede dividi-lo com outrem. A obra de arte indivisvel. Inimagi-nvel repartir-se uma tela em mltiplas peas, para que cadadestinatrio detenha uma parcela de seu valor originrio. En-tre os valores tambm surge a possibilidade de relaes defundamentao. O valor fundamentado em outro sempreinferior ao fundamentante. Assim, a vida, entre os direitosfundamentais, o bem por excelncia. Todos os demais di-reitos so bens da vida, nesta fundamentados e, portanto,inferiores prpria vida.

    A satisfao coincide com a vivncia de cumprimento, no como estado de prazer gerado pela posse do valor. E a escala derelatividade dos valores auxilia a aferir o grau de superioridadedele. H valores vinculados ao agradvel, os valores da vida

    que so relativos aos seres viventes, e h valores puros, comoos valores morais, que tm carter absoluto, no relativo.

    Max Scheler esboou uma classificao dos valores sob enfo-que hierrquico, distinguindo-os em: a) valores do agradvele do desagradvel; b) valores vitais; c) valores espirituais; d)valores religiosos. Ignorar ou subverter essa hierarquia fon-te de problemas nem pequenos, nem simples da sociedadecontempornea.

    O CONHECIMENTO DOS VALORESOs valores constituem condio de existncia dos bens. Exis-tem bens porque existem valores, no o contrrio. Em regra,

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    todo ser humano tem a experincia de conferir a determinadascoisas ou aes valorao que as qualifica como boas, ms,teis, agradveis, nobres ou belas. Esse experimento pressu-pe uma escala estimativa. Ela propiciar identificar, nas coisasou atos, os valores compatveis com essa pauta prvia.

    Essa pauta apriorstica e, embora se afirme baseada na imi-tao, ou na ndole intuitiva e emocional do conhecimento,ela existe em toda s conscincia. A intuio dos valores no completa, nem perfeita. Hartmann d a esse fato o nome

    de estreiteza do sentido do valor. Nenhuma pessoa capazde intuir todos os valores. Quando os intui, nem sempre podefaz-lo de forma ntida. Mas vivel o crescimento nessaarte. A misso do pedagogo e do moralista desenvolver asensibilidade para o conhecimento daquilo que eticamenterelevante.

    Na verdade, a problemtica axiolgica pode oferecer perple-xidade. Pois para quem se situe a um nvel alheado de todoe qualquer dogmatismo, nem sempre o reconhecimento devalor ser indiscutvel, incontrovertvel. Nem mesmo quandose trata de coisas por quase todos julgadas valiosas, porqueindispensveis conservao da vida. Um ctico, ou um niilis-ta, perguntar por que razo ser benfico conservar a vida.

    E poder negar o valor dessas coisas geralmente julgadasvaliosas. Por negar tambm valor respectiva finalidade. Ovalor, portanto, depende de uma estimativa, de um juzo, deatribuio de uma determinada importncia ao objeto a seravaliado.

    No se subestime a capacidade humana de se enganar. Deconferir valor ao que no tem e de negar valor ao valioso. Ahistria tem sido prdiga em exemplos de cegueira valorativa,no apenas em relao aos indivduos, mas caracterstica atoda uma sociedade ou a toda uma poca. Recorda Ortega yGasset que o estimar uma funo psquica real - como oenxergar, como o entender - em que os valores se nos fazempatentes. E vice-versa, os valores no existem seno parasujeitos dotados de capacidade estimativa, do mesmo modoque a igualdade e a diferena s existem para seres capazesde comparar. Neste sentido, e s neste sentido, pode falar-sede certa subjetividade no valor. por isso que existem sbioscegos para os padres axiolgicos e ignorantes sensveis autntica valorao.

    A intuio, de que se conhece to pouco, explica a existnciade homens que, mesmo ignorantes, inbeis para a constru-o lgica ou para a argumentao dialtica, pela sua sensi-bilidade se revelam permeveis luminosidade dos valores.Porque se sentem atrados para o que belo e so capazes decaptar os reflexos de uma beleza imperecvel, ou porque sobons, ou porque a sua sensibilidade distingue, com nitidez,o justo do injusto, o pensador poeta Paulo Bomfim tem

    uma expresso adequada para essas pessoas privilegiadas:chama-as de elite espiritual, a verdadeira elite, predestinada aservir de luzeiro ou de balizas morais para os contemporneose para a posteridade.

    A existncia dessas primcias do gnero humano compensama indigncia moral que em aparncia, predomina em consi-deradas altas esferas. A insensibilidade dos que amealhampoder, dinheiro e glria em relao aos semelhantes que nochegaram a ser includos no fantstico mundo do consumo ca-racteriza uma vida tica ou uma inadmissvel estreiteza moral.Tal estreiteza, mesmo a cegueira valorativa ou a miopia moral,no se mostram capazes de destruir a doutrina da objetivida-

    de dos valores. As variaes da intuio estimativa em desviomoral no alteram o valor, que permanece ntegro, esperada descoberta. elucidativa a ideia de Garcia Mynez do conede luz projetado no horizonte. A conscincia de cada homeme de cada poca descobre sob essa luz alguns valores. Se noatenta para outros, no porque eles no existam. O cone deluz ilumina, mas no cria o horizonte.

    A REALIZAO DOS VALORES

    O ideal coincide ou no com o real. Na ordem moral essarelao bastante peculiar a ser em si dos valores subsistemesmo se no forem realizados. Mas os valores so princpiosda esfera tica atual, no apenas princpios da esfera ticaideal, observou Hartmann.

    a conscincia estimativa que d o testemunho da atuali-dade dos valores. Ela sinaliza o sentido primrio do valioso,determina o juzo moral, o sentimento de responsabilidade ea conscincia da culpa. Mais ainda, os valores so princpiosda esfera tica real. So foras determinantes da conduta hu-mana num sentido criador. A possibilidade que o homem temde converter as urgncias do ideal em foras modeladoras doexistente condiciona, segundo Hartmann, a grandeza de nos-sa linhagem. Como administrador dos valores no mundo, ohomem adquire uma significao demirgica, convertendo-sedeste modo em coparticipe da grande obra de Deus.

    Adquire especial relevo na doutrina da realizao de valoresa noo do dever ser. uma noo kantiana suprema e, por-tanto, indefinvel. Todo valor tico deriva da subordinao davontade ao imperativo categrico. J Scheler e Hartmann in-vertem a proposio: o valor moral no se funda no dever,mas ocorre o inverso: todo dever pressupe a existncia dosvalores. Para eles, no haveria sentido dizer que algo deveser, se o que se postula como devido no fosse valioso. Ca-ridade, justia, temperana e outras virtudes devem ser, en-quanto valem. Carecessem de valor e no deveriam ser, odever ser hartmanniano tem os seguintes elementos: a) aexistncia de um valor; b) o dever ser ideal do mesmo; c) aatualizao de tal dever (dever ser atual); d) a existncia deum ser capaz de realizar o valioso ao mundo real no em siplenamente valioso, nem completamente desvalioso. Nele serealizam mltiplos valores e outros quedam irrealizados. Mash sempre a possibilidade de novas realizaes valorativas.

    Mas como pode o homem realizar o valioso? Realizar o va-lioso consiste, para o homem, num dever. E o dever impeuma conduta teleolgica. Se quero acatar uma norma, devoconverter tal acatamento em finalidade de minha conduta. Arealizao dos valores se consuma atravs de um processo dedupla etapa: a determinao primria e a determinao se-cundria. A primeira a intuio; a segunda, a deliberao da

    vontade. verdade que o nexo teleolgico mais complexodo que o nexo causal. O nexo causal a relao entre doisfenmenos, o primeiro dos quais, chamado causa, determinade forma necessria a produo do outro, chamado efeito. Jo nexo teleolgico admite trs momentos:

    1. Postulao do fim. Algum se prope a realizar determina-da finalidade. a projeo interior de seu atuar futuro.

    2. Eleio dos meios. A realizao dos fins pressupe a se-leo e emprego de procedimentos a eles conducentes: osmeios.

    3. Realizao. Esta a etapa inserta no fluxo do futuro. Aqui

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    existe uma similitude entre o nexo causal e o nexo ideolgico.O meio causa e o fim efeito.

    Para bem apreender essa possibilidade, a criatura deve terpresente que a realizao de fins no um processo inflexvele imodificvel, totalmente fechado interveno de deter-minaes heterogneas e mais complexas. Se o homem capaz de propor-se um alvo e alcan-lo, isso se deve a queo acontecer causal no se orienta de maneira inexorvel atuma meta estabelecida de antemo, seno que pode ser des-

    viado, ao menos dentro de certos limites. Para desvi-lo s fazfalta o conhecimento das relaes entre os fenmenos. Isto o que expressa o velho aforismo: natureza no se domina,seno obedecendo-a. E obedec-la orientar suas foras nadireo de nossos desgnios.

    A realizao individual de valores s se concebe numa visode mundo em que coexistam a causalidade e a teleologia.Numa existncia sem leis, em que tudo fosse fortuito e con-tingente, no haveria a possibilidade de estipulao de fins ede sua realizao. E a pessoa deve ter conscincia de que hum momento inicial de liberdade moral, sem o qual nada lheser possvel crescer em termos ticos.

    A LIBERDADE MORALLiberdade um desses verbetes surrados pelo uso, sem quese consiga definir o seu sentido. Para um estudo sobre a ti-ca, a liberdade a ausncia de obstculos postos a quem seproponha a praticar o bem. Pois numa concepo de ordemtica, a liberdade s pode ser orientada para o bem. Nadaobstante, h quem consiga conceitu-la em termos desvincu-lados a qualquer tica e por via negativa. Ou seja, liberdadepara estes seria a ausncia de bices realizao vontadede cada um. Poderia ser tambm no sujeio da vontadeprpria a qualquer vontade alheia.

    A experincia da liberdade j foi provada por qualquer pes-soa higidamente equilibrada. Quem ainda no experimentou

    a possibilidade de optar entre ir e ficar, entre comprar e nocomprar, entre dizer e calar-se?

    Apenas a anomalia mental priva a pessoa de qualquer possi-bilidade de escolha, ou seja, de ausncia total de liberdade.

    Se a liberdade existe, a conduta humana tem significado mo-ral pleno. Se no existe, a pessoa no pode responder por seucomportamento e nem pode, a rigor, ser chamada pessoa. Aliberdade moral no se confunde com a liberdade jurdica.Esta faculdade puramente normativa. A liberdade jurdica mais um mbito espacial de atividade exterior, que a lei limitae protege. J a liberdade moral atributo real da vontade. A

    jurdica termina onde o dever principia; a moral pensada

    como um poder capaz de traspassar o linde do permitido.Nem se confunda livre-arbtrio com liberdade de ao. Esta mero atributo da deciso. Aquele capaz de decidir.

    A liberdade humana revela-se, ento, como funo ontolgicada posio que o homem ocupa ante dois tipos de determina-o. Na qualidade de ente natural, acha-se casualmente deter-minado por suas tendncias, afetos e inclinaes. Como pes-soa, portador de outra determinao, oriunda do reino idealdos valores. Esta determinao lhe permite eleger finalidades,optar por meios e coloc-los em ao para chegar quelas. que a liberdade pressupe cincia adequada, conhecimento. Etambm educao, respeito ao semelhante, que nem sempre adquirido pela aprendizagem de ndole tcnic