vigde cristo

423

Upload: raskolnathan

Post on 09-Aug-2015

36 views

Category:

Spiritual


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Vigde cristo

Catálogo

Page 2: Vigde cristo

Sobre o autor

Peter de Rosa, licenciado pela Universidade Gregoriana deRoma, foi Professor de Metafísica e Ética no WestinsterSeminary e Deão de Teologia no Corpus Christi College deLondres. As suas obras incluem: Rebels: The Irish Rising of1916 e o romance Pope Patrick. Deixou o sacerdócio em1970 e vive actualmente na Irlanda com a mulher e doisfilhos.

Page 3: Vigde cristo

Peter de Rosa

Os Vigários de CristoO Lado Negro do Papado

Luis A. P. Varela Pinto
Luis A. P. Varela Pinto
Traduzido do original
Luis A. P. Varela Pinto
por
Luis A. P. Varela Pinto
Luís Varela Pinto
Luis A. P. Varela Pinto
Luis A. P. Varela Pinto
Espinho
Luis A. P. Varela Pinto
2000/2001
Luis A. P. Varela Pinto
Page 4: Vigde cristo

Título do original: Vicars of Christ, The Dark Side of the Papacy

Edição que serviu de base à tradução:Poolbeg Press Ltd, 123,Baldoyle Industrial Estate,Dublin 13, Ireland2000

Page 5: Vigde cristo

A

Todas as Vítimas do Holocausto,

com Humildade e Penitência

Page 6: Vigde cristo
Page 7: Vigde cristo

Índice

Um Novo Prefácio para um Novo Milénio 9

Prólogo: O Grande Encobrimento 13

Primeira Parte: O Poder 17

1 Do Calvário ao Vaticano 19

2 A Busca do Poder Absoluto 35

3 A Pornocracia Papal 51

4 O Apogeu do Papado 59

5 O Poder em declínio 75

6 A Descida do Papado aos Infernos 87

7 A Inevitável Reforma 107

8 O Crepúsculo do Poder Absoluto 117

Segunda Parte: A Verdade 131

9 O Esmagamento da Dissidência 133

10 A Imposição da Verdade 145

11 A Perseguição às Bruxas e aos Judeus 171

12 As Heresias Papais 191

13 O Primeiro Papa Infalível 219

14 A Grande Purga 235

Terceira Parte: O Amor 247

15 O Papa que Amava o Mundo 249

16 O Novo Caso Galileu 261

17 Uma Visão Pouco Amorosa do Sexo 289

18 Os Papas, Pioneiros do Divórcio 303

19 O Holocausto Silencioso 329

20 Celibatários Pouco Castos 351

Epílogo 391

Cronologia 395

Os Papas 403

Os Concílios 409

Nota sobre as Fontes 414

Bibliografia Selecta 415

Page 8: Vigde cristo
Page 9: Vigde cristo

9

Um Novo Prefácio para um Novo Milénio

O sucesso internacional de Os Vigários de Cristo: O Lado Negro do Papado foi paramim uma surpresa. Muitos católicos escreveram-me a agradecer. Com uma educaçãobaseada apenas no lado eternamente luminoso do papado, ficaram com a ideia de que,à parte uma ocasional maçã podre, como o Papa Bórgia, Alexandre VI, os papas eramescolhidos pela sua santidade.

Este livro mostra que nos primeiros dois mil anos o papado foi campo de muito maisescândalos clericais do que a Irlanda ou a América hoje.

Muitos papas, como Benedito IX, eleito em 1032 quando tinha onze anos, foramdesumanos; outros foram assassinos; Júlio II, que lutou pelos Estados Papaisenvergando a sua armadura, estava convencido de que Jesus tinha dado ao Pescador eseus herdeiros uma boa fatia da Itália Central a título perpétuo. Foi este o papa queproibiu toda a gente de beijar-lhe os pés na Sexta-Feira Santa de 1508. A sífilis estava amatá-lo.

O papa é católico? O leitor de Os Vigários de Cristo pode ficar surpreendido aodescobrir que alguns não o eram. Segundo o Papa Adriano VI (1522-3), muitospontífices romanos eram hereges. Marcelino (296-304) foi apóstata. Vigílio (537-55) eHonório (625-38) foram condenados como hereges por Concílios Gerais da Igreja.

Como disse Adriano VI, «Não há dúvida de que o Papa pode errar em matéria de féquando ensina a heresia».

Muitos papas criaram culturas de morte e cometeram crimes contra a humanidade.As Cruzadas, que levaram ao massacre de centenas de milhar de vítimas, não foramideia de católicos renegados, mas de papas renegados. Impiedosamente, eles puseramas suas jihads ou Guerras Santas sob a protecção de Jesus, que em Getsémani obrigouPedro a embainhar a espada.

Também foram os papas que inventaram a Inquisição, o gueto e as roupas queidentificavam os Judeus, a destruição pelo fogo de cidades heréticas e a fogueira paravelhas mulheres apelidadas de bruxas. Foram milhões os que morreram às ordens dospapas. Alguns papas, que podiam ter dado lições de brutalidade a Cromwell, foramcanonizados.

Muitos papas do Renascimento, ao serviço de um Cristo da Wall Street, nãoconseguiram passar sem meter a mão na gaveta. Foram simoníacos em grande escala.Para conseguirem a eleição subornaram cardeais oferecendo-lhes abadias e montes deouro e prata. Uma vez em exercício, usavam os lucros das vendas de bispados eindulgências para enriquecer as amantes, os filhos, os netos, os irmãos e as irmãs.Apropriaram-se do equivalente a milhões de dólares. O Bispo Casey, de Galway, aoentregar 125.000 dólares dos fundos da diocese à sua amante americana Annie Murphyquase não deixa marcas numa escala de Richter das más acções do clero.

O que é que por fim pôs o papado num caminho mais próximo de Cristo? AReforma. Foram homens devotados, como o destroçado Lutero, que levou cebolas paraRoma e de lá voltou com alhos, foi o protesto de cristãos sérios, a maioria protestantes,que finalmente obrigaram Roma a arrepiar caminho. Nessa altura o mal para a unidadedos cristãos já estava feito. E continuou até hoje, como está à vista de toda a gente.

Isto não se encontra nos sermões, nem nas encíclicas papais, nem no CatecismoCatólico. Esta a razão por que muitos católicos, incluindo prelados do Vaticano, tendem

Page 10: Vigde cristo

10

a presumir que o papa tem sempre razão e portanto tem de ser cegamente obedecido.De facto, é muito perigoso para os católicos escutar os papas que não escutam a Igreja.Este livro pergunta: não poderão os papas modernos, como Paulo VI e João Paulo II,errar da mesma maneira que os seus antecessores que obrigaram católicos leais aaceitar a Inquisição, a venda de indulgências, os guetos para os Judeus, a fogueira paraas bruxas? E se não podem, por que é que não podem?

Muitos apreciadores deste livro concluíram: «Nós temos sorte por o papado já se terreformado». Discordo. O poder absoluto investido nos papas desde 1870 levou Roma adoutrinar com fundamento no papado. Esse mesmo poder absoluto fez com que, aoinvés de acabarem, os crimes papais se multiplicassem.

Consideremos a actual condenação da contracepção, contrária à crença quaseuniversal da Igreja. Isto constitui uma moderna heresia papal. A comunidade mundialestá a crescer um bilião em cada doze anos. A população cresce mais num ano do quecresceu nos quinze séculos que se seguiram à morte de Cristo. O diálogo morreu. JoãoPaulo proibiu mesmo os bispos de discutirem a contracepção. Em África e na Américado Sul esta cruzada papal levou a mais campos de concentração de miséria, a maisabortos provocados e, devido à pandemia da SIDA, a mais mortes do que em qualqueroutra época da história do Cristianismo.

As mulheres católicas em particular andam perturbadas. Os papas insultam-nascom cortesia requintada assegurando-lhes que a sua contribuição é indispensável emtoda a parte, menos na Igreja. São filhas de um Deus menor.

O maior escândalo da Igreja Católica desde a Reforma é o abuso sexual decrianças por parte do clero. Estranhamente, não houve da parte de João Paulo II, umhomem nobre e bom, uma palavra de condenação. Entretanto, os seus ataques àcontracepção saltavam como o sal do saleiro.

O verdadeiro mistério da história papal não é o facto de os homens mauscometerem más acções. É sim o de os homens bons cometerem más acções e de osmelhores homens cometerem as piores de todas acções. Edward Gibbon disse: «Osvícios do clero são muito menos perigosos do que as suas virtudes». A frase de LordActon «O poder absoluto corrompe absolutamente» serviu de guia às minhasinvestigações para este livro. Pouca gente sabe como essa frase termina: «Os grandeshomens são quase sempre perversos. Não há maior heresia do que aquela em que ogabinete santifica o seu detentor». O amor do poder sempre há-de destruir o poder doamor.

A Igreja Católica entra no terceiro milénio com uma moral do século XIX e umaestrutura medieval baseada no absolutismo papal e um clero masculino celibatário. Nãoadmira que noventa por cento dos católicos modernos discordem do papa em questões-chave como a contracepção, o divórcio, o celibato do clero, as mulheres no sacerdócioe o aborto.

A minha esperança é que este livro encoraje os católicos, clero e leigos, a exigiruma voz num terceiro Concílio Vaticano. Sem isso, não há a mínima possibilidade de aIgreja se reformar e enfrentar um futuro desconhecido mas excitante.

Page 11: Vigde cristo

Os Vigários de Cristo

Page 12: Vigde cristo
Page 13: Vigde cristo

13

Prólogo

O Grande Encobrimento

Facilmente se pode considerar o maior encobrimento da história. Dura há séculos,tendo sacrificado, primeiro, milhares e depois milhões de vidas. Embora perfeitamentevisível, ninguém parece ter reparado nele. Inconscientemente, muitos artistas, grandese menos grandes, contribuíram para ele. E a camuflagem tem apenas o tamanho de umpequeno pedaço de pano — aquele pano que cobre o ventre de Jesus Cristocrucificado.

No princípio, a cruz nunca era representada na arte ou na escultura. Enquanto Jesusfoi adorado pelo seu despojamento e a cruz era o centro da fé, ninguém se atreveu arepresentá-lo na sua extrema humilhação.

Diz-se que os exércitos de Constantino ostentavam a cruz nas suas insígnias. Istonão era bem assim. O escudo e o estandarte tinham as duas primeiras letras do nomegrego de Cristo, , fundidas assim: .. Só quando a memória dos milhares quemorreram crucificados por todo o mundo romano se desvaneceu é que os cristãos sesentiram livres para representar a cruz como símbolo da paixão de Cristo. Era uma cruzvazia. Quem é que se atrevia a recrucificar Cristo?

Mais tarde, este simples símbolo da sua vitória sobre as forças do mal começou aparecer demasiado austero. Os artista do século V começaram a pintar uma cruz comum cordeiro junto a ela, porque Jesus era «o Cordeiro de Deus» sacrificado pelospecados do mundo. Depois, com crescente ousadia, começaram a pintar um Jesusjunto da cruz. Só nos fins do século VI, e apenas com duas excepções, é que ele foirepresentado mesmo na cruz. E ainda assim, o artista não se atreveu a reproduzir a dore a humilhação. Jesus estava envolto numa comprida túnica e só as mãos e os pésestavam nus para mostrar de maneira estilizada os pregos que o prendiam à madeira.Era uma imagem de triunfo, ele não estava a sofrer e a morrer, mas a reinar, de olhosabertos e por vezes coroado, no trono da cruz. A primeira representação grega deJesus em sofrimento na cruz, do século X, foi condenada por Roma como blasfema.Mas a Igreja de Roma depressa se rendeu ao seu fascínio.

Com Jesus cada vez mais longínquo e com a teologia medieval cada vez mais seca emais escolástica, a devoção exigia um Cristo mais humano: um homem que se pudessever e quase tocar, um homem com as provações e sofrimentos por que eles própriospassavam em cada dia das suas vidas curtas e sofridas. Os artistas agorarepresentavam livremente Cristo em agonia na cruz; feridas profundas e sangue, agoniaem cada membro, abandono no olhar. Reduziram-lhe as vestes para inculcar no espíritodos fiéis a dimensão da humilhação do Senhor.

E por aí se ficaram: uma tanga. Se o artista tivesse ido mais longe, quem teria tido acoragem de olhar Cristo tal como ele estava: nu como um escravo?

O que deteve a mão do artista não foi o decoro mas a teologia. A culpa não foi dosartistas. Afinal, como é que eles podiam perceber que o sofrimento do Cristorecrucificado, sem a verdade última que só a nudez integral consegue revelar, levaria auma catástrofe? Ao conceder a Jesus os farrapos finais da decência, aquela tangaretirou-lhe a condição de judeu. Cobriu-lhe literalmente a dignidade e tornou-o um não-judeu honorário. Porque o que aquilo escondia não era apenas o sexo mas aquela

Page 14: Vigde cristo

14

cicatriz na sua carne, a circuncisão, que mostrava que ele era judeu. Era isso o que oscristãos receavam ver.

Nas crucificações de Rafael e Rubens, e mesmo nas de Bosch e Grünwald, a tangatorna-se ornamental; ela cai decorosamente em pregas. Na crucificação Colmar deGrünwald, diz Husmans, Jesus está curvado em arco; o corpo torturado brilhapalidamente, polvilhado de sangue, eriçado de espinhos como a casca da castanha daÍndia. Foi isto, parece o artista dizer, o que o pecado fez a… quem?

A Deus, é a resposta da teologia. Isto é a morte de Deus. Quanto mais intensa for aagonia, quanto menos a Sua glória transparecer, mais aterradora ela é. «Deus morreuno Calvário». Isto parece boa teologia. Poderia ter sido, não fora aquele pedaço depano. Porque, parece o artista dizer, alguém é responsável por aquilo que fizeram aDeus. Mas quem?

Uma leitura superficial do Evangelho Segundo S. Mateus dá a resposta: os Judeus.Eles gritaram a Pilatos: «Crucifica-o. Que o seu sangue caia sobre nós e sobre osnossos filhos». A palavra de Deus parece culpar os judeus contemporâneos de Jesus eseus descendentes pela Morte de Deus. Os Judeus são, portanto, deicidas. Uma gotadaquele Sangue salvaria um milhar de mundos; os judeus derramaram-no todo. Paraeles, o Sangue não é a salvação, mas antes uma eterna maldição. Com a suadescrença, os judeus continuam a matar Deus. Tendo assassinado Cristo, sendoculpados do maior crime que se pode imaginar, eles eram certamente capazes de tudo.É esta a calúnia. É esta a grande heresia. Por via disto, as estórias de rituais de judeusa assassinarem crianças cristãs e a beberem o seu sangue enquadravam-se no padrãoestabelecido pelo Crime da Morte de Deus. Essas falsidades ainda circulam por aí.

Sem o encobrimento, sem aquele pedaço de pano, teria sido evidente para toda agente que o que se passou no Calvário foi também o assassinato de um judeu. Deusera judeu. Não era tanto o facto de os Judeus matarem Deus, mas o de um judeuderramar o seu sangue pelo pecado do mundo. Teriam os cristãos ao longo dos séculosinstituído pogroms contra os Judeus em nome da Cruz se nela Jesus ostentasse amarca da circuncisão? Teria um judeu autorizado o massacre de Judeus? Não serianatural que Jesus estivesse presente em todos os pogroms a dizer: «Por que meperseguis? Porque o que fazeis ao mais humilde dos meus irmãos, fazei-lo a mim»?

Esse encobrimento, agora com quase vinte séculos, não foi perpetrado por uma seitadissidente, mas pela linha principal da Cristandade, pela Santa Igreja CatólicaApostólica Romana. Nenhuma outra doutrina foi ensinada mais universalmente, commenos reservas — mais infalivelmente, em termos católicos — do que a que reza que«Os Judeus são malditos por matarem Deus», uma acusação ainda não retiradaoficialmente. Numa reviravolta bizarra, os Judeus, donde proveio o Salvador, foram osúnicos culpados pela sua morte. Não foi Jesus que foi recrucificado, mas a raça dondeele proveio.

No Terceiro e Quarto Concílios de Latrão (1179 e 1215), a Igreja codificou todas asleis anteriores contra os Judeus. Eles tinham de usar um distintivo da vergonha. NaInglaterra era cor de açafrão, e com o alegado formato das tábuas de Moisés. NaFrança e na Alemanha era amarelo e redondo. Na Itália o distintivo era um chapéuvermelho, até que um prelado romano míope tomou um judeu por um cardeal e a cor foimudada para o amarelo. Aos Judeus era proibido todo o contacto com cristãos, aadministração estava-lhes vedada e as suas terras eram-lhes confiscadas, não podiamser proprietários de lojas e eram arrebanhados para guetos que à noite eram fechados.Nenhum outro sistema de apartheid foi imposto com tanto rigor. Por se recusarem anegar a sua fé ancestral e a converterem-se ao Cristianismo, os Judeus foramenxotados de terra para terra. Um papa deu-lhes um mês para abandonarem as suas

Page 15: Vigde cristo

15

casas na Itália, deixando-lhes apenas dois locais de refúgio. Durante as Cruzadas, elesforam chacinados aos milhares por devoção a Cristo. Um judeu que pusesse o nariz defora na Sexta-feira Santa estava virtualmente a cometer um suicídio, isto apesar de oHomem na Cruz ter um nariz judeu. Assim, ao longo dos séculos foram milhões os quesofreram e morreram. Uma arte deficiente e uma teologia desastrosa prepararam ocaminho para Hitler e a sua «solução final».

Para começar, na Alemanha Nazi pintavam estrelas nas casas e lojas de judeus; erao sinal de que podiam ser destruídas e pilhadas. As cidades gabavam-se, tal comotinham feito nos tempos medievais, de estarem Judenrein, livres da contaminação judia.Muito tipicamente, nos arredores da aldeia de Oberstdorf havia umas alminhas à bordada estrada com um crucifixo. Sobre a cabeça de Jesus estava a inscrição INLI («Jesusda Nazaré, Rei dos Judeus»). Em primeiro plano lia-se um aviso: «Juden sind hier nichterschwüncht» — «Os judeus não são benvindos aqui.»

Em 1936, o Bispo Berning de Osnabrüch esteve a falar com o Führer durante mais deuma hora. Hitler assegurou a Sua Reverência que não havia qualquer diferençafundamental entre o Nacional Socialismo e a Igreja Católica. Não é verdade,argumentava ele, que a Igreja tinha considerado os Judeus como parasitas e os tinhafechado em guetos? «Eu só estou a fazer» gabava-se ele «o que a Igreja fez durantemil e quinhentos anos, só que com mais eficácia». Sendo ele próprio católico, disse elea Berning, «admirava e queria promover a Cristandade».

Parece que nunca lhe ocorreu a ele, Hitler, que Jesus, a quem ele se referiu em MeinKampf como «o Grande Fundador deste novo credo» e o flagelo dos Judeus, era elepróprio judeu; e se de facto nunca lhe ocorreu, por que não? A partir de Setembro de1941, todos os judeus do Reich com mais de seis anos tinham que usar em público, emsinal de vergonha, a Estrela de David. Por que é que Hitler não obrigou a que na tangade todos os Cristos crucificados em exposição no Reich fosse afixada essa mesmaEstrela de David? Teria ele sido tão veemente a promover a sua qualidade de cristão sesó uma vez que fosse tivesse visto Cristo crucificado exactamente como ele era?Suponhamos que Jesus aparecia nu em todas as cruzes da Alemanha? Teriam osbispos alemães e Pio XII mantido o silêncio durante tanto tempo se tivessem o seuSenhor crucificado sem a tanga?

Apesar da crueldade cristã, que em certa medida preparou o Holocausto, algunscatólicos continuam a dizer que a sua Igreja nunca pecou.

Quinze anos depois de os portões de Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau,Ravensbruch e Treblinka terem sido misericordiosamente abertos, um papa, João XXIII,como que para confundir os críticos que dizem que o papado nunca muda, compôs estanotável oração: «A marca de Caim está-nos estampada na testa. Ao longo dos séculos,o nosso irmão Abel tem estado banhado em sangue que nós derramámos e temchorado as lágrimas que nós provocámos ao esquecer o Vosso amor. Perdoai-nos,Senhor, pela maldição que nós erradamente atribuímos ao seu nome de Judeus.Perdoai-nos por Vos crucificarmos pela segunda vez na sua carne. Porque nós nãosabíamos o que fazíamos.»

Foi uma expiação por mais de uma centena de documentos publicados pela Igrejaentre os séculos sexto e vinte. Não há um único decreto conciliar, encíclica papal, Bulaou directiva pastoral que sugira que o mandamento de Jesus «Ama o próximo como a timesmo» se aplicava aos Judeus. Contra toda esta tradição, João o Bom apontou amarca de Cain na sua própria testa. Ele aceitou a culpa da Igreja de derramar sanguejudeu ao longo dos séculos, de acusá-los de serem amaldiçoados por Deus. E aindamais comovidamente, afirma que a perseguição dos católicos aos judeus resultou na

Page 16: Vigde cristo

16

segunda crucificação de Jesus na carne do seu próprio povo. O papa, representante deuma igreja sagrada e infalível, pediu perdão por estes terríveis pecados e erros. A nossaúnica desculpa, disse ele, foi a ignorância.

Antes de se tornar Sumo Pontífice, João já tinha sido delegado apostólico para aTurquia e Grécia, quando Hitler subiu ao poder. Emitiu certificados de baptismo falsospara quatro mil judeus para eles poderem afirmar-se como cristãos e assim escaparemao Holocausto. Quando a guerra acabou e ele foi nomeado núncio em Paris, foi a umcinema ver as primeiras imagens dos sobreviventes do campo de morte de Belsen. Saiuem lágrimas dizendo, «Isto é o Corpo Místico de Cristo». Foi talvez esta traumáticaexperiência que fez com que ele fosse o primeiro papa a ver Jesus na cruz sem o panoà volta da cintura.

O Papa João não teve qualquer dificuldade em reconhecer que a Igreja errou. Erroudesastrosamente — e errou ao longo de muitos séculos. Foi um dos raros pontíficesque viram que o único caminho da Igreja era encarar sem medo o próprio passado, pormuito pouco cristão que ele pudesse ter sido. Quase um quarto de século depois da suamorte, ainda há alguns crentes que insistem que a Igreja deve ter sido sempre aquiloque é hoje — a despeito das provas irrefutáveis em contrário. Esses, que são milhões,acham que não é fácil aceitar que a Igreja Cristã, a Igreja de Roma, inspirada porpapas, muitos deles canonizados, tenha sido tão cruel. Nem que pontífices apóspontífices tenham quase invertido o texto das Escrituras que diz «Vale mais um homemmorrer por amor do povo» que passou a ler-se, «Vale mais um povo sofrer por amor deum homem». Há, tragicamente, um inegável elo entre o fogo, as cruzes, a legislaçãopapal, os pogroms — e as câmaras de gás e os fornos crematórios dos campos demorte nazis.

Há outras matérias vitais nas áreas do poder, da verdade e do amor sobre as quais aIgreja errou desastrosamente século após século. O Concílio Vaticano II convocadopelo Papa João em 1962 começou a aceitar isto. De uma maneira revolucionária, João,o Sumo Pontífice, tornou-se o Advogado do Diabo da própria Igreja.

No processo de canonização, o Advogado do Diabo tem um papel central, porque asantidade de um candidato a santo tem de ser sujeita ao mais intenso escrutínio. Écomo se a Igreja deixasse Satanás completamente livre para atirar sobre a memória dosanto toda a sujidade que possa encontrar — para ver se alguma cola. Só então é queesse homem, essa mulher ou essa criança serão dignos de veneração pública. Claroque o Advogado do Diabo é, na realidade, o defensor da Igreja.

Quando o Papa João disse que a Igreja precisa de constantes reformas, pareciasugerir que precisa de um Advogado do Diabo permanente. Como historiador que era,ele sabia que a Igreja tinha causado muitos danos. Como ser humano afectuoso eindulgente, sabia que qualquer outra instituição que durasse tanto tempo e tivesse tantopoder teria provavelmente feito muitíssimo mais mal e muitíssimo menos bem.Finalmente, ele deixou atrás de si a clara impressão de que o mal feito pela sua Igrejanão deve ser escamoteado, nem a história falsificada.

Page 17: Vigde cristo

Primeira Parte

O Poder

«Todo o poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente»

Lord Acton, em carta ao Bispo Mandell Creighton, 1887

Page 18: Vigde cristo
Page 19: Vigde cristo

19

1Do Calvário ao Vaticano

Nesta grande festividade de Pedro e Paulo, o dia vinte e nove de Junho, vieramtodos, novos e velhos, pecadores e santos, de todos os cantos do mundo, para estaremcom o Bispo de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor dos Apóstolos, Sumo Pontífice daIgreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo e Metropolita daProvíncia de Roma, Chefe de Estado da Cidade do Vaticano e Servidor dos servidoresde Deus, o Papa João Paulo II. Alguns peregrinos vêm vestidos em tons escuros, outroscom vistosos trajos folclóricos das suas terras. Há também turistas entre eles, mas amaioria são peregrinos. Uma visita a Roma e assistir a uma missa papal são arealização de uma ambição de uma vida.

Antes do amanhecer, começaram a sair da colmeia que Roma é. Emergiram doscaros hotéis de luxo da Via Veneto, de tranquilos conventos e pensões baratas.

Na sua curta viagem passaram por vivendas a cair, palácios renascentistas cujasenormes portas tachonadas dão a impressão de que os seus donos se estão a prepararpara uma nova invasão de Godos e Vândalos. Atravessam piazzas com fontes aborbulhar, mal identificando as quatrocentas igrejas de Roma, muitas das quais só seencontram abertas um dia por ano, o dia da sua festividade. Atravessam o Tibre, quedurante séculos serviu à cidade simultaneamente de esgoto e de cemitério. O Tibrecontabilizou provavelmente mais mortes do que qualquer outro rio fora da China; numsó dia morreram lá milhares afogados. Esta manhã corre devagar e está acastanhadocomo o hábito dos franciscanos.

Finalmente, os peregrinos chegaram à Via della Conciliazione, de cujo extremo sedesfruta uma das vistas mais impressivas do mundo. À luz trémula do calor de verão, acúpula da Basílica de S.Pedro parece flutuar no espaço. Miguel Ângelo, que adesenhou, exprimiu, mais do que qualquer papa, a força maciça e pertinaz da maiorinstituição que o mundo alguma vez conheceu. Ela preservou a velha herança. Deu àshordas bárbaras uma nova religião e uma lei. Criou a Europa, dando a povos diversosuma lealdade e um destino que ultrapassam todas as fronteiras. Como disse LordMacauley há mais de um século, ao reflectir sobre a Igreja de Roma:

Já era grande e respeitada antes de os saxões porem o pé na Grã-Bretanha, e de os franceses passarem o Reno, quando a eloquênciagrega ainda florescia em Antióquia, quando em Meca ainda seadoravam os ídolos. E talvez ainda exista com o mesmo vigorquando um qualquer viajante da Nova Zelândia, no meio de vastasolidão, tomar posição num arco quebrado da Ponte de Londrespara fazer um esboço das ruínas da Catedral de S. Paulo.

Enquanto entram na Praça de S. Pedro, rodeada pela pavorosa arcada de Bernini, osfiéis observam a janela do terceiro andar do palácio apostólico de onde o papa, aosdomingos ao meio-dia, abençoa a multidão. Poucos sabem como o palácio é vasto.Quando um envelhecido Leão XIII queria dar um passeio pelos jardins do Vaticano,sentava-se numa pequena cadeira no seu gabinete. Depois os criados levavam-no por

Page 20: Vigde cristo

20

uma escada de caracol, ao longo de um labirinto de corredores, através de salas egalerias cheias de alguns dos maiores tesouros do mundo, num percurso de mais dequilómetro e meio dentro do palácio para chegar até uma carruagem puxada a cavalos.

Quarenta anos depois da morte de Leão XIII o Vaticano foi profanado. As únicasbombas lançadas sobre a cidade eram de fabrico britânico. Numa noite sem lua, durantea Segunda Guerra Mundial, um avião alemão lançou quatro bombas capturadas emTobruk, para fazer crer que os Aliados tinham atacado o mais sagrado santuáriocatólico.

Embora o Vaticano tenha apenas o tamanho de um campo de golfe, os peregrinosficam esmagados diante da extensão daquilo que os circunda. No centro da praça está oobelisco de Calígula de 322 toneladas e 40 metros de altura, que originalmente seencontrava no circo de Nero junto do local onde S.Pedro foi crucificado. Estemonumento fá-los lembrar que estão em solo sagrado.

Subindo os degraus de pedra, chegam ao pórtico. É também enorme e cheio dehistória. À direita fica a Porta Santa, agora selada, uma vez que este não é Ano deJubileu. Por cima do arco central, está uma representação do Navicella, o frágil barco deS.Pedro que resistiu às intempéries dos tempos. Este fragmento de mosaico, quesobreviveu à demolição da primeira Basílica de S.Pedro, foi obra de Giotto, o artista doséculo XIII que impressionou o papa reinante por ser capaz de desenhar um círculoperfeito à mão livre. Em frente da porta central, está colocado um disco porfitírico queassinala o local onde Carlos Magno, no dia de Natal de 800, depois de subir os degrausde joelhos, beijando cada um deles, ajoelhou e recebeu de Leão III a coroa do SacroImpério Romano.

Afastando as pesadas cortinas de couro, os fiéis entram na basílica. Mesmo num diacinzento, uma luz dourada escorre das altas janelas. O chão de mármore de váriascores cobre uma extensão de 24.000 metros quadrados. A nave tem 182 metros decomprimento e 24 de largura, e no topo, mais altas do que qualquer palácio de Roma,erguem-se as colunas espiraladas de Bernini.

As colunas coríntias, ornamentadas neste dia das festividades dos Apóstolos decolgaduras no vermelho do martírio, sustentam uma abóbada amarela de 40 metros dealtura. As pias de água benta são do tamanho de banheiras e os anjos sobre elas têm1,80 metros de altura. Para a esquerda e direita há estátuas gigantescas e capelas dotamanho de igrejas. A mais apreciada obra de Miguel Ângelo, a Pietà, que ele esculpiuquando tinha vinte e cinco anos e que é a única que tem o seu nome, ergue-se pordetrás de um vidro protector. Há túmulos de papas a que os escultores deram anos dassuas vidas. Chateaubriand, o escritor francês que viveu a Revolução, anotou nas suasMemoires que em Roma há mais túmulos do que cadáveres; e imagina os esqueletos amudar de um túmulo de mármore para outro para se manterem frescos, tal como umdoente se mudaria de uma cama para outra mais confortável.

No topo da nave lateral esquerda há um altar sob o qual jaz o corpo do Papa Leão oGrande. Um dos mais nobres papas, ele foi o primeiro a ser sepultado na Basílica deS.Pedro no ano de 688. A partir de então instalou-se o costume de construir mais do queum altar nos locais de oração. Agora, a Basílica de S.Pedro, mais do que qualquer outraigreja do mundo cristão, está cheia de altares.

No topo da abside encontra-se a gigantesca Cadeira de S.Pedro, de bronze dourado,sustentada por efígies de quatro Doutores da Igreja.

A decoração cobre uma vulgar cadeirinha, tipo liteira, que data pelo menos do séculoII. Este é provavelmente o mais antigo dos tronos. A “Cadeira dentro da Cadeira” foivista pela última vez na Festividade dos Apóstolos em 1867. O que se viu foi uma peça

Page 21: Vigde cristo

21

de carvalho gasta e lascada com retalhos de madeira de acácia e enfeitada com figurasde marfim, algumas de cabeça para baixo.

Dando uma volta para a direita, da abside para a nave, os peregrinos chegam àfamosa estátua de bronze de S.Pedro. Nesta altura, na festa dos santos, ela estáparamentada com um manto de brocado dourado e coroada com uma tiara enfeitada dejóias. A superfície do pé direito estendido está gasta e macia dos beijos de todos osoutros peregrinos que os antecederam. É uma lembrança de tempos bastante recentesem que o papa nas audiências era obrigado a pôr o pé numa almofada própria para osvisitantes o beijarem.

Em 26 de Setembro de 1967, Paulo VI, já com a morte espelhada no rosto, veio aqui,qual passarinho condenado, antes da abertura do primeiro Sínodo dos Bispos. Colocouuma vela acesa no chão e depois, envolto numa nuvem de incenso, inclinou-se parabeijar o pé da estátua. Muitos pontífices devem certamente ter feito o mesmo, vindo orarna Vigília de Pedro e Paulo no santuário do Príncipe dos Apóstolos.

* * *

Na capela do Abençoado Sacramento, prepara-se a procissão papal. A viagem deJoão Paulo foi a mais curta de todas; veio apenas do seu gabinete no terceiro andar dopalácio. Contudo, em muitos aspectos, ele viajou mais nos últimos minutos do quequalquer outra pessoa. Deixou os assuntos de Estado, os problemas da Cidade doVaticano, e assumiu o papel de que mais gosta: o de chefe da Igreja. Por momentos,pode incluir as preocupações da igreja nas suas orações. Ninguém melhor do que elesabe que entre aquela multidão ali reunida e de que ouve murmúrios há muitosmembros do seu rebanho que andam desorientados. Os padres andam em conflito comos seus bispos, as freiras com as madres superioras; os leigos andam mais do quenunca activos contra os ensinamentos morais da Igreja. Nenhum papa foi tão adulado etão pouco obedecido. Nestes tempos tão sagrados, ele concentra-se no seu papel dePastor da Igreja Universal.

Os membros do seu séquito multicor — prelados, camareiros, príncipes da igreja,Guardas Suíços — atarefam-se a compor a procissão pela ordem que o protocoloestabelece, fazendo os ajustes finais nos seus uniformes. Paulo VI acabou com toda aagitação de penas, aparato militar, armas desembainhadas. Mas as armas estão lá namesma. Diferentemente de qualquer outro papa, à volta do Papa João Paulo andam osmembros vestidos de azul do Ufficio centrale di vigilanza. Eles constituem o corpo desegurança efectivo da pequena cidade-estado. Não só andam armados como tambémtêm ordens para atirar a matar no caso de a vida do papa estar em perigo. Os walky-talkies, sob os casacos, estão ligados aos quartéis-generais da polícia da cidade deRoma e às repartições da Digos, a brigada anti-terrorista italiana. Na linguagem dasegurança, o papa é irreverentemente referido como “Il Bersaglio“ (“O Alvo”).

Finalmente, ao som de trombetas, o pontífice avança a passos largos pela naveabençoando a multidão de pescoço estendido. Os fiéis não reparam nos bispos vestidosde branco, nos cardeais geminados ou nos monsenhores vestidos de púrpura. Só têmolhos para o papa com o solidéu branco, o homem que chefia uma igreja de quase umbilião de fiéis, 4000 bispos, 400000 padres e um milhão de freiras.

Embora estejam alegres na basílica, embora ajoelhem e batam palmas e desfaleçame mesmo as freiras de mais idade esqueçam pela primeira vez em anos as suasinibições, todos eles sentem que ele está concentrado no Outro, no Deus que elerepresenta na terra e a única entidade a quem tem de prestar contas. O papa não énenhum ídolo pop, mas o vigário de Cristo, e, logo abaixo de Cristo, essencial para a

Page 22: Vigde cristo

22

salvação. No meio de ondas e mais ondas de adulação, flashes e o coro da CapelaSistina que mal se ouve a cantar Tu es Petrus, «Tu és Pedro», o papa chega ao altar-mor. O seu séquito dispersa-se tomando os seus lugares em cadeiras menores. Oshomens da segurança desaparecem nas capelas laterais. O papa está agora só, emtodos os sentidos. Sempre assim foi com os pontífices romanos, mas nenhum estevejamais tão só e vulnerável como João Paulo II.

Nas listas do Vaticano ele é considerado como o 263º pontífice, mas o número nãoestá correcto. Houve alturas em que ninguém sabia quem era o papa de direito de entrediversos reclamantes. Além disso, só no ano de 1073 é que o Papa Gregório VI proibiuos católicos de chamarem papa a alguém para além do Bispo de Roma. Antes disso,muitos bispos eram carinhosamente chamados de «papa» ou «papá». Mesmo o título«Bispo de Roma» tem hoje um peso dignitário que nem sempre teve. Um chefe ouadministrador de uma inicialmente pequena comunidade cristã dificilmente se podecomparar com um bispo moderno em poder e jurisdição. Muitas outras coisas estãotambém longe de estar claras.

Por exemplo, quanto tempo é que Pedro viveu em Roma? Há um relato de fins doséculo IV segundo o qual ele teria lá vivido durante vinte e cinco anos, mas não háqualquer fundamento histórico para isto. O que se sabe é que cerca do ano 58, Paulo oApóstolo escreveu mais uma das suas cartas, desta vez aos romanos. Nela saudavafamílias inteiras e mencionava vinte e nove pessoas individualmente pelo nome. Masnão saudava Pedro. Isto seria certamente uma omissão surpreendente se Pedro láestivesse a residir e fosse o Bispo de Roma. E mais, Eusébio de Cesareia, reconhecidocomo o Pai da História da Igreja, ao escrever sobre o ano de 300, dizia: «Diz-se quePedro pregou aos Judeus por todas as terras de Pôncio, Galateia, Bithnya, Capadócia eque, para o fim dos seus dias, detendo-se em Roma, foi crucificado».

Hoje, os historiadores dizem que Pedro teria vivido em Roma durante três ou quatroanos no máximo. Não há qualquer testemunho que indique que ele tivesse chefiadoaquela comunidade. Isso não pode ter sido automático. Ele nem sequer tinha sido bispoem Jerusalém depois da morte de Jesus. Jaime, irmão do Senhor, é que o foi. Depois háeste facto surpreendente: nas primeiras listas de bispos de Roma o nome de Pedronunca apareceu. Por exemplo, Ireneu, Bispo de Lyons de 178 a 200, foi discípulo dePolicarpo, Bispo de Esmirna, que foi por sua vez discípulo de Paulo o Apóstolo. Eleenumerou todos os bispos de Roma até ao décimo segundo, Eleutério. Segundo Ireneu,o primeiro bispo de Roma não foi Pedro nem Paulo, mas Lino. A Constituição Apostólicade 270 também mencionava Lino como o primeiro bispo de Roma, nomeado porS.Paulo. Depois de Lino foi Clemente, escolhido por Pedro. O mistério adensa-se. Emtodos os seus escritos, Eusébio nem uma só vez fala de Pedro como Bispo de Roma.

Como é que isto se pode explicar? Parece que no espírito dos primeiroscomentadores cristãos os apóstolos constituíam uma classe à parte. Não pertenciam anenhuma igreja em particular, nem mesmo quando eles a «plantavam», isto é, quando afundavam, como Paulo fez por toda a Ásia Menor. Os apóstolos pertenciam a toda aIgreja. Ser apóstolo impossibilitava um homem de ser bispo de um só lugar. TambémPedro, fossem quais fossem as momentosas decisões que tomou em Jerusalém,Antióquia ou fosse onde fosse, continuava a ser um apóstolo de toda a comunidade. AIgreja Católica considerou uma questão de fé que os papas fossem os sucessores dePedro como Bispo de Roma. Mas Pedro nunca teve esse título; apenas lhe foi atribuídoalguns séculos depois da sua morte. Naturalmente que ele deve ter tido uma enormeautoridade moral na comunidade judaico-cristã de Roma, mas ao contrário de Paulo,que era um cidadão romano, deve ter sido considerado estrangeiro. Quase dois mil anos

Page 23: Vigde cristo

23

mais tarde, outro estrangeiro, um homem de um país distante, senta-se naquilo a que sechama a Cadeira de Pedro, enquanto a toada de um motete de Palestrina se eleva nacúpula.

* * *

Já se passaram quase dez anos desde que Karol Wojtyla de Cracóvia se tornoupontífice quando o primeiro João Paulo morreu, muito chorado, depois de trinta e trêsdias de reinado. Depois da eleição, Albino Luciani apareceu na galeria da Basílica deS.Pedro e em poucos segundos sorriu mais do que o seu antecessor Paulo VI emquinze anos, e depois, profeticamente, sem dirigir uma só palavra à multidão,desapareceu nas sombras do Vaticano.

Diz a anedota, em Roma, que a mais velha, a mais secreta e a mais poderosa dasinstituições é a Sagrada Congregação para a Disseminação de Boatos. Acredita-se emalguma coisa na Cidade Eterna que não seja dito num sussurro? Correu o boato de queJoão Paulo I tinha sido envenenado. Coisas deste tipo sempre se disseram duranteséculos quando um pontífice adoecia e morria subitamente. Muitos destes boatos eramfalsos. Mas nem todos.

No dia 27 de Julho de 1304, ao fim de nove meses de reinado, Benedito XI estava emPerugia quando um jovem disfarçado de irmã da Ordem de S.Petronilla se apresentou aSua Santidade com uma salva de prata cheia de figos. «É um presente da MadreAbadessa,» murmurou a recatada “irmã“. Toda a gente sabia que Benedito tinha umapaixão pelos figos. Poucos dias depois, era enterrado.

Fosse este ou aquele boato verdadeiro ou não, o facto é que os papas eram sempreaconselhados a empregar um provador de vinhos e a inspeccionar os figos. Mas no casodo antecessor de João Paulo II onde está a prova? Uma autópsia teria esclarecido oassunto. E apesar das negações, provavelmente houve uma autópsia que o fez. Sobreassuntos destes o Vaticano mantém sempre os lábios bem cerrados.

No conclave que se seguiu à inesperada morte de Luciani em 1978, foi eleito KarolWojtyla. Quando foi entronizado parecia mais jovem do que os cinquenta e oito anos quetinha. Agora parece mais velho do que os sessenta e sete que tem. Os ombros estãomais arredondados. Está mais magro, tem as veias do pescoço salientes. Os olhosficaram mais estreitos traindo a sua origem eslava. Como o cabelo ficou para trás sob osolidéu, as orelhas tornaram-se proeminentes como quando era um rapaz.

Muitas coisas contribuíram para o envelhecer. As penosas viagens. O atentado contraa sua vida em 13 de Maio de 1981, que quase foi bem sucedido, tendo sido necessáriauma transfusão de seis quartilhos de sangue numa operação de cinco horas e meia. Ospapeis que se amontoam todos os dias sobre a sua secretária — «Para livrar o papa dequalquer maldade» como dizia um seu ajudante. E a Cúria. Um papa e os seusfuncionários sobrevivem, no melhor dos casos, num compromisso nada fácil. A Cúriatem em João Paulo um pontífice que a princípio nada sabia das suas artimanhas.

Os sussurros — outra vez essa poderosa Congregação — chegam até às suasinstalações. Os poucos prelados liberais que sobreviveram em Roma não gostam delepor causa daquilo a que eles chamam a sua intransigência.

Alguns conservadores da sua entourage nesta grande festividade dos Apóstolos sãotambém muito críticos. Aos seus olhos, João Paulo fez uma coisa que é quase umaheresia: desmitificou o papado. Fotografias nos meios de comunicação revelam um papamediático de sombrero, um papa de mãos dadas com jovens a balançar-se ao som demúsica rock, um papa na Austrália abraçado por um coala meio confundido. Porquê,perguntam estes conservadores, por que é que ele não se deixa estar no Vaticano

Page 24: Vigde cristo

24

mantendo um perfil de mistério e temor, como o velho Leão XIII, que foi suficientementesensato para olhar o mundo através de uma janela — uma janela fechada, ao contrário,acrescentam eles, daquele cripto-comunista João XXIII que abriu a janela e deixouentrar um furacão?

O papa está acima desse tipo de conversas. Tem os olhos bem fechados enquantoreza por todo o seu rebanho, não só por aqueles que estão reunidos em S.Pedro, mastambém por todos os que se encontram espalhados pelo mundo. Está convencido deque só a sua voz, a voz de Pedro, a voz de Cristo, é suficientemente forte para deter aprecipitação do mundo moderno no lago da morte. Fica aterrado perante a insensívelindiferença em relação aos vindouros. Fica consternado por a virgindade ser quase umpalavrão e a homosexualidade se ter tornado não apenas legal, mas romântica. Temeque mesmo os padres e as freiras estejam a perder a dedicação aos seus votos.Enquanto o Evangelho é lido por um diácono, ele sabe que é a Pedra, ele, pelo menos,tem de se manter firme. Os erros podem ser corrigidos, as tendências invertidas,bastando para isso que a sua fé não lhe falte.

Agora os seus olhos estão húmidos, a dor orla-lhe a boca. Nestes dias, a suaexpressão é triste mesmo quando, cada vez mais raramente, sorri, como se a tristeza dasua Polónia natal lhe tivesse inundado a alma. No memento de todas as missas elenunca deixa de mencionar os vivos e os mortos da sua pátria.

Como é polaco, nunca esperou ser papa. Nem mesmo quando foi feito cardeal em1964, nem quando Paulo VI o escolheu em 1976 para o retiro quaresmal da casa papalele alimentou esse pensamento. Isso era contra a corrente da história. Há quatroséculos e meio que o papado era italiano. Durante esse retiro quaresmal, Karol Wojtylaouviu o Papa Paulo em confissão e sem dúvida que fez os possíveis por fortalecer a suadeterminação, mas como é que ele podia imaginar que um dia viria a celebrar missasolene em S. Pedro como Sumo pontífice? Os seus antecedentes: operário fabril,alpinista, actor amador, resistente espiritual contra o nazismo e, mais tarde, contra ocomunismo, sonhador, poeta nas horas vagas. Um dos seus poemas, “O Operário daFábrica de Armamento”, começa assim: «Eu não posso influenciar o destino do mundo».

Os fiéis reunidos à sua frente, pelo contrário, pensam que a sua influência para o bemdo mundo é a maior. A sua integridade ilumina. Eis aqui um homem que não se podecomprar ou vender, um prelado à maneira de Thomas à Becket que preferiu morrer aceder nas exigências da igreja. Da sua figura, quando se dirige para o altar para iniciar amissa, irradia um sentido de majestade.

João Paulo é o último dos monarcas absolutos. Os católicos em S.Pedro, que agoraficaram em silêncio, não aceitariam outra coisa. Ele é o oráculo supremo, Senhor daIgreja, Vigário de Cristo. Para eles, ele possui o dom da infalibilidade, que é poucomenos do que divino. Conforta-os a ideia de saberem que de todos os religiosos naTerra — Judeus, Hindus, Protestantes, Budistas — Deus fala para eles uma linguagemespecial através de Sua Santidade. Dele flui a sua vida espiritual; como chefe da Igreja,ele é o laço que os une a Deus e uns aos outros. Muitos pensam, porém erradamente,que a sua fé deriva dele e que os bispos dele derivam o seu poder. Não são poucos osnão católicos em S.Pedro para esta missa festiva que também sentem que o Papa JoãoPaulo II é o melhor baluarte do mundo contra o comunismo ateu de Leste e o muitoespalhado e mais subtil ateísmo de um Ocidente secularizado.

O papa diz as palavras da missa em voz baixa mas clara. Cada gesto está de acordocom as rubricas do missal, porque ele sabe que se se afastar delas, os padres em todaa parte vão decidir fazer alterações da sua lavra. Enquanto ele prossegue, os fiéis nabasílica interrogam-se sobre como João Paulo se verá a si mesmo. Em certo sentido,não é difícil saber. Apesar das suas viagens, das suas intermináveis alocuções, mesmo

Page 25: Vigde cristo

25

depois do Vaticano II — talvez por causa do Vaticano II — ele compreende que estecerimonial em S.Pedro não é a verdade toda sobre a igreja que ele chefia. Quando párapara lembrar os vivos, o seu muito disperso rebanho, a sua oração é influenciada portodas aquelas estatísticas desanimadoras empilhadas sobre a sua secretária.

Os padres são a primeira preocupação do pontífice. Em 1971, uma fuga deinformação levou até à imprensa um estudo encomendado pela Sagrada Congregaçãopara a Fé. Revelava que entre 1963 e 1969 mais de 8000 padres tinham pedidodispensa dos seus votos e quase mais outros 3000 não tinham esperado pelapermissão. O estudo estimava que nos cinco anos seguintes 20000 abandonariam. Estecálculo veio a mostrar-se demasiado optimista.

O pior passava-se nos países em que os papas confiavam para fornecer missionários.A Holanda, por exemplo, costumava produzir mais de 300 padres por ano. Agora asordenações são lá quase tão raras como as montanhas. Na Irlanda, nos fins de 1987,havia 6000 padres e mais de 1000 ex-padres. Nos Estados Unidos da América, calcula-se que existam mais de 17000 ex-padres. A média de idades dos que ficaram ésurpreendentemente alta: 54 anos. Também o futuro parece negro. Nos últimos vinteanos, o número de seminaristas nos Estados Unidos caiu de 50000 para 12000.

O pontífice reza pelos leigos com as suas variadas preocupações. Reza pelospresentes e por aqueles que, por todo o mundo, começaram a desfilar a suadesobediência. Antes da sua viagem à América, em Setembro de 1987, deve ter lido asondagem da revista Time. Ela revelava que 93% dos católicos defendiam que «épossível discordar do papa e continuar a ser um bom católico». Mesmo na Irlanda, umasondagem da mesma altura mostrava que só um em cada três jovens concordava comele sobre a contracepção. Todos os indicadores apontam para uma comunidade mundialem retirada napoleónica. A igreja continua a ensinar, mas cada vez há menos pessoas aouvir.

A missa devia dar ao pontífice uma trégua nas preocupações e na sobrecarga dogoverno. Em certo sentido, ela aprofunda essas preocupações. Ele tem que deixar queJesus, cujo sacrifício vai comemorar, o alivie desses fardos. À medida que aconsagração se aproxima, talvez o espírito de João Paulo regresse ao passado, à suainfância em Wadowice quando ajudava no altar e aprendeu os responsos da missa emlatim. Nesses tempos, Catolicismo é que era a palavra do papa. É desanimador para eledescobrir que, agora que é o pontífice, em muitas matérias que considera cruciais estáem minoria.

Esta a razão por que nesta missa papal ele não vê os cardeais magníficos, quaisflamingos à sua volta, os prelados, como Ratzinger de Munique, de cabelo branco,Prefeito, desde 1982, da Congregação para a Fé, antigamente chamada de SantaInquisição. O papa também não dá pelas manchas vermelhas e purpúreas dos mantosprelatícios de todos os graus. Não se dá ao trabalho de olhar para as tribunas apinhadasde embaixadores, personagens reais obscuras e ainda mais obscuros príncipes eprincesas num esplendor de ouro e diamantes.

Ele não vê ninguém; e ninguém vê mais ninguém senão a ele.

«Este é o meu corpo». O papa pronuncia estas palavras com esmagadora devoção,tão cheio de temor religioso hoje como quando as pronunciou na sua primeira missa háquarenta anos. «Este é o meu sangue». Agora já não é o Vigário de Cristo mas o próprioCristo o centro de convergência da congregação silenciosa.

É assim em todas as missas, quer seja dita na mais humilde igreja de aldeia ou numabasílica como a de S.Pedro. Jesus Cristo é o Senhor; e o papa representa-o a ele e à

Page 26: Vigde cristo

26

sua autoridade doutrinal no mundo de hoje. Não tem a congregação razão em ver opapa como a pessoa mais livre e mais soberana do mundo?

A verdade é que o pontífice é um prisioneiro.A primeira consequência do absolutismo é que os que estão mais próximos da fonte

do poder inalam o mesmo ar do monarca. No caso do papa, há homens sem rosto,burocratas, em gabinetes escuros no Vaticano e imediações que providenciam para quea visão do papa corresponda à deles próprios. Fornecem-lhe informaçõesseleccionadas; escamoteiam tudo o que possa contradizer uma causa que eles desejampromover. Estes são os primeiros carcereiros do papa.

O Concílio Vaticano II, 1962-65, pretendia liberalizar a Igreja Romana. Mal acaboulogo os velhos burocratas tomaram o controle; e continuam no controle desde então,interpretando os decretos liberais de uma maneira iliberal.

Mesmo o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX em 1869 para o declarar infalível,recusou discutir os projectos de decretos redigidos pela Cúria. Eles não representavam,diziam os bispos, a fé da igreja, mas apenas uma escola teológica tendenciosa. Mas, nofim, os burocratas acabam sempre por vencer. Eles permanecem nos seus lugaresenquanto os homens de espírito mais liberal se dispersam. Os funcionários da Cúria,muitos dos quais estão presentes nesta missa, sempre detestaram os concílios porousarem ameaçar a sua infalibilidade. Como disse recentemente um bispo diocesanoamargurado: «A Cúria é um Concílio da Igreja em sessão permanente».

Apesar de toda a sua força aparente, João Paulo continua a assinar os documentospreparados pelos prelados do Santo Ofício ou da Secretaria de Estado. Alguém sugere-lhe que um determinado bispo da América do Norte não é muito ortodoxo, nainterpretação que a Cúria faz desta palavra. Não seria prudente mantê-lo sob vigilância?

Depois há aqueles volumosos dossiers do Santo Ofício sobre teólogos como Küng deTübigen ou Currant de Washington. E também sobre clérigos prometedores. Onde é queeste padre ou aquele monsenhor se situam em relação a Cristo, a Maria, à práticafrequente da confissão? Já alguma vez se mostraram flexíveis sobre a contracepção? Jáalguma vez tomaram parte em manifestações anti-nucleares? Revelaram simpatias porKarl Marx? Muitos clérigos empreendedores podem ser permanentemente retidos nassuas carreiras por uma simples insinuação. Muito do veneno da Cúria é administrado porvia auricular.

Pode-se dizer que neste aspecto o pontífice não é servido de maneira muito diferentede qualquer outro líder apanhado na teia da função pública. Só que o próprio papa temum exército de “observadores” a vigiá-lo a ele.

Um pontífice, mais do que qualquer outro monarca, está prisioneiro do passado. Acongregação pode ver sinais disto mesmo no vestuário do papa. Na mitra, no pálio, noAnel do Pescador. Não apenas a basílica em si mesma, as famosas relíquias quecontém; mesmo as peças de vestuário mostram que o pontífice está, ele próprio,prisioneiro da história. Mas a maioria das grilhetas está no espírito.

O pontífice nunca pode falar sem ter em atenção aquilo que os seus antecessoresdisseram sobre o mesmo assunto ou assunto relacionado. Em qualquer encíclica papal,por cada citação bíblica haverá provavelmente uma dúzia de referências a papasanteriores. Todos os pontífices conduzem com os olhos fixos no espelho retrovisor. Umpassado há muito morto, muitas vezes chamado de tradição, dita o caminho para ofuturo. Um papa morto é mais poderoso do que mil bispos vivos.

«Pax vobiscum», diz o papa. «A paz esteja convosco». Os membros da congregaçãoabraçam-se e passam este sinal de paz. Mas quem quer que carregue o fardo dainfalibilidade nem sempre pode ser um homem de paz; carrega também uma espada.Porque não pode, por suposta compaixão, nem uma única vez, cometer, ou correr o

Page 27: Vigde cristo

27

risco de cometer o mais ligeiro erro na doutrina ou na moral. Tem de ter o cuidado denão contradizer um pontífice de há sete ou dez séculos. Não admira que a sua Cúrianem sempre consiga fazer a distinção entre inovação e originalidade.

O Papa João Paulo, de olhos reverentemente fechados, recebe o corpo e o sanguede Cristo. Por toda a basílica surgem os padres de sobrepliz e estola para distribuírem acomunhão, o corpo de Cristo, aos fiéis. A própria Igreja é chamada de o corpo de Cristo.Ao receberem a comunhão, os fiéis ficam em contacto com o seu Senhor crucificado eressuscitado e com todos os seus irmãos cristãos, vivos e mortos. Aquela pequenahóstia liga-os sacramentalmente a toda a história da igreja.

Essa história foi boa e má, cheia de feitos heróicos e de crimes ignóbeis. O pontíficeestá prisioneiro mesmo desses crimes. Ele sabe que a Igreja foi responsável porperseguições aos Judeus, pela Inquisição, por chacinar hereges aos milhares, porreintroduzir a tortura na Europa como parte do processo judicial. Mas tem de ter cuidado.As doutrinas responsáveis por essas coisas terríveis ainda escoram a sua posição. Osmétodos podem diferir, os objectivos continuam os mesmos. Todo o mundo tem de serlevado a reconhecer Cristo e a sua Igreja. Governada e guiada pelo papa, a IgrejaCatólica tem a plenitude da verdade, da qual as outras religiões podem, quando muito,aproximar-se.

João Paulo, a rezar enquanto a comunhão é distribuída, não quer que as pessoaspensem que a compaixão é incompatível com a inflexibilidade em relação à verdade. Aliberdade de ensinar o que está mal, quanto a ele, é um erro. Como é que alguém podeter o direito de ensinar como verdadeiro aquilo que a Igreja diz que não é verdade ou éimoral? Tal como todos os pontífices, ele tem como certo que onde a Igreja é forte o seupoder deve ser usado para ilegalizar aquilo que ela condena. Pio IX, proclamado infalívelnesta mesma basílica em 1870, era bastante aberto a este respeito. Nos arquivos doForeign Office, em Londres, há uma carta classificada como “confidencial”. Era de OdoRussel, representante do governo britânico no Vaticano. Relatava o que o papa lhe dissenuma audiência: «Aquela liberdade de consciência e tolerância que aqui [em Roma]condeno, reivindico eu na Inglaterra e noutros países estrangeiros para a IgrejaCatólica». Pio IX estava apenas preocupado com um juízo político: suportaria a Igrejaperder ou ganhar por recusar aos outros a liberdade que exige para si própria?

Pio IX, tal como o actual pontífice, estava convencido de que a Igreja conseguiupermanecer doutrinariamente imutável através dos tempos. Os fiéis em S.Pedropartilham essa convicção, acreditando que o papado é que é o principal responsável poresta continuidade quase miraculosa.

A verdade é que a Igreja mudou radicalmente mesmo em áreas vitais como o sexo, odinheiro e a salvação.

Tomemos dois dos exemplos mais interessantes.Todos os pontífices até ao século dezanove, inclusive, condenavam a cobrança de

juros sobre os empréstimos (a usura) em quaisquer circunstâncias. Não importava se osjuros estabelecidos eram altos ou baixos, se o empréstimo era feito a um pobrecamponês ou a um imperador. Séculos depois de as comunidades de camponesesdeixarem de ser a norma, a Igreja continuou a condenar a cobrança de juros e,surpreendentemente, nunca retirou a sua interdição. Contudo, hoje o Vaticano tem o seupróprio banco, fundado em 1942 por Pio XII, o qual foi recentemente o centro de terríveisescândalos financeiros.

Uma segunda prova de mudança radical diz respeito aos ensinamentos da Igreja.«Não há salvação fora da igreja». Esta doutrina foi inicialmente formulada para excluirtodos os não baptizados, como os Judeus e os não crentes. Mesmo os bebés de pais

Page 28: Vigde cristo

28

cristãos que morressem antes de serem baptizados eram tidos como excluídos do Céu.Hoje João Paulo continua a ensinar que não há salvação fora da Igreja, mas “Igreja” e“salvação” são interpretadas de uma maneira tão alargada que todas as pessoas de boavontade, mesmo os ateus, podem ser salvos. Este truque linguístico evita que oscatólicos pensem que houve uma inversão nos ensinamentos tradicionais. Admitir umamudança exporia uma parte demasiado grande do passado como um pesadelo. Essa arazão por que, tal como todos os corpos autoritários, a Igreja Católica se recusa aadmitir que tenha mudado no essencial, mesmo quando isso representa umaperfeiçoamento.

À parte estes indicadores, basta lembrar que quase todos os documentos do VaticanoII teriam sido condenados como heréticos pelo Vaticano I. A ortodoxia de uma épocanão é a ortodoxia de outra.

A principal desvantagem de uma instituição infalível é que nenhuma afirmação podeser retirada, nenhuma doutrina negada, nenhuma decisão moral invertida, mesmoquando novos argumentos sugerem um exame radical.

Nada disto preocupa os fiéis em S.Pedro. Eles acreditam que João Paulo é infalívele, embora não estejam agora a pensar nessa questão, isso influencia o seu amor elealdade. Enquanto ele faz as suas orações depois da comunhão, eles vêem-no no altarcom os olhos da fé.

Em frente daquele altar em que só ele diz missa há um espaço oval. É a Confissão ouo Túmulo dos Mártires. Está iluminado, como todos os dias, por noventa e trêscandeeiros de feixe triplo; as paredes e soalhos são cobertos de jaspe, ágata e pórfiro.Santos como Domingos e Inácio de Loiola, imperadores como Carlos Magno e FredericoBarbarrossa ajoelharam aqui para honrar Pedro. Porque por baixo dos pés de JoãoPaulo está sepultado S.Pedro, cujas ossadas consagraram não só esta poderosabasílica mas também os seus sucessores na Sé de Roma.

Nem uma só pessoa duvida que S.Pedro esteja sepultado nesta igreja que tem o seunome. Mas estará de facto?

A Igreja Católica por vezes é dogmática quando estão em causa dúvidas ou pelomenos reservas. De facto, não há uma resposta simples sobre a questão do lugar ondePedro estará sepultado.

Nos primeiros tempos após a morte de Pedro, as suas ossadas foram transferidas porduas vezes para lugares mais seguros. Quando as coisas serenaram, o corpo foi levadode volta para o lugar onde Pedro deu testemunho da sua vida. Por cima do túmulo, foierigido um pequeno oratório, e, mais tarde, no século IV, foi construída a basílica deConstantino, que ali ficou durante mil e cem anos.

Poucos dos fiéis em S.Pedro nestas festividades dos Apóstolos sabem que foi hámais de mil anos que se tomou a decisão de separar as cabeças de Pedro e Paulo dosrespectivos troncos. As cabeças têm estado desde então em S.João de Latrão, que é acatedral do papa e a igreja-mãe da Cristandade. S.João de Latrão foi também construídapor Constantino junto do palácio de Latrão, que ele outorgou ao Bispo de Roma.

De acordo com as antigas leis de Roma e com os cânones da teologia católica,conclui-se que Pedro não está realmente sepultado em S.Pedro, mas, juntamente comPaulo, em S.João de Latrão. O local onde está a cabeça, assim reza a antiga máxima, éo local da sepultura. Mesmo hoje, a prática pastoral considera a cabeça a parte maisimportante dos restos mortais. No caso de decapitação ou de uma morte com mutilaçãoé a cabeça que é ungida com a sagrada crisma.

Houve uma ocasião em que a cabeça de Pedro se juntou ao tronco. Em 1241, oImperador Frederico II marchou sobre Roma. Muitos cidadãos, desgostosos com o

Page 29: Vigde cristo

29

comportamento do papado, preparavam-se para escancarar os portões da cidade paradeixar entrar os invasores. O Papa Gregório IX, pouco antes de morrer, teve a ideia detrazer em procissão as cabeças dos dois grandes apóstolos de Latrão para S.Pedro. Aideia resultou. Os cidadãos de Roma, compreendendo que se arriscavam a perder nãosó a sua herança mas também a sua principal fonte de rendimento, cerraram fileiras e operigo foi afastado.

Em 1370, o Papa Urbano V meteu as cabeças em bustos de prata encrostados compedras preciosas. Desta maneira, abriu caminho a outro drama.

Em 1438, um veneziano rico estava às portas da morte. Perdida a esperança com osmédicos, rezou a Pedro e Paulo, prometendo que adornaria os seus relicários com umapérola de grande valor se recuperasse a saúde. Recuperou e cumpriu a promessa.Pouco depois, descobriu-se que faltava uma dúzia de pérolas nos relicários, bem comodois rubis de quarenta e sete e quarenta e oito quilates, uma safira e dois grandesdiamantes. A pérola do veneziano também fora arrancada, provavelmente durante aspróprias festividades de S.Pedro e S.Paulo, quando os relicários estavam em exposição.

Os culpados foram logo descobertos. Dois primos confessaram terem escondido ofruto da sua pilhagem em casa de um tio.

Tornaram-se motivo de divertimento em Roma. Como ponto alto de uma festança, napraça de S.João de Latrão, deceparam a mão direita dos jovens antes de os queimarem.O tio, simples receptador, foi tratado com mais clemência. Depois de agrilhoado comtenazes em brasa, foi enforcado.

Em 1799, os soldados de Napoleão roubaram os relicários. Meteram ao bolso aspedras preciosas, incluindo a pérola, mas deixaram as relíquias. Diz-se que estas foramencontradas com o lacre original intacto. Nada restou a não ser vértebras, um maxilarcom alguns dentes soltos e um pedaço de crânio. Fizeram-se novos relicários e ascabeças repousam agora no santuário por sobre o altar papal de Latrão. É ali, emsentido restrito, que ambos os apóstolos estão enterrados juntos. Uma vez que S.Joãode Latrão é também «a Mãe e chefe de toda a igreja da cidade e do mundo», eracertamente ali que o Santo Padre devia ter celebrado a missa das festividades deS.Pedro e S.Paulo.

Há uma razão primordial para que ele não tenha procedido assim.

O papa diz a missa com o tronco de Pedro sob os seus pés. Setenta metros acima dasua cabeça, há qualquer coisa muito mais importante do que os restos mortais de Pedro:as palavras do Senhor. Em letras de um metro e meio de altura, à volta da cúpula, está omais famoso de todos os trocadilhos: «Tu es Petrus, et super hanc petram aedificaboecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam» («Tu és Pedro esobre esta Pedra construirei a minha igreja, e os portões do inferno não prevalecerãosobre ela»). Os eruditos assumem que no aramaico original o trocadilho era perfeito:Pedro e Pedra são ambos Cepha. É este o texto que constitui o pano de fundo de todo opensamento do Papa João Paulo. Quem duvidaria de que ele pega neste texto, comtoda a humildade, para as suas meditações? Este texto é a razão por que os pontíficesagora celebram as festas de S.Pedro e S.Paulo em S.Pedro, de preferência ao localmais óbvio de S.João de Latrão. Porque os pontífices romanos afirmaram-se sucessoresnão de Pedro e Paulo, mas apenas e só de Pedro. O Novo Testamento fala de Pedrocomo o apóstolo para os Judeus e de Paulo como o apóstolo para os cristãos. Mas noespírito do papa, Pedro era o superior de Paulo; Pedro tinha jurisdição sobre Paulo e osoutros discípulos. Esta autoridade foi outorgada a Pedro pelo próprio Senhor naquelaspalavras que se encontram à volta da grande cúpula. Foi esta autoridade suprema queele, João Paulo II, herdou. Por que é que os Protestantes não hão-de ser lógicos? —

Page 30: Vigde cristo

30

deve Sua Santidade pensar. Jesus, o Filho de Deus, deu a Pedro supremacia sobre aIgreja; esta supremacia deve continuar na Igreja como um ofício permanente; ele, JoãoPaulo, é o actual detentor de tal ofício.

Há, porém, uma outra interpretação deste texto com uma linhagem melhor do queaquela de que a maioria dos católicos se dá conta. Pode chocá-los ouvir dizer que osgrandes Padres da Igreja não viam qualquer relação entre ele e o papa. Nenhum delesaplica o «Tu és Pedro» a ninguém senão a Pedro. Um após outro todos o analisam:Cipriano, Orígenes, Cirilo, Hilário, Jerónimo, Ambrósio, Agostinho. E eles não sãopropriamente Protestantes. Nenhum deles chama ao Bispo de Roma uma Pedra ou lheaplica especificamente a ele o compromisso das Chaves. Isto para os católicos é tãochocante como se não encontrassem nos Padres qualquer menção ao Espírito Santo ouà ressurreição dos mortos. O grande trocadilho, o jogo de palavras, foi aplicado apenasa Pedro.

E as surpresas não acabam aqui. Para os Padres é a fé de Pedro — ou o Senhor emque Pedro tem fé — que se chama Pedra, e não Pedro. Todos os Concílios da Igreja,desde Niceia, no século IV, a Constança, no século XV, concordam que o próprio Cristoé o único fundamento da Igreja, isto é, a Pedra em que a Igreja assenta.

Talvez por isso, nem um só dos Padres fale da transferência de poder de Pedro paraaqueles que lhe sucederam; nenhum deles fala, como fazem os documentos da Igrejahoje, de uma “herança”. Não há qualquer indício de um ofício Petrino perdurável. Aofalar de um ofício, a referência é ao episcopado em geral. Todos os bispos sãosucessores de todos os apóstolos.

A análise de um outro texto do Evangelho produz o mesmo resultado. Jesus disse aPedro: «Rezei por ti para que a tua fé não te falte; e quando estiveres convertido, crismaos teus irmãos». Esta afirmação aplica-se apenas e pessoalmente a Pedro. Nuncaocorreu aos cerca de dezoito Padres da Igreja que comentaram este texto que houvessenele um compromisso para com os “sucessores de Pedro”. Pedro, individualmenteconsiderado, não teve sucessores.

Então, e os compromissos que se diz terem sido feitos via Pedro para com os seus“sucessores”, os papas? Então os papas não herdam de Pedro a infalibilidade e ajurisdição sobre todo o mundo?

O primeiro problema da infalibilidade é que o Novo Testamento deixa muito claro queo próprio Pedro cometeu erros tremendos tanto antes como depois da morte de Cristo.Quando, por exemplo, Jesus insistiu que tinha de ir até Jerusalém, onde seriacrucificado, Pedro protestou de tal maneira que Jesus lhe disse que ele era o “Satanás“no seu caminho. Alguns teólogos católicos sugeriram que as palavras «Sai do meucaminho Satanás» deviam ser acrescentadas ao texto Petrino já inscrito à volta dacúpula de Miguel Ângelo. Depois da ressurreição de Jesus, Pedro fez outro enormedisparate. “Heresia” não é uma palavra excessiva para o descrever. O maior juristacanónico da Igreja de todos os tempos, Graciano, disse em 1150: «Petrus cogebatGentes Judaizare et a veritate evangelii recedere», «Pedro obrigou os não-Judeus aviverem como Judeus e a afastarem-se da verdade do Evangelho».

Quanto à jurisdição em todo o mundo, quando Pedro pregava ao seu rebanho emAntióquia ou em Roma, alguma vez lhe passou pela cabeça a ideia de que dirigia toda aIgreja? Tal ideia teve de esperar até a Cristandade ser integrada no Império Romano.Mesmo nessa altura, o papado ainda levou algum tempo a atingir a estatura que tornoutal pretensão plausível.

E as dificuldades não se ficam por aqui. Os papas só são considerados infalíveisquando se dirigem a toda a Igreja. E quando é que eles o fizeram pela primeira vez?Certamente não durante o primeiro milénio. Neste período todos concordam que só os

Page 31: Vigde cristo

31

Concílios Gerais exprimiam o pensamento da Igreja. Então, o poder supremo do papaesteve suspenso todo esse tempo? Se a Igreja conseguiu funcionar sem ele durante milanos, por que é que havia de precisar dele? Por pouca sorte, um dos primeiros, senãomesmo o primeiro documento papal dirigido à Igreja universal foi a Unam Sanctam, umaBula de Bonifácio VIII, em 1302. Era um documento tão forçado que levantou questõesdelicadas sobre a infalibilidade no Concílio Vaticano I, em 1870.

Assim, a Igreja dos primeiros tempos não considerava Pedro como Bispo de Roma,nem pensava, portanto, que cada Bispo de Roma sucedia a Pedro. No entanto, Romaera tida na mais alta consideração por razões bastante diferentes. Em primeiro lugar, foiaqui que Pedro e Paulo viveram a sua vida. Depois, Roma era um lugar sagrado porqueaí os fiéis, clérigos e leigos, conservaram os seus corpos e reverenciaram-nos. Essescorpos foram uma espécie de garantia da ortodoxia através dos tempos.

Passaram-se décadas. O Bispo de Roma tornou-se cada vez mais importante,especialmente quando a corte imperial foi transferida para Constantinopla, no século IV.Isto deixou um enorme vazio político, administrativo e emocional. Os Bispos de Romaestavam, por assim dizer, ali à mão para o preencher. A partir de então, os Bispos deRoma começaram a separar Pedro de Paulo e aplicaram a si próprios as promessasfeitas a Pedro no Evangelho. O prestígio do Bispo de Roma era agora tal que os eruditosprocuraram nas Escrituras textos que sustentassem o seu papel de líder e patriarca doOcidente. Nada mais limpo do que aplicar ao bispo que governa a cidade onde Pedromorreu textos que nos Evangelhos se referem apenas a Pedro. Os Evangelhos nãocriaram o papado; o papado é que, uma vez criado, procura suporte nos Evangelhos.Este suporte não apareceu facilmente; foi necessária muita perícia para pegar emafirmações feitas por um pobre Carpinteiro a um igualmente pobre Pescador e aplicá-lasa um pontífice régio que em breve viria a ser chamado de Senhor do Mundo.

Em S.Pedro, nestas festividades, João Paulo não está a pensar em si próprio comoSenhor do Mundo, mas sim como o Pastor Chefe do rebanho. Dá a sua bênção final e amultidão rompe em aplausos. Pela primeira vez desde que entrou na basílica, o pontíficepermite-se um sorriso. A liturgia sagrada está terminada e ele volta a descer pela naveem direcção à Capela do Santíssimo Sacramento, distribuindo bênçãos pelo caminho.Para muitas das pessoas que vão a sair da basílica este foi o dia mais memorável dassuas vidas.

Enquanto a basílica volta ao normal, apetece perguntar: Se Pedro se levantasse dotúmulo sob a cúpula e lhe dissessem que tudo aquilo foi erigido em sua honra, como éque ele reagiria?

Claro que alguém que regressasse do mundo dos mortos apenas quinze dias depoisda sua morte ficaria completamente aturdido, e Pedro morreu por Cristo há mais dedezanove séculos. Quem é que pode saber como ele reagiria às maravilhas da modernatecnologia: aviões, automóveis, televisão, telefones? Só em S.Pedro há oitenta telefones— se se marcar o 3712 o telefone tocará na obscuridade do altar-mor. O crescimento ea organização da Igreja também o espantariam. Uma vaga ligação de uns poucospescadores e os seus convertidos, na sua maioria camponeses, tem de ser diferente deuma igreja de malha bem apertada que se estende pelo mundo inteiro e abrange quaseum bilião.

A única pergunta certa é esta: se Pedro voltasse como peregrino, como é que elejulgaria, à luz dos Evangelhos, o que se passa no Vaticano?

Jesus nasceu num estábulo. Durante o seu ministério, não tinha onde pousar acabeça.

Page 32: Vigde cristo

32

Hoje, o seu Vigário habita um palácio com onze mil salas. E depois há aindaCastelgandolfo, sobranceiro ao Lago Albano, onde os pontífices se resguardam do calordo verão. O belo Castelgandolfo, ligeiramente maior do que o Vaticano, foi onde JoãoPaulo, com algum dispêndio, mandou construir uma piscina para seu uso pessoal.

Jesus renunciou aos seus bens. Ele ensinava constantemente: «Vai vender tudo oque possuis e dá aos pobres, e depois vem comigo». Ele condenava os ricos e ospoderosos. Armazenai para vós tesouros no Céu, dizia ele, onde nem a ferrugem nem atraça conseguem estragá-los.

O Vigário de Cristo vive rodeado de tesouros, alguns de origem pagã. Qualquersugestão no sentido de que o papa devia vender tudo o que tem e dar aos pobres érecebida com irrisão, como impraticável. O jovem rico dos Evangelhos reagiu da mesmamaneira.

Durante toda a sua vida, Jesus viveu de maneira simples; morreu nu, oferecendo oseu sacrifício na cruz.

Quando o papa renova esse sacrifício na missa solene pontifical, maior contraste nãose poderia imaginar. Sem qualquer ironia, o Vigário de Cristo está vestido de ouro e dassedas mais caras. Isto tem sido frequentemente fonte de escândalo. Por exemplo, noséculo XIV o grande Petrarca descrevia assim uma missa papal em Avignon, que eramuito menos esplendorosa do que a recente cerimónia em S.Pedro: «Fico espantadoquando recordo os antecessores do papa e vejo estes homens carregados de ouro evestidos de púrpura. Parece que estamos entre os reis dos Persas ou dos Partianos,diante dos quais nos temos de prostrar e venerar. Ó apóstolos e primeiros papas, rudesvelhos definhados, foi para isto que trabalhastes, vós?»

O único título de Jesus foi Pilatos que lho atribuiu por troça: “Rei dos Judeus”.No anuário pontifício, Pedro vê que o papa tem uma dúzia de títulos ilustres: incluindo

o de chefe de estado. Ele acharia o de Pontifex Maximus o mais surpreendente, porqueno seu tempo era esse o título do Sumo Sacerdote de Roma. Além disso, Jesus eraapenas um leigo.

Os assistentes do papa também têm títulos algo inesperados à luz do Sermão daMontanha: Excelência, Eminência, Vossa Graça, Meu Senhor, Ilustre, Reverendíssimo,etc.. Contudo os chapéus cardinalícios, que outrora renderam milhões aos cofres dopapa, são agora distribuídos gratuitamente. Mas suas Eminências continuam a vestir-secomo realezas, mesmo que as suas caudas tenham sido reduzidas recentemente dealguns metros. As impressões é que contam. Aqueles que vestem púrpura e seda, vivemem palácios, sentam-se em tronos — não lhes é fácil agir como servos de Deus ourepresentar o Pobre de Nazaré perante os pobres e os famintos do mundo. João Pauloapenas reuniu os seus cardeais por duas vezes. E em ambos os casos foi para discutir oestado perigoso das finanças do Vaticano.

Pedro, sempre sem tostão, ficaria intrigado ao saber que, de acordo com o cânone1518 do código de 1917, o seu sucessor é o «administrador e gestor supremo de todosos bens da Igreja». E também que o Vaticano tem o seu próprio banco, que só admitecomo cliente quem, além de sólidas referências, possa fornecer uma coisa que o próprioPedro nunca teve: um certificado de baptismo.

O celibato do clero, papa incluído, devia também surpreender Pedro, ao pensar comoJesus o escolheu a ele sabendo que era casado.

E finalmente Pedro ficaria desconcertado só com o simples número de imagens emS.Pedro. Ele e o Mestre, como judeus que eram, opunham-se às imagens religiosas.Deus, cujo simples nome não podia ser pronunciado, também não podia serrepresentado. Alguém que reside numa luz inacessível exige as maiores reticências.

Page 33: Vigde cristo

33

Mesmo o mais Sagrado dos Sagrados no Templo de Jerusalém não era mais do queuma sala despida e escura.

Em S.Pedro Jesus está crucificado em todos os altares. A basílica está decorada comestátuas de papas ajoelhados e inclinados numa vénia. Algumas figuras são muitopouco edificantes. O Papa Paulo III, por exemplo, jaz enterrado na ábside. O seumonumento está decorado com belezas reclinadas, uma das quais é a Justiça.Originalmente nua, ajustaram-lhe, por ordem de Pio IX, uma camisa metálica pintadapara parecer o mármore original. Sua Santidade tinha descoberto que o modelo para aJustiça fora a irmã de Paulo III, Giulia, a amante do Papa Alexandre VI.

Pedro assistiu à simples cerimónia da Ceia na noite da véspera em que Jesusmorreu. Ele soube que na colina rochosa dos arredores de Jerusalém, Jesus, depois deultrajado, açoitado, cuspido, coroado com espinhos, foi despido e crucificado entre doisladrões.

Que ligação há, se alguma poderá haver, perguntar-se-ia Pedro, entre essesacontecimentos e uma missa papal? Será que todo este cerimonial distorceu e banalizoua mensagem de Jesus? Como e por que tortuosos caminhos é que uma pequenacomunidade perseguida transpôs a aparentemente infinita distância entre o Calvário e oVaticano?

Page 34: Vigde cristo

34

Page 35: Vigde cristo

35

2A Busca do Poder Absoluto

Os milhões que todos os anos visitam o Vaticano pressentem o poder da Igreja. Asparedes, as estátuas, as gigantescas colunas, aquela cúpula omnipresente, tudo istoexala poder. Se têm a sorte de ter uma audiência com o Santo Padre, ou simplesmenterecebem a sua bênção da janela do seu gabinete, a maioria dos peregrinos sente umaforça passar dele para si próprios. Ele possui, crêem eles, o dom do Espírito de Deusnum grau elevado. Mesmo um rosário abençoado pelo pontífice tem uma significaçãoespecial; é como um autógrafo invisível. Ele tem um grande poder vindo de Deus e temo compromisso de o usar para o bem da humanidade.

O prestígio do papa hoje é enorme. Neste século, os pontífices adquiriram renomemundial. Os acontecimentos históricos e as comunicações instantâneas contribuírampara os tornar os “Porta-vozes da religião”. As suas personalidades também tiveramalguma coisa a ver com o facto. Os antecessores próximos de João Paulo tambémforam homens eminentes: Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I. Tiveram osseus críticos dentro e fora da Igreja. Pouca gente negaria que o seu objectivo principalfoi seguir Jesus Cristo. O resultado é que João Paulo II é comummente consideradocomo o único líder cuja reputação na religião iguala a influência política do presidenteamericano e do secretário-geral soviético.

Como não entendem que o passado é imprevisível, muitos católicos estãoconvencidos de que a maior parte dos papas seguiu este padrão. Desconhecedores dahistória, permitem-se, como diz Acton, «ser governados pelo Passado Desconhecido».Podem ter ouvido falar do Papa Alexandre VI, o infame Bórgia. Ele foi, sem dúvida, aexcepção que confirma a regra. Além disso, por muito mau papa que fosse, eles têm aconvicção, tal como Joseph de Maistre, o historiador do século XIX, de que «as Bulasdestes monstros foram irrepreensíveis». Fosse qual fosse o seu comportamento moral,nunca comprometeram a fé da Igreja. Neste contexto, até Judas Iscariote éreconfortante. Se um dos discípulos mais próximos de Jesus traiu o Senhor, nãodevemos ficar surpreendidos se um ou alguns papas abusaram do poder que Deus lhesconferiu. A traição de Judas levou à salvação do mundo. Será que Deus usa o maupapa ocasional para provar que na providência divina mesmo Alexandre VI serve demedianeiro da verdade e do amor de Deus?

Em 1895, o Cardeal Vaughan de Westminster afirmou num sermão: «A vida dopapado é, como a do próprio Cristo, marcada por sofrimento e por tempos tranquilos;hossanas hoje, a paixão e crucificação amanhã; mas seguida, depois, da ressurreição.O Vigário de Cristo e a sua Igreja estão necessariamente em conflito com as falsasmáximas do mundo; o sofrimento e as perseguições são consequência inevitável».

Quem é que não perdoará aos seus ouvintes por concluírem que a maioria dos papasforam uma imagem de Cristo? Mas este lado eternamente luminoso do papado tem deser complementado com o lado mais negro. A maioria dos católicos nunca ouve durantea sua vida, na escola ou na igreja, uma só palavra de censura a qualquer papa.Contudo, um católico devoto como Dante não teve qualquer escrúpulo em lançarpontífice após pontífice para as profundezas do Inferno. Se os Judeus nos seus salmos

Page 36: Vigde cristo

36

condenam — e até amaldiçoam — Deus, não podem os católicos condenar os papasquando eles o merecem? A história dos papas está, para utilizar uma expressão dosenhor Gorbachev, cheia de páginas em branco. Nem todos os papas foram santos,muitos mal cristãos foram. Antes de Pio IX perder os Estados Papais em 1870, ospapas raramente eram amados. Eram muitas vezes odiados e temidos.

A distorção começa logo nas listas dos papas, onde, dentre os primeiros trinta, todos,excepto um, são descritos como mártires. Provavelmente foram mártires no sentido de“testemunhas da fé”. Não há provas de que todos tenham morrido por Cristo. Maisainda: entre os papas houve um grande número de homens casados, alguns dos quaistrocaram a mulher e os filhos pelo ofício papal. Muitos eram filhos de padres, bispos epapas; alguns, bastardos; um era viúvo, outro um ex-escravo; vários foram assassinos,alguns, descrentes; alguns eram eremitas, outros, hereges, sádicos ou sodomitas;muitos tornaram-se papas comprando o cargo (simonia) e continuaram os seus dias avender coisas sagradas para encher os bolsos; pelo menos um era adorador deSatanás; alguns tinham filhos ilegítimos, outros eram fornicadores e adúlteros emgrande escala; alguns eram espantosamente velhos e outros ainda maisespantosamente jovens; alguns foram envenenados, outros, estrangulados; e, pior doque todos, foram aqueles que veneraram um deus granítico. Mas houve igualmentemuitos que foram papas bons, santos e generosos, e mais uns poucos mártires.

É tempo de se deixar de tratar o papado em termos hagiográficos. O silêncioestudado sobre os pecados do papado é um escândalo e uma forma errada de fé. Pior,faz com que a presente crise da Igreja se torne insolúvel.

O maior dos pecados do papado, origem da maioria dos outros, foi o abuso do seuimenso poder. É estranho pensar que a pessoa de que esse poder alegadamentederivou viveu e morreu sem poder absolutamente nenhum.

“O Primeiro Papa”

Esteve tanto tempo nas masmorras que perdeu a noção do tempo. As paredes e ochão estavam cobertas de crostas de sangue. O calor e a pestilência eraminsuportáveis. Mordido das pulgas e das ratazanas, velho e magro, estava deitado numacama de palha húmida. Era o homem mais feliz de Roma, talvez mesmo do mundo.

Os seus carcereiros chamavam a isto “reclusão solitária”; o prisioneiro sabia quenunca estivera menos só. No seu coração estava o Mestre que ele servira todosaqueles anos na sua terra junto das águas azuis de um lago interior. Na escuridão, viviaà luz deslumbrante de Cristo. Com as grilhetas, era um homem livre.

As recordações inundavam-no. Recordou o chamamento: «Vem, segue-me». Eledeixou tudo: redes, modo de vida, independência. Deu a sua palavra e nunca voltouatrás, apesar da ocasional renegação.

Havia realmente coisas que envergonhavam. Quando, por exemplo, o Mestre sugeriuque tinham de ir a Jerusalém, onde a morte o esperava, Pedro protestou. Jesus caiusobre ele: «Sai do meu caminho, Satanás». Aquilo ainda lhe soava nos ouvidos. Pedro,então, não entendeu. Como é que ele podia entender?

O pior ainda estava para vir. No jardim de Getsâmani, à noite, já tarde, depois deuma ceia de Páscoa, Jesus, muito só, muito temeroso, pediu-lhe para velar e rezar. Oprisioneiro era então jovem, precisava de dormir mais do que agora, mas aquelalembrança envergonhava-o. Sentia ainda aquela mão sobre o seu ombro a procurarmantê-lo acordado e aquela voz suave, magoada mas não ressentida: «Não podiasvelar uma hora comigo?» Os servos do Alto Sacerdote vieram com bordões e espadaspara prender Jesus. O prisioneiro pegou numa espada e deu um golpe numa orelha de

Page 37: Vigde cristo

37

um servo chamado Malchus. Jesus odiava as espadas. Disse a Pedro que o lugar dasespadas era nas bainhas e fez o melhor que pôde por Malchus, pedindo desculpa otempo todo.

Foi então que Pedro e os outros fugiram. Para quê ficar com um homem querecusava defender-se e tratava os inimigos como trataria um amigo?

Pedro dirigiu-se para o pátio do Alto Sacerdote. Tentou aquecer-se à fogueira mas ofrio que o dominava não estava nos seus membros. Agora, no sufocante calor da cela,tremia à amarga lembrança de renegar o Mestre diante de uma serva. Nunca iaesquecer o olhar que Jesus lhe lançou quando foi levado como um cordeiro para amatança. Nem uma palavra, apenas um olhar. Ele tinha obrigação de ser duro, mas nãoaguentou; foi-se embora a chorar como uma criança.

No dia seguinte, assistiu, sem dúvida, de longe, à crucificação. Era então aquele ofim? Ou iria Deus intervir e salvar Jesus, arrancar os pregos, devolvê-lo aos seusseguidores incólume e triunfante? Se assim fosse, seria a prova de que ele era oMessias, o ungido de Deus, que os guiaria à glória. O que é extraordinário é que nadaaconteceu. Não veio nenhum anjo confortá-lo. Morreu, simplesmente.

Pedro viu os soldados levarem o corpo e os dos dois que foram crucificados com ele.Ficou arrasado. A cruz parecia mostrar que Jesus era, apesar de todo o seu espíritocativante, um falso messias, enganado como tantos outros. Pedro foi para casa com osseus amigos galileus. Foi na Galileia, onde Jesus outrora o chamara, junto ao lago, queele teve uma experiência de ressurreição. Paulo iria dizer que Pedro foi o primeiro queviu o Senhor. Por uma inspiração, uma visão não atribuível à carne e ao sangue, eleentendeu que a cruz não era o fim, mas o princípio; era um escândalo mas também asalvação. Convenceu os outros discípulos; eles tiveram a mesma experiência. Tambémeles viram o Senhor.

Mais tarde, espalharam-se algumas estórias complicadas contando que Jesus foraenterrado num túmulo não usado, com uma pedra por cima, e como, no dia que viria aser chamado de Páscoa, a pedra foi removida revelando um cova vazia. As estóriascontradiziam-se em muitos pontos. Mas expressavam, à maneira dos Judeus, aexperiência dos discípulos: Jesus não foi amaldiçoado na cruz; tornou-se por seuintermédio o Senhor e Cristo. Afinal ele era de facto o Messias. Ele ressuscitou.

Os discípulos tinham voltado a Jerusalém pregando a sua fé. As suas históriasfalavam de comer e beber com Jesus depois da ressurreição para fazer com que osoutros acreditassem. Pedro adquiriu um prestígio especial. Foi a Pedra sobre a qual onovo grupo — mais tarde chamado Igreja — foi edificado. A sua fé tinha crismado osseus irmãos. Foi o pastor que trouxe para o redil o rebanho perdido. Era o pescadorchefe de homens. Foi o primeiro cristão.

Juntos, os discípulos leram outra vez Moisés e os profetas. Estes também deixavamclaro que a cruz era parte do plano de Deus. Os homens devem viver a sua vida àsombra da cruz que os salvaria tal como outrora tinha elevado Jesus da agonia até àglória.

O prisioneiro passou todos os seus dias a sorrir na escuridão de Mamertine. Nada lheinteressava, nem a ele nem aos discípulos, depois de saberem que o Senhorressuscitara dos mortos. Ele era o Sofredor Servo de Deus. Que mais é que ele lhestinha pregado e mostrado senão que tinha vindo não para ser servido mas para servir,para dar a vida pelos outros? Isto explica a razão por que ele virou costas à força, porque ele se riu com a ideia de uma espada a ajudar a promover a sua mensagem. Eleviera não para ferir e matar mas para ser ferido e, se necessário, morrer para que oamor e a compaixão de Deus brilhassem por entre as feridas abertas no seu corpo.

Page 38: Vigde cristo

38

Por um momento, uma coisa preocupou Pedro: que pessoas podiam ser discípulosde Jesus? Só judeus? Se os não-judeus também pudessem, teriam eles de se tornarjudeus primeiro? Encontrou a resposta num estranho sonho que o convenceu de quenada era exigido aos não-judeus convertidos a não ser a fé em Cristo.

Mais tarde recuou. Instou os não-judeus a seguirem as leis da dieta dos judeus. Foientão que um enérgico recém-convertido mostrou o seu fervor: «Quando Cephas[Pedro] veio a Antióquia» disse Paulo, «eu contestei-o frontalmente, porque era evidenteque ele não tinha razão. […] Eu disse a Cephas em frente de toda a gente “Tu és judeue vives como um não-judeu. Como é que queres obrigar os não-judeus a viver comojudeus?»

Pedro aceitou a correcção. Tinha cometido um erro terrível. Se Paulo o não tivessecorrigido, a mensagem de que o homem se justifica apenas pela fé teria ficadoarruinada desde o começo. Depois disto, Pedro e Paulo dividiram a missão: Pedropregava aos judeus e Paulo, cidadão romano, aos não-judeus.

Depois de organizar a Igreja em muitos lugares, Pedro, muito mais tarde, sentiu-seatraído pela capital do Império. Quando Jesus nasceu foi registado num censoordenado por Augusto. Foi executado pelos Romanos. Como eles eram donos domundo, era em Roma, onde, segundo Tácito, todas as vergonhas e todos os vícios domundo se congregavam, que Pedro tinha de converter.

Os Judeus estavam há muito estabelecidos em Roma. Eram olhados comdesconfiança por causa da sua recusa em venerarem os deuses do Panteão, comofaziam os imigrantes bem educados,. Isto era traição, mas os Romanos eramgeralmente tolerantes em assuntos de religião. Os Judeus sobreviveram, foramdispensados de adorar os manes. Com o tempo vieram a conceder-lhes mesmoestatuto legal.

Pedro tinha uma tarefa difícil em pregar Jesus aos Judeus. Para estes, Pedro era umherege. Aceitava a Bíblia Judaica, mas não a circuncisão. Venerava Abraão, Moisés eDavid, mas não manteve as suas festividades. Venerava mesmo Deus num Sabathpróprio. Os Judeus não aceitavam sobretudo a ideia de um messias crucificado. Jesusnão convenceu ninguém enquanto vivo, morreu como um fora de lei que era, e a suachamada ressurreição baseava-se no testemunho de umas poucas mulheres loucas.

Na Roma do tempo de Pedro, o Forum e o Palatino impressionavam mesmo àdistância. O palácio de Augusto brilhava ao sol na sua brancura. Pedro sentia-secontente por os cristãos não possuírem nada senão algumas sepulturas subterrâneas.

Ele não podia deixar de pôr em contraste os Césares e o seu Mestre. Jesus não tinhaexércitos, nem armas, à parte uma espada ferrugenta que um dos seus seguidorestinha apanhado no caminho. A sua única autoridade era o amor; era a única autoridadeque legava aos seus discípulos. Todas as formas de coacção e títulos mundanos lheeram estranhos. Fugiu a esconder-se nos montes quando a multidão queria fazê-lo rei.A lei régia era a de Deus e realizava-se pela misericórdia, pela pobreza, pela entrega aDeus e ao próximo. Mesmo depois da morte, Jesus continuou a sofrer nos seus irmãos.Ele ajudá-los-ia a carregarem a sua cruz; nunca aprovaria qualquer crueldade quefizessem. O império de Jesus era o do amor e da paz.

Os cristãos eram considerados pelos Romanos como uma seita judaica. Tambémeles eram considerados hostis à sociedade. Eram mesmo acusados de terem o seupróprio rei. Pedro sabia que Cristo não era nenhum rival de César, nem os cristãostraidores por o venerarem. A fé era uma coisa distinta da cidadania; fazia delesmelhores cidadãos.

Page 39: Vigde cristo

39

O Imperador Nero não concordava. Gostava de perseguir estes rebeldes. Obrigou oscristãos a fazerem o papel de Actéon. Vestidos com peles de animais, eles eramdespedaçados pelos cães.

No dia 19 de Julho do ano 64, Roma ardeu. As circunstâncias eram suspeitas. Neroestava a gozar os ares do mar em Anzio; os triumviri nocturnii, soldados vigilantes dosfogos, estavam de folga. O fogo durou uma semana destruindo dez das catorze regiõesda cidade. Quando Nero regressou, Popeia, a imperatriz, e o actor Alituro sussurraram-lhe: «Os cristãos». Claro, eram eles os responsáveis.

No circo, construído nos belos prados Quintilianos, os cristãos foram devidamentepunidos. O circo, com o obelisco de Heliópolis no topo, brilhou noite após noite de velasacesas. Os cristãos, homens, mulheres e crianças, presos em cruzes, arderam bem. Defacto, morreram magnificamente, os primeiros de muitos.

Pouco depois do fogo, Pedro foi preso. Era com a sua própria morte que ele agoracontava, sem medo. O seu desejo era ir para junto de Deus, tal como Jesus.

E o seu desejo cumpriu-se. Um dia levaram-no para o ar livre, que quase o sufocou,e para o sol, que cegava. Entregaram-lhe uma cruz e disseram-lhe que começasse aandar. A notícia espalhou-se e logo Lino apareceu em cena. O Grande Pescador ia parajunto de Jesus. Discretamente, à distância, eles viram como ele estava magro e fracodepois daquela longa prisão. Mas estava feliz, também repararam nisso.

Quando chegaram ao lado norte do circo, Pedro pediu para ser crucificado de cabeçapara baixo por respeito ao seu Mestre. Os soldados não levantaram objecções. O últimodesejo de um criminoso devia, se possível, ser respeitado. A morte veio depressa; osangue afluiu-lhe à cabeça. Passou da inconsciência à glória.

Nessa noite, os seus seguidores reclamaram o corpo e enterraram-no junto do muroonde as vítimas do circo eram geralmente sepultadas. O terreno era junto do primeiromarco miliário na Via Cornélia. Trinta anos depois, Anacleto viria a construir sobre eleuma capelinha onde podiam rezar três ou quatro ao mesmo tempo.

O escritor Tertuliano disse: «Orientem fidem primus Nero cruentavit […]» («Nero foi oprimeiro a manchar de sangue a fé nascente. Pedro, como Cristo previu, foi atado poroutro, quando foi preso à cruz; foi então que Paulo conseguiu, no seu sentido maiselevado, a liberdade de Roma. […] Que feliz é esta igreja cujos ensinamentos osApóstolos regaram com o seu sangue»).

Não passará muito tempo e os sucessores de Pedro deixarão de ser os servos parapassarem a ser os donos do mundo. Vestir-se-ão de púrpura, como Nero, e chamar-se-ão de Pontifex Maximus. Irão referir-se ao Pescador como “o primeiro papa” e nãoapelarão para a autoridade do amor, mas para o poder nele investido para agirem comoNero. Em oposição a Jesus, os cristãos vão fazer aos outros o que lhes fizeram a eles,e pior ainda. A religião que se orgulhava de ter triunfado sobre as perseguições pelosofrimento, irá tornar-se a fé mais perseguidora que o mundo alguma vez conheceu.Irão perseguir até a raça de que Pedro — e também Jesus — eram oriundos. Irãoordenar, em nome de Cristo, que todos aqueles que discordem sejam torturados ealgumas vezes crucificados sobre a fogueira. Farão uma aliança entre o trono e o altar;insistirão em que o trono é o guardião do altar e o garante da fé. A sua ideia será a de otrono (o Estado) impor a religião cristã a todos os seus súbditos. Não os perturbará ofacto de que Pedro lutou contra tal aliança e morreu por causa dela.

Durante três séculos, após a morte do apóstolo no Monte do Vaticano, a Igreja,apesar da perseguição, cresceu em força até chegar o dia em que se deixou tentar empartilhar a sorte de César.

Page 40: Vigde cristo

40

A grande tentação

Era o amanhecer, os dedos rosados do sol começavam a abraçar as colinas. Antesde o sol estar visível, houve um silêncio longo e profundo apenas quebrado pela músicapalpitante da cotovia e o ladrar de um cão algures no deserto da Campânia.Precisamente quando o sol se erguia acima do horizonte, ouviu-se um novo som: ospassos de um exército em marcha. Levantou-se uma nuvem de poeira na grandeEstrada do Norte. No meio da poeira e da neblina tomaram forma filas sobre filas dehomens armados. No escudo e no estandarte o exército tinha um símbolo na diagonalque representava Christos, Cristo.

O comandante-em-chefe apareceu à vista a cavalgar. Montado em magnífico corcel,Constantino tinha acabado de tomar sozinho o poder do Império. Ele não pensava termuitas possibilidades. O seu rival, Maxêncio, tinha os trunfos todos. As suas tropaseram mais numerosas e estavam mais frescas. Bastava manter-se dentro das muralhasde Roma para ficar inexpugnável. Mas mesmo assim, Constantino continuou a suamarcha; não tinha outra saída. Tinha de combater até ao fim.

No dia anterior, tivera uma estranha experiência. Ninguém podia ser mais devoto doDeus-Sol do que ele; também venerava frequentemente Apolo. Então, estava ele dejoelhos, virado para o sol, venerando aquela divindade incandescente quando — seriauma visão? Uma ilusão devida a tonturas? Um sonho? — viu uns raios negros a saltardo sol na diagonal e ouviu na sua cabeça um nome: Christos. A mãe, Helena, era cristã;andava sempre com Christos na boca, mas Constantino nem nunca tinha pensado nele.Nunca, até então. Uma voz vinda de outro mundo parecia estar a dizer: «Por este sinalvencerás». Estava a agarrar-se a ilusões, sem dúvida, mas deu ordens aos seus oficiaispara que substituíssem a Águia Imperial pelo símbolo de Cristo. Diziam que aqueleCristo, pensou ele, tinha ressuscitado dos mortos. Quando se defrontasse comMaxêncio, ele próprio precisaria provavelmente de um truque desses.

Durante a marcha, os seus batedores informaram-no de que Maxêncio tinha saído dacidade e se dirigia para Saxa Rubra, nove milhas a norte de Roma. Sabia agora queafinal tinha uma possibilidade. Naquele ponto a estrada tornava-se um desfiladeiro entreduas colinas. Traçou planos para cortar a retirada a Maxêncio pela retaguarda. Nessanoite rezou com fervor dirigindo-se ao sol e pronunciando o nome da sua novadivindade.

Na manhã seguinte, 27 de Outubro de 312, esperou pelo nascer do sol para ter acerteza de que Jesus estava com ele, e ordenou um ataque. Cercado, o inimigo ficoudescontrolado na Ponte Milviana. Maxêncio tentou escapar mergulhando no Tibre, masa armadura arrastou-o para o fundo e, tal como muitos dos seus soldados, morreuafogado. Constantino entrou triunfalmente em Roma, como o novo imperador, com maisuma divindade a protegê-lo.

Pouco tempo depois já ele tratava com o novo papa, Silvestre, que sucedeu ao maiscauteloso Miltíades como Bispo de Roma. Silvestre, tal como muitos prelados depoisdele, não via nada de estranho num guerreiro convertido à fé num Cristo crucificado porvia da chacina dos seus inimigos.

Assim começou a aliança entre César e Papa, entre o Trono e o Altar. Com o tempoisto viria a tornar-se parte da ortodoxia católica.

O Imperador Constantino nunca renunciou ao título de Pontifex Maximus, chefe doculto pagão oficial. Quando, no ano 315, a sua vitória se consolidou, atribuiu-a à«inspiração da divindade» não especificada. Nas suas moedas continuava a aparecer a

Page 41: Vigde cristo

41

imagem do Deus-Sol. Não aboliu as Vestais nem o Altar da Vitória no Senado. Jamaisfez do Cristianismo a religião oficial.

Nascido em 274 de uma ligação de Constâncio com uma mera concubina, Helena,ele nunca teria sido elegível para honras imperiais. Conseguiu a consagração pelaespada. Casado por duas vezes, assassinou Crispo, seu filho da primeira mulher, em326. Mandou matar a segunda mulher por afogamento no banho; matou o sobrinho deonze anos e a seguir o cunhado depois de ter jurado garantir-lhe segurança. Nãoperseguiu os cristãos, apenas familiares e amigos.

Longe de ser o modelo de príncipe cristão, nunca deixou de ser um políticointransigente e, segundo Jacob Burckhardt, com «uma terrível e fria ambição de poder».Patrocinou o Cristianismo porque se mostrara útil ao dar-lhe a vitória numa batalhadecisiva. A Igreja curvou-se-lhe, sem grande susceptibilidade em relação aos seusenredos matrimoniais, porque ele era útil à sua causa.

Pouco depois disto, Constantino fez com Licínio, o seu rival do Oriente, um acordo,conhecido como o Édito de Milão.

Já há muito tempo que consideramos que não se deve negar aninguém a liberdade de culto. Pelo contrário, o pensamento e odesejo de cada um deve ser garantido, permitindo-lhe tratar dascoisas do espírito de acordo com as suas opções. Esta a razão porque demos ordens no sentido de que a cada um seja permitido teras suas próprias crenças e fazer as suas devoções conforme queira.

Isto era uma expressão exemplar dos direitos religiosos de todas as pessoas semdistinção. A tolerância que isto revelava permitiu aos cristãos saírem das catacumbaspara a plenitude dos direitos de cidadania. O que é trágico é que este princípio nunca foiaceite pela Igreja Católica. A verdade, insistia ela, nunca pode ser objecto decompromisso. Daí que, sempre que teve o controle, ela negou aos outros a liberdade dereligião. Quando a Paz de Westfália em 1648 estabeleceu que «Os cidadãos cujareligião seja diferente da do seu soberano devem ter direitos iguais aos outros cidadãos»isto foi condenado por Inocêncio X. Outras declarações de liberdade religiosasemelhantes foram anatemizadas século após século pela Igreja Católica como nãocristãs, perniciosas, insensatas, e em nada diferentes do ateísmo.

É irónico que nenhum documento da história da Igreja, nem mesmo do ConcílioVaticano II, seja tão tolerante, generoso e sensato como o Édito de Milão, elaborado pordois guerreiros sanguinários.

No ano de 380 aconteceu ao Cristianismo uma coisa que teria espantado Jesus ePedro: tornou-se a religião oficial do Império Romano. Nas palavras de Acton, a Igrejatornou-se «a muleta dourada do absolutismo». Com o novo prestígio da Igreja vieramtambém perigos sempre presentes.

No princípio, o estado entrou nos domínios da Igreja tentando moldar a fé aos seusrequisitos da lei e da ordem. A partir de então, a Igreja, que começou por ser ummovimento de massas e de libertação espiritual, adoptou um padrão conservador que semanteve até hoje. Muito frequentemente, os prelados alinharam com os ricos contra ospobres; fizeram escolhas à direita e não à esquerda. Temiam instintivamente mais ocomunismo do que o fascismo.

Com o tempo, a Igreja começou a inverter as posições invadindo os direitos dospríncipes. Os papas nomeavam e destituíam até os imperadores exigindo que estesimpusessem o Cristianismo aos seus súbditos sob a ameaça da tortura e da morte.

Page 42: Vigde cristo

42

O resultado final foi a Cristandade. Em muitos aspectos esta foi a maior forçacivilizadora jamais vista no mundo. Os custos para a mensagem do Evangelho foramterríveis.

Tudo isto foi no futuro. Nos primeiros tempos depois de Constantino, a Igreja, járespeitável, contentou-se em tirar partido da Pax Romana: uma língua comum, umsistema jurídico e estradas directas para levar a mensagem de Jesus a todo o Império.

A Igreja já não tinha de temer perseguições. Os Judeus e os “descrentes“ é queestavam agora ameaçados. Agora, eles é que seriam torturados, queimados ecrucificados em nome de Jesus, o Judeu Crucificado.

Os primeiros pontífices

Segundo o historiador germânico Gregorovius, «Até ao reinado de Leão I, no séculoV, a Cadeira de Pedro nunca fora ocupada por um simples bispo de importânciahistórica». Houve razões para isto. Nos primeiros tempos, a comunidade cristã estavaempenhada na sobrevivência num meio hostil. Eram detestados pelos Judeus e olhadoscom suspeita pelos Romanos por não venerarem as divindades locais. E os cristãostambém não se alistavam no exército, levantando assim dúvidas sobre a suafidedignidade como cidadãos. Apesar disto, o Cristianismo cresceu, especialmente entreos escravos e as classes mais pobres. Estes responderam com ardor ao Sermão daMontanha e à pregação de Jesus, que foi crucificado como um escravo e ressuscitadodos mortos como precursor da Ressurreição Final.

Foi quando a Igreja emergiu da sombra, quando as perseguições de Nero eDiocleciano já se tinham tornado más recordações que as coisas começaram a piorar.Já havia sinais disso mesmo antes da conversão de Constantino.

Por exemplo, depois da morte de Marcelino, em 304, não houve bispo de Romadurante quatro anos por causa de uma disputa dentro da comunidade cristã sobre se osapóstatas que regressassem deviam ou não fazer penitência. Embora os tempos fossemdifíceis para a fé e as heresias estivessem a crescer, a escolha de um novo bispo (papa)não era de primordial importância.

Quando a Igreja se tornou respeitável, depois do Imperador Constantino, é que asquerelas viciosas rebentaram. A comunidade recebeu terras e muitos privilégios. Para odiaconato e sacerdócio perfilou-se o tipo errado de candidatos. Mamona entrou emconflito directo com Deus na Igreja.

Com a morte de um papa revelavam-se muitas azedas rivalidades. Por exemplo,quando Libério morreu, em 366, duas facções elegeram cada uma o seu sucessor.Ursino era um papa, Dâmaso, outro. Depois de muita luta nas ruas, os seguidores deUrsino trancaram-se no interior da Basílica de Santa Maria Maior, conhecida comoNossa Senhora da Neve, acabada de construir pouco tempo antes. Alguns apoiantes deDâmaso subiram ao telhado, fizeram nele um buraco e bombardearam os ocupantescom telhas e pedras. Entretanto outros atacavam a porta principal. Quando esta cedeu,seguiu-se uma luta sangrenta que durou três dias. No fim, 137 corpos foram trazidospara fora, todos eles de seguidores de Ursino.

O representante do imperador mandou Ursino para o exílio, mas o crime de SantaMaria Maior ficou como um borrão indelével no caderno de Dâmaso. Comocompensação, Dâmaso acentuou a sua autoridade espiritual como “sucessor deS.Pedro“, um direito, como já foi assinalado, não reconhecido pelos Pais da Igreja. «Sódepois de Dâmaso, em 382,» escreve Henry Chadwick, «é que este texto Petrino [«Tu

Page 43: Vigde cristo

43

és Pedro»] se começou a tornar importante como fonte de fundamentação teológica eevangélica em que se baseava o direito à dignidade de primaz».

Por essa altura, o Bispo de Roma era um grande proprietário de terras e um líder civil.O paradoxo é que os papas só se tornaram papas quando, a juntar ao seu papelreligioso, começaram a tomar outros cargos completamente seculares. «O resultadodesta associação,» diz Jeffrey Richards no seu livro The Popes and the Papacy in theEarly Middle Ages, «foi um papado cujo poder aumentou para além dos seus sonhosmais extravagantes».

Dâmaso ilustra bem este facto. Chegou ao poder à custa de muito sangue. Tornou-sepor esse meio um homem muito rico e poderoso. Quando pediu ao prefeito de Roma,um pagão com muitos títulos sacerdotais, que se convertesse, este respondeu-lhe:«Deboa vontade, se o senhor me fizer Bispo de Roma». O escritor dessa época AnianoMarcelino sugeriu que devia haver uma concorrência muito viva para um cargo tãolucrativo. «Porque uma vez obtido esse cargo, um homem goza em paz um destinoassegurado pela generosidade das matronas; pode viajar em carruagem, vestido commagníficos mantos; pode oferecer banquetes cujo luxo ultrapassa o da mesa doimperador».

O secretário de Dâmaso, o ascético S.Jerónimo, descreveu o tipo de clérigos querodeavam Dâmaso; tinham mais o aspecto de noivos, disse ele. E o papa, que chegaraao poder com a ajuda da guarda, precisava constantemente da protecção desta contraos seguidores de Ursino.

Episódios desagradáveis como este não foram assim tão raros. Noutras ocasiõeshouve dois ou até três candidatos rivais para o bispado. Às vezes o lugar ficava vagodurante meses e anos, porque os Romanos não se entendiam. Uma vez dois rivaisforam derrubados por um terceiro que dera ao exarca em Ravena, o representante doimperador, cem libras em ouro pelo seu apoio.

A tradição da eleição do Bispo de Roma pelo povo da cidade remontava aos temposapostólicos. Isto levou muitas vezes à confusão. No século XI puseram ordem nascoisas tornando-se os cardeais, representantes do clero local, os únicos eleitores. Osleigos nunca mais recuperaram o seu direito a uma palavra na escolha do seu bispo.Mas nem mesmo os conclaves de cardeais resolveram o problema, tanto assim que naIdade Média e posteriormente houve muitas vezes mais do que um “papa”. Mas nestesprimeiros tempos a situação foi algumas vezes crónica.

Gregorovius salientou que nos séculos VI e VII a maior parte dos papas reinouapenas dois ou três anos. Será que eles eram escolhidos quando já estavam perto damorte, ou a sua morte era apressada por facções rivais? Ele não sabia. De acordo comRichards, a maioria dos papas foi escolhida segundo o critério da recompensa porserviços prestados, de modo que quase todos eram de idade e doentes. O Papa Sisino,por exemplo, foi consagrado em 15 de Janeiro de 708. Estava tão diminuído pela artriteque nem sequer conseguia levar a comida à boca para se alimentar. Morreu vinte diasdepois. Escreve Richards: «Com esta parada de enfermidades e incapacidades é deadmirar que o papado tenha conseguido alguma coisa».

Assim, mesmo as eleições que envolviam corrupção, suborno e derramamento desangue resultavam muito frequentemente na entrega do cargo papal a homens velhos edoentes. Richards relata o seguinte: «O fogo e os condimentos desses tempos chegamaté nós nos documentos desse período que sobreviveram. […] Esta é que é a carnevermelha crua da história do papado, e não as doses dissecadas e pré-embaladasservidas à moda da história papal».

Apesar de toda esta chicana e corrupção, não passou muito tempo sem que aqueleperíodo fosse olhado como cândido, quase como a Idade de Ouro do Papado.

Page 44: Vigde cristo

44

Um documento assombroso

Estêvão III tornou-se pontífice no ano 752 depois de o seu antecessor, Estêvão II terreinado apenas quatro dias, o reinado mais curto de que há registo. O novo pontíficetinha sido educado praticamente na corte papal. Sabia que o papa não era um lídermeramente religioso, mas, como vassalo leal do imperador, também governador civilcom extensos territórios sob a sua jurisdição.

A secularização da Igreja iniciada por Constantino estava no bom caminho. Ele tinhavisto o potencial da hierarquia como classe governante. Estavam tão bem organizadoscomo o seu próprio funcionalismo civil, que foram lentamente substituindo nos tribunaise na diplomacia. Quando, no ano 330, o imperador levou a sua entourage paraConstantinopla, local da antiga cidade grega de Bizâncio, os bispos de Roma envolviam-se cada vez mais nos assuntos civis. Dois papas em particular contam-se entre osmaiores homens de sempre. Leão o Grande (440-61) num acto de grande coragemsalvou Roma de Átila o Huno. Gregório o Grande (590-604) foi efectivamente o lídercivil, bem como o Patriarca, do Ocidente. Com este duplo papel lançado sobre eles,houve um inevitável crescimento da burocracia. Trabalharam heroicamente, mas naRoma cristã nunca mais se viu a simplicidade cristã.

Quando os Lombardos, uma tribo bárbara do Báltico, se estabeleceram na Itáliadepois do ano 568, o papado deixou de ter paz. Os recém-chegados tomaram a maiorparte do norte. Gradualmente convertidos, os Lombardos nunca tiveram a confiança daSanta Sé. Quando os laços que ligavam os papas e os imperadores, seus vassalos,abrandaram, os pontífices tiveram de forjar uma nova aliança militar, para conservarRoma e os territórios vizinhos. Teria sido provavelmente melhor se as tivessemrestituído, mas para os grandes proprietários isso sempre foi impensável.

Após um ano de pontificado, Estêvão III viajou para o norte, no inverno, para seavistar com Pepino, Rei dos Francos. Nunca um papa tinha procurado auxílio junto deum soberano ocidental; e este viria a ser o primeiro de muitos pedidos de auxílio militar.Vestido de negro, o cabelo coberto de cinzas, o papa ajoelhou aos pés do reiimplorando-lhe que usasse os seus exércitos para salvar os interesses de Pedro e Pauloe da comunidade de Roma. Aí, na Abadia de S.Dinis, sagrou Pepino e seu filho CarlosMagno como “patrícios dos Romanos“.

É muito provável que neste encontro Estêvão tivesse mostrado ao seu anfitrião realum documento muito antigo. Cheio de pó e a desfazer-se, tinha sido preservado duranteséculos nos arquivos papais. Datado de 15 de Março de 315, chamava-se “A Doação deConstantino”. Era uma escritura ou um presente do primeiro imperador ao PapaSilvestre.

A Doação conta a comevedora estória de como Constantino contraiu a lepra por todoo corpo. Os sacerdotes pagãos erigiram uma fonte no Capitólio e tentaram persuadi-lo aenchê-la de sangue de crianças. Enquanto o sangue estivesse quente, Constantinodeveria banhar-se nele para ficar curado. Arrebanharam muitas crianças acompanhadasdas mães em lágrimas. O imperador, comovido com as suas lágrimas, mandou-as paracasa carregadas de presentes. Nessa noite ele teve um sonho. Pedro e Paulo disseram-lhe que contactasse o Papa Silvestre, então escondido no Monte Soracte. O papamostrar-lhe-ia o verdadeiro “lago da piedade”. Uma vez recuperada a saúde, teria derestaurar as igrejas cristãs em todo o mundo, deixar de rezar aos ídolos e venerar overdadeiro Deus. Constantino fez como lhe disseram. «Quando eu estava no fundo da

Page 45: Vigde cristo

45

fonte,» disse ele, «vi uma mão vinda do Céu a tocar-me». Voltou do seu baptismocurado. Silvestre pregou-lhe a Trindade e repetiu as palavras de Jesus para Pedro: «Tués Pedro […] e eu vou entregar-te as Chaves do Reino». Convencido de que se tinhacurado pelo poder do Apóstolo, Constantino, em nome do Senado e de todo o povo deRoma, ofereceu um presente ao Filho do Vigário de Deus e a todos os seus sucessores:

Considerando que o nosso poder imperial é terreno, decretámos queele venerará e honrará a sua muito santa Igreja Romana e que asagrada Sé do Abençoado Pedro será gloriosamente exaltadamesmo acima do nosso Império e trono terreno. […] Ele dirigirá asquatro principais Sés, Antióquia, Alexandria, Constantinopla eJerusalém, como todas as igrejas de Deus em todo o mundo…Finalmente, vede, transferimos para Silvestre, papa universal, apropriedade do nosso palácio assim como de todas as províncias epalácios e distritos da cidade de Roma e Itália e das regiões deocidente.

Constantino também deu uma explicação até então desconhecida sobre a razão porque se mudara para o oriente. Desejava que Roma, onde a religião cristã foi fundadapelo Imperador do Céu (Cristo), não tivesse rival na terra. A Roma pagã abdicara emfavor da Roma cristã.

O Rei Pepino ficou impressionado. O documento provava que o papa era o sucessorde Pedro e também de Constantino. O imperador tinha mesmo agido como vassalo deSilvestre, inspirando muitos reis e imperadores a imitarem a sua humildade nascoroações papais nos séculos seguintes.

Quando Pepino desbaratou os Lombardos, devolveu ao papa todas as terras queeram suas por direito devido à Doação.

Foi um desenvolvimento surpreendente dos Evangelhos. Jesus só possuía as roupasque trazia no corpo. Os seus principais discípulos agora não só tinham enormesterritórios a que se tornaram excessivamente apegados, como também precisavam dealianças militares para os manter.

A Doação continuou a ter influência. Por exemplo, o único papa inglês, Adriano IV,recorreu a ela quando deu a Irlanda a Henrique II da Inglaterra. Adriano foraanteriormente Nicholas Breakspear, filho de um padre.

Quando Henrique iniciou a longa e trágica ocupação da Irlanda em 1171, oepiscopado irlandês, reunido em Cashel, reconheceu-o e aos seus sucessores comolegítimos reis da Irlanda. Isto foi depois confirmado pelo novo papa, Alexandre III, nãosem antes ter insistido em que teria de receber uma quantia anual por cada membro doseu pessoal. Este era o preço do papado por entregar estas muito católicas e célticasterras ao normando inglês.

O que torna isto mais difícil de suportar é que a Doação foi uma falsificação.A Doação foi uma invenção, provavelmente maquinada por um padre de Latrão pouco

antes da visita de Estêvão III ao Rei Pepino. Tal era o estado da erudição nesse tempo.Todos se deixaram enganar por uma coisa que hoje não enganaria um miúdo da escola.Só quando um assessor papal, Lorenzo Valla, o analisou linha por linha em 1440 é queficou provado que era uma fraude.

Valla mostrou que o papa naquela alegada data da Doação não era Silvestre masMiltíades. O texto refere “Constantinopla”, enquanto a cidade de Constantino no Orienteainda conservava o nome original de Bizâncio. A Doação não estava escrita em latimclássico mas numa forma abastardada posterior. Também se dão explicações sobre, por

Page 46: Vigde cristo

46

exemplo, as insígnias de Constantino, que não teriam sido necessárias no século IV,mas que o eram no século VIII. De inúmeras e irrefutáveis maneiras, Valla desfezcompletamente o documento. Fê-lo com apreensão porque sabia que muitos preladosromanos iriam vingar-se.

Como eu ataquei não os mortos, mas os vivos, não meramente umqualquer legislador, mas o mais alto legislador, nomeadamente, oSumo Pontífice, contra cuja excomunhão nenhum príncipe podeproteger. […] O papa não tem o direito de me intimar por defender averdade. […] Quando tantos suportam a morte em defesa de umapátria terrena, não havia eu de correr perigo por amor da minhapátria celeste?

Só em 1517 é que o livro de Valla foi publicado. Foi no crítico ano em que Luteroatacou as indulgências. Uma cópia chegou às mãos de Lutero, que viu pela primeira vezque muitas das suas crenças sobre o papado se baseavam em falsidades como a daDoação.

Embora todos os eruditos se tivessem rendido aos argumentos de Valla, Roma nãoos aceitou; continuou a afirmar durante séculos a autenticidade da Doação. E foi pena,na medida em que a verdade sobre ela era muito mais incrível do que a série dementiras que ela continha.

A estória da lepra de Constantino e da sua subsequente cura baptismal foi umainvenção piedosa do século V. A lenda ficou perpetuada no baptistério de S.João deLatrão em Roma. Uma inscrição relata a maneira como o imperador lá foi baptizado peloPapa Silvestre.

Os factos são estes: Constantino foi um militar num tempo em que para a Igreja oderramamento de sangue era inaceitável. Talvez seja esta a razão por que ele adiou obaptismo para uma altura em que já estava à beira da morte e não tinha já forças parapecar ou matar mais alguém. Não muito tempo antes, a sua mãe, Helena, morrera commais de oitenta anos. Só então é que o imperador se juntou aos catecúmenos, não nasede da Igreja, mas na distante Helenópolis, no Oriente. Foi aí baptizado não pelo papa,nem sequer por um bispo ou padre, mas por um bispo ariano herege chamado Eusébio.Morreu no último dia do período do Pentecostes no ano de 337. Isto lança algumassombras sobre muitos dos mais significativos acontecimentos da história dos primeirostempos da Igreja.

Quando chamou aos bispos seus queridos irmãos e se intitulou ele próprio “Bispo dosBispos”, nome de que os papas se apropriaram mais tarde, Constantino não era cristãonem sequer catacúmeno. Contudo, ninguém se lhe podia comparar em estatura eautoridade. Mesmo o Bispo de Roma — que não havia de se chamar “o papa” aindadurante muitos séculos — era, em comparação, uma pessoa sem importância. Emtermos civis, era vassalo do imperador; em termos espirituais, era, comparado comConstantino, um bispo de segunda categoria, com um título honorífico superior à maioriados outros bispos porque detinha a Sé Apostólica onde Pedro e Paulo tinham trabalhadoe estavam sepultados. Como Burckhardt acentua na sua obra The Age of Constantine, otítulo de bispo ecuménico do imperador «não era uma simples maneira de dizer; narealidade, a Igreja não tinha qualquer outro centro de poder». Não era o papa, mas simele, tal como, mais tarde, Carlos Magno, que era o chefe da Igreja, a sua fonte deunidade, perante quem o Bispo de Roma se tinha de prostrar e jurar a sua lealdade.

Page 47: Vigde cristo

47

Todos os bispos concordavam em que ele era o «oráculo inspirado, o apóstolo dasabedoria da Igreja».

Até ao fim da sua vida, Constantino construiu magníficas igrejas na Palestina enoutros locais e ao mesmo tempo construía templos pagãos igualmente magníficos emConstantinopla. Isto foi claramente entendido como a primeira afirmação da “QuestãoRomana”. O imperador foi considerado pessoa sagrada, Pontifex Maximus, outro títuloque o papa havia de assumir mais tarde. Daí que o imperador, e só ele, tivesseautoridade para convocar assembleias religiosas como o Concílio de Arles no ano de314. Como diz um bispo seu contemporâneo: «A Igreja fazia parte do Estado. A Igrejanasceu dentro do Império e não o Império dentro da Igreja». Era, portanto, Constantino,e não o Bispo de Roma, quem marcava a data e o local dos sínodos da Igreja e até amaneira como os votos eram distribuídos. Sem a sua aprovação não podiam sertransformados em lei; ele era o único legislador do Império.

Outro paradoxo da história é que foi Constantino, um pagão, quem inventou a ideia deum concílio de todas as comunidades cristãs. Só desta maneira, dizia-lhe o seu génio, éque a fé da Igreja seria formulada de maneira incontestável e para sempre. Nenhumbispo desse tempo teria pedido ao Bispo de Roma para decidir sobre espinhosasquestões de crença.

Depois de derrotar Licínio no Oriente em 321, Constantino convocou o PrimeiroConcílio Geral da Igreja, que se realizou em 325 na Bitínia, num lugar chamado Niceia,que significa “Vitória”. Foi talvez a mais importante assembleia cristã da história. OArianismo, uma heresia que subordinava o Filho ao Pai, tinha-se espalhado por todo omundo. A controvérsia não foi simplesmente amarga, foi sangrenta. Ter os cristãos aguerrearem-se uns aos outros não era do interesse do imperador; eles deviam ser aforça estabilizadora do Império. Ficou desanimado quando descobriu que, depois de oslibertar das perseguições, estavam a despedaçar-se uns aos outros em nome daSantíssima Trindade.

Em Niceia o Pai Fundador dos Concílios Ecuménicos reuniu 300 bispos, tendoprovidenciado transporte gratuito. Todos eles, à excepção de uma dúzia, eram doOriente. Silvestre, o Bispo de Roma, não assistiu; enviou dois presbíteros. Silvestre nãoteve, sem sombra de dúvida, qualquer papel na convocação do Concílio, nem na suadirecção. Este foi completamente controlado por um imperador pagão que o realizou nogrande átrio do seu palácio. Segundo o historiador Eusébio, ele era alto e magro, cheiode graça e majestade. Para fazer sentir a sua presença abriu os trabalhos «rígido no seumanto de púrpura, ouro e pedras preciosas».

Cedo ficou claro que a maioria dos bispos era a favor da posição ariana. Constantinonão tinha quaisquer preferências teológicas conhecidas, mas ergueu-se do seu tronodourado para pôr fim à discussão. Provavelmente queria apenas mostrar quemmandava. Propôs aquilo que veio a chamar-se «o ponto de vista ortodoxo» do facto de oFilho de Deus ser «de uma única substância» com o Pai. Todos os bispos dissidentescederam, à excepção de dois que Constantino imediatamente destituiu mandando-osfazer as malas. Depois, escreveu para Alexandria, onde os Arianos ainda tinham apoio:«Aquilo que satisfez trezentos bispos não foi senão a vontade de Deus».

O resultado não foi aquele que ele esperava. A “heresia” ariana continuou porgerações. E o mesmo se passou com a completa imersão do Estado nos assuntos daIgreja. A política eclesiástica substituiu as prioridades do Evangelho. A religião não eraimportante, o que era sumamente importante era a Igreja. O resultado, é Burckhardtquem o diz, foi uma «Igreja a desintegrar-se rapidamente na vitória».

O preço da “conversão” de Constantino ao Cristianismo foi a perda da inocência. Ocínico uso que fez de Cristo, com que toda a gente condescendeu, incluindo o Bispo de

Page 48: Vigde cristo

48

Roma, significou uma profunda falsificação da mensagem do Evangelho e a introduçãode valores a ela estranhos. A partir de então, o Catolicismo floresceu em detrimento doCristianismo e de Jesus, que não pretendia qualquer papel no mundo do poder e dapolítica e que preferiu ser crucificado a impor as suas opiniões a quem quer que fosse.

* * *

Na altura em que Estêvão III se tornou papa, a Igreja já se tinha completamenteconvertido no Império Romano. A partir da Doação, é muito claro que o Bispo de Romase parecia com Constantino: vivia como ele, vestia-se como ele, habitava os seuspalácios, governava as suas terras, tinha exactamente o mesmo aspecto imperial.Também o papa queria ser senhor da Igreja e do Estado.

Apenas setecentos anos após a morte de Pedro, os papas tinham-se tornadoobcecados pelo poder e pelos bens. O pontífice passeava-se pomposamente pela terra,figura da mundanidade e da espiritualidade. Queria, literalmente, o melhor dos doismundos, mas alguns imperadores controlaram a sua ambição.

O Sacro Império Romano

Carlos Magno tinha cinquenta e oito anos, estatura enorme para aquele tempo,cabeça redonda e cabelo branco, nariz comprido e olhos grandes e vivos. Inteligente ecapaz de conversar em latim, fundador de universidades, nunca conseguiu dominar aleitura, nem nunca foi capaz, apesar de ter os melhores tutores, de escrever o nome.

Nos cinquenta e três anos que se seguiram a Estêvão III, crescera a necessidade deauxílio militar por parte do papado. Os laços que ligavam Roma e Constantinopla, devidoà distância e à diferença de pontos de vista, estavam já quase completamentequebrados. Carlos Magno, rei dos Francos, era homem para aproveitar a brecha paraentrar.

No ano 782 tinha feito prisioneiros quatro mil e quinhentos saxões, mandando-osdecapitar nas margens do Rio Aller. Era perfeitamente capaz de tratar dos Lombardos,que continuavam a ameaçar o papado.

O novo defensor da Igreja não era mais virtuoso do que Constantino. Tinha-sedivorciado da primeira mulher e teve seis filhos da segunda. Depois de dispensar osserviços desta, teve duas filhas da terceira e ainda mais uma filha de uma amante. Semfilhos da quarta mulher, quando ela morreu mantinha quatro amantes — doze foi a suaconta ao longo da vida — e teve pelo menos um filho de cada. Einhard, o seu biógrafofranco que forneceu estes pormenores, insiste que ele sempre foi um pai dedicado.

Alcuin, um inglês, o monge mais erudito da época, já há muito que tinha pressionadoCarlos Magno a aceitar a coroa do Ocidente. Havia apenas três grandes homens nomundo, disse ele ao seu mestre, sendo dois deles o papa e o imperador deConstantinopla. «O terceiro é a dignidade real que por disposição de Nosso SenhorJesus Cristo vos é conferida como governador do povo cristão; e esta é mais excelentedo que as outras dignidades do poder, mais forte em sabedoria, mais sublime emcategoria».

O papa reinante, Leão III, estava ansioso pela vinda de Carlos Magno para Roma.Precisava de protecção contra os intrusos; também queria ter o seu nome limpo ao maisalto nível de insistentes acusações de adultério. Pouco antes de Carlos Magno chegar,Leão foi atacado por uma turba hostil. Rasgaram-lhe os olhos e cortaram-lhe a língua. Oresultado foi que a coroação de 800 não teve nada do esplendor e do aparato da de

Page 49: Vigde cristo

49

Napoleão quando em 1804 este se coroou como “Imperador dos Franceses“ em NotreDame de Paris.

Carlos Magno estava ajoelhado em frente do túmulo de Pedro quando Leão, a tacteará procura da cabeça onde devia colocar a coroa balbuciou que Carlos Magno eraImperador e Augusto e ajoelhou a venerá-lo. Segundo Einhard, o seu mestre ficouvermelho de raiva. Mais tarde Einhard ouviu Carlos Magno dizer «que não teria ido àigreja naquele dia mesmo que se tratasse de uma festa solene [o Natal] se tivesseadivinhado os planos do pontífice». Ele queria as honras, claro, mas não à custa de terde as receber de um vassalo. Tendo tido a maçada de vir a Roma para desculpar ummiserável súbdito, não queria aparecer como objecto da sua bênção.

Carlos Magno intuiu aquilo que os historiadores haviam de ver muito claramente. Comum golpe de mestre, Leão III estava a afirmar um poder que, nos seus sucessores, iriatriunfar sobre os grandes soberanos temporais da terra.

Carlos Magno não tardou a agir como governador supremo da Igreja, legislando,escolhendo de entre os nobres os bispos, arcebispos e abades. Tentou fazer com queos monges deixassem de fornicar e, pior, de praticar a sodomia. Também punia com amorte qualquer saxão que, fingindo ser cristão, se escusasse a ser baptizado. CarlosMagno cumpriu de todas as maneiras os desejos de Aluin. Agiu como chefe daComunidade Cristã. Havia uma lógica nisto, na medida em que o antecessor de Leão,Adriano I, já lhe tinha dado, como recompensa por ele ter aumentado os Estados doPapado, o considerável privilégio de escolher o pontífice Romano.

Acontece que o futuro da Europa foi escrito naquele momento de surpreendenteambiguidade em que um papa, criado por Carlos Magno, o coroou como imperador.Qual deles era o maior? De momento, não havia dúvidas acerca disso: Carlos Magno.Mas nos anos que se seguiriam, por este coup de théâtre, Leão tinha assegurado aopapado uma suada oportunidade de supremacia.

Foi assim que a Basílica de S.Pedro viu o começo do Sacro Império Romano que,como até uma criança sabe, não foi nem sacro, nem romano, nem império. Havia de vira durar mil anos, até que, em 1806, Napoleão destronou um monarca de Habsburgo e odissolveu. Tinham passado então mil e quinhentos anos durante os quais o papado, nãocontente em confiar apenas no poder de Deus, se tinha apoiado nos príncipes para seproteger contra os portões do inferno.

Mas os ataques mais ferozes contra a Igreja não vieram de fora; vieram de dentro —vieram de facto do próprio papado.

Page 50: Vigde cristo

50

Page 51: Vigde cristo

51

3A Pornocracia Papal

A vinte e cinco quilómetros de Roma, no cimo dos Montes Albanos, moravam noséculo X os famosos Conti, os Condes Alberico de Túscolo. Estes senhores da guerratomaram completo controle das eleições papais. Desta única família saíram sete papas,três seguidos, e todos eles, quase sem excepção, ajudaram a dar forma à RomaDeplorabilis (“Roma da Vergonha”).

A História desmente o mito popular de que Bórgia foi a maçã podre do papado. Nãomuito tempo depois de Carlos Magno, e durante bem mais de século e meio, toda afornada foi podre. Eram discípulos mais de Belial, o Príncipe das Trevas, do que deCristo. Muitos eram libertinos, assassinos, adúlteros, amantes da guerra, tiranos,simoníacos, prontos a vender tudo o que era sagrado. Quase todos eles estavam maisenvolvidos com o dinheiro e a intriga do que com a religião.

Com incessantes manobras políticas e uma obsessão pelas questões temporais, pormeio do abuso do poder e com uma espantosa perversidade, os papas, supostamente onúcleo da unidade, corromperam toda a Cristandade. Foi o papado, e não a heresia,que finalmente abriu brechas na Igreja.

Há realmente um mistério em tudo isto: como é que a Igreja do Ocidente, apesar dospapas, se conseguiu manter unida durante tanto tempo?

Para começar, busquemos a ajuda de um exame a uma qualquer lista dos papas apartir do ano 880. Nos cento e cinquenta anos seguintes houve trinta e cinco pontíficesque reinaram em média quatro anos cada. Já anteriormente se verificara o mesmo tipode transmissões de poder; isto explica-se pelo facto de os papas serem escolhidos porserem já velhos e doentes. Mas nos séculos VIII e IX muitos papas andavam na casados vinte anos, e vários eram adolescentes. Alguns reinaram vinte dias, um mês, ou trêsmeses. Seis deles foram destronados, e alguns outros assassinados. É de factoimpossível saber ao certo quantos papas e antipapas (falsos) houve neste período,porque nessa altura não havia ainda um método de eleição fixo nem um número certode pretendentes.

Quando um papa desaparecia subitamente, não se sabia se lhe teriam cortado opescoço e atirado ao Tibre; se teria sido estrangulado na prisão; se teria passado anoite num bordel; se lhe teriam cortado as orelhas e o nariz, como em 930 fizeram aEstêvão VIII, que, compreensivelmente, nunca mais mostrou a cara em público; se teriafugido, como Benedito V em 964, que, depois de desonrar uma jovem, partiuimediatamente para Constantinopla com todo o tesouro da Basílica de S.Pedro, paraapenas voltar quando os fundos se esgotaram e provocar ainda mais estragos emRoma. Gerbert, o piedoso historiador da Igreja, chamou a Benedito «o mais iníquo detodos os monstros da impiedade», mas o seu juízo foi prematuro. Este pontífice foi porfim assassinado por um marido ciumento. O seu corpo, com centenas de punhaladas,foi arrastado pelas ruas antes de ser lançado para um esgoto.

Estes pontífices constituem, sem dúvida, o mais desprezível grupo de líderes,religiosos ou leigos, da História. Eles eram, com toda a evidência, selvagens. A antigaRoma não se lhes comparava em podridão.

Page 52: Vigde cristo

52

Estêvão VII era completamente louco. Desenterrou um seu antecessor corso, o PapaFormoso (891-6), mais de nove meses após a sua morte. Naquilo que veio a serconhecido como o Sínodo Cadavérico, vestiu o fétido cadáver com todas as vestespontifícias, colocou-o no trono em Latrão e fez-lhe pessoalmente um interrogatório.Formoso era acusado de se ter tornado papa por meios ilegais; era bispo em outro lugare portanto inelegível para Roma. Segundo o Papa Estêvão, isto tornava todos os seusactos inválidos, especialmente as suas ordenações. Um diácono fala-barato, aindaadolescente, respondeu em nome de Formoso. Depois de considerado culpado, ocadáver foi condenado como antipapa, despido de todas as roupas excepto uma camisade cilício colada à carne engelhada e, sem os dois dedos com que tinha dado as suasfalsas bênçãos, foi lançado ao Tibre. Alguns admiradores de Formoso recuperaram ocorpo, qual carcassa de carne, ainda inteiro graças à camisa de cilício, e fizeram-lhe umfuneral discreto. Mais tarde foi trazido de novo para o seu túmulo na Basílica deS.Pedro. O próprio Estêvão foi estrangulado passado pouco tempo.

Os papas mutilaram e foram mutilados, mataram e foram mortos. As suas vidas nãose assemelhavam em nada aos Evangelhos. Tinham mais em comum com osmodernos meninos ricos transformados em hooligans e rufiões que infestam os cafés depraia e clubes nocturnos do que com os pontífices tal como o mundo os vê hoje. Unsficaram a dever a sua nomeação a pais ambiciosos, outros à espada, outros ainda àinfluência de belas amantes bem nascidas, naquilo que ficou conhecido como “OReinado das Prostitutas“.

Entre as cortesãs, salientou-se Marózia da família Teofilato. Segundo o BispoLiutprand de Cremona, seu contemporâneo, ela fora bem treinada pela mãe, Teodora,que teve uma segunda filha, também chamada Teodora, do Papa João X (914-29).Aqueles que dizem que as mulheres nunca tiveram qualquer influência na maneiracomo a Igreja é governada nunca conheceram estas duas mulheres incrivelmentedeterminadas. Em menos de uma década, elas criaram — e, quando isso lhes conveio,destruíram — nada menos do que oito papas. No seu Decline and Fall, Gibbon sugereque foram estes “papas-fêmeas“ que condensaram a política do sexo que deu origem àlenda, ou sátira, da Papisa Joana. Durante vários séculos, até à Reforma, acreditou-sena existência deste pontífice feminino. Para os ingleses é uma consolação saberem quea única papisa foi uma bela rapariga anglo-saxónica. Reza a estória que, vestida a rigorcom as vestes papais, ela deu à luz um filho quando viajava do Coliseu para a Igreja deS.Clemente e, coitada, morreu ali mesmo. Esta lenda gerou outras lendas. Em S.Joãode Latrão havia uma cadeira de mármore cor de sangue com um buraco no assento.Todos os papas recém-eleitos se sentavam nela para receberem a afirmação deobediência dos seus clérigos. Mas corria o boato de que depois da papisa Joana todosos papas eram obrigados a sentar-se nesta cadeira e a submeter-se a uma espécie deexame ginecológico para evitar que uma segunda mulher ascendesse ao trono papal. Oexame — feito por cardeais-mulheres? — era acompanhado por orações em latim. Defacto, há um completo ritual escrito que aparece em muitos manuscritos medievais comtoda a seriedade. Uma outra interpretação mais prosaica desta cadeira era que ela erana verdade uma cadeira-sanita, símbolo visível do facto de o papa ter sido promovidoda esterqueira, como um pedinte, e colocado por Deus entre os príncipes.

Parece não haver qualquer obstáculo teológico ao desempenho do cargo de papa poruma mulher, mesmo, como diz João Paulo, estando as mulheres proibidas pela leidivina de serem padres. Muitos arcebispos e bispos não tinham ordens. Por exemplo,Adriano V aparece nas listas de pontífices, embora tenha reinado apenas seis semanas,de 11 de Julho a 18 de Agosto de 1276. Não era bispo, nem sequer padre, mas foi umpapa legítimo.

Page 53: Vigde cristo

53

A Bela Prostituta

Marózia, a principal fonte da lenda da Papisa Joana, esteve primeiro intimamenteenvolvida com o papado na pessoa de Sérgio III (904-11). A barrar o caminho destepara o trono, estivera Leão V, que após um mês de reinado foi preso por um usurpador,o Cardeal Cristóvão. Sérgio procedeu a uma limpeza assassinando ambos.

Sérgio exumou uma vez mais o Papa Formoso, já morto então há dez anos e fê-locondenar outra vez. Como tinha sido ordenado por Formoso, Sérgio devia realmenteter-se considerado ilegítimo a si próprio, mas as argumentações teológicas eramestranhas à sua natureza. E ainda não satisfeito, mandou que decapitassem o cadávere também lhe arrancou mais três dedos antes de o lançar ao Tibre. Quando o corposem cabeça ficou preso na rede de um pescador, o cadáver foi mais uma vezmilagrosamente salvo, sendo pela segunda vez restituído à Basílica de S.Pedro.

Marózia tinha quinze anos quando se tornou amante de Sérgio, que tinha quarenta ecinco. Dele, ela teve um filho a cuja carreira se devotou. Sérgio viria a morrer cinco anosmais tarde, depois de um pontificado de sete anos carregado de sangue, intrigas epaixão.

Marózia nunca iria esquecer o seu amor da juventude. A relação íntima com o papatinha-lhe dado um desígnio e uma satisfação que nem os seus três casamentos einúmeras ligações amorosas posteriores conseguiram apagar. A primeira vez que oPapa Sérgio a seduziu foi no palácio de Latrão. Os seus caminhos tinham-se cruzadoporque ela passara ali grande parte da juventude, dado que o pai era senador emRoma. Mas depois chegou a altura em que Sérgio se apercebeu de que aquela queoutrora fora uma criança espantosa se tinha tornado uma mulher de uma beleza decortar a respiração. Pela parte de Marózia, não era tanto o prazer que procurava nosbraços papais, mas antes o êxtase do poder. A mãe, Teodora, já tinha feito e desfeitodois papas quando, em contravenção da lei canónica, pegou na mão do seu amantefavorito e o levou do bispado de Bolonha ao arcebispado de Ravena e por fim à Cadeirade Pedro, como João X. Liutprand, Bispo de Cremona, escreveu: «Teodora, prostitutacomo era, temendo ter poucas oportunidades de partilhar a cama com o seu amado,obrigou-o a abandonar o bispado e tomar para si — oh, crime monstruoso - o papado deRoma». Isto aconteceu em Março de 914 quando Marózia tinha vinte e dois anos. Nãose importou muito com isso; o filho dela e de Sérgio tinha apenas seis anos, muito novoainda para o papado, mesmo nesses tempos ímpios.

Foi neste ponto que os Albericos da Toscânia, oriundos do norte, entraram em cena.O Papa João sugeriu a Teodora, sua companheira de cama, que um casamento entreMarózia e Alberico poderia vir a ser benéfico para todas as partes. Marózia sabiareconhecer uma estrela em ascensão, e dessa união nasceu Alberico Júnior. AlbericoSénior, provavelmente induzido pela mulher, tentou prematuramente tomar o controlede Roma e foi morto. O Papa João obrigou a jovem viúva a ver o cadáver mutilado. Istofoi um erro. Uma mulher que dormira com o Papa Sérgio sabia tudo sobre a vingança.

Quando Teodora morreu, em 928, Marózia mandou prender o pontífice e depois deuordens para que fosse morto por asfixia. O seu primeiro filho tinha agora dezasseteanos. Em breve, muito em breve, teria já a experiência suficiente para o papado. Umavida totalmente sensual e imoral tinha-o preparado para isso. Os dois papas seguintestiveram reinados curtos, tendo ambos desaparecido em circunstâncias misteriosas.Então, com vinte anos, o filho de Marózia e do Papa Sérgio tornou-se o Papa João XI.

Mas Marózia tinha ainda outras ambições. Morto o seu segundo marido, Gui, casoucom o meio irmão deste, o Rei Hugo da Provença. Hugo já era casado, mas foi fácil

Page 54: Vigde cristo

54

despachar a mulher. Para Marózia foi uma sorte o filho ser o papa, pois este conseguiudispensar o feliz casal de todos os impedimentos, tais como o incesto. O que é quepodia impedir o seu novo marido de se tornar imperador e ela própria imperatriz? Istoera uma coisa que Sérgio teria desejado. João XI oficiou o casamento de sua mãe emRoma na primavera de 932.

Depois tudo se desfez por causa do segundo filho de Marózia, o ciumento AlbericoJúnior, de dezoito anos, que tomou o poder em Roma para se tornar o novo fazedor depapas. Hugo da Provença abandonou a mulher e fugiu em desgraça. Alberico pôs JoãoXI, seu meio irmão e filho de uma papa, sob prisão permanente em Latrão — morreu aíquatro anos mais tarde — e, o mais cruel golpe de todos, mandou prender a própriamãe.

Passado o seu apogeu, Marózia conservou a sua distinção quando pela primeira vezpisou o Mausoléu de Hadrian, popularmente conhecido como o Castel Sant’Ângelo. Iriaficar naquele terrível lugar junto ao Tibre, durante mais de cinquenta anos, sem umúnico dia de redução.

Já tinha passado dos sessenta quando soube, na prisão, que Alberico tinha morridoaos quarenta e o filho, seu neto, chamado Octaviano, se tinha introduzido na Igrejacomo papa. Chamou-se João XII, tendo sido o primeiro pontífice a mudar de nome. Istopassou-se no inverno de 955. Ela virou as costas ao assunto e mergulhou no seu sonhode passadas glórias com o seu amante Sérgio.

A juventude do novo papa pode explicar em parte o seu comportamento muito poucoreligioso, uma vez que tinha apenas dezasseis anos quando assumiu o pesado cargo.Mosteiros inteiros passavam os dias a rezar pela sua morte.

Mesmo para um papa desse período, ele era tão mau que os cidadãos queriamvingança. Inventou pecados desconhecidos desde o princípio do mundo, diziam eles,incluindo o de dormir com a mãe. Tinha um harém no palácio de Latrão. Jogava com asofertas dos peregrinos. Mantinha uma coudelaria de dois mil cavalos que alimentavacom almôndegas e figos passados por vinho. Recompensava as companheiras dassuas noites de amor com cálices de ouro da Basílica de S.Pedro. Não fez nada pelonegócio turístico mais lucrativo da época, nomeadamente, as peregrinações. Asmulheres em particular eram avisadas de que não deviam entrar em S.João de Latrãose prezavam a sua honra; o papa andava sempre em busca de uma presa. Chegou atéa brindar ao Diabo em frente do altar-mor da igreja-mãe da Cristandade.

O Papa João provocou tal ira que, temendo pela sua vida, saqueou a Basílica e fugiupara o Tivoli.

Quando soube disto, Otão da Saxónia, de cinquenta anos — coroado imperador emS.Pedro em 961 — ordenou ao jovem que regressasse imediatamente. Não convinhaaos seus planos ter um pontífice ausente; era mau para os negócios do império.

Foi convocado um sínodo para pôr as coisas em ordem. Estiveram presentesdezasseis cardeais, todos os numerosos bispos italianos e muitos outros que foramrecrutados na Alemanha. O Bispo de Cremona deixou um registo preciso dasacusações feitas ao papa. Tinha dito missa sem comungar. Tinha ordenado um diácononum estábulo. Tinha levado dinheiro pelas ordenações. Tinha tido relações sexuais comuma quantidade de damas, incluindo a velha paixão de seu pai e a sua própria sobrinha.Tinha cegado o seu próprio director espiritual. Tinha castrado um cardeal, causando-lhea morte. Todas estas acusações foram confirmadas sob juramento.

Depois Otão escreveu a João uma carta que deve figurar entre as grandescuriosidades de todos os tempos.

Page 55: Vigde cristo

55

Toda a gente, clérigos e leigos, acusa Vossa Santidade dehomicídio, perjúrio, sacrilégio, incesto com parentes, incluindo duasde vossas irmãs, e de terdes, como um pagão, invocado Júpiter,Vénus e outros demónios.

João respondeu ditando uma carta dirigida aos bispos e destituída de gosto e degramática. Avisava-os de que se o depusessem os excomungaria a todos, impedindo-osassim de ordenar e celebrar missa. Depois montou num cavalo e foi caçar.

Quando Otão por fim se cansou de esperar e voltou à Saxónia, a família de Joãoreuniu um exército para lhe assegurar um regresso seguro a casa. Em Roma, retomouas suas funções Petrinas. Não satisfeito com uma coisa tão suave como a excomunhão,mutilou ou executou todos aqueles que tinham contribuído para o seu exílio.

Papa nenhum foi para Deus numa situação tão embaraçosa. Uma noite, um maridociumento, um dos muitos, apanhou Sua Santidade com a mulher in flagrante delicto edeu-lhe os últimos sacramentos com uma martelada na cabeça. Tinha ele vinte e quatroanos. Os Romanos, conhecidos pelo seu espírito selvagem, disseram que aquilo foi oclímax da sua carreira. Pelo menos teve a sorte de morrer na cama, mesmo sendo a deoutrem.

O Cardeal Belarmino no seu livro sobre o papado De Romano Pontifice, no séculoXVII, havia de dizer: «O papa é o juiz supremo para decidir as questões da fé e damoral». Este grande defensor do papado escreveu no mesmo livro: «Se o papa errasseimpondo os pecados e proibindo as virtudes, a Igreja teria mesmo assim de consideraros pecados bons e as virtudes como vícios, senão pecaria contra a consciência». Nãoadmira que os papas adolescentes fizessem tanta coisa impunemente. Contudo, mesmoBelarmino, que sabia tudo acerca dos Bórgias, teve de admitir que João XII «era aescória». Fuerit fieri omnium deterrimus.

Com um monstro fora do caminho, os Romanos escolheram Benedito V para osubstituir. Otão, sentindo-se enganado, ficou furioso. «Ninguém pode ser papa sem oconsentimento do imperador» declarou ele. «Sempre assim foi». A sua escolha recaiuem Leão VIII.

O Cardeal Barónio, no seu Ecclesistical Annals do século XVI, a que Acton chamou«a maior história da Igreja jamais escrita», sustentou que Benedito era o verdadeiropapa e Leão o antipapa. É difícil discutir isto. Contudo, Benedito prostrou-se aos pés deOtão e declarou-se um impostor. Para o provar, tirou as suas insígnias e confessou, dejoelhos, perante Leão que ele, Leão, era o sucessor legítimo de S.Pedro.

Não é muito claro se a afirmação genuína de um papa de que ele próprio não élegítimo é um exercício de infalibilidade, embora deva transmitir uma mensagem paratoda a Igreja sobre a fé e a moral.

Quando Leão e Benedito morreram, Otão colocou no trono João XIII. Não foi umaescolha sensata. Os romanos mandaram-no imediatamente fazer as malas. Otão trouxe-o de volta para apenas chegar à conclusão de que o instinto local estava correcto. Onovo papa cometeu actos de uma crueldade incrível. Segundo Liutprand, nas suascrónicas, ele arrancava os olhos aos inimigos e passou metade da população à espada.

Pouco depois de João XIII, veio Benedito VII, outro que viria a morrer em pleno actode adultério às mãos de um marido furioso.

O Cardeal Barónio ficou compreensivelmente embaraçado com os acontecimentosque relatou com notável honestidade. Chamou aos pontífices deste período “invasoresda Santa Sé, mais apóstatas do que apóstolos” (non apostolicos sed apostaticos).Confessa que treme ao ter de escrever sobre eles. Na Cadeira de S.Pedro sentaram-senão homens mas monstros com a forma de homens. «Messalinas presunçosas cheias

Page 56: Vigde cristo

56

de luxúria e astúcia em todas as formas da maldade governaram Roma e prostituíram aCadeira de S.Pedro para seus lacaios e amantes.

À luz dos decretos do Concílio Vaticano I, em 1870, as suas conclusões sãosurpreendentes.

A principal lição destes tempos é que a Igreja pode viver muito bemsem os papas. O que é vital para a sobrevivência não é o papa masJesus Cristo. Ele é que é o chefe da Igreja, não o papa.

Alguns séculos mais tarde, Barónio teria sido estigmatizado como herege. Agora a fécatólica define-se assim: o papa é o chefe da Igreja na terra, o Vigário de Cristo, a Pedrasobre a qual a Igreja está edificada, o laço da unidade, o que preserva a fé e a moral.Mas o longo período em revista revela um retrato inteiramente diferente. Não só Baróniomas também o povo de Roma teriam rido de tamanha patetice. Para eles era evidenteque as Portas do Inferno tinham prevalecido. Se isto não era a vitória do Príncipe dasTrevas, o que é que o era, então? A única questão que os intrigava não era «Como éque o papa pode salvar a Igreja?», mas «Como é que o papa pode salvar a própriaalma?»

Durante todos estes tempos tempestuosos e outros que se seguiram, Maróziacontinuou na sua cela da prisão. Aquela que outrora fora a criatura mais arrebatadora doseu tempo, estava reduzida a um monte de ossos engelhado e viscoso envolto emtrapos. Agora já nos noventa e cinco anos, a recordação de ter dormido com um papa ede lhe ter dado um filho que ela por sua vez fez papa também, deve ter-lhe dado forçaspara sobreviver. Abandonada, nunca, porém, foi completamente esquecida na alta rodado poder.

Na primavera de 986, o Papa Gregório V, com vinte e três anos, e seu primo, oImperador Otão III, com quinze, decidiram que a pobre velha já tinha definhado na prisãotempo suficiente. O papa mandou um bispo submisso exorcizá-la dos seus demónios elevantar-lhe a sentença de excomunhão. Foi absolvida dos seus pecados. Depois foiexecutada.

O Papa-Menino

Quase cinquenta anos mais tarde, em 1032, o Papa João XIX da Casa de Túscolomorreu. O Conde Alberico III pagou uma fortuna para manter o cargo na família. Quemmelhor para preencher a vaga do que o seu próprio filho Teofilato? Raoul Glaber, ummonge de Cluny, conta que, na altura da sua eleição, em Outubro de 1032, SuaSantidade Benedito IX tinha onze anos de idade. Segundo Monsenhor Louis Duchesne,Benedito era «apenas um garoto que em pouco tempo se havia de tornar diligentementeagressivo».

Era um espectáculo singular: um miúdo que ainda nem adolescente era, que nemtinha ainda mudado de voz, era o principal legislador e governante da Igreja Católica,chamado a usar a tiara, a celebrar missa solene em S.Pedro, a conceder benefícioseclesiásticos, a nomear bispos e a excomungar hereges. As proezas de Sua Santidadecom as damas provam que o papa-menino atingiu a puberdade muito cedo. Aos catorzeanos, diz um cronista, já tinha superado em devassidão e extravagância todos os que oprecederam.

Page 57: Vigde cristo

57

S.Pedro Damião, um fino juiz do pecado, exclamou: «Esse miserável regalou-se comimoralidades do princípio ao fim da sua vida». Outro observador escreveu: «Um demóniodo inferno disfarçado de padre ocupou a Cadeira de Pedro».

Teve muitas vezes de sair de Roma à pressa. A primeira vez, nas festividades deS.Pedro e S.Paulo em 1033, um eclipse do sol que deu ao interior da Basílica um tomfantasmagórico de açafrão foi o pretexto para o expulsar. Quando regressou, algunsnobres tentaram derrubá-lo durante a missa. Falharam. Quando Benedito foi de novovarrido de Roma, o exército do Imperador Conrado empurrou-o de novo para lá. Em1046, tendo sido uma vez mais expulso por saque, assassínio e opressão, voltou para oseu Túscolo natal. Na sua ausência, os Romanos escolheram outro pontífice, SilvestreIII, um homem dos Montes Sabinos. Decidiram que era de longe melhor violar a leicanónica e ofender a divindade do que suportar Benedito IX. Depois de cinquenta diasfelizes, o papa-menino foi reposto pela família, que persuadiu Silvestre a ir-se embora.

Por fim, Benedito quis resignar. Tinha debaixo de olho a sua bela prima, filha deGirard de Saxo. Girard deu o seu consentimento na condição de que o papa abdicasse.Num surpreendente ataque de escrúpulos, Benedito decidiu verificar se esse era um dosseus direitos. Consultou o seu padrinho, João Graciano, Arcipreste de S.João ad PortamLatinam. Graciano era um homem notável; completamente analfabeto, vivia emcastidade, como um lírio entre espinhos. Graciano assegurou-lhe que tinha o direito deresignar. E mais, já tinha um sucessor alinhado. E bateu no peito.

Feliz por resignar, Benedito exigiu um prémio de despedida de uma a duas mil libras(peso). Depois de uma difícil negociação fixou-se na totalidade da Caixa das Esmolas dePedro na Inglaterra. Nenhuma colecta feita pelos católicos ingleses foi alguma vez tãobem empregue.

Por entre manifestações de júbilo, Benedito, depois de se dispensar da obrigação decelibato, abdicou no Primeiro de Maio de 1045. «Devotado ao prazer,» havia de escrevero Papa Victor II, «preferiu viver mais como Epicuro do que como bispo… Saiu da cidadee mudou-se para um dos seus castelos no campo».

João Graciano, agora Gregório VI, foi alvo de severas críticas. Muitos papas houveque compraram o papado; nenhum, senão ele, jamais o tinha comprado de volta.Gregório argumentava que tinha feito um favor à Igreja. E Benedito salientava que nãotinha sido pago para sair; tinha simplesmente recuperado a despesa original feita pelopai.

Gregório poderia ter conseguido os seus intentos se Benedito, agora o civil Teofilatode Túscolo não tivesse sido rejeitado pela sua amada dama. Estava determinado avoltar. Com Silvestre ainda no activo, havia agora três reclamantes ao trono: Silvestreem S.Pedro, Gregório em Latrão e Benedito à espera do momento propício nos MontesAlbanos.

Entretanto em Roma os cofres estavam vazios; toda a gente, desde os papas ao maisinsignificante porteiro, era simoníaca; todos os clérigos tinham pelo menos uma amante;e as igrejas estavam a cair.

Neste momento crítico, entra em cena Henrique da Alemanha. Era conhecido porduas coisas: detestava a simonia e queria ser imperador mais do que qualquer outracoisa no mundo. A força venceu onde a exortação moral tinha falhado.

Em Sutria, no caminho para Roma, convocou um sínodo. Sob a sua direcção,Silvestre foi julgado como impostor; foi reduzido à condição de leigo e condenado apassar o resto dos seus dias num mosteiro muito rigoroso, se havia algum assim.Benedito tinha resignado e, segundo Henrique, destruíra ele mesmo qualquerpossibilidade de regresso. Quanto a Gregório VI, Henrique agradeceu-lhe o ter livrado a

Page 58: Vigde cristo

58

Igreja de uma peste mas não devia ter usado da simonia para o fazer. Isto era motivopara resignação.

Literalmente confrontado com o poder temporal, Gregório declarou: «Eu, Gregório,bispo, Servo dos servos de Deus, por causa da simonia que, por astúcia do demónio,entrou na minha eleição, decidi que devo ser deposto do bispado de Roma».

Presente na sua queda estava o seu jovem capelão, o monge Hildebrando, o futuroGregório VII. Viu o servo a bater no amo e nunca mais havia de o esquecer ou perdoar.

Henrique escolheu Clemente II para novo pontífice. No dia da sua nomeação, coroouHenrique como imperador, após o que Henrique, antecipando Napoleão, colocou naprópria cabeça o diadema que os Romanos usavam para coroar os seus patrícios. Comeste gesto, Henrique mostrou que era ele o chefe da Cristandade; o Bispo de Roma eraapenas o seu capelão particular.

Levou o velho papa com ele para a Alemanha para evitar que se tornasse incómodo.Em breve Gregório morreu no exílio e, quando Clemente também foi para junto doCriador, Benedito atirou-se ao trono papal onde ficou mais oito meses.

Henrique andava demasiado atarefado para tratar dele, mas mandou que o CondeBonifácio de Túscolo obrigasse Teofilato a cumprir as leis de uma vez por todas. O novopapa, Dâmaso II, depressa deu o último suspiro — envenenado, dizia-se, por Benedito.Provavelmente foi apenas o clima.

Com a sua morte, Benedito tinha mais uma vez o caminho livre, mas decidiu desistir.Retirou-se para o mosteiro de Grotta Ferrata onde, segundo se dizia com algumaambiguidade, a sua vida foi um exemplo para o resto da comunidade.

Neste momento negro do papado, parecia que Deus se apiedara da Igreja. Mandoudois pontífices considerados por muitos historiadores católicos como os maiores que aIgreja alguma vez produziu: Gregório VII e Inocêncio III.

Page 59: Vigde cristo

59

4O Apogeu do Papado

Foi o único papa que se canonizou a si próprio, mas é mais lembrado como umhomem obcecado por uma única recordação que o perseguiu durante quase quarentaanos até que veio a morrer como o pontífice mais venerado da história.

A recordação que praticamente transtornou a cabeça de Hildebrando, o PapaGregório VII, foi a do seu homónimo Gregório VI a ser deposto e humilhado em 1046. Opecador que isto fez foi o Imperador Henrique III, que pôs uma marioneta no trono emsua substituição.

Foi isto que o atormentou enquanto jovem, quando acompanhou Gregório VI no exíliona Alemanha; e também quando entrou para os beneditinos de Cluny e ascendeugradualmente a prior. E ainda lhe doía quando, chamado a Roma, foi conselheirodurante mais de dezoito anos de quatro papas e por fim o seu chanceler. Esta amargarecordação veio sobretudo à tona quando na Basílica de Latrão apinhada para o funeralde Alexandre II, em 1073, a congregação exclamou espontaneamente: «Hildebrando é opapa. S.Pedro escolheu-o». Em circunstâncias normais Hildebrando teria rejeitadoaquela maneira tão grosseira de escolher um pontífice. Tinha convencido um papaanterior a deixar a escolha exclusivamente ao Colégio dos Cardeais. Mas naquela alturaaceitou «a vontade de S.Pedro».

O novo papa, homem de muito pequena estatura, homuncio, não perdeu tempo emandou sem demora uma mensagem ao jovem Imperador Henrique IV solicitando o seureconhecimento.

Nada em toda a sua vida foi feito tão a contragosto como apresentar uma petição aum inferior ímpio; ele, Hildebrando, que era o maior homem da terra. Porquê fazê-lo seera contra os seus princípios? Porque não queria que se levantasse qualquer dúvidasubsequente sobre a sua legitimidade. Mas não estava longe o dia do ajuste de contas,o dia em que o cordeiro se transformaria em leão.

Os conselheiros de Henrique avisaram-no de que Hildebrando era perigoso. Comoera um asceta tratava os outros como se tratava a si próprio — abominavelmente. Oinexperiente imperador não lhes deu ouvidos. Não é verdade que o pai tinha deposto umpapa e nomeado sucessivamente os três seguintes? Como é que ele podia perceberque estava ali um pontífice cujos braços iriam crescer cada vez mais e que caminhavasobre andas? Gregório VII foi o último papa cuja eleição teve de ser confirmada peloimperador e cuja consagração se realizou na presença de legados imperiais.

Depois de obter a aprovação que desprezava, Gregório estava decidido a fazer vergaros príncipes de uma vez por todas. Para ele, todos eram corruptos. Tinham direito amenos respeito do que o mais mesquinho exorcista, que pelo menos expulsava osdemónios e não lhes oferecia hospitalidade principesca. Os monarcas apenas desejamdominar, dizia este orgulhoso pontífice. Seria necessária uma magnanimidade obscenada parte de Deus para salvar um só que fosse das chamas eternas. Tudo o que elesfazem radica no orgulho e contudo o que é que eles têm para oferecer? Um reimoribundo vai ter com o mais humilde padre de aldeia para se confessar. Quando é quemesmo uma mulher leiga vai ter com o imperador para lhe pedir o perdão de Deus?Onde é que está o imperador que pode garantir a salvação ou fazer o Corpo e o Sanguede Cristo com um simples movimento dos lábios? Qualquer desmiolado percebe que os

Page 60: Vigde cristo

60

padres são superiores aos reis. Então, a que distância acima de todos eles é que está opapa, sucessor de Pedro? Não era seu dever reduzir os príncipes ao seu real tamanhopara lhes dar uma lição de humildade?

Aquela recordação inapagável fez com que este homem de vontade inflexíveldesprezasse toda a autoridade civil. E um dia, estava decidido a isso, iria vingar-se.

Gregório VII e a sua escola de falsificadores

Desde os seus tempos de rapaz na Toscânia, Hildebrando, que era filho de umcarpinteiro de aldeia, sempre teve uma devoção apaixonada por S.Pedro. ComoPríncipe dos Apóstolos, o poder de Pedro não tinha limites. Era o Pastor-chefe, podiaunir e desunir no céu e na terra. Quando Hildebrando se tornou papa, elaborou umDictatus, ou lista, de vinte e sete teses que esquematizavam os seus poderes comovigário de Pedro. Entre elas estavam as seguintes:

O papa não pode ser julgado por ninguém na terra.A Igreja Romana nunca errou, nem pode errar até ao fim dostempos.Só o papa pode depor os bispos.Só ele tem direito às insígnias imperiais.Pode destronar imperadores e reis e dispensar os seus súbditos dosjuramentos de fidelidade.Todos os príncipes são obrigados a beijar-lhe os pés.Os seus legados, mesmo não sendo padres, têm precedência sobretodos os bispos.Um papa eleito legitimamente é, sem dúvida, um santo assimtornado pelos méritos de Pedro.

Esta santidade, afirmava ele tê-la experimentado de maneira esmagadora na suaeleição. Esta foi, aliás, uma ideia que os seus sucessores deixaram cair como se fossecarvão a arder. Tais afirmações eram muito estranhas, na medida em que Hildebrandotinha conhecido o papa-menino Benedito IX.

É difícil saber se ele tinha consciência de que a maior parte das suas teses erambaseadas em documentos falsificados. O menos que se pode dizer é que a suaingenuidade era alarmante, especialmente se tivermos em conta aquilo que o NovoTestamento diz sobre os erros de S.Pedro. Estas falsificações faziam crer que as suaspretensões em relação ao poder absoluto eram baseadas em antigos registoszelosamente guardados nos arquivos de Roma. Durante sete séculos, os Gregoschamaram a Roma a pátria das falsificações. Sempre que tentavam falar com Roma, ospapas apresentavam documentos falsos, e até alguns acrescentos a documentosconciliares que os Gregos, naturalmente, nunca tinham visto.

Gregório foi mais longe do que a Doação de Constantino. Ele tinha toda uma escolade falsificadores mesmo debaixo do seu nariz a produzir documentos atrás dedocumentos, com o aval do selo papal, para alimentar todas as suas necessidades.

Os líderes da escola eram Anselmo de Lucca, sobrinho do pontífice anterior, oCardeal Deusdedit e, depois deles, o Cardeal Gregório de Pavia. Se o Papa Gregório (emais tarde Urbano II) precisavam de qualquer justificação para uma acção contra umpríncipe ou um bispo, logo estes prelados produziam, literalmente, o documentoapropriado. Não era necessário procurar; era tudo feito ali mesmo.

Page 61: Vigde cristo

61

Muitos documentos mais antigos eram retocados para ficarem a dizer o contráriodaquilo que originalmente diziam. Alguns destes documentos mais antigos eram, elespróprios, falsificações. A escola de Hildebrando tratava todos os papeis, forjados ougenuínos, com uma desonestidade totalmente imparcial. O 1984 de Orwell foiantecipado de nove séculos, não num qualquer estado ímpio, às ordens do Big Brother,mas no coração do Catolicismo Romano e a favor do papa.

Este método expedito de inventar a história foi extraordinariamente bem sucedido,especialmente quando as falsificações eram imediatamente inseridas na lei canónica.Por meio de inúmeras mudanças subtis eles fizeram com que o Catolicismo parecesseimutável. Mudaram o “hoje” para “sempre foi e será”, o que mesmo agora,contrariamente às descobertas da História, é a marca peculiar do Catolicismo.

Assim se cumpriu a serena e mais longa de todas as revoluções, toda ela feita nopapel. Isto não teria sido possível numa época de literacia universal, de imprensa, defotocópias, de datação por carbono; foi possível sem o mínimo sobressalto numa épocade raros manuscritos, de erudição nula, e quando até alguns imperadores não sabiamler nem escrever.

Gregório não ficou isento de uma fraude própria.A mais influente de todas as falsificações foram os Decretais Pseudo-Isidorianos, de

origem francesa, de que Roma se apossou avidamente e que Gregório, que «não podiaerrar», tomou como autênticos. Consistiam de 115 documentos alegadamente escritospelos primeiros bispos de Roma, a começar por Clemente (88-97). Outros 125documentos tinham acrescentos falsificados que aumentavam o poder e o prestígio dopapado. Segundo o falsificador, os primeiros papas proibiram todo o comércio com umapessoa excomungada.

Em 1078, Gregório, sabendo que não havia precedentes para isso, estendeu esteprincípio aos imperadores e aos reis. Se um papa excomungava um imperador e osseus súbditos ficavam proibidos de tratar com ele, para que servia esse imperador?Apenas lhe restava ser destronado, o que Gregório gostava muito de fazer. Mesmo ospapistas mais ardentes acharam que era difícil perdoar tal coisa. Gregório confundiadeliberadamente dois códigos de leis, o canónico e o civil, e fazia de um princípioespiritual de excomunhão uma arma política. Nas suas mãos esta arma foi devastadora.Depôs o imperador grego, bem como Baleslaus, o rei polaco, proibindo a Polónia devoltar a intitular-se reino. Semeou a intranquilidade civil em país após país; houverebeliões e guerras civis.

Avançando por momentos no tempo, os documentos forjados em Roma nesta alturaforam sistematizados nos meados dos anos 1100 em Bolonha por Graciano, um mongebeneditino. O seu Decretum, ou Código de Lei Canónica, facilmente se pode considerarcomo tendo sido o livro mais influente alguma vez escrito por um católico. Estavasalpicado de três séculos de falsificações e conclusões delas retiradas com os seuspróprios acrescentos fictícios. Das 324 citações que ele faz dos papas dos primeirosquatro séculos só onze são genuínas.

Entre os seus acrescentos pessoais havia uma série de cânones que tratavam todasas pessoas excomungadas como hereges. Isto era alarmante tendo em vista a maneiracomo os hereges eram tratados. Urbano II já tinha decretado nos fins do século XI queeles deviam ser torturados e mortos.

Graciano inventou de forma notável uma maneira de aumentar o poder papal. O papa,declarou ele com a aprovação de Roma, é superior a todas as leis e a sua fonte semrestrições. Portanto tem de estar em pé de igualdade com o filho de Deus. Esta

Page 62: Vigde cristo

62

apoteose tornou-se a inspiração da Cúria, que agia em nome do papa. Todo o plumitivoera, em certo sentido, um deus.

Avançando ainda mais, para o século XIII, o Decretum foi a fonte de Tomás de Aquinopara as citações dos Padres e dos papas quando escreveu o seu magistral SummaTheologica, a segunda mais famosa obra de um católico. Tomás de Aquino, que poucoou nada sabia de grego, foi induzido em erro por Graciano, especialmente no que dizrespeito ao papado. Claro que Aquino teve uma enorme influência na Igreja,especialmente durante o Concílio Vaticano I, quando a infalibilidade papal foi definida.

Uma pequena ironia: no seu Summa, Aquino diz que os hereges deviam serexecutados com os mesmos fundamentos dos falsários. Os hereges não falsificamdinheiro, mas uma coisa muito mais preciosa: a fé. Não perguntava quais eram oscastigos apropriados para os criminosos que forjaram os documentos que induziram emerro a Igreja, ele próprio incluído, geração atrás de geração.

As falsificações de Gregório tinham a vantagem de ser simultaneamente originais esacrossantas, novas e contudo antigas. Não era sensato da parte de um príncipe opor-se ao papa quando anteriores pontífices como Inocêncio I e Gregório o Grande tinhamdeposto um imperador e um rei. Não que eles tivessem feito tal coisa, embora GregórioVII tivesse um documento a prová-lo. Os próprios falsários acreditavam de todo ocoração que Gregório tinha o poder de depor monarcas, e se com um toque de canetaaqui e ali eles podiam ajudar um mundo ímpio a acreditar o mesmo, onde é que estava omal?

A História tornou-se um ramo menor da Teologia e assim ficou desde então. Afinal,mesmo a História não pode contradizer a verdade infalível. Daí que nos anos deformação do Cristianismo Católico Romano toda a discussão fosse abafada pelas“citações“ que eram imediatamente fabricadas. O desenvolvimento não veioespontaneamente, foi antes metido à força em padrões preestabelecidos. A tradicionalsujeição dos papas aos Concílios Gerais em matérias de fé e de moral foi invertida.Opiniões controversas e por vezes absurdas tornaram-se dogmas; opiniões parciaiseram consagradas como ensinamentos católicos intemporais e irreversíveis.

Fabricar a História não é uma pequena coisa.

Mal foi eleito, Gregório VII começou a reformar tudo. Primeiro, para assegurar que aIgreja nunca fosse despojada dos seus bens, tentou eliminar a “fornicação“ universal,isto é, o casamento do clero. A lei do celibato do clero tinha sido praticamenteesquecida, mas não por Gregório. Se os padres não emendassem o seu comportamentoseriam suspensos e os leigos não poderiam aceitar o seu ministério. Era como se ospadres deixassem de ser padres. Perguntava um crítico: «Será que o papa diria que umhomem que peca deixa de ser homem?»

O resultado desta legislação foi, de acordo com Ray C. Petry, «fazer das inocentesmulheres dos pequenos clérigos desnorteados e zangados potenciais prostitutas aosmilhares». Diz Lecky: «Quando Hildebrando separou as mulheres dos padres e asdeixou arruinadas, inconsoláveis e desesperadas, muitas delas recorreram ao suicídiopara acabar com a sua agonia». O clero germânico queria saber onde é que Gregório,depois de suspender os homens do sacerdócio, iria buscar os anjos para os substituir».Um grupo de bispos italianos reuniu-se em concílio em Pavia em 1076 e excomungou opapa por separar maridos e mulheres e por preferir a licenciosidade entre os padres aocasamento respeitável.

Se Gregório tivesse concretizado a sua ameaça de suspender os padresincontinentes, teria praticamente varrido o Catolicismo do mapa. Feliz ou infelizmente, asua campanha não obteve sucesso duradouro. O celibato podia ele impor, mas não a

Page 63: Vigde cristo

63

castidade. Contudo, por via do celibato, conseguiu garantir o perpétuo sistema deapartheid no Catolicismo entre os clérigos que têm direitos e os leigos, homens emulheres, que os não têm. Curiosamente, foram mais leigos do que padres os que sesepararam das mulheres, talvez por se deixarem impressionar mais pelos ideais ascetasde Gregório. Os padres, depois de uma acalmia, continuaram a seguir a ideia de que oque faziam na cama só a eles dizia respeito.

A seguir, Gregório voltou-se para a simonia, a compra e venda de coisas sagradas.Para os cardeais a excomunhão para estes casos parecia excessiva, pois eles sabiamque tudo, a começar pelo próprio papado, tinha muito naturalmente o seu preço.

Contra uma prática velha de séculos, Gregório excomungava qualquer membro doclero que recebesse uma remuneração de um leigo, fosse ele duque ou príncipe. Istofazia parte da sua busca de poder absoluto. Ninguém da Igreja podia dever lealdade aninguém a não ser a ele próprio, Gregório. Contrariando uma tradição de mil anos,obrigou todos os bispos a um voto pessoal de lealdade ao papa. A partir de então, eleseram bispos por «concessão da Sé Apostólica». De um só golpe, os bispos diocesanos,sucessores dos apóstolos, perderam a independência que nem o Vaticano II conseguiurestaurar. A partir de Gregório VII, e apesar dos desmentidos, o papa é realmente obispo de todas as dioceses. Qualquer membro do clero que entre em conflito com opapa sobre qualquer assunto pode ser demitido com a mesma facilidade com que foinomeado. Se isto não é ser o bispo de facto, será difícil saber o que é que o érealmente.

O grande confronto

Gregório andara mais de trinta anos à espera de uma oportunidade para desafiar oimperador. Finalmente, acusou Henrique IV de simonia e de interferir nos assuntos daIgreja. Henrique ficou genuinamente espantado. Imiscuíra-se de facto, mas não fez nadamais do que os imperadores desde Constantino sempre tinham feito. Não é verdade quelhe tinham pedido o seu consentimento para a eleição de Gregório, e ele a tinhaconcedido? O que é que levava este papa a pensar que lhe podia dar ordens?

Melindrado, Henrique convocou um concílio em Worms e declarou nula a eleição. Nãotinha sido previamente consultado, na sua qualidade de imperador.

Gregório respondeu com um anátema sobre Henrique seguido de uma carta circular.

Em nome de Deus omnipotente, proíbo Henrique de governar osreinos de Itália e Alemanha. Dispenso todos os seus súbditos detodos os votos que façam ou tenham feito, e excomungo todosaqueles que o sirvam como rei.

Isto foi a bomba papal daquele tempo. Os imperadores tinham destituído muitospapas: Gregório tinha testemunhado um desses sacrilégios. Nunca antes um papaousara depor um imperador. Qual seria o resultado disto?

Havia bons presságios. A mãe de Henrique, a Imperatriz Agnes, pôs-se ao lado dopapa, assim como a prima, a temível Matilde, Condessa da Toscânia. Para desgosto deHenrique, aquele louco de Roma estava a obter bons resultados mesmo na Alemanha.Os príncipes começaram a denunciar a sua fidelidade. Para consolidar a sua vantagem,Gregório apoiou Rudolfo, Duque da Suábia e vassalo de Henrique, como primeirosucessor ao trono.

Page 64: Vigde cristo

64

Henrique, agora com vinte e um anos, compreendeu que estava encostado à parede.Aproximava-se o aniversário da sua excomunhão, altura em que perderia o reinooficialmente e para sempre, a menos que fizesse a paz com o papa.

Com uma pequena comitiva, atravessou a Borgonha e passou um natal familiaragradável, mas apreensivo, em Besançon. Depois, a meio do Inverno de 1077,atravessou os Alpes. Com ele, seguiam a mulher e o filho bebé, Conrado. Os guiascamponeses tiveram de escavar uma passagem na neve e puxar a rainha num trenó depele de boi. Caíram por ravinas e perderam a maior parte dos cavalos. Uma vez emItália, reuniram-se ao enorme exército Lombardo que esperava que ele viesse pôr opapa no seu lugar. Mas ele desiludiu-os.

Gregório estava protegido dos Lombardos dentro das paredes triplas da fortaleza deMatilde, em Canossa. Esta fortaleza erguia-se no cume de uma colina escarpada,matizada de vermelho, nos contrafortes dos Apeninos. Trinta quilómetros para noroesteficava Parma, invisível no meio das brumas daquele inverno particularmente rigoroso.Em Canossa Henrique apelou à paz.

Através de intermediários Gregório impôs as regras. Henrique devia enviar a coroa edemais adereços reais para Sua Santidade se desfazer deles. Devia confessarpublicamente que era indigno de ser imperador depois do seu vergonhosocomportamento em Worms e finalmente devia prometer cumprir a penitência que lhefosse imposta pelo papa, fosse ela qual fosse.

Depois de manifestar o seu acordo, Henrique subiu a branca encosta até à fortaleza,temeroso e só. Passada a primeira portada, detiveram-no no cercado seguinte. Muitoacima dele apareceu o papa com todos os adereços pontifícios para saborear a suahumilhação.

Com um vento de leste a assobiar à sua volta, Henrique foi despojado das suasinsígnias reais e obrigado a despir-se. Atiraram-lhe uma túnica de lã tão grosseira comouma camisa de cilício.

Veste isso. Gregório, com a sua própria camisa de cilício bem chegada às costasfustigadas e escondida pelas roupas, apenas gesticulou, não se dignando a falar paraalguém que não estava em comunhão com Deus e com a Igreja.

Henrique, a bater o dente, a pele roxa do frio, obedeceu. Em cabelo e descalço,estava de pé, enterrado na neve até aos tornozelos, envolto no pano de cilício demendicância e penitência. Tinha numa das mãos um vasculho e na outra uma tesourade tosquiar, símbolos da sua vontade em ser chicoteado e ciliciado.

E o imperador do Sacro Império Romano, herdeiro de Carlos Magno, ali esteve trêsdias e três noites, em jejum do nascer do sol até muito depois das estrelas começarem abrilhar, num espectáculo tão deplorável que os parentes nas ameias choravamsonoramente, incapazes de continuar a olhar. Hora após hora, Henrique com os cabelose sobrancelhas hirtos do gelo, rezou a Deus e ao papa por misericórdia comestremecidos suspiros.

Mais tarde, naquele mesmo ano, Gregório fez um relato das suas próprias acçõesnuma carta aos príncipes germânicos:

As pessoas que intercederam por Henrique murmuraram sobre agrande crueldade do Papa. Algumas ousaram mesmo dizer que talcomportamento era mais próprio da bárbara crueldade de um tiranodo que da justa severidade de um juiz eclesiástico.

Page 65: Vigde cristo

65

O que endureceu Gregório foi a distante lembrança do que o pai de Henrique fizeraao seu antecessor. Como dizem os italianos, a vingança serve-se fria.

Só quando a sua anfitriã Matilde ao quarto dia alegou que o primo morreria secontinuasse por mais tempo na neve é que o papa se compadeceu.

Henrique foi arrastado para dentro, um monte de carne gelada, para se apresentaresfarrapado perante o pontífice de tiara na cabeça. Esbelto e bem parecido, aqueledominava o feio anão moreno da Toscânia com o seu grande nariz e olhar fixo e frio.

Henrique teve de jurar que se submetia ao julgamento do papa em data e local aanunciar. Entretanto, não podia exercer a sua soberania até que o papa sepronunciasse. Como Maquiavel observou na sua História de Florença, «Henrique foi oprimeiro príncipe que teve a honra de sentir a estocada cortante das armas espirituais».

Mas Henrique também tinha o seu orgulho. Só pediu ao papa que mandasse levantara condenação.

Regressado à pátria, iniciou um campanha contra Rudolfo, o que fez com queGregório lhe impusesse de novo a condenação. Numa batalha à distância, Henriqueconvocou um concílio para depor o papa. O Bispo Berno de Osnabrüch escondeu-sedebaixo dos panos do altar da Catedral de Brixen até que terminassem os trabalhoscontra Gregório e depois reapareceu como que por magia. Henrique escolheu Guibertde Ravena para ser o papa Clemente III. Com este procedimento, Gregório profetizouque Henrique morreria nesse ano. Ao invés disso, depois de duas estrondosas vitórias,Henrique marchou sobre Roma e pôs Clemente no trono.

Gregório, velho, cansado e abandonado pelos seus cardeais, fugiu para Salerno, noReino de Nápoles. Tinha sido papa durante doze anos. Era um típico verão napolitano,mas ele nunca tinha sentido tanto frio desde que estivera nas ameias de Canossa.Arrogante até ao fim, deu a sua absolvição à raça humana «excepto ao chamado reiHenrique», a quem, para que não ficassem dúvidas, excomungou pela quarta vez. Nemmesmo um pontífice com poderes divinos podia redimi-lo.

Contrariando factos que são conhecidos, murmurou: «Amei a justiça e odiei ainiquidade e por isso morro no exílio». Esta falta de lógica não escapou a um assessorepiscopal. «Como no exílio, se todo o mundo é vosso?»

Gregório morreu em 25 de Maio de 1085.

Gregório é tido em grande consideração pelos católicos. O seu prestígio reside no seuascetismo, nas suas invectivas contra a simonia e a fornicação dos padres, na suatentativa de fazer recuar a maré de séculos de imoralidade papal, na sua capacidade de,por força de uma única ideia, destronar monarcas. É também o expoente clássico doCatolicismo Romano, que praticamente criou. Nunca teve uma dúvida ou uma opinião;tinha sempre a certeza de tudo.

Contudo, deixando de parte as falsificações que sustentaram as suas duvidosaspretensões, mesmo os seus admiradores têm de admitir que antes dele o trono e o altareram aliados. Os papas e os príncipes nunca deixaram de medir forças e por vezeslutaram como tigres. Primeiro, um usurpava as terras do outro, depois invertiam-se ospapeis. Mas, como representantes sagrados de Deus, nunca eles duvidaram de que, emcerto sentido profundo e sagrado, estavam ligados.

Gregório começou a estilhaçar essa frágil harmonia. Vira um imperador destronar umpapa e havia de destronar um imperador desse por onde desse.

Se tivesse posto um imperador no seu lugar, teria ficado acima de qualquer crítica.Mas fez muito mais do que isso. Ao introduzir uma doutrina perniciosa e herética, pôs-seno lugar do imperador. Em nome do Homem Pobre de Nazaré, que renunciou a todos osreinos, reclamava-se não só de Bispo dos bispos, mas também de rei dos reis.

Page 66: Vigde cristo

66

Parodiando os Evangelhos: o diabo levou-o ao cimo de uma alta montanha e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e Gregório VII exclamou: São todos meus.

Como escreveu Henry Charles Lea, o mais objectivo dos historiadores, na sua obraThe Inquisition in the Middle Ages: «Devotou a sua vida à realização deste ideal [asupremacia papal] com um zelo ardente e um propósito inabalável que não recuouperante obstáculo nenhum, e a ele estava pronto a sacrificar não só os homens que selhe atravessassem no caminho, mas também os princípios imutáveis da verdade e dajustiça».

Desta maneira, Gregório deitou à terra as sementes que, depois de floresceremtrouxeram não só o fim da Cristandade, mas também a Reforma. O Bispo de Trierapercebeu-se do perigo. Acusou Gregório de destruir a unidade da Igreja. O Bispo deVerdun disse que o papa estava errado na sua incrível arrogância. A nossa crença épertença da nossa Igreja, o coração, do nosso país. O papa, disse ele, não deve roubara fidelidade do coração. E isto foi precisamente o que Gregório fez. Quis tudo; nãodeixou nada para os imperadores e para os príncipes. Ao minar o patriotismo, o papado,tal como ele o moldou, minou a autoridade dos governantes seculares; estes sentiam-seameaçados pelo Altar. Na Reforma, em Inglaterra e em toda a parte, os governantesviram-se obrigados a banir o Catolicismo das suas terras para se sentirem seguros.

Outro legado de Gregório VII foi a imposição do Romanismo na Igreja. Depois dele,um Catolicismo genuíno, um Catolicismo enraizado e enriquecido por cada localidade epor cada cultura já não era possível. Todas as igrejas tinham de seguir a norma romana,por muito estranha que ela fosse para as suas origens e experiência. O latim, o celibato,a teologia escolástica, tudo isto foi imposto a tal ponto que a unanimidade foi substituídapela uniformidade baseada em Roma.

As mudanças operadas por Gregório reflectiram-se na linguagem. Antes dele, o títulotradicional do papa era o de “Vigário de S.Pedro”. Depois ele, era o de “Vigário deCristo”. Só “Vigário de Cristo” podia justificar as suas pretensões absolutistas, que osseus sucessores herdaram, não de Pedro nem de Cristo, mas, de facto, dele mesmo.

Ele estabeleceu uma tendência. Nos cem anos que a ele se seguiram, os papasexcomungaram nada menos do que oito imperadores, depondo vários deles, e sempreperturbando a comunidade cristã. Os historiadores registaram setenta e cinco batalhassangrentas directamente relacionadas com a contenda de Gregório com o imperador.

Um resultado final paradoxal das reformas do ascético Gregório: as suas pretensõesabsolutistas abriram o caminho para papas como o licencioso Alexandre Bórgia. Mesmoquando havia um Satanás no trono papal, quem é que se atrevia a questionar o Vigáriode Cristo?

Gregório VII teve de esperar cinco séculos para que fosse canonizado oficialmentepor outro papa que não ele próprio. Esse papa, Pio V, também tinha uma propensãopara depor monarcas com resultados igualmente desastrosos.

Mas, de todos os louvores póstumos que recebeu aquele que Gregório teria guardadocomo mais precioso seria certamente o que lhe foi dado, não por outro pontífice, maspelo maior inimigo da Igreja do século XIX. «Se eu não fosse eu próprio, gostaria de serGregório VII». Quem assim falou foi Napoleão após a batalha de Austerlitz.

Se Napoleão escolheu Gregório em vez de Inocêncio foi provavelmente em resultadode moeda ao ar.

Page 67: Vigde cristo

67

Inocêncio III, o senhor do mundo

Foi o mais extraordinário encontro entre dois homens desde que Jesus esteveperante Pilato no Pretório. Aquele que envergava mantos reais no trono de púrpura era omais poderoso homem do mundo; o outro, o que tinha vinte e sete anos e estavaajoelhado a seus pés de vestes esfarrapadas e remendadas como um mendigo tinhaapostado em afirmar-se o mais pobre dos pobres.

Foi no verão de 1209. O Papa Inocêncio III tinha finalmente concordado em receberaquele pobre homem enxovalhado que tinha fama de santo. Aquele esqueléticorequerente tinha cabelo escuro e sobrancelhas regulares, dentes brancos, orelhaspequenas mas salientes. A barba era rara e esparsa. Os olhos negros e a piscarcintilavam, a voz era forte e musical e dele irradiava uma alegria peculiar. Era um poeta,diziam alguns. Falava do Irmão Sol e do Irmão Vento. A Lua, a Água, a Terra e até aMorte eram suas irmãs. Dizia-se que pregava aos pássaros e aos animais selvagens eque estes o escutavam. O seu grande amor era a Pobreza, a que ele chamava a Damamais rica e mais generosa do mundo.

Inocêncio não se lembrava, mas já uma vez se tinha cruzado com este estranhohomenzinho. Francisco conseguiu chegar ao Palácio de Latrão. O seu objectivo era irdireito ao topo para conseguir a aprovação para a irmandade religiosa que pretendiafundar. Cruzou-se por acaso com Inocêncio num corredor. Francisco viera de S.Pedroonde tinha trocado as suas roupas com um mendigo cujos trapos estavam ainda maismal cheirosos e andrajosos do que os dele. O pontífice fungou e expulsou-o.

Só Ugolino, cardeal de Óstia, o conseguiu convencer a conceder uma audiência aFrancisco. Ugolino, o futuro Gregório IX, também não compreendia Francisco, maspensava que ele tinha alguma coisa a oferecer à Igreja. Nunca havia de o compreender,nem mesmo quando o canonizou com reservas, em 1228.

A entrevista com Inocêncio III foi curta. O papa não concordava nem discordava deFrancisco e do seu amor pela pobreza. Tinha coisas mais importantes na cabeça. Como,por exemplo, governar o mundo.

O Cardeal Lothaire tinha sido eleito por unanimidade em 8 de Janeiro de 1198.Inocêncio, tal como o papa-menino Benedito IX, pertencia à família dos Albericos deTúscolo, uma família que havia de vir a gabar-se de ter tido treze papas, três anti-papase quarenta cardeais.

Aos trinta e oito anos, Inocêncio era o mais jovem membro do Sacro Colégio. Erabaixo, entroncado, bem parecido, eloquente, de olhos cinzentos duros e queixo firme.Tinha estudado nas melhores universidades de Paris e Bolonha. De temperamentoimpetuoso, com grandeza estampada em todo ele, nasceu para governar a qualquerpreço.

Depois da sua sagração em S.Pedro, Inocêncio foi coroado numa tribuna cá fora. OCardeal Arcediago tirou-lhe a mitra e substituiu-a pelo principesco Regnum.Originalmente feito de penas de pavão brancas, era agora um diadema com jóias,encimado por um carbúnculo.

«Toma esta tiara», entoou o Arcediago num ritual que teria surpreendido S.Pedro, «efica a saber que tu és o Pai de príncipes e reis, Governador do Mundo, o Vigário naTerra do nosso Salvador Jesus Cristo, cuja honra e glória perdurarão por toda aeternidade».

O pontífice, discípulo de Gregório VII, nunca duvidou que aquela blasfémia lhe eradevida.

Page 68: Vigde cristo

68

Ele era a reencarnação de Constantino. A famosa mofa de Thomas Hobbes emLeviathan parece justificada: «O Papado não passa de um fantasma do falecido ImpérioRomano, coroado e sentado sobre o túmulo deste». Com as suas vestes a brilhar deouro e jóias, Inocêncio montou um cavalo branco coberto de vermelho e reuniu-se àcavalgada pela cidade engalanada ao longo da Via Papae, que serpenteava sob osvelhos arcos imperiais.

Na Torre de Estêvão Petri, um velho rabino, com os ombros envoltos no códice doPentateuco, avançou para lhe prestar homenagem. «Nós reconhecemos a Lei»,declarou Inocêncio formalmente, «mas condenamos os princípios do Judaísmo; porquea Lei já foi cumprida por meio de Cristo, que o cego povo de Judá ainda espera comoseu Messias».

O rabino, de olhos no chão, agradeceu ao pontífice as suas amáveis palavras eretirou-se, não fossem ainda mandar açoitá-lo.

O cortejo prosseguiu atravessando o Fórum. Roma, tal como Inocêncio a herdou, nãoera mais do que um vasto campo por cultivar rodeado pela muralha Aureliana cheia debrechas e coberta de musgo.

O pontífice decidiu mandar limpar o local e construir ali, para a família, uma torre,Torre de’ Conti, que dominasse toda a cidade. Passando por montes de entulho detemplos, balneários e aquedutos destruídos, Inocêncio contornou o Coliseu e dirigiu-separa Latrão.

Aí recebeu o voto de fidelidade do Senado Romano, prelados e príncipes beijaram-lheos pés e depois de distribuir dádivas pelos pobres e menos pobres convidou os nobrespara um banquete.

O pontífice ficou isolado, como é próprio das divindades. O serviço era do mais caro.O príncipe mais velho presente serviu-lhe o primeiro prato antes de tomar o seu lugar àmesa com os cardeais.

Inocêncio não comeu muito; a sua saúde nunca foi muito boa. Compensava um corpofrágil com a mais férrea vontade que um pontífice alguma vez teve. Já estava a planeartornar o seu título mais querido, o de “Governador do Mundo”, uma realidade.

O papado estava praticamente impotente quando da sua posse. O seu primeiroobjectivo, tal como o de muitos papas antes e depois dele, era restaurar os seusdomínios temporais. Pouco tempo depois já ele tinha feito de Roma um estado clerical.Um crítico do Senado queixava-se deste modo: «Ele depenou Roma como um falcãodepena uma galinha». Passados dois anos era ele, e não o imperador, o senhor deRoma e da Itália. Mas nem tudo correu como ele queria.

Em princípios de Maio de 1203, durante um curto levantamento dos cidadãosromanos, teve de fugir para Palestrina. No ano seguinte andava demasiado doente paraouvir as estórias sobre a maneira como os cavaleiros da Quarta Cruzada tinhamcometido o mais bárbaro dos crimes medievais: o saque de Constantinopla. Na grandecatedral de Santa Sofia violaram túmulos de imperadores, roubaram relíquias, violaram emataram mulheres, incluindo freiras. A cidade mais prestigiada do mundo foi arrasadapor soldados católicos que pareciam pensar que os cismáticos não tinham direitos nestemundo nem no próximo.

Isto, que foi o primeiro grande exemplo de vandalismo civil dentro da Cristandade,nunca foi esquecido pelos gregos. E Inocêncio não ajudou nada ao nomear umveneziano para Patriarca Latino de Bisâncio.

Dois anos mais tarde, Inocêncio fez a paz com a cidade de Roma e voltou pararetomar o seu cargo. O exílio apenas tinha feito aumentar o seu ardor pela dominação.Os primeiros papas não desgostavam de ser chamados de “Vigário de S.Pedro”. Ele

Page 69: Vigde cristo

69

rejeitou o título. «Nós somos os sucessores de Pedro, mas não os seus vigários, nem osde qualquer homem ou apóstolo. Nós somos o Vigário de Jesus Cristo perante quemtodos os joelhos se hão-de dobrar». Mesmo — melhor, especialmente — os joelhos dereis e imperadores.

A Igreja, dizia ele, é a alma e o Império apenas o corpo do mundo. A Igreja é o sol e oImpério uma lua morta que reflecte a luz da grande Orbe, a Igreja de Cristo.

Os ensinamentos de Inocêncio sobre a sociedade contradiziam a Bíblia. Para ele, opoder dos príncipes é uma forma de usurpação; só o poder do clero provém de Deus.Isto era maniqueísmo aplicado às relações entre a Igreja e o Estado. A Igreja, espiritual,era boa; o Estado, material, era essencialmente obra do Demónio. Este puroabsolutismo político minava a autoridade dos reis. Tomadas seriamente, as suas teoriasconduziriam à anarquia.

Inocêncio não pensava assim, claro, porque se sentia capaz de dirigir a Igreja e oEstado. Era este o seu objectivo expresso. Mas com que pretexto poderia ele governar asociedade secular? A resposta era esta: o Pecado. Onde quer que houvesse pecado, opapa era omnipotente. E onde é que, na Igreja e no Estado, não havia pecado?Convinha-lhe pintar os soberanos nas cores mais negras. Isto dava-lhe o direito, quantoa ele, de legislar para todo o mundo.

Precisava de instrumentos maleáveis. Escolheu Otão IV para imperador porque eleprometeu fazer tudo o que o papa mandasse. Otão foi o primeiro “Rei dos Romanos” aser chamado de “eleito pela graça de Deus e do papa“.

Passado um ano Otão revoltou-se alegando, com razão, que a sua promessa nãotinha base legal. Inocêncio excomungou-o e escolheu outro. E havia também de coroarPedro de Aragão e o Rei de Inglaterra. Nem mesmo Gregório VII tinha conseguidodominar o rei de Inglaterra. Guilherme, o Conquistador, recusou ser seu feudo dizendo:«Eu devo o meu reino a Deus e à minha espada». João, que foi coroado quando RicardoCoração de Leão morreu em 1199, era de calibre diferente.

João Lackland, que tinha apenas um metro e sessenta de altura, era, segundo aspalavras de um cronista, “um rei trapaceiro”. Mimado em criança, cresceu desregrado,rabugento e imprevisível. Tinha os olhos enviesados como um oriental e uma pelesempre pálida num rosto de raposa. Só em matéria de higiene é que não dava motivo acríticas; era conhecido por tomar oito banhos por ano.

O seu desequilíbrio ficou patente na coroação. Contrariando o protocolo, recusou ossacramentos. Em momentos solenes, dizia gracejos obscenos.

O seu desprezo pela Igreja já era evidente dez anos antes quando casou com a primaIsabel de Gloucester sem a devida dispensa. Uma ano após se ter tornado rei,apaixonou-se pela jovem e bela, e já noiva, Isabel de Angoulême. Depois de arquivado oseu próprio decreto de nulidade, casou com a sua segunda Isabel e fez dela a suarainha. Quando Inocêncio mostrou o seu desagrado, João compensou-o enviando ummilhar de homens para as Cruzadas e construindo uma abadia cisterciense com dinheiroroubado. Inocêncio consentiu tacitamente a segunda união.

O papa acabou por entrar em conflito com João, não por causa do casamento, maspor motivos de dinheiro. O rei andava a interferir com as liberdades da Igreja — umamaneira de dizer que ele andava a cobrar impostos ao clero para pagar as suas guerrascom a França.

Quando João nomeou o seu próprio candidato para a sé de Canterbury o papa achouque já era demais e nomeou Stephen Laughton, que João se recusou a reconhecer.Inocêncio deu-lhe três meses para mudar de ideias, caso contrário iria sentir toda a forçada lei canónica. Longe de ceder, João expulsou do reino os monges de Canterbury.

Page 70: Vigde cristo

70

Todos, à excepção de um bispo, se puseram ao lado de Inocêncio e partiram para oexílio. Assim começara um conflito de sete anos entre o rei e o papa.

Inocêncio mostrou até onde podia ir o seu espírito implacável, interditando toda aInglaterra. Foi uma punição de uma severidade incrível. Já a aplicara à França, queinterditara por oito meses pouco depois da sua eleição.

João jurou «pelos dentes de Deus» que se algum bispo divulgasse esta punição emInglaterra mandaria ao papa todos os clérigos com os olhos arrancados e os narizescortados. Quando a interdição foi publicada, no Domingo de Ramos de 1208, a primeirareacção de João foi confiscar os bens da Igreja com a ajuda da cobiça dos barões. Elepróprio, vítima intencional do castigo, divertiu-se imenso. Lançou impostos sobre o clero,não enviando nada para Roma. O seu divertimento favorito era correr as paróquias ànoite e tirar da cama dos párocos as esposas canonicamente ilegais — as focariae(companheiras). Se estes cavalheiros tonsurados quisessem as mulheres de voltatinham de pagar um alto resgate. Isto não era muito diferente das estropelias do oficialde diligências do arcediago, o mais odiado dos funcionários. Quando este desencantavaa amante de um padre — e a sua média de sucesso era extremamente alta — cobrava-lhe uma “renda de pecado“ de duas libras por ano.

O sofrimento atingiu a maior parte da Inglaterra. E as vítimas foram crianças eadultos. A religião, distracção e refrigério do povo, foi ilegalizada. As igrejas, únicospontos de encontro, foram fechadas e trancadas contra tudo excepto os morcegos nastorres e os falcões que faziam ninho nos cumes das catedrais. Esta censura silenciou omais encantador dos sons de toda a Inglaterra: o dos sinos. Não mais se ouviu nacidade e nos campos o dobre de finados ou o repicar do Gabriel de Angelus, nem amúsica com sabor a bronze, mas subtil, dos campanários, que afogava os gritos dasgaivotas e dos corvos e que, segundo a crença popular, esvaziava a pressão do ar dastempestades.

Os moribundos eram ungidos, os penitentes absolvidos e os recém-nascidosbaptizados. Quanto ao resto, a Inglaterra tornou-se um estado pagão.

Com oito mil catedrais e igrejas paroquiais fechadas, milhares de padres e clérigosmenores ficaram desempregados. Não se realizavam serviços religiosos no Natal nemna Páscoa, não se diziam missas, nem mesmo nos conventos e mosteiros, não se davaa comunhão, não se celebravam casamentos, não havia sermões, nem se ensinava adoutrina; não se realizavam procissões nem peregrinações a santuários como o de Ely,Walsingham ou Canterbury. Os mortos eram envoltos nas suas mortalhas e enterradoscomo cães.

Passou o verão, veio o inverno e voltou o verão sem uma única celebração cristã.Esta longa Sexta-feira Santa imposta pelo papa na sua misericórdia viria a durar, naInglaterra, seis anos, três meses e catorze dias.

À interdição seguiu-se a excomunhão do rei, em Outubro de 1209. Três anos depois,o papa depôs João e sugeriu a Filipe de França que se preparasse para o expulsar etomar o trono da Inglaterra. Quem obedecesse ao papa tinha garantidas as mesmasindulgências dos Cruzados.

A Inglaterra ansiava ver-se livre de um tirano que dormia com a mulher de qualquerhomem quando muito bem lhe apetecia. Arrancava um a um os dentes dos judeus ricosque não lhe apareciam com o dinheiro. Fazia reféns e, quando houve um levantamentono País de Gales, mandou enforcar vinte e oito jovens, filhos de chefes galeses noCastelo de Nottingham no verão de 1212.

Enquanto Filipe reunia as suas tropas junto da foz do Sena, João jogou a sua cartadamais forte: pediu a Roma que lhe enviasse um legado para fazer a paz.

Page 71: Vigde cristo

71

Satisfeitíssimo, o papa enviou o Cardeal Pandulf. No dia 13 de Maio de 1213, peranteuma assembleia de barões e povo, em Dover, João capitulou. Prometeu a restituiçãointegral dos fundos e das terras da Igreja.

Dois dias mais tarde, assinou de bom grado um segundo documento em queentregava a própria Inglaterra «a Deus e ao Nosso Senhor Papa Inocêncio e aos seussucessores católicos». E selou o documento, não com o habitual selo de cera, mas comum selo de ouro. João prometia que, daí em diante, ele e os seus sucessores deteriamos seus domínios como vassalos do papa e pagariam uma renda anual de mil marcospelo privilégio.

Esta vitória deu a Inocêncio um enorme prazer, mas foi mais um exemplo de excessopapal. A suserania papal sobre a Inglaterra terminou efectivamente em 1333, ano emque Eduardo III se recusou a pagar ao papa qualquer renda. Quando o papa Urbano Vimpassivelmente pediu o pagamento de trinta e três anos de dívidas atrasadas, Eduardo,depois de consultar os seus assessores concluiu que a doação da Inglaterra feita porJoão à Santa Sé ia contra o seu juramento da coroação e, portanto, era inválida. Ospapas não concordaram e esta questão viria a contribuir directamente para a secessãoda Inglaterra da fé católica no reinado de Isabel I. Para esta não era importante serchamado de feudo do papa ou pensar que a Inglaterra esteve apenas arrendada a umpotentado estrangeiro.

Filipe de França ficou furioso com Inocêncio III. Tinha despejado sessenta mil librasno Canal, mas não se atreveu a pôr pé em solo inglês, e agora papal.

Embora João fosse absolvido da excomunhão, a interdição manteve-se até Junho de1214, altura em que ele pagou o resto do dinheiro. Só então é que as portas da igreja seabriram, se cantou o Te Deum, e os sinos voltaram a tocar. E por gentil permissão doPapa Inocêncio III, Cristo pôde de novo entrar em Inglaterra.

Entretanto, o ódio dos barões a João atingiu um tal ponto que eles elaboraram aMagna Carta, que garantia os direitos da Igreja e do povo, especialmente os dos barões,e obrigaram João a apor-lhe o selo real. Nos termos da Carta, o rei, tal como todos oshomens livres, estava sujeito às leis; e o corpo da lei não podia ser secreto, tinha de serconhecido.

João, agora piamente católico, informou naturalmente Sua Santidade. Inocêncio,quando soube, exclamou: «Por S.Pedro, nós não podemos deixar passar tal insulto sempunição». O documento, muitas vezes considerado como a fundação das liberdadesinglesas, foi formalmente condenado pelo papa como «contrário à lei moral». O rei,explicava ele, não era, de modo nenhum, súbdito dos barões e do povo. Só o era deDeus e do papa. Consequentemente, os barões que tinham erradamente retiradoprerrogativas a um vassalo do papa tinham de ser punidos. Numa Bula, Inocêncio, «naplenitude do seu poder e autoridade ilimitados, os quais lhe foram cometidos por Deuspara sujeitar e destruir reinos, para plantar e extirpar», anulou a Carta; dispensou o reide a cumprir. Excomungaria «quem quer que continuasse a manter tais pretensõestraidoras e iníquas». Tem de se concluir que todos os ingleses continuamexcomungados.

Stephen Langton, Arcebispo de Canterbury, recusou-se a publicar a sentença. Opoder do papa não era ilimitado, dizia ele. «A lei natural vincula príncipes e bisposigualmente: não há que fugir disto. Está acima do próprio papa». Langton foi suspenso.

Para Inocêncio, que já dominara reis, os bispos foram uma pêra doce. Intitulou-se“Bispo Universal”, título repudiado por muitos dos primeiros pontífices. Com Inocêncio, aIgreja alcançou o ideal de Gregório; tornou-se uma diocese única. Inocêncio promulgoumais leis do que cinquenta dos papas que o precederam; ele próprio não estava sujeito

Page 72: Vigde cristo

72

a qualquer lei. Até hoje, foram publicadas seis mil das suas cartas. O seu alcance éextraordinário. Depõe e substitui bispos e abades. Impõe penas para um vasto leque deofensas. Por exemplo, um homem de nome Roberto foi capturado pelos Sarracenos,junto com a mulher e a filha. O chefe sarraceno promulgou uma ordem segundo a qual,devido à fome, os prisioneiros com filhos deviam matá-los e comê-los. «Este malvado»,escreveu Inocêncio, «impelido pela agonia da fome, matou e comeu a própria filha. Equando, em outra ocasião, saiu outra ordem, matou a própria mulher; mas quando a suacarne foi cozinhada e lhe foi servida não conseguiu comê-la». Parte da sua penitência foique nunca mais comeria carne. Nem nunca mais poderia voltar a casar.

Inocêncio completou o seu domínio sobre a Igreja no Quarto Concilio de Latrão em1215. Uma assembleia massiva de mil e quinhentos prelados escutou educadamente osseus decretos e aprovou-os sem uma pergunta ou uma palavra de debate. Uma das leisque eles aprovaram foi que todos os católicos tinham de confessar os seus pecados aopadre local e comungar pelo menos uma vez por ano. Desta maneira, os leigos ficaramsujeitos aos clérigos, os clérigos aos bispos e os bispos ao papa.

Os únicos dissidentes eram os hereges. A segunda parte deste livro tratará da glóriamaior do reinado de Inocêncio, nomeadamente, o esmagamento dos Albigenses no Sulde França. Centenas de milhar deles foram mortos pelo fogo ou à espada por suaordem. Na qualidade de único depositário da verdade, Inocêncio sentiu-se no direito deerradicar as heresias por quaisquer meios à sua disposição. Foi ele que deu um novoimpulso à Inquisição e injectou no Catolicismo um tipo especial de intolerância que iriadurar séculos.

Inocêncio III, estadista de génio, pontífice de «uma espantosa força de vontade»,governou o mundo com uma majestosa tranquilidade por um período de perto de vinteanos. Durante a maior parte do tempo cercou a Cristandade de terror. Coroou e depôssoberanos, interditou nações, criou praticamente os Estados Papais em toda a Itáliacentral, do Mediterrâneo ao Adriático. Não perdeu uma única batalha.

Perseguindo os seus objectivos, fez derramar mais sangue do que qualquer outropontífice. Desvirtuou profundamente os Evangelhos, a Igreja, o papado e até a distinçãoentre o bem e o mal. A prodigiosa perversão que operou em tudo isto revela-seclaramente numa simples afirmação de cortar a respiração: «Todo o clero tem deobedecer ao Papa, mesmo que ele ordene o que é mau; porque o papa não pode serjulgado por ninguém».

Estava em Perugia quando o seu fim chegou, em Julho de 1216. Tinha-lhe chegado anotícia de que os Franceses tinham ousado uma vez mais assaltar o seu reino deInglaterra. Como que para se retirar com sangue, fez uma comunicação final contra Luíse Filipe Augusto: «Espada, espada, salta da tua bainha. Espada, espada, afia-te eextermina».

Ao morrer, deve ter voltado o olhar pisco, por sobre o vasto manto da Planície daÚmbria, para a pequena cidade sonolenta de Assis, aninhada na encosta de uma colina.Talvez uma distante lembrança o tenha feito estremecer. Aquele dia em que um pedintede olhar brilhante veio ter com ele para lhe pedir o reconhecimento de uma irmandadeque queria fundar. E ele concedeu-lho ou não? Posto na grande balança das coisas, istonão pode ter sido importante.

O pedinte que ele expulsou do Palácio de Latrão, que não era uma ameaça paraninguém e que teria preferido morrer a privar alguém da consolação da religião, iria embreve sofrer no corpo as feridas do Cristo crucificado. Dele disse Dante no Paradiso:«Nacque al mondo un Sole» («Nasceu um Sol para o mundo»).

Page 73: Vigde cristo

73

Inocêncio III, o verdadeiro “Augusto do papado”, já só é conhecido dos historiadores.Mas não há ninguém que não tenha ouvido falar, com alegria e afeição, de Francisco deAssis.

* * *

Os sucessores de Inocêncio continuaram as suas pretensões absolutistas, e vierammesmo a aumentá-las. Gregório IX (1227-41), que canonizou o Pobre Homenzinho deAssis, declarou solenemente que o papa é o dono e senhor do universo, das coisas bemcomo das pessoas. Inocêncio IV (1243-54) decidiu que a Doação de Constantino estavamal apelidada. Constantino não deu poder secular aos papas; eles já tinham o podersecular supremo vindo de Cristo.

Só faltava o papa a quem Dante chamou a Besta Negra, Bonifácio VIII, para selar oabsolutismo papal.

Page 74: Vigde cristo

74

Page 75: Vigde cristo

75

5O Poder em Declínio

Benedito Gaetani foi coroado papa, com o nome de Bonifácio VIII, em 1294.Jacopone da Todi, o poeta que escreveu o famoso hino Stabat Mater, observou quenenhum nome lhe podia assentar tão mal. A sua não era nada uma “boa cara“.

Alto e corpulento, tinha, aos oitenta anos, o olhar mais frio jamais visto num homem.Llanduff, um cardeal da Cúria, disse dele esta coisa notável: «Ele é todo língua e olhose o resto está tudo podre». Uma vez recusou-se a confirmar a nomeação de um bispometropolitano simplesmente porque não gostou da sua cara e disse-lhe isso mesmo.Até um cardeal com uma deficiência, por exemplo, com artrite numa perna ou umacorcunda, podia ser ridicularizado sem misericórdia. Dizia missa com ardor e lágrimasnos olhos como se estivesse no Calvário e estivesse a ver Jesus crucificado. Acabada amissa, era capaz de atirar com as cinzas da penitência para a cara de qualquerarcebispo que lhe desagradasse. Segundo F. M. Powick, «Era admirado por muitos,temido por todos e amado por ninguém».

Bonifácio era calvo e tinha as orelhas espetadas num rosto oval inflamado daarrogância própria de alguém que sabe que não tem igual na terra. «O coração dopontífice romano», decretou ele, «é o repositório e fonte de toda a lei. Esta a razão porque a submissão cega à sua autoridade é essencial para a salvação». No Jubileu de1300, encontraram-no sentado no trono com a coroa de Constantino na cabeça, umaespada na mão e a repetir impiedosamente: «Eu sou o pontífice, eu sou o imperador».

As suas vestes eram das mais dispendiosas, vindas de Inglaterra e do Oriente, eandava coberto de peles e pedras preciosas. Quando falava, cuspia as palavras peloespaço onde lhe faltavam dois dentes no maxilar superior. O seu antecessor, CelestinoV, dizia sobre ele: «Saltaste para o trono como uma raposa, vais reinar como um leão emorrerás como um cão».

Poucos papas fizeram enriquecer tanto os familiares como Bonifácio. Um diplomataespanhol dizia: «Este papa só se preocupa com três coisas: uma vida longa, uma vidarica e uma família bem dotada à sua volta». Conhecido como “O Pecador Magnânimo”,Magnanimus Peccator, não perdeu tempo e logo fez de três sobrinhos cardeais,outorgando-lhes vastas terras e bens. Nas palavras de Dante, ele fez do sepulcro dePedro um esgoto.

Era um libertino, que uma vez teve como amantes uma mulher casada e a filha desta.Num daqueles comentários de improviso por que era conhecido disse: «Fazer sexo écomo esfregar as mãos». Depois, quando envelheceu, o seu único passatempo era,além de fazer dinheiro, fazer inimigos. O médico espanhol que lhe salvou a vida tornou-se o segundo homem mais odiado de Roma.

Apesar de toda a sua aparente autoconfiança, Bonifácio teve uma preocupação que oacompanhou até ao fim da vida. Muitos prelados desconfiavam que ele tinhaastuciosamente induzido o seu antecessor a resignar. Trata-se de uma das maisestranhas estórias da história da Igreja Católica e que começou no ano de 1292 com amorte do Papa Nicolau IV.

O conclave, que se realizou em Perugia, não chegou a acordo quanto a um sucessor.Os onze eleitores estavam divididos entre os Colonnas e os Orsinis de tal maneira quea discussão se prolongou sem resultado por semanas e meses. Benedito Gaetani

Page 76: Vigde cristo

76

manteve-se à parte, talvez na esperança de, numa solução de compromisso, vir ele aser escolhido. Depois de dois anos de impasse, Gaetani fingiu ter recebido uma “cartainflamada” de um velho eremita. Pedro de Morone, que vivia escondido numa gruta nosAbruzzi, tinha fama de santo. Na pretensa carta exigia que os cardeais dessem umpapa à órfã Igreja. Em vez de Gaetani, o Deão propôs, com sucesso, o próprio Pedro deMorone.

No verão de 1294 partiu de Perugia uma comitiva papal. Após uma viagem de 240quilómetros e uma escalada de trezentos metros, encontraram o novo papa. Magro,esfarrapado, sujo, espreitava por entre as grades da sua cela improvisada como ummacaco desnorteado. O odor de santidade não era agradável. A comitiva papal,encabeçada pelo Cardeal Pedro Colonna, ajoelhou com as palavras «VossaSantidade». Quando percebeu que aquilo não era uma piada e que não estava asonhar, Pedro de Morone aceitou. Tomou o nome de Celestino V.

O novo pontífice não concordava com a vida licenciosa de Roma e assim insistiu emestabelecer-se em Nápoles. Gaetani, para conquistar a sua confiança construiu-lhe umacela de madeira numa das enormes salas do Castello Nuovo, o castelo de cinco torressobranceiro ao mar. Aí, nas palavras de um seu contemporâneo, Sua Santidadeesperava esconder-se como um camponês nas moitas. Este era o seu ambiente eaqueles príncipes mundanos eram-lhe completamente estranhos. Não conseguiaentender as frases em latim erudito que eles usavam. Esvaziou os estábulos e quandotinha de viajar, fazia-o de burro, como Jesus.

A Igreja tinha mudado tanto desde os primeiros tempos que o próprio Jesus nãocaberia nela. Os cardeais depressa compreenderam o seu erro. Celestino estava adesfazer-se dos bens da Igreja dando-os a pessoas indignas, como os pobres e osmonges empobrecidos com quem sempre andara associado. Não tinha jeito para asimonia. Iria levar a Igreja à bancarrota em três tempos. Ele nem frequentava osbanquetes, preferindo mordiscar uma côdea de pão e beberricar água em retiro.

Alguém tinha de fazer qualquer coisa, e quem melhor para essa tarefa do queBenedito Gaetani? Este abriu um orifício na parede da cela do papa e introduziu neleum tubo para por ele se poder falar. A meio da noite, sussurrava através do tubo:«Celestino, Celestino, resigna do teu cargo. É um fardo grande demais para ti». Depoisde muitas noites a ouvir a voz do Espírito Santo, o simplório monge abdicou. Apenasquinze dias após a sua coroação convocara os cardeais e pedira-lhes, sem grandeesperança de sucesso, que mandassem as amantes para conventos e vivessem empobreza como Jesus. Trocou os mantos papais pelo seu grosseiro hábito de eremita,resignou e partiu.

Gaetani, jurista de formação, tinha engendrado este final bem sucedido; e agora,sendo a antítese de Celestino, reclamava o trono por direito. Subiu ao poder emDezembro de 1294 e regressou imediatamente a Roma. Mas, temendo que Celestinopudesse reaparecer acompanhado de espirituais fanáticos como Jacopone da Todi,tomou a precaução de o fechar no castelo de Fumone; o velho eremita aí morreu,poucos meses mais tarde, de fome e abandono.

A família Colonna veio a saber a maneira como Gaetani tinha forçado Celestino aresignar e usou este conhecimento para questionar a sua legitimidade. Bonifácio VIII,apesar de todo o seu poder, nunca se sentiu seguro no trono papal.

Os Colonnas eram descendentes dos Condes de Túscolo. Além de usurpar o trono, oseu trono, eles acusavam ainda Bonifácio de se apossar das suas terras à volta deRoma e de as doar a membros da sua família. Quando os Colonnas armaram umaemboscada a uma escolta papal que carregava ouro, Bonifácio tratou-os como turcos,

Page 77: Vigde cristo

77

pregando uma cruzada, com indulgências, contra eles. Quando por precaução elessairam furtivamente de Roma, acusou-os de conspirarem com os franceses para odestituírem. Em retaliação, mandou os exércitos para destruir as suas cidadelas nascolinas à volta de Roma, matando os camponeses nas suas terras ou vendendo-oscomo escravos. Em breve, só as muralhas rochosas de Palestrina podiam arcar com osantuário dos Colonnas.

Os dois cardeais Colonna não tinham outro remédio: tiveram de pedir misericórdia.Dirigiram-se apressadamente para Rieti, onde o papa estava instalado, e prostraram-sea seus pés com cordas à volta do pescoço e envergando mantos negros de penitência.

Bonifácio, com um olhar mais brilhante do que a tiara, poupou-lhes a vida mas tirou-lhes uma coisa que eles prezavam ainda mais: a honra. Expulsou-os do Sacro Colégio equebrou os seus selos com um martelo. Depois viajou para Anagni, a sua cidadefavorita, situada sobre o vasto vale do Sacco, sessenta e cinco quilómetros a oriente deRoma. Aí, no cume inferior do Monte San Giorgio, nascera e fora criado.

Dirigiu-se à janela da sala superior do palácio papal, donde desfrutava uma vistaarrebatadora da vegetação primaveril. Palestrina, um dos sete pilares da IgrejaRomana, empoleirava-se na encosta de uma colina, rodeada de oliveiras e loureiros.Horácio escreveu uma das suas mais belas Carmina em louvor de Palestrina, e foi aíque, no século III, o menino-mártir, Agapito, foi assassinado por amor de Cristo.

Depois de murmurar uma oração, o pontífice ergueu e deixou cair o braço qualdivindade vingadora. Logo uma bandeira foi arreada nas muralhas do palácio, sinal paraas forças do papa começarem a atacar Palestrina.

Nada foi poupado. Houve relatos que falavam em seis mil mortos, embora muitos doshabitantes tivessem fugido para as regiões circunvizinhas. Os palácios, incluindo a casade Júlio César, antiguidades e belos mosaicos, um templo circular da Virgem Maria nocimo de uma escadaria de mármore com cem degraus, tudo teve o mesmo fim. Só acatedral foi poupada. O resto foi tudo destruído de maneira tão cruel como a antigaCartago. O solo foi lavrado e espalharam sal nos sulcos para a desolação ser completa.Ali iria nascer outra cidade, prometeu Bonifácio, uma Civitas Papalis, uma cidade quesoubesse ser leal a Sua Santidade.

Por este acto monstruoso na primavera de 1299, Dante enterrou Bonifácio VIII noOitavo Círculo do Inferno, de cabeça para baixo, nas fendas da rocha.

Três anos mais tarde, num dia frio de meados de Novembro do ano de 1302,Bonifácio estava de volta a Anagni. A sua disposição era de tal maneira abominável quenem a vista de uma Palestrina arrasada lhe aliviou o espírito. A que ponto estava aCristandade a chegar quando ele não podia confiar no seu filho mais velho? A suadisputa com Filipe o Belo de França continuara a arrastar-se. O rei estava furioso com opontífice por não o ter feito imperador como prometera. Por vingança tinha lançadoimpostos sobre o clero para financiar as suas campanhas militares.

Bonifácio tinha retaliado seis anos antes com a sua Bula Clericis Laicos. Pegou nelae voltou a lê-la. Ainda ficava maravilhado com a sua intransigência. Gregório VII nãopodia ter feito melhor. «Os leigos sempre foram hostis ao clero». Tão verdadeiro,suspirou ele, no seu habitual tom sibilino. Filipe era um perfeito exemplo daqueleprincípio. Bonifácio tinha emitido excomunhões contra qualquer clérigo que pagasse umtostão que fosse a um leigo, fosse ele rei ou imperador. De facto ele decretou que seum monarca cobiçoso deitasse a mão a uma simples peça da baixela da Igreja seriaimediatamente excluído de Jesus Cristo, e se não se arrependesse perderia o seu reino.

Filipe ficou curado da sua loucura? De modo nenhum. Proibira a exportação de ouroe prata; o ladrão andava a embolsar todos os lucros da Igreja; e o pior de tudo é que

Page 78: Vigde cristo

78

prendeu um bispo. A tremer de raiva, Bonifácio pegou na pena. Uma nova Bula. Estaseria dirigida à Igreja universal. Depois dele, muitos católicos, incluindo alguns papas,desejariam que ele nunca a tivesse escrito.

A Bula “Unam Sanctam” e o fragor das espadas

O pontífice estava sentado à secretária, absorto, e o único som que se ouvia era o dapena a arranhar o papel. As suas primeiras palavras iriam correr mundo: UnamSanctam. «Só há uma única Santa Igreja Católica e Apostólica fora da qual não hásalvação ou remissão de pecados».

O melhor era fazer as suas alegações alto e bom som e de maneira clara. Ele, opapa, com Cristo e Pedro, era o único chefe da Igreja. Esta Igreja é a Arca da Salvação;alguém que esteja fora dela está condenado a afogar-se para sempre, especialmente oscristãos gregos que se recusam a admitir que o papa é o Pastor de todo o rebanho.

Veio-lhe à ideia uma imagem menos pastoral. O olhar iluminou-se-lhe: as DuasEspadas. «Os apóstolos disseram a Jesus, "Estão aqui duas espadas". O Senhor nãoresponde "É demais", mas sim, "Chegam!"» A exegese medieval raramente passoudeste nível.

Agora a pena corria.

Aquele que nega que Pedro tem o poder da espada temporal está ainterpretar erradamente as palavras do Senhor, «Embainha a tuaespada». Ambas as espadas, a espiritual e a material, estão empoder da Igreja. A espiritual é manejada pela Igreja; a material paraa Igreja. Uma pela mão do padre; a outra pela mão dos reis ecavaleiros segundo a vontade e consentimento tácito do padre. Umaespada tem de estar sob a outra; a material sob a espiritual, tal comoa autoridade temporal em geral está sob a espiritual.

Bonifácio fez uma pausa para olhar as ruínas de Palestrina. Que melhor prova daordem correcta das coisas numa comunidade espiritual? «O poder espiritual», continuouele, «tem de estabelecer o poder terreno e julgar se é bom ou não. Como disseJeremias, "Vede, hoje pus-vos acima das nações e dos reinos"». Esperava que destavez Filipe e todos os monarcas prestassem atenção às suas palavras.

Um toque autoritário final para que as suas palavras não fossem mal interpretadas:«Nós declaramos, anunciamos e definimos que é absolutamente necessário para asalvação de todas as criaturas ser súbdito do Pontífice Romano».

Para acentuar a sua autoridade, a Bula ia assinada do seu palácio de Latrão, nooitavo do seu pontificado. Chamando o secretário, um bispo, entregou-lhe a UnamSanctam para copiar e distribuir por toda a Igreja.

Em França a reacção não foi favorável. Um assessor do rei comentou: «A espada doPapa é feita apenas de palavras; a do meu Mestre é de aço».

Filipe espalhou o boato de que Bonifácio tinha obrigado o seu antecessor a resignar,o tinha depois prendido e assassinado. Bonifácio é um tirano, declarou ele, um herege,uma presa de todos os vícios».

O rei sabia que só as palavras não chegavam. Tinha de agir vigorosamente e comrapidez antes de ser excomungado. Convocou o seu chanceler, Guilherme de Nogaret.Em conjunto maquinaram uma trama ousada. Um esquadrão de homens armados seria

Page 79: Vigde cristo

79

treinado com o objectivo de apanhar o papa e trazê-lo de volta a França. Aí seriasubmetido a julgamento por um Concílio Geral que, sem dúvida, o deporia.

Nogaret fez uma vénia a sua Majestade e semanas depois a expedição estava prontaa partir.

Em Roma Bonifácio exultava. A Unam Sanctam tinha-lhe dado mais prazer do que adestruição de Palestrina, mais ainda do que ter visto dois milhões de peregrinos adirigirem-se para Roma em rebanho para lhe encher os cofres durante o Ano Santo doisanos antes. Era como se Deus lhe tivesse autenticado a Bula fazendo com que Filipetivesse sido derrotado no campo de batalha pelas forças flamengas em Courtrai.

Agora toda a Igreja sabia que as coisas de Deus são de Deus; e as coisas de Césarsão… bem, também elas são de Deus. Evidentemente. Mesmo que alguns papas nãotivessem tido estômago para o dizer. Afinal, todas as coisas são de Deus, porque foi eleque as criou, e o papa representa Deus. O papa, como Primeiro Pastor, tem o dever dealimentar todo o rebanho, incluindo as maiores ovelhas de todas: reis e imperadores.

Saboreou de novo a sua frase favorita da Unam Sanctam: Ninguém pode ser salvose não obedecer ao pontífice romano. Agora nem mesmo Filipe se atreveria a opor-se-lhe.

Não era Filipe mas a família Colonna que o preocupava. Depois de ter despromovidoos seus cardeais, eles não lhe tinham mostrado qualquer gratidão por ter poupado assuas vidas, antes fugiram da cidade. Não fazia ideia onde eles se encontrariam, masestavam com certeza a tramar alguma coisa algures. Arrependia-se de não os ter logoexecutado.

Passou-se um ano. Bonifácio estava uma vez mais no seu retiro favorito em Anagni.Estava a dar os últimos retoques numa Bula que excomungava Filipe e o expulsava dotrono. Sim, ia despedi-lo como a um moço de estrebaria. A esplêndida sensação queisto lhe provocava só era estragada por uma estória singular vinda de Florença. Algumtempo antes, ele tinha doado àquela cidade um leão adulto. Os florentinos mantiveram-no acorrentado num cortile no coração da cidade. Um dia, um burro descobriu ocaminho para o pátio e — mal podia acreditar — escoicinhou o rei dos animais até àmorte. Os florentinos diziam que aquilo pressagiava os últimos dias de Bonifácio VIII.

Donde viria uma calamidade daquelas? Ele não tinha o mínimo conhecimento de queNogaret tinha reunido forças com Sciarra Colonna, sobrinho e irmão dos ex-cardeais.Sciarra, jovem voluntarioso e sanguinário, estivera em Rieti, também vestido de negrode penitência, quando os seus parentes foram depostos, lançando a vergonha sobretodo o clã Colonna. Sciarra nunca iria esquecer o ter-se ajoelhado aos pés daquelemonstro e ouvido a sentença de excomunhão. Com esta, o papa baniu-o da irmandadedos cristãos e obrigou-o a um exílio perpétuo. Isto era praticamente uma sentença demorte, e ele tinha passado quatro anos nas galés até que um parente o resgatou. Estaaliança com os franceses daria a Sciarra a possibilidade de ajustar todas as suas contas— de um só golpe.

Num sábado, dia 7 de Outubro, os portões de Anagni foram traiçoeiramente abertosde madrugada pelo capitão da guarda do papa. Para as estreitas ruas entraramseiscentos cavaleiros e mil montadas. Esta cidade de escuras vielas escarpadas vibravasob o som de patas dos cavalos e do bater de pés. Mesmo isto foi rapidamente abafadopelo clangor dos sinos de alarme. Os invasores depressa retiraram as barreiraserguidas à pressa e saquearam os palácios dos cardeais fieis ao papa.

O palácio do papa estava bem fortificado no topo de uma colina e defendido pelosGaetanis. De lá, o papa mandou às seis da manhã, um mensageiro a pedir uma trégua.

Page 80: Vigde cristo

80

Secretamente pediu aos cidadãos mais importantes que viessem em seu auxílio.Prometeu-lhes imensas riquezas em troca da sua aliança nesta hora de necessidade.Eles recusaram.

Esteve sentado na sala do trono durante horas a pensar, a rezar, e a dar de novouma vista de olhos à Unam Sanctam, espantado pelo facto de um príncipe temporal terousado erguer a espada contra o Ungido de Deus, o Senhor do Mundo. À hora devésperas, foram-lhe entregues as condições da trégua. Tinha de readmitir os cardeaisColonna no Sacro Colégio, resignar e render-se incondicionalmente a Sciarra Colonna.

Para Bonifácio VIII, orgulhoso membro dos Gaetanis, isto significava luta até à morte.

Os invasores começaram a destruir pelo fogo os portões principais da catedral paraconseguirem entrar no palácio que ficava para além dela. Os clérigos nas suascompridas alvas brancas fugiam como gaivotas. Quando entraram, os homens deSciarra saquearam a catedral e mataram toda a gente que lá se encontrava. Avançaramdepois para o palácio, rebentando janelas e arrombando portas. Os guardas dasegurança do papa, em inferioridade, renderam-se e ofereceram-se para lhes mostrar odesenho do edifício. Aos gritos, desvairadamente, as tropas, comandadas por Sciarra,abriram caminho até à grande escadaria que dava acesso aos aposentos privados dopapa.

Sciarra não se preocupara em contar quantos tinha matado nas últimas horas.Lembrava-se de se ter atirado a um arcebispo, mas o resto era tudo muito vago. Tinha opeitoral salpicado de sangue e a cheirar a ferrugem; a espada e o punhal estavamvermelhos até ao punho. Quando empurrou a porta da enorme câmara de audiências dealtos tectos, ele e os seus homens foram engolidos por um tremendo silêncio.

O velho papa, de oitenta e seis anos, estava majestosamente sentado no trono, só,salvo um cardeal auxiliar encolhido num canto. Estava imóvel, envergando todas asvestes e símbolos pontifícios: a tiara, que simbolizava que ele era o Senhor do Mundo;nos dedos, além da grande safira oval a brilhar, tinha o Anel do Pescador. A maiselevada fonte do seu poder tinha-a na mão, uma cruz de ouro.

Sciarra ficou tão aterrado que a princípio nem conseguiu mexer-se. Quando se dirigiulentamente para Bonifácio, de espada desembainhada, o pontífice beijou altivamente acruz. Este gesto, o sonoro estalar dos lábios, teria feito parar um católico devoto, masnão Sciarra Colonna. Deu uma bofetada na cara manchada e marcada das veias doVigário de Cristo que ecoou na câmara das audiências e que fez com que os seuspróprios homens recuassem e se benzessem. Aquilo era um sacrilégio. E se Deus,como vingança, os fulminasse? A praguejar para manter a coragem, Sciarra gritou queaquele homem não era o papa, mas um impostor, filho de Satanás. «Resigna» ordenouele.

Bonifácio beijou de novo a cruz. «Antes morrer», murmurou.Orgulhoso demais para implorar misericórdia àquele patife excomungado, baixou a

cabeça. Depois, naquele seu tom irritante, «Ec le col, ec le cape» («Aqui tens o meupescoço; aqui tens a minha cabeça»).

Nascera em Anagni; não se importava de ali morrer. Este pontífice que afirmava quea espada temporal estava ao seu serviço tinha agora essa mesma espada sobre o seupescoço esquelético. Em ponto algum da história da Igreja há momento mais simbólico.Isto era a prova de que a aliança da Igreja e do Estado tinha atingido o ponto de rotura.Mesmo o sanguinário Sciarra hesitou. Seria ele capaz de cortar a Cabeça da Igreja?Tendo feito uma jura de vendetta, não tinha outro caminho. Num êxtase de alegriasádica, ergueu a espada e apontou cuidadosamente.

Page 81: Vigde cristo

81

Foi então que Nogaret entrou de rompante a gritar que o rei de França queria opontífice de volta a Lyons para enfrentar a deposição perante um concílio ecuménico.Sciarra, com o rosto cheio de sombras purpúreas, embainhou a espada. Para parcialcompensação, começou a despir Bonifácio da sua dignidade. Derrubou-lhe a tiara,deixando à mostra uma careca oval, depois divertiu-se a arrancar-lhe, por vezes com opunhal, as caras vestes papais, peça por peça. Os seus homens, aliviados por nãoterem tido de participar na morte de um papa, saquearam as salas. Ficaram espantadoscomo é que até um papa durante uma vida longa feita de cobiça podia ter acumuladotais tesouros.

Bonifácio, de pé, como uma estátua, aparentemente esquecido da humilhação,continuava a repetir em tom irritado a lamentação de Job, «Dominus dedit, Dominusabstulit» («O Senhor deu, o Senhor tirou»). E por fim ficou ali de pé naquela câmaravazia praticamente nu. O corpo, amarelo, enrugado e supliciado, estava cheio depiolhos. Quando os medievais descreviam os tormentos do inferno, não era o fogo masos piolhos o que eles mais temiam. O cronista disse friamente: «O pontífice teve umamá noite».

O alívio chegou inesperadamente. Muitos dos homens de Sciarra eram mercenáriose já tinham ido embora com os seus despojos. O povo da cidade estava com receio queAnagni viesse a ser interdita; nunca mais haveria missa. Podia mesmo vir a serdestruída como Palestrina. Três dias mais tarde, armaram-se e obrigaram o inimigo aretirar e libertaram o papa da sua masmorra.

Ele estava mudado. Ao contrário do que fora o seu hábito de uma vida, falava entresoluços e lágrimas que lhe corriam pelas faces marcadas de negro. Tinha ressuscitadoao terceiro dia tal como Cristo, seu Mestre. «Obrigado» gemia ele repetidamente.«Obrigado». A senilidade apossara-se provavelmente dele; por orgulho ou por receio deser envenenado, tinha recusado todo o alimento na prisão. A fome e a sede, as noitesde solidão no escuro, com ratazanas a correrem sobre ele, a proximidade da morte,tudo isto o tinha desarticulado. Levado de volta para Roma sob escolta, ficou fechadono seu quarto em Latrão durante trinta e cinco dias. Segundo rumores que corriam,provavelmente fantasiosos, batia repetidamente com a cabeça na parede e mordiaincessantemente o braço, como um cão de volta de um osso. E aí, na solidão etotalmente desprezado — «Morieris ut canis» foi a profecia de Celestino — morreu.

No dia do funeral houve uma tremenda tempestade e ele foi enterrado com o mínimocerimonial no imenso túmulo que ele próprio tinha preparado na velha Basílica deS.Pedro.

Há uma curiosa nota de rodapé na história da Besta Negra de Dante, um pontíficeímpio que afirmava que tinha tantas possibilidades de sobreviver à morte como umfrango assado.

Quando, para acabar a construção da nova Basílica de S.Pedro, em 1605, o seutúmulo teve de ser mudado, fendeu e abriu-se. Para consternação geral, o corpo dopontífice, passados três séculos, estava incorrupto. Só o nariz e os lábios estavamligeiramente mordidos. Mediram-no: um metro e setenta; ainda tinha no dedo o aneloval de safira; parecia em paz.

Bonifácio tinha dado forma final à heresia do poder papal. Também noutros aspectosele não era um bom adorno para uma Igreja que ao menos foi poupada, por cortesia deNogaret, à última das indignidades: ter de o venerar como S.Bonifácio, papa e mártir.

O exílio babilónico

Page 82: Vigde cristo

82

Os problemas do papado não terminaram com Bonifácio VIII. Filipe de França, aindanão satisfeito de ver o seu grande inimigo dar a alma ao Criador, estava determinado adessacralizar a sua memória. Benedito IX, que sucedeu a Bonifácio, tentou apaziguarsua Majestade absolvendo-o de toda a culpa de sacrilégio perpetrado contra o seuantecessor. Quando Benedito morreu, um ano depois, uma maquinação escandalosa noconclave levou à eleição de Bertrand de Grot, Arcebispo de Bordéus, como Clemente V.Filipe via finalmente satisfeitos os seus desejos: um papa francês, que ele podia moldarà sua vontade.

Clemente fez imediatamente saber aos seus auxiliares atónitos que eles o iriamacompanhar para além dos Alpes. Anagni já fora revés bastante, mas isto era ahumilhação final do papado: deixar o lugar do antigo império e os túmulos de S.Pedro eS.Paulo. Clemente temia, nas suas palavras, «desgostar o nosso querido filho, o Rei deFrança». Em breve se estabelecia dentro dos domínios do rei, sob o seu olhar vigilante,em Avignon, uma pequena cidade da Provença, na margem oriental do Ródano. ComFilipe a ameaçar julgar Bonifácio postumamente por ser uma fraude e um herege, opapa cedeu a sua Majestade em toda a linha. Filipe foi louvado pelo seu zelo religiosocontra Bonifácio, e Celestino V, que Bonifácio enganara levando-o a resignar, foicanonizado com o nome de S.Pedro de Morone.

O prestígio do papado sofreu um golpe quase fatal, e uma sucessão de pontíficescobiçosos e sensuais levaram o ofício de Pedro ao nível mais baixo desde o Reinadodas Meretrizes.

O paraíso papal da Provença

Os papas de Avignon não foram uniformemente nem bons nem maus. Um bomrepresentante foi Clemente VI, eleito no ano de 1342. Homem sem malícia nemprincípios morais, teve o mérito de ser um bom pagão.

O seu nome civil era Pierre Roger de Beaufort, monge beneditino, Arcebispo deRouen, chanceler de sua Majestade o Rei de França. O rei deu-lhe a protecção de quesua Santidade precisava se quisesse viver comme il faut. O facto é que Clemente nãogostava da Itália nem dos italianos.

Tinham passado quarenta e cinco anos desde que Clemente V tinha feito aquelainspirada troca: o Tibre pelo Ródano; os pântanos de Roma cheios de malária, cólera etifo, onde parecia que todos se queriam matar uns aos outros, pela perfumadaProvença.

Antes do seu tempo, vários papas — Celestino V, por exemplo — nunca tinham vistoRoma; o próprio Clemente VI nunca tinha posto os pés na Itália. Nem os seusantecessores próximos, João XXII e Benedito XII. Clemente estava determinado amanter esta bela tradição francesa. Isto explica a enorme despesa que fez no seu novopalácio no Rocher de Doms, junto do Ródano.

Ao contrário de Benedito XII, que era um desmancha-prazeres, Clemente sabia comogastar. «Antes de mim ninguém fazia ideia de como ser papa» brincava ele muitasvezes. «Se o rei da Inglaterra quiser fazer do seu burro bispo, é só pedir». Uma vez, umburro entrou no consistório com um cartaz pendurado ao pescoço: «Por favor, faça-metambém bispo». Clemente não levou a mal, como aconteceu também quando recebeuuma carta em pleno consistório. A carta dizia: «Do Diabo para o seu irmão Clemente».Ele e os seus “diabinhos”, os cardeais, desataram às gargalhadas.

Page 83: Vigde cristo

83

O único objectivo de Clemente era fazer os seus súbditos felizes. Conseguia istoesbanjando com o mais cobiçoso dos peticionários mais do que aquilo que ele seatreveria a pedir. Alguns cardeais tinham entre quatrocentos e quinhentos dos maioresrendimentos. Isto significava que podiam ter os rapazinhos mais formosos, se tivessemessa inclinação, ou as mais belas damas de companhia. Em Avignon toda a gente viviabem: músicos, artesãos, banqueiros, ourives, astrólogos, carteiristas e asespectaculares prostitutas. Poucos se queixavam por Baco e Vénus serem maisvenerados em Avignon do que Jesus Cristo.

Um dos que realmente se queixaram foi Petrarca, o grande académico e PoetaLaureado do Império. Uma coisa que o deixou irritado foi o facto de Benedito XII terdesejado a sua irmã. Recusou mesmo um chapéu de cardeal como parte do negócio.Mas Benedito, mesmo assim, conseguiu tê-la; subornou o irmão do poeta, Gerardo.Depois de ter estado em Avignon, Petrarca descreveu — anonimamente, porque nãoqueria ir para a fogueira — a corte papal como «a vergonha da humanidade, umasarjeta de vícios, um esgoto onde se junta toda a porcaria do mundo. Lá, Deus édesprezado, só o dinheiro é que é venerado, e as leis de Deus e dos homens sãoespezinhadas. Tudo lá exala mentira: o ar, a terra, as casas e sobretudo os quartos dedormir».

O Papa Clemente sofria de uma “enfermidade” diagnosticada oficialmente como umproblema de rins, mas que tinha sido contraído no seu quarto de dormir. Ele não foraprudente nas suas aventuras amorosas, toda a gente o sabia, mas isso fazia parte dasua liberalidade. Nunca foi capaz de negar os seus favores, mesmo na cama. “Sessõesde indulgência plena”, assim eram chamadas. Mas ultimamente tinha já legitimadotodos os filhos.

Uma grande parte do seu palácio foi entregue à Inquisição. A câmara de tortura eraampla, sólida e aberta no topo, com paredes irregulares, nas quais ecoavam os gritosestridentes dos prisioneiros no meio do silêncio. Para encorajar os frades, Clementetrepou uma ou duas vezes a escada em caracol de La Salle de Torture até à masmorrapor cima daquela, onde havia um buraco no meio do soalho. De gosto delicado comoera, não gostava de ver os corpos estropiados a serem lançados pelo buraco e a caíremna câmara de tortura, mas, raciocinava ele, a heresia tinha de ser eliminada de qualquermaneira.

Froissart, o diarista francês, viria a chamar ao palácio de Avignon «o edifício maisbelo e mais forte do mundo». Sete torres erguiam-se para o céu e, em frente, espessasparedes brancas com balestreiros belamente guarnecidos de mísulas reflectiam o sol.Do cume, Clemente podia olhar em baixo o Ródano correndo sob a grande ponte deSaint-Bénézet. Esta ponte, com o seus dezanove arcos, levou doze anos a construir ealguns dos arcos assentam na ilha no meio do rio. Os jovens costumavam dançar ecantar debaixo dela e fazer amor sobre a relva. «Sou le pont d’Ávignon on y dance touten rond».

Sua Santidade admirava a beleza de todas as coisas. Em primeiro lugar, a da mulher,essa puríssima arquitectura de carne, mas também a dos edifícios de pedra. As suastapeçarias vinham de Espanha e da Flandres, os tecidos de ouro, de Damasco, na Síria,as sedas, da Toscânia, os tecidos de lã, de Carcassonne. A baixela de ouro e prata quepesava à volta de duzentos quilos, era-lhe muito querida. Ele queria desesperadamenteganhar as guerras italianas e reconquistar a Terra Santa para Cristo, mas não se issosignificasse ter de vender a sua baixela. Ficaria muito mais barato mandar os seus trintacapelães rezar por milagres.

Desconfiava que fora Petrarca que escrevera aquele malévolo poema sobre comoem Avignon os cavalos tinham ferraduras de ouro. O pontífice sabia que uma tal calúnia

Page 84: Vigde cristo

84

não afectava a sua reputação. Só os freios é que eram de ouro. Ele era o papa; tinha depôr um certo ar. Os cardeais em particular apreciavam muito esta sua generosidade.Não era com tostões que se podia construir as suas grandes habitações do outro ladodo Ródano, em Villeneuve, ou mantê-las com o necessário corpo de cento e cinquentaserviçais.

O refúgio favorito de Clemente era um pequeno quarto na torre, com um cama decasal, com a fragrância do perfume da Condessa de Turenne. No tempo de Clemente V,aqueles que procuravam as bênçãos do pontífice deixavam as suas petições no seiosedoso da bela Perigord, filha do Conde de Foix. Mas Clemente VI achava que a suacondessa não tinha comparação. De todos os colos em que a sua nobre cabeçarepousara, o de Cecília era de longe o mais doce.

Apesar de ter feito da Cúria a máquina financeira mais eficiente da história, andavasempre com dificuldades de dinheiro. A compra da cidade inteira em 1348 tinha-lhecustado oitenta mil florins. Considerava este negócio o melhor investimento alguma vezfeito por um papa, mas alguns andavam a dizer que a Igreja nunca mais se recomporiadaquela sua imprevidência.

Em 1350, o distrito de Avignon estava muito movimentado com os peregrinos acaminho de Roma. Chegavam aos milhares, vestidos com os tradicionais mantos deviajante ou trajos nacionais. Uns vinham a cavalo, outros em carroças a abarrotar comos seus haveres; a maioria vinha a pé, de cajado na mão. Clemente apreciava osimplismo da sua piedade. Levavam semanas a chegar a Roma, para o Jubileu,trilhando sombrios desfiladeiros alpinos cobertos de neves eternas antes de chegaremàs encostas revestidas de ciprestes e vinhas da Itália e iniciarem a longa jornada parasul. Muitos nunca lá chegavam; morriam de velhice ou de doença, eram assaltados ouassassinados. Os mais afortunados depunham as suas dádivas no túmulo de S.Pedropara os clérigos as apanharem como feno e as mandarem ao sucessor de Pedro emAvignon.

Bonifácio VIII decretara um Jubileu em cada século. Para Clemente isto pareciamesquinho. Reduziu o prazo para cinquenta anos. Os resultados surpreenderam-no aele próprio, mas a maioria dos peregrinos queria agradecer a Deus o ter escapado àPeste Negra. Em três anos, a Peste dizimou um terço da Cristandade, incluindo Roma.Avignon perdera mais de metade da população. Quando a doença começou a atacar,como não notasse qualquer movimento no interior do mosteiro Carmelita, uma almacorajosa forçou a entrada e encontrou todos os 166 monges mortos. Num único dia, obalanço das vítimas na cidade foi de 1312. As pessoas contaminadas morriamgeralmente em quarenta e oito horas. Algumas cidades ficaram vazias. O gado nosprados e colinas morria por falta de assistência. Os barcos no mar, com a tripulaçãotoda morta, despedaçavam-se contra as rochas. Muitos culpavam os Judeus,queimando, enforcando e afogando milhares deles num piedoso esforço para se veremlivres da peste. Em Avignon, Clemente protegera os Judeus. Portanto não lhe agradavanada ouvir dizer que não foram os Judeus, mas sim a vida dissoluta do papa queprovocou aquela calamidade. Se ele tivesse descoberto o autor desta afirmação tê-lo-iamandado torturar e queimar como àqueles monges e frades, chamados “espirituais”,que insistiam, contra toda a evidência, que Jesus tinha vivido na pobreza e não como as«prostitutas da Nova Babilónia», como Avignon era conhecida.

Havia muitas pessoas em Roma que desejavam que o pontífice regressasse à suadiocese. A Rainha Bridget da Suécia era uma delas, e a jovem Catarina de Siena eraoutra. As duas, que mais tarde viriam a ser canonizadas, passavam os dias a rezar e a

Page 85: Vigde cristo

85

escrever longas cartas a Clemente. Apelavam a que pusesse fim àquele escândalo eregressasse a casa.

Bridget, com quase cinquenta anos, era famosa pelas suas visões e sonhos. Porvezes, quando contava os mais perturbadores de entre eles, os cidadãos cercavam-lhea casa na Piazza Farnese, em Roma, gritando que a Principessa, como lhe chamavam,devia ser queimada como bruxa.

Jesus falara com ela pela primeira vez quando ela era ainda uma criança. Nuncamais esqueceu aquela visão do seu amado estendido sobre as tábuas, como uma avede rapina pregada na porta de um celeiro. Na sua noite de núpcias, só pediu ao esposoUlf uma coisa: que o casamento deles fosse virginal. E assim foi durante dois anos.Depois, teve oito filhos em rápida sucessão.

Houve um sonho que abalou mesmo esta austera dama. Apareceu-lhe S.Lourenço, odiácono. «Este Bispo» disse ele, sem querer mencionar o nome do papa, «permite aospadres a fornicação. Dá os bens da Igreja aos ricos». O santo desapareceu para darlugar a um alto cavaleiro em brilhante armadura. Bridget aproximou-se dele, tirou-lhe oelmo, mas não foi uma forma humana que ela viu. Apenas uma carcassa mal cheirosade ossos ocos e vermes a contorcerem-se. Isto, ela sabia, era o papa cheio de pústulas,moribundo e já mostrando sinais de decomposição. Se se lhe pudesse tirar a cabeça eolhar-lhe a alma era isto o que se veria. Aquela massa fedorenta tinha orelhas na testapara escutar a adulação; olhos na parte de trás da cabeça para ver só a podridão; e nocoração abrigava um enorme verme.

Nem mesmo Bridget podia prever que a nobre cabeça de Clemente, acariciada pelasmais encantadoras damas da Provença, seria um dia usada como bola pelosHuguenotes ou que o seu crânio acabaria como taça na mesa do Marquês de Courton.

Em 3 de Dezembro de 1352, um vento quente e húmido, fora de época, vindo deÁfrica, atingiu Roma. O calor era insuportável, estava a gerar-se uma trovoada. Aescuridão ameaçadora foi subitamente rasgada por relâmpagos; nesse mesmomomento, houve um estalido muito vivo e um estranho toque metálico de sinos. Bridgetsentiu que o raio tinha caído perto. Saindo de casa no meio da escuridão de breu e dachuva torrencial, dirigiu-se instintivamente para a Basílica de S.Pedro. A basílica tinhasido atingida e os sinos tinham derretido. No mercado, toda a gente começou a festejar.«Morreu. Sim, o papa morreu e está enterrado bem fundo no Inferno».

Três dias depois, os sinos de Avignon dobravam a anunciar oficialmente que o Bispode Roma, Clemente VI, de feliz memória, já não vivia. Durante nove dias seguidos,naquela enorme capela, agora a gelar, cinquenta padres disseram missa pelo repousoda sua alma.

Os misericordiosos diziam: Não chega. Os desapiedados diziam: Nunca será demais.

Page 86: Vigde cristo

86

Page 87: Vigde cristo

87

6A Descida do Papado aos Infernos

Em muitas gerações de católicos se disse: «O papado atingiu agora o seu nível maisbaixo». Disse-o Dante de Bonifácio VIII. Disse-o Petrarca do Exílio Babilónico no períodode Avignon. Ambos os eminentes poetas estavam enganados. Os dias mais negrosainda estavam para vir.

A podridão instalou-se quando Catarina de Siena foi a Avignon para pressionar opontífice reinante, Gregório XI, a voltar para Roma. Era o ano de 1377. Sete papasfranceses seguidos tinham tornado o seu cantinho da Provença a maravilha do mundo.

As mulheres da corte papal, despeitadas, não tiveram piedade de Catarina, aquelafreira pálida e rude da Toscânia que parecia ter encantado sua Santidade. Talvez eletivesse ficado impressionado com o seu êxtase na comunhão. Se ela se tornasse muitoinfluente, elas teriam de fechar os seus salons, onde jovens deslumbrantes, filhos deduques e príncipes, vinham à procura de cargos eclesiásticos. Na capela revezavam-separa lhe picarem e beliscarem o corpo insensível para ver se o seu transe era genuínoou não. Uma malvada furou-lhe um pé com uma agulha comprida de tal maneira queCatarina ficou impossibilitada de andar durante dias.

No fim ela ganhou. Gregório voltou para Roma, sem seis dos seus cardeais que nãoconseguiam deixar as suas casas apetecíveis, as suas mulheres provençais e os seusvinhos da Borgonha. Um ultimato dos Romanos, segundo o qual se ele não voltasseeles elegeriam outro papa, pode também tê-lo influenciado. Em 278 anos, desde 1100,os papas só tinham passado oitenta e dois em Roma. Estes papas nómadas tinhampassado uns longos 196 anos noutras partes. Não era um bom recorde; e o exemplonão se ficou pela Igreja.

A Cidade Eterna depressa acabou com Gregório. Depois é que a verdadeira tragédiade Avignon se revelou.

Um papa, dois papas

Depois da morte de Gregório, o conclave, reunido para nomear o sucessor, estavadividido em duas facções, franceses e italianos. Durante o exílio, sete papas de Avignontinham feito 134 cardeais, todos eles franceses, à excepção de vinte e dois. Osfranceses estavam naturalmente determinados a manter o papado para si próprios.Como Latrão tinha ardido, o conclave reuniu no Vaticano.

Lá fora, uma multidão de, segundo se dizia, trinta mil pessoas gritava-lhes queescolhessem finalmente um italiano. A escolha era muito limitada. Havia apenas quatrocardeais italianos e nenhum deles papabile. Para lograr o seu intento, a multidão encheude lenha a sala que ficava por cima do local da reunião e por baixo passaram toda anoite a bater nas tábuas do soalho com lanças e alabardas. E como se isto nãobastasse, tocaram o sino do Capitólio, a que se juntaram os sinos da Basílica deS.Pedro. De manhã a multidão perdeu completamente a paciência e arrombou a portado conclave.

Page 88: Vigde cristo

88

Dos dezasseis cardeais presentes, todos esfomeados e sem dormir, treze votaram numestranho, Bartolomeu Prignano, o Arcebispo de Bari, entroncado, de pequena estatura erosto amarelado. Não era romano. Um napolitano foi o melhor que eles puderamarranjar. Na dúvida de que aquilo fosse suficiente, vestiram, contra sua vontade, umromano octogenário, o Cardeal Tebaldeschi, com as vestes papais e mostraram-no. Ummensageiro partiu apressadamente para Pisa, onde a eleição de Tebaldeschi foicelebrada com fogo de artifício. Entretanto, os franceses fugiram a sete pés. Durantedois dias ninguém se preocupou em dar a notícia a Prignano nem a prestar-lhe ascostumadas homenagens. Quando finalmente soube, tomou posse com o nome deUrbano IV.

O Arcebispo de Bari, de família humilde, fora durante quinze anos um funcionário daCúria muito meticuloso, mas pacífico e obediente. Os nobres cardeais franceses tinhama certeza de que ele continuaria a fazer o que lhe mandassem e que levaria a corte devolta a Avignon. Enganaram-se grave e redondamente sobre o seu homem.

Urbano IV veio a revelar-se um dos pontífices mais rancorosos e de temperamentomais vil. O seu médico revelou que ele mal tocava na comida, mas não podia passarsem o álcool. Segundo o Cardeal da Bretanha, no banquete da coroação, ele bebeu oitovezes mais do que qualquer dos outros membros do Sacro Colégio — embora algunstenham dito que isto não era humanamente possível. A bebida, a religião e a vingança— todos em excesso — provaram ser uma potente mistura.

Nascido e criado nas vielas malcheirosas de Nápoles, não tinha estômago para osfracos e pretensiosos cardeais franceses. Contava-se que lhes pregava sermões comoJeremias com dores de barriga. Queria corrigi-los a qualquer preço. Na sua voz agudade eunuco, falava-lhes abertamente do Cardeal Orsini como sendo sotus (“pateta”). Umavez, de rosto vermelho de raiva, só não bateu no Cardeal de Limoges porque Robert deGeneva lhe segurou o braço. «Que fazeis, Santo Padre?» Quando estava paraexcomungar outro membro de Sacro Colégio por simonia e Geneva interveio de novo,Urbano ladrou como um cão: «Eu posso fazer tudo, absolutamente tudo o que quero».

Um grande número de cardeais considerava que aquelas fúrias eram sintoma deloucura. Consultaram um jurista respeitado: Haveria algumas circunstâncias em que oscardeais pudessem substituir-se a um papa incapacitado? Urbano soube disto e provouque ainda estava no seu juízo perfeito.

Primeiro, excomungou um velho inimigo, o Rei Carlos de Nápoles, que acusou deestar por detrás daquela “rebelião”. O rei reagiu bloqueando Sua Santidade na suafortaleza de Nocera, perto de Pompeia. Urbano subia às muralhas quatro vezes por dia,e serenamente, com a campainha, o livro e a vela, excomungou todo o exército que oatacava. Parecia ignorar as setas que caíam à sua volta.

Resgatado pelos Genoveses, mandou prender os cinco cardeais rebeldes. Foi vistodepois em Génova, possivelmente entorpecido pelo álcool, a passear de um lado para ooutro no jardim e a recitar o breviário a plenos pulmões. Numa câmara próxima, estavamos rebeldes a ser torturados. Os seus gritos não perturbavam de modo nenhum a suapaz com Deus.

Amarrado, o velho Cardeal de Veneza estava a ser levantado e baixado numaroldana. Com a cabeça comprimida contra o tecto, conseguia ver o papa através dasgrades da janela, e de cada vez resmungava em agonia: «Santo Padre, Cristo morreupelos nossos pecados». Depois era descido até ao chão. Os prisioneiros nunca maisforam vistos.

Alguns cardeais franceses escapuliram-se separadamente e reuniram-se de novo emAnagni, onde prepararam uma Declaratio contra Prignano. Ele não era papa. Apenas o

Page 89: Vigde cristo

89

tinham elegido, afirmavam eles, com medo da multidão. Escolheram outro pontífice:Robert de Geneva, primo do rei de França, que se chamou Clemente VII. Urbano contra-atacou nomeando vinte e seis novos cardeais que lhe deviam fidelidade.

Já tinha havido dois papas em numerosas outras ocasiões, mas a presente crise eraúnica. Estes dois papas tinham sido eleitos por mais ou menos o mesmo grupo decardeais. Assim, quando estes afirmavam que a sua escolha de Urbano não tinha sidogenuína, faziam-no com autoridade, mesmo que estivessem a mentir.

Na Inglaterra, Wycliff lançou o primeiro sarcasmo: «Eu sempre soube que o papatinha os cascos fendidos. Agora tem também a cabeça».

A Cristandade foi obrigada a tomar partido. Se Urbano tinha sido de facto escolhidosob coacção, a eleição era inválida. Mas se eles estavam assim tão amedrontados porque é que não tinham escolhido um romano — por exemplo, o velho Tebaldeschi — enão se tinham retirado logo para Anagni para registar uma queixa oficial? A escolha deum saudável Napolitano e uma demora de três meses eram suspeitas. Como Catarinade Siena sensatamente lembrou, se eles já tinham um falso papa em Tebaldeschi, paraque é que precisavam de outro? Dava a impressão de que os franceses se queriamdescartar de alguém com quem não era possível uma relação.

Seguiu-se o caos. Um papa ausente já era uma coisa bastante penosa; agora aprópria Sede da Unidade estava a tornar-se fonte de desunião. Pelo decreto de eleiçãode 1059, um papa não canonicamente eleito pontífice romano era chamado de “oDestruidor da Cristandade”. Isto provou-se ser o caso. Se os cristãos não conseguiamidentificar o verdadeiro papa, para que servia o papado? O rei da Inglaterra apoiouUrbano, o rei de França, Clemente. Nas universidades não havia consenso.

O coxo e vesgo Clemente VII, como era de prever, voltou com os seus seguidoresfranceses para Avignon, onde a sua conduta foi tão má que não se tornou em nadadiferente de um genuíno papa de Avignon. Já provara ser matéria prima papal quando,em 1377, agira como legado do papa em Cesena, no Adriático. Os locais protestaramcontra os mercenários que violaram as suas mulheres, e mataram alguns dos culpados.Depois de conferenciar com os responsáveis da cidade, convenceu-os a deporem asarmas. Em seguida enviou para lá uma força mista de Ingleses e Bretões para chacinartodos os oito mil habitantes, incluindo as crianças.

Dois papas, três papas

Em Outubro de 1389, Urbano, o papa que ninguém queria, realizou a única boa acçãoda sua vida: morreu. Os catorze cardeais que restavam em Roma escolheram para osubstituir Bonifácio IX, um assassino e provavelmente o maior simoníaco da história.Vendeu todos os benefícios eclesiásticos a quem deu mais, daí resultando que aAlemanha e a França enxameavam de padres italianos, muitas vezes soldadosreformados, que não sabiam uma palavra da língua. Os irmãos de Bonifácio, ossobrinhos e sobretudo a mãe foram quem mais beneficiou desta sua liberalidade. Dizia-se que ninguém jamais fizera tanto dinheiro com as canonizações. Nunca assinavaqualquer documento sem logo estender a mão a exigir: «Um ducado». A única coisa porque ele não cobrou dinheiro foi a excomunhão de Clemente de Avignon. Clementeretribuiu-lhe o cumprimento.

E assim continuaram as coisas. Quando morria um papa ou um antipapa, em vez deporem um fim à situação, os respectivos grupos de cardeais escolhiam um sucessor. Oque são os cardeais sem um papa próprio?

Page 90: Vigde cristo

90

Por esta altura, a Cristandade começava a ficar farta. Quem é que, afinal, quercomprar um bispado ou uma abadia a um pontífice que se revela um impostor? E seuma indulgência muito cara ou a autenticação de umas relíquias como o prepúcio doSalvador ou o seu umbigo não valessem o pergaminho em que estavam escritos? Haviamesmo confusão no céu. Bridget da Suécia viria a ter um recorde de três canonizaçõespara se ficar com a absoluta certeza de que era mesmo santa.

O cisma também era mau para o negócio. Os banqueiros coração-de-pedra rezavamfervorosamente para que aquilo acabasse. Toda a vida do Império estava desintegrada.Quem diabo é que iria coroar o próximo imperador?

Das universidades veio a sugestão de que, uma vez que a unidade da Igreja eraprioridade maior do que o papado, e que Cristo, e não o pontífice romano, é que era oChefe supremo da Igreja, era melhor retirar o apoio a ambos os papas. Os historiadoresconvidaram o imperador a depô-los com o sólido fundamento de que já muitosimperadores tinham feito isso antes e que a sua intervenção seria universalmenteaplaudida. Contudo, a partir do papa-menino, no século XI, o papado tornara-se maispoderoso do que qualquer imperador. E agora, apesar de toda aquela confusão, um dospapas era autêntico. E se o imperador destituísse o papa errado? Não seria o mesmoque retirar a Bíblia da Igreja e substituí-la pelo Corão? O mesmo dilema se poria a umConcílio. Se se reunisse um Concílio para depor ambos os pretendentes, uma dasdeposições seria inválida, mas qual delas? Um outro problema era que os juristas dessetempo afirmavam que só um papa — o genuíno — podia convocar um Concílio.

O estado catastrófico da Igreja significava que tinha de se fazer qualquer coisa, adespeito da névoa canónica.

Em 1409 foi convocado um Concílio na maravilhosa cidade muralhada de Pisa, cujatorre, tal como a própria Igreja, já estava inclinada.

Foi na Duomo, revestida de mármore preto e branco, sob o majestoso retrato deCristo de Cimabue, que se reuniram os padres mitrados. Declararam solenemente queos papas em conflito, Gregório XII de Roma, e Benedito XIII de Avignon, eram amboshereges e cismáticos. Foi uma medida inteligente: os papas que caíam em heresiadepunham-se, em certo sentido, a si próprios.

Em meados de Junho escolheram como substituto o Cardeal Filargi de Milão, umpiedoso Franciscano septuagenário e desdentado, de família desconhecida e votado àpobreza. Tinha três defeitos difíceis de esconder. Embora magro e de pequena estatura,passava metade do dia à mesa; mantinha um palácio com quatrocentos serviçais, todosmulheres e todos vestidos de libré; distribuía benefícios eclesiásticos de maneira tãoliberal que até os cardeais ficavam admirados.

Filargi aceitou o nome de Alexandre V. Ao som dos sinos, vestido a rigor, desde assapatas vermelhas à tiara, Filargi percorreu as ruas de Pisa, montado num cavalobranco.

Os prelados saudaram-no aliviados. Passados trinta confusos anos, o Grande Cismaterminava.

Só que Gregório e Benedito não concordaram, e assim o mundo acordou um diaespantado com a notícia que lhe chegava: ontem tínhamos só dois papas, agora temostrês.

Dizia um galhofeiro que a tiara tripla devia ser dividida, uma vez que a Igreja agoratinha três cabeças para pô-la. Tornou-se muito popular uma nova versão do Credo:«Creio em três Santas Igrejas Católicas». Os fiéis já tinham suportado gerações depapas ausentes, com períodos de dois a três anos em que não havia papa nenhum poros cardeais não se entenderem. O cenário actual era o pior de todos.

Page 91: Vigde cristo

91

A única certeza saída de Pisa devia ter sido a de que o homem que eles escolheramnão era papa; depois seguiu-se um espectáculo nunca visto: três papas infalíveis, todosa reclamarem a suprema autoridade sobre a Igreja, todos a excomungarem solenementeos outros dois, todos a ameaçarem convocar um Concílio próprio em três lugaresdiferentes.

Os dramatis personae deste teatro do absurdo eram os seguintes:(1) Angelo Corrario, Gregório XII, veneziano, com perto de noventa anos e muitos

“sobrinhos”, descendente em linha recta do intratável Urbano VI. Fora escolhidopela jurisdição romana porque, como o Cardeal de Florença confessou, «É velhoe frágil demais para ser corrupto». Outro erro fatal. O primeiro acto papal dovelho homem foi empenhar a tiara por seis mil florins para pagar as suas dívidasde jogo. Foi para Rimini e daí vendeu em Roma tudo o que era móvel e algumascoisas que o não eram, como a própria Roma, por exemplo, ao rei de Nápoles.

(2) Piedro da Luna, um espanhol histérico, que representava a ressuscitada jurisdiçãode Avignon. Era o que menos contava. Deixado cair pelo rei de França e portodos menos três dos seus cardeais, em breve voltou para a sua Espanha natal,onde insistia que era o verdadeiro papa e praticamente excomungou toda aIgreja.

(3) Baldassare Cossa, João XXIII. Alexandre V morrera passados apenas dez mesese era Cossa, um pontífice melífluo, encantador e cruel, quem representava ajurisdição de Pisa. Constava que nunca se confessara nem comungara. E nemacreditava na imortalidade da alma nem na ressurreição dos mortos. Algunsduvidavam que ele acreditasse em Deus.

Era conhecido como antigo pirata, envenenador de papas (pobre Filargi),assassino em série, fornicador em série, com queda para as freiras, adúlteronum grau desconhecido fora da ficção, simoníaco por excelência, chantagista,proxeneta, mestre em estratagemas sujos.Quando da sua eleição para o papado em Bolonha, Cossa era diácono.Ordenado padre num dia, no outro foi coroado papa.

Este charlatão foi reconhecido pela maioria dos católicos como senhor esoberano que mantinha a Igreja unida pela sua fé de pedra. Quando um outroPapa João XXIII foi eleito em 1958, várias catedrais católicas tiveram de retirar àpressa o nome do João XXIII do século XV das suas listas de pontífices.

Um concílio muito embaraçoso

A maré de sorte de Cossa virou quando Segismundo, imperador eleito, o persuadiu aconvocar um Concílio «para reduzir o número de papas, de acordo com o Evangelho».O local seria a cidade muralhada de Constança no sul da Alemanha, na fronteira com aSuíça. Em apenas meses a sua população iria aumentar de seis mil para sessenta mil edepois duplicar.

Quando o clero se reunia em grande número era sempre prudente escolher umacidade perto da água — lago ou rio — para se desfazerem dos corpos. O LagoConstança recebeu mais de quinhentos durante os trabalhos do Concílio; também oReno escondeu muitos segredos. Outro requisito era que o local do encontro fossesuficientemente grande para acomodar o vasto número de prostitutas que achavam queo clero requeria os seus serviços mais urgentemente do que os militares e pagava

Page 92: Vigde cristo

92

preços mais interessantes. Durante o Concílio foram calculadas em mais de mil eduzentas as prostitutas em Constança a trabalharem vinte e quarto horas por dia.

No Dia de Todos os Santos de 1414, João XXIII, um flibusteiro de quarenta e oitoanos, cheio de gota, enfeitado de ouro, celebrou missa e pregou na abertura formal doConcílio Geral. Foi uma reunião maciça, que incluiu trezentos bispos, trezentos teólogosde topo e os cardeais de todas as três jurisdições.

Huss, reitor da Universidade de Praga, a quem Segismundo tinha garantidosegurança, foi imediatamente preso por ordem de Cossa. Era uma lição para todos,especialmente para o Papa Benedito (a quem chamavam Benefictus, - “Falso”) e para oPapa Gregório (que apelidavam de Errorius, - “Erro”).

João XXIII tinha corrido um risco ao atravessar os Alpes para entrar em terrasimperiais, mas tinha votos suficientes no bolso para se sentir seguro. Havia então, comomais tarde, mais bispos italianos do que de todas as outras nacionalidades juntas. O queo derrotou foi a decisão do Concílio de se votar não individualmente, mas por nações. Asua maioria foi imediatamente varrida e ele viu que havia três para um contra ele. Aseguir, às primeiras horas da manhã do dia de Natal, chegou Segismundo, que omandou resignar.

Cossa viu a acusação, um enorme catálogo dos seus delitos redigidos com perversaeficácia. As patroas de todas as casas de prostitutas da Cristandade devem tertestemunhado contra ele. Quando soube das crescentes exigências, especialmente dosingleses, para que o queimassem para acabar com aquilo, concordou em resignar,desde que os outros dois papas fizessem o mesmo. Depois, disfarçado de criado, saiude Constança à noite. Sem papa nenhum, não poderia haver Concílio nenhum, deve eleter raciocinado. Entre a mão cheia de cardeais que se lhe juntaram no seu esconderijo atrinta milhas de distância, em Schaffhausen, estava Oddo Colonna. Os guardasimperiais trouxeram-no de volta para enfrentar a música.

O Concílio tinha entretanto assumido plena autoridade. Nas quarta e quinta sessõesfez uma declaração de fé unânime, que nunca mais abandonou a Igreja até hoje.

O Sagrado Concílio de Constança […] declara, primeiro, que estálegalmente reunido no Espírito Santo, que constitui um ConcílioGeral que representa a Igreja Católica, e que, portanto, recebeu asua autoridade de Cristo; e que todos os homens de todas ascategorias e condições, incluindo o próprio papa, estão obrigados aobedecer-lhe nas questões de fé, na extinção do cisma e nareforma da chefia e dos membros da Igreja de Deus.

Eneias Sílvio, que um dia viria a ser o Papa Pio II, escreveu: «Poucos duvidarão deque um Concílio está acima de um papa». Por que havia alguém de duvidar? A antigadoutrina da Igreja era que um Concílio Geral era soberano na fé e na disciplina. Combase nesta doutrina, mais do que um papa foi condenado em Concílios por heresia,como se verá na Parte 2 deste livro.

Foram momentosas as consequências do Concílio de Constança. Se o papa estáobrigado a obedecer à Igreja nas questões de fé, não pode por si só, e sem oconsentimento da Igreja, ser infalível. De facto, quando fala independentemente doConcílio, o papa pode bem errar na fé. Esta doutrina foi esbatida por papas medievaiscomo Gregório VII e Inocêncio III, por meios duvidosos.

O Concílio de Constança, depois de afirmar a sua autoridade sobre o papa,procedeu à aplicação prática dessa autoridade depondo, em primeiro lugar, Benedito,que já estava em fuga para Peñiscola.

Page 93: Vigde cristo

93

A seguir foi João XXIII. Este recusou firmemente a resignação. Os padres doConcílio concordavam que ele era o papa legítimo, mas a Igreja era mais importante doque o papado. As acusações contra ele foram reduzidas de cinquenta e quatro paracinco. Como, caracteristicamente, Gibbon observou em Decline and Fall: «Asacusações mais escandalosas foram suprimidas; o Vigário de Cristo era acusado depirataria, assassínio, violação, sodomia e incesto». Toda a gente sabia que, desde quese tornara Vigário de Cristo, o único ofício que ele exercia era na cama. É muitosignificativo o facto de João XXIII ter sido absolvido de heresia, provavelmente pornunca ter mostrado interesse bastante pela religião para ser classificado comoheterodoxo. Até então, a única acusação suficientemente grave para depor um papaera a de heresia. Cossa foi deposto simplesmente porque não se comportava como umpapa se deve comportar.

Em 29 de Maio de 1415, os selos oficiais de João XXIII foram solenementeesmagados a martelo. Mas um ex-papa, tal como um ex-presidente, tem direito àconsideração. Apesar da sua enorme promiscuidade, apenas lhe aplicaram umasentença de três anos de prisão.

Huss, corajoso, casto, incorruptível, severamente contrário à simonia e àconcubinagem do clero, teve um destino mais sombrio. Sem direito a defesa, julgadopor uma acusação forjada, interrogado por Dominicanos que não tinham lido os seuslivros, nem sequer em tradução, foi condenado à morte. Com um alto chapéu decoradocom três diabos dançantes, ladeado pelos espadachins do Conde Palatine, foi levadoda prisão num belo dia de verão de 1415. Praticamente toda a cidade seguiu o cortejo,que passou pelo cemitério onde os livros de Huss estavam a ser queimados numbrilhante prado verde. Rezou pelos seus perseguidores quando o fogo foi ateado. Portrês vezes o ouviram dizer «Cristo, tu que és o filho de Deus vivo, tem misericórdia demim» antes de o vento lhe ter soprado as chamas para o rosto. Os lábios ainda semoviam quando, sem um gemido, expirou. Para evitar que viesse a ser venerado comomártir, as suas cinzas foram atiradas para o Reno. Era evidentemente maior pecadodizer, como Huss e o Novo Testamento, que depois da bênção a Eucaristia se deviaainda chamar de “pão” do que ser um papa cobiçoso, assassino e incestuoso queenganou a Igreja em tudo.

Finalmente, Gregório XII, agora com noventa anos e muito abatido, convocou oConcílio, que tinha estado em funções durante meses, e depois resignou. Completadasestas formalidades, todos os três papas estavam arrumados. A Cristandade podiarespirar outra vez.

Segismundo, ele próprio um libertino, queria reformar rapidamente a Igreja, antesque um novo pontífice fosse eleito, raciocinando que jamais se poderia confiar numpapa para reformar a Igreja. Durante séculos, argumentava ele, o papado não esteve àaltura de tal tarefa. Nesta altura, os clérigos castos eram tão poucos que aqueles quenão tinham mulher nenhuma eram acusados de vícios ainda piores.

Infelizmente Segismundo não foi apoiado pelo rei de França, nem por Henrique V deInglaterra, acabado de sair vitorioso em Agincourt.

O Cardeal Oddo Colonna, que jurara fidelidade a João XXIII quando este fugira paraSchaffhausen, foi escolhido sem demora, e chamou-se de Martinho V. Com cinquentae cinco anos, era um eclesiástico de nascimento e criação, sendo filho de um doscardeais de Urbano VI, Agapito Colonna. A Igreja tinha de novo um só papa. Agora jánão havia qualquer esperança de reforma, embora se pensasse muito em disciplinar oclero.

Dois dias depois da eleição, Colonna, que era diácono, foi ordenado padre. Era o dia13 de Novembro de 1417. No dia seguinte foi sagrado bispo. Uma semana depois,

Page 94: Vigde cristo

94

após ser coroado papa, foi para o altar para o beija-pé antes do desfile a cavalo, emprocissão, pela cidade. Segismundo e Frederico de Brandenburgo cavalgavam a seulado, um à sua esquerda e o outro à sua direita.

Tal como João XXIII, o único objectivo de Martinho era sair de Constançarapidamente. Não tinha qualquer desejo de reformar a Cúria ou o papado. De facto,quando Cossa foi libertado da sua confortável prisão em Heidelberga e foi paraFlorença, Martinho reintegrou este assassino e violador confesso, fazendo-o bispo deFrascati e Cardeal de Túscolo.

A ansiedade de Martinho por um rápida saída era compreensível. O maior Concílio aque o Ocidente tinha assistido tinha decretado que os Concílios Gerais derivavam asua autoridade directamente de Cristo. Toda a gente, o papa incluído, está sujeito a eleem questões de fé, resolução de cismas e reforma da Igreja. O que o deixava numaposição delicada é que isto fora aprovado por unanimidade. Ele próprio tinha-o votadofavoravelmente como cardeal. Mas a História mostra que o papado quaseinvariavelmente transforma um homem logo que ele toma o poder. Ele queria voltarpara Roma onde afirmaria a sua superioridade sobre o Concílio. Por outras palavras,queria negar o próprio fundamento da sua eleição. Porque se o papa é o chefesupremo da Igreja, João XXIII é que era o papa, não ele.

Esta tensão não viria a ser resolvida nos 450 anos seguintes. E só aconteceuquando o Concílio Vaticano I afirmou que a crença na supremacia e infalibilidade papalera necessária para a salvação. Foi elevado o preço desta resolução. O Vaticano Icontradizia tudo o que estava implícito nos primeiros Concílios da Igreja e o que foraexplicitamente afirmado em Constança. Por exemplo, de acordo com o Vaticano I,quando um papa fala ex cathedra, as suas definições «são irreformáveis por si própriase não por consentimento da Igreja». O Concílio de Constança declarou que o própriopapa «está obrigado a obedecer-lhe [ao Concílio] em matérias de fé». Esta a razão porque Thomas More, o leigo mais bem informado do seu tempo, escreveu a ThomasCromwell em 1534 dizendo que enquanto que ele cria que a supremacia de Roma foiinstituída por Deus, «contudo nunca pensei que o Papa estivesse acima do ConcílioGeral».

E se o dogma do absolutismo papal do Vaticano I estivesse em vigor antes doConcílio de Constança? Nesse caso, o Concílio não se teria sentido competente paradepor um papa e a Igreja poderia ter sido vítima da praga de uma trindade duranteséculos. Só negando pura e simplesmente aquilo que viria a tornar-se o dogma centraldo Catolicismo Romano é que o Concílio Geral de Constança pôde salvar a Igreja.

Prenúncios de tempestade

Não que o Concílio de Constança tenha realmente salvo a Igreja. O Concílioterminou sem que fosse aprovada uma única reforma importante. Semanas depois devoltar para Roma, Martinho já tinha dado a sua bênção ao sistema curial, que antes demais, tinha feito ajoelhar a Igreja.

A Cristandade estava em estado de desespero. No século X, apesar de todos ospapas adolescentes, adúlteros e assassinos, o papado era um fenómeno localizado. Ochefe de uma família romana poderosa punha o seu querido filho adolescente no trono;o rapaz provocava distúrbios durante alguns meses ou anos agitados e era emboscadopelos membros de uma família rival cuja hora tinha chegado.

Page 95: Vigde cristo

95

Mas a partir do século XI, Gregório tinha aposto o seu selo no papado, cuja estaturae prestígio cresceram; conseguiu controlar toda a Igreja, desde o mais simples párocode aldeia até ao mais poderoso arcebispo. O resultado foi a mais terrível corrupção queo Cristianismo jamais vira ou que provavelmente virá a ver.

E isto começou de cima. O papado era leiloado em conclave e entregue a quemmais desse, independentemente do mérito do candidato. Um historiador do século XIX,T. A. Trollope, no seu livro The Papal Conclaves (1876) avaliava as coisas assim:«Poucas ou nenhumas eleições papais foram mais do que simoníacas. […] A invençãodo Sacro Colégio foi, afinal, talvez a mais fértil fonte de corrupção da Igreja». Muitoscardeais iam para Roma para o conclave acompanhados dos seus banqueiros.Levavam os seus valores, especialmente as suas baixelas de prata; se eram eleitospapas, a multidão romana saqueava os seus palácios, e até levava portas e janelas.

Os cardeais raramente eram escolhidos por serviços prestados à Igreja. Deviam asua posição à trapaça e à intriga. No tempo do Renascimento quase todos tinham as“suas companheiras”. Uma vez escolhido de entre tais homens, o novo papa, comdinheiro fresco para sacar, não perdia tempo e começava logo a promover os familiares— filhos, sobrinhos, sobrinhos bisnetos — sem o mínimo pejo, segundo o princípioitaliano “Bisogna far per la famiglia” (“Temos que fazer pela família”). O tempo era umfactor essencial uma vez que o papado não é hereditário e o papa podia dispor apenasde alguns meses ou anos para estabelecer uma dinastia. Daí que tantos pontífices,logo que punham a tiara, olhassem à volta à procura de meios para encher os bolsos.Um bom exemplo disto foi, no século XIII, Clemente IV, que era viúvo. Vendeu milharesde italianos do sul a Carlos de Anjou a troco de um tributo anual de oitocentas onças deouro. De acordo com os termos do contrato, se o duque se atrasasse no pagamentoseria excomungado. Se o atraso se mantivesse, todos os seus territórios seriaminterditos. Para um papa, privar distritos inteiros de missa e sacramentos simplesmentepor os príncipes não honrarem os seus débitos, não constituía pecado.

Os cardeais tinham enormes palácios com inúmeros serviçais. Um assessor papalconta que nunca ia falar com um cardeal que não o encontrasse a contar as suasmoedas de ouro.

A Cúria era composta por homens que tinham comprado o cargo e queriamdesesperadamente recuperar a despesa feita. Todos os cargos em todos osdepartamentos tinham o seu preço. Estes cortesãos exerciam o poder do dia a dia comtremendas sanções à sua disposição. Podiam excomungar qualquer pessoa. Os bispose os arcebispos tremiam perante eles.

Era a Cúria que estabelecia a tarifa da simonia. Para cada benefício de sé, abadia eparóquia, para cada indulgência, havia uma determinada tarifa. O pálio, uma faixa de lãde cinco centímetros de largura, com cruzes bordadas em seda preta, era paga portodos os bispos. Estes modestos enfeites de lã produziram ao longo dos anos centenasde milhões de florins para os cofres papais, de tal maneira que o Concílio de Basle em1432 havia de lhe chamar «a maquinação mais usurária inventada pelo papado». Noséculo XVI, na Alemanha, dioceses inteiras foram dadas em arrendamento aosbanqueiros, como os Fuggers, e a sociedades que vendiam os benefícios a retalho aolicitante que mais oferecesse.

As dispensas eram outra fonte de rendimento papal. Aprovaram-se leisextremamente severas ou mesmo impossíveis para que a Cúria pudesse enriquecercom a venda das dispensas. Exigia-se o pagamento das dispensas de jejum durante aQuaresma, como também para autorizar um monge doente ou velho a ficar na camaem vez de se levantar de noite para o seu ofício divino. O casamento, em particular,

Page 96: Vigde cristo

96

era uma rica fonte de rendimento. Alegava-se haver laços de consanguinidade entrecasais que nunca tinham imaginado serem parentes. As dispensas de consanguinidadepara casar montavam a um milhão de florins de ouro por ano.

Presumia-se durante o Renascimento que os clérigos do topo da hierarquia tinhamas mais lindas mulheres, e havia dioceses inteiras onde a concubinagem do clero sepassava perfeitamente às claras. O clero romano, ali mesmo debaixo do nariz da Cúria,era o pior de todos. Nada disto é de admirar. Compravam-se e vendiam-se ofícios ebenefícios como qualquer outra mercadoria. O clero não tinha qualquer prática deautodisciplina. Eles queriam simplesmente uma sinecura e uma vida ociosa. Muitos nãosabiam ler nem escrever; estavam no altar a murmurar idiotices ininteligíveis porquenem conseguiam papaguear o latim. O pior insulto que se podia dirigir a um leigo nestaaltura era chamar-lhe padre.

Depois do Concílio de Constança, levantaram-se protestos por toda a parte. Opróprio Martinho V admitia que muitos estabelecimentos religiosos eram antros devício. Os bispos, as universidade e os mosteiros clamavam por um Concílio parareformar os abusos. A Cúria, superada e vencida em Constança, persuadiu o papa deque um Concílio não seria vantajoso para ele.

Contudo, em Constança, tinha-se tomado um compromisso solene de que haveriaum Concílio dentro de dez anos, e depois em intervalos regulares. Apesar dos esforçosda Cúria para o inviabilizar, realizou-se um Concílio em Basle em 1432. Os bisposmostraram que as suas intenções eram sérias.

A partir de agora, todas as nomeações eclesiásticas serão feitas deacordo com os cânones da Igreja; toda a simonia cessará. A partirde agora, todos os padres, da mais alta ou mais baixa categoria,deixarão as suas concubinas, e quem quer que, a partir de doismeses após este decreto, não cumpra as suas exigências seráprivado do seu ofício, mesmo que seja o Bispo de Roma. A partir deagora, a administração eclesiástica de cada país deixará dedepender do capricho do papa. […] Acabará o abuso, por parte dopapa, do banimento e do anátema. […] A partir de agora, a CúriaRomana, isto é, os papas, não exigirão nem receberão quaisquertaxas pelos ofícios eclesiásticos. A partir de agora, um papa devepensar não nos tesouros deste mundo, mas tão só nos do mundovindouro.

Isto não era brincadeira. Brincadeira nenhuma. O papa em exercício, Eugénio IV,convocou o seu próprio Concílio em Florença. Rotulou o Concílio de Basle de «umaturba de pedintes, simples criaturas ordinárias, a escória do clero, apóstatas, rebeldesblasfemos, sacrílegos, cadastrados, homens que, sem excepção, apenas merecem seracossados de volta para o diabo de onde vieram».

O papado desperdiçou esta oportunidade; e não viria a haver outra. O mesmoséculo que viu Eugénio IV reprovar os melhores esforços de Basle para uma reforma,acabaria com o papa que, acima de todos, tinha vindo do diabo: Alexandre Bórgia.

A tempestade em formação

No século XV não houve uma única voz que se levantasse em defesa do papado.Com homens como Francesco de la Rovere no trono não é difícil perceber porquê.

Page 97: Vigde cristo

97

Francesco tornou-se Sisto IV em 1471. Teve vários filhos, a que chamavam, deacordo com o costume da época, “os sobrinhos do papa”. Sisto deu o chapéucardinalício a três sobrinhos e a seis outros parentes. Entre os beneficiários estavaJuliano de Rovere, o futuro Júlio II.

O favorito de Sisto era Pietro Riario, que o historiador Theodor Griesinger acreditavaser filho dele e da própria irmã. O novo papa tinha certamente uma grande amizadepelo rapaz. Fê-lo Bispo de Treviso, Cardeal Arcebispo de Sevilha, Patriarca deConstantinopla, Arcebispo de Valência e Arcebispo de Florença. Até então Pietro forafranciscano. Todos os anos queimava o hábito para matar os parasitas. Quando setornou cardeal, mudou. Tornou-se um perdulário em grande escala, mantendomulheres a quem fornecia bacios de ouro. Os cronistas da época queixavam-se da vilutilização dada aos tesouros da Igreja. Riario viria a morrer ainda novo, completamenteconsumido.

Sisto IV construiu a capela que tem o seu nome, e onde todos os papas são agoraeleitos. A capela já viu pompa e ignomínia. Os cardeais já lá fizeram piqueniques, já láacamparam, já lá dormiram e até muitas vezes andaram à pancada. Debaixo daabóbada, guardou Napoleão os seus cavalos. A capela Sistina não é mais do que umornamento num Vaticano que rapidamente ganhou esplendor na arte e na arquitectura,enquanto no seu interior grassava a corrupção.

Sisto foi o primeiro papa a licenciar os bordéis de Roma; rendiam-lhe trinta milducados por ano. Também ganhou consideravelmente com um imposto lançado sobreos padres que mantinham amantes. Outra fonte de rendimento era garantir privilégiosaos ricos «para que eles pudessem consolar certas matronas na ausência dosmaridos».

Foi no campo das indulgências que Sisto mostrou um toque de génio. Foi o primeiropontífice a decidir que elas podiam ser aplicadas aos mortos. Até ele ficou admiradocom a sua popularidade. Estava ali uma fonte inesgotável de rendimento em que nemmesmo os mais cobiçosos dos seus antecessores tinham sonhado. As suasimplicações eram de cortar a respiração: o papa, criatura de carne e osso, tinha podersobre o mundo dos mortos. As almas a penar pelos seus pecados podiam serresgatadas pela sua palavra, desde que os seus parentes piedosos esvaziassem osbolsos. E quem é que o não faria se tivesse um pouco de bondade cristã? Viúvos eviúvas, pais que choravam os filhos, gastavam tudo na tentativa de tirar os seus entesqueridos do Purgatório, que era pintado com cores cada vez mais lúgubres.

Rezar pelos mortos era uma coisa, pagar por eles era outra. As pessoas simpleseram levadas a pensar que o papa, ou aqueles que vinham à aldeia vender o perdãodo papa, garantiam que os seus mortos iriam para o céu nas asas das indulgências. Opotencial para o abuso era considerável. A venda de relíquias do século X já tinha sidoum mal bastante. De facto, o maior negócio de exportação de Roma durante muitotempo tinha sido o dos cadáveres, inteiros ou em partes. Eram vendidos aos peregrinospor grandes quantias. T. H. Dyer escreveu: «Um dedo do pé ou da mão de um mártirpodia ser um regalo para um homem de poucas posses, mas os príncipes e os bispospodiam comprar um esqueleto inteiro». Com as catacumbas como uma espécie de ElDourado, muitos pontífices doavam os ossos de mártires às cidades para as bajularem.O talento de Sisto consistia no seguinte: não se desfazia de nada, a não ser de bensincorpóreos. Os ossos dos mártires, tal como o petróleo, não eram um produtorenovável, mas as indulgências eram ilimitadas e o seu preço podia ser adaptado atodas as bolsas. Nada era exigido ao doador ou ao doado, nem amor, nem compaixão,oração ou arrependimento — apenas dinheiro. Nunca houve prática mais anti-religiosa

Page 98: Vigde cristo

98

do que esta. O papa enriquecia na mesma medida em que os pobres iam sendoludibriados.

O Purgatório não tinha qualquer justificação, nem nas Escrituras nem na lógica. Oseu fundamento era apenas a ganância papal. Um escritor inglês, Simon Fish, em ASupplicacyion for the Beggars, escrito em 1529, viria a denunciar tudo istoirrefutavelmente.

Não há em toda a Sagrada Escritura uma só palavra sobre isto, ealém disso, se o papa, com o seu perdão, pode, em troca dedinheiro, libertar de lá uma alma, pode libertá-la também semdinheiro: se ele pode libertar uma, também pode libertar um milhardelas, pode libertá-las a todas; e assim destruir o purgatório: eentão, se ele as mantém lá presas, em sofrimento até que alguémlhe dê dinheiro, não passa de um tirano cruel, sem qualquer espéciede espírito caritativo.

Em 1478 Sisto publicou uma Bula que ainda causou mais danos à Igreja. Sancionoua Inquisição em Castela. E esta alastrou, literalmente, como fogo. Em 1482, só naAndaluzia, foram queimados dois mil hereges.

Dizia-se de Sisto que ele «se afundou em crime e em sangue até à mitra»,mergulhando a Itália em guerras infindáveis. Quando morreu, em tempos relativamentepacíficos para o papado, alguém com espírito disse que este senhor da guerra tinhasido «assassinado pela paz». Era tido como tendo «incarnado a maior concentração demaldade humana». Nas palavras do Bispo Creighton, «ele enfraqueceu o caráctermoral da Europa».

Na morte, foi o seu meticuloso capelão alemão João Burchard que o lavou. Oscompartimentos tinham sido saqueados de tal maneira que o capelão não tinha nadacom que secar o cadáver. Despiu-lhe a camisa e utilizou-a para isso. Por fim, vestiu-ocom uma batina e um par de chinelos emprestados.

Oito anos mais tarde, em 1492, Burchard estava a ganhar coragem paradesempenhar idêntica tarefa com o sucessor de Sisto, o velho sexagenário InocêncioVIII. Magro e anémico, o pontífice estava na cama apoiado em almofadas. Dos cantosda boca escorria-lhe leite, o seu único sustento há várias semanas. Olhando para trás,ele sentia que tinha coisas de que se podia orgulhar.

Tinha casado o seu filho favorito no seio dos grandes Medicis de Florença, trazendoassim aquela família para a linha de sucessão do papado com resultados desastrosos.

Inocêncio também publicou um édito contra os judeus de Espanha. Aqueles que serecusavam a abraçar o Cristianismo eram expulsos da Península. Houve então umaonda de emigração que só teve paralelo nos anos trinta na Alemanha nazi. Cem milfugiram, outros tantos ficaram fingindo terem-se convertido. «Isto», diz o The CatholicDictionary com intencional ironia, «garantiu o emprego à Inquisição por muitosséculos». Na sua ficha ficaram uma ou duas nódoas. Por exemplo, não tinha feito nadapara pôr a cidade em ordem. O seu vigário foi ter com ele e disse-lhe: «Temosrealmente de fazer com que os padres deixem de manter mulheres, Vossa Santidade».A resposta de Inocêncio ficou assim registada: «É uma perda de tempo. Isso está tãoespalhado entre os padres, mesmo na Cúria, que dificilmente se encontrará um quenão tenha uma concubina». Quando isto constou alguém disse: «Sua Santidadelevanta-se da cama das prostitutas para trancar e destrancar as portas do Purgatório edo Céu».

Page 99: Vigde cristo

99

Na sala contígua, enquanto a sua vida chegava ao fim, o seu médico examinava trêsformosos jovens. Estava a dizer-lhes que podiam prestar um grande serviço ao Vigáriode Cristo. O sangue do papa estava velho e gasto; se eles lhe dessem algum do seuele poderia continuar a inspirar a Igreja. Burchard deu uma achega oferecendo umducado a cada.

O médico era judeu. Inocêncio acreditava que a própria maldade dos Judeus lhesdava acesso a uma sabedoria oculta que faltava aos médicos cristãos.

O médico informou Burchard que estava pronto para começar. Fez uma vénia edirigiu-se para o quarto do papa e, de mãos a tremer, sangrou o pontífice.

Trouxeram o primeiro jovem e, por transfusão directa, o sangue passou daquelepara o papa. Isto não era uma prática científica rigorosa. O quarto tresandava; osangue jorrava para as roupas da cama e para as carpetes no chão. O jovem foi levadopara fora meio inconsciente. Chamaram o segundo jovem e depois o terceiro. Embreve todos os três estavam mortos na antecâmara. Burchard abriu-lhes as mãospegajosas e tirou-lhes o dinheiro de volta.

O sacrifício dos jovens foi em vão. Inocêncio confessou os seus pecados e, com oespírito em paz, morreu com um trocadilho nos lábios: «Vou para Vós, Senhor, naminha Inocência». No seu túmulo, disse alguém, estavam enterradas «a imundície, agula, a avareza e a preguiça».

Mais uma vez, parecia que o papado já não podia descer mais baixo. Depois veio oBórgia.

O núcleo da tempestade

Era voz corrente que Rodrigo Bórgia, que era catalão, tinha cometido o seu primeiroassassínio quando tinha doze anos. Cravava constantemente a bainha da espada nabarriga dos outros rapazes. Quando jovem, as suas inclinações amorosas não eramsegredo. O seu azar foi ter um tio papa, Calisto III.

Em 1456 Calisto fez Rodrigo, então com vinte e cinco anos, Arcebispo de Valência,a principal diocese de Espanha. Rodrigo já era famoso por ter relações simultâneascom uma viúva e com as suas duas belas filhas, uma das quais foi a sua sempreamada Vanozza Catanei. Chamado a Roma para se tornar cardeal aos vinte e seisanos e Vice-Chanceler da Igreja um ano mais tarde, não suportou a ideia de ficar longeda sua amante, e instalou-a com todo o estilo naquela que era a mais elegante dascidades, Veneza.

Quando o tio morreu, o novo papa, Pio II, não foi assim tão tolerante para com ele.Chegou-lhe aos ouvidos uma orgia borgiana em Siena, da qual foram excluídos osmaridos, os pais, os irmãos e outros familiares masculinos para que a sensualidadepudesse ter rédea livre. «Achais bem», perguntou-lhe Pio II diplomaticamente, uma vezque ele próprio tinha feito dois filhos, «não terdes nada na cabeça todo o dia senãopensamentos de prazer voluptuoso?»

Quando Rodrigo se tornou papa, tomou o nome de Alexandre VI, parecendo não sepreocupar muito com o facto de Alexandre V ter sido excluído das listas como oantipapa de Pisa. Depois da eleição, Bórgia rapidamente entrou na depravação. Não foideposto nem sequer posto em causa. O sistema não o permitia.

Lutero tinha nove anos quando Bórgia subiu ao poder. Em Roma tudo estava àvenda, desde os benefícios e indulgências aos chapéus de cardeal e até o própriopapado. Segundo João Burchard, que desempenhava a função de Mestre de

Page 100: Vigde cristo

100

Cerimónias do conclave, Bórgia conseguiu os votos do Sacro Colégio após umadispendiosa campanha. É elucidativo ver, através dos diários de Burchard, como oEspírito Santo se desempenha da tarefa da escolha do sucessor de S.Pedro.

O dinheiro jorrava em Roma vindo de toda a Europa e era canalizado para oconclave pelos banqueiros. Bórgia tinha uma oposição dura. O Cardeal da la Roveretinha 200.000 ducados do rei de França e mais cem mil da República de Génova. Sócinco votos não foram comprados. Como era Vice-Chanceler, Bórgia era o mais ricodos cardeais. Pôde oferecer vivendas, cidades e abadias. Deu quatro mulascarregadas de prata ao seu grande rival, o Cardeal Sforza, para o convencer a desistir.Praticamente sem um tostão, viu com desgosto que ainda lhe faltava um voto.

O Cardeal Gerardo de Veneza assegurou-lho, embora sem qualquer culpa. Há fortesrazões para pensar que estava senil. Tinha noventa e seis anos e o mais notável é quenão procurou subornar.

Depois de elegerem Bórgia, os cardeais agradeceram ao Espírito Santo a escolhade um sucessor para S.Pedro. Mas Giovani de Medici disse depois ao Cardeal CibÒ:«Estamos agora nas garras do lobo mais selvagem que o mundo jamais viu. Se nãofugimos ele vai sem dúvida devorar-nos». O Cardeal de la Rovere, o futuro Júlio II,pegou na ideia e fugiu, para regressar só dez anos depois quando o Faraó, o papaBórgia, morreu.

Por enquanto “o lobo” estava bem vivo. Num frenesim de alegria, exclamou: «Eu souo papa, o Pontífice, o Vigário de Cristo».

Nos aposentos de Bórgia do Palácio Apostólico há um retrato de corpo inteiro deAlexandre VI, de Pinturicchio. Mostra-o envolto numa capa de brocado enfeitada dejóias; só a cabeça e as mãos estão à mostra. É um homem alto, de testa estreita, facese queixo gordos e nariz grande e carnudo. O pescoço é monstruoso, os lábiossensuais, os olhos penetrantes. Tem as mãos, de dedos intumescidos e cheios deanéis, postas em oração.

Este homem, a quem Gibbon chamou «o Tibério da Roma Cristã», era perverso,mesmo para um papa do Renascimento. O seu olho para as mulheres bonitas era,dizia-se, infalível, mesmo quando já era velho. Conhecidos, teve dez filhos ilegítimos,quatro dos quais, incluindo os famosos César e Lucrécia, de Vanozza. Quando elamurchou, o papa, já com cinquenta anos, arranjou outra amante.

Júlia Farnese tinha quinze anos e casara recentemente com Orsino Orsini. Este eraum bom marido: cego de um olho, sabia quando havia de piscar o outro. Esta a razãopor que Júlia ficou conhecida em toda a Itália como “a Prostituta do Papa” e “a Noivade Cristo”. De uma beleza deslumbrante, ela era, nas palavras de um diplomata, «ocoração e os olhos» do pontífice, sem quem ele não podia viver. Com as suas ligaçõespapais, ela não teve dificuldade em conseguir um chapéu vermelho para o irmão, ofuturo Paulo III, ganhando deste modo o título de “O Cardeal de Saias”.

De Júlia o papa teve uma filha chamada Laura. Genericamente um homem honesto,ele seguiu o exemplo de Inocêncio VIII e reconheceu abertamente os filhos naquilo queficou a chamar-se a Idade de Ouro dos Bastardos. Pio II tinha dito mesmo que Romaera a única cidade do mundo governada por bastardos. Mas Bórgia tentou deixar claroque Laura era uma Orsini; por outras palavras, que o marido de Júlia era o pai da filhade Júlia. Isto era difícil de acreditar. E mais, como Lorenzo Pucci, embaixador noVaticano, escreveu ao seu mestre em Florença: «A parecença da criança com o papa étal que ela tem de ser dele».

O filho de Júlia chamado João, conhecido como Infans Romanus, a misteriosaCriança Romana, também era dele. Alexandre deve ter repetido até mesmo ao fim a

Page 101: Vigde cristo

101

oração de Santo Agostinho: «Senhor, fazei-me casto, mas ainda não», porque a LaBella Giulia deu-lhe ainda um último filho, o seu homónimo Rodrigo, como presente dedespedida quando ele morreu.

A vida no Vaticano naquela época nunca foi monótona nem completamenteevangélica. Havia estórias credíveis de orgias de vinho e sexo. Constava queAlexandre tinha tido relações incestuosas com a filha, a bela Lucrécia. Se isto éverdade, não é certo, era um recorde mesmo para um papa da Renascença ter tidorelações sexuais com três gerações de mulheres: com a filha e com a mãe e a avódesta.

César, o filho, foi o modelo de Maquiavel para o seu cruel Príncipe. O próprio paitemia-o. Sobre ele Lord Acton escreveu o seguinte: «Como não tinha qualquerpreferência pelo bem ou pelo mal, avaliava com espírito igual e desapaixonado se eramelhor poupar um homem ou cortar-lhe a cabeça». O político florentino FrancescoGuicciardini, que se tornou lugar-tenente dos exércitos papais, confiou ao seu diáriosecreto I Ricordi, que César nasceu para que «haja no mundo um homem bastante vilpara cumprir os desígnios do pai, Alexandre VI». Num estilo impressivamenteespanhol, César uma vez matou cinco touros com uma lança na Praça de S.Pedro edepois, de um só golpe de espada decapitou um sexto. Não pensava duas vezes antesde roubar uma mulher ao marido, violá-la e depois atirá-la ao Tibre.

No princípio do seu reinado, o papa, num gesto nostálgico, deu a César a sua velhadiocese de Valência. O filho era então um formoso adolescente de dezassete anos, denariz direito, olhos negros taciturnos e cabelo escuro matizado de vermelho. Um anodepois, no consistório em que Alexandre promoveu Ippolito d’Este, o irmão de quinzeanos da sua amante, César tornou-se cardeal.

Isto foi uma trapaça, porque os cardeais têm que ser homens nascidos em camalegal. Alexandre resolveu o problema de maneira brilhante. Em 20 de Setembro de1493 assinou duas Bulas, ambas afiançadas pelas testemunhas mais fidedignas dasua corte. A primeira provava que César era filho de Vanozza e do marido. Nasegunda, publicada secretamente, o papa reconhecia César como seu filho.

Nesses tempos havia uma média de catorze assassínios por dia em Roma. Quandoo culpado era apanhado, Alexandre não tinha escrúpulos em deixá-lo em liberdade,considerando que, como ele dizia com aquele seu sorriso cativante, «O Senhor exigenão a morte do pecador mas sim que ele pague e continue a viver».

Um dos seus hábitos menos cativantes era nomear cardeais a troco de uma chorudataxa, e depois mandá-los envenenar para aumentar o negócio. O seu veneno preferidoera a cantarella, uma mistura composta na sua maior parte por arsénico branco. AIgreja, decretou ele, podia herdar os bens móveis e imóveis do cardeal. E ele, claro,como Vigário de Cristo, era a Igreja.

Um dos poucos que protestaram abertamente contra o escândalo da corte papal foio Prior Dominicano de S.Marcos em Florença. Savonarola, o maior pregador do seutempo, foi declarado canonizável por um pontífice posterior, Benedito XIV. Mas estanão era a opinião de Alexandre. Tentou calar o frade prometendo-lhe um chapéucardinalício de graça. Quando viu, para seu espanto, que isto falhou, não teve outraalternativa senão mandar que ele fosse julgado, enforcado e queimado — embora,como foi dito, não houvesse da parte do papa qualquer rancor.

Passaram-se três turbulentos anos antes de se dar um dos acontecimentos maisgrotescos da história do Vaticano, na noite do último dia de Outubro de 1501. Burchard,ajudante pessoal de quatro pontífices sucessivos, descreveu-o no seu estilo pedante,nos diários que só por acaso apareceram à luz do dia.

Page 102: Vigde cristo

102

César convidou a irmã favorita, Lucrécia, e o papa, o outro único homem presente,para uma festa chamada “O Torneio das Prostitutas”. Cinquenta das mais belas deRoma dançaram vestidas de roupas que gradualmente se iam tornando cada vez maisescassas para depois começarem a saracotear nuas à volta da mesa do papa. Elasdeviam ter ouvido falar no boato que corria em Roma de que o papa preferia uma orgiaa uma missa solene. Num final frenético as prostitutas caíram de joelhos,engalfinhando-se a lutar pelas castanhas que os Bórgias lhes atiravam como se fazcom os porcos.

Mas o papa também teve o seu lado bom. Era um patrono das artes. Patrocinou umjovem monge sem tostão de nome Copérnico. Alexandre tinha olho para o negócio e foide facto um dos poucos pontífices da época que equilibraram as contas. Não erahipócrita e nunca fingiu ser um cristão sincero, muito menos santo. Contudo, tal como amaioria dos pontífices, era um devoto fervoroso da Virgem Maria. Fez reviver o antigocostume de tocar o sino do Angelus três vezes por dia. Encomendou um quadro deuma soberba Madonna com o rosto de Júlia Farnese para aprofundar o seu amor.Também não era pessoa para esquecer os serviços das antigas amantes. Daí que,quando Vanozza morreu, poucos anos depois dele, com setenta e seis anos, elativesse sido tratada como viúva do papa. Foi enterrada com pompa ainda maior do queo próprio Bórgia na Igreja de Santa Maria del Popolo na presença de toda a corte papal«quase como se fosse um cardeal».

Deve dizer-se também em abono do papa que ele era um pai orgulhoso e afectuoso.Baptizou os filhos e deu-lhes a melhor educação que a simonia podia pagar. Celebrouno Vaticano os seus casamentos com as mulheres das melhores famílias da época,mas afinal Inocêncio VIII não tinha feito o mesmo? Quando casou Lucrécia na SallaReale, esta ia acompanhada pela neta do Papa Inocêncio e no cortejo seguiam “AProstituta do Papa“ e mais 150 emocionadas damas romanas. Para Lucrécia, porocasião do seu terceiro casamento, ele até adiou o início da Quaresma para que opovo de Ferrara, para onde ela ia, pudesse celebrar os esponsais com carne e danças.

A afeição paternal do papa nunca foi tão clara como quando chorou a morte do filho,o Duque de Gandia, assassinado, muito provavelmente pelo seu outro filho, oimpiedoso César. Quando Gandia foi retirado do Tibre e depositado aos pés do papa,os cínicos disseram: «Finalmente! Um pescador de homens!» Deve ter provocadolágrimas nos olhos do consistório quando lhes disse que teria dado sete tiaras para tero filho de volta. E eles choraram ainda mais quando, durante os poucos dias de luto,ele proclamou o fim do nepotismo e ameaçou reformar a Cúria. Todas as concubinasdo clero, decretou ele, seriam despedidas dentro de dez dias; mesmo os cardeaisteriam de começar a ser frugais e castos. Júlia deve-lhe ter estragado as suasmelhores intenções, porque lhe deu um filho no ano seguinte.

Os historiadores já têm sugerido que a sua afeição por César estava deslocada. Elesabia que César trazia sempre veneno consigo para o caso de precisar dele para uminimigo. E, depois de todo o trabalho que teve para fazer César cardeal, este quisrenunciar ao chapéu vermelho. Alexandre arriscou provocar a ira do Sacro Colégioautorizando-o a sair do grupo dos “Purpurados“, como Corro lhes chamava. Estava emjogo a salvação da alma de César, alegava o papa. Nessa altura o rosto do filho estavacoberto de manchas negras e borbulhas muito vivas, sinais de sífilis secundária. SuasEminências talvez ficassem aliviadas com a sua partida, mas, como sensatamenteobservou um ajudante, se fosse permitido aos cardeais resignar por motivos tão triviais,não restaria nenhum. Quando a sífilis se agravou, César começou a usar uma máscarade seda negra em público.

Page 103: Vigde cristo

103

Tendo-se descartado do chapéu vermelho quando tinha vinte e dois anos, ficou livrepara casar e para realizar a sua maior ambição: arrebatar a Gandia o lugar decomandante-chefe dos exércitos papais. O pai devia saber que ele, mesmo só comuma simples faca na mão, não era de confiança.

Uma vez, César fez em pedaços um jovem espanhol chamado Perroto, camareirofavorito de Alexandre, por ele ter tido relações com a irmã. Não foi o pecado, mas ainsensatez do acto que ele condenou. Era vital para os interesses da família, eespecialmente para os de César, que se pusesse fim ao primeiro casamento deLucrécia com Giovanni Sforza para permitir que ela casasse dentro da família realNapolitana. Os fundamentos da anulação eram a não consumação. A comissãotestemunhou a sua virgindade e, implicitamente, acusou o marido de impotência. Romariu à gargalhada quando a notícia se soube. Lucrécia era conhecida como «a maiorprostituta de Roma de todos os tempos». O marido, Sforza, recusou-se a cooperar coma comissão, salientando que tinha havido consumação em grande abundância. Jurouque «a tinha conhecido carnalmente em inúmeras ocasiões». Seu tio, Ludovico deMilão, sugeriu-lhe secamente que demonstrasse a sua capacidade perantetestemunhas.

Este não foi o único divórcio autorizado por Alexandre quando pretendia anular umcasamento. Não que isso ajudasse o novo marido de Lucrécia. Em 1500, depois de terservido os seus intentos, César mandou-o estrangular.

Perroto foi uma primeira vítima. Aos olhos de César, ele era culpado decomprometer a reputação da irmã num momento delicado, e tinha de ser despachado.

O papa, a piscar os olhos remelosos, tentou proteger o seu camareiro debaixo doseu manto, gritando em espanhol: «Não, César, por amor de Deus, não». Césaravançou com o punhal e o sangue saltou para a cara do papa. Depois o corpo levou otratamento habitual; foi atirado ao Tibre. Durante dias o pontífice continuou a ouvir osgritos do jovem, a sentir o cheiro do sangue que lhe ensopou a sotaina até ao peitovacilante, a sentir os estremeções de Perroto a cada nova estocada até ao estretor finalda morte.

A morte do próprio Alexandre, pressagiada por uma coruja que lhe entrou pelajanela em pleno dia e morreu aos seus pés, foi feita à sua medida. Muitoprovavelmente, César envenenou-se a si e ao pai por engano. A cantarella no vinhodestinava-se a alguns cardeais ricos que era preciso eliminar.

César recuperou. Viria a morrer corajosamente três anos mais tarde no campo debatalha em Viana, Espanha, enfrentando sozinho um exército. Quando despiram ocorpo, viram que tinha setenta e três golpes. O papa, de setenta e três anos, sucumbiuao veneno. Burchard nos seus diários e embaixadores nos seus despachos registaramem pormenor os acontecimentos.

O arsénico branco criou-lhe uma bola de fogo na barriga. Esteve na cama durantehoras, de olhos vermelhos, pele amarela, incapaz de engolir. A princípio, tinha o rostocor de amora e os lábios intumescidos. A pele, pintalgada como a do tigre, começou adescascar. A gordura da barriga liquefez-se. O estômago e os intestinos começaram asangrar.

Os médicos tentaram os eméticos e a venissecção, mas em vão. Depois de receberos últimos sacramentos, este homem, que, segundo Guicciardini, não tinha religião,deu o último suspiro na Torre Bórgia, num compartimento decorado por Pinturicchio.

César, ainda de cama e destroçado pelo desaparecimento do seu papa-pai epatrono mandou selar os aposentos papais para que fossem os seu próprios homens, enão os lacaios dos cobiçosos cardeais, a saqueá-los.

Page 104: Vigde cristo

104

O corpo foi deposto numa essa entre dois círios acesos. Estava negro e começava aentrar em decomposição. Burchard recorda a boca a espumar como uma chaleira aolume. A língua ficou tão grande que lhe enchia toda a boca e a mantinha toda aberta. Ocorpo estava deformado e começava a inchar como uma rã, até que ficou tão largocomo comprido. Giustiniani, o embaixador veneziano, escreveu num despacho que ocorpo de Bórgia era «o cadáver mais feio, mais monstruoso mais horrível jamais visto,sem qualquer forma ou aspecto humano».

Os capangas de César foram arrancar os anéis dos dedos do cadáver, tirar oscastiçais, os enfeites, as vestes, o ouro, a prata e até as carpetes do chão. Nestecenário, o capelão continuou calmamente a lavar o corpo.

Quando o compartimento ficou vazio, o corpo começava a explodir, e de cada orifíciosaíam vapores sulfurosos. Seis carregadores e dois carpinteiros, a apertar o nariz,tentaram levar a brincar uma experiência horrível. O seu maior problema era conseguirpôr aquele monte de carne mal cheiroso no caixão. Evitando tocar numa tal fonte decontágio, ataram uma corda à volta daquele sagrado pé, tantas vezes beijado porpríncipes, prelados e mulheres bonitas, e arrastaram-no da essa. O corpo silvouquando bateu no chão frio. Tiraram-lhe a mitra e ergueram-no com cordas apenas osuficiente para o deixar cair com um chape dentro do caixão.

Agora, segundo Burchard, «já não havia círios, nem luzes, nem padres, nemninguém para velar o pontífice morto». Com a misericórdia de Deus, carregaram sobreo corpo para o abater, mas ele continuava a sair. Foi necessária toda a força deBurchard para o abater de forma a caber no caixão. Por fim, como não havia maisnada, cobriu o Servo dos servos de Deus com um bocado de carpete velha.

Os carregadores do palácio tiveram de lutar com os clérigos da basílica que nãoqueriam deixar entrar o cadáver para o enterro. Ao funeral apenas assistiram quatroprelados. O caixão esteve na cripta de S.Pedro por muito pouco tempo. O Papa Júlioafirmou mais tarde que era uma blasfémia rezar por uma alma danada. Portanto,qualquer missa pelo descanso da alma de Alexandre seria um sacrilégio.

Em 1610, o corpo foi expulso da basílica e agora repousa na Igreja Espanhola naVia de Monserrato à espera, em ansiedade, do Julgamento Final.

Page 105: Vigde cristo

105

Page 106: Vigde cristo

106

Page 107: Vigde cristo

107

7A Inevitável Reforma

Pouco depois do Bórgia, ascendeu ao trono papal um dos homens mais notáveis dahistória, Júlio II. Franciscano de Génova, alto, elegante e sifilítico, usou do suborno, emmontantes de centenas de ducados, para alcançar o papado. Depois decretou que apartir de então quem subornasse o conclave seria deposto. Homem atlético, traziasempre com ele uma bengala com que batia em quem o molestasse. Para este homemtempestuoso a religião nem chegava a ser um hobby. A sua alimentação quaresmalconsistia em camarão, atum, lampreia da Flandres e o melhor caviar.

É sobretudo lembrado como patrono das artes. Um dia levou um jovem escultor detrinta e um anos até à Capela Sistina. O jovem era magro, de ombros largos, estaturamediana e nariz partido, prémio por ter brigado com um rapaz maior do que ele quandoera aprendiz.

O Papa Júlio apontou para o tecto com a bengala. «É aquilo. Quero que me pintesaquilo».

Miguel Ângelo olhou e reprimiu um gemido. O tecto tinha dezoito metros de altura eera côncavo. Como é que ele, como é que alguém seria capaz de resolver asperspectivas? Além disso, não era pintor. Até então só tinha pintado umas telas e nãoficara muito orgulhoso delas. Preferia trabalhar a pedra. A pedra dura. Não, ia recusar.Sem aviso prévio, voltou para a terra natal, Florença, onde tinha sido criado no ar purodos campos de Arezzo e assimilou o seu ofício de escultor ao leite da ama.

Dois anos depois, em 1508, Júlio obrigou-o a voltar para Roma sem escopro nemmartelo. Assim começou a pintura que levaria este jovem do anonimato aos píncarosda grandeza. Rebelde, como sempre, escreveu no seu primeiro recibo: «Eu, MiguelÂngelo Buonarotti, escultor, recebi 500 ducados por conta… da pintura da abóbada daCapela Sistina».

Júlio viria a impressioná-lo mais do que uma vez na sua cólera por encontrar umhomem tão violento como ele próprio. Uma vez, Miguel Ângelo foi obrigado aapresentar-se-lhe com um cabresto em sinal de submissão.

Em quatro anos iria cobrir 500 metros quadrados de tecto com 300 figuras.Confidenciou as suas memórias desses anos num poema. De estar tanto tempodeitado de costas desenvolveu uma papeira que se derramava à volta como um baldedonde os animais bebem. Ficou com as costas arqueadas como as de um remador. Abarba virava-se para o céu de modo que o queixo e a barriga praticamente se fundiamnum só. O pincel deixava-lhe cair constantemente um mosaico de tinta sobre o rosto.Isto não é coisa que se pinte, gemia ele, e eu que nem sequer pintor sou.

No Dia de Todos os Santos de 1512 este não-pintor abriu as portas da capela. Láem cima, no alto, naquela superfície impossível, estava mais do que uma obra de arte.Estava uma enciclopédia de humanidade. Os temas do Velho Testamento retratavam ajornada do homem do nascimento até à morte. Ao cantar a missa no altar, o exultanteJúlio fazia-o com o conhecimento de que mandara fazer a maior obra de arte que omundo jamais vira.

Por intermédio de Miguel Ângelo, o papa começou a criar um novo Vaticano que setem mantido como uma maravilha até hoje. Mas a mesma preocupação não teve ele

Page 108: Vigde cristo

108

em relação à fé cristã. Esta é uma das ironias do Vaticano: exteriormente, em termosde cultura, arte e arquitectura, a Igreja nunca estivera em melhor forma; Bramante,depois Miguel Ângelo e Rafael. Interiormente apenas havia corrupção.

A principal e constante paixão de Júlio não era a arte mas a guerra. Como estrategomilitar poucos o igualavam. Com sessenta anos na altura da eleição, usava uma barbabranca impressiva que metia dentro do elmo. Violando a lei canónica, envergou aarmadura, montou o seu cavalo de batalha e cavalgou para norte para lutar por Deus epelos Estados Papais. Também aí foi bem sucedido. Queria-os realmente para a Igrejae não para a sua família como a maioria dos papas do seu tempo. Viria a estabelecerterritórios que iriam durar, sem praticamente qualquer alteração, até serem assimiladosnuma nova Itália nos fins do século XIX.

De vez em quando presidia ao serviço religioso em S.Pedro. Mas houve problemas.Como grande mulherengo que era, gerou três filhas quando ainda era cardeal. Daí quena Sexta-Feira Santa de 1508 o seu Mestre de Cerimónias tenha anunciado que SuaSantidade não podia permitir que lhe beijassem o pé, «quia totus erat ex morbo gallicoulcerosus» («estava completamente crivado de sífilis».

Isto não o impedia de montar o seu cavalo. Não há cena mais representativa doRenascimento do que a de Júlio II, de armadura completa, a deslizar sobre os fossosgelados para passar as muralhas fendidas de Mirandola, então em mãos francesas, ereclamá-las para Cristo. Nesse terrível inverno o Rio Pó estava gelado. O pontífice pôsum manto branco por cima da armadura, e cobriu a cabeça com uma pele de ovelha,de tal maneira que parecia um urso ao gritar: «Vamos ver quem é que tem as bolas∗

maiores, se o rei de França se o papa». E o italiano deixou bem claro que não setratava de bolas de canhão.

Quando Miguel Ângelo esculpiu uma estátua sua, Júlio examinou-a com umaexpressão intrigada. «O que é aquilo que tenho debaixo do braço?» «Um livro,Santidade» «O que é que eu sei de livros?» trovejou o papa. «Põe-me lá antes umaespada.»

A preferência de Sua Santidade pela espada em vez da Bíblia, pela sela em vez daCadeira de S.Pedro, teve os seus efeitos em Roma. Miguel Ângelo, que conhecia aCidade Eterna como ninguém, deixou num poema as suas impressões sobre os papasque conheceu:

Dos cálices elmos e espadas fizeram,Aos baldes, do Senhor o sangue negoceiam,Cruz e espinhos em lâminas envenenadas transformaramE até ao próprio Cristo tiram a resignação.φ

Júlio ficou tão zangado com Luís XII de França por este não o ter apoiado nas suascampanhas militares que escreveu uma Bula em que lhe retirava o reino, que ficariapara o piedoso Henrique VIII de Inglaterra, cujo autor preferido era S.Tomás de Aquino,desde que se mostrasse um bom católico ajudando-o nas suas guerras.

∗ Balls no original, que em linguagem informal tem também o significado de testículos. (N. T.)φ No original:Of chalices they make helmet and swordAnd sell by the bucket the blood of the Lord.His cross, his thorns are blades in poison dippedAnd even Christ himself is of all patience stripped. (N. T.)

Page 109: Vigde cristo

109

Júlio morreu antes de a Bula ser publicada. Só por isso é que a França não setornou Protestante, como a Inglaterra, durante a Reforma, que se aproximavainelutavelmente.

A corte de Leão X

Após a morte de Júlio, o Cardeal Farnese saiu precipitadamente do conclave para aPraça de S.Pedro a gritar: «Bolas! Bolas!» Esta referência aos Palli do brasão dosMédicis foi logo aproveitada pela multidão espantada.

Giovanni de Médicis tinha apenas trinta e oito anos. Ser filho do famoso Lorenzo oMagnífico e de uma Orsini não era desvantagem nenhuma. Tinha sido educado no luxodo seu palácio ancestral na Via Larga de Florença e de outros cenários opulentos. Aossete anos foi feito abade para a sua primeira comunhão. Aos oito, o rei de França queriaque ele fosse feito Arcebispo de Aix-en-Provence; felizmente houve alguém queinvestigou e descobriu no momento preciso que já havia um Arcebispo dessa sé queninguém via há anos. Em compensação, o rei deu ao rapaz um priorato perto deChartres e fê-lo cónego de todas as catedrais da Toscânia. Aos onze anos Giovannirecebeu a histórica abadia de Monte Cassino. Aos treze tornou-se o cardeal mais jovemde sempre, embora não conseguisse o feito de Benedito IX, feito papa aos onze anos.Mesmo o liberal Inocêncio VIII parece ter tido escrúpulos em elevar um adolescente aoSacro Colégio; insistia em três anos probatórios que dessem ao rapaz todas asoportunidades de dominar a teologia e a lei canónica.

Na altura da eleição para o papado, o lívido Giovanni era gordo, míope, de olhosarregalados e, por razões que então não se percebiam muito bem, casto. Isto é, nãotinha amantes, nem “sobrinhos” (bastardos). A razão era que ele era provavelmente umousado homossexual. Guicciardini dizia que o novo papa se devotava demasiado àscoisas da carne «especialmente àqueles prazeres que, por questões de decência, nãopodem ser mencionados».

Quando o conclave começou ele estava doente e teve de ser para lá transportadode maca. Uma tal entrada reforçou as suas expectativas. Os eleitores pensavam muitobem dele por outra razão: era conhecido por sofrer de úlceras crónicas nas costas. Acirurgia produziria certamente uma nova eleição. Apesar de tudo isto, Giovanni, quetomou o nome de Leão X, tinha um temperamento exaltado. As suas primeiras palavrascomo papa foram dirigidas ao seu primo ilegítimo Júlio de Medicis: «Agora é que vourealmente gozar». Ansioso por experimentar a tiara, tirou o chapéu vermelho eentregou-o a Júlio. «Isto é para ti, primo». Júlio usou-o bem. Viria a ser um dos maisdesastrosos de todos os papas, Clemente VII.

Leão foi coroado num pavilhão provisório em frente de S.Pedro. Da famosa igreja sóficara a fachada, o resto fora deitado abaixo para ser substituído. A concha vazia davelha Basílica de S.Pedro viria a aparecer retrospectivamente como presságio dosnegros tempos que se avizinhavam. A basílica de Constantino esteve de pé quase mile duzentos anos até que Júlio II meteu na cabeça a ideia de a deitar abaixo paraconstruir outra. Os cardeais tentaram dissuadi-lo. O custo seria demasiado elevado; ir-se-iam perder belos mosaicos e relíquias insubstituíveis que ligavam todas as épocas àIgreja das catacumbas. Enquanto a nova basílica estivesse em construção, iria haveruma enorme rotura na fé e devoção do mundo cristão. Júlio não quis ouvir. Pelabasílica que ele planeara, a maior do mundo, estava disposto a qualquer sacrifício. SobLeão, a nova Basílica de S.Pedro iria custar a unidade da Cristandade.

Page 110: Vigde cristo

110

Em vez de desistir de tudo para seguir Cristo, Leão apossava-se de tudo em nomede Cristo para si próprio. Jogador e grande perdulário, dizia-se que só obedecia aJesus numa coisa: não pensava no dia de amanhã. Foi o único tipo de papa com queos romanos se sentiam descansados. Dava-lhes dinheiro, em vez de o esbanjar, comoJúlio, em guerras dispendiosas.

Foi um tempo de generoso divertimento. Um certo Cardeal Cornaro oferecia jantaresde sessenta e cinco pratos, consistindo cada prato de três ementas. Os jantares deLeão rivalizavam com estes. Do menu faziam parte carnes doces, como língua depavão. Dos pudins saíam rouxinóis a voar; rapazinhos nus saltavam dos doces. O seuprincipal animador, um frade dominicano anão, Frei Mariano, divertia-o comendoquarenta ovos ou vinte frangos de uma assentada. Durante o Carnaval, passavam diasinteiros a divertir-se com touradas seguidas de banquetes que terminavam com bailesde máscaras em que Leão entretinha os seus cardeais e suas damas.

Leão tinha 683 cortesãos na sua folha de pagamentos. Também empregava muitosbobos, uma orquestra, um teatro permanente, especializado em peças de Rabelais, evários animais selvagens. O seu favorito era um elefante branco, presente do ReiManuel de Portugal.

Em 12 de Março de 1514 realizou-se um cortejo que atravessou Roma em direcçãoà ponte de Sant’ Ângelo onde Leão se encontrava numa tribuna recebendo assaudações. Depois de um exótico desfile de aves de capoeira indianas, cavalos persas,uma pantera e dois leopardos, vinha Hanno, o elefante branco com um castelo de pratasobre o lombo. De acordo com a rigorosa etiqueta da corte, o elefante, dobrando ojoelho saudou por três vezes um pontífice deliciado. Para um grande final, deram-lheum balde com água para ele aspergir a multidão.

Este elefante, alojado no Belvedere, tornou-se uma celebridade e produziu umaliteratura completa. Escreveram-se centenas de poemas em sua honra. Ainda existemmuitas xilogravuras dele. Rafael pintou-o na cúpula inferior do Vaticano, mas a pinturaviria a perder-se em obras de renovação. Na Biblioteca do Vaticano há um diáriosecreto dos muitos compromissos do elefante, que acabou com uma morte maischorada do que a de muitos papas: «Lundi XVI Juin, 1516, mourut l’éléphant».

Contrariamente ao que diz a lei canónica, Leão caçou durante semanas emMagliana, o seu espectacular retiro, quase tão belo como Castelgandolfo. Maglianaficava a oito quilómetros de Roma, na estrada para Porto. Montava invariavelmentesentado de lado por causa do seu “achaque”, o cheiro que os cortesãos fingiam nãosentir.

Tal como tantos outros papas da Renascença, Leão foi um entusiástico construtor epatrono das artes. Dele disse o historiador contemporâneo Sarpi: «Teria sido um papaperfeito se a estas realizações [artísticas] tivesse acrescentado um mínimoconhecimento de religião».

Nenhum dos interesses de Leão saiu barato, e ele teve de contrair empréstimos desomas fabulosas junto dos banqueiros a um juro de 40 por cento. Os bordéissimplesmente não davam dinheiro suficiente, muito embora houvesse sete milprostitutas registadas numa população de menos de cinquenta mil. A sífilis erafrequente — «um tipo de doença» dizia o sifilítico Benvenuto Celini com genuínacompaixão, «muito comum entre os padres».

Para reforçar o seu rendimento, Leão inventou os ofícios à volta do palácio. Estespostos trouxeram poder e prestígio e mostraram ser muito populares. Sisto IV tinha só650 ofícios para venda; Leão tinha 2150. E leiloou-os. A maior procura era de chapéuscardinalícios, que davam em média trinta mil ducados. Suas Eminências recuperavamo dinheiro com vendas corruptas por sua conta.

Page 111: Vigde cristo

111

Apesar da surpreendente liberalidade de Leão, muitos cardeais mais novosacusavam-no de não cumprir as promessas que fizera no conclave. Alfonso Petrucci deSiena, que aos vinte e sete anos era um homem de uma profunda impiedade e de umateísmo inabalável, andava particularmente indignado. Com mais quatro membros doSacro Colégio, decidiu assassinar o papa. O seu plano era atacar Sua Santidade noseu ponto mais fraco e tinha o mérito da originalidade. Subornou um médico florentino,Battista de Vercelli, para tratar o papa das hemorróidas e durante operação introduzir-lhe-ia veneno directamente pelo recto. Era uma variante para os figos.

Leão recusou por duas vezes a oferta de Battista e por fim os seus serviços secretosinterceptaram uma carta deste para Petrucci. Ambos os conspiradores foramencarcerados, o cardeal no Marocco, a mais baixa e pior das masmorras do CastelSant’Angelo.

Sob tortura, o médico confessou. Foi enforcado em público e esquartejado por umcirurgião muito menos hábil do que ele próprio.

Leão perdoou a quatro dos cardeais rebeldes, mas as compensações foramenormes. O caso de Pertucciu, o líder, foi tratado no recato do Marocco. Sua Santidadenão podia permitir que um cristão tocasse sequer com um dedo num antigo príncipe daIgreja e, assim, empregou um mouro como carrasco. O mouro pôs uma corda com nócorredio, apropriadamente de seda carmesim, à volta do pescoço de Petrucci eestrangulou-o lentamente.

O maior perigo para Leão vinha de um quadrante que a sua demasiada miopia não odeixava reconhecer. Não vinha da corte papal, nem de Roma, mas da distanteAlemanha.

Lutero e o escândalo das Indulgências

A Alemanha, mais do que qualquer outro país, já vacilava de tantas ofensas papais.Sofria de pesados impostos; o pagamento de um ano de rendimento de um benefício;dízimas impostas sobre os benefícios por Cruzadas contra os Turcos que nunca serealizaram. Por meio da terrível arma que era a excomunhão, o clero acumulou umaimensa riqueza. Muitos homens tornaram-se padres para adquirir imunidade nostribunais civis. A Chancelaria Romana publicou um livro com os montantes exactos aser pagos por variadas absolvições. Um diácono culpado de assassínio podia serabsolvido por vinte coroas. Um bispo ou abade que tivesse assassinado um inimigopodia ser absolvido por trezentas livres. O pior dos crimes tinha o seu preço. Estes“malfeitores ungidos”, como eram conhecidos na Alemanha, estavam fora da jurisdiçãocivil. Ao contrário, traziam para dentro da rede eclesiástica, para julgamento, todas asformas de litígio, incluindo, testamentos, legitimação e usura. Qualquer magistrado civilque tentasse impedi-lo era excomungado, o que significava que perdia todos os direitosde cidadão e de homem. Os bens da Igreja, como pertenciam a Deus, eraminalienáveis. A Igreja tinha uma imensa riqueza em todos os países, mas na Alemanhacalculava-se que metade estava nas mãos do clero. Estavam isentos de todos osimpostos e obrigações, tais como as de defesa nacional.

A faísca que incendiou estas terras secas foi inflamada pelo Príncipe Alberto deHohenzollern. Aos vinte anos já detinha as ricas sés de Magdburgo e Halerstadt, mas asua ambição era a de se tornar Arcebispo de Mainz e Primaz de Toda a Alemanha.Para isso estava pronto a pagar. Acontecia que o Papa Leão estava com falta defundos para a nova Basílica de S.Pedro e disposto a negociar. Daria a Alberto a sé deMainz e, contrariando a lei canónica, deixá-lo-ia ainda, manter as suas duas outras

Page 112: Vigde cristo

112

dioceses, por dez mil ducados. Isto a acrescentar à taxa do pálio, neste caso vinte milducados.

Como Alberto não tinha esse dinheiro para entrega imediata, Leão ignorou acondenação da usura pela Igreja. Arranjou maneira de Alberto conseguir umempréstimo do necessário junto dos Fuggers a um juro exorbitante. Como é queAlberto ia pagar a dívida? Leão também tinha pensado nisso. Pegando nos exemplosde Sisto IV e Júlio II, dotou-o de uma lucrativa indulgência que ele podia apregoardurante oito anos, muito embora, antes da sua eleição ele tivesse feito a promessasolene de que revogaria todas essas indulgências. Do lucro assim conseguido metadeiria para os banqueiros e a outra metade para o Vigário de Cristo, para a Basílica deS.Pedro.

O frade escolhido para pregar a indulgência na Alemanha foi o Dominicano Tetzel.Especulador astuto, de voz forte, foi bem pago pelos seus serviços. O seu salário, foraas despesas, era vinte vezes o de um professor universitário. Como representante dopapa, Tetzel fazia sempre uma entrada solene numa cidade, rodeado por dignitárioscivis e religiosos. Era precedido de um acólito que transportava uma cruz com asarmas papais. A Bula de Indulgência era levada em cima de uma almofada de veludoguarnecida a ouro. Com a cruz implantada no meio da praça do mercado, iniciava-se onegócio. À venda estavam salvo-condutos para o Paraíso. Um agente dos Fuggersestava ali a jeito para colocar os proventos num cofre forte.

Tetzel era prodigioso a descrever o sofrimento das almas no Purgatório. Como elasse contorciam nas chamas, clamando incessantemente aos parentes na terra: «Tendepiedade de nós! Tende piedade de nós!» Doze dinheiros permitiam a um filho libertar opai da agonia. O refrão mais popular de Tetzel era:

Se no cofre cai moedinhaDo Purgatório salta alminha. ∗

Um dos associados de Tetzel prometia uma indulgência tão poderosa que era capazde redimir o pecado de alguém que, nem é bom pensar, tivesse violado a VirgemMaria.

É provável que Tetzel tivesse continuado imperturbevelmente a sua tarefa não for aa acção de um pobre monge agostiniano de trinta e quatro anos. De origemcamponesa, de olhar mortiço e rosto franco e amigável, Martinho Lutero parecia firmecomo uma árvore enraizada na terra. A sua paixão era a Bíblia, e não encontrava lájustificação para estes abusos papais. Ficava furioso ao ver os ministros do papa avender indulgências ao desbarato, chegando mesmo a usá-las como fichas de jogo emestalagens e tabernas. Estes abusos já aconteciam há muito tempo. Em 1491Inocêncio VIII tinha outorgado a Indulgência Butterbrief por vinte anos. Por umvinteavos de um florim renano os alemães adquiriam anualmente o privilégio de comeralimentos lácteos nos dias de jejum. Isto significava que eles podiam deliciar-se com osseus pratos favoritos e ao mesmo tempo recolher os méritos do jejum. O produto daindulgência foi para a construção de uma ponte sobre o Rio Elbe em Torgau. No anode 1509 Júlio II renovou a indulgência por mais vinte anos. O que mais encolerizavaLutero era o ludíbrio das pessoas simples que eram levadas a crer que podiamcomprar a sua entrada no Céu.

∗ No original:As soon as the coin in the coffers ringsA soul from the Purgatory springs. (N. T.)

Page 113: Vigde cristo

113

Durante as festividades de Todos os Santos de 1517 Lutero pegou num martelo epregou as suas Noventa e Cinco Teses sobre Indulgências na grande porta da igrejado castelo de Alberto em Wittenberg. Lá dentro havia relíquias, entre as quais umcaracol do cabelo da Virgem que concedia 2 milhões de anos de indulgências. Umadas teses de Lutero dizia: «A riqueza do papa excede em muito a de todos os outroshomens. Por que é que ele não constrói a Basílica de S.Pedro com o seu dinheiro emvez de usar o dinheiro dos pobres cristãos?»

Segundo este monge rebelde, as Chaves do Reino estavam a abrir todos os cofresde tesouros da Cristandade; a avareza papal estava a transformar o próprio Cristo numcúmplice de ladrões cujo único objectivo era roubar os pobres. Não admira que Luteroameaçasse rebentar o tambor de Tetzel.

Durante muito tempo o papado tinha traído os vulgares cristãos devotos dascidades, vilas e aldeias. Papa após papa tinham virado as costas a Cristo. O papadonão só errava como era, ele próprio, o maior erro, porque a verdade não estáprimariamente no dizer, mas no ser e no fazer. A sua traição ao povo está aindaincorporada nos tijolos e mármores de S.Pedro. O preço daquela basílica foi adesintegração da Igreja que dura há quatro séculos; e que durará ainda muitos mais.

O irreformável papado

Martinho Lutero não foi o primeiro a querer ajudar e a sair chamuscado. De facto, oscríticos mais severos do papado sempre foram não inimigos, mas amigos, incluindomuitos santos — e alguns papas! O seu testemunho data de há muito.

Uma das conversas mais intrigantes alguma vez registadas em Roma foi a travadaentre o papa inglês Adriano IV (1154-9) e o seu franco compatriota John de Salisbury,mais tarde Bispo de Chartres. «O que é que o povo pensa realmente do Papa e daIgreja?» sussurrou o papa. E John respondeu corajosamente: «O povo anda a dizerque a Igreja se comporta mais como madrasta do que como mãe; que há nela umaveia fatal para a avareza e os escribas e fariseus põem penosos fardos sobre osombros dos homens, acumulando bens preciosos no mais alto grau. E que o próprioSanto Padre» acrescentou «é opressivo e pouco menos que insuportável».

O Papa Inocêncio IV (1243-54), devido a uma disputa com o imperador Frederico II,foi obrigado a deixar Roma. Fez saber que queria exilar-se em Inglaterra. Os pares doreino recusaram recebê-lo. Disseram que a verde e perfumada Inglaterra não podiasuportar o cheiro pestilento da corte papal. Em alternativa, Inocêncio levou a Cúria paraLyons. Quando Frederico II morreu, Inocêncio pôde voltar para Roma. O Cardeal Hugo,em nome do papa, escreveu ao povo de Lyons uma carta de gratidão. O documento,datado de 1250, é um dos mais vergonhosos da história papal.

Durante a nossa estadia na vossa cidade, nós [a Cúria Romana]prestámo-vos uma assistência muito caritativa. Quando chegámosencontrámos apenas três ou quatro irmãs do amor e quandopartimos deixámo-vos, por assim dizer, um bordel que se estende daporta ocidental à oriental.

No mesmo século, S.Boaventura, Cardeal e Geral da Ordem dos Franciscanos,comparou Roma à prostituta do Apocalipse, antecipando assim Lutero em três séculos.Esta prostituta, dizia ele, embriagava reis e nações com o vinho da devassidão. EmRoma, afirmava não ter encontrado senão luxúria e simonia, mesmo nos escalões mais

Page 114: Vigde cristo

114

elevados da Igreja. Roma corrompe os prelados, estes corrompem os padres e ospadres corrompem as pessoas.

Dante, católico devoto, não só atormentou papa após papa, como tratou com amesma firmeza a Cúria. Os cardeais, segundo um devoto monge de Duhram, outrora«resplandecentes como prostitutas» jazem nus no Quarto Círculo do Inferno. Gruposdestes, até aqui prelados indolentes, são obrigados a empurrar eternamente grandespedras, que representam as riquezas, contra outras pedras empurradas por outroshomens avarentos.

O poeta inglês William Langland escreveu:

País onde cardeais penetram,Onde eles mais estão e se demoram,O mais odioso de certo será,A devassidão aí reinará. ∗

O Bispo Álvaro Pelayo, assessor em Avinhão, sugeriu que a Santa Sé infectou todaa Igreja com o veneno da avareza. «Se o papa se comporta assim, diz o povo, por queé que nós não havemos de fazer o mesmo?» Num dia perfeitamente normal, o mestrede Pelayo, João XXII, excomungou um patriarca, cinco arcebispos, trinta bispos equarenta e seis abades. O seu único crime: atrasaram-se no pagamento dos impostosao papa.

Maquiavel, amigo de Petrarca, escreveu: «Os italianos têm uma grande dívida paracom a Igreja Romana e seu clero. Com o seu exemplo perdemos toda a verdadeirareligião e tornámo-nos totalmente descrentes. É de regra, quanto mais próxima daCúria Romana está uma nação, menos religiosa ela é».

Catarina de Siena disse a Gregório XI que não precisava de visitar a corte papalpara lhe sentir o cheiro. «O mau cheiro da Cúria, Santidade, há muito que chegou àminha cidade».

No século XV, Santo Antonino, Arcebispo de Florença, criticou a sua cidade porvender obrigações com lucro; isto é usura. Quando os seus críticos diziam «A IgrejaRomana autorizou-o», Antonino respondia «Os membros da Cúria têm concubinas. Istoprova que a concubinagem é legal?» A simples vulgaridade do argumento ésurpreendente.

Uma das razões por que havia mais prostitutas em Roma do que em qualquer outracapital era o grande número de celibatários que lá havia. Os conventos eram muitasvezes bordéis. As mulheres por vezes levavam consigo para a comunhão um punhalcomo protecção contra o confessor. Os cronistas falam de como os clérigos passavamos dias nas tabernas e as noites nos doces braços das amantes. «O mais santo doseremitas tem a sua prostituta». Como Santa Bridget disse ao Papa Gregório: «Osclérigos têm pouco de padres e muito de proxenetas do diabo». Os melhores corosromanos cantavam na missa músicas tão lascivas que uma comissão de cardeaisdiscutiu se toda a música não devia ser proibida na igreja.

Erasmo, o erudito do século XVI, um dos maiores espíritos do seu tempo, ou mesmode todos os tempos, dizia que a tirania de Roma era pior do que a dos turcos. Escreveuum quadro teatral em que o Papa Júlio tenta com grandes fanfarronadas passar porS.Pedro nas portas do Céu. Pedro semicerrou os olhos não conseguindo reconhecernaquele guerreiro barbudo um sucessor seu. Júlio tirou o elmo e pôs a tiara. Pedro ∗ No original:The country is the curseder that cardinals come in,And where they lie and linger most, lechery there reigneth. (N. T.)

Page 115: Vigde cristo

115

ficou ainda mais desconfiado. Por fim, já exasperado, Júlio põe-lhe as suas chaves àfrente do nariz. Depois de as examinar, o apóstolo abana lentamente a cabeça.«Desculpa, mas essas não servem em parte nenhuma deste reino».

O Papa holandês Adriano VI confessou à Dieta de Nuremberga em 1522 que todosos males da Igreja vinham da Cúria Romana. «Durante muitos anos passaram-secoisas abomináveis na Cadeira de S.Pedro, abusos em matérias espirituais,transgressões aos Mandamentos, de tal maneira que tudo aqui foi infamementepervertido».

O Cardeal Jesuíta Belarmino tardou em confessar: «Durante alguns anos, antes deLutero e Calvino, quase não havia na Igreja religião nenhuma». O papado, dizia ele,quase tinha eliminado o Cristianismo.

Em 1518, cantando a sua “A Canção do Louco”, Lutero escreveu à nobreza alemãqueixando-se da avareza papal. Descrevia a Santa Sé como «mais corrupta do quequalquer Babilónia ou Sodoma. É triste e terrível ver o Chefe da Cristandade, que segaba de ser o Vigário de Cristo e sucessor de S.Pedro, a viver com uma pompamundana que nenhum rei ou imperador pode igualar; de tal maneira que naquele quese intitula de muito santo e espiritual há mais mundanismo do que no próprio mundo».

Dois anos mais tarde, Lutero foi excomungado pelo Papa Leão. Lutero apelou paraum Concílio Geral. Durante vinte e cinco críticos anos os papas e a Cúria recusaram oapelo para o único fórum capaz de resolver as graves questões da Igreja.

Por essa altura as coisas estavam tão mal que Contarini disse ao Papa Paulo III(1539-49) que toda a corte papal era herege; era contrária à essência do Evangelho. Alei de Cristo traz a liberdade; o papado, disse Contarini francamente, apenas traz aservidão e o capricho. «Escravidão maior do que esta, Santidade, não podia serimposta aos fiéis de Cristo».

Paulo III, o Cardeal de Saias, cuja única afirmação de eminência foram osirresistíveis encantos da irmã Giulia, não estava talhado para ser um reformador.

O Concílio de Paulo — havia de durar vinte anos — começou em Trento emDezembro de 1545. Edmund Campion, o virtuoso jesuíta que foi martirizado emLondres em 1580, disse orgulhosamente sobre Trento: «Meu Deus! Que variedade denações! Que lote de bispos de todo o mundo!» A verdade é que em Trento 187 bispos,bastante mais do que metade, eram italianos. Dificilmente se pôde considerar umreunião “católica”. De qualquer maneira, chegou tarde demais para desfazer os danosque o papado já tinha causado. Os padres ficaram espantados ao ouvirem-sedescritos, numa sessão aberta, como uma tribo indigna, lobos e não cordeiros, autoresda corrupção na Itália e em toda a parte.

Como é que Roma, que estava longe de ser a campeã do Evangelho, se tornou, nafrase de Contarini, a encarnação da heresia?

Foi o poder que esteve na base disso. Como que a confirmar a famosa frase deActon, o poder absoluto corrompeu não só os detentores de ofícios, mas também opróprio ofício papal. Esta a razão por que homens como o Bórgia, longe de estaremdeslocados na Cadeira de Pedro, tão bem nela assentaram.

A Reforma não veio quando a Igreja se deteriorou ainda mais, mas quandoapareceu a verdadeira santidade. Os Reformadores salvaram o papado, que se tinhaafundado demais para se salvar a si próprio ou à Igreja. Jacob Burkhardt disse: «Asalvação moral do papado deve-se aos seus inimigos mortais». Mas o preço foielevado. Trento consagrou a teologia medieval, assegurando assim que o Catolicismoviesse a ser curto de vistas e retrógrado nos séculos seguintes. Foi o principio de uma

Page 116: Vigde cristo

116

Guerra Fria religiosa. O padre Paulo Sarpi escreveu o seguinte sobre Trento: «EsteConcílio, desejado e concretizado por homens piedosos para reunificar a Igreja, queameaçava rotura, confirmou o contrário, o cisma, e endureceu atitudes tornando osdesacordos insolúveis».

Trento, em sua opinião, foi responsável pela maior «deformação na ordemeclesiástica jamais vista, com a consequência de que a Cristandade agora é odiada».Depois de Trento, o enorme poder de Roma foi confirmado e os bispos perderam a suaindependência, de tal modo que não houve mais concílio nenhum durante mais detrezentos anos. Só então foi convocado um concílio para exprimir formal e finalmente oabsolutismo papal. A Igreja Romana, separada dos Protestantes no Ocidente, era apartir de agora menos uma igreja católica do que uma seita temerosa virada paradentro de si própria e dominados pelo papa.

O curioso é que Lutero não tinha a intenção de deixar a Igreja. Só que compreendeuque uma Cristandade dividida era melhor do que uma só que o papa governava nanegação do Evangelho. É muito melhor ser governado pela Bíblia aberta do que por umpapado corrupto e aparentemente irreformável. Os cristãos do Ocidente ainda debatema sensatez do julgamento de Lutero. A sua análise não diferia muito da de Dante. Oque estava mal na Igreja era o libido dominandi do papado, o seu apetite insaciávelpelo poder.

Leão X foi suficientemente obtuso para excomungar Lutero, mesmo dizendo esteque «Queimar hereges é contra a vontade do Espírito Santo». Alguns dos papasseguintes não foram mais perceptivos.

A tempestade há muito em formação eclodiu finalmente. O relâmpago rasgou o céu,atroou o trovão — e eles continuaram tranquilos como sempre.

Calvino iniciou a Reforma em Genebra em 1541. Lenta e implacavelmente elaalastrou pela França, Holanda e Escócia. E continuava a não haver sinal dereconhecimento no Vaticano de que a sua influência se desvanecia.

No ano de 1555 apareceu um novo pontífice. Lutero já morrera há quase umadécada, a Cristandade estava praticamente a explodir e uma Igreja dividida já nãoestava disposta a escutar os delírios de um papa incapaz. E os príncipes muito menos.

O novo pontífice era mais cego e mais surdo do que qualquer dos seusantecessores, mas não mudo. Tentou espantar a tempestade e comportou-se como sefosse Gregório VII ressuscitado.

Page 117: Vigde cristo

117

8O Crepúsculo do Poder Absoluto

Dele diziam os romanos que se a mãe tivesse previsto a sua carreira o teriaestrangulado à nascença. O homem em questão era João Pedro Carafa, a encarnaçãoda ira de Deus, que se tornou Paulo IV (1555-9).

Alto, magro e calvo, eleito aos setenta e nove anos quando estava atormentado como reumatismo, Paulo IV ainda tinha um andar enérgico. Os seus gestos, súbitos eimpetuosos, atiravam muitas vezes os seus assessores para o chão. O embaixadorflorentino descrevia-o como um homem de ferro que provocava faíscas nas própriaspedras sobre que caminhava. A cabeça maciça tinha a forma do Vesúvio, a cuja sombraele tinha nascido. Também ele tinha inesperadas erupções que vomitavam destruição emorte. A barba desgrenhada e as sobrancelhas ásperas davam-lhe um ar selvagem; osolhos encovados, vermelhos e manchados brilhavam como lava incandescente. A vozrouca, quase sempre acompanhada de catarro, trovejava exigindo obediência cega eimediata.

Até o historiador papal, Pastor, achou difícil dizer qualquer coisa de bom acerca dePaulo IV. Sulista desbocado, era «tão arrebatado» observou Pastor, «que utilizavaexpressões que pareceriam incríveis se não fossem confirmadas por testemunhasacima de qualquer suspeita».

Completamente católico nas suas imprecações, era capaz de espancar um cardealcomo se este fosse um lacaio. Fazia esperar os embaixadores quatro a sete horas,como se isto conviesse à imagem do sucessor de Pedro. Nunca os recebia sem lhesgritar aos ouvidos que era superior a todos os príncipes. Como Vigário de Cristo, diziaele, era capaz, com um só dedo, de mudar todos os soberanos da terra.

No ano de 1557 Paulo publicou a Bula Cum ex Apostolatus officio. Considerou-sePontifex Maximus, o representante de Deus na Terra. E como tal, tinha poder ilimitadopara depor todos os monarcas, entregar todos os países à invasão estrangeira, privartodas as pessoas dos seus bens sem processo legal. Qualquer pessoa que oferecesseajuda a um deposto — nem que fosse por simples e elementar bondade humana - seriaexcomungado.

Uma nova Rainha para a Inglaterra

No princípio de 1559 o embaixador inglês Edward Carne apareceu diante deste papavulcânico e informou Sua Santidade de que Isabel Tudor, filha de Henrique VIII e AnaBolena, tinha sucedido a Maria no trono de Inglaterra.

Paulo detestava as mulheres com inflexível ferocidade teológica e nunca admitia umúnico exemplar da espécie nas proximidades. Discordava violentamente de Platão, quedizia que as mulheres eram iguais aos homens. Tomás de Aquino tinha razão: asmulheres são homens inacabados. As suas almas não foram suficientemente potentespara moldar a figura masculina ou o superior intelecto masculino. Apesar de tudo isto,mostrou algum interesse em relação a Maria quando soube da maneira como ela tinha

Page 118: Vigde cristo

118

tratado os restos mortais de Henrique, seu pai. Desenterrou o seu corpo herege equeimou-o. Alguns anos depois queimou vivos também mais de duzentos protestantes.

Com Isabel era diferente. Não sabia essa mulher arrogante, perguntou o pontífice aCarne, que a Inglaterra era, desde o Rei João, um feudo da Santa Sé? E que os filhosilegítimos não podem herdar? Não tinha ela lido a sua última Bula? Era puroatrevimento da sua parte pretender governar a Inglaterra, quando esta lhe pertencia aele. Não, não podia deixar passar isto impunemente. Ela era uma usurpadora, umabastarda, uma herege. Se ela renunciasse às suas ridículas pretensões e viesseimediatamente ter com ele em penitência, iria ver o que podia fazer por ela. Senão…

Dois meses depois Isabel cortava relações diplomáticas com Roma.

Este arrogante chauvinista do Vaticano não compreendeu a mulher de vinte e cincoanos com que estava a lidar. Apesar dos seus defeitos, ela tinha um coração decarvalho inglês.

Isabel nascera numa magnífica cama francesa em Greenwich Palace. Assim quesoube que era uma menina, Henrique deixou Greenwich com um ataque de cólera quedurou três dias, a gritar que Ana Bolena, a sua segunda mulher, era tão estúpida comoa primeira, e por aquilo tinha ele arriscado a excomunhão pelo papa e a perda do seureino. Ana ficou então a saber que estava condenada. Tinha apenas trinta anos quandofoi acusada e considerada culpada de ter amantes e de conspirar para matar as suasrivais. Foi executada com uma pesada espada francesa, deixando Isabel, de três anos,completamente só. A menina tinha os grandes olhos assombrados da mãe e o fino narizPlantageneta do pai. Vivia de expedientes, é verdade. Mas tinha que ser. Quandocresceu, foi declarada, sucessivamente, legítima e ilegítima, herdeira do trono e, depoisda morte do pai, esteve a um passo da execução.

Os historiadores divergem sobre se Isabel, quando da sua subida ao trono, estaria jáempenhada em reintroduzir o Protestantismo em Inglaterra. Quando Maria, sua meiairmã e a primeira mulher a governar a Inglaterra, se tornou rainha, Isabel mandouimediatamente celebrar missa na sua casa considerando que «uma vida valia bem umamissa». Os insultos gratuitos de Paulo IV selaram o destino dos católicos ingleses. Seele pensava que era o superior na Inglaterra, ela tornar-se-ia a superiora da Igreja. Estejogo de deposições podia ser jogado por dois, especialmente nos tempos conturbadosda Reforma. A acreditar na História, houve mais soberanos que depuseram papas doque o contrário.

Excedendo-se e interpretando uma vez mais erradamente os acontecimentos, umpapa iria ver mais um país retirar a sua aliança com a Santa Sé.

Paulo não conseguiu evitá-lo. A heresia cegava-o para todos os factos e para asconsequências. Era uma praga. Numa praga queimam-se as roupas e até as casas.Numa praga da alma o papa não tinha alternativa senão queimar o corpo onde a almareside. Dessa maneira, os outros não eram contaminados. Isto explica a razão por queele, apesar de se eximir a numerosas funções, nunca perdeu uma única reunião dasQuintas-feiras do Santo Ofício. Mesmo quando já estava a morrer chamou osinquisidores ao seu quarto. Preparados para tratar da heresia, os inquisidores agoracondenavam à morte fornicadores, sodomitas, actores, bobos, leigos que não cumpriamo jejum da Quaresma, e até um escultor que tinha esculpido um crucifixo consideradoindigno de Cristo.

Quando Paulo morreu no verão de 1559, os romanos deitaram fogo à prisão daInquisição na Via Ripetta e destruíram-na. Uma turba apeou e destruiu a sua estátua noCapitólio, e os judeus, que ele perseguira mais do que qualquer outro pontífice,puseram-lhe um chapéu amarelo sobre a cabeça decepada. O rapazio cuspiu-lhe em

Page 119: Vigde cristo

119

cima e andou aos pontapés à cabeça e depois arrastou-a pelas ruas para finalmente aatirar ao Tibre. Só ficaram com pena de não lhe poderem rasgar o corpo, membro amembro, com as próprias mãos. Depois de sondarem a opinião pública, as autoridadesenterraram o corpo bem fundo em S.Pedro no meio da noite de 19 de Agosto emontaram-lhe uma guarda.

Paulo IV nunca duvidara de que, em circunstâncias semelhantes, Jesus, um lealjudeu, morto por heresia, teria feito exactamente o mesmo que ele. Ele não era amado.Alguém que em breve lhe sucedeu também não o seria mais.

O último soberano a ser deposto

Paulo IV sabia o que estava a fazer quando escolheu um Dominicanoexcessivamente escrupuloso, Michele Ghislieri, para seu Grande Inquisidor. Depois dasua eleição em 1566 com o nome de Pio V, Michele Ghislieri continuou a viver uma vidamonástica numa cela no Vaticano. Comia pouco e ameaçou o cozinheiro deexcomunhão se lhe pusesse ingredientes proibidos na sopa nos dias de abstinência. Oseu principal propósito era transformar Roma num mosteiro. Só falava com Deus e sóDeus ele ouvia.

De aspecto, Pio era um pacote de pele amarela e ossos vacilantes. Calvo e com umalonga barba branca, a testa cor de cera era alta e estreita sobre um nariz adunco. Osolhos eram minúsculos e os lábios curvos como uma cimitarra.

O seu primeiro acto como pontífice foi expulsar todas as prostitutas de Roma. Onúmero de mulheres perdidas na sua diocese envergonhava-o. O Senado Romanoresistiu porque, diziam eles, a licenciosidade sempre floresceu onde havia o celibato. Seas prostitutas se fossem embora, não só as rendas das casas cairiam, mas tambémnenhuma mulher decente estaria a salvo do clero.

Pio proibiu os residentes de Roma de entrarem nas tabernas. Esteve à beira de fazerdo adultério um pecado capital. Será que ele não sabe absolutamente nada da históriapapal? — queixava-se um membro da Cúria. A seguir, Pio elaborou aquilo que acomunidade inglesa apelidou de a Última Bula; aboliu as touradas em toda aCristandade. A bula foi publicada em toda a parte, excepto na Península Ibérica, o quede certa forma diminuiu o seu impacto. A hierarquia espanhola desculpou-se com ofundamento de que não queria criar má reputação à Igreja.

Pio depressa voltou a sua atenção para a Inglaterra. Na sombra, encorajou adesobediência civil a Isabel. Contribuiu com doze mil coroas para um levantamento nonorte. Estava disposto, dizia ele, a ir pessoalmente, se necessário, ajudar «e empenharnesse serviço todos os bens da Sé Apostólica». O levantamento falhou. Foi nessa alturaque Pio cometeu um estúpido erro fatal.

Na primeira semana da Quaresma de 1570, num tribunal de inquérito em Roma,Isabel foi declarada culpada de infidelidade em dezasseis pontos. O veredicto do própriopapa foi incorporado na Bula Regnan in Excelsis de 25 de Fevereiro. Descrevia Isabelcomo serva do vício e pretensa Rainha de Inglaterra. «Esta mesma mulher, tendoconseguido o reino e escandalosamente usurpado para si própria o lugar de ChefeSupremo da Igreja de Toda a Inglaterra» tinha de ser castigada.

Esta última tentativa de um papa derrubar um soberano foi a mais radical edevastadora de todas.

Nós declaramos que a sobredita Isabel é herege e instigadora dehereges e Nós declaramos que ela e os seus apoiantes incorreram

Page 120: Vigde cristo

120

na pena de excomunhão. […] Declaramos que ela fica privada dassuas pretensões ao sobredito reino e de toda a autoridade,dignidade e privilégios. Declaramos também que os nobres, súbditose povo do sobredito reino e todos os outros que lhe juraramvassalagem ficam para sempre dispensados de qualquer voto defidelidade e obediência. Consequentemente, Nós absolvemo-los eretiramos à mesma Isabel a sua pretensão ao reino. […] E Nósordenamos e proibimos os seus nobres, súbditos e povo de lheobedecer. […] Nós condenaremos aqueles que façam o contrário auma igual pena de excomunhão.

O papa que escreveu isto viria a morrer na cama dois anos depois. Outros iriampagar na forca os seus erros.

Durante doze anos, antes da Regnans in Excelsis, os católicos ingleses, sob Isabel,tinham sido sujeitos a multas por não assistirem a Igreja Anglicana. Nem um só foiexecutado. O efeito da Bula foi o de transformar os católicos ingleses em traidores.Entre 1577 e 1603, foram executados 120 padres e sessenta leigos que os acolheram.Estes homens e mulheres corajosos tiveram de esperar mais 25 anos do que Pio V pelacanonização.

Muito depois do seu pontificado os católicos encontravam-se divididos entre alealdade à Igreja e ao seu país. Foi o papa que decidiu «na plenitude do meu poderapostólico» que uma dupla lealdade era impossível. Fez uma coisa perigosa quandotentou minar o patriotismo dos ingleses.

A arma forjada por Gregório VII, que tanta satisfação lhe deu em Canossa, foi afiadana perfeição por Inocêncio IV. E agora reclamava as suas derradeiras vítimas.

Gregório tinha feito da excomunhão uma arma política para derrubar imperadores ereis. Esse erro foi o responsável pelo ódio e ilegalização de que os católicos foram alvoem país após país.

Uma vez que a sua religião é uma religião de fé e não de raça, os cristãos deviam sercidadãos do mundo. Pertencem ao Cristo que afirmava sofrer em todos os que sofrem.Um cristão, onde quer que esteja, devia ser um sinal desse amor católico universal. MasRoma, pela sua tendência para o absolutismo, pela sua ambição de poder, transformouo Catolicismo em Romanismo. Os papas hereges e de heróico ascetismo pessoalexigiam aos católicos não uma obediência meramente espiritual, mas também política.Em resultado disto, parecia que os católicos deviam, e às vezes deviam mesmo,lealdade política a um poder estrangeiro mascarado de vigário de Cristo. Longe deserem um povo universal, eram vistos como menos do que patriotas.

Na Inglaterra, Roma dispensou os católicos da obrigação de tentarem derrubarIsabel. No entanto foram avisados de que, se a Inglaterra fosse atacada, teriam deajudar o invasor a depor a rainha. A partir de então, e durante séculos, os católicospassaram a não ser bem ingleses.

Como escreveu Travelyan na sua A Shortened History of England «Enquanto a IgrejaRomana não deixasse de usar em todo o mundo os métodos da Inquisição, doMassacre de S.Bartolomeu, da deposição e assassínio de Príncipes, os Estados sobreque ela lançou a sua formidável excomunhão não podiam garantir a tolerância aos seusmissionários».

No século XVI a Cristandade desintegrou-se. O Protestantismo era um factoconsumado. A Reforma tomou de tal maneira conta da Europa que alguns países, antessolidamente católicos, como a Inglaterra, ficaram sob o domínio de monarcas “hereges“.Mesmo em França o Protestantismo foi uma força sujeita às mais cruéis perseguições.

Page 121: Vigde cristo

121

A Igreja Católica fechou-se em si mesma no período que ficou conhecido comoContra-Reforma. Esta era tão sectária como o Luteranismo e o Calvinismo que se lheopunham. As polémicas perturbavam-lhe todo o pensamento. A originalidade era umanátema. Era a hora de cerrar fileiras. A sobrevivência era o melhor que se podiaesperar; e o papa era o maior sobrevivente da História.

A Revolução Francesa em 1789 abalou ainda mais a paz de espírito da Igreja. Láfora havia um novo espírito, o espírito da «liberdade sem restrições». A Revoluçãoparecia determinada a destruir não só as velhas monarquias absolutas, os anciensrégimes, mas também a decência moral e religiosa. Isto, aos olhos dos papas, eratrabalho do Demónio. Para uma instituição que representava acima de tudo a ordem,isto era a anarquia. Era inevitável que a Igreja Católica se refugiasse ainda mais em simesma e se alimentasse da sua velha herança. Como é que se podia esperar que elase acomodasse à “liberdade“ à moda do ateísmo?

Nos anos seguintes Napoleão desferiu mais um grande golpe no papado. Humilhoudois papas sucessivamente. Pio VI foi deposto e obrigado a exilar-se em Valência, ondemorreu no último ano do século XVIII. No seu obituário, no registo local, lê-se: «Nome:Cidadão João Braschi. Profissão: pontífice». Também Pio VII, depois de umaconcordata falhada em 1801, foi exilado e obrigado a oficiar na coroação de Napoleãoem Notre Dame. Naquele momento solene, Napoleão pôs o papa no seu lugarcoroando-se a si próprio e a Josefina; depois procedeu à anexação dos Estados Papais.Mas, deve ter pensado Pio IX (1846/78), não tinham aquelas preciosas terras sidodevolvidas a Deus, seu dono por direito, pelo Congresso de Viena (1814/15)? O mesmoaconteceria outra vez a seu tempo. Ou seria o Rei Victor Emmanuel mais poderoso doque Napoleão. Era uma mera questão de paciência.

Pio IX, um homem de força moral, não conseguiu ver aquilo que saltava à vista.

O papado: o fim ou um novo princípio?

O velhinho de cabelos brancos e cara vermelha redonda foi acordado pelo som docanhão. As janelas bateram e a sua cama de ferro balançou ligeiramente sobre o chãode mármore. As persianas ainda estavam subidas, mas como aquela manhã de fins deSetembro estava escura, não conseguiu ver as horas no relógio. A respirarpesadamente e a estremecer, o velho soergueu-se com esforço na almofada. Olumbago tornava-lhe cada movimento um tormento; as ancas, principalmente, faziamdoer. Uma vez sentado, fez o sinal da cruz.

Nesse momento, a porta abriu-se. Uma figura magra, de roupão, com uma lanternaacesa na mão, fez uma vénia antes de entrar e ajoelhou. O homem na cama gemeu:«Che ora?» «Cinco e pouco, Santidade». «Então, Leonardo, aquilo começou». OCardeal Antonelli, há muito o Secretário de Estado de Pio IX, baixou a cabeça. «EKanzler?» perguntou o pontífice. «O general está a cumprir as Vossas ordens,Santidade. Vai organizar uma resistência simbólica para mostrar que o inimigo não ébem-vindo. Mas… » Os dedos compridos e ossudos de Antonelli borboletearam paraindicar que a cidade estava condenada a cair muito em breve.

Depois de se vestir com a ajuda de um criado, Pio dirigiu-se, de muletas para a suapequena capela para celebrar missa. A sua fervorosa intenção nunca esteve em dúvida.Que Deus preservasse a Cidade Eterna daqueles vândalos piemonteses que se tinhamaliado a Satanás.

O assobiar e o explodir das bombas eram perfeitamente audíveis enquanto o papa seentregava às suas devoções. As bombas estavam a cair a pouco mais de um

Page 122: Vigde cristo

122

quilómetro. Era claramente um ataque em duas frentes. Quando estava a dar graças aDeus, vieram informá-lo de que a principal força sob o comando do General Cadornaestava concentrada na Porta Pia. Vinte dos defensores tinham sido mortos e cinquenta,feridos. «Requiscant in pace» murmurou o Papa, persignando-se. Estes jovens em vãoarrancados à vida nos seus melhores anos eram as últimas vítimas das ambiçõestemporais do papado.

Pio pediu a Antonelli que arranjasse um encontro dos corpos diplomáticos o maisdepressa possível. Os embaixadores reuniram-se a meio da manhã numa sala deaudiências à vista do Castel Sant’Angelo. O papa, apontou sem dizer nada. Elesolharam para o sítio onde uma bandeira branca esvoaçava sobre o castelo. Rendição.

Estava-se em 1870. Exactamente três séculos depois de Regans in Excelsis, o papaera destituído do seu trono por um monarca terreno. As grandes instituições são vítimasde grandes ironias. Mas durante todos os mil e quinhentos anos de poder temporal dopapado nenhum momento foi mais pungente do que este.

Contudo, isto era de prever; de facto, pelo menos há duas décadas que erainevitável. Mas Pio IX estava convencido de que o futuro seria sempre como o passado.

Já era papa há vinte e quatro anos. Metternich, o chanceler austríaco, que dominavaa Europa há quarenta anos, fez sobre ele um juízo rápido que não está longe daverdade: «Coração quente, cabeça fraca e carecendo totalmente de bom senso».

Começou em 1846 com a reputação de liberal. Na sua casa ancestral, dizia-se, atéos gatos eram nacionalistas. Mal chegou ao trono concedeu logo a amnistia aos presospolíticos. Por toda a Península todos os tipos de pessoas sentiam que talvez finalmenteo Todo Poderoso tivesse piedade deles. Teria Ele feito um milagre e enviado um papaliberal, um papa que levasse todas as oito regiões separadas da Itália à unidade por quetodos ansiavam? Meu Deus, por favor, alguém observou, o pontífice não vai desiludir ogato da família. Os italianos há muito que se queixavam de que Deus não tinha sidobom para a sua bela terra aconchegada ao mar: montanhas inultrapassáveis a norte,dois vulcões a sul e, o mais ameaçador de todos, um papa no meio.

Depois de dois anos de reinado de Pio, o cargo apossou-se do homem. Umlevantamento republicano em Roma obrigou-o a fugir, de sotaina e óculos escuros, paraGaeta no Reino de Nápoles. Foi nessa altura que ele se converteu à causareaccionária. Em dois anos de exílio, arrependeu-se de todas as suas simpatias deesquerda para se tornar o mais duro dos da linha dura. O seu único conselheiro nessesanos decisivos foi Antonelli, filho de um bandido napolitano, e conhecido pelas suasaventuras amorosas. Este prelado, que era de antes quebrar que torcer, matar queperdoar, viria a morrer carregado de riquezas cuja origem, até hoje, ninguém sabe.

Quando, alguns anos depois da sua primeira experiência amarga, pediram a Pio parachefiar uma federação da Itália, ele recusou liminarmente. Opunha-se a todas as formasde liberdade e mudança constitucional. O seu objectivo único era segurar os estadosque governava como monarca absoluto, sem a interferência de ninguém.

Estes estados, que os papas tinham entesourado, como o dogma da Trindade,tinham nesta altura o dobro do tamanho da Terra Santa com uma população de quasetrês milhões. Desde que a Igreja começou a adquiri-los depois de Constantino sair paraBizâncio, o seu efeito final foi sempre o de corromper e estropiar a sua missãoespiritual. No século XIV Giovanni de’Mussi escrevera: «Desde o tempo de Silvestre asconsequências do poder temporal foram inúmeras guerras… Como é que é possívelque nunca tenha havido um papa bom para remediar estes males e que tenha havidotantas guerras por causa destes bens efémeros?»

Page 123: Vigde cristo

123

Ninguém tinha lutado tão ferozmente por eles como Júlio II. Estavam mais ou menosintactos quando Clemente VII, desorientado pelo saque de Roma em 1527, seencontrou com o embaixador veneziano, Contarini, que em breve viria a ser cardeal.Contarini tentou consolar o papa.

Vossa Santidade não deve pensar que o bem estar da Igreja deCristo reside neste pequeno Estado da Igreja: pelo contrário, a Igrejajá existia antes de possuir o Estado, e melhor assim. A Igreja é acomunidade dos cristãos; o Estado Temporal é como qualquer outraprovíncia da Itália, e portanto Vossa Santidade deve procurar acimade tudo promover o bem estar da verdadeira Igreja, o qual consistena paz da Cristandade.

Por volta de 1870 só a Rússia csarista era governada de maneira mais perversa doque os Estados Papais. Nestes não havia liberdade de pensamento nem de expressão,nem eleições. Os livros e jornais eram censurados. Os Judeus eram fechados emguetos. A justiça era um leão cego e esfomeado. Era claramente um estado policial soba bandeira papal, com espiões, inquisidores, represálias, polícia secreta, e asexecuções por crimes menores eram um lugar-comum. Uma pequena oligarquia clericalmuito fechada, corrupta, lasciva, governava, em nome de Sua Santidade, com mão deferro.

A situação só se tinha deteriorado desde que Lord Macauley visitara a Itália em 1838.Este tentou então imaginar como seria a Inglaterra se todos os membros do parlamento,ministros, juizes, embaixadores, comandantes-em-chefe e lordes do Almirantadofossem bispos ou padres. Pior ainda, bispos e padres celibatários. Para conseguir umapromoção, os homens mais lascivos eram obrigados a tornarem-se clérigos e tomarvotos de celibato. O resultado foi, segundo Macauley nas suas Cartas, que «acorrupção infecta todos os serviços públicos… Os Estados do Papa são, suponho, osmais mal governados em todo o mundo civilizado; e a imbecilidade da polícia, avenalidade dos funcionários públicos, a desolação do país mostram-se forçosamente aoviajante mais descuidado.

Mais ou menos trinta anos depois, os Estados Papais estavam maduros para arebelião.

Pio recebeu muitas propostas no sentido de salvar a Itália e o papado. Diziam-lherespeitosamente que Herodes é que era o rei da Judeia e não Jesus; e que noEvangelho não havia qualquer menção ao “poder temporal”. Pelo contrário, Jesus dissefirmemente: «O meu reino não é deste mundo». Apesar da Doação de Constantino, ospapas nunca foram senhores de nenhuma cidade fora de Roma até o Rei dosLombardos lhes doar Sutria em 728. Pediam ao papa que se lembrasse de que naRenascença, quando estava no seu apogeu, o papado era tão pouco edificante queperdeu as alianças de metade da Cristandade. Davam-lhe a garantia de plenaindependência como chefe da Igreja. De facto a sua chefia em matéria de moral ereligião seria mais brilhante do que nunca.

O papa fez ouvidos de mercador a todos estes apelos. A civilização moderna eraobra do Demónio, dizia ele, e recusava parlamentar com o Príncipe das Trevas.

O movimento unificador reunia agora forças no Piemonte sob a liderança do ReiVictor Emmanuel II. Cavour, o seu arquitecto, proclamava o ideal de uma Igreja livrenum estado livre. Tal como Moisés, ele não iria entrar na Terra Prometida, mas mesmono leito da morte exclamou para o padre enviado para lhe dar a Extrema Unção:

Page 124: Vigde cristo

124

«Padre, Padre! Uma Igreja livre num estado livre!» Pio IX pôs sobre este testamento defé o selo da heresia.

Em 1862 recebeu uma petição assinada por doze mil padres. Imploravam a SuaSantidade que lesse os sinais dos tempos. Roma tinha de ser a capital de uma novaItália. Não quereria ele «pronunciar uma palavra de paz»? A reacção de Pio foidisciplinar aqueles rebeldes, todos eles.

Mesmo no fatídico ano de 1870, quando as tropas francesas, que o tinham defendidodurante tanto tempo, se retiraram para combater os prussianos, deixando-o com umexército de Gilbert e Sullivan, Pio manteve-se firme. Como ele disse ao corpodiplomático na manhã de 20 de Setembro, não se sentia capaz de se desfazer de umaherança de seis quilómetros quadrados que eram vitais para a sua autonomia espiritual.

Assim, quando os canhões de Cadorna romperam a muralha Aureliana na Porta Pia,os emplumados Bersaglieri, parte de um forte exército de sessenta mil homens,inundaram a cidade. Arriaram a bandeira amarela papal em todos os edifícios ehastearam a tricolor. A multidão nas ruas entrou em delírio. Para eles o papa era maisum tirano civil do que o chefe da Igreja. Este era o dia da libertação. Um plebiscitomostrou que só um em cada mil era a favor do papa e contra o rei.

Cadorna tinha recebido instruções rigorosas para não bombardear o Vaticano. Pio foideixado em paz. Mas quando Victor Emmanuel lhe pediu uma audiência, Sua Santidaderecusou. A única palavra que ele tinha para dizer ao rei era excomunhão, uma armaespiritual mais uma vez incorrectamente utilizada. E renovou a punição numa espéciede base bienal de modo que o rei foi excomungado quatro vezes antes de morrer em1878, quando lhe foi permitido fazer as pazes com Deus, que não com o seurepresentante na Terra. Pio também proibiu os católicos de se envolverem nosprocessos democráticos da nova Itália, quer como eleitores quer como candidatos.

Nos oito anos restantes após a invasão, o pontífice manteve-se no Vaticano,intitulando-se, algo dramaticamente, “O Prisioneiro do Vaticano”. Por toda a parte,especialmente na Irlanda e na Alemanha, circulavam gravuras benzidas que mostravamPio deitado numa enxerga numa masmorra fétida. As contribuições para a Caixa dasEsmolas de Pedro, a dádiva dos pobres, em resultado disto, aumentaram em flecha. Asua prisão era bastante confortável, em nada semelhante à de Pedro na Mamertine.Para falar verdade, ele tinha mais espaço vital do que tiveram todos os judeus de Romadurante séculos. Possuía um esplêndido jardim e inúmeras salas onde descansar oujogar o bilhar com o Cardeal Antonelli. Um poeta jacobino disse mais prosaicamente doque Pio: «O papa está prisioneiro dele mesmo».

Pela Lei das Garantias de 1870, o Rei da Itália propunha um muito generoso acordo.A todas as ofertas, mesmo as financeiras, Pio respondia «Non possumus», (Nãopodemos), como se tivesse sido convidado para comer carne de vaca em Sexta-feiraSanta. E continuou mesmo até ao fim, tal como o Vaticano fazia há séculos, atransformar questões políticas em assuntos chave da religião. Embora afirmasse servirum Mestre que nada possuía de seu, insistia que não podia servir senão comomonarca. Pio VII tinha dito o mesmo a Napoleão quando este se apossou do territóriopapal. «Nós exigimos a restauração dos nossos estados, porque eles não são herançapessoal nossa, mas a herança de S.Pedro, que os recebeu de Cristo». Era necessáriauma certa audácia para acreditar que Pedro — um pescador da Galileia queprovavelmente nunca teve nada de seu a não ser um velho barco de madeira — tivesserecebido de Cristo uma tão grande fatia da Itália Central, sem a qual não podia pregar oEvangelho de Jesus crucificado. Mas Pio IX não recuou em tal crença, o que explica arazão por que o papado teve de ser arrastado à força e a estrebuchar para o NovoTestamento.

Page 125: Vigde cristo

125

Os não-católicos ficaram deliciados com o facto de o papado ter sido finalmentereduzido à dimensão de qualquer coisa com o tamanho do Novo Testamento. Os maisdesavisados profetizaram a sua extinção. Subvalorizaram a função e o homem.

A teologia não era o forte de Pio. O seu secretário particular, Monsenhor Talbot,confessou numa carta a W. G. Ward: «Como o Papa não é grande teólogo, estouconvencido de que quando escreve [as suas encíclicas] é inspirado por Deus». A totalignorância não era obstáculo à infalibilidade, dizia ele, porque Deus pode indicar ocaminho certo mesmo pela boca de um burro falante. Talbot, sem querer, tinha atingidoas alturas de Voltaire.

O que lhe faltava em intelecto, colmatava Pio com astúcia animal. Ele já se prepararapara um futuro que, de outra maneira, seria negro, com uma jogada que o audaciosoGregório VII teria aplaudido.

Dois meses antes da invasão de Roma, Pio tinha presidido à sessão final do ConcílioVaticano. Em contraste com a abertura, um ano antes, S.Pedro estava quase deserta.Na tribuna real estavam duas damas, uma delas a Infanta de Portugal, bem como umdecrépito oficial da Ordem de S.Januário, de faixa brasonada sobre o peito. A tribunadiplomática também tinha muitos lugares vagos. Os Grandes Poderes tinham instruídoos seus embaixadores para boicotarem uma cerimónia que não lhes traria qualquervantagem.

O tempo estava mau. Uma tempestade ameaçara toda a noite. Para uma manhãromana de meados de Julho, a luz era extremamente fraca.

Havia 532 bispos, homens já velhos, vestidos de casula branca e na cabeça a mitratambém branca, sentados no transepto norte da basílica. Para muitos, como Manningde Westminster, o único convertido do Concílio, este era o maior dia das suas vidas. Sópela porta principal do transepto é que os de fora podiam vislumbrar os trabalhos. Opapa entrou a coxear, quase despercebido; vinha paramentado e a entoar o VeniCreator Spiritus. Depois, no meio de um calor vaporoso, um bispo com voz de baixonuma ópera de Verdi leu a nova Constituição, Pastor aeternus (“Pastor eterno“). Seguiu-se a chamada.

Foi então que deflagrou a mais famosa tempestade alguma vez registada, qual ira deDeus, sobre S.Pedro. Nos intervalos entre cada placet dos padres do Concílio ouvia-seo estrépito de um trovão. O timing era liturgicamente preciso. Os relâmpagos entravampor todas as janelas e cintilavam em volta do zimbório e de todas as cúpulas menores,transformando o bronze do baldacchino de Bernini em ouro brilhante.

Durante hora e meia a tempestade continuou a rugir até terminar a chamada. Só doisbispos votaram non-placet: Riccio de Cajazzo, de Nápoles, e Fitzgerald, de Little Rock,Arkansas. Mas 140 bispos abstiveram-se. Votar placet ia contra as suas consciências;votar non-placet seria ofender o Santo Padre perante o mundo.

Uma análise da votação é esclarecedora. Trezentos dos quinhentos bispos queapoiaram o papa eram bispos titulares ou funcionários do Vaticano que viviam em Romaa expensas do Papa Pio. A maioria dos dissidentes tinha dioceses cujas crenças esentimentos representavam no Concílio. Pelo menos dois terços dos bisposamericanos, liderados por Kenrick de St.Louis, opunham-se à decisão na convicção deque ela tornaria as conversões mais difíceis.

A simples dimensão da oposição provava que a Igreja não estava preparada para tãomomentosa decisão; ela foi aprovada, mas não reflectia adequadamente o espírito daIgreja Ocidental. Estava em jogo uma verdade muito importante e muitos sentiam que odecreto estava incompleto. Como disse o sincero bispo Strossmayer numa sessão:

Page 126: Vigde cristo

126

Este Concílio carece de liberdade e verdade…Um Concílio que ignora a velha regra da necessidade daunanimidade moral e começa a decidir sobre propostas por maioriavai, é minha convicção profunda, perder o direito de vincular aconsciência do mundo católico como condição da vida e morteeternas.

Pio IX recusou ouvir a oposição afirmando que ele era «meramente o porta-voz doEspírito Santo».

Ao aprovar o decreto sem se preocupar com a Igreja Ortodoxa nem com osProtestantes, Pio parecia estar a perpetuar a secular fractura entre Roma e as outrasgrandes comunhões cristãs.

As divisões no Concílio de Pio contrastavam cruamente com o Concílio de Constançano século XV em que foi decretado que toda a Igreja, incluindo o papa, está sujeita a umConcílio Geral. Convém lembrar que Constança aprovou isto por unanimidade. Nem aCúria, nem o futuro papa Martinho V levantaram a mais leve objecção.

O Concílio Vaticano viria a provar mais uma vitória de Pirro para o papado, maisterrível até, nas suas consequências, do que a de Gregório VII em Canossa. Mostrouuma vez mais que não foram papas ímpios como Benedito IX e Alexandre VI queprovocaram os estragos mais duradouros na Igreja, mas antes os piedosos comoGregório VII, Pio V e Pio IX. Porque a máxima de Acton de que o poder absolutocorrompe absolutamente aplica-se a pecadores e também a santos. Neste caso, Pio IXtinha triunfado; mas semeou a tempestade.

Quando lhe levaram os resultados da votação em S.Pedro, a escuridão era tanta queele não conseguia ver. Acenderam uma vela para que ele desse a sua aprovação àConstituição na sua voz musical: «Nosque sacro approbante Concilio» (Com aaprovação do Santo Concílio, Nós assim decretamos, decidimos e sancionamos o queacabou de ser lido).

Os padres bateram palmas, a multidão no corpo da basílica acenou com lenços comoasas de pombas fantasmais. A que é que Sua Santidade tinha acabado de dar força delei? As exclamações da multidão forneceram a resposta: «Viva il Papa infallibile». Pio, aquem Montalembert chamou «o ídolo do Vaticano» tinha-se investido dos poderes deum deus; tinha infalivelmente decretado a sua própria infalibilidade.

Aqueles corajosos bispos, que momentos antes a tinham negado, confessavam agorade joelhos a Pio IX — «Modo credo, Sancte Pater» — que criam nela tão sinceramente esem reservas como criam em Deus e na divindade de Jesus. Foi a mais rápidaconversão da História.

Os bispos que tinham saído de Roma para evitarem magoar o Santo Padre votandode acordo com as suas consciências, também reconsideraram mais depressa do queseria de esperar e aceitaram o Pastor aeternus. Era uma questão de aceitar ou deixar aIgreja, e a segunda também teria seguramente magoado o Santo Padre. Voltaram paraas suas terras para dizer aos fiéis que os decretos do Vaticano foram unânimes, o queficava bastante aquém da verdade. Alguns até tiveram a coragem de despedir eexcomungar teólogos académicos, homens de reputação internacional, como Döllingerde Munique, por continuarem a atrever-se a dizer aquilo que eles próprios tinham ditoantes e durante o Concílio.

Daqui para a frente, a autoridade vai calcar aos pés a razão e a consciência, porque oVaticano I abrira um precedente. Qualquer académico católico que promova ademocracia ou a liberdade religiosa ou a investigação científica das origens do homem

Page 127: Vigde cristo

127

tem de estar preparado para levar umas marteladas - ou, pelo menos, esconder acabeça num qualquer canto.

Porque o que foi decidido no Concílio foi isto: quando o papa exerce a plenitude dassuas funções e define uma doutrina para toda a Igreja, as suas decisões são infalíveispor si só, não dependem da aprovação da Igreja. A clara impressão que ficava é que,longe de ser o papa a ir buscar a sua fé à Igreja, é a Igreja que busca a fé no papa. Opontífice é auto-suficiente; não há fiscalização, nem balanços, nem governo, nemoposição parlamentar. O mundo pode tornar-se cada vez mais democrático, um homem(ou mulher), um voto; a Igreja, nunca. No Catolicismo, um homem, um voto tem um tommuito diferente. A Cúria ficou encantada. Eles receavam um Concílio e, passados trêsséculos sobre Trento, acreditavam sinceramente que os Concílios não eramnecessários. Mas agora os bispos tinham generosamente e de uma vez por todas postonas suas mãos a direcção da Igreja. Eles deram o seu consentimento ao papa e estenunca mais precisou dele. O episcopado católico era finalmente a força vazia queGregório VII desejara que fosse; os bispos tinham abdicado perante o mundo. Por umamaravilhosa metamorfose, os pastores tinham-se tornado as ovelhas.

O Concílio fez um interrupção numa atmosfera internacional tumultuosa. Poucosacreditavam que ele recomeçasse, mas, de qualquer maneira, porquê a preocupação?Este, previam muitos curialistas confiantes, seria o último Concílio da Igreja. Paraconvocar outro, só um papa completamente louco. Ou, pedindo desculpa à Cúria, umsanto.

Não-católicos complacentes observavam estarrecidos. Aos olhos de muitos, como porexemplo o Primeiro Ministro britânico, Gladstone, foi um Gigantesco Passo Atrás emdirecção à Idade das Trevas. Muitos estavam genuinamente intrigados. Como é quedezoito séculos depois de Pedro, foram precisas semanas de debate agonizante paradecidir, com a maioria de votos de um fragmento da Igreja, que uma doutrina,acaloradamente contestada até ao último minuto, era subitamente evangélica e vitalpara a salvação?

Os mais inclinados para a teologia, com um claro sentido de ironia, ficaram satisfeitospor verem que havia pelo menos um Protestante a fazer juízos particulares na IgrejaCatólica: o papa. Era uma crítica astuta. O Vaticano I tinha transformado o papa de «oCatólico dos Católicos» no único Protestante da Igreja.

Os críticos mais filosóficos perguntavam como é que o papa pode falar infalivelmentesobre Deus, se Deus é inefável e reside em luz inacessível.

Mas os mais sensatos de todos sugeriam: Isto é mais uma afirmação política do quereligiosa. Quase a perder os seus estados, o papa estava determinado a ser ummonarca absoluto numa terra que nem o monarca mais poderoso lhe pode alguma vezarrancar.

A busca do poder absoluto não tinha parado; havia de continuar no campo daverdade.

Com a verdade, tal como com o poder, o currículo da Igreja também não era bom.

Page 128: Vigde cristo

128

Page 129: Vigde cristo

129

Page 130: Vigde cristo

130

Page 131: Vigde cristo

131

Segunda Parte

A Verdade

«Os papas não só foram assassinos em grande estilo, como também fizeram doassassínio uma base legal da Igreja Cristã e uma condição de salvação.»

Lord Acton

Page 132: Vigde cristo

132

Page 133: Vigde cristo

133

9O Esmagamento da Dissidência

A Casa Papal da Esquina

Embora se tenha sempre chamado Santa, Católica e Apostólica, poucos ou nenhunsperegrinos a vão ver. Poucos guias turísticos se preocupam em mencioná-la. Tendo emvista a sua história, isto é estranho, porque poderia dizer-se que este edifício tem achave para a compreensão da Igreja Romana. E é ainda mais estranho na medida emque fica a muito pouca distância da sacristia da Basílica de S.Pedro, numa ruasossegada, à esquerda da Basílica, por detrás da colunata quádrupla de Bernini. Umagrande casa de esquina, esta Casa Santa, com os seus grandes portões, é conhecidalocalmente como o Palácio da Inquisição.

Devido à má reputação que adquiriu, e tal como aconteceu com a polícia secretasoviética, a Santa Inquisição Católica Apostólica, foi rebaptizada por mais de uma vezem anos recentes. Em 1908 a mais antiga das Sagradas Congregações de Romapassou a chamar-se Santo Ofício; e a partir de 1967, mudou o nome para Congregaçãopara a Doutrina da Fé. O seu actual secretário e chefe do executivo — o antigo GrandeInquisidor — é o cardeal bávaro Ratzinger, mas o seu presidente sempre foi o pontíficereinante.

Emílio Zola, no seu brilhante mas amargo Roma, escrito nos últimos anos do séculoXIX, descreve as impressões que o Palácio da Inquisição lhe deixou:

É uma zona solitária e silenciosa, raramente perturbada pelospassos de peões ou pelo ruído de rodas. Só o sol ali vive em tiras deluz que alastram lentamente sobre o pequeno pavimento branco.Adivinha-se a proximidade da basílica porque se sente o cheiro doincenso, uma tranquilidade claustral como que de um torpor deséculos. E numa das esquinas ergue-se o Palácio da Inquisição deuma nudez pesada e inquietante, com apenas uma fila de janelas arasgar a sua majestosa fachada amarela. A parede que marginauma rua lateral tem um aspecto ainda mais suspeito com a sua filade janelas ainda mais pequenas, meros buracos de caixilhosglaucos. À luz brilhante do sol, este enorme cubo e a alvenaria corde lama parecem adormecidos, misteriosos e fechados como umaprisão, quase sem qualquer abertura de comunicação com o mundoexterior.

A aparente sonolência é uma ilusão. Neste local continua a fazer-se a leitura de umaenorme quantidade de documentos e daqui sai uma infindável corrente de avisos,instruções e censuras. As masmorras, onde num passado não muito distante tantosforam torturados, já o não são. Felizmente um estado secular arrancou o poder temporaldas garras de Pio IX.

Page 134: Vigde cristo

134

Desde 1870 as masmorras e as celas da Inquisição foram transformadas emgabinetes e arquivos onde o trabalho prossegue metodicamente como outrora, emborade uma maneira muito menos brutal.

Os católicos fazem a sua vida em todo o mundo sem pensarem na Inquisição. Sãoconhecidos pela sua devoção e normalidade. Poucos são os maníacos e os fanáticosque se encontram entre eles. O proselitismo esganiçado e ostensivo não é com eles. Osmissionários católicos — padres, freiras e leigos — são discretos. Muitos deixam as suasterras para dedicarem a vida ao serviço dos mais necessitados. Quando pensam noSanto Ofício, assumem que ele é um braço essencial da ortodoxia, uma maneira depreservar a fé apostólica. Ficariam chocados se descobrissem os abusos que tiveramorigem neste edifício na Via del Sant’Ufficio.

O Papa João Paulo II

Onde é que o actual pontífice se situa? Ele não está isento de contradições bemaparentes. Em primeiro lugar, é claramente um homem bom e compassivo. Em 1987deu autorização a Madre Teresa de Calcutá para construir um lar para os sem abrigodentro do Vaticano. Tem um profundo afecto pelas crianças e pelos doentes. Onde querque vá, apela eloquentemente para os direitos e dignidade do homem. Por outro lado,aparece muitas vezes como o papa mais severo de que há memória viva. Teríamos derecuar até ao tempo de Pio X, no virar do século, para encontrar um papa que menosouvisse e mais exigisse pronta obediência. A razão disto é clara. O pontífice é pornatureza e por formação um platónico. Crê que a verdade é eterna e imutável. ComoVigário de Cristo, tem uma opinião privilegiada e espiritualmente inspirada sobre aquelasverdades que é seu dever apresentar à Igreja e das quais nenhum católico se podedesviar um centímetro que seja.

E mais uma vez, João Paulo diz repetidamente que o clero se deve manter fora dapolítica. Mas quando trabalhava na Polónia como padre, bispo ou cardeal empenhou-seconstantemente naquilo que, pelo menos os Comunistas, designavam por «actividadespolíticas de direita». Além disso, Sua Santidade deve saber que as visitas à sua terranatal não podem deixar de ser interpretadas como actividade política. Isto, de facto,enquadra-se inteiramente na tradição do Vaticano.

Durante séculos e séculos, a Igreja Católica foi a primeira força política da Europa.Envolvia-se nas actividades de todos os países como e quando queria. Os papas, quaseà sua vontade, depunham imperadores e reis. Pio X, no seu primeiro consistório em 9 deNovembro de 1903, disse:

Nós vamos ofender muita gente ao dizermos que temosnecessariamente de nos preocupar com a política. Mas qualquerpessoa que julgue esta questão imparcialmente terá de reconhecerque o Soberano Pontífice, investido por Deus na SupremaMagistratura, não tem o direito de separar os assuntos políticos dosdo domínio da fé e da moral.

Muitos padres e irmãs da África do Sul, confrontados com o apartheid, ficaramperplexos ao ouvir o papa polaco dizer-lhes que o envolvimento na política é contrário àsua missão religiosa.

Finalmente, a Igreja Católica é o único corpo religioso existente que ésimultaneamente igreja e organização política. Esta a razão por que é a única de entre

Page 135: Vigde cristo

135

as igrejas que procede à troca de representantes diplomáticos e reivindica oreconhecimento como membro independente da comunidade das nações. E não o fazcomo pequeno estado (o Vaticano) mas como organização religiosa mundial.

A maioria dos comentadores concorda que João Paulo deu uma volta pelo Vaticano efechou as janelas e correu os estores. Mesmo depois do Concílio Vaticano II, mandourever o código canónico da Igreja em 1983 sem se preocupar em pedir a aprovação dosbispos de todo o mundo. Ao contrário do seu antecessor Paulo VI, não é de modonenhum vítima de dúvidas ou hesitações. Isto explica o facto de ele tratar comseveridade qualquer teólogo que ouse questionar as suas decisões, mesmo as nãoinfalíveis.

Logo em 1979, revogou a licença ao mais conhecido escritor católico do mundo, HansKüng. Em consequência disto, Küng deixou de ser considerado como teólogo católico eperdeu o seu lugar na Faculdade Católica da Universidade de Tübingen. Se o reitor nãolhe tivesse oferecido um lugar fora da Faculdade Católica, Küng ficaria desempregado.Roma pareceu ficar satisfeita por ele ter sido reduzido ao silêncio e os outros potenciaisdissidentes na Europa e na América do Norte ficaram avisados.

O teólogo holandês Edward Schillebeeckx é frequentemente repreendido pelo SantoOfício; o Padre Leonardo Boff do Brasil, especialista em conciliar os pensamentoscatólico e marxista, também já foi repreendido. Ambos estão em situação probatória coma promessa de se comportarem bem. João Paulo ganhou a sua causa: alinhado comGregório VII e Pio IX, não se contenta com menos do que a total submissão, mesmo emmatérias que são altamente contestadas.

Alvo: os Jesuítas

Alvo maior do que os teólogos individuais foi a Ordem dos Jesuítas. João Paulodepressa deu mostras de que não estava satisfeito com os tradicionais defensores dopapado. O então Geral da Ordem, Padre Pedro Aruppe, tinha fama de liberal. Andavaapenas a tentar pôr em prática entre os irmãos os decretos progressistas do Vaticano II.Quando adoeceu, foi nomeado o Padre Vincent O’Keefe para Vigário Geral emexercício. O’Keefe, de nacionalidade americana, fora o reitor de Fordham, aUniversidade Jesuíta de Nova Iorque. João Paulo achou que ele era inaceitável. Em1981 impôs à Ordem o Padre Paolo Dezza, de setenta e nove anos e quase cego, comoseu delegado pessoal. Nunca nenhum papa agira assim.

Karl Rhoner, o mais distinto teólogo actual, juntamente com mais dezassete Jesuítasde proa da Alemanha Ocidental, apresentou uma petição ao papa: «Santo Padre, permitique elejamos o nosso Superior Geral com a liberdade que, desde os primórdios daIgreja, sempre representou uma das regras básicas de todas as ordens».

O papa ficou irritado. Se não conseguia uma obediência cega da parte dos Jesuítas, aquem mais é que ele podia fazer exigências? Não é verdade que o fundador da Ordem,Inácio de Loyola, na sua obra Exercícios Espirituais, disse aos seus seguidores que«Para chegar à verdade em todas as coisas devemos estar sempre prontos a acreditarque aquilo que nos parece branco é preto se a Igreja assim o decidir»? Não, antes deterem um novo Geral que fosse para ele aceitável, os Jesuítas tinham de deixar dediscordar das proclamações papais. Só quando lhe asseguraram que tinham mudado assuas posições e que votariam num Geral que fosse para ele aceitável é que ele osdeixou continuar. Mesmo assim, não correu riscos. Procedeu pessoalmente à aberturada 33ª Congregação Geral — o primeiro papa a fazê-lo — na casa dos Jesuítas noBorgo Santo Spirito, próximo do Santo Ofício. A sua presença foi mais uma ameaça do

Page 136: Vigde cristo

136

que uma honra. Na primeira votação escolheram um moderado, o Padre holandês PietHans Kolvenbach.

Resolvida a questão dos Jesuítas, o Santo Padre voltou a sua atenção para o maiorde todos os alvos.

Alvo: A Igreja dos Estados Unidos da América

À excepção da Holanda, onde a oposição aos ensinamentos da moral católica équase total, e onde praticamente deixou de haver ordenação de padres, não há paísnenhum onde a crise seja tão palpável como nos Estados Unidos. A crise, deve dizer-se,concerne às estruturas e não ao espírito da comunidade, que continua vibrante eesperançosa.

Em 1974, seis anos depois de Paulo VI ter ilegalizado os contraceptivos, só treze porcento dos católicos americanos concordavam com ele. A única coisa que o entãoPresidente da Conferência Episcopal, Arcebispo Bernardin, soube dizer foi que «Osvalores éticos não podem ser alcançados através de uma mera contagem de cabeças».Contudo, havia indícios de que Bernardin não estava completamente satisfeito com aperspectiva de um exército composto apenas de generais.

Em 1986 o Bispo James Marlow, de Youngtown, Ohio, Presidente cessante daConferência Episcopal, admitiu haver «uma crescente e perigosa discórdia entre oVaticano e a Igreja dos Estados Unidos».

Quando, nos fins de 1987, o Santo Padre visitou a América pela segunda vez, oArcebispo Weakland de Milwaukee disse-lhe que de 1958 a 1987 a frequência da igrejanos Estados Unidos caíra de 75 para 53 por cento.

As últimas sondagens mostram que uma enorme maioria dos católicos americanossão activamente favoráveis à contracepção e ao casamento após o divórcio. Só 14 porcento pensam que o aborto devia ser ilegal em todos os casos e 93 por cento são deopinião de que se pode ser um bom católico e discordar do pontífice em questõesmorais básicas. O panorama da Igreja americana continua tempestuoso e a borrascacomeçou realmente quando João Paulo castigou o Arcebispo Hunthausen, de Seattle. Oarcebispo foi informado secretamente pelo pro-núncio papal Pio Laghi de que lhe ia serretirada a autoridade em quatro áreas-chave: ensinamentos morais, laicização dospadres, anulação de casamentos e a liturgia e ensino nos seminários. Um seu adjunto,Donald Wuerl, ordenado em Roma por João Paulo II, foi investido de plenos poderes emsua substituição. Contudo, Hunthausen não era propriamente um funcionário do papa,mas, tal como o próprio pontífice, sucessor dos apóstolos. Daí que o Vaticano se sintana necessidade de recorrer a estas tácticas clandestinas para o conter. João Paulocomporta-se como se fosse ele o Bispo de Seattle e Hunthausen o seu vice. Se o vicelhe desagrada pode ser substituído. Se e quando o vice dá provas de bomcomportamento, isto é, de obedecer à letra a todos os decretos do Vaticano, pode vir aser reinvestido nas suas funções. A livre iniciativa local é reduzida.

Em tudo isto, o papa parece não ser apenas o Bispo de Roma, mas também o Bispodo Mundo. Benedito XIV disse o mesmo: «O Papa é o principal padre de toda a Igreja epode retirar qualquer igreja local da jurisdição do seu bispo sempre que queira». Há umalógica nisto; os bispos juram servir não a Igreja e a religião mas «manter, defender,aumentar e avançar os direitos, honras, privilégios e autoridade do seu Senhor, o Papa.»

A maioria dos outros bispos estava do lado de Hunthausen, mas, comohabitualmente, sentiram que não tinham outro remédio senão alinhar com o papa,

Page 137: Vigde cristo

137

mesmo quando ele agia injustamente em relação a um dos seus. A ordem é a primeiraprioridade do catolicismo.

Hunthausen foi reinvestido nas suas funções em fins de Maio de 1987, e Wuerl foitransferido para outro posto. Isto aconteceu depois de uma comissão de bispos dosEstados Unidos, ordenada pelo Vaticano, garantir a ortodoxia de Hunthausen, muitoembora «sem intenção», dizia o relatório, os outros ficassem com a impressão de queele concordava com «uma certa permissividade». Assim, o arcebispo de uma grandediocese foi castigado por Roma por causa de impressões erradas com que ficaramalguns católicos “desembaraçados”. No futuro, ficam os bispos avisados de que terão deter cuidado não só em relação à sua ortodoxia, mas também mesmo quanto àsimpressões que deixem em pessoas mal intencionadas.

Foi também em 1986, em meados de Março, que Ratzinger, o braço direito do papa,retirou ao Padre Charles E. Curran a licença para ensinar. Para João Paulo, a função doteólogo é simplesmente transmitir as decisões vindas de cima. Curran é um ingénuonuma profissão onde a ingenuidade pode pôr a espécie em perigo. Ele pensa que oteólogo tem o sagrado dever de «avaliar e interpretar» as decisões da hierarquia à luzda Palavra de Deus. Curran perdeu o seu lugar na Universidade Católica de Washingtonem 1987. O Papa João XXIII afirmou no início do Concílio Vaticano II que os dias dacondenação tinham acabado. E nenhum teólogo tinha sido demitido com base emquestões éticas desde o Concílio. A alegação de Ratzinger de que Curran não é «nemadequado nem elegível» para ensinar num estabelecimento católico foi mais um avisopara os pensadores de espírito independente.

Ratzinger também estabeleceu que os católicos leais devem obedecer não só àsdoutrinas definidas, mas também ao completo magistério ordinário expresso pelo papa epelos bispos. Em termos práticos, isto é o mesmo que dizer “expresso pelo papa“. Ocaso do Arcebispo Hunthausen é a prova de que os bispos não usufruem de qualquerindependência. Falando claro: os bispos e os teólogos só podem servir a verdadeobedecendo ao papa. A dissidência leal é, tragicamente, no Vaticano, tal como noKremlin, uma contradição.

Outro dos “casos” americanos foi o do velho Padre Terence Sweeney, Jesuíta de LosAngeles. Com o encorajamento do seu superior, fez um inquérito aos 312 bisposcatólicos americanos sobre quatro questões relacionadas com o celibato dos padres e aordenação das mulheres. Dos 145 que responderam, trinta e cinco eram a favor docasamento dos padres, tendo em vista a carência de vocações. Onze disseram quegostariam de ver mulheres ordenadas.

Ratzinger e o Geral dos Jesuítas em Roma disseram-lhe mais do que uma vez:queime as suas investigações ou então abandone a Ordem. Sweeney, Jesuíta há vinte equatro anos, viu que a única saída que lhe restava era abandonar a Ordem. Como é queele podia queimar a verdade? Que valor é que tinha a obediência sem o fundamento daverdade e da razão? Esse tipo de obediência, afirmava ele, «não é compatível com adignidade humana».

É difícil de perceber a razão por que um distinto Jesuíta havia de ser obrigado adeixar a Ordem, não por desvios à doutrina ou à moral, mas por tornar públicas asatitudes dos bispos que livremente responderam ao seu inquérito. A impressão que ficaé que o papa parece ficar aterrorizado com a ideia de se saber o que os bispos, os seusbispos, realmente pensam. Na cabeça fica-nos esta imagem: o papa pensa nos bisposcomo altos funcionários públicos. Eles não fazem política, concretizam-na. Quaisquerque sejam as ideias que tenham, devem guardá-las para si. Só ele é fala pela Igreja.

Ficou a impressão de que um bispo que discorda do papa já é bastante mau, mastrinta e cinco num só país é intolerável Tal revelação ensombra a fachada de total

Page 138: Vigde cristo

138

acordo que é o orgulho do Catolicismo. A Igreja do Silêncio também existe deste lado daCortina de Ferro e inclui prelados que não desejam seguir o exemplo de Hunthausen.

É difícil fugir a esta conclusão: os bispos têm muito receio do papa para dizerem oque realmente pensam sobre o que é melhor para a Igreja e para as suas dioceses.Aliás não existe qualquer meio de exprimir uma dissidência. Ao nível da paróquia, asituação é a mesma. Os padres aconselham o rebanho em termos liberais, mas só noconfessionário. O papel de mártires públicos não é com eles. Crêem que é melhor ficarcalado e sobreviver. Mas onde está o testemunho para a verdade do Evangelho? E oque é que está a acontecer a esta grande instituição que, a tantos níveis deresponsabilidade, está a viver uma mentira?

O choque frontal de dois sistemas gigantescos

A principal razão por que o papa elegeu como alvo para os seus mísseis a Igrejaamericana foi esta: uma monarquia americana do tipo vaticano está em conflito directocom os ideais fundamentais da primeira e maior república do mundo. A América orgulha-se de ser a terra dos homens livres; e certas formas de liberdade são estranhas à noçãode fé cristã do pontífice. Para este, a verdade católica é absoluta e a obediência a elauma necessidade vital. O papa, como Porta-voz Ungido de Deus, tem a obrigação deexigir de todos, desde o mais humilde paroquiano ao teólogo mais astuto, umaobediência firme e pronta.

A História revela um perfeito contraste entre os ideais de liberdade católicos eamericanos. É este contraste que subjaz à profunda desconfiança do Vaticano emrelação à Igreja americana.

Primeiro, a Igreja.Em 1520, Leão X condenou Lutero por este se atrever a dizer que queimar os

hereges era contrário à vontade de Deus. Gregório XIII celebrou com alegria o Massacrede S.Bartolomeu na noite de 24 de Agosto de 1572, em que morreram milhares deprotestantes Huguenotes. Clemente VIII atacou o Édito de Nantes em 1598 porque eleatribuía igualdade de cidadania a todos, independentemente da sua religião. O Édito foirevogado em 1685 para satisfação da Igreja: nos três anos seguintes cinquenta milfamílias protestantes abandonaram a França, dispersando-se por terras estrangeiras,mais, segundo Voltaire, do que os próprios judeus. Inocêncio X tinha entretantocondenado a Paz de Vestfália por esta ousar garantir a tolerância para com todos oscidadãos, independentemente da sua religião ou da ausência desta. Em todos os casos,e durante séculos, a Igreja Católica proclamou orgulhosamente o seu dogma daintolerância religiosa.

No século XIX, a política na Europa alterou-se profundamente, mas o mesmo não sepassou com os ensinamentos católicos. A Igreja e o Estado, diziam os papas, estavamindissoluvelmente unidos, como num casamento cristão consumado. A liberdade eranão-cristã, a lei e a ordem, o objectivo primordial. Pontífice após pontífice atacaram aliberdade com a veemência que os papas do século XX reservaram para acontracepção. Pareciam temer que o governo do povo pelo povo e para o povo levassea exigências semelhantes na Igreja.

Gregório XVI, em Mirari vos, em Agosto de 1832, descreveu a liberdade deconsciência como uma ideia louca. Afirmava-se que a liberdade religiosa fluía da «mais

Page 139: Vigde cristo

139

fétida fonte do indiferentismo». Condenou a liberdade de religião, de imprensa, dereunião e de educação como um esgoto imundo de um «vómito herege».

Pio IX continuou com a arremetida. Na Encíclica Quanta Cura, de 1864, atacou aliberdade religiosa e comparou-a à liberdade de morte. Entre as moções condenadas noseu Manual dos Erros estava esta: «Hoje já não é apropriado que a religião católica sejaa única religião do Estado, com a exclusão de todas as outras confissões religiosas».

Leão XIII, que se lhe seguiu, compreendeu que o mundo estava a mudar. Contudo,em encíclica após encíclica definiu a liberdade religiosa em termos perfeitamentemedievais. A Igreja tem direito ao monopólio da religião em qualquer estado católico.Portanto, não se deve dar ao erro a liberdade de se propagar. Liberdade e verdade sãoincompatíveis. A verdade deve ser imposta pelo Estado sob a direcção da Igreja ondequer que isso seja possível. Cada estado, insistia ele, deve ainda professar a verdadeirafé como sua política oficial e tolerar a liberdade de consciência o menos possível e pelomais curto espaço de tempo possível.

Este oportunismo, esta abordagem mesquinha da liberdade religiosa estáexactamente nos antípodas da experiência americana.

Em 1492, devido a um erro de navegação, Colombo aportou às Ilhas Bahamas antesde rumar a sul. Se ele tivesse navegado, como era devido, para oeste e descoberto oContinente Norte-Americano, Os Estados Unidos teriam tido provavelmente uma históriareligiosa semelhante à do México, Brasil e Argentina. Da maneira como as coisasaconteceram, os primeiros imigrantes na América do Norte, eles próprios vítimas deperseguições no Velho Mundo, trouxeram com eles as tradicionais noções europeiasdas relações entre Igreja e Estado. Também eles pensavam que a intolerância era umagrande virtude. Daí que na Nova Inglaterra houvesse uma única instituição; religião egoverno eram quase indistintos. Impuseram uma ortodoxia religiosa rigorosa e afrequência da igreja era obrigatória. Era uma situação que não podia perdurar. Ossúbditos das colónias eram demasiado díspares nas suas crenças para que qualquersistema único, geralmente o Protestantismo de direita, pudesse prevalecer. As minoriasreligiosas, perseguidas na Europa, estavam determinadas a edificar não só uma novaterra, mas também um novo paraíso onde todos os homens fossem iguais. No NovoMundo mesmo a religião foi democratizada, coisa que a Europa não conhecia desde ostempos mais esclarecidos do Império Romano.

Providence, mais tarde chamada Rhode Island, e Maryland iniciaram a demolição davelha intolerância religiosa. Em Rhode Island, e pela primeira vez na História, houveuma separação completa entre Estado e Igreja, e liberdade de expressão para todos.Esta extraordinária experiência, não só era ousada, como também foi bem sucedida.Maryland, fundada por Lord Baltimore como refúgio para os católicos, também abriu asportas a todos os que chegavam, apesar de os Jesuítas tentarem obrigar Sua Senhoriaa submeter-se à ordem medieval.

Por volta de 1660, as tendências liberalizadoras eram fortes na maioria das colónias;era já perceptível uma abordagem distintamente americana. No século XVIII, com aindependência nacional veio também a completa liberdade religiosa. Por exemplo, em1786, Jefferson redigiu um estatuto de liberdade religiosa para a Virgínia, o primeiroalguma vez aprovado por uma assembleia popular. Rezava assim:

Que seja portanto decretado pela Assembleia Geral que ninguémseja obrigado a frequentar ou a apoiar qualquer confissão religiosa,local ou ministério […] mas antes que todos os homens sejam livresde professar e de manter, pela discussão, as suas opiniões em

Page 140: Vigde cristo

140

matéria de religião e que as mesmas de maneira nenhumadiminuam ou aumentem ou afectem a sua cidadania.

Em 1787 esta liberdade foi instituída no artigo VI da Constituição Federal: «Nuncaserá exigido qualquer exame religioso como habilitação para o exercício de qualquerprofissão ou cargo público nos Estados unidos». Em 1791, veio a primeira Emenda: «OCongresso não pode interferir na liberdade religiosa, na liberdade de expressão, dereunião e de petição. O Congresso não fará qualquer lei sobre o estabelecimento deuma religião, nem proibirá o seu livre exercício».

Estas declarações históricas marcam a rotura definitiva com as atitudes religiosas doVelho mundo. Os Estados Unidos exprimiram insatisfação com a noção de “tolerância“;desejavam liberdade e igualdade religiosa para todos os cidadãos. A tolerância eraconsiderada uma forma de hipocrisia; é um insulto para os considerados tolerados. Alémdisso, aquilo que é tolerado hoje podia não o ser amanhã. Nas palavras de Jefferson, aConstituição edificou acima de tudo «um muro de separação entre a Igreja e o Estado».Qualquer pessoas, católica ou protestante, que tentasse abrir brechas nesse muro ou odestruísse completamente não tinha o direito de se intitular americano.

Para espanto de Roma, a Igreja Católica floresceu sob um regime considerado porRoma como hostil aos mais básicos princípios da fé. Gregório XVI (1831-46) disse: «Nãohá parte alguma do mundo onde eu me sinta mais papa do que nos Estados Unidos». EPio IX, durante cujo reinado os católicos nos Estados Unidos atingiram os seis milhões emeio, pronunciou a famosa frase: «A América é o único país do mundo onde eu podiaser rei». Parece não ter reparado que os americanos tinham perdido o gosto pelamonarquia anos atrás, em 1776, com a Declaração da Independência.

À volta de Pio IX teceu-se o mais intrigante caso de podia-ter-sido da história papal.Ameaçado no Vaticano pelo crescente nacionalismo italiano, Pio IX recebeu duasofertas de ajuda incrivelmente generosas.

No ano de 1863, o padre britânico Lord John Russel escreveu ao Cardeal Antonelli asugerir-lhe que, numa emergência, a Ilha de Malta poderia ser um refúgio paradisíacopara Sua Santidade: «Poderia aí ficar, rodeado dos seus principais cardeais e dos seusconselheiros de confiança. Não lhe seriam exigidas quaisquer condições que ferissem asua consciência». O governo britânico garantir-lhe-ia completa protecção.

Não há provas de que o pontífice tivesse ponderado seriamente esta oferta.Não muito depois, quando o céu começou a escurecer ainda mais, Rufus King,

ministro americano acreditado junto dos Estados Papais, foi abordado por um altofuncionário do Vaticano. Disse o funcionário que o único lugar onde Sua Santidadeficaria a salvo era «a grande República da América». A resposta, quando chegou, foimagnânima. «O nosso país é a pátria das liberdades civis e religiosas, bem como orefúgio para todos aqueles que fugiram dos problemas políticos e outros do VelhoMundo. Se Sua Santidade achar conveniente ir para os Estados Unidos, aí encontrarásem dúvida esse tipo de acolhimento e ficará livre para prosseguir sem objecções nemrepresálias a sua grande obra como Chefe da Igreja Católica».

Dois destroyers americanos saíram de Lisboa em direcção a Civita Vecchia e ficaramà espera para transportar Sua Santidade para a América. Ah! Mas o papa nunca chegoua embarcar.

Em 1867, com o pequeno exército de Garibaldi numa manobra de antecipaçãoapenas a vinte e cinco quilómetros do Vaticano, o papa, ainda em desafio, disse: «Sim,eu ouço-os a chegar». E apontando o crucifixo: «Aquela será a minha artilharia».

Page 141: Vigde cristo

141

Assim, a humanidade não havia de ver um papa a viver numa república, um segundoAvinhão no Novo Mundo. Os Estados Unidos perderam a atracção turísticapotencialmente mais lucrativa de sempre, e mais do que isso, o papado perdeu aoportunidade de funcionar numa democracia moderna.

No Velho Mundo, o papa continuou a insistir numa teocracia medieval, na união daIgreja e do Estado, sob a qual o Estado garantia à Igreja Católica o domínio no camporeligioso.

Foi sempre este o problema para os católicos americanos. O Cardeal James Gibbonsde Baltimore, por exemplo, não hesitou em condenar a Inquisição Espanhola. Afirmavafalar em nome de todos os católicos americanos quando escreveu: «Os nossosantepassados católicos sofreram tanto durante os últimos três séculos por amor àliberdade de consciência que se levantariam a condenar-nos se nós nos armássemosem defensores das perseguições religiosas».

Estes sentimentos republicanos não caíram bem em Roma. Eram contrários aoCatolicismo tradicional. O Cardeal Gibbons tentou livrar-se da acusação de heresia pormeio de uma distinção inventada por um bispo francês alguns anos antes. Num mundoperfeito (tese) aplicar-se-iam os ensinamentos tradicionais da Igreja nas relações Igreja-Estado. Num mundo imperfeito (hipótese), como a América moderna, a Igreja resignava-se a aceitar tacitamente o status quo. Talvez com este subterfúgio, o cardeal levou a queo Vaticano deixasse de condenar a Constituição Americana, como fizera com todas asconstituições europeias, embora estas fossem muito menos radicais.

A distinção feita pelo cardeal pode ter sido aceite no Vaticano; mas não agradou aosamericanos. Estes não consideravam o estilo de vida americano inferior ao europeu.Para eles, era um aperfeiçoamento diferente. Como disse Emerson, a América tinhauma missão especial: «Libertar, abolir a soberania monárquica, o clericalismo, a casta, omonopólio; demolir o patíbulo, queimar o código sangrento». Além disso, a implicaçãodas palavras do cardeal era assustadora: se as conversões se multiplicassem nosEstados Unidos, Sua Eminência ou o seu sucessor teriam de tentar impor um regimemedieval à América, em violação da sua Constituição. O mito nasceu da inelegibilidadedos católicos para altos cargos. Este mito fez naufragar as ambições presidenciais de AlSmith, Governador democrata do Estado de Nova Iorque, em 1928. E quase destruiu asesperanças de J.F.Kennedy trinta anos mais tarde.

Kennedy era acusado de pretender demolir o muro que separa a Igreja do Estado.Era acusado, por vezes sinceramente, de estar tão prisioneiro de um sistema religiosocomo Khruschev de um sistema político. Kennedy parecia estar a enfrentar uma escolhaclara entre ser um “bom” católico na concepção tradicional e um bom americano. Hátrinta anos, quando tudo estava por resolver, declarou:

Eu acredito numa América onde a separação da Igreja e do Estadoseja absoluta — onde nenhum prelado católico diga ao Presidente(se ele for católico) como agir e nenhum pastor protestante diga aosseus paroquianos em quem votar […] uma América que não sejaoficialmente nem católica nem protestante, nem judaica — ondenenhum político peça ou aceite instruções sobre política de […]qualquer fonte eclesiástica […] onde não haja votos católicos ouanti-católicos, nem votações em bloco de qualquer tipo […] e onde aliberdade religiosa seja tão indivisível que um ataque contra umaigreja seja tratado como um ataque a todas elas. […] Eu não sou ocandidato católico à Presidência, sou o candidato do PartidoDemocrático à Presidência, e que por acaso é católico. Não falo pela

Page 142: Vigde cristo

142

minha igreja sobre assuntos públicos e a minha igreja não fala pormim.

Foi uma bela expressão do ideal americano. Kennedy recebeu os melhores conselhosteológicos. Disseram-lhe sem dúvida que o estado cristão foi um produto do século IVengendrado por Constantino. A Igreja primitiva não sabia nada sobre o assunto, nem aBíblia. Contudo, Kennedy provavelmente não tinha plena consciência de que estava acontrariar séculos de doutrinamento católico. Mesmo Leão XIII, esse sábio papa degrande visão, dizia que politicamente «é sempre urgente, de facto a principalpreocupação, pensar na melhor maneira de servir o Catolicismo». Em todas as eleições,continuava ele, os católicos são obrigados a votar naqueles «que se empenhem nacausa católica e a nunca preferir a estes alguém hostil à religião [católica] […] que é aúnica religião verdadeira». Assim, de acordo com o papa, há de facto votação em bloco,o voto em bloco nos candidatos católicos; e um ataque contra o Catolicismo é apenasum ataque ao Catolicismo. Depois da Segunda Guerra Mundial, Pio XII estava pronto aexcomungar qualquer católico que desse o seu voto a um candidato comunista em vezde a um católico.

Em vista disto, a eleição de Kennedy foi uma vitória não para a Igreja Católica, maspara a democracia americana. Ele ainda tinha de provar, antes e depois da eleição, queo papa não o tinha na mão e que estava bem preparado para dizer Não a todoepiscopado católico da América.

Kennedy teve a sorte de fazer campanha para a presidência durante o pontificado deJoão XXIII, o papa menos intolerante e mais católico da história.

O dilema dos católicos hoje

O dilema dos católicos americanos hoje é simplesmente o óbvio dilema da maioriados católicos. Vivem entre duas ideologias antagónicas. Patriotismo e religião têm poucoem comum. Na altura do Concílio Vaticano II os católicos deixaram de sentir isto. OConcílio foi uma segunda primavera, uma oportunidade de liberdade e discussão livre aflorir e a enriquecer a Igreja ao mesmo tempo que enriquecia o Estado. Mas com PauloVI e João Paulo II a segunda primavera morreu.

No Estado, um católico rejubila com a abertura, com a completa liberdade de culto,com a democracia. Tem como adquirida a liberdade que conduz ao aprofundamento daverdade. Está habituado a que os líderes se lhe apresentem para aprovação. Pode votarneles e pode rejeitá-los. Exige conferências de imprensa, liberdade de informação, umaimprensa sem grilhetas que é como um segundo governo.

Na Igreja, um católico tem de suportar um secretismo total e a falta deresponsabilização. Não há escolhas nem eleições. Não pode rejeitar ou votar em papasou bispos. Tem de aceitar aquilo que lhe é oferecido. Na Igreja não há conferências deimprensa, nem verificações ou balanços, nem explicações. O controle a partir de cima éabsoluto. A impressão que fica é que a liberdade e a discussão levam à diluição daverdade.

Seria insensato olhar o papa e a Cúria como os maus da fita. Também eles sãovítimas de um passado desconhecido ou, pelo menos, não reconhecido.

João Paulo vê-se como o grande defensor da verdade católica, que é absoluta. Nãopode duvidar dela, em todas as suas ramificações, na mesma medida em que não podeduvidar da existência de Deus. Ele sente que tem de ser duro para com os dissidentespara ser afável para a massa dos católicos que têm o direito à totalidade da verdade.Esta a razão por que está sempre pronto a defender a liberdade em toda a parte,

Page 143: Vigde cristo

143

excepto na sua própria Igreja. Todas as formas de dissidência da parte dos teólogos,como Küng e Curran, mesmo dos bispos, como Hunthausen, tem de ser suprimida. É tãoprovável que um académico seja silenciado por propor que os padres sejam autorizadosa casar ou que as mulheres possam ser ordenadas como por negar a divindade deCristo.

Nas suas viagens, João Paulo apresenta o papado como o campeão da verdade edos direitos humanos. Ele tem como certo que os papas nunca se contradisseram unsaos outros no essencial nem se desviaram da verdade do Evangelho.

Esta parte da obra sobre a verdade pretende mostrar com inúmeros exemplos queestes pressupostos são falsos. À parte o facto de o papado dos séculos X e XV ser aheresia, ser a negação de tudo aquilo que Jesus representava, muitos papas cometeramerros espantosos. Entraram repetidamente em contradição uns com os outros e com oEvangelho. Longe de defenderem a dignidade do homem, retiraram vezes sem conta acatólicos e não católicos os mais elementares direitos. A Casa Papal da Esquina é provadisso mesmo.

A História faz explodir o mito de um papado imaculadamente branco em matéria deverdade. Em época de barbárie, os papas lideraram; em época de iluminismo seguiramna cauda do pelotão. E pior que tudo, quando em contradição com o Evangelhotentaram impor a verdade pela força.

Page 144: Vigde cristo

144

Page 145: Vigde cristo

145

10A Imposição da Verdade

O Papa Inocêncio III estava sentado no trono num misto de excitação e raiva. À suafrente, um assessor tinha na mão um hábito branco cisterciense. O hábito tinha umrasgão no peito e nas costas feitos por uma lança e estava manchado de sangue. «Isto,Santidade, é o hábito do Irmão Pedro de Castelnan». O pontífice corrigiu solenemente oassessor: «S. Pedro de Castelnan».

Naquele dia 10 de Maio de 1208, quando Inocêncio canonizou o Irmão Pedro,também publicou a Bula de anátema contra os hereges de Languedoc. Foram eles,decidiu o papa, que assassinaram o seu santo embaixador. Pondo-se de pé, o papasalmodiou: «Morte aos hereges».

Uma cruzada sangrenta

As coisas não eram assim tão simples como o papa as fazia. Não pode haver dúvidade que ele usou a morte de Pedro como pretexto para fazer uma coisa que há muitodesejava.

Durante um século, a heresia tinha florescido nas belas terras feudais conhecidas porLanguedoc, aquele canto no sudeste de França entre o Ródano e as montanhas, com acidade de Toulouse por capital. Inocêncio sabia bem que a aberração destes Cátaros ouAlbigenses, que tomaram o nome da fortaleza de Albi, era devida à corrupção do clero.Até escreveu:

Em toda esta região, os prelados são alvo de troça dos leigos, mas araiz de todo este mal está no Arcebispo de Narbonne. Este homemnão conhece outro deus que não o dinheiro e tem uma bolsa ondedevia ter o coração. Durante os dez anos em que exerceu o cargonunca visitou a sua diocese […] onde se podem ver mongesregulares e cónegos que puseram o hábito de lado, arranjarammulheres ou amantes e andam a viver da usura.

Relatos da época concordam em que no Languedoc, tal como em muitos outroslocais, os abades e os bispos levavam uma vida dissoluta. Dedicavam-se ao jogo epraguejavam; ouviam as matinas na cama, coscuvilhavam durante os ofícios divinosnas raras ocasiões em que iam à capela, excomungavam a esmo qualquer pessoa queos aborrecesse, cobravam taxas por tudo, desde as sagradas ordens a casamentosilícitos, e anulavam testamentos legais para embolsarem os proventos. Em contrastecom isto, os Albigenses tinham muitos santos homens e mulheres. Estes perfectiabstinham-se do casamento e dos prazeres mundanos. Magros, pálidos, de cabeloscompridos e vestidos de negro, eram saudados com alegria onde quer que fossem pelasimples bondade das suas vidas. Oradores poderosos, mais próximos dos seusrebanhos do que os padres, a sua autoridade moral era enorme. Deles, os crentes, os

Page 146: Vigde cristo

146

credentes, recebiam um só sacramento, o consolamentum (imposição das mãos), emreconciliação, à beira da morte.

Negavam os dogmas e os sacramentos da Santa Madre Igreja, desprezavam ospadres, chamavam a Roma a Puta da Babilónia e aos bispos o Anti-Cristo. Pregavam aigualdade dos sexos, que Inocêncio dizia ser contrária à Bíblia. Tinham a sua própriaversão das Escrituras em vernáculo, que realmente liam. Só por isto, o papa chamava-lhes hereges, merecedores da morte.

Parece que os Albigenses pregavam um dualismo. O mau Deus do VelhoTestamento era responsável pelo mundo material que era fonte de corrupção e morte.Jesus era o Deus do mundo do espírito. Esta a razão por que eles odiavam o ritualcatólico. As imagens, as relíquias, a sagrada comunhão, a própria cruz tresandavam aomundo moribundo da matéria. O corpo era vil, e o sexo, por meio do qual os corpos semultiplicavam, era vil também. O fruto proibido do Jardim do Paraíso era o prazersexual. A gravidez era pecado; uma mulher grávida tinha um demónio dentro dela e semorresse antes de dar à luz estaria inevitavelmente perdida. O casamento era umestado pecaminoso; o sexo no casamento não era melhor do que o incesto. O seu ódioao corpo era tal que o suicídio, o endura , era um acto heróico de virtude, o caminhopara o Céu.

É difícil saber ao certo em que é que os Albigenses realmente criam, uma vez quequase não deixaram documentação nenhuma. Apenas temos a palavra de inquisidoresparciais que, tal como o papa, os queriam ver mortos. É possível que estivessem areagir contra os padres que se faziam passar por celibatários e viviam em pecado efaziam fortunas com as relíquias.

Inocêncio, que se considerava o “Alicerce de Toda a Cristandade“, mandou que ohábito manchado de sangue do recente santo fosse exposto em todas as igrejas doLanguedoc para promover uma nova Cruzada. Cruzada que era dirigida não contra osTurcos que detinham a Terra Santa, mas contra discípulos de Cristo que tiveram aousadia de negar a autoridade do papa. Será que eles não sabem, perguntava ele, quesem mim não há Igreja, nem Pedra, nem Fé, nem Salvação? Os novos cruzadosgozariam de todos os privilégios dos cavaleiros que foram a Jerusalém. Inocêncio, talcomo Maomé, combinava a religião com a guerra. Matando os Albigenses, prometia ele,os Cruzados teriam o lugar mais elevado do Céu.

As verdadeiras Cruzadas tinham suscitado sempre entusiasmo desde que Pedro oEremita respondeu ao apelo de Urbano II em 1096. Pedro, francês de Amiens, baixo,magro, de cabelo negro e barba grisalha até à cintura, pregou a Cruzada aos pobres.Gualter Sem-Tostão, cavaleiro saído das páginas do D.Quixote, juntou-se-lhe, e foramambos de burro, à frente de um vasto exército que se deslocava a pé ou a cavalo ou emcarros puxados por burros, tão bem armados como gafanhotos.

A viagem de Colónia a Constantinopla, passando pela Hungria e por Belgrado, levoucem dias. Foi uma marcha épica cheia de sofrimento e horror; contaram-se estórias debebés que foram cozidos e comidos. Em cada cidade as crianças perguntavam: «Isto éJerusalém, meu pai?» Apesar dos dez mil que caíram numa batalha no caminho, trinta ∗ Designação dada pelos albigenses, cátaros ou patarinos ao rito que correspondia, na seita, ao baptismo, eucaristia,ordem e extrema unção. Começava pela apostasia da Igreja de Roma, a que se seguiam a profissão de fé cátara e apromessa solene de guarda de todos os preceitos respeitantes à castidade, dieta alimentar e amizade doscorreligionários, terminando pela admissão do neófito no número dos perfeitos, com a imposição das mãos porqualquer homem bom ou puro. Esta imposição, feita à hora da morte, levava não raro o doente à recusa do alimento,especialmente carne, queijo e ovos, indo até à endura ou morte por inanição. In Enciclopédia Luso-Brasileira deCultura, Verbo Editora. (N.T.)∗ Ver nota anterior sobre o consolamentum. (N.T.)

Page 147: Vigde cristo

147

mil chegaram ao Bósforo em Julho. Aí, no dia 21 de Outubro, foram destroçados pelosTurcos. Pedro o Eremita foi um dos sobreviventes. Quando os cavaleiros do exércitocristão chegaram, na primavera seguinte, não encontraram nos arredores de Nicomediae Civitol nada a não ser montanhas de ossos esbranquiçados. «Oh, quantas cabeçasdecepadas e ossos formavam a linha da costa». Os franceses misturaram os ossos comcal de maneira que os peregrinos de Pedro o Eremita acabaram nas paredes dospróprios castelos dos Cruzados.

Passara já mais de um século quando, em resposta ao recente apelo de Inocêncio III,cidades e aldeias inteiras da Alemanha, na impossibilidade de levarem a Cruz, sedesnudaram e correram em silêncio pelas ruas. Foi um tempo de loucura. Quatro anosdepois, em 1212, milhares de rapazes e raparigas franceses viriam a ser mobilizadospor Estêvão de Vandôme, um jovem pastor. Saíram de casa sem mapas, nem guias,nem comida, para se dirigirem a Marselha. Quando lhes perguntavam para onde iamrespondiam: «Jerusalém». Os pais fizeram os possíveis por fechar os filhos, mas elesfugiram. Infelizmente, as águas do Mediterrâneo não se abriram como as do MarVermelho. Muitos, atraídos para dentro de barcos, foram vendidos como escravos aosSarracenos nas costas da Sardenha.

Por esta altura, vinte mil crianças alemãs foram aliciadas por um jovem chamadoNicolau. Iniciaram a viagem para a Terra Santa atravessando os Alpes para a Itália.Muitas caíram mortas pelo caminho; algumas voltaram para contar a estória que se veioa tornar a lenda do Tocador de Flauta de Hamlin.

Mas nenhuma loucura desta época se compara à do papa. É verdade que ele tentaradurante quatro anos livrar-se dos Albigenses por processos mais cristãos. Em 1205,mandara-lhes Dominic, que em breve fundaria a Ordem dos Pregadores. «Eu preguei-vos» disse Dominic após grandes esforços, «Implorei-vos a chorar. Mas, como nósdizemos em Espanha, “Onde a bênção falha, um pau bem grande consegue o truque”.Agora vamos levantar príncipes e prelados contra vós». A partir de então, prometeu ele,Cristo não lhes daria nada senão escravatura e morte.

Inocêncio também mandara a Languedoc Pedro de Castelnan e o Irmão Raul. OIrmão Pedro tinha acusado Raimundo IV, Conde de Toulouse e senhor desta vastaterra, de ajudar e instigar os hereges. Ordenaram-lhe que os desalojasse. Isto não eratarefa de pouca monta, considerando que a heresia se tinha desenvolvido com acorrupção do clero durante quatro gerações. Os Albigenses constituíam metade dapopulação do Midi. Esperavam que Raimundo os mandasse queimar aos milhares? OIrmão Pedro, que em breve seria canonizado, acreditava que sim. ExcomungouRaimundo por incúria no cumprimento do dever e encorajou os seigneurs de Provence arevoltarem-se contra o seu senhor. «Aquele que vos depuser» declarou o Irmão Pedrona sua interdição «será considerado santo; aquele que vos ferir de morte ganhará umabênção de Deus». Raimundo apressou-se a garantir a Sua Santidade o seu apoio detodo o coração.

No dia seguinte, quando a comitiva papal estava para atravessar o Ródano em Saint-Gilles, um dos oficiais de Raimundo trespassou o Irmão Pedro com uma lança. Estemilitar nunca foi julgado nem condenado. O papa tinha toda a vantagem em culpar todoo distrito.

A “Cruzada” de Inocêncio foi um marco na história do Cristianismo. O chefe da Igrejaordenou e dirigiu uma guerra contra cristãos irmãos numa terra tradicionalmente cristã.O extermínio substituiu a conversão. Contudo, os ortodoxos e não ortodoxos viviam tão

Page 148: Vigde cristo

148

intimamente juntos que era impossível separá-los. Em surpreendente oposição àparábola de Jesus, queimou-se o trigo e o joio juntos.

A violência na tradição cristã

Na tradição católica a violência tem tido uma carreira de altos e baixos. De facto, emparte alguma se encontra uma evidência mais clara da mudança de ideias do que nasua doutrina sobre a guerra.

De princípio a Igreja tinha um profundo sentido da santidade da vida humana. Oderramamento de sangue era um pecado grave. Esta a razão por que os cristãos seopunham aos combates de gladiadores. O exército também era uma ocupação proibida.Cristãos como Maximiliano preferiam morrer a matar. «Eu não posso lutar na guerra»dizia ele simplesmente. «Não posso proceder mal. Sou cristão». Enquanto a guerra e ouso da força foram necessários para preservar Roma, os cristãos sentiam-se incapazesde se alistar. «O mundo» disse Tertuliano, «pode precisar dos seus Césares, mas oImperador nunca poderá ser cristão, nem um cristão imperador».

Os cristãos consideravam-se, tal como Jesus, mensageiros da paz; não poderiam emcaso nenhum, ser agentes da morte. Mesmo quando se alistavam no exército ouquando os soldados se convertiam a sua fé não lhes permitia lutar, a não ser pelaoração e pelo sacrifício.

Depois, Constantino derrotou Maxêncio na Ponte Milviana sob o signo da cruz. Umavez convertido, mandou pôr no elmo e no freio do cavalo os pregos com quecrucificaram Cristo. Para os Cristão de uma época anterior, tal blasfémia seriainimaginável; agora os Cristão faziam parte do establishment, com bens e posição adefender. Um guerreiro sanguinário era o seu bispo supremo e comandante em chefe.Deixaram de ser pacifistas e dos arados fizeram espadas.

É verdade que os imperadores e os generais tinham de fazer penitência se tivessemas mãos manchadas de sangue, mesmo em defesa de uma causa justa. Mas os velhosprincípios tinham afrouxado. A mesma frouxidão era patente na aplicação da religião. AIgreja era originalmente contra o uso da força para obter conversões ou para reprimir aheresia. Mas Leão o Grande (440-61) viria a elogiar um imperador por este torturar eexecutar hereges em nome da Igreja. Por esta altura, até Agostinho tinha concordadocom a ideia de não matar nem torturar hereges, mas antes ajudá-los a encontrar ocaminho certo com a ajuda de um ou dois bons socos. Depressa os cristãos secomeçaram a sentir francamente satisfeitos pelo facto de a sua religião ser a única quenão era perseguida. Só a aversão ao derramamento de sangue os impedia de matar oshereges.

Esta aversão foi enfraquecendo gradualmente. Cada vez mais cristãos se alistavamno exército, prontos agora para matar e morrer. Enquanto que até ao ano de 175 nãohouvera um só soldado cristão, em 416, por um édito de Teodósio, só aos cristãos erapermitido o alistamento. Ficava apenas para o clero — bispos e padres que oficiavamno altar do Crucificado — a manutenção da velha aversão da Igreja ao derramamentode sangue. O clero, só ele, criava uma espécie de zona ou testemunho de paz no meioda guerra.

Embora a violência como que corresse agora nas veias do Cristianismo, depois dashostes bárbaras terem sido convertidas e mais ou menos civilizadas, seguiu-se umperíodo de paz. No período chamado de Alta Idade Média, a intolerância parece ter sidoesquecida, talvez por desinteresse. Até que o Cristianismo ficou sob a influência do seurival mais mortífero, o Islão.

Page 149: Vigde cristo

149

A velocidade com que o novo credo se espalhou foi mesmo maior do que a alegadapropagação miraculosa do Cristianismo. Abriu caminho violentamente nas velhas terrascristãs da África, Ásia e Espanha. Proclamou um paraíso sensual e um terrível inferno.O seu fatalismo — «O que está escrito, está escrito» — estimulou a coragem noscampos de batalha. Assim, um seguidor devoto de Alá, ensopado em sangue do inimigoera transportado para o Paraíso. «A espada», dizia Maomé, «é a chave para o Paraísoe para o Inferno». Uma só gota de sangue derramado pela causa de Deus era melhordo que a oração e o jejum. Na síntese de Gibbon: «Os pecados são perdoados a quemquer que caia numa batalha; no dia do julgamento as suas feridas ficarãoresplandecentes, escarlates, e com o perfume do almíscar; e a perda de membros serácompensada com asas de anjos e querubins».

No Paraíso, como escreveu Santayana em Pequenos Ensaios sobre Religião, oguerreiro está sentado «em jardins bem regados, com Maomé, vestido de sedas verdes,a beber deliciosos refrescos de frutas e paralisado pelo olhar de gazela de uma jovem,toda inocência e fogo». O retrato de Gibbon no oitavo volume de Decline and Fall émuito menos puritano.

Setenta e duas Houris, raparigas de olhos negros, de uma belezaresplandecente, de juventude em floração, de pureza virginal, e derara sensibilidade, serão criadas para o mais mesquinho doscrentes; um momento de prazer será prolongado por mil anos e assuas faculdades serão aumentadas cem vezes para o tornar dignoda felicidade.

O Profeta nada disse sobre quantos servidores masculinos seriam criados para asmulheres felizes o bastante para entrarem no Paraíso. Talvez temesse a inveja dosmaridos num mundo masculino chauvinista.

O avanço do Islão no Ocidente apenas foi quebrado em Poitiers pelo avô de CarlosMagno, Carlos Martel. Daí para a frente, o espírito marcial do Islão passou para oCristianismo. Maomé substituiu Cristo como “herói”. O Profeta tinha sido chefe deestado, comandante de exércitos, administrador de justiça; Jesus apenas tinha pregadoe morreu na cruz. O cristão ideal já não era o monge asceta, mas o guerreiro de espadaensanguentada a vingar-se no infiel que ousara capturar e profanar a Terra Santa.Agora, troçando do Evangelho, os cavaleiros cristãos eram instigados a matar em nomede Jesus. As indulgências papais correspondem exactamente à garantia islâmica deuma bênção perpétua para os guerreiros moribundos. O Cristianismo, numa espécie demilagre perverso, tinha herdado o conceito de Jihad, a Guerra Santa.

Durante dois séculos os púlpitos vociferavam não sobre a paz de Cristo mas sobre odever da guerra contra o infiel. E assim, nos montes e campos de batalha, o Cruzadocravou na terra a espada em forma de cruz e rezou a Cristo para que estivesse com elena destruição dos inimigos. Se morresse, o papa assegurava-lhe um elevado lugar numparaíso infelizmente sem comida, sem alegria e angelicamente casto. Era aí, em todo ocaso, que o Islão marcava pontos.

A caminho da Terra Santa, os Cruzados voltaram a sua atenção para os infiéis maispróximos. Os judeus tinham sido os primeiros a profanar a Terra Santa torturando ecrucificando Cristo. Os Cruzados ofereceram-lhes o baptismo ou a morte. Eles teriamficado a saber de cor as frases de S.João Crisóstomo, o Doutor Palavra-de-Ouro daIgreja: «Odeio os Judeus» repetiu ele vezes sem conta. «Não pode haver perdão paraos odiosos assassinos do Senhor». «Deus odeia e sempre odiou os Judeus». Daí que

Page 150: Vigde cristo

150

os judeus, novos e velhos, homens e mulheres, caíssem aos golpes de espada doCruzado. Uma só estocada garantia ao matador o paraíso.

No ano de 1096, metade dos judeus de Worms foram assassinados quando oscruzados passaram pela cidade. Os restantes fugiram para a residência do bispo. Esteconcordou em salvá-los na condição de pedirem para serem baptizados. Os judeusretiraram-se para decidir. Quando a câmara de audiências se abriu todos os oitocentosjudeus estavam mortos. Alguns tinham sido decapitados; os pais tinham matados osseus bebés antes de voltarem as facas para as mulheres e para si próprios; um noivoassassinara a noiva. A tragédia de Masala do século I repetia-se em toda a parte naAlemanha e, mais tarde, em toda a França. Quando os Cruzados tomaram o seu grandeobjectivo, Jerusalém, um dos seus primeiros actos foi lançar fogo à sinagoga com todosos judeus lá dentro.

Lecky, no seu clássico em dois volumes History of European Morals (1911) escreveu:«Seria impossível conceber uma mais completa transformação do que aquela que oCristianismo sofreu desta maneira, e é triste o contraste do aspecto de que se revestiudurante as Cruzadas com a impressão que mais justamente tinha deixado no mundocomo o espírito de brandura e de paz a enfrentar o espírito da violência e da guerra». AIgreja estava totalmente convertida ao Império Romano. Os ministros — papa, bispos,padres — negavam as beatitudes ao proclamar o derramamento de sangue como suadoutrina oficial. A antiga crença que assegurava a santidade da vida foi abandonada.

Apesar destes precedentes cruéis, a Cruzada de Inocêncio contra os Albigenses foide um género muito próprio. Sob a bandeira da cruz, esta cruzada viria a ser acampanha mais sangrenta da Idade Média. Os soldados inventaram praticamente apolítica da terra queimada. Pela primeira vez entregaram-se ao assassínioindiscriminado. E Inocêncio, à medida que cada crime lhe era relatado, instigava-os acontinuarem ainda com mais energia os seus esforços em nome de Cristo. Os fins eramsublimes; justificavam todos os meios. Era muito mais fácil matar os hereges do queconverter o clero a uma vida sem mácula.

Comece-se com a matança

Quando o rei de França recusou liderar a Cruzada, Inocêncio fez do seu legado,Arnald-Amalric, Geral Cisterciense de Cîteaux, o seu comandante-chefe. Cavaleiros eimpedidos, camponeses e burgueses, bem como hostes de mercenários, responderamao apelo às armas. Oferecia-se uma indulgência especial para um simples serviço dequarenta dias e, possivelmente, ainda alguma terra no Languedoc. Eram vinte milcavaleiros e quase dez vezes mais o número de soldados apeados. Havia bispos esenhores feudais, duques e condes, incluindo Raimundo, Conde de Toulouse.

Apenas uma semana antes, o conde tinha feito as pazes com a Igreja. Na enormeporta da Catedral de Saint Gilles este senhor das terras foi despido até à cintura comoum penitente e obrigado a jurar sobre as relíquias sagradas que obedeceria à Igreja emtudo. Para provar a sua ortodoxia, comprometeu-se a matar todos os hereges dasredondezas.

De Montpellier, o exército marchou para Béziers, uma praça forte albigense. A cidadeestava bem fortificada, embora faltasse a água naquele verão quente e seco.

22 de Julho, festa de Maria Madalena, era um dia providencial, de acordo com olegado, para começar o cerco. Convidou os católicos da cidade a entregarem os cercade duzentos hereges conhecidos; se o fizessem seriam poupados. A população decidiuunir-se contra os estrangeiros.

Page 151: Vigde cristo

151

Podiam ter resistido durante meses, não fora um grupo de temerários deixar asegurança das muralhas para insultar alguns mercenários que andavam a mandriarnum campo. Os jovens aperceberam-se tarde demais de que se tinham afastadoperigosamente. Correram de volta à cidade, perseguidos de perto pelos mercenários.

A população, no meio de grande confusão, refugiou-se na catedral e nas grandesigrejas de S.Judas e Santa Maria Madalena. Os cavaleiros invasores juntaram-se aosmercenários e varreram a cidade saqueando e matando tudo e todos no seu caminho.De Arnald saiu esta ordem: «Matem-nos todos; o Senhor olhará pelos seus».

Atrás da porta trancada de Santa Maria Madalena, os clérigos tocaram o sinoenquanto os celebrantes se vestiam de negro para um requiem. As igrejas, santuáriosdesde tempos imemoriais, estavam apinhadas. Só em Santa Maria Madalena estavamsete mil mulheres, crianças e velhos. Ao som dos padres que celebravam missa juntou-se o dos machados que despedaçavam a madeira das portas. Quando estas cederam oúnico som na igreja era o latim da liturgia e o palrar dos bebés ao colo das mães.

Os invasores, a cantar energicamente o Veni Sancte Spiritus, não pouparamninguém, nem mesmo os bebés. Os últimos a serem abatidos foram dois padres juntodo altar. Um deles erguia um crucifixo, o outro o cálix. O cálix caiu no chão de pedracom um som metálico e o sangue de Cristo misturou-se com o das pessoas de Bésiers.Foi, disse Lea no seu livro The Inquisition in the Middle Ages, «um massacre quase semparalelo na história da Europa».

Quando o ataque acabou, os mercenários foram informados de que os despojostinham de ser entregues para financiar a Cruzada. Vingaram-se deitando fogo à cidade.Foi tudo devorado pelas chamas. A famosa catedral de Mestre Gervais abriu-se ao meiocom o calor. Tudo o que restou de Bésiers foi um monte de destroços em fogo lento sobo qual jaziam mortos todos os cidadãos.

Na frescura do entardecer, o monge Arnald sentou-se a escrever ao seu superior.«Hoje, Santidade, vinte mil cidadãos foram passados à espada, independentemente daidade ou do sexo». Aquele procedimento não era habitual. Depois de um cerco, asmulheres e as crianças eram poupadas, e especialmente o clero, que gozava deimunidade. Matar bebés já era bastante mau, mas liquidar padres quando celebravam osacrifício ritual do Calvário era um crime inqualificável. O desejo de sangue apoderou-sedos Cruzados do papa e nunca mais havia de afrouxar o seu domínio. Calcula-se quena última e mais selvática perseguição sob o Imperador Diocleciano morreram cerca dedois mil cristãos em todo o mundo. Na primeira intervenção depravada da Cruzada doPapa Inocêncio foram chacinadas dez vezes mais pessoas. E nem todas eramalbigenses. É chocante descobrir que, de um só golpe, um papa matou mais cristãos doque Diocleciano.

Inocêncio ficou profundamente comovido com a carta de Arnald. Agradeceu a Deus aSua grande misericórdia. Nunca, nem uma só vez, pôs em causa a legitimidade de ummonge matar os hereges e os católicos que os abrigavam. Parecia correcto defender averdade de Cristo pelos mesmos métodos que levaram à sua crucificação.

De Bésiers, os Cruzados marcharam para Carcassonne. Em apenas duas semanastomaram a fortaleza porque o seu comandante caiu numa armadilha ao pedir a paz.Arnald prendeu-o simplesmente. Ao escrever ao papa sobre esta segunda vitória, olegado pediu muitas desculpas pelo facto de não ter matado ninguém. Outra cidade emchamas, explicava ele, teria privado a força expedicionária de fundos. Deixou sair oshabitantes — com os seus pecados como única roupa — com um salvo conduto de umdia. Se fossem recapturados seriam mortos.

Page 152: Vigde cristo

152

Para o lugar do Conde de Carcassonne, o legado escolheu um cavaleiro normando,Simão de Montfort. De meia idade, Montfort tinha lutado corajosamente na QuartaCruzada, em 1199. A sua nova missão de manter a paz foi magnífica. Muitos homensestavam a abandoná-lo depois de cumprirem os quarenta dias regulamentares. Iam empaz sabendo que os seus pecados tinham sido perdoados e que tinham entradagarantida no Paraíso. Deixavam para trás duas grandes vitórias, mas nem uma sóconversão.

Com uma força esgotada, mas unida, Monfort sentiu-se obrigado a tratar toda aregião como herética. Com base nos princípios católicos, sentia-se à vontade paraexterminar tantas pessoas quantas pudesse. O legado desencorajou-o de fazerprisioneiros.

Em Bram, em 1210, Monfort, depois de tomar o castelo, não chacinou os prisioneiros.Homens mortos não fazem bons mensageiros. Mandou que os soldados lhes cortassemo nariz e arrancassem os olhos. Deixaram um olho a um de modo a poder guiar osrestantes. Cada um deles punha a mão no ombro do da frente e, qual gigantescoinsecto ensanguentado e lamuriento, dirigiram-se para Cabaret para aí incutir noacampamento o temor a Deus.

Em Junho do mesmo ano, Monfort cercou Minerve. Quando esta se rendeu, Monfortmandou 140 perfecti para um prado fora da cidade. Não lhes foi lida qualquer acusação;não houve julgamento nem sentença. Juntaram lenha a que atearam o fogo. Ossoldados prepararam-se para empurrar os hereges para a fogueira como porcosinfectados. Mas como observou o obtuso cronista cisterciense Vaux de Cernay: «Osnossos homens não precisavam de os atirar; não, estavam todos tão obstinados na suamaldade que se atiravam voluntariamente». A rezar, os hereges correram calmamentepara a morte. O ar estava pesado com o cheiro de carne queimada, mas das vítimas,nem grito, nem choro.

Isto, que foi a primeira grande queima de hereges, foi feito sob o olhar da Igreja ecom a sua bênção.

Depois, os Cruzados foram para Lavour. O Conde, Roger, foi enforcado e oitenta dosseus cavaleiros queimados. A irmã do conde, conhecida pelo seu espírito caritativo, foiatirada viva para um poço e enterrada sob as pedras. Depois, 400 perfecti foramlevados para fora da cidade e queimados numa grande pira funerária. Vaux de Cernayregistou para benefício do papa: «Cum ingenti gaudio combusserunt» (Atearam-lhes ofogo com imensa alegria»). Estavam tranquilos, porque sabiam que tinham a bênção deSua Santidade.

Só um dos perfecti renunciou à sua fé. Eles eram pacifistas. Morreram comdignidade, sem se queixarem. O massacre de Lavour foi o mais brutal daquela longaCruzada.

O papa mantinha-se informado de todos os passos. Uma carta sua para Monfortcomeçava com «Glória e graças a Deus por aquilo que Ele realizou através de vós edesses outros a quem o zelo pela fé ortodoxa animou para esta obra contra os seusmais pestilentos inimigos».

Não há dúvida de que Inocêncio sancionou previamente tudo o que foi feito por estemilitar, a quem ele chamou no Quarto Concílio de Latrão, no ano de 1215, «essecorajoso cavalheiro cristão».

A lição da Cruzada

Inocêncio e Monfort morreram no ano seguinte com apenas meses de diferença. Em1226, depois de dezoito anos em que morreram centenas de milhar, a Cruzada chegou

Page 153: Vigde cristo

153

ao fim. Em sentido profundo, ela nunca acabou de facto. Apesar de todas as palavrasbonitas do Concílio de Latrão, a Igreja tinha sofrido a sua derrota mais terrível.

Sob Inocêncio, a desobediência a qualquer aspecto do sistema papal eraimperdoável. O lascivo Arcebispo de Narbonne era um modelo de perfeição quandocomparado com os perfecti que viviam altruisticamente e morriam no espírito de Cristo.O seu maior crime era que eles não manifestavam ao papa o respeito que lhe eradevido como Vigário de Cristo.

A Cruzada de Inocêncio revela a profundidade do sentimento da Igreja em relação àheresia e até onde ela irá para lidar com a questão.

Outra lição desse período é que na tradição católica a verdade é primordialmenteverbal; a sua principal preocupação são as fórmulas ortodoxas. Inocêncio, em particular,nunca pareceu entender que a mais profunda e perversa das heresias é a negação doEvangelho, a renúncia, na prática, do Sermão da Montanha. Não teve quaisquerescrúpulos em utilizar o nome de Cristo para fazer tudo aquilo a que Cristo se opunha.Na opinião de Inocêncio, era pior os Albigenses chamarem-lhe Anti-Cristo do que elepróprio provar sê-lo queimando-os, homens, mulheres e crianças, aos milhares.

As realizações de Inocêncio eram ilusórias. Languedoc acabou por ficar uma regiãodesertificada; as pitorescas tradições da Provença foram irrevogavelmente destruídas.Mas a heresia não morreu; passou à clandestinidade. Tanto assim que a Igreja perdeunão só a sua inocência, como também a batalha pelo espírito e coração do povo.

Em vez de pedir perdão a Deus pelos seus crimes sem paralelo, o papado encetaracom firmeza o caminho da violência. Para extirpar a heresia no futuro, a Igreja iriaprecisar não de um grande exército mas de pequenos grupos de homens igualmentecruéis que viajassem por toda a Cristandade em busca dos descrentes, reais ouimaginários. Estes homens foram chamados de inquisidores e foram responsáveis, emnome do papa, pela investida mais selvática e desenfreada contra a dignidade humanada história da raça.

O longo reinado do terror

O terror começou a sério com Gregório IX, que subiu ao trono papal no ano de 1227.Conde de Segui, membro da família Conti de Inocêncio III, tinha então mais de oitentaanos de idade.

Dois anos mais tarde, no Concílio de Toulouse, no Languedoc, Gregório decretouque os hereges tinham de ser entregues ao braço secular para castigo. «É dever detodo o católico» disse ele «perseguir os hereges».

O Imperador Frederico, um descrente, tornou-se um feroz defensor da ortodoxia paraagradar ao papa. Gregório aprovou toda a sua legislação contra os hereges,acrescentando-lhe alguns toques cruéis de sua própria autoria. No ano de 1232, deu opasso decisivo.

Nasce a Inquisição

Publicou uma Bula que estabelecia a Inquisição. Os bispos eram demasiado brandose, de qualquer maneira, não tinham tempo nem talento para desempenhar a tarefacabalmente. Os hereges, isto é, todos aqueles que se opunham às decisões papais,

Page 154: Vigde cristo

154

deviam ser entregues às autoridades civis para serem queimados. Se searrependessem, cumpririam uma pena de prisão perpétua. Jamais um papa empunhouo archote do terror com mais entusiasmo.

Em Abril de 1233, limitou os inquisidores aos membros das ordens mendicantes, epouco depois, os Dominicanos tomaram essa honra para si próprios. O dia 27 de Julhode 1233 foi um dia memorável para o pontífice: foram nomeados os dois primeirosinquisidores a tempo inteiro — Pedro Seila e Guilherme Arnald. Foram os primeiros deuma longa série de perseguidores serenos e imperturbáveis da raça humana. Comosketch de abertura, em 1239, dois anos antes da morte de Gregório, o DominicanoRoberto le Bougre foi a Campagne investigar um bispo de nome Moranis. Este eraacusado de permitir que os hereges vivessem e se espalhassem pela sua diocese.Numa semana, o Padre Roberto tinha já posto toda a cidade em julgamento. Em 29 deMaio mandou 180 pessoas, incluindo o bispo, para a fogueira.

Era o regresso à barbárie. Ainda em 384, um sínodo em Roma denunciou o uso datortura e Gregório o Grande no século VI ordenou aos juizes que ignorassem ostestemunhos prestados sob coacção. Mesmo na Alta Idade Média, Nicolau I tinhacondenado a tortura como violação da lei divina.

Já desde o tempo de Gregório VII, porém, que o fanatismo se insinuara no papado.Uma vez que o papa não pode cometer erros, tem de ser cegamente obedecido emtodas as coisas, por mais triviais que sejam. Entre 1200 e 1500, uma série de leispapais desfez todos os matizes de divergência na fé e na disciplina. A contribuição deInocêncio IV na sua Bula Ad Extirpanda foi a de permitir que a Inquisição usasse atortura. A partir de então, qualquer desobediência, mesmo em pensamento, era punível.Os maus pensamentos ameaçavam a unidade da Igreja, que foi criada com base nalealdade ao Vigário de Cristo.

A História não dá cobertura à opinião de que a Igreja Católica sempre defendeu osdireitos do homem. No século XIII, a Igreja chegou mesmo ao ponto de ensinar aquiloque a Igreja primitiva condenava: os hereges não têm direitos. Podem ser torturadossem quaisquer escrúpulos. Tal como os traidores do Estado, os hereges punham-se àmargem da misericórdia da lei. Devem ser executados.

Durante mais de três séculos, não houve um só papa que se opusesse a estesensinamentos, que, portanto, deviam legalmente fazer parte da doutrina católica.Através dela, a Inquisição adquiriu um poder sem precedentes. O resultado foi aintimidação generalizada daqueles que não tinham qualquer protecção contra aacusação ou até a mais leve suspeita de heresia.

Tudo é permitido

À Inquisição medieval tudo era permitido. Os Inquisidores Dominicanos, sendo denomeação papal, não estavam sujeitos a ninguém, a não ser a Deus e a Sua Santidade.Estavam fora da jurisdição dos bispos e da lei civil. Nos Estados Papais eram eles a lei,agindo como acusadores e juizes. O seu prinípio-guia era o seguinte: «É melhor quemorra uma centena de pessoas inocentes do que deixar um só herege vivo».

Agiam arbitrariamente e em total secretismo. Qualquer dos presentes nointerrogatório — a vítima, o escrivão, o executor — que quebrasse o silêncio incorrianuma repreensão que só o papa podia levantar. Os inquisidores, tal como o papa, nãopodiam enganar-se ou agir mal.

Por ordem papal, estavam explicitamente proibidos de ter misericórdia para com assuas vítimas. A piedade era anti-cristã em tudo o que estivesse relacionado com a

Page 155: Vigde cristo

155

heresia. Eram informados de que Sua Santidade assumiria ele próprio qualquer culpaem que eles incorressem se ultrapassassem as marcas inadvertidamente. Tal como asSS nazis no século XX, podiam torturar e destruir tranquilamente porque o seu oficialsuperior — neste caso, o papa — lhes assegurava que os hereges eram um inimigosujo, doente e contagioso, que tinha de ser expurgado a todo o custo e por todos osmeios.

A tortura era usada livremente. Apenas um século antes, havia em exposição naCasa Papal da Esquina, um Livro Negro, Libro Nero, que era o guia dos inquisidores.Este manuscrito em forma de in-fólio, continha as recomendações do Grande Inquisidor.Era popularmente conhecido por O Livro dos Mortos. Eis parte do que nele se podia ler:

A pessoa ou confessa e a confissão prova a sua culpa, ou nãoconfessa e é igualmente considerada culpada pelo depoimento dastestemunhas. Se uma pessoa confessa tudo aquilo de que éacusada é inquestionavelmente considerada culpada de tudo; masse ela confessa apenas uma parte tem de ser, mesmo assim,considerada culpada de tudo, porque aquilo que confessou é a provade que pode ser culpada em relação aos outros pontos da acusação.[…] A tortura física sempre foi considerada como o caminho maissalutar e mais eficiente para o arrependimento espiritual. Portanto,cabe ao Juiz da Inquisição escolher o tipo de tortura mais adequadode acordo com a idade, o sexo e a constituição do acusado. […] Se,apesar de todos os meios empregues, o infeliz continuar a negar asua culpa, deverá ser considerado como vítima do demónio: e, comotal, não merece compaixão da parte dos servidores de Deus, nem apiedade e indulgência da Santa Madre Igreja: é um filho da perdição.Que morra, pois, entre os condenados.

Seria difícil encontrar documento tão contrário aos princípios da justiça natural. Deacordo com o Livro Negro, um filho deve denunciar os pais, uma mãe deve denunciarum filho. Não proceder assim é um «pecado contra o Santo Ofício» e merece aexcomunhão, isto é, a exclusão dos sacramentos e, se não houver emenda, a exclusãodo Céu.

Ao aplicar a tortura, os inquisidores medievais estavam proibidos de mutilar ou matar.Mas, naturalmente, os acidentes acontecem. Muitas vezes partiam-se braços e pernas earrancavam-se dedos das mãos e dos pés. Se uma vítima ficava sem dois dedos, nãoera caso para interromper as investigações.

A regra, conforme estava especificada em decreto papal, era a seguinte: A tortura sópode ser usada uma vez. Como não se estabelecia qualquer limite temporal, ninguémsabia o que é que “uma vez“ queria dizer. Uma vítima que não confessasse era deixadaem paz por alguns dias até recuperar física e mentalmente. Como ficava incomunicável,agrilhoada, ao frio, na escuridão, no meio dos seus próprios dejectos e alimentada apequenas quantidades de pão e água, a tortura era considerada, talvez correctamente,como tendo sido contínua.

Um aspecto notável da Inquisição medieval era que as testemunhas podiam sertorturadas. As crianças do sexo masculino com menos de catorze anos e feminino commenos de doze estavam dispensadas.

Qualquer pessoa que se recusasse a testemunhar ou se queixasse de ter detestemunhar era considerada como tendo inclinações heréticas. Houve casos de

Page 156: Vigde cristo

156

famílias inteiras que foram torturadas para as obrigarem a incriminar um dos seusmembros.

Uma faceta macabra deste tribunal era que podia julgar até os mortos. O SextoConcílio Geral no ano de 680 declarara que a Igreja pode anatemizar os hereges vivose mortos. Como vimos, o Papa Formoso foi exumado por duas vezes e excomungado.Isto lançou uma moda. Os inquisidores desenterravam os corpos e julgavam-nos. Senão conseguiam encontrar os corpos que procuravam, julgavam-nos à revelia. Depoisde ditada a sentença dos mortos, fazia-se uma fogueira com os ossos. Centenas demortos foram julgados desta maneira. Alguns já tinham morrido há trinta ou quarentaanos; um deles tinha sido enterrado setenta e cinco anos antes.

Isto mostra que ninguém devia subestimar a disposição da Igreja em perseguir oshereges até à morte e, se preciso fosse, para além desta. Esta prática também permitiaaos inquisidores apoderarem-se de todos os bens dos mortos. Quando um cadáver eraconsiderado culpado, os seus antigos bens eram confiscados. Os herdeiros perdiam aherança. Acontecia muitas vezes que um filho, católico irrepreensível, podia descobrirque, depois da condenação póstuma do pai ficava privado não só dos seus bens mastambém de todos os direitos civis. E tinha sorte em ficar com vida, num especial acto declemência papal.

Os inquisidores eram pagos com a colheita da confiscação. Portanto, eram maistemidos pelos ricos do que pelos pobres. Havia vários métodos para dividir os despojosmas, depois de pagas as despesas dos escribas e dos carrascos, metade dos restantesrevertia geralmente para os cofres do papa e a outra metade para os inquisidores.Alguns papas, como Nicolau III (1277-80), fizeram uma fortuna.

Os inquisidores mais temíveis eram os incorruptíveis; torturavam pura esimplesmente por amor de Deus. Não tinham quaisquer interesses financeiros; talcomo, mais tarde, Himmler e Heydrich, agiam somente por amor à causa. O próprioascetismo da maioria destes piedosos Dominicanos tementes a Deus tornava-ospatologicamente cruéis. Habituados ao auto-flagelo, sentiam um desejo ardente deflagelarem os outros. Os gritos das suas vítimas eram uma espécie de música teológicapara os seus ouvidos, uma prova de que Satanás estava a levar uma coça. Também sedeleitavam como crianças com a benevolência do papa para com eles; este concedia-lhes as mesmas indulgências que concedia aos cavaleiros que iam para as Cruzadas.

Os inquisidores nunca perderam uma única causa. Não há registo de qualquerabsolvição. Quando, muito raramente, o veredicto era Não Provado, nenhum eraconsiderado inocente. Não interessava se o acusado não era realmente consideradoculpado de heresia. Fosse como fosse, os inquisidores acreditavam que apenas umaem cada cem mil almas escaparia à condenação.

As vítimas

A provação kafkiana das vítimas começava com um bater à porta durante a noite. Ohomem da família, por exemplo, em França, na Itália ou na Alemanha, levantava-se dacama e à porta dava de caras com o Chefe da Polícia, guardas armados e umdominicano. A partir daí, não lhe restava qualquer esperança.

Levado para a Casa Santa, era acusado de heresia. A sua culpa era presumida,embora a política fosse a de nunca lhe dizer quais eram as acusações e ele fosse

Page 157: Vigde cristo

157

proibido de perguntar. Em fase nenhuma lhe era permitido fazer perguntas. Em breveficava a saber que lhe iria ser negado qualquer arremedo de justiça.

Só e sem amigos, era-lhe negada a representação legal. Aliás, nenhum advogado seatrevia a defendê-lo. Uma vez que não se conhecia qualquer caso de absolvição, umadvogado mal sucedido arriscava-se a ficar, ele próprio, marcado como herege.Também ele seria provavelmente excomungado e entregue ao braço secular.

Não eram permitidas testemunhas de defesa. Todas as testemunhas de acusação —a sua identidade era mantida em segredo em relação ao prisioneiro — tinham igualestatuto. Entre elas podiam estar os criados do acusado que ele despedira por roubo ouincompetência. Podiam ser pessoas a quem os tribunais civis recusavam depoimentos:perjuros condenados, os excomungados, os hereges. Alguns depoimentos não erammais do que boatos ou coscuvilhice. Maníacos, pervertidos, pessoas ressentidas ou quequeriam vingar-se, todos eram aceites. E o mais triste de tudo é que as testemunhaseram muitas vezes membros da própria família do acusado a quem diziam que, nãohavendo para ele qualquer esperança, a completa franqueza facilitaria a vida ao restoda família.

Não era permitido qualquer recurso da sentença. Que tribunal poderia ser superioràquele que agia em nome do papa?

À catolicidade dos testemunhos correspondia uma catolicidade de acusações. Aheresia era um conceito fluido. Qualquer coisa minimamente em oposição ao sistemapapal era «contra a fé».

As declarações dos pontífices medievais criaram este clima opressivo. Isto começou,evidentemente, com a de Gregório VII: «O papa não se engana». Pascal II (1073-85),citando uma carta forjada que sustenta todo o sistema de Santo Ambrósio, disse:«Quem quer que discorde da Sé Apostólica é, sem dúvida, herege». Lúcio III (1181-5)determinou que todas as divergências entre os católicos deviam ser pecados gravesporque negam a autoridade do papa que sustenta todo o sistema. Inocêncio III (1198-1216) disse que aqueles que tomavam a palavra de Jesus à letra e limitavam o seudiscurso a Sim ou Não eram hereges e merecedores da morte. Inocêncio IV (1243-54),numa espécie de clímax a esta apoteose, descrevia-se como «praesentia corporalisChristi» (a presença corpórea de Cristo), presumivelmente por uma espécie detransubstanciação na altura da sua eleição. Qualquer pessoa que mostrassedesrespeito por ele ou pelos seus decretos era, naturalmente, herege. Bonifácio VIII(1294-1303), para não ficar atrás, estabeleceu como doutrina católica que «todo o serhumano tem de fazer o que o papa manda». Armados desta elástica noção daquilo quecontradizia a fé, os inquisidores prendiam as pessoas por comerem carne à sexta-feira,ignorarem as obrigações pascais, lerem a Bíblia, dizerem que é pecado perseguiralguém por razões de consciência, dizerem mal de um clérigo — padre ou bispo.Qualquer zombaria sobre Sua Santidade era considerada uma ofensa indiciável, mesmoquando feita por um homem embriagado. Qualquer afastamento da vida da comunidadeera prova de heresia e merecedora de morte. De tudo isto se conclui claramente que oobjectivo da Inquisição era defender, não a fé, mas o sistema papal. Como concluiuuma vítima da Inquisição: «É mais seguro discutir o poder de Deus do que o poder dopapa».

Outras acusações de heresia eram o sacrilégio, a blasfémia, a bruxaria, a sodomia, onão pagamento dos impostos ao papa e ao clero, dizer que a usura não é pecado.Qualquer pessoa baptizada que não acendesse uma fogueira num Sabbath friopresumia-se que era um judeu convertido merecedor de morte na fogueira.

A máxima injustiça era ser acusado de pensar heresia. Para a Inquisição, a ortodoxianão era só falar e agir de maneira ortodoxa (isto é) papal; era também pensar como o

Page 158: Vigde cristo

158

pontífice queria que uma pessoa pensasse. Se, sob tortura, um prisioneiro provasse quenunca tinha dito ou feito qualquer coisa herética, podia ainda assim ser castigado pelosseus pensamentos, as suas dúvidas, as suas tentações.

O processo

Logo que chegavam a uma cidade, os inquisidores apresentavam-se às autoridadescivis para mostrar as suas credenciais. Em nome do papa, ordenavam ao governadorque cooperasse com eles, aceitasse o seu veredicto sobre o acusado e executasse ojulgamento.

O clero local era obrigado a reunir o seu povo na igreja, onde os inquisidorespregavam contra o pecado da heresia. Davam à congregação em pânico um período degraça — uma semana ou mais — para avançarem e confessarem os seus crimes. Podiaser heresia ou associação com hereges, tais como os pais ou os filhosdesencaminhados. Se confessassem voluntariamente, recebiam um ligeira penitênciacanónica. Depois do sermão, os dominicanos iam para os seus alojamentos e ficavam àespera. Umas vezes, ninguém se apresentava; outras, como em Toulon em 1245-6,vinham oito a dez mil confessar. Contrataram-se mais escrivães para se ocuparemdeles. Geralmente os informadores dirigiam-se aos alojamentos dos dominicanos acoberto da noite. Com a garantia do anonimato em nome do papa, qualquer fanático,qualquer vilão se sentia à vontade para mentir como quisesse.

O tribunal era formado por um ou dois inquisidores, duas ou mais testemunhas e oselementos do pessoal dos inquisidores. Todos eles estavam encapuzados.

A frase constantemente na boca dos juizes era: «Diz a verdade». Sempre que oprisioneiro pedia um esclarecimento, o inquisidor respondia fria e calmamente: «Diz averdade».

Logo que se tornava evidente que o acusado não iria confessar espontaneamente,era levado para a masmorra onde o verdugo já tinha os instrumentos prontos. Asentença de heresia era lida sob um crucifixo, após o que o carrasco despia oprisioneiro e o atava a um cavalete. «Diz a verdade por amor de Deus», recitava oinquisidor ritualmente, «porque os inquisidores não desejam ver-te sofrer».

Com todas as partes do corpo acessíveis, atavam-lhe cordas à volta das coxas e dosbraços. Passavam-lhe um cinto à volta da cintura e cordas a ele ligadas que lhepassavam pelos ombros da frente para trás. De cada vez que as cordas eramapertadas, o dominicano interrompia a recitação do rosário em honra da Virgem e dizia:«Diz a verdade». Se o prisioneiro era teimoso, metiam paus dentro das cordas parafazer um garrote. O efeito era como o de um torniquete em vários membros ao mesmotempo. Muitas vezes utilizavam o strappado. A vítima era colocada sobre uma roda eiçada do chão, às vezes até ao tecto. Mas havia uma tortura pior que todas as outras.

A tortura da água

Um caso suave de tortura da água foi descrito em pormenor por Henry Charles Leana sua incontornável obra em quatro volumes intitulada History of Inquisition in Spain(1907).

Elvira del Campo foi presente ao tribunal de Toledo no ano de 1568. Era uma mulherjovem e estava grávida quando foi presa em Julho do ano anterior. O bebé nasceu naprisão, em Agosto, mas não se sabe o que lhe aconteceu. A acusação contra ela eraque nunca comia carne de porco e que mudava de roupa interior ao sábado. Apresunção era que ela era cripto-judia.

Page 159: Vigde cristo

159

Elvira era cristã, casada com um cristão. O pai era cristão também, mas a mãe tinhaantepassados judeus. Quando Elvira tinha onze anos, a mãe inculcou-lhe uma aversãoà carne de porco; mais tarde, quando tentava comê-la ficava enjoada. A mãe também aensinou a mudar de roupa interior ao sábado. Para a rapariga, nada disto tinha qualquersignificado religioso.

Dois trabalhadores que estavam hospedados em sua casa denunciaram à Inquisiçãoos seus “hábitos judeus“. Provavelmente não houve aqui maldade premeditada. Elesreceavam ser automaticamente excomungados se não denunciassem comportamentossuspeitos. Por falarem até ganhavam três anos de indulgências. As testemunhasconcordaram que Elvira era caridosa para com toda a gente, ia à missa e confessava-seregularmente.

O processo iniciou-se em 6 de Abril. Para o interrogatório estavam presentes doisdominicanos e um vigário episcopal. Avisaram-na de que seria torturada caso nãodissesse toda a verdade. Ela insistia que não sabia nada. Caindo de joelhos implorouque lhe dissessem o que queriam que ela dissesse, que ela o diria de boa vontade. Osinquisidores repetiram-lhe que ela sabia perfeitamente o mal que tinha feito. «Diz averdade».

Sempre a protestar a sua inocência, foi levada para a câmara de tortura e totalmentedespida. Deram-lhe zaraguelles, também chamados panos de verguenza, um pequenopar de calções para cobrir as partes.

«Señores», gritou ela, «Eu fiz tudo isso que disseram de mim e prestei falsostestemunhos contra mim mesma».

Mas isto não satisfez os juizes. «Diz a verdade».Tinha os braços presos e as cordas torciam-nos dolorosamente.«Eu fiz tudo o que eles dizem», declarou Elvira.«Queremos os pormenores»«Não comi carne de porco por que ela me fazia mal, señores. Eu fiz tudo; soltem-me

e eu digo a verdade. […] Mas digam-me só o que é que eu tenho de dizer».Esticaram-lhe as cordas até ela gritar que lhe estavam a partir os braços. À décima

sexta volta as cordas estalaram. A um sinal do inquisidor, o carrasco transferiu-a para opotro, um cavalete com travessas afiadas, como uma escada de pedreiro. O cavalete foiinclinado de maneira que a cabeça da vítima ficasse mais baixa do que os pés.Enquanto a fixavam nessa posição, os garrotes nos membros eram apertados.

«Señores», pediu ela, «recordem-me aquilo que eu não sei. […] Estão a despedaçar-me a alma».

«Diz a verdade».«Violei a lei», disse Elvira em desespero.«Qual lei?»«Não sei, señor. Diga-me o señor».Outro sinal com a cabeça e o carrasco abriu-lhe a boca com um bostezo, uma ponta

de ferro. Enfiou-lhe uma toca, um pedaço de linho, pela garganta abaixo. «Tira-meisso», gritou ela, «Estou a sufocar, e sinto um enjoo no estômago».

De um jarro, o carrasco despejou lentamente água para a toca, fazendo com quepingasse para a garganta. Alguns prisioneiros levaram seis a oito jarros e acabaram porsufocar. Elvira tentou dizer que estava a morrer. Quando lhe tiraram a toca, ficoucalada, ou porque não tinha nada a dizer ou porque não conseguia falar. A tortura foisuspensa por quatro dias.

Nessa altura Elvira tinha já os braços e pernas rígidos. Fechada numa celaincomunicável, crescera-lhe o terror na antecipação do que seria a sessão seguinte. Mal

Page 160: Vigde cristo

160

tinha regressado à câmara de tortura, desfaleceu, pedindo que lhe cobrissem a nudez.Daí para a frente, as suas palavras tornaram-se quase sempre incoerentes.

No fim, os inquisidores conseguiram arrancar-lhe a confissão de que a sua recusa emcomer carne de porco e a mudança de roupa ao sábado eram prova do seu judaísmo.Quando percebeu o que lhe era exigido, confessou com alívio a sua apostasia eimplorou por misericórdia.

Um dos juizes propôs que fosse queimada. Era a pena máxima. Os clérigos podiamsancionar a pena da fogueira, mas evitavam a espada por causa da interdição bíblica doderramamento de sangue. Os prisioneiros que se arrependessem ficavam com os seusbens confiscados e eram presos. Se era prisão perpétua nas masmorras da Inquisição,a pena seria curta, devido às condições nelas existentes. Nalguns casos, a pena deprisão tinha uma duração determinada. A pena mínima era a “Cruz da Infâmia”. Duascruzes de feltro amarelo eram cosidas nas partes da frente e de trás de todas as roupasusadas pelos acusados. Isto era a garantia de que seriam tratados como párias.

Elvira não foi queimada. A maioria dos juizes foi a favor da clemência. Ela já tinhapassado mais de um ano no cárcere. Os seus bens foram confiscados; ordenaram-lheque envergasse o manto da vergonha; foi condenada a passar mais três anos na prisão.Por qualquer razão, insanidade mental, talvez, foi libertada seis meses depois. O casofoi encerrado.

O caso de Elvira del Campo deve ser representativo de muitos milhares de vítimas.Cristã devota, ela foi presa e torturada sem misericórdia pelos representantes do papa,em nome do papa. O seu único crime foi fazer aquilo que Jesus fez durante toda a suavida.

A Inquisição Espanhola

A Inquisição a cujas mãos Elvira tanto sofreu foi autorizada em Espanha por Sisto IVno ano de 1480. Quando Fernando e Isabel derrotaram os Mouros, muitos mouros ejudeus, para escaparem ao castigo, converteram-se ao Cristianismo. Os monarcastemiam que eles não fossem verdadeiros cristãos e representassem por isso umaameaça para o Estado. Pediram portanto ao papa autorização para estabelecer aInquisição nos seus territórios. O mais famoso de todos os Grandes Inquisidores foi ofrade dominicano Tomás de Torquemada. Nomeado em 1483, reinou tiranicamentedurante quinze anos. As suas vítimas contam-se em mais de 114000, das quais 10220foram queimadas. Muitas outras foram condenadas a prisão perpétua.

Prior do Convento de Santa Cruz em Segóvia, Torquemada, confessor da RainhaIsabel, vivia santamente. Jejuava frequentemente, nunca comia carne, e recusou alucrativa Sé de Sevilha. Vivia num palácio, com 250 criados e mantinha cinquentacavaleiros. Estes eram provavelmente os seus guarda-costas — ele bem precisavadeles.

Não era nenhum sádico. Mandou queimar milhares de pessoas mas nunca assistiuao sofrimento das suas vítimas. Era um odium estritamente teológico; ele agiaabsolutamente por amor a Cristo e devoção ao papa. Uma vez, quando suspeitou queFernando e Isabel se preparavam para deixar ficar no reino alguns judeus ricos pordeterminado preço, irrompeu na sua presença brandindo um crucifixo. «Judas vendeuCristo por trinta dinheiros» trovejou ele. «Vão V. Magestades vendê-lo por mais?»

O curioso é que, se este flagelo dos Judeus vivesse no século XX, os Nazis tê-lo-iammandado para a câmara de gás, pois o Irmão Tomás de Torquemada tinha uma avójudia.

Page 161: Vigde cristo

161

Llorente, secretário da Inquisição em Madrid de 1790 a 1792, em História daInquisição, estimou em trinta mil o número de pessoas que tinham sido mortas emEspanha até então. Durante o reinado de Filipe II, o marido espanhol de Maria aSangrenta, calcula-se que o número de vítimas da Inquisição tenha ultrapassado emmuitos milhares o de todos os cristãos que sofreram sob os imperadores romanos.

Alguns historiadores católicos, como Maistre, são de opinião de que a Inquisiçãoespanhola era uma instituição puramente política. O fundamento disto é que os papasnunca se sentiram satisfeitos com ela. Mas isto devia-se principalmente ao facto de elesquererem o controlo absoluto, sem o qual os seus lucros diminuíam, porque, comoobservou Pastor em History of the Popes, se tratava de «uma instituição mista, masprimordialmente eclesiástica». Aqueles que eram condenados eram entregues ao braçosecular; isto não teria sido necessário se a Inquisição fosse um tribunal civil. Uma provadisto é que nos grandes autos-da-fé o Inquisidor se sentava num trono mais elevado doque o do monarca. Estes “Autos de Fé” eram muito apreciados pelos espanhóis.Charles Lewis, Barão de Pollnitz, faz-nos um interessante relato de um deles nas suasmemórias, publicadas em 1738.

Lewis fora funcionário superior na corte do Rei da Prússia. Era calvinista e converteu-se ao Catolicismo, o que significa que perdeu o emprego. Bem relacionado como era,procurou recompor-se com uma volta pelo mundo, durante a qual manteve um diáriopormenorizado.

Numa Páscoa, encontrava-se por acaso em Madrid durante um auto-da-fé. Viu váriaspessoas acusadas de Judaísmo serem queimadas. Entre elas estava uma rapariga queaparentava entre dezoito e vinte anos. Mais bela não vira nas suas viagens. «Foi para aexecução», escreveu ele, «com a alegria estampada no rosto e morreu com aquelacoragem que tornou famosos os nossos próprios mártires».

Mais tarde, durante a sua visita, quarenta pessoas foram presas numa só noite, entreelas um famoso cirurgião que Lewis tinha conhecido, de nome Peralte. Parece queestava destinado a morrer nas mãos da Inquisição. A mãe tinha-o dada à luz na prisão efora imediatamente levada para ser queimada por ser judia. Aos trinta anos foi acusadode professar secretamente a religião da mãe. Esteve preso três anos. Depois delibertado, foi capturado uma segunda vez. Depois de deixar Madrid, Lewis soube quePeralte tinha sido queimado. Foi como se a prece da sua mãe tivesse sido atendida,porque a estória conta que na fogueira ela pedira a Deus para que um dia o filhomorresse da mesma maneira que ela.

E a conclusão de Lewis é esta: «Ainda bem que eu não estava em Madrid na alturada execução de Peralte, porque eu conhecia-o e, embora ele fosse um verdadeirofanático, no que ao Judaísmo diz respeito, eu considerava-o um dos homens maisrespeitadores do mundo.

Quando Napoleão conquistou a Espanha em 1808, um oficial polaco do seu exército,o Coronel Lemanousky, relatou que os dominicanos se bloquearam no seu mosteiro emMadrid. Quando as tropas de Lemanousky forçaram a entrada os inquisidores negarama existência de câmaras de tortura. Os soldados fizeram uma busca ao mosteiro edescobriram-nas sob os soalhos. As câmaras estavam cheias de prisioneiros, todosnus, muitos já loucos. As tropas francesas, habituadas à crueldade e ao sangue, nãotiveram estômago para o que viram. Evacuaram as câmaras de tortura, espalharampólvora por todo o mosteiro e fizeram-no explodir.

Page 162: Vigde cristo

162

A Inquisição Romana

A Inquisição Romana, distinta da Inquisição medieval que tinha florescido duranteséculos, foi estabelecida por Paulo III em 21 de Julho de 1542. Esta foi a primeira dasCongregações Romanas. Era composta por cardeais, um dos quais, o vulcânico JoãoPedro Carafa, mais tarde Paulo IV, concebeu a ideia. Como um dos inquisidores gerais,ele tinha o poder de mandar prender qualquer pessoa suspeita de heresia, confiscar-lheos bens e executar os culpados.

À sua própria custa, comprou e equipou imediatamente uma casa com osinstrumentos de tortura mais modernos. «Ninguém» dizia ele «pode rebaixar-setolerando os hereges». Outra das suas máximas era: «Se o meu próprio pai fosseherege, eu mesmo juntaria a lenha para o queimar».

Eleito papa em Maio de 1555, estava à vontade para espalhar a sua marca defanatismo. Asceta como Torquemada, odiava os Judeus e fechou-os em guetos, odiavaos sodomitas, que mandou queimar, odiava as mulheres, que proibiu de manchar asportas do Vaticano. Dele disse Ranke que, no fim da sua longa vida «vivia e movia-seno meio das suas reformas e Inquisições, fazia leis, mandava prender, excomungava emandava fazer os seus autos-da-fé; estas actividades preencheram-lhe a vida».

Um dos interesses apaixonados de Paulo era o de reprimir a liberdade depensamento. Como cardeal, queimara todos os livros que considerava perniciosos.Como papa, introduziu em 1559 o Index dos Livros Proibidos. Da lista constavam todasas obras de Erasmo, Rabelais, e até de Henrique VIII, cujos Seven Sacraments tinhasido saudado por Leão X em pleno consistório como se tivesse caído do céu. Proscritofoi também o Decameron de Bocácio, tão querido de Chaucer, «enquanto não fosseexpurgado». Isto era o mesmo que dizer que um livro sobre o mel não podia serpublicado enquanto não lhe fossem retiradas todas as referências às abelhas.

Suprimir o pensamento livre tinha-se tornado mais difícil desde 1450 altura em que oslivros começaram a chover das novas tipografias. A imprensa foi o maior contributo paraa democracia que o mundo jamais vira. O papado não conseguiu então, como maistarde, chegar a um acordo com ela.

Mesmo no campo da censura, o ridículo veio à tona. Em primeiro lugar, Paulo IVrealizou o heróico feito de se pôr a ele próprio no Index. É uma estória bizarra.

Alguns anos antes, Paulo III tinha nomeado meia dúzia de cardeais, liderados porCarafa, para investigar todos aqueles que andavam a desviar-se da ortodoxia e damoral. «Os culpados e os suspeitos» declarou Paulo «devem ser presos e processadosaté à sentença final [a morte]». Carafa cumpriu as ordens à letra. O papa não seperturbou, embora fosse um dos principais candidatos à investigação, com as suasamantes, filhos ilegítimos e as ofertas de chapéus vermelhos ao neto e a dois sobrinhosde catorze e dezasseis anos.

No Consilium (Recomendação) final dado ao papa, havia de facto críticas explícitasao absolutismo e simonia papais, bem como aos seus abusos na atribuição de bispadosa candidatos indignos deles, e muito mais. Infelizmente para o Vaticano, estedocumento veio a público. Os Protestantes leram-no deliciados, pois era a confirmaçãode tudo aquilo que sempre tinham dito sobre o papado.

Quando Carafa se tornou papa, não teve outro remédio senão pôr no Index esteConsilium que ele próprio tinha escrito.

Outra peça de humor não intencional centra-se no Decameron. Cosimo de’ Medici,fundador da sua dinastia familiar, salientou mais tarde, que esta obra era um textoitaliano clássico raro. Perguntou ao pontífice reinante se havia alguma possibilidade dea mandar retirar do Index. O resultado foi que o impossível aconteceu. Apareceu uma

Page 163: Vigde cristo

163

versão expurgada no reinado de Gregório XIII em 1573. Gregório, que tinha um filho,Giovanni Buoncompagni, a que estava muito ligado e que fez cardeal, tinha um espíritomais aberto do que Paulo IV. A nova versão da obra prima de Bocácio deve sersimultaneamente o livro “porco” mais bizarro e mais recomendado da história. Foiprecedido de uma Bula papal; teve dois Imprimatur, um do Supremo Tribunal daInquisição e o outro do Inquisidor Geral de Florença, e recebeu louvores de várioschefes de estado, incluindo os reis de França e Espanha.

Como explicar tal aclamação? A resposta é que o censor, Vincenzo Borghini, tinhaqualquer coisa de genial. Além de usar a tesoura num ou noutro ponto, fez uma limpezaao livro utilizando um estratagema muito simples: todos os membros do clero quefiguravam no texto de Bocácio foram substituídos por leigos.

* * *

A parte menos divertida do Index é que no tempo de Paulo IV houve uma tal queimade livros que os editores temiam pelo seu sustento. Os autores, para salvar a pele,deixaram de escrever. O livre pensamento e a livre expressão acabaram na Itália papal,para não mais voltar. O efeito disto na Cúria, e por via desta, na Igreja Católica foiincalculável.

Em 1564, o Concílio de Trento preparou um Index mais abrangente. As obras eramcondenadas a dez títulos. Sete anos mais tarde, foi estabelecida em Roma umaCongregação do Index que durante séculos fez sair novas listas das obras proibidas.Poucos clássicos escaparam. Assim a Contra-Reforma foi guiada por uma censuratacanha, cujos vestígios ainda podem ser vistos nos livros católicos com o carimboImprimatur. Um livro de autoria de um membro de uma ordem religiosa traráprovavelmente o nome de cinco censores na guarda. Em tais circunstâncias, entra emacção uma poderosa auto-censura. Este aparelho de repressão tão querido dos regimestotalitários, provocou enormes danos no espírito da informação livre na Igreja. E explicaa razão por que em tantos campos — o da teologia, da Bíblia e mesmo da ciência — acontribuição dos católicos se atrasou em relação ao resto do mundo académico. Numclima de medo, a erudição murchou. Gerações de estudantes, eruditos e bispos foramtambém proibidos de ler livros formativos porque estavam no Index. As falsificações,que tinham contribuído para criar o sistema papal, tais como os Decretais Pseudo-Isidorianos, os textos fabricados que enganaram Graciano e Tomás de Aquino, foramprotegidos pelo Index, pelo menos até 1660, altura em que um erudito francês começoua dizer a verdade sobre eles. Claro que também ele foi posto no Index. Só em 1789 éque Pio VI, em resposta a um pedido dos bispos alemães, admitiu que os Decretaiseram uma falsificação. A confissão vinha nove séculos atrasada. Como escreveu Leaem Studies in Church History (1883):

Não é problema menor o de uma Igreja infalível que não podeabandonar decorosamente qualquer posição anteriormenteassumida. Tendo aceitado os falsos decretais como genuínos, etendo baseado neles as suas afirmações de supremacia temporaluniversal, quando foi obrigada a abandonar a defesa dasfalsificações ficou numa posição escandalosamente falsa. Tersancionado uma mentira desde o século IX ao século XVIII já erabastante mau, mas abandonar os frutos dessa mentira tãoengenhosamente transformada em lucrativa causa era mais do quese podia esperar da natureza humana.

Page 164: Vigde cristo

164

J. H. Ignaz von Döllinger era professor de História da Igreja em Munique nos meadosdo século XIX. Precisamente antes do Vaticano I, publicou The Pope and the Council,onde tenta mostrar como eram falsas e exageradas as afirmações papais deinfalibilidade. Foi posto no Index menos de duas semanas antes do Concílio ter a suaprimeira sessão. Roma sempre achou mais fácil suprimir os argumentos do queresponder-lhes.

O Index foi finalmente extinto por Paulo VI ao fim de mais de quatro séculos. Corria oano de 1966.

A Inquisição Romana continuou as suas actividades abertamente bárbaras até umadata já bem dentro do século XIX. No ano de 1814, depois de libertado do seu cativeirofrancês, Pio VII reintroduziu a Santa Inquisição para «a blasfémia, a imoralidade, asatitudes de desrespeito para com a Igreja, a não participação nas suas festas, oincumprimento dos jejuns e especialmente o abandono da verdadeira fé». Em 1829,qualquer pessoa que tivesse consigo um livro escrito por um herege devia ser tratadocomo herege. Assim falou Pio VIII, que decretou que quem quer que ouvisse umapalavra de acusação contra o Santo Ofício e não o denunciasse seria tão culpado comoo infractor e como tal devia ser tratado.

Contudo, por esta altura as coisas começavam a ficar mais fáceis. A Inquisição foisuprimida em Espanha em 1813. Três anos mais tarde Pio VII proibiu o uso da torturanos tribunais da Inquisição, embora ela tivesse continuado de facto por mais vinte anos.Com um atraso de quase seis séculos, Sua Santidade, «mentor dos valores moraisabsolutos», vira a luz.

Embora as fogueiras fossem agora ilegais, Pio IX, por um édito datado de 1856,ainda permitia «a excomunhão, o confisco, o banimento, a prisão, bem como aexecução secreta em casos hediondos». E a Inquisição também não deixou deexcomungar rapazes e raparigas que não denunciavam os pais por consumirem carneou leite nos dias de jejum ou por lerem um livro que estivesse no Index. Nos EstadosPapais, estes crimes eram puníveis com a prisão.

Precisamente até 1870, os infractores políticos eram julgados por um tribunalespecial, o Santa Consulta. Do julgamento só faziam parte padres e o seu poder eraabsoluto. Na melhor tradição da Inquisição, os acusados nunca eram confrontados comas testemunhas nem tinham direito a um advogado de defesa. Sempre que um dosEstados Papais caía nas mãos dos exércitos da nova Itália e se abriam as prisões,dizia-se que as condições dos prisioneiros eram indescritíveis. Os maus hábitos daInquisição levaram tempo a morrer.

O julgamento dos papas

O currículo da Inquisição seria embaraçoso para qualquer organização; para a IgrejaCatólica é devastador. Hoje, a Igreja orgulha-se, e com muita razão, de ser defensorada lei natural e dos direitos humanos. O papado em particular gosta de se ver como ocampeão da moralidade. O que a história mostra é que, durante mais de seis séculossem interrupção, foi o inimigo jurado da justiça mais elementar. De oitenta papassucessivos do século XIII em diante, nem um só discordou da teologia e do aparelho daInquisição. Pelo contrário, um após outro, todos eles acrescentaram o seu retoque cruelàs actividades desta máquina mortífera.

Page 165: Vigde cristo

165

O que é intrigante é isto: como é que os papas puderam dar continuidade a estaautêntica heresia geração atrás de geração? Como é que eles puderam negar em todaa linha o Evangelho de Jesus, que sofreu, ele próprio um julgamento injusto e, emborainocente, foi crucificado por heresia?

A resposta parece ser esta: uma vez iniciada a Inquisição por um papa comoGregório IX, os pontífices preferiram contrariar o Evangelho a contrariar um antecessor“infalível”, porque o contrário faria ruir o próprio papado.

Os historiadores católicos salientam que a Europa nessa altura era uma Cristandade,uma unidade de Igreja e Estado. A heresia era tanto um crime civil como um pecado. Defacto, todos os príncipes a olhavam como lèse majesté; um herege fazia perigar aunidade do reino e portanto era um traidor.

Isto só prova que a aliança entre a Igreja e o Estado, a que os papas estavam tãoligados, teve efeitos secundários desastrosos. Dessa aliança nasceram as crueldadesda Inquisição. Mas nem isto explica completamente os especiais males do Tribunal quea tornou um paradigma de injustiça: a presunção de que o acusado era culpado; atortura do acusado e das testemunhas e por aí fora.

Alguns historiadores têm tentado absolver os papas dos crimes da Inquisição. Masisto é difícil, porque a raiz do poder dos inquisidores era o conhecimento de que eleseram delegados do papa e agiam inteiramente sob ordens papais. E mais, a extensãode “heresia“ para cobrir todo o afastamento da vida comum foi inteiramente devida aospapas. Como Döllinger observou: «Tanto a iniciação como o cumprimento deste novoprincípio tem de ser atribuído exclusivamente aos papas. Não havia nada na literaturado tempo para lhe abrir o caminho».

Também só aos papas se deve a reintrodução da tortura nos tribunais. Foi preciso oprestígio papal para passar por cima de uma longa tradição civilizada de que a torturaera muito má. Lea escreveu em The Inquisition in the Middle Ages:

Ela [a Inquisição] introduziu um sistema de jurisprudência queinfectou a lei criminal de todas as terras sujeitas à sua influência, efez da administração da justiça papal durante séculos um arremedocruel. Forneceu à Santa Sé uma arma poderosa para oengrandecimento político, tentou monarcas seculares a imitarem oseu exemplo e prostituiu o nome da religião aos mais vis finstemporais. […] O julgamento imparcial da História deve ser o de quea Inquisição foi o fruto monstruoso do zelo errado, utilizado pelaambição egoísta e pela sede de poder para asfixiar as mais altasaspirações da humanidade e estimular os apetites mais baixos.

Os seus defensores, como Maistre, têm argumentado que a Igreja não matouninguém. Os inquisidores entregavam os culpados ao braço secular com um apelo declemência.

Sendo isto verdade, apenas acrescenta hipocrisia à malvadez. E também é irónico namedida em que, quando os Judeus através dos tempos foram acusados de ter matadoJesus, nenhum teólogo alguma vez lembrou que os Judeus não mataram Jesus, masapenas o entregaram ao braço secular.

Não há notícia de caso algum em que um príncipe ou magistrado secular se tenharecusado a punir alguém condenado por heresia pelos frades da Inquisição. Os papasnão fazem segredo disto: qualquer príncipe que não mandasse queimar os heregesacusados pela Inquisição seria ele próprio excomungado e presente ao mesmo tribunalpor heresia. Longe de estarem isentos de culpa, os inquisidores eram ainda mais

Page 166: Vigde cristo

166

culpados por implicarem o poder civil nos seus crimes. O que tornou tão pungente osofrimento dos católicos às mãos da Inquisição foi que eles estavam a ser torturados equeimados, não pelos inimigos da Igreja mas pelos seus mais sagrados defensores aagir às ordens do Vigário de Cristo.

Os defensores da Inquisição poderiam parecer em campo mais seguro quandoargumentam que a Inquisição deve ser julgada à luz dos padrões do seu tempo e nãodos do século XX.

Contudo, a Inquisição não foi só perversa quando comparada com o século XX, foi-otambém quando comparada com o século X e XI, quando a tortura era ilegal e oshomens e mulheres tinham direito a um julgamento justo. Foi perversa quandocomparada com o tempo de Diocleciano, porque nessa altura ninguém era torturado emorto em nome de Jesus crucificado.

Também vale a pena comparar os países que alinharam com a Inquisição comaqueles, por exemplo a Inglaterra, que o não fizeram. Desde Guilherme o Conquistadorque a lei comum na Inglaterra mantinha um saudável desrespeito pela teocracia. Umapessoa presumia-se inocente até prova em contrário. A lei comum garantia oselementos básicos da justiça que a Inquisição negava aos acusados: um homem erajulgado pelos seus pares, as testemunhas podiam falar em seu nome, tinha direito aadvogado em julgamento público. A lei proibia a tortura, sabendo que ela só levava àhipocrisia e ao perjúrio.

Digno de nota é o facto de que um dos poucos prelados com peso bastante paraenfrentar Inocêncio III foi Stephen Langton, um inglês versado em leis. Num brilhantedesafio ao absolutismo papal, escreveu: «A lei natural vincula de igual modo príncipes ebispos; não há que fugir disto. Está fora do alcance do próprio Papa».

A intimidação provocada pela Inquisição era tal que nenhum teólogo, à excepção de“hereges“ como Marsilio de Pádua e Martinho Lutero, ergueu a voz contra ela. Se algumtivesse falado, teria sido imediatamente silenciado. Se algum tivesse escrito contra ela,teria sido censurado previamente. A tirania continuava sem oposição. Nem um só bispodurante todos estes séculos ergueu a sua voz para protestar contra a maneira como oseu rebanho estava a ser destroçado, mais uma prova de que os bispos nesses temposeram marionetas da Santa Sé. Contudo, protestantes como Baltazar Hubmaier tinhamuma cabeça mais lúcida e um coração mais corajoso. Hubmaier escreveu um opúsculointeiro contra a queima dos hereges em 1524. Numa persistente série de propostas,escreveu:

Treze: Os inquisidores são os maiores hereges de todos, uma vezque, contra a doutrina e o exemplo de Cristo, condenam os heregesà fogueira.

Catorze: Porque Cristo não veio para matar, destruir e queimar maspara que os vivos vivam com mais abundância…

Vinte e oito: Queimar os hereges é aparentemente professar Cristo,mas na realidade é negá-lo…

Trinta e seis: É claro para toda a gente, mesmo para os cegos, queuma lei para queimar os hereges é uma invenção do demónio. «Averdade é imortal».

Tentar desculpar o papado pela Inquisição com o argumento dos padrõescontemporâneos peca por outra razão. O papado continuou com a sua má conduta

Page 167: Vigde cristo

167

muito depois de todos os países civilizados da Europa a terem abandonado. Assimcomo a Reforma do século XVI ajudou a purificar alguns aspectos do papado, oliberalismo do século XIX, vigorosamente condenado por Roma, varreu finalmente atirania cruel a que os papas e a Cúria estavam excessivamente ligados.

Há uma última falha ao apelar para padrões de comportamento mais antigos numatentativa de ilibar o papado. Todo o ênfase da doutrina da Igreja Católica Romana hojeé que está acima de considerações temporais e relativizadoras. Outros podem vacilarsobre a contracepção ou o aborto, mas não os Católicos Romanos guiados pelo papa.João Paulo II, por exemplo, afirma ensinar uma moral absoluta, uma moral baseada nalei natural; nem ele, nem o próprio Deus podem mudá-la, uma vez que ela tem as suasraízes e a sua origem na natureza do próprio homem.

Se assim é, como é que os papas podem desculpar os julgamentos moraiscontraditórios, falsos e até perniciosos dos seus muitos antecessores evocando «ospadrões do tempo»?

A Igreja Católica enfrenta uma escolha difícil: ou a sua doutrina é relativa comoqualquer outra, e nesse caso não tem qualquer direito a reclamar que seja ouvida; ou asua doutrina é absoluta, e então o comportamento dos papas e da sua Inquisição étotalmente indesculpável. O que ela não pode fazer é afirmar-se simultaneamente desabedoria absoluta e livre de culpa histórica.

O ulgamento dos historiadores

Em geral, os historiadores não têm sido generosos para com a Inquisição. Lea, umquaker que passou muitos anos da sua vida a examinar as suas actividades, fala deuma « série infinda de atrocidades».

Lord Acton, católico, afirma que foi nem mais nem menos do que «um assassínioreligioso. […] O princípio da Inquisição era homicida». Quanto aos papas, «foram nãosó assassinos em grande estilo, como também fizeram do assassínio uma base legal daIgreja Cristã e uma condição de salvação».

Mesmo depois da Segunda Grande Guerra, G. G. Colton pôde dizer que a Inquisiçãofoi responsável por «as barbaridades legais mais elaboradas, mais difundidas econtinuadas registadas em toda a história civilizada». Nada do que os imperadoresromanos fizeram aos cristãos se pode comparar com a sua perversidade sistemática emextensão ou duração.

O ocultista egípcio Rollo Ahmed, em The Black Art (1971) descreveu a Inquisiçãocomo «a instituição mais feroz e impiedosa que o mundo jamais conheceu. […] Asatrocidades que a Inquisição cometeu constituem a mais blasfema ironia da história dareligião, manchando a Igreja Católica com a morte de vítimas inocentes que eramqueimadas para evitar a máxima Ecclesia non novit sanguinem (A Igreja nuncaderramou sangue)».

Um testemunho mais pungente foi dado por um devoto católico inglês há 140 anos.Robert Richard Madden fez uma visita a Avinhão com um amigo. Deixou as suasimpressões no livro Galileo and the Inquisition. Ficou abalado ao ver a extensão daparte do grande palácio dos papas ocupada pelos tribunais celas e masmorras daInquisição.

Viu a câmara de tortura com o seu dispositivo acústico de paredes irregulares paraabsorver os gritos das vítimas. Esteve na sala dos julgamentos onde os prisioneirosficavam e notou por cima da cabeça «várias aberturas circulares no tecto, de cerca detreze ou quinze centímetros de diâmetro e que comunicam com uma câmara em cima,

Page 168: Vigde cristo

168

onde, diz-se, se instalavam os acusadores e aqueles que tomavam nota por escrito dostrâmites e das respostas dos prisioneiros; estes não os viam, mas cada uma das suaspalavras ficava registada».

O que impressionou Madden como particularmente perverso foi o facto de alguém serjulgado e sujeito a pena de morte e não poder ver nem o acusador nem as testemunhasde acusação, nem ser informado da acusação que lhe era feita.

Como é que qualquer inocência, por mais ousadamente queprocurasse manter-se, podia enfrentar, com alguma confiança, umtribunal secreto deste tipo, por mais justo que fosse? […] Não énossa estrita obrigação reconhecer os escândalos que os nossosministros fizeram cair sobre a nossa Igreja e ver mais com piedadedo que com raiva a separação dos nossos irmãos cristãos […]quando tentaram ver-se livres dos abusos em que a disciplina daIgreja tinha caído?

Madden foi depois para o mais terrível lugar de Avinhão, o lugar onde os alegadoshereges eram queimados. Por uma passagem estreita, entrou numa câmara circular«exactamente como a fornalha de uma fábrica ou chaminé», do feitio de um funil. Tinhacerca de trinta metros de altura, com argolas e barras a que os prisioneiros eramacorrentados. Estes tinham de vestir camisas sulfurosas para arderem melhor. O negrodas paredes testemunhava quantos homens e mulheres sofreram naquele terrível lugar.

Em cima, os papas, como João XXII, fizeram uma fortuna ludibriando os pobres,vendendo benefícios, indulgências e dispensas. Outros, como Clemente VI, divertiram-se entre lençóis de linho marcados a arminho com muitas amantes. Por baixo deles,vítimas sem conto, também nus, gritavam em agonia enquanto eram torturados equeimados, às vezes apenas por comerem carne durante a Quaresma.

Quando saíram para a brilhante luz do sol, o amigo de Madden, David Wire, umbaptista, perguntou: «E agora, Madden, o que é que tu pensas da tua religião?»

Madden pensou bem antes de responder, «Fiquei convencido, Wire, de que deve seruma religião verdadeira, porque se não tivesse nela um princípio divino e vital, nuncapoderia ter sobrevivido aos crimes que foram cometidos em seu nome».

Um católico anónimo disse uma vez: «Seria melhor ser ateu do que acreditar noDeus da Inquisição». Outro lembrou que o próprio Jesus teria sofrido e morrido às mãosdos inquisidores do papa. Ele falou com hereges como a Samaritana; comeu comtaberneiros e prostitutas; atacou os ministros da religião, os escribas e os fariseus; eleaté quebrou o Sabbath ao arrancar e comer milho quando estava com fome.

Não surpreende, portanto, que a Casa da Esquina do papa ainda esteja activa. OCardeal Ratzinger levanta o auscultador e telefona a um padre de Los Angeles a dizer-lhe que acabe com as suas investigações sobre as opiniões dos bispos sobre o celibatoou então que faça as malas e se vá embora dentro de uma hora. Não surpreende quehaja teólogos demitidos dos seus postos de ensino, padres suspensos por contraporemuma doutrina não infalível. Não surpreende que um bispo seja admoestado por agircomo Jesus agiu, servindo os fracos, recusando excomungar qualquer pessoa comsinceridade e amor no coração. À vista de seis séculos de Inquisição, seria maissurpreendente se estas coisas não estivessem a acontecer.

Mas não foram só os hereges que a igreja perseguiu. Também se voltou para duasoutras classes de pessoas, também tidas como odiosas: as bruxas e os judeus.

Page 169: Vigde cristo

169

Page 170: Vigde cristo

170

Page 171: Vigde cristo

171

11A Perseguição às Bruxas e aos Judeus

A superstição sob a forma de feitiçaria e magia foi uma constante na caminhada dohomem da ignorância até ao iluminismo. Na era cristã, a Igreja e o Estado já há muitose tinham aliado para reprimir a crença nas bruxas e o mal que elas podiam provocar.

Deus, argumentava a Igreja, é o Mestre e Senhor absoluto do universo e o seudomínio é total. Satanás é uma realidade, claro. Mas Jesus tinha consagrado o “homemforte” de tal maneira que Satanás não tinha qualquer poder sobre homem ou animal,excepto na medida em que podia tentar os humanos a fazer o mal, ou infectar o seuespírito com as trevas e a ilusão.

Esta sensata abordagem remonta a muito tempo atrás. Nunca houve nos rituais daIgreja nada contra as bruxas. Os cânones da Igreja diziam que os fiéis deviam serensinados sobre a falsidade e a insensatez da bruxaria. Dos que a praticavam, unseram perversos, outros estavam transtornados e todos andavam iludidos. Pensar queas bruxas possuíam poderes sobre-humanos que usavam para fazer mal aos homensera tido como superstição anti-cristã. Os canonistas recorriam ao Concílio de Ancyra, noano de 314, para fundamentarem os seus argumentos. Ancyra, pensavam eles, tinhadoutrinado que a bruxaria é apenas uma ilusão diabólica sem qualquer base narealidade.

Todas as compilações primitivas dos canonistas, Regino, Burchard e Ivo, seguem amesmo linha. Tal como, aliás, o mais influente de todos eles, Graciano, nos seusDecretais, secção 364. Essas bruxas, dizia ele, são loucas que «acreditam e professamabertamente que, a horas mortas da noite, montam certos animais, juntamente com adeusa pagã Diana e uma inúmera horda de mulheres, e nessas horas silenciosas voamsobre vastas regiões do país e lhe obedecem como sua ama».

As pessoas vulgares não eram tão sofisticadas. Então, como agora, ficavamfascinadas com as estórias de feitiçaria, com a astrologia e com os horóscopos.Compravam filtros de amor e amuletos nas feiras, anéis encantados e espelhosmágicos. O Cristianismo nunca erradicou completamente os rituais do antigopaganismo. Daí que os fiéis temessem os cometas e os sinais no céu nocturno, quepagassem a pessoas de aspecto estranho para encontrarem água ou um tesouroescondido com um ramo de aveleira e acima de tudo que temessem as bruxas.

Estas velhas enrugadas às vezes abençoavam, mas quase sempre amaldiçoavam aaldeia criando a devastação. Se lhes recusavam uma esmola, as suas maldiçõesprovocavam danos inimagináveis aos humanos, aos animais e às terras. Atribuíam-lhesa culpa da perda de uma vaca, da morte de um filho ou duma praga de lagartas. Estasbruxas não eram representações inofensivas de um moderno Hallowe’en, emborasimples crianças de medonhas máscaras e gorros de borlas pretas ou vassouras egatos de cartão ainda causem um arrepio numa noite escura. As bruxas reais da AltaIdade Média, sujas e de cabelos desgrenhados, eram uma fonte de infinito terror,mesmo para os padres que as olhavam como rivais em busca das almas das suasgentes.

Page 172: Vigde cristo

172

Por tudo isto, a ortodoxia lançou durante séculos o escárnio sobre a ideia de que asbruxas «têm o poder de mudar os seres humanos para melhor ou para pior, até mesmo,sim, de lhes dar uma forma diferente».

Depois, houve uma grande mudança.

Entra a Inquisição

Gregório IX, que fundou a Inquisição em 1231, foi o principal responsável. Depressacomeçou a receber relatórios dos seus inquisidores no sentido de que as bruxas tinhamcomeçado a multiplicar-se de maneira alarmante. Embora sempre tivesse havido naaldeia, na vila ou na cidade, aquela bruxa ocasional, agora estabelecera-se nahumanidade uma nova maldição terrível. Se estas informações estivessem correctas —e ele nunca duvidou disso — a Igreja não estava a lutar apenas pela sua sobrevivência;estava a lutar pela sobrevivência do mundo.

Nos interrogatórios, grande número de mulheres confessavam que eram bruxas eque se entregavam às mais odiosas práticas de que ele jamais ouvira falar. Um dosseus principais informadores era o sádico padre secular Conrado, oriundo da pequenacidade alemã de Magdburgo. Depois de ver um cisterciense ser queimado por heresia,este asceta concebeu a ideia de que a salvação só pode conseguir-se pela dor. A suamais famosa conversão foi a de Isabel, a viúva de Margrave da Turíngia. Tinha dezoitoanos e três filhos para criar quando Conrad a convenceu a abandonar as crianças e atrabalhar com os leprosos e os indigentes. Para a tornar mais espiritual, mandou-adespir e açoitou-a até o sangue escorrer para o chão. Diria ela depois ao confessor: «Seeste homem me mete medo, Deus como será?»

O Papa Gregório escolheu pessoalmente Conrado para investigar um grupo dehereges chamado os Luciferianos. Por meio da tortura arrancou-lhes a confissão demonstruosidades tais que toda a Alemanha ficou preocupada. Os delírios de lunáticosatormentados eram aceites por Conrado como verdades evangélicas e transmitidas aopapa. Gregório decidiu que estes monstros tinham de ser varridos da terra sem olhar aidades ou ao sexo. Deviam ter feito um pacto com Lucífer, o Príncipe das Trevas,concluiu ele; andavam a poluir a terra.

Conrado trabalhou diligentemente para eliminar tantos hereges quantos pudesse. EmEstrasburgo, mandou queimar oitenta homens, mulheres e crianças. Ninguém foipoupado, nem mesmo bispos. Durante seis anos manteve uma campanha de terror atéser assassinado. A sua obra continuou depois dele no espírito e na legislação deGregório IX.

O pontífice aceitou sem reservas que o demónio aparecia nos sabates das bruxastransformado num sapo, num fantasma pálido e num gato preto. E aí incitava os seusseguidores a entregarem-se às práticas mais obscenas.

Logo que Inocêncio IV aprovou a tortura, as confissões das bruxas começaram atornar-se ainda mais incríveis. Regularmente mulheres velhas eram queimadas nafogueira por confessarem terem tido relações sexuais com Satanás e lhe terem dadofilhos que ninguém vira. Esta falta de visibilidade dos filhos de Satanás tornava-os aindamais ameaçadores.

O Rei de França convenceu o Papa Clemente V (1305-14) a investigar os Cavaleirosdo Templo, uma ordem fundada para proteger o Santo Sepulcro dos Sarracenos. O reiqueria desesperadamente apossar-se das suas terras e dos seus bens. Os Templáriosforam torturados pela Inquisição por heresia, e um deles, com medo da fogueira, gritou:«Eu até era capaz de confessar que matei Deus». O que aconteceu foi mais uma série

Page 173: Vigde cristo

173

de horrores. Confessaram que adoravam um enorme ídolo com a forma de um bodechamado Baphomet. Disseram que o demónio lhes tinha aparecido na figura de um gatopreto e que tinham fornicado com demónios em forma de mulher. Cinquenta e noveCavaleiros do Templo foram queimados num só holocausto.

A credulidade dos papas e os terrores da Inquisição levaram a que a doutrina sobre abruxaria mudasse. Já não era uma simples ilusão de velhas malucas. E com uma novapercepção veio também um crescente pânico. O Anti-Cristo estava em vias de seapossar da terra. Ninguém sabia ao certo quem eram as bruxas nem onde elaspoderiam surgir. Tal como nos modernos romances de ficção científica, os homensacordavam de noite para descobrir que as suas mulheres, que eles conheciam eamavam há anos, eram secretamente bruxas. Os filhos não eram realmente deles, masdo demónio. Nalguns lugares, pensava-se que havia mais bruxas do que não-bruxas,prova de que o fim do mundo se aproximava.

Uma orgia de destruição

Por muito hedionda que tivesse sido do século XIII ao século XV, a caça às bruxasfoi, segundo Lea, apenas o prelúdio de «orgias de destruição cegas e sem sentido quedesgraçaram os cento e cinquenta anos seguintes. Parecia que a Cristandade tinhaentrado em delírio». Um inverno mais prolongado, um atraso nas colheitas significavammais uma queima em massa destas infelizes mulheres.

O que é que desencadeou esta nova onda de fanatismo? A resposta está na Bula doPapa Inocêncio VIII intitulada Summis desiderantes affectibus de Dezembro de 1484. ABula ia contra a longa tradição anterior da Igreja. O palavrório de velhas loucas sobtortura era aceite como parte da fé cristã.

Os homens e mulheres extraviados da fé católica entregaram-se aosdemónios, incubi e succubi [parceiros sexuais masculinos efemininos], e com os seus sortilégios, encantamentos, magias eoutras ofensas malditas, mataram crianças ainda no ventre dasmães e também crias de gado, destruíram o produto da terra […]impedem os homens de realizarem o acto sexual e as mulheres deconceber, e assim os homens não podem conhecer as suasmulheres nem as mulheres receber os seus maridos.

Esta foi a mais clara autenticação da bruxaria. A partir de 1484, quem a negasse,fosse bispo ou teólogo, era classificado como herege. O papa falara; a questão estavaarrumada.

As bruxas agora confessavam sob tortura adquirirem uma Hóstia sagrada, dá-la decomer a um sapo, queimarem o sapo e misturarem as cinzas com o sangue de umbebé, de preferência não baptizado, juntando isto aos ossos pulverizados de umenforcado, com uma pitada final de ervas. O corpo da bruxa era untado com estamistura. Punham-lhe então um pau entre as pernas e levavam-na assim para o ponto dereunião das bruxas.

Por muito fantástico que fosse o testemunho, estas mulheres tinham de serexterminadas. Não é verdade que o Livro do Êxodo declara: «Tu não tolerarás que umabruxa viva»?

Para planear o massacre, Inocêncio delegou toda a sua “autoridade suprema” emdois dominicanos. Estes inquisidores, Heinrich Kramer (Institoris) e James Sprenger

Page 174: Vigde cristo

174

(conhecido como o Apóstolo do Rosário), desenvolveram as suas actividades naAlemanha, o primeiro no norte e o segundo ao longo das margens do Reno. Os doisescreveram em conjunto Malleus Maleficarum, O Martelo das Bruxas, em 1486.Segundo os historiadores, esta obra provocou mais desgraça e morte do que qualqueroutro livro.

Trata-se na realidade de um manual para a descoberta e punição das bruxas.Contém uma teologia completa da bruxaria inultrapassável em absurdidade aoproclamar-se como análise científica. Durante três séculos, esteve na banca de todos osjuizes, na secretária de todos os magistrados. O prefácio das numerosas edições destelivro ameaçador era a Bula de Inocêncio VIII.

“O Martelo das Bruxas”

Os autores afirmam logo de princípio a sua convicção basicamente maniqueísta:Satanás influencia directamente os seres humanos, mesmo ao ponto de lhes mudar aforma e lhes provocar danos permanentes. «Desta maneira» concluem, «eles podemdestruir todo o mundo e provocar o caos total».

Uma das primeiras perguntas deste livro é: As crianças podem ser geradas pelodemónio? A resposta é afirmativa.

As participantes nos sabates das bruxas são para lá transportadas pelo ar montadasnuma vassoura ou num banco ou ainda num demónio em forma de cão ou de bode.Encontram-se com o demónio, que está presente em forma de animal com cornos— veado, bode ou touro. Depois dos mais diabólicos rituais e licenciosidades sexuais,as bruxas têm relações com o próprio Satanás.

Como é que tal relação sexual é possível? Kramer e Sprenger dão a resposta:inseminação artificial.

Os diabos tomam parte na procriação não como causa directa, mascomo causa secundária artificial, uma vez que se encarregam deinterferir no processo normal de cópula e concepção obtendo asemente humana e transportando-a eles próprios.

O diabo incubus desempenha o papel do macho e o diabo succubus o da fêmea nocoito com os humanos. No caso do incubus, «o sémen não nasce propriamente dele,porque é o sémen de outro homem recolhido por ele para este fim». A criança nascidada relação satânica não pode ser considerada filha, em sentido restrito, do diabo; esteapenas procede à inseminação artificial da mulher. O seu objectivo é contaminar oshumanos por via da já contaminada porta do sexo. Não é afinal através do sexo que opecado original, o pecado que aliena de Deus a raça, é transmitido de geração emgeração? Em nenhum outro sítio é mais evidente o ódio do clero medieval à sexualidadedo que em O Martelo das Bruxas. O demónio, impotente para afectar outras esferas daactividade humana, lança um feitiço sobre o sexo e o acto sexual. A razão é esta: «Opoder do demónio reside nos órgãos genitais do homem».

Numa manifestação de pseudo ciência, explicam como é que os demóniostransportam a semente masculina a longas distâncias sem perder o seu calor procriador.Eles andam depressa demais para que se possa dar a evaporação.

Os demónios têm um outro talento maravilhoso: eles podem fazer com que osmachos percam o sexo. Não fora o facto de se encontrarem no livro mais sanguinário

Page 175: Vigde cristo

175

jamais escrito, os excertos que se seguem poderiam enfileirar com as mais cómicaspassagens de Rabelais. O primeiro é sobre

um venerando Padre da Casa das Torres dominicana, conhecidopela honestidade da sua vida e pelo seu saber. «Um dia» diz ele,«enquanto eu estava a ouvir confissões, um jovem veio ter comigo e,no decurso da confissão, disse-me pesaroso que tinha ficado sem omembro. Espantado com isto, e não muito disposto a dar-lhe grandecrédito porque na opinião dos mais sensatos acreditar facilmente ésinal de tontice, obtive a confirmação quando não vi nada no sítioque o jovem me mostrou tirando a roupa. Depois, usando de parecermais avisado, perguntei-lhe se suspeitava de alguém que o tivesseenfeitiçado. E o jovem disse que realmente desconfiava de alguém,mas que essa pessoa estava ausente, a viver em Worms. Então eudisse-lhe: “Aconselho-te a ir ter com ela o mais depressa possível ea fazeres todos os possíveis por a acarinhar com promessas epalavras doces”; e ele assim fez, pois voltou passados alguns dias eagradeceu-me dizendo que já estava inteiro e tinha recuperado tudo.E eu acreditei nas suas palavras, mas confirmei de novo vendo comos meus olhos».

As confissões deviam ser muito interessantes nesses tempos.A teologia escolástica — definida por S.Tomás More como «mungir um bode para

uma peneira» — é depois utilizada para clarificar este fenómeno. Segundo Kramer eSpenger, o jovem, apesar das aparências, não tinha ficado sem o membro. O demónionão ia tirar-lho de ânimo leve, pois o sexo é a sua principal fonte de controle sobre oshomens. O diabo, mais exactamente, por meio de qualquer prestidigitação faz com queo membro deixe de se ver ou sentir. O diabo não seria capaz de enganar um homemcasto — não em relação ao seu próprio membro — mas se esse casto homem, como osanto confessor das Torres, olhasse para o de qualquer outra pessoa poderia nãoconseguir vê-lo.

O diabo podia arrancar o membro masculino se assim quisesse, e isso seria muitodoloroso. Mas, pelas razões teológicas já apresentadas, está pouco inclinado a chegar aesses extremos.

Por meio da tortura, os inquisidores obrigavam as bruxas a confessar quecoleccionavam órgãos sexuais, presumivelmente apenas masculinos.

O que é que se há-de pensar daquelas bruxas que […] coleccionamórgãos em grande número, vinte ou trinta no total, e os põem nosninhos das aves ou os fecham numa caixa onde eles se mexemcomo membros vivos e comem aveia e milho? […] Tudo isto é feitopor obra e ilusão do diabo. […] Porque um certo homem contou-meque, quando ficou sem o membro foi ter com uma conhecida bruxapara lhe pedir que lho restituísse. Ela disse ao atormentado homemque subisse a uma certa árvore e escolhesse, de entre os váriosmembros que se encontravam num ninho, aquele que quisesse. Equando ele tentou tirar um grande, a bruxa disse: «Esse, não»acrescentando «porque pertence a um padre».

Page 176: Vigde cristo

176

Ao temor do sexo revelado pelos autores, juntava-se um ódio inato às mulheres.Aceitavam com facilidade a ideia de mulheres a tirarem órgãos sexuais masculinos.Sprenger deixou noutra obra o registo da sua opinião: «Eu preferia ter um leão ou umdragão à solta em casa a uma mulher. […] Fracas de espírito e de corpo, não admiraque as mulheres se tornem tão frequentemente bruxas. […] Uma mulher é o desejocarnal personificado. […] Se uma mulher não consegue arranjar um homem, é capaz deter relações com o próprio demónio».

A nova grande purga

Armados de poder inexpugnável conferido pelo papa, os dois inquisidores«atravessaram a terra», escreve Lea, «deixando atrás de si um rasto de sangue e fogo edespertando em todos os corações o cruel temor inspirado pela crença absoluta assiminculcada em todos os horrores da bruxaria». Os autores de O Martelo das Bruxasestabeleceram o princípio básico de que a bruxa tem de ser condenada pela sua própriaboca. Se não voluntariamente, então por outros meios.

Uma vez que se presumia que estavam possuídas do demónio, as bruxas não tinhamquaisquer direitos. Podia usar-se da mentira com elas, podiam ser maltratadas,torturadas, mortas. Eram tratadas como inimigas alienígenas, não humanas, de Cristo eda humanidade. Os papas, incluindo o actual, dizem frequentemente que não acreditarem Satanás é perigoso para a moralidade. Em oposição a isto está a aterradora injustiçaque resultou da crença em Satanás durante as perseguições às bruxas.

As torturas usadas eram variadas. Esmagavam-se em tornos os dedos dos pés e dasmãos e as pernas. As vítimas eram açoitadas até ficarem a sangrar. Curiosamente, ochicotear e esmagar de dedos, e até o ecúleo eram considerados apenas como partedos preliminares. Não eram classificados como “verdadeira tortura“.

O Arcebispo de Colónia elaborou um Tarifário das Torturas que incluía quarenta enove medidas e as custas respectivas a serem pagas ao torturador pela família dasvítimas. Por exemplo, cortar a língua da vítima e despejar-lhe ferro em brasa na bocacustava cinco vezes mais do que o simples chicotear no cárcere. Tratava-se de umaespécie de supermercado de horrores. Se a bruxa sofria a pena máxima, os torturadorescelebravam o facto com um banquete que a família da vítima também tinha de pagar. Seuma “bruxa” confessava, não só poupava grande despesa à família como tambémconseguia para si própria uma passagem menos dolorosa para o outro mundo: eraestrangulada antes de ser queimada.

Há registos que mostram uma mulher a ser torturada cinquenta e seis vezes econtinuar a não confessar. Na Alemanha, no ano de 1629, despejaram álcool sobre oscabelos de uma mulher e depois lançaram-lhe o fogo. A seguir, ataram-lhe as mãosatrás das costas e deixaram-na pendurada do tecto durante três horas antes da começara “verdadeira tortura“.

O Martelo das Bruxas foi seguido de outros manuais. Um deles foi o Tratado sobre aFeitiçaria, dos princípios do século XVII, de um francês de nome Henri Boguet. Em suaopinião, as crianças deviam ser obrigadas a testemunhar contra os pais. Mesmo as maispequenas tinham de ser torturadas para se chegar à verdade. Se elas próprias tambémfossem bruxas, deviam ser mortas, embora com mais compaixão — digamos, pela forca.

Os caçadores de bruxas parece nunca terem percebido que eram eles que andavama criar as bruxas. Sob tortura, as suas vítimas diziam tudo o que delas se esperava. Sim,tinham feito um pacto com o diabo à meia-noite e trocaram a sua alma por ouro. Sim,tinham-se transformado em gatos e outros animais, como lobisomens. Sim, com um

Page 177: Vigde cristo

177

relance do seu Mau Olhado, tinham envenenado poços e, com uma maldição, tinhamprovocado tempestades de granizo e geadas fora do tempo. Sim, já na velhice tinhamtido relações sexuais com Satanás — ele tinha o pénis fino e gelado como um pingentede gelo, e o seu sémen, que frio! Ah, é verdade, tinham-lhe dado um filho, um monstrocom cabeça de lobo e cauda de serpente, que durante dois anos alimentaram com acarne de bebés recém-nascidos, antes de ele se desvanecer em fino ar.

As bruxas confessavam lançar sobre as pessoas feitiços que faziam com que elasdeitassem por todos os seus orifícios — boca, pénis, vagina — os objectos maiscuriosos: caracóis de cabelo, agulhas, pedras, cerdas, bolas de papel com caracteresdemoníacos escritos. Segundo Peel e Southern, «um escritor no limite da sua pervertidaimaginação, dotou o diabo de um pénis bifurcado para que ele pudesse gozarsimultaneamente o sexo e a sodomia».

Conventos inteiros sob investigação pelos inquisidores confessaram alegrementefornicar regularmente com o diabo. Quanto mais ultrajantes eram as suas invenções,mais se iluminavam os olhos dos inquisidores. Confirmavam-se os piores pesadelos.Eles nunca pensaram que as acusadas apenas queriam ver o fim das torturas.

Por uma perversidade ainda não completamente compreendida, havia pessoasinocentes que se apresentavam para se acusarem a si próprias dos crimes maishediondos. Era como se quisessem desfrutar de uma curta notoriedade, mesmo queesta significasse a morte na fogueira.

Estas bizarras confissões obrigaram os autores dos manuais a acrescentarem àslistas tipos de desvios sexuais até então desconhecidos. A sodomia incluía agora arelação entre um homem e um diabo macho. O adultério incluía uma bruxa fazer sexocom Satanás.

Em resultado dos delírios sob tortura, uma das mais honradas profissões tornou-se namais caluniada de todas. Numa das mais extraordinárias afirmações jamais escritas emqualquer livro, Kramer e Sprenger asseveram: «Não há ninguém que mais mal faça à fécatólica do que as parteiras». Qual era o seu crime? Por vezes matavam os bebés aindano ventre ou logo após o nascimento espetando-lhes agulhas na moleirinha para queeles, ainda não baptizados, fossem directamente para os domínios flamejantes deSatanás. Outras vezes, dedicavam os bebés logo desde o nascimento ao seu Senhor eMestre, o demónio. Nos esforços do demónio para macaquear Deus e dominar o mundo,as parteiras eram as suas aliadas mais chegadas. Assim, o bando dos maus estava acrescer dia a dia.

Durante século e meio, toda a gente, de reis ao cidadão comum, temeu estaorganização secreta que estava a minar as fundações do mundo. Havia estórias desabates de bruxas que atraíam multidões de mais de vinte e cinco mil pessoas, todas develas acesas nas mãos de tal modo que a noite se fazia dia, todas a adorar Satanásmacaqueando rituais sagrados para os cristãos. Depois da Bula de Inocêncio VIII, anecromancia multiplicou-se, e a missa negra tornou-se um lugar-comum. Muitos padresapóstatas oficiavam. Isto era em parte um protesto social contra a autoridade opressivada Igreja e também o desejo de chafurdar no oculto. Muitas vezes, quando usavam umahóstia consagrada ela levava inscrições de invocações obscenas em letras de sangue.

Nas charnecas ou nas clareiras da floresta iluminadas pelo luar, em reuniões de trezeà sexta-feira ou em enormes reuniões sabáticas, as bruxas realizavam a sua mascaradade adoração a Satanás com uma cabeça de bode. Todos os rituais da missa eramalterados. Pisavam a cruz, oravam de costas para o céu e com a cara voltada para aterra, e até dançavam a recuar. O diabo falava-lhes assegurando-lhes que não tinhamalma nenhuma e que não havia vida depois da morte. As cerimónias terminavam, dizia-

Page 178: Vigde cristo

178

se, com o beijar do traseiro do diabo, forjando com ele um pacto de sangue e finalmentecom frenéticas orgias sexuais indiscriminadas.

A Igreja utilizava as suas próprias formas de magia para contra-atacar a Arte Negra.Havia a água benta, as velas abençoadas, os sinos de igreja, as medalhas, o rosário, ainvocação dos santos, as relíquias, os exorcismos e os sacramentos.

Apesar de todas estas salvaguardas, a Igreja parecia estar a perder a batalha. Abruxaria continuava a crescer em resultado dos processos adoptados pelos papas paraa erradicar. Sob tortura, as bruxas davam os nomes dos cúmplices, que, por sua vez,denunciavam outros. O mundo, que não há muito tinha aquela bruxa extravagante navila ou na aldeia com o seu amigo gato, cão ou corvo, estava agora cheio de bruxas.Dizia-se que as bruxas tinham mais devotos do que a Virgem Maria. Elas constituíamuma anti-Igreja de que, alegadamente, muitos cardeais faziam parte. O poder deSatanás quase igualava o de Deus.

Nem mesmo Kramer e Sprenger foram capazes de explicar a razão por que davamcrédito às bruxas, que eram as porta-vozes do “Pai da Mentira“, nem como é que asbruxas, aparentemente tão poderosas, se deixavam capturar, torturar e queimar semluta. Não há registo de qualquer exemplo de uma bruxa que conseguisse lançar comsucesso uma maldição sobre um inquisidor, cegar um torturador e continuar a viverdepois de queimada na fogueira.

As execuções multiplicaram-se. Antes havia uma ou duas, agora faziam-se emmassa. Entre as condenadas havia meninas de seis anos. «Diz-se que um bispo deGenebra», escreve Lea em A Inquisição na Idade Média «teria queimado quinhentas emtrês meses, um bispo de Bamberg, seiscentas, um bispo de Wurzburg, novecentas».Assim continuaram as coisas. No ano de 1586, o Arcebispo de Trèves mandou queimar118 mulheres e dois homens por feitiços que fizeram prolongar o inverno.

A responsabilidade papal

Seria insensato sugerir que foi o papado que criou a bruxaria. Ela já existia antes de oCristianismo aparecer e a Igreja nunca a erradicou completamente. Não pode haverdúvidas, contudo, de que o papado teve um papel decisivo no recrudescimento e nocruel tratamento de que as bruxas foram vítimas.

Döllinger escreveu em The Pope and the Council: Todo o tratamento dado às bruxasresultou em parte directa e em parte indirectamente da irrefragável autoridade do Papa».E Lea concorda: «A Igreja emprestou a sua autoridade avassaladora para forçar acrença nas almas dos homens. Os poderes malignos das bruxas foram repetidamenterealçados nas Bulas dos sucessivos papas para implicitamente levar os fiéis aacreditar».

Antes de Inocêncio VIII, afirmar que as bruxas tinham esses poderes era contrário àfé; depois de Inocêncio, negá-lo era heresia punível com a fogueira. A contradição com adoutrina primitiva era tão notória que os teólogos tiveram de recorrer ao subterfúgio paratratar dela. Os inquisidores argumentavam que as bruxas a que Ancyra e Graciano sereferiam, as inofensivas, já tinham desaparecido. Uma nova geração mais dura tinhatomado o seu lugar; estas é que estavam em conluio com o diabo para levar a efeitouma espécie de campanha da SIDA satânica para infectar o corpo social. A autoridadepapal — nas pessoas de Inocêncio VIII, Alexandre VI, Leão X, Júlio II, Adriano IV emuitos outros — garantiu a existência das bruxas e dos seus poderes sobrenaturais,especialmente no campo do sexo. Já em pleno século XVII, em 1623, Gregório XVIainda decretou que qualquer pessoa que fizesse um pacto com Satanás para provocar a

Page 179: Vigde cristo

179

impotência em animais ou para prejudicar os produtos da terra seria condenado pelaInquisição a prisão perpétua.

Depois, em 1657, sem aviso ou explicação, uma directiva da Inquisição Romana diziaque durante muito tempo não houvera um único processo correctamente conduzido. Osinquisidores tinham errado na aplicação imprudente da tortura e noutras irregularidades.Nem uma palavra sobre o papel dos papas no sancionamento da tortura e das mentiras,nem sobre a razão por que tantos papas tinham contrariado a tradição afirmando arealidade das bruxas. E, sobretudo, nem uma palavra para lamentar os muitos milharesque tinham morrido num dos períodos mais horripilantes da história europeia.

Durante vários séculos, os papas tinham orquestrado uma prática maniqueísta pelaqual o diabo reclamava o seu domínio sobre metade da Cristandade. E agora, sem umapalavra de explicação, toda esta doutrina era abandonada, como se jamais tivessehavido qualquer pontífice insensato ao ponto de a sustentar. Nunca é fácil pedirdesculpa pelos nossos erros. Para uma autoridade que proclama que não pode errar,pareceria quase impossível.

Um aspecto muito preocupante da feitiçaria era que o sabate começava numa sexta-feira à noite. Será que os inquisidores sugeriam isto às suas vítimas porque coincidiacom outra cerimónia demoníaca, o Sabbath judeu?

A perseguição aos judeus

O Papa Paulo IV, que odiava os judeus, trabalhou no documento durante horas deuma só vez, bebericando sem cessar o vinho escuro e espesso como melaço da suaamada Nápoles. Em breve estava terminado. No dia 17 de Julho de 1555, dois mesesapenas após a sua eleição, publicou Cum nimis absurdum, uma Bula que nuncaapareceu em antologias piedosas de documentos papais. É que isto viria a revelar-secomo um marco na história do anti-semitismo.

O anti-semitismo papal

Por causa desta Bula Paulo viria a fazer jus a um galardão que ele próprio ofereceraao seu sobrinho favorito, o Cardeal Carlo Carafa: «Tem o braço tingido de sangue até aocotovelo». Não admira que durante o curto pontificado de Paulo a população de Romatenha ficado reduzida quase a metade. Os judeus, que não tinham para onde fugir,sofreram as consequências do seu fanatismo.

O papa sabia de cor todos os éditos da Igreja sobre o Judaísmo. O massacre dosjudeus tinha começado muito cedo.

No Império Romano, os judeus tinham superado a hostilidade inicial e conquistadopara si a plena cidadania pelo Édito de Caracalla no ano de 212. Um século mais tarde,quando Constantino se converteu ao Cristianismo, começou a perseguição aos judeus.

Foram excluídos de todos as funções civis e administrativas, proibidos de empregarcristãos e de prestar ou receber deles assistência médica. Os casamentos entre cristãose judeus eram classificados como adultério e infracção capital. Num processo judicialentre cristãos e judeus só as testemunhas cristãs eram aceites em tribunal. Os Padresda Igreja, como Ambrósio no Ocidente e Crisóstomo no Oriente, forneceram umfundamento teológico para o desprezo pelos judeus, que ainda hoje é capaz de chocar.

O próprio Gregório o Grande, o mais bondoso dos papas, embora proibisse a tortura ea perseguição dos judeus, não deixou de usar o suborno para os levar a baptizarem-se.

Page 180: Vigde cristo

180

Qualquer judeu de Roma que se convertesse teria a sua renda reduzida de um terço.Escreveu ele:

Porque mesmo que eles próprios saiam com pouca fé, haverácertamente mais fé nos filhos que forem baptizados, de modo que senão ganharmos os pais, ganharemos com certeza os filhos.Portanto, qualquer redução na renda por amor de Deus não deve serconsiderada como uma perda.

Inocêncio III e o Quarto Concílio de Latrão em 1215 tomaram em mãos a causa doanti-semitismo com determinação. E Paulo IV, que detestava qualquer forma dedissidência, estava apostado em continuar, com primorosa crueldade, a obra do grandeInocêncio.

Cum nimis absurdum acentuava que os assassinos de Cristo, os Judeus, eramescravos por natureza e como tal deviam ser tratados. Pela primeira vez nos EstadosPapais foram confinados a uma zona determinada chamada “ghetto” (gueto), nomeoriginário da Fundição Veneziana. Cada gueto devia ter uma só entrada. Os judeusforam obrigados a vender aos cristão todos os seus bens ao desbarato; no melhor doscasos conseguiam 20 por cento do valor e no pior uma casa era vendida por um burro,uma vinha por um fato. Estavam proibidos de se entregarem a actividades comerciais oude negociar em cereais, mas podiam vender comida e roupas em segunda mão(strazzaria); assim ficou a sua situação limitada à condição de trapeiros. Só podiam teruma sinagoga em cada cidade. Sete das oito de Roma foram destruídas e na Campânia,dezoito das dezanove. Já não tinham livros; quando ainda era cardeal, Paulo IV tinha-osmandado queimar todos, incluindo o Talmut. Em público eram obrigados a usar comodistintivo um chapéu amarelo. Nos seus calendários e nas suas contas e para comunicarsó podiam utilizar o italiano e o latim. Não podiam empregar cristãos em funçãonenhuma, nem mesmo para acender as suas fogueiras do Sabbath no inverno. Nãopodiam prestar cuidados médicos aos cristãos nem recebê-los destes, nem mesmo osserviços de uma ama de leite. Não podiam ser chamados de signor (senhor), nemsequer pelos pedintes. Tinham de construir uma Casa para os Catecúmenos, isto é,para os judeus convertidos. Os censores dos livros judeus tinham de ser pagos pelosjudeus, assim como o guarda-portão pagão, cuja função era fechá-los à noite.

Desde os tempos do Império Romano que os judeus tinham tendência para a vivertodos juntos na mesma zona. Aí podiam construir o seu açougue para os rituais, os seusbalneários, as suas sinagogas, os seus lugares de estudo, os seus tribunais e os seuscemitérios próprios. Sentiam-se mais seguros af der yiddisher gas (na sua própria ruajudaica), onde, pelo menos, os deixavam em paz. Mas serem obrigados a viver numcerto lugar, como gado, terem de regressar a casa à noite, não poderem ser donos dasterras e das casas — isto era uma coisa ameaçadoramente diferente.

Os judeus romanos sofreram particularmente na medida em que o gueto era umafaixa de terra ao longo da margem direita do Tibre, malárica e frequentemente inundada,como Veneza. Dentro de um perímetro de quinhentos metros amontoavam-se quatro acinco mil pessoas. Segundo um escritor judeu, «andavam vestidos com farrapos, viviamno meio de farrapos e cresciam entre os farrapos». Só à sexta-feira à noite é quedeixavam os farrapos, quando o velho pregoeiro gritava «O Sabbath começou», porqueagora, com o Sabbath, todo o judeu era Rei de Israel.

O impacte da Bula de Paulo IV foi imediato. Em alguns dias apenas, já havia umgueto em Veneza e outro em Bolonha, chamado Inferno. O objectivo de Paulo eraconverter os judeus em massa. Muitos passaram-se para o Cristianismo, mas não a

Page 181: Vigde cristo

181

maioria. Disto resultaram atrocidades generalizadas. Em Ancona tinham-se estabelecidoos Marranos, judeus convertidos de Portugal, com a garantia de pontífices anteriores deque, embora baptizados à força, seriam deixados em paz para praticarem a sua antigafé. Paulo IV quebrou estas promessas no último dia de Abril de 1556. Os Marranosdispersaram-se rapidamente, mas vinte e quatro homens e uma mulher foramqueimados vivos em sucessivos Autos-de-Fé na primavera e verão desse ano. Longedas fogueiras, os judeus recitaram o Kaddish: Yiskaddal veyiskaddash, a suaantiquíssima oração.

Paulo morreu em 1559, mas a sua Bula tinha estabelecido um padrão que havia dedurar três séculos. Em Junho de 1566, Pio V baptizou pessoalmente dois judeus adultose os seus três filhos; cinco cardeais serviram de padrinhos. Em 1581, Gregório XIIIchegou à espantosa conclusão de que a culpa dos judeus de terem rejeitado ecrucificado Cristo «só se aprofunda com as sucessivas gerações, vinculando-os àescravidão perpétua».

Na Romagna, dois padres, ex-judeus, receberam a incumbência de forçar a entradaem sinagogas durante o Sabbath. Num acto de profanação, colocaram um crucifixo emfrente da Arca e proclamaram Jesus como Deus e Messias. Por toda a parte assinagogas eram encerradas durante meses seguidos com o pretexto de que fora láencontrado um livro não autorizado. Evidentemente que muitos desses livros eram lácolocados intencionalmente. Arrombavam-se casas, que eram revistadas e destruídas.Qualquer pretexto servia para mandar o chefe de uma família judia para a Casa dosCatecúmenos para uma lavagem ao cérebro. Um judeu que se aproximasse do edifíciosem autorização — digamos, um rabi a tentar dissuadir os seus semelhantes de seconverterem — era selvaticamente espancado. No ano de 1604, o Rabi JoshuaAscarelli, a mulher e quatro filhos foram mandados para a Casa. O pai e a mãe, depoisde prolongada detenção, continuaram a não ceder; foram libertados. Os filhos ficaram.Sem os pais, sucumbiram por fim e foram baptizados. Quando os pais voltaram a buscá-los disseram-lhes que se fossem antes que os chicoteassem.

Em 1639 um judeu de Roma estava a conversar amigavelmente com um padredominicano quando, por graça, se ofereceu para mandar baptizar os seus filhos nacondição de o papa ser o padrinho. A sua leviandade custou-lhe os dois filhos, um delesainda no berço. Este insulto à raça provocou no gueto um tumulto que foiimplacavelmente reprimido.

Entre 1634 e 1790, “converteram-se” 2030 judeus de Roma. Benedito XIII (1724-30)baptizou vinte e seis como sinal de estima. As conversões eram acompanhadas de fogode artifício e procissões nas proximidades dos guetos, onde os judeus, na maioriareduzidos ao silêncio, se agitavam. Quando eles eram obrigados a ir à igreja para ouviros sermões, os pagãos atiravam-lhes com imundícies para cima. Dentro da igreja, osbedéis andavam à sua volta com varetas para os manter acordados. Por vezes eramsubmetidos a exames médicos para se ter a certeza de que estes “judeus manhosos”não tinham sido escolhidos pela comunidade por serem surdos. Nenhum pormenorhumilhante era descurado. Estavam proibidos de levar círios acesos nos funerais ou deerguer pedras sobre as sepulturas dos seus mortos, em violação da lei romana de queos próprios cristãos tinham beneficiado: um cemitério é tão sagrado como um templo.

Uma superstição do tempo era que quem quer que fosse responsável pelo baptismode um infiel ganhava livre trânsito para o Paraíso. Os fora-da-lei vagueavam pela cidadeà caça de crianças judias e baptizavam-nas com água da chuva. No século XVIIIBenedito IV decidiu que uma criança baptizada contra a vontade dos pais, mesmo queem violação dos procedimentos da lei canónica, era cristã e tinha de viver como tal. Se onão fizesse era rotulada de herege e incorria na punição que tal implicava. Nos guetos

Page 182: Vigde cristo

182

havia as manifestações de luto quando tais crimes ocorriam. E também haviamanifestações de pesar quando um judeu, convertido ao cristianismo, fazia o que opadre mandava e retirava os filhos do gueto. Uma vez baptizados, a mãe nunca mais ospodia ver.

Nos piores dias da opressão papal em Roma, os judeus viviam encerrados dentro dealtos muros. Naturalmente tinham de construir em altura. Como consequência, as casadesabavam, por vezes durante cerimónias de casamento. O fogo propagava-serapidamente. A higiene praticamente não existia, o que confirmava o mito de que osjudeus exalavam um mau cheiro que só desaparecia com o baptismo.

Ramazzini, conhecido como o pai das doenças ocupacionais, estudou os judeusitalianos e publicou as conclusões das suas investigações no livro De Morbis Artificumem 1700. Eles revelavam, dizia ele, todos os sintomas de uma vida sedentária. Asmulheres, em particular, sofriam de cegueira precoce. Eram vítimas, muito acima damédia, de dores de cabeça e de dentes, de infecções de garganta e de doençaspulmonares. Os papas foram os responsáveis por gerações de sofrimento nãoregistadas nos livros de História.

A Revolução Francesa abriu caminho às Luzes. Mas a luz não iluminou o Vaticano.Uma sucessão de papas reforçou os antigos preconceitos contra os judeus, tratando-oscomo leprosos não merecedores da protecção da lei. Pio VII foi seguido por Leão XII,Pio VIII, Gregório XVI, Pio IX — todos bons discípulos de Paulo IV.

Se os judeus comprassem ou vendessem algum objecto utilizado no culto católico —um cálice, um rosário, um crucifixo — eram multados em 200 scudi. A mesma multa eraaplicada àquele que saísse de Roma sem autorização do Inquisidor. Se um médicocristão fosse chamado para tratar um doente no gueto, primeiro tinha de tentar convertê-lo a Cristo. Se não conseguisse, tinha de ir-se embora imediatamente. Todas assegundas-feiras três ou quatro crianças judias eram levadas para o baptismo e tornadascristãs. Quem quer que se opusesse, mesmo os pais, era presente à Inquisição. Se doisjudeus testemunhassem que um outro judeu, por palavras ou por acções, tinha ofendidoum padre católico ou a verdadeira religião, era executado.

Leão XII (1823-9) decidiu que os cristãos andavam a desleixar-se. Fechou de novo osjudeus em guetos. Também proibiu a vacinação contra a varíola durante uma epidemiaporque «era contra a lei natural». Mas a grande desilusão foi Pio IX.

Liberal desiludido, fez sair leis ainda mais rigorosas contra a comunidade judaica.Cecil Roth, em History of the Jews in Italy (1946), conta a estória de um judeu de boaposição social que foi mandado para a prisão sob Pio IX por empregar uma senhora deidade cristã para lhe tratar das roupas. Por esta altura os judeus já tinham adquirido asua liberdade e dignidade em quase todo o mundo. Mas não em Roma e nos EstadosPapais. A Casa dos Catecúmenos ainda estava em actividade. No ano de 1858 foicenário talvez do pior abuso de todos.

Uma rapariga de Bolonha disse ao padre, em confissão, que seis anos antes tinhatrabalhado ilegalmente como criada em casa de uma família de judeus de nome Mortara.Estes tinham um filho de um ano de idade que a rapariga pensou que estava à morte ebaptizou-o. O confessor disse-lhe que ela tinha a obrigação de informar as autoridades.Cumprindo as ordens do clero, a polícia prendeu o Edgardo, agora com sete anos, emandou-o para Roma para ser educado como cristão. Esta cause célèbre provocou umatempestade pela Europa fora. Francisco José da Áustria e Napoleão III de Françaavisaram ambos o papa de que estava a hostilizar a opinião mundial. Em Londres houveuma reunião maciça em Mansion House. O ilustre judeu britânico Sir Moses Montefiore

Page 183: Vigde cristo

183

viajou para Roma para apelar pessoalmente junto do pontífice. Pio IX continuourenitente.

Depois de uma parada triunfal através do gueto romano, Edgardo Mortara recebeusolenemente o baptismo. Foi educado como cristão e mais tarde tornou-se um ilustremissionário.

Uma vez mais se viu um papa, pessoalmente devoto, desprovido de todo o sentido dejustiça com relação aos judeus.

Em Setembro de 1870, as tropas romanas tomaram Roma. Foram saudadas comcenas de júbilo apenas igualadas quando os Aliados recapturaram a cidade depois daocupação Nazi na Segunda Guerra Mundial. Onze dias depois da queda da cidade, em2 de Outubro de 1870, foi concedida aos judeus, por um decreto real, a liberdade que opapado lhes negava há mais de mil e quinhentos anos. O último gueto da Europa foradesmantelado. Quando isso aconteceu, os judeus devem ter sentido que as suasprovações tinham finalmente terminado. Como é que eles podiam saber que a sua horamais negra ainda estava para vir?

Pio XII e o grande silêncio

O Cristianismo tinha preparado o caminho, perseguindo-os por causa da sua religião;o Fascismo persegui-los-ia por causa da sua raça. Os papas, apesar de toda a suacrueldade, tinham tido a esperança de converter os judeus; Hitler, com o seu relutantealiado Mussolini, planeou exterminá-los.

Apesar das enormes diferenças, as semelhanças entre os decretos de Inocêncio III ePaulo IV, por um lado, e as Leis de Nuremberga de 1935, por outro, são incontestáveis.Os cristãos fizeram pontaria aos judeus: estes eram os párias, os poluidores da terraque, como raça, perpetraram o maior dos crimes conhecidos do homem, matando Deus.Os cristãos inventaram a ideia de despojar os judeus das suas casas, das suas terras ecemitérios, forçando-os à emigração, forçando-os ao confinamento. Quando os Nazisderam o nome de “gueto“ aos espaços onde os judeus viviam, pretendiamexpressamente dar às suas políticas o tom de continuidade em relação às dos papas euma espécie de respeitabilidade.

Pio XI, que morreu em 1939, sabia que Jesus, Maria e José eram judeus. Manifestoua sua oposição a um grosseiro racismo na Alemanha e escreveu uma encíclicaantifascista que à data da sua morte não estava publicada. O seu sucessor foi maiscauteloso.

Eugénio Pacelli, Pio XII, nasceu numa família patrícia em 1876. Devido à sua poucasaúde, estudou para padre em casa. Ordenado em 1899, foi imediatamente destacadopara o Secretariado de Estado do Vaticano. Dezasseis anos mais tarde, foi feito bisposem ter um só dia de experiência pastoral. Nasceu e cresceu burocrata.

O avô, Marcantonio, fora advogado canónico leigo na Rota Romana. O pai, Filippo,também canonista, foi deão do Colégio dos Advogados Consistoriais, e com talreputação que foi o único leigo a trabalhar no novo código da lei canónica que entrou emvigor em 1918. Eugénio, advogado conforme a tradição da família, era o braço direito doCardeal Gasparri, cuja ideia era reestruturar o código e que dirigiu os trabalhos em todasas suas fases.

Para o fim da Primeira Guerra Mundial, Pacelli era núncio apostólico em Munique.Depois da guerra, foi transferido para Berlim onde testemunhou a ascensão dos

Page 184: Vigde cristo

184

Camisas Castanhas. Em 1929 foi chamado de novo a Roma onde foi elevado a cardeale Secretário de Estado. Era acompanhado da Irmã Pasqualina, uma freira franciscanaalemã, que era a sua governanta.

Apesar de ver o Nazismo de tão perto, sempre temeu mais o comunismo.O Cardeal Pacelli foi eleito papa em 2 de Março de 1939. Tinha então sessenta e três

anos. Frio, distante, sem expressão, excepto quando reagia às saudações da multidão,tinha olhos castanhos sem força e, de perfil, cara de águia.

Quando Mussolini começou a pressionar a comunidade judaica, Pio iniciou o hábitode não dizer nada. No dia 4 de Junho de 1940, a Itália entrou na guerra ao lado deHitler. Nos fins de 1941, três quartos dos judeus italianos tinham já perdido os seusmeios de subsistência. Estava armado o cenário para aquilo que muitos consideram,católicos incluídos, a mais vergonhosa de todas as encíclicas papais, mais terrível aindado que a Cum nimis absurdum de Paulo IV, aquela que nunca foi escrita.

Por toda a Itália e Reich, os judeus estavam a ser sistematicamente vitimizados e, emmuitos casos bem conhecidos, mortos. Do Vaticano nem uma palavra inequívoca decondenação. Este silêncio, diz muita gente, era pior do que a heresia. Habitualmente tãolestos a corrigir e a condenar o mais leve desvio da fé, ou qualquer ”erro”, por exemplo,em relação à moralidade sexual, a boca de Roma esteve muito bem e, como se viudepois, permanentemente fechada.

Muito antes do fim do ano de 1942, o extermínio em massa dos judeus era já doconhecimento geral. No dia 1 de Julho a BBC transmitiu em francês relatos do massacrede 700.000 judeus polacos. Uma semana mais tarde, o Cardeal Hinsley de Westminsterrepetiu este número na BBC, acrescentando: «Este sangue inocente clama porvingança». Nesse verão, a França de Vichi mostrava-se pronta a deportar as criançasjudias, mesmo antes de os nazis da Zona Ocupada estarem preparados para asreceber. De 21 de Julho a 9 de Setembro, um pediatra contou 5.500 crianças que tinhampassado por Drancy a caminho do extermínio. Mais de mil tinham menos de seis anos.Os pais já tinham sido despachados. Deram-lhes guardiões judeus para esconder ofacto de que eram órfãos. George Wellers, advogado parisiense, era um dos guardiões.Descreveu a cena dos campos de trânsito perto de Paris no seu livro Drancy. Ascrianças, seis das quais no seu contingente, tinham menos de dois anos, eram como«um rebanho de cordeiros assustados». A descrição que fez da sua difícil condição éobsidiante. Criancinhas que ainda nem sabiam o nome à espera no cais que um adultoas levasse à casa de banho, deitadas no meio da própria imundície resultante dadiarreia, a chorar sem parar durante a noite.

Em 17 de Agosto, 530 crianças acompanhadas de alguns adultos foram empacotadase trancadas em vagões de gado. O calor e o fedor eram aterradores. Dois dias depois, jáestavam em Auschwitz e, à noite, já mortas. Logo depois, um médico das SS do campoconfidenciava no seu diário: «Comparado com aquilo que vi, o Inferno de Dante parece-nos quase uma comédia». O inferno de Hitler viria a consumir um milhão de crianças.

O Núncio Apostólico em Paris, Valerio Valeri, enviara em Agosto, ao CardealSecretário de Estado em Roma um relatório em que afirmava que as crianças queestavam a ser embarcadas para fora de França se destinavam à Polónia e não àAlemanha. Sete semanas mais tarde, Myron C. Taylor, o embaixador americano, enviouao mesmo Secretário de Estado, Cardeal Maglione, pormenores do extermínio emmassa de judeus polacos e ocidentais na Polónia.

A hierarquia francesa fez aquilo que foi descrito como um protesto platónico junto dogoverno de Quisling. Laval soube dizer a Suhard, Cardeal de Paris, que devia manter-sefora da política e ficar calado, como Sua Santidade. Quando se deram mais prisões,

Page 185: Vigde cristo

185

Suhard ficou de facto calado. Mas em Janeiro de 1943 foi a Roma para uma audiênciacom Pio XII. Levara consigo boas notícias em forma de ajuda financeira de Pétain àIgreja. Sobre os judeus não trocaram uma só palavra.

O extermínio em massa de judeus era já do conhecimento geral. Um mês antes deSuhard ir a Roma, em 5 de Dezembro de 1942, o Arcebispo de Cantuária escreveu aoThe Times a comentar uma reportagem do jornal no dia anterior. «Isto é um horror» diziaSua Eminência, «para além do que se pode imaginar». Exprimia em seu nome e no daIgreja de Inglaterra e das Igrejas Livres «a nossa ardente indignação por esta atrocidadepara a qual dificilmente se encontrará paralelo nos tempos da barbárie». Só havia umhomem cujo testemunho Hitler temia, porque muitos dos soldados dos seus exércitoseram católicos. Esse homem não falou. Face àquilo que Winston Churchill viria a chamar«provavelmente o maior e mais horrível crime alguma vez cometido em toda a históriado mundo», ele preferiu a neutralidade.

No verão de 1943, Mussolini foi deposto e nesse mês de Setembro Roma foi ocupadapelos alemães. Um destacamento das SS chegou à cidade. Exigiu 50 quilos de ouro àcomunidade judaica. Se o pagamento não fosse feito dentro de trinta e seis horas,duzentos judeus seriam deportados. Pio XII ofereceu-se para suprir qualquer falta.Mesmo assim, ninguém escapou.

Em Outubro, um esquadrão de pára-quedistas das SS, armados de metralhadoras,estacionou nos limites do Vaticano. Estavam lá ostensivamente para proteger SuaSantidade, mas na realidade pretendiam intimidá-lo. Parece que conseguiram. Ele nãoestava preocupado com a própria segurança, mas, bem ou mal, mergulhou num silêncioainda mais profundo, temendo que, quebrando-o, viesse a fazer piorar a situação dosjudeus.

Na noite de 15 para 16 de Outubro, os judeus estavam em casa a celebrar o Sabbath.Mil foram capturados, e entre eles havia mulheres grávidas e velhos. Uma mulher levadanum camião militar entrou em trabalhos de parto. Um casal com dez filhos estava entreos que foram levados para a Academia Militar. Aí, na primeira noite, duas mulheresderam à luz. Dois dias depois, uma Segunda-feira, dia 18 de Outubro, todo o grupo demais de mil pessoas foi transportado para uma via ferroviária de resguardo e metido emvagões de gado. O comboio partiu às 2.05 da tarde. Foram para o Norte, por Orte,Chiusi, Florença e Bolonha, e atravessaram a fronteira alemã. Dirigiam-se paraAuschwitz.

O Bispo Hurdal, chefe da Igreja alemã em Roma, reconhecendo que o arregimentarde judeus em Roma era um momento chave, informou o comando alemão de que ascapturas tinham de acabar. Caso contrário, o papa «teria de tomar uma posição claraque a propaganda anti-germânica aproveitará como arma contra nós». Também oembaixador alemão estava profundamente preocupado. Andavam a apanhar os judeus,mandou ele dizer para Berlim, praticamente debaixo do nariz do papa. E este, tal comomuitos bispos franceses, não teria outra alternativa senão protestar contra a políticaalemã.

Estes receios vieram a revelar-se infundados. Pio XII não disse absolutamente nada.Quando o diplomata americano Harold Tittman foi recebido em audiência três dias maistarde, o papa não falou dos judeus. A sua preocupação eram as pequenas célulascomunistas espalhadas por Roma.

Os Nazis ficaram admirados; não podiam acreditar na sua sorte. Isto encorajou-os alevar a cabo medidas idênticas em Florença, Veneza, Ferrara, Génova e Fiume. Em seissemanas foram arregimentados e levados para Auschwitz dez mil judeus, 7550 dosquais aí morreram. Os italianos abrigaram tantos judeus quanto podiam. Isto era maisfácil na medida em que os judeus não tinham um aspecto muito diferente deles.

Page 186: Vigde cristo

186

Encorajadas pela Santa Sé, as igrejas, conventos e mosteiros, todos desempenharam oseu papel; alguns judeus refugiaram-se no Vaticano.

Em Dezembro de 1943, os judeus foram formalmente privados da cidadania italiana.Numa só captura, foram aprisionados 650 judeus romanos, noutra, 244. Havia setentajudeus entre os reféns mortos nas Grutas Ardeantinas, em Março de 1944. Este númerorepresentava uma represália de 10 para 1 pelos polícias alemães mortos a tiro ememboscadas pela Resistência, com mais cinco vítimas acrescentadas por engano.

Entre os primeiros reféns mortos com um tiro na nuca estava Dominico Rici,funcionário católico de Roma, de trinta e cinco anos e pai de cinco filhos. Num dos seusbolsos foi encontrada uma nota rabiscada em maiúsculas: «Meu Deus, rezamos paraque Vós protejais os judeus destas bárbaras perseguições. Um Padre-nosso, dez Ave-marias, um Gloria Patri». Juntamente com Rici, morreram seis judeus chamados DiConsiglio: três irmãos, o pai destes, o avô e o tio. Robert Katz escreveu no seu livroMorte em Roma:

Não era necessário um milagre para salvar os 335 homenscondenados a morrer nas grutas Ardeantine. Um homem podia,devia e tem de justificar a razão por que não agiu para pelo menosadiar o morticínio alemão. Esse homem é o Papa Pio XII.

O papa soube por Dollman, chefe das SS em Roma, e através do Padre Salvatorianoalemão Pancrazio, que ia haver um banho de sangue. Contudo, as simpatias do papaeram mistas. Ele pensava que o ataque da Resistência às forças alemãs foi um crimemaior porque não provocado. O dia do massacre encontrou-o em audiência com oscardeais do Santo Ofício e da Congregação dos Ritos e a preparar-se para ascerimónias da Quaresma.

O massacre não foi registado pela rádio independente do Vaticano.Se o papa ao menos tivesse arriscado ser preso usando uma estrela de David, ou

tivesse falado ao menos uma vez para dizer ao povo judeu que eles não estavamsozinhos na sua agonia…!

Muito longe, um dos líderes do Levantamento Polaco lamentava o silêncio de todosos líderes mundiais. Era para ele «espantoso e horrível». A sua mensagem dizia: «Omundo está em silêncio. O mundo sabe, não é possível que não saiba, mas continuacalado. O representante de Deus no Vaticano está calado».

O horror romano terminou em 5 de Junho de 1944 quando os Aliados libertaram acidade. O capelão militar removeu os selos, incluindo o de Pio XII, das portas da GrandeSinagoga. Os judeus eram livres de novo. Saíram dos esconderijos para verificarem quefaltavam mais de dois mil deles.

Cecil Roth exprimiu em 1946 a sua sincera gratidão à Igreja pela ajuda que prestouao seu povo durante a guerra. «Desta maneira, no século XX o grande erro do Guetoitaliano foi resgatado». Pinchas E. Lapide louvou Pio XII pelo seu trabalho silencioso naretaguarda. Muitos observadores são menos caridosos. Para estes, a questão é: Porque é que o papa não ergueu a sua voz?

Os seus defensores dizem que ele quis preservar a neutralidade do Vaticano comomediador; receava carregar as consciências dos católicos alemães com um fardointolerável. Os seus críticos respondem: Pode haver neutralidade entre o bem e tãotremendo mal? Além disso, e o fardo dos judeus que os alemães, católicos e nãocatólicos, estavam a assassinar aos milhões?

Page 187: Vigde cristo

187

O retrato que Hochhuth faz de Pio XII na sua peça O Representante como umaespécie de super capitalista que temia apenas a desvalorização das suas acções, éridículo. Provavelmente Pio nunca em toda a sua vida pensou em bens pessoais.Hochhuth andou mais perto da questão quando perguntou «como é que, nesta chamadaEuropa cristã, pode ocorrer o assassínio de um povo inteiro sem que a mais altaautoridade moral da terra tenha dito uma palavra sobre isso?»

No próprio Vaticano vieram à tona diferenças de opinião. Depois da guerra, Paulo VIhavia de vir em defesa do seu ex-superior dizendo que protestar contra as atrocidadesalemãs «teria sido não só em vão como prejudicial». Enquanto que o Cardeal Tisserant,mais tarde Deão do Sacro Colégio, disse, ainda durante a guerra:

Receio que a História vá criticar a Santa Sé por ter praticado umapolítica de conveniência egoísta e pouco mais. Isto é muito triste,especialmente para aqueles [de nós] que viveram sob Pio XII. Todaa gente [em Roma] está convencida de que depois de Roma serdeclarada cidade aberta os membros da Cúria não terão de sofrerqualquer dano; isto é uma vergonha.

Os tempos da deposição de reis já lá vão há muito. Católicos como Hitler ou Goebelsnão teriam ficado preocupados com a excomunhão, nem teriam deixado de perseguir osJudeus por o papa lhes pedir. Mas alguns perguntam: Não podia Sua Santidade, quedeclarou infalivelmente em 1950 que uma judia foi levada de corpo e alma para o Céu,ter dito com autoridade em 1942 que a sua raça não devia ser aniquilada por serjudaica? O que é que o impedia de dizer publicamente, como Tisserant o incitou a fazer,que os católicos não podiam participar num assassínio em massa ou que há situaçõesem que os líderes legais devem ser desobedecidos, qualquer que seja o preço?

A única explicação satisfatória para o silêncio de Pio XII é que ele era primeiro e antesde tudo um católico; católico antes de cristão ou ser humano, muito embora fosse umbom cristão e um ser humano profundamente compassivo. O seu admirador judeuLapide escreveu: «Um simples édito papal dizendo aos cristãos que a lei judaica queCristo pregou aos discípulos — «Ama o próximo como a ti mesmo» — deve aplicar-setambém aos judeus, teria sido mais proveitoso do que longas listas de proibições erestrições. Mas nunca tal carta chegou de Roma». Se ao menos Pio XII tivesse cuidadotanto dos judeus como Pio IX cuidou dos seus Estados Papais…!

A Pio seguiu-se João XXIII, de setenta e sete anos, a quinta-essência do ser humano.Expurgou imediatamente a palavra “pérfido”, o adjectivo usado em relação aos judeusna liturgia da Sexta-feira Santa. Ele sabia que a Sexta-feira Santa devia antes ser umaespécie de Yom Kippur em resgate do pecado da Igreja de crucificar Jesus nas pessoasdos irmãos judeus ao longo dos tempos. Certa vez, quando recebeu os líderesamericanos do Apelo Judaico Unido, o papa disse com um sorriso: «Eu sou José, vossoirmão» («Son’io Giuseppe il fratello vostro»). José era o irmão mais novo.

Sob a direcção de João, o Cardeal Bea preparou um documento sobre os Judeuspara ser presente no Concílio Vaticano II. João morreu antes de ele ser aprovado. Dequalquer maneira, com alterações que o deixaram quase irreconhecível, acabou por serescasso demais e tardio demais. Não há nele qualquer verdadeira sugestão de perdão,como há na grande prece de João, pela doutrina e comportamento dos católicos aolongo dos tempos que contribuíram para o anti-semitismo. No Concílio, e satisfazendoas objecções de alguns bispos, os Judeus nem sequer foram ilibados da acusação dedeicídio. O novo papa, Paulo VI, defendeu um texto mais fraco. A sua falta de

Page 188: Vigde cristo

188

sensibilidade em relação aos Judeus revelou-se mais tarde num sermão que ele pregouno Domingo da Paixão de 1965. «Os Judeus» disse ele «foram predestinados parareceber o Messias e esperaram por ele durante milhares de anos. Quando Cristo chega,o povo judeu não só não o reconheceu como se lhe opôs, o caluniou e finalmentematou». Depois do Holocausto, depois de todas as deliberações do Concílio, o papa, umhomem bondoso, voltou a culpar toda a raça judaica pela morte de Jesus.

Monsenhor John M. Oestreicher, que fez o esboço do documento original do VaticanoII sobre os judeus, confessou: «Os padres conciliares podiam ter feito ressoar a Basílicacom o grito: “Não mais campos de concentração! Não mais câmaras de gás! Não maistentativas de extermínio de um povo inteiro! Não mais perseguições aos Judeus!”» Elesnem nunca tiveram coragem de dizer que os judeus não podem ser acusados da mortede Deus.

A mais longa viagem de João Paulo

Concordaram em encontrar-se na primavera, imediatamente antes da Páscoa Judaicado ano de 1986, segundo o calendário cristão. O Papa João Paulo já viajara por todosos continentes, mas esta seria a sua mais longa viagem. Respirou fundo quando sepreparava para entrar no edifício enfeitado que fica praticamente à vista do seu própriopalácio do Vaticano. Talvez mil pessoas apinhavam-se num espaço destinado a poucascentenas. A porta principal estava aberta de par em par quando ele passou do solbrilhante no exterior para a sombra do interior da sinagoga.

Em certo sentido, os Judeus são os paroquianos mais antigos do papa. Eles viviamnas ruas de Lungotevere de ‘Cenci quando um pescador veio da Galileia para viver entreeles há quase dois mil anos. Desde então, os judeus e os pontífices, únicossobreviventes da Roma Imperial, sempre estiveram no pensamento uns dos outros.

Neste dia, entre os judeus ali reunidos, estavam quarenta que, quais fantasmas deuma era passada, traziam tatuagens nos braços. Eram sobreviventes dos campos demorte nazis. João Paulo foi recebido pelo Rabi Chefe Elio Toaff, também de branco,salvo as tiras negras verticais do seu manto de orações. Os dois representantesolharam-se nervosos. O rabi cofiava a barba branca e o pontífice agarrava a cruz deouro que traz ao peito e de que muitos dos congregados não conseguiam tirar os olhos.Tinham sofrido muito por causa daquela cruz. Ambos os homens sabiam que esteencontro iria ficar na História. Ambos tinham consciência também de que havia membrosde ambas as comunidades que não viam com bons olhos este encontro do Bispo e doRabi Chefe de Roma naquele solene período litúrgico na sinagoga que foi o coração e aalma do último gueto europeu antes da ascensão de Hitler. Muitos judeus presentessabiam o que Pio X disse em 1904, porque Golda Meir o relatou na sua Autobiografia:«Não podemos impedir os Judeus de irem a Jerusalém, mas Nós nunca osancionaríamos. […] Os Judeus não reconheceram Nosso Senhor; Nós não podemosreconhecer os Judeus». Toaff tinha um problema adicional. Não podia esquecer que umseu antecessor, o Rabi Chefe Israel Zolli, se tornou católico em 1945 e tomou o nome deEugénio em reconhecimento a Pio XII por ter acolhido os judeus durante a SegundaGuerra Mundial. Desde Constantino que não havia tão surpreendente conversão.

O pontífice, com um sorriso triste, olhou a congregação com profundo respeito antesde iniciar uma alocução em que deplorou os ódios e as perseguições que “alguém”alimentou e perpetrou contra os Judeus. Repetiu a última expressão e um dispersoaplauso estendeu-se a toda a assembleia, fazendo vibrar os travejamentos. Quandoexprimiu o seu horror pelo genocídio nazi, muitos choraram abertamente. Eles sabiam

Page 189: Vigde cristo

189

que ele, um polaco vindo de Cracóvia, a apenas algumas milhas de Auschwitz, tinhacompartilhado seu pesar. Três milhões daqueles que lá foram chacinados eram tantopolacos como judeus.

Enquanto o cantor e o coro cantavam Ani Ma’amin, o cântico de fé cantado pelosjudeus a caminho da morte, os pensamentos de muitos naquele dia de primaveravoltaram-se para Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau e Treblinka.

Passados os oitenta minutos da cerimónia na sinagoga da margem do Tibre, haviaesmagadoras razões tanto a favor como contra preces conjuntas, e assim pontífice erabi oraram juntos — em silêncio. Depois, esquecendo o protocolo e a profunda divisãoreligiosa, com o pensamento apenas na sua humanidade comum, judeu e católicoabraçaram-se calorosamente. A assembleia rompeu de novo em aplausos. Nem uma sóvez o papa mencionou o Estado de Israel; isso, explicou um assessor mais tarde, é umaquestão política. Curiosa reserva num pontífice cujos antecessores desejaramardentemente adquirir e manter os Estados Papais. Mas aqueles poucos que nestemomento sagrado representavam os judeus de todo o mundo sabiam que João Paulo,embora modesta e indirectamente, tinha aceitado alguma da culpa pelas incessantestragédias do seu povo que culminaram no Holocausto.

O longo e desapiedado tratamento dado aos Judeus pelos papas foi o resultado deuma grave má interpretação da verdade evangélica. Porque, segundo a própriainterpretação da cruz por parte da Igreja, não foram os Judeus por si só osresponsáveis, nem total ou nem parcialmente, pela crucificação, mas os pecados domundo, isto é, os pecados da raça inteira. Os cristãos, ao perseguirem os Judeus,tentaram talvez escapar à sua própria culpa. Se fizeram dos Judeus os bodesexpiatórios foi talvez por nunca terem conseguido perdoar-lhes por eles lhes darem umtão sagrado e exigente Salvador.

A maioria dos historiadores concordaria com a profética acusação de Charles Lea,escrita no século passado, no primeiro volume da History of the Inquisition in Spain:

A Igreja ensinou que, à excepção do assassínio, nenhum castigo,nem sofrimento, nem desonra eram severos demais para osdescendentes daqueles que se recusaram a reconhecer o Messias.[…] Não será demais dizer que pelos infindos erros cometidos sobreos Judeus durante a Idade Média, e pelos preconceitos que aindapor aí andam em muitos lugares, a Igreja é a principal, se não aúnica responsável.

Será demasiado cruel classificar como heresia aquilo que muitos pontífices romanosdisseram sobre os judeus e a maneira como os trataram?

Page 190: Vigde cristo

190

Page 191: Vigde cristo

191

12Heresias Papais

«Muitos pontífices romanos foram heréticos». Para os católicos isto soará como umacitação de um protestante fanático. Um papa herege parece tão contraditório como umcírculo quadrado. O Primeiro Concílio Vaticano disse que o papa, sem precisar doconsentimento da Igreja, é o juiz infalível da ortodoxia. É certamente impensável que umpapa como João Paulo II se pudesse afastar da verdade e, portanto, da Igreja, caindoem heresia.

Aquela citação não é, de facto, de um protestante, mas do Papa Alexandre VI em1523.

Se por Igreja Romana se entende o seu chefe ou pontífice, não hádúvida de que ele pode errar, mesmo em matéria de fé. E é o queacontece quando ele ensina a heresia por seu próprio julgamento oudecretal. Na verdade, muitos Pontífices Romanos foram heréticos. Oúltimo deles foi o Papa João XXII [1316-1334].

O tema das heresias papais e dos papas excomungados pela Igreja era vulgar naTeologia, mas desde 1870 pouco se ouve falar dele. Mesmo o autoritário Inocêncio IIIconfessava: «Eu posso ser julgado pela Igreja por um pecado em matéria de fé».Inocêncio IV, embora afirmando que, como Vigário do Criador, todas as criaturas a eleestavam sujeitas, admitia contudo que qualquer determinação papal que seja heréticaou tenda a dividir a Igreja não deve ser obedecida. «Claro que um papa» dizia ele«pode errar em matéria de fé. Portanto, ninguém deve dizer “Eu acredito nisto porque oPapa também acredita”, mas sim “porque a Igreja também acredita”. Se ele seguir aIgreja, nunca errará.» Por qualquer razão, estas palavras, que apareciam no textooriginal de Inocêncio IV intitulado Comentário Sobre o Decálogo, foram retiradas dasúltimas edições. É difícil saber porquê, uma vez que muitos papas disseram mais oumenos o mesmo.

Os papas falíveis

A aura que hoje envolve o papado é tal que poucos católicos se apercebem de quedizer que um papa não pode cair em heresia vai contra a fé e a tradição. O papasempre foi falível muito antes de ser infalível. Desde os primeiros tempos que era factoassente que os pontífices romanos não só podiam errar como de facto erraram emmatérias fundamentais da doutrina cristã. E nem ninguém se apressou a acrescentarnesses dias longínquos: «Claro que ele só errou como doutrinador ou teólogoparticular». Isto sugere que além das suas convicções e das respostas aos seusdiocesanos, ele também regulava a fé de toda a Igreja. Não há provas disto. O que hojeé conhecido como infalibilidade papal não era sugerido, nem sequer veladamente, naIgreja primitiva e qualquer ideia de que um Bispo de Roma era, ele próprio, infalível,teria provocado por vezes alguma hilaridade. A fé da Igreja era pertença da Igreja e era

Page 192: Vigde cristo

192

regulada pelos sucessores de todos os apóstolos, nomeadamente os bispos. Elestestemunhavam a fé das suas comunidades, especialmente quando se reuniam emConcílio Geral. Um papa que saísse da linha em matéria de fé era condenado comoherege. Pedro cometeu erros. E o Bispo de Roma também. Quando isso acontecia aIgreja tinha o direito e o dever de o corrigir ou depor. Afinal, também o papa era ummembro da Igreja e não um qualquer tipo de oráculo divino exterior a ela.

Não era simplesmente a ideia de infalibilidade, mas o próprio gérmen da ideia quenão existia na época patrística. Roma era consensualmente considerada a maiseminente sé do Ocidente. Pedro e Paulo lá ensinaram e morreram. As suas ossadastornaram-se lugar de peregrinação, de luz e de esperança. Apesar disso, nos primeirostrês séculos, um dos Padres, Ireneu, relaciona a primazia de Roma com a doutrina.Nem mesmo ele a relaciona com o Bispo de Roma.

Não há nenhum dos Padres Gregos uma só palavra acerca das prerrogativas doBispo de Roma, não há qualquer sugestão de que ele tivesse jurisdição sobre eles.Ninguém, grego ou latino, apela ao Bispo de Roma como árbitro universal em qualquerdisputa sobre a fé. De facto, nenhum bispo de Roma se atrevia a tomar sozinho umadecisão para a Igreja em matéria de fé.

Roma locuta est, causa finita est. A frase de Santo Agostinho, «Roma falou, aquestão está encerrada» é continuamente citada pelos defensores do Catolicismo. Comrazão. Dos dez enormes fólios que constituem a sua obra, esta é a única frase queprova que o Bispo de Roma tem, por si só, o direito de resolver as controvérsias naIgreja. Mas será que prova mesmo? O contexto revela Agostinho a argumentar quedepois de dois sínodos, com o concurso do Bispo de Roma, é altura de parar. Agostinhoapela repetidamente aos sínodos para resolver controvérsias. Quando o Papa Estêvãotentou resolver uma disputa baptismal para a Igreja Africana e a sua opinião foirejeitada, Agostinho diz que eles tiveram razão em agir assim. Tratava-se de umaquestão para a Igreja e não para um indivíduo.

Agostinho passou grande parte da sua vida a discutir com a igreja rival dosDonatistas. Nunca, nem por uma só vez, ele sugere que eles se separaram do centro daunidade, Roma; não reconhece tal centro para a Igreja como um todo. Ele nunca diz,por exemplo, como fazem os papas modernos: «Voltem para Roma, creiam em tudo oque o papa ensina».

Em 434, Vincent de Lerins estabeleceu os critérios da doutrina católica: ela deve sersempre sustentada por todos em toda a parte. Não menciona o papel de Roma nem dosseus bispos. A fé é formulada por um Concílio e não individualmente por um bispo.

O Papa Pelágio (556-60) fala dos hereges que se afastam das Sés Apostólicas, istoé, de Roma, Jerusalém e Alexandria, mais Constantinopla. Em todos os escritosprimitivos da hierarquia não há qualquer referência especial ao papel do Bispo deRoma, nem sequer ao nome especial de “Papa”. Mencionam-se os Patriarcas, dosquais o de Roma era o primeiro por causa de Pedro e Paulo, os arcebispos, osmetropolitas e os bispos. Não há qualquer referência ao papa nem ao seu papel, nemmesmo em Isidro de Sevilha, o grande autor do século VII.

Outra omissão surpreendente, à vista do Concílio Vaticano I: das cerca de oitentaheresias dos primeiros seis séculos, não há nenhuma que refira a autoridade do Bispode Roma, nenhuma é declarada pelo Bispo de Roma. Por vezes ataca-se o episcopadoem geral; mas ninguém ataca a autoridade do pontífice romano, porque nunca ninguémouviu falar de tal coisa.

Depois de Pedro passaram-se séculos, cheios de controvérsias, qualquer das quaishoje envolveria o imediato recurso a uma decisão de Roma. Nesses tempos nenhumBispo de Roma se atreveria a tentar resolvê-las e nenhum bispo lhe pediria que o

Page 193: Vigde cristo

193

fizesse. O Papa Sirício (384-98) não era nenhum Gregório VII. Quando um certo BispoBosónio caiu em heresia, recusou-se a pronunciar-se contra ele porque, dizia, não tinhao direito de o fazer. A questão devia ser resolvida pelos bispos da província.

Já assinalámos que não há um único Padre que encontre qualquer sugestão deexercício Petrino nos grandes textos bíblicos que se referem a Pedro. A supremacia einfalibilidade papais, hoje tão fundamentais para a Igreja Católica, não sãosimplesmente referidos. Não há um único credo, uma única confissão, um únicocatecismo, uma única passagem nos escritos patrísticos que contenha uma palavra queseja acerca do papa, e muito menos a ideia de que a fé e a doutrina derivam dele.

Todos os indicadores vão no sentido de que o Bispo de Roma é falível e não infalível.De facto, o primeiro papa a apelar para qualquer coisa do tipo daquilo que nós hojeconhecemos como autoridade papal foi Ágato em 680. E fê-lo por uma razão bastanteembaraçosa: um seu antecessor, o Papa Honório, ia ser condenado por heresia por umConcílio Geral.

Uma longa lista de papas heréticos

A tradição de heresia entre os Bispos de Roma remonta a tempos anteriores aHonório. Libério (352-66), por exemplo. Libério fez os possíveis por resolver acontrovérsia Ariana. Ário acreditava que o Filho era menos do que o Pai. O grandedefensor da ortodoxia era Atanásio. Libério fora forçado a exilar-se e a condição para oseu regresso era condenar Atanásio. Foi o que ele fez, sugerindo desta maneira que oFilho estava abaixo do Pai. Por isto, ele ganhou a maldição de um Padre muitoimportante, Hilário de Poitiers, que o acusou de apostasia. «Maldito sejas, Libério» foi afamosa exclamação de Hilário, e todos os bispos ortodoxos a subscreveram. O erro deLibério foi uma prova incontestável ao longo da Idade Média de que os papas podemcair em heresia como qualquer outra pessoa.

Outros papas houve que fizeram afirmações infelizes. Gregório o Grande disse queos bebés não baptizados vão directamente para o inferno e lá ficam a sofrer para toda aeternidade. Alguns pontífices foram ainda mais longe. Inocêncio I (401-17) escreveu aoConcílio de Milevis e Gelásio I (492-6) aos bispos de Picenum dizendo que os bebésdeviam receber a comunhão. Se morressem baptizados mas sem a comunhão iamdirectamente para o inferno. Esta opinião foi condenada pelo Concílio de Trento.

O mais hamletiano de todos os papas foi Vigílio (573-55), cuja carreira se assemelhaa uma farsa teatral.

Vigílio era um corpulento funcionário romano sem escrúpulos, que nunca foi popular.O Papa Bonifácio II queria que ele fosse o seu sucessor e escreveu uma carta a nomeá-lo papa após a sua morte. Uma multidão em fúria por o papa se ter atrevido a violar osseus direitos democráticos, enquanto clero e povo de Roma, obrigou-o a queimá-la. Foium momento interessante. Se tivessem deixado Bonifácio levar a sua avante, talveznunca mais tivesse havido eleições papais. Certamente que depois de 1870, anomeação pelo papa do seu sucessor teria sido considerada um dado adquirido. Quemmelhor do que o Vigário de Cristo, com a plenitude do poder, para escolher o próximosucessor de S.Pedro? Mas os romanos do século VI insistiam que Roma era a suadiocese e que tinham o direito de escolher a pessoa que os iria governar.

Anos mais tarde, Vigílio conseguiu mesmo ser eleito papa. O seu não foi um reinadofeliz. O Imperador Justiniano obrigou-o a juntar-se-lhe em Constantinopla e aí omanteve até o pontífice concordar com as suas próprias opiniões heterodoxas sobre

Page 194: Vigde cristo

194

Jesus e a autoridade do Concílio da Calcedónia. Vigílio mudava de opinião tantas vezesquantas aquelas em que era pressionado pelo imperador.

Por fim, Justiniano convocou o Quinto Concílio Geral, que reuniu em Maio de 553 nagaleria sul da Igreja de Santa Sofia em Constantinopla. De um total de 165 bispospresentes, só vinte e cinco eram ocidentais. Vigílio mandou apresentar as suasdesculpas, alegando que estava doente. A sua ausência não foi consideradasuficientemente importante para adiar os trabalhos. O Concílio reuniu e decidiu, entreoutras coisas, que Sua Santidade era herético. Foi, portanto, excomungado.

Quando isto chegou ao seu conhecimento, o papa condenou a decisão do Concílio etodos aqueles que o tinham excomungado. Furioso, Justiniano baniu-o paraProconescu, uma sombria enseada rochosa próxima da extremidade ocidental do marde Mármara. Aí lhe chegaram boatos de que estava iminente uma nova eleição parapapa e que o seu nome tinha sido retirado das listas litúrgicas dos papas. Estava mal desaúde; sofria agonias terríveis provocadas por cálculos. Depois de seis meses nestasituação, não aguentou mais.

Em 8 de Dezembro de 553 mandou uma carta ao Patriarca de Constantinopla emque alegava que até então tinha sido iludido pelos «embustes do demónio». Satanástinha-o afastado dos seus irmãos bispos, mas com a pena de excomunhão tinha visto aluz. As suas passadas opiniões, confessou ele, estavam erradas e, tal como o grandeAgostinho, queria retractar-se. Aceitou todos os decretos do Quinto Concílio e declarou-os verdadeiros e obrigatórios no Ocidente.

Agora que o papa tinha cedido às suas opiniões, o imperador estava pronto a deixá-lo voltar para o seu país. Em Roma esperava-o uma recepção muito pouco amistosa.Só escapou ao linchamento porque morreu em Siracusa em 7 de Junho de 555.Recusaram-lhe o enterro na Basílica de S.Pedro.

A Itália sentia-se de tal maneira ultrajada com a conduta de Vigílio e com as suasfrequentes mudanças de opinião sobre a questão essencial de Jesus ser uma ou duaspessoas, que a princípio recusou aceitar a legitimidade do Quinto Concílio. O Arcebispode Milão e o Patriarca de Aquileia, em protesto, afastaram-se da Santa Sé. Ficou para opapa seguinte a tarefa de clarificar a situação com a ajuda do exército.

O significado desta controvérsia não reside naquilo que foi debatido na altura. Residesim no facto de um concílio se considerar acima do papa ao ponto de o excomungar e odepor por heresia. Durante a Idade Média este foi um daqueles casos históricos queprovaram a todos os teólogos que um concílio era superior a um papa. Só muito maistarde é que as falsificações vieram a alterar esta convicção. Antes disso, nuncaninguém considerou que os papas eram ortodoxos por uma espécie de prerrogativadivina; eles tinha de provar a sua ortodoxia como qualquer outra pessoa.

O herético Papa Honório

Honório, que foi papa de 625 a 638, é o exemplo clássico de um papa condenadopela Igreja por heresia. Era um homem notável, um santo, um bom líder e um beloestadista. É comparável em estatura moral a Gregório o Grande.

O seu único defeito fatal era que, sendo um homem de acção, não gostava decontrovérsias porque faziam perder tempo que era mais bem empregue em servir aDeus e aos pobres.

O Concílio da Calcedónia estabelecera que Cristo tinha duas naturezas; era divino ehumano. Punha-se então uma questão suplementar: Cristo tinha uma só vontade ouduas? Numa carta muito publicitada, Honório ridicularizou aqueles «filósofos

Page 195: Vigde cristo

195

bombásticos que são uma perda de tempo» que ao pesarem as duas naturezas deCristo «nos coaxam quais rãs». Ele discordava das duas vontades, embora não sejabem clara a razão porquê. Talvez ele estivesse simplesmente a reagir contra a ideia deduas vontades contraditórias em Cristo. Seja como for, as suas palavras foramclassificadas de contrárias à fé. Foi rotulado de Monotelista (defensor da ideia davontade única). Honório morreu antes de poder explicar-se integralmente. Mas a suacarta provocou a heresia na Igreja oriental. Estes hereges recorreram à carta paraprovar que o papa concordava com o Monotelismo.

Quarenta anos depois da morte de Honório, o imperador quis arrumar o assunto.Sugeriu um Concílio Geral, com que o novo papa, Ágato, concordou e para o qual sepreparou realizando os seus próprios sínodos em Roma. O Sínodo da Páscoa de 680condenou o Monotelismo e declarou pela primeira vez que Roma tinha a supremaciasobre toda a Igreja. Informaram o imperador de que a Igreja Romana era a mãe e queninguém devia atrever-se a dizer que ela alguma vez errara em questões de fé. Então, oSínodo nunca tinha ouvido falar de Vigílio? Aquela declaração orgulhosa e semprecedentes foi talvez o que ditou o destino de Honório.

O Sexto Concílio Geral realizou-se no Palácio Imperial de Constantinopla; durou de 7de Novembro de 680 a 16 de Setembro de 681. Os Monotelistas sustentaram que oPapa Honório estava do seu lado. O Concílio concordou. Ao condenarem osMonotelistas, os padres estavam a condená-lo também a ele.

Os 174 delegados aprovaram os decretos; os legados papais assinaram primeirosem quaisquer objecções. O novo pontífice, Leão II, eleito em 682, confirmou acondenação do seu antecessor. Escreveu ele: «Honório tentou, numa profana traição,subverter a fé imaculada». Isto não era uma mera questão de condenar uma qualqueropinião pessoal ou subtileza teológica. Leão condenou-o por minar publicamente a fé daIgreja. Senão, por que estava então um Concílio Geral envolvido na questão? A partirde então, todos os pontífices, quando da sua sagração, estavam obrigados a sancionara decisão do Concílio, com um juramento em que se condenava a heresia do papaHonório.

Gregorovio escreveu em Rome in the Middle Ages: «O único exemplo de paparomano publicamente anatemizado sob a acusação de heresia por um ConcílioEcuménico constitui um dos factos mais notáveis da história eclesiástica». Poucoimporta se Honório era herético ou meramente um homem simples e brusco quepreferia os actos às palavras e que tentou pôr fim a uma controvérsia com uma cartalançada à pressa. O ponto chave é que um Concílio Geral, confirmado por uma longageração de papas, testemunhou que a Igreja não acredita que um papa seja infalível.Pelo contrário, quando comete um erro que descaminha a Igreja, o papa tem de sercondenado, como qualquer outra pessoa, como herege. Em matéria de fé, o Bispo deRoma está sujeito a um Concílio, na mesma medida em que está qualquer outro bispo.Assim, numa antecipação de quase doze séculos, negou-se a infalibilidade papal, talcomo foi definida num concílio menor da fragmentada Igreja Ocidental em 1870.

As heresias sacramentais de Roma

A mais persistente falta de ortodoxia de Roma era na área dos sacramentos. Istoexplica-se em parte pelo colapso da erudição provocado pelas invasões bárbaras. Osgregos tendiam a olhar maliciosamente Roma como uma cidade de papalvos.

A partir do século VIII, certos papas anularam ordenações e reordenaram padres. Istocomeçou com um anti-papa, Constantino II, no ano de 769. Mas, como já vimos, o Papa

Page 196: Vigde cristo

196

Formoso, após a sua morte em 896, foi não só desenterrado e excomungado porheresia, como também as suas ordenações foram consideradas inválidas. Istolevantava uma questão alarmante: haverá em Itália, de que o papa é o patriarca, algumsacramento válido? Os Papas Estêvão VII e Sérgio III, o amante de Marozia, ensinavamambos que as ordenações dos papas heréticos eram inválidas.

Este ataque aos sacramentos continuou pelo século XI. Os papas decidiram queonde houvesse simonia — isto é, pagamento — envolvido na ordenação de um bispo,esta era inválida. Isto levou Leão IX (1049-54), provavelmente instigado porHildebrando, a reordenar muitos padres. Quando Hildebrando se tornou Gregório VII,afirmou claramente que todas as ordenações que envolviam dinheiro eram inválidas.Levada a sério, esta decisão teria tornado nulas a maior parte das ordenações nomundo ocidental. Não teria havido missas válidas, nem confissões, nem extrema-unções em país atrás de país. Teria praticamente varrido a Sucessão Apostólica,desastre que Leão XIII havia de dizer que aconteceu à Igreja da Inglaterra depois daReforma.

Urbano II (1088-99) foi ainda mais longe do que Hildebrando. Mesmo que não paga,disse ele, a ordenação de um bispo seria inválida se o bispo que o consagrara tivessepago pela sua própria ordenação. Esta interpretação dos sacramentos, que eracontrária a toda a tradição, penetrou nos Decretais de Graciano. Apesar desta imensaautoridade dos papas e da lei canónica, esta heresia, por qualquer razão inexplicável —o Espírito Santo? — não se vulgarizou no Ocidente. O Oriente manteve-se à partedestas opiniões heterodoxas.

Em 1557, Paulo IV, na sua Bula Cum ex Apostolatus officio, determinou «na plenitudedo seu poder» que todos os actos dos papas anteriores com inclinações heréticas oucismáticas eram nulos e sem validade. Isto tinha alguma lógica: um papa herético nãoera sequer cristão, muito menos pontífice. Mas, posto em prática, teria feito explodirtodo o sistema católico de sacramentos, que é hereditário por natureza, isto é, étransmitido de geração em geração. Se uma geração o perde — por exemplo, usandofórmulas erradas ou tendo intenções incorrectas — fica perdido para sempre. Por muitopeculiar que isto possa parecer, é doutrina católica ortodoxa. E é peculiar na medida emque deve por natureza gerar a incerteza. Por exemplo, uma criança invalidamentebaptizada por um padre que inconscientemente diz as palavras erradas ou usa umlíquido que não a água podia vir a ser padre — todas as suas missas e confissões sãoinválidas; ou bispo — todas as suas ordenações são inválidas; ou papa — a maior partedas obras da Igreja são inválidas. Felizmente, nem Roma, a mais intelectualmenterigorosa das igrejas, leva estas questões até às suas últimas consequências lógicas.Isto pode explicar a razão por que até ela voltou as costas a Gregório VII e a Gracianona questão dos sacramentos.

Não foi só na mera questão das ordenações que Roma se desviou do caminho daortodoxia.

O Papa Pelágio já dissera, correctamente, segundo a tradição, que a Trindade temde ser invocada para um baptismo válido. Nicolau I (858-67) disse que invocar o nomede Cristo era suficiente. Pior do que isto, decidiu que a confirmação ministrada porpadres era inválida. De um só golpe, varreu praticamente a confirmação da Igreja grega.Esta tinha permitido desde tempos imemoriais que os padres confirmassem as crianças.O Papa Nicolau disse que a prática era inválida e os bispos orientais teriam dereconfirmar as crianças. Talvez os próprios bispos devessem ser reconfirmados! Adecisão de Roma de “anular” séculos de confirmações na sua Igreja naturalmente que

Page 197: Vigde cristo

197

contrariou os gregos e contribuiu para abrir uma brecha permanente entre Oriente eOcidente.

A doutrina de Roma sobre o casamento também não escapou aos erros.Estêvão II (752) foi contra a corrente da tradição quando disse que o casamento

entre um homem livre e uma escrava, ambos cristãos, podia ser dissolvido, permitindoque o homem voltasse a casar. Urbano III (1185-7) também sugeriu que havia situaçõesem que um casamento consumado entre cristãos podia ser terminado. Celestino III(1191-8) esclareceu este ponto. Um casamento entre cristãos, disse ele, pode serdissolvido se uma das partes optar por se tornar herege. Por esta afirmação, o PapaAlexandre VI declarou o Papa Celestino herege. Até Inocêncio III tropeçou neste tópico.Insistiu que os cristãos tinham de seguir o Deutronómio à letra. Sua Santidade ignoravao facto de que o Deutronómio permite que um homem se divorcie da mulher.

Os papas erraram até quanto à Eucaristia. Para além dos primeiros papas que, comovimos, diziam que a verdadeira comunhão era necessária para a salvação, mesmo paraos bebés, o papa Nicolau II (1059-61) disse que o corpo de Cristo pode sermanifestamente tocado com as mãos e mordido com os dentes. A Igreja rejeitou estaopinião. Nicolau tinha uma noção completamente errada da presença real — de modonenhum sacramental — e parecia também asseverar que, depois da ressurreição,Cristo continua a sofrer.

Foi, porém, um papa de Avinhão, João XXII, que Adriano VI no seu livro sobre ossacramentos seleccionou como um herege de proporções invulgares.

As heresias do papa João XXII

Quando Clemente V morreu, no ano de 1314, o conclave tentou durante dois anosum acordo sobre o sucessor. Finalmente, em desespero, escolheram Jacques Duèse daCahors. A data foi 7 de Agosto; o lugar, Lyons. O novo pontífice tomou o nome de JoãoXXII.

Parecia o homem certo para a função. Com setenta e dois anos, pequeno, delicado,de aspecto doente, este filho de um sapateiro já não iria provavelmente viver muitotempo. João XXII viria a mostrar-se um pontífice cruel e duradouro, ambicioso, avarento,mais mundano do que um proxeneta, e com um riso que não podia ser mais malicioso.Este frágil e pequeno monstro iria viver ainda mais dezoito anos tempestuosos.

Quando tomou posse, o tesouro estava depenado. Clemente V tinha distribuídoabsolutamente tudo pelos familiares. João tratou de rectificar a situação. Financeirogenial, trabalhou com base no princípio de que aquilo que um papa dá, um papa podevender. E vendeu tudo aquilo que podia vir à cabeça de um qualquer francês comimaginação. O perdão por todos os crimes tinha o seu preço. Por exemplo, os católicospodiam pagar um tanto para serem absolvidos de homicídios, um tanto, de incesto e desodomia. Quanto pior se portassem os católicos, tanto mais rico ficava Sua Santidade.Quando foi publicada uma lista clandestina dos pecados e seus preços, pensou-se queseria uma falsificação forjada pelos inimigos da Igreja. E isto era verdade, só que osinimigos eram o papa e a Cúria. Por meio da mais estranha alquimia, estavam atransformar os vícios em ouro. Estavam a dar aos pecadores o direito de pecar e dequebrar os seus votos, ou, pelo menos, a liberdade de evitar as consequências de taisprocedimentos.

João XXII precisava de dinheiro. Tinha uma paixão pela guerra, especialmente pelasguerras italianas. Sabe-se que despendeu 70 por cento dos seus rendimentos emarmamento, o que teria provocado a ira de S.Pedro e a inveja de Júlio II. As contendas

Page 198: Vigde cristo

198

de João com os Viscontis de Milão, em particular, revelaram-se muito dispendiosas. Umseu contemporâneo diz dele o seguinte: «O sangue que ele fez derramar teria tingido devermelho as águas do lago Constância, e os corpos dos chacinados poderiam constituiruma ponte de costa a costa.

O mais ganancioso dos papas, que proporcionou ao irmão e ao sobrinho uma vida deabundância, entrou em contradição com vários pontífices anteriores sobre a questão dapobreza de Cristo.

Ainda em vida de S.Francisco de Assis, apareceram duas facções entre os irmãos,uma a favor da rigorosa observância do princípio, a outra a favor da moderação. No anode 1279, Nicolau III tinha apaziguado a disputa com uma Bula, Exiit qui seminat. Estapassou a lei canónica. Nicolau dizia que a pobreza não era tanto uma questãoindividual, mas antes uma questão comunal. Como tal, era meritória e sagrada. Porqueera esta a prática de Cristo e dos Apóstolos.

Os papas seguintes confirmaram que Cristo e os Apóstolos viveram em pobreza; osEvangelhos assim diziam claramente. Honório III, Inocêncio IV, Alexandre VI, Nicolau III,Nicolau IV, Bonifácio VIII, Clemente V — todos estiveram de acordo.

Mas João XXII, não. Numa Bula, Cum inter nonnullos, de 12 de Novembro de 1323,defendia o seguinte: dizer que Cristo e os Apóstolos não possuíam bens nenhuns é umaperversão das Escrituras.

Os espirituais Franciscanos, louvados até então pela Santa Sé, eram agora rotuladosde hereges; os príncipes eram obrigados a mandá-los para a fogueira ou seriam elespróprios excomungados. Era uma característica dos tempos que esta questão doutrinalfosse transformada num jogo político. O Imperador Luís da Baviera já entrara emconflito com João XXII quando este disse que num interregno se tornaria oadministrador do império e o novo imperador teria de lhe prestar juramento de lealdade.João queria virar a História ao contrário. Luís, por seu lado, estava encantado por poderacusar o papa de heresia. Chamou-lhe anti-Cristo, depô-lo e nomeou outro.

A escolha do imperador recaiu sobre Pier di Corbario, um decrépito franciscano quetomou o nome de Nicolau V. Infelizmente, Luís não tinha feito o trabalho de casa. Poucotempo depois apareceu uma dama de idade que afirmava ser a Senhora di Corbario.Isto eram más notícias. Ao que parece, Pier era casado e já tinha filhos quando, sem aautorização da mulher, saíra de casa para entrar num convento. Nos termos da leicanónica, estava em situação ilegal; não era sequer um verdadeiro monge, muitomenos pontífice. Também era verdade que João XXII tinha um filho que se estava a sairmuito bem como cardeal, mas o papa nunca tinha cometido o pecado do matrimónio.Confrontado com uma escolha entre um papa herege e um anti-papa casado e emsituação irregular, Luís optou por este. A mulher de Nicolau V foi indemnizada e eleencetou o processo de nomeação dos cardeais e de uma Cúria própria. Pelo menos,pensou o imperador, o meu papa é católico.

Por fim, Luís cansou-se de jogar. Abandonou Nicolau em Pisa e entregou-o àsautoridades da Igreja. Foi em Junho de 1329.

João prometeu ser um bom pai para o renegado, o que era o mesmo que um gaviãoprometer o seu amor a um pardal. A caminho de Avinhão, Nicolau foi maltratado detodas as maneiras possíveis. Ficou na memória das pessoas a maldição de João emforma de salmo: «Que os seus filhos fiquem órfãos e a mulher, viúva! Que todos caiamna mendicidade».

Quando Nicolau chegou à Provença como cidadão Pier di Corbario, João, aocontrário das previsões, foi amável para com ele. Poupou-lhe a vida, concedeu-lheresidência no palácio papal, embora sob prisão domiciliária. Quando morreu, quatroanos depois, foi enterrado com o hábito franciscano.

Page 199: Vigde cristo

199

João XXII tinha triunfado. A doutrina católica oficial era agora esta: Cristo e osApóstolos não viveram na pobreza.

O papa tinha oitenta e sete anos quando provocou um novo escândalo no Dia deTodos os Santos de 1331.

O primeiro indício foi quando um dominicano inglês, num sermão perante a cortepapal, afirmou que as almas dos justos contemplavam imediatamente Deus. Joãomandou que ele fosse julgado pela Inquisição. Para satisfazer Sua Santidade, osconfusos inquisidores encarceraram o monge e quase o mataram à fome.

Na igreja de Notre Dame de Doms, em Avinhão, o papa pregou então um sermãoque causou sensação. As almas dos santos, disse ele, não desfrutam da visão de Deusantes da ressurreição do corpo. Estão ainda sub altare Dei, isto é, sob o altar de Deus.Só no Juízo Final é que eles são colocados no altar para contemplar a essência divina.

Ninguém da sua entourage teve a coragem de lhe dizer que ele estava a pregar umaheresia.

Em Janeiro de 1332, estendeu as suas opiniões aos condenados. Não havia aindaninguém no inferno, disse ele à congregação espantada. Só no fim do mundo é que oscondenados vão para o lugar do tormento.

Uma vez mais, uma discussão teológica transformava-se em questão política. Oimperador foi apoiado neste caso pelo Geral Franciscano, que João tinha excomungadopor causa da questão da pobreza, e pelo grande teólogo franciscano William de Occam.Pela segunda vez, o papa foi declarado herético.

Se os santos e a Virgem Maria, argumentava o imperador, não estão no Céu, como éque eles intercedem por nós? Porquê visitar os santuários de santos que não estão comDeus no Céu? E mais incisivamente, por que é que os cristãos hão-de pagar ao papa osperdões e indulgências se, quando morrem, têm de esperar até que chegue o Reinopara entrar no Paraíso?

Tal como um homem morto já não é homem, o imperador concluiu que um papaherético já não é papa. O ex-Papa João XXII era agora o cidadão Jacques de Cahors.

Filipe de Valois apoiou Luís. Escreveu a João dizendo-lhe que as suas opiniões eramheréticas e que se ele não as retirasse iria para a fogueira. A Universidade de Parismanifestou a opinião de que o papa estava gravemente enganado e devia retractar-seimediatamente.

João, arrogante como sempre, ofereceu grandes benefícios a quem pudessemostrar-lhe uma passagem de Santo Agostinho que fundamentasse as suas opiniões.Ninguém o fez. Por fim compreendeu que toda a Igreja se lhe opunha. Contra todas asexpectativas, respondeu a Paris dizendo que nunca tinha negado que os santoscontemplavam Deus imediatamente após a morte, apenas deixara a questão em aberto.Nem esta mentira foi suficiente. Os teólogos europeus responderam: esta não é umaquestão em aberto. O espírito da Igreja não podia ser mais fechado.

Neste ponto, a história torna-se obscura. Dizem alguns que ele mudou de ideiasexactamente antes de morrer com a idade de noventa anos. Outros afirmam que elenunca mudou de ideias; morreu como vivera, herege. O que é certo é isto: no dia 3 deDezembro de 1234, pressentindo que em breve as suas ideias seriam testadas naprática, convocou os cardeais para a sua cabeceira. Instou-os a que após a sua morte,escolhessem «um digno sucessor para a cadeira de S.Pedro». Os cardeais instaram-no,à vez, a salvar a sua alma e a honra da Igreja retirando as suas opiniões heréticassobre a visão beatífica. Morreu no dia seguinte. Posteriormente foi publicada uma Bulaem seu nome revogando tudo o que ele tinha dito e feito que colidia com a Igreja esubmetendo-se totalmente ao seu julgamento.

Page 200: Vigde cristo

200

Reflectiria a Bula genuinamente o estado de espírito final de João? Mesmo aí elemantém que as almas separadas «contemplam Deus e a essência divina cara a cara eclaramente, na medida em que a condição de uma alma separada o permite». Taissubtilezas não parecem estar ao alcance de um homem de noventa anos à beira damorte. E também não parece fazer muito sentido na medida em que a ideia continuavaa não ser aceitável para os teólogos.

Julgado á luz da própria doutrina da Igreja este papa era um herege, como Adriano VIadmitiu. Obstinadamente e durante toda uma época, ele negou um importante artigo dafé. Quando desafiado, alterou publicamente a sua posição apenas para deixar emaberto uma doutrina que estava oficialmente fechada. Continuava a duvidar, portantocontinuava herético. A sua posição final não é clara; mesmo que tivesse sidoresponsável pela Bula final, esta continuava a ser heterodoxa.

O seu sucessor, Bonifácio XII, não tolerou qualquer veleidade sobre o assunto. Em29 de Janeiro de 1336, um consistório público declarou que depois da morte os santosgozam da visão beatífica sem qualquer demora. Quem defendesse opinião contráriaseria punido como herege.

Mesmo depois de sair de cena, João XXII continuava uma figura controversa. Oflagelo dos hereges foi, ele mesmo, proclamado herético. Ele tinha mandado para afogueira da Inquisição um grande número de franciscanos — chegou aos 114 — cujoúnico crime foi dizerem que Jesus e os seus discípulos viveram uma vida de absolutapobreza.

Porque a ironia final é esta: quando ele morreu, o tesouro, que estava exausto naaltura da sua posse, estava agora a transbordar. Os banqueiros florentinos chamadospara tratar do assunto ficaram espantados. Nunca tinham visto nada de semelhante.Contaram 25 milhões de florins de ouro e uma quantia equivalente em pedras e outrosobjectos preciosos.

A verdadeira heresia de João XXII, vigário de Cristo e sucessor de Pedro, foi quemandou queimar os mais pobres dos pobres de Cristo e morreu como o mais ricohomem do mundo.

O papa que reescreveu a Bíblia

Quando Gregório XIII se tornou papa, no ano de 1572, o Cardeal FranciscanoMontalto retirou-se da vida pública. Os seus servidores diziam que Sua Eminênciaestava já com os pés para a cova e não queria mais nada da vida senão preparar-separa a morte. Nas poucas reuniões do Sacro Colégio a que foi obrigado a assistir, tossiacontinuamente como se estivesse na fase terminal de uma tuberculose. A todas aspropostas, fossem elas quais fossem, dava o seu assentimento com um dócil aceno dacabeça tonsurada. Estava fraco demais para discutir. Quando os colegas protestavamque ele era novo demais para morrer, Felice Peretti de Montalto encolhia tristemente osombros e acrescentava oito anos à sua idade para os convencer da sua morte iminente.Um inglês de visita a Roma vislumbrou casualmente Sua Eminência, inclinado sobre alareira, e escreveu para casa sobre aquele «cardeal muito curvado e humilde queestava sempre recolhido num forno».

O Papa Gregório morreu em 1585. Montalto apareceu no conclave de rosto chupadoe convenientemente enrugado, olhos mortiços, andar vagaroso e voz que mal se ouvia.Andava de muletas e tão curvado que a cabeça quase tocava o chão. Era evidente paraos quarenta e dois cardeais eleitores, quando deitaram os votos na urna, que Montalto

Page 201: Vigde cristo

201

era o homem perfeito para o papado. Logo se desenganaram: segundo o seu biógrafo,Leti, ganha a eleição, endireitou-se de imediato e atirou fora as muletas exclamando:«Agora sou César», antes de entoar o Te Deum em voz de trovão.

Em cinco anos, Sisto fez o trabalho de cinquenta. Tinha equipas de homens atrabalhar dia e noite para pôr a cúpula na Basílica de S.Pedro. Por sua ordem centenasde homens e cavalos deslocaram o obelisco, centímetro a centímetro, para o seu localactual no centro da praça. Construiu a Biblioteca do Vaticano. Ergueu um aquedutosobre vales e colinas para trazer até Roma água de uma distância de trinta quilómetros.Mereceu bem a sua alcunha de “O Furacão Abençoado”.

A uma energia titânica aliava um egotismo feroz e clamoroso. Reivindicou a jurisdiçãotemporal sobre todos os reis e príncipes. Quando o jesuíta Roberto Bellarmino, o maisintrépido defensor do papado desde Tomás de Aquino, sugeriu no seu livro deControvérsias, que o papa só indirectamente tinha jurisdição sobre os governantestemporais, Sisto decidiu censurá-lo. Ele podia nomear ou demitir qualquer pessoa,imperadores incluídos por qualquer motivo, dizia, e sempre que quisesse. Tambémcondenou o teólogo Vittorio por se atrever a escrever que era legítimo desobedecer aordens injustas do papa. Sim, ele, Sisto, pontífice, baniria os livros de ambos estesrenegados.

Os cardeais da Congregação do Index ficaram demasiado aterrorizados para dizer aSua Santidade que aqueles eminentes autores fundamentavam as suas ideias nasobras de inúmeros santos e académicos. O Conde de Olivares, embaixador de Espanhaem Roma, escreveu ao seu rei, Filipe II, dizendo que os cardeais se calaram «commedo de que Sisto lhes desse a provar o seu génio cortante e pudesse pôr os própriossantos no Index».

Sisto foi particularmente desagradável com Bellarmino. O jesuíta tinha colaboradocorajosamente com ele na edição das obras de Santo Ambrósio. E isto não devia tersido fácil. Sisto denegara em todos os pontos as suas opiniões. Depois mandou que asua versão fosse agora o texto padrão. Assim foi, e o texto continua a ser o maisduvidoso que existe.

A mesma abordagem despótica foi por ele adoptada em relação à Bíblia. Osresultados foram devastadores.

* * *

A versão latina da Bíblia, a Vulgata, foi obra de S.Jerónimo no século IV. Na IdadeMédia ocupava lugar proeminente. Por essa altura já nela tinham entrado muitasinterpretações erradas devidas a copistas sonolentos. Com o aparecimento da imprensamultiplicaram-se as edições e também os erros. Na Reforma, os Protestantes fizeram assuas próprias versões da Bíblia; para os católicos era imperativo ter um texto fiável daVulgata em todas as discussões.

O Concílio de Trento em 1546 chamara já à Vulgata a verdadeira versão da Bíblia daIgreja. Só ela devia ser utilizada em conferências, discussões e sermões. “Autêntica”significa que os católicos podem ter a certeza de que está isenta de erros de moral e dedoutrina. E é substancialmente fiel ao original. Quando os padres de Trento seencarregaram de uma nova edição da Vulgata, não faziam ideia da dimensão de taltarefa. Onze papas viveram e morreram e nada aconteceu. Até Sisto V.

Três anos depois de iniciado o seu pontificado, os académicos que ele nomeara paraeditarem a Vulgata apresentaram-lhe o seu texto final. Havia nele demasiada erudição,para seu gosto; e também tinham lá posto demasiadas variantes de interpretação. Aos

Page 202: Vigde cristo

202

gritos o papa mandou sair da sala o presidente da comissão, Cardeal Carapa, dizendoque ele próprio, sozinho, era capaz de fazer melhor. E tratou de tentar provar esta suaespantosa afirmação. Numa frase de trezentas palavras, declarou numa Bula que ele, opapa, era a única pessoa certa para decidir a questão da Bíblia autêntica para a Igreja.

Trabalhou horas a fio, noites a fio, porque sofria de insónias. Só tinha um únicosecretário a tempo inteiro e que quase levou à cova. No fundamental Sisto seguiu otexto de Lovaina, que conhecia bem. Não era um texto particularmente erudito. Nospontos obscuros, não teve qualquer relutância em acrescentar expressões e frases queos clarificassem. Muitas vezes traduziu a seu belo talante. Outra das suasidiossincrasias era alterar as referências. Em 1555, Robert Stephano tinha elaboradoum sistema de capítulos e versículos. Não era perfeito, mas era conveniente e usadouniversalmente. Sisto pô-lo de lado em favor do seu próprio sistema. Todas as versõesanteriores da Bíblia se tornaram logo obsoletas; todos os livros das escolas com osseus arsenais de textos, tiveram de ser reimprimidos. Além de alterar os títulos dossalmos, por muitos considerados inspirados, omitiu, talvez por descuido, versos inteiros.

Em apenas dezoito meses o trabalho estava concluído. Em 1590 apareceram asprimeiras cópias do fólio. «Magnífico» murmurou ele admirando a bela encadernação,até que uma vista de olhos pelo texto revelou muitos erros de impressão. E depois cadavez mais erros. Também os tipógrafos tiveram de trabalhar dia e noite, em turbilhão.

Para não perder tempo, Sisto começou ele mesmo a introduzir correcções. Escreveuas emendas a tinta em pequenos bocados de papel — quadrados, rectangulares,triangulares — e colou-os sobre os erros dos tipógrafos. Levou seis meses a fazer isto eemendou uma boa parte da obra. A publicação continuava a ser adiada, enquantocontinuava também o pesadelo do papa. A sua Bula Aeternus Ille já estava pronta hámuito. Nunca houve documento mais autoritário:

Na plenitude do poder apostólico, Nós decretamos e declaramos queesta edição […] aprovada com a autoridade que nos foi outorgadapelo Senhor, deve ser aceite e considerada verdadeira, legítima,autêntica e inquestionável em todas as discussões, palestras,pregações e explicações públicas e privadas.

Ninguém, tipógrafo, editor, livreiro, estava autorizado a desviar-se um milímetro quefosse desta versão autêntica da Bíblia latina. Quem quer que violasse a Bula seriaexcomungado e só o papa o podia absolver. E também havia ameaças de puniçõesseculares.

Em meados de Abril foram finalmente distribuídas cópias aos cardeais eembaixadores. Estes examinaram-nas hesitantes. Quatro meses mais tarde, em 27 deAgosto, os sinos do Capitólio anunciavam a morte do papa. Nessa noite levantou-seuma tempestade que foi como se o espírito de Sisto, ao partir, tivesse enlouquecido oselementos. Roma ficou louca de satisfação, mas ninguém ficou tão exultante como osseus inimigos do Sacro Colégio.

O papa seguinte morreu após um pontificado de doze dias. Para Gregório XIV (1590-1) sobrou a tarefa de limitar os estragos. Mas como? O poder papal na sua plenitude earmado da excomunhão impusera a toda a Igreja uma Bíblia — crivada de erros. Omundo académico estava em ebulição; os Protestantes tiravam enorme prazer edivertimento da situação difícil da Igreja.

Em 11 de Novembro de 1590, Bellarmino regressou a Roma de uma missão noestrangeiro. Pessoalmente aliviado pelo facto de Sisto, que o quisera pôr no Index, ter

Page 203: Vigde cristo

203

morrido, temia pelo prestígio do papado. Sugeriu ao novo papa a maneira como deviatratar daquele dilema. Viria a contar tudo na sua Autobiografia.

Alguns homens cujas opiniões têm grande peso, sustentavam queela devia ser publicamente proibida. Eu não pensava assim emostrei ao Santo Padre que, em vez de proibir a edição da Bíblia emquestão, seria melhor corrigi-la de modo que pudesse ser publicadasem prejudicar a honra do Papa Sisto. Isto podia ser conseguidocom a remoção das alterações insensatas o mais depressa possível,e fazendo depois publicar o livro com o nome de Sisto e um prefáciodeclarando que, devido à pressa, tinham ocorrido na primeira ediçãoalguns erros com origem nos tipógrafos e outras pessoas.

Resumindo, Bellarmino aconselhava o papa a mentir. Alguns dos seus admiradorescontestaram isto. A sua tarefa era tremenda.

As opções eram claras: admitir publicamente que um papa tinha errado numa matériacrítica da Bíblia ou comprometer-se num encobrimento cujos resultados eramimprevisíveis. Bellarmino propunha a segunda.

Ele pode ter sido tentado a seguir esta linha por uma questão de generosidade:estava a defender a honra de um homem que tinha impugnado a sua própria. Pode tertambém pretendido incluir Sisto naquela vaga referência aos erros dos tipógrafos «e deoutras pessoas». Contudo, poderia algum leitor imaginar que o papa era uma dessaspessoas? Além disso, os únicos erros prejudiciais eram os do papa e não os dostipógrafos.

Mas a fraude não ficou por aqui.Um exame exaustivo à Bíblia de Sisto levaria anos. E anos era o que eles não

tinham. Um pequeno grupo de académicos, que incluía Bellarmino, pôs mãos à obranuma casa de campo numa encosta dos Montes Sabinos a trinta quilómetros de Roma.Fizeram um trabalho notável, concluindo a revisão em meados de Junho de 1591. Oproblema agora era apresentá-lo ao mundo. Bellarmino, a pedido de um novo papa,desenvolveu o encobrimento.

A nova versão devia ser impressa imediatamente. A versão de Sisto estavacondenada a cair nas mãos de hereges que apontaram as alterações, as omissões, asmás traduções e disseram: «Repare-se, os papas não se importam de corromper ostextos da Bíblia para servir os seus próprios fins». O novo texto era acompanhado deum prefácio onde se lia que Sisto tinha publicado uma Bíblia revista de acordo com assuas ordens, mas ao examiná-la tinha visto que havia muitos erros devidos a umapressa inconveniente. Isto não deixava de ser vulgar em primeiras edições. PortantoSisto decidira que se fizesse tudo de novo. Com a sua morte, os seus sucessores foramlestos a cumprir os seus desejos. Daí aquela nova edição.

Isto estava muito longe da verdade. Os únicos erros realmente perturbadores eramaqueles de que Sisto não tinha consciência: os seus próprios. Ele nunca teve a mínimaintenção de rever o seu próprio trabalho, mas sim o dos tipógrafos. A decisão de rever etornar a publicar foi tomada depois da sua morte.

A ideia primeira no espírito de Bellarmino era esta: os papas nunca devem ser vistosa condenar os decretos importantes dos seus antecessores. Isso teria maus reflexos naprópria autoridade papal. Por outro lado, havia também o respeito devido à Bíblia; esta,tal como o papado, era insusceptível de erro. Da necessidade de conciliar o inconciliávelnasceu o encobrimento.

Page 204: Vigde cristo

204

Bellarmino sugeriu que a nova versão não deveria ser a única autorizada. Tinha sidofeita à pressa e continha, sem dúvida, erros que o tempo viria a revelar. Além disso,acrescentou que «embora o papa nos tivesse confiado a missão, não pôde prestar-noso auxílio do Espírito Santo, que é sua prerrogativa exclusiva». Apesar da sua grandezae subtileza, havia em Bellarmino uma deformação de espírito quase infantil quando setratava do papado. Não cuidou de explicar o que aconteceu ao auxílio do Espírito Santoenquanto o Papa Sisto trabalhava na Vulgata.

A Bíblia ficou pronta para publicação no fim do ano de 1592, e Clemente VIIIconcordou que ela saísse apenas com o nome de Sisto. Em The Church and thePapacy (1944), Jallaud diz ironicamente que este assunto

serve para fornecer uma prova documental única da possibilidade demesmo a Santa Sé mudar de ideias. Contudo, o facto foisubsequentemente obscurecido, porque quando a nova ediçãoapareceu em 1592, foi apresentada ao mundo audaciosa edesonestamente como a Bíblia “Sistina”. O facto de mais tarde onome de Clemente lhe ter sido acrescentado pouco serve paraexpiar a estranha façanha de desonestidade literária ou paraesconder a verdade de que a Santa Sé tinha até então cedido aoclamor popular ao ponto de tratar uma das suas primitivas decisõescomo reversível.

Depois das mentiras, ficava ainda um problema: como recuperar as cópias daverdadeira Bíblia Sistina? Bellarmino aconselhou o papa a comprá-las de volta, semolhar ao preço, que provavelmente seria elevado. É que elas não eram só um produtoesplendoroso; qualquer idiota podia ver o seu valor artístico.

A Inquisição de Veneza e o Geral Jesuíta receberam instruções no sentido defazerem buscas em tipografias e casas particulares, especialmente na Alemanha, parasalvar a honra do papado. A busca revestiu aspectos de farsa. Numa altura em que osProtestantes andavam a distribuir Bíblias gratuitamente, a Igreja Católica tentavadesesperadamente comprar algumas de volta.

Quantas cópias foram recuperadas não se sabe ao certo, mas não foram mais dedez. Uma delas foi parar à Biblioteca Bodleian em Oxford. O bibliotecário, Dr.ThomasJames, tratou-a como um maná celestial.

Em 1611 escreveu ele um livro em que confrontava as duas bíblias, a de Sisto e a deSisto-Clemente. Descobriu que «os dois papas diferiam notoriamente entre si, não só nonúmero de versos [a versão posterior remontava ao sistema de referência de Estêvão],mas também no corpo do texto e nos prefácios e nas próprias Bulas».

James afirmou ver uma coisa notável: dois papas em aberta contradição conflitual umcom o outro. «Nesta guerra, a sua Cadeira foi tão aviltada e a sua Igreja tãomortalmente ferida que nem todo o bálsamo de Galaad as curará. Temos aqui um papacontra o outro, Sisto contra Clemente, Clemente contra Sisto, a discutir a escrever e alutar sobre a Bíblia de Jerónimo». A Bíblia, no que diz respeito aos católicos, disseJames, era um nariz de cera que os papas moldavam segundo as suas conveniências.«Se o papa dizia que o que era branco era preto e o que era preto era branco, nenhumcatólico se atrevia a discordar».

Era uma boa polémica, e Sisto merecia-a inteiramente. Mas nem mesmo o Dr.Jamesdescobriu mais do que uma ou duas diferenças fundamentais entre os dois papas ouqualquer tentativa real da parte de ambos de enganar o leitor. Havia ali uma enormeestupidez, mas muito pouca má fé.

Page 205: Vigde cristo

205

O que a questão revelou foi uma coisa completamente diferente. Em qualquerinstituição, erros como os que Sisto cometeu teriam constituído um simples embaraçopassageiro facilmente risível, mas depressa esquecido. Só na Igreja Romana é que elapodia provocar aquilo que, na opinião de Bellarmino, foi a maior crise da Reforma.Reagindo a esta crise, um homem da integridade de Bellarmino sentiu-se obrigado amentir e a dizer meias verdades, engolidas com alívio por mais do que um papa. Seuma pessoa virtuosa como Bellarmino foi capaz de mentir pelo papado, do que é queoutros serão capazes? O que é que outros terão feito? O que é que outros andarão afazer?

Bellarmino, generoso e pobre, emerge como a triste vítima do papado, pelo qual deua vida. Tão grande, na sua ideia, era o papado, que nele o gracejo do Dr.James severificava à letra. Para satisfazer o papa, ele dizia de facto que o preto era branco numcampo muito perigoso: o da ética. No seu livro sobre o pontífice romano, ele diz que oque quer que o papa ordene, por muito mau ou ridículo que seja, tem de ser cumprido,como se fosse a própria virtude. O que quer que o papa faça, mesmo que se trate dadeposição de um imperador com o mais frívolo dos pretextos, tem de ser aceite peloscatólicos, que depois terão de obedecer ao papa e não ao imperador.

A questão do papa que reescreveu a Bíblia prova uma vez mais que a doutrinasegundo a qual o papa não pode errar cria a sua própria versão da história e leva atéhomens virtuosos a mentir em seu nome. Mas Bellarmino é hoje lembrado não por terencoberto um papa, mas principalmente porque contribuiu para a ruína da carreira deum leigo — um dos mais famosos que alguma vez viveram.

O maior escândalo da Cristandade

Galileu já era velho, estava já nos setenta e cinco, e completamente cego. No verãode 1640 ele sabia que tinha os dias contados.

Por que é que continuavam a persegui-lo? Na aldeia ainda havia informadores pagosque relatavam à Inquisição tudo a seu respeito. Interceptavam-lhe a correspondência,faziam relatórios sobre todas as visitas que recebia. Sua Santidade o Papa Urbano VIIInunca lhe perdoaria, ele sabia-o. Quando requereu a Roma autorização para ir aFlorença para tratamento médico, a Inquisição respondeu: «Sanctissimus (OSantíssimo) recusou deferir o pedido e mandou que o dito senhor fosse aconselhado adeixar de mandar requerimentos, caso contrário será mandado de novo para a prisão doSanto Ofício». Isto magoou o “dito senhor”, não só porque ele sempre considerou opapa como um amigo, mas também porque a resposta chegou no dia em que a filha, detrinta e três anos, morreu de desgosto pelo destino do pai.

Ah, mas era bom estar na sua querida vivenda de Il Gioiello (A Jóia) com todosaqueles sons e odores familiares. E as vistas tão suas conhecidas a passar-lhe diantedos olhos do espírito. A passear na frescura da noite, conseguia imaginar Florença,cidade da luz, com muita nitidez sob a sua vivenda de Arcetri, a alta cúpula cor de tijoloda catedral em forma de flor sob o campanário de Giotto, o Palazzo Vechio com a suatorre altaneira, a larga curva do Rio Arno. A toda a volta, no ar sereno, ouvia as cigarrase cheirava as videiras e as oliveiras cor de cinza. Já fora em tempos um especialista emenxertar videiras; o vinho que bebia era sempre produto do seu próprio trabalho.

Mas mais precioso ainda do que esta vivenda da Toscânia ou do que Florença, elaprópria enquadrada numa suave paisagem, era o céu lá no alto: a lua e as estrelas.Seria orgulho da sua parte sentir que estes corpos celestes eram mais seus do que damaioria dos homens, mais seus até do que Il Gioiello?

Page 206: Vigde cristo

206

Embora cego, continuava, tal como Homero, a ditar os seus trabalhos científicos aoseu secretário. E estes agora estavam curiosamente entre os seus melhores. AInquisição tinha-o proibido de publicar qualquer novo trabalho ou de reeditar os antigos.Banido para toda a vida, disseram eles. Mas só na Itália, e não para sempre. Osinquisidores, embora discordassem disto, não eram Deus.

Além disso, embora cego, quem é que agora podia arrancar-lhe da memória aquiloque os seus olhos tinham visto? Aqueles seus olhos tinham visto coisas ocultas desde oprincípio do mundo. Tinham aberto novas Américas nos céus e um dia, nunca dissoduvidou, o seu nome seria tão famoso — não, mais famoso — do que o de Colombo.

Galileu Galilei nascera em 1564, ano em que morreu Miguel Ângelo. O pai, Vincenzo,comerciante de tecidos, viera de Florença, mas o seu primeiro filho nasceu em Pisa.Galileu entrou na universidade como estudante de medicina, mas depressa desistiu. Oseu interesse ardente era a matemática, pura e aplicada. A matemática, diria ele, dava-lhe asas para se elevar acima do mundo e ver as estrelas. A um nível mais humilde, fezdele um inventor. Foi ele o criador de um instrumento para encontrar o centro degravidade de corpos com formas variáveis.

Em 1589, tornou-se professor de matemática em Pisa. Não se dava bem com oscolegas; queixava-se constantemente do seu salário e das condições de trabalho.Quanto mais inúteis são os professores, mais ganham. Mudou-se para Pádua, onde osalário era ligeiramente melhor. Mas continuava a ter de dar lições particulares paraprover às suas despesas. E aí ficou durante dezoito anos.

Em 1609, tinha quarenta e cinco anos e apenas uma pequena publicação com o seunome. Um ano depois, em resultado de um panfleto que escreveu, tornava-se um doshomens mais famosos do mundo. Kepler elogiou a sua coragem intelectual e chamou-lhe o maior filósofo do seu tempo.

A mudança do seu destino começou com um pouco de sorte fertilizada com génio.Ouviu falar de um aparelho óptico, um óculo (occhiale) inventado por um holandês.Resolveu imediatamente construir um ele mesmo, baseado na teoria da refracção.Pegou num tubo de chumbo oco e adaptou-lhe umas lentes em cada uma dasextremidades. As lentes eram planas de um lado e do outro convexa e côncava,respectivamente. Pôs um dos olhos na lente côncava e verificou com espanto que oobjecto para que estava a olhar estava três vezes mais perto e era nove vezes maior.Como era especialista no polimento de lentes, construiu outro óculo que aumentava osobjectos sessenta vezes. Finalmente, após grandes esforços e despesas, conseguiu umaumento de trinta vezes em proximidade e mil em tamanho.

Logo aplicou a invenção para fins militares. Numa cerimónia pública, entregou umtelescópio ao Doge de Veneza na presença do Senado. A República ficou deliciada porpossuir um instrumento que conseguia detectar exércitos e armadas inimigos muitoantes de se poderem ver a olho nu. Confirmaram-no como professor vitalício eduplicaram-lhe o salário em troca daquele instrumento que, a partir de então, qualquerartesão podia fazer.

Depois, Galileu virou o óculo para o céu nocturno. Foi esse o momento em que todaa história do homem se alterou. Nascera a revolução científica.

A primeira coisa que ele focou foi a Lua. Aquelas manchas na superfície não eram sósombras; eram montanhas. Depressa descobriu a maneira de calcular a sua altura apartir do comprimento das sombras. Também vira vastas planícies que ele pensouserem oceanos e que passaram desde então a chamar-se os Mares da Lua.

Numa extrapolação sensacional, concluiu que, para um observador colocado na Lua,a Terra teria exactamente o mesmo aspecto que a Lua tem para um observador na

Page 207: Vigde cristo

207

Terra. E imaginou mesmo que, vista da Lua, a Terra apareceria dividida em zonasescuras (mar) e zonas claras (terra). Num momento de poesia instintiva, falou de brilhoda Terra «a velha Lua nos braços da nova Lua», isto é, a luz do Sol reflectida da Terrapara a Lua e regressada à Terra. Conseguiu descobrir a razão por que as superfíciesirregulares reflectem mais luz do que as superfícies lisas e por que a orla da Lua pareceuma linha direita a olho nu quando afinal não era uma esfera perfeita como parecia ser.

Num segundo momento espectacular de revelação, Galileu percebeu que os“cientistas“ andavam enganados há mais de dois mil anos. Aristóteles, seguido deEscolásticos como Tomás de Aquino, tinham como certo que o mundo celeste eratotalmente diferente do terrestre. Lá em cima e no exterior, não havia mudança nemdeclínio, apenas existência eterna. Isto implicava um tipo de matéria diferente do de “cáde baixo“, da Terra. Mas, vista através do seu telescópio a Lua parecia-sesuspeitosamente como a Terra. E se toda a criação fosse una, um verdadeiro…universo? E se a Terra não fosse especial, mas apenas um simples pedaço de matériaentre outros pedaços? E, como a Lua anda sem problemas a girar à volta da Terra, porque é que a Terra não há-de, ela também, andar a girar? E se toda a representação dacriação concebida pelo monge Copérnico fosse real e não uma mera hipótesematemática?

Mais de dez anos antes, Galileu escrevera a Kepler dizendo-lhe que sentia queCopérnico tinha razão. A Terra não estava estática; girava à volta do Sol. E se ele agoraconseguisse tornar esta convicção plausível? Não meramente plausível, mas um facto?

A partir do momento em que Galileu olhou a Lua através daqueles pedaços de vidrocombinados, a Terra experimentou o seu maior abalo. Deixou de ser um centro, ocentro do universo. Então, e o homem? Se ele já não estava imóvel nesta prancha deterra, o que é que sobre ele se havia de dizer? Nem mesmo um espírito genial seatrevia a parecer a principio duro demais, receando abalar os fundamentos da sua fé,da sua fé na Bíblia e na Igreja.

Às questões que se levantavam umas atrás das outras, dava as respostas que podia.Mas depressa percebeu que o mais importante não era o facto de ele ter aumentado apercepção do universo cem ou mil vezes. O que continuava a ressoar na sua cabeça, aembriagá-lo, era o pensamento de que ninguém até então tinha visto daquela maneira.

Para seu desgosto, quando pediu aos Aristotélicos que olhassem pelo telescópiopara verificarem as suas descobertas, muitos recusaram. Já sabiam através de cálculosque tinham feito no papel, e pela comparação de textos, diziam, que a Lua era umasuperfície plana e polida. Como é que um tubo com um vidro nas extremidades podiacontestar Aristóteles e uma interpretação das Escrituras velha de séculos? Dos poucosque ousaram espreitar, a maioria sugeriu com toda a honestidade que o que estavam aver estava nas lentes e não nas estrelas. Galileu gracejou dizendo que quandomorressem, o que ele agora via, também eles iriam ver a caminho do Céu.

Quase nos cinquenta, com vinte anos de penúria atrás de si, era finalmente umhomem livre. Nuncius Sidereus, o seu livro, conhecido como O Mensageiro [ouMensagem] das Estrelas, foi um sucesso imediato.

Nessa altura Galileu tinha muitos amigos entre o clero — na verdade, apoiantes, aténa própria Roma, como o eminente matemático jesuíta Clávio. Clávio confirmou as suasdescobertas e disso deu parte a um já idoso Cardeal Bellarmino. Isto deu a Galileu ainspiração para uma visita a Roma na primavera de 1611. O cardeal jesuíta foiamistoso, como também o foi o Cardeal Bellarmino. Ambos o avisaram de que deviaexprimir as suas ideias como hipóteses, para evitar problemas com os teólogos. Foi

Page 208: Vigde cristo

208

feito membro da prestigiosa Academia Lyuceana, a qual chamou pela primeira vez aoinstrumento “telescópio”.

Voltou para Florença ingenuamente convencido de que tinha feito amizadesduradouras e influentes na Cidade Eterna. Esta talvez a razão por que ele começou afalar com menos reservas. Atacou os Aristotélicos sem piedade, escrevendo em italianopara passar por cima dos secos académicos e atrair o público em geral.

Apesar das suas melhores intenções, Galileu estava a levantar questões sobre arelação entre a ciência e a revelação, o sistema copernicano e a Bíblia. Seriamcompatíveis? Em sua defesa citou o gracejo do cardeal Barónio: «O propósito doEspírito Santo é ensinar-nos a maneira de irmos para o Céu e não a maneira como oCéu anda». A Bíblia não era um texto científico e as suas “afirmações científicas” nãotinham de ser tomadas à letra. Há muitas formas literárias nas Escrituras. Se a teoriacientífica é má ciência, a boa ciência corrigi-la-á mais eficazmente. Ela não representaqualquer desafio para a fé. Pelo contrário, a natureza e a Bíblia são dois textos divinosque não podem contradizer-se.

Os seus argumentos convenceriam os homens da Igreja dois séculos mais tarde,mas deixaram reservas ao clero do seu tempo. Galileu parecia estar a contradizer osentido óbvio das Escrituras. Ao avançar com o sistema de Copérnico como mais doque uma simples teoria matemática, tinha invadido os seus domínios. Uma questãopara a Inquisição, talvez? O Bispo de Fisole mandou imediatamente que Copérnicofosse encarcerado. Sua Eminência ficou desolado quando lhe disseram que Copérnicojá tinha morrido há setenta anos. Premonitoriamente, um dos livros de Galileu foi parar àtemida Casa Santa do Santo Ofício.

Tinham-no avisado de que Bellarmino nunca hesitara na sua opinião de que osistema de Copérnico era contrário às Escrituras se tomado como facto científico. Nãoobstante, Galileu foi a Roma e tratou de demolir todos aqueles que levantavam dúvidassobre Copérnico. Mas até ele próprio, tão ingénuo em relação às coisas do mundo,começava a apanhar com o fumo da pólvora.

Um padre seu simpatizante mandou-lhe uma cópia de uma carta que tinha recebidode Bellarmino. Segundo o cardeal, quando os padres e todos os investigadoresmodernos das Escrituras analisam as passagens da Bíblia sobre o assunto

todos concordam em interpretá-las literalmente quando ensinam queo Sol está nos céus e gira à volta da Terra em grande velocidade e aTerra fica muito distante dos Céus, no centro do universo, imóvel.Pensai, pois, com a vossa sensatez, se a Igreja pode tolerar que asEscrituras sejam interpretadas de maneira contrária à dos santosPadres e de todos os comentadores, tanto latinos como gregos […]As Escrituras dizem «E o sol nasce e o sol põe-se»

Galileu leu-a uma centena de vezes. Continuava a não acreditar. O velho Bellarminoera um homem bom e sábio. Como é que ele podia crer numa opinião tão infantil doVelho Testamento? Sua Eminência prosseguia dizendo que qualquer pessoa, guiando-se simplesmente pelos sentidos, ficava a saber de forma segura que a Terra não semove. Estaria ele à espera de ficar tonto se o mundo andasse a girar à volta do Sol? Ese estivesse na Lua, estaria ele à espera de a sentir a mover-se? Bellarmino podia serum grande teólogo, mas de astronomia sabia tanto como aqueles que diziamseriamente que se a Terra andasse a girar à volta do Sol todas as torres da Itáliacairiam. «Os sentidos diziam-lhes» que tudo no universo se movia excepto a Terra!

Page 209: Vigde cristo

209

Galileu ficou realmente preocupado. Sua Eminência estava a dizer-lhe que não semetesse com as Escrituras enquanto pontificava na ciência sem prática nenhuma.Ficava agora a saber que Bellarmino não teria qualquer escrúpulo em silenciá-lomandando-o apresentar-se na Inquisição.

Foi o que aconteceu. O Papa Paulo V, piedoso, gordo, míope, com uma pequenabarba e um fino bigode, conhecido de toda a gente como filisteu, endereçou o caso àCongregação do Index. Em Março de 1616 foi tomada uma decisão.

A opinião de que o Sol é o centro imóvel do universo foi considerada como«disparatada e absurda, filosoficamente falsa e formalmente herética». A opinião de quea Terra não é o centro e de que gira e roda foi tida como pelo menos «errónea na fé»

Mas as crenças de Copérnico é que foram censuradas e não Galileu. No entanto, opapa deu instruções a Bellarmino para que este dissesse a Galileu para abandonar assuas ideias. Senão teria de comprometer-se a não ensinar nem defender as suasopiniões, nem sequer a discuti-las. Caso contrário, seria preso.

Embora convencido da sua ortodoxia, Galileu deu as necessárias garantias. Apenaspediu a Bellarmino que lhe escrevesse uma carta, o que ele fez em 26 de Maio de 1616.O cardeal testemunhava o facto de que ele não tinha sido obrigado a retractar-se nem asofrer qualquer penitência. Nem foi obrigado a deixar as suas investigações, mesmo nocampo da astronomia. Apenas lhe foi ordenado que não ensinasse ou defendesse osistema de Copérnico como se fosse verdadeiro. E este foi posto no Index, ondepermaneceu até 1822.

Galileu, mal de saúde, ficou contente por aquela provação ter terminado. O que operturbava era que «espíritos criados livres por Deus sejam obrigados a submeter-seabjectamente a uma vontade exterior». Ele é que era o especialista em astronomia eestava a ser julgado por pessoas sem qualquer competência. O papa tinha sancionadopessoalmente a opinião de Bellarmino de que afirmar que a Terra tem movimento derotação é contra a doutrina infalível da Igreja. Se a Terra se movesse, o Céu não seria“lá em cima“ nem o Inferno “lá em baixo“. Toda a doutrina sobre as Coisas Últimas teriade ser revista. Como dizia um auxiliar do papa, com um suspiro: Agora estamos «devolta à terra firme em segurança e não temos de voar com ela quais formigas à volta deum balão».

Passaram-se alguns anos tranquilos e Galileu escreveu Il Saggiatore (O Ensaiador).Era o ano de 1623. Nesse mesmo ano o seu “amigo”, de cinquenta e cinco anos,Cardeal Barberini tornou-se o Papa Urbano VIII. Durante os onze dias da votação,houve uma onda de calor; a malária abateu-se sobre o Conclave. Morreram oitocardeais e quarenta auxiliares. O próprio Urbano contraiu a doença, mas sobreviveu.Foi a ele que Galileu dedicou o seu livro.

O papa apreciou o cumprimento. Quando, no ano seguinte, Galileu, já com sessentaanos, foi a Roma, presenteou Sua Santidade com um microscópio. Urbano espreitoupor ele e abanou a cabeça maravilhado. Como agradecimento, ofereceu ao grandecientista vários Agnus Dei contra actos de Deus e, mais valiosos ainda, conselhoscontra os actos dos homens. O que disse foi o seguinte: «Podeis ter provas irrefutáveisdo movimento da Terra. Isso não prova que a Terra realmente se mova». Galileuarregalou os olhos. «Deus está acima da razão humana; e uma coisa que pareceperfeitamente razoável aos homens, pode revelar-se um disparate a Deus». E Urbanocontinuou dizendo que ele, na qualidade de papa, era responsável pela salvação dasalmas. Por vezes a discussão científica fazia perigar as almas. O sistema Copernicano,se não for tomado como pura invenção matemática, pode lançar a dúvida sobre asEscrituras. Se isso acontecesse, teria de tomar medidas para o destruir.

Page 210: Vigde cristo

210

Os pontos de vista do papa sobre Deus e sobre a relação entre ciência e religiãoeram tão absurdos que Galileu não seguiu o excelente conselho que lhe estavam a darao mais alto nível. Realmente foi bom da parte de Urbano ter tirado algum tempo aosseus projectos de construção: os palácios Barberini, para os quais foi buscar materiaisao Coliseu, a colonada de Bernini que envolve a Praça de S.Pedro, o baldachino sob acúpula de Miguel Ângelo, para o qual foi roubar o bronze do Panteão. Os romanosdiziam furiosos: «O que os Bárbaros não fizeram, fê-lo Barberini».

Um tanto confundido, Galileu regressou a Florença onde, pouco depois, estava atrabalhar em O Sistema do Mundo . Como o pôs em forma de diálogo platónico, pensou,sem dúvida, que isto lhe permitiria esconder as suas convicções, ao mesmo tempo quebatia na oposição. Depois de terminado, faltava apenas obter a licença de publicação e,como precaução, o Imprimatur papal.

Satisfeito, voltou a Roma onde uma vez mais Urbano o recebeu calorosamente. Opapa voltou a realçar a necessidade de fazer saber a toda a gente a natureza hipotéticadas suas opiniões. Quanto ao livro, Galileu devia talvez intitulá-lo Diálogo dos DoisPrincipais Sistemas. Sim, sim, prometeu o papa, ele próprio escreveria um prefácio,salientando a natureza experimental da empresa.

Quando os censores receberam a sua cópia, ficaram perturbados com oscomentários. Mas Sua Santidade tinha dado a sua aprovação ao livro, não é verdade? Enão ia ele até escrever o prefácio?

Houve inevitáveis demoras na publicação, de modo que Galileu o mandou imprimirem Florença em Fevereiro de 1632. Fez sensação. Os argumentos a favor domovimento da Terra eram apresentados magistralmente. No diálogo, o ponto de vistaaristotélico era posto na boca de Simplício, um idiota cujas ideias correspondiamexactamente às do papa, tal como ele as exprimira naquela entrevista com o autor unsanos antes.

Quando Urbano teve conhecimento deste insulto aparentemente premeditado, ficoufurioso. Entregou o caso ao Santo Ofício e mandou o autor apresentar-seimediatamente em Roma. Quando Galileu, agora com quase setenta anos, respondeualegando, com verdade, a falta de saúde, Urbano insistiu: ou ele vinha voluntariamenteou viria agrilhoado.

Quando chegou a Roma, depois de vinte e três dias na estrada, teve de esperar doismeses pelo começo da sua provação. O tempo passava devagar. Ouviram-no a chorarduas noites seguidas com as dores da ciática.

O seu espírito infantil nunca o abandonou. Esperava realmente poder defender-se asi próprio e até discutir sensatamente com os inquisidores, como se estes cavalheirosdo clero estivessem interessados em descobrir a verdade. De facto, não se pareciamem nada com os seus colegas professores com quem ele tinha discutido nos salões dericas damas romanas. Trazia consigo uma espécie de apólice de seguro. Há anos queguardava a carta de Bellarmino fechada a sete chaves precisamente para umaemergência como esta.

Quando o julgamento começou, em Abril de 1633, transferiram-no da Embaixada daToscânia para a Casa do Santo Ofício. A audiência realizou-se na sala superior de umconvento dominicano. Foi logo informado de que a Inquisição não estava ali para oouvir, mas para o julgar. Ele não podia ver as provas nem ouvir as testemunhas.

A sua principal infracção foi violar a sentença de 1616, nomeadamente, a de nãodiscutir nem escrever sobre o sistema Copernicano. Galileu pediu perdão a SuasEminências, mas tinha uma carta do falecido Cardeal Bellarmino que provava que sófora proibido de defender a opinião de Copérnico como se ela fosse a verdadeira

Page 211: Vigde cristo

211

representação do mundo. E isso nunca ele tinha feito. Apenas a tinha discutido, comomostrava o seu recente livro, de uma maneira hipotética. E apontou o facto de que odiálogo terminava sem quaisquer conclusões.

Os inquisidores contra-atacaram com uma acta não assinada e não oficial encontradanos arquivos e datada de 1616 em que ele era proibido de sequer discutir as teorias deCopérnico. Nunca mostraram a Galileu este documento. Mais ainda, argumentavamSuas Eminências, apesar da forma de diálogo do seu recente livro, nenhum leitor ficariacom dúvidas a respeito da sua posição, e esta era contrária à fé da Igreja. Era culpadode contumácia e heresia. Só poderia esperar clemência se se rendesseincondicionalmente e declarasse o seu apreço pela bondade da Inquisição paraconsigo.

Após quatro sessões, foi ditado o veredicto em fins de Junho de 1633. O papa tinhaintervindo para dizer que o seu velho amigo devia ser torturado se não se submetesse.

O dito Galileu [é] […] no julgamento do Santo Ofício, fortementesuspeito de heresia, nomeadamente, de ter acreditado e sustentadoa doutrina, falsa e contrária às Sagradas e Divinas Escrituras, deque o Sol é o centro do mundo e não se move de oriente paraocidente e que a Terra se move e não é o centro do mundo. […]

Os seus livros foram banidos e ele devia ser encarcerado pela Inquisição; exigiramque recitasse os sete Salmos da penitência todas as semanas durante três anos. Odocumento estava assinado por sete cardeais juizes do Santo Ofício.

Galileu já tinha decidido ceder, mas, por uma questão de honra, pediu que duas dasacusações fossem retiradas. Ele queria que fosse declarado que não tinha negado a fécatólica nem que tinha conscientemente contrariado uma prévia decisão do SantoOfício. Os juizes aceitaram estas alterações marginais. Galileu tinha concedido queestava enganado acerca da astronomia e que eles é que estavam certos.

Assim, naquela quarta-feira de fins de Junho, Galileu Galilei ajoelhou no frio chão depedra do convento dominicano de Santa Maria Sopra Minerva para fazer a suaconfissão: «Eu, Galileu, filho do falecido Vincenzo Galilei, florentino, de setenta anos deidade […] devo abandonar totalmente a falsa opinião de que o Sol é o centro do mundoe está imóvel».

Exteriormente, ao negar as suas convicções mais profundas, jurou falso. No seucoração, pelo menos, deve ter dito sobre a Terra: «Contudo ela move-se» («Eppur simuove»).

Quando Galileu pôs a mão sobre a Bíblia e confessou a sua «depravação herética»no coração de Roma, foi um momento solene na história da Igreja. Só o julgamento deJesus perante Pilatus o pode ultrapassar em gravidade.

O Fundador da Ciência Moderna, a mandado da Inquisição Romana, foi obrigado aafirmar que a Terra, de acordo com a fé católica, está imóvel no centro do universo. Uminvestigador que em qualquer lista dos grandes homens do mundo figuraria entre osprimeiros vinte, foi condenado por um grupo de clérigos, nenhum dos quais figurariaentre o primeiro milhão.

Com Copérnico no Index e Galileu condenado pela Inquisição, os astrónomoscatólicos tinham agora de escolher entre serem bons católicos ou serem bonselementos da sua profissão. Por todos os critérios normais, a imobilidade da Terra eradoutrina católica. Foi defendida por todos os papas, bispos e teólogos durante séculos.E isto não estava apenas implícito. Quando a doutrina foi posta à prova, quandoCopérnico e Galileu levantaram dúvidas sobre ela, o papa reinante e os outros papas

Page 212: Vigde cristo

212

posteriores confirmaram-no durante séculos explicitamente na plenitude do seu poder. Eestavam errados. A Terra move-se mesmo, mas muitos papas negaram-no, dizendoque isso contradizia as Escrituras e a fé. Se os católicos afirmam que isto nunca foirealmente doutrina católica, alguém pode alguma vez ter certezas sobre qualquerdoutrina católica?

Em 1686, a lei da gravitação de Newton tornou impossível para qualquer cientistacrer que o enorme Sol girava em torno da minúscula Terra, que aquele teria comocentro. No ano de 1725, esta prova teórica foi confirmada pela observação meticulosade Bradley. Foram precisos mais cem anos para que Copérnico fosse retirado do Index.No princípio dos anos oitenta, ouviu-se João Paulo II dizer qualquer coisa sobre«reabilitar Galileu», embora até hoje nada tenha acontecido. Passados três séculos emeio, Roma não tem pressa nenhuma em pedir desculpa.

Roma recusou a publicação dos documentos sobre o caso Galileu. Depois,Napoleão, numa enorme operação, levou os arquivos do Vaticano para Paris. Quandopor fim regressaram, os documentos relacionados com o caso tinham desaparecido. Asmais diligentes investigações foram infrutíferas. Os críticos da Igreja presumiram que ogrande homem fora torturado. Sem aviso prévio, nem qualquer explicação, osdocumentos voltaram à superfície. Da sua leitura ficou claro que Galileu tinha sidoameaçado, mas não torturado. E nem a sua prisão foi muito rigorosa. Dez dias depoisdo julgamento, deixaram-no voltar para uma casa pertencente aos de’ Medici. Por fim,viria a retirar-se para a sua própria vivenda em Arcetri. Isto era um tratamento suave,considerando que Urbano VIII condenava os bígamos às galés para toda a vida.

O que mais magoou Galileu foi a desonra. Tinha pago por qualquer coisa que nãoconseguia compreender. Considerava-se um católico devoto. Como é que alguém podiainsistir em tomar o Génesis literalmente quando havia poderosas razões para pensarque era um mito. Estava convencido de que os problemas científicos não podiam serresolvidos com uma força policial do clero. Apontados contra ele só via a ignorância, amaldade e a impiedade disfarçadas de fé e virtude cristãs. Os clérigos mesquinhos doVaticano tinham-no humilhado, mas não conseguiam deter o progresso da ciência. Oseu era um caso clássico em que a verdade é esmagada pelo poder, o génio silenciadopela insignificante burocracia. Isto mostrou o receio e o ódio de Roma pela curiosidadede espírito, os quais se viriam a repetir uma e outra vez nos séculos seguintes. Amarcha atrás da Igreja no caminho do futuro significava que a sua guerra com a ciênciae o progresso iria continuar. Fez guerra à liberdade e ao processo democrático durantee depois da revolução Francesa. Fez guerra a Darwin e Freud, à cultura da Bíblia comotentativa de compreender o mundo nos seus próprios termos, livre das divinas«intervenções do exterior». Hoje faz guerra ao controle da natalidade e à igualdade dasmulheres. Em todas e cada uma das ocasiões, a Igreja Católica ao mais alto nível fazreferência à Bíblia e à lei natural quando tenta, com a melhor das intenções, deter oavanço do mundo. É triste constatar que seria difícil encontrar nos últimos quatroséculos um exemplo em que Roma saúde com alegria incondicional um avanço doespírito humano. Qualquer teólogo que hoje seja censurado pode sentir algum confortono facto de já não ser tratado tão cruelmente como o Pai da Ciência Moderna.

Após oito anos de prisão domiciliária, Galileu Galilei morreu em Janeiro de 1642, anodo nascimento de Newton. O Grão-Duque de Florença queria erigir um monumentosobre o seu túmulo na igreja de Santa Croce, junto de Miguel Ângelo. O Papa UrbanoVIII ainda não tinha encerrado a questão com o seu amigo. Avisou o duque de queGalileu tinha persistentemente defendido uma doutrina contrária às Escrituras. Insistiuem que é contra a fé dizer que a Terra se move. Portanto, considerava tal memorial um

Page 213: Vigde cristo

213

insulto pessoal à sua autoridade. E foi assim que o corpo do maior cientista da suaépoca esteve sepultado durante quase cem anos na cave da torre sineira de SantaCroce.

Urbano, errado em quase tudo, teve ao menos razão na justificação que deu para lherecusar umas exéquias apropriadas. Galileu com os seus pecados tinha provocado omaior escândalo da Cristandade.

O grande erro de Clemente XI

Clemente XI estabeleceu a corte no seu palácio no Monte Cavallo. Lá estava maisfresco do que no Vaticano e o ar era menos carregado de pestilência. Na quarta-feira daSemana Santa do ano de 1715 viajou para a Basílica de S.Pedro.

No dia seguinte, depois da missa na Basílica, Clemente subiu para a sedia e foitransportado para a galeria. A multidão enchia a Praça de S.Pedro e estendia-se pelasruas laterais. Logo que ele apareceu, soaram os tambores e os cornetins. No profundosilêncio que se seguiu, um cardeal leu a Bula de excomunhão de Quinta-feira Santacontra todos os hereges, cismáticos, pagãos, piratas mediterrânicos e todos os que nãoobedeciam ao Santo Padre ou não lhe pagavam os impostos devidos.

Esta Bula, In Coena Domini, remontava a 1372. Pio V, em 1562, disse que ela deviaficar como lei eterna da Cristandade e foi confirmada por papa após papa até que foifinalmente abolida, sem explicação, no reinado de Clemente XIV (1769-74). Umaexplicação teria sido bem-vinda, uma vez que a Bula exprimia a mais completa de todasas heresias papais: a de que o papa dominava todo o mundo cristão, religioso e secular.Esta convicção nunca foi explicitamente abandonada pelo Vaticano.

Durante a leitura da Bula, o papa, com o seu rosto comprido bem escanhoado echeio de tristeza, empunhava um archote aceso. Quando a leitura terminou, os oitocarregadores ergueram o pontífice na sua cadeira e este, em voz alta, pronunciou aexcomunhão sobre praticamente todo o mundo, atirando depois o archote por sobre avaranda. Este faiscou e deu voltas no ar antes de atingir a multidão em baixo, um sinalde vingança da Igreja sobre os seus inimigos.

Clemente XI era um bom exemplo de homem ameaçador. Contudo, os seusinfindáveis anátemas, que os seus contemporâneos tomavam por santidade, escondiamuma terrível insegurança. Aquando da eleição, quinze anos antes, em 20 de Novembrode 1700, Gian Francisco Albani tinha cinquenta e um anos. Ordenado apenas há dois enão se sentindo capaz para a tarefa, a princípio recusou a coroa. Só cedeu quandoquatro eruditos religiosos lhe disseram que não aceitar a decisão unânime do Conclaveseria resistir à manifesta vontade de Deus. Estranhamente, aceitou imediatamente asua decisão.

Esses quatro religiosos nunca haveriam de saber que, se tivessem dado ao cardealAlbani o conselho oposto, todo a face do Catolicismo, literalmente, podia ter sidodiferente.

Clemente parecia uma boa escolha para pontífice: disciplinador, erudito, casto, poucodormia e comia, até dizia missa todos os dias — o que num papa não era vulgar. Mas— mais um indício de uma fraqueza essencial — também confessava diariamente osseus pecados. O seu era um pequeno mundo escrupuloso de piedade pessoal.

Na sua ordenação Unigenitus, de 1713, por exemplo, este pontífice, canonicamenteinseguro, depois de consultar dois cardeais de espírito idêntico, condenou

Page 214: Vigde cristo

214

redondamente o Jansenismo em França. Algumas das suas condenações pareciamsensatas; outras haviam de causar em anos futuros o riso e o embaraço.

«A leitura das Sagradas Escrituras é para todos os homens». Condenado. Ainterdição da palavra de Deus, surpreendente à primeira vista, estava de acordo com aabordagem católica desde a Reforma. Havia pessoas a ler a Bíblia insensatamente. Emvez de as ajudar a lê-la sensatamente, não era muito mais fácil proibi-las de a ler? Alémdisso, esta abordagem deixava claro que Roma está acima da Bíblia e tem a autoridadede Deus para a interpretar.

«Os cristãos devem santificar o Dia do Senhor com a leitura dos livros divinos,particularmente as Sagradas Escrituras». Condenado.

«Arrancar o Novo Testamento das mãos dos cristãos é como calar a voz de Cristocontra eles». Condenado.

«Proibir os cristãos de ler as sagradas Escrituras e especialmente o Evangelho éproibir o uso da Luz pelos filhos da Luz e castigá-los com uma espécie deexcomunhão». Condenado.

«O receio de excomunhão injusta não nos deve impedir de cumprir o nosso dever».Condenado. Segundo Voltaire, isto significava que Deus manda que nunca cumpramoso nosso dever se temermos a injustiça. A opinião de Clemente era que não há devermais elevado do que a obediência ao papa. Obedecei-lhe e assim nunca poderá havercondenação de Deus.

Uma vez tomada uma decisão, Clemente não deixava à Igreja qualquer dúvida sobrea sua posição.

Nós não sancionamos e condenamos todas e cada uma destasasserções declarando-as falsas, capciosas, mal-sonantes. Ofensivaspara os piedosos, escandalosas, perniciosas, imprudentes,injuriosas para a Igreja e para as suas práticas, não só ultrajantespara a Igreja mas até para os poderes seculares, sediciosas, ímpias,blasfemas, suspeitas de heresia e elas próprias com sabor aheresia, bem como também estimuladoras da heresia, e mesmo docisma, erróneas, muitas vezes condenadas, por fim tambémheréticas, contendo diversas heresias manifestamente tendentes àinovação.

O pontífice, conclui-se, não se interessa muito por estas asserções.Clemente, tal como a maioria dos pontífices, assumiu que a discussão não conduz à

verdade mas a mais falsidade ou, na melhor das hipóteses, a uma pequena verdade e auma enorme falsidade. Não vale o risco. Tal como em relação à leitura da Bíblia, émelhor proibir completamente a discussão de questões importantes. Roma falou eRoma é quem sabe.

Dois anos depois, Clemente publicaria a Bula Ex Illa Die, com efeitos muito maisdevastadores. Para o compreender é preciso recuar mais de século e meio.

Em 1552, o mais nobre dos Jesuítas, Francisco Xavier, morreu numa ilha ao largo docontinente chinês. O trabalho intenso levou-o a uma morte prematura. Ao morrer, a suaúnica mágoa era que do outro lado daquela extensão de água havia uma vasta terracheia de pagãos que, por não serem baptizados, arderiam eternamente no inferno.

Trinta anos mais tarde, um outro jesuíta, Mateus Ricci, entrou na corte imperial dePequim. Pelos seus conhecimentos de matemática, honraram-no como um «erudito doOcidente», mas ele era também um missionário original e de grande estatura. O seu

Page 215: Vigde cristo

215

método tinha de tornar-se chinês para conquistar os chineses. Ele e os seus assistentesjesuítas compreenderam que era vital apresentar uma Igreja de acordo com astradições da China. Em parte alguma do mundo havia um maior sentido de piedadefilial, de respeito pela autoridade legítima e pelas tradições ancestrais. Quando Riccimorreu, depois de trinta anos de trabalho, deixou atrás de si trezentas igrejas, umadelas mesmo em Pequim. Outros jesuítas se lhe seguiram, a única ordem a queGregório XIII confiou tal missão.

Em 1631, os Dominicanos foram autorizados a juntar-se-lhes. Não passou muitotempo sem que o Padre Morales, O.P., acusasse os Jesuítas de conseguir conversõesa troco da permissão de os chineses manterem as suas velhas “idolatrias”. Desde otempo de Ricci que os Jesuítas adoptavam uma linha de tolerância com os rituaischineses. Diziam que o respeito pelas tábulas dos antepassados, as velas, o incenso, acomida e o dinheiro que lhes eram oferecidos eram uma simples questão de cortesia egratidão. O respeito dos mandarins por Confúcio, o Professor da Sabedoria, tambémparecia inofensivo, uma parte da sua cultura que merecia ser preservada.

Em 1643, Morales enviou dezassete asserções jesuítas para Roma, pedindo quefossem condenadas. A Inquisição, chefiada como sempre por dominicanos, apoiou-o;Inocêncio X concordou que os Jesuítas deviam recuar até que a questão fosseexaminada com mais profundidade. O jesuíta Martini argumentou que aquelas práticaseram puramente civis; condená-las tornaria as conversões impossíveis. A investigaçãodos eruditos mostrara, dizia ele, que os chineses tinham um conceito de deus únicoque, na sua pureza, não tinha paralelo entre os pagãos.

A controvérsia arrastou-se durante muitos anos. Os jesuítas no terreno eramcontinuamente chamados a Roma.

O ano de 1692 foi importante. Os Jesuítas conseguiram uma conquista que lhesescapava há mais de um século. O imperador Kang Hi deu-lhes autorização parapregarem o Evangelho Cristão em todo o reino e converterem quem quer que odesejasse. Os Jesuítas estavam convencidos de que Kang Hi, com o seu imenso podere prestígio, seria o Constantino chinês; podia pôr todo o império aos pés de Cristo.Infelizmente, por essa altura, os Jesuítas foram obrigados a receber ordens de vigáriosapostólicos hostis à sua missão.

O predestinado Clemente XI ascendeu ao trono papal. Durante muito tempo nãoconseguiu tomar uma decisão. Dedicava um dia por semana ao estudo do problema dosrituais chineses. Registou a convicção do imperador de que não havia neles qualquersuperstição. «Ninguém acredita realmente» declarou Kang Hi «que as almas dos mortosestão presentes nas tabuínhas dos seus antepassados».

Clemente mandou a Pequim um bispo na qualidade de seu emissário para investigar.Sua Senhoria, muito insensatamente, condenou publicamente os rituais como idolatria.O imperador, incomodado e intrigado por os cristãos não só estarem divididos, mastambém por se odiarem uns aos outros, mandou prender o bispo. Clemente respondeupromovendo este a cardeal pouco antes de ele morrer corajosamente em Macau em1710. Clemente tomou a prisão do seu legado como um insulto pessoal. A suaindecisão chegou abruptamente ao fim. Na sua cólera, aprovou todos os decretos daInquisição contra a abordagem jesuíta. Agora, no ano de 1715, todos os missionários naChina tinham de jurar a sua repulsa pelos rituais chineses e prometer nunca os tolerar.

Esta mesma intolerância, declarou Clemente, limpará as ervas daninhas e tornará osolo chinês mais frutuoso para a Cristandade. A Igreja tinha que ser romana, mesmo emPequim.

Page 216: Vigde cristo

216

Foi uma solução administrativa, decretada a milhares de quilómetros do local daacção. Nunca houve, provavelmente, erro mais desastroso por parte de um pontífice.Depois da publicação de Ex Illa Die, a missão cristã na China estava condenada.

Nesse mesmo ano, 1715, Giuseppe Castiglione, um jovem jesuíta de vinte e seteanos, foi mandado a Pequim pelo seu superior. Foi honrado pelos chineses como umdos estrangeiros mais revolucionários e sabedores que alguma vez lá fora. A sua famadevia-se não à pregação mas aos seus dotes artísticos.

No dia 16 de Abril de 1717, os Nove Supremos, conselheiros do imperador, tomaramconhecimento da Ex Illa Die. Aconselharam Sua Majestade a que, devido aos insultos àChina vindos dos cristãos e à sua total falta de respeito pelos antepassados, mandassebanir todos os missionários e destruir todas as igrejas e que os convertidos fossemobrigados a renunciar à sua nova fé. O imperador confirmou, com relutância, estasentença. «O que é que o papa diria» perguntava ele «se o Imperador da China lhedissesse como devia venerar em Roma?» Mas reservava-se o direito de assegurar umpiao (licença especial) aos europeus úteis ao seu reino.

Entre os que receberam um piao estava Castiglione, que se tornou o pintor oficial dacorte imperial. Só aos pintores e relojoeiros de primeira era concedido o privilégio dedeambularem livremente pelo Palácio de verão. A Castiglione foi atribuído um paláciopróprio, para poder pintar. O imperador visitava-o quase diariamente e ficavamaravilhado com a naturalidade das suas obras, especialmente os cavalos, em que ojesuíta, agora chamado Lang Shining, era excelente. A maior parte da sua obra foi feitadentro de casa. Quando queria pintar a vida, era escoltado por eunucos imperiais aocaminhar em bicos de pés, como um ladrão, por respeito ao imperador. Assim viveuLang Shining cinquenta anos. Quem dera que o tivessem deixado ensinar aos amáveischineses qualquer coisa mais do que a técnica de pintar cavalos.

Passaram-se dois séculos. No ano de 1939, quando a missão na China estava jámorta e enterrada, a Sagrada Congregação para a Propaganda declarou que os tempostinham mudado. Tinham recebido dos chineses a garantia de que já não havia nada dereligioso nos seus ritos. Os convertidos ao Cristianismo não precisavam de deixar dereverenciar os antepassados.

Sem o admitir, a Propaganda estava a inverter o sentido da decisão de Clemente.Uma vez que as decisões papais nunca são “invertidas“, tiveram de descobrir umpretexto para este volte-face. O Imperador Kang Hi, aquele que poderia ter sido oConstantino asiático, já deixara claro que não havia nada de blasfemo ou anti-cristãonos ritos; os Jesuítas sempre tiveram razão. Se alguns espiões insensíveis tivessemdito a Kang Hi que em Roma os católicos beijavam os pés do pontífice e até os pés dasestátuas, aquele podia ter sido tentado a pensar que os católicos eram idólatras. O errode Clemente foi desta ordem.

As consequências da Ex Illa Die são incalculáveis. A China podia ser hoje tão católicacomo a Irlanda ou a Polónia.

Considerando a oposição da Igreja ao controle da natalidade, em vez de um bilião decomunistas chineses, podia haver hoje dois a três biliões de católicos na China. Dois emcada três católicos no mundo inteiro podiam ter rostos chineses e falar chinês. Masdepois os problemas da humanidade — a fome, o stress, a falta de espaço vital e derecursos naturais — ter-se-iam há muito tornado completamente insolúveis. Ao privar aChina do Catolicismo, o Papa Clemente XI, pode afirmar-se, salvou o mundo dacatástrofe.

Page 217: Vigde cristo

217

Conclusões

Este breve exame mostra que todos os papas são falíveis, que muitos cometeramerros graves e que vários foram heréticos. Contradisseram a doutrina da Igreja,contradisseram-se uns aos outros e, não poucas vezes, contradisseram-se a si própriossobre pontos essenciais da doutrina cristã.

Em resultado disso, a tradição era que qualquer papa, incluindo o reinante, podeenganar-se como outra pessoa qualquer. Não tem nenhuma graça especial que oimpeça de cair em heresia.

Mais ainda: não se pode pôr a questão de um papa ter razão e a Igreja não a ter. Seo papa se afasta da Igreja — talvez por não a ouvir — é o papa, e não a Igreja, que temde mudar de ideias. Se se recusa a ouvir e cai em heresia, já não é papa, porque, tendoabandonado a fé, nem sequer cristão é.

Os teólogos tendem a dizer que tem de se fazer aqui uma distinção. Um papa, comoqualquer cristão, pode errar em questões particulares da fé. O que o Espírito garante éque ele não desviará a Igreja do caminho certo quando profere uma definição ex-cathedra a respeito da fé e da moral.

A distinção entre o papa a falar (1) como papa e (2) noutro papel — quer comoteólogo particular, quer como bispo diocesano ou pregador pastoral, tem uma falhaimportante: nunca se ouviu falar de tal coisa na Igreja primitiva. Jamais alguém disse,quando um papa era condenado por heresia: «Ele é herético, mas felizmente para nósnão estava a falar ex-cathedra». Porquê? Porque ninguém o considerava competentepara definir a fé da Igreja. Isso competia aos Concílios Gerais. E era isso que osConcílios Gerais faziam. Um papa podia fazer perigar a fé da Igreja, como aconteceucom Honório, mas nenhum papa, por si só, alguma vez definiu a fé da Igreja. Houvesituações em que tal dom teria sido uma vantagem - por exemplo, durante acontrovérsia ariana ou quando a divindade do Espírito foi posta em causa. Hoje, todosos católicos se virariam para Roma à espera de uma decisão em pequenas questões;naquele tempo, ninguém apelava para Roma à espera de uma “última palavra“, mesmoquando os fundamentos da fé estavam a vacilar.

A infalibilidade papal incorre ainda numa dificuldade maior. Se as heresias papais dopassado não estão incluídas nas afirmações feitas ex-cathedra, quais são as doutrinaspapais que o estão? Quando é que os papas falaram pela primeira vez para e por todaa Igreja de maneira definitiva? Certamente que não no primeiro milénio. Alguns diriamque nunca antes de 1302, outros, de 1854. Se assim é, os pontífices romanos nãoerraram nessa qualidade simplesmente porque não exerciam em absoluto essa função.

A infalibilidade papal deve ser crucial para a fé da Igreja e uma maneira de a regular.Como é que isto pode ser assim, quando ela não foi exercida durante a maior parte dahistória da Igreja? Pode compreender-se que a Igreja seja infalível, quer em Concílio,quer através da normal doutrinação episcopal em todo o mundo. Mas é difícil darsentido a um papel crucial do papa que nunca exerceu a infalibilidade até serproclamado infalível por um concílio e que só uma vez a exerceu durante o séculopassado.

Esta análise não é completamente rigorosa. Um papa houve que exerceuefectivamente a infalibilidade antes do Concílio Vaticano I. Pio IX é tão crucial para acompreensão do papado moderno que requer um capítulo só para si.

Page 218: Vigde cristo

218

Page 219: Vigde cristo

219

13O Primeiro Papa Infalível

No dia 8 de Dezembro de 1854, o Papa Pio IX definiu a imaculada concepção daVirgem Maria em Inefabilis Deus:

Nós declaramos, proclamamos e definimos que a doutrina quesustenta que a muito abençoada Virgem Maria, no primeiro instanteda sua concepção, por graça singular e privilégio concedido porDeus Todo Poderoso, considerando os méritos de Jesus Cristo, oSalvador da raça humana, foi preservada de toda a mácula dopecado original, é uma doutrina revelada por Deus e portanto deveser crença firme e constante de todos os fiéis.

Este acto de devoção para com a Mãe de Jesus foi também a mais bem imaginadadecisão política de qualquer pontífice em tempos recentes. É comparável à deposiçãopor Gregório VII e posterior humilhação do imperador no meio do vento e da neve deCanossa.

A Imaculada Concepção

Até ao século XII, os cristãos davam como adquirido o facto de que Maria foiconcebida em pecado original. O Papa Gregório o Grande disse enfaticamente: «SóCristo foi concebido sem pecado». E repetiu uma e outra vez que todos os sereshumanos são pecadores, mesmo os santos, com a única excepção de Cristo. O seuraciocínio, bem como o de todos os Padres, não deixa dúvidas sobre o assunto. O actosexual envolve sempre o pecado. Maria foi concebida normalmente, logo, em pecado;Jesus foi concebido virginalmente, logo, sem pecado original.

Enquanto que Ambrósio e Agostinho seguiram a linha segundo a qual Maria nãocometeu pecado, muitos Padres discordam. Tertuliano, Ireneu, Crisóstomo, Origen,Basílio, Cirilo de Alexandria e outros acusaram Maria de muitos pecados, argumentandocom textos bíblicos. Ela foi concebida em pecado e cometeu o verdadeiro pecado; assimdiz o Novo Testamento.

A tradição de que Maria foi concebida em pecado era tão forte que o único problemapara um santo erudito medieval como Anselmo era o de saber como é que o Cristo sempecado podia ter nascido de uma pecadora. Anselmo louvava Maria de muitas maneiras:a sua plenitude espiritual tornava «de novo viçosas todas as criaturas». Contudo, seguiufirmemente o Papa Gregório e a grande tradição: «A Virgem, ela própria, foi concebidaem pecado, e foi em pecado que a sua mãe a concebeu, e em pecado nasceu, porquetambém ela pecou em Adão, como todos nós».

As Igrejas Ortodoxas Grega e Russa continuaram a seguir esta tradição. Sugerir queMaria foi concebida sem pecado é despojá-la da sua grandeza e da sua realização, quesão em tudo as de um ser humano como nós.

Page 220: Vigde cristo

220

No Ocidente, em contraste, o culto da Virgem desenvolveu-se rapidamente na IdadeMédia. Os católicos tendiam a perder de vista a humanidade de Cristo. Em resultadodisto, ele aparecia distante, não tanto como Mediador entre Deus e os homens, masmais como o próprio Deus. Isto criou a necessidade de um mediador para o Mediador,alguém santo e poderoso. O nascimento do culto Mariano coincidiu com o declínio doculto de Cristo.

Maria era a mãe de Cristo, tivera-o nos braços. As suas virtudes sempre foramenaltecidas. Nos tempos Patrísticos, era vista como o modelo de virgindade. Agora,tinha um papel mais importante a desempenhar.

Em meados do século XII, em Lyons, celebrou-se uma nova festa em honra daconcepção da Virgem.

S.Bernardo de Clairvaux ficou horrorizado. Escreveu aos cónegos de Lyons avisando-os de que os seus argumentos para a concepção sem pecado de Maria se aplicaria atodos os seus antepassados, homens e mulheres. Todos seriam obrigados a postulartoda uma linha — uma espécie de regressão até ao infinito — dos antepassados deMaria que foram imaculadamente concebidos. O pesadelo não acabaria aí. Se todoseles foram concebidos sem pecado, todos têm de ter nascido virginalmente. Bernardoseguiu os Padres nas suas opiniões sobre a relação sexual. Esta sempre envolvia opecado. Daí que pergunte aos prelados de Lyons: «O Espírito Santo participou nopecado de concupiscência [dos pais de Maria]? Ou teremos nós de admitir que nãohouve pecado de luxúria?» Bernardo apenas repetia o argumento de Gregório: o sexosignifica luxúria. Maria resultou de uma relação sexual, foi concebida em pecado. Elesustentava que ela nasceu santificada. Tratava-se de uma festa da natividade de Mariae não da sua concepção.

Pedro Lombard, o mais influente teólogo anterior a Aquino, seguiu o Padre gregoJoão de Damasco. Maria foi concebida em pecado original e só foi purificada quandoacedeu em conceber o Salvador. Inocêncio III concordava com esta ideia. Mas nem istoevitou que o novo culto se espalhasse, embora não propriamente em Roma.

Boaventura, o Doutor Seráfico do século XIII, negava que Maria estivesse purificadado pecado herdado. O seu contemporâneo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico,concordava. Seguiu Aristóteles, que afirmava que a animação do feto é um processogradual. Inicialmente, o conceptus é vegetativo. Assim, para Aquino, a ideia deconcepção imaculada era quase tão inteligível como uma cenoura sem pecado.Acreditava realmente que a Virgem Maria foi santificada em qualquer altura nãoespecificada antes do nascimento.

Os Dominicanos, tal como, durante algum tempo, os Franciscanos, concordavam como seu herói Aquino. No século XIV, o Bispo Pelayo, Penitenciário-Mor de João XXII, nãotinha dúvidas de que Maria foi concebida em pecado original.

Mesmo assim, o culto cresceu e pela primeira vez foi apoiado por um teólogo deestatura, o Franciscano Duns Scotus. O problema do Subtil Doutor era saber como éque Maria podia figurar entre os salvos se não tinha pecado original de que ser salva. Asua solução baseava-se no princípio de que mais vale prevenir do que remediar. Marianão se curou do pecado, foi antes prevenida pelos previstos méritos de Cristo de neleincorrer. Isto dificilmente resiste a uma análise. Um bebezinho pode ser imunizadocontra, digamos, a difteria, o tétano, a poliomielite e por aí fora. Com o avanço damedicina, é possível proceder à imunização pre-parto, quando a criança ainda seencontra no ventre materno. Mas como é que um bebé pode ser “imunizado“ antes daconcepção? Segundo Scotus, Maria foi “imunizada” contra o pecado original antes de tersido concebida. Provavelmente nunca mais se teria ouvido falar desta estranha ideia,

Page 221: Vigde cristo

221

não fora Pio IX tê-la utilizado como suporte para a sua infalível definição da concepçãoimaculada de Maria.

Depois de Scotus ter tomado o caminho oposto ao de Aquino, começaram a formar-se facções. Os Franciscanos e os Dominicanos envolveram-se em batalhas terríveis,não só literárias. Os imperadores juntaram-se-lhes, como quando Carlos IV obrigou osDominicanos a saírem de Paris e mandou encarcerar quem quer que fosse encontradona rua e negasse a concepção imaculada.

As discussões e as lutas continuaram durante séculos. Cada uma das facçõesacusava a outra de heresia. Se alguma vez foi necessária uma decisão papal para pôrcobro a uma disputa, esta foi uma delas. Havia boas razões para que ela não surgisse.A Escritura nada dizia sobre a concepção imaculada; todos os Padres da Igreja seopunham; antes de Scotus, nenhum teólogo digno de menção a tinha aceitado e osmaiores tinham-na negado. Contudo, havia uma poderosa vaga de opinião popular a seufavor.

Sisto IV mandou que se mantivesse a Festa da Concepção em todas as igrejas; paraisso concedeu, a título gratuito, uma indulgência especial. Isto provocou umacontrovérsia ainda mais amarga entre os Dominicanos e os Franciscanos. Para lhe pôrfim, o papa escreveu outra Bula. A Festa era em honra da Concepção de Maria, diziaele, e não da sua santificação. Os Dominicanos terão de aceitar isto ou então serãoexcomungados; mas se os Franciscanos se vangloriarem diminuindo os Dominicanos,serão eles os excomungados.

Esta Bula foi confirmada por Alexandre VI. Mas Bórgia, um realista, ameaçou chamaro exército para manter a paz entre os monges se estes não se acalmassem.

Os Dominicanos mantiveram-se inabaláveis. O seu herói Aquino saíra a terreirocontra a imaculada concepção, e não era verdade que João XXII, deliciado com aopinião que eles tinham sobre o papado, tinha dito que negar qualquer coisa que Aquinodissesse equivalia a heresia? Portanto, embora os Dominicanos espalhassem a devoçãoao rosário, eram alvo da troça dos Franciscanos, como “maculistas”.

Foi então que algo aconteceu que fez inclinar os pratos da balança para o lado dosDominicanos.

No ano de 1507, no convento dominicano de Berne, Maria apareceu a um humildefrade, o irmão Letser. A Letser ela revelou a sua irritação por os Franciscanos ensinarema sua chamada imaculada concepção. Confirmou-lhe que ela tinha sido concebida empecado original. Só três horas depois da concepção é que foi santificada. A opinião deS.Tomás de Aquino era, confirmou a Virgem, a este respeito e em todos os outros,perfeitamente ortodoxa. Para provar a fidedignidade daquela visão, Maria deu ao fradeuma cruz tingida com o sangue de Jesus e mais três das suas lágrimas derramadassobre Jerusalém. Também lhe entregou uma carta dirigida ao papa reinante, Júlio II, quenessa altura estava empenhado, de armas na mão, nas guerras italianas.

Aquela aparição foi a sensação da época. Multidões dirigiram-se em rebanho para oconvento em Berne. O Irmão Letser era um bom sujeito para as revelações Marianas:era casto, fazia jejum; flagelava-se; caía facilmente em êxtase; criava estigmas, aquelaschagas nas mãos e nos pés do Crucificado que têm autenticado muitos santos. Nacapela do convento havia uma imagem da Virgem que chorava perpetuamente peloserros dos Franciscanos, a quem Maria implorava que aceitassem a sua MaculadaConcepção.

Então, inesperadamente, aconteceu algo ainda mais surpreendente. Entrou em cenao próprio Irmão Letser. Fez a sua aparição, isto é, apresentou-se ao magistrado de

Page 222: Vigde cristo

222

Berne a pedir asilo. Os seus superiores, alegava ele, andavam a torturá-lo e a tentarenvenená-lo. O que ele revelou foi uma trama dominicana.

Os superiores da Ordem em assembleia de cónegos em Wimpffen tinham decididoprovar a falsidade da imaculada concepção por meio de um milagre doméstico. Berne foio local escolhido, porque tinha uma população vasta e crédula. Os quatro priores doconvento lembraram-se de João Letser, alfaiate, que tinha sido admitido recentementena Ordem, como o visionário adequado. Prepararam-no, drogando-o. Letser foicompletamente enganado. Até que um dia entrou no gabinete do leitor Bolshorst sembater e o encontrou vestido com as roupas de mulher da Virgem Santíssima. Isto foi umchoque muito maior do que a verdadeira aparição da Virgem. Quis abandonar os seusserviços, mas, ameaçado, continuou até não aguentar mais.

A questão foi presente à Inquisição. Letser e os quatro conspiradores foramsubmetidos à tortura. Estes confessaram que tinham pintado uma hóstia de vermelho,tinham feito uma imagem chorar por meio de esponjas molhadas e com um pinceltinham pintado as chagas no Irmão Letser.

Embora os quatro tivessem sido queimados, a Ordem dos Dominicanos declarou-osmártires da causa. E contra-atacou publicando um manual com todos os grandespensadores da Igreja que tinham discordado da imaculada concepção. O manual incluíaa maior parte dos teólogos de nomeada e numerosos papas. Na lista havia muitosfranciscanos, incluindo Santo António de Pádua e S.Boaventura.

A Igreja oficial continuou a contemporizar. O Concílio de Trento não conseguiu decidirsobre o assunto, e Paulo IV baniu toda a discussão sobre a matéria. Mas a maré estavaadversa para os Dominicanos. De um médico romano, Paulo Zacchia, veio umacontribuição para a causa. Negou a teoria de Aristóteles da animação progressiva dofeto. Zacchia disse, em 1621, que uma alma racional é impregnada no exacto momentoda concepção. Aplicado a Maria: se ela não foi concebida primeiro como vegetal, fazialigeiramente mais sentido dizer que foi concebida sem pecado.

Em 1622, Gregório XVI disse que ninguém podia discordar, mesmo em privado, daFesta da Concepção, embora proibisse o uso de “imaculada”.

No ano de 1701, Clemente XI tornou a Imaculada Concepção uma festa obrigatóriaem toda a Igreja, reforçando assim a opinião de Zacchia da animação instantânea.

Benedito XIV (1831-46), no seu decreto sobre a Beatificação, disse que a Igreja seinclina para a imaculada concepção mas nunca fez dela um artigo de fé.

O seu sucessor não teve tais reservas.

Pio IX, tal como Gregório VII, tinha faro para a política. Sabia que os Estados Papaistinham os dias contados. Pouco depois de eleito, foi estabelecida uma repúblicaprovisória em Roma, e ele fugiu para Gaeta. Aí teve tempo para reflectir sobre a únicaárea em que podia reinar. Preparou o caminho com a Encíclica Ubi primum, de 2 deFevereiro de 1849, onde traçava este retrato de Maria:

A glória resplandecente dos seus méritos, que excedem largamentetodos os coros dos anjos, eleva-se até aos degraus do trono deDeus. Os seus pés calcaram a cabeça de Satanás. Colocada entreCristo e a sua Igreja, Maria, sempre amorável e cheia de graça,aliviou os cristãos das suas desgraças e das ciladas e arremetidasdos seus inimigos, resgatando-os sempre da sua ruína.

O retrato de Maria de Pio IX devia mais à angélica Bela de cabelo escuro de Murillodo que ao Evangelho.

Page 223: Vigde cristo

223

Em Gaeta, com os Jesuítas e seus mentores, Pio começou a “consultar” os bispossobre a conveniência de definir a doutrina da imaculada concepção. Recebeu o apoioquase unânime dos quase quinhentos bispos italianos, espanhóis e portugueses. Osrestantes não mostraram grande entusiasmo.

Um ou dois dias antes da definição, em 1854, o secretário particular do papa,Monsenhor Talbot, confidenciava a um amigo: «Estás a ver, o mais importante não é onovo dogma, mas a maneira como ele for proclamado». O papa estava claramente aescorregar, por assim dizer, na sua própria infalibilidade.

Antes de 1870, esta questão estava longe de ser aceite universalmente. A Igrejafrancesa, por exemplo, era conhecida pela sua oposição. O Quarto dos Artigos Galesesde 1682, assinados pelo grande Bispo Bossuet, dizia: «O papa tem o principal quinhãoem questões de fé […] contudo, o seu julgamento não é irreformável sem aconcordância da Igreja». Os decretos do Concílio de Constança ainda estavam em vigorem França no século XVIII e, apesar de Roma, muitos ainda assim continuaram até1870.

Também o mundo de língua inglesa estava longe de aceitar unanimemente ainfalibilidade papal. Em 1822, o Bispo Barnes, Vigário Apostólico inglês, disse:«Bellarmino e outros teólogos, sobretudo italianos, acreditavam num papa infalívelquando ele apresentava ex-cathedra um artigo de fé. Mas não acredito que qualquercatólico da Inglaterra e da Irlanda sustente a infalibilidade do papa». Ainda mais tarde, oCardeal Wiseman, que em 1850 encabeçava a restaurada hierarquia da Inglaterra ePaís de Gales, disse: «A Igreja Católica tem um dogma, frequentemente proclamado,que afirma que, em matéria de fé, ela (isto é, a Igreja, e não o papa) é infalível». Econtinuava: «Todos concordam que a infalibilidade reside no sufrágio unânime daIgreja». John Henry Newman, um convertido e o maior teólogo do século XIX, disse doisanos antes do Concílio Vaticano I: «Eu sustento a infalibilidade do papa, mas como umaopinião teológica, isto é, não como uma certeza, mas como uma probabilidade».

Nos Estados Unidos, antes do Vaticano I, foi publicado o muito popular ControversialCathecism, do Reverendo Stephen Keenan. Trazia o Imprimatur do Arcebispo Hughesde Nova Iorque. Eis um extracto: «Pergunta: Os católicos têm de crer que o próprio papaé infalível? Resposta: Isso é uma invenção dos protestantes; não é um artigo de fécatólica; nenhuma decisão sua pode vincular com pena de heresia, a não ser que sejaaceite e imposta pelo corpo doutrinal, isto é, pelos bispos da Igreja». Era algoembaraçoso que em 1870 uma “invenção dos Protestantes” tivesse sido definida comofé católica. Na edição seguinte do Cathechism esta pergunta e resposta foram retiradassem uma palavra de explicação.

Pio IX, ao obter o apoio da maioria dos bispos italianos e outros latinos em 1854,estava já a canonizar a “doutrina italiana” da infalibilidade papal.

O processo de proclamação da imaculada concepção foi único. Não emanou de umConcílio Geral; foi da exclusiva responsabilidade do papa. Dez anos mais tarde, oteólogo jesuíta Clemens Schrader, havia de chamar a esta definição «um acto peculiardo pontificado de Pio IX que não tem paralelo em qualquer outro pontificado anterior».

A muito discutida doutrina da imaculada concepção foi apenas o balão de ensaio paraa definição da infalibilidade papal de 1870. O que era intragável para todos os bisposque se opuseram à definição no Concílio Vaticano I é que apenas dezasseis anos antes,Pio já exercera esse poder perante o mundo — e eles não fizeram nada. Pio IX tinhatransformado a infalibilidade da Igreja numa prerrogativa pessoal para ser usadaindependentemente da Igreja ou do Concílio.

Depois de 1854 os Dominicanos tiveram de submeter-se. Já não havia aparição daVirgem Santíssima que lhes valesse.

Page 224: Vigde cristo

224

Os cristãos não católicos ficaram ainda mais perturbados. A definição veio confirmaros seus piores receios sobre o papado. A imaculada concepção já não era uma crençapiedosa que os católicos podiam aceitar ou rejeitar. Estes eram agora ameaçados deexcomunhão se dela descressem ou simplesmente lhe retirassem o seu acordo. Foraminformados por Pio IX de que sem um explícito acto de fé nessa crença não podiam sersalvos. Aqueles que pensam de maneira diferente «estão condenados por seu própriojulgamento, destruíram a fé e afastaram-se da unidade da Igreja».

Mas isso não foi necessário para S.Gregório o Grande, nem para os Padres da Igreja,Santo Anselmo, S.Bernardo, S.Boaventura, S.Tomás de Aquino — que a negaram. Nempara Ireneu, Jerónimo, Crisóstomo que, com S.Pedro e S.Paulo, nunca sequerpensaram em tal. Mais de dezoito séculos e meio depois da concepção de Maria, erauma heresia negar que ela foi concebida imaculada. Esta opinião marginal era agora tãoimportante para a salvação como a crença na Trindade, na divindade de Cristo, naExpiação e na Ressurreição.

O poder absoluto tinha moldado uma “verdade” absoluta; e os outros cristãosencontraram mais uma enorme barreira entre eles próprios e a Igreja Romana. Algunsperguntavam-se onde é que aquilo iria acabar. Talvez um futuro pontífice viesse a definirque também Maria foi virginalmente concebida. O fenomenal progresso da imaculadaconcepção desde a redonda negação até à definição papal mostra que nada éimpossível. Porque nesta questão o papa contradisse princípios básicos: que osEvangelhos fornecem os fundamentos da crença; que nenhum indivíduo, nem mesmo opapa, pode decidir sobre a doutrina católica, que ela carece de todo o episcopado emConcílio ou em doutrinação geral representativa da fé das suas igrejas; que oCatolicismo não pode tratar desta maneira despótica uma tradição que data dos tempospatrísticos. Contra isto, a única coisa que Pio IX podia dizer era: «Eu sou a tradição».

Homem amável, ele viria a revelar-se o pontífice mais autocrático desde a IdadeMédia.

A definição da imaculada concepção não foi extraordinária só no seu conteúdo eprocesso de proclamação. A despeito de todo o seu significado marginal, influenciouquase toda a teologia da Igreja Católica. Isto é manifesto em relação à autoridade papal,especialmente ao definir doutrina. Mas também influenciou a teologia do pecado originale da sexualidade.

Pecado original: Pio reforçou o conceito de pecado original como herança de umremoto antepassado (Adão) que pecou e transmitiu este pecado ao resto da espécie. PioIX foi o principal responsável pelo facto de a Igreja Católica não poder aceitar asdescobertas de Darwin, tal como, dois séculos antes, não pudera aceitar o que Galileudizia. A Origem das Espécies veio a lume cinco anos depois da definição da imaculadaconcepção. Apesar das provas científicas que se multiplicavam de que durante muitosmilhões de anos o homem tinha evoluído de formas inferiores, Roma continuava, econtinua, a insistir em que houve originalmente apenas um casal, perfeito em corpo eem espírito, do qual nasceu toda a espécie. Mesmo em termos éticos, uma teoria comoa de Darwin teria ajudado a Igreja a resolver uma dificuldade. Porque, se foi um só casalque esteve na origem da espécie, segundo o plano de Deus, a humanidade só podia tercomeçado a propagar-se por meio do incesto, o que, de acordo com os moralistascatólicos, vai contra a lei natural e o próprio Deus não pode tolerar.

Sexo: a doutrina da imaculada concepção também afectou a doutrina católica sobre asexualidade e, particularmente, sobre o controle da natalidade, o aborto e a fertilizaçãoin vitro.

Page 225: Vigde cristo

225

Desde 1854, os católicos têm vindo a acreditar cada vez mais que a alma é animadapor Deus nos primeiros momentos da concepção. Maria foi santificada, segundo Pio IX,no primeiro momento da concepção. Isto reforça a ideia de que no momento daconcepção já há no ventre da mulher um ser humano com todos os direitos inerentes. Edaí que o aborto, em qualquer estádio da gravidez, seja um crime. A contracepção é opior mal, depois do aborto, pois impede a produção de mais um ser humano. Isto mostraa firme relação que existe entre o decreto de Pio IX de 1854 e a Encíclica de Paulo VI de1968 sobre o controle da natalidade.

Estes temas serão tratados com mais profundidade na terceira parte, onde veremosque o celibato também está relacionado com a doutrina de Roma sobre a imaculadaconcepção. Os celibatários, que fizeram voto de não dar expressão à sua sexualidade,isto é, de não propagarem o pecado original, são considerados como vivendo uma vidamais perfeita do que as pessoas casadas.

O Manual dos Erros

Dez anos depois do dia em que definiu a imaculada concepção, Pio IX publicou oManual dos Erros, acompanhado de uma encíclica, a Quanta Cura. Durante dezanoveanos, Pio condenou tudo o que era novo, quer fosse bom ou mau. Em desacordo comos ideais da Revolução Francesa, foi particularmente duro com tudo o que cheirasse aliberdade.

Pio acreditava que a Igreja Romana detém a mais completa verdade possível domundo e estava portanto divinamente obrigada a ser intolerante. Exemplificou isto doisanos antes de fazer publicar o seu manual quando assinou uma concordata com oPresidente do Equador. Este católico de direita tinha chegado ao poder por meio de umgolpe contra os elementos liberais e anti-clericais. A concordata foi um dos documentosmais injustos alguma vez assinados por dois poderes soberanos. O Catolicismo Romanodevia ser a única religião permitida no Equador. À Igreja era garantido o completocontrole da educação e um papel dominante na vida do país. Isto era o sonho de Pio IX.Ele sonhava que um dia o resto do mundo, especialmente a França e a América,seguiria o mesmo caminho. A Encíclica Quanta Cura é mais um pesadelo do que umsonho.

Cheio de receios e de pressentimentos, Pio escreve como alguém sem esperança.Ele representava o absolutismo: a Igreja e o Estado deviam, entre os dois, moldar omundo, como já faziam há séculos; o Estado devia estar sujeito à Igreja nas questõesmorais e ser o seu protector, mesmo quando esta propõe completa intolerância emrelação às outras religiões.

Também o Manual dos Erros de Pio IX é reaccionário de princípio ao fim. Entre asideias contemporâneas que condenou estão estas:

15. Todo o homem é livre de abraçar e professar a religião que,guiado pela luz da razão, considere como a verdadeira.

24. A Igreja não tem o poder de usar a força nem tem qualquerpoder temporal directo ou indirecto.

30. A imunidade da Igreja e do clero advêm da lei civil.

Page 226: Vigde cristo

226

38. Os pontífices romanos têm contribuído, com a sua condutademasiado arbitrária, para a divisão da Igreja em Ocidental eOriental.

76. A abolição do poder temporal que a Sé Apostólica detémcontribuiria no mais alto grau para a liberdade e prosperidadeda Igreja.

77. Actualmente já não é conveniente que a religião católica seja tidacomo a única religião do Estado, com a exclusão de todas asoutras formas de culto.

79. Por isso, foi sensatamente decidido por lei em alguns paísescatólicos que as pessoas que lá venham a residir possamgozar do exercício público do seu culto particular.

80. O pontífice romano pode e deve reconciliar-se e chegar a acordocom o progresso, o liberalismo e a moderna civilização.

No seu contexto, sobretudo italiano, de anti-clericalismo que a intransigência deRoma tinha levado ao ponto de ebulição, estes ensinamentos medievais eram bastantemaus. Fora do contexto, o conjunto parece uma caricatura do Catolicismo. Nenhuminimigo da Igreja conseguia fazer-lhe metade do mal que Pio IX lhe fez. Gladstone, naInglaterra, e Lincoln, na América, ficaram escandalizados ao ouvir o papa condenar oprogresso, o liberalismo e a moderna civilização.

A reacção da imprensa mundial era previsível. A Grã-Bretanha em particular exprimiua sua incredulidade.

O manual saiu na época de Natal de 1864. No primeiro número do novo ano, o Punchtrazia um palhaço a declamar:

Eu estava pronto a engolir com inquestionável docilidadeAs maiores coisas ditadas p’la Superior Infalibilidade;Não teria objectado a esticar a boca toda;De vontade a abriria quanto me fosse mandado

Mas realmente esta Encíclica, que é tão contrária à razão,Foi mesmo p’ra publicação a mando da SantidadeNesta especial estação, insistindo na verdadeDa clerical dominação sobre o poder civil, família e educação.

Denunciando a revolta contra governo despótico;Negando ao povo dos líderes a eleição;Afirmando da Igreja a estrita obrigaçãoDe apoiar o Estado em toda a repressão;Condenando da imprensa e consciência a liberdade, E qualquer liberal constituição.∗

∗ No original:I was prepared to swallow with unquestionable docility,The biggest things delivered by Superior Infallibility;

Page 227: Vigde cristo

227

E tudo isto era demais para engolir, mesmo para um palhaço de boca grande.O Spectator sugeria que o papa devia «igualmente rezar contra a primeira lei do

movimento». O anglicano Church Times via o papa como o divisor e não o unificador daCristandade e recebeu a encíclica «com repugnância e escárnio». O editor assinalavaque Pio não tinha qualquer simpatia pela civilização, pelo progresso, pela ciência ou pelointelecto. Olhava-os como «inimigos mortais da fé».

O comentário do The Times era o mais cortante: «Será difícil encontrar um sistemapolítico na Europa, à excepção do governo papal, que não assente nos princípios queaqui são declarados como erros condenáveis».

E isto era verdade. Durante o século XIX o papado andou a pressionar os governospara que negassem aos seus cidadãos aqueles direitos que eram negados aos cidadãosdos Estados Papais. Desde 1831 que os papas atacavam cada nova constituição — aaustríaca, a francesa, a belga — apelidando-as de “ímpias”. Porquê? Porque ousavam,como ateístas que eram, garantir a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa,instituições parlamentares livres para as quais todos os cidadão tinham o direito devotar, independentemente da sua religião ou ausência dela, e completa igualdade doscidadãos perante a lei. O papado continuava a instar os outros estados italianos a imitara sua própria repressão. Por exemplo, em 1852, Pio IX persuadiu a Toscânia a proibir osmédicos judeus de exercer a medicina.

A impressão que ficava era que a única coisa que Roma não podia tolerar eraqualquer forma de liberdade.

Durante todo este tempo os papas andaram a alimentar o anti-clericalismo por toda aItália. Pio IX, por fim, podia até ter sido compreendido e popular na Igreja; mas na Itáliaera quase universalmente detestado. Uma das consequências da rejeição do papadodas novas constituições foi que os cidadãos católicos das repúblicas emergentes eramvistos como anti-patriotas. Quando, por exemplo, a constituição austríaca foi publicada,o Vaticano disse:

Nós declaramos que estas leis e as suas consequências foram eserão no futuro nulas e inválidas. Nós exortamos e suplicamos aosseus autores, especialmente àqueles que se intitulam de católicos, etodos os que ousem propô-las, aceitá-las, aprová-las e executá-lasque se lembrem das censuras e penas espirituais em que incorremipso facto, de acordo com as constituições apostólicas e decretosdos Concílios Ecuménicos, aqueles que violarem os direitos daIgreja.

Pio IX foi ao ponto de condenar esta constituição por permitir que os Protestantes eJudeus tivessem as suas escolas e universidades.

To stretch my mouth from ear to ear I shouldn’t have objected,Would willingly have opened it to any width directed.

But really that Encyclical, so contrary to reason,Your Holiness had published just at this special season,Insisting on the divine right of priestly dominationO’er civil power, the family, and public education;

Against despotic government denouncing insurrection,Denying people’s rights to choose their rulers by elections,Proclaiming the Church bound to back the State in persecution, (N. T.)Condemning free press, conscience, free and liberal constitution…

Page 228: Vigde cristo

228

Em França, o Bispo Dupanloup ficou tão preocupado que introduziu uma distinçãoque, como vimos, o Cardeal Gibbons de Baltimore achou muito útil. O manual do papaaplicava-se a um mundo perfeito (tese); não a um mundo imperfeito (hipótese).Infelizmente, a noção de perfeição do papa não era a mesma da maioria dos católicos,que desconfiavam de um estado teocrático. Como comentava um gracejo parisiense, «Atese é quando a Igreja condena os Judeus; a hipótese, quando o núncio papal janta como Barão de Rothschild».

Já não faltava muito para que a democracia que Pio IX persistentemente condenavalibertasse os próprios católicos da tirania dos Estados Papais e trouxesse à Igreja umaaragem de liberdade que Pio IX, se pudesse, lhe teria tirado para sempre.

Dificilmente poderia ter havido um pontífice na história a quem a Igreja pudesseatribuir a dignidade de “infalível” com mais apreensão.

A supremacia papal

Sintomaticamente, a data escolhida para a abertura do Primeiro Concílio Vaticano em1869 foi o dia 8 de Dezembro, o aniversário da definição papal da imaculada concepção.

De acordo com o Pastor aeternus, o principal decreto do Vaticano I, o papa não éapenas um supervisor ou administrador de topo da Igreja. Ele detém também a«jurisdição suprema e total da Igreja nas questões que dizem respeito à disciplina edirecção da Igreja espalhada pelo mundo». O poder do papa é supremo; estende-sedirecta e imediatamente a todas as igrejas, a todos os pastores, a todos os leigos.

O Concílio sustenta que ao dizer isto «se baseia no testemunho claro da SagradaEscritura e se apoia nos claros e explícitos decretos tanto dos nossos antecessores, ospontífices romanos, como dos Concílios Gerais». Estas afirmações não resistem a umaanálise.

Analisemos resumidamente as provas:Quanto à Sagrada Escritura: nem um só dos primeiros Padres da Igreja viu na Bíblia

qualquer referência à jurisdição papal sobre a Igreja. Ao contrário, eles consideram umdado adquirido que os bispos, especialmente os metropolitanos, têm todo o direito degovernar e administrar o seu território sem interferência de ninguém. A Igreja Orientalnunca aceitou a supremacia papal; a tentativa de Roma de a impor levou ao cisma.

Quanto aos Concílios Gerais: o Concílio de Constança do século XV, em muitas áreaspôs os concílios acima dos papas. Isto seria o bastante para destruir a confiança doVaticano I nos concílios. Mas as coisas são ainda piores.

Os oito concílios da Igreja quando ainda una não foram convocados pelo Bispo deRoma. A começar pelo de Niceia em 325, os concílios eram convocados pelo imperador,que aprovava os decretos. Era o imperador que reinava; era ele que impunha os credos.O Cânone 6 de Niceia decidia que todas as sés deviam manter os seus antigos direitos.Alexandria governaria o Egipto, a Líbia e Pentápolis «porque há um costume semelhanteno caso do Bispo de Roma. O mesmo em Antióquia».

Cinquenta anos mais tarde, no Concílio de Constantinopla de 381, o Bispo deConstantinopla foi considerado hierarquicamente o segundo depois do Bispo de Roma.O Cânone 3 do Concílio explicava porquê. «Depois do Bispo de Roma, o Bispo deConstantinopla terá a primazia, porque Constantinopla é a nova Roma».

Este Cânone foi repetido em 451 no Concílio da Calcedónia. O Papa Leão o Grandequeria maior reconhecimento para a sua Sé de Roma. Mas não o conseguiu. O Concíliodisse simplesmente:

Page 229: Vigde cristo

229

Os padres atribuíram correctamente a primazia ao Trono da VelhaRoma, porque ela foi a Cidade Imperial. E os cento e cinquentamuito religiosos bispos, movidos pela mesma intenção, deram iguaisprivilégios ao muito sagrado Trono da Nova Roma [Constantinopla],julgando com razão que a cidade, que foi honrada com a soberaniae o senado e que goza dos mesmos privilégios que a velha Roma,deve também, tal como ela, ser glorificada em questõeseclesiásticas, sendo a segunda a seguir a ela.

Não há nenhuma referência ao Evangelho ou ao papel de Pedro, que o Bispo deRoma herdou, nenhuma supremacia atribuída «ao papa». O papa é venerado porque éo Bispo da Sé Imperial da Velha Roma.

Longe de ser claro, como o Vaticano I declarou, que o Evangelho e os ConcíliosEcuménicos atribuíram ao papa jurisdição universal, não há nenhuma prova disso.Como disse o Cardeal Manning de Westminster: «O dogma tem de sobrepor-se àHistória».

Mesmo os testemunhos papais sobre a jurisdição do papa apenas vieram á superfíciedepois de Constantino deixar Silvestre abandonado em Roma como seu vassalo. Umtom de ameaça depressa começou a ouvir-se na Sé Romana. Depois Leão I intitulou-sePontifex Maximus e depôs um bispo.

Apesar disto, é em vão que se pode procurar no primeiro milénio uma única doutrinaou artigo de legislação imposta exclusivamente por Roma ao resto da Igreja. As únicasleis gerais saíram de concílios como o de Niceia. De qualquer maneira, como é que oBispo de Roma podia ter exercido jurisdição universal naqueles primeiros séculos,quando não havia Cúria, quando os outros bispos não toleravam qualquer interferênciade quem quer que fosse nas as suas dioceses, quando Roma não emitia dispensas nemexigia qualquer tributo ou imposto, quando todos os bispos, e não apenas o Bispo deRoma, tinham o poder de vincular e desvincular, quando nenhum bispo nem nenhumaigreja era censurado por Roma? Mais ainda: durante séculos, o Bispo de Roma foiescolhido pelos cidadãos locais — clero e leigos. Se ele tivesse jurisdição sobre a Igrejauniversal, o resto do mundo não quereria ter uma palavra a dizer na sua nomeação?Quando se acreditou que ele tinha a supremacia, o resto do mundo exigiu mesmo teruma palavra na sua eleição. Isto apenas aconteceu na Idade Média.

O Vaticano I definiu a supremacia papal em termos com que os pontífices medievaisteriam concordado, mas que não tem qualquer relação com o Evangelho, a tradição ou ahistória dos concílios ecuménicos da Igreja ainda una.

A infalibilidade papal

A infalibilidade do papa foi vista pelo Vaticano I como parte da supremacia do papasobre toda a Igreja. São os seguintes os termos da definição:

O Pontífice Romano, quando fala ex-cathedra, isto é, quando noexercício da sua função de pastor e doutrinador de todos os cristãos,define, em virtude da sua suprema autoridade apostólica, a doutrinasobre a fé e a moral que deve ser seguida pela Igreja universal, está,pela divina assistência que lhe foi assegurada na pessoa deS.Pedro, possuído daquela infalibilidade com a qual o divinoRedentor quis que a Sua Igreja fosse dotada ao definir a doutrina

Page 230: Vigde cristo

230

respeitante à fé e à moral; e que por esta razão tais definições doPontífice Romano são irreformáveis por si só e não porconsentimento da Igreja.

Analisando resumidamente as provas contra a infalibilidade papal: Pedro era falível,tanto antes como depois da crucificação. Também não há qualquer indício no NovoTestamento de que Pedro tivesse algum tipo de poder que um seu sucessor viesse aherdar. De acordo com os Padres, Pedro nessa qualidade não teve sucessor. Todosvêem os bispos como sucedendo aos apóstolos, e não um bispo individualmente asuceder a um apóstolo em particular, Pedro, neste caso. Portanto, não podiam teraceitado a afirmação de que o “sucessor de Pedro” tivesse de governar a Sé de Roma.

Já vimos também que todas as grandes afirmações doutrinárias, especialmente oscredos, não vieram dos papas, mas dos concílios. Nos primeiros séculos, nunca ocorreuaos Bispos de Roma que pudessem definir doutrina para toda a Igreja. O Vaticano Iprecisava realmente de explicar por que razão, se a infalibilidade é crucial para a Igreja,os credos e concílios da Igreja ainda não dividida não lhe fazem qualquer menção e porque é que ela não foi imposta antes de 1870. Anteriormente, a infalibilidade papal não foide modo nenhum exigida pelos católicos. Estes podiam negá-la, e países inteirosfizeram-no, sem qualquer ideia de que eram maus católicos.

Mas se os católicos não eram obrigados a acreditar na infalibilidade papal antes de1870, eram livres de acreditar ou não naquilo que qualquer papa dissesse. Nas palavrasdo Cardeal Newman, era uma «opinião teológica, […] uma probabilidade». Até 1870, oscatólicos nunca criam numa doutrina com base numa definição papal; na melhor dashipóteses, eram livres de a considerarem provável. Mas, se esta opção existia, o papanão pode ter regulado a fé da Igreja como faziam os concílios. Numa palavra, asafirmações papais ex-cathedra ao longo da História — mesmo admitindo por umaquestão de argumentação que houve alguma — só foram impostas à Igreja a partir de1870. Claro que podia haver outros fundamentos para a infalibilidade do papa, e haviade facto. Ele era um bispo, ao lado de outros bispos, a doutrinar naquilo que é chamadode magistério ordinário. Mas precisamente nos termos estabelecidos pelo Vaticano I, osfiéis podiam aceitar o que ele dizia ou rejeitá-lo. Por outras palavras, a infalibilidadepapal não afectou de maneira crucial a Igreja até 1870. A noção que alguns católicostêm de que vão buscar ao papa, como tal, a fé em Deus, em Jesus e na Igreja estáerrada. A Igreja nunca teve nem nunca careceu da infalibilidade papal para a sua fécristã.

Segundo o Vaticano I, o papa só é infalível quando fala ex-cathedra. Pode parecerentão mais correcto dizer que o papa é falível, excepto quando faz afirmações ex-cathedra, o que raramente acontece. Como foi observado por um bispo no próprioConcílio, dizer «o papa é infalível» é como dizer «o senhor X é um bêbado porque seembriagou uma vez»; ou, pior ainda, «o senhor X é um bêbado porque o tetra-avô delese embriagou uma vez», visto que as declarações ex-cathedra são extremamente raras.Seria difícil encontrar uma única antes da definição de 1854 sobre a imaculadaconcepção. E, como todos concordam, só houve uma depois de 1870. Isso aconteceuquando Pio XII definiu outra doutrina Mariana, a Assunção, em 1950. Ele declarou queno fim da vida, Maria foi levada, corpo e alma, para o Céu. Mesmo com a sua «especialajuda divina», não conseguiu dizer com certeza se ela tinha morrido ou não. Isto não oimpediu de acrescentar o habitual anátema: «Se alguém ousar, Deus nos livre, negarvoluntariamente ou levantar dúvidas sobre aquilo que Nós definimos, que fique a saberque se desviou completamente da divina fé católica […]».

Page 231: Vigde cristo

231

A raridade das declarações ex-cathedra torna a observação de João XXIII algo maisdo que um gracejo: «Eu não sou infalível. Só seria infalível se falasse ex-cathedra, coisaque não tenciono fazer». Nem mesmo Paulo VI invocou a infalibilidade quandocondenou o controle da natalidade em 1968.

A pouca frequência das declarações infalíveis dificilmente satisfaria aqueles católicosdo século XIX que ansiavam por um novo dogma no prato, juntamente com o TheTimes, ao pequeno almoço. Mas não podia um papa ao menos fornecer uma lista dasdeclarações ex-cathedra feitas até agora, ou dos critérios para as identificar? A incertezasobre se certas afirmações são ou não infalíveis tende a abalar a confiança no sistema.E também os não católicos gostariam de saber em que acreditar antes da reunificação.

Os teólogos católicos fazem questão de assinalar que a infalibilidade não significa queo papa seja inspirado, possa ver o futuro, possa decidir qualquer questão como equando lhe apetece, ou exprima necessariamente a verdade tão perfeitamente que nãoprecise de revisão ou desenvolvimento. O que quase nenhum observa é que mesmocom fundamento nos princípios católicos, os papas de uma maneira geral não sãomesmo infalíveis. Não falam infalivelmente nem mesmo quando a Igreja e o mundoclamam por uma luz na escuridão.

Desde 1870 que toda a gente gostaria de saber as respostas para muitas perguntasassombrosas: há pessoas noutros planetas? E, se houver, como é que a Encarnação deCristo as toca? A guerra nuclear é justificável em quaisquer circunstâncias? E pode umcatólico empenhar-se na investigação e desenvolvimento de tais armas? Centenas dequestões semelhantes têm sido levantadas pela ciência e tecnologia. Nem uma sóresposta infalível saiu de Roma. Seria uma ajuda se o papa tivesse declarado, com osuporte da Bíblia, «Jesus, um Homem pobre, está sempre do lado dos pobres». Ou:«Aquele que tem o poder de alimentar os famintos e o não faz está a matar à fome opróprio Cristo». Pio IX e Pio XII optaram por exercer a sua infalibilidade sobre asdoutrinas Marianas sem qualquer suporte na Bíblia ou na tradição. É pobre a colheita dainfalibilidade.

A infalibilidade papal não faz nada para esclarecer a Igreja. Qual é então a suafunção?

Parece ter menos a ver com a verdade do que com o controle. O prestígio do papareside não na infalibilidade mas naquilo a que se tem chamado “infalibilidade rastejante”.O papa é infalível, por assim dizer, mesmo quando não o é. Isto explica a razão por queo papa e o Santo Ofício se sentem à vontade para impor o silêncio mesmo em questõesque não são de fé. O debate arruinaria a harmonia, que é a bênção que o papa traz àIgreja. Ah, mas o seu preço é a verdade, pois a verdade só pode resultar do debatefranco e aberto. A falta de debate é a razão por que durante séculos, desde Galileu,Roma tende a chegar tarde e já ofegante ao palco de todos os genuínos avançoshumanos, como a liberdade de expressão, o sufrágio universal, a abolição daescravatura, o papel da mulher na sociedade e no sacerdócio, o controle da populaçãopor métodos científicos, etc..

Nos últimos cem anos, especialmente, a Igreja já teve de passar por aquilo queNewman profetizou no seu diário: «uma severa vingança por actos autoritários […] umuso tirânico do seu [de Pio XII] poder espiritual. […] Ele reclamou e exerceu um podermaior do que algum papa jamais exerceu».

A infalibilidade dá também a impressão de omnisciência, ou, pelo menos, de umdomínio da verdade dificilmente respeitável. Deus é o Desconhecido e o Inatingível.Segundo Joseph Pieper, Tomás de Aquino não terminou o seu Summa Theologica, nãopor a morte o ter levado antes de o poder terminar, mas porque tinha uma ideia de Deus

Page 232: Vigde cristo

232

que tornava insignificante tudo aquilo que escrevia. Passou meses sem conseguirescrever por causa daquilo que tinha compreendido e era incapaz de exprimir. Se oslíderes da Igreja deixassem essa impressão de que mesmo os seus melhores esforçoseram insignificantes, a intolerância resultaria muito menor.

Pio IX e o poder de deposição

Pouco depois do Vaticano I, a publicação jesuíta Civiltà Cattolica reproduziu umsermão de Pio IX. Falava ele iradamente dos «muitos erros mal intencionados a respeitoda infalibilidade». O mais malicioso, dizia ele, diz respeito ao direito do papa de deporsoberanos e de declarar os seus súbditos dispensados de obediência. Este direito,concordava ele, foi exercido «por vezes pelos papas em casos extremos». Mas isto nãotinha «nada que ver com infalibilidade». Era uma questão de autoridade, «aquelaautoridade de acordo com a lei então em vigor e com o acordo das nações cristãs, queveneravam o papa como o juiz supremo da Cristandade, mesmo em assuntos temporais,de príncipes e estados».

E Pio continuava, dizendo que os tempos tinham mudado completamente. «E só amalícia podia confundir coisas e tempos tão diferentes, como se um julgamento infalívela respeito de um princípio de verdade revelada tivesse alguma relação com um direitoque os papas, por vontade do povo, tinham de exercer quando o bem comum o exigia».Pio sabia a razão por que em 1871 se estava a vulgarizar «ideia tão absurda, em que jáninguém pensa, muito menos o Supremo Pontífice. Eles procuram pretextos, mesmo osmais frívolos e menos verdadeiros, para pôr os príncipes contra a Igreja».

Mesmo vindo de Pio IX no rescaldo do Vaticano I, isto é notável. Quase todos ospapas desde Gregório VII afirmaram que o seu poder de depor soberanos lhes vinha deDeus. O papa governa na terra, quer na Igreja quer na política, em nome de Deus; e opoder de Deus não conhece limites.

Por outro lado, nenhum pontífice alguma vez atribuiu o seu poder a uma dádiva dacomunidade cristã. Se fosse uma dádiva, onde é que está uma única afirmação depontífice, imperador ou rei nesse sentido, lei ou código que lhe conceda esse direito?

Um historiador do século XVIII contou noventa e cinco papas que afirmaram ter opoder divino de depor reis. Todos os seus argumentos eram baseados — tem deadmitir-se que mal — nas Escrituras. «Tudo quanto ligares na terra», disse Cristo. Isto,diziam os papas, era absoluto. Cristo deu aos papas as chaves do Céu e da terra; elealimenta todo o rebanho, incluindo a Ovelha Chefe, o imperador.

Quando Gregório VII depôs Henrique IV, quando Pio V depôs Isabel I, ambosinvocaram o poder de Deus para o fazerem. Quando Bellarmino tentou limitarligeiramente o poder de deposição do papa, Sisto V tentou pô-lo no Index.

Não é a maldade dos não católicos que relaciona com a infalibilidade a autoridadepapal para depor. São sim os inúmeros papas cuja doutrina Pio IX tem de distorcer ouignorar porque ela não se ajusta à sua tese.

Confrontada com o enorme peso destas provas, qualquer outra instituição diria: osnossos antecessores cometeram um erro. Interpretaram mal o Evangelho. Os papasestavam errados ao depor imperadores como os imperadores ao deporem papas. Nãodevemos julgá-los com demasiada severidade; eles pertenciam ao seu tempo tal comonós pertencemos ao nosso. O que nós podemos e devemos fazer é procurar que estascoisas não aconteçam nunca mais.

Page 233: Vigde cristo

233

Infelizmente, uma Igreja infalível não está em posição de reconhecer um erro destetipo. Ela não pode errar nem pode contradizer-se. É tentada a dizer, como Pio IX, que osseus críticos ou são cegos ou mal intencionados.

Assim, a infalibilidade tende a fazer da História um ramo menor da teologia. Os errospassados dos papas são ilusões. Por uma forma católica de Orwellianismo, a históriatem de ser oficialmente “esquecida“ — ou então reescrita de modo que todo o percursodo papado, em termos doutrinários, possa parecer imaculado. Nenhum erro é possívelmesmo nos papas que se contradisseram flagrantemente uns aos outros.

Pio IX morreu em 1878. Vinte e cinco anos mais tarde, ascendeu ao trono de Pedrooutro Pio. Também este estava convencido de que nenhum papa, ele próprio incluído,podia jamais cometer um erro.

Page 234: Vigde cristo

234

Page 235: Vigde cristo

235

14A Grande Purga

Foi no princípio de Agosto de 1903 na Capela Sistina. Quando sob o fresco do JuízoFinal de Miguel Ângelo, a votação parecia decorrer de acordo com o previsto, estalou acrise. O Cardeal Puszyna, Bispo polaco de Cracóvia, então parte da Áustria, levantou-see dirigiu-se aos seus sessenta e um colegas do conclave. Antes da terceira votação parao sucessor de Leão XIII, tinha uma mensagem a transmitir. Tossiu embaraçado. Amensagem era de Francisco José. Em razão do seu já antigo privilégio de chefe doImpério Austro-Húngaro, Sua Majestade ia exercer o seu direito de veto contra um deles:o Cardeal Rampolla, Secretário de Estado de Leão XIII.

A temperatura na Capela Sistina, já elevada apesar dos altos tectos, subiu aindamais. Suas Eminências agitaram-se. Aquilo era uma evidente interferência na liberdadeda Igreja numa altura das mais sensíveis: uma eleição papal. Era duplamente insultuosana medida em que há trinta e três anos que o papado tinha sido privado do podertemporal. E agora, eis que um soberano secular vinha dizer, por intermédio destamarioneta escarlate, quem podia ou não podia usar a coroa papal.

O Sempiterno Padre

Gioacchino Pecci, Leão XIII, morrera em 19 de Julho de 1903. O calor em Roma eratal que temiam que o corpo se decompusesse diante dos seus olhos. Leão e o seuantecessor Pio IX, em cuja cabeça o próprio Leão, na qualidade de Camarlengo, tinhadado na hora da morte as pancadinhas com um martelo de prata, tinham ambos reinadodurante mais tempo do que quaisquer outros pontífices. Os dois tinham totalizado unslongos cinquenta e sete anos. Já velho quando eleito, Leão tinha noventa e quatro anose sessenta encíclicas com o seu nome quando morreu. Nos seus últimos anos, ouvia-secom frequência os seus auxiliares a dizerem: «Procurámos em Pecci um Santo Padre,não um Sempiterno Padre».

De constituição frágil, com um enorme nariz abicado donde pingava sobre a sotaina orapé liquefeito, lábios finos e uma pele de uma brancura diáfana, Leão dominara aIgreja. Os fiéis iam sentir a falta daqueles olhos enormes, quais diamantes negros, edaquelas mãos finas de cisne com as quais abençoava os súbditos com uma bondadede velhinho.

É verdade que, tal como Pio IX, ele tinha estado “prisioneiro“ do Vaticano. Nuncapôde visitar a sua própria basílica, S.João de Latrão, ou escapar à canícula com umasrefrescantes visitas à sua vivenda de Castelgandolfo, à beira do lago Albano. Mas aindapodia passear nos seus jardins e sentir os doces odores dos pinheiros e eucaliptos e dasfrescas flores de laranjeira.

Leão tinha fama de liberal. Mas dificilmente se lhe pode chamar tal coisa, emborativesse de facto aberto os arquivos do Vaticano dizendo que «A Igreja não tem medo daHistória». Continuava a exigir o tipo de obediência que achava que lhe era devida comomonarca absoluto da verdade de Deus. O seu amigo e biógrafo Julien de Narfon relatauma conversa típica do Vaticano desse tempo: «O que é que o senhor faria»perguntaram a um dos príncipes da Igreja, «se a Santa Sé tentasse obrigá-lo a aceitar

Page 236: Vigde cristo

236

que dois e dois são seis?» «Aceitava de imediato» foi a resposta; «e antes de assinar,perguntava, “Não deseja que eu diga que são sete?”».

Em 1896 Leão decidiu que as ordenações anglicanas eram inválidas. Isto significavaque esta comunidade mundial não tinha clérigos cristãos nem nenhuns sacramentos,excepto o baptismo. O chefe da comunidade anglicana era um simples leigo, baptizado,valha-nos isso, de uma igreja que não tinha fundamento apostólico. Esta a razão porque, até 1950, o jornal do Vaticano Osservatore Romano se referia a ele desta maneira:“o arcebispo de Canterbury”. A palavra “arcebispo” sempre em minúsculas e o títuloentre aspas. Era um insulto literário muito bem premeditado.

Apesar de tudo isto, Leão, ao contrário de Pio IX, começara já a reconhecer asrealidades políticas da Europa. Insistira já com os bispos franceses para quereconhecessem a república e deixassem de repisar nos tempos da monarquia absoluta.Uma lufada de ar fresco tinha pois agitado ao de leve algumas sotainas da entouragepapal.

Um papa campónio

O Secretário de Estado de Leão, Rampolla, era o favorito para lhe suceder. Foi para oConclave cheio de esperanças, naquele fatídico verão de 1903. Na primeira votaçãoobteve vinte e quatro dos sessenta e dois votos. O seu mais directo rival era o Cardealcarmelita Gotti, calvo, de estranhos olhos assombrados. Gotti obteve dezassete votos eSarto, Patriarca de Veneza, cinco.

Sarto, de rosto largo e agradável e cabelo branco espesso, interpretou os votosobtidos, talvez correctamente, como uma pequena piada por parte dos seus pares. Nãotinha realmente estofo para papa; não tinha cabeça nem experiência para a função,sobretudo depois do nível a que Leão a tinha elevado. Além disso, quase com setentaanos, era já burro velho demais para aprender nova andadura.

Na segunda votação, Rampolla subiu para os vinte e cinco, Gotta teve dezasseis eSarto, dez. Mais um empurrão final para Rampolla e a eleição estaria terminada.

Foi então que se deu a intervenção do Cardeal de Cracóvia. Depois de passada aonda inicial de indignação, Rampolla levantou-se sob o seu baldaquino. O seu formosorosto comprido revelava a tensão de uma ira contida. Os olhos escuros inteligentesbrilhavam-lhe, as narinas do seu clássico nariz comprido tremiam-lhe. A brancura dorosto parecia brilhar contra o fundo negro do cabelo liso e a cor púrpura do seu manto.

«Lamento profundamente» conseguiu ele dizer, com a serenidade dos diplomatasexperimentados «este sério golpe dirigido pelo poder civil contra a dignidade do SacroColégio e a liberdade da Igreja na escolha do seu chefe. Esta a razão por que euprotesto veementemente». E num tom de voz consideravelmente mais baixo,acrescentou: «Pelo que me diz respeito, nada mais agradável me poderia teracontecido».

E Sua Eminência sentou-se, remetendo-se ao silêncio.Procedeu-se à terceira votação. Rampolla não perdeu um único voto. Foi Gotti quem

acabou por sofrer com o veto. Sabia-se que ele apoiava a causa austríaca, tal comoRampolla apoiava a França. Gotti teve nove votos, enquanto que Sarto, o candidatosurpresa, alcançou os vinte e um.

Seguiu-se nova votação. Trinta para Rampolla. Apenas com três, Gotti ficou fora dacorrida. Sarto subiu para os vinte e quatro.

Quando os cardeais se foram deitar, na segunda noite, já sabiam que, apesar daindignidade do facto, a intervenção do cardeal de Cracóvia tinha alterado o curso da

Page 237: Vigde cristo

237

eleição. Ele mostrara que a escolha de Rampolla conduziria a um antagonismo entredois poderes católicos tradicionais. Nessas circunstâncias era vital que se escolhesseum candidato de compromisso. A próxima ronda, calculavam eles, seria decisiva. Eassim foi.

A partir do momento em que Sarto conseguiu vinte e sete votos, mais três do queRampolla, toda a gente ficou a saber quem seria o próximo papa. Só era preciso que eleestivesse disposto a isso.

Séculos antes, os canonistas tinham estabelecido um critério para a escolha de umpapa. O problema era este: se o papa só por si tem a plenitude do poder, como é queeste lhe pode ser outorgado pela Igreja, seja pelos cardeais, seja, mais remotamente,pelo clero e pelos leigos de Roma? E a resposta favorita era esta: o Sacro Colégio, comos seus votos, apenas apontava um candidato. Era necessária a aceitação do próprionomeado para que Deus lhe entregasse directamente a plenitude do poder. A únicaquestão agora era a de saber se Sarto aceitaria ou não.

Monsenhor Merry del Val, o secretário do Conclave, de trinta e oito anos, inglês pornascimento e de família de origem espanhola, foi encarregado de pedir a Sarto queaceitasse. Quando o encontrou, o cardeal estava banhado em lágrimas; tinha-seintensificado a sua relutância. Mas na votação seguinte, com trinta e cinco votos, obtevemais do dobro dos de Rampolla.

Na quarta manhã, à sétima votação, Sarto obteve cinquenta votos: era ele o papa, seaceitasse. O Cardeal Gibbons, de Baltimore, que tinha deixado Roma estupefactaquando lá apareceu de fato preto e chapéu de palha sobre o solidéu vermelho, estavaentre os que o instaram a aceitar. Angustiado, Sarto acabou por aceitar e tomou o nomede Pio X, porque associava a sofrimento os seus antecessores com esse nome.

Merry del val, que em breve seria nomeado Secretário de Estado, ia mesmo assimdar uma reprimenda ao Cardeal Puszyna. Dizia-se que nunca, nem mesmo nos calmostempos de Alexandre VI, o ambiente das salas de Bórgia fora tão triste.

O novo pontífice, prisioneiro como era do Vaticano, deu a sua bênção, não davaranda sobranceira à praça, mas da galeria interior da Basílica. O simbolismo destefacto havia de mostrar-se decisivo: no momento em que assumia funções, o papavoltava as costas ao mundo. Como logo observou o Cardeal dela Chiesa, futuroBenedito XV, Pio X era sinistramente parecido com Pio IX.

Origem humilde

Filho de um trabalhador, Giuseppe Sarto, nasceu na pequena cidade provinciananortenha de Riese em 1834. Era o segundo de dez filhos. O pai, varredor de profissão,varria a câmara municipal. O pequeno Giuseppe havia de tornar-se infalível e varrer aIgreja universal.

O rapaz era piedoso, afectuoso, esguio, de cabelo encaracolado e devotado à mãe.Sentindo desde cedo vocação para o sacerdócio, entrou para o seminário menor emCastelfranco. Fazia muitas vezes o caminho, sete quilómetros para cada lado, de pésdescalços para poupar as solas.

Nunca mudou a sua atitude para com a vida; era de uma bondade natural. Foi para oseminário maior em Pádua, onde seguiu o habitual curso de teologia e filosofia medieval.Foi ordenado padre quando tinha vinte e três anos, no ano de 1858. Depois disso, foicoadjutor em Tombolo durante nove anos — empenhou o relógio para dar de comer aosfamintos. Foi prior de Salzano durante mais nove anos — a sua porta nunca se fechava— até que, aos quarenta e um anos, se tornou chanceler diocesano em Treviso. Vivia no

Page 238: Vigde cristo

238

seminário, num quarto que dava para a colorida planície. Sentia-se feliz no seuministério. Era conhecido pela sua bondade e generosidade para com os pobres.Trabalhava muito sem outra motivação que não fosse o amor de Deus e do seusemelhante.

Em 1884, Sarto foi nomeado Bispo de Mântua. Ficou espantado, achando que obispado estava para além das suas capacidades. Fez os possíveis por recusar, mas oPapa Leão insistiu.

Em Junho de 1893, quando tinha cinquenta e nove anos, foi feito Patriarca deVeneza. Durante dezasseis meses não pôde tomar posse da sua Sé porque um governoanti-clerical lhe recusou um Exsequatur. Era outro sinal dos tempos. A Igreja estava acorrer perigo por toda a parte. Uma consolação que ele teve foi uma visita de três dias àsua casa em Riese onde pôde confortar a mãe — encamada, aos oitenta anos —envergando o manto cardinalício.

O Exsequatur chegou finalmente em Setembro de 1894, e Sarto celebrou o factofazendo sair a sua primeira carta pastoral. Este homem bondoso e cordial mostrou que,como bispo, conseguia ser tão belicoso como os seus inimigos.

«Deus» escreveu ele «foi expulso da vida pública pela separação da Igreja doEstado». A sua atitude em relação ao papado era do tipo mais rigoroso. «Quandofalamos do Vigário de Cristo, não podemos estar com rodeios, temos de obedecer; nãopodemos medir o que ele disse para limitar a nossa obediência. […] A sociedade estádoente. […] A única esperança, o único remédio, está no Papa». Mesmo para estehomem santo e profundamente infeliz a única esperança não está em Cristo mas noPapa.

Mal foi nomeado patriarca começou a denunciar as «pérfidas maquinações» doliberalismo, e especialmente dos católicos liberais que chamava de «lobos disfarçadosde cordeiros».

Em 24 de Novembro dirigiu-se de gôndola cardinalícia para a Cidade de Ouro. Haviamultidões em cada ponte, em cada varanda; as pessoas debruçavam-se das janelas eempoleiravam-se perigosamente em estreitas saliências sobre o canal para receber asua bênção. A gôndola deslizou até ao Cais e o Cardeal Sarto desembarcou na Praçade S.Marcos. Todos os edifícios estavam engalanados, excepto o da Câmara Municipal.Foi uma afronta dos anti-clericais que ele nunca mais esqueceu nem perdoou.

Assim foi a entrada na vida daquele que se intitulava de «um pobre cardealcampónio». As suas duas irmãs tratavam de tudo aquilo de que ele precisava e que eramuito pouco. Das cinco da manhã até à meia-noite, trabalhava sem parar. Não seimportava que lhe chamassem Don Beppe. O rendimento da Igreja, dizia este homemque nunca tinha tido dinheiro nenhum, era património dos pobres. Insistia numa liturgiadigna de Deus e não da habitual e fortuita história italiana. Devia ser abrilhantada comcânticos gregorianos, a música dos anjos; a Eucaristia devia ser frequente.

Desta maneira passou ele nove anos relativamente tranquilos até partir para votarpara a sucessão de Leão XIII. Comprou um bilhete de comboio de ida e volta eprometeu aos seus diocesanos que voltaria vivo ou morto. Foi a única promessa quenão cumpriu.

Um estranho no Vaticano

Era um perfeito estrangeiro em Roma. Habituara-se em toda a sua vida a pessoassimples e a problemas simples que podiam ser resolvidos com muito trabalho e bondade

Page 239: Vigde cristo

239

pessoal. O seu reinado não viria a ser feliz. Os seus olhos grandes e luminosos eram deuma permanente tristeza. Os seus ajudantes, como Merry del Val e o Cardeal de Lai,traziam-lhe não apenas factos, mas interpretações dos factos que o convenciam, se nãoestava já convencido, de que a humanidade estava doente. O principal dos males era aabjuração de Deus. Ele falava em privado e em público da depravação moral, de ummundo a desfazer-se. Depois da Revolução Francesa, a maioria dos papas, forampessimistas incuráveis.

Aquilo que Pio IX vira como um desastre era o advento da democracia. Aquilo que PioX via como um mundo moribundo não era senão um novo mundo a nascer. Faziam-seavanços sem precedentes na ciência e tecnologia. A arqueologia revelava a idade domundo. Os cristãos, seguindo as ideias de John Lightfoot, um académico de Cambridgedo século XVII, supunham que a criação tinha tido lugar numa manhã de outono — istoé, no Hemisfério Norte — no ano 4004 a. C. Mais precisamente, Deus disse «Faça-seluz» em 23 de Outubro de 4004 a.C. às nove da manhã. Os eruditos andavam agora anegar que o homem foi criado perfeito, tal como sugeria uma leitura literal do Génesis; ohomem fazia também parte do processo da evolução. Os historiadores revelavam coisasaté então desconhecidas sobre o passado da Igreja, especialmente sobre os anos daformação. E o mais alarmante de tudo, do ponto de vista de Pio X, era que a exegeseestava a pôr em questão uma interpretação literal do Velho e Novo Testamentos. A Viede Jésus de Renan tinha gerado inúmeras obras de “infidelidade”, como Pio IXprofetizara.

Pio X ficou desconcertado com a dimensão da tarefa que Deus lhe reservara a ele,um camponês de Riese. Mais um exemplo de que Deus escolhe as coisas absurdas domundo para confundir os sábios. Ele era o pontífice, a única esperança e remédio paraum mundo doente. Da sua exaltada, quase divina, elevação estava pronto a exigir parasi próprio a obediência cega que ele próprio tinha tido para com Leão XIII. Confiava noEspírito para o ajudar a salvar a Igreja dos graves perigos que a ameaçavam de dentro.Havia uma conspiração em marcha no próprio coração da Igreja, estava convencidodisso. Os teólogos, os investigadores das Escrituras aliaram-se com todas as forças anti-Deus num mundo pós-revolucionário. O seu único objectivo: aniquilar a Igreja.

A segunda encíclica de Pio X apareceu nessa data mágica de 8 de Dezembro de1904. Era o quinquagésimo aniversário da definição da imaculada concepção. A suaCarta revela o tipo de espírito que ele trouxe para suportar os problemas com que ahumanidade se estava a debater naqueles tempos, dos mais originais e excitantes dahistória.

Adão chorou com o seu castigo, mas viu que Maria despedaçou acabeça da serpente. Noé a salvo na Arca antecipou-a. O mesmo sepassou com Abraão quando o seu braço se deteve. E também comJacob quando viu na terra uma escada a chegar ao Céu; umaescada para os anjos de Deus subirem e descerem. Moisés viu-anas moitas que se incendiaram e não arderam. David cantou-aquando dançou diante da arca das promessas de Deus. Elias viu-ana pequena nuvem que se ergueu do mar. Mas para quê continuar?

A aplicação errada das Escrituras podia ter passado despercebida numa aldeiaobscura da Itália daquele tempo; não augurava nada de bom como meditação de umpapa no período pós-Vaticano I. Ele tinha a plenitude do poder. Era o governadorsupremo da Igreja. Pessoalmente infalível, esperavam-se dele, e praticamente só dele,as respostas a todas as dificuldades que a ciência estava a levantar ao Catolicismo

Page 240: Vigde cristo

240

tradicional. Não admira que se sentisse esmagado pelos problemas que, depois de1870, esperavam que ele resolvesse sozinho.

A Verdade Bíblica para os católicos

Mesmo antes de Pio X, a Igreja já se tinha metido em confusões sobre a Bíblia,particularmente sobre uma passagem da Primeira Epístola de S.João (5:7), conhecidacomo o Comma Joanino.

Porque são três a dar testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o EspíritoSanto; e estes três são um só. E são três a dar testemunho na terra:o Espírito, a água e o sangue, e estes três são um só.

Em 1897 o Santo Ofício chamou a si a decisão de que isto era Evangelho genuíno. Eproibiu os investigadores de o dizerem de maneira diferente. Este foi o primeiro de umalonga série de erros.

O testemunho celeste não figura em um único manuscrito grego. Foi acrescentadoaos manuscritos latinos, provavelmente no Norte de África, porque Cipriano omencionou em 258, tal como Agostinho cerca do ano 400. Nos seus textos ostestemunhos terrenos vinham primeiro. No século XIV o texto foi adulterado para pôr otestemunho celeste em primeiro lugar. Isto era uma discussão puramente académica. Aintervenção do Santo Ofício significava que os autores católicos eram obrigados aesquecer as provas e a inclinarem-se perante um juízo insensato na base de umaobediência cega. Como resultado, tiveram de fingir que o Santo Ofício tinha razão,quando qualquer investigador digno desse nome sabia bem que não tinha.

A partir de então o estudo da Bíblia na Igreja Católica passou a ser uma ocupaçãoarriscada. O decreto de 1897 esteve em vigor durante trinta anos. Depois, ignorando averdade, o Santo Ofício disse que aquele pretendera simplesmente refrear a “audácia”dos doutrinadores particulares que, em vez de deixarem as coisas para o papa,chamavam a si o julgamento da autenticidade dos textos bíblicos. Assim, a partir de1927, os católicos tinham o direito de «se inclinarem para a não genuinidade do Comma,desde que se mostrassem prontos a apoiar o julgamento da Igreja à qual Jesus Cristoconfiou a função não só de interpretar a Sagrada Escritura mas também de a preservarfielmente».

Isto implicava que a Igreja não precisava dos investigadores. O papel destes éapenas o de transmitir as decisões dos papas, que são os únicos que podem dizer aomundo o verdadeiro sentido do Evangelho. A longa lista de interpretações papaiserradas dos Evangelhos — mesmo ao ponto de fazer do imperador uma marioneta dopapa - não dava aos investigadores garantias de total confiança nas suas decisões.

Leão XIII compreendeu que havia qualquer coisa de errado nos seus cães de guardado Santo Ofício que pontificavam sobre os Evangelhos e criou uma Comissão Bíblicanos anos que precederam a sua morte. Nomeou quarenta e um consultores, muitos dosquais liberais.

Pio X substituiu imediatamente os liberais por reaccionários e, entre 1906 e 1914,estes emitiram uma série de fantásticas decisões a que todos os investigadorescatólicos da Bíblia tiveram de aderir.

Depois do Vaticano I, tudo na Igreja ficou centralizado. Todos os problemas bíblicos,todos os quebra-cabeças morais eram levados a Roma, geralmente pelos bispos einvestigadores ultra-conservadores, para uma decisão.

Page 241: Vigde cristo

241

Ao concordarem com os decretos da Comissão Bíblica, os investigadores católicoscolocavam-se efectivamente fora da vida académica de reputação. Contra toda asevidências que se vinham acumulando, tinham de aceitar que Moisés escreveu todo oPentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), e que os capítulos 40-66 de Isaías eramde um só autor. Cinquenta anos depois da Origem das Espécies, tinham de defender eensinar que os três primeiros capítulos do Génesis eram rigorosamente históricos. Aprimeira mulher foi criada a partir de uma costela de Adão; o primeiro pecado foi atransgressão de um específico mandamento divino pela tentação do demónio em formade serpente. Em 1907, a Comissão Bíblica “decidiu” que todos os quatro Evangelhosforam escritos por aqueles de que têm os nomes e que Paulo escreveu todas asepístolas pastorais bem como a Epístola aos Hebreus.

Os investigadores católicos da Bíblia fugiam a esconder-se como caranguejosassustados. Viviam com medo de serem denunciados a Roma pelos seus estudantes oucolegas. Perseguidos pelo medo da excomunhão ao mais pequeno passo em falso, sópodiam no melhor dos casos relatar as investigações esclarecidas dos seus irmãosprotestantes manifestando ostensivamente a sua desaprovação: era a única maneira defazerem passar opiniões sensatas. Só assim podiam sobreviver na esperança demelhores dias. Mesmo o melhor investigador da Bíblia desse tempo, Père Lagrange, foiproibido de publicar o seu Comentário sobre o Génesis.

E contudo, durante bem mais de cem anos, muito antes de Darwin, nenhuma pessoaqualificada, religiosa ou não, foi ao ponto de tomar os primeiros capítulos do Génesis àletra. Se a Igreja não tivesse posto Voltaire no Index, talvez tivesse aprendido com ele.Na sua Homilia sobre o Velho Testamento ele apontava os erros e contradições do textodo Génesis. A ideia de que todo o sofrimento humano, mesmo a doença e a morte, sãodevidas a um pecado do Primeiro Pai da raça já não é mais credível do que a caixa dePandora. Só quando o mito é aceite como mito é que tem beleza e significado.

Voltaire foi mais satírico quando tratou do Dilúvio e da Arca de Noé:

É inútil as pessoas argumentarem que nos anos mais chuvosos nãose consegue ter setenta centímetros de chuva […] que os animaisda América ou das terras do sul não conseguiam alcançar a arca;que sete casais de animais puros e dois casais de não puros nãocabiam em vinte arcas. […] As dificuldades não têm fim. Mas todaselas se resolvem dizendo que todo este grande acontecimento foium milagre — isto põe fim a toda a discussão.

Mais de cem anos antes de Voltaire, Galileu oferecera praticamente às autoridades daIgreja a mesma chave para desvendar os mitos e os mistérios do Génesis. A razãoestava séculos à frente da Igreja naquilo que devia ter sido a sua principal área decompetência: as Escrituras. Em vez disso, no dizer de Voltaire, a Igreja alimentava osfilhos com «uma dieta de bolota».

No tempo de Pio X, os investigadores católicos estiveram sujeitos a uma terrívelperseguição. A sua causa imediata foi o entendimento de Pio daquilo a que ele chamava“Modernismo”.

O ataque ao Modernismo

Precisamente como Pio IX publicou o seu Manual dos Erros contra todas astendências liberais, também Pio X, em 1907, escreveu Lamentabili, um ataque às

Page 242: Vigde cristo

242

“inovações”. Foi particularmente duro para com a mais recente interpretação dosdogmas e das Escrituras. Entre as afirmações que escolheu ao acaso de entre osescritos de teólogos e exegetas a condenar estavam estas:

2. A interpretação da Igreja dos Livros Sagrados não deve de modonenhum ser rejeitada; contudo, está sujeita ao julgamento ecorrecção mais exactos dos exegetas.

5. Como o sedimento da Fé contém apenas verdades reveladas, aIgreja não tem o direito de julgar as afirmações da ciência.

12. Se o exegeta deseja aplicar-se utilmente aos estudos bíblicos,tem primeiro de pôr de lado todas as opiniões preconcebidassobre a origem sobrenatural da Sagrada Escritura e interpretá-la como qualquer outro documento humano.

16. As narrações de João não são propriamente história, masapenas uma contemplação mística do Evangelho. Asexposições contidas no Evangelho são meditações teológicasque carecem de verdade histórica a respeito do mistério dasalvação.

13. Os exegetas heterodoxos exprimiram o verdadeiro sentido dasEscrituras mais fielmente do que os exegetas católicos.

22. Os dogmas que a Igreja sustenta como revelados não sãoverdades que caíram do céu. São interpretações de factosreligiosos que o espírito humano adquiriu com laboriosoesforço.

33. Todos os que não sejam levados por opiniões preconcebidaspodem ver prontamente que ou Jesus professou um erro arespeito da imediata Vinda Messiânica, ou então a maior parteda sua doutrina contida nos Evangelhos carece de autoridade.

53. A constituição orgânica da Igreja não é imutável. Tal como asociedade humana, a sociedade cristã está sujeita a perpétuaevolução.

Com algumas pequenas restrições, estas afirmações representariam hoje umaexpressão daquilo em que muitos investigadores crêem.

Lamentabili foi uma triste tentativa de reprimir todo o progresso como se se tratassede uma seita herética. Pio X deixa muitas vezes a impressão de estar a condenar a suaprópria fantasia. Muito daquilo que ele censura está deturpado e é duvidoso que algumavez alguém o tenha defendido. Ele tinha a tendência para meter no mesmo saco tudoaquilo de que discordava, rotulando-o de «Modernismo, um compêndio de heresias» eavisava os católicos de que não deviam meter-se nisso. Ele, Vigário de Cristo, é que osguiaria para a segurança através dos pântanos do mundo moderno. Evidentemente quetinha razão para preocupações. A Igreja, retrógrada há séculos, estava agora a serrevelada como tal pela história, pela ciência, pela paleontologia, pela exegese. A Igreja

Page 243: Vigde cristo

243

tinha de escolher entre aprender muito depressa ou enquistar. A Encíclica Pascendi queem pouco tempo se seguiu à Lamentabili mostrou que Pio tinha optado por enquistar.

Aquela encíclica está infelizmente cheia da retórica negra das afirmações papaisdesse período. Há inimigos da Cruz de Cristo, Protestantes no próprio seio da Igreja,cujo objectivo é destruir a Igreja de Cristo e anular a sua obra. Estes cripto-Protestantesquerem reduzir Cristo ao estatuto de homem vulgar. Estes “Modernistas“, disse ele, nãocrêem na revelação, nem em Deus, nem na Igreja como instituição divina. São umaorganização bem urdida; escondem-se em todas as áreas, na filosofia, na teologia, nosestudos bíblicos, na política.

Nada disto era, nem sequer remotamente, plausível. É difícil acreditar que oscatólicos, com explícitas convicções protestantes, se escondessem no seio da Igrejacom o único fim de a destruir espalhando a sua descrença.

O que estava realmente a acontecer era que o mundo estava a atingir a maioridade.Estava a dar-se uma revolução no espírito do homem, que era uma extensão daquiloque tinha acontecido no espírito de Galileu. A ciência começava a dar resposta àsquestões que as gerações anteriores tinham deixado aos padres e às orações. Pio viviaainda mentalmente num mundo medieval onde Deus intervinha “lá de fora” ou “lá decima” por meio de milagres e afirmações feitas ao ouvido dos profetas e dos papas.Acreditava, por exemplo, que só por olhar para um texto da Bíblia um papa, só por si,sem qualquer competência especial nas Escrituras, podia interpretar o seu significadopara sempre. Pio representava a intemporalidade, o absolutismo de todas as doutrinasnum período da História em que se tornava cada vez mais claro que a relatividadeentrava em todos os juízos morais e expressões de fé. Os investigadores diziam quetudo tinha de ser pensado de novo e em termos diferentes.

O homem não é uma criatura do absoluto, excepto na sua busca do Além; faznecessariamente parte integrante de um mundo em mudança. Tudo está em mudança,incluindo o seu entendimento de si próprio, de Deus e da revelação. O VelhoTestamento fornece exemplos disto. Gradualmente, um Deus judeu local com podereslimitados e ainda mais limitado número de simpatizantes, transforma-se num Deus deExércitos até que por fim teve a percepção de que era o Deus da criação e da História.O Novo Testamento também mostra que Jesus não é uma criatura de fora do mundoque irrompeu nele, mas um ser humano que em certo sentido, tal como todos os sereshumanos, estava sempre presente. A revelação do Novo Testamento não é o dar ereceber das divinas afirmações mas uma gradual percepção do significado da vida e damorte, e da ressurreição de Jesus, moldada pela pregação e ensinamentos numaferramenta pedagógica, em lugares diferentes e de acordo com as diversasnecessidades das diferentes comunidades, a grega e a judaica.

A historicidade do homem, que tanto excitou os investigadores do tempo, era umanátema para Pio X. Este sente-a como uma ameaça para a Igreja e para a sua posiçãodentro dela como Voz das verdades eternas.

Dois modernistas

A melhor forma de julgar um regime é talvez observar a maneira como esseregimetrata os intelectuais. No tempo de Pio X os intelectuais católicos foram tratadoscom muita severidade.

George Tyrrel foi um deles. Nascido em Dublin em 1861, foi educado na Igreja daIrlanda, mas aos dezoito anos foi para Inglaterra onde se tornou católico e jesuíta. Eraum belo escritor e parecia estar destinado a integrar a elite da Congregação. Isto até

Page 244: Vigde cristo

244

chegar à conclusão de que S.Tomás de Aquino não dava resposta a todas as perguntasque o homem moderno estava a pôr. Era absurdo pensar que se Aquino tivesse podidoler Galileu, Newton e Darwin não teria mudado uma única das suas ideias. Teria, pelocontrário, alterado quase todas as linhas que escreveu. Contudo, Pio X na sua encíclicasobre o sacerdócio, Pieni l’anima, de 1906, disse: «Deixe-se que o estudo da filosofia,da teologia e outros relacionados, especialmente a Sagrada Escritura, continuem noespírito dos documentos papais e de S.Tomás de Aquino».

Sentindo-se ameaçado, Tyrrel escreveu alguns livros sob vários pseudónimos: A. R.Waller, Hilaire Bourdon, Dr.Ernest Engels. Foi descoberto e demitido da Congregação noprimeiro dia de Janeiro de 1906. Foi proibido de celebrar missa, embora nunca tenhasido formalmente acusado de heresia.

O Arcebispo Mercier Malines estava pronto a recebê-lo na sua diocese. Mas oCardeal Ferrata, Prefeito da Sagrada Congregação dos Bispos e Clero Regular, pôscondições prévias muito rigorosas. O famoso Tyrrel, de quarenta e cinco anos, devia«garantir formalmente que não publicaria nada sobre questões religiosas, nem manteriacorrespondência sem o acordo prévio de pessoa competente nomeada pelo arcebispo».

Tyrrel não podia suportar a ideia de ter a sua correspondência censurada. Isto, disseele, é «o tratamento dado pelo Czar a um anarquista». Mas afinal, aos olhos da Igreja,ele era de facto um anarquista aliado a outros anarquistas para minar as fundações daIgreja.

Escreveu uma carta pessoal ao papa. «Nós temos o direito de buscar em VossaSantidade uma direcção tanto positiva como negativa; uma construção da verdade, mastambém uma destruição do erro». Nunca obteve resposta.

Quando Frei Tyrrel escreveu uma crítica à Encíclica Pascendo no último dia deSetembro de 1907, proibiram-no de receber os sacramentos. Nessa altura já ele sofriamuito de enxaqueca e dos rins.

Sentiu-se tentado a voltar para a Igreja da sua infância, mas tinha sofrido muito peloCatolicismo e ansiava por ser útil aos seus irmãos católicos. Deixou-se ficar à fria portada Madre Igreja, na esperança de uma palavra de simpatia que nunca chegou.

No leito da morte, foi absolvido dos seus pecados, embora tivesse deixado claro quenão se retractaria. Isto foi na aldeia de Sorrington, à beira dos Downs do sul. Chamaramo seu velho amigo Abade Bremond. Num momento de lucidez Tyrrel conseguiu falarcom ele. O abade absolveu-o uma vez mais dos seus pecados.

Apesar disto, proibiram-lhe uma missa de requiem. Não se tinha submetido à SantaSé. Recusaram-lhe o enterro num talhão católico e os amigos enterraram-no numcemitério anglicano. No funeral, depois de algumas simples orações, o Abade Bremondfez um magnífico elogio fúnebre que deve ter chegado aos ouvidos do Bispo deSouthwark, pois, três dias mais tarde, o Prior de Sorrington recebeu dele um telegrama:«Não permiti que Bremond diga missa».

Mesmo antes do fim, Tyrrel tinha escrito a um amigo: «O meu próprio trabalho — queconsidero acabado — foi levantar uma questão a que não consegui responder». Isto éum bom epitáfio para um grande e santo padre para quem não havia espaço em Roma.

Outro padre vítima da perseguição papal foi o Abade Loisy. Aluno do grandeMonsenhor Louis Duchesne, depressa viu que aquela posição de Roma sobre asEscrituras não era sustentável. Mesmo fingir-lhe lealdade era ruinoso para a consciênciacristã. Em 1903 publicou L’Evangile et l’Église. Pio X respondeu com uma censuraimediata. Em Março do ano seguinte, Loisy escreveu ao papa. Foi um acto de grandehumildade para um homem para quem a humildade não era fácil.

Page 245: Vigde cristo

245

A carta começava: «Santíssimo Padre, conheço bem a bondade do vosso coração e éao vosso coração que agora me dirijo».

Ofereceu-se para denunciar publicamente o seu recente livro, para renunciar ao seuleitorado na École des Hautes Études e para suspender as publicações científicas quetinha entre mãos.

Pio X não lhe respondeu. Em vez disso, escreveu ao conservador Cardeal Richard,de Paris: «Recebi uma carta do Rev. Abade Loisy em que ele apela ao meu coração,mas a carta não foi escrita com o coração». Insistia numa submissão absoluta e semrestrições por parte do abade. Deve ser particularmente instado a «queimar o queadorou e adorar o que queimou».

Quando esta informação foi transmitida a Loisy, este confessou que alguma coisatinha estalado dentro de si. Teria sido o último elo que o ligava à sua fé da infância?«Naquela carta» escreveu ele, «estava a última gota que restava da minha almacatólica».

Pio X tinha apagado a chama e quebrado o elo já fendido.Em Março de 1908, Pio X excomungou Loisy, apelidando-o de vitandus, a forma mais

severa de censura conhecida na lei canónica. Significava ela que os católicos ficamproibidos, excepto em estrito caso de necessidade, de manter qualquer relação com ele,não simplesmente dentro da igreja, mas também fora dela. Para Pio, o Abade Loisytinha deixado de existir.

Quando o Abade Bremond, amigo de Tyrrel e de Loisy foi feito membro da AcadémieFrançaise em 1924, disse no seu discurso: «Vivi sob quatro pontífices: Pio IX, Leão XIII,Benedito XV e Pio XI». O que é que isto implicava? Que nem ele nem ninguém tinhavivido sob o santo Pio X? Ou que para ele Pio X deixara de existir?

De que é que servia a Tyrrel ou a qualquer outra pessoa levantar uma questão, se PioX tinha as respostas todas na manga?

O rescaldo

Tyrrel e Loisy não foram as únicas vítimas. Pio X instigou uma tal purga deinvestigadores que cinquenta anos depois da sua morte os seus efeitos ainda se fazemsentir. Lagrange nas Escrituras e Duchesne na História foram obrigados a seguir a linhapapal, caso contrário seriam atirados para o monte dos descartados. Duchesne viu-seobrigado a deixar a sua cadeira no Instituto Católico de Paris; o seu livro seminal sobreas origens do Cristianismo foi posto no Index.

Foi imposta uma rigorosa censura prévia à publicação de todos os livros e revistas.Os padres tinham de pedir autorização para escrever para ou nos jornais. Foi criado umconselho de vigilância em todas as dioceses. Havia mesmo uma sociedade secreta,patrocinada pelo papa, para contrabalançar as obras da alegada “sociedade secreta”dos inimigos de Cristo. Nos seminários e universidades os professores eramescrutinados e se lhes era descoberta qualquer falta de “lealdade“ eram substituídos.Felizmente para o futuro da Igreja Católica, um padre que ficou sob suspeita era umjovem italiano; recebeu ordem para se apresentar em Roma para exame como possível“Modernista”. Chamava-se Angelo Roncalli, o futuro João XXIII.

Pio X elaborou um voto anti-modernista que todos os padres e professores eramobrigados a jurar. Nem a Inquisição nos seus melhores dias foi mais eficiente a extirpartodo o sinal de dissidência. Para muitos católicos leais ainda hoje, Pio X salvou a Igreja.

Page 246: Vigde cristo

246

Para outros, este santo e trágico papa apenas a “salvou“ de influenciar, acelerando-o, oprogresso da espécie humana.

Diz-se que cerca de 1910 o Modernismo estava morto. É mais certo dizer que, talcomo Pio o entendeu, nunca esteve vivo. No entanto, entre as afirmações que condenouhavia elementos fadados a perseguir a Igreja Romana durante gerações futuras.

Os problemas que confrontam a Igreja em todos os campos não podiam ser adiadospara sempre. O Catolicismo andava a reboque do mundo. Havia o perigo de que seassim continuasse por tempo demais, intelectualmente falando, a Igreja Católica setornasse motivo de troça.

Os dois papas seguintes, Benedito XV e Pio XI, foram intelectualmente pesos-leves.Pouco fizeram para ajudar a Igreja a enfrentar o mundo moderno.

Pio XI foi um pontífice muito na tradição de Pio IX. Sobre o ecumenismo teve isto paradizer:

Esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus súbditos que tomassemparte em reuniões de não católicos. Só há uma maneira possível depromover a unidade dos cristãos que é a de incrementar o regressoà única Igreja verdadeira daqueles que dela se separaram.

Pio XII foi, em comparação com Pio XI, um intelectual gigantesco. Tem-se dito quepoucos foram os avanços feitos no Vaticano II que não foram de alguma formaesboçados na sua obra. Mas poucos pontífices neste século exemplificaram melhor doque ele o absolutismo do papado. A impressão que deixava era que ele e só ele tinha asolução para todos os problemas. Como Igreja, o Catolicismo estava a ficar cada vezmais longe das descobertas da ciência e das aspirações do homem moderno.

Quando Pio XII morreu em 1958, o mundo católico chorou o desaparecimento de umgrande homem cujo lugar parecia não haver no horizonte ninguém capaz de preencher.

Nesse momento negro, deu-se um milagre.

Page 247: Vigde cristo

Terceira Parte

O Amor

«Nunca o diabo prejudicou tanto a Igreja como quando a própriaIgreja adoptou o voto do celibato»

Peter Comestor, no Século XII

Page 248: Vigde cristo

248

Page 249: Vigde cristo

249

15O Papa que Amava o Mundo

Mas a aparência das coisas não era de facto a de um milagre quando, em 1958,Angelo Roncalli se encaminhou vagarosamente para a varanda da Basílica de S.Pedropara dar a sua bênção Urbi et Orbi, à Cidade e ao Mundo. O novo papa mais pareciauma bondosa avó italiana do que o Sumo Pontífice.

Pio XII acostumara os católicos a uma presença majestática e reveladora de uma finainteligência. Roncalli, como se veria, era um papa de transição, um velho queasseguraria o lugar durante uns anos até os cardeais poderem decidir quem, napróxima ronda, substituiria o insubstituível. Seria provavelmente Montini, de Milão,outrora confidente de Pio. Se Montini fosse já cardeal quando o conclave de 1958começou talvez tivesse sido ele a suceder-lhe logo nessa altura.

E qual o nome deste afável velho? João XXIII. Já não havia um papa João há maisde quinhentos anos. Antes disso, este fora claramente o nome mais popular para ospontífices. Afinal, era o nome do bem-amado Discípulo Baptista. Os mais cultos no meiodaquela multidão na Praça de S.Pedro sabiam que já tinha havido um Papa João XXIII.E foi este, de facto, o responsável pela maldição que caiu sobre esse nome. Foi depostopelo Concílio de Constança em 1415. Ficou sepultado num túmulo desenhado porDonatello no baptistério octogonal da Catedral de Florença. A sua efígie de pedrasustenta a inscrição “Aqui jaz o corpo de Baldassare Cossa, João XXIII, que foi papa”.Naquele ambiente tenso próprio da eleição, nenhum papa desde Cossa se arriscou aassumir o nome de João. Porquê começar um pontificado com um sopro de polémica?Roncalli viria a explicar que, tanto quanto sabia, os Joãos não tinham vivido muitotempo, e ele já estava quase nos oitenta. A situação era ainda mais estranha do queaquilo que o próprio Roncalli provavelmente sabia. Além de Cossa (“João XXIII”), houvetambém o caso de João XVI (997-8) que foi um anti-papa. Mais: não há na lista nenhumJoão XX. O papa que podia ter tomado esse nome em 1276 chamou-se João XXIporque estava convencido de que tinha havido um papa extra no século IX. Este papa“extra“ foi o Papa João (aliás, Papisa Joana)! Enquanto Roncalli intrigava muita gentepor não se intitular João XXIV, a verdade é que ele era de facto apenas João XXI.

Angelo Roncalli nasceu em 25 de Novembro de 1881 na aldeia de Sotto il Monte,perto de Bérgamo, no norte da Itália. O pai, Giovanni Battista, era um pobre lavrador.Angelo era o terceiro de treze filhos e o mais velho dos rapazes. A casa onde nasceutinha três divisões, contando com a cozinha, mas pouco depois de Angelo nascer afamília mudou-se para uma casa ligeiramente mais espaçosa.

Angelo foi baptizado no dia em que nasceu. O seu cuidadoso Tio Zaverio agasalhou-o do frio gelado e da chuva que cegava e levou-o à pequena igreja de Santa Maria, emBrusico. Foi ao principio da tarde. O pároco estava ausente em visitas e eles tiveram devoltar mais tarde, nesse mesmo dia, já à noite. Por essa altura já Giovanni Battista tinhamandado registar o recém-nascido. O atraso deveu-se à tenacidade da mulher,Marianna, que também esteve presente.

Page 250: Vigde cristo

250

As recordações de Angelo dos seus primeiros anos continuaram vivas até ao fim. Acasa estava sempre cheia, com os irmãos e as irmãs e os numerosos primos. Às vezesa vida da família era feita da sobrevivência do dia a dia. Escreveu ele:

Na nossa mesa nunca havia pão, apenas polenta [feito de farinha demilho]; nem vinho para as crianças e jovens; e raramente haviacarne; só no Natal e na Páscoa é que comíamos uma fatia de bolofeito em casa. […] E contudo, quando um pedinte nos batia à portada cozinha, na altura em que as crianças esperavamimpacientemente pela malga de minestra [sopa de legumes], haviasempre lugar para ele, e a minha mãe apressava-se a sentar odesconhecido à nossa mesa.

Mas é claro que o pedinte não era de facto um desconhecido. Aos olhos de MariannaRoncalli era o próprio Jesus. Aquela percepção transmitia-a ela a todos os filhos comeste simples gesto de caridade.

Aos dez anos, Angelo concluiu que tinha vocação para o sacerdócio. Istorepresentava um grande sacrifício para a família, mas conseguiram-lhe um lugar noSeminário Menor de Bérgamo. Por essa altura já ele tinha aprendido os rudimentos delatim com o pároco local.

Em 1900, entrou para o Collegio Cesarola em Roma. Ordenado em 10 de Agosto de1904, disse a primeira missa no Altar da Confissão da Basílica de S.Pedro. Depois deobter o doutoramento em Teologia, foi nomeado secretário do liberal Bispo de Bérgamo,lugar que exerceu durante nove anos, período em que também ensinou História daIgreja no seminário.

Durante a Primeira Grande Guerra, serviu como assistente hospitalar. Por qualquerrazão nunca explicada deixou crescer um farfalhudo bigode preto. Talvez fosse apenasuma experiência.

Em 1922, enquanto fazia investigação na Biblioteca de Milão, conheceu o director,Monsenhor Achille Ratti, futuro Pio XI, que simpatizou com aquele padre impaciente, deolhos afastados. Três anos mais tarde, em 19 de Março de 1925, Angelo Roncalli foinomeado bispo. Celebrou missa uma vez mais sobre o túmulo de S.Pedro. Já comquarenta e quatro anos, entrou para o corpo diplomático da Igreja.

Aqueles que pensam que o Papa João era um homem inculto devem lembrar-se deque, além do italiano, sua língua mãe, ele falava fluentemente latim, grego, francês ebúlgaro. Falava também um pouco de espanhol, turco e romeno. Lia em inglês, alemãoe russo. Teve uma carreira longa e distinta nos Balcãs antes de ser enviado para Pariscomo núncio no fim da guerra. A sua missão era a de aí devolver à Igreja arespeitabilidade abalada pelo seu pobre desempenho durante a ocupação nazi, quandoos bispos colaboraram com o inimigo. Fez um trabalho extraordinário de reconciliação.

Como decano do corpo diplomático, competia-lhe representá-lo nos actos oficiais. Osseus discursos estão registados e revelam uma paz interior e uma tranquilidadeinvulgares. A ideia que não se cansava de acentuar era a da liberdade e do respeitopelos direitos de toda a gente. Numa alocução dirigida ao Presidente Auriol em 1947,referiu-se ao Novo Testamento como a Magna Carta da civilização que nos fez grandes.«Abençoados os humildes porque eles herdarão a terra; abençoados os pacificadoresporque serão chamados filhos de Deus».

Num outro discurso de Ano Novo dirigido ao Presidente falou de

liberdade, liberdade em todos os sectores da vida […]

Page 251: Vigde cristo

251

Entre as recordações da minha infância ainda nutro especialcarinho por uma poderosa afirmação de Cícero que nós tínhamos deaprender nas nossas primeiras lições de latim: é uma nobreexpressão de sabedoria romana: Legum servi sumus, ut liberi essepossumus (Estamos sujeitos à lei para sermos livres).

Por esta altura — estávamos em 1947 — já ele dizia em cartas pessoais que, emboraestivesse bem de saúde, estava já «a ficar velho e mostro sinais da idade». Erainequivocamente o Papa João tal como a história o recordará. Tudo nele era grande,excepto a altura: os olhos, as orelhas, a boca, o nariz, o pescoço, o coração. Sobretudoo coração. O rosto era como um puzzle de peças desirmanadas, o coração, uma dasobras primas de Deus.

Embora fosse um homem do mundo, nunca perdeu a visão de uma criança. A falarcom os jovens ficava no seu melhor. Num discurso dirigido a um Congresso deJuventude, em Angers, em 1946, revelou a sua postura fundamental em relação à vida.

A vossa vida, jovens, está virada para o futuro. Peço-vos: nãopercam tempo a culpar o presente ou a suspirar pelo passado, quenão tem interesse para vós, excepto na medida em que vos podeoferecer úteis lições e avisos para que não repitam aqueles errosque foram e ainda são fatais para os homens e para as nações.

Tal como uma criança, Angelo Roncalli estava inteiramente virado para o futuro. Foieste dom inestimável que ele trouxe ao papado. Isto e a sua intrepidez absoluta. No seudiscurso final ao Presidente Auriol, após oito anos como decano, disse: «Semantivermos uma sólida fé, um invencível optimismo e o coração sensível aos apelossinceros à fraternidade humana e cristã, todos temos direito à coragem de esperar comconfiança a ajuda de Deus». Amor, amizade, optimismo eram virtudes que ele tinha emabundância. E os seus colegas reconheciam isso, tal como os seus opositores, que serecusavam a chamar-lhe inimigo. Roncalli ficava fora de tais categorias. No banquete dedespedida em sua honra, em Paris, Edouard Herriot, líder do Partido Radical, deu o seupróprio testemunho. «Se todos os padres fossem como o Núncio Roncalli» disse ele,«não restaria ninguém anti-clerical».

Era altura de tomar o seu novo lugar de Patriarca de Veneza. Numa cerimónia noPalácio do Eliseu, o seu amigo Presidente Auriol insistiu no seu já antigo privilégio deconferir o barrete vermelho a um homem que ele acabara por respeitar profundamente.No seu discurso, Roncalli disse que iria ter sempre em Veneza uma lâmpada acesapelos seus amigos. Cuidado, disse em resposta o vice-decano, o General canadianoVarrier. «Todos nós somos vossos amigos e quando formos a Veneza, a primeira coisaque vamos procurar é a lâmpada acesa em frente da casa do Patriarca. Nós sabemosque nos basta bater para que a porta logo se abra».

Depois de uma curta estadia em Roma para uma audiência com Pio XII, Roncallitomou conta do seu novo cargo em Veneza. A grandiosidade da recepção deixou-oconfundido. Foi uma semana triunfal, disse ele. E escreveu a um antigo colega de Paris:«Oh! Quanto entusiasmo! Que entrada triunfal no cenário incomparável da Laguna, todaenfeitada como se para uma festa». Tomou posse da catedral oitocentista de S.Marcos,a que os turcos trouxeram os seus padrões depois da Batalha de Lepanto em 1571. Aesta grande diocese disse ele: «Sou filho de pais pobres. Mandou a Providência que eudeixasse a minha casa e saísse para o mundo. […] Pensai no vosso arcebispo nãocomo um político, mas como um pastor». Era este o seu tema constante e invariável. O

Page 252: Vigde cristo

252

seu papel não era senão o do Bom Pastor de Deus. «Envolvo num abraço de especialprotecção paternal as crianças, os pobres, os sofredores e os trabalhadores» disse ele.

Como patriarca, Roncalli teve uns bons anos de paz e satisfação. O seu optimismoera contagioso. Parecia ter chegado ao topo de uma carreira admirável. De origemcamponesa como era, podia dizer como Homero na Odisseia: «Muitas cidades eu vi emuitos homens». Tinha atrás de si dez anos em Sófia, Bulgária, e mais dez emIstambul. Paris foi o seu último posto no estrangeiro. Estava pronto para dizer adeus aum mundo que ele tinha feito os possíveis por servir. Voltava todos os anos à sua terra,Sotto Il Monte, para recuperar energias, para se sentir ele mesmo entre os irmãos eirmãs. Era uma família com tradição de longevidade. O pai morreu aos noventa e seisanos e a mãe aos noventa e quatro. As fotografias da época mostram o patriarca comos irmãos Giovanni, Zaverio, Alfredo e Giuseppe, todos de fato preto e sapatos a brilhare, à excepção de Angelo, todos com ar algo desconfortável. O rosto de Angelo, o únicogordo, apenas revela orgulho nos irmãos.

Tal como Giuseppe Sarto antes dele, Roncalli esperava naturalmente acabar os seusdias em Veneza. Também ele se enganou.

Eram cinquenta e um os cardeais que iriam votar para a eleição do sucessor de PioXII. A primeira votação realizou-se em 26 de Outubro de 1958. Só à décima primeiravotação é que Roncalli foi eleito papa de transição, e foi o Cardeal Canali que oapresentou à multidão de 300.000 pessoas que se encontravam na Praça de S.Pedro.

Não foi preciso muito tempo para se perceber que João XXIII era diferente dequalquer outro papa. Era primeiro e antes de tudo um ser humano. Era um humildecristão. Era um católico católico. Era o papa do mundo. De facto, dele se podia dizerque era o primeiro papa não italiano em muitos séculos. Não vigiava permanentementea situação na Itália, nem comprometeu a Igreja e o papado dando-lhe a prioridade. Osseus ajudantes viriam a queixar-se amargamente de que conquistou muitos votos paraos comunistas nas eleições nacionais. Tinha até dado uma entrevista ao genro deKhrushchev, editor do Izvestia, num momento extremamente delicado da políticaitaliana. Tornou-se assim o primeiro papa a ser atacado pela imprensa da direita do seupróprio país. A verdade é que a sua preocupação primeira não era salvar a Itália doComunismo; a sua prioridade era levar o Evangelho de Cristo a toda a humanidade esobretudo à Igreja.

Enquanto que os seus antecessores tinham admoestado o mundo, o tinhamdenunciado, avisado, condenado, João XXIII amava-o, encorajava-o, sorria-lhe comoum anjo.

De Giotto, o artista do século XIII, dizia-se que «tinha esculpido com tinta». Tinhadado na tela perspectivas inteiramente novas de tal modo que parecia que um novomundo tinha «irrompido», um mundo novo que viria a tornar-se o Renascimento. Joãoera o grande artista do Espírito. Deu ao Catolicismo uma nova dimensão utilizandovelhos materiais, e é esta a razão por que os homens, mesmo homens da astúcia docardeal Heenan de Westminster, não tiveram a percepção da sua originalidade. Heenandizia repetidamente: «Já conheço o homem. É simplesmente um católico antiquado dotipo Jardim das Almas». Sua Eminência não era o único a mostrar-se cego à verdadeiragrandeza deste homem extraordinário que humanizou o rosto da Igreja Romana. ComJoão começava — pelo menos assim parecia — o Renascimento do próprio papado.Por via do mais absoluto dos cargos absolutos, ele estava a par do mundo inteiro,porque nunca perdeu o Evangelho de vista. Provou que era de facto possível ser santoe ao mesmo tempo bom no desempenho da sua função.

Page 253: Vigde cristo

253

Corriam inúmeras estórias a seu respeito. Mas a verdade era ainda melhor do quemuitas das lendas. No dia de Santo Estêvão de 1958, trocou o Vaticano pela Prisão deRegina Coeli. «Como vós não podeis vir ter comigo» disse aos presos «venho eu terconvosco». Uma criança escreveu-lhe a dizer que não conseguia decidir-se sobre sequeria ser papa ou polícia. João respondeu-lhe: «Para ti deve ser mais seguro treinares-te para polícia. Papa, qualquer pessoa pode ser, como estás a ver pelo meu caso». Nãopunha especiais cuidados a preparar os seus passeios nos jardins, e os visitantes daCúpula da Basílica viam recusadas as visitas à última hora com a alegação de que opapa andava a apanhar ar nos jardins, ficando à vista de quem se encontrasse naabóbada.

— Mas qual é o problema? — perguntou João a um desolado funcionário da Basílica.— Eles vêem Vossa Santidade.— E então? — perguntou o Papa João genuinamente intrigado — Eu não estou a

fazer nada de mal, pois não?Um dia, Monsenhor Helm, o seu ex-secretário suíço em Paris, trouxe-lhe o desenho

de um novo brasão que tinha feito para Sua Santidade. Ostentava um Leão deS.Marcos de ar feroz e garras estendidas. João observou-o por momentos. «Não acha»perguntou bondosamente «que ele é feroz demais para mim?» Olhou-o outra vez. «Umtanto germânico?» E acrescentou a sorrir: «Esse estaria bem para Gregório VII, não lheparece? Não poderia torná-lo… mais humano?»

Helm levou outra vez o desenho e voltou com um leão veneziano que, disse o PapaJoão numa audiência em Abril de 1963, «não metia medo a ninguém».

Há uma fotografia que retrata o papa João na perfeição. Está a falar com uma criançade vestido branco de comunhão que condiz com a sua própria sotaina. Estão com ascabeças muito juntas e absorvidos um com o outro. Ele sabia que a pequenina estava amorrer de leucemia; ele próprio viria a morrer em breve de cancro. O papa olha estacriança com profundo respeito, numa veneração de rara beleza. É como se o pontíficeestivesse a olhar o rosto de Deus.

O mundo estava a gostar do que via. João dava a primazia ao amor e tinha umsentido paternal que até os Protestantes invejavam. Nada era impossível com um tal serhumano no trono papal. Já se falava da mudança da maré da Reforma. Os Ortodoxos,acerbos críticos do absolutismo papal, não punham objecções à primazia de Roma aoamor apostólico e estava ali um homem que o encarnava na perfeição. Os tempos doshinos fúnebres do Vaticano já tinham acabado; a música que emanava de Roma eramais como a Sagração da Primavera de Stravinsky.

Em que é que João XXIII é diferente de Pio X? Ambos eram de origem camponesa.Ambos eram profundamente santos e generosos, homens de Deus com uma vidaprivada sem mácula. Foram diferentes na maneira como pensaram o papado e,portanto, o seu papel como pontífices.

Pio X, homem de enorme humildade, exigia para si, como papa, uma obediênciacega, uma submissão até servil, que ele nunca pensaria exigir para si, Giuseppe Sarto.Já no tempo em que era bispo, e mais tarde como Patriarca de Veneza, sentia aobrigação de afirmar a sua autoridade como representante do papa e de Cristo. É claroque nunca esqueceu a desconsideração que recebeu do Município de Veneza quandotomou posse da sua diocese. Aquilo era uma afronta não a ele, mas a Cristo, na suapessoa. Pio X era hostil por igual a qualquer pessoa que ele considerasse inimiga doEvangelho de Cristo, daí o tratamento severo dos “Modernistas” como Tyrrel e Loisy.

João XXIII era globalmente mais desprendido. Não tinha medos de espécienenhuma, excepto o de não agir como Cristo agiria. Não havia nele qualquer divórcio

Page 254: Vigde cristo

254

entre o ser um simples cristão e o ser papa. E também não pensava, como Pio X, quecomo papa tinha de resolver todos os problemas do mundo. Não era nenhumextraterrestre, nem nenhum Supremo Teólogo. Não era nada mais do que um BomPastor. As suas palavras sobre isto, logo a seguir à eleição, são talvez as mais notáveisda sua carreira.

Alguns esperam que o Papa seja estadista, diplomata, erudito,administrador — um homem que compreende todas as formas deprogresso humano sem excepção. Mas esses enganam-seredondamente, porque interpretam erradamente a verdadeira funçãodo papado. Para Nós, a função do Papa é a de ser um Pastor paratodo o seu Rebanho.

Isto explica a razão por que João não tinha a habitual frieza magistral dos pontífices.E também a razão por que não precisava de lembrar à Igreja a sua autoridade; ele tinhaa maior e mais significativa autoridade, a do amor e do serviço. A sua bênção abraçavatodo o mundo e não apenas os católicos. Era simplesmente o pai da humanidade. Paraser um bom papa, pensava ele, não era preciso perseguir ninguém, nem atemorizar osteólogos, nem emitir terríveis avisos sobre o futuro ou fazer leis cada vez mais severas;o que era preciso era simplesmente ser bom cristão. E confiar em toda a gente era umaparte disso mesmo. Não precisava de fazer tudo sozinho. Afastava-se completamenteda ideia que Pio X tinha do papado e que era a mesma que tinham Pio IX, Inocêncio IIIe Gregório VII. Esta a razão por que um “ancião dos anciãos” teve a coragem deconvocar um concílio. Depois de muita ponderação e oração, anunciou a sua decisão adezoito cardeais numa cerimónia em S.Paulo Fora de Muros em 25 de Janeiro de 1959.Estes ficaram completamente espantados. Ele era um papa de transição - por que é queagia daquela maneira? João pediu-lhes a opinião. Mas eles não tinham nenhuma. Maistarde confessou por escrito: «Humanamente falando, Nós estávamos à espera que oscardeais, depois de ouvir a nossa comunicação, nos rodeassem para manifestar a suaaprovação e os seus bons votos. […] Em vez disso, seguiu-se um silêncio impressivo edevoto».

Por que é que eles haviam de mostrar entusiasmo? O único concílio em mais dequatrocentos anos tinha proclamado a infalibilidade do papa. Para que é que o papaJoão precisava de um concílio?

A inspiração de convocar um concílio distinguiu João como qualquer coisa muitoespecial. Era o primeiro pontífice a convocar um concílio sem que houvesse sobre elequalquer pressão nesse sentido. A Igreja não estava em estado de revolta; não haviaquestões dogmáticas importantes. Ele avançou com a ideia porque acreditava que umconcílio seria bom para a Igreja e para o mundo. Queria que a Igreja «se actualizasse»,o aggiornamento, e abrisse os braços aos irmãos separados. Simbolicamente, eleescancarou as janelas daquele último dos guetos, o Vaticano, para deixar sair o bafio eentrar o ar fresco. Não admira que a Cúria fizesse os possíveis por dissuadi-lo.

Uma coisa daquelas levaria vinte anos a preparar, diziam-lhe. Estas coisas nãodevem ser feitas apressadamente. E depois, a organização precisava de trazer 2.500bispos dos quatro cantos do mundo e instalá-los satisfatoriamente! E as despesas? Epor que não um sínodo em Roma, Santidade, para, por assim dizer, preparar o terreno?

João ficou entusiasmado com a ideia do sínodo, mas optou por um concílio também.O Sínodo, com os seus limitados objectivos, foi um sucesso. Os seus ajudantesdisseram-lhe que não foi legislativamente satisfatório. João sabia que isto queria dizerque eles só ficariam satisfeitos com leis e castigos. Ele não queria nada disso. O tempo

Page 255: Vigde cristo

255

das condenações já tinha passado há muito. A própria Igreja é que precisava dacompaixão de Cristo. Daquela compaixão que ele estendeu aos padres que tinhamabandonado o seu ministério. Até a lei italiana era injusta para com eles, vedando-lhesmuitos empregos por causa da Concordata de 1929. Pediu aos padres que saudassemos seus ex-colegas com o amor de Cristo e, quando necessário, com uns poucosmilhares de liras.

Começa o Concílio

O Papa João tinha oitenta e um anos de idade quando numa bela manhã de Outubrode 1962 foi transportado na sua sedia gestatoria para o interior da Basílica de S.Pedro.Tinha o rosto molhado das lágrimas.

Nunca o papado tinha gozado de tão alta estima pública. Se todos os papas fossemcomo ele, dizia-se, toda a gente se poria em bicha para se tornar católica. Elepersonificou a frase de Horácio: «Nada impede uma pessoa de dizer a verdade com umsorriso nos lábios». O Concílio mostrou que mesmo um papa estava pronto a ouvir eaprender.

No seu discurso de abertura deixou claro que a Igreja não dará ouvidos aos profetasda desgraça. A Igreja tinha de actualizar-se radicalmente e sem medo. A Guerra Friadas igrejas, pelo que dizia respeito a Roma, estava acabada. Não haveria anátemas;haveria sim um regresso ao Evangelho do Mestre, Jesus Cristo. A presença deobservadores não católicos no auditório era sinal de mudança do espírito da Igreja.João já imaginava que seria difícil para os bispos falar de banalidades na presença devisitantes ilustres de ambos os sexos. Alguns dos seus ajudantes já murmuravam«Communicatio in Sacris», o que significava que o papa andava a manter relaçõesproibidas com hereges.

Alguns dos prelados ali reunidos não aceitavam facilmente a ideia de renovação. OsCardeais Spellman, de Nova Iorque, McIntyre, de Los Angeles, e Godfrey, deWestminster, não viam necessidade de tal coisa. O Catolicismo andava na crista daonda. Todos os dias se acabavam escolas e igrejas que desde o primeiro dia seenchiam a deitar por fora. Multidões de convertidos vinham procurar nele refúgio para apermissividade da vida moderna. O que era preciso era mais do mesmo e não coisasnovas ainda não experimentadas. E que distinção era aquela entre as antigas verdadese a sua expressão? Não era a verdade inseparável da sua expressão? A força da Igrejanão residia exactamente no facto de as antigas expressões serem sempre válidas,estabelecendo assim um relação de continuidade entre os dias de hoje e todos osoutros dias da longa marcha da Igreja através da história?

A Cúria estava impregnada deste espírito reaccionário. Os esboços dos documentosdo Concílio foram feitos por mãos da Cúria. Era uma linguagem legalista e de confronto,na tradição da Contra-Reforma. Conta uma estória bem fundamentada que o Papa Joãorecebeu um padre, um velho amigo seu, no Vaticano. Este sugeria uma réguaimaginária para a última oblação da Cúria. «Olha, dez centímetros de ordens e vinte decondenações». Na primeira reunião da mais importante das comissões do Concíliosobre doutrina, os da velha guarda, liderados pelo Cardeal Ottaviani, um homem depescoço tourino, prefeito do Santo Ofício, falaram à vez durante quase duas horas.Explicaram aos membros eleitos a razão por que nada devia ser alterado nosdocumentos preparatórios. Era “imperativo” opor firme resistência às «tendênciasheréticas». De acordo com o testemunho do Padre Bernard Häring, teólogo moral que

Page 256: Vigde cristo

256

estava presente, o Cardeal Léger, de Montreal, por fim, já não aguentou mais. «Se avossa postura é a de que vós sois ortodoxos e todos os outros são heréticos», disse ele,«tereis de fazer o trabalho sozinhos. Adeus».

A primeira derrota da velha guarda ficou a dever-se à coragem de dois cardeais,Frings, de Colónia, e Liénart, de Lille, que na primeira sessão aberta levantaramobjecções à constituição das comissões, todas de nomeação curial. A sua revolta foiapoiada pela maioria do Concílio. A assistir por circuito fechado de televisão, João deveter posto aquele sorriso de Mona Lisa em sinal de aprovação. Já tinham aprendido umalição importante. A Cúria, que durante tanto tempo tinha dominado a doutrina e apolítica, começava a não representar a Igreja. Foi prudente o Concílio de Constança aoexigir frequentes concílios para informar, doutrinar e guiar a Igreja, exigência que foicontrariada por papas e cúrias ao longo dos tempos. A burocracia czarista ecentralizada de Roma opunha-se à catolicidade da Igreja. Muitos dos presentes noVaticano II só agora começavam a perceber isto. Mas o papa teve outro gesto queprovocou uma espécie de pânico nas fileiras da Cúria. Criou um pequeno grupo oucomissão encarregada de o aconselhar a ele e ao Concílio sobre o controle danatalidade. Porque é que ele está a fazer isto? — era a pergunta mais ouvida das bocasda Cúria. O espírito da Igreja era claro: todos os actos de contracepção são pecadosmortais. Nenhuma circunstância, por muito pungente que seja, pode tornar boa e moraluma coisa que, na sua essência, é má. Todos concordavam que é aí que tudo começae acaba. Está errado, está sempre errado, penosamente errado. Pio XI dissera istomesmo em 1930 na Casti connubii, reforçando séculos de uma firme tradição católica.O que é que João XXIII pretendia? Os críticos do papa ficaram ainda mais indignadosquando lhes constou que a maioria dos membros da comissão era constituída porleigos. O que é que eles sabiam sobre o controle da natalidade? Aquilo era umaquestão estritamente teológica, e os teólogos não andavam de modo nenhum confusos.Os especialistas leigos podiam informar Sua Santidade sobre o crescimentodemográfico, as atitudes de governos hostis, etc.. Mas devia ter ficado bem claro desdeo início que não havia a mínima possibilidade de mudança. Era a eterna lei de Deus.

Mal o Concílio começou, logo um homem emergiu como figura profética. De oitenta equatro anos, era um homem venerável. Tinha os dias contados; viria de facto a morrerpouco depois de o Concílio terminar. Distinguia-se da maioria dos outros prelados atépelo vestuário, porque era um patriarca oriental. Maximos IV Saigh, de Antióquia, na suacomprida túnica escura e chapéu redondo, com uma grande barba grisalha, não temianinguém, a não ser o seu Senhor. Pertencia aos Melchites, a Igreja Católica grega deAntióquia, que se submeteu à Santa Sé no início do século XVIII. O seu clero menorpodia casar antes da ordenação. Esta Igreja tem membros na Síria, no Egipto e naGalileia, bem como comunidades espalhadas pelos Estados Unidos da América.

O Papa João deve ter ficado grudado à televisão no dia 28 de Outubro quando opatriarca espantou toda a gente ao falar não em latim mas em francês. O moderadordaquele dia era o Cardeal Spellman, que em 1932 tinha terminado uma comissão emRoma. Foi o primeiro americano a estar oficialmente ligado à Secretaria de Estado.Spellman foi apanhado de surpresa e perdeu o desafio logo na abertura da intervençãode Maximos: «Abençoados». O Papa João deve-se ter rido com isto. Maximos iaprimeiro, como pensava que devia ser, prestar homenagem aos seus colegaspatriarcas. Na sua ideia, os cardeais eram uma categoria inferior do clero que se tinhatornado proeminente muito tardiamente. Noutros tempos os patriarcas vinham logo aseguir ao papa em importância; tinham tomado parte nos primeiros concílios da Igrejaainda não dividida. Onde é que estavam os cardeais em Niceia? Mesmo o Quarto

Page 257: Vigde cristo

257

Concílio de Latrão em 1215 tinha observado a primazia dos patriarcas, e não eraverdade que Maximos era patriarca da primeira sé estabelecida pelo próprio Pedro?

Mas porquê o francês? Foi a sua maneira de acentuar que o latim não é a língua daigreja que ele representava. Essa a razão por que optou por falar numa língua maiscatólica. Através do uso do francês, Maximos fez um ataque velado ao estreitopensamento curialista que tinha organizado o Concílio. Continuou, criticando umdocumento preparatório por tratar as prerrogativas do chefe da Igreja «tão isoladamenteque o resto do corpo, em comparação, parecia um anão». Como não latino, protestoucontra a tentativa de Roma de se impor ao seu povo.

Depois pôs a tónica nos esquemas delineados pela Cúria. Demasiado legalistas, semrelação com a vida. A actual apresentação da fé estava completamente errada. A IdadeMédia já passou; o homem cresceu. Era inútil impor as leis sem explicar a sua razão deser.

E o patriarca continuou lembrando que a doutrina moral católica precisava de seractualizada dos pés à cabeça.

Vejamos o catecismo, por exemplo. Nós tornamos obrigatório paraos fiéis a abstinência às sextas-feiras e a assistência à missa aodomingo, sob pena de cair em pecado mortal. Será isto razoável? Equantos católicos é que acreditam nisto? E quanto aos descrentes,esses apenas têm pena de nós.

Por muito simples que fossem, os comentários do patriarca tiveram um efeitodramático nos padres. A maioria já suspeitava que os canonistas tinham reescrito oSermão da Montanha, retratando um Deus de olhos de Argo em relação aos pecadosdos homens. Pode imaginar-se realmente Jesus a dizer que é pecado mortal merecedordo fogo eterno comer carne à sexta-feira ou faltar à missa aos domingos?

Todas as coisas, continuou Maximos, devem ser estabelecidas em nome do amor.Não ordens, mas linhas de orientação sugeridas e inspiradas pelo amor. «Uma mãe nãogosta de castigar o filho com um cacete».

O Papa João, fluente em francês depois dos anos que esteve em Paris como núncio,deve ter seguido esta intervenção, abanando vigorosamente a cabeça em aprovação.Toda a gente sabia que as crianças católicas com mais de sete anos “a idade da razão”eram doutrinadas à base do medo. Impunham-se aos pequeninos de Cristo regraspormenorizadas com sanções que deixariam Cristo branco de ira. Era difícil encontrar oamor naquele labirinto negro da lei. Nem a sagrada comunhão, a recepção de Cristo naEucaristia, escapava. Os católicos tinham de fazer jejum antes da comunhão. Mas“comida e bebida” o que eram? Ter um bocado de caramelo na boca, restos da noiteanterior, era “comida”? Engolir um golo de água ao lavar os dentes era “bebida”? Comose nunca tivessem lido a denúncia de Jesus dos chicaneiros que discutiaminterminavelmente a questão da lavagem dos copos e dos pratos, os moralistasperguntavam solenemente: «Será que mastigar um fósforo ou engolir uma moscaquebra o jejum antes da comunhão?»

Este péssimo tipo de casuística era aplicado a todos os pormenores da moralidade.E isto paralisava a vida do espírito. Deus não aparecia como um Deus de amor que tinhaincarnado na vida, morte e ressurreição de Jesus, mas como um juiz legalista a tentarapanhar as suas criaturas em falta e, quando elas não estavam conformes, a mandá-las,ao mínimo deslize, para o inferno.

A ideia do inferno era muito mais forte do que a do Céu, lugar que parecia poucomelhor do que um convento medieval. Não havia comida nem sexo. Não ficava muito

Page 258: Vigde cristo

258

clara a razão por que precisávamos de um corpo ressuscitado. O que é que uma pessoafazia no Céu senão entregar-se a exercícios altamente intelectuais, contemplando semcessar a essência divina, como se a morte nos deixasse uma obsessão pela teologia?

Quanto mais se prolongava o Concílio, mais os conservadores se viam a travar umaluta de retaguarda. Estavam a bater em retirada em todas as frentes. O Manual dosErros de Pio IX, a Lamentabili de Pio X estavam a ser postos de lado pelo Concílio comose nunca tivessem sido escritos. Eles sabiam que João XXIII tinha cometido um erro. Asposições por eles consideradas como doutrina católica sagrada e irrevogável estavam aser alegremente abandonadas pela enorme maioria dos padres.

O Concílio estava a revelar-se como uma educação para a maioria dos bispos. Asideias que eles tinham acalentado no segredo dos seus corações como talvezidiossincráticas estavam a vir à tona e a conseguir aceitação. Esta lição era crucial:longe de ser uma instituição imutável, a vocação da Igreja era mudar com os tempos emmudança. A Igreja é tão amiga da tradição, dizia um bispo, que anda constantemente aforjar novas tradições.

Mas uma preocupação havia que nas discussões em privado se mantinha àsuperfície e por fim encontrou expressão nos documentos finais. Por causa do mito deensinar verdades eternas, o Concílio queria negar que estava a mudar no própriomomento em que mudava para melhor. Falava-se de “evolução” ou “desenvolvimento“da doutrina, o que em alguns casos era verdadeiro, mas noutros manifestamente falso.A metáfora não explicava a mudança, apenas tornava obscuro o que estava realmente aacontecer. Uma bolota evolui “miraculosamente” para carvalho e não para barco. Comodizia um escritor católico: «A Igreja começou com o princípio da tolerância absoluta eacabou no princípio da fogueira». Era isto o verdadeiro “desenvolvimento”? Da mesmamaneira, todos os pontífices do século XIX falavam da liberdade de culto como insana,ateísta, um insulto a Deus. Será que era “evolução” o Concílio Vaticano II querer incluir aliberdade de culto nos direitos do homem?

À parte isto, uma outra falha se revelaria num futuro próximo. Em vez de repensar aconstituição da Igreja por inteiro, os padres consideraram o Vaticano I como obraacabada e fixa nos seus próprios acrescentos.

O Concílio Vaticano I tinha deixado o papa como praticamente o único Protestanteda Igreja Católica. O Vaticano II apenas acrescentou bonitas palavras sobre o magistérioepiscopal. Na prática, o concílio anterior continuava em vigor. E era inevitável que,acabado o Concílio, a Cúria tomasse as rédeas e fizesse com que tudo voltasse aoestado anterior. Haveria uma promessa de um sínodo de bispos, mas este era apenasum órgão consultivo.

Mas quando a primeira sessão do Concílio chegou ao fim, em 8 de Dezembro de1962, ninguém, católico ou não católico, duvidava de que a Igreja Católica começava amudar-se como um todo para o século XX. No seu discurso de encerramento João fezsaber que não estava muito satisfeito com o ritmo do progresso. Instou os bispos acontinuarem com o aggiornamento, que, como em surdina dizia um cardeal da Cúria, eraaquilo que Pio IX tinha condenado na 80ª proposição do seu Manual.

Em Março de 1963, o Papa João recebeu o Prémio Balsan da Paz. Os quatrosoviéticos do comité foram obviamente instruídos por Khrushchev no sentido de votaremnele. E ele foi uma vez mais criticado pelos membros da Cúria por apertar «mãosmanchadas de sangue». Além disso, o que é que um papa, Vigário de Cristo, anda afazer ao receber prémios de terceira categoria de comités seculares? O homem era umcripto-comunista. Não admira que o Izvestia tivesse publicado integralmente o seudiscurso de abertura do Concílio.

Page 259: Vigde cristo

259

Nessa mesma primavera de 1963, João publicou a Encíclica Pacem in Terris.Saudava o progresso. Proclamava o direito de todos de «venerar Deus de acordo comos ditames da sua consciência e de professar a sua religião tanto em privado comopublicamente». Aqui estava um pontífice que não andava constantemente a olhar porcima do ombro. Como escreveu E. E. Hales em Pope John and his Revolution:

A posição do Papa João em relação aos justos ditames daconsciência do homem representa um claro avanço nosensinamentos dos seus antecessores oitocentistas que envolvemesmo um repúdio de muito do que eles ensinaram, e era bom queeste simples facto fosse abertamente reconhecido.

Na altura da publicação da Pacem in Terris, João já mostrava sintomas de doençafatal. Em fins de Maio, começou a sofrer de hemorragias internas e depois contraiu umaperitonite. Deram-lhe a Extrema Unção.

Antes do fim, chegaram três dos seus irmãos e a irmã Assunta. Estes apenas o viamcomo o seu querido irmão, não como papa ou santo. Com a sua presença, João sentia-se em casa.

Sofreu muito, mas com um coração cheio de satisfação pela sua Igreja,especialmente pelo seu Concílio, e pelo mundo que ele tinha olhado com um amor semparalelo.

O dia 3 de Junho foi uma segunda-feira, um dia cheio de um sol brilhante.Celebraram uma missa por ele na Praça de S.Pedro. Mais tarde, pouco antes das oitohoras da noite, morreu. Na grande praça estava uma multidão de dez mil pessoas dejoelhos, nas sombras. Abriram-se as cortinas do quarto e apareceu uma luz crua;ficaram a saber que o seu querido papa tinha ido ter com Deus.

A imagem que tinha de si próprio era a de alguém que queria a paz a qualquerpreço. Via-se realmente como um cobarde receoso de correr riscos. Terminara um breveinterlúdio encantado. Quando apareceu pela primeira vez à varanda de S.Pedro, foisaudado com algum desalento; a sua morte deixou no mundo um hiato que maisninguém podia preencher. Tinha tornado a santidade e a bondade atraentes; tinhatornado a Igreja Romana verdadeiramente católica. Dera ao Catolicismo um novoespírito e um novo coração.

Mas o trabalho apenas tinha começado. O Concílio não tinha ainda aprovado umúnico documento. Quem seria o seu sucessor e como é que iria agir?

O conclave reuniu, na sua primeira sessão, na Capela Sistina em 17 de Junho.Como se previa, escolheram Montini, de Milão, que tomou o nome de Paulo VI.

Page 260: Vigde cristo

260

Page 261: Vigde cristo

261

16O Novo Caso Galileu

Giovanni Battista Montini nasceu em 26 de Setembro de 1897 na cidade de Brescia,no norte de Itália. Educado em casa, tal como Pio XII, foi ordenado em 1920. Dois anosmais tarde foi mandado para a Secretaria de Estado do Vaticano, onde serviu sob doispontífices autoritários, Pio XI e Pio XII. Em 1954 Pio XII exilou-o em Milão comoArcebispo da cidade, talvez por causa das suas simpatias por certos elementos daesquerda do movimento laico. Pio XII nunca o elevou a cardeal.

Logo que sucedeu a Pio XII, João XXIII promoveu Montini para o Sacro Colégio,pondo-o no topo da lista. Quando o Concílio Vaticano II começou, Montini foi o únicoprelado observador que foi instalado no Palácio do Vaticano. Parece que, emboradescrevesse Montini como “Amletico”, uma figura hamletiana, incapaz de tomardecisões, João XXIII percebeu, contudo, que ele seria provavelmente o seu sucessor.

O cinzento Paulo VI era de estatura mediana e constituição frágil, rosto pálido e olhosazulados de nortenho — olhos que, à medida que os anos passavam e a ansiedadecrescia, se começaram a tornar turvos de dor.

Uma das suas prioridades foi alargar a comissão para o controle da natalidade. Em1964 já era constituída por mais de sessenta elementos, um terço dos quais erampadres e os restantes, leigos. Seria mais tarde alargada a dezasseis cardeais e bispos.

Para consternação da Cúria, Paulo não fez sair os leigos. Seria que ele ia seguir ospassos de João XXIII? Para os cardeais da Cúria a única consolação era que o grossodos teólogos que ele escolheu eram ultra-conservadores. O horror instalou-se quandoos três teólogos liberais começaram a fazer “convertidos”. Discutiram-se livrementenovas soluções, abandonaram-se velhas posições. Num espaço de tempoespantosamente curto todos os leigos ficaram convencidos — e isto era crucial - de quenão havia nenhuma diferença moral entre o método de determinação dos períodosseguros pelas temperaturas e, digamos, um preservativo. O facto de um casal terrelações de maneira a evitar que o sémen e o óvulo se encontrassem era, segundo osprincípios tradicionais, um pecado grave. Revelava uma intenção deliberada de exprimiro amor apenas pelo amor e de ter prazer só pelo prazer. Antes de Pio XII, isto eraconsiderado uma forma de masturbação mútua. Ao permitir que se usasse o períodoseguro como método de controle da natalidade, Pio XII abandonou implicitamente aideia da procriação como objectivo único de todos e cada um dos actos sexuais.Admitindo que a doutrina em vigor era uma embrulhada, a opção tinha certamente deser esta: ou condenar simultaneamente a contracepção e o período infértil, aquela comobarreira espacial e este como barreira temporal, ou permitir ambos.

Mais surpreendente do que a conversão dos leigos foi o facto de quatro quintos dosteólogos da comissão terem ficado convencidos. Longe de ser impossível, elesconsideraram mesmo que a mudança era imperativa. Todas as áreas da investigação— a teologia, a história, a demografia — lhes apontavam um único caminho: umamudança radical. Quando os rumores destas tendências começaram a circular peloVaticano, o desânimo e o desespero instalaram-se na velha guarda e envolveram SuaSantidade. Este fez saber que ia retirar ao Concílio a competência para tratar a questão

Page 262: Vigde cristo

262

da contracepção. Era uma questão demasiado controversa para ser tratada perante omundo e demasiado dolorosa para ser debatida na presença de não católicos. Elepróprio tomaria em mãos as conclusões da Comissão, reflectiria sobre elas e teria aúltima palavra.

Foi uma decisão surpreendente vista à luz de tudo aquilo que o Concílio tinhaaprendido com o Papa João XXIII em relação à honestidade e transparência; de comoaprendemos uns com os outros; de como a Igreja deve ser um collegium de amor efraternidade.

Foi este o pecado original do Concílio. Dele derivaram todos os males que viriam aafligir a Igreja Católica nos anos seguintes. Já nessa altura, alguns dos prelados tiveramo discernimento bastante para ver que o Concílio Vaticano II já tinha regressado àpostura básica do Vaticano I. O papa era o único bispo de toda a Cristandade; osrestantes eram, quando muito, apenas seus funcionários.

Assim, e uma vez mais, a Igreja Católica adoptou a atitude pós-1870 do “il Papa éque sabe”. O Catolicismo, com um concílio exactamente em meio das suasdeliberações, teria de ficar à espera — com esperança? com apreensão? — que o papalhe dissesse o que pensar. Era uma coisa tão absurda como Niceia ou Constança seterem realizado para discutir a divindade de Cristo e, com todos os bispos reunidos, lhesdissessem que o Papa ia resolver a questão sozinho.

O Padre F. X. Murphy, antes mesmo de Paulo divulgar a sua decisão em 1968,escreveu:

A falta de envolvimento explícito da hierarquia na discussão [sobre acontracepção] é pouco menos que criminosa. Deixar o fardo apenasnas mãos do Papa não parece correcto nem conveniente, naspresentes circunstâncias.

Os bispos cederam. Aceitaram a opinião do papa e da Cúria de que, mesmo no casode as exigências sobre a contracepção serem rejeitadas pelo Concílio, o mundo poderiaver que um grande número de bispos estava a favor dela. E isso seria mau para aimagem do Catolicismo.

Paulo considerava-se superior a um concílio. Era prerrogativa sua agir da maneiraque achasse melhor. Proibiu os bispos, que tinham vindo de todos os cantos do mundopara repartir a sua sabedoria colectiva, de exprimir as suas convicções e as dos seusrebanhos. Os bispos mais progressistas, já conhecedores, possivelmente, da tendênciadentro da comissão da contracepção, pensaram que o papa não teria outro remédiosenão ceder. À luz da História, isto foi um erro enorme pelo qual devem serresponsabilizados. A falta de contestação da sua parte deve enfileirar com a dos bisposdissidentes no Concílio Vaticano I na votação da infalibilidade papal, mesmo quando assuas consciências lhes diziam o contrário. Mas alguns bispos disseram mesmo aquiloque pensavam, permitindo assim que o mundo vislumbrasse o que poderia teracontecido, não tivesse o papa vetado a discussão livre.

Uma revolta menor

Os dois dias mais explosivos do Concílio foram 29 e 30 de Outubro de 1964.Estavam os padres a debater “A Igreja no Mundo Moderno” quando a câmara ficouelectrizada com as intervenções de três bispos.

Page 263: Vigde cristo

263

Primeiro, o Cardeal Léger, de Montreal. A sua ideia era que o casamento sem filhosnão se devia relacionar com o acto sexual individualmente considerado, mas com ocasamento como um todo. O amor, insistia, devia ser visto como um fim em si mesmo, enão como estando ao serviço de qualquer outro fim, como por exemplo a fecundidade.«Caso contrário, este medo em relação ao amor conjugal, que há tanto tempo paralisa anossa teologia, poderá persistir».

Qualquer leigo casado consideraria isto como um dado adquirido. Mas, vindo de umprelado da Igreja Romana, cuja hierarquia, toda ela, é celibatária, tinha um sabororiginal.

A seguir foi o Cardeal belga Suenens. Exigiu que a doutrina clássica sobre acontracepção fosse reanalisada à luz da ciência moderna. Em palavras que desdeentão têm perseguido a Igreja Romana, disse ele: «Peço-vos, meus bispos irmãos,evitemos um novo “Caso Galileu”. Para a Igreja, um já chega».

Nem mesmo Suenens tinha a potência de fogo dos oitenta e sete anos do PatriarcaMaximos IV Saigh, que exprimiu a preocupação dos prelados liberais de que a Igrejaque ele amava e a que tinha dedicado a sua vida estava à beira do desastre.

Este é um problema urgente porque está na raiz de uma grande criseda consciência católica. Há aqui a questão de um hiato entre a doutrinaoficial da Igreja e a prática da imensa maioria dos casais cristãos. Aautoridade da Igreja foi posta em causa em grande escala. Os fiéisvêem-se obrigados a viver em conflito com a lei da Igreja, afastadosdos sacramentos, em angústia constante, incapazes de encontrar umasolução viável entre dois imperativos contraditórios: a consciência e avida conjugal normal.

Segundo o patriarca, o Concílio tinha de apresentar simplesmente uma respostaprática; era seu dever como pastores que eram. Ele devia saber que, considerando oveto de Paulo à discussão, era culpado de desobediência. Mas, já próximo do fim deuma longa vida, compreendeu que o seu primeiro dever era para com Deus, a suaconsciência e o seu rebanho. «Veneráveis padres», apelou ele, «atentai no Senhor quemorreu e se ergueu de novo para salvação dos homens, atentai na crise de consciênciarealmente triste dos nossos fiéis e tende a coragem de atacar o problema sempreconceitos».

Clamava por uma franca revisão da posição oficial à luz da teologia e da ciênciamoderna. Punha de lado a distinção entre o objectivo “primário” do casamento (aprocriação) e os objectivos secundários (o amor e o companheirismo dos membros docasal). Com todos os bispos na sala apinhada sentados agora na ponta das cadeiras,Maximos disse:

Não temos nós o direito de perguntar se certas posições não são oresultado de ideias ultrapassadas e, talvez, de uma psicose decelibatário da parte daqueles que não estão familiarizados com estesector da vida? Não estamos nós inconscientemente a estabeleceruma concepção maniqueísta do homem e do mundo, em que ostrabalhos da carne, impuros em si mesmos, só são tolerados em vistados filhos? Será que a rectidão exterior e biológica de um acto é oúnico critério da moralidade, independentemente da vida da família, doseu ambiente, conjugal e moral, e dos sérios imperativos da prudênciaque devem ser a regra básica de toda a actividade humana?

Page 264: Vigde cristo

264

Nestas curtas observações, o patriarca levantou todas as questões que viriam aperseguir a Igreja Católica nas gerações seguintes e que provavelmente continuarão apersegui-la no próximo século. A distinção em que a oposição ao controle da natalidadese baseava, os objectivos primários e secundários do casamento, não é bíblica. Foi omedo do corpo que fez levantar a questão, disse ele, um ódio quase maniqueísta aocorpo, reforçado por uma psicose de celibato, que faz da procriação a única justificaçãopara o sexo. Esta exigência celibatária de mais bebés fazia-se sem atenção àsobrigações dos membros da família. Ceder a estas exigências, lembrou o patriarca,seria negar uma virtude cardeal, nomeadamente, a prudência, pela qual toda amoralidade se deve avaliar. E não há provas de que Jesus apregoasse a imprudência.Depois, Maximos disse que, em vez de um critério moral, se estava a usar de umcritério biológico como base da moralidade sexual.

Mas ele ainda não tinha acabado. Não é evidente, perguntou, que a Igreja tinhaexcluído durante demasiado tempo os especialistas no campo do casamento,nomeadamente, proeminentes cristãos casados? Além disso, por que é que o Concílioandava a louvar os nossos irmãos separados e, ao mesmo tempo, ignorava a suaexperiência quer como pessoas casadas, quer como igrejas? Isto não é um problemacatólico, mas um problema da humanidade. E concluiu:

Abramos os olhos e sejamos práticos. Vejamos as coisas como elassão e não como gostaríamos que fossem. De outra maneira,arriscamo-nos a pregar no deserto. O que está em causa é o futuro damissão da Igreja no mundo.

Com esta nota dramática, o ancião sentou-se no meio de fortes aplausos que omoderador logo abafou.

Era agora a vez de outro corajoso homem de idade, o Cardeal Alfredo Ottavianni, daregião Trastevere de Roma, Grande Inquisidor encarregado da Casa Papal da Esquina,e que tem sido descrito como um homem insensível, o que está longe da verdade. Erasimplesmente um homem extremamente conservador. Desde a sua brilhante juventudeque este conservadorismo o levara paradoxalmente a defender uma abordagem liberalda dissolução do casamento. O Vigário de Cristo, defendia ele, tinha um tal poder quepodia dissolver muito mais casamentos do que até então se pensara. Nesta manhã deoutono ele estava com uma disposição soturna.

Havia no texto de “A Igreja no Mundo Moderno” qualquer coisa que o estava aincomodar. O seu improviso traiu a profundidade da sua preocupação. Não era ele oúnico membro da Cúria que pensava que os fundamentos da fé estavam a mudar.Numa voz trémula e em crescendo, disse: «Não estou satisfeito com o texto quando dizque os casais podem decidir por si próprios o número de filhos que querem ter. Nuncase ouviu uma coisa destas na Igreja».

Isto era uma confissão surpreendente deste zeloso guardião da fé católica, tendo emvista aquilo que finalmente foi aprovado pelo Concílio. Os padres aprovaram a“paternidade responsável“, com a primeira implicação de sempre por parte doCatolicismo de que ter um filho podia ser um acto irresponsável, isto é, pecado. Poroutro lado, Ottaviani sabia que Pio XII se tinha referido ao “planeamento familiar“ comose fosse uma maquinação diabólica. Assim, uma ideia de que Ottaviani confessavanunca ter ouvido falar, tornava-se parte essencial da moralidade católica. A suaoposição, nascida da “ignorância“, sugeria que se algum teólogo tivesse proposto essaideia perante o Concilio, ele, como responsável do Santo Ofício, tê-la-ia condenado. Isto

Page 265: Vigde cristo

265

levantava uma questão: até que ponto é que o Santo Ofício representa o espírito daIgreja? E se os “guardiões da fé” estiverem desfasados do resto da Igreja? E, se o papaconfiava no seu conselho, que esperança havia de uma solução católica para oproblema do controle da natalidade?

Menos de dois dias depois, às 11:15 de sexta-feira, dia 30 de Outubro, numa alturaem que muita coisa havia ainda para dizer sobre a contracepção, o Cardeal Agagianianfez a chamada para uma votação final de pé. Alguns bispos encontravam-se no bar, eos que estavam na sala, em grande número, o que era pouco vulgar, permaneceramsentados. Aparentemente alheio a este facto, Agagianian declarou a moção aprovada.

Foi esta a última vez que os bispos católicos puderam entregar-se a um debate livresobre este assunto, o mais importante que está a afectar a Igreja. Depois, os bispos,como as mulheres, foram mandados “calar na igreja”. Tanto quanto se sabe, não houvequalquer contestação à decisão do papa de reservar a questão para si. Mesmo oCardeal Suenens disse numa conferência de imprensa: «Os métodos a ser seguidosnestes estudos [sobre o controle da natalidade] teriam de ser submetidos ao papa ejulgados pela sua suprema autoridade».

Muitos periti, especialistas em teologia, acharam que isto era difícil de cumprir. Se opapa havia de decidir sobre o assunto ex-cathedra, teria primeiro de examinar empormenor o espírito da Igreja. E ele não tinha feito tal. Pelo contrário, tinha suprimido oexame ao mais alto nível de um concílio. Por outro lado, se se pronunciasse, mas nãoex-cathedra, a sua decisão, embora autorizada, não poderia impor o tipo desancionamento que desse a questão por encerrada de uma vez por todas. Esteresultado podia ser pior do que o primeiro.

Dificilmente se pode negar que os bispos faltaram ao desafio de Maximos. Em nomede Cristo crucificado e ressuscitado, deviam ter-se apresentado com uma soluçãoprática; sem ela, a missão da Igreja no mundo ficou em perigo.

No dia 25 de Novembro, um mês depois do explosivo debate fracassado, o papaenviou cinco modi ou emendas ao texto sobre o casamento no documento sobre “AIgreja no Mundo Moderno”. Estas iriam alterar o texto depois de aprovado por doisterços do Concílio. A Comissão Conciliar ficou irritada. O Cardeal Léger ergueu o seuprotesto dizendo que se tratava de uma infracção às regras estabelecidas por JoãoXXIII e pelo próprio Papa Paulo. A isto respondeu o teólogo do papa, o CardealDominicano irlandês Michael Browne dizendo que o papa já se pronunciara e portanto oassunto estava encerrado. O que ele pretendia era uma clara reafirmação da EncíclicaCasti connubii. Quando a Comissão recusou, Ottaviani teve de dizer ao surpreendidopapa que uma grande maioria da Comissão tinha dito Não. Outro cardeal, Garrone,informou francamente o papa de que andava a brincar com o fogo. Primeiro, tinhavetado o direito dos padres a discutir o controle da natalidade; e agora tencionava imporunilateralmente a sua própria solução e mascará-la de conciliar! Conseguiu-se umasolução de compromisso. As emendas deviam ser aceites, mas não textualmente e nãohaveria nenhuma repetição da Casti connubii.

Estava armada a ratoeira. E Paulo VI, um homem generoso, embora indeciso,preparava-se para cair nela. Ou, pelo menos, para pensar se o devia fazer.

Hamlet lança-se ao trabalho

Paulo via a questão que enfrentava como a mais grave da história da Igreja. E disseisto mesmo numa declaração datada de 23 de Junho de 1964. Seria ele a tomar a

Page 266: Vigde cristo

266

decisão final. «Mas entretanto Nós dizemos francamente que até agora Nós não temosmotivos suficientes para considerarmos desactualizadas e consequentemente nãovinculativas as normas estabelecidas por Pio XII a este respeito. Portanto, elas devemser consideradas válidas, pelo menos até que Nós nos sintamos obrigados emconsciência a alterá-las». Para muitos comentadores, o seu espírito parecia maisvacilante do que fechado à mudança.

Na verdade, no seu magnífico discurso sobre a paz, nas Nações Unidas, em 4 deOutubro de 1965, disse: «É preciso que vos empenhais em multiplicar o pão de modoque este chegue para as mesas da humanidade, em vez de defender um controleartificial da natalidade, que seria irracional, para diminuir o número dos convidados parao banquete da vida». A alternativa simplista — pão ou controle da natalidade — era demau agouro para a Igreja. Por outro lado, nesse mesmo dia, o diário italiano Corriere dela Sera publicava uma entrevista com o papa na qual o seu hamletianismo parecia ter-se agravado.

O mundo interroga-se sobre o que Nós pensamos e Nós temos de daruma resposta. Mas qual? Nunca a Igreja se confrontou com um talproblema na sua história. É uma estranha questão para ser discutidapor homens da Igreja, humanamente embaraçosa mesmo. Ascomissões estão a trabalhar e os relatórios amontoam-se. Está aestudar-se muito; mas Nós temos de tomar uma decisão. Ela é deNossa exclusiva responsabilidade. Decidir não é tão fácil como estudar.Mas Nós temos de dizer qualquer coisa. O quê? […] Deus temrealmente de Nos iluminar.

A humildade perante tão momentosa tarefa era compreensível. Tal como todos osclérigos, era celibatário de toda a vida, sem conhecimento directo e pouca percepçãoimaginativa do assunto que tinha de julgar. Admite mesmo que a questão era«embaraçosa». Estava quase com setenta anos, gasto e cansado, e com umapreocupação por toda a Igreja. Todos os dias era solicitado a resolver disputas, asancionar milhares de documentos, a receber dignitários e embaixadores estrangeiros.E em cima de tudo isto, estava uma “montanha” de relatórios sobre o controle danatalidade, a questão mais preocupante que um papa moderno já tinha enfrentado.Para os observadores independentes, a situação estava à beira de se tornar uma farsa.Uma instituição grande e resistente estava em ebulição por causa de uma questão quea maioria das pessoas dentro e fora da Igreja já tinha resolvido há séculos. 700 milhõesde pessoas viam neste velho santo celibatário encasulado a concentração da sabedoriasobre o sexo e o casamento.

Paulo era um homem intelectualmente capaz, especialmente no seu campo deeleição, a diplomacia; mas era preciso génio para tratar de um problema com cujaresolução ele resolvera arcar sozinho. Com a ajuda dos bispos no Concílio podia teradoptado uma atitude mais progressista, como acontecera com o Judaísmo, com aliberdade de culto, etc.. Mas dispensara a sabedoria colectiva dos bispos e, qual Atlas,tinha tomado o mundo sobre os ombros. Isto era heróico, mas seria prudente? Os seusúnicos conselheiros mais chegados eram agora membros da Cúria, como Ottaviani eBrowne, aqueles cujas opiniões tinham sido rejeitadas pelas comissões conciliares epelos padres quando se chegou à votação. O Sumo Pontífice estava nas mãos da velhaguarda que, se isso estivesse no seu poder, nunca teria promovido concílio nenhum.

Page 267: Vigde cristo

267

E ao falar para os delegados da Sociedade Italiana de Obstetrícia e Ginecologia, em29 de Outubro de 1966, Paulo em nada contribuiu para aumentar a confiança numa suadecisão final. Num desempenho digno de Salvador Dali, disse ele:

Para Nós, a Mulher é o reflexo de uma beleza que a transcende, é osinal de uma bondade que Nos parece infinita, é a imagem reflectida dohomem ideal tal como Deus o concebeu à Sua imagem e semelhança.Para Nós, a Mulher é uma visão de pureza virginal que renova os maiselevados sentimentos emocionais do coração humano. […] Para Nós,ela é a criatura mais dócil para a formação. […] Portanto, a cantar, arezar, a anelar, a chorar, ela parece convergir naturalmente para umaúnica figura, imaculada e pesarosa, em que uma Mulher privilegiada,abençoada entre todas, estava destinada a tornar-se, a Virgem Mãe deCristo, Maria.

Não há registos que nos elucidem sobre se os ginecologistas reconheceram nestaspalavras a mulher grávida média que os procura no consultório. É um facto que sempreque um documento papal se refere conjuntamente às mulheres e a Maria, a causa dasmulheres no mundo moderno tende a sofrer. «Como vedes, meus senhores», dissePaulo, «é neste plano que Nós conhecemos a Mulher. […] Não duvideis. Isto fornecer-vos-á matéria para novos pensamentos nobres e bons e vós acrescentareis dignidade emérito à vossa profissão».

A seguir, o pontífice virou-se para o controle da natalidade. O facto de a venda decontraceptivos ser então ilegal em Itália e as leis da família favorecerem as famíliasgrandes, muito grandes mesmo, não ajudava nada. Tinham passado já dois anos sobreo Concílio e ele continuava a estudar, disse, os dados científicos e demográficos, bemcomo as implicações doutrinais e pastorais. Nunca nenhum papa estivera tão rodeadode papeis desde que Sisto V fizera sozinho a revisão da Bíblia. Paulo falou da suacomissão como sendo «alargada, variada e extremamente competente».

«Esta comissão […] já concluiu os seus grandes trabalhos e já Nos apresentou assuas conclusões». Ao reconhecimento da sua extrema competência seguiu-se umacrescento tipicamente hamletiano: «Parece-Nos, porém, que essas conclusões nãopodem ser consideradas definitivas». O relatório tinha graves implicações cujaresoçução era responsabilidade exclusivamente sua. Entretanto, lembrou-lhes, asnormas de comportamento ensinadas pela Igreja até então ainda em vigor.

Elas não podem ser consideradas não vinculativas como se omagistério da Igreja estivesse presentemente num estado de dúvida,quando está, isso sim, num momento de estudo e reflexão de matériasque lhe foram presentes como dignas da mais atenta ponderação.

Os comentadores ficaram intrigados. Tinham passado já vários anos desde que JoãoXXIII tinha criado a comissão. Paulo tinha-a alargado e instado a que tratasse doassunto imediatamente. Se não havia dúvidas, por que é que, afinal, era precisa umacomissão? E por que não simplesmente repetir, nesta fase tardia, a doutrina dos seusantecessores, como a Cúria desejava?

Ao mais baixo nível, começava a desenrolar-se uma revolução silenciosa e durável,inédita na história do Catolicismo. Muitos leigos, encorajados pelos seus párocos,começavam a pensar pela própria cabeça. Pensavam que não havia explicação para a

Page 268: Vigde cristo

268

interminável demora do papa, a não ser uma dúvida genuína; entretanto tinhamresolvido a questão em sua própria consciência. O método do período seguro —conhecido como a Roleta Vaticana — era inconveniente e verdadeiramente artificial.Chegou mesmo a frustar os cálculos de matemáticos superiores, assistidos porcomputadores, dando origem a alguns gracejos: «O período seguro só é permitidoporque o papa sabe que não é seguro» e «O único período seguro para certas mulheresé entre os sessenta e noventa anos de idade».

Do ponto de vista médico, o método funcionava bem para aqueles que menosprecisavam dele. Para uma rapariga solteira é relativamente fácil determinar os seusperíodos estéreis. Para uma mãe de família é praticamente impossível. Ela passaprovavelmente as noites a saltar da cama para tratar dos filhos; está sujeita a apanharos germes dos filhos, o que lhe faz aumentar a temperatura e interfere nos seuscálculos. O método também é inútil durante a aleitação quando a menstruação cessamas ela continua a poder conceber. Finalmente, o método do período seguro é inútil nocaso da mulher que se aproxima da menopausa, altura em que os seus períodos setornam desesperadamente irregulares.

A falta de confiança pode provocar as suas próprias ansiedades, ou mesmo umaamargura e um sentimento de revolta quando, a despeito de todas as precauções ométodo falha. Algumas mulheres acham-no tão artificial, tão contrário ao verdadeiroamor, que preferem a abstinência total. Outras, quando o método falha e ficam grávidas,rejubilam com a ideia de um aborto. São estas algumas das fatídicas consequências do“método natural“ de controlo da natalidade.

Para aquelas mulheres que têm de evitar a gravidez a todo o custo — devido aproblemas de saúde próprios, da família, do marido ou de um filho deficiente — operíodo seguro torna-se um pesadelo. Isto acontece quando elas têm duas ovulaçõesnum mês ou a menstruação não aparece durante anos devido a um parto seguido deamamentação e, depois, de outra gravidez.

Como é que estas mulheres podem explicar aos seus párocos que, mesmo admitindoque o sexo durante o período seguro seja natural, o casamento em si mesmo édesesperadamente artificial? No princípio dos anos sessenta já muitos casaiscomeçavam a interrogar-se. Estará certo deixar o clero na sua ignorância e na suaarrogância? A ignorância das muitas facetas do sexo e do caos dos filhos, e aarrogância que os leva à convicção de que a ignorância é a melhor base para pontificarsobre o casamento? Como escrevia uma mulher em The Experience of Marriage (1964):«Por que é que os padres adoptam um ponto de vista tão pouco complacente emrelação aos problemas que os pais enfrentam? Provavelmente porque não são casados.[…] Talvez baseiem muitas das suas ideias sobre a vida familiar nas recordações dassuas famílias, no meio das quais viveram como crianças e não como adultos que tinhamde se preocupar com os problemas. As responsabilidades da paternidade têm de servividas para se poderem compreender integralmente».

Nos anos imediatamente posteriores ao Concílio Vaticano II muitos casais,antecipando a mudança, tomaram as suas próprias decisões. Não estavam dispostos acorrer o risco de sobrecarregar a família ou de provocar o gradual afastamento um dooutro por não poderem exprimir o seu amor ou por terem de o fazer segundo os ditamesdo calendário. A abstinência do sexo antes do casamento era uma coisa; a abstinênciadepois do casamento, outra completamente diferente. Como explicar aos padres que osexo não era crua paixão, mas sim a realização do amor, às vezes essencial numa crisefamiliar ou como meio de reconciliação quando o casal tinha uma zanga? Absterem-secomo se fossem celibatários minaria os fundamentos físicos do casamento e roubar-lhes-ia um direito fundamental. Usar contraceptivos pouco mais “anti-natural” era do que

Page 269: Vigde cristo

269

um casamento sem sexo ou com sexo destruído pela ansiedade. Se os clérigospensavam que era “natural“ os jovens casais apaixonados dormirem juntos duranteanos sem exprimirem esse amor integralmente, que experimentassem.

Nascia assim uma geração de casais que era uma espécie de cunha a separar oscatólicos de antes e depois da comissão para o controle da natalidade. Mesmo o cleroconservador apontava o dedo ao Papa Paulo pelo caos da Igreja desde o ConcílioVaticano II.

Em vista da sua tentativa de impor a Casti connubii ao Concílio, é necessário tomaras palavras de Paulo pelo seu valor facial. Pessoalmente, ele nunca duvidou da doutrina“tradicional” sobre a contracepção. Todos os métodos restritivos eram condenáveis.Podia haver razões terapêuticas para tomar a Pílula — por exemplo, para regular o ciclomenstrual — mas não havia justificação nenhuma para a usar como contraceptivo.Talvez ele tivesse a esperança de que a comissão o apoiasse nesta matéria, lhefornecesse argumentos sólidos da “lei natural” que todos os homens de boa vontadepudessem aceitar. As suas esperanças goraram-se.

Uma esmagadora maioria da Comissão manifestou-se contra ele. Os seus quatroteólogos conservadores confessaram que não conseguiam justificar a velha posiçãocom base exclusivamente na razão ou na lei natural. Era necessário o apoio daautoridade e da revelação.

Em resumo: depois de anos de estudo por aquele grupo de especialistas, o papaencontrou-se de novo no ponto de partida. Não só a Comissão lhe negou o seu apoio,como ainda por cima os seus membros conservadores vieram dizer que não haviaargumentos convincentes na fundamentação tradicional da proibição.

Ottaviani, embora co-presidente da Comissão, recusou-se a apresentar ao PapaPaulo o relatório da maioria. Os quatro teólogos conservadores radicais apresentaramparticularmente ao pontífice um sumário.

Os dois relatórios

De acordo com o relatório da maioria, dizer que a contracepção nem sempre estáerrada é uma “evolução“ da doutrina católica à luz de circunstâncias que se alteraram.Uma vez que a doutrina tradicional dizia que a contracepção é intrinsecamentecondenável e nenhuma circunstância pode alterar esse facto essencial, seria pedirmuito a um papa indeciso que aceitasse o que nele se dizia.

A maneira como o relatório está impregnado de uma filosofia personalista tambémtornava a sua aceitação improvável. O relatório falava de “o princípio da totalidade”. Afaculdade do sexo não deve ser olhada como uma pessoa; é uma parte da pessoa. E apessoa é, no casamento, uma das partes de um casal e um membro de uma família.Daí que a moralidade da relação sexual não seja avaliada pelo exame do exercício deuma faculdade, nem na base de actos sexuais isolados. O casamento deve ser olhadocomo um todo. É o casamento assim considerado que pode estar ou não de acordocom a lei de Deus, isto é, ser fecundo ou estéril.

A maioria também se refere à doutrina do Concílio que afirma o direito dos casais dedecidirem por si próprios, em conformidade com Deus, sobre o número de filhos quedesejam ter. A paternidade responsável era uma condição da castidade conjugal. Comoconseguir hoje tal paternidade? Usando métodos modernos, um dos quais, primeiropermitido por Pio XII, é o aproveitamento do período infértil. O relatório repete aafirmação do Concílio — nunca antes aceite pela Igreja — de que a ausênciaprolongada de relações no casamento pode levar à infidelidade.

Page 270: Vigde cristo

270

A comissão concluiu que, uma vez que o sexo já não é visto primária einvariavelmente como gerador de filhos e numa altura em que a sexualidade é vista, nocontexto do casamento, como fazer amor e nem sempre como fazer bebés, não háqualquer objecção aos contraceptivos. Os valores morais e espirituais, e não osbiológicos, é que devem ditar os comportamentos.

O documento, aqui apenas resumido, estava bem fundamentado, mas para o PapaPaulo não tinha de modo nenhum a força argumentativa do relatório da minoria.

«Será que a contracepção é sempre um mal?» O resumo da minoria — que nunca foium relatório oficial — ia direito ao alvo. Com a enganosa lucidez de um textoescolástico, os autores analisam cada um dos termos da questão.

Contracepção: qualquer utilização do casamento em cujo exercício se priva o acto,por intervenção humana, do seu natural poder de procriar. Sempre um mal: qualquercoisa que nunca se pode justificar por qualquer motivo ou circunstância. É sempre ummal porque o é intrinsecamente, por via da lei natural. Não é um mal por ser proibido.Depois o resumo pergunta: «Que resposta é que a Igreja tem dado a esta questão atéagora? Nos documentos do magistério e em toda a história da doutrina sobre o assuntoencontra-se uma resposta afirmativa constante e perene».

O resumo cita as fontes. Significativamente não recua para além da encíclica de PioIX Casta connubii de 1930. Seria isto suficiente para os seus fins na medida em que aencíclica falava da “ininterrupta tradição cristã”? Havia outra razão para não ir maislonge no recuo até ao passado que será referida mais adiante.

De acordo com Pio XI, a contracepção é uma «violação criminosa».

Não há razão nenhuma, por muito séria que seja, para que qualquercoisa intrinsecamente contra a natureza se possa tornar conforme aela e moralmente boa. Como, portanto, o acto conjugal se destinapor natureza à procriação, aqueles que ao praticá-lo frustemdeliberadamente o seu poder e fins naturais pecam contra anatureza e cometem um acção vergonhosa e intrinsecamente imoral.

«A Majestade Divina», continua Pio, «detesta esse crime indizível com a maisprofunda aversão e por vezes pune-a com a morte». A ideia de uma divindade pronta adar a morte por causa da contracepção é realmente assustadora.

Depois Pio XI falava da Igreja Católica que «se impunha no meio da ruína moral quea rodeava para evitar que a castidade na união nupcial fosse conspurcada por esta sujamancha». Aqueles que «praticam» a contracepção «são culpados de um gravepecado».

Foi uma performance de virtuosismo na melhor tradição da ópera italiana, motivadapela Conferência Lambeth, que no princípio de 1930 tinha sancionado o controleartificial da natalidade. Em 1951, Pio XII ainda se opunha àquilo que era conhecido noscírculos católicos como “O Descarrilamento de Lambeth“. «Este preceito [contra acontracepção]», disse Pio XII, «é tão válido hoje como o era ontem e será amanhã esempre, porque não implica um preceito da lei humana, mas é antes a expressão deuma lei que é natural e divina».

Depois de citarem Pio XI e Pio XII, os autores do resumo fazem agora o maisconstrangedor apelo ao Papa Paulo. Durante séculos, e sem uma única excepção, aIgreja condenou a contracepção. Se mudar de ideias estará não só a negar-se a siprópria e à sua afirmação de que ensina uma verdade válida para todos os tempos; terátambém de se submeter a qualquer coisa de muito mais humilhante.

Page 271: Vigde cristo

271

Se a contracepção fosse declarada como não intrinsecamente ummal, teria de se reconhecer honestamente que o Espírito Santo em1930, em 1951 e 1958 [datas de declarações papais] apoiou asIgrejas Protestantes e que durante meio século Pio XI, Pio XII e umagrande parte da hierarquia católica não protestou contra um erromuito grave, um erro extremamente pernicioso para as almas;porque assim estaria a sugerir-se que eles condenaram muitoimprudentemente sob pena de castigo eterno milhares e milhares deactos humanos que agora eram aceites.

Seria difícil encontrar na literatura católica argumento mais brilhante. Eles estavampraticamente a desafiar o Papa Paulo a dizer que afinal a Reforma foi uma coisa boa eque os Protestantes, com um julgamento particular, tinham feito melhor do que oCatolicismo com os papas.

Se o papa agora permitir a contracepção, isso significará o fim da autoridade papal.Seria então melhor abdicar. Destruirá a sua própria autoridade bem como a dos seusantecessores; admitirá tacitamente que a Igreja Anglicana era mais inspirada do que aRomana; concordará que muitos católicos foram condenados por fazerem aquilo queele, Paulo VI, irá proclamar como não sendo pecado nenhum — ou melhor, como sendoum acto de virtude matrimonial. Toda aquela angústia, todos os sacrifícios dos católicosleais e obedientes, todas aquelas almas perdidas, por causa de um erro papal?

Apesar de brilhante, deve acrescentar-se aqui que o argumento não é inteiramentehonesto. Os autores acentuavam a constância da tradição no que respeita ao controleda natalidade, mas não diziam que esta “tradição” se baseava numa visão do sexo quea Igreja já tinha decisivamente rejeitado. Não recuaram para além de Pio XI paraconfirmarem os seus pontos de vista porque não podiam. Antes dele apenasencontrariam uma confirmação parcial. Durante mais de mil e quinhentos anos a Igrejaconcordou com uma visão do sexo que era agora abandonada.

Tinham, por exemplo, Pio XII do seu lado neste aspecto: Pio XII disse que acontracepção era sempre um erro. Mas também disse que o sexo no casamento é puroe sagrado. A primeira afirmação é da tradição, a segunda é totalmente contra ela. Se osautores tivessem apontado este desagradável facto, o Papa Paulo teria provavelmentecontinuado com a sua indecisão hamletiana até morrer.

O relatório resumido da minoria sugeria que se o papa fosse ceder ao controle danatalidade provocaria um efeito de dominó. Haveria imediatamente um clamor pelalegitimação do sexo antes do casamento, da masturbação, da esterilização, do divórcioe do aborto. Uma vez repudiado o objectivo primário do casamento, os teólogos liberaiscomeçariam a argumentar que o sexo fora do casamento era moralmente aceitável,desde que se usassem contraceptivos. Contudo, foi a atitude da minoria em relação àautoridade papal que mais impressionou o pontífice.

Depois de ler os dois relatórios, o papa compreendeu que a sua posição eraintolerável. Invadiu-o um enorme desânimo que nunca mais o abandonaria, emboraainda viesse a viver mais doze anos.

O seu dilema era: se dissesse Não à contracepção, levantaria uma enorme oposiçãoao papado dentro da Igreja; se dissesse Sim, do papado não ficaria pedra sobre pedra.Do papado tal como ele o entendia. Infelizmente, pouco tendo aprendido com o PapaJoão, continuava agarrado à noção medieval do papado que prevalecia desde GregórioVII.

Page 272: Vigde cristo

272

Todo o mundo andava intrigado com o que se estava a passar no Vaticano. Nuncauma encíclica foi aguardada com tanto interesse. Porém, Paulo levou ainda dois anos afinalizar o seu pensamento. Hamlet ainda tinha muitas leituras a fazer.

* * *

Havia para começar, o ataque de Pio XII à paternidade planeada, em 1958, quandose dirigiu às Associações Italianas para as Famílias Numerosas. As suas palavraspareceram então piedosos e de modo nenhum um arremedo. Disse o pontífice:

Sempre que se encontram famílias numerosas em grande número,elas apontam para um povo cristão física e moralmente saudável.[…] O bom senso sempre e em toda a parte olhou as famíliasnumerosas como sinal, prova e fonte de saúde física. […] A virtudefloresce espontaneamente nos lares onde sempre se ouve o chorode um bebé vindo do berço. […] Mal acaba uma série de alegresperegrinações à pia baptismal já uma outra começa para aconfirmação e a primeira comunhão. […] Mais casamentos, maisbaptizados, mais primeiras comunhões seguem-se uns aos outroscomo primaveras sempre renovadas. […] A sua [dos pais] juventudeparece nunca se desvanecer enquanto se mantém no lar a docefragrância de um berço, enquanto as paredes da casa ecoam asvozes prateadas dos filhos e dos netos.

O pontífice lembrou que os santos são oriundos de famílias numerosas. Bellarminotinha onze irmãos, Pio X, nove, Catarina de Siena, vinte e quatro. Mas é difícil deacreditar que mesmo em 1958 todas as “peregrinações” dos pais italianos à igrejafossem assim tão alegres.

Continuando a leitura de Pio XII, Paulo deve ter reparado que uma importanteprevisão sua de dez anos antes se tinha revelado falsa. As novas fontes de energia,dizia ele, hão-de garantir «a prosperidade para todos os habitantes da terra por muitotempo».

Paulo sabia que o mundo tinha mudado profundamente desde o optimismo dostempos de Pio. Entre os documentos que se amontoavam sobre a sua secretáriaestavam alguns fornecidos pelos demógrafos. Eram uma leitura sombria. A sentençabíblica “Multiplicai-vos e enchei a terra“ já tinha sido amplamente cumprida. Afecundidade humana é tremenda; tem de ser assim para garantir a sobrevivência emtempos de peste, guerra, mortalidade infantil elevada, morte precoce. Depois veio amoderna medicina e o cenário mudou rapidamente. Nos países desenvolvidos, amortalidade infantil é quase nula, os idosos morrem cada vez mais tarde. Mesmo entreos países em desenvolvimento, muita gente morria de fome enquanto a medicinagarantia a sobrevivência de gente que em épocas passadas teria morrido, um quartodeles antes do primeiro ano de vida e um terço dos restantes antes dos quarenta ecinco anos.

Isto implicava uma revisão radical das ideias sobre a procriação. Era verdadeiro paraas nações e também para as famílias que as constituíam.

A nível nacional, estimava-se que em França, se a mortalidade tivesse baixado semuma correspondente baixa da natalidade, o país teria agora uma população de 500

Page 273: Vigde cristo

273

milhões. A população da França e da Grã-Bretanha juntas podiam hoje igualar a daChina.

O Papa Paulo lera certamente os Dados sobre a População Mundial baseados emfontes das Nações Unidas e publicados pelo Population Reference Bureau ofWashington. As estatísticas mostravam que a população mundial estava a crescer 1,9por cento. Desde 1958, quando o alarme soou pela primeira vez, havia mais 500milhões de pessoas vivas; havia um total de 3.520 milhões de habitantes. Os 500milhões da Índia estavam a aumentar em 2,7 por cento; o Paquistão estava a tomar adianteira com 3,1 por cento. A América Latina vinha logo depois com 3 por cento. Oúltimo aumento significava que a população duplicaria em pouco mais de vinte e trêsanos. Os bairros de lata crescem mais do que os outros; os pobres são cada vez maispobres, os famintos cada vez mais famintos. No princípio dos anos 60 — muito antes daactual crise — não havia qualquer esperança para as nações com uma alta taxa decrescimento de virem a ter suficiente alimentação, educação, cuidados de saúde,habitação, lazer e, perigosamente, empregos. Nem subsídio de desemprego.

A contracepção nunca foi só por si a resposta para um problema tão vasto e tãocomplexo; mas sem ela não havia resposta possível. Se toda a gente, incluindo ospobres, continuasse a procriar em termos próximos do máximo biológico, naçõesinteiras ficariam reduzidas à mendicidade. A humanidade ao nível ou abaixo do nível desubsistência seria confrontada com os habituais flagelos: a doença e a guerra.

Nos anos 60, quando Paulo estava a escrever a encíclica, os povos da América doSul viviam em condições piores do que aquelas que os europeus foram obrigados asuportar nos dias mais negros da Revolução Industrial. Uma das maneiras de melhoraras condições era o aborto. Sabe-se que Paulo tinha sobre sua secretária relatóriosoficiais sobre quase todos os países da América do Sul. No Chile, segundo um censode 1967, uma em cada duas a três gravidezes era interrompida; durante anos, mais deum terço da mortalidade materna era causada pelo aborto. Na Colômbia 60 por centodos abortos ocorriam em mulheres já com sete ou mais gravidezes. O Uruguaiencimava a lista; as investigações mostravam uma taxa de 750 abortos em cada 1000gravidezes. Uma ética estritamente católica estava a levar a uma fertilidadedescontrolada, que, por sua vez, provocava um número maciço de abortos causadoresda morte de muitas mães.

A Índia, a maior democracia do mundo, já estava superpovoada; as restrições eramvitais. Uma adesão muito estreita à doutrina católica depressa teria destruído ademocracia na Índia. Se a China, só ela, adoptasse a doutrina católica, não haveriaqualquer esperança para a humanidade. Em 1965, um em cada quatro habitantes daterra era chinês. Os prelados católicos, como o Cardeal Heenan, de Westminster,argumentavam que poucos indianos e praticamente nenhum chinês eram católicos; dequalquer maneira não davam ouvidos ao papa. Mas não era este o ponto. Dificilmentese poderá dizer que qualquer doutrina que, se praticada generalizadamente destruiria oplaneta, tem a razão do seu lado. Além disso, a doutrina católica é supostamente parteda lei natural inscrita no coração dos homens. O resto do mundo bem podia agradecer aDeus por os chineses e os indianos não a lerem nos seus corações.

A única solução da Igreja para a sobre-povoamento era a total abstinência sexual oua limitação do sexo ao “período seguro“. Pedir aos governos, já à beira do desespero,para banirem a Pílula, os dispositivos intra-uterinos, os preservativos e substituí-los portermómetros e calendários, bem como fornecer um vasto exército de educadores paraassegurarem uma boa compreensão do método, era irrealista. Além disso, são ospobres, os que vivem nas barracas, os subnutridos — aqueles que mais precisam limitar

Page 274: Vigde cristo

274

o seu número — que acham a abstinência sexual intolerável e o período seguroimpossível.

Passando do nível nacional para o familiar, a doutrina católica proibia a contracepçãoem todos os casos. Deus entenderia, evidentemente, que algumas pessoas fossemtentadas até ao limite da sua resistência. Mas nunca para além dela. Com a graça deDeus, todos os casais podem agir de acordo com a doutrina da lei natural. Os casosdolorosos fazem más leis. Conquanto o Papa Paulo, devido à sua falta de experiênciapastoral, não tivesse tido conhecimento de tais casos pessoalmente, eles constavamdos dossiers que se encontravam sobre a sua secretária.

Um marido vive do subsídio de desemprego e sem qualquer perspectiva de emprego.Ele e a mulher vêem-se obrigados a viver com os pais desta — ou em instalaçõesmiseráveis alugadas ou num sótão de um bloco de apartamentos. Têm três filhos.Demais para as suas apertadas circunstâncias. Dizem-lhes que se devem abster desexo, o que pode significar absterem-se do amor e da compaixão, ou então utilizarem operíodo seguro. Todas as três crianças são fruto desse método. Deus providebit , Deusprovidenciará.

Depois de um acidente de viação, um homem fica incapacitado para toda a vida. Amulher trabalha para sustentar o casal; uma gravidez deixá-los-ia sem tostão. Deus…

Depois da sua sexta gravidez em sete anos, uma mulher acaba de sair de umhospital psiquiátrico. Receia desesperadamente outra gravidez. Deus…

O último filho de um casal nasceu mentalmente deficiente e exige toda a atenção damãe. Deus…

Uma mulher é avisada pelo seu médico de que mais uma gravidez afectariagravemente a sua saúde, poderia até matá-la. Ela já tem oito filhos. Deus…

Hoje, muitas mulheres não estão dispostas a arriscar-se a ter uma família numerosa.Não o desejam, nem se sentem espiritual nem emocionalmente capazes de lidar com talsituação. Deus…

Uma mulher teve trigémeos; outra, com drogas fertilizantes, teve seis gémeos.Ambas estão a ter muita dificuldade em gerir a situação. Deus providebit, Deusprovidenciará.

Em Setembro de 1967, o Presidente Carlos Lieras Restrepo, da Colômbia, um paísfirmemente católico, fez uma intervenção na Conferência Inter-Americana.

Visitei os mais pobres bairros de lata do país e recomendo estavisita às pessoas que analisam a população de um ponto de vistamoral. […] O que é que podemos dizer do frequente incesto, daexperiência sexual primitiva, do tratamento miserável dado àscrianças, da terrível proliferação da prostituição de ambos os sexos,do aborto frequente, das relações quase animalescas por causa dosexcessos do álcool?Consequentemente, não posso ficar sentado a analisar a moralidadeou imoralidade das práticas contraceptivas sem pensar ao mesmotempo nas condições imorais e muitas vezes criminosas que umsimples acto de concepção pode produzir com o decurso do tempo.

Um ano depois disto, o Papa Paulo deu por terminado o seu demorado estudo docontrole da natalidade. As sua conclusões eram tão inevitáveis como uma tragédiagrega. A sua origem remonta aos tempos do Papa Gregório VII e Pio IX. Quem deraque Sua Santidade tivesse ido viver nos bairros da lata da Colômbia enquanto tomava asua decisão.

Page 275: Vigde cristo

275

Uma pílula amarga

A Encíclica Humanae Vitae foi apresentada ao mundo em 25 de Julho de 1968. Aspalavras de abertura dão o tom do que viria a seguir: «O mais sério dever de transmitir avida humana […] ». A frase seguinte também contém a palavra “dever”.

Mas também faz um rapapé aos problemas modernos, como, por exemplo, que apopulação está a crescer mais depressa do que os recursos disponíveis. Faz uma breveanálise à ideia de que a vida sexual dos casais deve ser julgada moralmente e em todosos seus aspectos e não apenas em termos de órgãos biológicos e suas funções. O quedele se exige como pontífice, lembra, é uma nova reflexão, mais profunda, sobreprincípios morais básicos que subjazem ao casamento.

Esta reflexão nova e mais profunda acaba por ser: mudança nenhuma, seja ela qualfor, na doutrina da Igreja. Refere-se repetidamente a esta como “constante”. Não seapercebe do atraso com que esta doutrina “constante” ia entrar em cena.

Paulo sanciona o período infértil nos casos em que os casais sentem que nãoquerem mais filhos nessa altura ou por um período indeterminado. O aborto e aesterilização são ambos condenados.

Igualmente condenado é qualquer acto que, quer no momento darelação sexual, quer antes, quer depois, se destine especificamentea evitar a procriação — seja como um fim, seja como um meio. […]Nunca é legítimo, mesmo por razões as mais sérias, fazer o malpara que dele resulte o bem […] mesmo que a intenção seja a deproteger ou promover o bem-estar de um indivíduo, da família ou dasociedade em geral.

Pode morrer uma pessoa, uma família ou uma nação; mas usar preservativos é quenunca. Isto condiz com o famoso dito de Newton:

A Igreja sustenta que era melhor que o sol e a lua caíssem do céu,que a terra falhasse e que todos os muitos milhões que nela habitammorressem de fome em extrema agonia, do que uma só alma, nãodirei se perdesse, mas praticasse um único pecado venial, dissesseuma mentira intencional, embora não prejudicando ninguém, ouroubasse um miserável tostão sem justificação.

Para Paulo, qualquer utilização de contraceptivos não é, em si mesma, um pecadovenial. Embora não fale da sua gravidade, também não estava obviamente a suavizar adoutrina de Pio XI de que a contracepção é sempre um pecado mortal.

Portanto, impedir a concepção de um filho que irá nascer para a miséria e a fome ouque os médicos dizem estar condenado a ser um deficiente é pecado mortal. Impedir aconcepção quando ela, como admite Pio XII, poderia afectar gravemente a saúde damãe ou a sua morte, é pecado mortal. A única opção para o casal é levar uma vidacompletamente sem sexo; Deus providenciará, através da graça do matrimónio, a forçanecessária para levarem uma vida de celibato. Por mais dura que seja a situação dafamília, por mais doente que seja a mãe, a Igreja não pode aprovar nenhuma excepção.

Esta é uma doutrina extremista. O único paralelo — embora de modo nenhumextremista a este ponto - é a recusa das Testemunhas de Jeová da transfusão de

Page 276: Vigde cristo

276

sangue a uma criança moribunda. Para fundamentar a sua opinião o papa nãoconsegue apresentar um único texto bíblico específico. A proibição do divórcio, o poderdo papa de dissolver certos casamentos têm alguma justificação bíblica. A condenaçãoda contracepção não tem nenhuma.

Paulo cita várias vezes o Segundo Concílio Vaticano na Encíclica Humanae Vitae,muito embora tivesse proibido o Concílio de contribuir para a discussão que entãoassolava a Igreja. E mais: a Humanae Vitae fundamenta-se na (ou cai por terra por viada) distinção entre os objectivos primário e secundário do casamento, que o Concíliorecusou utilizar. A tentativa do papa de a incluir através dos seus modi foi rejeitada pelacomissão teológica.

«Deus», prossegue o papa, «ordenou sabiamente as leis da Natureza e a incidênciada fertilidade de tal maneira que os sucessivos nascimentos já são naturalmenteespaçados». Mesmo os católicos conservadores consideram isto de difícil aceitação. Àparte a sua habitual identificação das leis da Natureza (biológicas) com a lei natural(moral), o que é esta “sábia ordenação”, este “espaçamento natural” dos nascimentos?Com certeza que ele não quer dizer que se uma mulher conceber em Março não podeconceber em Abril, Maio ou Junho, etc., evitando assim o efeito de correiatransportadora de bebés a saírem todos os meses. E também não pode ignorar que,embora a ovulação só tenha lugar uma vez por mês, os nascimentos podem acontecerregularmente todos os anos — a não ser que se tomem precauções.

O facto é que nos animais o instinto sexual está essencialmente relacionado com apreservação da espécie. Esta a razão por que há as épocas de acasalamento. Pauloparece equiparar os humanos aos animais; o objectivo primeiro da sexualidade humanaé também a preservação da espécie, e a ele tudo o resto se deve subordinar. O serhumano é de facto bastante menos afortunado do que os animais porque não temépocas de acasalamento, os seus nascimentos não são naturalmente espaçados. Istodeixa a ideia de que no ser humano o sexo tem algo mais do que um significadopuramente procriador. Os seres humanos têm relações sexuais quando, por exemplo, amulher está grávida ou já está em período pós-menopausa. Por outras palavras, o sexotem no ser humano um significado muito mais vasto do que nos animais, mas qual eleé, o papa não é capaz de dizer, porque com o seu critério puramente biológico demoralidade equipara os humanos aos sub-humanos.

De facto, com “espaçamento natural” o papa apenas pode querer significar que oscasais têm a liberdade de adivinhar quando é que a ovulação ocorre e ter a esperançade despistar a natureza com termómetros e calendários. Mas se Deus fez com quefosse tão difícil despistar a natureza, também dificilmente se poderá chamar a isto uma“sábia ordenação” em nome da humanidade.

E o papa prossegue dizendo: «Nós cremos que os nossos contemporâneos estãoparticularmente aptos a compreender que esta doutrina está em harmonia com arazão». Escreve isto sabendo que alguns dos mais velhos cardeais no Vaticano II viamexactamente o contrário. E a maioria dos cardeais da sua comissão não viam assim aquestão, nem nenhum dos leigos. Os quatro teólogos conservadores radicais dacomissão disseram que a doutrina não podia ser vista só à luz da razão. As estatísticasmostraram que a maioria dos católicos também não entendia assim. O que Paulo deviater dito era: Os nossos contemporâneos, mesmo com a melhor das boas vontades, nãopoderão aceitar isto. Os católicos têm de aceitá-lo porque eu mando.

Uma vez que as objecções de Paulo à contracepção se baseiam na ideia de que elaconstitui uma interferência na obra da Natureza, por que é que não condenou também amedicina moderna? É a favor dos medicamentos, das operações para curar ainfertilidade, dos by-passes do coração, dos transplantes de rins. Porquê, se é

Page 277: Vigde cristo

277

exactamente esta interferência nos processos naturais que o leva a condenar acontracepção? Como dizia um católico angustiado: «Será que o papa me deixa usaróculos?» Certamente que parece estranho dizer-se: «Evitar que uma mulher concebaquando já tem seis filhos é pecado mortal; ajudar uma mulher estéril a conceber seisgémeos artificialmente está de acordo com a Natureza e é moralmente aceitável».

Da Humanae Vitae ressalta um retrato da mulher que condiz com anterioresconsiderações de Paulo sobre as mulheres e a Virgem Maria.

Um homem que se habitua ao uso dos métodos de contracepçãopode esquecer o respeito devido a uma mulher e, sem olhar ao seuequilíbrio físico e emocional, reduzi-la a um mero instrumento parasatisfação dos seus próprios desejos.

Estaria ele a pensar numa mulher a viver numa barraca de um bairro de lata daColômbia, já com uma dúzia de filhos? Ou numa mulher casada com um bêbado de fim-de-semana? E então os homens cujo único objectivo é tratar as mulheres como suasparceiras iguais e não como meras máquinas de fazer bebés, homens que queremdecidir juntamente com as suas mulheres, responsavelmente, em conformidade comDeus, sobre qual o número certo de filhos para eles como família? Em qualquersondagem feita em qualquer país do mundo, a grande maioria das mulheresconcordaria que os contraceptivos melhoraram a sua condição, bem como o seuequilíbrio físico e emocional.

Depois de condenar todas as formas de contracepção, o pontífice fica com receio deque as autoridades públicas ignorem as suas opiniões. Aos governos diz ele: «Nãotolerai qualquer legislação que introduza na família essas práticas que se opõem à leinatural de Deus». Alguns governos da América do Sul responderam positivamente aeste apelo de um pontífice que, dois anos mais tarde, fazia os possíveis por impedir odivórcio civil na Itália.

No final da Humanae Vitae o papa convidava os padres a agirem com

aquela obediência sincera, interior e exterior, que é devida aomagistério da Igreja. Porque, como sabeis, os pastores da Igrejagozam de uma luz especial do Espírito Santo ao ensinarem averdade. E é esta, mais do que os argumentos que sãoapresentados, a razão por que sois obrigados a essa obediência.

Será isto uma sugestão de que o Santo Padre sabe que não tem para oferecer aosseu padres argumentos da lei natural que fundamentem uma moralidade de lei natural?Uma vez que também não há qualquer prova bíblica, diz-se aos padres que obedeçamcom base apenas na autoridade. Em relação à lei papal, nenhum padre pode ser“objector de consciência“. Embora a autoridade papal tenha há séculos um péssimocurrículo no que respeita aos direitos humanos, os padres têm pura e simplesmente deentregar a sua consciência ao papa.

As primeiras reacções

A reacção dos jornais foi a que já se previa. Desde o Manual dos Erros, que em 1864condenou todo o progresso humano, que os jornalistas não tinham uma oportunidadecomo esta.

Page 278: Vigde cristo

278

Na Inglaterra o Guardian chamava à Humanae Vitae «um dos mais fatídicosdisparates dos tempos modernos». As sondagens mostraram que «entre metade e doisterços dos católicos dos países desenvolvidos não concordavam nem aderiam aosensinamentos da sua Igreja sobre a contracepção, e a prolongada perturbação doVaticano mais encorajou os padres a abrirem a porta a uma decisão individual».

O The Times dizia:

O sancionamento com restrições do “período seguro” ou método doritmo do controle da natalidade mais confusão provoca ainda porqueparece admitir que a relação sexual pode praticar-se licitamente paraoutros fins que não a procriação.

O The Economist apontava o exemplo da América do Sul, que o papa iria visitarnesse Agosto. O crescimento de 3 por cento fazia prever uma miséria quaseinimaginável. «Embora venha a tornar-se alvo de amarga controvérsia, a encíclica,ainda apenas com alguns dias de vida, já está intelectualmente obsoleta».

Até o semanário católico The Tablet queria saber «onde está a nova e mais profundareflexão» que fora prometida à Igreja.

Claro que alguns bispos ficaram satisfeitos. O Bispo (pouco tempo depois Cardeal)Wright, de Pittsburg apoiou entusiasticamente a encíclica. Ficou radiante por o papa nãose ter «deixado influenciar pelas estatísticas», como se os milhões de criançasesfomeadas e as muitas mães que abortavam não contassem para os círculos do clero.O Cardeal Heenan, de Westminster, que tinha sido co-presidente da comissão do papa,escreveu: «As opiniões maioritárias são notoriamente de pouca confiança. […] Umamaioria de Nazis decretou a esterilização dos incapacitados e a liquidação dos Judeus».Esta analogia não cativou os leitores, a maioria dos quais não via qualquer relação entreo uso de um preservativo e a decisão de Hitler de mandar milhões para as câmaras degás. E mais: Heenan esqueceu-se de dizer que quando a comissão do papa chegou aomomento da votação, se absteve por não ter conseguido tomar uma decisão; foi o papaque a tomou por ele. O Arcebispo Murphy, de Cardiff, disse que os contraceptivos erampara o homem «uma maneira barata de controlar os seus instintos e evitar asresponsabilidades». No futuro, profetizou Sua Eminência, «esta encíclica há-de sersaudada como a Magna Carta, não só de todas as mulheres, mas também de todos oshomens e de todas as crianças». Evidentemente que Sua Eminência não sabia que oPapa Inocêncio III tinha declarado a Magna Carta nula e inválida.

As secções de cartas ao director em todo o mundo encheram-se de intervenções decatólicos, na maioria hostis. Um leigo inglês, o deputado Norman St John Stevas,referiu-se à «esterilidade teológica da encíclica, à sua falta de realismo e à suaimprudência. Convidar as autoridades públicas na nossa sociedade pluralistacontemporânea a banir a contracepção revela um divórcio inacreditável e alarmante dasrealidades do mundo contemporâneo».

Para a maioria dos correspondentes católicos, a posição do papa parecia insensível àenorme variedade dos dilemas humanos. Ficava indiferente às consequências dobanimento. Nem sequer se interrogava sobre se seria preferível evitar a vinda ao mundode uma criança a tê-la, fazendo-a passar fome ou mesmo morrer à nascença. Muitosopunham-se ao ataque à pureza da maioria dos casamentos católicos e praticamente àde todos os casamentos não católicos. Alguns diziam que o Papa Paulo tinhacondenado mais gente a uma vida de miséria e a uma morte ignóbil do que Hitler. Aencíclica criaria novos guetos e campos de concentração, especialmente nos paísescatólicos do Terceiro Mundo.

Page 279: Vigde cristo

279

Os católicos conservadores rejubilaram. Paulo reafirmara a doutrina tradicional econservara o seu papel de doutrinador da verdade moral absoluta. Depois, MonsenhorFerdinando Lambruschini, de cinquenta e sete anos, apresentou o documento àcomunicação social. Disse então que uma leitura atenta do documento torna claro queele não tem o cunho da infalibilidade. Os conservadores ficaram despedaçados. Se aHumanae Vitae exprimia a firme tradição da Igreja, então estava seguramente apta alevar o carimbo de aprovação infalível do papa. Se assim não era em relação a estaquestão, a qual seria, então? Eles entendiam que a longa demora e o caos e aamargura que se lhe seguiram não podiam ser compensados por um pronunciamentoinfalível. Sendo falível, não vinculava as consciências em termos absolutos. A discussãocontinuaria, provocando provavelmente mais divisões do que nunca.

Os católicos liberais foram ainda mais atingidos. O papa, ao repudiar todo oconselho, excepto o da Cúria, tinha agido como um protestante. Parafraseando umafrase famosa, tinha voltado as costas à Igreja e vinha depois queixar-se de que a Igrejase tinha deixado ultrapassar. A esperança que eles alimentavam de que o sexo e ocasamento seriam vistos em termos morais e não biológicos gorou-se. Já não haviaqualquer esperança de “cristianizar” o controle da natalidade, consciencializando aspessoas dos seus benefícios e perigos num contexto cristão de amor e preocupação. Opapa dissera que o controle da natalidade não trazia quaisquer benefícios; era, isso sim,perigoso. Com esta decisão, os católicos arriscavam-se a perder a sua influência moralno mundo; daqui para a frente, seriam classificados como labregos, sobreviventes daIdade Média. Muitos sentiam que o papa tinha travado a batalha errada. Tinhacondenado a contracepção, e sem esta o aborto era inevitável. Devia era ter condenadoo aborto, diziam eles, em vez de o ter tornado mais provável.

Reacções acreditadas

O sentimento de medo e de intimidação na Igreja era tal que os padres e os teólogosse juntaram em busca de segurança. Na Inglaterra, cinquenta e cinco padresescreveram ao The Times discordando respeitosamente da Humanae Vitae. NosEstados Unidos da América, um grupo de oitenta e sete teólogos, encabeçados peloPadre Charles Curran, exigiam para si próprios um papel mais criativo do quesimplesmente dizer que sim a toda a encíclica. Documentos papais houve, no passado,que causaram um mal tremendo — por exemplo, aos Judeus, às bruxas, a católicoscomuns que caíram vítimas da Inquisição. «A História mostra», diziam eles, «que umgrande número de afirmações de semelhante, ou mesmo maior peso autoritário serevelaram posteriormente inadequadas ou mesmo erróneas. Afirmações autoritárias dopassado sobre liberdade religiosa, sobre os juros, sobre o direito ao silêncio e sobre osfins do matrimónio foram todas corrigidas em datas posteriores». Entre as deficiênciasda encíclica, estes teólogos apontam o «demasiado ênfase nos aspectos biológicos dasrelações conjugais como eticamente normativas; ênfase indevido sobre os actossexuais e sobre a faculdade do sexo vista em si mesma separada do todo da pessoa edo casal […] um quase total menosprezo pela dignidade de milhões de seres humanostrazidos ao mundo sem a mais leve possibilidade de serem decentemente alimentadose educados».

Nem o Manual dos Erros de Pio IX provocara uma tal irritação e dissidência nospadres e teólogos católicos em todo o mundo. E por que é que isto acontecia? É queainda estava muito viva a memória do Concílio do Papa João. O Concílio tinha vindocontradizer, com abertura e coragem, aquilo que a maioria dos papas do século XIX

Page 280: Vigde cristo

280

tinham dito em matérias tão diferentes como o Judaísmo e a liberdade religiosa. A Igrejatinha avançado; estava agora comprometida com ideias que muitos papas tinhamchamado de insensatas e ateístas.

O maior erro de Paulo foi avançar sozinho. Muito honestamente, ele não conseguiaentender como é que uma coisa que os seus antecessores tinham rotulado de“obscenidade moral” podia evoluir para um “acto de graça”. Tratava-se, portanto, paraele, de uma escolha clara entre persistir na sua infalibilidade ou aliviar a miséria demilhões. Não se importara de dar o seu assentimento à evolução de uma “insensatez”para um “direito do homem“, nomeadamente, a liberdade de culto; mas isso foi quandotinha o apoio do Concílio. O que a Humanae Vitae provava mais uma vez era que oexercício da supremacia papal sem a aprovação da Igreja, e especialmente dos bispos,nem sempre une a Igreja; por vezes divide-a. A Encíclica Humanae Vitae, de um sógolpe, desfez muito do que o Concílio tinha conseguido. O papa já não podiaapresentar-se como o campeão dos direitos humanos, como o ponto de convergênciada unidade de todos os cristãos. Tinha mesmo provocado a divisão na sua própriaigreja. Se a Humanae Vitae tivesse sido apresentada ao Concílio em 1962 comodocumento preparatório, teria sido imediatamente rejeitada, juntamente com osdocumentos preparatórios da Cúria, como sendo arcaica e incorporando um ponto devista teológico muito estreito. Paulo retirou a contracepção da competência do Concílio,na esperança de que a sua autoridade fosse a garantia de que o resultado final obteriaa aprovação unânime. Mas foi o contrário que aconteceu. Esta única decisão puramentepapal estilhaçou a Igreja.

Outra razão para esta revolta sem precedentes dos teólogos católicos era que elessabiam que a Humanae Vitae iria reforçar a casuística do sexo que há tanto tempodenegria as páginas da teologia moral.

O assunto é demasiado desagradável para se entrar em grandes pormenores emesmo alguns moralistas que escrevem em inglês põem a discussão do sexo em latim.Há páginas de alguns respeitáveis moralistas mais cruas do que as de Rabelais e tãoobscenas como as de O Martelo das Bruxas. Pois Paulo VI repetia que a moralidade doacto sexual deve ser julgada inteiramente do ponto de vista biológico. Tem de haverpenetratio e inseminatio; o pénis tem de depositar o sémen na vagina. O sémen nãodeve ser retido num preservativo nem impedido de atingir o seu destino natural por umdiafragma. Isto, diz o Papa, repetindo os seus recentes antecessores, é que é moral;tudo o mais não o é. As consequências disto só com muita prudência podem ser dadasà estampa.

Se, por exemplo, um marido procura a mulher equipado com um preservativo, aqueladeve resistir-lhe, dizia o Sagrado Penitenciário, «tal como uma virgem faria em relação aum violador». Se não conseguir resistir-lhe sem risco de ficar gravemente ferida oumesmo de ser morta, pode submeter-se-lhe «passivamente», isto é, não pode ter prazerno acto sexual, mas antes conter-se rigidamente até ao fim.

No caso de um casal católico incapacitado de ter filhos, o ginecologista achá-los-áprovavelmente menos cooperantes do que os outros doentes — isto é, se elesobedecerem à Igreja. Porque não há excepções à regra que diz que o único destinolegítimo do sémen do homem é a vagina da mulher. E então, como é que um médicoobtém o sémen dos católicos para examinar o seu potencial, sendo certo que essesémen ainda nunca fertilizara um óvulo? Ao homem não é permitida a masturbação.Esta é sempre condenável, mesmo quando para fins de procriação. Quando umrenomado teólogo sugeriu que o sémen fosse retirado directamente dos testículos, umavez que isso não envolvia prazer, Roma disse não, porque o sémen deve ser obtido“naturalmente”, isto é, numa relação sexual normal. Os moralistas sugerem que marido

Page 281: Vigde cristo

281

e mulher tenham relações imediatamente antes do exame pelo ginecologista, embora omédico prefira sem dúvida o sémen de uma forma mais prontamente acessível. Alémdisso, não é verdade que de qualquer maneira, ele é obrigado a retirar o sémen «do seureceptáculo natural»? É verdade, respondem os moralistas, mas o sémen foiinicialmente depositado no sítio certo e in situ fica o tempo bastante para fertilizar oóvulo, se for essa a vontade da Natureza e de Deus. Alguns moralistas vieram com umaideia ousada aprovada por Roma: marido e mulher podiam ter relações sexuais compreservativo desde que este fosse previamente perfurado. Não esclarecem sobre aextensão da perfuração, mas presume-se que deva ser o suficiente para deixar passarsémen bastante para fertilizar a mulher se for essa a vontade de Deus. O preservativoperfurado será então entregue ao ginecologista que procederá ao exame do sémen domarido. Não há dúvida de que o médico prefere esta a uma outra solução dosmoralistas que consiste em utilizar uma espátula cervical depois do acto sexualrealizado imediatamente antes de o casal entrar para o consultório.

Estes são apenas dois exemplos das muito curiosas consequências da lei papalsegundo a qual a justeza ou não do acto sexual deve ser julgada segundo padrõesbiológicos e não morais. Mesmo assim, apesar da sua erudição teórica, não há qualquerlógica na doutrina dos moralistas, pois, se aderirmos à “biologia correcta”, a remoção dequalquer porção de sémen da vagina ou a sua retenção num preservativo, tem de serimoral. Enquanto que a água deve ser avaliada como um todo igual, desde que mate asede, cada espermatozóide é diferente dos outros. Tirando alguns para análise, omédico corre o risco de tirar aquele, de entre milhões, que poderia ir fertilizar o óvulo.Com base nestas premissas biológicas, certamente que é sempre condenável o uso dopreservativo, quer ele seja “seguro“ como Fort Knox, quer esteja perfurado como umapeneira. Numa lógica rigorosa, nunca se devia permitir a colocação de sémen em partealguma, a não ser na vagina. Isto significaria que toda a análise científica do sémenseria imoral.

Também os bispos, tal como os teólogos liberais, mostravam algum desconforto coma Humanae Vitae. Claro que, à semelhança dos seus antecessores após o ConcílioVaticano I, imediatamente cerraram fileiras. Mas uma análise das suas afirmaçõesmostra a profundidade do dilema que o papa lhes deixara nas mãos.

Na África do Sul, o Bispo Van Nielsen, membro do Secretariado para a UnidadeCristã, disse que a proibição do papa era «mais uma disciplina do que uma doutrina edeixa a porta aberta a uma decisão pessoal». Mas o papa, na verdade, tinhadeliberadamente fechado a porta bem fechada. O Arcebispo Hurley, de Durban, admitiuque a encíclica foi «o caso mais penoso da minha vida de bispo. […] Nunca me senti tãodividido». Em resultado do Concílio tinha abandonado a sua posição conservadora deuma vida. O Concílio mostrou «os resultados magníficos que é possível obter através deum debate completo e aberto. […] Foi a colegialidade no seu melhor, ou quase no seumelhor, porque a extensão da consulta pode ser alargada para incluir mais gente deDeus - o seu clero, religioso e laico. […] Como irmãos do Papa Paulo no episcopado, osbispos não podem fugir à questão de como pensam que a autoridade do seu irmão maisvelho deve ser exercida. Discutir o assunto com ele não é deslealdade, mas antes dizera verdade no amor».

As cartas pastorais conjuntas revelam o mesmo embaraço pós-Vaticano II. NaHolanda, onde uma sondagem mostrou que 80 por cento dos católicos eram contra aHumanae Vitae, os bispos disseram calmamente: «Que a discussão sobre estaencíclica contribua para uma apreciação e um funcionamento mais claros da autoridadedentro da Igreja».

Page 282: Vigde cristo

282

Os bispos canadianos também levantaram objecções, tal como os belgas, lideradospelo Cardeal Suenens. Num gesto sem precedentes, os belgas acentuaram que oscatólicos não estavam obrigados a obedecer incondicionalmente a este documento nãoinfalível. Uma pessoa que seja competente e conscienciosa nestas questões «tem odireito de seguir as suas próprias convicções». Mesmo os argumentos usados pelopapa eram considerados deficientes e portanto aqueles que dele discordassem nãopodiam ser acusados de egoístas ou hedonistas. E os bispos continuavam:

Temos de reconhecer que, de acordo com a doutrina tradicional, anorma prática fundamental da acção é a consciência, que foidevidamente esclarecida por todos os factores apresentados emGaudium et Spes [o documento do Concílio]. Além disso, temos dereconhecer que a decisão básica sobre a oportunidade datransmissão de uma nova vida compete aos pais e estes devemtomar a decisão em conformidade com Deus.

As hierarquias mais conservadoras, como a britânica e a americana, realçaram aobediência a Sua Santidade. Exortaram os católicos a continuarem a receber ossacramentos. Como muitas das suas paroquianos estavam a usar a Pílula, era difícilentender como é que elas podiam ter um propósito de arrependimento, pré-requisitopara uma confissão sincera e uma sagrada comunhão. Encorajavam-se os católicos aolharem-se não meramente como pecadores, mas como pecadores arrependidos,enquanto utilizadores diários da Pílula como contraceptivo. A Humanae Vitae estava àbeira de causar o regresso aos piores excessos da moral teológica. Muitas mulherescujo único objectivo era evitarem a concepção estavam a tomar a Pílula com o pretextode que ela ajudava a regular o seu ciclo menstrual.

A maior parte dos bispos, por ordem do Santo Ofício, repreenderam os padresdissidentes — aqueles que, nas palavras de Mill, «sofriam da doença do pensamento».Diziam-lhes os bispos: «Ou o silêncio ou a expulsão». Não é verdade que na HumanaeVitae o papa insiste que os padres tinham de prestar obediência interior e exterior à suadoutrina? Os padres ponderados achavam isto incompreensível. Será que não podiahaver liberdade religiosa mesmo em questões contestadas e susceptíveis decorrecção? Viam a questão desta maneira: se a Humanae Vitae não é infalível, é falível.Se é falível, o papa pode estar enganado. Se ele pode estar enganado, é perigoso tratara sua doutrina como se ela não pudesse estar errada. A única atitude sensata é tratá-lacom prudência, tanto mais que está em causa a felicidade de milhões de pessoascasadas. Se Paulo VI tivesse dito: «Isto é infalível, isto é, é a fé da Igreja, portanto Deusexige obediência interior e exterior», isso teria feito sentido. Mas, para ele, dizer «Istonão é infalível mas Eu, o papa, insisto, mesmo assim, na obediência interior e exterior aum pronunciamento que pode estar errado» é pedir demais. Alguns crêem sinceramenteque aquilo era imoral, porque o papa exigia o acordo para uma coisa que não estáabsolutamente certa. A não ser que garantisse a sua verdade, o papa não devia exigirobediência sem restrições. De qualquer maneira, se um padre estava convencido dabondade do controle da natalidade, como é que ele podia estar interiormente de acordocom o ponto de vista contrário? Muitos bispos perceberam isto e apenas exigiramobediência exterior ao regulamento do papa. Isto era, mais uma vez, uma atitudepiedosa, mas de dupla face e encorajava o sicofantismo. Se os próprios bispos iamdesobedecer ao papa não exigindo obediência interior bem como exterior, não deviamter imposto nada aos seus padres.

Page 283: Vigde cristo

283

Apesar dos persistentes esforços para controlar os estragos, foi como se um furacãotivesse atingido a Igreja. Sondagens feitas depois da Humanae Vitae mostraram quehavia agora ainda mais católicos a favor da contracepção. Isto provava que na cama amaioria dos católicos se tornavam protestantes.

O laicado começava a ficar zangado com a hierarquia. Começavam a pensar que aignorância, única habilitação do clero em matéria de sexo, não era suficiente. Qualquermulher ou homem casado tem mais conhecimentos sobre o sexo do que todos ospadres juntos. Muitos leigos começavam a dizer que um clero celibatário, apesar detodos os seus sacrifícios em nome da Igreja, era um luxo que já não podiam sustentar.A atitude dos padres parecia ser esta: se uma pessoa não tem força moral para sercelibatária como nós, tem de arrostar com as consequências — incluindo todos os filhosque Deus lhe der. Um jesuíta americano sugeriu que o celibato devia ser opcional paraos padres, mas obrigatório para os bispos, para eles aprenderem a ter algum senso.

Como insinuava o Arcebispo Hurley, nem mesmo em Concílio a Igreja está todarepresentada. Como é que os velhos celibatários podem representar o sensus fideliumem matérias em que não têm competência, matérias em que mesmo o uso daimaginação livre os fará cair em pecado? Isto era tão irrealista como pôr os leigos aensinar aos monges e clérigos como deviam viver a sua vida de celibato.

A riqueza em sabedoria que o laicado possuía não estava simplesmente a seraproveitada para o fundo comum que devia alimentar a Igreja. Vinte e cinco anos depoisdo Concílio, o clero continua a defender sínodos «sobre o laicado» sem que um únicoleigo tenha voto.

As mulheres em particular sentiram que a Humanae Vitae as tratara injustamente. Aencíclica retratava um Deus que não ama as mulheres. Em Cristo não há masculinonem feminino, mas na Igreja só há masculino. Apesar de todas as suas bonitas palavrassobre a dignidade das mulheres, Paulo VI estava realmente a descrever seres quenunca existiram, a não ser na sua imaginação. Pela primeira vez, era possível àsmulheres serem parceiros iguais no casamento; o preconceito na evolução a favor dohomem estava a ser grandemente rectificado pelos avanços científicos. Os preladoscatólicos não viam isto. Eles preferiam que as mulheres fossem a eterna gente da “Casadas Bonecas”, amarradas à casa e à procriação. As mulheres viam a coisa de maneiradiferente.

Para elas, o controlo da natalidade não tinha apenas igualado as relações nocasamento, tinha também humanizado a sexualidade. O sexo era agora um motivo dealegria para homem e mulher, sem o omnipresente medo da concepção. Tinha feito daconcepção e criação dos filhos uma questão de opção. Os casais podiam finalmente terfilhos quando estivessem preparados para tal, quando isso fosse melhor para toda afamília, de maneira que cada filho fosse um filho desejado.

Não se podia esperar que o clero, treinado para, e impregnado de solidão,compreendesse as mulheres. Para os padres, as mulheres representam a tentação, orenegar da sua vocação. Esta a razão por que “a mulher” nos documentos papais érealmente um retrato da Virgem Maria; só ela, entre todas as mulheres, não constitui umperigo para a vocação de um padre.

No século XIX, os papas atacaram constantemente a liberdade religiosa; no séculoXX a sua preocupação é o sexo. Têm tentado, com a melhor das intenções, reprimir aliberdade nesta área muito íntima e privada do amor. Confrontada com a explosãodemográfica — casas e até continentes a abarrotar de pessoas — a única coisa que asabedoria papal pode oferecer para controlar a fertilidade é o método altamenteinseguro do “período seguro” e a abstinência no casamento. Ambos mostraram até que

Page 284: Vigde cristo

284

ponto o clero estava fora da realidade. Falavam como se o desejo sexual fosse qualquercoisa que se pode ligar e desligar á nossa vontade. Os leigos ficaram desiludidos.

Os padres foram afectados de outra maneira pela A Humanae Vitae. A encíclicaobrigou-os a repensar a sua própria sexualidade. Muitos encararam o celibato pelaprimeira vez. A encíclica mostrou-lhes que o papa estava errado acerca do sexo nomatrimónio. E se ele estivesse errado acerca da sexualidade em geral? Como é queeles ficavam?

Seja qual for a razão, o que é certo é que, levantada a questão do controle danatalidade em 1962, Roma foi inundada por uma onda de requerimentos de padres quepretendiam abandonar o ministério. A principal razão apresentada era a incapacidadepara observar a disciplina do celibato. A história mostra que o celibato foi quase sempredesastroso, mas nunca antes tantos padres o tinham declarado e requerido a Roma asua renúncia.

Quando a comissão papal procedeu à votação, um dos seus membros não estavapresente: Karol Wojtyla, Cardeal de Cracóvia. A sua ausência nunca foi explicada. Nãohá dúvida de que, tal como Paulo VI, ele não acreditava que fosse possível mudaralguma coisa. Talvez quisesse dissociar-se daquilo que parecia prenunciar um desastre.Em Novembro de 1978, precisamente três semanas depois de se tornar o pontífice,mandou reimprimir dois dos seus anteriores artigos no Osservatore Romano. O primeirointitulava-se A Verdade sobre a Encíclica Humanae Vitae.

Vinte anos se passaram já sobre a Humanae Vitae e desde então nada defundamental mudou. Se alguma coisa mudou foi no sentido do endurecimento dasposições. Muito estranhamente, o próprio papado tem sido a principal vítima das suaspróprias decisões. A América é a prova provada disto mesmo.

Durante anos o trabalho do Padre Andrew Greely e da sua equipa de investigadoresreuniu os dados que ajudam a explicar a razão por que a Igreja Católica se encontrahoje em declínio acentuado. A razão principal não é o Vaticano II, como os teólogostendem a pensar. É, isso sim, a liderança papal nos domínios da moral sexual.

Em 1977, no seu livro The American Catholic, Greely pôde dizer:

Não conseguimos encontrar qualquer prova da relação do Concíliocom o declínio da crença e prática católicas; encontrámos, isso sim,provas substanciais da relação entre o declínio e a rejeição da éticasexual da Igreja e a erosão da credibilidade da liderança papal. […]As pessoas discordam da doutrina sexual da Igreja, rejeitam aautoridade do líder que tenta reafirmar a sua doutrina e depoisafastam-se de outras dimensões da crença e da prática religiosa.

A conclusão só pode ser esta: o Concílio Vaticano II sem a Humanae Vitae teria dadoà Igreja a possibilidade de dar um enorme passo em frente no mundo moderno. AHumanae Vitae sem o Vaticano II teria sido um desastre total, nada menos do que umregresso ao Catolicismo obscurantista da Idade Média. O Concílio Vaticano II e aEncíclica Humanae Vitae juntos constituem um desastre mitigado. O sofrimento actual éo resultado do conflito entre duas forças poderosas e irreconciliáveis desta notávelinstituição.

O declínio da liderança papal levou ao declínio dos padres, dos seminaristas, dasfreiras, de todos aqueles que estão de acordo com a doutrina da Igreja em todas asquestões morais. Levou até ao declínio dos fundos, porque as colectas da Igreja

Page 285: Vigde cristo

285

baixaram dramaticamente. As frias estatísticas mostram que, mesmo que Paulo VI eJoão Paulo II tenham razão, eles não conseguiram convencer senão uma pequeníssimaminoria de devotos católicos e os da faixa etária mais elevada.

Uma das razões tem de ser a de que os católicos têm uma opinião sobre a populaçãomundial muito menos optimista do que os papas. Um olhar apenas de relance ao gráficoda população mostra que a humanidade precisou do tempo que decorreu do ano zeroao ano 1800 para a atingir o bilião de nascimentos. De 1800 a 1920, nasceu mais umbilião. O terceiro bilião foi atingido em 1958, o quarto em 1975 e o quinto no verão de1987. De todos os bebés nascidos, estão hoje vivos perto de quatro dos cinco biliões. Amaioria vive no Terceiro Mundo. Apesar da Revolução Verde, há gente com fome hojemais do que nunca. Há milhões em África e na América do Sul que comem pouco e mal;nunca utilizam uma casa de banho; vivem e morrem em sarjetas por onde escorremdejectos humanos, lixo e água poluída. Em 1920, o México tinha uma população de 20milhões. Hoje, só a Cidade do México tem quase esse número. No fim do século, oMéxico terá pelo menos 100 milhões de habitantes. Mesmo hoje, na capital, há umgrupo conhecido por pepinadores; é uma associação de varredores que partilham odireito de se alimentar das lixeiras locais.

Nas palavras de um funcionário do Vaticano, João Paulo II recusa-se a jogar o jogodos números. Em Junho de 1987, um mês antes de as Nações Unidas anunciarem onascimento do bebé número cinco biliões, repetiu ele uma vez mais: «Aquilo que aIgreja ensina sobre a contracepção não é coisa que possa ser discutida livremente porteólogos». Quando os teólogos católicos se reunirem para discutir a contracepção têmde começar pela presunção de que nenhuma mudança é possível. Uma vez que na suamaioria pensam que a mudança é inevitável, acham mais sensato ficarem calados.

«Todo o acto sexual deve ser aberto à transmissão da vida» diz João Paulo. O factode que uma tal doutrina posta em prática por uma só nação — a China ou a Índia, porexemplo — provocaria um enorme excesso de população no mundo, levaria à miséria eà fome em massa e a conflitos internacionais, não perturba a sua fé. Deusprovidenciará.

Parece não haver qualquer hipótese de mudança no pensamento oficial durante esteséculo. João Paulo encheu o episcopado de homens que ou concordam plenamentecom a Humanae Vitae ou não lhe manifestaram qualquer oposição, mesmo quandoconvencidos de que está errada. Hierarquias inteiras, como a holandesa e a americana,estão a ser preenchidas com bispos de uma só crença teológica. Isto é a garantia,humanamente falando, de que quando João Paulo partir a sua doutrina perdurará.Nesta atmosfera altamente carregada, o mais leve desacordo da parte dos bispos eteólogos leva à imediata dispensa.

Uma doutrina periférica, sem fundamento bíblico, tornou-se, para o bem e para o mal,a pedra de toque da ortodoxia. É uma situação a que só Voltaire e Jonathan Swiftpodiam fazer justiça. Entre muitos católicos devotos levanta-se esta obsidiantepergunta: Estará o papa, nesta questão, a ser católico? Será que ele está a agir comoprotestante na Igreja, fazendo o seu próprio julgamento particular, contrário ao sensusfidelium, o verdadeiro espírito do Catolicismo em toda a parte?

A partir de 1968, para além do maciço crescimento da população, que já eraesperado, entrou para o debate um outro factor inteiramente imprevisível: a pandemiada SIDA. O Papa Paulo decretou que todos os meios artificiais de controle danatalidade, incluindo os processos de obstrução, são intrinsecamente um mal. Mas hojeos médicos são de opinião de que o preservativo é o melhor processo de controlar ainfecção. Sem preservativos, muitos parceiros de casamento e seus filhos estarãocondenados a uma morte aterradora. E também os hemofílicos têm contraído a infecção

Page 286: Vigde cristo

286

através das transfusões de sangue. Quererá a Igreja Católica acrescentar à sua já duplacalamidade uma terceira: o celibato? É esta a lógica da posição da Igreja, estabelecidapelo Papa Paulo e reforçada pelo actual pontífice. O uso do preservativo viola aintegridade biológica do acto sexual e é condenável mesmo quando contribui paraprevenir a disseminação de uma doença que é provavelmente a pior desde a PesteNegra de 1348. Nada pode justificar o uso de uma coisa que é intrinsecamente um mal,nem mesmo a sobrevivência da espécie. A situação hipotética de Newman tornou-serealidade.

Segundo a Humanae Vitae, os fins nunca podem justificar os meios. Os católicosestão proibidos de argumentar que a contracepção é apenas um efeito secundário douso do preservativo. É evidente que o preservativo só evita a disseminação da SIDAporque impede a entrada do sémen na vagina da mulher, violando assim a integridadeda relação sexual. A Igreja Católica, segundo Paulo VI, não pode levar em linha deconta quaisquer parâmetros mais alargados do que as próprias faculdades do sexo.Quando a finalidade primária dessas faculdades é bloqueada, como é o caso dautilização do preservativo, o acto é intrinsecamente condenável, um pecado mortal. Eisto é assim, mesmo quando um marido está infectado, por ter tido relações com umaprostituta, ou por ter usado uma agulha infectada ao injectar uma droga, ou, sendohemofílico, por ter recebido uma transfusão com sangue infectado. Ele e a mulher nãodevem usar métodos contraceptivos de obstrução. Devem ter relações sem preservativoou simplesmente não as ter.

Actualmente com milhões de portadores de SIDA, as únicas opções da IgrejaCatólica são: rezar a Deus por um rápido antídoto para o vírus ou pregar o celibato nocasamento a milhões de casais. Para o resto do mundo, esta atitude não é racional, ésim irresponsável e uma ameaça à vida.

É altura de perguntar: o papa Paulo tinha razão quando disse que a sua doutrina naHumanae Vitae era tradição católica “constante”? A pergunta “Qual é a tradição católicana sexualidade?” acaba por ter algumas respostas bastante surpreendentes. Paracomeçar a procurá-las temos de recuar imenso no tempo.

Page 287: Vigde cristo

287

Page 288: Vigde cristo

288

Page 289: Vigde cristo

289

17Uma Visão Pouco Amorosa do Sexo

Era um homem de pequena estatura aquele que chegou à pequena e buliçosa cidadeportuária. Fazia lembrar um pássaro, de olhos grandes e profundos. Tinha trinta e seisou trinta e sete anos. Vestido com uma grosseira túnica cinzenta, tinha percorrido apavimentada estrada romana, em direcção ao norte, através de campos sem árvores,ricos em cereais. Conhecido como o Grande Pecador, vangloriava-se do seu título.Quem é que nunca ouvira falar da sua submissão ao desejo, da fogosa sensualidade dasua vida de estudante em Cartago, da sua primeira amante, de quem teve um filho, dasua segunda amante, que ele arranjou enquanto esperava que a noiva que lhe foradestinada atingisse a idade de casar? Quem é que nunca ouvira falar da sua paixãopelo teatro e pelos combates de gladiadores, do seu fascínio por tudo o que fossemheresias sórdidas? Nove anos de uma vida de excessos sem limite tinham-lhe deixadomarcas no rosto e no coração.

O ano era o de 391, o local, Hippo Regis, na província romana de Numídia, a actualArgélia. O estranho era Agostinho, antigo professor de retórica, o génio que viria aensinar a Cristandade do Ocidente a falar latim e que imporia uma grande parte da suaversão da mensagem de Cristo para os mil e quinhentos anos seguintes.

Era um convertido. Dentro em pouco, algumas das frases das suas Confissões viriama andar na boca de toda a gente. «Vós fizestes-nos à Vossa imagem, meu Deus, e osnossos corações anseiam por repousar em Vós». «Eu fervi como a água, aquecidopelas fornicações». E a mais famosa de todas: «Tarde demais Vos vim amar, Ó Belo,tão antigo e tão justo».

A pedido da congregação, o velho Bispo Valério concordou em fazer deste estranhoo seu assistente. Agostinho acabou por lhe suceder e tornou-se o maior teólogo que oOcidente produziu. A maior parte das suas ideias foi formulada em sermões e daí,talvez, a razão por que elas se tornaram tão populares. Era um excelente comunicador.

O medo do sexo

O sexo, queixava-se muitas vezes a sua congregação, era o seu tópico preferido.Exigia os mesmos padrões a homens e mulheres. Protestava contra os homens quemantinham amantes. Mas havia outras facetas mais discutíveis nos seus ensinamentos;e tanto as más como as boas viriam a tornar-se a norma da fé cristã.

Os seus admiradores dizem que depois da conversão ele era puro espírito. Averdade é que nunca se libertou da carne. Sempre albergou uma profunda desconfiançaem relação a ela, e uma aversão que nunca conseguiu disfarçar. A sua experiênciasexual limitara-se a amores ilícitos dos quais retirou um sentimento de culpa e dedesgraça. E fazendo mais tarde a extrapolação, cobriu todo o sexo, mesmo o docasamento, de maldade e de pecado.

«Não há nada que mais rebaixe o espírito do homem», escreveu ele nos seusSolilóquios, «do que as carícias de uma mulher e aquela relação sexual que faz partedo casamento». Por medo, por se lembrar das suas próprias quedas, nunca permitiu

Page 290: Vigde cristo

290

que uma mulher entrasse na sua casa ou sequer falasse com ele, a não ser napresença de outras pessoas. E não fazia qualquer excepção, nem sequer com a irmãmais velha. A castidade era o princípio do serviço do Senhor, mas ele entendia-o numsentido rigoroso. A sagrada fonte da vida, dizia, sempre foi conspurcada pelo desejo(libido), mesmo na pureza do jardim do matrimónio. A sua convicção de que o apetitesexual é por sua própria natureza um mal tornou-se a grande tradição da Igreja. Porcausa da Queda, o homem foi atacado no seu ponto mais vulnerável: o sexo. Mesmo nocasamento, ele é conspurcado pelo desejo. Foi esse o principal e inevitável castigo deAdão pelo seu pecado. O apetite sexual só pode justificar-se pelo desejo de procriar.Sem esse desejo, o pecado venial da luxúria dentro do casamento transforma-se numpecado mortal contra o próprio matrimónio. O casal passa a "prostituir-se"; a suarelação passa a ser um adultério sistemático.

Em sermão após sermão repete: «Maridos, amai as vossas esposas, mas amai-ascastamente. Persisti nos trabalhos da carne, mas apenas na medida em que isso sejanecessário para a procriação. Como não podeis ter filhos de outra maneira, deveisdescer até isso com relutância, porque é esse o castigo de Adão. […] Um homem deveaspirar a um amplexo em que já não possa haver corrupção».

Quem dera que um casal pudesse ter filhos sem ter de recorrer à sordidez do sexo,por exemplo, rezando juntos de joelhos. Segundo Agostinho, um homem nos braços damulher deve concentrar-se friamente no filho e ansiar ardentemente pelo céu, ondepoderá abraçá-la como se fosse uma estátua.

Isto ajuda a explicar a razão por que ele tanto louva a virgindade. Esta está livre dodesejo que envergonha mesmo a utilização legítima do casamento. Uma pessoa virgemestá próxima de Deus porque ele ou ela se afastou dos inevitáveis pecados domatrimónio. É difícil de perceber como é que ele pode dizer que o casamento é um bemquando os actos próprios do matrimónio são necessariamente um mal.

No tempo de Agostinho, houve uma tentativa grosseira de calcular o "períodoseguro". Os Maniqueus, que odiavam a carne, conseguiram-no e instruíram os seusseguidores no sentido de limitarem as relações a esse período. Desta maneira evitavamo pior aspecto da sensualidade, que era o de trazer ao mundo mais um corpo. O corpo,produto de uma divindade maléfica, tinha a corrupção como destino. Agostinho tinhasido maniqueu; foi o primeiro santo de sempre a usar o período seguro. Isso tambémlhe foi útil, na medida em que em mais de onze anos ele e a amante apenas tiveram umfilho, o belo Adeodato, que morreu ainda jovem. Tal como muitos convertidos, Agostinhoera implacável com os seus antigos amigos. Ficava horrorizado não apenas com afornicação, mas também com a aprovação do período seguro por parte dos Maniqueus.Quando ouviu dizer que os católicos tinham começado a utilizar o período seguro paraevitarem a concepção, disse categoricamente que isso era um grave pecado. É buscarprazer no sexo, sem a intenção de procriar. Este ponto de vista prevaleceu na IgrejaCatólica até Pio XII considerar, em 1951, o período seguro como o único processoaprovado por Deus.

As virtudes do matrimónio

No ano de 401, Santo Agostinho escreveu um tratado, Das Virtudes do Matrimónio(De Bono Conjugali), que viria a influenciar toda a tradição cristã. Aí estabelece ele astrês bona, as virtudes, os valores, os fins do matrimónio. Eram elas: os filhos, aindissolubilidade e a fidelidade. Quinze séculos mais tarde, em 1930, Pio XI usou estascategorias como fundamento da Encíclica Casta connubii. São estas, disse ele, que

Page 291: Vigde cristo

291

constituem um casamento; sem qualquer delas, o casal não estaria a cumprir o contratode um verdadeiro matrimónio. Isto foi, de certa maneira, uma imprudência da sua parte,na medida em que assim tornava nulos a maior parte dos casamentos do mundo.

No século XX, o tratado de Agostinho é intragável por causa da sua crueza e da suainterpretação profundamente errada da sexualidade. O seu princípio básico é este: arelação sexual no casamento com vista à concepção dos filhos está correcta e élegítima; para qualquer outro fim, é pecado. As consequências que tirou deste princípioparecem hoje algo peculiares.

As pessoas mais velhas «quanto mais cedo começarem a refrear as relações sexuaismelhor ficam». Quando já não podem ter filhos, devem procurar a castidade da alma,isto é, passar completamente sem sexo.

Para os jovens, «a relação marital transforma o mal da luxúria numa coisa boa» —desde que ao terem relações eles pensem em si próprios não como marido e mulhermas como pai e mãe.

Mas suponhamos que a mulher não pode conceber. O que é que justifica que umhomem tenha relações com ela? Bem, contribui para evitar que ele ande por aí a dormircom umas e com outras. É a opção do mal menor. Mesmo com base nos própriosprincípios de Agostinho, isto dificilmente se justifica. Aproxima-se perigosamente doprincípio de que o fim (evitar o adultério) justifica os meios (o pecado matrimonial daluxúria).

E isto não faria da relação com uma mulher grávida um pecado de luxúria? Claro quesim. Escreve ele: «Há homens de uma incontinência tal que não poupam as mulheresquando estas estão grávidas». A conclusão deve ser certamente que a mulher deverecusar e não permitir que o marido peque com ela. Pelo contrário, argumentaAgostinho, ela deve aceitar o marido porque ele tem autoridade sobre ela. Além disso,para a mulher, é melhor que ele peque com ela do que com outra mulher. À parte ochauvinismo masculino, isto também é ilógico. Não seria melhor o homem pecar comuma prostituta a isso disposta do que com uma esposa contrariada cuja castidade eleestá a violar? Na linguagem da moralidade teológica, não deveria a esposa grávidarepeli-lo como uma virgem faria a um violador?

Uma vez parceiros no pecado, pelo menos venial, mesmo quando tencionam ter umfilho, seguem-se ainda outras estranhas conclusões, que Agostinho aceita de bomgrado. «A abstenção de toda a relação sexual é certamente melhor do que a própriarelação marital que se realiza com vista a ter filhos». O casamento ideal é uma união de"celibatários". S.Paulo foi uma grande vítima dos comentadores, mas quem é que iasupor que ele pretendesse significar uma coisa destas? Segundo Agostinho, a maioriados casais tem de se decidir por qualquer coisa um pouco menos do que ideal.«Embora a continência [no matrimónio] seja mais meritória, não é pecado consumar ocasamento, mas fazê-lo para além da necessidade de procriar é um pecado venial».Fica claro que o sexo no casamento é apenas para aqueles que não conseguemcontrolar-se. O ideal é nenhum sexo hoje e sempre, para toda a eternidade. A Virgem éaqui o modelo utilizado.

Maria era totalmente casta, uma virgem. Mas também combinava "impossíveis" emsi: a virgindade e a maternidade. Isto era a perfeição: a maternidade sem sexo, avirgindade com a bênção de um filho. É quase como se Agostinho desejasse que Deustivesse feito da concepção virginal a norma. De facto, a única maneira que ele tem deabsolver Deus da culpa de instituir o casamento é dizer que a inevitável luxúria do sexoé culpa de Adão e não de Deus.

O filho como que justifica o casamento tal como o conhecemos. Deus extrai do mal avirtude. Contudo, é a frigidez (Agostinho chamava-lhe "espiritualidade") que se deve

Page 292: Vigde cristo

292

almejar, não o prazer sexual (libido). O casamento perfeito devia seguir este padrão:marido e mulher, antes de exigirem a consumação do casamento, deviam procurarsaber se o seu parceiro estava com disposição sagrada, isto é, não sexualmenteexcitado e com o propósito de procriar.

Agostinho não se esquiva à mais paradoxal das conclusões: o casamento ideal éformado por duas pessoas virgens. Se isto se tornasse a norma, a Cidade de Deus embreve estaria acabada. O mínimo que os casais podem fazer é esforçarem-se, à medidaque envelhecem, por se tornarem castos, isto é, sexualmente inactivos e, a longo prazo,esperemos, impotentes. Não fora o facto de S.Paulo ter escrito que um homem nãopeca por deixar que uma filha case, teria sido muito difícil para Agostinho, com base nosseus próprios princípios, fazê-lo.

O sexo sem os filhos no pensamento — pior ainda, o sexo durante o período seguro,quando não há a intenção de ter filhos — é gravemente pecaminoso. «Porque a relaçãosexual que vai para além da necessidade de procriar já não obedece à razão mas àpaixão». Os casais idosos sexualmente activos ou aqueles que têm relações quando amulher está grávida ou é estéril estão sujeitos a incorrer num enorme número depecados.

Então e os patriarcas judeus que, segundo as Escrituras, tinham várias mulheres? Aresposta de Agostinho é que eles tinham mais do que uma mulher, não pelo prazer davariedade, mas sim pela necessidade de ter mais filhos. Ao manter as suas esposas econcubinas, estas nobres figuras agiam presumivelmente sem paixão e com umprofundo sentido do dever para com a espécie. Era um altruísmo heróico. Isto étambém, incidentalmente, mais um exemplo do princípio de que os fins (o aumento donúmero dos eleitos) justificam os meios (ter relações sexuais fora do casamento).Agostinho era o modelo do moralista: um rigorista com um especial talento para arranjarjustificações para quase tudo.

O ênfase de Agostinho na virgindade de Maria encorajou o celibato na Igreja, nãoobstante Maria ter tido um marido e, segundo o Evangelho, outros filhos além de Jesus.Com a crítica bíblica ainda na sua infância, os Padres não compreenderam que avirgindade de Maria não tinha nada a ver com castidade. Foi um expediente teológicopelo qual os evangelistas exprimiram o facto de Jesus ser filho de Deus, fruto não deum homem e de poder humano, mas de Deus e do poder divino. O Velho Testamentotinha expedientes semelhantes: bebés nascidos de mães estéreis, ou, como no caso deSara, de mães centenárias. Infelizmente, a "virgindade" de Maria não inspirousimplesmente as mulheres a fazerem grandes coisas por Deus e pelos seres humanosseus semelhantes, contribuiu também para o declínio do casamento cristão. Reforçou acrescente convicção de que a virgindade era superior ao casamento, que na suaessência era impuro; alimentou a ideia de que os ministros do altar deviam sercelibatários. Esta preferência tornou-se mais tarde obrigação; os ministros tinham de sercelibatários, o que trouxe muitas vezes consequências graves para o bom nome daIgreja.

A principal influência sobre Agostinho, tivesse-o ele entendido, não veio da Bíblia,mas dos Estóicos. Nos escritos de Séneca, por exemplo, o dever era soberano. Na suaaustera filosofia, sempre que leva a melhor, a razão mata as emoções, que não eramsenão uma doença. O objectivo da vida era aniquilar o egoísmo; nada se devia fazer àespera de recompensa. Em vista disto, o sexo só tinha um fim: a procriação. Asalegrias, a satisfação, o prazer estavam proscritos e deviam ser, tanto quanto possível,extintos. O ideal era uma relação sexual fria e sem paixão.

Agostinho chegou à aversão pelo sexo por outra via: analisou as consequências dopecado original. Aquilo a que os Estóicos chamavam perturbatio, chamava ele

Page 293: Vigde cristo

293

concupiscência, mas elas eram uma e a mesma coisa. Aguentar estoicamente osofrimento só tem um nome e dificilmente se adequa a um casal na excitação darelação sexual. Mas uma frieza premeditada, o abafar de sentimentos humanos nacama matrimonial é, em sentido restrito, anti-natural, isto é, contrário à naturezahumana.

Não valeria a pena ressuscitar esta doutrina de um grande, embora pouco sensatodoutrinador, se a Igreja Católica não a tivesse aceitado totalmente. Não houve papanenhum, nem teólogo, que não seguisse as opiniões de Agostinho sobre o sexo e ocasamento. Com estas, ele influenciou gerações atrás de gerações de leigos. A ideiados Estóicos de que o sexo se destina exclusivamente à procriação tornou-se ortodoxiacatólica durante mais de mil anos. O que os leigos concluíram daqui foi que o sexo éuma coisa obscena e ridícula. Uma constante sensação de pecado penetrou no quartode dormir, daí resultando que muitos cristãos identificavam o pecado com aincontinência. E não foram poucos os papas que reforçaram esta impressão aocriticarem a impureza mais do que qualquer outro vício, como a cobiça ou ainsensibilidade.

Agostinho não foi o único doutrinador do seu tempo com um preconceito anti-sexo; foiapenas o mais influente. O ênfase na castidade e na virgindade significava que ocasamento era olhado como a mais moderada e menos censurável forma de luxúria.Para os casados, tal como para os ricos, a entrada no paraíso, embora não impossível,era difícil. A superioridade da virgindade sobre o casamento, disse João Crisóstomo, écomo a do céu sobre a terra ou a dos anjos sobre os homens. "Vocação" significava"esquecer o sexo". Jerónimo disse que o próprio S.Pedro só conseguiu lavar a sujidadedo casamento com o sangue do martírio. O objectivo do santo é, segundo Jerónimo,«cortar o tronco do matrimónio com o machado da virgindade». A única justificação docasamento é que ele produz virgens.

Na sua History of European Morals, Lecky diz que só conseguiu encontrar duas outrês belas descrições do casamento numa enorme quantidade de escritos patrísticos.«Seria difícil conceber coisa mais grosseira e repugnante do que a maneira como eles oolhavam». O sexo era visto como apenas desejo desenfreado. Ter relações quando amulher está grávida era universalmente considerado pecado, era desperdiçar umasemente de vida num campo já semeado. Nem os animais fazem coisa "tão imunda".Não houve, nos tempos patrísticos, uma única referência ao amor terno que as pessoascasadas têm uma pelo outra, um único sinal de que os Padres tenham compreendidoque o acto sexual era de facto uma acto de amor. A prova da sua torpeza eram as doresde parto. A mulher em particular — também Deus era machista — sofre no mesmo lugaronde pecou. Mesmo quando uma criança vem ao mundo Deus denuncia a culpa.

Abundavam as estórias "edificantes" de maridos que abandonavam as mulheres e osfilhos para "viverem uma vida casta", de mulheres que imploravam que a sua honrafosse respeitada na noite de núpcias. Herói era o homem que deixava a mulher na noitedo casamento para viver a sua vida no deserto. O ideal era o ascetismo, interpretadocomo libertação da sexualidade. Isto foi subscrito por todos os papas, Gregório Iincluído.

O Papa Gregório o Grande

Gregório, que reinou de 590 a 604, foi uma das maravilhas do seu tempo. Só Leão I(440-61) rivaliza com ele como bispo pastoral e teólogo.

Gregório era de estatura mediana, com uma enorme cabeça calva, de cuja relíquiamuitas cidades — Constança, Praga, Lisboa, Sens — viriam a reclamar-se detentoras.

Page 294: Vigde cristo

294

A testa era alta e os olhos pequenos e castanho-amarelados. O nariz era aquilino, degrandes narinas, e os lábios grossos e rosados. Descendente de família nobre esenatorial, cedo decidiu tornar-se monge. Nunca gozou de boa saúde, especialmentenos últimos quinze anos de vida. Arruinou-a com os jejuns e penitências. Sofria tambémde indigestões e foi uma vítima da gota. Isto devia-se talvez ao vinho que importavadirectamente de Alexandria, aromatizado com resina, chamado Cognidium.

O Papa Gregório foi um dos primeiros pontífices a pôr o seu carimbo de aprovaçãona obra de Agostinho. A relação sexual, disse ele, é pecaminosa não só durante agravidez, mas também durante a aleitação. Depois de dormir com a mulher, um homemnão pode entrar na igreja enquanto não se purificar pela penitência e pela lavagem,porque a sua vontade permanece maléfica. O casamento não é pecaminoso, mas osexo realizado pelos cônjuges certamente que o é. Gregório também segue Agostinhoao estabelecer uma estreita relação entre sexo e pecado original.

O pecado original é uma corrupção inata da alma. Reveste a forma de luxúria econcupiscência, é uma revolta da carne contra o espírito. Deriva em última instância deAdão, o primeiro representante da raça humana. Por causa do pecado de Adão, asubstância mesma da humanidade ficou manchada. É como se Adão, o primeirohomem, tivesse contraído uma doença infecciosa que leva inevitavelmente à morte.Esta doença é transmitida a todos os membros da espécie ao nascer. Adão agiu emnome da humanidade — não havia mais ninguém nessa altura — daí que o que ele fez,toda a gente o fizesse também. Portanto, toda a gente é responsável por aquilo que elefez.

Neste assunto, Gregório tomou S.Paulo à letra: «Em Adão todos pecámos». Isto querdizer que há culpa desde o primeiro momento da nossa existência. Não é uma máculapessoal, mas uma mácula da natureza, portanto inevitável. A natureza vem dos pais.Desde o princípio a alma do bebé é poluída por este pecado original, este pecadoherdado.

Gregório não ignorava os problemas que isto levantava. Por exemplo, os pais erampurificados do pecado original no baptismo. Como é que eles podiam transmitir opecado original aos filhos? Ele responde: Embora eles próprios estivessem purificados,transmitiam a natureza corrupta pelo sexo, o desejo galvanizado pela luxúria. Os bebésnascem como fruto condenado da luxúria dos seus pais redimidos. São desde logo oproduto de Gehenna ou Inferno; são justamente filhos da ira porque são pecadores. Semorrerem sem serem baptizados, estão condenados a tormentos eternos por meraculpa do seu nascimento. A própria existência é um estado de pecado; nascer éhabilitar-se a penas eternas.

Para provar que as opiniões de Gregório não têm interesse apenas para oshistoriadores, basta analisar o cânone 747 do código de leis da Igreja de 1917. Estecânone, embora retirado do código revisto de 1983, ainda determina as práticasimpostas pelos moralistas. Poucos textos literários haverá mais tristes do que este. Seum bebé corre o perigo de morrer ainda no ventre, deve ser baptizado antes de nascer.O grande apelo de Cristo «Ide, baptizai todas as nações», fica reduzido a alguém — ummédico, uma enfermeira, um padre, um marido — às apalpadelas dentro do ventredurante um parto difícil para baptizar o não-nascido com água de uma seringa. Pode-seimaginar o duplo terror da mãe. Nem Swift com toda a sua inventiva satírica podia terimaginado tal comportamento.

Gregório concorda com Agostinho que o desejo sexual é pecaminoso em si mesmo.Escreveu ao outro Agostinho, o apóstolo de Inglaterra: «O desejo sexual éabsolutamente impossível sem pecado», de modo que todo o acto sexual no casamentocarece de penitência para a sua expiação.

Page 295: Vigde cristo

295

«Nós chegamos ao mundo», diz Gregório com imponência, «vindos da corrupção,com corrupção e transportamos connosco a corrupção». É sua convicção que «oPríncipe deste mundo está envolvido na acção, na palavra e no pensamento daquelesque estão relacionados com o prazer carnal». Só Jesus conseguiu escapar. «Só Aqueleque nasceu verdadeiramente santificado para que pudesse conquistar essa mesmacondição de uma natureza corrupta, não foi concebido por conjunção carnal». Há aqui,como já apontámos, uma negação da concepção imaculada de Maria.

Nada do que aqui se diz tem como intenção ofender a memória de Gregório. As suasideias foram partilhadas por muitos homens de grande estatura antes e depois dele. Oproblema apenas se levanta porque ele era papa; e os papas agora são tidos comoguias infalíveis; ensinam doutrina eterna e estabelecem absolutos morais. As opiniõesde Gregório apenas são um embaraço por causa da crença católica de que os papasnão podem ter errado, e errado gravemente, sobre uma coisa tão básica como o sexo eo casamento.

Há uma outra enorme dificuldade para os católicos que aqui deve ser referida. Sequando escreveu a Humanae Vitae Paulo se sentiu obrigado a concordar com os seusilustres antecessores, como Pio XI e Pio XII, por que é que não reparou no PapaGregório? Ele não era propriamente um peso-leve. Em qualquer lista de pontífices, teriade figurar entre os primeiros seis. Herdou uma Roma em ruínas, cercada de bárbaros.Numa década tornou-a herdeira do Império dos Césares do Ocidente. Se o papadoensina de facto absolutos morais, certamente que Paulo VI devia ter tido tantapreocupação em ensinar aquilo que Gregório ensinou no século VI como teve em repetiros ensinamentos de Pio XI no século XX. Ou será que o facto de os pontíficesmodernos contradizerem a doutrina de Gregório não é relevante?

Depois do Papa Gregório

O profundo pessimismo de Agostinho acerca do sexo, do casamento e do pecadooriginal encontrou o seu campeão supremo no Papa Gregório. A sua doutrina passouincólume para a Idade Média. Os casais eram avisados de que não deviam ter relaçõesna noite de núpcias porque profanavam o sacramento do matrimónio. Como é que otempo diminuía o mal de uma coisa intrinsecamente sórdida nunca ficou muito claro.Lecky relembra a visão de Santo Alberico do século XII em que no Inferno há um lagode tormentos — resina, chumbo em brasa, pez incandescente — à espera dos casaisque tiveram a ousadia de dormir juntos nas festas da Igreja ou em dias de jejum. Nocentro de O Martelo das Bruxas, de Kramer e Sprenger estava a crença de que o sexo étão irrevogavelmente mau que é a porta principal por onde Satanás entra no mundo.

Distintos teólogos da Idade Média interpretaram simplesmente as ideias de Gregóriode uma maneira mais escolástica. Os séculos sucedem-se e o acto sexual é descritoem termos de pecado e nunca em termos de amor. Os teólogos, todos celibatários, nãoconseguiram apreender o ponto mais básico da relação sexual entre os humanos, emoposição aos animais: que ele é um acto de amor.

Esta atitude negativa prevaleceu na teologia moral deste século. Em 1966, emInglaterra, foi publicado um livro chamado Birth Regulation and Catholic Beliefs. Foraalegadamente escrito por G.Egner e publicado em Munique. Tem uma dedicatóriaalemã e um prefácio de agradecimento ao tradutor. Na verdade foi escrito em inglês porum padre com um nome muito irlandês.

O Padre Egner seleccionou interessantes excertos dos mais respeitáveis teólogosmorais desse período sobre o sexo, os quais constituem uma leitura sombria.

Page 296: Vigde cristo

296

Capello, ao falar de jogos amorosos, diz que os cônjuges podempraticar quaisquer actos lascivos incompletos. Estes incluemcontactos oral-genitais, pois embora extremamente obscenos, sãoporém legítimos. Génicot, para quem tais actos são imundíssimos enormalmente pecado mortal, fala de actos lúbricos permitidos aoscônjuges, de palavras e aspectos sujos, de toques nas partes docorpo decentes, menos decentes e indecentes.

Como Egner salienta, as opiniões destes moralistas são tão lamentáveis como a suaprópria linguagem. Os jogos amorosos são praticados «naquilo que só pode ser descritocomo um ambiente de pecado venial tolerado», como se o pecado fosse «uma infracçãotécnica a um qualquer regulamento». Teve a coragem de repescar dos livros de textoestas e outras observações e permitir que os católicos vissem como o seu clero eratreinado para entender estes problemas. Porque o que Egner revelou foi que os guiasmorais não faziam ideia nenhuma daquilo de que estavam a falar. Carecendototalmente, como um todo, de experiência prática, eram como um grupo de cegoscongénitos a pontificar sobre «a cor na arte moderna».

Contra este pano de fundo, a encíclica de 1930, Casta connubii, de Pio XI, ficouclara. O que nesta mais intriga é a maneira como o pontífice selecciona osensinamentos dos seus antecessores.

Na secção 14, segue o Papa Gregório ao dizer que mesmo os pais purificados nãopodem transmitir a pureza aos filhos. O nascimento é «uma condição de morte pela qualo pecado original é transmitido para a posteridade». O bebé carece de ser regeneradonas águas do baptismo. Por que é que Pio XI não completa a doutrina de Gregório einsiste que os bebés são o produto do Inferno e que estão condenados, se morreremsem o baptismo, a acabar em tormentos eternos? Por que é que Pio aceita os princípiosde Gregório e não aceita também as suas conclusões?

Na secção 23, Pio XI cita a expressão de Santo Agostinho «a fé da castidade». Cita,em concordância, as palavras de Agostinho «A fé matrimonial exige que o marido e amulher se juntem num amor especialmente sagrado e puro e não que se amem comoadúlteros». O que ele não diz é que o propósito de Agostinho era, com isto, o decondenar aquilo que ele, Pio, permite. Porque na secção 59 Pio escreve:

Aqueles que, na situação de casados, usem os seus direitos demaneira adequada, também não são considerados como agindocontra a natureza, embora por razões de ordem natural, quer detempo quer de certos defeitos, não possa ser produzida uma novavida. Porque no matrimónio, bem como no uso dos direitosmatrimoniais, há também fins secundários, tais como a ajuda mútua,o cultivo de amor mútuo e o acalmar do desejo, os quais não estãovedados a marido e mulher desde que estejam subordinados aoobjectivo primário e também que a natureza intrínseca do acto sejapreservada.

Embora Pio tivesse pouco antes falado (secção 54) de «tradição cristã ininterrupta»,quase tudo neste excerto é contra a tradição cristã. Agostinho e Gregório contradiziamtudo isto expressamente. Não faziam a distinção entre fins primários e secundários docasamento. O casamento destinava-se à procriação; este não era o fim primário, mas oúnico fim que podia justificar a relação sexual. Qualquer outro fim que se acrescentasse

Page 297: Vigde cristo

297

ao da procriação era pecado. Portanto é uma ingenuidade da parte de Pio dizer que nãohavendo interferência na natureza não há pecado; um casal pode ter relações sexuaispara alimentar o amor mútuo, para apaziguar o desejo, etc.. O Papa Gregório teria ditoque o sexo não é para isso, não é senão para ter filhos. Tudo o resto tem de serpecado. Esta é que era a tradição cristã ininterrupta e não a opinião de Pio XI. AtéInocêncio XI (1676-89) decretou solenemente que ter relações sexuais por puro prazeré pecado. Isto era lógico. Se o sexo era para procriar e não podia produzir um filho oupor a mulher ser estéril, ou por estar grávida ou ter já passado a menopausa, o actosexual tinha de ser pecado.

Uma coisa é Pio XI alterar radicalmente a tradição, outra muito diferente é dizer que asua doutrina está de acordo com ela. Porque ao fazer a distinção entre os objectivosprimário e secundário do casamento e permitir o secundário na condição de que se nãoimpeça o objectivo primário, ele introduziu um critério inteiramente novo para julgar asexualidade. E que critério é este?

A tradição era que a moralidade do sexo é julgada por uma única coisa, a saber, sese destina à procriação. Pio substituiu isto pela integridade da relação sexual. Se o actosexual for consumado, isto é, se houver penetração e inseminação, nada maisinteressa. Portanto, se a mulher já estiver grávida ou for estéril, havendo penetração einseminação, trata-se de um acto virtuoso. Há duas importantes falhas nesta opinião.Primeiro, ela vai contra mais de mil e quinhentos anos de tradição cristã. Segundo,substitui um critério moral, por muito inadequado que seja, por um critério biológico. Pioiniciou uma nova tradição: a de julgar a moralidade do sexo não olhando às pessoas eao que elas fazem como pessoas mas à “integridade“ física de um acto. Obviamenteque se o biológico é a única coisa a considerar, nada pode justificar a contracepção,nem o amor dos parceiros, nem a saúde da mulher, nem a estabilidade da família, etc..Deve dizer-se, portanto, que quando invocou a tradição «constante» da Igreja sobre acontracepção Paulo VI estava na realidade a invocar uma doutrina que remontava aquarenta anos antes, à Encíclica Casti connubii, e que ia contra a genuína tradição.

A recusa do Concílio Vaticano II de fazer a distinção entre fins primário e secundáriodo casamento foi de grande sensatez. Essa distinção tornava impossível qualquersolução para o dilema da contracepção.

Em tempos recentes os moralistas tomaram consciência das muitas dimensões dasexualidade. Freud mostrara que o sexo não é primordialmente de ordem genital ou decontactos genitais mas envolve o ser humano e o seu relacionamento. A velha doutrinafazia uma abordagem da sexualidade inteiramente genital. Uma vez reconhecido que osexo diz respeito às pessoas e ao amor, era vital que isto fosse integrado na moralidadecristã do sexo. Em vez de repensar a sexualidade, os moralistas foram obrigados peloSanto Ofício e pela Encíclica Casti connubii a simplesmente acrescentar às velhas asnovas descobertas. O resultado foi um híbrido. A Encíclica Casti connubii tem de factoelementos modernos — a ajuda mútua, o amor mútuo — mas estes estão presos àquiloque agora se chama o fim primário do casamento, isto é, a procriação.

Contudo, a nova solução híbrida é tão inaceitável como a solução tradicional e émuito menos lógica. De facto, a nova não é de modo nenhum uma solução moral.Classifica o amor de “secundário” e subordina-o a um critério biológico da sexualidade.O que realmente importa é o coito correcto. O amor, o respeito, a compaixão, apreocupação pelos filhos já nascidos — todos estes elementos morais são secundáriosem relação ao elemento biológico, isto é, a penetração e inseminação. Se esteselementos biológicos estiverem presentes, o acto sexual está de acordo com a “leinatural”. Mas os elementos verdadeiramente da lei natural, o amor e a compaixão, nãopodem desempenhar o papel determinante naquele que é o mais moral de todos os

Page 298: Vigde cristo

298

actos, a relação sexual entre marido e mulher. Na Encíclica Casti connubii já estavainscrita a tragédia que por fim se desenrolou na Humanae Vitae.

Pode dizer-se justamente que hoje a Igreja Católica está mergulhada numa tragédiaporque os papas interpretaram mal a sua própria tradição. Pio XI estruturou umaencíclica baseada na doutrina de Agostinho e depois completou-a com muitas coisascontrárias a toda a tradição que Agostinho influenciou. Pio XII pareceu ignorar quetambém ele negou a longa tradição da Igreja.

Em 1940, numa alocução a recém-casados disse:

O mesmo Criador, que na Sua bondade e sabedoria quis que otrabalho do homem e da mulher unidos pelo casamento servisse aconservação e propagação da raça humana, também dispôs quenessa função, o casal devia experimentar o prazer e a felicidade nocorpo e na alma. Portanto, o casal, ao procurar gozar este prazer,não age mal.

O pontífice fala de prazer, aparentemente incapaz de se resolver a falar da relaçãosexual como um acto, o acto de amor. Esta escolha que faz da linguagem éinteressante por duas razões. Primeiro, contradiz a doutrina da maioria dos pontíficesanteriores, que disseram que o prazer sexual nunca está isento de pecado e que oscasais não deviam comungar na manhã seguinte às relações. Segundo, ao concentrar-se no prazer, recusando pronunciar a palavra "amor", coloca a procriação como fimprimário do casamento. Mas, se "prazer" tem um ligeiro sabor a hedonismo, então e"amor"? Será que à luz do Evangelho Pio XII podia tão facilmente ter subordinado "oamor" à procriação? Certamente que não.

Mas onde Pio XII mais se afastou da tradição foi nas palavras que em 1951 dirigiu àsparteiras. Aí, e pela primeira vez, um pontífice acolheu com reservas o método do ritmopara a prevenção da natalidade.

Embora no século XIX se tivessem feito algumas tentativas para lhe dar um caráctercientífico, este método revelou-se demasiado falível até Ogino e Knaus publicarem assuas descobertas, nos fins dos anos 20. Enquanto que Roma já anteriormente sepronunciara contra a moralidade do método, o discurso de Pio XII provocou umaalteração completa no pensamento da Igreja.

Segundo ele, a utilização do período infértil era legítima porque não corrompia anatureza do acto. «Eles não impedem nem prejudicam de nenhuma maneira aconsumação do acto natural e das suas posteriores consequências naturais». Marido emulher precisariam de uma boa razão para utilizarem o período seguro, mas, em simesmo, isso não é condenável. É esta doutrina que Paulo VI repete na Humanae Vitae,secção 11.

Parece que nenhum dos dois pontífices reparou que era a primeira vez na história doCatolicismo que se dizia que o acto sexual era virtuoso em si mesmo, não simplesmentequando a procriação não era possível, mas porque a procriação não era possível.

Infelizmente, Pio XII, tal como Pio XI, fizeram da biologia o critério da moralidade, oque veio quebrar os tradicionais laços entre sexo e procriação. Mas ao mesmo tempoque garantia aos católicos o direito de regularem por si próprios os nascimentos, nãodeixando toda a questão nas mãos da "providência", também os privava dos meiossatisfatórios de o fazer. Com esta única decisão, Pio XII pôs os católicos num caminhoatulhado de termómetros e calendários. Melhor seria ter-lhes deixado a única alternativatradicional, isto é, a de procriarem ou absterem-se completamente do sexo.

Page 299: Vigde cristo

299

Para o futuro, e previsivelmente, a Igreja Católica carrega uma doutrina sobre ocontrole da natalidade que cortou todos os laços não só com o seu passado cristão mastambém com o mundo moderno. Apegar-se a velhos princípios em face do hedonismocontemporâneo é uma coisa; produzir um novo princípio que impede os casais deregularem a sua família em face da explosão demográfica é outra completamentediferente.

Um exemplo histórico já aqui referido pode ajudar ao esclarecimento do actual dilemacatólico.

O Pecado Original e o controle da natalidade

De acordo com a tradição de séculos, formulada por Agostinho e sancionada peloPapa Gregório e por todos os seus sucessores, o baptismo era um pré-requisito para asalvação. Os bebés apenas com dias nascidos de pais cristãos iam para o inferno semorressem sem serem baptizados. O mesmo acontecia com os catecúmenos semorressem inesperadamente. Claro que todo o mundo pagão estava condenado àdanação. Segundo Agostinho, mesmo o Bom Ladrão só foi salvo porque foi baptizadode maneira não especificada.

Não há melhor prova da falibilidade da Igreja do que esta. Não é que os pontífices eos padres dissessem que não sabiam como é que os bebés podiam salvar-se; diziamera categoricamente que isso era impossível. Não alegavam ignorância sobre o destinoda enorme parte da humanidade que nunca ouvira falar de Cristo; afirmavam, isso sim,sem reservas que todos eles iriam para o inferno. Fora da Igreja não havia salvação ecom “Igreja” eles queriam dizer Igreja Católica, onde só se entrava através do baptismoda água. Estas ideias foram repetidas século após século sem uma única vozdissidente. Era a doutrina católica sempre pregada por toda a gente em toda a parte. Jávimos que quando Francisco Xavier foi para a Índia, tinha a certeza de que os pagãosnão baptizados, por muito virtuosos que fossem, não podiam ir para o Céu.

A impiedade dos cristãos das primeiras gerações espanta toda a gente hoje, mas,fossem quais fossem as razões, ela é um facto. Qualquer católico que duvidasse distoteria sido queimado pela Inquisição. Segundo Lecky, esta doutrina ultrapassava ematrocidade qualquer dogma adoptado pelos pagãos. Mereceu de Tácito o rótulo de«superstição perniciosa». Escreve Lecky:

Que uma criancinha que morra antes de ser aspergida com águabenta apenas alguns minutos depois de nascer seja neste sentidoresponsável por o seu antepassado há seis mil anos atrás tercomido o fruto proibido, que ela seja com perfeita justiçaressuscitada e atirada para o abismo do fogo eterno em expiaçãopelo crime ancestral, que o todo justo e misericordioso Criador, noexercício pleno destes atributos, traga ao mundo seres conscientesque Ele da eternidade destinou irrevogavelmente a sofrerimplacavelmente torturas indizíveis, são propostas simultaneamentetão extravagantemente absurdas e tão inefavelmente atrozes que asua adopção podia bem levar os homens a duvidar dauniversalidade da percepção moral. Tal doutrina é, de facto,simplesmente demonismo e demonismo na sua forma extrema.

Page 300: Vigde cristo

300

Demonismo extremo ou não, isto foi ortodoxia católica quase até aos temposmodernos. Nem nos manuais das bruxas a imagem de Deus foi tão denegrida. As maismonstruosas crueldade perpetradas por Átila, o Huno, ou por Hitler empalidecemquando comparadas com as crueldades atribuídas a Deus, o Pai do Nosso SenhorJesus Cristo, pelos gentis teólogos e pelos contemplativos monges. De facto, nem odiabo foi pintado com cores tão sinistras.

O verdadeiro mistério é por que é que os cristãos mantiveram estas ideias durantetanto tempo. Só há uma resposta: a autoridade. A autoridade da Bíblia, na primeirainstância, mas a Bíblia interpretada pelos doutrinadores da Igreja (o magisterium). Asmísticas palavras de S.Paulo «Em Adão todos pecámos» foram estupidamenteinterpretadas como implicando que até os recém-nascidos eram responsáveis pelopecado original e condenados ao inferno se morressem sem serem baptizados.

cristãos que nunca se teriam perdoado se tivessem magoado gratuitamente umacriança, ficavam satisfeitos ao pensar que Deus a puniria com indizíveis tormentoseternos por uma coisa que não estava no seu poder evitar. Nenhum pai ou mãe cristãopodia jamais acreditar sinceramente; mas consentiam-no. Este é talvez o melhorexemplo da história em que a autoridade católica, sem a razão nem a humanidade doseu lado, exige obediência a uma doutrina moralmente absurda. Como Lecky tambémobservou:

Os cristãos consideram uma questão de dever e um recomendávelexercício de humildade reprimir o sentimento moral da sua naturezae conseguem por fim convencer-se que a sua Divindade ficariaextremamente ofendida se eles hesitassem em Lhe atribuir asqualidades de um demónio. […] A sua doutrina é aceite como umaespécie de milagre moral e, como é costume numa certa escola deteólogos, quando eles enunciam uma proposição que é claramentecontraditória, chamam-lhe mistério e uma questão de fé.

Isto pode equiparar-se à doutrina papal sobre o controle da natalidade. Precisamentecomo o Deus do Papa Gregório condenava as crianças ao fogo eterno do inferno, oDeus do Papa Paulo condena milhões de seres humanos a um inferno na terra. Adiferença é que hoje os católicos comuns dizem que pensam que o Papa Paulo errou.

Não há argumentos válidos que apoiem a opinião de Paulo VI sobre a moralidade oua sua ideia da Divindade por detrás da natureza humana. O que continua a intrigar é arazão por que o Papa Paulo, que subscreveu o mito de que todos os papas dizem omesmo, foi tão selectivo na escolha dos seus antecessores que não quis contradizer.Por que é que não se importou de contradizer o Papa Gregório, cuja ideia de que o sexoé sempre pecaminoso, mesmo quando dele resulta um filho, foi repetida por muitospapas, incluindo Gregório VII e Inocêncio III? Por que é que não se importou de ir contraa tradição segundo a qual as crianças que morrem sem o baptismo vão direitas para oinferno para toda a eternidade? Por que é que ele não se importou de contradizer ogrande número de pontífices que disseram que sexo e amor são incompatíveis? E SistoV que disse que a contracepção é uma forma de homicídio? Por que é que a grandepreocupação de Paulo foi a de não contradizer Pio XI e Pio XII?

Será que a resposta é simplesmente que Paulo vivera sob Pio XI e Pio XII? Que estefacto ocasional como que tornava o desacordo com eles mais intragável do que odesacordo com Gregório, com Agostinho e com a grande tradição? Ou não saberia eleque aquilo que chamou de «tradição constante» tinha apenas uns confusos quarentaanos de idade?

Page 301: Vigde cristo

301

Seja qual for a razão desta inconsistência, para a Igreja ficou a tentativa de arcar comuma moralidade biológica. Uma ética celibatária já tinha posto o laicado na prateleira.Um casal a viver numa barraca com uma dúzia de filhos tem de usar o período seguroou então dormir de costas voltadas. A masturbação é sempre pecado mortal, mesmoquando o objectivo é averiguar a razão por que o marido não consegue engravidar amulher. De acordo com a lógica, a masturbação é mais imoral do que o adultério, pormenos natural. Um violador que usa um preservativo peca mais do que aquele que onão usa. A fertilização in vitro está automaticamente banida, por maior que seja oprogresso da ciência neste campo, porque o único processo “natural“ de um casal terfilhos é a relação sexual; se para eles o processo não resulta, têm de conformar-se coma situação e ficar sem filhos. Em todos os seus estádios, a moralidade católica sobre osexo trai a sua origem clerical. Não se trata de despeito de celibatários contra oshomens que eles invejam ou contra as mulheres que eles odeiam; eles simplesmentenão compreendem.

Um último ponto: Pio XII, contrariado, deu o seu nihil obstat ao uso do períodoseguro. Agora, este é o método padrão católico para evitar a concepção. A doutrinaoficial é que é moralmente correcto ter relações sem a intenção de procriar, conseguirsatisfação sexual sem os inconvenientes da gravidez. É curioso como Marie Stopes, naInglaterra, e Margaret Sanger, na América, foram simultaneamente atacadas pela Igrejacatólica por defenderem os mesmos princípios gerais. Levanta-se então a questão: sePio XII queria realmente continuar a grande tradição católica, o que é que devia ter dito?

Logicamente que devia ter argumentado: o sexo destina-se apenas à procriação.Tudo o resto que envolva relações sexuais para além do desejo de procriar é pecado.Portanto, usar o período seguro é, como Agostinho claramente ensinou, tão pecaminosocomo usar o preservativo. Pio XII devia, na verdade, ter ido mais além.

Se a tradição é que o sexo se destina unicamente à procriação, mais uma razão paraa Igreja saudar a descoberta do período seguro. Os casais deviam considerar seu deverdescobrir a altura em que o sexo não é seguro e restringir as relações apenas a esseperíodo. Dessa maneira, não estariam a desperdiçar preciosas sementes de vida, coisaque todos os Padres da Igreja disseram que estava errado. Isto significa que oscatólicos devotos, longe de se limitarem ao período seguro, deviam era evitá-lo. Umavez completas, as famílias dirão adeus ao sexo.

O facto de Pio XII e os seus sucessores não terem seguido esta linha dá maiscréditos à sua bondade do que ao seu espírito lógico ou à sua compreensão da históriada Igreja.

Como os pontífices recentes, apesar de toda a retórica sobre a “constância”,rejeitaram, na sua maioria, as ideias dos seus antecessores sobre o sexo e o controleda natalidade, talvez também se tenham afastado da tradição noutros assuntos. Porexemplo, sobre o aborto. E, primeiro que tudo, sobre o divórcio.

Page 302: Vigde cristo

302

Page 303: Vigde cristo

303

18Os Papas, Pioneiros do Divórcio

A Igreja Católica, diz-se repetidamente, é contra o divórcio. A proscrição estende-se atoda a parte. O Vaticano não aceita credenciais de embaixadores e de outrosdiplomatas menores que sejam divorciados ou casados com pessoas divorciadas.Podem ser protestantes ou até ateus, mas eles e as esposas têm de estar, em termosmatrimoniais, acima de qualquer suspeita.

A maioria das pessoas, incluindo as católicas, sustenta que o divórcio nunca éautorizado pela Igreja, embora muitas, à socapa, murmurem que a Igreja o permite soboutros nomes. Mesmo os católicos divorciados tendem a acreditar que a sua igrejadefende que todos os casamentos são para toda a vida e recusa o divórcio a qualquerpessoa, sejam quais forem as razões.

Os católicos falam com orgulho da recusa do Papa Clemente VII em conceder odivórcio a um monarca tão poderoso como Henrique VIII, que queria trocar Catarina deAragão pela jovem e bela Ana Bolena. Em rigor, Henrique apenas pediu a anulação doseu primeiro casamento, favor que o Papa Alexandre VI concedeu à sua filha Lucréciaapós três anos de um casamento abundantemente consumado. Os fundamentos deHenrique eram melhores do que os de Lucrécia. Catarina foi primeiro para a cama edepois casou com o irmão de Henrique, Artur, que morreu. Daí que a dispensa papalque lhe permitiu casar com Catarina, argumentava ele, fosse inválida. Isto afligia-o.Provavelmente o facto de Catarina não lhe ter dado um herdeiro varão e também estara envelhecer tivesse alguma coisa a ver com os seus escrúpulos. Mas a sua irmãMargarida, Rainha da Escócia, tinha conseguido recentemente que Roma lhe anulasseo casamento com um pretexto menos consistente do que o seu.

Infelizmente para Henrique, o sobrinho de Catarina, o Imperador Carlos V, tinha opapa na mão, nessa altura. Primeiro, o papa deixou a impressão de que a pretensão deHenrique não apresentava grandes problemas. Mas quando Carlos V fez valer o seuconsiderável peso, a petição de Henrique no sentido de ser considerado como solteiroapós vinte anos de casamento foi finalmente rejeitada.

Toda a gente conhece casos piores do que o de Henrique VIII, mulheres que sevêem abandonadas, às vezes semanas apenas depois do casamento. Os seusparceiros constituíram talvez uma nova família algures, num outro país ou até noutrocontinente. Mulheres ligadas a bêbados e jogadores, a brutos que lhes batem a elas eaos filhos. E para sermos justos, devemos acrescentar também os homens casadoscom mulheres que lhes batem regularmente. Pessoas que descobrem tarde demais quese uniram a alguém que é homossexual ou bissexual, que sofre de doença venérea, ouque enlouquece, ou que tem uma tara religiosa. Todas estas alterações no dramadoméstico são o manancial básico das novelas televisivas. Para todas estas complexassituações, a Igreja Católica só tem uma única solução: a separação, mas nunca odivórcio. Os laços do matrimónio, dizem os pontífices um após outro, são por suaprópria natureza indissolúveis. «Os casamentos são feitos no Céu», mesmo quepossam acabar no inferno. Nenhum poder terreno pode quebrar estes laços. «O queDeus uniu, não o separe o homem». Qualquer abrandamento desta regra abriria ascomportas do dilúvio.

Page 304: Vigde cristo

304

E não foi isto que aconteceu? No mundo ocidental houve um tremendo aumento daincidência do divórcio. No Reino Unido, antes de 1858, o divórcio só era concedido poruma lei especial do Parlamento. Entre 1669 e 1858, houve apenas 229 divórcios, dosquais só três ou quatro foram concedidos a mulheres. Hoje, os casamentos duram emmédia nove anos e o fundamento para o divórcio é o colapso irrecuperável da relação.

Nos Estados Unidos, onde não havia divórcio antes da Revolução, este tornou-se umnegócio como qualquer outro — como, digamos, a venda de automóveis ou deamendoins. Os divórcios contribuem para a produtividade nacional. Em 1930, ano daEncíclica Casti connubii, houve menos de 200.000. Por volta de 1975, havia já mais deum milhão por ano. Hoje, a taxa do divórcio nos Estados Unidos é a mais elevada domundo.

Na Inglaterra seiscentista, John Milton foi uma voz isolada a protestar contra a nãoexistência do divórcio. Hoje, está acompanhado de multidões. O poeta, cuja mulher oabandonou, fez, no seu Tetrarchordon, um comentário sobre as palavras «O que Deusuniu»:

Havemos nós de dizer que Deus uniu o erro, a fraude, aincapacidade, a ira, a discórdia, a eterna solidão, o eternodesacordo; se o desejo, ou o vinho, ou a bruxaria, a ameaça ou aincontinência, a avareza ou a ambição uniram fiel e infiel, cristão eanti-cristão, ódio e ódio ou ódio e amor — havemos nós de dizer quefoi Deus que os uniu?

Só o papa pode conceder o divórcio

Até há bem pouco tempo, os católicos que se divorciavam e voltavam a casar viam-se como "maus católicos". A viver em pecado, estavam a caminho do inferno.Sondagens recentes, além de revelarem que as percentagens de divórcios entre oscatólicos estão pouco abaixo da média, mostram que os divorciados já não se vêemcomo maus católicos. Tal como desafiam o papa ao usarem os contraceptivos, oscatólicos também se divorciam sem um sentimento de culpa ou de vergonha. É verdadeque o divórcio é normalmente uma experiência traumática, mas os católicos divorciadoshoje já não carregam o fardo acrescido dos seus antepassados: já não se consideramcondenados. Muitas vezes parecem sentir não que falharam no casamento, mas que ocasamento os enganou. De qualquer maneira, uma vez acabado, o casamento estáacabado de vez, mesmo quando reconhecem a responsabilidade parcial ou total quetiveram na sua destruição. Para quê fingir que existe um qualquer tipo de laço —místico, metafísico — quando sabem que entre eles tudo acabou? O amor morreu. Viversem amor é pecado. Não voltar a casar seria tentar viver sem amor e um pecado mais.O clero celibatário não compreende que tentar remendar um casamento desfeito émuitas vezes como tentar refazer uma teia de aranha com as mãos.

Hoje, se as sondagens estão certas, a maioria dos católicos pensa que a Igreja deviapermitir o divórcio. É que, depois do divórcio, a vida de facto continua, e muitos queremviver essa vida por si mesmos e pelos filhos. Por que é que a Igreja prefere que os filhossejam criados sem uma família à sua volta? Isto não quer dizer, porém, que os católicosacreditem na possibilidade de uma mudança.

Como se viu no caso da Encíclica Humanae Vitae, a Igreja nunca muda. A sua forçareside em não mudar. Isso mostra uma firmeza de objectivos, uma recusa emcomprometer-se em termos de princípios básicos da moral. Quando pressionados,

Page 305: Vigde cristo

305

muitos católicos defensores do divórcio possivelmente concordariam que se a Igrejarealmente mudasse de acordo com os tempos poderia perder autoridade moral e muitosdos seus seguidores. Ela consola os seus filhos ensinando-lhes verdades eternas, emvez de se curvar aos ventos da moda. As verdades podem já não convencer ninguém, amoral pode já não ser aceite, mas elas estão lá, e os católicos, regra geral, sentem-sefelizes por o papa manter de pé esses padrões como ideais a atingir. É como se ascrenças fossem muito importantes mesmo quando não são verdadeiras.

Este livro já mostrou algumas das muitas questões em que a Igreja mudou, mesmoquando proclama que a mudança é impossível. O génio da Igreja reside na mudançamesmo naqueles momentos em que mais alto clama: Mudanças nunca. Depois deanalisadas, as chamadas "tradições" acabam por ter a idade de uma geração.

Como John T. Noonan mostrou no seu livro Power to Dissolve, ao contrário da crençapopular, a Igreja mudou em relação ao divórcio mais do que em relação à maioria dascoisas. Isto dificilmente poderá surpreender se considerarmos a complexidade dacondição humana e a variedade das experiências sociais. Era bom que a Igreja não seescondesse por detrás do mito de que nunca permite o divórcio, quando a verdade équase o oposto disto.

A Igreja permite o divórcio — ela prefere a expressão "dissolução dos laços" — emtodos os casos, com uma excepção: o casamento consumado entre dois cristãos.Longe de ser totalmente contra o divórcio sob qualquer forma, o papa considera-se aúnica pessoa no mundo com o poder de o conceder. Pio XI disse que este poder deDeus nem aos governos pode ser confiado. Os governos podem legislar, julgar,prender, até executar, mas o divórcio não lhes pode ser confiado. O facto espantosoque temos de encarar é que o papado foi pioneiro do divórcio na Europa, tal como o foida tortura. Foi o papado, e não os governos, que no século XVI reintroduziu o divórciona Cristandade, depois de vários séculos em que este foi ilegal, no tempo em que alegislação eclesiástica prevalecia mesmo nos tribunais civis.

Bonifácio VIII afirmava que todas as criaturas estão sujeitas ao pontífice romano.Esta ideia foi transportada pelos papas até ao presente século para cobrir todos oscasamentos. Mesmo os casamentos dos descrentes, dos infiéis, dos judeus emaometanos. Todos eles estão sujeitos ao pontífice romano, e este pode dissolvê-lospara salvação das almas, o que na prática, é o mesmo que dizer para benefício daIgreja Romana. A qualquer hora, há milhões de casamentos desfeitos por abandono,crueldade, incompatibilidade, maus tratos aos filhos e mulheres, infidelidade — casosque se encontram em cidades e aldeias obscuras de países tão afastados como o Zairee a Escócia, a Finlândia e o Canadá. Mas só uma pessoa no mundo, um velhocelibatário, que reside num palácio no Vaticano, foi dotado por Deus do poder de osdissolver. E isto nunca ele faz, a não ser que envolva qualquer interesse católico, casoem que age na qualidade de Vigário de Cristo, para trazer refrigério. Isto descredibilizaum pouco a ideia. Os laços naturais são tão fortes — "indissolúveis", como diz Roma —que é um erro grave um governo dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da China ou daUnião Soviética legislar no sentido de os quebrar. Mas nas mãos do pontífice romanoestes laços indissolúveis por natureza podem ser tranquilamente quebrados e oscônjuges autorizados a voltar a casar.

Nos anos 40 e 50, Pio XII aumentou este poder de dissolver casamentos a um pontoque era impensável para qualquer cristão de apenas uma geração atrás. Todos osconcílios primitivos da Igreja o teriam deposto por heresia.

Como o papa, longe de ser contrário ao divórcio, pode dissolver todos os tipos decasamentos excepto um, pergunta-se, poderá ele dissolver mesmo esse? A maioria dos

Page 306: Vigde cristo

306

católicos gostaria que ele dissolvesse casamentos cristãos consumados, para fechar ociclo, mas será que pode? A História tem algo a dizer sobre isto.

Antecipando um pouco e resumindo: alguns papas, por iniciativa pessoal a roçar oquixotesco, dissolveram casamentos. Ao fazê-lo desencadearam o movimento de forçasque acelerou até quase a perder o controle. Tem havido momentos na História — onosso é um deles — em que os papas emitiram decretos que implicitamente puseramem causa ou anularam a maioria dos casamentos do mundo. Neste cenário, o divórciocivil não provoca o mal, antes ajuda a pôr fim à concubinagem pública.

A imagem de uma Igreja Católica que nunca muda a sua doutrina sobre o casamentoé tão falsa que um cristão do século III teria ficado espantado com os ensinamentosmedievais; um medieval teria ficado ainda mais espantado com a doutrina do século XX.Sem dúvida que um cristão de hoje ficaria espantado se soubesse o que a Igreja iráensinar no próximo século ou no seguinte. À luz da História, a única improbabilidade éque a doutrina actual seja a última palavra. Independentemente daquilo que os papaspensam, ou digam que pensam, o facto é que a tradição católica não é uma merarepetição do passado, e também nem sempre é uma evolução do passado. É muitasvezes um afastamento radical de tudo aquilo que a precedeu.

A doutrina de Jesus sobre o matrimónio

A doutrina de Jesus, tal como vem relatada no Evangelho de S.Mateus, parece clara.

[Na Bíblia Judaica] disse-se: «Aquele que se divorcia da mulher, quelhe dê uma carta de divórcio». Mas eu digo-vos que todo aquele querepudiar a mulher, excepto por motivos de incontinência [porneia, nogrego], torna-a adúltera; e aquele que casar com a mulher repudiadacomete adultério.

Mais adiante no Evangelho Segundo S.Mateus, perguntaram a Jesus: Então, por queé que Moisés permite o divórcio?

Ele disse-lhes: «Por causa da dureza do vosso coração, Moiséspermitiu que repudiasseis as vossas mulheres, mas ao princípio nãofoi assim. Ora eu digo-vos: se alguém repudiar sua mulher, exceptoem caso de adultério, e casar com outra, comete adultério.»

As diversas interpretações que se fizeram desta passagem ao longo dos temposmostram que as coisas não são assim tão simples como parecem.

O primeiro problema centra-se na expressão «excepto por motivo de incontinência».O que é que se pretendia significar com «incontinência»? Teria a expressão sido usadano sentido formal de que alguém que violasse uma regra não era realmente casado?Quereria ele dizer simplesmente "infidelidade"? Seja qual for o significado, não é óbvioque o próprio Jesus considerava algumas excepções à regra?

Muitos Padres da Igreja e a maioria dos Padres do Oriente, com destaque paraS.Basílio, têm como certo que o divórcio era permitido por motivos de infidelidade. Estatradição, aceite por todos os primeiros sínodos da Gália, da Espanha e do Reino dosFrancos, mantém-se em vigor na Igreja Oriental. Dizer, portanto, que a Igreja sempreensinou que nenhum matrimónio cristão pode ser dissolvido em caso algum éhistoricamente falso. A menos que, convém acrescentar, a Igreja Oriental não fosse

Page 307: Vigde cristo

307

verdadeiramente católica, mesmo antes do Cisma, isto é, antes da sua separaçãoformal de Roma em 1054.

Depois da Reforma, no século XVI, só a Igreja Católica continua a afirmar que odivórcio é proibido a todos os cristãos cujo casamento se consumou. Estas duraspalavras continuam em vigor mesmo quando um cônjuge inocente é abandonado.Outras igrejas consideram possível que os cônjuges inocentes abandonados casem denovo depois do divórcio.

Ao contrário do que vulgarmente se crê, a Igreja Católica nunca definiu que oscasamentos católicos consumados não podiam ser dissolvidos. O Concílio de Trentoesteve quase a fazê-lo em 1563 quando, delicadamente, os embaixadores da Repúblicade Veneza recordaram aos padres que a Igreja Oriental concedia o divórcio. Estecostume, acrescentaram, nunca fora condenado por nenhum papa nem por nenhumconcílio ecuménico. Assim prevenidos, os bispos recuaram. Alteraram o texto. Em vezde condenar sem reservas as práticas orientais, limitaram-se a dizer: «Se alguém disserque a Igreja [Católica] erra quando ensina […] que os laços do matrimónio não podemser dissolvidos, que seja anatemizado». Isto deixava em aberto a possibilidade de aIgreja reavaliar esta posição em data futura. Desde o Concílio de Trento, isto nuncaaconteceu. A porta não se fechou.

Especialistas das Escrituras sugeriram recentemente que as Igrejas Oriental eOcidental abordaram os textos das Escrituras de forma errada. Jesus era vistoprincipalmente como um fazedor de leis, muito à maneira de Moisés. De facto, ele eravisto como um advogado canónico apostado em estabelecer critérios precisos para omatrimónio e para o divórcio. Esta a razão por que, ao longo dos séculos, a Igrejatransformou esta parte do Sermão da Montanha num documento legal. Desde então oscanonistas têm-se atirado aos pormenores como cães a um osso. Quais as condiçõesde um matrimónio legal e válido? Quais são as razões válidas para dispensar osimpedimentos da consanguinidade, dos casamentos mistos ou de um casamento comuma pessoa não baptizada? E por aí adiante.

Claro que o matrimónio faz parte da lei da Igreja e, à medida que a sociedade evolui,ela tem de responder com legislação por vezes complexa. O erro foi pensar que oSermão da Montanha tinha alguma coisa a ver com este tipo de questões.

Jesus apresentou aos discípulos o ideal do casamento. É muito pouco provável quetivesse na ideia qualquer excepção particular, quer por abandono, quer por infidelidade.Mas estabelecer um ideal de casamento é uma coisa e legislar em questões quemontam a uma complexidade Talmúdica, outra coisa completamente diferente. Ocontexto das palavras de Jesus torna isto muito claro.

No Sermão da Montanha, imediatamente antes de falar do casamento, Jesus disse:«Se a tua mão ou o teu pé são para ti ocasião de pecado, corta-os e lança-os paralonge de ti; mais vale entrar na vida manco ou coxo do que seres lançado no fogoeterno, com as duas mãos ou com os dois pés ». Um dos Padres gregos, Origen, tomouisto à letra e cortou o membro pecador, que não era a mão nem o pé. Isto foi umatragédia pessoal na medida em que Origen, que se distinguiu em interpretaçõesmísticas, não tomou quase mais nada da Bíblia literalmente.

A Igreja reprovou o uso que Origen fez da faca, temendo que se tornasse moda.Jesus não queria que nenhum seguidor seu cortasse a mão ou qualquer outra coisa.Mas o caso era diferente quando os papas, Padres e teólogos tratavam da questão dofogo do inferno que nunca se extingue. Isto, diziam eles, tinha de ser tomado à letra.Este erro foi pior do que o de Origen; levou-os a fazer, durante vários séculos,perguntas como estas: Que tipo de fogo é esse que pode arder perpetuamente sem

Page 308: Vigde cristo

308

nunca se extinguir? Que tipo de corpo é o dos mortos ressuscitados que pode arderperpetuamente? Onde é esse fogo? Nas entranhas da terra? E como é que uma pessoapode sentir o sofrimento do fogo antes de o seu corpo ressuscitar no dia final? E haviatambém questões éticas sem resposta. Como é que se pode justificar um castigo eternopara um acto cometido no tempo? Deus é infinito, logo, argumentavam elessuperficialmente, um pecado contra Ele também é infinito. E levantaram-se tambémquestões psicológicas. Como é que os pais podem rejubilar no Céu sabendo que osfilhos e filhas estão a assar no inferno? Já vimos como ao longo da maior parte dahistória do Cristianismo a Igreja sempre condenou ao fogo eterno os bebés nãobaptizados, como veredicto justo de Deus para eles. Este facto, misteriosamente, nãodiminui a bem-aventurança dos pais que alcançaram o paraíso. Como é que isto épossível? E os teólogos estavam metidos em mais uma trapalhada perfeitamente inútil.

Para os exegetas modernos, a resposta é simples. Jesus não falava literalmentequando se referiu ao «fogo eterno». Referia-se ao cemitério de Gehenna, nos subúrbiosde Jerusalém, que fumegava dia e noite, alimentado pelo lixo da cidade e peloscadáveres dos criminosos crucificados. Uma interpretação literal banaliza o que eleestava a dizer. O mesmo se aplica à sua doutrina sobre o matrimónio. Ele falaprofeticamente. Considera o casamento como um compromisso vitalício entre umhomem e uma mulher. Pecar contra esse compromisso é adultério. Interpretar istoseriamente não é o mesmo que tomá-lo à letra, o que, infelizmente, foi o que a Igrejamuitas vezes fez e levou os canonistas a meterem-se exactamente pelos mesmoscaminhos pedregosos que os teólogos tomaram em relação ao inferno e ao fogo doinferno. Um ideal não comporta excepções e Jesus estava a exprimir um ideal.Interpretar erroneamente uma questão como esta é transformar um ideal de matrimónionum regulamento de divórcio. Uma vez cometido esse erro, os canonistas começaram aperguntar-se: O que é que é necessário para um casamento legítimo e válido? O que éuma dispensa válida? E por aí adiante. Se a Igreja pode ou não pode permitir o divórcioe, em caso afirmativo, em que circunstâncias, são assuntos que não interessavamminimamente a Jesus. Ele era profeta e não canonista.

O curioso é que a Igreja sustenta que no Sermão da Montanha Jesus ensinou umadoutrina que é universal e não tem excepções. É obrigação da Igreja defendê-la.Contudo, nem um só elemento desta doutrina se pode encontrar no texto.

Em primeiro lugar, Jesus, que era judeu, dirigiu o Sermão da Montanha aos seusconcidadãos judeus. Estes não eram baptizados e provavelmente nenhum deles viriaalguma vez a sê-lo. Diz-se que Jesus lhes ditou a "lei" de que os casamentos decristãos baptizados, uma vez consumados, não podem ser dissolvidos. Por outraspalavras, pressupõe-se que Jesus proibiu o divórcio, em quaisquer circunstâncias, àprópria classe de pessoas a quem os papas ordinariamente o permitiram. Há registosde que Martinho V (1417-31) permitiu a judeus o divórcio e um segundo casamento deacordo com a sua lei. De facto, por todos os Estados Papais, era permitido aos judeusdivorciarem-se e voltarem a casar com a aprovação dos papas. Estes eram verdadeirospotentados; podiam, com um simples toque da pena, tê-los proibido, mas não o fizeram.Nos tempos modernos, os papas têm dissolvido, perfeitamente à vontade, oscasamentos dos judeus que querem converter-se ao Catolicismo. Isto significa que, naprática, embora interpretem o ideal de Jesus como lei rigorosa, os próprios papas abremexcepções. Uma estranha evolução, à luz da História.

Page 309: Vigde cristo

309

A doutrina da Igreja primitiva sobre o divórcio

A Igreja nasceu no tempo do Império Romano. Os romanos tinham uma atitudeliberal em relação ao divórcio. Cícero separou-se da mulher porque precisava de umdote extra. Augusto obrigou o marido de Lívia a divorciar-se dela quando estava grávidapara casar ele próprio com ela. As esposas, segundo um escritor romano, eram comoos sapatos: magoavam em sítios que as outras pessoas não viam. Quando os sapatosnos magoam, calçamos outros. S.Jerónimo conta que na Roma do seu tempo umamulher ia casar-se pela vigésima terceira vez, e seria a vigésima primeira mulher dofuturo marido. O casamento não era, claramente, mais do que uma ligação ocasionalque podia ser dissolvida quase à vontade do freguês.

A Igreja, pelo contrário, insistia que as relações sexuais são proibidas excepto nocontexto de uma relação com carácter permanente. Quando o Cristianismo seinstitucionalizou, os matrimónios passaram a ser consagrados numa cerimónia religiosaespecial. Até ao século X, porém, a bênção da Igreja não era obrigatória. A naturalunião entre homem e mulher passava agora a ficar sob o controle do clero. Contudo, sódepois do Concílio de Trento, em 1563, é que o cerimonial do matrimónio ficoudefinitivamente estabelecido. A partir de então, o casamento não mais seria válido a nãoser que cada um dos membros desse o seu consentimento perante o padre da paróquia(ou de um seu delegado) e duas testemunhas. Mesmo isto só se tornou universal naIgreja com a publicação de Ne Temere, no ano de 1908.

Nos primeiros séculos, o casamento, abençoado ou não pela Igreja, reconhecido ounão pelo Estado, era considerado indissolúvel pelos cristãos. «O que Deus uniu, não osepare o homem». A lei civil continuou durante muito tempo a permitir o divórcio.Algumas tentativas feitas pelos imperadores, como por exemplo, Constantino, nosentido de o limitar falharam. O direito ao divórcio continuou intacto no código Justinianoque regulava o Império. Assim, durante séculos, a Igreja e o Estado seguiram os seuspróprios caminhos. A Igreja, no máximo, só permitia o divórcio e um novo casamento aum cônjuge abandonado, enquanto que o Estado reconhecia este privilégio a toda agente.

Carlos Magno, como chefe da Cristandade, fez os possíveis por harmonizar os doiscódigos. Sendo ele próprio divorciado, declarou o divórcio crime, embora,prudentemente, não lhe tivesse estabelecido qualquer pena. A Igreja excomungoualgumas vezes pessoas divorciadas, mas claro que ninguém tão importante comoConstantino ou Carlos Magno.

Só no século XII, quando a Europa era uma Cristandade, é que a Igreja e o Estadose juntaram na proibição do divórcio. A Igreja ganhara a parada. E o mais estranho éque foi a Igreja e não o Estado que começou a minar a instituição do casamento.

* * *

Os casamentos mistos são uma área em que ocorreram mudanças enormes nodecurso dos tempos. Trata-se dos casamentos entre cristãos e pagãos.

A Igreja proibiu-os desde o princípio, por serem contrários ao Evangelho. Como é queum cristão podia unir-se a alguém que, como ele acreditava, estava condenado ao fogodo inferno por não ser crente? Como é que um cristão podia aceitar que os seus filhosfossem criados sob influência pagã, ou até mesmo como pagãos, condenando-os assimaos tormentos eternos? Antes do Cristianismo, as diferenças religiosas não eramtomadas muito a sério. Só o Cristianismo é que foi tão exclusivista ao ponto de

Page 310: Vigde cristo

310

considerar todos os descrentes como material combustível. E, incidentalmente, tambémfoi o Cristianismo que introduziu um temor da morte até então desconhecido.

Os Padres apelidavam grosseiramente o casamento de um cristão com um pagão de"adultério" ou "fornicação", pois prostituía os próprios membros de Cristo ao uni-los aosmembros de uma prostituta herege. Logo que a Igreja se tornou a religião do Império, ocasamento de um judeu com um cristão passou a ser pecado capital. Um após outro, osconcílios denunciaram todos os casamentos entre cristãos e "outros" como um crime.

Esta atitude era tão vulgar que Graciano, no século XII, descreveu todos oscasamentos entre crentes e descrentes como «contrários aos mandamentos de Deus eda Igreja». Se um cristão encetasse uma tal ligação, devia separar-se imediatamente. Asua fé corria perigo, ele estava a corromper a moral e a fazer perigar a salvação dosseus filhos. A maioria dos teólogos, como Peter Lombard, dizia que os casamentosmistos eram nulos e inválidos.

Esta tradição não admitia excepções. A partir do Concílio de Trento, e até ao séculoXIX, a Inquisição providenciou para que nenhum católico, homem ou mulher, casassecom um protestante. Porém, embora os casamentos mistos fossem contrários à leidivina, em países como a Inglaterra e a Alemanha começaram a surgir costumes emsentido oposto. Sendo uma minoria, os católicos não tinham muitas vezes outraalternativa senão a de casarem com protestantes ou então simplesmente não casarem.E outras excepções houve autorizadas oficialmente por Roma. Clemente VIII permitiu,no ano de 1604, que um príncipe católico casasse com uma princesa protestante «parao bem comum». Nunca ficou muito claro como é que uma coisa contrária à lei divina eintrinsecamente má podia resultar num bem, comum ou não. Para minimizar os efeitosperversos dos casamentos mistos, Roma exigia certas garantias. O cônjuge católicotinha de fazer todos os possíveis para converter o outro; os filhos de ambos os sexostinham de ser educados como católicos. Tudo isto tinha de ser confirmado por escrito.

No século XIX, na Inglaterra e na Alemanha, passou a ser proibido aos católicoscasarem com protestantes sem autorização prévia. Em compensação, esta autorizaçãocomeçou a ser dada com cada vez mais facilidade. Aquilo que a Igreja condenara semreservas estava a tornar-se prática comum. Aquilo que tinha sido banido como contrárioà lei divina e intrinsecamente mau passava agora a lei canónica.

Enquanto que a linguagem dos papas continuava a mesma, a prática tinha mudadoconsideravelmente. No ano de 1748, Benedito XIV, numa carta enviada à hierarquiapolaca, chamava ao casamento entre católicos e protestantes «união sacrílega». Em 25de Março de 1830, na Litteris alto referia-se aos casamentos mistos como «crimesgraves». «A Igreja», dizia ele, «tem horror a estas uniões que tantas deformações eperigos espirituais apresentam». Tais uniões eram «pecados directos contra a leicanónica e divina». A Igreja primitiva dizia o mesmo e baniu-os. Seria isto realmenteuma evolução ou uma mudança de ideias fundamental?

Em 1858, Pio IX, no seu habitual estilo bombástico, disse que a Santa Sé só permitetais casamentos «perniciosos e detestáveis» por motivos sérios. Sem um motivo justo esério, acrescentava a Propaganda Fide∗, as dispensas não seriam válidas. Mas quandoem 1877 a Propaganda Fide publicou uma lista de dezasseis motivos «justos e sérios»que asseguravam uma dispensa, muitos deles eram afinal triviais. Por exemplo, éautomaticamente concedida uma dispensa se a mulher tiver mais de vinte e quatro anosde idade (superadulta). Ou se a parte católica estiver firmemente determinada a casarde qualquer maneira, não sendo na igreja, então, pelo civil. Um belíssimo exemplo dedesobediência recompensada. A partir de 1970 nem as garantias escritas são exigidas;

∗ Sagrada Congregação para a Propagação da Fé (N.T.)

Page 311: Vigde cristo

311

a palavra do católico de que fará o melhor pelos futuros filhos é suficiente. Por vezes,um católico num casamento misto pode até ser casado por um pastor protestante.Nesta questão parece que a Igreja chegou ao fim.

Os papas pareciam ter a esperança de que uma linguagem idêntica — tão ferozcomo a usada pelos Padres — ocultasse o facto de que houvera realmente mudanças.A magnitude das mudanças é tal que qualquer Padre da Igreja que ressuscitasse hojepensaria que Satanás tinha triunfado e a Santa Madre Igreja se tinha rendido aopaganismo.

Da doutrina sobre os casamentos mistos tira-se a seguinte lição: quando a IgrejaCatólica muda radicalmente diz que se estão a aplicar com benevolência os princípiosimutáveis às circunstâncias que mudaram; quando recusa mudar — como até agora emrelação à contracepção e ao divórcio para os cristãos — diz que os seus princípiosimutáveis não permitem qualquer mudança em circunstância nenhuma. Um cristãoprimitivo teria achado igualmente inacreditável qualquer mudança, fosse qual fosse omotivo, em questões de contracepção, casamentos mistos ou divórcio. A Igreja mudouem relação aos casamentos mistos. E quanto ao divórcio?

O divórcio papal de casamentos não consumados

Em meados do século XII, o Bispo inglês de Exeter pôs ao Papa Alexandre III umproblema de algibeira. Nos seus esponsais, um nobre da sua diocese tinha juradosolenemente casar com a noiva. Contudo, antes do casamento sentiu uma vocaçãopara a vida religiosa. Havia um conflito entre o seu juramento de casar e a sua divinavocação para servir Deus como monge. Alexandre era o melhor advogado do seutempo. A solução que adoptou não tinha precedentes nem lógica e levantou uma lebrecanónica que ainda hoje continua a correr. Muitas outras lebres loucas se lhe seguiram.

Segundo o papa, o nobre estava obrigado a cumprir o juramento casando com anoiva. Logo após a cerimónia, e sem qualquer união carnal, deixá-la-ia e entraria para oconvento. A sua decisão foi influenciada por estórias de santos — homens e mulherescom uma fobia ao sexo — que deixaram os esposos na noite de núpcias.

Só um celibatário total, encharcado de uma tradição anti-casamento podia terarquitectado este joguinho sujo. O casamento do nobre, disse Alexandre, seria válidoporque, segundo Graciano, é o consentimento e não o acasalamento que faz ocasamento. Não é verdade que Maria e José eram casados, embora a sua união fossevirginal? Mais ainda: a sua união virginal não era um casamento apenas genuíno, era ocasamento ideal. Depois de celebrado o matrimónio, o nobre de Exeter podia dissolvero casamento não consumado tornando-se monge. Era como que uma abordagemcavalheiresca do grande sacramento de Cristo e da sua Noiva, a Igreja. E onde é queestava a justiça para com a noiva? Os seus direitos conjugais, a sua honra e a da suafamília foram completamente ignorados. Sua Santidade não reparou nas palavras deS.Paulo: «O marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher».

A pergunta que os canonistas faziam era esta: Como é que a decisão unilateral domarido podia desfazer o casamento? No seu decreto Commissum, Alexandrerespondeu que este era um caso especial. O bem da religião sobrepunha-se ao bemmenor do casamento, os votos religiosos anulavam os votos do casamento. Os papasafirmam-se capazes de interpretar a Bíblia. Será que Jesus estava a pensar nestaexcepção quando disse: «O que Deus uniu, não o separe o homem»? Teria SantoAgostinho concordado que os fins do matrimónio — a procriação, a indissolubilidade, afidelidade — tinham sido salvaguardados por Sua Santidade ao permitir que um marido

Page 312: Vigde cristo

312

abandonasse a mulher logo após a cerimónia do casamento? Além disso, nãosignificava a decisão do papa que o matrimónio ideal, aquele que une duas pessoasvirgens como Maria e José, era o único dissolúvel? Sempre foi muito difícil de entendercomo é que um casamento virginal pode ser o ideal se o principal fim do casamento é aprocriação. A decisão de Alexandre sobre a dissolubilidade passou por cima doproblema.

Como Alexandre era o papa, da sua absurda decisão surgiu uma coisa importante.Ele concordava com a ideia de que para que um casamento seja absolutamenteindissolúvel é preciso o consentimento e o acasalamento, dizer o Sim e ter relaçõessexuais.

Um dos seus ajudantes devia ter lembrado a Sua Santidade que daí resultam duasconsequências absurdas. Em primeiro lugar, se a relação sexual é necessária para aindissolubilidade, qualquer pessoa que tencionasse não ter relações sexuais nãopretenderia a indissolubilidade, portanto não pretenderia casar. O nobre tinha-sesubmetido à cerimónia mas não tinha realmente casado. Não cumpriu o juramento quefizera à noiva, ao contrário, quebrou-o. Em segundo lugar, durante séculos a Igrejaensinou que o sexo no casamento era invariavelmente pecaminoso. Como é que esteelemento pecaminoso pode tornar o casamento tão sagrado ao ponto de o tornarindissolúvel? Ou deveremos nós, em vez de «O que Deus uniu», dizer antes «O que odesejo uniu, não o separe o homem»?

Uma vez que «o papa não pode errar», a Igreja tem de viver com este naco defrivolidade papal. Graças a Alexandre, nasceu uma nova categoria de casamentoscristãos dissolúveis. Um homem, por sua própria iniciativa, podia divorciar-se da mulher!Uma igreja que diz que qualquer excepção abre as portas do dilúvio tinha aberto umaenorme brecha na instituição do casamento.

A decisão de Alexandre passou naturalmente a fazer parte da ortodoxia. Em 1563, oConcílio de Trento decretou que a profissão religiosa dissolvia o casamento. Como?Surgiu a noção mística de que a profissão religiosa era uma espécie de morte espiritualque, tal como a morte física, punha fim ao casamento. Não era o papa que dissolvia ocasamento, mas a profissão religiosa. Mas já os papistas mais ardorosos começavam acheirar novos poderes papais. Se um simples marido podia dissolver o seu própriocasamento, talvez o papa também pudesse dissolver certos casamentos por motivosespirituais. Afinal, ele era o vigário de Deus na terra. Quem é que se atrevia a limitar-lheantecipadamente a autoridade?

Tinham-se já passado trezentos anos quando, em meados do século XV, Antonino,Arcebispo de Florença e antigo distinto membro da Cúria, afirmou ter visto as Bulas dedois papas que dissolveram casamentos não consumados. Em ambos os casos omarido foi autorizado a voltar a casar. Apesar das suas credenciais — foi o maisimportante teólogo moral do seu tempo — ninguém acreditou em Sua Graça. Aprofissão religiosa podia dissolver um casamento. E o papa? Claro que não. E umcônjuge divorciado podia voltar a casar? Impossível! Jesus disse: «O que Deus uniu…»

O que aconteceu muito mais tarde foi que o costume papal de dissolver taiscasamentos, isto é, de conceder o divórcio, foi muito atrás, para além do tempo do PapaMartinho V, contemporâneo de Antonino. Como é que se justificava esta inversão daclara doutrina do Mestre?

Os casos em questão eram os seguintes: depois de casar e antes de consumar ocasamento, um homem descobre que a mulher está grávida de outro homem. Pede queo casamento seja dissolvido para poder casar de novo com uma virgem. Um outrohomem casa por procuração. Quando viajava para ir ao encontro do marido, a mulher é

Page 313: Vigde cristo

313

capturada por piratas. O marido nunca a encontrou e era pouco provável que viesse aencontrá-la. Embora casado com ela, foi autorizado a voltar a casar.

Os canonistas argumentaram que os papas tinham de dissolver esses casamentosna qualidade de vigários de Cristo. O motivo foi, presumivelmente, a misericórdia. Masevocar a misericórdia como motivo para conceder o divórcio parece estranho numaIgreja que recusa sem misericórdia o divórcio aos seus filhos em circunstâncias tãopungentes como aquelas acabadas de mencionar. Além disso, estas excepçõesdificilmente se podem justificar com o Sermão da Montanha, que a Igreja continua ainterpretar como lei férrea: divórcio nunca. Tem de ser dito que a Igreja não temcumprido a indissolubilidade em absoluto. Os papas violaram-na, para grandeincredulidade inicial dos canonistas.

Devido à paixão de Roma pelo secretismo, estes importantes documentos sobre odivórcio não viram a luz do dia durante quinhentos anos. E portanto o testemunho deAntonino não pôde ser verificado.

Contudo, uma vez estabelecida a prática papal sobre o divórcio, a pergunta noscírculos da Cúria era esta: Como é que o papa pode fazer isto se nenhum homem podequebrar os laços do casamento? A resposta veio clara e estrondosa: o papa não é umhomem, é o vigário de Deus. Usa o poder divino para dissolver o indissolúvel. Falandoclaro, a indissolubilidade tem diversos tipos, um dos quais é o dissolúvel.

Se os canonistas tivessem tomado o ensinamento de Jesus como um ideal decasamento tudo teria ficado resolvido. Mas como peça de legislação, tinha de serinterpretado de maneira ainda mais abstrusa. Jesus quis dizer evidentemente que o queDeus uniu tem de continuar unido em quaisquer circunstâncias. Roma, na prática,discorda e, para justificar a sua discordância, recorre a distinções subtis.

A passagem que proíbe o divórcio tem, portanto, de ser ligada, no espírito católico, aoutras passagens-chave das Escrituras: «Tu és Pedro» e «Aquilo que desatares naterra será desatado no Céu». Implícita está também a crença de que no Sermão daMontanha Jesus quis entregar este poder de conceder o divórcio não apenas a Pedromas também aos seus sucessores, os Bispos de Roma. Não é por nada que os papasafirmam saber interpretar a Escritura.

Há ainda uma outra estranha consequência dos primeiros divórcios papais. Nosdocumentos da Igreja, os laços do matrimónio são considerados de lei natural e divina.Tal linguagem é tida como significando que nem Deus lhes pode abrir excepções. Nestecaso, porém, a lei natural pode ser violada. Por qualquer razão não explicada, a Igrejaafirma ter o poder de modificar ou revogar a lei natural do divórcio, mas não a dacontracepção.

Quando Roma continua a dizer que o próprio papa não pode dissolver um casamentocristão consumado, as pessoas querem saber porquê. Os teólogos apontam asEscrituras e dizem que um casamento cristão reflecte o amor de Cristo e da sua Igreja.Mas antes do século XV os teólogos também apontavam as Escrituras para provaremque o papa também não podia dissolver casamentos não consumados.

Mas isto é dar um grande salto em frente.A estranha decisão de Alexandre III sobre o nobre de Exeter gerou um grande

número de divórcios papais. Em resultado dela, Martinho V e outros papas dissolveramcasamentos confirmados mas não consumados. Aquilo que deixou Antonino perplexoem meados do século XV e que os académicos de então disseram que era incrível, eraagora, no século XVII, prática comum. Com base no seu poder divino, o papa dissolviacasamentos não consumados.

Poderia ele também dissolver alguns casamentos consumados?

Page 314: Vigde cristo

314

O divórcio papal de casamentos consumados

À excepção da "incontinência", a Igreja primitiva tinha como certo que Jesus tinhaproibido qualquer dissolução de casamento. Mas havia uma passagem da PrimeiraCarta de S.Paulo aos Coríntios que parecia admitir outras excepções:

Eu digo, e não o Senhor, que se algum irmão tiver uma mulherdescrente e ela consentir em viver com ele, não deve divorciar-sedela. Se alguma mulher tiver um marido descrente e ele consentirem viver com ela, não deve divorciar-se dele. Porque o maridodescrente é santificado pela mulher e a mulher descrente ésantificada pelo marido. Caso contrário, os vossos filhos seriamimpuros, quando na realidade são santos. Mas se o descrente sequiser separar, que se separe; neste caso, o irmão ou a irmã nãoestão sujeitos à servidão. Porque Deus nos chamou para a paz.

S.Paulo respondia a perguntas postas pelos seus convertidos. Os pagãos tinham-seconvertido. A pergunta subjacente ao texto acima pode ter sido: Os cristão recém-baptizados são autorizados a continuar casados com os cônjuges que ainda sãopagãos? Teriam de continuar casados? Paulo, como bom diplomata que era, responde:Se o casamento funciona, deixá-lo continuar. É um casamento verdadeiro; ele fala decônjuges descrentes como "marido e mulher". É um casamento bom, porque o crentesantifica o descrente. Os filhos também são santos, o que significa que o casamento jáestá santificado por Deus. Contudo, se o descrente considera a conversão do cônjugeintolerável e se separa, que assim seja. O crente não deve tomar a iniciativa. E Paulocontinua, dizendo que depois da separação o irmão ou irmã «não estão sujeitos àservidão». Quererá isto dizer que o cristão abandonado tem o direito de voltar a casar?

Agostinho, pioneiro da doutrina católica sobre o matrimónio, respondeu: Claro quenão. A proibição de Jesus do divórcio não tem excepções. Mesmo entre pagãos, omatrimónio constitui um laço que nenhum homem pode quebrar. Isto implicava que ocristão abandonado deve continuar fiel ao casamento; se ele ou ela voltarem a casarcometem adultério. A alternativa era sugerir que poucos anos depois da Crucificaçãoum apóstolo "criou" um grupo especial de pessoas cujos laços do matrimónio eramdissolúveis. Se assim fosse, onde é que isto iria acabar?

A despeito da sua autoridade, a opinião de Agostinho foi rejeitada. Um advogadoromano do seu tempo, convertido do Judaísmo e chamado Isaac, seguiu uma linhadiferente. O facto de o livro de Isaac sobre o assunto ter sido mais tarde atribuído aGregório o Grande contribuiu para lhe aumentar o prestígio. Isaac interpretou aspalavras do apóstolo desta maneira: o que Paulo tinha na ideia era um pagão que, poródio a Deus, desfaz o casamento com uma cristã convertida. O cônjuge convertido nãotem culpa. Ele ou ela simplesmente optaram por responder ao chamamento de Deus, ese isto significar o fim do casamento, que assim seja. Em linguagem canónica, o pagãorecusou-se a confirmar o casamento após a conversão do cônjuge. Foi o ódio a Deuspor parte do pagão que dissolveu o casamento, deixando o cristão livre para voltar acasar. Isto veio a chamar-se “Privilégio Paulino“.

A interpretação de Isaac levantava tantas questões quantas aquelas a que davaresposta. A casuística que se lhe seguiu, especialmente na Idade Média, foi labiríntica.O que é que constitui este «ódio a Deus», de que não há aliás o mínimo vestígio emS.Paulo? Um crente abandonado podia voltar a casar. Isto veio a ser incluído nos

Page 315: Vigde cristo

315

Decretais de Graciano e a tornar-se lei da Igreja em 1142. Inocêncio III sancionou-o noseu decretal Quanto te do ano de 1199.

Os teólogos começaram então a explorar o filão. Quando e como é que o casamentooriginal era dissolvido? Seria dissolvido logo que o pagão abandonava o cônjuge? Aopinião popular era a de que o casamento só era dissolvido quando o cônjugeabandonado voltava a casar.

O ponto crucial era que um papa, o sentencioso Inocêncio III, concordou com a ideiade que um casamento consumado podia ser dissolvido. E nem sequer era dissolvidopelo papa ou pela hierarquia, mas simplesmente pelo cônjuge cristão. Fora aberta umabrecha fatal na convicção de que o casamento era indissolúvel em termos absolutos efossem quais fossem as circunstâncias. E era uma boa razão aquela que eraapresentada: a causa de Deus tinha mais peso do que o valor de um casamentonaturalmente válido e consumado. Mas por muito misericordioso que fosse, isto eraseguramente um passo curioso que a Igreja dava, considerando que continuava ainsistir na interpretação literal das palavras de Jesus. Jesus falara sem reservas daunidade irrefragável do casamento. Se estivesse a legislar, não seria lógico quedissesse que o convertido abandonado não pode voltar a casar, para demonstrar aindissolubilidade dos laços do matrimónio tal como Deus os concebeu desde o princípiodos tempos?

Uma vez aberta a brecha, novas questões se levantaram numa corrente infindável,não necessariamente de imediato, mas inevitavelmente. Por exemplo, se o ódio a Deuspor parte de um descrente permite a um cristão pôr fim ao casamento, por que é queum cristão não pode pôr fim a um casamento cristão se o cônjuge perder a fé eimpossibilitar uma vida verdadeiramente cristã? A própria Igreja estava a derrubar aprimeira pedra do dominó.

O que pouca gente sabe é que dois papas do século XII, anteriores a Inocêncio III,nomeadamente, Urbano III e Celestino III, chegaram mesmo a dizer que certoscasamentos cristãos consumados podiam ser dissolvidos. Celestino tomou comoexemplo o caso seguinte: uma mulher cristã é abandonada pelo marido cristão queabjura da sua fé e casa com uma pagã. Ela é livre, diz o papa, de voltar a casar, com oconsentimento do seu pároco. Se o marido mudar de ideias e quiser voltar para aprimeira mulher, esta não é obrigada a aceitá-lo de volta. Celestino cita o livro de Isaac,que ele acredita ter sido escrito pelo Papa Gregório, e argumenta que foi o “ódio aDeus” do marido que dissolveu o casamento. Esta a razão por que a mulher ficacompletamente livre em relação ao marido. Pode ser uma surpresa encontrar doispapas medievais que afirmam que há boas razões para dissolver um casamento cristãoconsumado. Na realidade eles não foram os primeiros.

Gregório II antecipou-se-lhes. Em 22 de Novembro de 726 escreveu a S.Bonifácio, oapóstolo da Germânia, a determinar o destino de um homem cuja mulher estava tãogravemente doente que não podia viver com ele. Este não devia voltar a casar, decidiuGregório, mas era livre de o fazer desde que sustentasse a primeira mulher.

Os comentadores católicos depois de Graciano não ficaram muito satisfeitos aodepararem com um papa que concedia o divórcio a um homem pelo facto de a mulherestar incapacitada para o sexo. Um autor jesuíta, Padre G. H. Joyce, escreve: «Érazoável supor que [a carta do papa] dizia respeito a um casamento em que, antes daconsumação, a noiva tinha contraído uma doença que tornava a vida conjugalimpossível». Por outras palavras, é impensável que um papa viesse contradizer a fé daIgreja mesmo quando aquele o tinha claramente feito. Gregório II, diz Joyce, deve terdissolvido um casamento não consumado. A belíssima hipótese de que a mulhercontraíra uma doença entre o casamento e a sua consumação é muito difícil de aceitar.

Page 316: Vigde cristo

316

Mas ele também não reparou que a dissolução por não consumação só apareceu cincoséculos depois. Mesmo então, esta só era considerada para os casos de entrada navida religiosa e não para uma reentrada no casamento.

Também não se pode argumentar, como alguns tentaram fazer, que Gregório IIestava a anular um casamento devido à impotência da mulher. Porque Gregório IIsempre insistiu que nos casos de impotência os cônjuges tinham de viver juntos comoirmão e irmã. De facto, a impotência é mais um exemplo da confusão em que os papas,longe de estarem de acordo, andaram metidos durante vários séculos. É mais umcampo em que a ideia de consenso papal em relação à doutrina é um mito.

Voltando à “heterodoxa” opinião de Celestino III sobre a dissolução de casamentosconsumados, é bom lembrar que o sucessor daquele, Inocêncio III, não ficou muitoperturbado com ela. Diz ele, muito tranquilamente: «Embora um dos nossosantecessores pareça ter julgado de maneira diferente», o casamento de dois cristãos épara toda a vida e não pode ser dissolvido pelo facto de um dos cônjuges se ter tornadodescrente. Depois de confirmada pela relação sexual, uma união não pode serdestruída.

Os canonistas ficaram mais nervosos do que Inocêncio. Para eles, depararem comum papa que contradizia a fé da Igreja era de tal maneira desagradável que as opiniõesde Celestino não foram incluídas na colecção de decretais papais um quarto de séculomais tarde.

Cajetano, o cardeal e académico dominicano que entrou em conflito directo comLutero, tinha opiniões semelhantes às de Celestino. Ensinava ele que os casamentoscristãos consumados podiam ser dissolvidos por motivo de adultério. Jesus disse-o. AIgreja Oriental sempre o dissera. Se os papas não concordavam, não interessava. Ospapas, dizia Cajetano, já antes tinham cometido muitos erros.

O divórcio papal para as Missões

Nos fins do século XV, como Noonan mostra em Power to Dissolve, a expansão daIgreja na América começou a criar novos problemas. Os chefes índios, que tinhamvárias mulheres, foram convertidos. Mais tarde, os escravos negros, que tinham deixadoas mulheres nas suas terras, tornaram-se cristãos; não tinham quaisquer perspectivasde se virem a reunir às suas famílias. A Igreja Católica, que se orgulha de nunca termudado os seus princípios básicos, certamente que os adaptou genialmente e comgrande simpatia nesta situação nova.

A questão principal era esta: teriam estes convertidos de manter, por assim dizer, ocelibato? E se não, por que não?

A primeira resposta de Roma foi uma prudente negativa: estes convertidos teriam demanter-se fiéis à primeira mulher. Depois, o Papa Paulo III, perguntado sobre os chefesque tinham várias mulheres, respondeu que se o chefe não conseguisse lembrar-se dequal fora a primeira mulher podia escolher a que quisesse. Era uma decisão de ajudaaos índios de fraca memória.

Trinta anos depois, Pio V disse que um chefe com várias mulheres, depois daconversão, ficava livre para escolher a mulher que seria baptizada juntamente com ele,mesmo que não fosse a primeira. Mas Pio acautelou-se insistindo que, se fossepossível encontrar a primeira mulher com facilidade, o chefe teria de continuar casadocom ela.

Depois veio Gregório XIII, que no ano de 1585 dilatou a autoridade papal sobre ocasamento de maneira notável. Concedeu uma dispensa colectiva aos escravos

Page 317: Vigde cristo

317

convertidos casados para voltarem a casar. As suas uniões originais eram casamentosautênticos mas não confirmados após o baptismo do escravo de modo a seremindissolúveis em todas as circunstâncias. Na sua qualidade de pontífice ele era o juiz dequais as circunstâncias que permitiam o divórcio. E delegava livremente este poder nosbispos e padres.

Foi um enorme passo em frente. Isto queria dizer que o papa se sentia competentepara dissolver casamentos entre crentes e descrentes. Com que fundamento?Presumivelmente a favor da fé. Quando um cônjuge descrente abandonava um cristão,não era caso para o Privilégio Paulino. Era uma reviravolta no texto de S.Paulo. Emcerto sentido, era o mesmo que um cristão abandonar um cônjuge descrente. Estepoder de dissolver os laços naturais não vinha de S.Paulo, portanto tinha de vir deCristo, e o papa era o Vigário de Cristo. Para alguns canonistas, isto foi uma verdadeiraprenda de Natal. Começaram a procurar cobiçosamente outros casos em que o papapudesse conceder o divórcio.

Depois de 1585, porém, a Cúria acalmou. Era tempo de reflexão no Vaticano.Ficaram tranquilos porque nenhum desses três extraordinários documentos papaissobre as Missões foi publicado. Aparentemente, os papas não queriam que o mundosoubesse que nos bastidores se atarefavam a desfazer casamentos, sobretudo porqueo estado não estava autorizado a fazê-lo. Este é um daqueles factos espantosos comque o historiador se depara de vez em quando. Não foram os governos mas sim opapado que re-introduziu o divórcio, depois de este ter sido ilegal durante mais dequatrocentos anos.

O potencial para a mudança era agora enorme.No princípio, o interesse estava centrado nos convertidos abandonados pelos

cônjuges pagãos: o Privilégio Paulino. Na era missionária, Gregório XIII dissolveu emsegredo casamentos entre pagãos e cristãos recém-convertidos. Então, e os cristãosabandonados pelos cônjuges pagãos? A esta questão Roma respondeu com umestrondoso Não.

O primeiro teólogo americano notável, Francis P. Kenrick, mais tarde, em meados doséculo XIX, Arcebispo de Baltimore, foi audaz. Pensava ele que os cristãos quetivessem casado com pagãos e fossem abandonados tinham o direito de voltar a casar.Ninguém partilhava esta opinião. Em resposta a perguntas, o Santo Ofício semprerespondeu: se uma pessoa cristã casar com um pagã com uma dispensa da Igreja, ocasamento é indissolúvel.

Contudo, à medida que corria o século XIX, os decretos secretos de Paulo II, Pio V eGregório XIII começaram a transpirar. Os canonistas começaram a compreender aquiloque os papas tinham andado a fazer todo aquele tempo. Se eles tinham o poder dedissolver os casamentos não consumados e os casamentos entre pagãos e cristãosrecém-convertidos, onde é que acabava o poder dos papas?

Os divórcios concedidos pelos papas modernos

Leão XIII denunciou muitas vezes o divórcio. O divórcio nasceu, dizia ele, «da moralpervertida de um povo e leva […] a maus hábitos na vida pública e privada. […] Umavez permitido o divórcio, não haverá meios suficientes para o controlar». Isto faz comque seja difícil de compreender uma decisão que ele tomou no ano de 1894 e quenunca foi publicada nas Acta oficiais (Actos da Sé Apostólica). O caso foi o seguinte:

Page 318: Vigde cristo

318

Dois jovens, Isaac e Rebeca, casaram e divorciaram-se. Rebeca converteu-se aoCatolicismo e Isaac casou com uma católica, de nome Antónia, pelo civil. A seguir,Isaac quis converter-se ao catolicismo para oficializar a sua união com Antónia aosolhos da Igreja. Em 23 de Maio de 1894, Leão XIII, severo opositor do divórcio,divorciou pura e simplesmente Isaac e Rebeca. Este espantoso caso foi avisadamentemantido em segredo durante quarenta anos.

Em 1917 os três documentos missionários de Paulo III, Pio V e Gregório XIII, forampublicados em apêndice ao novo código da Lei Canónica. Estas excepções outroraparticulares e concedidas em situação de emergência no Novo Mundo tornaram-sesubitamente parte da lei geral da Igreja. Os canonistas viram nelas possibilidades nuncaantes sonhadas. Por exemplo, não poderia o papa dissolver até o casamento de doisnão-católicos, por exemplo, de protestante e judeu?

E inesperadamente, um papa dissolve mesmo um casamento entre protestante ejudeu. A mulher protestante já era baptizada quando casou, portanto não era umaquestão para recorrer ao Privilégio Paulino. Queria tornar-se católica e casar com umcatólico. O Papa Pio IX, numa decisão histórica, dissolveu o primeiro casamento emAbril de 1924. Três meses mais tarde, agindo por conta própria, dissolveu o casamentode protestante com pagão. Mas foi o terceiro caso que causou maior agitação.

Em 1922, Gerald G. Marsh, não baptizado, fez uma petição ao Bispo de Helena,Montana, John P. Carroll. Três anos antes tinha casado com uma anglicana. Ocasamento acabara em divórcio e a sua ex-mulher casara de novo. Marsh apaixonou-sepor uma católica com um nome próprio de personagem de Tennessee Williams, Lulu LaHood, e exprimiu o desejo de se converter ao Catolicismo. O Bispo Carroll,desactualizado em relação à lei canónica, apelou para Roma para ver se o primeirocasamento de Marsh poderia ser anulado com fundamento na disparidade de cultos. Onovo código de 1917 dizia claramente que no seu caso aquilo já não era fundamentopara nulidade. O Santo Ofício, ignorando o raciocínio da petição do bispo, transformou-onuma petição ao papa para dissolver o casamento para benefício da fé.

Em Novembro de 1924, Pio XI concedeu o divórcio a Marsh. Não havia no éditoqualquer referência à condição de Marsh se converter ao Catolicismo. Para espanto doscanonistas, o papa tinha simplesmente rompido o primeiro casamento. Um casamentoválido, vinculativo e indissolúvel por natureza tinha sido simplesmente desfeito pelo Simde Pio XI.

Quatro anos mais tarde, na altura do Tratado de Latrão, o mesmo pontífice conseguiuque Mussolini garantisse que o divórcio civil na Itália seria ilegalizado. No ano seguinte,era publicada a Encíclica Casta connubii , onde, além de condenar a contracepção, PioXI vociferava contra o divórcio.

Os advogados do neo-paganismo hoje […] continuam a atacar, nalegislação, a indissolubilidade dos laços matrimoniais, proclamandoque a legitimidade do divórcio deve ser reconhecida e que as leisantiquadas devem dar lugar a uma legislação nova e mais humana.[…] Em oposição a estas irresponsáveis opiniões está a inalteradalei de Deus totalmente confirmada por Cristo. […] O que Deus uniu,não o separe o homem. […] Estas palavras referem-se a todos ostipos de casamento, mesmo àqueles que apenas são naturais elegítimos; porque […] a indissolubilidade, por via da qual é retiradade uma vez por todas do arbítrio das partes qualquer afrouxamentodos laços, é uma propriedade de todo o casamento autêntico.

Page 319: Vigde cristo

319

Isto partindo de um homem, ele próprio envolvido na concessão de divórcios. A suaaltivez rivaliza com a dos pontífices medievais, como Gregório VII ou Bonifácio VIII.Ninguém na terra pode fender um casamento por mais intolerável que este seja. Mas opapa pode, porque este, muito acima de todos os governos seculares, o único homemno mundo a quem Deus confiou uma questão tão sensível, age em nome de Deus epara o bem da Igreja de Deus.

Este pontífice, que negou ter qualquer poder para alterar a "tradição" relativa aocontrole da natalidade, operou uma mudança radical na natureza do matrimónio e dodivórcio. O código saiu em 1917. Nos quatro anos seguintes, o papa foi muito além docódigo e, para um mundo católico impreparado para tal, dissolveu casamentosconsumados entre cristãos e não cristãos. Nenhum teólogo lhe pedira para fazer talcoisa. Durante duzentos anos, o Santo Ofício negou imperturbavelmente que umpontífice o pudesse fazer. Pio XI — por bondade, por desejo de relaxar o músculopapal, por pura ignorância? — fê-lo pura e simplesmente.

Ao Privilégio Paulino acrescentava-se agora o Privilégio Petrino. E este foi de talmaneira alargado que o outro se tornou simplesmente redundante. Os canonistas, como seu assombroso gosto das hipóteses, viriam a dizer que S.Paulo devia ter pedido aopinião de S.Pedro. Pedro deve ter ratificado o Privilégio de Paulo, uma vez que estenão era senão parte de um poder muito mais alargado que ele, Pedro, e os papas seussucessores têm de dissolver casamentos. E uma pessoa pergunta-se se Paulo não teriapassado isto a escrito.

Pio XI, tal como muitos papas antes dele, revelou-se capaz de conseguir aquadratura do círculo. Dissolveu uma coisa que ele próprio classificava comoindissolúvel, transformou o perpétuo em temporário simplesmente para "o bem dasalmas", interpretado muito generosamente. Marsh afinal não era católico; o édito quedissolveu o seu primeiro casamento não dizia que ele tinha de prometer converter-se. O"bem" que o papa, tinha em mente era o da segunda mulher (católica) daquele.

Quatro anos após a Encíclica Casta connubii, Pio XI aprovou as Normas para aDissolução do Casamento para Bem da Fé pela Autoridade Suprema do SoberanoPontífice. As condições para um divórcio papal eram simples: que uma das partes nãofosse baptizada e o casal original não tivesse tido relações sexuais após o baptizado donão-cristão. Nestas condições o próprio papa podia pronunciar o seu Sim a toda afornada de casos de divórcio anteriores que lhe fossem apresentados por um assessorda Cúria.

Mas Roma não revelou tudo. As normas não foram tornadas públicas. Só aquelesque estavam no segredo dos deuses podiam beneficiar delas. Era necessário osecretismo à boa maneira conspirativa do Vaticano. O receio do papa, perfeitamentejustificado, era o de deixar a impressão de que era muito menos contrário ao divórcio doque aquilo que os ataques fulminantes da sua encíclica deixavam entender. Além disso,Roma queria manter a pretensão de que o Santo Padre só concedia o divórcio como umfavor (ou privilégio). Os favores não precisam de ser concedidos. A ideia popular de queas palmeiras de Roma são tão oleosas que são mesmo escorregadias é quasetotalmente falsa. Muito pior do que a corrupção fortuita é um sistema de favores sóalcançáveis com um piscar de olhos ou um toque de cotovelo. Mil favores nãosubstituem uma lei justa.

Tem de ser dito que as novas normas de Pio XI só funcionavam porque o divórciocivil já estava em vigor. A Cristandade já não existia. Passados oitocentos anos, as leiscivis e eclesiásticas relativas ao casamento seguiam agora o seu próprio caminho,

Page 320: Vigde cristo

320

excepto em países como a Itália, onde existia um entendimento entre Mussolini e Pio XI.Cada vez se dissolviam mais casamentos nos tribunais civis. A despeito dos protestosem sentido contrário, a própria Igreja beneficiava com isto.

Na questão do divórcio o Estado fizera "o trabalho sujo" para a Igreja. Tornara odivórcio respeitável. E também se encarregara dos pormenores legais, como os dosbens e da herança. A Igreja nunca tinha de tomar a iniciativa ou de conceder o divórcioem primeira instância. Aparentemente, limitava-se a separar as consequênciassacramentais sem encorajar ou condenar o divórcio. Também aqui a Igreja mostrou oseu génio habitual em adaptar-se, mesmo havendo alguma hipocrisia à mistura. Em vezde agradecer ao Estado, os papas acusaram invariavelmente os governos de fazerem otrabalho do demónio. No Vaticano, o papa continuava calmamente a conceder os seuspróprios divórcios.

Com as normas de 1934, houve uma sensível aceleração do divórcio e dos segundoscasamentos dentro da Igreja. Em Roma crescia a convicção de que o poder do papa eratão grande como o do Todo Poderoso. Todos os povos, cristãos e não cristãos, estavamsujeitos a ele no campo do matrimónio.

Pio XII confirmou isto mesmo dois anos após a sua eleição. Em Outubro de 1941,dirigiu uma alocução ao Rota, o Tribunal Romano do Matrimónio. Em relação ao normalcasamento cristão consumado, disse, exercia a sua protecção paternal. Todas as outrasformas de casamento eram «intrinsecamente indissolúveis». Significava isto queninguém os podia dissolver? Nem tanto. Ele podia. Não era ele o Vigário de Cristo naterra?

Pio XII desenvolveu este tema na sua encíclica de 1942, Mystici Corporis. Citou aBula Unam Sanctum para mostrar que Cristo e o papa são um só como chefes daIgreja. Poder-se-ia pensar que Pio XII se teria demarcado de um monstro comoBonifácio VIII. Não afirma ter duas espadas à sua disposição; o poder temporal já tinhadesaparecido, o que, como vimos, inúmeros papas diziam ser teologicamenteimpossível. Mas Pio XII segue realmente Bonifácio quando afirma que lidera o mundointeiro, pelo menos até ao ponto em que exerce o seu domínio sobre todos oscasamentos. Na qualidade de Vigário de Cristo, pode, se for preciso, dissolver estescasamentos para salvação das almas.

Sete anos depois de iniciado o seu pontificado, Pio recebeu uma petição do Bispo deMonterey-Fresno, Califórnia. Foi o primeiro de três casos que o Bispo Willinger viria apôr a Roma e que fizeram história.

Uma mulher não baptizada casou com um católico. Este tinha obtido uma dispensacom fundamento na disparidade de culto. Era o procedimento normal e sem custos. Osdois casaram perante um padre e duas testemunhas. Mais tarde a mulher divorciou-sedo marido católico, mas tendo, ao que parece, um fraco pelos católicos, casou comoutro pelo civil. Agora ela própria queria converter-se ao catolicismo. Parecia não haverqualquer esperança.

O sereno Bispo Willinger pediu a Roma a regularização da segunda união.Apresentou como fundamento o facto de o primeiro casamento poder ter sido anuladopor não ter sido consumado. Isto diminuía consideravelmente as desvantagens. Só que,de acordo com as rigorosas leis de Roma, a não consumação não podia provar-se. Aquestão parecia de novo sem esperança. Até que o Santo Ofício alterou a petição dobispo, recomendando ao Santo Padre que dissolvesse o casamento para benefício dafé. Foi o que Pio XII fez no dia 17 de Julho de 1947. Concedeu o divórcio ao cônjugenão crente de um matrimónio com um católico, casamento celebrado com uma dispensae presumivelmente consumado. A lei canónica nunca previra tal coisa.

Page 321: Vigde cristo

321

Três anos mais tarde, o Bispo Willinger tentou de novo a sua sorte. Pôs a questão dadissolução, num caso semelhante, sobre se não só o futuro convertido poderia voltar acasar, mas também o seu anterior marido católico: Afirmativo.

Willinger, convencido de que estava em maré de vitórias, pôs a Roma uma terceiraquestão. Pedia a dissolução de um casamento entre um católico e uma pessoa nãobaptizada, a pedido do cônjuge católico. Era uma questão completamente nova.

O católico era Alfred Cinelli, de Bakersfield, Califórnia. Casara com Elinor Robbins,primeiro pelo civil e depois pela Igreja com a devida dispensa. De regresso da guerra noestrangeiro, veio encontrar alguma frieza da parte da mulher. Em Abril de 1946, estadivorciou-se dele e voltou a casar. Cinelli queria casar com uma futura convertida. OBispo Willinger apoiou a pretensão, alegando eloquentemente que estava em causa a féde uma convertida e a fé dos futuros filhos, e o dito Cinelli era de origem solidamentecatólica, italiano como o Santo Padre e ninguém se escandalizaria minimamente; pelocontrário, toda a gente aplaudiria a grande bondade da Igreja. Resumindo, fez desfilartodas as razões que os Padres da Igreja, os teólogos e os papas ao longo dos séculostinham unanimemente recusado como fundamento para o divórcio.

Em 23 de Janeiro de 1955, Pio XII dissolveu o primeiro casamento. O PrivilégioPetrino foi usado de uma maneira que seria impensável apenas uma geração antes.

Nos fins dos anos 50, outras dioceses saltaram para o comboio posto em andamentopor Monterey-Fresno. Em países como os EUA, onde havia muita gente não baptizadae o divórcio estava a atingir proporções endémicas, choveram as petições. Tanto assimfoi que a hierarquia americana teve medo e avisou Roma de que estava a deixar aimpressão errada — ou seria a impressão certa? — de que Roma favorecia activamenteo divórcio, pelo menos em certas circunstâncias. Roma disse-lhes que não sepreocupassem. Entretanto, havia já um impresso próprio para a petição do PrivilégioPetrino e, claro, uma (modesta) taxa própria.

Durante os primeiros mil anos, nenhum papa tinha aprovado o raro caso do PrivilégioPetrino. E foram necessários mais quatro séculos para que o papa dissolvesse oscasamentos de escravos índios e americanos. Passaram mais três séculos e meio atéque este poder de dissolver casamentos passasse a figurar na lei canónica, em 1917.Trinta anos depois de Cinelli conseguir do papa o divórcio é que veio o último — oupenúltimo, segundo certo ponto de vista teológico — divórcio.

Nunca papa algum tinha divorciado dois não-crentes absolutos. Aconteceu em 1957.Em 12 de Março desse ano, Pio XII dissolveu o casamento de dois maometanos.Depois de divorciada civilmente, a mulher ficou com a custódia do filho. O marido foipara França, onde casou numa Conservatória do Registo Civil, sendo a noiva católica. Etencionava converter-se. O Santo Padre, sob a orientação do Cardeal Ottaviani,recomendou o Privilégio Petrino — levava menos tempo do que o Privilégio Paulino. PioXII dissolveu esse casamento, tal como viria a dissolver mais tarde outros cinco que nãoenvolviam qualquer cônjuge cristão. Seguiu, de facto, os passos de Bonifácio VIII.

Depois foi João XXIII. Já estava estabelecido que a expressão «em favor da fé» tinhaum sentido tão lato que incluía qualquer vantagem que adviesse do divórcio.

Paulo VI interrompeu a escrita da Encíclica Humanae Vitae para conceder o divórcioa um casal de judeus de Chicago em 7 de Fevereiro de 1964. O marido, depois dedivorciado, tinha casado com uma católica. Não tinha qualquer intenção de seconverter; foi muito claro em relação a esse ponto. Queria simplesmente tranquilizar oespírito da sua nova mulher. O Arcebispo Meyer apoiou a sua petição no sentido deregularizar a união. A Igreja primitiva teria dito que qualquer matrimónio entre católicos ejudeus era um crime e um sacrilégio; quanto a um segundo casamento… Mas Paulo VIfoi levado pela piedade. Mostrou pela jovem católica uma compaixão que, em

Page 322: Vigde cristo

322

consciência, se sentia incapaz de estender aos milhões que estavam a sofrer pelacondenação dos contraceptivos. O facto de ao conceder um divórcio estar a contradizeruma centena de pontífices não o preocupou. Se Pio XII disse que estava certo, tambémpara ele estava certo. Uma vez mais, escolheu cuidadosamente os papas com quemestar de acordo.

Com todas estas mudanças, as mais importantes das quais foram as mais recentes,a Igreja adaptou-se a situações novas. Alguma coisa tinha de ser feita em relação aosconvertidos do Novo Mundo que tinham sido criados em estruturas societais estranhasà Cristandade, e a Igreja fê-lo. Nos tempos modernos, a Igreja adaptou-se à expansãodo divórcio civil concedendo os seus próprios divórcios nos seus próprios termos,geralmente na forma de "rebuçados para os convertidos" ou de consolação para osseus cônjuges católicos. Estas práticas levantaram a seguinte questão: por que é que aIgreja não é mais honesta e coerente? Se continua a tomar a doutrina de Jesus à letra,por que é que não mantém a ideia de que os futuros convertidos, anteriormentecasados, deverão continuar celibatários, tal como, por exemplo, os cônjuges católicosde um casamento cristão consumado que foram abandonados? Ou, olhando a questãopor outro prisma, porquê punir apenas os católicos de origem?

Ao continuar a tratar o Sermão da Montanha como uma peça de legislação, a Igrejaapenas tem andado a remendar um problema de magnitude alarmante. Continua amanter a pretensão de que é totalmente contra a dissolução do matrimónio, de quenunca o tolerará em circunstância nenhuma, de que os governos estão a fazer umacoisa indizivelmente má ao permitir o divórcio. E, ao mesmo tempo, atropela as suaspróprios leis para tentar, sem sucesso, manter o passo certo com a sociedade civil.

Ao não legislar com sensatez, ao transformar a concessão de todos os divórcios numfavor — e pior ainda, num favor feito por um único homem — criou uma classe especialde advogados curiais, bons espíritos empenhados em causas triviais. Vê-los a trabalharé como ver enguias a lutar. Longe de serem parciais a favor dos ricos e poderosos,como muitas vezes se diz, eles não estão verdadeiramente interessados no serhumano. Só os princípios e a sua aplicação é que lhes interessam. Não são eles quetêm culpa de o seu trabalho ser muitas vezes absurdo. Podem ser obrigados a ler ostestemunhos das pessoas que afirmam lembrar-se com angélica clareza de incidentesacontecidos trinta anos antes. A memória das testemunhas melhora com os anos, talcomo o vinho, porque geralmente funciona melhor uma década depois do primeirotestemunho. Os funcionários da Cúria têm de ler ou ouvir educadamente quando osrequerentes italianos reúnem a famiglia inteira — irmãos, irmãs, pais, avós, tios, tias,amas, primos muito afastados, ex-amantes, amantes de ex-amantes — todos lealmentealiados para ajudarem um dos seus metido numa embrulhada matrimonial. Acontecemuitas vezes que um requerente, bem à maneira de Dickens, inicia um caso quandojovem, envelhece com ele e acaba por morrer com ele. Alguns casos, por motivo derepetição do julgamento estiveram pendentes na Cúria durante vinte ou trinta anos.

E, como salienta Noonan, não há registo de um só exemplo de qualquer matrimónioque tenha beneficiado com os trabalhos da Cúria. Não há um único requerente deanulação do seu primeiro casamento que tenha voltado para a primeira mulher. Em todoeste triste processo, as regras do casamento podem ter ficado esclarecidas, mas ocasamento propriamente dito nunca beneficiou.

Em oposição ao Evangelho de Jesus, são as regras que tudo determinam. Logo queRoma começou a conceder dispensas estas tornaram-se imediatamente parteintegrante deste processo louco. À disputa sobre casamentos válidos juntaram-se as

Page 323: Vigde cristo

323

disputas sobre dispensas válidas. Teriam os requerentes obtido uma dispensa correcta?Se alguém a requeria em seu nome sem os informar, seria ela válida ou não?

Hoje um grande número de inquéritos sobre casamentos acabam em inquéritos sobreo baptismo das partes! É muito importante que um cônjuge tenha sido baptizado comocatólico. Mesmo quando uma pessoa é educada como não crente ou ateu, o mero factode ter sido baptizada por um padre católico significa que está sujeita à legislação daIgreja. Portanto, se essa pessoa não tiver casado perante o padre da paróquia e duastestemunhas, o casamento é inválido. Cada desvio ou mudança da legislação abrenovos campos de complexidade.

Os canonistas que regem este sistema em nome do pontífice são mais dignos depiedade do que culpados. O que torna a sua sorte ainda mais triste é que ainda não hámuito tempo os advogados trabalhavam durante vinte ou mais anos para, no fim,conseguirem apenas uma resposta negativa para um caso que um papa modernodissolve com um simples acenar da cabeça.

A maioria, senão todos estes procedimentos morosos e caprichosos, podia ser postade lado, bastando para tal que a Igreja aceitasse o facto de que há casamentos queacabam. Se depois de tentativas de reconciliação, eles acabam irremediavelmente,devia-lhes ser concedido o divórcio como única solução equilibrada e cristã.

Mesmo os divórcios de Roma estão sujeitos a intermináveis minúcias. E o que éestranho é que só os cônjuges cristãos de casamentos consumados é que não podembeneficiar desta recém-descoberta generosidade da Igreja.

Contudo, também aqui tem havido grandes passos em frente.

Quando um divórcio não é divórcio

Os papas modernos, ao contrário de Gregório II e Celestino III, disseram e repetiramque nenhum poder celestial ou terreno pode dissolver um casamento cristãoconsumado. A união carnal de dois cristãos foi selada com um sacramento. É aencarnação viva do amor de Cristo e da sua Igreja. Sem o matrimónio, a Igreja nãopodia continuar a dar testemunho a Cristo e ao carácter infalível do seu amor.

É um ideal magnífico: filhos, indissolubilidade, fidelidade. A Igreja terá de pregarsempre isto, porque não o fazer seria uma grave perda para si e para a humanidade.

Infelizmente, toda a gente sabe que a vida nem sempre permite a realização de umideal. O fracasso muitas vezes não é culpa de ninguém.

Dois jovens, namorados de infância, casam jurando amor eterno. Um ano depois, ojovem cansa-se da mulher e sai à procura de novas pastagens. A jovem abandonadatem de sobreviver sozinha. A Igreja diz que ela continua casada com o marido desertor.A maioria das pessoas, católicos incluídos, pensa que ela devia ser encorajada a casarde novo.

Os católicos que apreciam a disciplina da Igreja não procuram o divórcio quando osseus casamentos falham. Alguns, como Henrique VIII, requerem a nulidade. Tambémaqui é considerável o potencial para a casuística.

O matrimónio, diz a Igreja, tem como objectivo primordial os filhos. E se um doscônjuges não tencionar ter filhos? Isso, aparentemente, anularia um casamento. Masteria esse cônjuge de declarar expressamente que não quer filhos? Ou seria ocasamento anulado se um deles resolvesse em privado excluir os filhos?

A importância desta questão tem crescido com a expansão dos contraceptivos. Seráque o seu uso ou até a utilização permanente do período seguro provam a intenção de

Page 324: Vigde cristo

324

não ter filhos, intenção que é contrária ao objectivo primeiro do matrimónio? Aconsumação, dizem os moralistas, requer o penetratio e inseminatio. Se se usar sempreos contraceptivos, poderá o casamento ser anulado com fundamento na nãoconsumação, mesmo depois de frequentes relações sexuais?

E os problemas da indissolubilidade. Na hipótese, que é real, de um dos cônjugesnunca ter tido a intenção de casar «até que a morte nos separe», será que umadeclaração expressa nesse sentido anularia o casamento? E uma tal decisão implícitateria esse efeito?

E os problemas da fidelidade. Consideraria a Igreja um casamento autêntico se umdos cônjuges, na altura da cerimónia, estivesse envolvido numa relação com outrapessoa? Ou se um homem dissesse expressamente a um amigo que se a sua mulhernão se mostrasse fiel se divorciaria dela?

As questões não têm fim, como também o não têm as possibilidades de manipular asregras com o auxílio de um advogado canónico.

Para além da intenção, há a questão do consentimento. Nem Deus pode dar o seuconsentimento se uma das partes tiver uma reserva interior ou se esse consentimentofor o resultado de coacção. Mas o que é que constitui coacção? Não estará eladependente da pessoa coagida?

Em tempos recentes, são sobretudo os jovens e as pessoas influenciáveis quealegam coacção. Um famoso caso passado na América envolveu Consuela Vanderbilt,que casou com Charles Spencer, Duque de Marlborough em 1916. Após dez anos decasamento, abençoado com dois filhos, a mulher pediu a Roma a nulidade da sua uniãocom fundamento no facto de a sua mãe a ter pressionado a casar. A opinião públicaficou espantada ao ouvir falar da anulação por parte de Pio XI do casamento de doisprotestantes feito por um bispo protestante. Manning, Bispo de Nova Iorque, chamou aesta decisão de Roma um «ataque espantoso e incrível» àquilo que o casamento temde «permanente e sagrado».

Em certas regiões da Itália e da Espanha, hoje, as coisas são mais planeadas. Hácasos conhecidos de pessoas ricas que, antes da cerimónia, escrevem cartas ditadaspelos seus advogados alegando coacção ou referindo implicitamente falta de intenção.Estas cartas são guardadas num cofre para o caso de o casamento não vir a ser bemsucedido.

Durante séculos, depois de Inocêncio III, a Igreja deu como adquirido o facto de quetoda a gente que se casava dava o seu consentimento e tinha rectas intenções. Afinal, oque é que eles faziam senão obedecer aos ditames da natureza? Depois do código de1917 estes pressupostos foram postos em causa. Os canonistas começaram a ter cadavez mais consciência de que as orações da cerimónia nupcial não correspondiam aoespírito e à vontade das partes. Até há pouco tempo, um cônjuge que apelasse para aanulação tinha de mostrar perante duas testemunhas credíveis que negaraexpressamente que se ia casar para toda a vida. Hoje, esta negação pode ser inferidadas suas crenças, das crenças da sua família e da sua comunidade, do seucomportamento antes e imediatamente após o casamento.

Foi um grande passo que a Igreja deu quando começou a aceitar, embora com muitaprudência, o facto de que em muitas culturas as partes não têm provavelmente aintenção correcta de contrair matrimónio. Quantos é que hoje, por exemplo, secomprometem a um amor exclusivo e por toda a vida? A velha assunção por parte daIgreja da lei natural está a ruir à escala global.

Page 325: Vigde cristo

325

A partir do Decretal Gaudemus, de Inocêncio III, do ano de 1202, a Igreja tem fugidoàs inevitáveis consequências da sua doutrina, nomeadamente a de que a maioria doscasamentos modernos são nulos e inválidos.

Pensemos na China, onde há uma política restritiva em relação aos limites de umafamília. A maioria dos casais só pode ter um filho. É inegável que, à estrita luz dosprincípios católicos, praticamente não há casamentos na China, e portanto essas uniõestambém não recebem as graças divinas. Mas não é preciso ir tão longe. No Ocidente, aconvicção expressa de muita gente é a de que manter um casamento em que já não háquaisquer laços de afecto está errado. Aos seus olhos, é a continuação de tal união, enão o divórcio, que é pecado. A negação de princípios fundamentais para o matrimóniocristão já afectou a prática canónica tanto em Roma como nas dioceses que lidam emprimeira instância com casamentos problemáticos.

Os católicos são inevitavelmente parte integrante da sua cultura. Partilham os seuspressupostos, os seus padrões e as suas aspirações. E estes são incompatíveis com atradição do matrimónio cristão.

Não é necessária uma investigação muito apurada para descobrir que as normas daIgreja, longe de reflectirem as convicções da comunidade mundial, nem sequerreflectem as verdadeiras convicções dos seus próprios filhos.

Quando os católicos divorciados requerem a Roma a anulação dos seus casamentosé que se levanta a suspeita de que a Igreja permite o divórcio sob um nome diferente. Éfacto conhecido que são concedidas anulações eclesiásticas de casamentos decatólicos depois de, digamos, vinte anos de vida em comum, com meia dúzia de filhos.Como é que se pode justificar este fenómeno, especialmente quando, antes decasarem, um padre os guiou cuidadosamente pelos caminhos daquilo que a Igrejapretende significar com um casamento autêntico?

Perante isto, é como se o casamento fosse a realidade e a anulação uma ficção.Para se verem livres de um cônjuge que já não amam, as pessoas são obrigadas afingir que nunca foram casadas, que viveram em pecado durante todo esse tempo e queos filhos são ilegítimos aos olhos de Deus. Como é que um tribunal eclesiástico podedeclarar como nula uma realidade tão profunda? Isto requer não pouca subtileza eimplica que uma qualquer falta grave na lei permita estas grosseiras excepções.

As razões que justificam estas anulações são muitas, mas todas elas têm em comuma descoberta de uma qualquer "falha". Pode ser a falta de consentimento: houve oemprego do medo ou da força. Ou a falta de intenção de uma ou outra das partesexpressa de maneira aberta ou apenas velada ou fragmentária. Ou pode encontrar-seuma falha no seu comportamento posterior. Resumindo, os casamentos católicostambém se rendem à evidência da falta de qualquer elemento vital na altura dacerimónia, mas que só se revela mais tarde, às vezes muito mais tarde. Os tribunais deRoma e de algumas dioceses locais em particular, usando de grande discrição,parecem concordar que o necessário compromisso para toda a vida, mesmo para oscatólicos, está longe de ser universal.

A Igreja Católica está agora a colher o pior dos vários mundos.Depois de transformar a doutrina de Jesus relativa ao ideal do casamento numa lei

férrea que proibia o divórcio, suavizando depois essa lei para toda a gente, exceptopara os seus próprios filhos, descobre agora que mesmo para estes ela não ésatisfatória tendo em conta a fluidez do actual estado da sociedade. Os próprioscatólicos se queixam amargamente de que "a Igreja", isto é, o clero celibatário,encabeçado pelo papa, não os compreende, nem a eles nem aos seus problemas. Oideal do casamento, dizem, não devia ser usado para amachucar as pessoas e fazerdelas celibatárias, para transformar os laços em grilhetas, quando uma união acaba

Page 326: Vigde cristo

326

clara e definitivamente. O casamento devia pôr fim à solidão e não perpetuá-la,proibindo que os casais voltem a casar. Como é que a Igreja pode obrigar um homemou uma mulher a ficarem sós para sempre por causa do casamento? Isto é repetir apalavra de Cristo sem o espírito de Cristo. Se a liberdade faz parte da essência docasamento e a obrigatoriedade o anularia, será que esta obrigatoriedade o nãodissolve? O objectivo do casamento é o de viver uma vida em comunhão de amor.Quando acontece que, sem culpas para ninguém, essa comunhão se torna impossível,o casamento deixa de existir. Sem amor, não serão dois numa só carne, mas, como dizMilton «duas carcaças unidas de maneira anti-natural». Como é que o clero celibatáriopodia saber que o casamento pode dividir e destruir assim como unir? A perguntadecisiva que emerge directamente da Bíblia é esta: foi o casamento que foi feito para ohomem ou o homem para o casamento?

Como já aqui se mostrou, a Igreja mudou de facto e mais radicalmente neste séculodo que em qualquer outro. Mas a mudança tomou a forma de remendos no sistema. AIgreja recusou repensá-lo na grande escala que um novo entendimento da Bíblia emtermos psicológicos e sociológicos, e também teológicos, exigia.

As pressões sobre o sistema católico são agora prodigiosas. As normas domatrimónio começam rapidamente a parecer-se com as regras da gramática inglesa:tudo é excepção à regra. Cada vez mais casais católicos requerem ser classificadoscomo excepções. Os seus divórcios estão dentro da média geral, como se esperava.Em tempos passados, e em cenários sociais diferentes, os casamentos uniam famílias eclãs inteiros. Hoje, os casamentos unem geralmente duas pessoas solitárias. Uma vezinstalado o desentendimento, não resta mais nada. Com a rotura, a coisa desfaz-se.

Calcula-se que o número de católicos americanos envolvidos em casamentosdestruídos exceda os 10 milhões. Seria absurdo tentar resolver mesmo os casosamericanos como se todos eles fossem candidatos à anulação, exigindo infindáveisinvestigações sobre as razões que pudessem provar que nunca foram, desde logo,casamentos. Além disso, mesmo na Igreja, cresce a convicção de que as anulações sãodivórcios com outro nome.

O próprio João Paulo II parece partilhar este receio. No seu solene discurso no Rotaem Fevereiro de 1987, disse que havia casamentos a serem destruídos sob a alegaçãoda nulidade, da qual havia um «aumento exagerado e quase automático». Isto devia-se,disse ele depreciativamente, à influência dos psicólogos especialistas cujos pontos devista são muitas vezes inconciliáveis com a doutrina da Igreja. Tal brandura, disse ele,aumenta as roturas dos casamentos. «Deve ficar claro o princípio de que só aincapacidade, e não apenas a dificuldade em acordar e realizar uma autênticacomunhão de vida e de amor pode anular um casamento». E quem é que vai julgar seuma dificuldade é uma impossibilidade? Os canonistas? O próprio papa?

Entretanto, os católicos, leais em todos os outros aspectos, são ilegalizados pelaprópria Igreja que amam; e os seus filhos ficam a interrogar-se sobre a razão por que opai e a mãe não recebem a comunhão juntamente com eles. Estes católicos ficam apensar, pesarosos, por que é que tiveram a infelicidade de terem sido baptizados pelaIgreja. Se ao menos se tivessem convertido depois do primeiro casamento, talveztivessem podido voltar a casar pela Igreja. Por que é que a Igreja persegue os seuspróprios fiéis? Acima de tudo, eles exigem uma explicação racional do motivo por quenão podem divorciar-se pela Igreja, quando até alguns papas disseram que podiam. Porque é que no divórcio, tal como na contracepção, não havendo motivos satisfatóriospara a interdição, eles se hão-de considerar pecadores?

Page 327: Vigde cristo

327

O derradeiro divórcio papal

É um dado adquirido em círculos católicos que Roma está irrevogavelmentecomprometida a nunca permitir que os cristãos se divorciem e voltem a casar depois deum casamento consumado. A História, ao contrário, poderia fazer crer que se trataapenas de uma questão de tempo até que se verifique a mudança, embora não sepossa prever quando e de que forma. Seja como for, é sempre perigoso dizer Nunca,tratando-se de qualquer instituição, principalmente de uma com o génio de Roma.

Já vimos que, ao permitir o uso do período seguro, Roma aprovou recentemente umacoisa completamente oposta à tradição: a dissociação de sexo e procriação. Depois deAgostinho e do papa Gregório, isto teria sido chamado de pecado mortal. Estasautoridades teriam também achado impensável que os papas pudessem permitircasamentos mistos, o divórcio de casamentos não consumados, o divórcio decasamentos consumados em que uma das partes não seja católica. O Papa João PauloII parece não ter consciência de quantas das coisas que diz teriam sido condenadaspelos seus antecessores no princípio deste século.

Por exemplo, nas suas audiências regulares das quartas-feiras entre 5 de Agosto de1979 e 21 de Maio de 1980, o pontífice fez uma série de alocuções sobre o amor e asexualidade. Numa delas reconheceu no Livro do Génesis, duas linhas literáriasdistintas. Na primeira delas, chamada J, Deus é referido como Yahweh; na segunda,linha posterior chamada E, Deus é referido com o plural da palavra hebraica Elohin. Sópor isto, Pio X tê-lo-ia condenado e ter-lhe-ia retirado o título de teólogo católico. OSanto Ofício insistia que Moisés escreveu todo o Pentateuco.

Noutra alocução, João Paulo falou em termos calorosos da justeza do «êxtasesexual» desde que o acto nupcial seja realizado sem contraceptivos. Contudo, durantemais de mil e quinhentos anos, os papas, um após outro, longe de aprovarem o êxtasedo sexo, disseram que ele era sempre e em todas as circunstâncias, um pecado. Se aomenos o actual pontífice reflectisse mais sobre a história do papado antes de falar de«verdades eternas» e da «inalterável lei de Deus» transmitidas pelos sucessores dePedro!

Tendo em vista as tremendas mudanças operadas pela Igreja no matrimónio, mesmoneste século, quem poderá dizer que um dia a Igreja Católica não abrandará a suadisciplina para permitir o divórcio entre cristãos? O Concílio de Trento deixou a questãoem aberto e ainda nenhum concílio ou papa a fechou. Os Ortodoxos e outras igrejascontinuam como uma espécie de farol a apontar para uma abordagem mais bíblica doproblema da separação marital.

É evidente que o actual tumulto na Igreja de Roma não vai amainar. As coisas irãopiorar antes de melhorarem. As anulações fragmentárias de casamentos, muitos dosquais eram, à luz de quaisquer padrões, casamentos autênticos, não são sóinadequadas, como tiveram também um efeito prejudicial no estado de espírito daIgreja.

A justificação racional para o divórcio vai levar tempo a ser elaborada, tal comoaconteceu com a dos casamentos mistos e com a dos divórcios para outros tipos decasamento. Como primeiro passo, os católicos que se divorciaram e voltaram a casarpelo civil poderiam ser autorizados a seguir a sua consciência e voltar aos sacramentos.De facto, muitos padres em todo o mundo já estão a aconselhar os católicos divorciadosa receber a comunhão sem um sentimento de culpa. Os bispos sabem disto e calam-se.De qualquer maneira, está no espírito do Vaticano II deixar aos casais a liberdade dedecidirem da justeza ou não do seu estilo de vida. Se considerassem que pecaram,poderiam pedir para cumprir uma penitência durante algum tempo antes da comunhão,

Page 328: Vigde cristo

328

como se fazia na igreja primitiva. Para o segundo casamento, a lei Tridentina que exigeum consentimento mútuo perante um padre e duas testemunhas teria de ser posta delado. Seja como for, esta legislação, em termos históricos, é de origem recente. Osegundo casamento seria considerado como agente da dissolução oficial do primeiro,exactamente como diziam alguns papas, com muito menos justificação, relativamenteaos votos religiosos, que dissolviam o casamento de um monge. Outra vantagem destaabordagem é que o papa não seria solicitado para divorciar indivíduos católicos —atingem muitos milhões — que se divorciaram civilmente e voltaram a casar. Alémdisso, o clero não teria capacidade para tal avalanche; iriam estar a oficiar emcasamentos todo o dia durante meses seguidos.

Mais tarde, quando a Igreja Católica, tal como outras igrejas, se habituar ao divórcio,o assunto pode tornar-se canonicamente mais preciso. O que há a considerar emprimeiro lugar deve ser que milhões de católicos em todo o mundo, a quem agora estãovedados os sacramentos, deviam ser autorizados a regressar, em consideração a elespróprios, e para bom exemplo dos seus filhos. Por que é que a Igreja, ao recusar aospais aquilo que os Ortodoxos e outras igrejas cristãs concedem aos seus seguidoressem qualquer confusão digna de registo, corre o risco de fazer com que milhões decrianças possam deixar o Catolicismo? Uma vez destruído o mito da “imutabilidade” equando os católicos compreenderem a extensão das mudanças da Igreja em respostaàs necessidades sociais ao longo dos séculos, a dissolução do casamento cristão nãoparecerá assim tão espantosa,

Se a Igreja aprendeu alguma coisa com a débacle da Humanae Vitae, foi que asquestões momentosas não podem ser deixadas nas mãos de um só homem, por maiseminente que ele seja. Cabe a toda a Igreja, ao clero e aos leigos, discutir livremente esem medo aquilo em que acreditam.

Tem de ser dito, a propósito, que o currículo de João Paulo II parece sugerir quenada disto acontecerá durante o seu pontificado. Portanto, o divórcio católico porenquanto terá de ficar na prateleira, juntamente com a contracepção, como «contrário àeterna lei de Deus». Na mesma categoria vamos encontrar a questão mais espinhosade todas: o aborto.

Page 329: Vigde cristo

329

19O Holocausto Silencioso

Há duas imagens que são a cristalização de um violento choque de opiniões. Ummédico católico exibe, num frasco, um feto desenvolvido; o feto revela todas ascaracterísticas de um ser humano minúsculo, mas inequivocamente humano. Isto, dizele arrebatadamente, é o que o aborto é na realidade, o assassínio de um bebé.

O seu opositor, uma mulher não menos arrebatada, ostenta na mão uma cruzeta defato. Isto, diz ela, era o que matava uma mulher quando o aborto era um crime. Seráque queremos voltar aos dias negros em que as mulheres tinham de recorrer acarniceiras clandestinas? E para quê? Simplesmente para usarem do direito elementarda mulher de não querer ser mãe.

O aborto é o tema de debate mais doloroso e polarizador dos tempos modernos. Ospapas, representantes da Igreja Católica, ensinam que o aborto não tem justificação emcircunstância nenhuma; é sempre a morte directa de uma criança inocente no ventrematerno. No outro extremo estão aqueles que dizem que o aborto é uma opçãoarbitrária da mulher; no útero não há criança nenhuma, há apenas uma criança empotência.

Os papas acentuam que toda a vida desde a concepção é uma dádiva de Deus; noprimeiro momento miraculoso já há um ser humano que Deus criou e ama e a quemdestinou uma vida eterna. Os que estão no polo oposto respondem que o que estádentro da mulher não é mais do que tecido fetal; ela pode ver-se livre dele com amesma tranquilidade com que se sujeitaria a uma cirurgia plástica para melhorar aforma do nariz. Afinal, é do corpo dela que se trata. Quem é que tem o direito de acondenar a nove meses de trabalhos forçados? Como disse Stella Brown em 1915, «Odireito da mulher ao aborto é um direito absoluto. Qualquer mulher devia ter acesso aoaborto sem estar sujeita a perguntas insolentes nem a custos financeiros ruinosos,porque o nosso corpo é só nosso».

Segundo sondagens recentes, a maioria das pessoas que reflectem sobre esteassunto parecem optar pelo meio termo. Rejeitam os absolutos, não gostam deextremos. O aborto nem sempre é um mal, porque pode haver sinais claros que deviampermitir que a mulher abortasse. Por outro lado, o que está no ventre materno não éapenas tecido; é, em certo sentido, uma coisa sagrada. Portanto, não podemosdesfazer-nos dela sem grande ponderação e angústia moral.

Uma nova sensibilidade à vida

O Cristianismo trouxe ao mundo, desde o princípio, um novo respeito e reverênciapela vida em todos os seus estádios. O Novo Testamento contribuiu para isto comtextos como aquele em que o filho salta de alegria no ventre de Isabel quando Maria aveio visitar.

Para gregos e romanos, o aborto e o infanticídio eram ocorrências do dia a dia. Osantigos em geral não tinham sentimentos muito profundos em relação às primeirasfases da gravidez. Isto explica-se em parte pelo facto de muitos pensarem que um ser

Page 330: Vigde cristo

330

só se tornava humano quando pela primeira vez inspirava o ar. Aristóteles via o abortocomo uma necessidade quando a população excedia limites razoáveis.

Abundavam os manuais sobre o aborto e havia profissionais para os fazer.Destruíam o embrião por meio de purgas no abdómen, exercícios violentos, banhoscom várias misturas, sangrias da mulher, supositórios, drogas mortais, instrumentosafiados. As mulheres submetiam-se a isto por várias razões: porque corriam perigo devida, para esconder um adultério, porque não queriam estragar a figura. O que o abortotem de errado nunca era uma coisa penosa.

O Cristianismo, disse Lecky, prestou um grande serviço à humanidade «ao afirmardefinitiva e dogmaticamente que toda a destruição da vida humana para divertimento oupor mera conveniência era pecaminosa, criando assim um novo padrão mais elevado doque qualquer outro então existente no mundo».

«Ama o próximo como a ti mesmo» aplicava-se antes de tudo ao próximopequenino junto do coração da mãe.

A proscrição do aborto por parte da Igreja foi reforçada pela sua doutrina sobre opecado original, mas não foi criada por ela. Se a salvação dependia do baptismo, éevidente que matar uma criança no ventre materno era mais do que um crime; era, emcerto sentido, matá-la para sempre. Esta a razão por que o aborto foi considerado umpecado quase imperdoável. As penitências impostas por esse pecado eram severas, epodiam incluir nalguns casos, a exclusão dos sacramentos para toda a vida. Fazerabortar um feto era considerado pior do que matar uma criança já nascida e baptizada.

Os papas modernos consideram-se o sustentáculo desta grande tradição. NaEncíclica Casta connubii, diz Pio XI:

Podemos sentir piedade pela mãe cuja saúde e mesmo a vidacorrem perigo em consequência do cumprimento do dever quea natureza lhe reservou, contudo, o que é que pode algumavez constituir razão suficiente para desculpar, seja de queforma for, o assassínio directo dos inocentes?

Vinte e um anos mais tarde, em 1951, diz Pio XII:

Uma vida humana inocente, sejam quais forem ascircunstâncias, tem de ser preservada, desde o primeiromomento, de qualquer ataque directo voluntário. Isto é umdireito fundamental da pessoa humana, generalizadamentevalorizado na concepção cristã da vida; e é válido tanto para avida ainda escondida no ventre materno como para a vida quejá o deixou; e vai da mesma forma contra o aborto e oassassínio da criança durante ou após o nascimento.

Nas suas viagens ao estrangeiro, João Paulo nunca perde a oportunidade de repetira mesma mensagem. Nos Estados Unidos da América, onde o aborto foi consideradoum direito constitucional para todas as mulheres, insistiu no carácter sagrado da vida noventre materno; o feto tem tanto direito à vida como a mãe ou os filhos já nascidos. Nasua primeira viagem à América, em 1979, frente ao Mall, em Washington, ele realçouum dos principais temas do seu pontificado: o carácter sagrado da vida «desde oprimeiro momento da concepção e durante todos os estádios subsequentes». Por via deCristo, toda a vida humana foi redimida. Portanto, «todos os seres humanos (também

Page 331: Vigde cristo

331

aqueles que ainda estão no ventre materno) […] são considerados como irmãos ouirmãs de Cristo em razão da Encarnação e da redenção universal».

Desde 1979, sempre que falou do aborto João Paulo deu testemunho de um fogointerior que o consome. Acredita com todas as fibras do seu ser que esta questão é quevai decidir se a nossa geração tem ou não o direito de se considerar civilizada. Repeteconstantemente uma ideia que desenvolveu muito antes de se tornar pontífice. Aquelesque se opõem ao aborto estão na linha da frente da batalha contra o novo paganismo;estão a lutar pela dignidade do homem e pelo carácter sagrado de toda a vida desde aprimeira partícula no ventre materno até ao último suspiro de um idoso moribundo.Onde quer que se abra uma brecha no respeito pela vida, a mensagem cristã estáameaçada na sua integridade. Essa mensagem é a do amor de Deus por toda a pessoahumana, por muito frágil, doente ou insignificante que possa parecer. Esta a razão porque ele manifesta um especial afecto pelas crianças e também pelos velhos e pelosdoentes. É a teoria do dominó aplicada ao nível mais elevado da vida. A contracepçãoconduz ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia. É parte de um todo: desperdiçar o sémennuma relação sexual leva necessariamente, por uma lógica cruel e por muitomisericordiosa que seja a intenção, ao assassínio dos deficientes e dos velhos, que não"contribuem", que são um sorvedouro de recursos. João Paulo evoca os seus primeirosdias em Cracóvia, tão próximo de Auschwitz. Não pode deixar de ver que as clínicas deaborto em Nova Iorque e Londres, Paris e Amsterdão não são mais do que pequenoscampos de morte geridos muito higienicamente — mas, afinal, Auschwitz não era ummodelo de eficiência?

Uma mudança radical de atitude

Não há dúvida de que a atitude actual em relação ao aborto revela uma das maisespantosas inversões éticas da história moral. Ainda em 1939, não havia um único paísno mundo onde uma mulher pudesse optar livremente pelo aborto, embora de facto comalgumas excepções. Por exemplo, na católica Polónia uma lei de 1932 permitiu o abortopara salvaguarda da saúde da mulher após violação ou incesto. Lecky e outrosmoralistas dos fins do século XIX não teriam acreditado que as transformações actuaisfossem possíveis. Mesmo pouco antes de 1960, os moralistas teriam achado o cenárioactual uma reminiscência do mundo greco-romano anterior à influência do Cristianismo.Vinte séculos depois de Cristo, as mulheres andam mais uma vez a abortar porque agravidez lhes vai estragar as férias ou a figura. Os papas não estão sozinhos naconvicção de que isto é o grande escândalo do nosso tempo.

De crime punível por lei, o aborto passou a ser um direito inscrito nas leis econstituições. Nalguns países é subsidiado pelo dinheiro dos contribuintes. Foi-se oestigma. As mulheres que abortam estão a prestar um serviço à comunidade,especialmente quando se recusam a trazer ao mundo um bebé deficiente. Poupam-sepor ano biliões à comunidade em serviços médicos, escolas e subsídios a deficientes.São os pobres quem mais beneficia: não nascem. Elimina-se a fome eliminando-se ospotenciais famintos. Aqueles que pressionam a favor do aborto a pedido assumem-secomo filantropos.

Na nossa sociedade há muita gente preocupada com o facto de o filho, outrora vistocomo uma bênção de Deus, ser agora olhado como uma ameaça, um obstáculo àfelicidade da família. Ainda não há muito tempo, o Estado queria proteger os nasciturosa todo o custo; agora são descartáveis. «Se o teu feto te aborrece, arranca-o». Ogrande arquétipo de cuidados e preocupação, o amor de uma mãe pelo filho, foi minado

Page 332: Vigde cristo

332

e desvalorizado. O respeito foi substituído pelo frio calculismo. Há uma praga de morte,um holocausto silencioso, um massacre dos inocentes, que está muito para além dasideias mais selváticas de Herodes. No Japão e América juntos há, por ano, 2 milhões deabortos e na Itália à volta de 800 000. Segundo Colin Francone em Abortion Freedom,calcula-se em 55 milhões o número de abortos anuais em todo o mundo.

O aborto é muitas vezes usado como meio de planeamento familiar. Grande númerode mulheres de todas as idades vão ao hospital para não terem um filho. O ventretornou-se mais perigoso do que uma zona de guerra. Nos Estados Unidos da América onúmero de bebés que morrem anualmente no ventre materno é superior ao dossoldados que morreram no Vietname e ao das vítimas mortais dos acidentes de viação.Nas silenciosas salas de operações de clínicas de luxo procede-se a uma carnificinaequivalente à da Batalha do Somme ou à dos oito anos do conflito Irão-Iraque.Nalgumas cidades, o aborto é um negócio de tal monta que se cometem erroselementares. Há mulheres que "abortam" sem estarem grávidas. E os médicos ganhammilhões a lidar com a morte. Tradicionais guardiões da vida e da saúde, despendemtoda a sua carreira a matar. A prodigiosa mudança de sensibilidade entre o comum daspessoas deve-se ao facto de já não serem carniceiros que realizam os abortos, mascirurgiões de bata branca e máscara cirúrgica. Há relatos que testemunham que algunsdestes médicos, depois de realizarem centenas de abortos, sofrem de efeitospsicológicos graves.

Os fetos abortados são por vezes vendidos para experiências e para o fabrico deprodutos de saúde e beleza. Este mercado, o mais negro dos mercados negros, fazlembrar a alguns a maneira como, não há muito tempo, os Nazis transformavam osjudeus em barras de sabão. Nalguns círculos, as reacções a estes factos padecem defalta de lógica. Aqueles magnânimos que condenam a experimentação com fetos nainvestigação médica não têm quaisquer escrúpulos em relação à destruição dos fetospara bem de ninguém a não ser talvez da perfeita saúde de uma mãe. Se o feto éhumano, não deveria ele ser respeitado e considerado sagrado? Se é sub-humano,mero tecido descartável, por que não ser comprado e vendido ou objecto deexperimentação ou transformado em produto de beleza? A verdade é que ele só temutilidade para estes fins porque é de facto especificamente humano.

Outra anomalia: numa altura em que as grávidas são avisadas pelos médicos deque não devem fumar, nem beber, nem tomar drogas, para não prejudicarem o bebé,dá-se-lhes também a liberdade legal de os destruir, mais ou menos à sua vontade.Numa altura em que os que nascem deficientes são tratados com grande consideração,a sociedade permite que aqueles que se sabe que virão, ou poderão vir a serdeficientes sejam mortos no ventre materno. Trata-se de uma mensagem implícita paraos deficientes: «Se a vossa situação tivesse sido diagnosticada mais cedo, ter-nos-íamos visto livres de vocês». A sociedade parece dizer dos deficientes o que Jesusdisse de Judas: «Seria melhor que nunca tivesse nascido». Seria provavelmente maisseguro e em termos médicos faria mais sentido se se deixasse todos os fetosdesenvolverem-se completamente e depois se matassem os deficientes. Hoje não seexecutam os criminosos porque pode vir a provar-se mais tarde que estão inocentes.Não deveríamos também impedir a morte de possíveis deficientes — por causa darubéola, por exemplo — para o caso de eles virem a ser saudáveis? Se o não forem,então matem-se. As razões para justificar o aborto justificariam certamente também oinfanticídio, ou não? Será que essa susceptibilidade também vai desaparecer com otempo? Não irá a sociedade, também aqui, imitar os romanos, deixando os bebés amorrer não em frias encostas mas em baldes de aço inoxidável? Há investigações querevelam que o infanticídio já acontece de facto em clínicas de aborto. O feto pode estar

Page 333: Vigde cristo

333

mais desenvolvido do que se esperava. Para desespero do médico, nasce um bebéperfeitamente saudável e viável. Em vez de extrair o líquido amniótico e de proceder àaspiração e aquecimento daquele ser humano, o médico mete-lhe um dedo enluvadopela garganta abaixo ou, depois de um rápido olhar apressado para ver se o feto respira— isto para sua salvaguarda — deita-o num balde.

As anomalias multiplicam-se. Nalguns sítios as crias das gatas são liquidadas commais consideração do que a que se dispensa aos bebés no ventre materno. Numaépoca em que se acha a pena de morte cada vez mais odiosa, matam-se bebés asangue frio aos milhões à luz de uma moderna lei de Lynch. Os infanticidas, osvioladores, os sádicos, os espiões não são executados; só os inocentes no ventrematerno ou aqueles que, para aborrecimento dos implicados no processo, dele saeminesperadamente vivos, são assassinados. Quem maltrata os bebés vai para a cadeia;os que os mutilam e matam antes da sua primeira inspiração são pagosprincipescamente e é-lhes atribuída uma categoria profissional.

Enquanto que na lei romana o pai tinha direito de vida e morte sobre a família, hojeé a mulher que decide qual dos seus bebés vive ou morre. A avaliar por algumasdecisões recentes de tribunais do Reino Unido e dos Estados Unidos da América, o pai,aparentemente, não teria quaisquer direitos. Contribuiu no acto de amor para aconcepção do filho, o filho é geneticamente parte dele próprio; mas nem a ele épermitido interferir no direito absoluto da mulher em fazer abortar o seu bebé. O filho noútero não tem ninguém que o defenda, nem direitos absolutamente nenhuns.

Para justificar estas atitudes argumenta-se muitas vezes que o que está no úteronão é em sentido nenhum um ser humano, apenas um ser humano em potência. Nãohá pessoa nenhuma enquanto não há existência real e independente após onascimento. Novas expressões se cunharam para exprimir este novo fenómeno.

Aqueles que provocam o aborto nunca matam bebés; provocam a interrupção dagravidez, ou desfazem-se de matéria fetal. Os abortos são classificados comoterapêutica, mas não para os nascituros para quem são letais. O ênfase vaiexclusivamente para a mulher e a sua "situação". Ela nem deve ser chamada de mãeneste contexto; é uma não-futura mãe. Tem de manter-se a pretensão de que ela estáfísica ou mentalmente doente, mesmo que com toda a evidência o não esteja. A próprialinguagem está esterilizada. Todas as palavras negativas que soem a destruição emorte foram abolidas. O aborto é sempre positivo e como os médicos estão envolvidostem de ser retratado como um benefício para o mundo, um avanço da medicina, umacomodidade pública.

Para aqueles que não sendo médicos nunca têm de olhar para o balde de açoinoxidável depois de o cirurgião acabar o seu trabalho, nem para o feto a contorcer-sequando lhe é espetada a agulha isto pode parecer humanitário. A gravidez aparececomo uma doença e, nos primeiros tempos, uma doença sem importância. O aborto nãoé propriamente uma operação; é uma mera raspagem, talvez um pequeno trabalho desucção. Afinal, o bebé nem foi planeado, não é verdade? O género neutro∗ ajuda amascarar a realidade humana. Só os bebés que são desejados e amados é que devemvir ao mundo. Este foi um acidente e os acidentes não deviam acontecer; os médicosfornecem o seguro contra acidentes. Não se mata nenhuma criança; na pior dashipóteses, uma criança em potência. Mas em certo sentido, cada mulher tem dentro desi, desde que nasce, até um milhão de crianças potenciais, os óvulos que aguardam odesenvolvimento. Só uma pequeníssima fracção deles podem vir a ser bebés; mais um, ∗ Trata-se aqui de uma referência ao facto de em inglês, em termos gramaticais, o bebé, antes e depois donascimento, se considerar como pertencendo não ao género masculino ou feminino, como os adultos, mas aogénero neutro, que engloba todos os seres inanimados, objectos, plantas e animais. (N.T.)

Page 334: Vigde cristo

334

menos um, não faz diferença. Portanto aquilo que ela transporta consigo, especialmenteenquanto não o sente a mexer, é apenas tecido, uma espécie de tumor benigno, comoum quisto num seio, ou as amígdalas ou o apêndice. Ninguém sai prejudicado; a mulherdesfaz-se de uma parte incómoda de si própria. Além disso, que médico é que faria umacoisa tão indecente como matar um ser humano?

Mas acontece que a linguagem vulgar, assim como a lei inglesa comum, é contra talterminologia. A mulher traz dentro de si um bebé e não um feto não-humano. «Como éque está o meu bebé?» é a pergunta que a grávida faz ao seu médico. Até agora a leiprotegia o nascituro como seu mais precioso encargo; garantia-lhe mesmo o direito àherança, permitindo-lhe, após o nascimento, processar outrem por danos causados a siou aos pais, por exemplo, em caso de acidente de viação ocorrido na altura em estavaainda no ventre materno. Sempre que a criança sofresse quaisquer danos ainda noventre materno e depois do nascimento morresse em resultado disso, quem quer que ostivesse provocado era acusado de homicídio.

Isto, poder-se-ia argumentar, era nos velhos tempos em que se sabia muito menosdo que nós hoje sabemos. A verdade é exactamente o contrário.

A ciência moderna revela uma rigorosa continuidade entre o embrião e todos osseus estádios de desenvolvimento posteriores. Longe de ser parte da mãe, a criança éuma individualidade única desde o início. O embrião tem o seu próprio código genéticoque evoluirá mas que nunca se alterará substancialmente. Da união do esperma com oóvulo resulta o ser distinto composto por quarenta e seis cromossomas que distinguemo tipo humano. O que a mulher transporta dentro de si não é um bocado de matériainerte, nem um vegetal, nem uma espécie de girino, é nem mais nem menos do que umhumano, macho ou fêmea, em embrião. Este embrião não é um ser humano potencial,mas um ser humano com potencial. Um dia ele ou ela poderá pensar, sonhar, amarexactamente como qualquer outro ser humano. É apenas uma questão de tempo.Assim, à medida que os dias e as semanas vão passando, o que uma ecografia revela,é um coração humano (quarenta dias), um cérebro humano (setenta dias), queresponde a estímulos, que se vira com dores ou com frio, que chupa no dedo, querespira e verte as suas próprias lágrimas. É este ser humano, macho ou fêmea, que éesfaqueado, envenenado, ensopado em ácido dentro do ventre, talvez decapitado; eque, depois do parto, se os cálculos do médico saírem errados, fica exposto a umambiente hostil e é deixado a sufocar ou a gelar até à morte porque a mãe não o quer.E a sociedade, assim parece, aprova ou pelo menos perdoa essa decisão.

Os defensores extremistas do aborto não têm a ciência do seu lado. Nunca aciência foi tão contrária à opinião de que o feto faz parte da mãe e que portanto ela temo direito, como era o caso da lei romana, de extrair aquilo que é "uma parte de siprópria". Em certo sentido, o feto cria o seu próprio ambiente dentro do ventre materno;a placenta é uma criação não da mãe, mas do bebé. O bebé tem o seu próprio sangueque por vezes é incompatível com o da mãe. Mais ou menos aos quatro meses, umexame ao líquido amniótico — por meio de amniocintese — possibilita ao médico adeterminação do sexo do bebé. É um menino ou uma menina que morre quando semata o feto ou quando, como eles dizem, se interrompe a gravidez. Actualmente, comose sabe, consegue-se manter um bebé vivo dentro do útero durante muito tempo após amorte da mãe. Não é o nascimento nem a primeira inspiração, como defendem osEstóicos modernos, que tornam um feto humano. Ele sempre foi humano desde oprincípio.

Page 335: Vigde cristo

335

Alterações à lei

Em vista disto, as alterações à lei nos anos 60 foram de certo modo uma surpresa.A lei parece dar pouca ou nenhuma importância ao facto de o embrião ter umaconstituição genética separada e sistemas circulatório, hormonal e nervosoindependentes.

Em 1967, a Grã-Bretanha aprovou uma Lei do Aborto que legalizou a interrupção dagravidez, desde que praticada por um médico com a concordância de dois outrosprofissionais médicos reconhecidos oficialmente que considerassem(a) que a continuação da gravidez envolveria risco de vida para a grávida ou de danos

físicos ou mentais para saúde da grávida ou de quaisquer crianças da família,riscos e danos maiores do que se a gravidez fosse interrompida; ou

(b) que havia um risco substancial de que se a criança nascesse sofreria de taisanormalidades que ficaria gravemente deficiente.

Esta lei foi aplaudida pela maioria dos britânicos e continua muito popular, muitoembora acontecimentos posteriores tenham mostrado que possibilita os abusos. Antesde 1967, eram hospitalizadas três mil mulheres com o útero perfurado ou infectado,resultado de abortos clandestinos. O número de mortes era impossível de determinar. Anova lei viria acabar com estas mutilações e mortes permitindo a utilização dasmodernas técnicas de sucção. A interrupção, que tinha em conta a situação real eprevisível da mulher, tinha de ser realizada num hospital ou clínica autorizada. Isto nãoera certamente aborto a pedido; envolvia indicações médicas claras e uma opção moral.Diziam os comentadores que não era este o caso da abordagem nos Estados Unidos daAmérica.

Em 22 de Janeiro de 1973 o Supremo Tribunal pareceu voltar aos tempos pre-cristãos quando decidiu que a vida humana começa no momento do nascimento. Esteinepto veredicto não foi provocado por qualquer clamor público nem antecedido dedebate público. Segundo o tribunal, o feto não é um cidadão e portanto não tem direito aqualquer protecção da lei. É um zero a que o Estado é totalmente indiferente. A mãepode escolher em total liberdade entre a vida e a morte do filho. Segundo John T.Noonan Jr., no seu livro A Private Choice, «A liberdade da grávida era como a liberdadede um autor relativamente ao seu manuscrito, de um agricultor relativamente à suacolheita, de uma menina relativamente à sua boneca… A grávida estava protegida dacirurgia de refugo, mas o nascituro não tinha protecção nenhuma, fosse ela qual fosse».Tal como os escravos negros no período colonial e pós-colonial, ou como os Judeussob o Nazismo, o nascituro não tinha existência legal.

Até os estados comunistas ficaram espantados com esta liberalização num paísostensivamente cristão. O Vaticano ficou naturalmente horrorizado. É bem possível quegrande parte do receio de João Paulo pelo Catolicismo americano tenha a sua origemnas leis do aborto americanas. Que melhor prova podia haver de que a famosaliberdade americana acaba numa bárbara mentalidade anti-vida.

E o choque é ainda maior ao ver que já em 1969 uma sondagem da Harris para aTime Magazine mostrava que 60 por cento dos católicos americanos pensavam que aquestão do aborto devia ser deixada para os pais e para os médicos. A proporção decatólicos americanos que são a favor desta abordagem aumentou vinte pontos desdeentão.

Não admira que Sua Santidade pense que a América precisa de uma lição. Elepensa que todos os abortos estão errados e a decisão compete-lhe a ele.

Page 336: Vigde cristo

336

Para restabelecer o equilíbrio, terá de se colocar outra questão: teriam os própriospapas contribuído para este resvalar para uma mentalidade abortista? Isto pareceabsurdo e contudo alguns católicos estão prontos a argumentar que o extremismo dopapado levou os católicos a abandonar o meio campo num momento crítico dos anos dopós-guerra. Só no meio campo é que esta batalha pode ser travada com uma moderadaesperança de sucesso.

O pensamento de João Paulo

Poder-se-ia pensar que a oposição de João Paulo ao aborto se deve aos seusantecedentes polacos direitistas. A Polónia, presume-se, está, como a Irlanda, de almae coração contra o aborto.

Surpreendentemente, isto acaba por não ser verdadeiro. Como Daniel Callaghan dizno seu livro Abortion: Law, Choice and Morality: «Apesar do carácter fortemente católicoda Polónia (conservador, com altas taxas de obediência) e da repetida condenação doaborto pela hierarquia, a taxa de abortos legais é alta e a da natalidade, baixa».

Por exemplo, em 1962, quando o papa era ainda bispo na Polónia, a taxa do abortoera neste país muito mais alta do que na América. Era mesmo mais elevada do que ada América hoje depois da decisão constitucional do Supremo Tribunal! Foi de 200.000o número de abortos registados para uma população de cerca de 30 milhões. Alémdisso, estava em curso um programa de controle da natalidade muito bem gerido efinanciado para o qual os católicos não eram excepção. Daqui ressalta um facto notável:longe de não aderir aos contraceptivos, a Polónia foi mesmo o primeiro país do mundoonde a utilização dos contraceptivos realmente reduziu a taxa do aborto. Em 1968, onúmero de abortos caiu para 121.700. Mesmo assim, a relação abortos-nascimentoscontinuava muito elevada.

É evidente que João Paulo não sofreu qualquer trauma quando se mudou deCracóvia para o Vaticano. No seu país havia contracepção e abortos em abundância. Asua oposição a ambas estas práticas tem origem não no seu catolicismo mas nas suasconvicções, que estavam a ser traídas pelos polacos.

Como já assinalámos, a História não confirma a opinião do Vaticano segundo a quala sua actual oposição à contracepção é «constante». Será a sua posição em relação aoaborto assim tão constante como ela gosta de fazer crer?

Nos seus discursos, João Paulo considera certos dados como adquiridos: (1) que oembrião é humano; (2) que é humano desde o momento mesmo da fecundação; (3) queisto significa que o embrião tem exactamente os mesmos direitos que qualquer outro serhumano — por exemplo, a mãe ou os outros filhos já nascidos; (4) que matardirectamente o embrião é sempre um homicídio.

Mesmo que ele tenha razão em todos este pontos, quanto disto é que é doutrinaconstante do Catolicismo? A resposta é: nada. Nenhum dos passos da suaargumentação faz parte da tradição, o que obriga a que o seu raciocínio sobre o aborto,tal como o de Paulo VI sobre a contracepção, deva ser submetido a uma análiserigorosa.

A alma é infundida no momento da concepção?

A maioria dos católicos acredita que a alma é infundida na concepção. Na realidade,não é assim. O Concílio Vaticano II deixou de lado este assunto por uma boa razão.

Page 337: Vigde cristo

337

Durante mil e quatrocentos anos, até fins do século XIX, para todos os católicos,incluindo os papas, era um dado adquirido que a alma não era infundida na concepção.Se a Igreja estava totalmente contra o aborto, como de facto estava, não era com ofundamento de que o embrião fosse desde o início um ser humano.

A Igreja aceitava desde o século XV, e sem a contestar, a embriologia primitiva deAristóteles. O embrião começava por ser uma partícula não-humana que se animavaprogressivamente. Esta partícula tinha de passar por uma evolução desde a condiçãovegetativa, passando pela animal até se tornar um ser espiritual. Só na sua fase final éque já era um ser humano. Esta a razão por que Graciano pôde dizer: «Aquele queprovoca um aborto antes de a alma estar dentro do corpo não é um homicida».

As características do feto eram atribuídas somente ao pai. O feto tornava-sehumano aos quarenta dias para o sexo masculino e aos oitenta para o sexo feminino.Um feto do sexo feminino, dizia S.Tomás de Aquino, resultava de sémen defeituoso oudo facto de a concepção ter tido lugar quando soprava um vento húmido. Daí que fazerabortar um feto nos primeiros tempos da gravidez fosse considerado condenável, umavez que era a destruição de um ser humano em potência. Mas não era homicídio, vistoque não se tratava de matar um verdadeiro ser humano.

No século XV os moralistas começaram a interrogar-se sobre se não seria possíveldestruir o feto sem sentimento de culpa, por exemplo, quando resultava de violação oude incesto ou até de adultério, ameaçando assim os direitos do marido e o própriocasamento. O mesmo dilema se punha no caso de uma mãe cuja saúde correria riscose tivesse de continuar com a gravidez até ao fim. Não seria um dever moral salvar umavida humana à custa de uma vida não-humana, mesmo que potencialmente humana.Alguns dos melhores teólogos responderam que sim.

Outros foram ainda mais longe. Disseram que era admissível salvar a vida de umamãe mesmo depois de o feto se ter humanizado, isto é, depois de a alma ter sidoinfundida. E porquê? Porque a vida do feto não tinha um valor absoluto; o seu valortinha de ser pesado com outros. Então, e no clássico caso em que a única opçãopossível fosse entre salvar a mãe ou o filho? Não era a vida da mãe mais valiosa do quea do filho? Muitos hesitaram. Diziam eles que matar directamente um feto com alma erasempre um erro. Contentavam-se em dizer que é admissível matá-lo indirectamente,isto é, quando o tratamento médico para ajudar a mãe incidentalmente e sem intençãomata também o feto ou provoca a sua expulsão. A intenção era apenas salvar a mãe; amorte do feto era um triste efeito secundário desse virtuoso acto.

A História mostra que os papas, longe de serem capazes de resolver estes difíceisdilemas morais de uma vez por todas, andavam tão confusos como toda a gente. Nãotinham acesso a informação privilegiada. Tinham de avançar com argumentosrefutáveis. Por exemplo, Gregório XIII (1572-85) disse que matar um embrião commenos de quarenta dias não era homicídio porque este não era humano. Mesmo depoisdos quarenta dias, embora fosse homicídio, não era tão grave como matar uma pessoajá nascida, desde que isso não fosse feito por ódio ou vingança. O seu sucessor, otempestuoso Sisto V que rescreveu a Bíblia, discordava completamente. Na sua BulaEffraenatum, de 1588, disse que todos os abortos, fossem quais fossem as razões,eram homicídio e eram punidos com a excomunhão reservada à Santa Sé. Logo após amorte de Sisto V, Gregório XIV viu que, dada a opinião teológica que então vigorava, oponto de vista de Sisto era demasiado severo. Numa decisão quase única disse que ascríticas de Sisto deviam ser tratadas como se nunca tivessem sido emitidas. Os papastambém podem ser precipitados. Nunca tinham de facto respostas na manga para osproblemas morais que iam aparecendo. Os juízos morais dependem dos factos e dascircunstâncias, os quais devem, todos eles, ser alvo de permanente revisão. O papado

Page 338: Vigde cristo

338

do século XIX esqueceu este princípio básico em todas as questões relacionadas com aliberdade. Os papas do século XX esqueceram-no em todas as questões relacionadascom o sexo. Paulo VI não estava sozinho ao emitir de novo velhas doutrinas sem olharàs alterações radicais das circunstâncias e às descobertas científicas. A moralidade doaborto, em particular, depende de factos biológicos.

Em 1621 um médico de Roma, Paulo Zacchia, lembrou que a opinião de Aristóteles,segundo a qual a infusão da alma se dava algum tempo após a concepção, não tinhaqualquer fundamento biológico. Zacchia era o médico mais respeitado da corte papal,mas a sua opinião não teve qualquer impacto nem na doutrina papal nem na teológica.O Vaticano emitiu uma directiva pastoral em que se permitia, mas não se obrigava, obaptismo dos fetos com menos de quarenta dias. Já no século XVIII, o maior teólogomoral da Igreja, Santo Alfonso Liguori, continuava a negar que a alma fosse infundidana concepção. Tal como Tomás de Aquino antes dele, este teólogo não dizia que oaborto directo estava certo, mas a sua opinião permitiu alguma flexibilidade naabordagem do aborto, especialmente quando a vida da mãe corria perigo. Depois de1750, esta flexibilidade desapareceu. Pela primeira vez em séculos, a Igreja começavaa regressar à atitude intransigente dos Padres.

A crescente rigidez de Roma

Longe de repetir a tradição, Pio IX foi contra vários séculos de ensinamentosconstantes quando afirmou em 1869 que qualquer destruição de qualquer embrião eraum aborto passível de excomunhão. Por outras palavras, adoptou a opinião extremistade Sisto V que fora de imediato invertida por Gregório XIV. A base racional da doutrinade Pio tinha dois aspectos. Primeiro, a infusão da alma tem lugar na concepção.Segundo, o embrião e a mãe têm sempre igual valor. Nenhuma destas posições podiaser classificada, mesmo que remotamente, de tradicional. De facto, a maioria dosteólogos desse tempo discordava da primeira, o que implicava a discordância emrelação à segunda. Porque se a alma não é imediatamente infundida dificilmente secompreende como é que o embrião pode ter sempre o mesmo valor que a mãe.

No ano seguinte, o Concílio Vaticano I aclamou a infalibilidade do papa. A partir deentão os bispos começaram a procurar em Roma as respostas para todos os seusproblemas. A opinião de Zacchia de que a infusão tem lugar na concepção, reforçadapela definição de Pio da imaculada concepção da Virgem Maria, começava já aconvencer os teólogos, especialmente os teólogos de Roma, de que a partir daconcepção já há um ser humano. Sendo um ser humano, o embrião tem todos osdireitos absolutos de um ser humano. Por essa altura, já o óvulo fora descoberto porKarl Ernst von Baer, em 1827. Em 1875 provou-se que da acção conjunta do esperma edo óvulo resultava de imediato um novo organismo que depois continuava a evoluir atéà criança.

A abordagem pastoral do Vaticano consolidou-se para se adaptar a este novopensamento. O Santo Ofício fechou todas as portas possíveis ao aborto. Era proibidotudo aquilo que de qualquer forma pusesse o embrião em perigo. Considerava-se queera arriscado ensinar que a craniotomia era um procedimento correcto, mesmo que parasalvar a vida da mãe. No ano de 1895, Leão XIII aprovou pessoalmente uma decisãoainda mais reaccionária do Santo Ofício. O caso em questão era o seguinte: uma mãecorria um determinado risco de vida. Se o feto não fosse retirado, ambos morreriam. E a

Page 339: Vigde cristo

339

resposta foi: os médicos eram proibidos de remover o feto mesmo que asconsequências fossem a morte da mãe e do filho.

E mais decisões reaccionárias se seguiram. Recusou-se aos médicos autorizaçãopara tratarem das gravidezes extra-uterinas. Isto era um fatalismo de tipo corrosivo. Oque a natureza fez, não o desfaça o homem. Tirada a conclusão lógica, o princípio seriacatastrófico para todos os ramos da medicina. Era evidente o que estava a acontecerem Roma. À medida que a sociedade começava a concordar com o aborto para casosmédicos de gravidade, o Vaticano tornava-se cada vez mais crítico. No código de leiscanónicas de 1917, a mãe foi pela primeira vez incluída na censura reservada aoaborto.

Finalmente, treze anos mais tarde, a Encíclica Casta connubii, como vimos,ensinava que o mandamento «Não matarás» se estendia ao feto em todas as fases doseu desenvolvimento. Nem sequer uma extrema necessidade podia justificar a mortedirecta dos inocentes no ventre materno, porque esses inocentes tinham um direitoabsoluto à vida. «As vidas de ambos têm o mesmo valor», disse o pontífice, ignorandoaparentemente os dilemas morais decorrentes do facto de estar assim a abraçar asopiniões extremistas de Sisto V. Infelizmente para a Igreja, esta abordagem extremistatornou-se a nova ortodoxia no exacto momento em que, devido às avançadas técnicasmédicas, nunca fora tão inaceitável. A cirurgia era cada vez mais segura e os médicoscomeçavam a poder prever com exactidão os riscos de levar uma gravidez até ao fim.

Pio XI não afirmou a infalibilidade da Encíclica Casta connubii, mas esta teve mãopesada para com os moralistas. O papa parecia mesmo proscrever os abortosindirectos. Estes consistem, por exemplo, na remoção de um útero canceroso quando amulher está grávida, ou na excisão de uma trompa de falópio quando o embrião aí sealoja em vez de o fazer no útero. Isto era tão extremista que alguns moralistasrecusaram aceitá-lo, pondo os empregos em risco. A sua coragem compensou, porqueo Vaticano fez uma concessão: deixou de condenar os abortos indirectos quando aintenção não era matar o embrião mas salvar a vida da mãe. Pio XII viria finalmente aaprovar isto em 1951. Passou, pois, a ser oficial: «provocar a morte indirectamente» eraadmissível em certos casos.

Mesmo assim, esta doutrina, ainda rigorosa, leva a conclusões inaceitáveis emtermos médicos. Imaginemos, por exemplo, que o médico opta por remover o embriãoda trompa de Falópio sem extrair a própria trompa: isto é pecado. Aos olhos doVaticano, isto é provocar a morte directa, e não indirecta, do embrião. Esta a razão porque quase todos os moralistas se sentem obrigados a dizer que é preferível retirar atrompa com o embrião no seu interior a retirar o embrião e deixar a trompa intacta —muito embora este último procedimento permita futuras gravidezes. Este é mais umcampo em que as mulheres podiam ajudar a pôr os moralistas no caminho certo.

Outra resultante bizarra desta abordagem de Roma: a Igreja diz que é um pecadomuito grave uma rapariga de doze anos fazer um aborto depois de violada, mesmo queo culpado seja o próprio pai. Um teólogo católico de topo, o Padre Bernard Häring, emThe Morality of Abortion, escreve o seguinte sobre um trágico caso de violação:

Se ela já cedeu à tentação de se livrar tão completamente quantopossível dos efeitos da sua experiência, podemos deixar ojulgamento da gravidade do seu pecado a Deus misericordioso etentar formar-lhe a vontade de integrar tanto o seu sofrimento comoo seu pecado nos sofrimentos e pecados do mundo que Cristocarregou para a cruz. […] Eu nunca iria ao ponto de aconselhar

Page 340: Vigde cristo

340

alguém a fazer um aborto. E também não diria à pessoa em questãoque essa é a decisão certa mesmo depois de ela já a ter tomado.

Quando o mais tolerante e mais sensato dos doutrinadores católicos escreve com talcrueza não podemos deixar de nos interrogar sobre o estado em que se encontra aética católica. O Padre Häring fala das vítimas em termos mais próprios para oscriminosos.

A recusa da Igreja em permitir o aborto às adolescentes vítimas de violação e alentidão com que veio a permitir os abortos indirectos nos casos de gravidez extra-uterina devem-se ao receio de que muito rapidamente todos os casos possam vir a servistos como excepções. Embora compreensível, esta inflexibilidade não pode serdefendida, porque se as circunstâncias exigirem uma reavaliação, a recusa em tomarem devida conta essas circunstâncias, seja por que motivo for, está errada.

Enquanto que o papado se considera, portanto, como o campeão da moral daépoca, não são poucos aqueles que o acusam de imoralidade. De facto, seria muito fácilmostrar que foi o extremismo de Roma que criou a sua imagem simétrica, o lobby dapermissividade. A recusa do Vaticano em dialogar teve como consequência que a vozda Igreja não foi ouvida no momento crítico em que a nova legislação sobre o aborto eraapresentada aos tribunais. Por causa da sua intransigência, a Igreja tornou-se um alvofácil; as suas opiniões oficiais eram facilmente desacreditadas porque as sondagensmostravam que mesmo a maioria dos católicos discordava delas. E em país nenhumisto foi tão claro como nos Estados Unidos. O lobby do aborto pôde apelidar o maisfirme adversário do aborto de obscurantista. Em 1968, diziam, o papa proscreveu acontracepção, posição que, como toda a gente sabe, torna o aborto necessário.

Os acontecimentos subsequentes vieram a comprovar aquilo que muitos teólogosdisseram na altura: o Papa Paulo travou a batalha errada na Encíclica Humanae Vitae.Devia ter concentrado todas as suas energias no ataque à atitude permissiva emrelação ao aborto. E contudo, mesmo aqui, temos de deixar uma nota prévia. Não hádúvida de que também não teria promovido qualquer progresso na questão do aborto.

Pio XII disse na sua alocução às parteiras em Outubro de 1951: «Um bebé, mesmoque ainda por nascer, é um homem [ser humano] no mesmo grau e pela mesma razãoque a mãe o é». O Concílio Vaticano II seguiu esta linha no decreto Gaudium et Spesao condenar o aborto, o primeiro Concílio a fazê-lo. «A vida», dizia-se nele, «desde oseu início deve ser preservada com o maior cuidado. O aborto e o infanticídio sãocrimes horríveis». O Concílio teve o bom senso de não juntar contracepção e aborto; foimenos sensato ao juntar aborto e infanticídio, que são muitas vezes coisas bemdiferentes, como séculos de teologia moral já mostraram. Condenar ambos semreservas mostrou uma fraca compreensão da história do Catolicismo. A abordagem deJoão Paulo recuou, evidentemente, aos tempos pre-Vaticano II, ao juntar sempre acontracepção e o aborto.

A abordagem de João Paulo II

Nem mesmo os admiradores do actual pontífice desconhecem os perigos que eleenfrenta ao continuar a condenar por junto a contracepção e o aborto. Uma leitura dosseus discursos mostra que, com uma coerência quase pavloviana, ao atacar uma, eleataca também o outro. Não dá atenção ao facto de que as recentes investigações nocampo da embriologia mostraram que na concepção se dá uma enorme alteraçãogenética; o óvulo fertilizado constitui uma individualidade distinta com o seu próprio

Page 341: Vigde cristo

341

código genético. Como escreve George Hunston Williams, «Este facto genético põe acontracepção artificial e o aborto em planos morais inteiramente diferentes». João Pauloou não compreende isto ou opta por ignorá-lo. Mas seja qual for a razão, também eleencoraja o lobby do aborto. «É claro que ele condena o aborto», dizem eles, «mas nãoé também verdade que condena igualmente a contracepção? Nem o seu própriorebanho o segue no que respeita à contracepção; e, a acreditar nas sondagens,também não concordam com ele no que respeita ao aborto».

Muitos católicos suspeitam agora de que João Paulo não confundiu só duas coisasmédica e eticamente diferentes; continua a travar a batalha contra o aborto de umamaneira insensata. A sua abordagem é demasiado extremista. Ele não está à esperacertamente que, à excepção de uma meia dúzia, os católicos concordem com ele queuma rapariga que foi violada peque por fazer um aborto. Quem é que poderá aceitarque ao ultraje e à agressão física já sofridos se acrescente mais o ultraje de a obrigar adar à luz o filho do violador? Quando questionados sobre esta matéria, os bisposrespondem: «Ela tem de dar á luz o filho; não é obrigada a criá-lo». Isto é inaceitávelmesmo à luz dos princípios católicos. Se uma mulher não pode criar um filho não devetê-lo. A maternidade não é um facto meramente biológico, é um compromisso moral eespiritual contínuo.

A posição católica oficial também dificilmente é defensável em certas situaçõesmédicas graves. Será que uma mulher é obrigada a levar a bom termo a gravidez de umbebé que os médicos lhe asseguram, e até lhe mostram por meio de ecografia, quesofre de lesões cerebrais ou que não possui sistema nervoso central? O papa dizsempre que sim. Isto para a maioria das pessoas parece acentuar apenas o aspectobiológico, como se o biológico fosse de facto o moral. E é repetir o erro de Paulo VI emrelação à contracepção. É transformar um ideal de maternidade numa lei inflexível,mesmo quando se sabe que a maternidade no seu sentido correcto não é possível.

É pouco provável que o pontífice consiga converter as mulheres ao seu ponto devista. Bem pode dizer que a questão do aborto é uma questão simples; mas elas dizemque é complexa e multi-facetada. O papa, por via da sua proscrição do aborto, quertomar em suas mãos as decisões vitais. Mas as mulheres estão determinadas a decidirestas questões por si próprias. Só elas é que hão-de dizer se se sentem capazes de sermães do bebé que trazem dentro de si, porque sabem que a maternidade envolve maisdo que o simples dar à luz. E também sabem que são algo mais do que simplesprodutoras daquela criança; são esposas e mães de outros filhos já nascidos. A suadecisão não será baseada só na biologia mas também em todo o conjunto de questõesmorais, das quais o desenvolvimento pleno de um feto é apenas um e, emcircunstâncias normais, o primordial. Os católicos não querem fugir ao desafio doEvangelho; o que eles não querem é simplesmente endossar a sua responsabilidademoral submetendo-se totalmente a uma rígida lei alheia ao amor e basicamentebiológica.

Muitos católicos que pensam que o ponto de vista do papa é extremista começam aperguntar com profundo respeito: Onde é que ele errou? Quais são, de entre as suasconvicções, as que estão correctas e as que são discutíveis?

Contra uma longa tradição católica, o papa considera um dado adquirido que oembrião é um ser humano completo desde o momento da fecundação. Na realidade, agenética moderna sugere que um óvulo fertilizado é humano. Tem já um códigogenético individual. Será que daqui se pode concluir que o óvulo fecundado é um serhumano em toda a acepção da palavra, isto é, que tem exactamente os mesmosdireitos que a mãe? Que tem de ser tratado com exactamente o mesmo respeito queuma criança já nascida? E que também tem um valor absoluto que ultrapassa todos os

Page 342: Vigde cristo

342

outros valores? Se se puder dar respostas afirmativas a todas estas perguntas, o papatem razão; o aborto é sempre um mal.

Contudo, a própria ciência médica torna extremamente difícil identificar a concepçãocomo o momento em que um ser humano começa a existir com todos os direitos dapessoa humana. Os especialistas calcularam que pelo menos um em cada três óvulosfertilizados aborta sem a mulher se aperceber disso. Teremos então de concluir queliteralmente um terço ou mais de seres humanos vai pelo esgoto abaixo? (E a Igreja temmais um problema na medida em que, por causa da sua doutrina sobre o pecadooriginal, o Inferno e o Purgatório devem estar superpovoados de seres em embrião nãobaptizados).

Além disso, quando no decurso da fertilização in vitro, por exemplo, meia dúzia deóvulos são fertilizados pelo esperma masculino, terão os católicos de acreditar que hánaquele frasco seis seres humanos com os mesmos direitos que meia dúzia de bebésque estão nos seus berços? E uma outra complicação: se a alma é infundida naconcepção, como é que a célula se pode dividir num estádio mais avançado comoacontece nos gémeos? Será que a alma — uma realidade imaterial — se divide?

Há hoje muitos filósofos católicos que não conseguem compreender como é que umóvulo fecundado pode ser chamado de ser com alma ou pessoa, se na tradição Tomistaa infusão da alma só pode ter lugar quando há um corpo suficientemente evoluído paraa receber. Muito embora o óvulo fecundado tenha o seu próprio código genéticoespecífico, isto não é suficiente para fazer dele um ser humano ou uma pessoa. Paratal, precisa de desenvolver os membros e um cérebro. Do seu ponto de vista, a grandetradição da infusão da alma numa fase mais adiantada do desenvolvimento continuaintelectualmente mais respeitável.

A um nível mais baixo, uma bolota tem dentro de si tudo aquilo de que necessitapara se desenvolver e finalmente se transformar num carvalho. Mas uma bolota,embora diferente de todas as outras formas de vida, não é um carvalho. As pessoasesmagam alegremente bolotas debaixo dos pés ou dão-nas aos porcos e no entantotratam geralmente os carvalhos, já velhos ou ainda novos, com respeito.

Segundo alguns filósofos católicos, a hominização (ou humanização), para oindivíduo como para a raça, é um processo gradual. Portanto, os tradicionaisargumentos a favor do aborto limitado continuam válidos. A mãe é uma pessoa em todaa acepção da palavra; o embrião está apenas num processo de evolução para pessoa.Isto não significa que não devamos respeitar o embrião. Pelo contrário, toda a tradiçãocristã é uma tradição de respeito pelo embrião em todas as suas fases como dádiva deDeus. A tendência vai toda ela no sentido da protecção da vida nascente. O extremismodo lobby do aborto contradiz os sentimentos básicos dos cristãos, e o aborto como meiode planeamento familiar, como no Japão, é para eles altamente repugnante. Emcircunstâncias normais o embrião deve ser acalentado e acarinhado e o seudesenvolvimento levado até ao fim. Mas nem todas as circunstâncias são normais. Porvezes é necessário tomar a triste decisão de abortar. É uma decisão de carácter moral.Não é justo sugerir que todos os que são a favor do aborto em certos casos sãohedonistas, pensadores confundidos ou mal intencionados. Como já vimos, a maioriadas pessoas que rejeitam o ponto de vista do papa fazem-no com fundamentos morais.Não lhes parece que seja ético tratar um ser em desenvolvimento em paridade comuma pessoa já completamente criada e com variadas relações e responsabilidades. Seé verdade que a prática do aborto foi longe demais e provocou a trivialização da vida eda maternidade, também temos de reconhecer que o papado não ajudou nada ao fazera propaganda de um extremismo quase igualmente inaceitável.

Page 343: Vigde cristo

343

Mesmo que João Paulo tenha razão e o embrião seja de facto uma pessoa logo noprimeiro momento da fecundação, poderá concluir-se daqui que ele tem exactamente osmesmos direitos que a mãe ou que as crianças já nascidas?

O pontífice argumenta repetidamente: o direito à vida é o mais básico dos direitosdo homem e nenhum outro — por exemplo, o direito da mãe à saúde — pode terprecedência sobre ele. Mas dizer que a vida é o mais básico dos direitos é ambíguo. Seisso significa que é o primeiro direito, sem o qual uma pessoa não pode ter outrosdireitos, como o direito à educação ou o direito a casar, o papa tem razão, mas limitou-se a afirmar o óbvio. Parece, porém, que é mais do que isso. Ele pensa que é o únicodireito a ter em consideração; é um valor que se sobrepõe sempre e em todas ascircunstâncias a todos os outros valores. Mas isto é falso, seguramente.

Se o direito à vida fosse sempre o motivo supremo, a guerra teria de ser ilegalizadaporque conduz inevitavelmente à perda de vidas. Mas há outra coisa a ter emconsideração e que muitas vezes se sobrepõe à perda da vida, nomeadamente, ajustiça. Da mesma maneira, se o pontífice tivesse razão, ninguém poderia escalarmontanhas, ser piloto de automóveis de corrida ou ser lançado para o espaço; tudo istoimplica risco de vida por motivos, em sua opinião, menores. Mas a este nível o direito àvida é claramente um valor que deve ser sopesado com outros: a vida comconhecimentos, a vida com a alegria da conquista das alturas, da velocidade, de abrirnovas fronteiras no espaço. Dizer que a vida é o direito humano básico não podecertamente significar que é um valor que nunca se deve permitir que ceda a outrosvalores, quer nossos quer de outra pessoas.

Enquanto que o papa parte de um princípio básico para concluir que todos osabortos são condenáveis, o homem ou a mulher da rua partem do extremo oposto. Elessabem que há casos, como aqueles que envolvem violação, incesto ou fetos comlesões cerebrais, em que o aborto é um opção verdadeiramente moral. E então sãoobrigados a perguntar: o que é que está errado na argumentação do papa? Será queele ignorou uma coisa muito óbvia? Será que não levou em linha de conta que, humanoou não, pessoa ou não, o embrião está dentro da mãe? Que, mesmo não sendo umaparte da mãe, não pode viver sem ela? Isto mostra que o embrião, um ser em processode transformação em criança, não tem os direitos absolutos que o papa reclama paraele, mas direitos com reservas. Estes direitos, como todos os direitos, sãocondicionados pelas circunstâncias em que se exercem.

A opinião do papa assenta no conceito de que a criança que se encontra no úteronão é em nada diferente daquela que está no berço. Isto dificilmente é sustentável. Acriança que está no útero tem direitos, mas estes estão condicionados pelos direitos damãe, uma pessoa inteiramente desenvolvida, e sujeitos a eles. Em caso de conflito, amaioria das pessoas considera como dado adquirido que a mãe tem precedência. Ela éa hospedeira e, falando em termos puramente médicos, a criança é parasitária. Quandoos direitos entram em conflito, a mãe tem toda a legitimidade para exigir os seusdireitos, não só em seu próprio nome, mas também no do marido e dos filhos. Muitosafirmam que é imoral insistir que ela deve pôr em risco a sua vida e o bem estar dafamília em nome da vida do nascituro. A sua decisão é crucial quando se sabe que oembrião sofre de lesões graves. Aliás, a Natureza encarrega-se frequentemente defazer abortar estes fetos. A mãe pode considerar que a Natureza, a generosa Mãe,merece ser imitada nesta situação. Fica-se com a impressão que os papas falam emtermos de biologia como destino, porque apesar de toda a sua bondade falam comohomens celibatários, abstractamente e sem experiência. Os pais de família, eespecialmente as mães, discordam deles.

Page 344: Vigde cristo

344

Um padre católico, ao defender o ponto de vista papal, mostrou inconscientementea estranha lógica disto: é preferível que morram mãe e filho a que um médico façaabortar o feto. «Duas mortes naturais», escreve David Granfield, «são um mal menor doque um homicídio». Como mãe e filho têm iguais direitos à vida, devem ambos morrer.Não há afirmação que revele melhor do que esta a falência ética de uma moralidadebiológica.

Tirar uma vida nem sempre é consequência de desrespeito pela vida. A Igreja deviasaber isto. Em tempos passados, esta mesma Igreja concordou com a pena de morte eainda hoje sanciona as «guerras justas» em que há inocentes condenados a morrer. Nocaso mencionado por Granfield, um embrião está em vias de destruir a vida da mãe e,em certo sentido, a vida da família. A decisão de interromper a gravidez é em nome davida que é tomada, não em nome da morte. Quem dera que decisões tão terríveis nãotivessem de ser tomadas por seres humanos.

Uma exemplificação pode tornar as coisas ainda mais claras. Uma mulher sofre umnaufrágio. Consegue subir para uma jangada que apenas suporta o peso de umapessoa. Há um outro náufrago que tenta subir para a jangada. A mulher é que controlaa situação; ela sabe que se o outro náufrago subir ambos morrerão afogados. Em taltrágica situação ela tem todo o direito de impedir que a outra pessoa suba para ajangada, mesmo que tenha de usar a força. O caso da criança no ventre materno quepõe em perigo a vida da mãe parece ainda mais fácil de resolver. A criança, tal como onáufrago na água, tem direito à vida. Mas não há direitos absolutos; eles estão sujeitosàs circunstâncias. Infelizmente, porque isto é um penoso dilema moral, o nascituro nãotem capacidade para exercer esse direito.

A redução da moralidade a uma rígida lei biológica imposta a todas as mulheres emtodas as circunstâncias tem os seus obstáculos. Como escreveu Callaghan emAbortion: Law, Choice and Morality:

O benefício que ele traria seria conseguido à custa de outrosbenefícios; o preço pago pela protecção da vida fetal é demasiadoalto. Uma leitura da “santidade da vida” que estabelece vínculosmorais fixos, rígidas hierarquias de valores e direitos e uma rígidaexclusão dos dados sociais e da experiência é uma posiçãoinsustentável.

Deve o aborto ser considerado crime?

Mesmo aqueles que concordam com o papa e com ele partilham a opinião de que asociedade está a resvalar para a permissividade, não estariam de acordo que todos osabortos devem ser criminalizados.

É até possível interpretar a legislação moderna sobre o aborto como permitindosimplesmente que a mulher tome uma decisão que pela natureza das coisas lhe dizrespeito primeiramente a ela.

Nos Estados Unidos o influente Deão da faculdade de Direito de Boston e membrodo Congresso era Robert Drinan, padre jesuíta. Totalmente contrário ao aborto, tambémse opunha inicialmente à reforma da lei do aborto. Depois, em 1967, chegou àconclusão de que havia uma boa razão para revogar totalmente a lei do aborto. Dessamaneira, argumentava ele, a lei não estabeleceria diferença entre os que tinham ou nãotinham direito a nascer, o que, como advogado, ele considerava uma perigosa forma dediscriminação. Numa comunicação lida na International Conference of Abortion, em

Page 345: Vigde cristo

345

Washington, DC, em Setembro de 1967, intitulada "O Direito do Feto a Nascer", disseque preferia que fosse retirada a protecção legal «a todos os fetos durante as primeirasvinte e seis semanas da sua existência». Esta sua mudança de opinião dividiu aoposição católica e por fim Roma pediu-lhe que abandonasse o Congresso. Mas o queDrinan provou foi que fazia sentido mesmo para as pessoas que se opunham ao abortoaceitar a revogação das leis do aborto.

De facto, tal liberalização está em consonância com as posições contemporâneasem relação aos direitos civis. Permitir o aborto não é o mesmo que concordar com eleou dizer que é moralmente correcto em todos os casos. Apenas é mais prudente para asociedade permiti-lo do que proibi-lo. A proibição nunca erradicou nem nunca erradicaráo aborto; apenas o poderá fazer passar à clandestinidade. Tornaria perigosos centenasde milhares de abortos. A proibição do álcool já fez mal que chegue; a proibição doaborto seria uma catástrofe, especialmente no actual clima social. Quem é que desejaque os estados aprovem leis não executórias? Quem é que deseja que as mulheresvoltem outra vez a recorrer a cruzetas, facas, espetos para carne, purgantes evenenos? Claro que o papa não desejaria tal coisa, mas parece disposto a correr orisco. Neste campo, ele faz parte de uma pequena minoria. A maioria das pessoas hojediria que ainda que esteja errado uma mulher fazer abortar uma gravidez, pior aindaseria a sociedade obrigá-la manter uma gravidez indesejada.

Ao continuar a exigir aos governos que aprovem legislação cada vez mais restritivacontra o aborto, João Paulo revela pouco conhecimento do processo democrático, o quesó dificilmente surpreenderá. Na Polónia da sua juventude e primeiros tempos daadolescência, ele esteve sujeito a regimes totalitários. Na Igreja, a palavra do papa eralei. Portanto não compreende que numa democracia aqueles que governam tenham decorresponder aos desejos dos eleitores, sob pena de logo deixarem de governar.Quanto ao aborto, qualquer governo que tentasse revogar a sua legislação seriaderrotado nas eleições seguintes.

A abordagem papal do aborto está desfasada do tempo. Proferir censuras econdenações em discursos solenes, mesmo perante enormes e extáticas reuniões defiéis é contraproducente. Não impressiona ninguém a longo prazo. Como disse MaximosIV Saigh nos primeiros dias do Concílio Vaticano II, a doutrina moral católica édemasiado legalista. As suas palavras aplicam-se particularmente ao sexo. A doutrinamoral sofre frequentemente de certa superficialidade, de um sentido de irrealismo. Éuma ética euclidiana que simplesmente recua frente às situações reais em que os sereshumanos se encontram. A chamada moral da lei natural é muitas vezes muito anti-natural. Não tem em consideração aquelas situações específicas e diferenças pessoaiscom base nas quais os indivíduos tomam as suas decisões sobre o que para eles écerto ou errado. É uma moral imperialista. Não dá opções, apenas uma ordem fixa dedireitos e deveres, alheia às circunstâncias que mudam e aos novos entendimentosmorais. O instinto das pessoas diz-lhes que alguma coisa está errada neste tipo deimposição vinda de cima. A Igreja continua a tratar as pessoas de maneira impessoal.

O mesmo tratamento arbitrário dado àqueles que usam contraceptivos, que sedivorciam e que fazem abortos por motivos médicos graves é dado também aoshomossexuais. É significativo que o único papa moderno a admitir que tinha uma vidasexual foi o Papa Paulo quando, para consternação dos seus auxiliares, negou numaaudiência pública que fosse homossexual. A imprensa italiana andava cheia de «boatosescandalosos» que ele quis liquidar de uma vez por todas.

É evidente que os homossexuais não se enquadram no único padrão biológicorígido do comportamento sexual aprovado por Roma. Esta a razão por que João Paulo,embora sem dúvida um homem bom, se sente na obrigação de condená-los a todos

Page 346: Vigde cristo

346

como pecadores que fazem uma coisa que é "anti-natural". Como relatou com mágoaG. H. Williams:

Para com uma classe de adultos, os homossexuais, ele [João Paulo]foi coerentemente severo quanto à expressão manifesta datendência, embora se conclua que seria pastoralmente benevolentecom todos os que reprimissem a sua inclinação "anti-natural".

Os homossexuais não são um grupo homogéneo. Há muitas variedades. Algunssão bissexuais, outros não sentem qualquer atracção por nenhum outro sexo que nãoseja o seu próprio; alguns nasceram já homossexuais, outros tornaram-sehomossexuais pelas circunstâncias da sua vida. Um homossexual de nascença temseguramente o direito de perguntar: «Quem é que me pode dizer a mim o que é“natural”? A lei da minha natureza não é a mesma que a tua. Eu não escolhi ser assim.Eu não “perverti“ sistematicamente a minha natureza. Deus fez-me assim. E tambémnão me concedeu a mim nem a qualquer outro gay o dom do celibato».

No Evangelho, Jesus mostrou um amor e preocupação especiais pelos proscritos.Não os pôs no pelourinho. Pelo contrário, gostava de estar com eles mesmo quandoera desprezado por isso. Andava dia e noite rodeado de publicanos e prostitutas, dealeijados, de doentes e de leprosos; e tocava-lhes com as suas mãos que curavam. Asua proximidade com estes marginais foi a grande parábola da sua missão. Ele era oSalvador.

Em contraste, a Igreja Católica, como parte da política oficial, distancia-se de todosos marginais, tal como os divorciados e os homossexuais, e recusa-se a deixar queestes se aproximem de Cristo. A cruzada contra os homossexuais torna obscura amensagem de Jesus, que chama a si toda a gente, em especial aqueles que outrora jáforam, e muitas vezes continuam a ser os proscritos da sociedade. A Igreja Católica,neste caso, parece preferir a respeitabilidade à pregação do Evangelho de Cristo aospecadores.

Por uma questão de princípio, certamente que é um erro o papa dizer a umhomossexual ou a qualquer outra pessoa a maneira como deve viver a sua vida. A suaobrigação é pregar o Evangelho, explicar os princípios do amor, os ideais que brotam davida, da morte e da ressurreição de Jesus. Cabe ao indivíduo concretizar estes ideais omelhor que puder nas circunstâncias da sua vida. Parece não haver qualquerjustificação para que o papa ou quem quer que seja que não conhece uma pessoa ouas suas circunstâncias lhe imponha em pormenor a maneira como deve viver.Infelizmente, a moralidade da lei natural no Catolicismo acabou por significar issomesmo: impor a toda a gente um comportamento e as censuras a que fica sujeita senão cumprir. O Catolicismo Romano transformou-se tristemente na religião maispunitiva jamais conhecida: aqueles que violam as regras chamadas de lei natural sãorotulados de pecadores, pecadores mortais, cuja impenitência os leva à exclusão doparaíso e ao fogo eterno. Milhões de católicos honestos e sinceros em todo o mundosão assim julgados. Podem andar a usar contraceptivos — todo o acto sexual é pecadomortal; ou casaram depois de se divorciarem — estão “a viver em pecado“; ou fizeramcom a maior angústia moral um aborto — são excomungados por prática de um “actoperverso”; ou são homossexuais que anseiam por dar e receber amor de acordo com osditames do seu ser mais íntimo — estão a viver uma “vida anti-natural e pervertida”. Atodas estas pessoas estão vedados os sacramentos. Estão excomungadas no sentidomais profundo, excluídas do banquete do corpo e sangue de Cristo. Em nome de Cristo,negam-lhes o acesso a ele.

Page 347: Vigde cristo

347

O pontífice adopta a mesma abordagem em relação a outros dilemas modernos.Por exemplo, na primavera de 1987 o papa sancionou um documento do Santo Ofíciosobre a inseminação artificial e os bebés-proveta. A maioria das pessoas hoje andamperturbadas com as questões da inseminação artificial, como no caso de uma mulhersul-africana de meia idade que foi mãe-hospedeira dos trigémeos da sua filha e genro.Deu á luz literalmente os seus próprios netos. A opinião pública está tambémpreocupada com as ramificações da fertilização in vitro. Uma abordagem negativa apriori por parte do Vaticano numa altura em que todo o cenário muda todos os mesesdificilmente se pode chamar de aggiornamento. Na New Year’s Honnors List de 1988, aRainha Isabel condecorou Edwards e Steptoe, pioneiros da técnica dos bebés-proveta,que até agora já trouxe ao mundo 5.000 crianças. O Vaticano, por contraste, jácondenou esta técnica como um pecado atroz.

Conclusão

Se se perguntar a uma mãe irlandesa se a Paddy, a sua filhinha, gosta dechocolates, ela provavelmente responde logo: «O papa não é católico?» Isto implica queé impensável que o papa não seja católico. A segunda parte deste livro mostrou queesta presunção é falsa. Longe de ser impensável, muitos papas não eram realmentecatólicos; eram hereges e reconhecidos como tal pela Igreja, incluindo os seussucessores.

Hoje, há algumas dúvidas sobre se toda a doutrina moral dos papas será realmentecatólica. E se grande parte dela for simplesmente papismo ou vaticanismo? Para sercatólica, uma doutrina tem de reflectir o sensus fidelium e dele brotar. Antes davulgarização das sondagens o Vaticano podia sempre afirmar que o número daquelesque discordavam da doutrina papal era mínimo. Isso agora já não pode ser assim. Assondagens não revelam só que a maioria dos católicos discorda do papa; em cada novasondagem aumenta o número de dissidentes. Eles acham que não estão sozinhosnaquilo que antes tomavam como rebelião.

Quais são as origens do enorme mal-estar actual da Igreja?A primeira é o próprio papado, ou melhor, a maneira como os papas vieram a

entender o seu papel, desde papas como Gregório VII e Pio IX. As pesoas acham queos papas são chamados a decidir sobre questões para as quais não têm qualquercompetência. O resultado é que se sentem na obrigação de legislar em pormenor paratoda a gente, especialmente na questão dos costumes sexuais e ética médica, onde asfronteiras estão constantemente a mudar. Papa após papa, todos caem na mesmaarmadilha, vítimas dos seus próprios títulos. São Doutrinadores Infalíveis e «vigários deCristo»; eles e só eles é que sabem as respostas para os mais complexos dilemas. Narealidade, não sabem mais do que qualquer outra pessoa.

À luz da História, tanto antiga como moderna, os católicos deviam analisar toda alegislação saída do Vaticano que pretende ser a resposta para os seus problemas. Coma mesma solenidade, o papado declarou que os hereges e as bruxas deviam serperseguidos até à morte e os judeus tratados com barbaridade em nome de Cristo.Negou redondamente direitos humanos básicos aos católicos na longa noite daInquisição, reintroduzindo a tortura para a ajudar nas suas actividades. Negou todos osdireitos civis aos seus súbditos dos Estados Papais, incluindo a liberdade religiosa e aliberdade de imprensa. Não é encorajar a rebelião lembrar que, face a este currículo, aobediência imediata dos leigos a uma instituição celibatária em questões sexuais seriaimprudente.

Page 348: Vigde cristo

348

A partir do Concílio Vaticano I, o principal erro do papado seria aparentementepregar a lei natural em vez do Sermão da Montanha. Ou, melhor, os papas tereminterpretado o Sermão da Montanha à luz da sua própria teoria da lei natural. Esta leinatural, em questões sexuais e outras com elas relacionadas, acaba por ser uma leiestritamente biológica. Os papas, de uma maneira completamente alheia à tradição,aceitaram um único critério biológico em relação à rectidão da actividade sexual. Narelação sexual deve haver penetração e inseminação da mulher pelo marido. Qualquerviolação deste critério é "anti-natural", um pecado mortal. Depois de fecundado por umespermatozóide o óvulo é um ser humano com todos os direitos absolutos e inalienáveisde um ser humano.

Destes simples princípios biológicos, entendidos como "a lei moral" da sexualidade,derivou uma série completa de "leis naturais". Estas leis são impostas a todas aspessoas de uma maneira inflexível. As circunstâncias, as diferenças individuais, todasessas coisas que entram na ponderação de uma pessoa quando tenta decidir o quepara ele está certo ou errado não contam. O papa, através da sua interpretação da leinatural já decidiu para todos aquilo que eles devem ou não devem fazer, hoje e sempre.O indivíduo não tem qualquer direito de decidir por si próprio; o papa já o fez por ele. Ogrande desafio do Sermão da Montanha foi institucionalizado; os burocratas da ética,chamados teólogos morais, interpretam a vontade de Cristo para o indivíduo. Estesburocratas determinam as minúcias do comportamento com complexidade rabínica,mas sempre de acordo com os grandes padrões biológicos estabelecidos pelo papado.

Impõe-se aos católicos uma legislação inteira com base em muito poucos princípios.Sempre que há uma inovação na medicina, os papas dão simplesmente mais umaolhadela aos seus critérios biológicos de rectidão moral e decidem imediatamente o queé que está certo e o que é que está errado. São questões graves; a violação dosdecretos papais é pecado mortal. Pelos seus próprios padrões, os papas acusam amaioria dos católicos de caírem em pecado mortal ao usarem contraceptivos e mais unsmilhões de viverem em pecado mortal por voltarem a casar depois do divórcio. Opecado mortal acarreta o afastamento de Cristo. Proíbem-se pessoas católicas de seaproximarem de Cristo na comunhão até que se proponham emendar as suas vidas.Têm de deixar de usar a Pílula ou o preservativo, deixar de fazer sexo no seu segundocasamento e procurar a reconciliação com a Igreja. Só então é que a Igreja lhespermitirá que venham até Cristo, o seu Salvador, em sagrada comunhão. É uma curiosaconsequência da moralidade católica: uma pessoa não pode comungar com Cristoenquanto for pecador, só o pode fazer depois de concordar em agir de acordo com asregras da Igreja. Claro que a Igreja diz que não foi ela que estabeleceu essas regras, foiDeus. Ela disse o mesmo para justificar as perseguições do passado. As actuaisperseguições, embora sem sangue, pouco menos trágicas são. Obrigar grupos inteirosde pessoas a viver as suas vidas com um sentimento de pecado e a ameaça de penaseternas a pairar sobre as suas cabeças é muito cruel.

A questão crucial tem de ser esta: Terá o papado entendido correctamente Jesus noSermão da Montanha? Por exemplo, poderá o seu ideal de casamento justificar amaneira severa como a Igreja trata os divorciados? Serão as bem-aventurançasredutíveis a mandamentos deduzidos pelos papas das leis biológicas? Todas assondagens indiciam que os católicos já não acreditam, se alguma vez o fizeram, que ospapas é que sabem o que está certo ou errado para eles.

Qual é então o papel dos papas? Uma resposta que merece ser considerada équalquer coisa como isto: se eles querem realmente fazer jus ao título de Vigário deCristo deviam, como Cristo, aceitar o desafio do Evangelho sem floreados retóricos nemequívocos. A lei do Evangelho é uma lei de amor; e o amor é absoluto. É cruel como

Page 349: Vigde cristo

349

também é terno. É de abrangência total e as suas exigências são imprevisíveis porquechegam até a cada um dos seguidores de Cristo de maneiras diferentes. Porqueenquanto os papas continuarem a pensar que o seu papel é legislar para toda a genteem todas as circunstâncias possíveis, a sua doutrina continuará a cair em orelhasmoucas.

Os sacramentos são pertença da Igreja e não dos papas. Os sacramentos sãocomo que um meio especial de Cristo estar com as pessoas hoje. Não são umarecompensa para o bom comportamento; ninguém, nem mesmo os papas, tem o direitode excluir uma pessoa desta comunhão com Cristo. Só a própria consciência da pessoaé que o pode fazer. Como S.Paulo escreveu aos Coríntios, «Qualquer que comer estepão ou beber o cálix do Senhor indignamente será culpado de profanar o corpo e osangue do Senhor. Examine-se pois o homem a si mesmo e assim coma deste pão ebeba deste cálix… Mas se nós nos julgássemos a nós mesmos não seríamos julgados».A pessoa tem de se julgar a si mesma; não é à Igreja, na pessoa dos bispos ou dospapas, que compete julgá-la. Temos de nos julgar a nós mesmos. E à luz do Evangelho,este exame e este julgamento talvez sejam muito mais severos do que aqueles que nosseriam impostos por qualquer outra pessoa.

Só o indivíduo é que poderá dizer se está a agir de maneira não-cristã ao ter ou nãoter mais filhos. Será julgado não pela rectidão de um padrão biológico do sexo mas portudo o que o Evangelho dele exige à luz da situação em que se encontra.

Só uma mulher é que saberá se a sua decisão de continuar a gravidez ou de ainterromper é tomada por egoísmo ou por amor de Deus tal como revelado em Cristo.

Só um homossexual é que poderá dizer se está a agir de acordo com o Evangelhoou a violá-lo ao seguir um determinado estilo de vida.

Só o próprio casal é que poderá dizer se o seu primordial desejo de ter um filhojustifica o recurso ao método da fertilização in vitro ou qualquer outro método, ou se,pelo contrário, deve aceitar a falta dos filhos como vontade de Deus.

O papado, ao considerar-se o árbitro moral do mundo, o instante legislador paratodos os aspectos da sexualidade, meteu-se numa terrível confusão. Os decretos doVaticano são na sua maioria rabínicos, no pior sentido da palavra, negativos econdenatórios. O pontífice pode, se assim quiser, acusar a oposição católica depermissiva. Mas não será verdade que o principal problema está não nos leigos mas noclero que dita todas as leis aos leigos? Muitos católicos começam a pensar queMargaret Sanger tinha razão quando pôs em causa a legitimidade do clero celibatário eestéril para ensinar as mulheres em questões como a contracepção. E se de facto ocelibato, longe de dar ao clero uma visão clara dos assuntos matrimoniais, os cega paraaquilo que verdadeiramente é o casamento? E se, resumindo, contrariamente ao que oVaticano pensa, o celibato não for a solução mas uma muito grande parte do problema?

Page 350: Vigde cristo

350

Page 351: Vigde cristo

351

20Celibatários Pouco Castos

Nos últimos anos o padre católico tem tido, de uma maneira geral, uma imprensafavorável. Foi retratado no cinema e na literatura como uma figura heróica e solitária,um homem que deixou o trilho da vida familiar para servir Cristo e a comunidade. Osfiéis respeitam-no pela maneira como ele se sacrifica por eles, sacrifício que o tornadigno de ser o seu guia. Só a partir dos anos 60 é que as pessoas começaram avislumbrar o fardo que este grupo de homens é obrigado a carregar. Isto foi o resultadode um certo afrouxamento da disciplina durante o pontificado de Paulo VI. Antes,qualquer padre que pedisse para casar era tratado tão sumariamente como os católicosque queriam divorciar-se. A regra não admitia qualquer excepção, nem sequer noscasos mais pungentes. Conta-se a estória de um telegrama em que se pedia ao papaque concedesse a certo padre dispensa dos votos: «Ele ou casa ou arde». A respostafoi ainda mais lacónica: «Que arda».

A mitra e o coronel∗

Há uma estória que exemplifica na perfeição a atitude dura de Roma. É ConCostello que a conta no seu livro intitulado In Quest of an Heir.

John Butler era o bispo católico de Cork. Quando jovem, perdera um olho numacidente. Apesar de os clérigos romanos deverem ter dois olhos, foi dispensado destaexigência e ordenado com a idade de vinte e sete anos. Cinco anos mais tarde foiconsagrado bispo. Tinha ele trinta e dois anos e corria o ano de 1763. «Toda a Irlandarejubila com a sua chegada», cantava um poeta. Com a sua partida passou-se ocontrário.

Após vinte e três anos de serviço medíocre, o bispo herdou de um sobrinho falecidoum dos antigos pariatos da Irlanda. Desde o século XII que havia os Lords deDunboyne. Butler tinha agora mitra e coronel; era bispo e barão. Meteu-se-lhe nacabeça que tinha a obrigação de perpetuar a sua linhagem. Mas como é que isso erapossível? Não era ele um clérigo obrigado ao celibato para toda a vida?

Com cinquenta e cinco anos, o bispo tinha um aspecto sinistro. Alto e magro,cabeleira postiça preta e pala a tapar a órbita esquerda vazia, não se poderia dizer queButler fosse propriamente um homem casadoiro. Mas o facto é que ele vivia na Irlanda,onde não era invulgar ver um lavrador casar numa idade sem paralelo no resto daEuropa; e ele tinha um título de nobreza, terras e castelos para oferecer à possívelfutura noiva.

∗ Do inglês coronet, é o nome que compete às coroas abertas, mas em português é comum designá-las também porcoroa. Os coronéis eram indicativos dos diferentes títulos (coroa de barão, coroa de duque, etc.) in EnciclopédiaLuso-Brasileira de Cultura, Editorial Verbo, Lisboa. (N.T.)

Page 352: Vigde cristo

352

A eleita do seu coração era uma prima, Miss Maria Butler, de Wilford, no Condadode Tipperary, que era protestante. Presume-se que Butler partiu do princípio de quenenhuma católica estaria disposta a casar com um bispo. Outra vantagem de Maria eraa sua idade: tinha apenas vinte e três anos, idade suficiente para lhe dar um filho eherdeiro. O que era triste é que ela estava apaixonada por um jovem com quem estavadeterminada a casar. Mas o pai era um homem pragmático e convenceu Maria de queum Lord era uma aposta melhor.

O Bispo Butler era ingénuo quanto baste para pensar que Roma lhe iria conceder adispensa atendendo a que esta era necessária para continuidade da família. O primeirosinal que a diocese teve quanto às intenções do bispo foi quando ele não compareceuno convento Ursulino, em Janeiro de 1787, para a cerimónia de profissão de fé de umafreira.

Nos fins de Abril, casou-se na igreja de Santa Maria em Clonmell, perante umpastor protestante. A dispensa, esperava ele, viria em breve validar o seu casamento.

Quando a notícia se espalhou, foi uma sensação na Irlanda. Um bispo católicocasar com uma protestante numa igreja protestante perante um pastor protestante! Ohomem divorciara-se da diocese e casara com uma mulher protestante. Trocara o anelepiscopal por uma aliança de casamento. Trocara o bispado por uma mulher. Muitagente ficou à espera que o sol desaparecesse do céu. Butler fez aquilo, dizia um jornal,cuja «simples menção faria estremecer o mais humilde dos camponeses». Diz-se queos outros bispos morriam de desgosto.

Quando Pio VI leu a carta de resignação de Butler «chorou abertamente». SuaSantidade respondeu-lhe através do Bispo de Cashel, dizendo a este que «deveria usarde todos os meios para converter o apóstata da sua vida pecaminosa deconcubinagem». A carta propriamente dirigida a Dunboyne foi-lhe entregue por Cashelem 11 de Agosto. Não haveria dispensa. O que ele leu foi o seguinte:

Não podereis imaginar, venerável irmão, a consternação eangústia que de Nós se apossou quando recebemos de fontesegura a confirmação de que o vosso comportamento impróprioatingiu um tal grau de paixão que tencionais casar com umaprotestante; e que ousais viver com ela numa situação demiserável concubinagem… Guardamos no Nosso coraçãouma comiseração verdadeiramente paternal por vós e umardente desejo de vos salvar, se possível, de tal abismo dedepravação e miséria.

Depois destas palavras simpáticas, vêm as ameaças. Se Butler continuasse surdo epersistisse no «atoleiro e indignidade de tão vergonhosa vida» seria excomungado,bispo ou não bispo.

Dunboyne nem queria acreditar no que lia. O papa simplesmente não ocompreendeu, disse ele a Cashel. Ele não casara em busca do prazer. Para ele, com aavançada idade que já tinha, foi um verdadeiro fardo ter de abandonar a doce vida decelibato e de partilhar cama e mesa com uma mulher com menos de metade da suaidade. Estava a agir simplesmente por um sentido de dever. Custava-lhe a acreditar queaquilo fosse um desastre.

«Roma pode conceder uma dispensa» disse ele. Muitos dos apóstolos e Padres daIgreja eram casados… Mesmo hoje, alguns dos ritos orientais em comunhão com Romapermitem padres casados».

Page 353: Vigde cristo

353

Cashel retirou-se. Aquele «promíscuo sem vergonha» estava determinado adesafiar o Santo Padre. Devia-se preocupar mais com o caixão do que com o leitonupcial. Estava claramente firme na sua perversão — a palavra usada por Roma paradesignar a conversão à Igreja da Irlanda.

Uma semana depois desta entrevista, num domingo, dia 19 de Agosto de 1787, namesma igreja onde casara, o ex-Bispo de Cork renegou a sua fé ancestral sobre umabíblia protestante e recebeu a herética comunhão antes de a administrar àcongregação, que incluía a sua noiva. Assinou depois o Roll of Allegiance andSupremacy e uma declaração contra o papismo. Era agora protestante oficialmente. Etinha várias marcas que o distinguiam. Era o único bispo irlandês só com um olho e oprimeiro membro da hierarquia irlandesa a apostatar.

Os católicos não gostaram. Com fervor evangélico, encheram-lhe a carruagem detorrões, batatas e pedaços de excremento. Sua Senhoria partiu para o Castelo deDunboyne, no Condado de Meath. O velho castelo estava em ruínas, mas já tinhamerguido outro belo edifício. E aí, na primeira noite passada no leito nupcial, os locaisfizeram-lhe uma serenata por baixo da janela com sons libidinosos e assobios. A noivaqueixou-se de que, ora por uma coisa ora por outra, mal conseguiu pregar olho. Osbaladeiros, esses compositores cujas canções eram mais temidas do que asexcomunhões, puseram-se ao trabalho:

Não penses nos escândalos, que escândalos terá de haverSenão porquê um Judas ou um borracho como tu?

E com um final menos feliz

Mas oh, nunca te esqueças do JudasPara que, qual Judas, não te venhas a enforcar.∗

Apesar de tudo isto, Dunboyne andava feliz porque a mulher ficou grávida. Mas o bebénasceu com hidrocefalia e, de qualquer maneira, era uma menina. A pequenina, comuma cabeça muito grande, morreu uma hora depois e foi sepultada secretamente sem apresença dos pais.

Aquela gravidez fora para Dunboyne como que um sinal da graça de Deus; onascimento, como que um sinal da Sua ira. A partir de então, a sua consciência nuncamais deixou de o incomodar até à morte.

Aos sessenta e nove anos, sem filhos, só, e à beira da morte, escreveu de novo aopapa. A carta estava datada de 2 de Maio de 1800. Não apresentava desculpas para asua fraqueza; desejara um filho com demasiada veemência. Pedia que lhe fossepermitido regressar à sua antiga fé e que fosse absolvido dos seus pecados. «Nãocoabitei com a minha esposa», dizia ele resumindo em poucas palavras toda adesgraça dos últimos tempos da sua vida, «excepto à mesa, mais de cinco anos».

Mandaram a sua casa na Rua Leeson, em Dublin, um padre, seu amigo de longadata. Dunboyne confessou os seus pecados e reconciliou-se com a Igreja. Nuncafrequentara a igreja protestante após a sua apostasia. Quando morreu, pouco tempo

∗ No original:Think not of scandals, scandals there must be,Or why a Judas or a sot like thee?

But oh! Keep Judas in your mental eyeLest Judas-like you hang yourself high. (N.T.)

Page 354: Vigde cristo

354

depois, foi enterrado em local secreto. O funeral foi tão sombrio como o casamento. Asua mulher, Maria, que voltou a casar, sobreviveu-lhe sessenta anos, vindo a morrer emAgosto de 1860, com a idade de noventa e cinco anos.

Só em meados dos anos 30 é que foram encontrados dois caixões de chumbo naAbadia Agostiniana de Fethard, no Condado de Tipperary. Um era o de Dunboyne; ooutro, junto do primeiro, o da bebé sua filha. Era costume sepultar os bebés baptizadose os padres com a cabeça voltada para o altar; para o padre isto simbolizava que, comomensageiro do Evangelho, ficava virado para oriente, na direcção do sol nascente. Abebé foi sepultada nesta posição; mas Dunboyne ficou com os pés voltados para o altar.Nem na morte a Igreja lhe perdoou a traição.

Na véspera do dia em que escreveu a última carta ao papa, Dunboyne fez otestamento, onde deixava a sua propriedade no Condado de Meath ao Colégio CatólicoRomano de Maynooth. Seguiu-se uma longa batalha jurídica sobre isto; no entanto oseminário nacional da Irlanda recebeu em doação o dinheiro da herança do solitáriobispo apóstata irlandês. As pessoas que vivem em Dunboyne House, em Maynooth, sãoconhecidas como “Dunboyners”. A lição da vida do barão não se perdeu com eles.

Um toque de misericórdia

Foi com estes antecedentes como pano de fundo que Paulo VI começou a concederdispensas de celibato nos chamados “casos difíceis”. Não foi uma decisão fácil. Numsermão de Quinta-feira Santa em 1966, Paulo, na linguagem dos baladeiros irlandeses,falou de padres apóstatas como «novos Judas» que mancham o nome da Madre Igreja.Mas ele sabia que a realidade nem sempre era essa. Esses Judas eram por vezesvelhos que tinham abandonado o sacerdócio quarenta ou cinquenta anos antes, quetinham filhos e netos e queriam simplesmente regularizar a sua situação aos olhos daIgreja que nunca deixaram de amar. Esses Judas eram muitas vezes jovens educadosem seminários menores desde os primeiros anos da adolescência, que tinhamescolhido o sacerdócio sem terem a menor ideia sobre o que era o sexo e muito menoso celibato para toda a vida. Havia requerentes que tinham caído na promiscuidade eque eram uma ameaça para si próprios e para os seus paroquianos; os psiquiatrastestemunhavam que estes simplesmente não tinham capacidade para manterem ocelibato. Outros havia que caíam no alcoolismo como forma de escapar a uma solidãocada vez maior.

Paulo sabia que John Butler, o Bispo de Cork, tinha razão. O celibato na IgrejaRomana era uma questão de disciplina e não de fé. O clero paroquial nunca tinha feitovoto de celibato. Só não podia, de acordo com as leis da Igreja, contrair casamentoválido. Paulo era o papa; podia suspender esta medida disciplinar. Pensava que eraperfeitamente correcto da sua parte fazê-lo, especialmente depois do Concílio VaticanoII, quando um espírito de misericórdia e generosidade invadiu a Igreja.

O processo das dispensas não era perfeito. O requerente tinha de admitir toda aculpa da sua deserção. Tinha de reconhecer todos os seus pecados sexuais epecadilhos anteriores e posteriores à ordenação. Ficava proibido de voltar a celebrarmissa, pregar ou administrar sacramentos. Eram condições duras, especialmente paraos padres de meia idade, educados exclusivamente para servir a instituição. Mesmoassim, a perspectiva de poderem casar com alguma dignidade no seio da Igreja queamaram e serviram às vezes durante anos era muito bem vinda. Não se importavam departir para longe das terras onde tinham exercido o seu ministério, nem de casaremsecretamente nos claustros ou sacristias das igrejas. Obedeciam aos regulamentos sem

Page 355: Vigde cristo

355

amargura — e ao menos com crescente afeição pela comunidade que manifestarasimpatia em relação às suas dificuldades. Dunboyne teria ficado muitíssimo satisfeito setivesse sido tratado desta maneira.

O riacho de requerentes transformou-se em dilúvio. O toque de misericórdia dePaulo estava a revelar um problema cuja magnitude era de cortar a respiração.Centenas e depois milhares de padres começaram a requerer a dispensa. Muitosrequerimentos foram deferidos sem grande rebuliço. Houve padres dispensados paracasar com freiras dispensadas. Muitos padres foram dispensados para casar comdivorciadas com filhos e cujos casamentos tinham sido anulados. Depois de séculos emque libertar um padre dos seus votos era um anátema, os padres estavam a serlibertados um mês depois de o requererem.

É impossível verificar os números relativos aos envolvidos. Mas ninguém contestaque não têm paralelo na história da Igreja.

Depois de Paulo VI, o estado de espírito do Vaticano mudou abruptamente. JoãoPaulo meteu todos os requerimentos na gaveta. Duvidava de que dispensas muitorápidas contribuíssem para uma boa imagem do sacerdócio ou da Igreja. Misericórdiasim, mas a velha disciplina era melhor e também misericordiosa à sua maneira. Ospadres em particular sabiam qual era o seu lugar. O carácter irrevogável do seucompromisso significava que não estava certo da parte deles duvidarem da graça deDeus, facto que explicava a razão por que tão poucos tinham realmente duvidado nopassado. Não havia provação que eles não conseguissem ultrapassar com a graça deDeus.

A abordagem de João Paulo é coerente com as suas ideias clássicas. É suaconvicção que o padre é um homem predestinado e com um compromisso irrevogávelnum mundo de mudanças e sombras. É um sinal vivo do eterno no meio do tempo; éum farol num mundo de escuridão. Se a doutrina moral católica é dura — e João Pauloseria o primeiro a admiti-lo — precisa de padres de fibra moral dura para a promover.Só os celibatários podem fazer isto porque só eles atestam em plenitude a crucificaçãode Cristo, um acto voluntário de imolação. Os outros sofrem; os padres sofremlivremente. Quando os casais têm dificuldades, quando são tentados a usarcontraceptivos, quando se divorciam, ou fazem um aborto, podem recorrer aos padres eaprender com eles que com a graça de Deus podem vencer as tentações.

Apesar da dura política de João Paulo, não se verificou qualquer declínio no númerode padres que deixam o sacerdócio, apenas se registou um abrandamento no númerode pedidos de dispensa. Nem todas as petições são recusadas, mas o deferimento jánão é prática corrente. Para se candidatarem, os padres têm que ter abandonado oexercício do seu ministério há já algum tempo e estar numa situação que tornepraticamente impossível o seu regresso ao sacerdócio. Pode ser o caso de teremmulher e filhos, casa montada, e responsabilidades domésticas. Roma dispensá-los-áde facto, mas é característico da actuação do Vaticano deixar o requerente sem nuncasaber quando é que a dispensa virá. O Vaticano parece não se importar que o padre e amulher que ele ama se vejam obrigados a casar primeiro numa repartição de RegistoCivil, na esperança de que um dia o papa os deixe regularizar a sua união aos olhos deDeus e da Igreja.

Alguns católicos pensam que isto é um pequeno preço a pagar para manter oprincípio do celibato numa época de permissividade. Outros entendem que João Paulorelegou o problema para os bastidores. Há padres que continuam no sacerdócio e que,para bem da própria Igreja, não deviam lá estar, nunca deviam lá ter estado. Éimpossível quantificar estas situações, a não ser com base na história passada, mas o

Page 356: Vigde cristo

356

dilúvio de requerimentos no tempo do Papa Paulo faz pensar que a Igreja Romana temem mãos uma crise monumental, embora ainda parcialmente oculta.

A questão não é nova. A Igreja Católica tem estado quase sempre em crise no querespeita ao celibato do clero.

Assim como os católicos presumem que todos os papas foram modelos de rectidão,a exemplo de Paulo VI e João Paulo II, também partem do pressuposto de que amaioria dos padres são castos, a exemplo dos seus párocos de hoje. A realidade é queo celibato do clero quase nunca funcionou. Na opinião de alguns historiadores, ocelibato causou provavelmente mais danos à moral do que qualquer outra instituição doOcidente, prostituição incluída. Porque contra as mulheres da rua toda a gente estáprevenida, enquanto que os ministros do Evangelho, mesmo quando infiéis, sãorespeitados e têm a confiança pessoal das pessoas. As provas dos danos causadospelo celibato não vêm de fanáticas fontes anti-católicas; incluem, pelo contrário,documentos papais e conciliares e cartas de santos reformistas. Todas elas apontam nomesmo sentido: longe de ser uma luz num mundo de maldade, o celibato do clero temsido bastante vezes uma nódoa a manchar o nome do Cristianismo.

Paulo VI, em certa medida, aceitou este facto na sua Encíclica SacerdotalisCaelibatus, de Junho de 1967. É possível que o conhecimento que tinha da história docelibato o tenha convencido de que manter no sacerdócio padres que se mostravamincapazes de viver em conformidade com as suas exigências era desastroso. Aencíclica começa com uma frase que entra em contradição com todas as páginas dahistória da Igreja: «O celibato sacerdotal foi guardado pela Igreja durante séculos comouma jóia brilhante». Mas aproxima-se mais da verdade ao dizer na secção 36 que ospapas

promoveram, defenderam e restauraram o celibato do clero emeras sucessivas da história, mesmo quando encontraramoposição da parte do próprio clero e quando as práticas deuma sociedade decadente não favoreciam as exigênciasheróicas da virtude. A obrigação do celibato foi depoissancionada pelo Sagrado Concílio Ecuménico de Trento (noséculo XVI) e finalmente incluído no código canónico (1917).

É preciso ler nas entrelinhas para perceber que o clero nunca se sentiu feliz com adisciplina do celibato («oposição do clero») e que não conseguia viver de acordo comela («quando as práticas de uma sociedade decadente não favoreciam as heróicasexigências da virtude»). Por que é que os papas tiveram de restaurar repetidas vezes ocelibato («em eras sucessivas da história») senão porque o clero se mostrava incapazou pouco disposto a viver de acordo com as suas exigências?

À luz do passado, aqueles milhares de padres que pediram ao Papa Paulo que osdispensasse foram simplesmente mais honestos do que os seus antecessores aoaceitarem que o celibato não era para eles. Era muito melhor admitir isto e abandonar osacerdócio do que prejudicar-se a si próprio e à Igreja fingindo viver em castidadequando sabiam que o não conseguiam fazer.

A história do celibato constitui uma leitura tão negra que nem o romance maiserótico de hoje se lhe pode comparar.

A obra clássica foi escrita por Lea em 1867. Lecky, especialista europeu nesteperíodo, afirmou que nenhuma obra da Idade Média depois de Dean Milman era tãoimpressiva. «Esta questão» escreveu Lecky «foi tratada recentemente com grandeerudição e admirável imparcialidade pelo autor americano Mr. Henry C. Lea na sua

Page 357: Vigde cristo

357

History of Sacerdotal Celibacy (Filadélfia 1867), que é certamente uma das obras maisvaliosas que a América produziu».

É estranho que nem Lecky nem Lea tivessem conhecimento de que o assunto játinha sido tratado por dois irmãos alemães, J. A. e A. Theiner. O seu livro, DieEinführung, fora publicado em 1828 e reeditado em 1845. O mais velho dos dois, Anton,tornou-se protestante; o mais novo, Augustin, viria a ser o primeiro Prefeito não italianodos Arquivos do Vaticano. A sua obra, embora menos objectiva do que o magistraltratado de Lea, vinha corroborar este. A sua intenção era denunciar «as terríveisimoralidades que acompanharam o celibato, fundamentadas nos testemunhos quepersistiram ao longo dos séculos e que aquele ainda arrasta consigo». Como escreveuG. G. Coulton: «Qualquer investigador da Idade Média que ignore Lea e os Theiner nãotem desculpa».

A extensa lista dos papas que foram libertinos antes e por vezes depois deascenderem ao trono de S.Pedro indicia que o celibato também não era observado nascategorias mais baixas do clero. Como assinalámos na Primeira Parte, uma lista dospapas que se comportavam de maneira imprópria incluiria, entre outros, Benedito V,Sérgio III, João X, João XII, Benedito VII, Benedito IX, Clemente V, Clemente VI, "JoãoXXIII", Sisto IV, Pio II, Inocêncio VIII, Alexandre VI, Júlio II, Paulo III, Júlio III, GregórioXIII, Gregório XV, Urbano VIII, Inocêncio X, Alexandre VII. Quando os papas tinhamamantes com quinze anos, e eram culpados de incesto e de perversões sexuais, tinhamnumerosos filhos, eram assassinados em pleno flagrante de adultério, não podem restardúvidas de que o celibato entre o clero em geral era mais reconhecido pela infracção doque pela sua observância. Na velha expressão católica, porquê ser mais papista que opapa?

Uma estória admonitória

O celibatário compromete-se a renunciar ao mais gratificante dos seus direitosnaturais: o de casar e ter filhos. Ninguém sabe isto melhor do que um piedoso leigocatólico nascido em Siena nos primeiros anos do século XV. Era um escritor notável,fadado, tal como Petrarca, a vir a ser Poeta Laureado; era também um hábil diplomata echamava-se Eneias Sílvio Piccolomini.

No decorrer de uma certa missão, afastou-se dos caminhos da diplomacia ao fazerum filho a uma namorada escocesa, mas, para seu grande desgosto, o bebé morreu.Mais tarde foi enviado em missão pelo último anti-papa, Félix IV. Em princípios deFevereiro de 1442 estava em Estrasburgo. Tinha quase quarenta anos, mas, segundoas suas próprias palavras, sempre expressas objectivamente, «aí apaixonou-seloucamente por uma mulher». Esta mulher era bretã e chamava-se Isabel. Era casada etinha uma filha de cinco anos. O marido estava ausente em negócios.

Piccolomini achava-a espirituosa e encantadora e ela falava com ele na língua dasua Tuscânia natal. Era muito viva e ele sentia-se só. Apaixonou-se completamente porela. Implorou-lhe que fosse para a cama com ele. Ela resistiu-lhe durante três dias e porfim, na noite da véspera de partir ao encontro do marido ele implorou-lhe que nãotrancasse a porta do quarto. Na noite de 13 para 14 de Fevereiro dormiu com ela. Paraele foi motivo de grande alegria o facto de o filho ter sido concebido no Dia deS.Valentim e de ter nascido em Florença no dia 13 do mês de Novembro seguinte. Eraum rapaz. Quando soube a notícia, escreveu entusiasmado ao pai. Este deve ter-lherespondido com alguma frieza, porque Piccolomini mandou-lhe uma segunda carta.

Page 358: Vigde cristo

358

Dizeis vós, meu Pai, que não sabeis se deveis ficar contente outriste por o Senhor me ter dado um filho… Mas eu vejo apenasrazões para satisfação e não para tristezas. Porque o que éque haverá de mais doce para o homem do que gerar um filhoà sua imagem e semelhança e como que dar continuidade àsua estirpe e deixar cá alguém depois da sua morte? Quemaior bênção haverá do que verdes os filhos dos vossosfilhos? Por mim, estou encantado por a minha semente terdado fruto e por uma parte de mim ir sobreviver à minha morte:e agradeço a Deus o ter dado a esta mulher um filho homempara que um outro Eneias possa vir a andar a brincar ao redorde meu pai e minha mãe e proporcione aos avós o confortoque o pai dele lhes devia ter proporcionado. Porque se o meunascimento foi para vós, que me gerastes, um prazer, por queé que o meu filho não haveria de ser um prazer para mim? Enão irá o rosto do meu bebé alegrar o vosso coração quandonele me virdes a mim? Não ireis vós ficar felizes quando opequenino se pendurar no vosso pescoço e vos encantar comos seus modos de bebé? Mas vós ireis provavelmente dizerque o que lamentais é a minha ofensa, porque eu gerei empecado. Não sei que ideia fazeis de mim. Com certeza que vós,sendo carne, não gerastes um filho de pedra ou de ferro. Vóssabeis o homem viril que éreis e eu não sou eunuco, nemposso ser classificado como de sangue frio. Também não souum hipócrita daqueles que querem parecer melhores do quesão. Confesso firmemente o meu erro, porque não sou maissanto do que o Rei David nem mais sábio do que Salomão.

Quem escreveu esta carta sensata e comovente viria a encontrar-se com a sua amanteIsabel mais uma vez em Basle, mas o seu pequeno Eneias morreu apenas catorze diasmais tarde. Com a morte dos dois filhos de Piccolomini, a Igreja perdeu certamente doispossíveis cardeais, porque o pai entrou para a Igreja e quinze anos mais tarde foi eleitopapa tomando o nome de Pio II.

A mais antiga tradição do sacerdócio

Os teólogos tentaram provar que o celibato clerical remonta à bíblia e aos temposapostólicos. Em vão. No que respeita à Igreja primitiva, os Evangelhos revelam um factosólido: Jesus escolheu para chefe dos seus discípulos Pedro, um homem casado. Comoé que alguém podia argumentar que Jesus ou Paulo pensavam que os padres dashoras vagas nas áreas rurais tinham de ser celibatários quando o "primeiro papa"escolhido pelo próprio Senhor era casado? Se Jesus queria apenas celibatários paraseus ministros, foi muito míope ao escolher Pedro, quaisquer que fossem os seustalentos.

Os Padres da Igreja tinham como certo que não só Pedro, mas também Paulo eramcasados. Havia de facto fundamentos no Novo Testamento para respeitar o celibato,mas eram demasiado débeis, considerando que até a mãe de Jesus era casada. Jesusfalava em termos místicos quando se referiu àqueles que se castraram pelo Reino deDeus. Paulo, também à luz da iminente Vinda de Jesus nas nuvens do paraíso, propôs

Page 359: Vigde cristo

359

que se esperasse no estado em que a pessoa se encontrasse: se era casada, queassim continuasse; se não, que continuasse solteira. A pessoa solteira podia manter oespírito constantemente concentrado na Vinda.

Se a Vinda tardasse, ou claramente não acontecesse, era possível transformar,caso a caso, este celibato temporário e provisório, assumido na perspectiva de umacontecimento que nunca se materializou, num compromisso vitalício puramentepessoal. Mas, é preciso notar, Paulo nunca estabeleceu nenhuma relação entre celibatoe ministério. Ele não era partidário do celibato dos padres. Na verdade, quando trata dosacerdócio, ele assume uma posição exactamente oposta. Um bispo, diz ele, deve teruma única mulher. Isto foi interpretado talvez erradamente pelos teólogos celibatárioscomo querendo dizer que um bispo devia ter sido casado apenas uma vez. Maisprovavelmente, Paulo pretendia significar que qualquer cristão que mantivesse atradição patriarcal judaica de ter várias mulheres simultaneamente não podia ser bispo.

As palavras de Paulo eram autorizadas: não havia nenhuma incompatibilidade entrecasamento e sacerdócio. Esta a razão por que muitos homens casados se tornarampadres.

A primitiva Constituição Apostólica data dos fins do século III e princípios do IV. Estaestabeleceu a regra segundo a qual os homens casados, longe de deixarem asmulheres quando eram ordenados, deviam mantê-las. Porém, se um solteiro entrassepara o sacerdócio era obrigado a manter o celibato. A Igreja Grega mantém mais oumenos esta disciplina. No celibato, tal como no divórcio, foi o Ocidente que se afastouda tradição primitiva.

Os dois maiores autores medievais admitem isto. Graciano, o canonista, disse em1150 que os gregos conservavam «a mais antiga prática» da Igreja. S.Tomás deAquino, o teólogo, disse que Jesus não separou Pedro da mulher porque não queriacortar os laços do matrimónio que foram obra de Deus.

A questão é esta: o que é que está por detrás da mudança para uma disciplina maisdura?

A mudança para uma disciplina mais dura

Em oposição às heresias começou a crescer na Igreja um movimento ascético comum preconceito anti-sexo. A própria ortodoxia começou a desacreditar o casamento. Apureza era identificada com a abstinência; a castidade substituiu a caridade comovirtude central do Evangelho. E como consequência a religião tornou-se soturna edesprovida de alegria. A felicidade estava reservada para a outra vida, onde, por acaso,não haveria sexo, nem casamento.

A sordidez do sexo acentuou-se, como assinalámos, por causa da sua relação como pecado original. O prazer sexual (libido) foi o primeiro fruto, e o mais amargo, dopecado original, sem o qual esse pecado não se teria propagado no mundo. Mesmo ossegundos casamentos após a morte de um dos cônjuges eram olhados comdesconfiança, uma vez que ninguém que tivesse casado duas vezes poderia ser padreou bispo.

Primitivamente, respeitava-se a virgindade, mas esta era um estado que as pessoaseram livres de adoptar ou de deixar. Não estava institucionalizada. A popularidade davirgindade foi inspirada por Maria e não por Cristo. O título "Virgem Maria" não era demodo nenhum bíblico. A veneração da castidade de Maria teria deixado os apóstolosperplexos, como ainda hoje deixa perplexos os Judeus. Na tradição bíblica, tanto noNovo como no Antigo Testamento, "virgindade" não era uma palavra que exprimisse

Page 360: Vigde cristo

360

honra. Uma virgem não era "uma jovem pura" mas uma jovem solteira, alguém aindasem ocupação e sem nada. Para os primeiros cristãos o nascimento virginal nãosignificava que o Filho de Deus nascera de alguém casto mas de alguém pobre e sempoder. O Magnificat é muito explícito sobre isto. Maria louva a Deus por a considerarnão na sua pureza mas na sua baixa condição e na sua insignificância. Foi a sua fomeque ele satisfez, foi a sua pobreza que ele contemplou. O nascimento virginal foi aexpressão da capacidade de Deus de criar vida num ventre não semeado. Istocorresponde na tradição judaica àquelas estórias bíblicas de velhos e às vezes demulheres estéreis que têm bebés através do poder de Deus, única entidade capaz detrazer uma vida nova e a salvação.

Este erro elementar acerca de Maria levou ainda mais longe a descredibilização dosexo e do casamento. Maria foi abençoada porque deixou o sexo. A salvação do mundocomeçou com um voto de castidade.

Isto levou á realização de sínodos locais, como o de Elvira, em Espanha, quetentaram obrigar todos os ministros do Evangelho a viver sem o sexo; o sexo estava atornar-se o inimigo que impedia a vinda de Cristo, o Filho de Deus, ao mundo. Outraideia era a de que as mãos que tocavam o corpo (virginal) de Cristo não deviam tocar ocorpo de uma mulher, mesmo que esta fosse a esposa. A pureza ritualista era deorigem pre-cristã, mas esta ideia pagã depressa se espalhou na Igreja e por fim ficou afazer parte da ortodoxia.

A regra que proibia os padres de casar depois da ordenação generalizou-se.Tornou-se oficial no Concílio de Niceia no ano de 325; os clérigos ordenados enquantosolteiros que depois casassem ou mantivessem amantes eram solenementecondenados. O Bispo de Roma queria ir ainda mais longe; queria proibir mesmo ospadres casados de continuarem com as mulheres. O Concílio decidiu contra ele. Ospadres não casados não devem casar; os casados não devem deixar as mulheres. Estepadrão duplo criou alguns problemas. Os padres solteiros viam os seus colegascasados a dormir com as mulheres enquanto que eles eram obrigados a viver comoanjos, sem sexo nem a presença reconfortante de uma mulher.

Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império sob Constantino, nãosó os clérigos mas também as virgens consagradas recebiam privilégios legais. Osescândalos Surgiram pela primeira vez. Muitos homens aproveitaram a oportunidadepara tirar partido dos benefícios concedidos, fossem eles quais fossem, incluindo aisenção de impostos. O celibato fazia muito sentido em termos económicos, mesmopara homens e mulheres que se entregavam ao amor livre. A Igreja concluiu que tinhade estabelecer regras mais rígidas para o celibato. Entretanto, a bênção dada pelospadres que tinham mulheres legítimas era já considerada menos efectiva do que a doscelibatários.

As coisas pioraram ainda mais nos fins do século IV. A Igreja era então muitorespeitável, com muitas dotações e bastantes bens materiais. Não queria que um padrecasado deixasse estes bens em herança à mulher e aos filhos. E mais ainda, o idealascético tornou-se mais exigente no momento mesmo em que o tipo errado decandidatos, cobiçosos e cheios de ambições, começava a escolher o sacerdócio comocarreira. O celibato sem castidade tornou-se a norma.

Dâmaso, que se tornou pontífice no ano de 366, foi um exemplo de um tipodiferente de violação. Deixou a mulher e a família. Nesses tempos, a mulher tinha de tercuidado com o homem com quem se casava. Adriano II foi outro que, em 867, repudioua mulher, Estefânia, e a filha, quando ascendeu à Cadeira de Pedro.

Foi provavelmente Sirício, Bispo de Roma em 385, o primeiro a dizer aos padrescasados que deixassem de dormir em cama de casal. Ficou desgostoso quando soube

Page 361: Vigde cristo

361

que os padres em Espanha continuavam a manter relações maritais com as esposas.Os bispos, padres e diáconos não deviam entregar-se a «tais imoralidades». Secontinuassem nessa vida, seriam expulsos do sacerdócio. Se tivessem «pecado porignorância», eram perdoados, mas nunca seriam promovidos. Fazer sexo com asesposas como que os tinha maculado para sempre. Esta grande onda de puritanismo aque o Evangelho era totalmente alheio era extremamente injusta para com as mulheresdos padres. Era um sinal muito claro daquilo que as mulheres podiam esperar de umahierarquia celibatária para os séculos seguintes.

Até o próprio Sirício deve ter tido dúvidas sobre se aquela disciplina resultaria. Em386 escreveu à Igreja Africana no pressuposto de que o celibato do clero não era umcostume generalizado em África e ele não tinha poderes para impor as suas opiniões auma igreja que ficava fora da sua jurisdição. Não cita um único cânone conciliar, nemuma única carta de papas anteriores, nem nenhum texto bíblico ou patrístico. A razão éque não existia nenhum. Mas a disciplina seguida pela Igreja ao longo de três séculosde perseguições estava a ser alterada e codificada sem ter em atenção aindividualidade dos padres que a ela estavam sujeitos. Isto viria a provocar um desastremoral.

Inocêncio I (401-17) reforçou as opiniões de Sirício. Qualquer violação do celibatopor parte de um padre implicaria a sua expulsão do sacerdócio. Se ao menos tivessemfeito cumprir esta determinação, o celibato teria andado de mãos dadas com acastidade. Por exemplo, se um padre tivesse relações ou dormisse com uma mulhercasada ou com uma prostituta, seria expulso do sacerdócio. Mas isto nunca se tornoulei da Igreja Romana. Mesmo hoje, um padre pode ter relações e cometer adultérioregularmente, e por muito que o seu comportamento seja objecto de troça e ande nasbocas do mundo, pode continuar a exercer o sacerdócio. Se os padres pecadorestivessem sido expulsos do sacerdócio é possível que os problemas do clero sob umregime puritano tivessem sido reconhecidos publicamente. O número de padres teriacaído drasticamente ou então, numa era de milagres, talvez o clero tivesse levado umavida decente. Mas a insistência no celibato do clero sem sanções adequadas para aincontinência levou a que muitos padres em todas as épocas professassem uma coisa epraticassem outra, proclamassem o celibato enquanto viviam como libertinos.

Os sete séculos seguintes testemunharam um vaivém de endurecimento eafrouxamento da disciplina. O Papa Leão I disse que os bispos e os padres deviamtratar «as suas esposas como irmãs». Entretanto, a Itália estava cheia de padres comenormes famílias, a maioria dos quais ficou impune. A verdade é que o própriosacerdócio era praticamente hereditário. Muitos papas eram filhos de padres e debispos. Entre eles estão Bonifácio I (418-22), Gelásio (492-6), Agapito (535-6), Silvério(536-7) e Teodoro (642-9). Silvério foi lançado no estrelato porque era apenassubdiácono quando foi escolhido para papa, mas, reconheça-se, tinha uma grandevantagem: o pai era o Papa Hormisdas (514-23).

A regra do celibato triunfou em toda a parte à custa da castidade. Os esforços deJerónimo, de Ambrósio e de Agostinho foram no sentido de produzir um fruto cada vezmais amargo. Jerónimo não receou mesmo afirmar que via regularmente padres quepassavam a vida inteira em companhia das mulheres, rodeados de belas escravasjovens e que levavam uma vida que só no nome e na falta de respeitabilidade sediferençava do casamento. As suas observações viriam a ser repetidas através dahistória da Igreja. Muitos bispos honestos ficavam tão preocupados com apromiscuidade dos seus párocos que fechavam os olhos ao facto de eles teremmulheres. Isto poupava-lhes outros prejuízos morais ainda piores. Pela sua parte, os

Page 362: Vigde cristo

362

padres viam-se obrigados a optar entre uma esposa e uma carreira. O meio termo erauma amante.

O que confunde toda a história do celibato clerical é um facto que é malcompreendido: todos os casamentos dos padres eram considerados válidos pela Igreja.Se os homens casavam depois da ordenação, os seus matrimónios, embora ilegais,eram válidos. Porquê? Porque para o homem o direito de casar é um direito natural eninguém, nem mesmo a Igreja pode privá-lo desse direito.

Deste princípio resulta uma espantosa consequência sobre a qual a Igreja primitivanão tinha qualquer dúvida: a actual disciplina que torna inválidas as tentativas dospadres de casarem é imoral. Não pode haver lei nenhuma, nem mesmo papal, quepossa privar uma pessoa daquilo com que Deus, o Criador, dotou o mais íntimo do seuser. Portanto, quando Lord Dunboyne, Bispo de Cork, pediu a Pio VI dispensa parapoder casar, talvez tivesse sido ingénuo, mas não estava a fazer nada mais do que apretender exercer o seu natural direito de casar.

Infelizmente, embora não retirando aos padres o direito de casar, a Igreja do séculoV fez uma coisa igualmente prejudicial. Privou-os do seu direito de fazer sexo com asesposas. O casamento podia ser válido, mas como era ilegal era considerado comouma união adúltera. As mulheres viram-se validamente casadas com clérigos quepecavam mortalmente ao levá-las para a cama. Evidentemente que não eram só osdireitos dos padres que eram violados, também os das mulheres o eram. Esposas só denome, eram consideradas abaixo de prostitutas.

Roma nunca devia ter permitido a ordenação de homens casados quando uma dascondições era a de privar as mulheres dos seus direitos maritais. Tal legislação mostraa profundidade do medo e da aversão ao sexo que resultavam da disciplina do celibato.Não admira que provocasse tanta imoralidade.

Esta confusão teológica numa época de depravação levou em particular o clero atornar-se, na Roma do século V, o exemplo típico de tudo o que era grosseiro epervertido. O comportamento dos clérigos era pior do que o dos Bárbaros. Os Teutões,em especial, tinham grande respeito pelas mulheres. Quando foi julgado por seduziruma freira, o papa Sisto III (432-40) defendeu-se habilmente citando as palavras deCristo: «Aquele de entre vós que nunca pecou que atire a primeira pedra».

A Igreja Oriental manteve durante todo esse tempo a sua própria disciplinaestabelecida pelo Concílio de Niceia e pela Constituição Apostólica. As exigênciaspapais de que os homens casados deviam deixar as esposas parecia aos gregos umultraje à humanidade. A Igreja Oriental tinha os seus próprios problemas. Nãoconseguiu evitar que os bispos tivessem numerosos filhos nem que os padrescasassem. Muitas vezes mandavam que estes deixassem as mulheres e asmandassem para distantes conventos de freiras. Mas os que tinham casado de boa féantes de ordenados eram instruídos no sentido de serem fiéis às esposas. No século IX,a Igreja Oriental consagrou isto como sua disciplina.

A farsa do celibato

No século V, no Ocidente, os monges errantes provaram ser uma ameaça social.Eram os piores dos vagabundos, os vagabundos consagrados. Foi preciso o génio deS.Benedito para fornecer uma regra para aqueles que eram sinceros no seu desejo delevar uma vida monástica. Mesmo assim, houve longos períodos em que muitosmosteiros não eram mais do que casas de má fama.

Page 363: Vigde cristo

363

Durante as invasões dos Bárbaros, o celibato clerical era uma piada de mau gosto.Os bispados, com responsabilidades civis e religiosas, foram entregues a poderososchefes. Muitos nem conseguiam ler uma linha da missa. Dizer a esses homens que nãopodiam ter «relações impróprias com as esposas» naturalmente que poucos resultadosteve. Que sentido fazia não poder ir para a cama com a mulher amada? Era comodespejar um bom vinho numa fossa.

O segundo Concílio de Tours no ano de 567 decidiu que qualquer clérigoencontrado na cama com a mulher seria excomungado por um ano e reduzido àsituação de leigo. Como o Concílio admitiu publicamente que dificilmente se encontrariaum clérigo que não tivesse esposa ou amante, os resultados foram quase nulos. Osbispos e os padres viviam despudoradamente com as mulheres e as amantes. Sealguém era punido eram as mulheres. Muitas eram castigadas com cem chicotadas pelopecado de terem estado com os maridos.

O Papa Pelágio II, no ano de 580, ficava mais ou menos satisfeito quando os padrescasados não entregavam às mulheres e aos numerosos filhos os bens da Igreja. Ospadres tinham de fazer um inventário dos bens da Igreja ao iniciarem o seu ministério erespondiam pelo mesmo quando saíam. Mesmo os esforços de Gregório o Grande paralimpar o clero resultaram em nada. Uma só falta, dizia ele com altivez, era o bastantepara que os padres fossem impedidos de exercer o sacerdócio. Teve de desistir, porquecaso contrário deixaria de haver missas.

No século VIII, S.Bonifácio foi à Alemanha. Encontrou uma tal depravação entre osbispos e padres que pediu ao Papa Gregório III que o deixasse lavar as mãos de tudoaquilo. Uma vez na Alemanha, mandou um assustado S.O.S. ao novo Papa Zacarias.Todo o clero era promíscuo — o que é que ele havia de fazer? Jovens que passavam avida em violações e adultério estavam a subir na hierarquia do clero. Passavam a noitena cama com quatro ou cinco mulheres e depois levantavam-se de manhã — em queestado, deixa-o ele à nossa imaginação — para celebrar missa. Era esta a qualidadedos candidatos que eram por fim promovidos ao episcopado. Qual era a solução? Aóbvia, a abolição da disciplina que provocava este desbragamento, não lhe ocorreu.Nas cartas de Bonifácio há frequentes referências a «bispos adúlteros» e a um que era«propugnator et fornicator», uma fina mistura de desordeiro e fornicador. Demitir todosos que se afastassem da decência comum teria significado a morte do culto católico.

S.Bonifácio passou a sua vida a lidar com maus clérigos. Os seus trabalhoslevantaram a seguinte questão: a culpa seria do clero ou da disciplina que lhe eraimposta?

Uma grande parte da história do celibato é a história da degradação das mulheres e— como consequência invariável — dos frequentes abortos e infanticídios.

No século IX muitos mosteiros eram antros de homossexuais, muitos conventoseram bordéis onde se matavam e enterravam bebés. Dizem os historiadores que éprovável que desde o fim do Império Romano só se praticasse o infanticídio nosconventos. O Concílio de Aix-la-Chapelle no ano de 836 admitiu-o abertamente. Quantoao clero secular, sexualmente carente, os seus membros eram tão frequentementeacusados de incesto que por fim foram proibidos de ter mães, tias e irmãs a viver comeles. Os filhos fruto de incesto eram frequentemente mortos pelos clérigos, comoatestam os registos de um prelado francês.

Alguns padres desse tempo reconheciam que preferiam não casar, pois assim eramais fácil continuar com as suas escapadelas secretas. A Igreja perdoava maisfacilmente a concubinagem do que o casamento pelas habituais razões de carácterprático: as amantes e os seus filhos não podiam declarar-se com direito aos bens daIgreja quando os padres seus amantes morriam.

Page 364: Vigde cristo

364

Havia porém dioceses inteiras cheias de padres que tomavam uma atitude maismoral e casavam. O sacerdócio, incluindo o do episcopado, tornava-se cada vez maishereditário. O pai passava ao filho mais velho o seu benefício eclesiástico. Nalgumasregiões era permitido ao padre ter uma esposa; mais do que isso significava aexcomunhão. Os bispos aceitaram prontamente a ideia de que permitir que os padrescasassem e mantivessem as mulheres era a única maneira de purificar a Igreja dospiores excessos do celibato. Um santo bispo, Santo Ulrique, defendia os padrescasados com fundamento na Bíblia e no bom senso. Alguns prelados, afirmava ele,andavam a espremer os seios da Escritura para a fazer dar sangue em vez de leite.

O aterrador comportamento dos pontífices romanos do século X condiz, por assimdizer, com o clero das províncias. O Bispo Segenfried de Le Mans foi casado comHildeberga durante trinta anos e insistia corajosamente que a mulher devia serapelidada de “Episcopissa”. Quando envelheceu entregou a diocese com todos os seusricos proventos ao seu filho Alberico.

Um outro Alberico, Bispo de Marsico, era menos cavalheiresco. Sendo casado,abdicou da sua sé a favor do filho. Mais tarde, aborrecido e desejoso de um desafio, ocoração inclinou-se-lhe para a Abadia de Monte Cassino. Fez um pacto com os inimigosmortais da abadia. De acordo com uma parte do contrato, teriam de lhe trazer os olhosdo abade, mas sem o abade. Alberico adiantou metade da soma acordada e pagaria orestante contra a entrega dos olhos. Os olhos do próprio Alberico foram fechados parasempre cerca da mesma altura em que o abade perdeu os dele. Esta estória foi relatadapor S.Pedro Damiano. O seu testemunho escrito dos males provocados pelo celibatoforçado era tão horrendo que o papa pediu-o emprestado e depois recusou-se adevolvê-lo, para grande irritação do santo. Felizmente o documento ficou guardado nosarquivos papais. Este documento prova que a libertinagem entre o clero do tempo erauniversal. Após seis séculos de estrénuos esforços para impor o celibato, os padresconstituíam uma ameaça para as mulheres casadas e para as jovens das paróquiaspara onde eram mandados.

Um infractor famoso foi Rainbaldo, Bispo de Fiesole. Depois de um número heróicode amantes, casou com uma mulher que lhe deu muitos filhos para alargar o seuimpério. Os italianos não lhe levaram a mal, atribuindo mesmo a Sua Senhoria aqualidade de milagreiro, o que de facto deve ter sido.

Outro bispo italiano, Rathurio, dizia com azedume que se excomungasse os padresincontinentes não sobraria ninguém para administrar os sacramentos, a não ser osrapazes. Se excluísse os bastardos, como mandava a lei canónica, nem rapazessobrariam.

O Papa Victor III (1086-7) acerca deste período, que incluiu o abominável Papa-menino Benedito IX, teve de admitir que por toda a Itália os clérigos, de bispo parabaixo, eram casados, viviam com as esposas tão abertamente como os leigos econtemplavam generosamente os seus descendentes nos testamentos. Os escândaloseram muitas vezes maiores na própria Roma, com os papas a marcar um lascivoandamento.

João, discípulo de Pedro Damião, relatou que os casamentos clericais eram tãovulgares no Ocidente que já nem eram punidos pela lei canónica. Os bispos nem sedavam ao trabalho de ministrar uma admoestação. Desde que os padres casassem, secomportassem devidamente e não casassem uma segunda ou terceira vez, nãopunham objecções. O casamento era muito menos escandaloso do que aconcubinagem. Nicolau II (1059-61), instado por Pedro Damião, pediu de facto aosbispos que dessem como que o exemplo. Estes responderam provocatoriamente que

Page 365: Vigde cristo

365

não estavam à altura da tarefa de manter a castidade e que lhes seria indiferentequalquer punição que o pontífice lhes desse.

Roma continuou a insistir que casar era maior pecado do que ter uma amante,porque soava a heresia e era uma transgressão à lei da Igreja. Isto explica algumasdecisões surpreendentes de Alexandre II.

Um padre de Orange, em França, cometeu adultério com a segunda mulher de seupai. No ano de 1064, o Papa Alexandre, em vez de o demitir, até se recusou a privá-loda sagrada comunhão. Evocou-se a clemência porque ele não tinha cometido omatrimónio. Dois anos depois, um padre de Pádua confessou a prática de incesto com amãe. O papa tratou-o com muita bondade e deixou ao bispo a decisão sobre se eledeveria ou não continuar no sacerdócio. Para o Papa Alexandre, o adultério, o incestomesmo, eram preferíveis ao casamento.

Quando Pedro Damião tentou impor pessoalmente o celibato ao clero de Milão, tevesorte em escapar com todas as suas faculdades intactas. Para os padres milaneses eradifícil entender como é que ter relações com as esposas podia ser consideradoadultério. Damião também ficou embaraçado ao descobrir que o clero do Piemonte,todo casado, era «um coro de anjos» no exercício do seu ministério. Que bom seria quenão andassem a ter relações impróprias com as esposas; seriam perfeitos. Nunca lheocorreu que eles talvez fossem bons padres por serem bons maridos.

Damião, tal como Gregório VII, não demorou muito a chamar o braço civil paraimpor o celibato aos padres — estranha actuação para prelados que se opunham àinterferência do poder civil nas questões da Igreja.

Foi Gregório que decidiu que no futuro ninguém poderia ser ordenado sem antes secomprometer com o celibato. Com a força da sua personalidade conseguiu mandar paraa lixeira toda uma multidão de esposas, muitas das quais, note-se, acabaram por sesuicidar. O seu propósito era claro: «Non liberari potest Ecclesia a servitude laicorumnisi liberentur prius clerici ab uxoribus» («A Igreja não consegue escapar às garras dolaicado enquanto os padres não escaparem às garras das esposas»). Isto era uma claraconfissão de que o celibato não tem a ver principalmente com o santo benefícioeclesiástico mas antes com a independência da "Igreja" em relação à interferência laica.Tinha a ver sobretudo com o manter intactos os bens da Igreja. Aos olhos destesautocratas, o clero é a Igreja. Por isso é que o nepotismo dos papas medievais e doRenascimento era duplamente ultrajante, pois, embora celibatários, distribuíram grandequantidade dos bens da Igreja pelos seus parentes, retirando assim ao celibatoqualquer objectivo. Calcula-se que Bonifácio VIII, por exemplo, teria dado 25 por centode todos os proventos da Igreja à sua família. Alguns papas legaram tudo aosfamiliares, deixando os seus sucessores sem outra alternativa que não fosse venderbens espirituais para sobreviver.

Gregório VII não conseguiu fazer tudo o que queria. O Bispo de Pavia, por exemplo,excomungou-o por preferir que os clérigos tivessem amantes em vez de esposas. OArcebispo de Mainz juntou-se aos outros bispos alemães e disse que Gregório tinhacomprado todos os direito ao papado. Gregório, naturalmente, retaliou excomungando-o. O Concílio selvagem de Brixen em 1080 condenou Gregório por «semear o divórcioentre cônjuges legítimos» e fazer com que os filhos dos padres ficassem abandonados.O Patriarca de Constantinopla pôs algumas achas na fogueira ao dizer com todas asletras: «Na Igreja do Ocidente há uma enorme multidão de crianças mas ninguém sabequem são os pais delas».

Alguns padres diziam que preferiam deixar o sacerdócio a deixar as esposas edenunciaram o papa como um herege e um louco que esperava que criaturas de carnee osso vivessem como seres sem corpo. Quando fossem expulsos, onde é que

Page 366: Vigde cristo

366

Gregório iria descobrir anjos para os substituir? Os Bispos fizeram os possíveis porcumprir os desejos de Gregório, por vezes com o risco da própria vida. Mas o alvo dopapa era o laicado.

Contra toda a tradição da Igreja, excomungou todos os leigos que aceitassem ossacramentos dados por padres não celibatários. Isto levou a que muitos leigoscalcassem aos pés os sacramentos dados por padres "incontinentes" e baptizassem ospróprios filhos. Em muitas dioceses a religião praticamente desapareceu — por causado celibato. Era um paradoxo que se viria a repetir ao longo dos tempos até aos nossosdias.

A questão foi finalmente encerrada por Urbano II em Piacenza no ano de 1095. Umconcílio de 400 clérigos e 30.000 leigos condenou o casamento do clero de uma vez portodas. Para mostrar o ímpeto evangélico desta medida, venderam as mulheres dospadres como escravas.

Tornar o celibato estatutário foi apenas o começo. Sem o braço civil teria sido letramorta. Quando o arqui-inimigo de Gregório VII, Henrique IV, foi deposto pelo seu maisortodoxo filho, o celibato foi imposto na Alemanha e em todo o Império. Mas rapar ocabelo de um homem e vestir-lhe os paramentos não lhe altera a natureza. Os padrescontinuaram a chamar às esposas presbytera. De facto, sempre que se promulgavamcânones, estes eram esquecidos com uma rapidez surpreendente. Bispos houve, comoo Arcebispo de Rouen, que, por promulgarem o celibato, foram expulsos pelo seu cleroe informados de que nunca mais deviam voltar.

Furtivamente, também se insinuou o infame cullagium, uma taxa por ter amantes.Os padres podiam mostrar aos seus bispos a certidão dos seus arranjos domésticos.Por vezes eram os próprios bispos e arcediagos a beneficiar desta taxa sexual; emRoma era o papa.

Os padres normandos não só tinham mulheres como faziam solenes contratos comas famílias das mulheres no sentido de lhes manterem o nível de vida a que estavamhabituadas e de outorgar a todos os rapazes e raparigas nascidos da união as rendasda igreja. Em muitos locais os benefícios eclesiásticos passavam de pais para filhos,para netos e bisnetos. Na Bretanha os Bispos de Dol, Rennes e Nantes eram casados;as esposas tinham o título honorário de condessa. Este era um padrão recorrente.Publicaram-se leis rigorosas que as autoridades, mesmo quando o desejavam, eramincapazes de fazer cumprir. A natureza humana revelou-se forte demais para elas. Osarcediagos, comprometidos em fazer cumprir as leis, eram muitas vezes os seus pioresinfractores.

Foi o caso de Adalberto de Le Mans, que mantinha publicamente um harém e sedeliciava com a sua enorme prole. O choque provocado nas pessoas era tão pequenoque ele foi elevado a bispo.

A promiscuidade era corrente em mosteiros e conventos. O grande Ivo de Chartres(1040-1115) fala de conventos inteiros com freiras que o eram apenas de nome. Tinhamsido em muitos casos abandonadas pelas famílias e na realidade eram prostitutas.

Uma mudança importante

Os próprios católicos têm por vezes a ideia de que o celibato clerical foi introduzidono século XII. É um erro vulgar. O celibato, por muito mal que tenha sido praticado, évárias centenas de anos mais antigo do que isso. Mas no tempo do Papa Calisto IIaconteceu de facto uma coisa importante. Foi ele que convocou o primeiro Concílio

Page 367: Vigde cristo

367

Geral do Ocidente no ano de 1123, conhecido como Primeiro de Latrão. Um milhar deprelados decretou que os casamentos clericais deviam ser desfeitos e os cônjugesobrigados a cumprir penitência porque esses casamentos eram inválidos. Pela primeiravez o celibato era proclamado como a mais forte realidade espiritual. Por via dele umpadre ficava marcado na alma como um homem tão diferente dos leigos que não podiasequer contrair validamente o sacramento do matrimónio. Esta doutrina era nova; iacontra uma tradição de séculos. Basta citar S.Gregório o Grande, que em 602 deixouclaro que o casamento de um padre era válido, mas este teria de optar entre manter aesposa ou o sacerdócio. Calisto retirou esta opção. O casamento de um padre erainvalidado pela ordenação.

O Primeiro Concílio de Latrão não alterou o comportamento dos padres mais do queoutros concílios. Esta a razão por que o Segundo Concílio de Latrão em 1139 repetiu asua doutrina. A união contraída em oposição à lei da Igreja sobre o celibato não era umcasamento autêntico. Embora o Papa Eugénio IV o confirmasse no Concílio de Rheimsno ano de 1148, a questão ainda era fortemente contestada mesmo em Roma. Ogrande canonista Graciano, que escreveu sob os auspícios de Eugénio, teve evidentesdificuldades com ela. Continuou a ensinar que um diácono pode casar se optar pordeixar o sacerdócio e que o sacramento do matrimónio é tão forte que nenhum votoanterior o pode tornar nulo e inválido. Na opinião de Graciano, a nova lei da Igreja —que sobreviveu até aos nossos dias — não tem fundamento evangélico nem patrístico enão se pode justificar com qualquer argumento teológico ou ético. Como já vimos, elaparece violar o direito natural de uma pessoa ao casamento.

Contra a tradição ou não, injusta ou justa, os papas continuaram a insistir, a partirde 1123, que os casamentos dos padres eram inválidos porque o sistema eclesiásticoassim o exigia. Isto não teve qualquer impacto. Os padres continuaram a casar; asesposas governavam-lhes a casa; os filhos ajudavam no altar.

Alexandre III (1159-81) repetiu a doutrina do Concílio de Latrão, mas a simplesdimensão da concubinagem do clero esmagou-o. Desencorajado, estava a ponto demudar para a tradição grega e permitir que os homens casados fossem ordenados. ACúria apoiou-o, com uma excepção: o Chanceler, um abade asceta chamado Alberto,que viria a tornar-se Gregório VII por um ano, em 1187. A sua intervenção veio arevelar-se crucial. A Igreja Ocidental esteve quase a capitular face à maciçadesobediência do clero. As coisas tinham chegado a um ponto tal que os bisposrogavam aos seus padres que pelo menos se abstivessem do sexo três dias e trêsnoites antes de tocarem o corpo de Cristo.

Os abusos eram de tal modo terríveis que há ainda um outro erro compreensívelque é o de atribuir a actual disciplina do celibato a Inocêncio III no Quarto Concílio deLatrão em 1215. O que Inocêncio fez foi simplesmente usar a sua tremenda autoridadepara conseguir a aceitação de uma doutrina que tinha contra ela toda a tradição. Nuncaconseguiu nada que se parecesse com castidade clerical. Todas as fontescontemporâneas concordam neste ponto. Os padres, sem a disciplina dos laços domatrimónio, tornaram-se quase completamente promíscuos. Tem de ser dito que acastidade dos padres não foi preocupação primeira de Inocêncio como não o fora deGregório VII. Ele queria que um clero não casado fizesse funcionar o sistema clericalabsolutista de Gregório. Os padres que casavam, por mais santos que fossem, nãoeram tão leais ao sistema como os celibatários, fornicadores e adúlteros em grandeescala.

A disciplina do celibato, agora no devido lugar, conduziu na realidade àincontinência. A prova disto está nos escritos de um dos santos reformadores, Bernardode Clairvaux. No ano de 1135 respondia ele à afirmação dos Albigenses de que o

Page 368: Vigde cristo

368

casamento é sórdido, dizendo: «Se se retirar à Igreja um casamento respeitável e umleito nupcial imaculado não será o lugar logo preenchido pela concubinagem, o incesto,a homossexualidade e todo o tipo de sujeiras?

Este argumento aplicava-se com igual força ao celibato do clero. A ortodoxia, maisdo que a heresia, com um falso e forçado ascetismo, encorajou todo o tipo de abusosclericais. Manter concubinas era realmente a maneira menos prejudicial de refrear osapetites sexuais dos padres.

Há provas disto em escala alarmante. Fontes católicas insuspeitas, documentospapais, cartas de santos reformadores, todos pintam o quadro com as mesmas coresnegras. Mosteiros cheios de mulheres; cada frade tinha a sua "Marta", cada freira, o seuamante. Os bispos, pais em todos os sentidos das suas gentes, mantinham haréns e aspoucas almas corajosas que tentavam pôr em prática a disciplina arriscavam-se a serenvenenados ou espancados até à morte. Alexandre IV, numa Bula datada de 1259,lamenta o facto de, em vez de serem corrigidos, os leigos serem corrompidos pelo clero.Em Avinhão, o avaro João XXII permitiu que os padres tivessem amantes contra opagamento de uma taxa. Mesmo os poucos padres castos tinham de pagar para o casode também eles virem a cair nos braços de uma mulher. Era uma cínica aceitação dofacto de que até as ofensas a Deus podiam beneficiar o sistema, só a desobediência àlei canónica é que o minava. «O assunto», diz o exigente Lea, «é repugnante demaispara ser apresentado em todos os seus odiosos pormenores». O clero não tinhaquaisquer escrúpulos em usar o sacramento da penitência para começar e continuar assuas relações imorais. Petrarca, Bocácio, Chaucer, todos eles deram testemunho dadimensão do escândalo. Satirizaram a situação, mas não a exageraram.

Um frade italiano, franciscano errante, de nome Salimbene, escreveu no seu diário:

Vi padres que tinham tabernas… e casas cheias de filhosbastardos e que passavam as noites em pecado e depoiscelebravam missa no dia seguinte… Uma ocasião, quando umfrade franciscano teve de celebrar missa na igreja de certopadre num dia festivo, não tinha outra estola para pôr que nãofosse a cinta da amante do padre com um molho de chavespreso a ela; e quando esse frade, que eu conheço muito bem,se voltava para dizer Dominus Vobiscum, as pessoas ouviam otilintar das chaves.

O celibato nas Ilhas Britânicas

Os padres ingleses acharam que o celibato era uma questão difícil a partir domomento em que Agostinho de Canterbury pisou a sua terra. A Igreja já lá estabelecidanão sabia nada sobre a disciplina de Roma, de tal modo que Gregório se viu obrigado areconhecer que havia clérigos na Grã-Bretanha que «não queriam ficar solteiros». Eautorizou Agostinho a deixá-los casar e a cobrar as suas remuneraçõesseparadamente.

Mais tarde, os melhores esforços de Roma no sentido da reforma mostraram-seinfrutíferos. O velho costume de os bispos fecharem os olhos aos casamentos dospadres continuou. Os padres consideravam os seus “condados confessionais” comopropriedade da família que devia ser transmitida aos filhos e netos.

A lamentável situação do clero explica-se facilmente. Houve tempos em que umterço da população masculina pertencia a ordens religiosas. A maioria dos clérigos mais

Page 369: Vigde cristo

369

ricos era pluralista; tinha vários benefícios eclesiásticos. Arrendavam-nos a capelãesassalariados que tinham de sobreviver com salários de fome. O benefício podia valercinquenta marcos por ano. O pároco procurava encontrar um cura que tomasse contado seu benefício por cinco marcos, embolsando ele próprio o remanescente. Nestascircunstâncias, o cura precisava de uma mulher que o ajudasse a equilibrar oorçamento. Pastoreava o seu rebanho, o das ovelhas com lã, no adro da igreja.Passava os dias metido na água dos rios a pescar e muitas noites na taberna a beber ea vociferar. O Moleiro de Chaucer gabava-se de que a mulher era filha de um padre,mas o clero nem sempre tinha boa reputação. Eram rápidos com os punhos e quandolhes recusavam o benefício eclesiástico de seus pais apoderavam-se dele por meio doincenso e da espada.

«Os padres sabem bem», lia-se num estatuto do século X, «que não têm o direitode casar… Mas alguns deles são culpados de uma prática pior ao terem duas ou maismulheres e outros, embora deixassem as antigas esposas, arranjam depois outras comas primeiras ainda vivas, coisa que nenhum cristão deve fazer, muito menos um padre».Como habitualmente, a tentativa de impor o celibato resultou num clero ainda maispromíscuo do que o laicado.

Um padre justificou a violação de uma paroquiana dizendo que «tinhanecessariamente de experimentar prazer com ela». As suas mãos ociosas tinham de teralguma coisa para fazer.

Lanfranc, o normando que se tornou Arcebispo de Canterbury em 1070, permitiuque muitos padres que tinham casado de consciência limpa mantivessem as esposas,dizendo-lhes que não o voltassem a fazer e avisando os bispos que os futurosordenandos tinham de assumir o compromisso de não casar. Este foi um passo realistanuma terra onde até os bispos eram casados.

Neste aspecto a Inglaterra não era diferente do resto da Cristandade. No Ocidente,do século IV ao século XI, o celibato esteve mergulhado no esquecimento. É ilusóriosugerir que a Igreja Católica sobreviveu por causa do sacerdócio de padres castos ecelibatários. Sobreviveu, sim, por via do sacerdócio de padres incontinentes e namaioria casados. A disciplina do celibato foi quebrada tão frequentemente quanto adisciplina do controle da natalidade é hoje quebrada pelos leigos.

Anselmo, que sucedeu a Lanfranc como Arcebispo de Canterbury, foi mais severo.As esposas foram mandadas embora; os seus maridos-padres só tinham autorizaçãopara as ver ao ar livre e na presença de chaperons. Muitos padres rebelaram-se;trancaram as suas igrejas e recusaram-se a dizer missa ou a administrar ossacramentos. Mesmo em Canterbury, o clero continuou com as esposas. QuandoAnselmo os excomungou, ignoraram o facto. As coisas chegaram a um tal ponto que oPapa Pascal II concordou em abrir mão dos cânones e deixar que os filhos dos padresfossem ordenados, porque caso contrário não teria havido candidatos ao sacerdócio.

Quando os bispos, a instâncias de Roma, começaram a ser mais severos, muitospadres entregaram-se ao incesto ou sentiram que, privados das mulheres legítimas,tinham direito a amantes.

Quando ouviu falar dos ardentes ingleses, o Papa Honório II enviou João, Cardealde Crema, com a missão de combater os abusos. Sua Eminência reuniu o clero decategoria mais elevada e durante a missa denunciou amargamente os comportamentosimpróprios do clero. A sua alocução foi de tal maneira esplendorosa que os padresofereceram um banquete em sua honra. O cardeal saiu discretamente, deixando-os adeliciarem-se com a patuscada e recolheu-se ao quarto para dormir. Pouco depois,alguns representantes do clero inglês irromperam pelo quarto e descobriram que ocardeal não estava a rezar as suas orações. Ao contrário, e na melhor tradição

Page 370: Vigde cristo

370

chauceriana, estava na cama nos braços de uma mulher, sem roupa ou, como escreveuum seu contemporâneo, «nudatus usque ad unguem» («nu até às unhas»). Foi um casoevidente de armadilha medieval. Depois de brindarem ao Prelado de Pele Escarlate e à“fayre ladye” (bela dama) na cama a seu lado, os intrusos deixaram-no em paz. E ele,furtivamente e sem demora, escapuliu-se de Inglaterra.

Quando no ano de 1171 o monge Clarembald se tornou abade-eleito da Abadia deSanto Agostinho em Canterbury, o lugar monástico de maior prestígio em Inglaterra, oPapa Alexandre III, que andara durante algum tempo a tentar infrutiferamente tornar osingleses castos, decidiu jogar pelo seguro. Nomeou três prelados para investigarem asua adequação ao lugar. Estes descobriram que Clarembald tinha dezassete bastardos,só numa aldeia. A sua reputação não era segredo, contudo ninguém de entre os que orodeavam punha em dúvida que era o melhor candidato para o lugar.

Foi no pontificado de Alexandre III que os documentos da Igreja deixaram de sereferir a “esposa” de padre, usando em vez disso “concubina” e “focaria” (companheira).Foram estas damas que o Rei João arrancou da cama do padre a horas mortas duranteo seu conflito com Inocêncio III, exigindo um elevado preço pela sua entrega.

Qualquer que seja o rótulo que lhe ponham, estas focariae eram verdadeirasesposas leais aos padres, considerando que a maioria dos padres em Inglaterra tinhacompanheiras. Fossem quais fossem os castigos que lhes impunha — e por vezesnegava-se a estas mulheres um funeral cristão — a Igreja nunca conseguiu evitar queos padres tivessem companhia de cama e mesa. Só cerca do ano de 1250, apósconcílios gerais e locais, é que o clero finalmente aceitou a realidade do celibato. Apartir de então, reinou a promiscuidade.

Há registos que revelam que muitos homens se tornaram celibatários porque nãoconseguiam manter a castidade. Uma esposa é uma esposa. Um padre podia terquantas mulheres quisesse e muitos tinham-nas.

No ano de 1250, o Bispo Grosseteste, de Lincoln, escreveu ao Papa Inocêncio IV.Dos padres dizia ele: «Eles são de facto professores de heresia, porquanto a acçãopode mais do que a palavra. Foi claro o bastante para culpar a Cúria de todos osproblemas daí resultantes.

Mais tarde, o Papa Inocêncio tentou forçar Lincoln a aceitar o seu próprio sobrinhocomo pretendente. Grosseteste era extremamente papista mas achou que aquilo eraimpróprio, detestável para Cristo e uma ameaça à raça humana. Num belo gesto dedesafio, escreveu ao pontífice: «Como filho obediente que sou, desobedeço, contrario,revolto-me. Vós não podeis tomar medidas contra mim porque todas as minhas palavrase actos não são de rebeldia mas de respeito filial devido por mandamento de Deus aosnossos pai e mãe». Na opinião do Bispo de Lincoln, a lealdade ao papa não era amesma coisa que a lealdade ao Evangelho de Cristo. É de notar que a diocese deLincoln era uma das poucas onde o clero se comportava adequadamente. O bispoesvaziou os presbitérios de mulheres de aspecto suspeito. Quando visitava osconventos, mandava que todas as irmãs espremessem os seios. Precisava de provasconcretas de que não tinham feito nada de impróprio desde a sua última visita.

Nos cento e cinquenta anos seguintes, as coisas pioraram ainda mais. No ano de1414, o Rei Henrique V pediu à Universidade de Oxford para preparar artigos para areforma da Igreja. O artigo 39º começava assim: «Dado que hoje a vida carnal epecaminosa dos padres está a escandalizar toda a Igreja e a sua fornicação continuaimpune…»

Na paróquia de St.John Zachary, em Londres, havia um serviço da igreja muitoespecial. Proporcionava um bordel exclusivamente para padres e monges. Só eramadmitidos homens com tonsura, o círculo rapado no topo da cabeça que representa a

Page 371: Vigde cristo

371

coroa de espinhos de Cristo. As mulheres seleccionadas para este lugar sentiam semdúvida uma vocação especial. Foi nesta altura que surgiu um apelo dos senhores deKent para que os padres licenciosos fossem tratados com firmeza. O ritual daordenação, sugeria-se, devia incluir a castração obrigatória.

Não foi a lei canónica, mas sim a civil que obrigou o clero a uma maior santidade,ou pelo menos maior discrição no seu comportamento. Henrique VII foi instado amandar prender qualquer padre considerado culpado de incontinência.

O Papa Inocêncio VIII autorizou Morton, Arcebispo de Canterbury, a investigar asituação de todos os estabelecimentos religiosos no ano de 1489. O resultado foi, disseInocêncio, que todos esses estabelecimentos estavam mergulhados em iniquidade. AAbadia de St.Alban, por exemplo, não era senão um antro de prostitutas ao serviço dosmonges locais. As freiras eram aí violadas com regularidade e tudo aquilo era, empalavras dignas de Shakespeare, «uma orgia de sémen e sangue».

Henrique VIII, Defensor da Fé, marido de seis mulheres, era também um intrépidocampeão da castidade do clero. Isto pode ter-se devido ao facto de que Henrique talveztivesse vindo a ser padre, se o seu irmão não tivesse morrido. Daí a sua frequenteassistência a cinco missas por dia e a sua dedicação à teologia. Quem sabe se nãoteria acabado como distinto Arcebispo de Canterbury.

No ano de 1535, Henrique, agora furioso com o papa, mandou que ThomasCromwell investigasse a vida monástica. Um dos homens de Cromwell, o Dr.Leighton,visitou a Abadia de Langdon, em Kent. Quando arrombou a porta do abade, encontroueste na cama com a amante. As roupas masculinas da mulher, um disfarce, estavampenduradas num armário. O relatório global dizia que a depravação em 144estabelecimentos religiosos era a mesma de Sodoma; inúmeros conventos, servidos por«confessores lascivos» estavam cheios de crianças; o clero — abades, monges epadres - mantinha relações não só com prostitutas mas também com mulherescasadas. Nada mudara desde a investigação do Arcebispo Morton meio século antes.Depois de receber o dossier de Cromwell e na esteira da excomunhão de Henrique peloPapa Paulo III, o Parlamento começou a suprimir os mosteiros.

Mesmo então, o rei insistia cruelmente que os monges sem convento ou meios desubsistência deviam continuar vinculados ao voto de celibato. Mandou um padre para ocadafalso por ele não abandonar a esposa. Não se sabe muito bem como é queS.Pedro teria entendido isto. Cranmer, o Arcebispo de Canterbury de Henrique, quetinha casado segunda vez secretamente, mandou a esposa para a Alemanha, não fosseo rei zangar-se.

O entusiasmo de Henrique VIII pelo celibato passou para ambas as filhas.Para Maria a Sangrenta, católica, padres casados soava a heresia. Demitidos

sumariamente e proibidos de coabitar com as esposas legítimas, ficaram uma vez maislimitados à secreta concubinagem e promiscuidade.

Quando Maria morreu em 1558, Isabel, a Rainha Virgem, protestante, tambémachou que os padres casados não eram do seu agrado. Apesar de ter feito do seu tutorcasado, Parker, Arcebispo de Canterbury, fez os possíveis por fazer saber que nãodesejava falar com a sua esposa.

Por fim viu-se quase obrigada a tolerar os casamentos do clero por causa daReforma mas atribuiu-os à fraqueza da carne. Além disso, as noivas dos padres tinhamde ser sujeitas a rigoroso exame por um bispo e dois juizes de paz para garantir quefossem adequadas para os cavalheiros da sotaina. Com os Trinta e Nove Artigos o cleroda Igreja de Inglaterra ganhou finalmente respeitabilidade. «Portanto, para eles, comopara todos os outros homens cristãos é legítimo casar à sua vontade, conforme julguem

Page 372: Vigde cristo

372

que melhor possam servir a piedade». Não que Isabel, mesmo na morte, suportasse aideia de receber sacramentos de um padre casado. Provavelmente muitos clérigostambém não achavam menos oneroso ter uma mulher como Chefe Supremo da Igrejade Inglaterra.

A Inglaterra não estava sozinha na estrénua oposição popular ao celibato clerical.St.Patrick encontrou uma grande obstinação na céltica Irlanda. Já ficava satisfeito se umbispo tivesse uma só mulher e um único filho. Esta era a sua interpretação de S.Paulo.Um único filho, deve ter ele concluído, pode um bispo manter sob controle, dando assimaos seus diocesanos um bom exemplo de disciplina familiar. Patrick não sentia omínimo embaraço pelo facto de pertencer a uma família muito religiosa. Na sua obraConfessions conta que o seu bisavô fora diácono, o avô, padre e o pai, Calfornio,diácono. Mas se os antepassados de Patrick não tivessem tido relações sexuais com asesposas não teria havido um St.Patrick, nem conversão da Irlanda.

Depois de Patrick, houve bispos casados na Irlanda até ao século XII, altura em queSt.Malachy foi ordenado por Celso, Arcebispo de Armagh. Segundo S.Bernardo,biógrafo de Malaquias, oito antecessores de Celso na sé primacial eram homenscasados.

Os galeses andaram melhor do que os irlandeses. Os autores galeses têm orgulhono facto de o celibato nunca se ter enraizado no País de Gales. Como escreveu J. M.Willis Bund em The Celtic Church in Wales, «O clero galês é o único corpo clerical quesempre, desde o princípio ao fim, afirmou e manteve o seu direito a casar… Quando oresto da Europa se comprometia, por princípio, ao celibato, mas o amenizava com aprática da fornicação, o clero galês continuava sozinho na defesa do direito, direitoabsoluto, de os padres casarem».

Gerard, Arcediago de Brecon no século XIII, é o principal historiador desse período.Como confidente de Inocêncio III e homem sedento de promoções, refere-se sempre àsesposas dos padres como amantes. Todos os cónegos da Catedral de S.David, diz ele,eram conhecidos fornicadores e dados à concubinagem, mesmo dentro do recinto dacatedral. Tomavam rigorosas providências para que os filhos tomassem o seu lugarquando eles resignassem. Como escreveu James Conway Davis, «O sistema desucessão prevalecia não só nas catedrais mas em todo o clero e povo do País deGales. E este abuso não acontecia só no País de Gales. Todo o clero, inglês e galês,que foi para a Irlanda era incontinente».

Segundo Gerard, as abadias estavam cheias de mulheres felizes e criançasrisonhas. A maioria das paróquias pertencia a famílias, de modo que uma paróquiapodia ter dois reitores, um, padre e o outro, leigo. Os bispos eram enterrados junto dasmulheres. Quanto aos presbitérios, não eram propriamente paraísos de paz e de retiro.«As casas e os lares dos párocos», escreveu Gerard, «estão cheias de donas de casamandonas, berços a ranger, recém-nascidos e fedelhos a berrar».

Apesar de todo o seu aparente azedume, Gerard pôs em causa a sensatez docelibato. Salientou que o casamento não era originalmente proibido aos padres. Masnão é verdade que o padre é casado com a Igreja? — perguntavam-lhe. Como é quepodia casar com uma mulher? Isso é um disparate, respondia ele. A Igreja é a Esposade Cristo e não a esposa de um padre. No livro de Gerard Gemma Ecclesiasticaaparece um soberbo aforismo que ele atribui ao papa Alexandre III: «O papa privou ospadres de filhos e o diabo mandou-lhes sobrinhos!»

O clero galês continuou a casar até à Reforma, altura em que o seu estilo de vidadeixou de ser ditado por Roma.

Page 373: Vigde cristo

373

* * *

Os escoceses tiveram muito menos mérito do que os galeses na sua oposição àregra do celibato. O comportamento do clero escocês anterior à Reforma foi ultrajante.A podridão assentara arraiais muito tempo antes.

O Rei Jaime IV tinha recebido autorização de Roma para nomear quem elequisesse para a sé de St.Andrews. Primeiro nomeou o irmão como arcebispo, masquando este morreu substituiu-o pelo seu filho bastardo de nove anos, AlexandreStewart.

Quando o rei morreu em Flodden Field em 9 de Setembro de 1513, deixou um filhode um ano de idade que lhe sucedeu como Rei Jaime V. Quando fez vinte anos, JaimeV escreveu ao Papa Clemente VII. O rei escocês já então tinha três filhos ilegítimos.Queria saber de Sua Santidade se os seus bastardos podiam ser dispensados dailegitimidade de modo a poderem exercer futuramente o sacerdócio na Igreja. Clementeconcordou desde que nenhum dos rapazes fosse feito bispo antes de atingir os vinteanos. Jaime agradeceu ao pontífice e procedeu à distribuição pelos seus bastardos dealgumas das principais abadias da Escócia, incluindo Kelso e Melrose, St.Andrews eHolyrood.

Pode-se avaliar o grau de decadência do clero examinando o Register of the GreatSeal referente aos anos que decorreram entre 1529 e 1559. Era costume os senhoresmandarem legalizar os seus bastardos para lhes permitir a sucessão. No Registoestavam representadas todas as categorias do clero, desde o cardeal ao cura. Doregisto constavam dez bispos, ainda mais vigários e muitos mais capelães.

Daqui emerge uma curiosa estatística: num país com uma população de 900.000pessoas, havia 3.000 clérigos; e dois em cada cinco bastardos eram filhos de clérigos.O retrato do padre como «um S.João borracho e sem latim» era muito exacto.

O mais notável de todos os clérigos foi David, o Cardeal Beaton. Foi Chanceler daEscócia e depois de 1538 Arcebispo de St.Andrews e Primaz da Escócia. Era viúvo etoda a gente sabia que nunca perdera «o talento que Deus lhe deu».

Na cerimónia de entronização de Beaton nos fins do verão de 1539, o ArcebispoHay fez um corajoso discurso, o Panegyricus:

Pergunto-me muitas vezes em que é que os bispos estavam apensar quando admitiram tais homens para lidar com o sagradocorpo do Senhor, homens que mal sabiam o alfabeto. Hápadres que chegam àquela mesa celestial mal refeitos ainda dodeboche da véspera… Não vou falar da vida licenciosadaqueles que, professando a castidade, inventaram novasformas de prazer que eu prefiro continuem desconhecidos a sereu a dá-los a conhecer.

Ao escutar isto, Sua Eminência deve ter-se lembrado de que sete anos antes três dosseus filhos tinham sido legalizados: David, Elisabeth e Margaret. E já planeava pedir aoseu soberano Jaime V para legitimar outras produtos seus, incluindo Jaime, Alexandre eJoão. Estavam todos descritos nas listas oficiais como «bastardos do Arcebispo deSt.Andrews». Os historiadores não têm a certeza de quantos bastardos ele tinha, maspossivelmente onze filhos e quatro filhas.

John Knox, o Reformador, chamou-lhe aquele «Cardeal carnal» e falava da «Graçado Cardeal sem graça». Este prelado com a sua prodigiosa ninhada casou com grandepompa uma das suas filhas com o Conde de Crawford em 1546, chamando-lhe «minha

Page 374: Vigde cristo

374

filha» durante a cerimónia. O mesmo homem que foi capaz de mandar para a fogueiraum herege por ter comido um ovo durante a Quaresma.

Não surpreende que o Calvinismo fosse saudado na Escócia como uma lufada dear fresco. Os escoceses estavam fartos de «Papistas pestilentos e de papa-missas», de«putanheiros adúlteros» e «frades insolentes». Quando um pastor calvinista era expulsopor adultério, era mesmo expulso.

Na Europa Continental

Do outro lado do Canal da Mancha, em França, os bispos acharam bastante difícilfazer com que os padres usassem os paramentos no altar; e provavelmente seria muitodifícil fazê-los obedecer aos regulamentos relativos à cama. Gerson, um místico,chanceler da Universidade de Paris, recomendava a concubinagem como o menor dedois males. Era um conselho fruto do desespero face às esmagadoras disparidades.

Do outro lado da fronteira, na Bélgica, vivia Henrique, Bispo de Liège. Este homemfoi uma lenda durante a vida e depois da morte. Henrique acabou por ser deposto porGregório X no Concílio de Lyons em 1274 «por desflorar virgens e por outras enormesproezas». Teve sessenta e cinco filhos de muitas amantes, várias das quais eramfreiras, o que era um pouco excessivo para um prelado mesmo naquele tempo. Acabouassassinado por um cavaleiro flamengo que se sentiu ultrajado com aquilo que o bispofizera à filha.

Na Alemanha, onde a Reforma primeiro se enraizou, as provas dos abusos do clerosão vergonhosas. No século XV, Busch, um monge, foi nomeado inspector papal dascasas clericais e dos mosteiros. Encontrou abades que não sabiam ler nem escrever, enem tinham a noção do bem e do mal. Quando Busch tentou limpar as paróquias depadres indignos, compreendeu que isso significaria o fim da vida sacramental. Umcavaleiro veio ter com Busch e disse:

Vós decretastes que os párocos devem despedir as suascriadas e concubinas. Mas há duas ou três paróquias dasminhas terras em Meissen donde os párocos saíramjuntamente com as suas amantes deixando as igrejas sempadre: portanto, os paroquianos ficaram sem missa nemsermão, bem como sem outros serviços e andam comopagãos, quase sem Deus. Era melhor que vós lhes tolerásseisas amantes do que deixar que as pessoas se tornem bárbaras.

Desde que o celibato se tornou obrigatório, sempre a Igreja teve de fazer umaescolha nua e crua entre um clero "imoral" e clero nenhum. Como disse PeterComester, «Nunca o demónio causou tantos danos à Igreja como quando a própriaIgreja adoptou o voto de celibato». Três séculos mais tarde, Martinho Lutero concordoucom ele e não apenas por o clero em grande escala não se comportar devidamente.Lutero viu o perigo de se dizer que o celibato é «o caminho para a perfeição». Istosignificava que o casamento é um estado de imperfeição. Era uma negaçãofundamental do Evangelho. A todos os homens e mulheres, disse ele, se exige quesejam perfeitos e não apenas celibatários. A todos se exige que sejam cristãos e nãomeio-cristãos, meio-pagãos. A sua afirmação evangélica parecia revolucionária à época:fosse qual fosse a situação da vida em que se encontrasse, a uma pessoa exige-se que

Page 375: Vigde cristo

375

seja perfeita, quer seja oleiro quer seja padre. Ao mais humilde carpinteiro exige-se amesma perfeição que se exige ao papa.

A rebelião de Lutero era um ataque não só contra os abusos do celibato mastambém contra o próprio celibato como instituição que deturpava o Evangelho edespromovia os leigos. Os abusos eram a consequência inevitável da sua concepçãoerrada. Os benefícios da intervenção de Lutero foram imediatos. Segundo OwenChadwick, «Fazer da amante uma esposa respeitável, fazer dos bastardos filhosrespeitáveis foi a simples dádiva concedida ao clero pelo Protestantismo. Para além deconsiderações mais elevadas, dizia-se que, antes do seu casamento com Catarina vonBora, a cama de Lutero não tinha sido feita durante um ano».

O cadastro da Espanha relativo ao celibato não era melhor do que o da Alemanha.Desde que ficou fora dos trilhos da Europa, dividida internamente e sujeita às invasõesdos mouros, o papado começou a tratar tendencialmente a Espanha como um casoespecial. Até ao ano de 1130 apenas há uma referência em documentos papais aocelibato na região e que foi para dizer que os padres deviam ser deixados em paz comas suas esposas. O caso do abade de Santo Pelayo de Antealtaria foi a prova de queera difícil lidar com o clero espanhol. Criticado abertamente pelo seu Arcebispo em pelomenos sete ocasiões pela sua imoralidade, foi finalmente levado a julgamento em 1130.Testemunhas idóneas declararam que ele tinha setenta amantes. Por este verdadeirotesouro salomónico de feminilidade, o abade foi deposto e como castigo recebeu umbenefício em terras da abadia para o seu sustento e das suas boas damas e, semdúvida, da sua numerosa prole. Até Espanha pode seguir-se o rasto do sensatocostume de os leigos insistirem para que os seus párocos arranjassem uma companhiafeminina antes de fixarem residência.

Claro que o exemplo de Roma, como vimos na Primeira Parte, era o pior de todos.A Pouco-Santa Sé

O papado, que impôs o celibato contra a sabedoria da Igreja primitiva e contra ajustiça natural, foi muitas vezes o pior infractor. O Reino das Prostitutas do século X, acompleta corrupção do papado durante o exílio em Avinhão, a pura desgraça do GrandeCisma tiveram correspondência em todos os períodos. O registo é absolutamenteconsistente. Nem os papas reformadores conseguiram limpar a sua Cúria. Já vimoscomo em 1250 o Cardeal Hugo agradeceu a Lyons a hospitalidade dispensada à Cúria.Mas a Cúria também tinha sido generosa. Quando chegaram a Lyon só aí encontraramtrês ou quatro prostitutas, mas deixaram lá um enorme bordel.

Não foi apenas a vida extravagante de libertinos como Sisto IV, Inocêncio VIII eAlexandre Bórgia que causou danos. A Igreja sofreu com a recusa de papas maiscastos em reformarem a Igreja de acordo com as exigências dos Concílios deConstança e Basle.

O clero era tão prolífico como o laicado, mas os papas diziam que não podiam fazernada. Inocêncio VIII dissuadiu o seu vigário de tentar fazer uma limpeza em Romaporque a imoralidade entre o clero era endémica. Durante o reinado do Bórgia o fradeflorentino Savanarola disse que as freiras eram piores que prostitutas. Quanto ao clero,«o padre passa uma noite com a amante, outra com um rapazinho e de manhã vai parao altar para celebrar missa. O que é que se pode pensar disto? Como é que se podeinterpretar esta misturada?»

A comissão de nove prelados do Papa Paulo III, chefiada pelo Cardeal Carafa, diziaem relatório de 1535:

Page 376: Vigde cristo

376

Nesta Roma, as prostitutas passeiam-se pela cidade comomulheres casadas, ou cavalgam nas suas mulas, seguidasdesde o coração da cidade por nobres e clérigos da casa doCardeal. Em cidade nenhuma vimos tal corrupção, exceptonesta [que devia ser] um exemplo para todas.

O mal estava fundo demais para ser arrancado pela raiz; as derradeiras oportunidadespara reformar há muito que tinham passado. Guicciardini, nas suas obras nãopublicadas, disse: «Nunca é demais o mal que se pode dizer da Cúria Romana, mas elamerece ainda mais, porque é infame, é um exemplo de tudo o que há de vicioso e mauno mundo». Com a Reforma a esboçar-se, um bispo dos Estados Papais como Chiaride Foligno descobriu que só dois padres da sua diocese sabiam as palavras deabsolvição. Isso não importava; como as suas vidas eram tão pouco castas ninguém iriater com eles para se confessar. «A culpa», disse Chiari, «é dos bispos e dos párocos,porque toda a nossa vida é uma contínua pregação da descrença». Havia um provérbioque passava de boca em boca: «A profissão do padre é o caminho mais seguro para oinferno». Um homem honesto como o Papa Adriano VI admitia isto com toda afranqueza.

Quando a Reforma atacou, foi o celibato do clero que a provocou, tanto como oescândalo das indulgências. Na Alemanha, muitos padres compreenderam que só porvia do casamento é que podiam ganhar a liberdade evangélica, senão mesmo aliberdade humana que o sistema lhes negava. Casando, os Reformadores tinham aconvicção de que não estavam a ser dissolutos. Estavam simplesmente a restaurar avelha tradição e a dar ao casamento o respeito que lhe era devido. O celibato, decidirameles, tinha causado danos demais à Igreja para que devesse continuar. Os leigosconcordavam com eles.

Em desespero, mas tarde demais, o papado tentou medidas espirituais.O Concílio de Trento reuniu finalmente em Novembro de 1542. Poucos bispos

apareceram e o concílio foi interrompido e voltou a reunir dois anos e meio depois. Eprolongou-se por mais de vinte anos entre interrupções e recomeços.

Cerca do ano de 1560, o Imperador Fernando pedia ao papa que permitisse que oclero casasse, única maneira de se comportar adequadamente. «Porque embora toda acarne fosse corrupta», escreveu ele, «a corrupção do clero é a pior de todas».

O Duque de Cleves, soberano de três populosos ducados, contava que não deviahaver cinco padres em todo o seu território a viver sem uma amante.

O imperador juntou-se ao determinado duque católico da Baviera pedindo aoConcílio de Trento que, para bem do laicado, libertasse a Igreja do celibato obrigatório.Os escândalos eram já insuportáveis. Muitos patronos de benefícios eclesiásticos,disseram eles ao Concílio, estavam a recusar liminarmente aceitar clérigos semesposas, porque isso era demasiado perigoso para os seus rebanhos. A Igreja podiasofrer a perda de alguns bens em resultado do facto de os clérigos legarem coisas aosfilhos; isto tinha de ser sopesado com a perda maior que era a das almas sob adisciplina prevalecente.

Nada disto teve qualquer efeito. O Concílio estava completamente dominado porRoma. Como disse o Padre Sarpi, o Espírito Santo foi a Trento dentro de uma

mala feita em Roma.A principal razão para manter esta disciplina era aquela que era a mais cara ao

coração de Gregório VII: um padre celibatário devia total fidelidade não à mulher e aosfilhos mas à instituição. Era uma criatura da instituição. O sistema romano eraabsolutista e hierárquico. Para que um tal sistema funcionasse, eram precisos

Page 377: Vigde cristo

377

operacionais completamente às ordens dos superiores. Os conservadores do Concíliode Trento foram muito claros acerca disto. Na verdade disseram que sem o celibato opapa não seria mais do que o Bispo de Roma. Em resumo, o sistema papal ruiria sem afidelidade incondicional do clero; só o celibato podia garantir esse tipo de fidelidade. Ocelibato, como o próprio Concílio admitiu, não era nem nunca foi primordialmente umaquestão de castidade mas sim de controle. Os clérigos eram as abelhas obreiras quefaziam funcionar a colmeia. Longe de ser a primeira e mais importante maneira de servira Deus em liberdade, o Concílio de Trento disse que era uma maneira de servir ainstituição por via da obrigatoriedade. Uma vez ordenado, o padre ficava prisioneiro dosistema. Se viesse a revelar-se desleal, não poderia funcionar, mesmo como serhumano normal, casando. A Igreja retirou-lhe esse direito natural quando lhe disse: «Tués padre para sempre de acordo com a ordem de Melchisedech».

O Concílio de Trento, contrariamente aos primeiros mais de mil anos de tradição,disse que afirmar que os padres, monges e freiras podiam contrair um casamento válidoera contra a fé. Deus não negaria o dom da castidade àqueles que o pedissem. Maisainda, o estado de celibatário era mais elevado do que o estado de casado. Em 11 deNovembro de 1563 o Concílio decretou solenemente:

Se alguém disser que o estado de casado deve ser colocadoacima do estado de virgindade ou de celibato e que não émelhor nem mais abençoado ficar virgem e celibatário do queunido pelo matrimónio que seja anatemizado.

Esta foi a última machadada na santidade do matrimónio dada por um clero celibatário.Numa altura em que o celibato do clero era um escândalo de tal ordem que fazia comque as pessoas tivessem vergonha de serem católicas, o Concílio proclamava o celibatocomo a jóia da coroa. Quando as feridas do Cristianismo precisavam de bálsamo, osbispos, instados por Roma, regaram-nas com vinagre. O Concílio de Trento deixou claroque representava a confrontação e não a conciliação.

Assim, e estranhamente, o celibato, que tinha provocado a Reforma, tornava-seagora o porta-estandarte da Contra-Reforma Católica, prova de que o Catolicismo nãoia ceder um centímetro aos Protestantes. Estes eram marginais, hereges e de modonenhum reformadores. O que Roma exigia deles era a imediata obediência à Santa Sée a renúncia à sua louca defesa de um clero casado.

O Concílio de Trento não apresentou razões para dizer que os celibatários nãopodiam contrair um casamento válido. O Concílio não explicou por que razão estavapronto a condenar não só os Protestantes, mas também a maioria das gerações decatólicos que davam como adquirido que qualquer casamento entre duas pessoas eraválido à luz da lei natural, mesmo que tivessem ordens. O Concílio tinha sobretudosemeado ventos ao definir o celibato como superior ao casamento. O Concílio declarouque só os celibatários tinham escolhido a parte melhor e estavam em «estado deperfeição». Era uma consolação para os homens que eram celibatários por obrigaçãodizerem-lhes que eram os únicos cristãos verdadeiros da Igreja. Mas o que é queS.Pedro teria pensado disto? E o que é que os padres nos anos futuros pensariamdisto?

A maior contribuição do Concílio de Trento para melhorar o comportamento do clerofoi o estabelecimento de regras rigorosas para a sua formação. Os seminários não sóconsolidaram a doutrina da Igreja, mas também ajudaram a criar uma imagem dedecoro entre o clero. Pela primeira vez, o clero era formado em “fábricas de padres”.

Page 378: Vigde cristo

378

Isto era uma faca de dois gumes. Já não podiam passar sem o conhecimento doalfabeto; recebiam uma formação teológica mínima e um regime que os preparava parao ministério. Por outro lado, ficavam mais do que nunca isolados da vida e daspreocupações do laicado. Mais preparados para servir a instituição mas alheios à vidadas pessoas.

À parte os benefícios dos seminários, o advento do estado secular significou que oclero se viu obrigado a adaptar-se, pelo menos exteriormente, aos padrões dasociedade. Os padres já não eram a própria lei, dotados com o privilégio do clero. Osseus crimes já não passavam dos tribunais civis para os tribunais eclesiásticos, quesabiam bem como proteger os seus e esconder as suas más condutas. As penas civiscontribuíram para reprimir as indecências, o que a lei canónica não conseguira fazerdurante mais de mil anos.

Mas o Concílio de Trento não produziu efeitos imediatos. Já corria o ano de 1616quando o Arcebispo de Salzburgo afirmou que já ficaria satisfeito se os seus padresmantivessem as suas concubinas e os seus rebentos para lá de uma zona de exclusãode dez quilómetros. Mais surpreendentemente ainda, já em pleno século XVIIcontinuavam a eleger-se papas de reputação duvidosa.

Gregório XV, que ascendeu ao pontificado em 1621, teve o mérito de se manter fielà dama de cujos favores gozara enquanto cardeal.

Inocêncio X, durante um reinado que começou em 1644, não podia ter sido maisíntimo da viúva de seu irmão, Donna Olympia, que oferecia recepções em nome dele,assinava decretos papais e era a Primeira Dama em tudo menos no nome. Até vendiabenefícios eclesiásticos e concedia promoções dentro da Igreja. Em Florença foicunhada uma medalha que mostra, numa das faces, Olympia envergando o mantopapal e no reverso Inocêncio X com uma touca branca junto de uma roca. Quando oseu auxiliar, Cardeal Pencirillo, alertou Sua Santidade para o escândalo que estava aprovocar, Inocêncio fez todos os possíveis para passar sem ela, mas concluiu que elalhe era indispensável. Nas últimas semanas da sua vida, ela nunca deixou de estar aseu lado. Em 1655, com oitenta anos, Inocêncio expirou nos seus braços.

Os pecados do confessionário

E teria a regra do celibato conseguido produzir finalmente um clero casto?Considerando o secretismo da Igreja Romana pós-Reforma haverá alguma

possibilidade de descobrir o estado da moralidade do clero?Com um trabalho de investigação notável, Lea conseguiu lançar alguma luz sobre o

mais sombrio dos aspectos do celibato: o confessionário.O Quarto Concílio de Latrão em 1215 decretou que os leigos tinham

obrigatoriamente de se confessar anualmente aos seus párocos. Isto passou-se nomesmo concílio em que Inocêncio III deu ao celibato a sua forma final. A combinaçãodestas duas regras havia de revelar-se prejudicial para a moral tanto do clero como dosleigos. Conduziu ao pecado conhecido na lei canónica como "solicitação"∗, isto é, um

∗ O substantivo solicitação e o verbo solicitar têm aqui e ao longo de todo este capítulo o sentido que lhes éatribuído no direito canónico. Na Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura (Editorial Verbo) pode ler-se o seguinterelativamente à palavra solicitação: «DIR. CAN. — A Igreja, desejosa de preservar a santidade do sacramento daPenitência, pune com graves penas o confessor que no acto da confissão ou em relação com ele provoque oconfessado ou o incite a algum pecado desonesto com ele ou com outrem. A pessoa solicitada tem obrigação de, noprazo de um mês, denunciar o solicitante ao Ordinário do lugar ou à Congregação para a Doutrina da Fé (antigoSanto Ofício), sob pena de incorrer em excomunhão, de que só pode ser absolvida antes de cumprir esta obrigaçãoou de prometer que o fará logo que lhe for possível». (N.T.)

Page 379: Vigde cristo

379

padre servir-se da confissão para fins imorais. Claro que a Igreja impôs castigos. Eestes tornaram-se cada vez mais severos, mas não há provas de que estes tenhamfeito baixar a frequência com que os padres tiravam partido da sua situação paraseduzir as penitentes.

Os abusos do confessionário estavam de tal modo espalhados que os leigos foramavisados de que se o seu pároco tivesse má reputação ficavam dispensados de lheconfessar os seus pecados carnais. A privacidade do confessionário proporcionava aoclero acesso imediato às mulheres no seu ponto mais vulnerável, isto é, quando eramobrigadas pela lei canónica a confessar todos os seus pensamentos, actos e desejosimpuros. Se, por exemplo, uma mulher confessasse fornicação ou adultério, o padretornava as coisas muito piores quando a solicitava. Mas ela não tinha interesse nenhumem levar isto para fora do confessionário. Não queria correr o risco de perder a suareputação.

Convém recordar que depois de Inocêncio III, e durante séculos, os penitentes seconfessavam ou sentados junto do padre ou de joelhos a seus pés. O confessionário,que agora é um móvel sempre presente nas igrejas, só foi inventado nos meados doséculo XVI. Só a partir de 1614 é que o Ritual Romano o tornou obrigatório. Mesmoentão o seu uso não estava generalizado. Em Espanha utilizaram-se muitos substitutosad hoc. Podia ser um gradeamento que separava o padre do penitente ou um lenço, ouuma espécie de peneira, ou um pequeno ramo de árvore ou um leque. Na escuridão eisolamento de uma igreja e nestas circunstâncias reinava a solicitação. A confissão eraassim, muitas vezes, um meio pelo qual o clero corrompia as mulheres e iludia asexigências do celibato.

Sempre que um padre era denunciado por um penitente, o tribunal eclesiástico faziaum enorme esforço para usar de clemência para com ele. Em Fevereiro de 1535 opároco de Almodovar foi acusado de numerosas ofensas sexuais, incluindo a frequênciade bordéis e a solicitação no confessionário. Recusara-se a dar a absolvição a umajovem enquanto ela não consentisse fazer sexo com ele. Foi condenado a pagar umapequena multa e a ficar retido em casa durante trinta dias. Depois ficou certamente livrepara continuar como antes.

Os Tribunais Episcopais tinham-se tornado tão brandos que a Inquisição quissubstituí-los. Paulo IV decidiu que a solicitação implicava heresia; com isto conseguiuconceder à Inquisição aquilo que ela queria. Esta decisão provava que a Igreja estavamais interessada na integridade da confissão do que na integridade das mulheres. Comtodas as subsequentes violações do sacramento, a principal preocupação dosinquisidores era a de que o sacramento, e não as mulheres, é que tinha sido ofendido.Por exemplo, se um padre conseguisse mostrar que, embora tendo seduzido umamulher, o fizera no seu quarto e que o facto não tinha qualquer relação com a confissão,era ilibado.

Os moralistas tornaram as coisas ainda piores com a casuística. Em que é queconsiste a solicitação? — perguntavam eles. Será que tocar com as mãos, fazer o "jogode pés", acariciar os seios de uma mulher, ou o passar-lhe cartas de amor constituisolicitação? E até que ponto é que a linguagem tinha de ser lasciva para constituir umaquestão grave? Alguns moralistas espanhóis chegaram à conclusão de que se umamulher desmaiasse durante a confissão e o padre aproveitasse a oportunidade para aviolar, isto não constituía tecnicamente solicitação. A mulher não estava claramente emcondições de reagir. Os padres consultavam livros de teologia moral não para setornarem melhores confessores mas para aprenderem a maneira de manipularem asmulheres durante a confissão sem incorrerem nas penas da lei canónica.

Page 380: Vigde cristo

380

Os papas, um após outro, foram tornando a legislação cada vez mais rígida,fazendo com que as penas fossem cada vez mais severas. Por exemplo, a "cúmplice"de um padre estava proibida de se confessar a ele. Se ele a absolvesse dos pecadoscometidos consigo próprio, era automaticamente excomungado e a absolvição por eledada considerada inválida. O número de padres denunciados não diminuiu de maneiranenhuma.

Os papas mobilizaram os mais inteligentes especialistas em direito canónico paracolmatarem as brechas que os padres continuavam a descobrir nas regras. O penitente,por exemplo, era obrigado a denunciar qualquer confessor que o ou a solicitasse. Masera difícil provar; era a palavra do penitente contra a do confessor e não haviatestemunhas. A Igreja tinha dotado o clero de uma maneira quase infalível de tentaraqueles que tinham a obrigação de lhes confessar a sua incontinência. As penitentesofendidas pouca esperança tinham de que lhes fosse feita justiça. A ratoeira era quemuitas vezes elas tinham de se acusar a si próprias diante de dois inquisidoresmasculinos que pertenciam ao mesmo grupo de élite dos padres que estavam adenunciar. Seja como for, numa pequena vila ou aldeia podia manter-se alguma coisaem segredo?

Lea conseguiu acesso aos arquivos diocesanos de Espanha. Numa investigaçãocuidadosa aos documentos da Inquisição e com a habitual profundidade, fez um grandenúmero de descobertas. Entre 1723 e 1820, ano em que a Inquisição finalmente faliu,foram 3.775 os casos que mereceram a atenção das autoridades. Destes, só 981 é quenão envolviam padres de ordens religiosas, isto é, monges e frades. Outro factoinesperado: uma grande proporção dos indiciados tinha cargos superiores. Eramprovinciais, guardiões, ministros, priores e reitores. Parece que era uma prerrogativa deofício estar em situação de solicitar mulheres.

Os números não são apenas elevados, são também desconcertantes por outrasrazões.

Em primeiro lugar, Benedito XIV, em 1 de Junho de 1741, tinha feito sair umaConstituição, Sacramentum Poenitenciae, que continha as mais severas penas desempre para a solicitação. Um padre que fosse culpado era suspenso de celebrar missae de fazer confissões; eram-lhe retirados os títulos e privado do seu benefícioeclesiástico. Isto e o carácter sagrado do confessionário deviam ter tornado a solicitaçãoum tabu. Mas não foi assim claramente. Considerando o elevado número de casosrelatados, o montante dos comportamentos impróprios dentro e fora do confessionárioultrapassa a imaginação. Mulheres leigas visitavam muitas vezes os presbitérios; ospadres visitavam mulheres leigas nas suas casas enquanto os maridos estavam atrabalhar. Por que é que os padres precisavam de arriscar o seu meio de subsistênciano confessionário, a não ser porque a tentação se revelava demasiada para eles? Arazão por que a solicitação era mais frequente entre os religiosos do que entre ospadres seculares é atribuída por Lea a uma questão económica. Os padres secularestinham mais dinheiro disponível para pagar a consolação feminina fora das zonas deperigo; os religiosos tinham de fazer os seus "engates" quando e onde podiam.

Outra das razões do espantoso número de solicitações é que as mulheresespanholas devem ter achado muito difícil acusar um padre. O padre era santo deprofissão. Quem eram elas para pôr em causa a sua integridade publicamente? Alémdisso, devem ter pensado que o seu caso era único. Afinal, as autoridades semprecalavam os pecados do clero; era mau para o seu moral. Isto também explica em partea clemência das penas impostas aos padres. Enquanto que tratava os Judeus e osProtestantes com severidade sem paralelo, a Inquisição tendia a mostrar misericórdia

Page 381: Vigde cristo

381

para com os seus. Uma mulher solicitada, pensando que o seu caso era único, eratentada a não contar a ninguém, nem sequer ao marido ou ao amante. Se de factodenunciasse o seu confessor, a sua reputação é que necessariamente iria sofrer. Eramuito melhor levar a obscenidade do padre à conta de um lapso lamentável que não seatreveria a repetir. Até há pouco tempo as mulheres ocidentais adoptavam a mesmaatitude quando eram violadas. Tinham grande relutância em relatar o caso à polícia comreceio de que não as acreditassem ou que as acusassem de querer ser violadas.

Os casos relatados com escrupuloso pormenor pelas equipas de investigadores daprópria Igreja revelam todos os tipos de desvios sexuais. Alguns padres solicitavam emgrande escala. Meterem-se com dez penitentes não era invulgar. Solicitavam freiras, etambém crianças, homens e rapazes.

Há numerosos exemplos de confessores que agiam como flagellante; mandavam aspenitentes tirar as roupas para as poderem chicotear como mereciam. Por vezesconfessor e penitente despiam-se ambos e chicoteavam-se mutuamente. Os padreseram às vezes acusados de serem "solicitante y flagellante". Um padre de Yepes fezsexo com nove irmãs do convento de Bernardine; elas chicoteavam-se à sua vista,aplicando o chicote nas partes pecadoras. Aquilo que os homens de negócio hojepagam generosamente tinham-no os padres espanhóis de graça no confessionário. Umpormenor intrigante: embora o clero fosse muitas vezes considerado culpado desolicitação no confessionário, não há qualquer exemplo de igreja que tivesse sidoreconsagrada, como a lei canónica exigia quando ocorriam comportamentos sexuaisimpróprios e havia derrame de sémen. Se os cânones fossem tidos em conta, teriahavido igrejas regularmente carecidas de bênção episcopal.

Alguns dos padres acusados de ofensas sexuais eram de idade avançada. Umpadre de Toledo, denunciado em 1734, tinha setenta e oito anos. Outro, de Cuenca, em1786, tinha oitenta. Estavam provavelmente a chegar ao fim de uma longa carreira desolicitação.

* * *

Não seria justo sugerir que os padres espanhóis, apesar do seu cadastro, erampiores do que o clero de outros países. Esta ofensa deliberada ao sacramento é,contudo, a prova, se provas fossem necessárias, de que muitos padres eram obrigadosa viver uma vida antinatural. Provavelmente eram bem intencionados quando seofereciam para serem ordenados. Se se corrompiam era porque um celibato obrigatórioos corrompia. Eram eles as primeiras vítimas de um sistema papal que ignorava o avisodo apóstolo: «É preferível casar a arder [de paixão]».

Segundo Lea, «só uma pequena proporção de infractores eram denunciados edestes apenas uma fracção era levada a julgamento… A tensão do confessionário édemasiada para a natureza humana média e o máximo que a Igreja, nos seusregulamentos mais recentes, pode fazer é manter os fiéis na ignorância dos seus erroscarnais».

Os padres são educados desde os dezoito e às vezes dez anos de idade afastadosde qualquer contacto com raparigas ou mulheres. O sexo é-lhes vedado, mesmo empensamento ou imaginação. Todo o instinto sexual tem de ser reprimido por serperigoso para o celibato. Mal são ordenados, estes homens ainda jovens e, na maioriados casos inocentes, são obrigados a ouvir no segredo do confessionário as descriçõesmais chocantes de actividades e desvios sexuais. Todos os pecados sexuais, emnúmero e espécie, têm de lhe ser sussurrados ao ouvido. Mulheres jovens contam-lhesos seus pensamentos, actos e desejos mais íntimos, por vezes em situação de

Page 382: Vigde cristo

382

proximidade. Por meio da confissão, um padre com inclinações homossexuais podedescobrir quem são os membros da comunidade gay. Do ponto de vista do padre, osistema parece particularmente cruel. Não admira que tantos deles se deixem absorvermais pelos seus próprios problemas do que pelos problemas do seu rebanho.

Como disse Lea na sua obra em três volumes A History of the Inquisition in theMiddle Ages:

Mal a Igreja conseguiu suprimir o laço matrimonial dos seusministros, logo a começámos a ver incessantemente atarefadaem toda a parte com a missão aparentemente impossível de osobrigar à castidade — esforço cuja inutilidade estásuficientemente demonstrada na sua continuação nos temposmodernos.

O celibato dos padres e as mulheres na Igreja

Já muitas vezes se disse que as mulheres têm no Catolicismo um lugar inferior aoque têm em qualquer das outras instituições do Mundo Ocidental. Mesmo os paísesasiáticos, conhecidos pelo seu desprezo pelos direitos das mulheres, têm produzidoprimeiras ministras. No Catolicismo não há registo de qualquer mulher que tenhainfluenciado directamente e por direito a política da Igreja ou qualquer decisãoimportante, nem sequer em assuntos que afectam exclusivamente o seu sexo. Por queé que as mulheres são no melhor dos casos tratadas com paternalismo e no piorperseguidas pelo clero masculino?

A única resposta que faz sentido é esta: o celibato. São as mulheres que sãoobrigadas há séculos a suportar a violência da dolorosa disciplina do celibato clerical.

Em primeiro lugar, já vimos que os padres, especialmente os papas, desenvolveramo culto da Virgem Maria. Para os celibatários, a mulher ideal é um ser assexuado quedeu à luz uma criança. Maria teve um bebé sem ter tido relações sexuais; isto é que é aperfeição. Nas palavras da liturgia católica, ao tornar-se mãe, «Maria não perdeu aglória da virgindade». Infelizmente ela é a maior parte das vezes retratada sobre omodelo de recentes aparições. Uma higiénica Senhora celestial, de peito raso e vestidade branco, que fala docemente com santas criancinhas, com um rosário em volta dasmãos sem rugas e com rosas nos pés.

A seguir a Maria em importância vem a mulher que produz bebés sem ter prazer nosexo. Devido à influência dos Padres e do Papa Gregório o Grande, isto foi mantidoatravés da história da Igreja e até aos tempos modernos como a máxima santidade queas mulheres casadas podiam alcançar. Mais abaixo na lista fica a mulher que tem bebésmas que peca ao ter prazer no acto que lhes dá vida. Mais abaixo ainda, e merecedorasde toda a culpa, estão aquelas mulheres que não têm bebés mas que gostam do actosexual ou que são pagas para o fazer. No século XX, esta posição alterou-se: asmulheres já não são desprezadas por terem prazer no sexo sem filhos, com umacondição: limitarem-se ao método clerical de evitar a concepção, o qual, sem surpresa,acaba por ser extremamente problemático. Falar-se-á mais disto mais adiante.

Já vimos a maneira vergonhosa como as mulheres dos padres foram tratadas aolongo dos séculos. Os papas eleitos abandonavam previamente as mulheres e os filhos.Especialmente a partir de Gregório VII, as mulheres que tinham casado de boa fé foramobrigadas a deixar todas as relações maritais com os maridos quando eles se tornaramclérigos. Os sentimentos das mulheres foram ignorados ou espezinhados. Eram olhadas

Page 383: Vigde cristo

383

como pecadoras se pedissem aquilo que o próprio Novo Testamento deixou claro queeram os seus direitos perante Deus. Mas ao longo de toda a História as mulheres têmsido desprezadas pela sua relação com os padres, enquanto que estes mantiverammais ou menos a sua reputação como "cavalheiros do clero".

O exemplo mais claro do mau tratamento das mulheres por parte do clero foi aépoca da bruxaria. Houve terríveis meios tons pornográficos nesta perseguição. Asmulheres eram desprezadas pelos seus inquisidores; segundo o estereotipo, eraminstrumentos de Satanás, sedutoras, armadilhas sexuais, especialmente para oshomens que tinham optado por uma vida sem companhia feminina. A perseguição àsbruxas revela um certo espírito de vingança e alguma maldade inconsciente por partedos celibatários em relação às mulheres pelo sacrifício que tinham feito da sua própriasexualidade. Acreditavam que o seu inimigo era Satanás, quando afinal era a mulher.Não há outra explicação possível para as macabras confissões das bruxas a não ser ade que os celibatários projectavam nelas os seus próprios pesadelos. O seuafastamento tornava-os completamente crédulos. «As bruxas poluem o mundo» porqueeles próprios sempre recearam vir a ser poluídos pelas mulheres através dos instintosilícitos da sua própria carne. Assegurava-lhes a teologia que as mulheres eram costelasdefeituosas, descendentes sulfurosas, filhas de Eva. A simples fealdade, o simples odordaquelas velhas enrugadas devem ter feito com que os inquisidores as detestassemainda mais. As bruxas eram a encarnação do seu próprio lado mau.

Isto explica bem a razão por que havia tantas bruxas e tão poucos bruxos. O que éque convencia os padres de que as bruxas eram mais satânicas do que o seuscorrespondentes masculinos? Seguramente o complexo de Eva dos inquisidores, o queum homem como Sprenger francamente admitiu. Exactamente como eram educados aacreditar que os Judeus eram malditos, também consideravam as mulheres como serescom essa maior relação com Satanás, e provavelmente como discípulas do demónio.Todos os pensamentos carnais que passavam pela cabeça do inquisidor, todos osinstintos carnais que sentia o deixavam mais aterrorizado com as bruxas e maisinclinado a aceitar as obscenidades, quaisquer que elas fossem, que se dizia delasdurante a tortura. Portanto, se o papado tem de ser primeiramente responsabilizado por"criar" as bruxas com os seus dogmas, as horríveis torturas que lhes foram infligidasdeveram-se ao celibato clerical. Os "bons" padres dedicavam-se à oração e ao jejum, àscamisas de cilício e à auto-flagelação. E para que era isto? Porquê aquelas longasvigílias, aquelas camas duras, aquelas noites interrompidas com salmos? Porquê baixaros olhos para que nem sequer se atrevessem a olhar a beleza do mundo e do céu?Certamente porque tinham de manter as mulheres à distância. Os seus olhos, diziam asregras da Ordem, não devem pousar numa mulher. As suas narinas não devem cheiraro seu perfume, as suas mãos não devem tocar o seu corpo, a sua imaginação não devedeter-se nem por um instante nas suas formas nem no seu toque. Um passo em falso eestariam condenados, pois isso revelaria que toda a sua vida e todos os seus sacrifíciosteriam sido em vão, que as mulheres os tinham conquistado. Muito perversos devem serestes demónios para fazer coisas tão sacrílegas.

A posteriori, é fácil de ver que "Satanás" estava não nas bruxas mas na carne dosinquisidores.

Se a passada perseguição da Igreja às bruxas se deveu, pelo menos emsubstância, à sexualidade reprimida dos celibatários, pergunta-se: De que maneira éque os padres continuam hoje a exercer esta opressão?

Page 384: Vigde cristo

384

A maioria dos padres acharão a própria pergunta insultuosa e absurda. Os padresconsideram-se, com razão, e de uma maneira geral bons e humanos. Não conseguemperceber que a caridade pessoal é perfeitamente compatível com a opressãoinstitucional. Hoje, as câmaras de tortura estão no espírito. As fogueiras foraminteriorizadas. Os papas e os padres, por via da legislação, lançam as pessoas parauma fogueira que nunca se extingue.

O antagonismo do clero em relação às mulheres hoje revela-se no facto de seesquivar à ideia de as mulheres exercerem o sacerdócio. Os teólogos tentam provarcom as Escrituras que as mulheres são inelegíveis. Os seus argumentos sãouniformemente fracos, para não dizer desagradáveis. Deus é masculino, dizem eles.Porque Jesus foi o Ícone de Deus e era homem. O Verbo encarnado era Filho de Deus,e não Filha. Mais ainda: mesmo a Virgem Maria, o mais santo dos simples mortais, nãofoi admitida no sacerdócio. Jesus apenas escolheu homens para padres. Como justificaresta excepção para as mulheres que, por muito santas que sejam, segundo os própriosdesígnios de Deus, não se adequam ao ministério?

Este chauvinismo masculino, mascarado de teologia, cada vez encontra menosadeptos hoje, mesmo quando vindo de bispos e papas. Jesus revelou Deus não por serum homem, mas por ser um ser humano perfeito. A ideia de que Deus é essencial eeternamente Masculino é um mito masculino quase tão aceitável como pensar que apomba é o animal mais sagrado porque o Espírito Santo apareceu na forma de umapomba. Isto tem feito com que algumas mulheres, em desespero, cheguem ao ponto desugerir que a Bíblia — e a liturgia da Igreja que nela se baseia — tem de ser deitadapara o lixo. No centro de tudo isto está uma síndroma de superioridade masculinatotalmente alheia à sociedade em que vivemos. A língua perpetua a escravidão damulher. O Cristianismo, dizem elas, prega um Deus chauvinista masculino e umaEncarnação que não trata de salvar a humanidade, mas de preservar para sempre ainferioridade da mulher.

Certamente que num mundo outrora dominado pelos homens estes tinham aprecedência em tudo. É exactamente a percepção de que já ultrapassámos essa faseque faz com que a maioria das mulheres modernas e muitos homens se apercebam decomo é relativa a insistência da Igreja na ideia de que só os homens podem ser padres.E mais ainda: se, como se tem argumentado repetidamente, a escolha de Jesus dosdiscípulos determina todas as escolhas futuras, todos os padres hoje deviam sercamponeses judeus circumcizados, e alguns deles casados.

É difícil escapar à conclusão de que a principal razão por que a Igreja Católica, pelomenos nos níveis mais elevados, se opõe à ideia das sacerdotisas é que ela égovernada exclusivamente por e para um clero celibatário masculino. Do papa parabaixo, com o coração protegido das mulheres por arame farpado, todos estãoconvencidos de que são superiores. O celibato é um mecanismo destinado a provar e amanter esta convicção. Porque garantir às mulheres igualdade no ministério seriadestruir esta imagem de celibatária superioridade masculina tão cuidadosamentecultivada. O verdadeiro fundamento da argumentação dos padres não é, em resumo, deordem teológica, mas sexual. Não é Deus nem Cristo, mas sim um egotismo de um tipomuito especial que faz com que eles se oponham à ideia de um clero feminino. A IgrejaCatólica mostra uma vez mais que está desactualizada cinquenta ou mais anos. Hoje,os homens casados não põem qualquer objecção ao facto de as suas mulheres serempresidentes, primeiras ministras, líderes políticas, juízas, advogadas, médicas, etc.. Masos padres celibatários não podem suportar a ideia de as mulheres, a que renunciaram,estarem no mesmo plano que eles. Sugerir que um dia as mulheres hão-de ser bispos epapas parece a muitos deles uma blasfémia.

Page 385: Vigde cristo

385

A Igreja é que perde com este antagonismo clerical em relação às mulheres. Oministério só beneficiaria com a sabedoria das mulheres. Elas são sobretudo maisafáveis do que os homens, a sua aversão à violência é maior, têm um maiordiscernimento em relação aos jovens e aos velhos. Se estas "virtudes" fossem elasmesmas consideradas sexistas, a presença das mulheres no sacerdócio seriasimplesmente a expressão de uma elementar justiça humana. Além do mais, umsistema que é injusto para com as mulheres tem de ser necessariamente mau para oshomens que o idealizaram e o dirigem.

Não há qualquer esperança de uma mudança imediata. João Paulo II deixou bemclaro que discorda do fundo do coração do sacerdócio das mulheres. Parece pensar emuníssono com muitos bispos, que as mulheres podem sentir-se perfeitamente livres naIgreja sem terem qualquer forma de representação, nem voz nos seus própriosassuntos. Os homens, deve pensar o pontífice, estão mais bem equipados por Deuspara saberem o que é bom para as mulheres.

Isto ajuda a explicar a razão por que o Catolicismo dizimou em anos recentes amaioria dos dedicados grupos de mulheres do mundo. As freiras, as católicas mais bemformadas, as mais apostólicas, sofreram até mais não. Deixaram os conventos aosmagotes. Os números são assustadores. Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1960e 1976, o número de irmãs caiu em 39.500. Elas não se importavam de ser servas dosservos de Deus; o que elas não admitiam era serem lacaias dos padres e bispos. Semterem entre elas uma única sacerdotisa para ministrar à sua medida, para as ouvir emconfissão e para celebrar missa para elas, as freiras estavam (e continuam a estar)completamente à mercê dos padres. Estão sujeitas a todos os seus caprichos, não sólocalmente mas também a nível internacional. Estão proibidas de alterar as suas regrase o seu modo de vida sem a aprovação do clero, do seu "Cardeal-Protector" e dasCongregações Romanas dominadas por homens. Esta violação da justiça natural temprovocado a fuga maciça das melhores apóstolas da Igreja. Isto é um escândalo que amaioria dos católicos desconhece e cuja culpa deve ser atribuída por inteiro aochauvinismo de um clero masculino celibatário que está tão longe de aceitar asmulheres como suas iguais no sacerdócio que até quer ditar-lhes todos os pormenoresda sua vida como freiras.

As freiras não são as únicas vítimas femininas; as mulheres casadas sofrem porigual. Anteriormente, as mulheres que tinham relações sexuais eram obrigadas a terfilhos. A lógica era a de que por onde o homem penetre tem de sair bebé. As mulherestêm de sofrer onde pecaram.

O ênfase no carácter pecaminoso da contracepção garantia que as mulherescontinuariam inferiores aos homens. As repetidas gravidezes reduziam ou eliminavamas oportunidades de as mulheres casadas contribuírem para a sociedade noutraqualidade que não fosse a de esposas e mães. Isto levou mesmo os homens aassumirem que as mulheres eram geneticamente inferiores a eles em inteligência ecriatividade. Hoje, a opressão sobre as mulheres reveste a forma de permissão deutilizarem apenas o método clerical de contracepção.

As mulheres casadas já podem ter prazer no sexo, mesmo quando não têm aintenção de procriar. Desde que mantenham uma apertada vigilância sobre os seumovimentos corporais, tirem as temperaturas regularmente e cumpram o calendário, oclero não põe objecções. Assim, as mulheres continuam obedientes. Esta é a maneirade o clero — com sucesso — fazer com que o sexo continue perigoso e não provoquecrises. Eles sabem que o sexo seguro pode pôr em risco o controle eclesiástico sobreas mulheres, tornando-as livres. Parece não preocupar as mais altas esferas do clero o

Page 386: Vigde cristo

386

facto de muitas mulheres sofrerem com o método do período seguro ao ponto depreferirem passar sem o sexo, especialmente quando o método no seu caso particularnão funciona.

O celibato hoje

O celibato é para qualquer pessoa uma opção por um belo ideal. Pode desejarservir Cristo e a comunidade com uma espécie de testemunho profético de pobreza etotal disponibilidade. Se se mantiver fiel a esse ideal durante toda a sua vida, issorevelar-se-á como uma bênção para ela e para muitas outras.

O perigo apenas aparece quando este ideal se institucionaliza e, pior ainda, quandose torna uma condição para receber ordens. A experiência de longos períodos de tempomostra que isto acaba demasiadas vezes por ser desastroso. O indivíduo perde a sualiberdade e muitas vezes a sua integridade. Quer desesperadamente ser padre; umaparte das contrapartidas do negócio é o celibato, para o qual pode ter pouca ounenhuma inclinação. Uma vez ordenado, fica prisioneiro do sistema. Já mencionámos ofacto de que muitos padres que querem deixar o sacerdócio se arriscam a afligir trêsmulheres muito poderosas: a Mãe Maria, a Mãe Igreja e muitas vezes a mãe natural,que pode ver a vocação do filho como uma bênção para si própria e para a sua família.Mesmo que o abandono não fosse desgraça nenhuma — e a Igreja faz os possíveispara que assim seja — o que é que um padre vai fazer depois? Os seus seis ou seteanos de formação prepararam-no para uma profissão especializada dentro dacomunidade e ele não tem gosto nem qualificações para qualquer outra. A tentação écontinuar no sacerdócio, muito embora não possa cumprir uma condição vital: viver emcastidade. A própria hierarquia lhe diz que a castidade não é tão importante como ocelibato. Portanto, pode continuar celibatário e viver em promiscuidade. O que é quaseigualmente mau é um padre estar tão atormentado pelos seus próprios problemassexuais que pouca energia lhe resta para servir os outros, e aqui é que reside toda aquestão do sacerdócio.

Uma vez que os homens, todos os homens, têm o natural direito de casar, obrigá-los ao celibato contra a sua vontade está condenado a acabar numa qualquer tragédia.Ou será que todos os padres são pessoas tão seguras ao ponto de poderem passarsem a força do amor de uma mulher? Afinal, o celibato é uma forma de suicídiogenético. O celibatário castra-se espiritualmente a si mesmo e assim traz ao mundo oDia do Juízo na sua carne. A vida que tem passado de geração em geração ao longo demilénios entra no beco sem saída do corpo de um celibatário. Recebeu o dom da vida enão o transmite. Apaga o facho. Se é obrigado a fazer isso contra a sua vontade, torna-se provavelmente uma ameaça tanto para si próprio como para os outros.

Lea, no seu famoso estudo, absteve-se de fazer comentários pormenorizados sobreo clero do seu tempo. Observações sobre assunto tão sensível devem ser feitas emtermos gerais.

A natureza humana não muda. O Vaticano sabe bem que há dioceses, e até países,especialmente no Terceiro Mundo, onde a concubinagem clerical é praticada tãogeneralizadamente hoje como o era na Idade Média ou no Renascimento. O laicadodessas regiões mostra sem dúvida compreensão para com a necessidade que os seuspadres sentem do amor de uma mulher. Tal como os leigos de épocas passadas,sentem-se provavelmente aliviados por os padres terem as próprias mulheres, sendoassim menos provável que assediem as deles.

Page 387: Vigde cristo

387

E nas outras regiões? Seria injusto condenar o clero en masse. De facto, muitosconhecedores diriam que o clero católico é uma das melhores classes de homens domundo. Mas seria ingenuidade pensar que os padres hoje estão totalmente isentos doserros que quase todas as gerações revelaram desde que o celibato se tornouobrigatório. Os padres modernos têm muito mais coisas contra que lutar do que os seusantecessores. É unanimemente reconhecido que o nosso tempo é permissivo. Alogística, só por si, torna a incontinência muito mais fácil para toda a gente, cleroincluído. Há métodos de contracepção seguros e baratos. O telefone facilita a marcaçãode encontros e o automóvel a sua realização. Um padre hoje pode conseguir oanonimato sem dificuldade. Em meia hora de viagem por auto-estrada consegue chegara um local onde ninguém o conhece. Tira o cabeção e confunde-se com o resto daspessoas. Seria surpreendente que a solicitação no confessionário continuasse a serpraticada de maneira tão generalizada hoje como o era na Espanha oitocentista. Écanonicamente temível e, a não ser que o padre tenha um gosto especial pelo perigo,desnecessária.

Mas a castidade do padre moderno corre perigo por causa de uma coisa maisdevastadora do que a permissividade: é que os fundamentos teológicos do celibato járuíram.

O celibato nasceu da convicção de que o sexo é sempre e essencialmente ímpio esórdido. Isto é falso.

A Igreja proclamou que o celibato é na sua essência mais elevado do que omatrimónio, é um estado de vida mais perfeito, a melhor maneira de seguir Cristo. Jápoucos continuam a defender tal coisa.

A Igreja insistiu na conjugação de duas vocações totalmente diferentes: celibato eministério. A maioria das pessoas hoje pensa que isto foi sempre altamente perigoso,tão perigoso como insistir na ideia de que todos os médicos ou todos os políticosdeviam ser celibatários.

A Igreja ensinou que só o celibato é compatível com o ministério. Isto não só minouo matrimónio e criou uma brecha incolmatável entre padres e leigos; tentou também aspessoas a prometer o celibato quando não o poderiam cumprir.

Muitos homens ofereceram-se para a ordenação na convicção de que a conjugaçãode celibato e ministério era bíblica, e não o é; e de que o celibato tem uma longa erespeitável história de sucesso, e não a tem.

Durante muito tempo os padres acreditaram que a Igreja estava mandatada para osproibir de casar após a ordenação. Os estudos sobre o primeiro milénio revelam queentão a Igreja defendia que nem o voto de celibato podia invalidar um casamento. Umapessoa tem o direito natural de casar e nem a Igreja nem o papa lho podem retirar. Oargumento de João Paulo segundo o qual os padres, tal como as pessoas casadas,devem igualmente manter o seu compromisso para toda a vida, não colhe. Uma pessoaque casou exerceu o seu direito natural; aquela que fica celibatária contra a sua vontadeé privada dele. Para além disto, o celibato obrigatório é inconsistente. Deve acrescentar-se que os não-católicos só virão a acreditar no celibato quando este for livre. João Paulodiz frequentemente que o compromisso do padre foi tomado em absoluta liberdade. Seassim é, por que é que não permite que os padres deixem o sacerdócio? Porquê obrigá-los a continuar quando eles próprios já não conseguem aguentar aquela solidão queDeus disse não ser boa para o homem?

Só quando a castidade clerical for levada tão a sério como o celibato é que a IgrejaCatólica se libertará do perigo. Ao obrigar os padres incontinentes a permanecer no seuposto, a Igreja destruiu o respeito pelo celibato. Em vez de obrigar os padres que não

Page 388: Vigde cristo

388

cumprem a castidade a continuar, o pontífice devia insistir que todos os padresincontinentes deviam deixar o sacerdócio.

O celibato obrigatório sempre conduziu à hipocrisia nas fileira do clero. Um padreincontinente nunca precisa de prometer casamento a uma mulher. O seu casamentonão seria válido nem aos olhos de Deus nem aos da Igreja. Um padre pode apostatarmil vezes, mas nem uma vez pode casar porque a lei canónica lho proíbe.

É triste, e é sabido que todas as mulheres apaixonadas por padres caem numa teiade hipocrisia e sofrimento pois o clero tem de fingir ser uma coisa que na realidade nãoé. Estas infelizes mulheres têm também uma vida dupla, muitas vezes durante muitosanos. Os seus encontros com os amantes-padres são secretos. Não podem explicar àsfamílias nem aos amigos a razão por que não têm namorado nem qualquer inclinaçãopara casar e constituir família.

O celibato tem ainda outros inconvenientes. Há regiões onde a insistência em queos sacerdotes sejam celibatários levou a enormes quedas no número de padresnecessários para celebrar missa e ministrar os sacramentos. Ao não permitir que oshomens casados se tornem padres, o papado continua a afirmar que este castocelibatário, sem o qual o papa não seria mais do que simplesmente o Bispo de Roma, émais importante do que as necessidades básicas do rebanho. Para uma igreja é melhornão ter padres do que ter padres casados. Isto vem reforçar a impressão de que ocelibato não é primordialmente uma questão de castidade, nem sequer de benefíciopara os espiritualmente pobres; é sim uma questão de controle. Esta a razão por queum abrandamento da lei do celibato implicaria uma mudança maciça da ideia de umaIgreja de poder para uma Igreja de serviço.

A esta luz, os muitos milhares de padres que pediram dispensa no tempo de PauloVI representaram não a destruição, mas uma certa purificação da Igreja Romana.Mandando esses requerentes para a clandestinidade pode bem vir a ter efeitosdevastadores a longo prazo sobre o moral e a moralidade do sacerdócio.

Finalmente, não só muitos leigos, mas muitos padres também, começam já adesconfiar que uma hierarquia celibatária é responsável por muitos sofismas fálicos. OCatolicismo, especialmente o papado, parece preocupado com o sexo. Nem poderia serde outra maneira. Os leigos é que são especialistas em assuntos sexuais e a suatranquila sabedoria tem sido ignorada pelos castos celibatários. Será de admirar que asafirmações do papa sobre a contracepção, o divórcio e o aborto não convençamninguém? Poder-se-á esperar que as mulheres obedeçam à Igreja oficial em questõesque lhes dizem intimamente respeito, quando o clero continua a mandar quemantenham o silêncio dentro da Igreja? Pedir ao laicado que dê o seu assentimentointerior a posições do clero sobre o sexo é o mesmo que pedir aos profissionais queescutem as palavras dos leigos, por exemplo na medicina ou na ciência ou namatemática ou até num jogo de futebol.

Nem sempre o conhecimento traz a sabedoria; a ignorância, nunca.

Page 389: Vigde cristo

389

Epílogo

O trabalho do advogado do Diabo chegou ao fim. Fez o seu melhor — ou o seupior. Na melhor tradição romana, atirou muita lama à Igreja Católica, com o papado àcabeça. Compete ao leitor julgar sobre quanta dessa lama pegou e quanta caiu para ochão. De qualquer maneira, o que é facto é que a Igreja de Roma sobreviveu, comosempre aconteceu ao longo de quase dois mil anos. E está hoje talvez mais forte do quenunca, é mais venerada e respeitada.

A Igreja é constituída por milhões de devotos, homens, mulheres e crianças queprecisam no mais fundo do seu ser da ajuda e da graça que ela e só ela pode trazer.Mesmo o mais rigoroso dos papas toca os corações dos católicos a um nível quenenhum presidente ou figura da realeza pode alcançar.

O papado é um facto histórico de solidez granítica. Sejam quais forem as suasorigens, e elas são mais discutíveis do que a maioria dos católicos pensa, está paraficar. E tem, mais do que qualquer outra instituição religiosa, a capacidade de promovero bem da raça humana. Se vai durar até ao fim dos tempos, ninguém o pode saber, masuma coisa é certa: se há hoje alguma instituição que vá sobreviver, é a Igreja de Roma.

Uma tal convicção devia ser motivo para uma atitude de paz e generosidade paracom as outras. Mas estas virtudes faltaram-lhe claramente no passado e hoje não sãoassim tão evidentes. Mas houve um enorme rasgo nas nuvens quando João XXIIIascendeu ao trono papal.

O Deus de João não era uma divindade tribal, era maior do que a Igreja. O Deus deJoão tinha um propósito para todo o mundo, assim como para a Igreja. A própria IgrejaCatólica teve uma contribuição vital para o progresso do mundo. A pergunta de João erasempre esta: Como é que a Igreja pode ajudar Deus no seu plano que vai para além daIgreja? Compreendeu instintivamente a diferença entre a Igreja e o Reino de Deus. AIgreja era constituída por relativamente poucos; o Reino de Deus, para o qual a Igreja échamada a contribuir, é pertença de todos os pacíficos, de todos os puros, de todos oshumildes de coração.

Isto significava que para João a Igreja nunca é perfeita e está sempre a carecer dereforma e actualização. Mas não deixa de ser uma igreja. O Bispo Creighton nãochegaria a tanto. Nas suas Letters, disse: «A Igreja Romana, na sua orgânica, não éuma Igreja, mas um Estado; e a pior forma de estado — uma autocracia». Certamenteque muitos papas deixaram a impressão de que eram ditadores, segundo o padrão deGregório VII; e a linguagem usada no Vaticano I sobre a hierarquia era toda elarelacionada com jurisdição e domínio, em completo desacordo com o Novo Testamento,o qual é todo humildade e serviço.

O coração do papa João estava em completa sintonia com o Evangelho. Daí o tercompreendido que o papado não é o único doutrinador do mundo — isso seriablasfémia. Uma vez que a Igreja não é a expressão completa de Deus no mundo, opapado deve assumir-se como o melhor dos ouvintes e dos aprendizes. Ele sabe queum papa não anda com um saco cheio de verdades que pode despejar à sua vontadesempre que a ocasião o exija. Ele foi o primeiro e até agora o único papa dos temposmodernos a perceber que o mundo tem uma mensagem para a Igreja e que a Igreja étambém território de missão para o mundo. Foi por ter ouvido que o Papa João tambémfoi ouvido. Quando convocou o Concílio, pediu aos bispos que ouvissem o mundo parapoderem alcançar a estatura plena de seguidores de Cristo.

Page 390: Vigde cristo

390

No antigo Israel, os dissidentes nunca eram sacerdotes mas sim profetas. Eenquanto foram um grupo perturbador tiveram muitas vezes razão, enquanto ossacerdotes a não tinham. Jesus pertencia à linha não dos sacerdotes mas dos profetas;daí que tenha sido olhado como dissidente. Foi crucificado por ser um dissidente. OPapa João reconheceu que os profetas são indispensáveis em qualquer instituição, eem especial na Igreja. Acreditava que sem os profetas a Igreja não ficaria melhor.Também nós precisamos do nosso Micah, do nosso Amos, do nosso Jeremias, donosso Jesus. Silenciar a palavra livre é silenciar a voz da profecia, que é a voz de Deus.

O Papa João parecia seguir a linha segundo a qual a dissensão é lícita e frutuosaporque eu estou aqui e sou o vosso pai em Deus. Outros papas seguiram a ideia de quea dissensão não é lícita porque eu estou aqui como doutrinador infalível. Mas nem umdoutrinador infalível consegue dizer alguma coisa valiosa se não ouvir a palavra daprofecia. Um rabi judeu do século XV, Judah Loew, disse: «A eliminação das opiniõesdaqueles que se opõem à religião mina a religião e enfraquece-a». Mas é necessáriagrande coragem da parte de um papa para ouvir, para aprender, para permitir odesacordo quando tem o poder de acabar com ele por meio de uma Bula ou de umaencíclica.

João, quanto a mim, era um homem de um desprendimento maravilhoso. Era umaprendiz de Cristo, cheio de misericórdia e de amor. Morreu cedo demais.

O Papa Paulo VI, que lhe sucedeu, foi um papa à moda antiga. A sua primeiradecisão foi dizer à Igreja e ao Concílio, então em sessão, que o ouvissem a ele. Mascomo não ouviu a Igreja, o que era um direito seu, a Igreja também não o ouviu a ele eo mundo tratou a sua afirmação final sobre o controle da natalidade com uma certairrisão. E não tinha necessariamente de ser assim.

Hoje, o Papa João Paulo II viaja pelo mundo inteiro e é recebido com amor eafeição que só um cego não consegue ver. Mas não é ouvido porque também eleparece não estar a ouvir. As entusiásticas multidões que o saúdam são um sinal daquiloque o papado podia ser, não só para a Igreja mas para toda a gente. O Papa João foiexactamente isso para toda a humanidade, até mesmo para os comunistas que com elefalaram.

Muitos católicos, sem qualquer diminuição da sua lealdade, começam a sentir queum papado à moda antiga está a ter um preço muito alto. Os católicos beneficiam, oupensam que beneficiam, com um exercício autocrático. Mas isso fendeu o Cristianismode alto a baixo. Depois do Vaticano II, podem os católicos continuar realmente a insistirno triunfalismo do passado, como se os Ortodoxos e os Protestantes estivessem todoserrados e não tivessem senão que arrepender-se e voltar para o seio da Madre Igreja?Como se também eles não fossem a Igreja!

Um exemplo de crueldade, sem dúvida não intencional, foi a declaração de LeãoXIII de que as ordens anglicanas eram nulas e inválidas. Na Encíclica ApostolicaeCurae, de 1896, nega praticamente a existência da velha Igreja de Inglaterra: não erauma Igreja Irmã, e nem sequer uma parte ou uma ramificação da verdadeira Igreja. Era,no melhor dos casos, uma seita herética bem intencionada sem parte no verdadeiroclero de Cristo. Os ministros anglicanos, ao converterem-se a Roma sempre foramportanto ordenados sem condições como se nunca lhes tivessem tocado. No espírito doVaticano II, a decisão compulsiva de Leão XIII devia ser revogada. Alguma vez Romaterá de admitir explicitamente que a sua actual posição está errada e que não temqualquer desejo de converter a "Igreja de Inglaterra" ou forçar a sua submissão. Etambém não pode continuar a achar bem andar furtivamente a tirar-lhe devotos; istoapenas vai atrasar a solução aceitável para um antigo erro. Há-de chegar certamente otempo, mais tarde ou mais cedo, em que Roma aceite a Igreja de Inglaterra como a

Page 391: Vigde cristo

391

Igreja Católica de Inglaterra. Não é o Anglicanismo que tem de recuar e deixar debaptizar novos membros mas sim aquela que hoje é chamada de Igreja CatólicaRomana.

É impossível prever em pormenor o que acontecerá, mas o princípio é claro: a IgrejaAnglicana, longe de definhar, deve tomar o seu lugar pleno e certo como a Igreja deCristo numa terra antiga em perfeita comunhão com Roma e com todas as outrasigrejas. Precisamente como nos seus melhores tempos, Roma não pensa forçar asubmissão das Igrejas Ortodoxas e também não devia pensar em fazê-lo à venerada eplenamente evangélica Igreja de Inglaterra.

Um dia chegar-se-á a acordo sobre o facto de que a validade das ordens dependeda validade da igreja e não o contrário. Uma rígida visão escolástica das ordens tornaas palavras e intenções específicas soberanas. Mas esta visão também põe em causa amaioria das ordens católicas. Pois, quem é que poderá saber se o padre que baptizouJoão Paulo disse as palavras certas ou tinha a intenção certa? Quem é que pode ter acerteza absoluta de que o bispo que o ordenou não estava embriagado ou estava noseu juízo perfeito, capaz, portanto, de ter qualquer intenção? E vamos nós dizer queJoão Paulo não podia ser Bispo de Roma?

O que é preciso é um Concílio da Igreja e não um Concílio da Igreja CatólicaRomana, muito embora o Vaticano II, dentro dos seus limites, tenha conseguidomaravilhas. Os cristãos precisam de um Concílio Ecuménico de todos aqueles queprofessam e vivem segundo o nome de Jesus. Um tal concílio já está atrasado de maisde mil anos. Numa tal assembleia não haveria dificuldade em chegar a acordo sobre asquestões vitais da mensagem do Evangelho; e aquilo em que não se acordasse nãoseriam questões de grande importância. As igrejas estão divididas por questões na suamaioria marginais e sectárias. Num concílio assim, haveria um tal derramamento doEspírito que todos os participantes se concentrariam em Jesus Cristo. Ele e só Elepode, e há-de torná-las uma só.

Numa tal reunião ecuménica, o papa, bispo da única sé apostólica que resta,presidiria, sem contestação. A sua primazia não é motivo de debate nas grandesigrejas. É a sua supremacia não evangélica que os Ortodoxos, as Igrejas Episcopais eProtestantes contestam. Por muito grande que seja hoje o prestígio do papa, não sepode comparar com o prestígio e autoridade genuína que teria se presidisse a um talconcílio com o empenhado amor de Cristo, um amor que ouve e não quer subjugar. Omundo então havia de ver pela primeira vez em mais de um milénio que a Igreja é una eque os cristãos pelo menos tentam amar-se uns aos outros. Se os soviéticosconseguem falar com os americanos sobre o controle dos armamentos, não poderão osOrtodoxos, os Protestantes e os Romanos falar como irmãos e irmãs acerca do amor edo serviço de Jesus Cristo?

A conclusão deste livro sobre os pecados do papado é o maior paradoxo de todos.O papado precisa de se tornar maior e não mais pequeno do que é. Mas a suagrandeza deve ter como modelo Jesus o Servo de Deus e dos homens. Alargando oparadoxo: não são os católicos mas os outros cristãos que podem fazer do papado oque ele devia ser — um Pedro no meio da Igreja contemporânea. Ninguém a não ser opapa pode representar com amor e humildade tudo aquilo que a Igreja luta por dizer a siprópria e ao mundo. Só ele pode exprimir arrependimento pelos males quaseinexprimíveis que os cristãos fizeram através dos tempos e que os seres humanoscontinuam a fazer uns aos outros.

O Papa João foi um arco-íris na noite. Talvez precisemos que se erga um aindamaior para completar a sua obra, a obra de Deus. A tarefa é, humanamente falando,

Page 392: Vigde cristo

392

impossível. O maior crime que os cristãos podem cometer é acreditarem que o Espíritodeixou de soprar e que as suas próprias divisões são eternas.

Page 393: Vigde cristo

393

Cronologia

As datas assinaladas com asterisco (*) são incertas

Data Acontecimento6 a. C. Nascimento de Jesus4 a. C. Morte do Rei Herodes o Grande18-37 Cafás, Sumo Sacerdote Judeu26 Pôncio Pilatos, Prefeito da Judeia27-30* Ministério de Jesus30* Jesus é crucificado no Gólgota48 Concílio de Jerusalém

Não cristãos admitidos na Igreja49-58 Jornadas missionárias de Paulo60-62 Paulo em Roma63* Pedro em Roma64 Grande Incêndio de Roma

Perseguição de Nero aos cristãos68 Nero suicida-se70 Jerusalém é destruída por Tito74 Fim da Comunidade Judaica Mesada80 Abertura do Coliseu de Roma95 Perseguição por Domiciano107 Cartas de Inácio de Antióquia161 Perseguição por Marco Aurélio189 Eleição de Víctor, primeiro papa a falar latim248 Roma é atacada pelos Godos250 Líderes cristãos presos em Roma

Papa Fabiano executado em 22 de Janeiro303 Grande perseguição sob Diocleciano

Igrejas destruídasClero preso

305-6 Perseguições abrandam306-12 Tolerância para com cristãos em Roma e África312 Constantino derrota Maxêncio

Aliança da Igreja com o Estado313 Édito de Milão

Tolerância Universal314 Concílio de Arles

Concílio de Ancira315 Arco de Constantino em Roma323 Constantino, imperador único324 Fundação de Constantinopla (Bizâncio)325 Concílio de Niceia decide que nenhum homem pode casar depois

de ordenado

Page 394: Vigde cristo

394

330 Dedicação de Constantinopla335 Divisão do Império entre os filhos e sobrinhos de Constantino337 Constantino é baptizado; morre em 22 de Maio342 Concílio de Sardica

Agostinho de Hippo nasce em Tagaste361-3 Juliano, o Apóstata, concede tolerância a todos os credos cristãos

e ao paganismo380 Cristianismo, religião oficial do Império Romano382 Jerónimo começa a traduzir a Bíblia385 O Papa Sirico decreta que os homens casados, depois da

ordenação não devem dormir com as esposas386 Conversão de Agostinho390-460* S.Patrício392 Rituais não cristãos proibidos em Roma392-428 Teodoro de Mopsuestia395 Agostinho consagrado Bispo de Hippo401 Agostinho escreve Das Virtudes do Casamento, manual católico

sobre sexo409-10 Romanos deixam a Grã-Bretanha410 Roma saqueada pelos Visigodos

Alarico toma Roma em 24 de Agosto430 Morte de Santo Agostinho431 Hippo cai em poder dos Vândalos432 Patrício na Irlanda440-61 Leão I aumenta a autoridade do papado no Ocidente452 Leão encontra-se com Átila o Huno, o Flagelo de Deus, e

provavelmente salva Roma476 Fim do Império do Ocidente480* Nascimento de S.Benedito529 Benedito funda Abadia de Monte Cassino547* Benedito morre553 Quinto Concílio Geral condena os Três Capítulos563 Columba leva o Cristianismo para a Escócia568 Começo da invasão da Itália pelos Lombardos570-632 Profeta Maomé590-604 Papa Gregório o Grande decide que todo o desejo sexual é pecado

em si mesmo — o sexo é apenas para a procriação590-615 Missão de Columbano597 Gregório I envia missionários para os Anglo-Saxões605 Morte de Agostinho de Canterbury615 Morte de Columbano664 Sínodo de Whitby decide a favor da Igreja Romana sobre a Igreja

de Iona673-735 Venerável Bede, primeiro cronista inglês680 Papa Honório é condenado por heresia pelo Concílio Ecuménico711 Muçulmanos invadem a Espanha732 Vitória de Carlos Martel sobre o Islão perto de Tours742-814 Carlos Magno, filho de Pepino750* Falsificação da Doação de Constantino754 Papa Estêvão III pede ajuda militar a Pepino, Rei dos Francos

Page 395: Vigde cristo

395

771 Carlos Magno torna-se Rei dos Francos782 Alcuin entra para a corte de Carlos Magno787 Segundo Concílio de Niceia, único concílio convocado por uma

mulher, a Imperatriz Irene800 Carlos Magno é coroado no Dia de Natal850* Falsificação dos Pseudo-Decretais Isidorianos855* Papado da lendária Papisa Joana como Papa João VIII863-9 Papa depõe e excomunga Photius, Patriarca de Constantinopla,

provocando cisma871-900 Alfredo chefia Anglo-Saxões882 Marinus, primeiro bispo eleito papa892* Nascimento de Marozia, prostituta do Papa Sérgio III, mãe do filho

de Sérgio, Papa João XI e avó do Papa João XII910 Fundação do Mosteiro de Cluny962 Otão I é coroado Imperador do Ocidente1032 Tomada de posse do Papa Benedito, de onze anos1046 Henrique III, Rei da Alemanha, Itália e Borgonha, é coroado

imperador1054 Separação formal entre Ocidente e Oriente

Legados papais colocam excomunhão pelo papa de MiguelCerulario, Patriarca de Constantinopla, no altar de Santa Sofia

1056-1106 Reinado do Imperador Henrique IV1070-89 Lanfranc, Arcebispo de Canterbury1073 Papa Gregório VII insiste que "papa" se usa apenas para o Bispo

de Roma1074 Gregório insiste que todos os ordenados se comprometam ao

celibato1076 Gregório VII excomunga Henrique IV1077 Henrique capitula em Canossa1095-9 Urbano II prega a II Cruzada1099 Cruzados conquistam Jerusalém; estabelecem aí reino latino1100-1200 Fundação de universidades1115-53 S.Bernardo abade de Calairvaux1122 Concordata de Worms põe fim à controvérsia da investidura1123 Primeiro Concílio de Latrão, primeiro a usar o latim como língua

oficialPela primeira vez, todos os casamentos do clero são declaradosinválidos

1140* Decretum de Graciano1146-8 Segunda Cruzada1152-90 Reinado de Frederico Barbarossa1154-89 Reinado de Henrique II de Inglaterra1154 Adriano IV, papa inglês, encarrega rei inglês de conquistar a Irlanda1170 Thomas à Becket assassinado na Catedral de canterbury1171 Henrique II inicia ocupação da Irlanda1181-1226 S.Francisco de Assis1182 Cruzados derrotados em Horns of Hattin

Perda de Jerusalém1189-92 Terceira Cruzada1201-4 Quarta Cruzada

Page 396: Vigde cristo

396

1204 Constantinopla é saqueada pelos Cruzados1208 Inglaterra interditada por seis anos por Inocêncio III1209 Primeira Cruzada Albigense

Massacres em Bésiers, Minerve e Lavaur1212 Cruzada das Crianças acaba em desastre1213 Rei João entrega Inglaterra a Inocêncio III1215 Magna Carta assinada pelo Rei João em Runnymede

Quarto Concílio de Latrão decreta que os leigos devem confessar-se anualmente ao padre da paróquia

1219 Quinta Cruzada1225-74 Tomás de Aquino1228 Frederico II recupera Jerusalém1232 Papa Gregório IX estabelece Inquisição1241 Primeiro conclave para decidir eleição do papa1244 Perda definitiva de Jerusalém1248-51 Quinta Cruzada sob S.Luís1252 Inocêncio IV permite tortura na Inquisição1265 Nascimento de Dante

Bonifácio VIII declara um Jubileu cada século1302 Bula Unam Sanctam

Morte de Bonifácio VIII1309-78 Papado no exílio em Avinhão

Morte de Dante1331-2 Papa João XII prega um heresia1348-9 A Peste Negra1350 Clemente VI decreta Jubileu todos os cinquenta anos1374 Morte de Petrarca1375 Morte de Boccacio1378-1417 Grande Cisma começa com dois papas1400 Morte de Chaucer1409 Concílio de Pisa; três papas1414-18 Concílio de Constança depõe João XXIII1415 John Huss é queimado em Constança1420-96 Tomás de Torquemada1431 Joana d’Arc queimada em Rouen como bruxa1440 Lorenzo Valla prova que Doação de Constantino é falsificação1456 Guttenberg imprime primeira Bíblia em Main1466-1536 Erasmo1469-1527 Maquiavel, autor de O Príncipe1473 Sisto IV constrói Capela Sistina

Primeiro papa a conceder indulgências aos mortos1474* Nascimento de Gitilia Farnese, amante de Alexandre VI1474-1504 Isabel, Rainha de Castela1475 Nascimento de César Bórgia, o filho mais brutal de Alexandre VI1478 Sisto IV permite aos espanhóis o estabelecimento da Inquisição1480 Nascimento de Lucrécia Bórgia1483-1546 Martinho Lutero1484 Inocêncio VIII, primeiro papa a reconhecer seus filhos bastardos,

inicia perseguição às bruxas1486 O Martelo das Bruxas

Page 397: Vigde cristo

397

1492 Por meio do suborno, Rodrigo Bórgia ocupa o trono papal comoAlexanre VIColombo descobre Novo MundoConquista de Granada pelos Reis Católicos de Espoanha

1493 Alexandre VI divide o Novo Mundo entre Espanha e PortugalTorquemada nomeado Inquisidor Geral para Espanha

1493-5 Pinturicchio decora stanza do Palácio do Vaticano1496-1556 Inácio de Loyola1498 Alexandre VI manda executar Savonarola1503 Júlio II ocupa, pelo suborno, o trono papal1504 Tetzel começa a vender indulgências1506 Início da reconstrução da nova Basílica de S.Pedro com a venda de

indulgências1507 Júlio II sanciona culto da santa casa de Loretto, transportada da

Terra Santa por anjos1508-15 Miguel Ângelo pinta tecto da Capela Sistina1509-47 João Calvino1509 Henrique VIII casa com Catarina de Aragão1509-47 Henrique VIII, Rei de Inglaterra1511 O Elogio da Loucura, de Erasmo1517 As Noventa e Cinco Teses Contra as Indulgências, de Lutero

Publicação do livro de Lorenzo Valla sobre a falsificação da Doaçãode Constantino

1519 Carlos V eleito Sagrado Imperador Romano1520 Leão X excomunga Lutero na Bula Exsurge Domine, que Lutero

queima publicamente1521 Leão X atribui a Henrique VIII o título de “Defensor da Fé“ pelo seu

livro sobre os sacramentos1527 Saque de Roma1530 Morte do Cxardeal Wolsey

Henrique VIII, Chefe Supremo da Igreja de Inglaterra1533 Henrique casa secretamente com Ana Bolena, já grávida

Nascimento da sua filha Isabel1534 Inácio de Loyola funda Jesuítas

A Bíblia de LuteroOs Institutos de Calvino

1535 More e Fisher executados em Tower Hill1536 Ana Bolena executada por adultério1539 Dissolução dos mosteiros ingleses1542 Paulo III estabelece a primeira das congregações romanas, a

Inquisição1545-63 Concílio de Trento define o formato final do ritual do casamento

católico perante um padre e duas testemunhasMantém celibato do cleroDeclara celibato e virgindade superiores ao casamento

1555 Bula Cum nimis absurdum, de Paulo IV contra os JudeusRidley e Latimer queimados em Oxford

1558 Morre Maria a Sangrenta; Isabel, de vinte e cinco anos, Rainha deInglaterra

1559 Paulo IV introduz o Index dos Livros Proibidos

Page 398: Vigde cristo

398

1563 O Livro dos Mártires, de Foxe1564 Morre Miguel Ângelo

Nasce GalileuPio V excomunga Isabel na Bula Regnans in Excelsis

1577 Massacre dos Huguenotes em Paris na véspera de S.BartolomeuPapa Gregório XIII decide que matar um embrião com menos dequarenta dias não é homicídio

1582 Jesuíta Mathew Ricci entra na Corte Imperial de Pequim1587 Execução de Maria, Rainha da Escócia

Édito de Nantes concede tolerância religiosa para todos, incluindoos ProtestantesClemente VIII chama-lhe «o mais amaldiçoado édito que se podeimaginar»

1605 Fica pronta nova Basílica de S.Pedro1607 Morte do Cardeal Barónio, autor de Anais Eclesiásticos1610 Nuncius Siderus, de Galileu1614 Ritual Romano impõe cabine para confissões1620 Mayflower parte de Plymouth para o Novo Mundo1621 Paulo Zacchia em Roma é o primeiro a sugerir que a alma é

infundida na concepção; Roma discorda1632 Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas, de Galileu

A Inquisição, sob Urbano VIII, condena Galileu por este dizer que oSol é o centro do universo e que a Terra se move. Urbano VIII dizque Galileu será torturado se não se submeter

1641 Blondel, calvinista, prova finalmente que a Papisa Joana não existiu1642 Morre Galileu

Nasce Newton1648 Paz de Westfália assegura liberdade religiosa para todos os

cidadãosInocêncio X condena esta tolerância

1649 Maryland vota por total liberdade religiosa para todos os seuscidadãosTermina oficialmente a perseguição romana às bruxas

1685 Revogação do Édito de Nantes1687 Principia, de Newton1691 Código Penal imposto aos Católicos da Irlanda1715 Clemente XI, com Bula Ex Ille Die põe fim à Missão Chinesa1773 Reunião de Boston

Clemente XIV suprime a Ordem dos Jesuítas, que contava 22.589membros e trunca assim as missões católicas

1775-81 Guerra da Independência Americana1776 Declaração de independência da América

Common Sense, de PaineDecline and Fall, de Gibbon

1789 Revolução Francesa1790-2 Llorente, Secretário da Inquisição em Madrid, autor de History of

Inquisition1791-2 Rights of Man, de Paine1793 O “Período do Terror“ em França

Execução de Luís XVI

Page 399: Vigde cristo

399

1804 Coroação de Napoleão em Notre Dame1805 Batalha de Trafalgar1809-82 Darwin1814 Congresso de Viena

Pio VIII restaura Jesuítas1815 Batalha de Waterloo1832 Em Mirari Vos, Gregório XVI chama à liberdade de consciência

“opinião louca”Condenação de Lamennais

1845 John Henry Newman adere à Igreja Romana1847 Manifesto Comunista, de Marx1848 Pio IX exilado em Gaeta1850 Pio IX regressa a Roma

Hierarquia restabelecida em Inglaterra1852 A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe1854 Pio IX primeiro papa a definir sozinho uma doutrina, a Imaculada

Concepção de Maria1856-1939 Sigmund Freud1858 Aparições de Maria em Lourdes1859 A Origem das Espécies, de Darwin1861 Lincoln, Presidente dos Estados Unidos

Cavour ocupa a maioria dos Estados Papais1863 Discurso de Lincoln em Gettysburg em 19 de Novembro1864 O Manual dos Erros, de Pio IX, condena a liberdade de culto1867 O Capital, de Karl Marx1869 Concílio Vaticano I1870 Definição da Supremacia e Infalibilidade Papal

Roma cai em poder da Nova ItáliaPapa "Prisioneiro do Vaticano"

1878 William Booth funda Exército de Salvação1891 Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII1895 Roma decide que retirar um feto que de outra maneira morreria e

mataria a mãe é imoral1896 Em Apostolicae Curae, Leão XIII declara ordens anglicanas

"absolutamente nulas e inválidas"1903 Francisco José, último príncipe a interferir na eleição papal

Abade Loisy escreve O Evangelho e a Igreja1905 Mrs Pankhurst inicia movimento sufragista1907 Pio X publica Lamentabili e Pascendi contra "Modernistas"1908 Inquisição passa a chamar-se Santo Ofício

Pio X excomunga LoisyRitual do casamento de Trento torna-se universal na Igreja

1917 Novo Código de Leis Canónicas1929 Tratado de Latrão cria o Estado do Vaticano1930 Conferência Lambeth da Igreja Anglicana sanciona controle da

natalidadeCastii Connubii de Pio XI afikrma que o prazer sexual pode ser bome sagrado em si mesmo

1933 Governo Nazi na Alemanha1950 Pio XII define dogma da Assunção

Page 400: Vigde cristo

400

1951 Em alocução às parteiras, Pio XII sanciona prudentemente métododo período seguro para controle da natalidade

1962-65 Concílio Vaticano II1963 Paulo VI retira controle da natalidade da competência do Concílio

Geral1964 No Concílio, vários cardeais falam da necessidade de mudar a

doutrina da Igreja sobre o controle da natalidade1966 Paulo VI extingue o Index dos Livros Proibidos

Papa permite dispensas de celibato e verifica-se chuva derequerentes

1968 Encíclica Humanae Vitae de Paulo VIExclusão total dos contraceptivosExplosão de desacordos na Igreja

1973 Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América decide que avida humana começa no nascimento

1978 João Paulo II congela dispensas de celibato1979 João Paulo retira a Hans Küng licença de ensinar1986 João Paulo retira ao Arcebispo Hunthausen controle de Seattle1987 Santo Ofício, com a aprovação de João Paulo, condena fertilização

in vitro

Page 401: Vigde cristo

401

Os Papas

1 Pedro d. 64/672 Lino 67-763 Cleto (Anacleto) 76-884 Clemente I 88-975 Evaristo 97-1056 Alexandre I 105-157 Sisto I 115-258 Telesphorus 125-369 Higino 136-4010 Pio I 140-5511 Aniceto 155-6612 Sotero 166-7513 Eleutério 175-8914 Victor I 189-9915 Zeferino 199-21716 Calisto 217-22

Hipólito (antipapa) 217-3517 Urbano I 222-3018 Ponciano 230-519 Antero 235-620 Fabiano 236-5021 Cornélio 251-3

Novaciano (antipapa) 251

22 Lúcio I 253-423 Estêvão I 254-724 Sisto II 257-825 Dionísio 259-6826 Félix I 269-7427 Eutiquiano 275-8328 Gaio 283-9629 Marcelino 296-30430 Marcelo I 308-931 Eusébio 30932 Miltíades 311-1433 Silvestre I 314-3534 Marco 33635 Júlio I 337-5236 Libério 352-66

Félix II (antipapa) 355-66

37 Dâmaso I 366-84Ursino (antipapa) 366-7

38 Sirico 384-9939 Anastácio I 399-40140 Inocêncio I 401-1741 Zózimo 417-1842 Bonifácio I 418-22

Eulálio (antipapa) 418-1943 Celestino I 422-3244 Sisto III 432-4045 Leão I, o Grande 440-6146 Hilário 461-847 Simplício 468-8348 Félix III 483-92

Page 402: Vigde cristo

402

49 Gelásio I 492-650 Anastácio II 496-851 Simaco 498-514

Lourenço (antipapa) 501-5

52 Hormisdas 514-2353 João I 523-654 Félix IV 526-3055 Bonifácio II 530-2

Dióscoro (antipapa) 530

56 João II 533-557 Agapito 535-658 Silvério 536-759 Vigílio 537-5560 Pelágio I 556-6161 João III 561-7462 Benedito I 575-963 Pelágio II 579-9064 Gregório I, o Grande 590-60465 Sabiniano 604-60666 Bonifácio III 60767 Bonifácio IV 608-61568 Deusdédito 615-61869 Bonifácio V 619-62570 Honório I 625-63871 Severino 64072 João IV 640-273 Teodoro I 642-974 Martinho I 649-5575 Eugénio I 654-776 Vitaliano 657-6277 Deusdédito II 672-678 Dono 676-879 Ágato 678-8180 Leão II 682-381 Benedito II 684-582 João V 685-683 Conon 686-7

Teodoro (antipapa) 687

Pascal (antipapa) 68784 Sérgio I 687-7185 João VI 701-586 João VII 705-787 Sisínio 70888 Constantino I 708-1589 Gregório II 715-3190 Gregório III 731-4191 Zacarias 741-5292 Estêvão II 75293 Estêvão III 752-794 Paulo I 757-67

Constantino II (antipapa) 767-9Filipe (antipapa) 768

95 Estêvão IV 768-7296 Adriano I 772-9597 Leão III 795-81698 Estêvão V 816-1799 Pascal 817-24

Page 403: Vigde cristo

403

100 Eugénio II 824-7101 Valentino 827102 Gregório IV 827-44

Paulo (antipapa) 844103 Sérgio II 844-7104 Leão IV 847-55105 Benedito III 855-8

Anastácio (antipapa) 855106 Nicolau I 858-67107 Adriano II 867-72108 João VIII 872-82109 Marino 882-4110 Adriano III 884-5111 Estêvão VI 885-91112 Formoso 891-6113 Bonifácio VI 896114 Estêvão VII 896-7115 Romano 897116 Teodoro II 897117 João IX 898-900118 Benedito IV 900-3119 Leão V 903

Cristóvão (antipapa) 903-4

120 Sérgio III 904-11121 Anastácio III 911-13122 Lando 913-14123 João X 914-28124 Leão VI 928125 Estêvão VIII 928-31126 João XI 931-5127 Leão VII 936-9128 Estêvão IX 939-42129 Marino II 942-6130 Agapito II 946-55131 João XII 955-63132 Leão VIII 963-4133 Benedito V 964134 João XIII 965-72135 Benedito VI 973-4

Bonifácio VII (antipapa) 974 e 985136 Benedito VII 974-83137 João XIV 983-4138 João XV 985-96139 Gregório V 996-9

João XVI (antipapa) 997-8

140 Silvestre II 999-1003141 João XVII 1003142 João XVIII 1004-9143 Sérgio IV 1009-12144 Benedito VIII 1012-24

Gregório (antipapa) 1012

145 João XIX 1024-32146 Benedito IX 1032-44;1045;1047-8147 Silvester III 1045148 Gregório VI 1045-6149 Clemente II 1046-7150 Dâmaso II 1048

Page 404: Vigde cristo

404

151 Leão IX 1049-54152 Victor II 1055-7153 Estêvão X 1057-8

Benedito X (antipapa) 1058-9

154 Nicolau II 1059-61155 Alexandre II 1061-73

Honório II (antipapa) 1061-72

156 Gregório VII 1073-85Clemente III (antipapa) 1080-1100

157 Victor III 1086-7158 Urbano II 1088-99159 Pascal II 1099-1118

Teodorico (antipapa) 1100Alberto (antipapa) 1102Silvestre IV (antipapa) 1105-1111

160 Gelásio II 1118-19Gregório VIII (antipapa) 1118-21

161 Calisto II 1119-24162 Honório II 1124-30

Celestino II (antipapa) 1124163 Inocêncio II 1130-43

Anacleto II (antipapa) 1130-8

Victor IV (antipapa) 1138-9

164 Celestino II 1143-4165 Lúcio II 1144-5166 Eugénio III 1145-53167 Anastácio IV 1153-4168 Adriano IV 1154-9169 Alexandre III 1159-81

Victor IV (antipapa) 1159-64Pascal III (antipapa) 1164-8Calisto III (antipapa) 1168-74

Inocêncio IV (antipapa) 1179-80

170 Lúcio III 1181-5171 Urbano III 1185-7172 Gregório VIII 1187173 Clemente III 1187-91174 Celestino III 1191-8175 Inocêncio III 1198-1216176 Honório III 1216-27177 Gregório IX 1227-41178 Celestino IV 1241179 Inocêncio IV 1243-54180 Alexandre IV 1254-61181 Urbano IV 1261-4182 Clemente IV 1265-8183 Gregório X 1271-6184 Inocêncio V 1276185 Adriano V 1276186 João XXI 1276-7187 Nicolau III 1277-80188 Martinho IV 1281-5189 Honório IV 1285-7

Page 405: Vigde cristo

405

190 Nicolau IV 1288-92191 Celestino V 1294192 Bonifácio VIII 1294-1303193 Benedito XI 1303-4194 Clemente V 1305-14195 João XXII 1316-34

Nicolau V (antipapa) 1328-30

196 Benedito XII 1334-42197 Clemente VI 1342-52198 Inocêncio VI 1352-62199 Urbano V 1362-70200 Gregório XI 1370-8201 Urbano VI 1378-89202 Bonifácio IX 1389-1404203 Inocêncio VII 1404-6204 Gregório XII 1406-15

Antipapas de AvinhãoClemente VII 1378-94Benedito XIII 1394-1423

Antipapas de Pisa

Alexandre V 1409-10João XXIII 1410-15

205 Martinho V 1417-31206 Eugénio IV 1431-47

Félix IV (último antipapa, até à data)1439-49

207 Nicolau V 1447-55208 Calisto III 1455-8209 Pio II 1458-64210 Paulo II 1464-71211 Sisto IV 1471-84212 Inocêncio VIII 1484-92213 Alexandre VI 1492-1503214 Pio III 1503215 Júlio II 1503-13216 Leão X 1513-21217 Adriano VI 1522-3218 Clemente VII 1523-34219 Paulo III 1534-49220 Júlio III 1550-5221 Marcelo II 1555222 Paulo IV 1555-9223 Pio IV 1559-65224 Pio V 1566-72225 Gregório XIII 1572-85226 Sisto V 1585-90227 Urbano VII 1590228 Gregório XIV 1590-1229 Inocêncio IX 1591230 Clemente VIII 1592-1605231 Leão XI 1605232 Paulo V 1605-21233 Gregório XV 1621-3234 Urbano VIII 1623-44235 Inocêncio X 1644-55236 AlexandereVII 1655-67237 Clemente IX 1667-9238 Clemente X 1670-6

Page 406: Vigde cristo

406

239 Inocêncio XI 1676-89240 AlexandereVIII 1689-91241 Inocêncio XII 1691-1700242 Clemente XI 1700-21243 Inocêncio XIII 1721-4244 Benedito XIII 1724-30245 Clemente XI1 1730-40246 Benedito XIV 1740-58247 Clemente XIII 1758-69248 Clemente XIV 1769-74249 Pio VI 1775-99250 Pio VII 1800-23251 Leão XII 1823-9252 Pio VIII 1829-30253 Gregório XVI 1831-46254 Pius IX 1846-78255 Leo XIII 1878-1903256 Pio X 1903-14257 Benedito XV 1914-22258 Pio XI 1922-39259 Pio XII 1939-58260 João XXIII 1958-63261 Paulo VI 1963-78262 João Paulo I 1978263 João Paulo II 1978

Page 407: Vigde cristo

407

Concílios Ecuménicos(Convocados pelo poder civil. Língua: Grego)

1 Niceia 3252 Primeiro de Constantinopla 3813 Efeso 4314 Calcedónia 4515 Segundo de Constantinopla 5536 Terceiro de Constantinople 6807 Segundo de Niceia 7878 Quarto de Constantinopla 869 (Ecumenismo posto em dúvida peloOriente e Ocidente)

Concílios Gerais da Igreja Romana(Convocados por papas. Língua: Latim)

1 Primeiro de Latrão 11232 Segundo de Latrão 11393 Terceiro de Latrão 11794 Quarto de Latrão 12155 Primeiro de Lyons 12456 Segundo de Lyons 12747 Viena 13118 Constança 1414-18

9 Basle 1431 (considerado ecuménico até à 25ªsessão) 10 Florença (ou Ferrara Florença- por vezes consideradocomo a continuação de Basle) 1438-4211 Quinto de Latrão 1512-1712 Trento 1545-6313 Vaticano I 1869-7014 Vaticano II 1962-5

Page 408: Vigde cristo

408

Page 409: Vigde cristo

409

Nota sobre as Fontes

As obras deste tipo não crescem como os cogumelos. Esta cresceu-me lentamentena cabeça ao longo de mais de trinta anos, alimentada por muitas leituras, por muitaspalestras dos meus professores, bem como por discussões com os meus colegas e comos meus alunos durante mais de doze anos. O meu receio é o de não dar o mérito aquem ele é devido. Pode haver passagens inteiras que tiveram origem numaobservação de, por exemplo, o meu tutor em Roma, Frederick Coplestone, SJ, ou numainspirada palestra de Bernard Lonergan, SJ, ou num ensaio de um aluno queinconscientemente fui “pedir emprestado“. Se esqueci algumas daquelas pessoas paracom quem fiquei em dívida, peço humildemente que me perdoem.

Lembro-me bem de que Os Vigários de Cristo devem a sua origem a The Pope andthe Council, obra publicada na Alemanha no ano de 1869 com o título Der Papst undDas Concil, de Janus, pseudónimo de J.H. Ignaz von Döllinger, que foi professor deHistória da Igreja em Munique, o mais famoso do seu tempo e um excelente teólogo.Durante seis anos trabalhou como tutor pessoal do futuro Lord Acton.

Há alguns anos li o livro de Döllinger três vezes e a princípio achei-o incrível. Eusabia que o Vaticano, com um timing preciso, o tinha posto no Index cerca de dez diasantes da abertura do Vaticano I, concílio que ele pretendia influenciar. Dois anos após oConcílio, Döllinger foi excomungado pelo seu arcebispo por não aceitar a infalibilidadepapal e um ano depois foi demitido da sua Cátedra de História. Morreu com noventaanos ainda irreconciliado com a Igreja. Depois de ter sido feito cardeal, John HenryNewman pensou fazer uma visita ao velho Döllinger para lhe dizer que as suas própriasopiniões moderadas — muito próximas das de Döllinger — foram consideradasaceitáveis na Roma de Leão XIII. A falta de saúde obrigou-o a cancelar a viagem.Mesmo depois do Vaticano I, Newman escreveu a Mr.Daunt em 7 de Agosto de 1870:«Não percebo a razão por que um homem que a negou [a infalibilidade papal] não podeser tão bom católico como aquele que a defendeu. […] Vós pusestes um enorme podernas mãos de um único homem, sem fiscalização, e na altura mesma em que, por vossaacção, declarais que ele o pode usar sem motivo especial».

The Pope and the Council continha aspectos da história papal que me eramtotalmente desconhecidos. Fui educado como católico, frequentei o habitual curso deseis anos do seminário antes da ordenação, licenciei-me numa universidade católica, aGregoriana de Roma, e nunca me tinha cruzado com tais ideias. Isto talvez se expliqueem parte pela natureza partidária da educação do seminário e pelo facto de nestesestabelecimentos a história ser uma disciplina considerada menor. O maucomportamento dos papas é abordado de uma maneira muito ligeira ou até extirpado,muito à semelhança do que Estaline fez a Trotzky, removendo-o de toda a históriasoviética. Muitos jovens historiadores da União Soviética hoje nunca ouviram falar deTrotzky, porque até a sua imagem foi apagada da fotografia de 1917 em que aparecejunto de Estaline na Estação da Finlândia de S.Petersburgo. A minha ignorânciatambém deve ser atribuída à preferência que os católicos manifestam por uma históriado papado que pode ser lida de luvas brancas. Não é fácil reconhecer que os nossoslíderes foram muitas vezes selvagens, ou que os bons papas causaram por vezes muitomais danos do que os maus.

Por tudo isto, já muito tarde na minha carreira, vi-me obrigado a analisar a históriadas ideias e das instituições católicas, incluindo obviamente esta última o papado. Foiuma forma de auto-formação demorada e por vezes dolorosa. A hagiografia depurada

Page 410: Vigde cristo

410

pode ser inspiradora, mas como Acton avisou, «A história destrói o respeito». Quandocomeçou a publicar a Home and Foreign Review ele já sabia que iria incomodar ahierarquia com a sua frontalidade. Escreveu a Newman acentuando a necessidade deuma total honestidade ao escrever sobre os papas. «Paulo III» disse ele, «tinha um filhoe não um sobrinho, como habitualmente é designado. Eu sinto profundamente que istodeve ser exposto claramente e não posso deixar de denunciar a mentira intencional queisto envolve». Afinal, foi o seu tutor, Döllinger, que foi excomungado. Acton, por ummisto de silêncio e ambiguidade, optou por evitar a censura definitiva. É triste vergerações em que a Igreja censura ou silencia mais católicos de grande estatura do queaqueles que existem noutras instituições.

Ao ler os dois volumes do clássico de Lecky, History of European Morals, encontreiuma nota de pé de página em que ele se refere a Henry Charles Lea. Eu nunca tinhaouvido falar de Lea e contudo, a acreditar nas palavras de Lecky, a sua história docelibato foi a obra mais importante originária do Novo Mundo. Depois, descobri o que oBispo Mandell Creighton disse dele: «Se o leitor não conhece os livros de Lea, leia-os,pois não há ninguém que mais saiba sobre as instituições da Igreja medieval». Esteelogio saiu reforçado quando descobri a crítica de Acton da magistral obra de Lea sobrea Inquisição. Acton, que era notoriamente reservado ao comentar as obras dos outros,escreveu: «A contribuição de Lea foi a mais importante que o Novo Mundo deu para ahistória religiosa do Velho. […] Nada na literatura europeia se pode comparar com isto,núcleo e essência da grande história de Mr.Lea».

Lea é consensualmente considerado entre os historiadores de língua inglesa comofigurando ao lado de Gibbon e Hallam, Macauley e Acton. Entre os católicos atrevo-mea dizer que é praticamente desconhecido e ainda menos alvo de atenção. É pena, namedida em que nunca houve autor menos propagandista do que ele. Seria difícilencontrar em toda as suas obras uma única opinião sectária. Ao contrário de Acton, elepensava que a missão do historiador era relatar e não julgar. O julgamento competiaapenas ao leitor.

Lea e seu irmão Carey foram educados em casa, em Filadélfia, por um tutorparticular. Dele os dois rapazes receberam formação em ciências, matemática elínguas. Mas a Henry, ao que parece, não estava destinada uma carreira académica.Era um editor muito activo; tinha mulher e filhos para sustentar. Quando tinha vinte epoucos anos tentou conciliar o negócio com a investigação histórica. O stress abalou-lhe a saúde e ele sempre teve consciência de que se abusasse, a sua saúde ressentir-se-ia outra vez. Nestas circunstâncias, as suas realizações são espantosas.

Entrevistou Abraham Lincoln várias vezes para vários jornais, e ficouprofundamente impressionado com ele como ser humano. Só mais tarde é que Leapôde dedicar mais do seu tempo à História. A maior paixão da sua vida foi a Justiça, daío seu interesse pela Inquisição, que violou todos os princípios que lhe eram caros. Sóescreveu o seu primeiro artigo sobre História quando tinha vinte e quatro anos e o seuprimeiro livro foi escrito aos quarenta e um. Foi um autodidacta em todos os aspectos.No decurso da sua carreira aprendia uma nova língua sempre que era necessário.Aprendeu alemão quando tinha sessenta anos e holandês aos oitenta.

Como historiador deve ser único. Dificilmente lia os livros dos outros. Ia sempredirectamente às fontes originais para tomar uma decisão. Também estava à frente doseu tempo na medida em que decidiu desde logo que a melhor maneira de estudar aHistória é através da análise das instituições, especialmente as instituições oficiais, asquais são a expressão dos homens e das sociedades. Isto talvez explique a frieza e odistanciamento das suas obras que se destacam numa época de polémicas. Dean

Page 411: Vigde cristo

411

Milman confessou que quando começou a ler Lea tentou descobrir indícios sobre se eleera católico ou protestante e não conseguiu por causa do seu tom «imparcial ecândido».

Um só exemplo da sua profundidade deve chegar. Segundo o seu biógrafo, E.C.Bradley, Lea iniciou as suas investigações sobre o celibato com a leitura dos 217volumes da obra Patologica Latina, de Migne. G.P. Gooch, no seu monumental estudoHistory and Historians in the Nineteenth Century diz que Lea contribuiu mais para osestudos medievais do que qualquer outro escritor deste período. As suas «obras sobreo celibato sacerdotal, a Inquisição Espanhola, as Confissões e Indulgências e o Ordáliocompensam um estudo aturado. A sua vasta erudição causa ainda maior espanto namedida em que foi adquirida durante os tempos livres da sua vida de editor e os seusmateriais, na sua maior parte, tiveram de ser copiados e enviados para o outro lado doAtlântico».

Outro académico americano, contemporâneo, também me influenciouconsideravelmente, embora talvez ele possa dizer que não com a suficienteproximidade. Desconfio de que John T. Noonan Jr., actualmente juiz federal, diria queas minhas conclusões, especialmente sobre o aborto, são diferentes das suas. Contudo,devo prestar a minha homenagem à excelência das suas investigações e dos seusponderados juízos. As suas obras sobre a contracepção, o divórcio e o aborto sãomodelos de objectividade histórica.

Como Os Vigários de Cristo se destina ao público em geral, fazer referência a todasas fontes tê-lo-iam tornado ilegível. Um autor fica em dívida em particular para comaqueles que constituíram o cenário de fundo do seu espírito. No meu caso, entre osantigos, Platão, Aristóteles e Cícero. Entre os medievais, Tomás de Aquino, que eu liadurante dias seguidos como entretenimento. No século XIX, destaco o ensaio de Mill,Essay on Liberty. Há uma frase sua que nunca deixou de soar nos meus ouvidos. Éuma espécie de pedra de toque de tudo aquilo que é respeitável (e obsceno) naHistória, a papal ou a outra.

Se toda a humanidade menos um tivesse uma opinião e sóuma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teriamais justificação para silenciar essa pessoa do que esta teria,se tivesse esse poder, para silenciar a humanidade.

Entre os modernos, devo muito a Dietrich Bonhoeffer, cujas Letters and Papers fromPrison foram antecipadas em duas gerações ou mais por Friedrich Nietsche. A obradeste expressou-se de forma demasiado polémica para que os cristãos pudessemperceber a enorme contribuição que estava a dar para purificar a fé dedesenvolvimentos prejudiciais.

Uma passagem em particular inspirou as investigações que culminaram naelaboração deste livro. Encontra-se quase no fim de The Pope and the Council. Dirigitodos os meus esforços no sentido de descobrir se aquilo que Döllinger diz nestapassagem é em substância verdadeiro ou não. É curioso notar que enquanto que aoseu aluno, Lord Acton, é atribuída a afirmação sobre a ideia de que o poder absolutocorrompe absolutamente, o mestre disse-o quase vinte anos antes.

Todo o poder absoluto desmoraliza o seu detentor. Toda aHistória é testemunho disso. E se se tratar de poder espiritual,o qual guia as consciências dos homens, o perigo é aindamaior, pois a detenção de tal poder exerce um fascínio

Page 412: Vigde cristo

412

especialmente perigoso enquanto peculiar indutor da auto-ilusão — porque o desejo de domínio quando se transforma empaixão é muito facilmente desculpado com a alegação de zelopela salvação dos outros. E se o homem em cujas mãos foidepositado esse poder acalentar ainda a ideia de que é infalívele um órgão do espírito Santo — se ele sabe que uma decisãosua em questões morais e religiosas será recebida com asubmissão geral, e o que é ainda mais, ex animo, de milhões— parece quase impossível que a sua sobriedade de espíritopossa resistir a um tão inebriante sensação de poder. A istodeve acrescentar-se a noção perseverantemente alimentadapor Roma durante séculos de que todos os conclaves são ocenário do triunfo final do Espirito Santo que guia a eleição adespeito dos artifícios dos partidos rivais e que o novo papaeleito é o especial instrumento eleito da graça divina paracumprir os desígnios de Deus em relação à Igreja e ao mundo.Toda a vida desse homem, a partir do momento em que tomalugar no altar para receber a primeira homenagem do beija-péirá ser uma cadeia ininterrupta de adulações. Tudo éexpressamente calculado para fortalecer a sua crença de queentre ele próprio e os outros mortais há um fosso intransponívele quando envolto na nuvem e vapores de um incenso perpétuo,o carácter mais firme tem de ceder finalmente a uma tentaçãoque ultrapassa a capacidade de resistência da força humana.

Page 413: Vigde cristo

413

Bibliografia Selecta

Apenas são referidas as obras de fácil acesso

Alguns Documentos Úteis

Abbott, W M (ed), The Documents of Vatican II (London, 1966).

Baldwin, W M (ed), Christianity through the Thirteenth Century (London, 1970).

Baronius, Cardinal Caesar, Annales Ecclesiasticae, Vols 1-11 (Paris, 1864-1865).

Bettenson, H, Documents of the Christian Church (London, 1947).

Burchard, John, Diaries, 14831492, trans. A H Matthew (London,1910).

Butler, C, The Vatican Council, 1869-1870(London,1962).

Davies, J C (ed), Episcopal Acts Relating to Welsh Dioceses 1066-1272, 2 vols(1946-8).

Dictionnaire de théologie Catholique (Paris, 1905~60).

Douglas, D C, and Greenaway, G W (eds), English Historical Documents, 2 vols(London, 1961).

Elder, S Z, Church and State through the Centuries (London, 1954).

Encyclopaedia Judaica, Vol. 13 'Pope' (Jerusalem, 1971).

Fremantle, Anne, The Papal Encyclicals in Their Historical Context (New York,1956).

Hauben, Paul J. , (ed), The Spanish Inquisition (Calif., 1969).

Hefele, C J, A History of the Christian Councils, 5 vols (Edinburgh, 1950).

Henderson, E F, Select Historical Documents of the Middle Ages (London, 1965).

Ffillgarth, J N (ed), The Conversion of Western Europe, 350750 (New Jersey,1969).

Jedin, H, A History of the Council of Trent (St Louis, Mo, 1957-61).

John, Eric (ed), The Popes (London, 1964).

Page 414: Vigde cristo

414

John XXIII, Pope, The Encyclicals and Other Messages (Washington, DC, 1964).

Lecky, W E H, History of European Morals, 2 vols (London,1911).

McElrath, Damian, The Syllabus of Pius IX: Some Reactions in England (Louvain,1964).

Manschreck, C L, A History of Christian Readings in the History of the Church fromthe Reformation to the Present (New York, 1964).

Marcus, Jacob R, The Jew in the Mediaeval World, 315-1791 (Connecticut, 1975).

Monunsen, T E and Morrison, K F, Imperial Lives and Letters of the EleventhCentury (New York, 1962).

Olin, John C, The Catholic Reformation: Savonarola to Ignatius Loyola (New York,1969).

Pelikan, J and Lehmann, H, Luther's Works (The American Edition) (St Louis, 1955-).

Petry, Ray C (ed), A History of Christianity: Readings in the History of the Early andMediaeval Church (New York, 1962).

Platina, Lives of the Popes, 2 vols (London, n.d.).

Pyle, Leo (ed), Pope and Pill (London,1968).

Roncalli, Angelo (John XXIII), Mission to France, ed. Don Loris Capovilla (London,1966).

Rynne, Xavier, Letters from Vatican City (London, 1963).

—, The Second Session (London, 1964).

—, The Third Session (London, 1965).

—, The Fourth Session (London, 1966).

Torre, M J de (ed), The Church Speaks on Marriage and Celibacy (Philippines,1976).

Universal Jewish Encyclopaedia, Vol. 8 (New York, 1969), 'Papal Bulls' and'Popes'.

Vorgrimler, H (ed), Commentary on the Documents of Vatican 11, 5 Vols (London,1966-9).

Page 415: Vigde cristo

415

Alguns Livros Consultados

Abel, E, The Roots of AntiSemitism (NJ, 1975).

Ackerman, J S, The Architecture of Michelangelo (London, 1970).

Acton, J E (Lord), Essays in the Liberal Interpretation of History (Chicago,Ill/London, 1967).

—, Lectures on Modern History (London,1960).

Aquinas, Thomas, Summa Theologica, in Opera Omnia, ed. Leonina (Rome,18861906).

Atkinson, James, Martin Luther and the Birth of Protestantism (London,1968).

Baker, Leonard, Days of Sorrow and Pain (New York, 1978).

Barraclough, G, The Origins of Modern Germany (Oxford, 1952).

Bellarmine, Robert, De Controversiis Christianae Fidei, De Romano Pontifice, inOpera Omnia (Naples, 1856).

Boase, T S R, Boniface VIII (London,1933).

Boccaccio, Giovanni, - The Decameron, trans. Mark Musa and P E Bondanella(New York, 1977).

Bondanella, P E, Francesco Guicciardini (Boston, Mass., 1976).

Bradley, E C, Biography of H C Lea (Philadelphia, Pa, 1931).

Brent, Peter, Charles Darwin (London,1981).

Brodrick, James, Robert Bellarmine, 1542-1621, 2 vols (London,1950).

-, Robert Bellarmine, Saint and Scholar (London, 196 1).

Brooke, Z N, The English Church and the Papacy from the Conquest to the Reign ofJohn (Cambridge, 1952).

Brown, G K, Italy and the Reformation to 1550 (Oxford, 1933).

Bultmann, R, The History of the Synoptic Tradition (New York, 1968).

Bund, J M W, The Celtic Church of Wales (London, 1897).

Burckhardt, Jacob, The Civilization of the Renaissance in Early Italy (London,1878).

Page 416: Vigde cristo

416

—, The Age of Constantine the Great (London, 1949).

Callaghan, D, Abortion: Law, Choice and Morality (London,1970).

Carlyle, A J and R W, A History of Medieval Political Theory in the West, 6 vols(London, 1903-36).

Chadwick, H, The Early Christian Church (London, 1970).

Chadwick, O, Catholicism and History (Cambridge, 1978)—, The Reformation (London, 1984).

Chamberlin, E R, The Bad Popes (New York, 1969).

Chapman, J, Studies in the Early Papacy (London, 1928).

Costello, Con, In Quest of an Heir (Cork, 1978).

Coulton, G G, Inquisition and Liberty (London, 1959).

—, The Inquisition (London, 1974).

Cowan, I B, The Scottish Reformation (London,_1982).

Crawford, F M, Ave Roma Immortalis (London, 1920).

Creighton, M, The History of the Papacy during the Reformation (London, 1882).

—, A History of the Papacy from the Great Schism to the Sack of Rome (London,1899).

Daniel-Rops, H, The Church in the Dark Ages, trans. Audrey Butler (London, 1959).

Dante, Divina Commedia, various editions.

Davies, J G, The Early Christian Church (London, 1965).

Dawson, Christopher, The Making of Europe (London, 1944).

—, The Dividing of Christendom (New York, 1965).

Deanesly, Margaret, Sidelights on the Anglo-Saxon Church (London,1962).

de Maistre, Joseph, Letters on the Spanisb Inquisition (1843) (Boston, Mass.,1977).

-, The Pope (New York, 1975).

De Rosa, Peter, Christ and Original Sin (Milwaukee, Wis., 1967).

Page 417: Vigde cristo

417

—, Jesus Who Became Christ (London/New Jersey, 1974).

Döllinger, J H Ignaz von, The Pope and the Council (London, 1869).

—, Fables Respecting the Popes in the Middle Ages (London, 1871).

Donaldson, Gordon, The Scottish Reformation (Cambridge, 1960).

—, Scotland: Church and Nation through Sixteen Centuries (London,1960).

Duchesne, L., The Beginnings of the Temporal Sovereignty of the Popes, 754-1073(London, 1908).

—, The Early History of the Christian Church, 2 vols (London,1909).

Dudden, F H, Gregory the Great, 2 vols (New York, 1967).

Egner, G, Birth Regulation and Catholic Belief (London, 1966).

Einem, Flubert von, Michelangelo (London, 1973).

Einstein, Albert, Essays in Science (New York, 1962).

Elliot Birms, L, Innocent III (London,1931).

Emerson, E, The Correspondence of Gregory VII (New York, 1932).

Falconi, Carlo, The Popes in the Twentieth Century (London, 1967).

Ferrara, Orestes, The Borgia Pope(London,1942).

Flannery, E H, The Anguish of the Jews (New York, 1963).

Fleming, D H, The Reformation in Scotland (London, 1910).

Francome, Colin, Abortion Freedom: A Worldwide Movement (London, 1984).

Galileo, The Sidereal Messenger, with Kepler's Continuation (Venice, 1610).

—, Discoveries and Opinions, trans. Stillman Drake (New York, 1957).

—, Dialogues Concerning the Two Chief World Systems, trans. Stillman Drake(Calif., 1962).

Gilbert, Martin, Auschwitz and the Allies (London, 1981).

Gill, Joseph, The Council of Florence (Cambridge, 1959).

Gooch, G P, History and Historians in the Nineteenth Century (London, 1913).

Page 418: Vigde cristo

418

Graetz, H H, History of the Jews, 6 vols (Philadelphia, Pa, 1945).

Graharn, R A, Vatican Diplomacy (New jersey, 1959).

Granfield, David, The Abortion Decision (New York, 1969).

Granfield, Patrick, The Papacy in Transition (Dublin, 1981).

—, The Limits of the Papacy (New York, 1987).

Greeley, A, The American Catholic (New York, 1977).

Gregorovius, Ferdinand, History of the City of Rome in the Middle Ages, 8 vols(London,1894-1902).

—, Lucretia Borgia, According to Original Documents and Correspondence of HerDay (London,1903).

Gregory of Tours, History of the Franks (Oxford, 1927).

Griesinger, Theodor, The Mysteries of the Vatican, 2 vols (London,1864).

Grilnewald, Complete Edition of the Paintings, with an introduction by J KHuysmans(London,1958).

Guicciardini, Francesco, The History of Italy and the History of Florence (London,1986).

Guillemain, B, La Cour pontificale dAvignon, 1309-1376 (Paris, 1962).

Gutman, Yisrael, The Jews of Warsaw, 1939-1943 (Sussex: Harvester Press,1982).

Hales, E E Y, The Catholic Church in the Modern World (London,1958).

—, Pope John and His Revolution (London, 1965).

Hamilton, Bernard, The Mediaeval Inquisition (London,1981).

Hay, M, Europe and the Jews (Boston, Mass., 1961).

Hazlitt, William (trans.), Table Talk of Martin Luther (London, 1952).

Heath, Peter, The English Clergy on the Eve of the Reformation (London, 1969).

Hebblethwaite, P, The Year of the Three Popes (London, 1978).

Hebblethwaite, P, and Kaufmann, L, John Paul II (New York, 1979).

Page 419: Vigde cristo

419

Hennessy, J, American Catholics: A History of the Roman Catholic Community inthe United States (New York, 1981).

Herberg, W, Protestant, Catholic, Jew (New York, 1955).

Hoess, Rudolf, Commandant of Auschwitz (London, 1959).

Hughes, P, A Short History of the Catholic Church (London, 1967).

Jalland, T G, The Church and the Papacy (London/New York, 1944).

Jedin, H, and Dolan, J, Handbook of the History of the Church (London, 1980-1).

Johnson, Paul, A History of Christianity (New York, 1977).

—, Pope John Paul II and the Catholic Restoration (London, 1982).

Joyce, G H, Christian Marriage (London,1948).

Katz, Robert, Death in Rome (London,1967).

Kitts, Eustace, In the Days of the Councils (London, 1908).

-, Pope John the Twenty-Third (London,1910).

Kjeckhefer, R, European Witch Trials (London, 1976).

Knowles, David and Obolenski, Dmitri, The Christian Centuries, 2 vols (London,1968-9).

Kobler, Frartz, Napoleon and the Jews (New York, 1975).

Kristol, Gertrude, Darwin and the Darwinian Revolution (London,1959).

Küng, Hans, Infallible? (London, 1971).

Langford, J J, Galileo, Science and the Church (New York, 1966).

Lapide, P E, The Last Three Popes and the Jews (London, 1967).

Lash, N, Newman on Development (London, 1975).

Latourette, K S, A History of the Expansion of Christianity, 7 vols (London,1937-1945).

—, A History of Christianity (London,1950).

—, Christianity in a Revolutionary Age, 5 vols (New York, 1957-61).

Lea, H C Studies in Church History (Philadelphia, Pa, 1883).

Page 420: Vigde cristo

420

—, A History of Auricular Confession and Indulgences in the Latin Church, 2 vols(Philadelphia, Pa, 1896).

—, The Eve of the Reformation, Cambridge Modern History (Cambridge, 1902).

—, A History of the Inquisition in Spain, 4 vols (New York5 1906-7).

—, The Inquisition in the Middle Ages (New York, 1955).

—, Materials Towards a History of Witchcraft, 3 vols (New York, 1957).

Lewy, Guenter, The Catholic Church and Nazi Germany (London,1968).

Liutprand of Cremona, Works, trans. T A Wright (London, 1930).

Loisy, Alfred, The Bible and the Christian Religion (New York, 1962).

Machiavelli, N, The Prince, various editions.

Madden, R M, Galileo and the Inquisition (London, 1863).

Malinski, M, Pope John Paul II (London,1979).

Mann, Horace K, The Lives of the Popes, 18 vols (London, 1902-32).

Mannix, D, The History of Torture (New York, 1964).

Martin, Malachi, The Decline and Fall of the Roman Church (London,1982).

Matthew, A H, The Life and Times of Rodrigo Borgia London, n.d.).

Michaelis, Meir, Mussolini and the Jews, 1922-1945 (Oxford, 1978).

Midelfort, H C E, Witch Hunting in South-Western Germany, 1562-1.684 (Stanford,Calif., 1972).

Milman, H H, History of the Jews, Vol 3 (London, 1866).

—, Savonarola, Erasmus and Essays (London, 1870).

—, History of Latin Christlanity, Vols 1-11 (London, 1872).

Milton, John, English Prose Writings, ed. H Morley, vol. 5 (London,1889).

Mitchell, R J, The Laurels and the Tiara, Pope Pius 11, 14581464 (London, 1962).

Mollart, G, Les Papes d'Avignon, 1305-1378 (Paris, 1949).

Page 421: Vigde cristo

421

Morley, J F, Vatican Diplomacy and the Jews during the Holocaust, 1939-1943(New York, 1980).

Murphy, Francis X, The Papacy Today(London,1981).

Murray, John C, We Hold These Truths (New York, 1960).

Narfon, Julien de, Pope Leo XIII (London, 1899).

Newman, John Henry, Cardinal, An Essay in the Development of Christian Doctrine(London, 1890).

—, Letters and Diaries, ed. C S Dessain, 18 vols (London, 1961- ).

Nichols, Peter, The Politics of the Vatican (London, 1968).

Nietzsche, Friedrich, Twilight of the Idols (1889) and The Anti-Cbrist (1895)(London, 1968).

Noonanj T (Jr), Contraception: A History (Cambridge, Mass., 1965).

—, The Morality of Abortion (Cambridge, Mass., 1970).

—, Power to Dissolve: Lawyers and Marriages in the Courts of the Roman Curia(Cambridge, Mass., 1972).

—, A Private Choice: Abortion in America in the Seventies (New York, 1979).

Novak, Michael (ed.), The Experience of Marriage (New York, 1964).

Nyiszli, Miklos, Auscbwitz: A Doctor's Eye-Witness Account (New York, 1960).

O'Brien, John A, Family Planning in an Exploding Population (New York, 1968).

Oldenberg, Zoe, Massacre at Monségur, trans. Peter Green (London,1961).

Parkes, James, A History of the Jewish People (Chicago, Ill., 1962).

Pastor, Ludwig von, The History of the Popes, 40 vols (London,1890-1953).

Pecher, Eric, John XXIII: A Pictorial Biography (London, 1959).

Peel, Edgar, and Southern, P, The Trials of the Lancashire Witches (Newton Abbot,1972).

Pieper, Josef, The Silence of St Thomas (London, 1957).

Powell, J M (ed.), Innocent III (Boston, Mass., 1967).

Powicke, F M, The Christian Life in the Middle Ages (Oxford, 1935).

Page 422: Vigde cristo

422

Ranke, Leopold von, A History of the Popes, trans. E. Foster, 3 vols (London,1896).

Richards, Jeffrey, The Popes and the Papacy in the Early Middle Ages, 476-752(London, 1979).

Roberts T D, Archbishop, and others, Contraception and Holiness (New York,1964).

Roo, Peter de, Pope Alexander VI, 6 vols (Bruges, 1924).

Roth, Cecil, A History of the Marranos (Philadelphia, Pa, 1941).

—, A History of the Jews in Italy (Oxford, 1946).

Ruffini, Francesco, Religious Liberty (London, 1912).

Runnes, D D, The Jew and the Cross (New York, 1966).

Sandmel, Samuel, We Jews and You Christians (Philadelphia, Pa/New York, 1967).

Santayana, George, Interpretation of Poetry and Religion (New York, 1900).

—, Little Essays, ed. L P Smith (London,1920).

Santillana, G de, The Crime of Galileo (Chicago, Ill., 1955).

Shea, William R, Galileo's Intellectual Revolution (London, 1972).

Smith, J H, The Great Schism, 1378 (London, 1970).

Southern, R W, Western Society and the Church in the Middle Ages (London,1970).

Steiner, Jean F, Treblinka (London, 1967).

Stokes, A and Pfeffer, L, Church and State in the United States (New York, 1964).

Stow, Kenneth R, Catholic Thought and Papal Jewry Policy, 1555-1593 (New York,1977).

Strayer, J B, The Albigensian Crusades (New York, 1971).

Summers, Montague (trans.), Malleus Maleficarum of Heinrich Kramer and jamesSprenger, New York, 1971.

Synan, E A, The Popes and the Jews in the Middle Ages (New York/London, 1965).

Tatham, E H R, Francesco Petrarch, 2 vols (London, 1926).

Page 423: Vigde cristo

423

Thomas, Gordon and MorganWitts, Max, Pontiff (London, 1983).

—, The Year of Armageddon: The Pope and the Bomb (London, 1984).

Tillemann, Helena, Pope Innocent III (Amsterdam, 1978).

Tooley, M, Abortion and Infanticide (Oxford, 1983).

Trachtenberg, J, The Devil and the Jews (New York, 1943).

Trevor, Meriol, Pope John (London/New York, 1967).

Ulmann, W, The Origins of the Great Schism (London, 1948).

—, Mediaeval Papalism (London, 1949).

—, Growth of Papal Government in the Middle Ages (London, 1970).

—, A Short History of the Papacy in the Middle Ages (London,1972).

Vaillancourt, Jean-Guy, Papal Power (Calif., 1980).

Van de Meer, F, Augustine the Bishop (London, 1961).

Vidler, Alec, A Variety of Catholic Modernists (Cambridge, 1970).

—, The Church in an Age of Revolution (London, 1985).

Voltaire, Traité sur la Tolérance, various editions.

—, Selected Works, trans. J McCabe (London, 1941).

Wakefield, L Walter, Heresy, Crusade and Inquisition in Southern France, 1100-1250 (Calif., 1974).

Ward, Wilfred, The Life of John Henry Cardinal Newman, 2 vols (London, 1912).

Whitehead, A N, Science and the Modern World (New York, 1960).

Williams, G H, The Mind of John Paul II (New York, 1981).

Wojtyla, Karol, John Paul II, Segno di Contradizione (Milan, 1977).

Woodward, G W O, Dissolution of the Monasteries (London,1966).

Zola, Emile, Rome: A Novel (London,1897).

Zweig, Stefan, Erasmus of Rotterdam (New York, 1956).