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Tronco, ramos e raízes! História e patrimônio cultural do Seridó negro ORG. JULIE CAVIGNAC MUIRAKYTAN K. DE MACêDO

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Tronco, ramos e raízes! História e patrimônio cultural do Seridó negro

Org. Julie CavignaC

Muirakytan k. de MaCêdo

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Tronco, ramos e raízes! História e patrimônio cultural do Seridó negro

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Editora Flor do SalorganizadoresJulie CavignacMuirakytan K. de MacêdoEditorAdriano de SousaFlávia Celeste Martini AssafNormatizaçãoAurinete Girão BarretoProjeto Gráfico e CapaABA PublicaçõesEditoração EletrônicaJosé Antonio Bezerra JuniorFotosCynthia Melo

Coordenadoria de Processos TécnicosCatalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Tronco, ramos e raízes! [recurso eletrônico]: história e patrimônio cultural do Seridó negro / org. Julie Cavignac, Muirakytan K. de Macêdo. – Natal, RN: EDUFRN, 2016.

402 p.: PDF; 2,4 Mb.

Modo de acesso: http://www.repositorio.ufrn.brISBN 978-85-425-0628-0

1. Antropologia social. 2. Quilombos – Seridó, Região do (RN). 3. Negros – Seridó, Região do (RN). 4. Inclusão social. I. Cavignac, Julie. II. Macêdo, Muirakytan K. de.

CDD 301RN/UF/BCZM 2016/45 CDU 572.028

UNiVErSidadE FEdEral do rio GraNdE do NortE

reitoraÂngela Maria Paiva Cruz

Vice-reitorJosé Daniel Diniz Melo

diretoria administrativa da EdUFrNLuis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor)Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto)Judithe Albuquerque da Costa Leite Albuquerque (Secretária)

Conselho EditoralLuis Álvaro Sgadari Passeggi (Presidente)Ana Karla Pessoa Peixoto BezerraAnna Emanuella Nelson dos S. C. da RochaAnne Cristine da Silva DantasChristianne Medeiros CavalcanteEdna Maria Rangel de SáEliane Marinho SorianoFábio Resende de AraújoFrancisco Dutra de Macedo FilhoFrancisco Wildson ConfessorGeorge Dantas de AzevedoMaria Aniolly Queiroz MaiaMaria da Conceição F. B. S. PasseggiMaurício Roberto Campelo de MacedoNedja Suely FernandesPaulo Ricardo Porfírio do NascimentoPaulo Roberto Medeiros de AzevedoRegina Simon da SilvaRichardson Naves LeãoRosires Magali Bezerra de BarrosTânia Maria de Araújo LimaTarcísio Gomes FilhoTeodora de Araújo Alves

revisãoMárcio Xavier Simões (revisor)

design EditorialMárcio Xavier Simões (miolo e capa)

aSSoCiação BraSilEira dE aNtroPoloGia

Coordenador: Antonio Carlos Motta de Lima (UFPE)Vice-Coordenadora: Jane Felipe Beltrão (UFPA)Patrice Schuch (UFRGS)Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ)

Conselho editorialAndrea Zhouri (UFMG)Antonio Augusto Arantes Neto(UNICAMP)Carla Costa Teixeira (UnB)Carlos Guilherme Octaviano Valle (UFRN)Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP)Fábio Mura (UFPB)Jorge Eremites de Oliveira (UFPel)Maria Luiza Garnelo Pereira (Fiocruz/AM)María Gabriela Lugones (Córdoba/ Argentina)Maristela de Paula Andrade (UFMA)Mónica Lourdes Franch Gutiérrez (UFPB)Patrícia Melo Sampaio (UFAM)Ruben George Oliven (UFRGS)Wilson Trajano Filho (UnB)

diretoriaPresidente: Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ) Vice-Presidente: Jane Felipe Beltrão (UFPA)Secretário Geral: Sergio Ricardo Rodrigues Castilho (UFF) Secretária Adjunta: Paula Mendes Lacerda (UERJ) Tesoureira Geral: Andrea de Souza Lobo (UnB) Tesoureira Adjunta: Patricia Silva Osorio (UFMT) Diretora: Carla Costa Teixeira (UnB)Diretor: Carlos Guilherme Octaviano do Valle (UFRN)Diretor: Julio Assis Simões (USP)Diretora: Patrice Schuch (UFRGS)

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Sumár io

09 APRESENTAÇÃO

17 PARTE I

Patr imônio – camponeses ou qui lombolas?

19 Os giros do patr imônio

Nicolas Adel l

47 Dimensões e concepções camponesas

El len Woortmann

65 Os estudos sobre comunidades negras rurais (qui lom-

bolas) no Brasi l

Carlos Alexandre B. Pl ínio dos Santos

91 PARTE I I

A Boa Vis ta dos negros e a presença afro-bras i le i ra

no Seridó

93 O dever de memória

Jul ie Cavignac

137 Inventário de Manoel Fernandes da Cruz (Fragmento)

Transcrição paleográf ica de Sebastião Genicarlos dos

Santos

141 Boa Vista , sua histór ia e seus moradores

Gabriela Ol iveira

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151 Comunidade de Boa Vista dos Negros

Swesley Cruz

154 Professora Dona Chica: dest inada a aprender

Ana Santana Souza

167 Trad i ções d i s cu r s i v a s nos f a l a r e s qu i l ombo l a s :

observando o re la to h is tór ico em remanescentes

quilombolas do Rio Grande do Norte.

Nelson Ferreira Sousa Junior

177 Doçaria Qui lombola: economia do patr imônio doce

Maria Isabel Dantas

203 PARTE I I I

Recontar o passado?

204 A fo rça de t raba lho dos Gen t ios d ’Ango la e dos

Cr iou los na economia da V i l a do Pr ínc ipe (RN)

1850/1890

Maria Regina Furtado

257 Aspectos da escrav idão do Ser idó em documentos

histór icos

Helder Alexandre Medeiros de Macedo

293 Termo de Vista do Promotor de Capelas ao réu Luiz

Chermont de Bri to

Transcrição paleográf ica de Maria José Nascimento

303 Seguindo os passos de Fel ic iano José da Rocha

Danycel le Pereira da Si lva

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315 Depoimento de D. Zélia Tum, moradora da comunidade

323 O Anjo Aurora

Edi lene Azevedo

329 PARTE IV

Irmandades negras do Seridó

331 Majestades negras: i rmandades de Nossa Senhora

do Rosário no Seridó

Muirakytan K. de Macêdo

351 I rmandade de Nossa Senhora do Rosário de Jardim

do Seridó-RN: entre histór ia e memória

Diego Marinho de Gois

363 A irmandade de Jardim do Seridó e os folc lor istas:

pensando a visibi l idade e a representação dos negros

do Rosário

Bruno Goulart

384 A irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Acari/

RN: memória e histór ia

Fábio de Melo Morais

393 Saltadores dos Negros do Rosário: experiências com

a dança na comunidade Boa Vista dos Negros

Lourival Andrade Júnior

Mônica Luiza Belotto de Ol iveira Andrade

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Ap r e s e n tA ç ã o

Entre outros desdobramentos, a Constituição de 1988 obrigou a sociedade brasileira a enfrentar o seu passado colonial e a refletir sobre as marcas que a escra-vidão deixou ao longo de quatro séculos de dominação e de segregação racial. Há ainda poucos avanços, em par-ticular no que diz respeito à aplicação da lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana na escola ou à implementação dos direitos constitucionais visando a reparação da dívida histórica; é um processo moroso e difícil, sobretudo quando se trata de regularização fundiária. Boa Vista, comunidade qui-lombola localizada no Seridó potiguar que iniciou uma longa jornada para conseguir a titulação do seu território em 2004, reúne as contradições da conjuntura política atual e oferece a possibilidade de conhecer o devir das populações africanas trazidas à força para o Brasil que, em um certo momento da sua história, conquistaram sua liberdade.

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As ações governamentais visando assegurar a igual-dade racial, a descoberta recente dos direitos constitu-cionais, a mobilização política inerente ao processo, as pesquisas realizadas durante os processos de titulação e a disponibilização dos resultados para os moradores provocaram um outro efeito menos comentado; levou os interessados a olhar para sua própria história e a questioná-la. Assim, nota-se um interesse crescente por parte dos integrantes das famílias negras que se identi-ficam em algum momento como quilombolas em saber mais sobre seu passado e em valorizar alguns aspectos da sua cultura. Assim, no caso da Boa Vista, a criação em 2009 do Ponto de Cultura “Espaço de Resistência” materializa o interesse compartilhado por acadêmicos e quilombolas nestas temáticas. Logo após a finalização do relatório antropológico, algumas lideranças solicitaram aos membros da equipe auxílio para elaborar um museu comunitário, ideia que começou a se concretizar em 2012 com o início de um programa de extensão universitária (PROEXT-MEC/Sesu) e que inaugurou novas dinâmicas de pesquisa e ações acadêmicas.

O programa Estratégias para uma educação patri-monial em comunidades quilombolas do Seridó – RN, iniciado em 2012, foi ampliado, com a aprovação de novos editais PROEXT e a implementação de novos programas

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denominados Tronco, ramos e raízes! Inclusão social e patrimônio das comunidades quilombolas do Seridó-RN (2013) e Patrimônio étnico do Seridó-RN (2014). A pro-posta contou com a participação de professores e alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN). Pensada para ter como foco os adolescentes, ultrapas-sou as expectativas iniciais, apesar das dificuldades, pois foram organizados múltiplos encontros regulares entre docentes, alunos do ensino superior e do ensino médio, jovens quilombolas e seus parentes, voluntários, bolsistas do programa, professores, artistas, militantes, representantes do poder municipal, jornalistas, pesquisa-dores locais ou moradores das cidades de Parelhas, Acari, Jardim do Seridó, Currais Novos, Caicó etc. Em diferentes ocasiões foram organizadas discussões sobre a importân-cia da presença afro-brasileira no Seridó e, em particular, os aspectos históricos, políticos e culturais das comuni-dades quilombolas na região com a chegada das políticas promovendo a igualdade racial. Através de oficinas, o programa de extensão estimulou projetos criativos que poderão ser replicados e transformados em atividades produtivas, abrindo novas perspectivas para os parti-cipantes desta aventura. Os resultados das ações estão disponibilizados no museu Tronco, ramos e raízes! que

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tem um formato digital e dedica-se à conservação, inves-tigação, difusão e exposição da cultura imaterial do Seridó potiguar. Seu princípio fundamental é disponibilizar gratuitamente informações sobre as práticas culturais, história e memória ligadas às populações seridoenses de procedência indígena e afro-brasileira. Para fins de divulgação e pesquisa, dispõe de vasto acervo digitali-zado de documentos fotográficos, escritos e impressos, depoimentos, entrevistas, artigos, trabalhos acadêmicos, arquivos de áudio e vídeo, documentação que pouco a pouco está sendo disponibilizada.

Este livro descreve algumas atividades desenvolvidas pela equipe e as reflexões feitas ao longo da realização do Programa de Extensão, mas também traz resultados das pesquisas desenvolvidas no projeto Memórias da escravidão no Seridó (CNPq Universal 483634/2011-5), envolvendo pesquisadores e discentes do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em alguns momentos, integrantes do projeto de cooperação interinstitucional firmado entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Universidade de Brasília se associaram para discutir iniciativas patrimoniais e a questão da invisi-bilidade histórica das populações marginalizadas pelo processo colonial. Assim, em diferentes momentos, do-centes e discentes das duas universidades colaboraram

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no projeto Conhecimentos tradicionais, direitos e novas tecnologias: interfaces da Antropologia contemporânea (PROCAD casadinho, Ação Transversal nº 06/2011, MCT/CNPq/MEC/CAPES).

O livro, escrito a várias mãos, é dividido em quatro partes: na primeira, os especialistas das questões pa-trimoniais, do mundo camponês e quilombola abrem a discussão e colocam os principais problemas teóricos, ilustrando-os com exemplos tirados de outros contex-tos etnográficos. Para auxiliar no entendimento das questões discutidas ao longo do livro e impulsionar a discussão teórica das temáticas abordadas, convida-mos três especialistas que conheceram o programa em momentos diferentes: Nicolas Adell, pesquisador da Universidade de Toulouse-le-Mirail (França) trata da transição patrimonial que passa de uma concepção materializada e objetiva para se transformar num pa-trimônio desmaterializado e sentimental. Ellen Woort-mann, professora da UNB e renomada especialista das questões de parentesco, aborda os desafios atuais em que se debatem as sociedades camponesas, em particu-lar a relação dos homens com o meio ambiente e a ma-nutenção de práticas ecoagrícolas num mundo rural em plena metamorfose. Já Carlos Plínio dos Santos (UNB) desenha o quadro da questão quilombola de um ponto de vista histórico e a partir das ações de regularização

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fundiária. Em um segundo momento, iremos apresentar o programa e alguns dos seus resultados em termos práticos, contando com a voz dos nossos colaboradores locais. Na ocasião, lembramos o contexto histórico e social em que a ação de extensão se insere e descreve-mos as atividades realizadas. Assim, conhecemos um pouco mais da realidade passada e presente da Boa Vista, comunidade quilombola que luta para retomar seu território tradicional e recompor um passado es-quecido. A terceira parte apresenta uma discussão dos elementos tratados sob o ângulo da pesquisa histórica, com a publicação do trabalho pioneiro de Maria Regina Furtado sobre o Seridó, até então inédito, e de estudos historiográficos recentes sensíveis à percepção da his-tória vivida pelos quilombolas. A parte final é centrada na irmandade e da festa do Rosário, de um ponto de vista histórico e etnográfico, com a apresentação dos principais grupos atuantes no Seridó, as expressões musicais, os ritmos e os atores. O livro deve ser lido acompanhado do cordel assinado por Seu Possidônio, “chefe do Rosário” de Caicó e dos produtos audiovisuais realizados pelos jovens que participaram das oficinas audiovisuais com o fotógrafo carioca Ac. Júnior (2012 e 2013), aprendendo sobre a produção e a edição de som, fotografias e vídeos. Os documentários foram realizados com a participação dos integrantes do projeto na Boa

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Vista – Dona Chica (2012), direção de Raimundo Melo –, em Parelhas – A Cruz da Negra (2013) –, e em Jardim do Seridó, durante as festividades dos 150 anos da irman-dade – Famílias do Rosário (2014), ambos sob a direção de Cécile Chagnaud. O material disponibilizado aqui não tem pretensões à exaustividade, é o resultado de um esforço experimental na condução de pesquisas e ações acadêmicas.

Assim, convidamos o leitor a nos acompanhar numa viagem acadêmica e estética pelo Seridó negro, que pulsa na história, na arte, na política e nos saberes locais. Vamos juntos, pois o livro retrata parte dos encontros, das discussões coletivas, das atividades realizadas e das histórias dessas comunidades que saíram do silêncio secular em que se encontravam ainda há pouco.

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PARTE I Patrimônio – camponeses ou quilombolas?

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Os giros do patrimônio

nicolas adelluniversité de toulouse iiliSSt – Centre d’anthropologie sociale

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O patrimônio é hoje, provavelmente, o objeto mais comum e mais conveniente entre os aprendizes etnó-logos, sociólogos ou historiadores, para exercerem seu senso crítico. Ele é atravessado por tantas contradições e ocupa um espaço de contornos tão opacos que é um alvo fácil, ao mesmo tempo que um caso pedagógico ideal para examinar as disputas de definição e o choque de representações, e para tomar consciência da exis-tência de partes cognitivas e afetivas que toda cultura contém e que o patrimônio tem mobilizado fortemente. Além disso, nos últimos anos, algumas universidades anglo-saxônicas, em sua maioria, têm aproveitado essas qualidades patrimoniais por meio de cursos e trabalhos suficientemente estruturados e homogêneos, a fim de que possamos designá-los sob o mesmo título de Critical Heritage Studies .1

Esse dinamismo crítico que coloca o patrimônio sob tensão não é, longe disso, uma novidade. Pertence, ao contrário, ao “contrato patrimonial” e o é, de alguma forma, endêmico. Observamos tal manifestação a partir do período revolucionário de intensos debates susci-tados, particularmente na França, pela musealização das obras de arte. Dois campos então se distinguiam (e continuaram a ser representados até o início do século

1 Como exemplo desta crítica ao uso pedagógico da noção de patrimônio, consultar Breglia (2006).

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XX): os pró-Revolução, estimando que esse gesto pa-trimonial fizesse parte de um projeto em favor da Arte e da Humanidade, buscando assim preservar as obras significativas do passado; os contra-Revolução, criticando o vandalismo dos revolucionários, a destruição das obras ou, o que era equivalente a seus olhos, a abolição de seu significado por sua colocação fora de contexto dentro dos museus2.

Esses debates, que não estão isolados das contradi-ções internas do fenômeno patrimonial, têm investido em múltiplos lugares de reflexão sobre o patrimônio. Sem retomar esta história em seus detalhes, gostaria apenas de insistir no surgimento, nos últimos anos, de uma nova série de tensões sobre a noção de identidade e a dimensão moral do patrimônio, que contribuiu para tornar pública a Convenção de 2003 da Unesco, adotando os princípios de identificação dos elementos do Patrimônio Cultural Imaterial. Mas essas novas tensões se inscrevem no fio mais amplo de uma evolução patrimonial desde o século XVIII e assinalam o resultado de uma inversão que eu gostaria de tentar esclarecer aqui.

Não se trata de retomar em detalhe a evolução que conduz do momento dos “Monumentos históricos”, no

2 Sobre essas duas posições, cf. Poulot (1993a, p. 27-33). Referente aos museus como “destruidores de sentido”, que é desde o início a posição de Chateaubriand, podemos ler Poulot (1993b, p. 1604-1605).

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início do século XIX, aos esforços atuais de determinação de um Patrimônio Cultural Imaterial. Essa história está atualmente bem documentada e, mesmo se devêssemos nos manter dentro da literatura francofônica, iríamos nos deparar com um rico panorama, suficiente para desenhar um esboço bastante preciso3. Eu gostaria simplesmente de enfatizar a importância do “ponto de vista etnológico” revelado por Chastel (1997, p. 1458) no contexto da nova apreensão patrimonial do início da década de 19804 e que alcança seu maior desenvolvimento no final dos anos 1960, ou, mais especialmente, na década de 1970.

Essa “atenção etnológica” é exercida, de uma parte, em favor da constatação da presença de “mundos finitos”, como este, vasto, dos campesinatos ou aqueles, mais es-treitos, dos ofícios antigos representados pelos “últimos” (tipógrafo, ferreiro etc.)5; e, de outra parte, ativada pelo

3 Conforme essa abundante literatura, podemos especialmente nos referir a Choay (1992), Bercé (2000), Poirrier (2003), Poulot (2006), Jadé (2006), como também à maior parte dos atos das “Entrevistas do Patrimônio” organizadas pela direção do Patrimônio do Ministério da Cultura desde 1988. Eles propõem, a cada ano, perspectivas de análise das políticas patrimoniais em função da atualidade mutável desta área. Eles conjugam aproximações teóricas e estudos de caso, reunindo universitários, pesquisadores, políticos, atores. E para uma visão “ampliada” desta evolução, cf. Vecco (2007, p. 35-70).

4 Para uma percepção rápida e recente das grandes linhas dessa evolução geral, cf. Heinich (2009, p. 27-28).

5 Para um estudo mais detalhado desta aproximação, pelos “últimos”, do nascimento do “patrimônio etnológico”, cf. Fabre (1997, 2000a).

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viés de circunstâncias especiais, como a descolonização, para dizer rapidamente, que faz com que muitos antropó-logos de profissão se juntem à metrópole e a ela apliquem as ferramentas e um olhar testados sob latitudes distintas (RIOUX, 1997, p. 293-296). Mas, para além desses motivos circunstanciais, a emergência do sentido etnológico na noção de patrimônio revela igualmente a existência de um movimento geral que, por Monumentos históricos do Patrimônio Cultural Imaterial, possui a aparência de uma inversão que vê a substituição de uma lógica do Tempo por uma lógica do Espaço.

o giro espAciAl

Parece claro, para todo historiador do patrimônio, que, entre a Monarquia de Julho (1830-1848), o tempo dos “Monumentos históricos” se assim quisermos, e o momento presente do Patrimônio Cultural Imaterial, há muito mais do que uma simples passagem do super monumental ao mais medíocre dos objetos (“da catedral à pequena colher”, escreve Nathalie Heinich [2009]), e vai bem além desse alargamento do material ao imaterial. Há uma outra coisa. De fato, o que quer realmente o momento dos “monumentos históricos”? Qual é o seu “espírito” segundo aqueles que o defendem? Uma frase de François Guizot, Ministro da Instrução Pública e que

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estabelece o serviço do Inventário geral dos Monumentos Históricos (1859, p. 385), retirada de um relatório feito ao rei em 21 de outubro de 1830, permite estabelecê-lo perfeitamente: “[Os Monumentos históricos], escreve ele, não pertencem somente a tal ou tal fase da história, eles formam uma série completa e sem lacuna [...]”.

Existem aqui duas características do patrimônio que são enfatizadas: por um lado, a continuidade que ele confere ao Tempo (“uma série completa e sem lacuna” que é necessária para figurar a História); por outro lado, a descontinuidade que isso implica no Espaço, que é “esbu-racado”, desfigurado em favor da figuração da História. O patrimônio dos Monumentos históricos é um patrimônio horripilante de eventos solidificados, um patrimônio des-grenhado e constituído por elementos que são colocados fora do lugar, simplesmente justapostos, em benefício de determinado curso, de um cenário da História. Portanto, o colocamos em uma série de pedras da Bretanha para representar o tempo dos últimos druidas com tal igreja de Roussillon, indicando os primórdios da arte românica.

Uma bela ilustração desse ponto pode ser provavel-mente encontrada no Musée des Monuments Français d’Alexandre Lenoir, criado em 1796 para reunir obras de arte de edifícios removidos pelos revolucionários. Este museu é projetado de acordo com uma organização cronológica (o importante é a “classificação cronológica”,

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dizia Lenoir), com uma sala para o século XV, outra para o século XVI etc. Essa organização coloca, em última ins-tância, o Tempo ao abrigo de si mesmo. E não me parece que seja preciso ler nesse gesto a anulação do Tempo6, mas, pelo contrário, podemos observar sua colocação em aspas (que é o inverso de uma colocação entre parên-teses), enfatizando-o como critério absoluto. O museu quer mostrar a passagem dos séculos, mas cada um deve ser parado, imortalizado em um monumento ou uma série de monumentos. O fluxo do Tempo e a sucessão das idades devem ser lidos, decifrados na alternância de estilos e não serem percebidos ou sentidos pelo impacto de uma degradação ou de uma erosão muito visível. É um Tempo medido conforme os “valores da arte e da história”, um Tempo intelectual, ainda não fundado sobre a emoção que carrega nossa apreciação subjetiva de um “valor de antiguidade”, para retomar a tipologia de Riegl (1984 [1903])7. É o que diz perfeitamente um viajante alemão, Schultes, que visita a França, especialmente esse Musée des Monuments français, instalado em Paris, no

6 É a posição de Poulot (1993a, p. 44).7 Existem atualmente inúmeros comentários deste texto seminal, a começar

pelos diferentes prefácios às reedições desta obra em língua alemã, bem como nas traduções francesa e italiana especialmente. Para abordagens críticas mais recentes, podemos ler Fabre (2000b), Davallon (2006, p. 57-88). E para um panorama completo da obra de Riegl, cf. Scarrocchia (1995).

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Petits-Augustins. Ele o considera admirável e o traduz por um sentimento pessoal: “Eu não desejo apenas que mo-numentos bem concebidos e executados sejam dispersos pelo efeito do acaso, eu quero que eles sejam expostos em um lugar poupado dos estragos do tempo” (citado em POULOT, 1997, p. 1529-1530).

Estão absolutamente expressos nesse espírito dos “Monumentos históricos” os princípios universais de con-tinuidade e de unidade, instalados de forma permanente e que vemos muito claramente em uma obra de 1964, na carta de Veneza, procurando estabelecer a universalidade e o absoluto dos critérios de autenticidade. O questiona-mento desses princípios, inaugurado internacionalmente por meio do Documento de Nara em 1994, em favor de um reconhecimento da diversidade, do contextual e das autenticidades relativas e afetivas, encontra na Con-venção de 2003 sobre o Patrimônio Cultural Imaterial uma espécie de resultado que confere a essa evolução a aparência de uma inversão.

a) De uma certa maneira, o atual Patrimônio Ima-terial Cultural apresenta duas características invertidas em relação ao que foi dito anteriormente. Há, de início, a ideia de um espaço contínuo (contra o espaço “esburaca-do” dos Monumentos históricos) e isso por duas razões: primeiro, porque o patrimônio conheceu uma extensão verdadeiramente geográfica de seu campo, podendo ocu-

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par todos os lugares da humanidade (o interior de uma tenda siberiana, o espaço de uma dança tradicional em uma grande cidade da África, os itinerários mesmos: os caminhos de Santiago de Compostela); em seguida, por-que os objetos patrimoniais, incluindo os monumentos, são cada vez mais tão considerados quanto as práticas que eles encadeiam, que lhes atravessam, que lhes “ habi-tam”, quanto as representações que lhes percorrem, com relação ao impacto que eles exercem sobre uma área que as políticas e as administrações procuram territorializar, cortar, mas que apresentam, na realidade vivida dos ato-res, contornos de uma relativa nitidez. Tal objeto pode ser reivindicado como patrimonial em um momento, e depois, de modo algum, em outro. Ele pode oferecer o seu convite para a identificação de um espaço cuja extensão varia de acordo com a situação que “ativa” o objeto. Por exemplo, a destruição dos Budas de Bamiyan pelo Talibã contribuiu para uma considerável extensão de sua recep-ção como “patrimônio”. Essa nova abordagem espacial re-úne, na minha opinião, o espírito dessa recente “etnologia dos Monumentos históricos”, que está parcialmente liga-da à categoria de “patrimônio imaterial” (FABRE, 2000a; FABRE; IUSO, 2010). O erro muitas vezes cometido é o de se pensar que a passagem para o imaterial leva a efei-tos de virtualização ou de invisibilidade do patrimônio. Em vez disso, o patrimônio imaterial exige e estimula uma

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pedagogia do olhar e do ver; ele nos torna sensíveis não só aos objetos grandiosos, à ruína ou à pátina do tempo que oferecem uma percepção “imediata” do patrimônio, mas cada vez mais às pequenas diferenças, às discrepâncias, ao que singulariza, a um ambiente específico, às originalida-des do fazer. O patrimônio imaterial ama o Espaço; ele se implanta mais e melhor do que o “velho estilo”8. Não é in-significante notar que na história imediata do surgimento do Patrimônio Cultural Imaterial encontramos as noções de “paisagem cultural” e de “itinerário”. É que o PCI nos convida a pensar em termos espaciais, particularmente as identidades9.

A segunda reversão operada é que, confrontada com a continuidade do Espaço, corresponde agora a um Tempo “esburacado”, descontínuo. De fato, não hesitamos mais em indicar as alterações, o caráter “vivo” (é o termo que foi primeiramente adotado em relação ao “imaterial” para qualificar o novo patrimônio cultural pela Unesco), e assim mutável, do objeto. Recordamos os diferentes

8 A importância tomada pela dimensão espacial no Patrimônio Cultural Imaterial foi perfeitamente demonstrada por Logan (2007).

9 Esta questão não escapou a Morisset (2009, p. 20). Seu texto mereceria ser completado por uma distinção que opera Fabre (1998) entre o gesto patrimonial vindo “d’en haut” que, para durar, se apoia em uma circunstância, um governo territorial (p. 290) e a emoção patrimonial vinda “d’en bas” que funda um lugar, intensa no momento da ação (de defesa do objeto, de militantismo etc.), então negligenciada ou mesmo esquecida em seguida (p. 295-296).

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usos e as diferentes interpretações que lhe dizem respeito e que podem ser ainda hoje sobrepostas, conferindo-lhe o seu caráter eminentemente relativo. Isso é o que tem sido bem descrito em um livro recente dirigido por Fabre e Iuso (2010), sobre os Sassi de Matera, suas habitações trogloditas que são “habitadas ” e “vistas” diferentemente dependendo da posição que ocupamos: habitante, deten-tor do poder local, representante do Estado, especialista internacional etc.10. Assim, insistimos sobre os diferentes “presentes” que habitam um mesmo objeto ou um mesmo monumento. Ao fazermos isso, damo-nos os meios para pensar novamente na maneira pela qual o tempo é “arti-culado” (desde que ele parou de fluir naturalmente e de forma idêntica para todos). Acima de tudo, esse Tempo “es-buracado” se manifesta na observação efetuada por muitos pesquisadores vinculados ao patrimônio e à identidade: todo o passado material deixa de ser reivindicado como um patrimônio para si mesmo (há um efeito de seleção). Em geral, as identificações coletivas perderam seus marca-dores tradicionais (o pertencimento a um grupo fundado sobre uma história compartilhada, sobre as tradições, descansando no Tempo, portanto) e isso tem uma tradu-ção em relação ao patrimônio: entramos em um “tempo da Ação”, onde “a identidade fusional é limitada ao breve

10 Cf. especialmente as contribuições de Ferdinando Mirizzi, Amerigo Restucci e Dorothy L. Zinn.

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tempo de uma comunidade de ação” (FABRE, 1998, p. 296). Assistiríamos então a uma crise da relação entre a iden-tidade e o patrimônio que reflete e reforça uma tensão interna ao Patrimônio Cultural Imaterial: a preocupação de uma ética patrimonial e de um humanismo do patrimô-nio atinge os discursos sobre a identidade, considerados portanto como fundadores porque é “o sentimento de identidade e de continuidade”, de acordo com os termos da Convenção de 2003, que legitima o reconhecimento de elementos patrimoniais.

o giro morAl

O “giro espacial” tomado pela noção de patrimônio consiste igualmente, já assinalamos brevemente, em uma virada pragmática, uma vez que um interesse especial está agora voltado às situações, às ações, aos contextos de enunciação, à recepção e à interpretação pelos indivíduos: à reflexividade, em resumo. É um ponto central da Conven-ção de 2003: o lugar reservado aos atores, pelo menos nos textos, é decisivo. E isso é o que constrói a nova perspectiva ética do Patrimônio Cultural Imaterial e, de forma mais geral, do patrimônio “novo estilo” como um todo.

Antes de seguir com esse ponto, torna-se convenien-te alertar quanto às objeções que não devem deixar de surgir durante a leitura desse enunciado. Não havia então

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moralidade nos Monumentos históricos? Não teriam eles precisamente como objetivo construir, em todo o sentido do termo? E, para ir mais longe, não seria um sentimento moral que teria levado alguns, na época da Revolução, a preservar as obras do passado pelo bem da memória, mesmo que isso pudesse muito bem prejudicar o projeto de tábula rasa e de total reconstrução da sociedade? É que o giro moral que estou tentando apontar não é a demonstração de um nasci-mento ao mundo patrimonial da perspectiva ética, mas sim o aparecimento de uma outra moral. Na verdade, a moral dos Monumentos históricos aparece como uma moral “fechada”, que estabelece cânones, institui regras de conduta, exerce sobre os indivíduos uma pressão para admitirem o Belo e o Bem, fazendo desde a partida dos museus “depósitos de valores” como tão bem diz Poulot (2001, p. 30). Segundo ele, a moral do Patrimônio Cultural Imaterial é mais uma moral “aberta”11 que se baseia menos na coerção do que na atração, no fato de suscitar uma adesão e de criar movimento para obedecer aos princípios não fixados em instituições, mas incorporados pelos indivíduos. O fenômeno dos “tesouros humanos vivos”, ideia que vem do Japão (país motor na implementação da Convenção de 2003), parece-me uma

11 A distinção entre as duas morais é retomada de Bergson (2008 [1932]). O desenvolvimento que segue utiliza as características identificadas por Bergson para identificar as duas morais: a regra e o herói, a restrição e a liberdade etc.

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ilustração ideal desse patrimônio “aberto” ao mesmo tempo em que estabelece os limites. Se o “tesouro humano vivo” tem algo do herói, produzindo nos indivíduos espectado-res uma emoção atenta que, no momento da visita ou da demonstração, cria um fascínio e uma atração especial pelo amor sensível e contagioso de um ofício ou de uma técnica, distingue-se pelo conjunto de restrições (expressas pelas ad-ministrações que lhes marcaram) que cercam sua conduta e orientam seus gestos exteriores (a motivação de um salário às vezes, a necessidade de um aprendiz etc.) de forma mais rigorosa do que a bússola interna do herói, obedecendo aos imperativos enterrados ou ao sentimento de um destino.

Emprestada de Bergson (2008), a distinção entre as duas morais não tem, como o filósofo já especificava, a apa-rência de um corte limpo pois, sem grande transição, uma vez que, identificadas as duas formas, as trocas ocorrem entre elas, o que proporciona mais o aspecto de um traço de morais do que o de uma tabela de duas colunas. O patrimônio “fechado” está aberto à Humanidade desde o início e é desejado imediatamente como universal; o patri-mônio “aberto” se ponderou de constrangimentos da lista, da série limitada de “obras-primas” e do estabelecimento de restrições: autenticidade, acessibilidade etc.

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No entanto, devemos notar a que ponto o “aberto” caracteriza as orientações atuais das políticas patrimo-niais desejosas de derrubar, progressivamente, os sinais do “fechado”. Assim, o valor de autenticidade, relativizado no Documento de Nara em 1994, é considerado em 2004, na Declaração de Yamato, como “não apropriado” no que diz respeito ao Patrimônio Cultural Imaterial. Da mesma forma, os requisitos de acessibilidade estão submetidos – a Unesco tende a ser mais e mais explícita sobre este ponto – ao respeito a práticas nas quais, às vezes, uma simples divulgação pode contribuir para alterá-las signi-ficativamente ou até mesmo destruí-las, como no caso de manifestações sagradas ou secretas.

Mas esse giro moral, este patrimônio “aberto” traduz--se igualmente de uma outra forma, que se reflete nas primeiras convenções do patrimônio mundial, desde aquela de 1972. Observamos, na verdade, a ideia de um patrimônio para todos; ou melhor, de uma solidarieda-de no patrimônio. Essa solidariedade se manifesta não somente nas operações de proteção pela comunidade internacional a elementos específicos da natureza ou da cultura de uma determinada comunidade, mas também no desejo de uma redistribuição mais equilibrada do mapa patrimonial com o PCI (Patrimônio Cultural Imaterial). Trata-se de gerar um “patrimônio equitável”, respondendo a Unesco assim ao chamado de Le Goff

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(1998, p. 438), que expressava, em 1998, o cuidado de um “humanismo do patrimônio”.

Isso se reflete perfeitamente na atenção concedida à participação, em todos os níveis, das comunidades. Elas deixam de ser apenas detentoras e produtoras do seu patrimônio para ocupar também as funções de gestor, promotor e mediador. Asseguramo-nos, diante desse tipo de fato, de que o patrimônio e a patrimonialização se abrem para o “Bem” das comunidades envolvidas, pois, implicadas em todas as fases da operação patrimo-nial, elas não saberiam jogar contra elas próprias. Essa é uma importante reversão da moral em patrimônio, com a qual somos confrontados. De ferramenta moralizadora que era em seu nascimento, com seus museus como “depósitos de valores”, afirmando as virtudes pela expo-sição do Belo e do Bem no contexto de um patrimônio como espetáculo, tornou-se hoje em dia uma máquina moralizadora, transformando os elementos selecionados em objetos éticos (não é mais uma questão de ser “bom” para ser patrimonial; é o fato de ser patrimonial que o torna “bom”) que garantem o Bem da comunidade no interior de um mundo patrimonial que, deixando de ser um espetáculo, tornou-se um meio. Podemos agora viver em patrimônio, como evidenciam a implantação de ecomuseus, o reconhecimento patrimonial das paisa-gens, a nova importância que é atribuída aos monumen-tos habitados.

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Surgem imediatamente os limites de uma tal lógica e de um tal raciocínio. O primeiro é evidente: o que en-tendemos por “comunidade”? Quem participa (e o que é exatamente “participar”: conhecer um especialista da ad-ministração cultural? Fazer um espetáculo patrimonial? Escrever um documento de candidatura para a Unesco? Lê-lo sem escrevê-lo, assiná-lo?) em uma comunidade? É certo que a “comunidade” nunca participa senão como intermediária de alguns representantes cuja posição (muitas vezes de elite), as motivações e as perspectivas estão longe de serem amplamente compartilhadas pelo resto dos membros do grupo. Defendendo a diversidade cultural por meio do Patrimônio Cultural Imaterial, não praticamos um alisamento mais pernicioso ao construir-mos unidades culturais que eliminam as disparidades in-ternas e, finalmente, o dinamismo essencial da cultura12 ?

O segundo limite é de outra ordem e diz respeito ao “espírito de patrimônio”. Se o objeto patrimonial não é mais necessariamente belo (talvez mesmo ele não deva ser13), é sempre “bom” porque permite tomar consciência de si, de seu valor; ele proporciona a “ tomada ” das iden-tidades coletivas. Essa é, no meu ponto de vista, a razão

12 Para um estudo deste aspecto a partir de um caso francês de Patrimônio Cultural Imaterial, cf. Adell (2012).

13 Indo mais longe, Heinich (2009, p. 219-232) bem mostrou a maneira pela qual a beleza torna-se um “critério proscrito” de classificação patrimonial.

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pela qual não se deve jogar a ética contra a identidade e dizer, como fazem alguns, que essas novas relações patri-moniais regidas pela ética aparecem como o “ negativo dos discursos proferidos pelas identidades”14. Há gestos ego-ístas de solidariedade, como os manifestantes que um dia, ameaçados explicitamente em seus empregos, participam de uma ação coletiva; são elaborações de si, construções identitárias que não passam pela introspecção individual, mas que passam verdadeiramente pelos outros, pela cari-dade e pelo altruísmo (há “carreiras” no sentido sociológico do termo, no humanitário). E o patrimônio atual me parece comprometido com essa via de conciliação entre a ética e a identidade, mesmo se ele não está livre de excessos e perigos inéditos, os quais a sua nova natureza pode amenizar15.

Assim, parece que, nesse novo espírito patrimonial que a Convenção de 2003 traduz e ao mesmo tempo amplia, e no nível da vida coletiva em todos os meios (pelos quais esta se manifesta em identidades sólidas de pertencimentos comunitários ou no breve tempo de uma ação precisa de reivindicação ou de defesa de um monumento, de um objeto, de uma memória), uma “vida boa” seja uma vida com patrimonialidade16.

14 Para uma defesa e ilustração desta ideia, nos referimos a Chaumont (1991), Poulot (1993a, p. 48-49).

15 Uma exposição desses perigos em Adell (2011a e b).16 Para um desdobramento dessa ideia, permito-me referir a Adell; Pourcher

(2011) e Adell (2012).

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conclusão: o lugAr dA reversão pAtrimoniAl

É certo que tal reversão no domínio do patrimônio, que permite passar de Monumentos históricos para Pa-trimônio Cultural Imaterial, não se constituiu em uma ruptura brutal, mas em uma série de transições que são jogadas em escala mundial e diante das quais os vários Estados envolvidos na elaboração do PCI tiveram um papel diferente. Mas, por trás dessa disparidade de razões nacionais, há uma transição que podemos identificar com maior precisão. Para localizá-la, devemos ser capazes de determinar um objeto ou um grupo que apresentaria um estado intermediário entre as características fundamen-tais do tempo dos Monumentos históricos e aquelas do tempo do Patrimônio Cultural Imaterial. Devemos poder determinar algo que estaria entre os monumentos e as pessoas (homens-monumentos) e que estaria entre o Tempo e o Espaço (isto é, os locais nos quais o tempo teria parado em relação a ele próprio, e não artificialmen-te como nos museus dos Monumentos históricos).

Tal objeto existe e ainda concentra a atenção dos an-tropólogos entre o final do século XIX e meados do século XX. Trata-se dessas sociedades distantes, “exóticas”, consideradas como “primitivas” por meio das quais to-mávamos consciência do desaparecimento iminente (era a convicção de um dos fundadores da disciplina, Lewis

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H. Morgan). Desde então, era necessário preocupar-se com cuidado dos últimos representantes estudando suas línguas, suas crenças, seus costumes, seus conhecimen-tos, seus estilos de vida: todos os futuros temas do PCI. Procedemos assim a uma “busca pelos últimos” que são, no meu ponto de vista, o lugar exato da transição entre a lógica dos Monumentos históricos e a do Patrimônio Cultural Imaterial17.

Esta transição ampliou o seu campo de ação, contribuindo para a emergência da ideia de PCI. Na verdade, inicialmente focada nos “últimos primitivos” (que museificamos vivos em alguns casos18), o interesse patrimonial-antropológico se deslocou e estendeu-se a partir da segunda metade do século XX, especialmente aos “últimos saberes ”, no seio mesmo das sociedades ocidentalizadas ou ditas “modernas”: os últimos a pos-suírem tal conhecimento, tal saber, tal técnica. O efeito de “destruição de um mundo” implicado na Segunda Guerra Mundial é bastante significativo. Também não é por acaso que os países que mais sofreram com o conflito são igualmente aqueles encontrados entre os pioneiros, ou os mais investidos nesta nova atenção aos

17 O paradigma dos “últimos” foi formulado por Fabre (2008).18 Cf., nos anos 1910, o caso célebre e paradigmático do último dos Yahi

(um grupo indígena do norte da Califórnia), Ishi, colocado no museu por Alfred Kroeber. A história da relação entre Ishi e Kroeber foi relatada pela esposa do antropólogo americano (KROEBER, 1964).

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“últimos”. É o Japão, sob dominação americana e que experimentou mais de perto o sentimento de perda, o primeiro a estabelecer a política de “Tesouros humanos vivos” desde a década de 1950, que prefigura as listas do PCI, identificando os últimos portadores de saberes e de conhecimento. É, mais tarde, na década de 1960 e sobretudo em 1970, na Europa e particularmente na França, a renovação do interesse pelos saberes populares, especialmente dos campesinatos, que procuramos inves-tigar, antes que eles desapareçam juntamente ao mundo camponês, conforme anunciamos seu fim em toda parte.

Mas como, desde então, estabelecer os limites para os saberes que os últimos detentores deveriam fazer objetos de um registro, de uma proteção ou de um estudo? A extensão do campo parece infinita19: parece que preservar e estudar o último falante de dalabon (língua aborígine do norte da Austrália) é tanto um gesto patri-monial quanto se interessar pelo último a saber dançar tal música, pelo último a praticar tal jogo, pelo último a saber fazer tal gesto, a possuir o uso de tais palavras etc. Na Alemanha, mais precisamente em Baviera, uma série de documentários cinematográficos, significativamente intitulada “Der Letzte Seines Standes” (literalmente, “o

19 Para a questão dos “limites non frontières des savoirs” (limites não fronteiriços dos saberes) e dos “savoirs des derniers” (saberes dos últimos), faço referência a Adell (2011c).

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último do seu estado”; “o último dos seus”, mais adequado na minha opinião) e que se desenrolou entre 1991 e 2008 ilustra muito bem essa expansão, embora ainda contida no mundo artesanal.

O fato é que, diante de tal perspectiva, cada vez mais as pessoas podem então reivindicar o estatuto de “últimas”. E se nenhuma delas se incomoda em estabe-lecer, para um público, suas habilidades especiais como “patrimônio”, resta esta carga de um potencial em patri-monialidade que torna a “vida boa” e que a Convenção da Unesco sobre o Patrimônio Cultural Imaterial procurou expressar a nível institucional.

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Dimensões e Concepções Camponesas

ellen F. Woortmanndepartamento de antropologia, unb

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Meu objetivo neste trabalho é discutir algumas dimensões da Weltanschauung, isto é, da cosmovisão camponesa, configuradas no âmbito da reciprocidade entre meio ambiente e religiosidade, em interação com diferentes processos de modernização .

Tal como apontado em trabalho sobre a relação entre gênero e meio ambiente no litoral do Rio Grande do Norte, Woortmann (1992, p. 31) afirma:

[...] por ambiente entendo aqui um espaço total composto por espaços específicos articulados entre si pelo grupo que nele e dele vive. (...) Trata-se pois, não apenas de um ambiente natural dado, mas de um ambiente culturalmente significativo e socialmente utilizado. A noção de ambiente inclui, então, as relações sociais e a cultura que fazem da “população”, uma sociedade. Essa noção implica pois, não uma oposição entre natureza e sociedade, mas a interação entre ambas... Na medida em que esse sistema envolve a interação entre a natureza e grupos sociais, o espaço é socialmente construído. Tal construção implica um processo de apreensão cognitiva do meio ambiente natural e processo de seleção de suas partes, seja no plano prático seja no simbólico.

Bourdieu (1982) propõe a existência de disposições internalizadas e naturalizadas em relação dialética com as práticas, em outros termos, a combinação entre “estruturas estruturadas e estruturantes”, quer dizer, aquilo que foi inculcado pela tradição em termos de concepções – e re-lações com o meio ambiente –, de um determinado grupo social e o que foi historicamente por ele atualizado no

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decorrer do tempo. Nessa perspectiva totalizante, holista, na acepção de Dumont (1975), uma localidade ou região pode ser vista como um território no qual práticas socior-reprodutivas são mantidas seletivamente no decorrer do tempo, configurando o que Pietrafesa (1997) define como “sistema do lugar” e distintos modos de existência (2009). A noção de prática aqui será concebida como decorrente do habitus de um grupo ou pessoa, tal como discutido por Bourdieu em seu clássico Célibat et Condition Paysanne (1962) noção que não se confunde com a de outros autores, tal como Sahlins (2004), com sua teoria da utilidade ob-jetiva.

A partir desse quadro, propõe-se pensar e pesar a noção de práticas ecoagrícolas camponesas tradicio-nais como resultado de um domínio cognitivo do meio ambiente, de certa forma uma mémoire longue, como propõe Zonabend (1980), de conhecimentos de um local ou área específicos. Essas práticas resultam do manejo dos recursos disponíveis com relação a um ambiente percebido, um fenômeno desenvolvido no interior de grupos tradicionais, muitos dos quais hoje em fase agonística enquanto cultura ou em situação de crise ambiental aguda. Em alguns casos essas práticas ainda estão sendo operacionalizadas, em outros, elas somente estão no plano da memória dos idosos e em outros ainda, essas práticas já foram seletivamente deletadas.

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Identificam-se práticas ecoagrícolas, via de regra, entre grupos estabelecidos em uma determinada área durante longo tempo e resultam de um processo de interação com a natureza na qual uma como que “etnos-sustentabilidade”, como forma específica de interação com a natureza, encontra condições de se reproduzir. De outra forma, constitui um conjunto de conhecimentos e práticas configuradas no tempo, no observar, saber e fazer, aplicadas em espaços específicos e transmitidos, via de regra, aos membros do grupo ou pessoas em posição estratégica na família. De outra forma ainda, corresponde a uma negociação/adaptação entre elementos do modelo produtivo herdados pelo grupo e o meio ambiente no qual está inserido e ajustados face aos impactos da mo-dernização.

A noção de práticas ecoagrícolas na verdade surgiu ao longo de trabalho de campo realizado com o objetivo de compreender a lógica do processo produtivo entre teuto-brasileiros no Sul (WOORTMANN, 2011), instala-dos no Vale do Rio dos Sinos a partir de 1824. Assim é que foram identificadas práticas ecoagrícolas relacionadas, por exemplo, à existência de espaços específicos de cultivo face à incidência de luz solar nas várias estações do ano, o uso peculiar de pequenas áreas de cultivo de produtos em espaços livres de geadas, as práticas de proteção/preservação de recursos hídricos mediante a

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manutenção de matas de galeria, árvores, junto a poços ou fontes. No âmbito desses colonos, ficou evidente que, se há uma forma de ação/interação homem/natureza, uma mediação, orientação ético/religiosa que subjaz, há também a configuração de uma “etnossustentabilidade”, reproduzida pelo grupo na medida do possível e que não se confunde com o conceito de sustentabilidade urbano--centrada (WOORTMANN, 2011).

Se no caso dos colonos são identificadas práticas ecoagrícolas relacionadas à incidência de geadas no inverno, em outras áreas como o Nordeste e o Vale do Rio São Francisco no Sudeste, identificam-se práticas rela-cionadas aos impactos da seca. Em grupos camponeses, tais como o quilombo do Vale do Rio Gurutuba - MG, analisado por Costa (2008), identificam-se outras práticas que remetem à mesma concepção de etnossustentabili-dade. Esse grupo desenvolveu, por exemplo, práticas es-tratégicas como uso mais intensivo de pequenas áreas de depressões mais férteis que retêm “a bênção das chuvas” por mais tempo, e onde podem ser cultivadas variedades ou espécies de plantas que necessitam maior umidade. É, portanto, através dessas práticas que se obtém a ma-ximização de uso de dois recursos escassos na região: a terra fértil e a retenção da água.

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Tal como aponta Costa (2008), grande parte dessas práticas estão hoje inviabilizadas devido à grilagem dessas depressões por fazendeiros que nelas plantaram pasto para o gado. Para esses quilombolas, a expropriação dessas terras específicas foi determinante para inviabi-lizar a segurança alimentar do grupo. Como parte do mesmo movimento de expropriação desses quilombolas por grandes fazendeiros foi construída à jusante uma bar-ragem no rio, o que impede seu escoamento constante, colocando em risco o abastecimento de água do grupo e seus animais.

Apesar desse quadro de perdas de grande parte de suas terras agricultáveis e do acesso constante a água, via de regra associadas ao gerenciamento masculino, são identificadas outras práticas relacionadas a essas áreas e ao gênero feminino, via de regra para a obtenção de alimentos. Assim, em certas épocas do ano, pequenos grupos de mulheres, em geral mais velhas, cruzam as cercas de arame dos fazendeiros em busca de mel. Hoje, apesar do desmatamento brutal que ocorreu em toda região, ainda restam locais, no mais das vezes escondidos, nos quais fazem coleta do produzido por variedades en-dêmicas de abelhas. Essas quilombolas coletam também onde essas abelhas, na falta de vegetação natural, insta-lam suas colmeias: em postes de madeiras específicos da cerca, antigos troncos de árvores nativas derrubadas.

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Além disso, não coletam todo o mel, deixam uma parte “para elas darem mais”.

Durante o período de estiagem, no qual há escassez generalizada de alimentos, a carne constitui um alimento raro. Como prática para suprir parcialmente essa falta, as mulheres quilombolas do Vale do Gurutuba lançam mão da “coleta” de peixes nos poços remanescentes do rio. Numa forma de etnomanejo de recursos escassos, essa coleta é por elas limitada às sextas-feiras, “dia santo em que não se deve comer carne”. Identifica-se nessa prática uma forma de prover a família com alguma proteína – que nos tempos de precisão se “come puro toda a semana” – ao mesmo tempo em que preserva os recursos naturais. Tudo isso orientado por um referencial ético/religioso tradicional, de obediência à proibição de consumo de carne em todas as sextas-feiras do ano e nos quarenta dias da quaresma.

Interpretando esse quadro etnográfico à luz de uma abordagem teórica, deve ser destacado o que Klaas Woortmann (2000) concebe graficamente como um tri-ângulo, marcado pela égide de uma percepção articulada e holista do mundo. O vértice superior deste triângulo – numa percepção tradicional pré-romanizada – é ocupado por Deus, como Senhor e Criador do mundo; no segundo vértice, subordinado a Ele, encontra-se o Homem, como sua criação; e no terceiro, também como sua criação, está

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a Natureza. Há, portanto, a configuração de um pacto hierárquico com valores, pesos, diferenciados: o Homem e a Natureza, com peso e valores menores, subordinados a Deus, o Criador, o peso maior.1

É evidente que esta não é uma concepção de mundo urbana, capitalista, globalizada, na qual Deus está fora desse universo, separado e encerrado num espaço sacrali-zado, no contexto da religião formal. Como também não é a concepção urbana de natureza, na qual esta, numa relação verticalizada, está subordinada ao homem, a seu serviço, para ser usada e abusada. Ademais, nesta concepção urbana pode-se identificar relações de causa e efeito entre homem e natureza, porém sem correlação direta com Deus. Esse triângulo pode ser identificado, por exemplo, quando se analisa a prática do acendimento de fogueiras montadas no dia de São José, dia 19 de março. Como afirma um camponês, hoje produtor de maracujá para o mercado de Aracaju:

Desde o meu tempo de menino, nunca deixei de honrar São José.

E botei no meu filho o nome dele. Pode escrever aí, dona, ele diz para o povo como vai ser o inverno.

– Como assim?

1 Essa concepção também era compartilhada no período inicial do MST através de mensagens, tais como: “Terra de Deus para quem nela trabalha”.

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É isso mesmo. Dia de São José que cai aquela água boa, aquela chuva, chuvona, pode escrever que Deus vai mandar um inverno bom... vai ser aquela fartura, o povo aquela alegria da panela cheia, os bichos gordos, aquela beleza.

Agora, quando não chove no dia de São José, é porque ele já está avisando para o povo que acredita, o inverno vai ser fraco, as roças... vai ser aquela tristeza, judiação, comida pouca.

Destarte, São José e os demais santos operam como intermediários entre Deus e os homens, enviando avisos aos tementes a Deus, intercedendo face a Ele etc. Via de regra, essa intermediação é percebida como sendo através da natureza e impacta diretamente nas possi-bilidades de produção e reprodução camponesa, sua autossubsistência e eventual possibilidade de compra e comercialização de produtos.

De outra forma, esse triângulo também subjaz na estrofe apresentada a seguir, na qual igualmente se encontra o simbólico da fogueira no que Luiz, filho de Januário, nascido no sertão de Exu, canta em seu Asa Branca, clássico da música nordestina (WOORTMANN, 2012):

Quando olhei a terra ardendoQual fogueira de São JoãoEu perguntei a Deus do céu, aiPor que tamanha judiação

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É no âmbito desse ideário que se entende a atual organização de missas, promessas, procissões de pessoas entoando ladainhas e rezas, carregando vasilhames com água na cabeça para lavar cruzeiros, como forma de penitência a Deus, para que Ele se apiede e envie as abençoadas chuvas. Assim, na concepção desses cam-poneses, a seca e a decorrente “judiação” não é atribuída ao fenômeno climático, cientificamente caracterizado como El Niño ou La Niña. Tal como seus antepassados que “penaram na noventinha, eles estão penando na de hoje”. Para os camponeses do sertão de Sergipe, tal como do sertão do Seridó, a seca deve ser entendida no âmbito do que Zonabend (1980) define como mémoire longue, na qual “a seca é o castigo de Deus pela maldade dos homens”.

Nesse ideário, o camponês se pensa, não como proprietário da terra, vista como mercadoria ou investi-mento de curto prazo, que pode ser exaurida, mas como dono da terra, que a trabalha, que produz o alimento da família e que a passa de pai para filho. Ele se concebe como responsável pelo gerenciamento da terra e dos animais, que, com o trabalho, constituem os suportes da segurança alimentar de sua família. Ao se analisar em profundidade o processo produtivo e o sistema alimentar camponês, constata-se que há uma relação de reciproci-dade entre homem e natureza, na qual se identificam “ne-

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gociações”, “diálogos”, nos quais o camponês “fala” com a terra, por exemplo, e ela o atende, assegurando, conforme as etnoclassificações, a autossubsistência alimentar, ainda que parcial. Ao contrário dos técnicos a serviço do agronegócio, que após análise dos solos determinam a “correção dos solos” a fim de atender às necessidades da mercadoria a ser produzida e no mais das vezes exporta-da, a produção alimentar camponesa parte do domínio cognitivo herdado, das condições e características do solo e da natureza. Haverá, como que uma “negociação” entre homem e natureza, na qual se identifica um ajuste entre a produção para atender as necessidades alimentares da família e o que a “terra quer dar”. Assim, o gerenciamento da terra, a configuração do processo produtivo, levará em conta dois termos, ambos orientados pela reciprocidade: primeiro as necessidades de consumo alimentar de seu grupo doméstico, e segundo o potencial da natureza – no seu entendimento, os recursos disponibilizados por Deus a ele e sua família.

Assim, por exemplo, no sertão, um terreno “brejado” não será drenado para impor a produção de um determi-nado tipo de mandioca. Atendendo “(ao alimento) que a terra quer dar”, dentre as muitas variedades de mandioca disponíveis, será escolhida aquela que mais se adéqua ao tipo de solo que retém maior índice de umidade. Da mesma forma, em local onde há alta incidência de for-

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migueiros, planta-se melancia que “gosta” desses lugares ou pode ser aplicada “água da mandioca”, subproduto da fabricação da farinha. Desse tipo de gerenciamento/negociação resulta uma diversificação da produção diretamente associada à diversidade de solos dispo-níveis, negociação essa alicerçada no que Bourdieu, já mencionado, define como habitus, isto é, um “sistema de esquemas inconscientes, ou profundamente internaliza-dos, que transforma a herança coletiva em inconsciente individual (BOURDIEU, 1982, p. 347) .

Partindo dessa base teórica, identifica-se a configu-ração de um domínio cognitivo detalhado dos elementos que compõem o processo produtivo, tais como etnoclas-sificações nutricionais de cada variedade das plantas uti-lizadas, a relação entre as mesmas em seus processos de florescimento e produção, os tipos específicos de solos, o regime de chuvas, ventos etc., assim como seu valor de troca e/ou venda.

Esse conjunto de saberes, que no mundo camponês implica em fazeres, compõe o que se pode definir como “matriz camponesa”, na qual a segurança alimentar cons-titui o elemento-chave. Cabe ao pai o papel de gerenciar na roça a produção dos alimentos e à mãe gerenciar sua transformação em comida, quer dizer, prepará-la e distribuí--la entre os membros da família. Em certas situações de “precisão”, esse papel de distribuidora da comida entre os

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membros da família se torna estratégica e particularmente muito difícil. 2 Se essa negociação é alicerçada no habitus do grupo, ela, por sua vez, também tem de negociar com outras dimensões do universo camponês, tais como as condições de disponibilidade/acesso à terra e trabalho, ou a compra e comercialização de seus produtos, por exemplo. Acredito que esse quadro, tal como acima referido, explique o fato de que nas pesquisas realizadas no sertão de Sergipe tenham sido identificadas 26 formas de consorciamento3, algumas delas, antigas, apenas retidas na memória dos camponeses idosos, e outras em uso. Há uma plasticidade no plano do modelo que permite os ajustes face às mudanças internas do grupo e/ou face às alterações/imposições externas.

No discurso desses camponeses, observa-se que há como que uma “humanização” da natureza. O camponês se relaciona com a terra, planta “o que ela quer dar”, e depois de produzir “ela precisa descansar” e necessita de “vitamina”, isto é, adubo. Nesse discurso fica evidente a construção de relações de reciprocidade positiva em que o camponês através de seu trabalho4 atende ao que

2 A dimensão estratégica da mãe camponesa como responsável pela reprodução de práticas ecoagrícolas e distribuidora de alimentos como recursos escassos, encontra-se no clássico “Balada de Narayama”, de Shohei Imamura.

3 Sobre concepções, etnoclassificações e formas de consorciamento, ver: Dubois (1995) e Woortmann e Woortmann (1997).

4 Sobre concepções de trabalho camponês, ver Brandão (1986 e 2004).

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ela quer (consorciamento e sementes adequadas, adubo, pousio etc.) e ela por sua vez atende ao que ele neces-sita, e o provê com o alimento. A essas características de humanização positiva pode ser acrescentada, por outro lado, características de humanização negativa: quando demasiado explorada, “a terra se vinga dando pouco rendo”, isto é, a natureza reage aos maus-tratos dos homens, reduzindo o rendimento da sua produção de alimentos, provocando a fome. Da mesma forma, quando uma área de mata é desnecessariamente queimada ou sem a observância das práticas tradicionais de prevenção (aceiro mal feito, por exemplo, ou não observância das condições de vento, umidade etc.) a natureza “pode se vingar” provocando acidentes, incêndios nas imediações ou mesmo provocando ataques de animais em fuga. Assim, remetendo ao que já foi mencionado, no âmbito dessa reciprocidade negativa incluem-se também as recorrentes secas que castigam o sertão, a fome correla-cionada com a morte da “criação” e migração, como foi mencionado acima.

É importante salientar que para o camponês é fundamental deixar a terra “descansar” até criar uma capoeira ou mesmo, se possível, capoeira grossa. Devido a pouca disponibilidade de terras, hoje é motivo de grande orgulho para o camponês deixar uma área em descanso até ela retornar à condição de mata. Legar uma área de

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mata aos filhos, ainda que pequena, é prova de que ele é um bom pai e um camponês “caprichoso”. Ao legar-lhes a mata, ele, por um lado, lhes dá a oportunidade altamente valorizada de ter acesso aos recursos que a mata dispo-nibiliza e de iniciar um novo e completo ciclo agrícola. Por outro lado, ao legar-lhes a mata, estará sinalizando positivamente aos desígnios de Deus.

referênciAs:

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DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e gênero em comunidades pes-queiras do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 7, n.18, 1992.

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Os estudos sobre Comunidades Negras Rurais (Quilombolas) no Brasil

Carlos alexandre b. Plínio dos SantosPesquisador e bolsista de Pós-doutorado CaPeS/PPgaS/dan/unb

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Durante várias décadas no Brasil houve uma “comprovada falta de trabalhos científicos sobre o negro brasileiro em ambiente rural” (PEREIRA, 1983, p. 12). Essa assertiva de João Baptista Borges Pereira, recorrente nos prefácios que escreve nos livros de seus ex-alunos (MONTEIRO, 1980; BAIOCCHI, 1983; QUEIROZ, 1980; BANDEIRA, 1988), ilustra bem a carência de estudos na academia sobre o negro no contexto rural. Do final do século XIX até a segunda metade do século XX, o negro em contexto urbano foi pauta de vários estudos que privilegiavam as-pectos físicos e culturais. Porém, as comunidades negras rurais ficaram à margem desses estudos, pois todos os estudos eram direcionados incondicionalmente para o negro em contexto urbano.

Muitos estudiosos, ao pesquisarem grupos negros, procuraram destacar traços culturais de origem africana, os quais seriam indicativos de uma etnicidade. Quando esses traços não eram encontrados indicaria uma diferen-ciação apenas ao nível do preconceito racial. Como ob-servado por Bandeira (1988), pesquisadores como Roger Bastide, Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa, que comungavam com esse ponto de vista, defendiam a tese de que

[...] as condições de vida do negro em situação rural eram culturalmente desagregadoras, posto que dificultavam

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a persistência de cultos, ritos, tradições e deixavam-lhes poucas ocasiões e espaços de interação entre si. A vida urbana em relação à vida rural, portanto, oferecia melhores condições de persistência de traços culturais africanos e, consequentemente, de maior potencialidade de formação de uma identidade étnica forjada na resistência cultural. (BANDEIRA, 1988, p. 21).

Tal posicionamento contribuiu para que o foco das pesquisas sociológicas e antropológicas sobre o negro fosse majoritário em contextos urbanos. Dessa forma, as comunidades negras rurais, vistas como “desagregadas culturalmente”, foram colocadas à margem, no período citado, das pesquisas acadêmicas.

Nesse sentido, proponho, neste artigo, traçar resu-midamente um panorama histórico dos estudos sobre relações raciais elaborados nas ciências sociais no Brasil, com o intuito de demonstrar que o foco das pesquisas sociológicas e antropológicas sobre o negro estava delimi-tado em contextos urbanos até a década de 1960. Procuro também apontar que os estudos com essa visão só co-meçaram a ser modificados, no final dessa década, com a criação dos Programas de Pós-Graduação em Antropolo-gia (PPGAS), os quais investigaram múltiplos temas que aos poucos visibilizaram as comunidades negras rurais. Por fim, demonstro que nas duas últimas décadas houve um sensível aumento de pesquisas acadêmicas, na área de antropologia, sobre o negro em ambiente rural.

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os estudos dAs relAções rAciAis nAs ciênciAs so-ciAis

A segunda metade do século XIX foi marcada por um contexto intelectual dominado por uma concepção evolucionista do mundo. Segundo essa concepção a humanidade era uma só, com uma única origem ou his-tória, e teria se desenvolvido linearmente por diferentes estágios. Cada estágio se caracterizava por um padrão de comportamento específico, de forma que todas as sociedades que se encontrassem no mesmo estágio de evolução seriam semelhantes entre si, ainda que jamais tivessem tido qualquer tipo de contato umas com as outras.

Os primeiros estudos sobre o negro no Brasil inicial-mente seguiram essa argumentação. Como representante dessa época temos os estudos de Raimundo Nina Ro-drigues, que escreveu, entre 1886 a 1906, uma série de artigos nos quais utilizava parâmetros biológicos para explicar questões sociais.

Foi somente a partir dos trabalhos de Gilberto Freyre, na década de 1930, que houve uma grande mudança nos estudos raciais no Brasil. Ex-aluno de Franz Boas, Freyre, em seu livro Casa-Grande e Senzala (1994 [1933]) fez uma interpretação dos grupos raciais que compõem a sociedade brasileira, introduzindo os estudos cultura-

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listas como modelo de análise, desqualificando assim o argumento biológico.

Freyre, tendo como enfoque a miscigenação e o mulato como símbolo da democracia racial, apontava o contato sexual entre “senhores brancos” e “escravos negros” como ponto de partida para a elaboração de seus conceitos a respeito da informalidade e da flexi-bilidade racial. A miscigenação, para Freyre, seria uma solução brasileira para os diferentes padrões culturais e teria causado uma democratização social no Brasil. Freyre parte do pressuposto que a formação brasileira foi marcada por “um processo de equilíbrio de antagonis-mos” que resultou num processo de harmonização. Para Laraia (1986), o livro Casa-Grande e Senzala,

[...] se constitui na verdade no depositário de toda uma ideologia racial, que se expressa através de uma constelação de mitos que tradicionalmente a têm sustentado. O mito do luso-tropicalismo, que se choca com a realidade da “África portuguesa”, o mito do “senhor amável” (cf. HARRIS, 1964, p. 65-78), uma variante da representação cordial do homem brasileiro; e, finalmente, o mito da democracia racial, para Freyre o preconceito existente decorre da situação de classe e não de raça (LARAIA, 1986, p. 163).

Nas décadas de 1930 e 1940, outros estudiosos também marcaram os estudos das relações raciais no Brasil, como foi o caso de Artur Ramos, Manuel Raimundo Querino, Édson Carneiro, Afrânio Peixoto,

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Donald Pierson, Robert Park, Ruth Landes e Thales de Azevedo. Porém, foi na década de 1950, com as pesqui-sas de Florestan Fernandes, que ocorreu uma segunda grande mudança na abordagem dos estudos sobre rela-ções raciais. Crítico do mito da “democracia racial”, um postulado de Freyre, Fernandes demonstrava a temática racial por meio do ângulo da desigualdade, desse modo, desfez a ideia da harmonia racial brasileira. Sua principal obra, sobre relações raciais, foi A integração do negro na sociedade de classes. Nessa obra, Florestan Fernandes in-troduz novos parâmetros, novas vertentes sociológicas e também o materialismo histórico para a reflexão teórica da interpretação da realidade social. Nessa década, foram os seguintes pesquisadores que marcaram os estudos sobre as relações raciais: Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni e Oracy Nogueira (SANTOS, 2010).

A década de 1960 foi marcada pela mudança geo-gráfica das pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Num primeiro momento essas pesquisas estavam concentradas na Bahia e Pernambuco, posteriormente, passaram a ter como referência São Paulo, estendendo-se, em seguida, para Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Foram os estudos do projeto Unesco, junto às novas perspectivas teóricas, que motivaram a mudança geográ-fica dessas pesquisas. Segundo Octávio Ianni (2004) essa mudança ocorreu em virtude de São Paulo, na época, já ser uma sociedade de classes e mais urbanizada.

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Até 1960, segundo Melatti (1983), a antropologia brasileira foi caracterizada pela justaposição das influ-ências europeia e norte-americana, as quais foram res-ponsáveis pela união um tanto híbrida, respectivamente, de funcionalismo com aculturação. Foi principalmente a partir da década de 1970, impulsionada pela formação dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia, que houve a terceira grande mudança no campo dos estudos de relações raciais, pois as comunidades negras rurais, ou o negro em ambiente rural, começaram a ser alvo de pesquisas antropológicas. Essa nova perspectiva teve início nas fundamentações teóricas de Roberto Cardoso de Oliveira, sobre identidade e etnia, bem como nas pes-quisas de Otávio Velho, Klaas Woortmann e João Baptista Borges Pereira, sobre o campesinato negro.

os estudos sobre As comunidAdes negrAs ru-rAis nA erA dos ppgAs

Com base no levantamento que realizei desde o início dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia

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no Brasil1 (Mestrado e Doutorado) até maio de 2010, foram produzidas 1.786 dissertações de mestrado e 552 teses de doutorado. Porém, desses totais, foram realiza-dos apenas 56 trabalhos2, cujo foco, direto ou indireto, são as comunidades negras rurais e/ou o negro em ambiente rural. Compondo o seguinte quadro: 43 dissertações de mestrado e 13 teses de doutorado3.

1 Os Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), ou somente em Antropologia (PPGA), são os da: Universidade Federal da Bahia/UFBA; Universidade de Brasília/UnB; Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG; Universidade Federal de Pernambuco/UFPE; Universidade Federal Fluminense/UFF; Universidade Federal de Sergipe/UFSE; Universidade Federal do Piauí/UFPI que possui a Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia; Universidade Federal do Amazonas/UFAM; Universidade Federal de Goiás/UFG; Universidade Federal do Paraná/UFPR; Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ – Museu Nacional; Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN; Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC; Universidade Federal de São Carlos/UFSCAR; Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP; e Universidade Federal de São Paulo/USP que possui a Pós-Graduação em Ciências Sociais (Antropologia e Sociologia).

2 Ressalto que esse montante pode ser maior, porém por causa dos limites impostos pela não disponibilidade em acessar a íntegra dos trabalhos produzidos, algumas teses e dissertações podem não ter sido consideradas.

3 Ante a dificuldade em pesquisar “in loco” as teses e dissertações nas cidades em que estão localizados os dezessete PPGAS, utilizei nesse estudo dados disponíveis nos sites das universidades; nas bibliotecas virtuais dessas instituições; nos sites dos PPGAS; informações de pesquisadores; no site do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/IBICT e no site da CAPES. A exceção foi o PPGAS do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília onde verifiquei “in loco” todas as dissertações e teses produzidas.

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De acordo com esses dados (anexo 01), podemos depreender que os Programas de Pós-Graduação em Antropologia que mais pesquisaram as comunidades negras rurais no mestrado foram os da Universidade de Brasília (13 dissertações), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (6 dissertações) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (6 dissertações). Já no doutorado, os PPPGAS da Universidade de Brasília, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Museu Nacional apa-recem empatados com três teses cada.

A ampliação dos PPGAS no Brasil, a partir de 1994, provocou um pequeno aumento no número de dissertações e teses sobre comunidades negras rurais. Ao realizar esse levantamento percebi que o volume de trabalhos acadêmicos inseridos nessa temática vem crescendo lentamente. Para a análise dessa produção, dividi a “era da Pós-Graduação em Antropologia” em três períodos. O primeiro inicia-se com a criação dos PPGAS e vai até o ano de 1988 – ano em que foi promulgada a Constituição Federal brasileira, na qual foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o artigo nº 68, que estabelece direitos territoriais para os remanes-centes das comunidades dos quilombos. Posteriormente, o segundo período vai de 1989 a 2003 – ocasião em que foi criado o decreto nº 4.887/03, que regulamenta o proce-dimento de regularização fundiária das terras ocupadas

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por remanescentes das comunidades dos quilombos. O terceiro inicia em 2004 e finaliza em 2010 – data final desta pesquisa (Anexo 02).

Para uma análise das teses e dissertações produzidas nos PPGAS temos, obrigatoriamente, que nos remeter invariavelmente à conjuntura da época em que foram produzidas, pois as temáticas escolhidas pelos pesqui-sadores estão relacionadas com os seus contextos tem-porais. No primeiro período destaco os seguintes temas: identidade; relações interétnicas (negro e branco); bairro rural (forte influência dos “estudos de comunidade”); tra-balho (produção e economia); parentesco; religiosidade (aqui estão inseridas as festas aos santos); frentes de expansão e conflito de terra.

No segundo período, os temas giraram em torno de: etnicidade; movimento negro; territorialidade; religiosi-dade (aqui estão inseridas as festas aos santos); conflito de terra; legislação (principalmente o artigo nº 68 da Constituição Federal); identidade e parentesco. Nesse período, várias comunidades negras rurais começaram a ser analisadas como remanescente de quilombo. Iniciava também nesse momento o processo de ruptura da an-tropologia com a historiografia sobre a conceitualização do termo quilombo, pois os antropólogos começaram a definir seu campo de estudos por um corte sincrônico no “presente etnográfico” (O’DWYER, p. 2005).

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No terceiro período, as temáticas estavam assim focadas: legislação/direitos (principalmente decreto nº 4.887/03); territorialidade; parentesco; papel do antropó-logo; identidade; quilombo rural e/ou urbano; religiosi-dade (aqui estão inseridas as festas aos santos); conflito de terra; movimento quilombola e relação interétnicas (negros, índios e brancos). Nessa fase, boa parte das produções (teses e dissertações) sobre as comunidades negras rurais foi realizada tendo como fio condutor a territorialidade agregada à identidade quilombola e o referencial teórico centrado na categoria grupo étnico. A identidade quilombola, calcada em traços culturais, serve como sinal diacrítico que estabelece as fronteiras entre os de “dentro” com os de “fora” da comunidade (O’DWYER, p. 2002). Esses “limites”, quase tênues, ganham novos critérios de distinção, onde genealogias e parentescos passam a ser recuperados como formas de comprovação da inclusão ou não ao grupo (ARRUTI, 1997).

Vários desses trabalhos também enfatizam a recria-ção de elementos da memória, onde os laços das comu-nidades negras atuais com grupos do passado serviram para materializar e construir o presente etnográfico. Isso levou essas comunidades a estabelecerem uma nova relação com o passado, ou seja, o reconstruindo. Esse fato, Hobsbawm e Ranger (1984) chamaram de “invenção de tradição”, isto é, uma reapropriação de velhos modelos

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ou antigos elementos de cultura e de memória para novos fins, em que o passado serve como conjunto de conhe-cimentos simbólicos. Como afirmou Klaas Woortmann (1988, p. 11), “A tradição, então, não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constrói as possibilidades do futuro.”

Apesar das teses e dissertações possuírem diversas temáticas trabalhadas em diferentes décadas, apliquei, como forma de análise, o “princípio dialógico” que “consiste em manter a dualidade no seio da unidade” (MORIN, 1990, p. 107). Nesse sentido, observo que nos três períodos da era dos PPGAS as “comunidades negras rurais” foram pesquisadas seguindo uma única estrutura baseada nas categorias culturais nucleantes, centrais para a reprodução social do campesinato: terra, família e trabalho (WOORTMANN, p. 1988).

A AtuAção dos Antropólogos

Com relação ao trabalho do antropólogo, ocorre certa similitude entre a produção acadêmica e a constituição de direitos para os grupos minoritários da sociedade na-cional, no caso em tela, as comunidades negras rurais. É fato que, nos três períodos acima, a organização política do Movimento Negro e, posteriormente, do Movimento Quilombola trouxe visibilidade jurídica e política às

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reivindicações territoriais dos remanescentes de quilom-bo. Porém, os antropólogos há muito têm se dedicado dentro e fora da academia à garantia desses direitos, como já observado por Ramos (1990) no caso indígena e O’Dwyer (2002) no caso das comunidades negras rurais e urbanas quilombolas.

Os temas de pesquisa, de grande parte dos trabalhos aqui apresentados, contemplam, além do interesse do antropólogo, a necessidade de produzir conhecimento estratégico que possa contribuir para a defesa dos di-reitos das comunidades negras quilombolas. Considero que a Constituição Federal de 1988 – ao abordar as co-munidades de remanescente de quilombo, e o decreto nº 4.887/03 – que utiliza o termo quilombo, ressemanti-zado principalmente pela antropologia (ARRUTI, 2002), influenciaram o aumento dos estudos das comunidades negras rurais.

A participação dos antropólogos tem sido observada na discussão de políticas públicas nos órgãos governa-mentais, como também na realização de laudos e/ou relatórios antropológicos, realizados via, geralmente, convênio entre instituições federais, estaduais e munici-pais, ONGs e associações profissionais. Essa produção em larga medida também influencia o aumento da produção acadêmica de dissertações e teses das comunidades negras rurais. Entre as instituições convenentes estão o

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Ministério Público Federal, a Justiça Federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Fundação Cultural Palmares (FCP), as universidades (que geralmente delegam os estudos aos antropólogos dos seus Departamentos de Antropologia e de Sociologia) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). O objetivo desses convênios é a feitura de laudos e/ou relatórios antropológicos.

A FCP, que era responsável, até o ano de 2003, pela regularização fundiária das terras de quilombo, realizou 26 relatórios antropológicos. Desse total, 22 foram feitos por meio de convênios com universidades. Posteriormen-te, o INCRA, que assumiu, após 2003, a responsabilidade pelas regularizações fundiárias dessas terras, concluiu, até janeiro de 2010, 89 relatórios antropológicos, sendo que 53 foram realizados por universidades conveniadas.

Segundo dados da Coordenação Geral de Regulari-zação de Territórios Quilombolas/INCRA, em janeiro de 2010, estavam em fase de elaboração 47 relatórios an-tropológicos. Eram 16 relatórios elaborados pelo INCRA, 08 por instituições conveniadas com o INCRA, 22 por universidades conveniadas com o INCRA e um relatório escrito por antropólogo sem vínculo com nenhuma insti-tuição. Esse relatório, após a sua finalização, seria doado ao INCRA (Anexos 04 e 05).

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De acordo com estes dados, os convênios com as universidades foram responsáveis pela produção de 75 relatórios antropológicos, ou seja, os antropólogos vin-culados às universidades produziram cerca de metade dos relatórios antropológicos elaborados até hoje. As universidades conveniadas utilizam, para a realização dos trabalhos nas comunidades remanescentes de qui-lombo, os Departamentos de Antropologia, Sociologia ou de Ciências Sociais, bem como os Núcleos de Pesquisa e Laboratórios que possuem familiaridade com a temática quilombo. Em geral, o corpo de pesquisadores nesses estudos é formado por professores de Antropologia, alunos/bolsistas de graduação em Ciências Sociais e/ou alunos/bolsistas vinculados aos PPGAS. Por isso, in-fluenciados por esses trabalhos, muitos alunos optam em realizar pesquisas acadêmicas (monografias, dissertações e teses) voltadas para as comunidades negras rurais e/ou urbanas quilombolas.

Nos anos de 2004 e 2005, como o INCRA não possuía antropólogos em seu quadro funcional e estava se ade-quando aos ditames do Decreto nº 4.887/03 – o qual passava a responsabilidade da regularização fundiária das terras quilombolas da FCP para o INCRA, não foram produzidos por este órgão relatórios antropológicos. Somente a partir do ano de 2006, com a chegada de técnicos concursados na área de antropologia, foi que o

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INCRA começou a trabalhar formalmente com as comu-nidades negras rurais/urbanas quilombolas e a produzir relatórios antropológicos.

Como podemos notar o trabalho do antropólogo, dentro e fora da academia, tornou-se imprescindível na elaboração de políticas públicas voltadas às comunida-des negras rurais/urbanas quilombolas, assim como na produção direta de relatórios antropológicos para essas comunidades. Por outro lado, as dissertações e teses têm corroborado com esse “fazer antropológico”, na medida em que discutem criticamente as políticas públicas para essas comunidades, bem como as suas realidades.

Apesar dessa grande participação dos antropólogos com a política pública de regularização fundiária de territórios quilombolas, nos últimos anos temos nos deparado com uma profunda letargia do Estado brasileiro com relação a essa política pública. Segundo dados do INCRA, nos últimos dois anos foram publicados apenas 13 RTID e 7 portarias de reconhecimento. Além disso, de 2004 a 2012, 92 áreas quilombolas foram tituladas: 23 pelo governo federal e 69 pelo estadual. No ano de 2013, até o mês de novembro, nenhuma comunidade quilombola tinha recebido do governo federal a titulação de suas terras. Diante desses números a Subprocuradora-geral da República e Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, Drª Deborah

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Duprat, proferiu a seguinte frase: “Se persistir esse ritmo, as 2.007 comunidades certificadas pela Palmares terão que aguardar aproximadamente 175 anos para que todos os processos a elas pertinentes estejam concluídos”4.

conclusão

Atualmente, ao discorrermos sobre as histórias das comunidades negras rurais trabalhamos com processos sociais dinâmicos que revelam novas facetas da pós-abo-lição. A memória coletiva dessas comunidades, ao expor o passado, demonstra as especificidades dos grupos de camponeses negros, seus caminhos de constituição e sua luta em ocupar e garantir a terra. Gusmão (1992) faz a seguinte observação sobre esses grupos de camponeses negros,

[...] as especificidades de que são portadores os tornam parte do universo camponês brasileiro e, ao mesmo tempo, os diferenciam a partir da condição étnica, da história particular que lhes deu origem. Muitas vezes, vivendo em terras devolutas ou públicas, constituem-se como posseiros; por vezes pequenos proprietários, constroem coletivamente a vida sob uma base geográfica, física e social, formadora de uma territorialidade negra. Dentro dela elaboram-se formas específicas de ser e existir enquanto camponês e negro (GUSMÃO, 1992, p. 117).

4 Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, 20/11/2013.

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Destarte, são esses camponeses negros que ficaram à margem, durante décadas, do foco das ciências sociais. Como demonstrado, do período que se iniciou com Nina Rodrigues, passando por Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, até chegar ao Projeto Unesco, ocorreu uma carência de estudos acadêmicos sobre o negro no con-texto rural brasileiro. A partir da década de 1960, com a formação dos primeiros PPGAS, as comunidades negras rurais começaram a ser alvo de estudos acadêmicos. Porém, até a década de 1980, ainda eram poucos os pes-quisadores que trabalhavam com essa temática, como afirmou Borges Pereira (1983).

Nas décadas de 1990 e 2000, alguns fatores contri-buíram para que houvesse na academia um aumento no número de trabalhos sobre as comunidades negras rurais, dentre eles: a ampliação dos PPGAS; a criação de normas constitucionais e outros dispositivos legais; a atuação política de vários antropólogos; e a atuação do Movimento Negro e do Movimento Quilombola. Outro ponto que merece também destaque refere-se às discus-sões, na década de 1990, sobre a categoria quilombo, as quais estavam impregnadas das representações jurídicas do período colonial. Como observou Almeida, “se deve trabalhar com o conceito de quilombo considerando o que ele é no presente. Em outras palavras, tem que haver um deslocamento. Não é discutir o que foi, e sim discutir

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o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente” (ALMEIDA, 2002, p. 53).

Nos últimos anos, mesmo com o aprimoramento dos dispositivos legais, que garantem às comunidades negras rurais e urbanas o direito a terra, se percebe certa lentidão do Estado Brasileiro em de fato garantir este direito. Se esta letargia continuar, além de estimular novos conflitos, as atuais comunidades negras rurais, atualmente certi-ficadas pela Fundação Cultural Palmares, terão de fato seus processos fundiários no INCRA conclusos apenas no ano de 2188.

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An e x o s

An e x o 01Dissertações e teses por PPGAS sobre Comunidades Negras Rurais(ano de criação dos PPGAS até 2010)

Instituição Dissertações produzidas

Teses produzidas

Dissertações sobre

comunidades Negras rurais

Teses sobre

comunidades Negras rurais

Total

PPGAS/UnB 250 88 13 3 16PPGAS/UFRGS 201 52 6 3 9

PPGAS/ Museu Nacional/UFRJ

384 200 3 3 6

PPGAS/USP 151 166 3 2 5PPGAS/UFSC 202 31 2 2 4PPGAS/UFPE 135 14 3 - 3PPGAS/ UNICAMP 268 - 3 - 3

PPGAS/UFF 105 1 2 - 2PPGAS/UFMG 2 - 2 - 2

PPGAS/UFPR 68 - - - -PPGAS/UFRN 14 - 6 - -

PPGAS/UFAM, UFBA, UFPI, UFG, UFSE, UFSCAR.

- - - - -

TOTAL 1.780 552 43 13 56

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An e x o 02Os três períodos da era dos PPGAS

Períodos Dissertações Teses Total do Período

1º - Início dos PPGAS a 1988 6 2 8

2º - 1989 a 2003 14 3 17

3º - 2004 a 2010 23 8 31

Total dos Períodos 43 13 56

An e x o 03Relatórios Antropológicos Produzidos

Relatórios Antropológicos

Órgãos que realizaram Nº de Relatórios Produzidos

Fundação Cultural Palmares/FCP 04

Convênios universidades/FCP 22

INCRA 31

Convênios Universidades/INCRA 53

Contrato/Licitação/INCRA 05

Doação 05

ITESP 21

Sem Informação de quem produziu 08

Total 149

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PARTE II A Boa Vista dos negros e a presença afro-brasileira no Seridó

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O dever de memória

Julie Cavignacdepartamento de antropologia, uFrn

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Invoco-a, pois, na distância do tempo, como a um anjo de bondade e carinho, de fidelidade e renúncia, presente, quase século e meio, nos lares caicoenses de outrora, sorrindo nas manhãs festivas o sorriso afetivo sobre os berços abertos, ou gemendo com as senhoras donas sobre berços vazios.1

Na historiografia do Seridó potiguar, os africanos e seus descendentes foram relegados ao segundo plano: quando aparecem, nas crônicas e nas obras memoria-listas, os escravos estão ao lado dos seus donos, prestes a ajudar, submissos e obedientes. Nenhuma cidade guarda a memória de um herói negro, nenhum museu aborda diretamente a temática da escravidão. Há poucos registros de rebeliões, arquivos começam a ser abertos, raras fotografias são conservadas pelas famílias. Alguns relatos orais sobre o passado encenam escravos e libertos; são histórias de fazendeiros cruéis, ricos coronéis que praticaram crimes sangrentos ou expulsaram os mais fracos das suas terras, mantendo sua autoridade graças a jagunços da sua confiança. Há também histórias de fiéis vaqueiros ou de amas de leite que serviram, até o fim das suas vidas, a seus donos, mesmo depois da Lei Áurea. Nestas lembranças furtivas, as marcas positivas da negri-tude limitam-se à esfera doméstica e são associadas aos

1 Dom Adelino Dantas (1961, p. 165), descrevendo a “mãe preta” Maria Fernandes Jorge – que nasceu em 1686, escrava da família do fundador de Caicó, Manoel Fernandes Jorge, falecida aos 135 anos, em 1821.

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eventos festivos: são ressaltados a docilidade, a lealdade, a alegria, a força, a habilidade no trabalho, o carinho dis-pensado aos filhos das famílias brancas etc. É justificada a hesitação dos principais interessados em se pronunciar sobre este passado desconhecido, pois muitos evitam o assunto, dada a carga negativa do passado escravista. No entanto, os grupos familiares espalhados em todas as áreas urbanas e rurais do Seridó comprovam a presença histórica das populações afro-brasileiras. Designados comumente como “Os negros”, apelação genérica e de-preciativa, eles nem sempre se orgulham do seu passado, pois este é associado a privações, ao trabalho pesado e à segregação racial. Frequentemente, no lugar de uma fala enaltecendo a herança dos ancestrais africanos, encontramos o silêncio que se constituiu em estratégia de sobrevivência, marca de uma resistência à opressão que ainda é possível observar. Diante de tantas ausências e de memórias contraditórias, é compreensível que não exista um registro memorial que possa ser transmitido e no qual os descendentes dos africanos escravizados se espelhem; é uma história que caiu no esquecimento.

No entanto, recentemente, com os incentivos go-vernamentais voltados para a titulação dos territórios, a educação diferenciada e a valorização da cultura

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afro-brasileira, o trabalho da memória está em processo. A reflexão a ser apresentada aqui mostra que há um longo caminho a ser percorrido no conhecimento da presença histórica dos grupos instalados no sertão e no combate à discriminação racial.

A delicAdA questão dA escrAvidão

Vários estudos recentes produzidos no Seridó vêm desconstruir a imagem de uma escravidão branda, versão que ainda tem um grande vigor entre os potiguares e que se acompanha de um racismo naturalizado com tons paternalistas. Existe uma outra versão do passado que está sendo escrita: africanos, escravos e libertos, índios, ciganos e judeus, presentes desde o início do período co-lonial, começam a se constituir em objetos de pesquisas acadêmicas, seguindo um movimento iniciado no final do século XX, com a revisão crítica da historiografia tra-dicional sobre a condição dos escravos e dos libertos no Brasil (CUNHA, 2012; MACEDO, 2012; MATTOSO, 2003; PUNTONI, 2002, p. 13-47; SOUZA, 2002, p. 126).2

2 Há evidências demográficas que apontam para uma forte presença negra (e indígena) no Rio Grande do Norte; desde o censo de 1940, os “pardos” representam quase a metade da população (Oliveira 1999, p.133). No último censo, em 2010, mais da metade da população do Rio Grande do Norte se declarou parda ou negra (cf. www.ibge.gov.br. Acesso em 03/06/2013).

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Na versão tradicional da história potiguar, a impor-tância da mão de obra escrava é geralmente subestimada ou idealizada.3 Muitos sertanejos e grande parte dos his-toriadores insistem na versão da mestiçagem harmoniosa e da excepcionalidade da condição servil. Como resume Luís da C. Cascudo, por se tratar de uma sociedade pastoril, os escravos gozavam de mais liberdade do que nos engenhos, eram alegres – contam vários poetas e tocadores famosos –, parceiros dos seus donos na labuta diária e na mesa de refeição:

O negro [ foi criado] solto pelo lado de dentro, violeiro, sambador, ganhando dinheiro, alforriando-se com a viola, obtendo terras para criar junto ao amo, seu futuro compadre, vínculo sagrado de auxílio mútuo (CASCUDO, 1985, p. 45).

A investigação da história da escravidão, parte obscura da epopeia colonial potiguar, começou há pouco e ela deve levar em conta o pouco que se sabe sobre a realidade social e cultural presente e passada das famílias agregadas às fazendas de criar, principais núcleos da so-ciedade colonial. O elemento escravizado foi ignorado pelos historiadores, ocupando lugares menores na saga desbravadora do sertão. Entre outros elementos que com-provam a importância dos descendentes africanos para

3 Alguns exemplos podem ser verificados em Albuquerque (1989, p. 44, 261); Cascudo (1947, p. 95, 1985 e 1955); Koster (1978); Joffily (1977, p. 367).

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o desenvolvimento da região, podemos chamar atenção para as comunidades quilombolas que se formaram desde pelo menos, o início do século XIX, bem como para a presença significativa das irmandades negras em várias cidades (CAVIGNAC, 2011).

Para o Seridó, são três comunidades certificadas pela Fundação Palmares/MINC: Macambira (Lagoa Nova), Negros do Riacho (Currais Novos) e Boa Vista (Parelhas). Duas delas encaminharam uma solicitação de regularização fundiária junto ao Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), mas somente o processo de Boa Vista encontra-se na fase de finalização, faltando apenas os procedimentos administrativos para receber o título de propriedade. Todas têm uma história secular ainda presente na memória coletiva (ASSUNçÃO, 1994; CAVIGNAC, 2007; PEREIRA, 2007).

Além dessas comunidades estabelecidas num ter-ritório historicamente reconhecido, tem-se o registro de outros grupos e famílias negras que foram ainda mais invisibilizados por não terem conseguido ficar na terra, mas que detêm também uma longa memória genealógica. No entanto, podemos pensar que não foram informados dos direitos constitucionais dos quais podem se beneficiar pois, apesar das condições socioeconômicas precárias em que se encontram, não se manifestaram junto a instâncias oficiais. Entretanto, há numerosos

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grupos familiares em Acari, Cruzeta, Parelhas, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Caicó, Currais Novos, Carnaúba dos Dantas, Serra Negra do Norte etc. Continuam vivendo nas zonas rurais em pequenas propriedades à margem das fazendas ou nas periferias das cidades, em situação de risco social.

Os moradores reconhecem os sobrenomes que designam essas famílias negras: os Paula, Tum, Miguel, Caçote, Fael, Catunda etc. Localmente, essas famílias são imediatamente associadas ao lugar onde surgiram e ainda moram, como, por exemplo, “Os negros do Saco” em Acari ou “Os negros da Boa Vista”, em Parelhas. Suas trajetórias são pouco valorizadas por se tratarem de grupos dependentes das elites locais; suas terras foram griladas e o registro histórico foi apagado, até por parte dos seus descendentes que escolheram outros caminhos para suas vidas nas cidades circunvizinhas ou mais longínquas da região. Haveria matéria para escrever uma história contada “do ponto de vista dos vencidos” a partir de relatos de alforria que são lembra-dos até hoje (WACHTEL, 1992); mencionamos aqui em particular a figura de Feliciano José da Rocha, liberto, proprietário da fazenda Cacimba das Cabras em Acari, que viveu nos meados do século XVIII. 4

4 Sobre a saga de Feliciano, ver o artigo de Danycelle Silva neste livro e sua monografia de graduação (SILVA, 2012b).

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De um modo geral, nas fazendas de criar e nas localidades onde há registros históricos da presença negra, encontramos monumentos, lugares, documen-tos, narrativas e práticas rituais que dizem respeito à história de uma população que desenvolveu estratégias e solidariedades ativas, conseguindo uma relativa auto-nomia econômica, estabelecendo-se em terras cedidas ou próprias e que conheceram a liberdade bem antes da Abolição. Assim, a história das populações afro-descendentes no Rio Grande do Norte ainda precisa ser esclarecida, pois a existência de comunidades, de grupos domésticos ou de formas de agregação festivas vem contradizer o script de uma história que cultua a versão colonial (branca). Ainda há que se avançar no conhecimento da história afro-brasileira do Seridó, do passado escravista e do período pós-abolição. É preciso que se libertem as memórias e que estudos sejam rea-lizados tendo como foco a presença de descendentes de africanos no Brasil. Mesmo com poucas ações e incentivos, boa parte dos quilombolas presentes hoje no Seridó mantém uma tradição cultural secular através da realização da festa de Nossa Senhora do Rosário. Essa celebração, que agrega os diferentes grupos familiares ligados à tradição religiosa, é um dos raros eventos que

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lembra a existência de populações escravizadas desde a época colonial e que traz para o presente as marcas de um sistema de dominação que perdurou pelo menos até o final do século XIX.5

Com a aplicação dos direitos constitucionais, cons-tatamos a emergência de uma nova realidade que tem desdobramentos importantes na área política e acadê-mica, mas também no que diz respeito à mudança das mentalidades, por induzir uma reflexão sobre o passado e o legado colonial.6 Sendo assim, um vasto campo de estudo abre-se para os antropólogos, os historiadores e os arqueólogos que se associam aos interessados na busca das marcas históricas afrodescendentes.

5 Sobre a festa do Rosário em Jardim do Seridó, ver o artigo de Bruno Goulart neste livro e sua dissertação de mestrado (SILVA, 2012a).

6 Segundo informações disponibilizadas no site do Ministério da Cultura (MINC – Palmares), existem 3.524 comunidades quilombolas em todo o território nacional (<http://www.portaldaigualdade.gov.br/copy_of_acoes>, acessado em 15/07/2010). Desde 2003, data da regulamentação do decreto presidencial 4.887, mais de 934 processos foram abertos no Incra para efeito de regularização fundiária dos territórios quilombolas. No entanto, somente 113 RTID foram elaborados e 21 títulos de propriedade expedidos (até setembro 2012) (fonte: Incra-DFG, <http://www.incra.gov.br/index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas>; capturado em 12/09/2012). No Rio Grande do Norte, a partir de 2007, seis grupos foram o objeto de uma ação governamental visando à regularização das terras através de convênios assinados entre a UFRN e o Incra. Em 2012, começou o processo de regularização de mais quatro comunidades. Jatobá e Boa Vista devem ser as primeiras comunidades tituladas no Rio Grande do Norte.

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cAtAndo As memóriAs

No Seridó, encontramos poucas referências ao “tempo da escravidão” por este continuar sendo um assunto tabu: as memórias foram silenciadas e são constituídas, principalmente, por um corpus narrativo que encena fugas ou acidentes; conforme a versão do passado na qual não se fala em escravos e, ao mesmo tempo, transmite uma memória reprimida que conseguiu atravessar os séculos de dominação colonial, pálido e único reflexo de uma dura realidade histórica.

Se essa presença foi pouco documentada, no entanto, existem registros orais e marcas na paisagem que lembram que havia escravos inconformados com sua situação que tentavam escapar do destino servil e dos maus-tratos. Nesse sentido, nossas fontes evocaram vários acontecimentos nas serras de Acari, Carnaúba dos Dantas e de Parelhas (Marimbondo e Serra das Queimadas). Alguns desses locais se tornaram santuários, recebendo visitas de devotos que terminam descobrindo o ocorrido. São as “cruzes” dos negros (ou de índios) que fugiram da seca, morreram de sede e fome. As circuns-tâncias trágicas da morte são lembradas, mas pouco se sabe desses “santos” e, em geral, não se pergunta se eram escravos nem se fala sobre o motivo das fugas. As “almas dos negros” continuam vagando, à procura de salvação.

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Mais de um século depois da Abolição, visitam os vivos durante seus sonhos, revelam segredos e o local onde estão enterrados tesouros.7 As narrativas dos mártires santificados seguem a lógica da hagiografia dos santos locais: são humanos que morreram na natureza, esque-cidos de todos, não receberam sepultura ao passar para o outro mundo, seus corpos não foram encomendados, não tiveram os devidos cuidados, não receberam mortalha e por isso, pedem incansavelmente rezas. Corresponde a uma encenação do passado contido na paisagem natural, cosmologia amplamente compartilhada por todos os habitantes (CAVIGNAC, 2006, p. 177-238)

As manifestações culturais dos afro-brasileiros foram apresentadas como folclore pelos estudiosos locais, tipo de arcaísmo que sobreviveu à modernidade. Essa perspectiva não deixa de ser uma forma de minimizar o passado escravista, pois mostra que os escravos eram felizes e gozavam de uma certa liberdade (SILVA, 2012a). Tradicionalmente, as festas, as danças e as devoções são realizadas para honrar os “santos negros”, mas poucos fazem uma relação entre as festividades e o sistema co-lonial. Não existe uma explicação da presença histórica dos grupos na localidade, a escravização das populações

7 É o tema do ensaio videográfico “A Cruz da Negra”, que se encontra no encarte deste livro e disponibilizado na internet: http://www.youtube.com/watch?v=Sy3V-bTG35I.

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de origem africana e a questão étnica são assuntos evi-tados – sobretudo em frente aos antigos donos! Assim, a designação “negro” é diretamente associada ao folclore, à dança e à festa. A lenda que explica o surgimento da devoção a Nossa Senhora do Rosário em Jardim do Seridó coloca os irmãos como protagonistas da história e indica que existe um elo indissolúvel entre a santa e seus devotos: “os negros” descobriram a santa na serra ou escondida num tronco e somente eles conseguiram levá-la, ao som dos tambores, para a igreja, dando início à festa e à irmandade. É importante depararmo-nos com esses aspectos para entender como foram veiculados os eventos históricos e explicar por que a identidade étnica foi historicamente mediada pela igreja católica. A memória parece se concentrar em alguns elementos oriundos de uma tradição cultural hoje reivindicada como patrimônio (CUNHA, 2009), sendo, no entanto, a marca da escravidão expulsa da memória coletiva. Por outro lado, continua sendo um assunto tabu e os processos de afirmação identitária dos grupos não elegem a matriz narrativa da rememoração dos eventos traumáticos do cativeiro.

Desta forma, os textos narrativos mostram um possível caminho, tanto para o conhecimento de uma “‘história subterrânea’ das Américas, entre memória e esquecimento” (WACHTEL, 2001, p. 31), quanto para a

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compreensão dos processos utilizados no apagamento das identidades não europeias e na aceitação de uma versão da história formulada pelas elites. Ocorre o mesmo que em outras partes do país: sem territórios reconhecidos, os grupos familiares tornam-se amnésicos e invisíveis (LEITE, 1996).

A busca de registros orais e de informações his-tóricas sobre as populações afro-brasileiras do Seridó permite apreender o discurso nativo e as percepções do mundo de um conjunto de indivíduos e grupos que têm em comum trajetórias históricas marcadas pela exclu-são e pelo estigma. Os quilombolas e os integrantes das irmandades do Rosário afirmam sua diferença cultural e identitária na referência a uma dança e a uma histó-ria comum. Reunidos em torno de temáticas comuns, aproximando fatos historiográficos pouco explorados, incursões arqueológicas ou resultados da investigação antropológica das formas locais de representações do passado, os pesquisadores que se debruçaram sobre a história colonial descobrem fatos, monumentos ou as-pectos ligados às narrativas, às identidades diferenciais e às representações simbólicas relativas ao passado. Essa perspectiva visa apreender as lógicas internas que organizam o processo discursivo e ritual: transfor-mações, continuidades, rupturas ou reordenamentos dos fatos históricos são observados em enunciados

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orais que costumam associar imagens do passado à paisagem natural ou construída (WACHTEL, 1992). De fato, parece haver uma concentração narrativa em torno dos locais do passado. Os lugares naturais que foram ocupados por humanos (rochas, casas de pedra, furnas com pinturas rupestres, poços, rios, santuários) e os monumentos (casarões antigos, igrejas, cemitérios etc.) despertam a memória. A evocação acompanha--se geralmente do registro oral de acontecimentos passados, fatos históricos não analisados pelos histo-riadores locais ou de narrativas fabulosas que integram elementos míticos. Por outro lado, a existência de um registro factual nas produções narrativas coletadas no Seridó sobre as populações afrodescendentes nos leva a refletir sobre os processos identitários e os mecanismos de construção da memória. Ainda mais quando a coleta das narrativas é realizada em paralelo ao registro foto-gráfico do patrimônio construído existente na região: igrejas, sede das irmandades, casas em ruína, marcos de terra, sepulturas etc. Iniciamos a constituição de um banco de dados que reúne, de um lado, as informações históricas sintetizadas, os resultados das investigações mais recentes, o corpus narrativo coletado e, de outro, um acervo fotográfico e digital sobre os lugares de memória, possibilitando um acesso às informações para um público amplo e diversificado (NORA, 1989).

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De fato, a proposta visa à reunião das informações de cunho antropológico, histórico e arqueológico e a sua disponibilização num museu virtual com o objetivo de agrupar os elementos culturais da presença afro--brasileira no Seridó.8

Os temas do patrimônio construído se confundem na memória (escrita e oral) e induzem a uma reflexão sobre a importância social (identitária) dessas expres-sões culturais, assim como os elementos selecionados pelos nossos interlocutores. A memória e a identidade coletiva articulam-se para se expressar nos rituais e na tradição oral, especificamente, nos mitos de origem e na genealogia (LÉVI-STRAUSS, 1989; LE GOFF, 1996, p. 115). Por isso, o acento é colocado nas diversas mani-festações ligadas ao culto de Nossa Senhora do Rosário, cujas dimensões memoriais e identitárias se destacam das outras expressões da cultura local. A tradição nar-rativa e a resistência à escravidão ensaiada na dança do Espontão ajudam a reencontrar uma versão nativa da história, mesmo se essa foi silenciada. Seguindo Maurice Halbwachs (1990) e Michael Pollak (1989), sabemos que a memória não é uma simples reprodução dos fatos e dos acontecimentos: apresenta-se como o produto de uma elaboração singular que os indivíduos têm das suas

8 Ver o resultado no site do museu virtual do programa de extensão: http://tronco.museuvirtual.info/apresentacao/.

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práticas sociais. O que observamos, antes de tudo, é um processo em perpétua mudança e os primeiros resultados das pesquisas ensaiadas no Seridó prometem uma redefi-nição radical da descrição contada até hoje e esperamos resultados que terão um efeito prático, pois, no nosso caso, a história é reelaborada junto com os interessados.

A memóriA longA – A boA vistA dos negros

Para mostrar que, às vezes, a memória precisa apenas ser despertada, iremos descrever a experiência que tivemos na Boa Vista, no município de Parelhas. Desde 2007, em diferentes contextos de pesquisa, ensaiamos um exercício coletivo de reapropriação de um passado esquecido. A história da fundação, os laços de parentesco, as formas de solidariedade, a dança e o ritual desenham os contornos de uma identidade étnica regularmente colocada em cena nas festas comunitárias, deixando aparecer as diferentes situações históricas vividas pelos antepassados. Se as lembranças do tempo da escravidão sumiram ou foram intencionalmente apagadas, as formas da vida social também se modificaram: o Seridó, com sua tradição pecuária e agrícola, desaparece pouco a pouco, deixando o lugar às cerâmicas, à exploração mineral e a uma urbanidade na qual se encontram encenações de uma “sertanejeidade” afirmada por um compêndio cul-

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tural composto de religiosidade festiva, uma culinária e uma musicalidade nas quais quase todos se reconhecem. Encontramos, ainda, no caso quilombola, expressões de uma história revisitada na ocasião das reivindicações territoriais ou das apresentações performatizadas, como a dança do Espontão que representa a “cultura” do grupo, durante os eventos organizados para a Consciência negra. Esses momentos são fortemente ritualizados e reforçam a legitimidade das demandas para aplicação de direitos coletivos recentemente descobertos. É como se a memória do grupo estivesse voltada para a definição das fronteiras étnicas: mais do que uma terra de onde os moradores tiram seu sustento, a Boa Vista se transformou num espaço de moradia, um lugar de referência, de con-vívio familiar e de reencontro com os parentes em dias festivos; um lugar (vivo) de memória.

Por sua vez, na festa de Nossa Senhora do Rosário, os tambores e a dança são apresentados como sendo a expressão mais legítima do grupo, a sua “cultura”. Ainda são integrados novos elementos trazidos de uma África imaginada e controvertida, importada pelo viés dos movimentos sociais ou das sugestões externas que são retomadas pelos quilombolas sem que haja uma verdadeira reflexão crítica da imagem estigmatizada veiculada, como é o caso da representação do africano saindo da selva, guerreiro e sanguinário. Historicamen-

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te, as marcas da participação dos quilombolas da Boa Vista na vida local são ligadas à religiosidade e ao uni-verso masculino: documentos da irmandade datados do século XIX são cuidadosamente guardados nos arquivos da igreja de Jardim do Seridó, e comprovam a partici-pação ativa dos afrodescendentes na sociedade serido-ense. Os registros paroquiais correspondem em parte à “memória longa” tal qual é encontrada na Boa Vista e na casa do Rosário, quando da evocação do início da irmandade (ZONABEND, 2000).

Podemos perceber nos arquivos e nos relatos orais que havia uma vontade de inserção dos escravos e dos libertos à sociedade, através da manutenção da irman-dade. O esforço dos grupos familiares em manter uma tradição religiosa, contribuindo com uma taxa anual, e a memória dos antepassados, é visível. A fé, a dança e o sentimento de pertencimento à “família do Rosário” re-presentaria a essência da “cultura” quilombola (CUNHA, 2009; SILVA, 2012a).

Segundo os dados coletados, a casa comunitária ocupada pelos parentes da Boa Vista foi construída pelos homens da família Caçote, oriunda de Ouro Branco e por devotos da Boa Vista. O bisavô de Manoel Miguel, Inácio Roberto, carregou nas costas madeiras da Serra das Quei-madas, no Boqueirão de Parelhas, e os outros materiais de construção até Jardim para levantar a casa do Rosário.

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Dona Inácia Caçote, nascida em 1916, radicada em Jardim do Seridó, era uma das poucas a reconhecer que seu pai era escravo, lembrou que ele doou um boi para levantar a casa.9 Inicialmente, foi construída com o teto de palha e posteriormente foi coberta por telha; atualmente, a casa é zelada pela Igreja e pelos responsáveis da irmandade. Construída na praça principal onde é celebrada a festa do Rosário, sede da irmandade, é situada ao lado do antigo presídio que foi transformada em Casa de Cultura em 2005. É o principal marco da história da associação religiosa que une as famílias de Boa Vista, de Jardim e de outros troncos familiares historicamente ligados ao Rosário.

Há pelo menos um século e meio, todos os dias 29 de dezembro, boa parte da Boa Vista se muda para a casa do Rosário em Jardim do Seridó. “Antigamente”, a corte levava crianças, trouxas de roupas, mantimentos, galinhas vivas, lenha, panelas, tambores, pífaros, tudo que era necessário para passar os quatro dias longe de casa. A viagem até a cidade, episódio épico lembrado pelos mais velhos, era feita a pé ou a lombo de burro, saindo de ma-drugada de Parelhas. Ao chegarem à cidade, os membros da irmandade dançavam, tocavam e levavam a procissão até a igreja. Hoje, um ônibus fretado leva os irmãos e seus familiares, aqueles que deixaram a Boa Vista para

9 Cf. relatório antropológico (Cavignac et ali, 2007, p. 88) (no prelo).

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trabalhar nas cidades da redondeza ou no Sudeste e que fazem questão de voltar para participar da festa. Nos dias 30, 31 de dezembro e primeiro de janeiro, os irmãos tomam as ruas e fazem a festa religiosa mais importante da cidade. As famílias são distribuídas na casa que mal contém todos os devotos, mas ninguém quer perder a festa que é preparada com antecedência. Enquanto os homens dançam, as mulheres ficam na cozinha!10

Ao acompanhar as irmandades, verificamos a con-tinuidade da presença afro-brasileira no Seridó, desde a era colonial até nossos dias. Precisamos abrir os arquivos, analisar as circunstâncias em que foram construídas as casas e as igrejas do Rosário, interpretar a mensagem das danças dos irmãos negros, registrar as memórias e conhecer melhor os grupos familiares espalhados em todas as áreas urbanas e rurais da região.

Assim, com a colaboração dos quilombolas que participam das congregações religiosas e das famílias dos fiéis, a história das populações afrodescendentes no Rio Grande do Norte está sendo escrita. Apesar das dificuldades, encontramos cada vez mais elementos que vêm contradizer o script de uma história eurocentrada em que os heróis são, na verdade, aqueles que resistiram

10 É o tema do documentário dirigido por Cécile Chagnaud, “Famílias do Rosário”, em 2013, a ser disponibilizado no museu virtual do programa de extensão Tronco, Ramos e Raízes.

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a uma opressão secular. A investigação da história da es-cravidão, parte obscura da epopeia colonial potiguar, e do período pós-abolição, deve acompanhar o levantamento das fortunas e da distribuição histórica e geográfica dos escravos e dos libertos, entender o papel e a importância das irmandades negras, em particular, para conhecer as estratégias de resistência, e reescrever a história sob um novo ângulo. Para isso, as memórias precisam se libertar do estigma da escravidão: ações valorizando as trajetórias diferenciadas dos descendentes de africanos no Brasil devem acontecer de fato, e, em primeiro lugar, deve ser efetivada a titulação dos territórios. O título de propriedade coletivo representa o reconhecimento de uma dívida histórica e engaja a responsabilidade do Estado junto à comunidade. Elementos desta história diferenciada devem ser incluídos no ensino, mesmo se a documentação é rara e se encontramos dificuldade em imaginar como era a vida cotidiana dos libertos que viviam nas margens das fazendas do sertão. Esta tarefa é urgente, pois as formas de exclusão presentes na socie-dade colonial refletem-se na realidade atual.

Hoje, o lugar marginal imposto aos afro-brasileiros, seja na história, seja na paisagem social, começa a ser questionado pelos interessados que se assumem como quilombolas: ao saírem do esquecimento, os grupos descobrem direitos, caminhos, interlocutores e novas oportunidades, adotam modelos gerais de afirmação

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identitária que, gradativamente, serão reapropriados e reinterpretados em função das expectativas (ARRUTI, 2006). Em alguns casos, a invisibilidade do grupo, fruto da segregação, foi disfarçada pela integração – pelo menos simbólica – do negro na vida cotidiana das cidades do interior: o trabalho braçal e doméstico continua sendo de responsabilidade dos agregados e dos moradores “pardos” e negros. Finalmente, se a escravidão foi apagada das memórias, ainda está presente de forma disfarçada, pois continua inscrita nas relações sociais cotidianas e nos contratos de trabalho que são, até hoje, fundados numa dominação historicamente construída e na força econômica das elites que detêm a propriedade da terra, usando de um poder hereditário. Aqui, novamente, o problema étnico-racial é colocado, mas não é resolvido; de fato, a presença afro-brasileira na região continua a ser vista como um fato curioso e marginal, apesar da forte presença da população negra. A projeção pública das comunidades quilombolas, incentivada pelos órgãos governamentais no que diz respeito às manifestações culturais, é raramente acompanhada, em nível local, de uma reflexão crítica sobre o passado escravocrata pela sociedade no seu conjunto. Prova disso são as encena-ções teatrais nas escolas visando comemorar o “Dia da consciência negra”, nas quais os afrodescendentes são, mais uma vez, apresentados de forma caricatural como escravos ou como selvagens. É preciso encontrar outros

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roteiros para contar o passado, mas faltam elementos pois é um processo que iniciou há pouco e existem ainda muitas barreiras a serem vencidas. Mas, é um caminho sem volta: as jovens gerações engajadas na busca de um reconhecimento social, objetivam as condições de desigualdade racial e se posicionam de modo diferen-ciado dos seus pais, reivindicam direitos recentemente descobertos, enxergam de outro modo a história do Brasil, tendo como referência uma imagem idealizada da África, base para uma recomposição identitária que está em processo (MATTOSO, 1994; 2003).

como contAr umA outrA históriA?

Um dos problemas encontrados na comunidade é a relativa indiferença em relação “às coisas do passado”, em particular por parte dos mais jovens e a dificuldade destes em ter acesso à “sua” história. As pessoas mais maduras participam com grande entusiasmo das dis-cussões e atividades nas áreas de educação patrimonial, arqueologia, documentação histórica, por serem os guardiões da memória.

O programa de extensão da UFRN iniciado em fe-vereiro de 2012 responde não só a uma expectativa para realizar ações voltadas para disponibilizar os resultados das pesquisas acadêmicas, mas também a um anseio de

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vários interlocutores que participaram do levantamento de dados para elaboração do relatório antropológico, em particular são as lideranças mulheres que desejavam desenvolver atividades produtivas baseadas no coopera-tivismo e com quem temos maior aproximação.11 Desde o início do programa, contamos com a participação efetiva dos jovens quilombolas e dos seus parentes interessa-dos em colaborar com as ações de extensão; a partir da indicação e a seleção dos elementos a serem estudados, coletamos a memória, a tradição oral e o testemunho dos depositários de uma história pouco investigada na região, questionando ideias já formadas sobre a história local referente à escravidão, à presença das famílias negras e à visão geralmente defendida de uma sociedade homogê-nea, tanto do ponto de vista econômico, étnico ou cultu-ral. Cada vez que é possível, os resultados da pesquisa são apresentados e discutidos coletivamente. A participação dos jovens na pesquisa, sua pró-atividade nas oficinas e nos eventos públicos, a disponibilização da programação e dos resultados da ação nas redes sociais auxiliam na divulgação das informações coletadas, ampliando assim o alcance da ação.

11 O programa aprovado pelo PROEXT em 2013 e intitulado “Tronco, ramos e raízes! – inclusão social e patrimônio das comunidades quilombolas do Seridó-RN” deu continuidade às ações realizadas e enfatizou o combate à discriminação racial, tendo como estratégia a valorização do patrimônio afro-brasileiro. Em 2014-2016, o programa continua e amplia às ações à questão indígena.

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Tudo começou em 2007, quando o Departamento de Antropologia (UFRN) celebrou um convênio com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para realizar relatórios antropológicos de seis comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte, visando a regularização dos seus territórios. Na época, na Boa Vista, houve uma participação intensa por parte de vários moradores que sinalizaram seu interesse durante o levantamento dos dados históricos, vendo a possibilidade de conhecer melhor o seu passado, além da motivação da titulação. Durante o estudo, a então presidente da associação comunitária, Maria das Graças Fernandes, externou o desejo de construir um museu e acompanhou, naquela época, aulas do curso de história de Caicó sobre patrimônio. Como os custos para viabilizar o projeto do Museu eram muito altos, pensou-se na possibilidade de criação de um museu virtual associado à coleta de informações para subsidiar um roteiro turístico afro no Seridó, projeto que está sendo gradativamente imple-mentado.12 Foram feitas visitas, discussões, coleta dos dados históricos – incluindo as fotografias antigas –, ar-

12 Entre 2012 e 2014, a equipe respondeu a editais PROEXT/Sesu do Ministério da Educação e da Pró-Reitoria de extensão da UFRN, iniciando a inclusão dos dados no Museu Virtual. Em 2014, o programa continua, tendo como foco também a presença indígena no Seridó, com levantamento de dados arqueológicos em conjunto com as memórias locais.

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queológicos e culturais (registros orais, sonoros e visuais) cujos protagonistas eram os bolsistas e os moradores da Boa Vista, que deram um tom diferenciado à pesquisa. Essas atividades serviram para delinear uma proposta de educação patrimonial e desenvolver produtos resultados das atividades desenvolvidas. Entre tantas ações, foram organizadas várias oficinas de elaboração de produtos audiovisuais, uma de confecção de tambores, outra de ritmos, foram montadas e exibidas duas exposições de fotografias e objetos. Após a conclusão de cada fase de visita em campo, sistematizamos os resultados dos levantamentos empíricos, que eram apresentados pelos bolsistas aos moradores da Boa Vista e das cidades onde realizamos a pesquisa – principalmente Parelhas, Acari, Jardim do Seridó –, ao mesmo tempo em que as ativida-des do programa eram divulgadas nas redes sociais. Apre-sentações públicas em Boa Vista e em Jardim do Seridó, local tradicional da festa, foram realizadas com todos os componentes do projeto e os integrantes da irmandade do Rosário. Após uma série de reuniões da equipe organi-zadora com os diferentes agentes (comunidade em geral, anciões, pesquisadores locais, autoridades e líderes co-munitários etc.), foram eleitas as manifestações a serem pesquisadas e os lugares de referência para as propostas de turismo comunitário a serem desenvolvidas. Foram organizados dois encontros científicos que formaram a

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base de elaboração de artigos para a publicação final do programa, trabalhos de fim de curso de alunos.13

Mesmo sem muita experiência, realizamos “ações de educação patrimonial” tentando, quando possível, associá-las a possibilidades de geração de renda ou a novas propostas de atividades, visando uma melhor integração socioeconômica dos quilombolas. De fato, nosso público-alvo é composto por adolescentes que participam de atividades pontuais e práticas, sobretudo as que utilizavam tecnologias ( fotografia, vídeo, compu-tador). As mulheres, que estão à frente do processo de regularização do território e que se destacam nas ativida-des sociais, demonstraram um interesse crescente. Entre 2012 e 2014, o programa foi realizado por uma equipe composta por jovens quilombolas, alunos do ensino médio – quatro receberam uma bolsa no primeiro ano –, um número crescente de bolsistas do ensino superior, alunos interessados, e professores da rede pública. Em momentos diferenciados, outros participantes vieram se agregar ao programa: moradores da Boa Vista, vizinhos, parentes, integrantes das irmandades, artesãos, agentes externos (ministrantes das oficinas), voluntários, artis-tas, jogadores de futebol reconvertidos em professores, gestores públicos, agentes culturais, representantes dos

13 Os relatórios podem ser consultados na página pública do programa: https://www.facebook.com/Quilombolas.Serido.

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movimentos sociais, funcionários públicos encarregados da implementação das políticas públicas, professores das escolas municipais, guardiões da memória, pesquisado-res leigos, colecionadores, estudantes africanos etc.

Hoje, o programa, que tem um caráter inclusivo, envolve, ao todo, mais de 150 pessoas que participam regularmente ou pontualmente das atividades propostas, dos quais 40 pesquisadores e alunos ligados à Universida-de Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (Departamen-tos de Antropologia, de Educação, de Turismo, de Artes Cênicas, de Química, de Letras, de História, do campus central/Natal, de Currais Novos e do CERES/Caicó, Escola de Ciências e Tecnologia) – e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Professores e alunos de graduação e de pós--graduação de diferentes cursos desenvolvem ações com os diversos interlocutores, os integrantes do programa, as instituições e os interessados. Essa troca de experiências propicia uma aproximação entre os diferentes segmentos da sociedade ao mesmo tempo em que oferece espaços abertos para compartilhar o conhecimento; são trocas feitas na base da confiança e da amizade, relações cons-truídas ao longo dos anos. O objetivo principal do progra-ma é a valorização das manifestações culturais e a divul-gação da história das comunidades negras do Seridó do Rio Grande do Norte, promovendo uma imagem positiva

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dos afrodescendentes que ainda levam o estigma da es-cravidão. É também uma nova forma de fazer pesquisa, junto com os detentores da história, pois contamos com a participação dos jovens quilombolas e das pessoas mais experientes na tentativa de levantar informações sobre a presença histórica dos descendentes dos africanos no Brasil.

Em 2013, além da continuidade das ações de educa-ção patrimonial que foram realizadas na Boa Vista (di-vulgação dos resultados, oficinas, produtos audiovisuais, exposições, debates, seminários, visitas etc.), o programa tinha como linha de interesse a questão racial através da valorização da presença histórica das populações afro--brasileiras na região, o seu legado cultural, em particular as manifestações ligadas à irmandade do Rosário.

A discussão da promoção da igualdade racial foi realizada por via de atividades concretas de educação patrimonial, com a apresentação pública dos resultados e discussão. Por meio das fotografias antigas encontradas nas casas dos moradores, é possível ter acesso a memó-rias. A fotografia se transforma num marco temporal, como no caso de Anderson Túlio dos Santos, que foi fotografado em 1998 e em 2013, já adulto, em posse do livro onde sua fotografia foi publicada. O tempo se torna, então, concreto. A proposta é evitar produzir um discurso vazio e normatizado sobre o combate ao racismo no qual

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os principais interessados não se reconhecem. Ações são propostas para os jovens em particular para que tenham a possibilidade de iniciar uma reflexão sobre a situação vivida no cotidiano e a relação da trajetória temporal da sua família com uma história mais ampla, como acon-tece nas oficinas audiovisuais: por exemplo, quando o adolescente fotografa sua avó e pergunta como vivia na sua juventude, ele é tocado diretamente ao saber das dificuldades enfrentadas pela pessoa que o criou, é levado a se situar numa cronologia que antes desconhecia. Ao mesmo tempo, produz uma imagem com um grande valor afetivo e estético; imagem que se torna documento, obra de arte e objeto de interesse histórico para as gerações futuras. Assim, participantes das oficinas ministradas por Ac Júnior, fotógrafo carioca que documenta a festa do Rosário desde 1998, realizaram uma exposição itinerante em outubro de 2012 e 2013, nos eventos promovidos nas cidades circunvizinhas, em particular Acari, Jardim do Seridó, Currais Novos e Caicó. A apresentação pública assegura a continuidade das ações ao longo das décadas.

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Anderson Túlio dos Santos fotografado em 1998 e em 2013 por Ac. Júnior

Ocasiões importantes são a Festa do Rosário e a Semana da Consciência Negra, momentos em que o preconceito e a história são visibilizados e que são va-lorizados os elementos culturais dos diferentes grupos negros. Várias oficinas foram organizadas como forma de incentivar os talentos locais e mostrar a importância da transmissão dos conhecimentos entre as gerações: a fabricação de tambores tradicionais foi ministrada pelo mestre Possidônio Silva, responsável do grupo ligado à irmandade de Caicó, durante a qual os jovens apren-deram todo o procedimento de construção dos instru-mentos. Assim, a reflexão sobre o passado e a memória da escravidão no Seridó se associa a atividades mais

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concretas e ações produtivas de interesse dos morado-res – em particular as mulheres que se envolveram mais na organização das atividades –, propondo encontros e visitas a locais onde eram desenvolvidos projetos de economia solidária que poderiam ser associados a um turismo comunitário a ocorrer na Boa Vista: artesanato, produção de doces, cooperativas. Ao longo da realização do programa, visitamos localidades nas quais há registros da presença afrodescendente e onde funcionam expe-riências de economia solidária: Acari, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Currais Novos, Cruzeta, Jardim do Seridó, Ouro Branco. As ações realizadas e a importância da festa do Rosário poderão dar suporte para elaboração de um dossiê de solicitação de registro no IPHAN da dança do Espontão. Nele, deverão ser incluídas propostas para a preservação dos lugares de memória, em particular, a Casa do Rosário de Jardim do Seridó e a Casa da Pedra no sítio Maracujá (Parelhas).

Outras atividades direcionadas para um público jovem foram propostas e tiveram êxito: dança e ritmos afro-brasileiros, cabelos afro, capoeira, capacitação em cooperativismo, fabricação de doces, sensibilização para proteção do meio ambiente, organização de torneios de futsal, fotografia etc. Oficinas de sensibilização à imagem em movimento foram realizadas, incluindo a confecção de vídeos com aprendizagem de técnica de

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imagem e elaboração de roteiro. Como resultado dessas atividades de capacitação, foram organizadas exposições com as imagens produzidas pelos adolescentes e houve a produção de ensaios videográficos. Foram produzidos pequenos documentários dos quais jovens quilombolas participaram: em 2012, foi realizado “Dona Chica” que conta a história da Boa Vista tendo como guia Dona Chica, a primeira professora; em 2013, foi realizado um ensaio intitulado “A cruz da Negra” que tem como protagonista uma adolescente da Boa Vista, Suyanne da Cruz; aborda o tema das devoções existentes na região de Parelhas feitas em torno de sepulturas de escravas fugiti-vas. Em 2014, o vídeo “Famílias do Rosário” documentou a preparação da festa e o encontro das famílias ligadas à ir-mandade em Jardim do Seridó, mostrando a importância da festa para as famílias que migraram e voltam para na ocasião reencontrar os seus familiares.14 Esses produtos serão progressivamente integrados ao museu virtual, funcionando como um banco de dados contendo os de-poimentos orais, os documentos históricos, as fotografias e os registros sonoros e videográficos. O material disponi-bilizado é a base para a confecção de cartilhas educativas, jogos interativos e roteiros de turismo comunitário.15

14 Esses documentários encontram-se no encarte deste livro. O último deles será disponibilizado, na versão definitiva, no museu virtual.

15 O museu foi elaborado pela equipe do professor Rummenigge Rudson Dantas, da Escola de Ciência e Tecnologia da UFRN.

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A proposta é criar uma documentação de fácil consulta, sendo disponibilizada no museu virtual, para subsidiar atividades educativas e outros fins, como por exemplo um roteiro turístico-cultural que inclua as comunidades quilombolas, as fazendas e outros lugares que têm o registro de afrodescendentes.

Monumentos e lugares de memória são importantes, pois testemunham a ocupação histórica das populações afro-brasileiras no Seridó. Alguns são ligados à irmandade do Rosário, como as igrejas em Acari e Caicó, que datam do século XVIII, e a casa da irmandade de Jardim do Seridó (a de Currais Novos encontra-se desativada). Assim, um turismo diferenciado deve ser incentivado nesses locais, pois há um patrimônio cultural rico, embora ainda pouco explorado, que pode ser associado a ações de turismo comunitário para gerar uma renda extra para as comuni-dades. Pensando no turismo cultural, foram ministradas oficinas de dança, fabricação de tambores e de doces tradicionais com as mulheres da Boa Vista, reuniões das irmandades do Rosário, sensibilização à economia solidária etc. Essas atividades tiveram continuidade em 2013 e 2014, contando com a parceria dos municípios onde o programa atua. Nem sempre foi fácil realizar estas atividades, pois a curiosidade inicial deixava o lugar para outras preocupações do cotidiano. De maneira que o programa inicial de “educação patrimonial” teve que ser

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redirecionado em diferentes momentos para se adequar aos interesses e às expectativas da comunidade.

consciênciA históricA e A questão pAtrimoniAl

Durante a pesquisa, nossos interlocutores tiveram que rememorar eventos fundadores – com discretas referências à escravidão –, lembrar conflitos com os vi-zinhos brancos e contar a vida dos seus ancestrais, num processo sempre doloroso, pois esses detalhes foram intencionalmente apagados ao longo das gerações. Lem-branças pouco valorizadas para os mais velhos ou des-coberta repentina para os mais jovens, a história voltou com força e se constituiu como um problema: além do processo de “retomada das terras”, no caso da Boa Vista, notamos que várias pessoas estão interessadas em rea-propriar os marcos temporais, as lembranças perdidas, as experiências fundantes e reelaborar uma história na qual o sujeito possa se reconhecer. A indizibilidade e o silên-cio recobrem os eventos passados: relatos de privações, fugas, maus-tratos, violências, humilhações ou trabalho exaustivo foram silenciados pelos mais antigos, mas ficaram guardados num inconsciente que, com o tempo, tende a ultrapassar a esfera do indizível (GALINIER, 2009; POLLAK, 1989).

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As atividades culturais que foram organizadas ao longo desses dois anos eram voltadas para a preserva-ção do patrimônio, aproximando o passado do presente, colocando as diferentes gerações em diálogo, o que ajudou a valorizar e a fortalecer a consciência cultural entre os mais jovens. O mapeamento dos elementos que compõem a paisagem cultural das famílias, dos grupos quilombolas e dos integrantes da irmandade do Rosário do Seridó, foi realizado ao mesmo tempo em que inicia-mos uma reflexão crítica sobre as marcas da escravidão e a importância do fenômeno para a região, a partir dos testemunhos recolhidos pelos integrantes do programa, que perguntavam para seus avós detalhes da sua vida pessoal. Os interessados foram colocados diante de situa-ções concretas e tiveram de se posicionar, tomar a palavra e expressar seus sentimentos sobre momentos de sofri-mento e o que eles vivem no cotidiano: a discriminação racial, mas também desejos e projetos. Ao tornarem-se protagonistas da história que estava sendo montada e ao apresentar os produtos para além das suas localidades de origem, em vários momentos os moradores da Boa Vista foram convidados a participar de debates e de atividades acadêmicas em instituições de ensino superior. A pro-posta deve ser ampliada em 2014, com a apresentação do fruto das pesquisas realizadas para os interlocutores dos municípios onde encontramos registros históricos.

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Em outro plano, a apresentação, a disponibilização e a discussão das informações relativas às comunidades negras do Seridó (irmandades religiosas e quilombolas) ajudam a ampliar o leque da nossa percepção das mani-festações culturais, dos monumentos, dos objetos arque-ológicos e dos documentos históricos que são avaliados em conjunto. Essa mudança de perspectiva é útil na hora da tomada de consciência do pertencimento a uma histó-ria mais ampla do que os limites da comunidade onde ela é produzida. Este é, a nosso ver, um dos grandes desafios da nossa ação de pesquisa: tentar levar nossos interlocu-tores a interrogar o passado e a se inscrever no destino histórico da nação. Essa ação também proporciona um conhecimento novo sobre a realidade dos descendentes das populações que foram escravizadas no Seridó, com a construção de um banco de dados constituído por um corpus narrativo e pelo acervo documental, registros fo-tográficos e audiovisuais que podem ser acessados pelos interessados que se reapropriam de sua própria história. Estas informações de cunho antropológico, histórico e arqueológico estão sendo disponibilizadas de modo gradativo na internet, conforme dito, e cumprem o papel de um arquivo comunitário.16

16 Os produtos fotográficos, sonoros e videográficos que servem de acervo base para a criação do museu virtual e do programa de extensão são disponibilizados em: <https://www.facebook.com/Quilombolas.Serido>.

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Assim, ao tentar responder a uma demanda de co-nhecimento expressa por parte dos nossos interlocutores, chegamos a encontrar novos questionamentos. Estamos diante de grupos que partem em busca do seu passado e da sua dignidade, interpelando a Universidade para auxílio na busca de respostas sobre sua trajetória histó-rica. Nesse sentido, a etnografia reflexiva ou a “reflexão participante” que propomos visa produzir uma nova realidade patrimonial e museológica em que os interes-sados, literalmente, se encontram jogados “na” história e a contam a seu modo (MAIRESSE, 2000). A proposta de recolher conjuntos memoriais divergentes, interpretá--los e torná-los passíveis de ser instrumentalizados pelos quilombolas dá um novo peso ao patrimônio cultural. De modo que os indivíduos antes excluídos da história se reconhecem nela e procuram novos caminhos para seu destino, inclusive outras formas de sustentabilidade (CUNHA, 2009). Enfim, a preocupação patrimonial pro-blematiza um passado apagado das memórias. De forma que a escravidão, evento traumático e definidor das trajetórias familiares afrodescendentes, deve ser enfren-tada para que se possam esperar, no futuro, mudanças no equilíbrio das forças sociais e políticas. O processo já foi iniciado e os que ontem foram excluídos da história, caminham a passos largos, tentando recuperar o atraso.

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Inventário de Manoel Fernandes da Cruz (Fragmento)

transcrição paleográfica de Sebastião geni-carlos dos Santos

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Fragmento do Inventário de Manoel Fernandes da Cruz

Esta seria uma das primeiras referências às terras da atual comunidade da Boa Vista. A referência encontra-se no inventário de Manoel Fernandes da Cruz, lavrado em 1859, possivelmente um dos ancestrais da comunidade.(Acervo do Labordoc – CERES – Caicó/RN).

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BENS DE RAIZUma parte de terras no sítio Bôa Vista do valor quatro mil reis por oito mil reis._______________________________8$000 Uma parte de terras no sítio Ôlho D’agua do Boi comprada por duzentosmil reis, sendo cento e dez mil reis de seu casal, sessenta mil reis de seu finado genro Antonio, e trinta , milreis do finado Antonio tio dela inventariante, cuja parte foi avaliada nos mesmos cento e dez mil reis _______________________110$000Uma casa no valor no mesmo sítio muito ruim no valor de dez mil reis.____________________10$000

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Boa Vista, sua história e seus moradores

gabriela oliveiragraduanda em turismo, unP

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Sinto-me lisonjeada em poder falar da Boa Vista dos negros, pois, de alguma forma, faço parte dela. Sou branca e casada com um quilombola; logo, minha filha Sara’h Emanuelle também tem suas raízes na Boa Vista. Tenho orgulho em participar da educação de todos que permane-cem cultivando a vida na comunidade. Até pouco tempo, Boa Vista era composta em sua totalidade por negros. E nessa comunidade tão rica, os costumes eram sagrados, pois só se casavam entre si. Esse costume era passado de pai para filho. Hoje, a miscigenação é mais frequente.

Segundo a história contada, em um ano de grande seca, uma retirante chamada Tereza se refugiou na fazenda do Coronel Gurjão junto ao seu pai e a duas irmãs. Chegando lá, pediu abrigo para passar a noite. Com o pedido concedido, Tereza e sua família abrigaram--se na casa do Coronel. No dia seguinte, ao se prepararem para partir, o Coronel pediu ao pai de Tereza que deixasse uma de suas filhas para ajudar no serviço da casa. O pai atendeu ao pedido do Coronel e deixou Tereza na fazenda antes de seguir viagem. Tereza morou anos na fazenda do Coronel Gurjão e nunca chegou a ser realmente uma escrava. Com o passar do tempo, engravidou e, de acordo com os relatos, o filho era do Coronel. Assim, com a notícia da gravidez, Tereza teve de deixar a fazenda, morando nas terras doadas pelo seu tutor. Essas terras constituem, hoje, o território de Boa Vista.

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Alguns idosos relatam pertencer à sétima geração de Tereza, como seu Manoel Miguel, que nasceu na Boa Vista. Mané, como é conhecido, tem uma rica memória e conta histórias que muitos nem sequer imaginam que aconteceram. Assim como ele, outras pessoas são im-portantes para a comunidade, como Dona Chica Vieira que se destaca, até hoje, pela sua importância para a educação da comunidade. Francisca criou a escola da Boa Vista: aos 17 anos de idade começou a dar aulas para uns 20 alunos, lecionando na casa de seu pai, com mesa e bancos emprestados de um vizinho. Ensinou nessas condições durante três anos, até que um fiscal da edu-cação, passando pela comunidade, percebeu o interesse dessa jovem e comunicou o fato ao prefeito da cidade, que, na época, era Florêncio Luciano. Ele mandou chamar Francisca, que, ao chegar, foi recebida com aplausos e com a notícia de que ganharia um grupo escolar para sua comunidade. No ano de 1957, o Grupo Escolar Serafina de Jesus foi entregue à jovem professora que há anos sonhava com a escola. Outro grande exemplo foi o da falecida Mãe Gardina, uma parteira muito conhecida pelo dom de ajudar vidas que vinham ao mundo. Sempre requisitada, atuava não somente em sua comunidade, mas também nas comunidades circunvizinhas. Graças a ela, a comunidade tem um posto de saúde que tem o nome dela a título de homenagem.

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São muitos os nomes que marcaram a história da comunidade: Dona Maria de Pedro; Basto do Coentro; Zé de Paulina; Beatriz; Dona Quintina; Teodózio; Imbem; Miliano... e quem não conheceu seu Zé Vieira? Zé Vieira nasceu e morreu na comunidade, sempre lutando por melhorias e participando das atividades que aqui eram desenvolvidas em prol da cultura. Foi membro da irman-dade do Rosário e teve a oportunidade de passar por todos os cargos existentes, de Rei a Saltador. Zé Vieira faleceu no ano de 2007, aos 82 anos, e deixou para a comu-nidade sua contribuição. Faleceu durante a construção da Capela que tanto sonhou e onde teve seu corpo velado, conforme seu desejo. Hoje, quem visita a comunidade pode admirar a belíssima capela de Nossa Senhora do Rosário terminada há poucos meses.

A irmandade do Rosário é importante para Boa Vista. É uma congregação religiosa que leva a cultura negra a vários lugares. Sua maior referência é a religiosidade, especificamente, a fé em Nossa Senhora do Rosário. O grupo foi criado no ano de 1863, em Jardim do Seridó. A irmandade é formada por saltadores, batedores, reis, rainhas, juízes, escrivães e guardas de honra. Tem os negros do Rosário e o Reinado do Rosário. O Reinado é eleito anualmente, durante as Festas da Padroeira Nossa Senhora do Rosário, em Jardim do Seridó e na Comuni-dade de Boa Vista. Os negros do Rosário se apresentam

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quando convidados para representar a irmandade. José Fernandes do Amaral, conhecido como Zé de Biu, é o atual Chefe da irmandade na Boa Vista dos negros; João Batista é o bandeirista e Gerônimo Roque é o capitão de lança. São eles que conduzem o grupo composto por mais de 30 homens entre crianças, jovens e adultos, os batedores e saltadores. A irmandade do Rosário torna viva a cultura afrodescendente, faz valer o esforço dos antepassados e a resistência frente ao preconceito.

Ainda hoje, os quilombolas sofrem preconceito, apesar das melhores condições nas quais se encontram. Por ser uma comunidade diferente das outras, povoada em sua totalidade por quilombolas, inclusive por membros de uma família só, a comunidade da Boa Vista se distanciava dos acontecimentos ocorridos na cidade e não era incluída nas ações desenvolvidas no município. Com a modernização e a urbanização, vieram as dificul-dades: a falta de energia elétrica, de água encanada e de muitos outros itens necessários à vida em comunidade começaram a instigar o pensamento dos moradores quilombolas. Eles não recebiam, sobretudo, a ajuda do governo para fazer melhorias.

Mesmo vivendo da agricultura e do artesanato, as famílias não conseguiam organizar a comunidade e foi assim que foi criada, em 1993, a Associação de De-senvolvimento Comunitário de Boa Vista dos negros

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(ADECOB). O principal objetivo da associação é melhorar a vida em comunidade. As lutas em favor do bem de todos se espalharam entre os moradores que foram até o poder público para exigir igualdade de direitos. Dessa forma, depois que a associação foi criada, muitos benefícios começaram a aparecer, entre eles, a água encanada, a rede elétrica, a água para beber e até a construção de um açude com capacidade para suportar mais de cinco anos de seca. Além dessas necessidades, outros pontos foram levados em consideração, como uma quadra de esportes coberta, um ponto de cultura, “Espaço de Resistência”, e, além disso, foram organizadas oficinas de costura voltadas para as mulheres.

O Ponto de Cultura tornou-se, a partir de então, o principal núcleo de apoio aos cidadãos do quilombo. Lá, eles desenvolvem reuniões, oficinas, eventos de pequeno porte e outras atividades relacionadas à vida em comunidade. Esse espaço é um projeto do governo federal em parceria com o governo estadual e a Fundação José Augusto. O principal objetivo é fortalecer e divulgar os projetos que já existem dentro da comunidade. Para melhor explicar o nome de “espaço”, acho necessário complementar que ele foi um projeto, fruto de um trabalho coletivo. O Governo Federal lançou um edital com requisitos que nós tínhamos e, assim, ganhamos a concorrência. Em 2014, completamos três anos conse-

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cutivos de apoio à comunidade de Boa Vista. Além dos trabalhos desenvolvidos pelos quilombolas, temos o apoio da Prefeitura de Parelhas, em especial através do Centro de Referência de Assistência Social Ivan Bezerra (CRAS) que oportunizou alguns movimentos como o Pérola Negra, movimento afro formado por mulheres da comunidade e o Afro Regueiros, grupo de percussão com-posto por rapazes quilombolas. Todas essas iniciativas foram divulgadas e apreciadas por todos que fazem parte da comunidade e do município de Parelhas.

Com as verbas destinadas ao Ponto de Cultura, foi possível melhorar os instrumentos e os figurinos para os grupos. Investimos, também, em oficinas de música e de dança para melhor preparar os aprendizes para propagar a cultura afro. O Ponto de Cultura trabalha em parceria com o Programa de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que foi implantado na comunidade no início de 2012. O Programa funciona através de visitas técnicas, palestras, discussões e ofici-nas sobre os mais variados temas, como, por exemplo: audiovisual, fotografia, produção de texto, tudo que possa ajudar na consolidação da comunidade e no fortaleci-mento da cultura. Além de formar jovens sobre a cultura afrodescendente e introduzir novas tecnologias, em 2012, o projeto também ofereceu bolsas a quatro jovens, alunos do ensino médio. O programa também busca

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estimular as pessoas da comunidade a ter uma renda melhor. Para isso, foi ministrada na comunidade uma oficina de preparação de doces, para as mulheres que se interessassem em montar um grupo de distribuição e venda dos produtos. Hoje, um grupo de oito doceiras faz e comercializa doces, que vêm sendo bem aceitos.

Pensando em seu desenvolvimento, a comunidade recebe, sempre que pode, visitantes que contribuem com a história da comunidade. Temos, assim, o prazer de poder dividir nossa história e de ser parte de estudos tão importantes. Aproveito para, em nome da comunidade, agradecer a todos que têm dado atenção e têm olhado para essa comunidade quilombola que vem crescendo e conquistando seu espaço a cada dia que passa. Gosta-ria também de dividir com você, leitor, a satisfação e a emoção que a comunidade está vivendo por ter recebido, no dia 20 de novembro de 2012, por parte da Presidente do Brasil, Dilma Roussef, o decreto que dará a titulação das terras de Boa Vista.1

Desde já, despeço-me do leitor, deixando o meu abraço.

1 Este documento pode ser consultado acessando o link do jornal oficial (http://br.vlex.com/vid/desapropria-valido-negros-parelhas-407819110).

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O texto foi escrito a partir das pesquisas realizadas pelos bolsistas do

Programa ao longo de 2012. Inicialmente foi produzido para servir de

apoio à exposição elaborada para a primeira semana da Consciência

Negra da Boa Vista, em novembro de 2012.

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Comunidade de Boa Vista dos Negros

Swesley, 16 anos

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A comunidade de Boa Vista dos negros se encontra a 15 km da cidade de Parelhas.

A comunidade é bastante diferenciada das outras, pois é composta por uma grande quantidade de pessoas negras. Nesse lugar tem também uma cultura de muitos anos que é a dança do Espontão. A comunidade teve início na segunda metade do século XVIII. A história oral diz que foi fundada por uma família de retirantes negros, três irmãs e o pai, e a principal dessa história é Tereza, que foi deixada na casa do coronel e seus fami-liares foram embora. Foi criada não como escrava, mas como criada da casa. Alguns anos se passaram, Tereza engravidou do coronel Gurjão e não pôde ficar, mas sua residência ele deu para ela morar com seu filho Domingos naquelas terras que hoje são a Boa Vista. E seus familiares se fixaram aqui próximo à região de Boa Vista. Algumas comunidades são citadas, como: Jardim do Seridó, o Sítio olho D’Água do Boi e Carnaubinha.

A Boa Vista mudou bastante, hoje não tem mais casas de taipa, ainda se trabalha na agricultura, mas o meio de renda é a cerâmica, umas mulheres são donas de casa, e outras costuram. Tem a igreja que todos sonhavam em construir, a quadra de esporte, a associação comunitária, o ponto de cultura, o posto de saúde, tem o colégio que não funciona, mas é utilizado para outros afazeres. Tinha grupos de dança (Pérola Negra, Quilombinho, Percussão,

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os negros do Rosário etc.). Tem alguns grupos que não continuaram. E outros são porque os meninos eram mais novos, mas agora são dos negros do Rosário. É um grupo que tem até hoje e mantém a tradição. Tem a festa que é comemorada com o Reinado; são duas festas, uma na comunidade e outra em Jardim do Seridó. Na Boa Vista, no período do mês de outubro, tem novenas, procissão, a coroação de rei e rainha do ano, se reúnem o grupo de Jardim e os da Boa Vista que se tornam um grupo só, e também tem o grupo de Caicó que está participando da festa. No mês de dezembro, o momento mais esperado é a festa de Jardim. Os da Boa Vista ficam hospedados na irmandade, casa que foi construída há bastante tempo. Do dia 30 ao dia 1º são três dias de muita festa; no pri-meiro dia tem missa e uma banda na frente da casa; no segundo dia tem a passagem do ano que é belíssima, tem a missa de meia-noite, mais batucada depois e mais festa; no último dia tem a procissão nas ruas de Jardim até a igreja e a coroação dos próximos reis do ano. O reinado é constituído pelo rei Perpétuo e o rei do ano é composto por rei e rainha, juiz e juíza, escrivão e escrivã, presidente e presidenta, guarda de honra. As pessoas são bastante religiosas naquela localidade, têm uma grande fé à santa, Nossa Senhora do Rosário. Depois dos dias de culto à santa, todos voltam para suas casas muito felizes e realizados.

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Professora Dona Chica: Destinada a aprender

ana Santana Souzadepartamento de práticas educacionais e currículo, uFrn

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O homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita.(Guimarães Rosa)

Meu destino era aprender.(Dona Chica)

As epígrafes acima dizem, com palavras diferentes, coisas bem parecidas. A primeira é de um dos mais im-portantes escritores brasileiros. A segunda é de Dona Chica, da comunidade quilombola Boa Vista dos negros, fincada no território seridoense de Parelhas, no Rio Gran-de do Norte.

O dizer de Dona Chica está gravado em vídeo, de 2012, produzido por ocasião do projeto “Estratégias para uma educação patrimonial em comunidades quilombolas do Seridó/RN”, coordenado pela Professora Julie Cavignac, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Dona Chica tece, oralmente, sua peça biográfica. Embora a

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narrativa não se estenda em detalhes, alguns fios chamam a atenção pelo que apontam de surpreendente. É o caso da experiência como professora e da insistência em aprender de Dona Chica. Do pouco que ela conta dá para visualizar alguns elementos da educação na metade do século XX.

A narrativa de Dona Chica se insere nas chamadas histórias de vida. A expressão tem significados diversos, mas aqui ela será usada como récit de vie, que diz respeito à história de uma vida tal como a pessoa que a viveu conta, não necessitando da verificação dos fatos narrados e sim de contextualizá-los para atribuir-lhes significados.

O francês histoire pode ser traduzido, na língua inglesa, por “story” ou “history”. O sociólogo norte-ame-ricano Norman K. Denzin, em 1970, propôs a distinção entre “life history” e “life story”. No uso do primeiro, a história de vida narrada é verificada em outros documen-tos para confirmar a verdade dos fatos narrados; já no segundo, interessa apenas o que a pessoa que viveu conta. Bertaux prefere “récit de vie” quando o interesse recai sobre a subjetividade e não na verdade dos fatos. Desse modo pode-se evitar a confusão entre as terminologias. (BERTAUX apud FERNANDES, 2010).

Em sua teia oral, Dona Chica revela que se chama Francisca Benvinda Vieira Amaral, a quem trataremos aqui ora pelo apelido ora pelo Benvinda, nome próprio e apropriado pelo que significa. Pois bem, ela nasceu em

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3 de dezembro de 1937, em Boa Vista dos negros, comu-nidade do município de Parelhas, situando-se também próximo a Jardim do Seridó e Carnaúba dos Dantas. Segundo Cavignac (2007, p. 37),

a tradição oral e registros cartoriais atestam que ‘os negros da Boa Vista’ estavam presentes no local um século antes da compra de uma terra no sítio Boa Vista do Monte do Rio Cobra, documento assinado em 09 de abril de 1889, que os herdeiros de Theodôzio Fernandes da Cruz conservaram até hoje. Finalmente, a participação do grupo na festa do Rosário em Jardim do Seridó e em uma irmandade reservada aos homens pretos desde a época da Colônia são outros índices da ancestralidade do grupo que remetem diretamente à escravidão.

A comunidade de Boa Vista, portanto, empilha muitas páginas de história, escritas ou orais. Dona Chica conhece boa parte porque divide a autoria. Enraizada, pouco se ausentou da sua terra, viajando apenas pela redondeza, embora diga que conheceu muitos lugares, o que significa que o mundo para ela não é tão grande. O pouco/muito que conheceu é suficiente para afirmar que não trocaria seu lugar por nenhum outro, só se sente feliz e realizada na sua comunidade.

Boa Vista dos negros, antes agrícola, tem, atualmen-te, no trabalho com a cerâmica produzida na vizinhança, sua principal fonte de renda. A identidade quilombola se expressa não somente na cor da pele, mas nas manifes-

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tações simbólicas como a da Festa do Rosário, uma das tradições culturais mais importantes do povo do lugar. Um dos personagens da festa são os juízes e as juízas. Por quinze anos, Dona Chica foi Juíza perpétua da irmandade dos negros do Rosário, o que a vincula às tradições do seu povo. Com o casamento, como ela nos conta, essa vinculação esmaeceu um pouco, mas o laço não se desfez totalmente.

Benvinda iniciou os estudos aos 10 anos de idade, com o apoio dos pais que eram analfabetos. Apesar ou por causa disso, eles gostavam da escola. A primeira pro-fessora foi Luzia Luciano, da comunidade Boa Vista dos Lucianos. Mas o ensino só ia até a 3ª série. A escola não oferecia continuidade dos estudos, o que não significou para aquela menina ficar em casa. Preferiu continuar frequentando as aulas. Não poderia ser diferente porque Dona Chica queria mais, como sugere sua afirmação: “Meu destino era aprender”.

Somente em 1968 conseguiu fazer o primário em Jua-zeiro. “Lá o ensino era difícil”, confessa. Precisava decorar tudo e na aula de história memorizava umas duas páginas e depois repetia para a professora. “Era mesmo que ser uma leitura, só não estava olhando para o papel”, conta Dona Chica. Não podia errar, senão o teste ficava para o dia seguinte. Ela mesma não precisava de palmatória, explica, mas tinha uma na escola.

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Menezes e Machado (2008), analisando o cotidiano da escola dos anos 1950 no Estado da Paraíba, constatam, através de depoimentos, que o acesso à escola, na referida década, se dava aos 10 anos de idade e que a metodologia empregada era a da cartilha, sendo a palmatória, apesar dos ideais da Escola Nova1, ainda utilizada como instru-mento disciplinador. A realidade paraibana não era muito diferente da que se encontrava no Rio Grande do Norte.

Em 1954, estudando a 3ª série, Benvinda começou a ensinar. Somava, então, 17 anos. Ensinava adultos e crian-ças na casa dos pais, todos misturados porque, como ela afirma, naquela época, ali, “ninguém sabia ler não”.

Em 1958, o prefeito de Parelhas-RN, Florêncio Luciano, por indicação da professora Quinó, ou melhor, Joaquina Leite, convidou Dona Chica para dar aulas à comunidade. No início era tudo emprestado, cadeiras e bancos. Ela ensinava a adultos, alfabetizava-os. Depois o prefeito fez um salão para a escola e ao lado, sua residên-cia. Além de professora, ocupava-se da merenda. Era, ao

1 Os ideais da Escola Nova surgiram na Europa e Estados Unidos ainda no século XIX, mas tomaram fôlego no Brasil na década de 1930 com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Tendo em Anísio Teixeira um dos principais articuladores, o movimento deixou um legado reconhecido como articulador de uma educação baseada na liberdade e na experimentação, cujo centro era o aluno. Por outro lado, é criticado como “mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante” (SAVIANI, 1980, p. 21).

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mesmo tempo, professora e dona de casa. Condição muito comum no mundo da mulher profissional, mas no caso da educação, a profissão é quase uma extensão das funções sociais atribuídas à mulher, vista como educadora natural, conforme observam Lima, Monteiro e Garcia (2009).

De qualquer forma, Dona Benvinda ensinava e continuava seu destino de aprender. Durante 3 anos fez a 3ª série e ensinava. Na prática, era o que Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, intuía: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. (ROSA, 1980, p. 235). Seguindo a lição de Guimarães Rosa, apren-der é condição para ensinar, então o destino de Dona Chica era também o de ensinar.

Sua inserção no universo docente oficial se deve, provavelmente, às políticas do período que, através de diversos programas educacionais, visavam a permanên-cia do homem no campo, sem, contudo, dispor de um aparato que favorecesse o alcance da meta. O investimen-to nesse sentido era precário e com fins mais políticos do que sociais. Ângela Hidalgo identifica, nas propostas de educação rural na década de 1950 realizadas no Brasil, “a configuração do desenvolvimentismo econômico, a atuação dos organismos internacionais na promoção da paz e a modernização da sociedade por intermédio de projetos educativos, subordinados aos interesses ime-diatos de preservação do modo de produção capitalista” (HIDALGO, 2012, p. 252).

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Assim, o fomento à educação e, consequentemente, à formação de professores servia ao interesse da criação de mão de obra qualificada, necessária ao mercado. Por-tanto, os fins da educação, tanto no nível fundamental como no médio, voltavam-se para o desenvolvimento, para o trabalho (RIBEIRO, 2000). Mas, para esses fins, era necessário formar os professores. No Rio Grande do Norte, tanto o Governo de Dinarte Mariz (1956-1960) quanto o de Aluízio Alves (1960-1966) investiram na formação, sendo que este último intensificou o trabalho com os professores leigos, aqueles sem nenhum preparo para o ofício (VIEIRA, 2005). Entretanto, o atendimento aos municípios, especialmente na zona rural, chegava mais precário que na capital, e às vezes nem chegava, diferente de hoje, quando muitos programas federais chegam a comunidades como Boa Vista dos negros.

Como é visível, ser professor(a) nesse período não implicava, necessariamente, ter formação especializada para o ofício. Mesmo com a vida dificultosa, Dona Chica conseguiu, através da escolarização rural, acumular algum conhecimento que lhe permitiu enveredar pelo trabalho docente, muito embora fosse leiga quanto aos métodos de transposição didática. De todo modo, ensinar era motivo de honra para quem desempenhava o papel, como é o caso de D. Benvinda, que o fez por 30 anos.

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Quanto ao fato de ser a única professora negra, Dona Chica se diz realizada e feliz, pois sabe que existe muita discriminação com os negros, mas ela mesma, revela, “nunca se sentiu muito discriminada não”. O “muito não” pode significar que o preconceito existia, embora velado, de modo a não deixá-la incomodada.

Diante do exposto, uma pergunta se impõe: o que significava ser professora negra pelos meados do século XX? Provavelmente, ser professora já era um diferencial, haja vista a pouca instrução dos moradores. Esse fato pode ter minimizado os conflitos gerados pela etnia, pois se ainda hoje são tão comuns os problemas envolvendo preconceitos de cor, fica difícil imaginar uma mulher negra, ainda que no posto de professora, sem ser discri-minada.

De qualquer forma, o saldo geral do discurso de D. Chica não é de vitimização. Embora um outro caminho de investigação pudesse dar indícios da discriminação, é preferível reconhecer que Benvinda forma o time de mu-lheres que se destacam na comunidade. De acordo com as pesquisas de Cavignac (2007, p. 193), na comunidade da Boa Vista dos negros, “na sua grande maioria, são as mulheres que se envolvem nas questões políticas locais e, na vida pública, são elas que se projetam como lideran-ças”. Ainda de acordo com a pesquisadora, “a atuação de Dona Chica, primeira professora negra do local, serviu de

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exemplo para as lideranças atuais que se espelharam na sua experiência, mostrando que, apesar das dificuldades, era possível introduzir melhorias na comunidade”.

Em todo caso, talvez o maior exemplo da ex-profes-sora da Boa Vista dos negros seja a condição múltipla de aprendiz e de mestre. Ela nunca desistiu do estudo. A despeito das dificuldades, Dona Chica, antes de se aposentar, conseguiu concluir o ensino médio. Ensinava e estudava ao mesmo tempo, lição Benvinda a ser seguida por todo professor.

referênciAs:

CAVIGNAC, J. (Coord.) Relatório antropológico da comuni-dade quilombola de Boa Vista (RN). Natal: Convênio UFRN/INCRA-RN, 2007.

CAVIGNAC, J.; MELO, R. Dona Chica e a Boa Vista dos Negros. [ filme-vídeo]. Produção de Julie Cavignac, direção de Raimun-do Melo. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012. DOC./RN/COR/NTSC/11’/2012.

FERNANDES, Maria Esther. História de vida: dos desafios de sua utilização. Revista Hospitalidade, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 15-31, jan./jun., 2010.

HIDALGO, Angela Maria. Projetos educativos para as popula-ções do campo nos anos de 1950 e ProJovem Campo – Saberes da Terra: desenvolvimentismo e proposições dos organismos internacionais. Revista Brasileira de História da Educação,

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Campinas, v. 12, n. 2 (29), p. 239-266, maio/ago., 2012. Disponí-vel em: <http://www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/article/view/393>. Acesso em: 22 abr. 2013.

LIMA, Edja Kelly da Silva; MONTEIRO, Ezequiel Santos; GAR-CIA, Tânia Cristina M. Representações do magistério: mulhe-res, vocação e afetividade. In: FÓRUM INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA - FIPED, 2. 2009, Campina Grande. Anais... Campina Grande: Realize, 2009.

MENEZES, Cristiane S.; MACHADO, Charliton J. S. Memória e cotidianidade escolar na década de 1950. O ensino e a pes-quisa em história da educação. CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAçÃO, 5. 2008, São Cristóvão. Anais... Aracajú: Universidade Federal de Sergipe: Universidade Tira-dentes, 2008. Disponível em: <http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/517.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2013.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

SAVIANI, D. A filosofia da educação e o problema da inovação em educação. In: GARCIA, W. E. (Coord.). Inovação educacio-nal no Brasil: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1980. p. 15-29.

VIEIRA, Daniela Fonsêca. As mudanças da educação do RN nos idos de 1950 e 1960: a prática de Lia Campos. 2005. Dis-sertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.

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Tradições discursivas nos falares quilombolas: observando o relato histórico em remanescentes quilombolas do Rio Grande do Norte

nelson Ferreira de Sousa Junior departamento de letras, uFrn

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“[...] Do ambundo, de Angola, kilombo, acampamento, moradia afastada, arraial solitário.” (CASCUDO, 2002, p.118).

introdução

É relativamente recente, no Brasil, o avanço da pes-quisa linguística acerca do português falado em comu-nidades quilombolas (cf. LUCCHESI et al., 2009). Nesse mesmo sentido, como expõe Brandão e colaboradores (2010, p.7), somente nas últimas décadas tem crescido o debate acerca dos negros quilombolas, percebendo-se que, sendo remanescentes diretos ou não de quilombos, esse grupo social está relacionado a uma “histórica tra-jetória de discriminação contra a população negra que marca a construção da nação brasileira”.

Contudo, como afirma O’Dwer (2005), a classificação dessas comunidades tem sido vista como controversa, uma vez que, mesmo sendo consideradas tradicionais, como indica Brandão e colaboradores (2010, p.9), não devem ser vistas como estáticas na história, “estão em processo constante de mudanças e vivem intenso contato interétnico e intercultural”.

Outrossim, a observação e análise das relações socio-culturais e necessidades dessas comunidades – cerca de 30 no RN, com mais de 6 mil famílias – foram por muito

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tempo negligenciadas pela pesquisa brasileira, inclusive pelos estudos linguísticos. É até possível que muito das reminiscências dos falares africanos dessas comunidades tenha se diluído na língua portuguesa e se perdido pela ausência de estudos anteriores. Como afirma Silva (2010),

é reduzidíssimo o espaço reservado […] [ao estudo das] influências dos falares africanos em nossa língua, o que não ocorre por acaso, vale ressaltar, pois para uma elite europeizada como a nossa é inadmissível [...] que uma língua de prestígio literário como a portuguesa, tenha sido influenciada por uma língua de negros escravos, de tradição oral.

Assim, os estudos históricos da língua, numa pers-pectiva descritiva e etnolinguística, como afirma Barreto (2010), podem em muito contribuir para a compreensão sobre as comunidades quilombolas, já que “a análise da língua de uma determinada comunidade, partindo dos fatos linguísticos para os fatos extralinguísticos, permite conhecer melhor a realidade social desta” e, assim, auxiliá-la na construção de sua própria identidade e desenvolvimento.

Nesse ínterim, a linguística histórica frequentemente está associada à análise de documentos escritos, não se evidenciando o valor dos dados de fala para o desenvol-vimento de uma determinada compreensão histórica da língua. Dessa maneira, a partir da conceituação de Silva (2008, p. 9, 23), baseada nos escritos de Coseriu (1979),

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faz-se necessária a prática de uma “linguística histórica lato sensu”, isto é, uma linguística que leve em conside-ração a composição e observação de corpora datados e localizados, entendendo que “o conhecimento das realidades in praesentia abre caminho para melhor compreensão de fenômenos passados”.

Dessarte, visando a construção de uma agenda de pesquisa que contribua à análise e compreensão linguís-ticas das tradições orais de remanescentes quilombolas, este trabalho se apresenta como uma proposta à preser-vação de seu patrimônio linguístico-histórico, a partir da apreensão do modo como se configuram as Tradições Discursivas (TD) nos textos orais dessas comunidades.

trAdições discursivAs e fAlAres quilombolAs

De acordo com Kabatek (2006, p.505, 508), tem cres-cido o uso do conceito de TD na linguística românica, sendo também aplicado na área dos estudos históricos do português brasileiro. De um modo geral, as TD referem-se a “modos tradicionais de dizer as coisas”, ou seja, evi-denciam um processo de cristalização de determinada construção linguística a partir de sua frequência de uso numa dada comunidade linguística, evocando, por sua vez, uma determinada forma textual.

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Desse modo, é possível que as TD permitam um importante acesso a um “arquivo da memória cultural” das comunidades quilombolas relacionado às formas e modelos históricos de comunicação herdados de antigas gerações africanas.

De acordo com Cavignac (2008, p. 37, 38), acerca da comunidade quilombola de Boa Vista dos negros, “o autorreconhecimento como quilombola passa pela reiteração da narrativa”, o que indica essa forma textual como recorrente e tradicional para esse grupo. A nar-rativa, portanto, mostra-se como campo interessante à observação do que há de mais tradicional no grupo.

Nesse contexto, ao observar narrativas de cunho histórico de diferentes informantes do Quilombola de Portalegre do Brasil (SOUZA et al., 2011), percebeu-se a recorrência da seguinte estrutura:

a) introdução da narrativa a partir da referenciação familiar, indicando-se laços de parentesco ou genealogia;

b) apresentação do espaço onde ocorre a narrati-va, portanto, o lugar onde ocorrem os eventos a serem narrados;

c) apresentação de eventos em série;d) clímax ou auge do desenvolvimento da narrativa;e) encerramento ou desfecho.

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Dessa forma, evidencia-se a configuração de uma TD relacionada ao relato histórico, principalmente no diz respeito à introdução narrativa, sempre começando pela referenciação familiar e pelo espaço para, então, desenvolver-se a narrativa propriamente dita (Tabela 1).

Tabela 1 – Construções linguísticas padrão de introdução do relato histórico.

INFORMANTEREFERENCIAçÃO

FAMILIAR/ GENEALÓGICA

APRESENTAçÃO DO ESPAçO

M50-01“Mundoca que é a mãe de Antõi de Guilermina” (99a)

“que só t a no sito água... má e terra lá no Santo Antõi” (100a)

M63-05

“diz o meu avô... o meu avô quera Jão Ricarte... o meu sogro que é o pai de meu marido... qué o finado Manéu Calixta” (32e, 33e)

“contava mermo o lubisome mermo contava quele morava aqui no São Tumás... discia aqui o s ô pega desceno” (34e)

H39-03

“ a vez... a vez Rita de Aldo foi passá naquele terreno de Marulino” (406b)

“lá perto da Milona” (407b)

H84-06“Maria é filha m a... t i Maria e t i Rita” (46d)

“tudo morano na merma rua” (46d)

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Nesse sentido, numa perspectiva relacionada a Coseriu (2010, p.126) revela-se uma identidade formal entre os diferentes relatos dos informantes, indicando uma maneira cristalizada de narrar os processos pelo qual a comunidade e seus membros estiveram envolvidos.

É claro que existem muitos outros processos envol-vidos na configuração do relato histórico e os resultados acima ainda se mostram preliminares. Todavia, o exemplo acima já evidencia a presença de uma estrutura mais fixa na organização narrativa produzida por esses informan-tes, estrutura essa que aponta para uma TD.

construindo cAminhos possíveis

Por fim, tendo em vista a observação e análise das TD a partir de dados de fala de quilombolas, faz-se necessária a composição de um amplo corpus linguístico dos falares quilombolas do Rio Grande do Norte.

Recentemente, foi publicada uma mídia eletrônica pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e Literários de Pau dos Ferros – UERN (SOUZA et al., 2011), com a transcri-ção da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil. Outra iniciativa já em curso é a do Projeto de

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Ações Integradas da UFRN, Falares Quilombolas, que tem como um de seus objetivos a construção de um corpus representativo dos Quilombos do Rio Grande do Norte, iniciando-se pela região do Seridó.

De fato, a coleta e análise desses dados, observando-se suas TD, podem efetivamente contribuir para uma melhor compreensão dessas comunidades, auxiliando-as na ree-laboração de sua própria identidade cultural, preservan-do, desse modo, suas tradições, as quais são elementos estruturantes de seu patrimônio imaterial.

referênciAs:

BARRETO, Evanice R. Etnolinguística; pressupostos e tarefas. Partes, São Paulo, jun. 2010. Disponível em: <www.partes.com.br/cultura/etnolinguistica.asp>. Acesso em: 10 set. 2011.

BRANDÃO, André et al. Comunidades quilombolas no Brasil; características socioeconômicas, processos de etnogênese e políticas sociais. Rio de Janeiro: Ed. da UFF, 2010.

CAVIGNAC, Julie A. Os “Troncos Velhos” e os “Quilombinhos”; memória genealógica, território e afirmação étnica em Boa Vista dos Negros (RN). Ruris, Campinas, v.2, n.2, set. 2008.

COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história; o problema da mudança linguística. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979.

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COSERIU, Eugenio et al. Linguagem e discurso. Curitiba: UFPR, 2010.

KABATEK, Johannes. Tradições discursivas e mudança lin-guística. In: LOBO, Tânia et al. Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises. Salvador: EDUFBA, 2006. t. 2, v. 6, p. 505-527.

LUCCHESI, Dante et al. O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009.

O’DWER, Eliane C. Os quilombos e as fronteiras da antropologia. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.

SILVA, Rosa V. M. Caminhos da linguística histórica: ouvir o inaudível. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SOUZA, Medianeira et al. A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil [recurso eletrônico]. Mossoró: Edições UERN, 2011.

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Doçaria quilombola: Economia do patrimônio doce

Maria isabel dantas, iFrn

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A produção caseira de comidas é uma prática significativa para muitas comunidades; expressa uma diversidade de técnicas, sabores, ofícios e modos de fazer peculiares. Na Boa Vista dos negros, em Parelhas, no Rio Grande do Norte, muitas famílias ainda preservam co-nhecimentos culinários tradicionais como a produção de comidas à base de carnes e de doces. A festa da matança de porco com a feitura do chouriço – um doce feito com sangue e banha de porco, rapadura, coco, farinha de mandioca e especiarias – é um exemplo de um evento coletivo e familiar que ainda persiste na comunidade, em que saberes e fazeres são reatualizados. Trata-se de um momento festivo e de comunhão, em que uma família que cria porco abate um ou dois animais, faz um chouriço e um almoço para ser saboreado por parentes, vizinhos e amigos e comercializa o doce por meio de uma rifa. Juntos, trabalham, comem, festejam, solidarizam-se e comercializam a carne de porco e o doce.

No sentido de discutir com a comunidade ações de melhorias no processo de preservação do saber-fazer chouriço e de outros doces visando sua transformação em fonte de renda, realizamos, em 2012, duas oficinas,

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intituladas “Patrimonialização de doces do Seridó potiguar”1, sobre a doçaria local e regras de segurança alimentar como higienização de alimentos e de utensí-lios. As oficinas aconteceram no ensejo de duas festas de matança de porco. Por parte da comunidade, contamos com a colaboração da mestra de chouriço Damiana Maria da Cruz, conhecida por Daminha, e de Ana Nascimento de Lima, que transmitiram aos(às) oficineiros(as) seus conhecimentos a respeito do modo de fazer chouriço e doces de goiaba, de leite puro e com coco. Ver Figuras 1, 2 e 3, a seguir.

1 As oficinas foram parte das ações dos projetos de extensão e pesquisa “Estratégias para uma educação patrimonial em comunidades quilombolas do Seridó-RN” (MEC/SESU PROEX, 2011), “Doçaria seridoense: um patrimônio cultural alimentar” (FAPERN, CNPq e IFRN) e “Estudo socioantropológico e caracterização química do chouriço produzido no Seridó potiguar” (IFRN e a UFRN). As oficinas foram realizadas de 18 a 21 de julho de 2012 e de 30 de novembro a 02 de dezembro de 2012.

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Figuras 1, 2 e 3: Momentos da oficina de patrimonização de doces na Boa Vista

Foto: Cynthia Melo

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Descrevemos aqui as experiências vivenciadas nas oficinas que aconteceram no Ponto de Cultura da Boa Vista e na residência do casal Maria das Graças Fernan-des e João Batista Fernandes, conhecidos por Preta e Dodoca, e apontamos algumas propostas surgidas para a preservação desse bem patrimonial e para sua transfor-mação em economia para algumas famílias. Apesar da importância dos outros doces para o estilo alimentar da comunidade, nosso foco é o modo de fazer chouriço e as formas de distribuição dele entre os envolvidos.

O que acontece na Boa Vista é recorrente em outras localidades do Seridó potiguar, onde fazer um chouriço ainda é um “grande rebuliço” festivo e de excitação co-letiva. A festa pode durar um dia inteiro ou uma noite, ou estender-se por dois dias, quando acontece a rifa do chouriço2, sendo um tempo ideal para o trabalho solidá-rio e a convivência social. Ela pode ser organizada para comemorar aniversários, casamentos, batizados, boas co-lheitas, festa de padroeiro(a), o Natal, a passagem de ano, visitas de parentes que residem distante e outras ocasiões

2 Acontecimento festivo, geralmente realizado à noite, que reúne a família e a vizinhança, em clima de grande excitação e de competição. É realizada, desde tempos imemoriais, na região do Seridó e em outros municípios do sertão nordestino. Nela, uma mestra e sua família rifam (ou bancam, como se prefere dizer) uma quantidade determinada de latas desse doce em jogo feito com dados ou com baralhos, conhecido, respectivamente, por jogo de bozó ou pacará.

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especiais. Por meio do doce e da festa são reafirmadas e/ou construídas relações sociais, uma vez que esses bens circulam como comidas-dádivas entre a família (que oferece a festa) e seus convivas, podendo ser pensados como patrimônios3 que precisam ser preservados.

o chouriço de dAminhA: umA herAnçA fAmiliAr

É costume na localidade matar porco e fazer chou-riço, conforme nos disse João Batista, no trecho a seguir: “Ah o chouriço é muito bom. Matou porco num tiver chouriço num tem graça não”. Sendo assim, na véspera da feitura do chouriço, ao final da tarde e no terreiro4 da residência do casal, os marchantes5 José Amaral (conhecido por Zé de Biu) e Dodoca abateram dois porcos de criação caseira, comprados na comunidade vizinha Cachoeira. O ritual foi

3 Pensamos esse conceito a partir de Ballart (1997) e de Silva (2009), para quem patrimônio é algo que um grupo social significativo, mediante uma seleção consciente, identifica como seu e deseja legar às futuras gerações. Noutros termos, são símbolos, visto que representam simbolicamente uma cultura.

4 Todo o espaço que circunda as residências dos sítios e das fazendas, cujo limite é demarcado pela limpeza feita pelas mulheres, a qual o distingue do monturo e do mato. Normalmente, a parte de trás do terreiro é denominada de “quintal”, e as partes laterais de “oitões”.

5 Comerciante especializado na compra, na venda e no abate de bovinos, caprinos, ovinos e suínos. Também comercializa a carne desses animais e pode realizar a castração artesanal dos machos.

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auxiliado por homens e meninos, conforme demonstra a Figura 4. As mulheres isentaram-se do ato de pôr fim à vida dos animais, inclusive do aparo do sangue, uma tarefa geralmente exercida por elas em outras localidades. Depois de esfriado, o sangue dos animais foi colocado na geladeira6, assim como a carne, que foi consumida torrada7 e assada nas refeições – almoço e jantar – na festa do chouriço. Partes do arrasto8 – mocotós, rabo e toucinho – foram usadas numa feijoada, um dos pratos servidos no almoço. Para as pessoas que estavam doentes ou que têm receio de comer carne de porco, foram servi-das galinha caipira torrada e carne bovina.

6 Diferentemente de outras mestras, Dona Daminha não tem receio de utilizar em seu doce o sangue que foi congelado, nem, muito menos, de se servir de equipamentos elétricos. Entretanto, ela cuidou para que o sangue se apresentasse em estado liquefeito. Sobre os cuidados com o sangue e com seus usos na alimentação humana, ver Rousseau (2005) e Dantas (2008).

7 Um modo de cozimento de carne insossa encontrado na região. 8 Uma porção de carne formada pela coluna vertebral, os pulmões, os pés, o

fígado e o coração. Os três primeiros são, em geral, chamados, respectivamente, de espinhaço, bofes e mocotós. A cabeça e os intestinos delgado e grosso (conhecidos por fato) podem também fazer parte do arrasto.

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Figura 4: Abate do porco. Foto: Cynthia Melo

A feitura do chouriço requer um saber-fazer es-pecializado, normalmente dominado pelas mulheres “maduras”. Na casa de Preta, a mestra é sua mãe Daminha, que nasceu em Nova Floresta, na Paraíba, e chegou à Boa Vista em 1961, quando casou. A mestra tem 71 anos, é trabalhadora rural aposentada, viúva e tem três filhos. Foi em Nova Floresta que ela aprendeu o ofício junto com sua mãe e outras mulheres, entre elas, sua cunhada. Há pelo menos 25 anos, faz chouriço na comunidade. “O chouriço eu sempre vi fazendo [...]. Faz muito tempo que eu comecei a fazer. Assim começar a fazer não, mas fazer com minha cunhada eu fiz muitas vezes mais ela.

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Eu fiz tantas vezes que aprendi. Comadre Alice, ela fazia e eu prestava muita atenção aí fiquei fazendo”. Seu apren-dizado serve-lhe para ajudar outras famílias a manter a tradição; costuma ser chamada para fazer o doce em outras residências. “Aqui o povo assim matando o porco a pessoa faz. Agora quase todo mundo faz chouriço assim se não souber fazer manda outras pessoas que sabem fazer, é assim que a gente faz”. É ela quem faz a grande maioria dos chouriços da comunidade e é praticamente a única em atividade, apesar de já terem existido outras mestras conceituadas. É um costume na região, quando a dona da festa ou dos porcos não domina o saber-fazer do chouriço, convidar uma mestra conhecida, e de sua confiança, para fazer o doce. O serviço pode ser pago em dinheiro, em latas do doce ou em cortesia.

Daminha lamenta por suas filhas não terem mani-festado interesse pela atividade porque a consideram difícil, o que para ela não procede. “Eu num acho não. Eu num acho difícil não por que as coisas ficam mais difícil quando as pessoas num sabe né, depois que a pessoa aprende fica tudo mais fácil, né?”. As palavras de Dodoca reforçam o caráter singular do saber-fazer chouriço. “Poucas pessoas sabem. Num é todo mundo que faz o chouriço não. Porque tem que saber o tanto dos pertences que leva, né?” Preocupada com a preservação do saber-fazer chouriço, a mestra não poupou esforços

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em repassá-lo para outras pessoas da comunidade durante as oficinas.

Para fazer um chouriço são necessárias longas horas de cozimento e o envolvimento de membros da família e da vizinhança. Muito embora em outras localidades do Seridó a mexida do doce seja um “serviço de homem”, na Boa Vista são praticamente as mulheres que exercem a tarefa. Cabe aos homens o abate dos porcos, o trincha-mento das carnes, a coleta da lenha, a feitura do fogo e outras tarefas ditas “pesadas” para as mulheres. As crian-ças se empregam de tarefas como assar as castanhas de caju, conforme demonstra a Figura 5, e outros afazeres.

Figura 5: Crianças assando as castanhas de caju. Foto: Cynthia Melo

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A receita do chouriço de Daminha, uma herança de família, é de 50 rapaduras. Para fazer um chouriço com essa quantidade de rapadura, ela usou sangue de dois porcos (em média 2 litros), 50 xícaras de farinha de mandioca peneirada, 1 quilo de banha apurada (ou graxa, como ela prefere nomear), 1 quilo de castanha de caju moída, leite de 7 cocos secos, 50 copos pequenos de água, 200 gramas de erva-doce, canela e cravo, 100 gramas de gengibre, 50 gramas de pimenta-do-reino e uma xícara de açúcar para deixar o doce mais escuro (ver Figura 6, abaixo):

Figura 6: Preparo de Daminha e Francisca. Foto: Cynthia Melo

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Logo cedo da manhã a mestra colocou as rapaduras de molho em água para fazer a garapa – para o preparo e o cozimento do doce – num tacho tomado por empréstimo de um vizinho. Primeiro untou o tacho com uma porção de banha – para o doce não pegar – e depois colocou o sangue, já liquidificado. Segue a explicação da mestra quanto ao modo de preparo do doce: “O tempero num é tanto porque o tempero a pessoa vai botando e quando fica no ponto a pessoa já sabe. E tem que ter também... Primeiro a rapadura, segundo a farinha, aí vem a canela, o cravo, a pimenta do reino ou gengibre, o coco e a banha do porco. É o preparo do chouriço, é com esse tempero que faz. Aí tem também a hora de botar e de tirar. Bota no fogo, mas só pode assim marcar a hora de tirar quando ele já tá fervendo. É 5 horas mais ou menos pra tirar do fogo. Nas 5 horas a pessoa já dá o ponto, tira pelo ponto, não pode tirar antes de dar o ponto. É assim quase que nem um mel, a pessoa compara assim o ponto dele como se fosse quase um mel, sabe? Dando aquele ponto aí a pessoa pode tirar”.

Com os ingredientes misturados, as mulheres trans-portaram o tacho do interior da casa até o oitão, embaixo de uma árvore, local onde foi montada uma trempe para fogo a lenha. O fogo foi acesso com lenha de jurema seca, por emitir pouca fumaça. Após uma hora no fogo, o doce apresentou fervura e a mestra passou a contar o tempo

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de cozimento, de 5 horas. Neste intervalo, Daminha, pau-latinamente, acrescentou ao doce o restante da garapa, da banha, do leite de coco e das especiarias. Mulheres (e poucos homens) se revezaram para ajudar a mestra a mexer o doce, mesmo ela permanecendo todo o tempo de cozimento ao redor do fogo. Vez por outra ela provava o sabor e o ponto do doce, contando com a opinião de mulheres conhecidas e aprendizes; esse é um exemplo de que fazer um chouriço requer um esforço cooperativo. Isso considerando a afirmação da mestra de que não tem receio de fazer um chouriço. “Eu me seguro, tranquila e calma”.

Durante todo o dia, dentro de casa e no terreiro – que ainda agrega o alpendre ou a área e a parte interna da casa – os participantes aproveitaram o tempo da festa, ou melhor, do cozimento do doce para palestrar, “fofocar”, brincar, beber e comer o porco assado e torrado e o picado9. É assim na maioria das festas de matança de porco na Boa Vista. A doceira Ana Lima também ensinou aos participantes o modo de fazer doce de goiaba, de leite e de leite com coco; membros da nossa equipe repassa-

9 Comida sertaneja em forma de guisado, também conhecida por sarapatel, feita de fígado, coração, gordura, sangue e bofe (estes dois últimos, opcionais), aferventados e picados, de suíno, caprino ou ovino. É servido acompanhado de farinha de mandioca. Em outras regiões, é o “sarrabulho”. O picado de porco é considerado o mais carregado, se comparado ao dos outros animais.

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ram técnicas de higienização de utensílios e maneiras corretas de acondicionamento dos doces.

Encerrado o almoço, as atenções se voltaram nova-mente para o tacho de chouriço. Enquanto os homens con-versavam, as mulheres cuidaram da limpeza da cozinha e da higienização das vasilhas de leite em pó, de doce e depósitos descartáveis, para acondicionar o chouriço, e das castanhas, para ornamentá-lo. Mais de seis horas haviam transcorrido desde a primeira fervura, e o doce borbulhava ardentemente, quando a mestra anunciou que ele estava cozido, ou – como ela prefere dizer – no “ponto”.

Figura 7: Cozimento do chouriço. Daminha, Zé de Biu e Gegé.

Foto: Cynthia Melo

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Com tudo pronto para a retirada do doce, os homens transportaram o tacho para o chão do alpendre, tarefa bastante arriscada, devido ao peso e à temperatura do doce em estado de ebulição, como demostra a Figura 7. Aos pouco a mestra foi enchendo os depósitos com o chou-riço. O trânsito de mulheres e homens indo e vindo com as bandejas e placas cheias ou vazias de latas de chouriço foi muito intenso. Parecia uma imagem cinematográfica. As mulheres mais “cuidadosas” alertavam a todos dos perigos a que estavam expostos, pois o doce ainda fervia no tacho. Enquanto uns transportavam o doce, outros (as mulhe-res, em especial) enfeitavam as latas com castanhas ou limpavam o excesso de doce que escorria nas bordas. Até as crianças participaram da decoração das latas. A orna-mentação tem a finalidade de ostentação aos comensais.

Figura 8: Retirada e decoração do chouriço. Foto: Cynthia Melo

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Enquanto eram enchidas as últimas latas de chou-riço, já havia pessoas portando colheres nas mãos para raspar o tacho. Todas estavam ansiosas para provar o doce e ter certeza de que ele estava bem cozido e não apresentava vestígios nem sabor de sangue. Ciente disso, a mestra deixou propositalmente no fundo e nas bordas do tacho um pouco da tão esperada iguaria, para matar a vontade dos presentes. Essa é uma regra vigente em todas as experiências de feitura do doce, um momento de grande excitação coletiva, no qual o sentimento de prazer é intensificado. Ademais, raspar o tacho é uma espécie de “rito” de iniciação à degustação do doce, para as crianças e para outros iniciantes. Pudemos ter uma ideia do prazer que estavam sentindo ao provar do chouriço, mesmo que da “raspa” deixada no tacho: pareceu-nos que a porção do doce deixada pela mestra tinha um sabor especial, pois todos desejavam experimentá-la10 (ver Figura 8).

Excetuando-se algumas experiências de feitura do chouriço – onde o doce é feito para consumo da família e para distribuir com parentes e amigos –, a maioria das famílias da Boa Vista faz o doce com o pretexto de comer-cializar uma parte, pelo menos suficiente para cobrir as despesas com a aquisição dos temperos e ingredientes.

10 A prática de raspar o tacho após a retirada da comida é recorrente na região e é usada também no caso do queijo de manteiga, da canjica e de outros doces.

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Geralmente a comercialização é feita na rifa do chouriço que se realiza sempre à noite, na residência da mestra ou de familiares – como no caso de Preta e Dodoca –, no mesmo dia da feitura do chouriço ou um ou dois dias após esse momento, ou quando ele já está frio. O evento também se constitui numa ocasião ideal para o reconhe-cimento público dos dotes de mestra e de cozinheira e para ela colocar seu doce em evidência e sob julgamento, como também para confraternização da vizinhança.

O convite para a rifa em questão foi feito muito antes da feitura do chouriço. Somou-se ao convite “personali-zado” a comunicação de boca a boca, responsável mais direta pela divulgação da festa. Em outras comunidades, o jogo é mais restrito aos homens, mas na Boa Vista as mulheres têm permissão para participar. O jogo-rifa aconteceu no alpendre, no próprio “chão limpo” – local suficiente para acomodar os jogadores e seus familiares – e foi “bancado” pelo dono da casa, conforme Figura 9. Antes do evento a anfitriã serviu o jantar regado a carne de porco e galinha caipira torrada e acompanhada com guarnições.

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Figura 9: Rifa do chouriço. Foto: Cynthia Melo

A princípio, pensamos que, por meio da rifa, a mestra obtinha mais lucro do que vendendo o chouriço direta-mente ao consumidor, o que não é verdade. O ganhador termina “tirando” cada lata do doce na rifa pelo mesmo valor que ela custa no mercado local: R$ 5,00 (cinco reais). Além do mais, o chouriço de uma mestra reconhecida é um produto muito comercial; sem contar que a procura pelo doce é maior do que a oferta. Registramos a presença de pessoas querendo comprar o doce, tanto antes como depois da rifa. O trecho da fala de Dodoca, a seguir, re-afirma o aspecto comercial e lúdico da rifa. “O chouriço é muito bem vendido aqui. Bem ligeirinho você vende trinta latas, quarenta, cinquenta latas de chouriço na rifa”.

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Percebemos que, na rifa do chouriço, o aspecto social é tão importante quanto o econômico, podendo sobrepor-se a este. Isso porque, em torno da rifa, a família e a vizinhança se reúnem para se solidarizar, para fes-tejar e para jogar. Ser premiado com uma lata de doce conta menos para os jogadores do que a possibilidade de criação ou renovação de laços sociais. Para os jogadores, “brincar” – como eles preferem referir-se ao ato de jogar – é mais importante que ganhar.

comerciAlizAr o pAtrimônio doce

Com a realização das oficinas pretendíamos possibi-litar uma discussão sobre a importância da preservação de saberes e fazeres tradicionais associados à produção de doces na comunidade Boa Vista e possibilitar ações de disseminação desse corpo de conhecimentos para outras pessoas. Além do mais, nossa intenção era insti-gar os participantes a tomarem esses saberes e fazeres como uma potencialidade para geração de renda, so-bretudo para as mulheres. Sendo assim, podemos inferir que os resultados foram alcançados parcialmente e que atenderam em parte às nossas expectativas. Isso porque ainda há muito a ser feito para que a comunidade venha a preservar grande parte de seu patrimônio alimentar e tomá-lo como economia. No geral, pudemos perceber

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o reconhecimento de muitos participantes da poten-cialidade socioeconômica existente na comunidade no campo da alimentação. Verificamos o interesse de algumas mulheres por tomarem seus saberes e fazeres como forma de geração de renda e de aprenderem novos doces e novas técnicas de fazer doce.

Observamos que parte dos conhecimentos apresen-tados nas oficinas sobre o modo de fazer alguns doces e a higiene no preparo e no acondicionamento dos doces foi assimilada pelos participantes e colocada em prática na feitura dos doces comercializados na festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da comunidade, e na última oficina do chouriço. Foram adquiridos utensílios descartáveis mais apropriados para o acondicionamento dos doces, os quais foram esterilizados antes de rece-berem os doces. A maioria dos utensílios de doces foi tampada imediatamente após a sua retirada do fogo, algo inconcebível anteriormente. Segundo as doceiras, esse procedimento poderia azedar o doce. Para aperfei-çoar esse processo, daremos prosseguimento ao projeto, visando uma análise bioquímica e de tempo de conser-vação do chouriço em prateleira11.

11 Numa ação conjunta entre IFRN e UFRN (Laboratório de Química Analítica) vamos desenvolver em 2013.2 na Boa Vista o projeto de extensão e pesquisa “Educação patrimonial na Boa Vista em Parelhas-RN: melhorias nos processos de conservação e preservação do chouriço”.

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Com relação ao chouriço, é visível o orgulho que eles têm por ainda preservaram tal comida ao ponto de se “gabarem” de fazerem um dos melhores do município de Parelhas. Pudemos constatar tal reconhecimento quando do ensejo da rifa do chouriço que contou com a presença de muitas pessoas que não participaram da oficina e do desejo, manifestado por presentes, em terem a “sorte” de tirarem na rifa uma lata do tão esperado e desejado doce. É uma disputa acirrada e excitante que pode contribuir na preservação desse patrimônio doce.

Mesmo considerando que ainda há muito a ser feito, a prática da doçaria na Boa Vista – como a do chouriço – revela saberes e fazeres tradicionais, formas de sociabilidades e de solidariedades, um estilo ali-mentar, um modelo de economia familiar baseado em conhecimentos tradicionais e fundado nos princípios da confiança e no interconhecimento, representações simbólicas construídas sobre essas práticas e a alimen-tação e sua importância para a vida social e individual dos boa-vistenses. Trata-se de um acervo de conheci-mentos empíricos e tradicionais construídos ao longo da história dessa população, transmitidos e significados praticamente de forma assistemática entre membros da família extensa – parentes, vizinhos e conhecidos. E por se trataram de bens culturais que circulam na localidade há muito tempo, esses bens materiais e imateriais são

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pensados pela população como um patrimônio cultural (BALLART, 1997) que ela deseja legar às futuras gerações.

Sendo assim, a preservação da prática da doçaria na Boa Vista pode contribuir para colocar os doces em meio a outros produtos regionais seridoenses, contribuindo para o desenvolvimento econômico da localidade. Os doces podem passar a ser bens valiosos, tanto para a economia da família como para a da própria região, pois junto a eles há outros produtos da doçaria, os queijos de manteiga e de coalho, a carne de sol e outros derivados do leite. Não há dúvidas de que essas famílias estão contribuindo para o desenvolvimento de um tipo de atividade fundamentada na cultura que vem ao encontro de um dos mecanismos econômicos hoje emergentes: a valorização das identidades locais como resposta às tendências globalizantes. Por meio de saberes e fazeres tradicionais, a atividade dá visibilidade dentro e fora da região aos produtos de um patrimônio cultural significati-vo para a população. Além de ser um investimento social profícuo, é uma operação econômica bastante eficaz para alguns grupos familiares.

O valor cultural agregado à atividade pode se consti-tuir como uma arma a ser usada para o reequilíbrio das oportunidades empresariais e uma ação afirmativa para uma comunidade quilombola. Isto porque a brasilidade (poderíamos dizer “seridolidade”, ou melhor, o modo de

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ser seridoense e boa-vistense) enquanto uma qualidade expressa em “produtos da terra” pode estar embutida nas diversas manifestações da cultura: nos alimentos, na música, na fraternidade dos relacionamentos interpesso-ais. A atividade no Seridó é um exemplo de criatividade espontânea já observada por Morais (2005), em sua tese de doutorado, ao analisar a saída criativa e resistente da sociedade seridoense frente à crise econômica vivida pela região entre as décadas de 70 e 90 do século XX. Assim, entendemos que a defesa do desenvolvimento cultural e da preservação de patrimônios pressupõe políticas públi-cas comprometidas com o desenvolvimento sustentável de uma região. Pois, como observa Tolila (2007, p. 19), “pensar a economia do setor cultural é uma arma para a cultura”.

referênciAs:

BALLART, Josep. El patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel Patrimonio Histórico, 1997.

DANTAS, Maria Isabel. O sabor do sangue: uma análise so-ciocultural do chouriço sertanejo. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Centro de Ciências, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte, Natal, 2008.

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MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência. Caicó: [s. n.], 2005.

ROUSSEAU, Vanessa. Le goût du sang: croyances et polémi-ques dans la chrétienté occidentale. Paris: Armand Colin, 2005. (Collection L’histoire à l’oeuvre).

SILVA, Elsa Peralta da. Património e identidade: os desafios do turismo cultural. Lisboa: I.S.C.S.P., [200-?]. Disponível em <http://www.aguaforte.com/antropologia/indice.html>. Aces-so em: 10 mar. 2009.

TOLILA, Paul. Cultura e economia: problemas, hipóteses e pistas. São Paulo: Iluminuras, 2007.

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PARTE III Recontar o passado?

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A Força de Trabalho dos Gentios d’Angola e dos Crioulos na Economia da Vila do Príncipe (RN) 1850/1890

Maria regina Furtado, uFPr

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Na economia da segunda metade do século retrasado, norteada pelo sistema escravista de produção, onde a pecuária foi prioridade e a agricultura esteve voltada exclu-sivamente para o autossustento, a presença da mão de obra negra escrava, nas relações de produção, moldou formas de trabalho livre específicas, muito comuns na região.

Tal estrutura socioeconômica nordestina e a política protecionista para com as regiões do sul do país, adotada pelo governo federal, propiciaram um desenvolvimento regional dependente, além de agravarem os efeitos dos rigores da seca, que atinge o sertão periodicamente, acen-tuando assim o quadro de extrema pobreza, que persiste até os dias de hoje.

As transformações econômicas e sociais que ocor-reram no Império, a partir de 1850, principalmente nas regiões cafeeiras do sudeste do país, não deixaram de afetar o sertão nordestino. No entanto, nessa região, as mudanças ocorreram mais lentamente, fazendo com que a transição do sistema escravista colonial de produção para o capitalismo dependente, assumisse características muito específicas.

Neste artigo, trataremos das relações de trabalho e da economia agrária do Município da Vila do Príncipe, com o foco na presença e na força de trabalho dos escravos, na metade do séc. XIX. A bibliografia local, na época da defesa da dissertação se ressentia de estudos sobre a presença e

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a participação do trabalhador negro escravo nas proprie-dades sertanejas do Seridó (MATTOS, 1985). Objetivando uma análise científica e mais profunda, os dados oferecidos pelos inventários, pelas cartas de alforria e pelas escrituras de compra e venda de escravos, contidas nos livros de notas do 1º Cartório de Caicó, foram as principais fontes consultadas para a elaboração dos quadros e gráficos que complementaram as reflexões teóricas e metodológicas.

As diferentes formas de trabalho livre, que coexis-tiram com o trabalho realizado pelo escravo nas pro-priedades rurais da Vila do Príncipe, aumentaram e se diversificaram no decorrer da segunda metade do século passado, não só com o crescimento da população livre, como pela própria desagregação do sistema escravista colonial. Tais formas de trabalho parcialmente assalaria-das (que até hoje podem ser encontradas) retardaram o surgimento do assalariado típico, freando o desenvolvi-mento econômico e social da região.

Um estudo sobre a força de trabalho dos homens livres, a economia agrária e os demais fatores que difi-cultaram a acumulação é realizado na última parte do capítulo 3 da versão original da já mencionada pesquisa, quando é ressaltado o nível técnico da economia, alguns aspectos sobre a comercialização da produção local, a circulação monetária e a situação financeira da região em nosso período de interesse.

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A mão de obrA escrAvA: método e contexto

De maneira geral, os historiadores clássicos que analisaram a economia nordestina desprezaram o papel desempenhado pela força de trabalho escravo, ao lado da mão de obra livre, nas propriedades rurais do sertão (PETRONE, 1973; CASTRO, 1971, p. 11, 22; DIEGUES JR.,1960, p. 151; SODRÉ, 1962, p. 123-5). Por existir em pequeno número, o escravo teve a sua presença no sertão assinalada mais como, “sobra do que como um elemento engajado no processo de trabalho” (MOURA, 1972, p. 222). Por outro lado, autores, como Jacob Gorender, comprova-ram que “é improcedente a ideia de que a pecuária não se coadunava com a escravidão por dificultar uma vigilância estrita sobre os escravos” e concluem, com dados, que “de norte a sul, coexistiam na pecuária o trabalho escravo e o trabalho livre” (GORENDER, 1978, p. 592, 420-2)1.

Na historiografia local, existem autores que, ao des-crever o povoamento e o desenvolvimento econômico do Seridó, citam o escravo apenas como um elemento que, em uma época determinada, pertenceu àquela sociedade (AUGUSTO, 1954; LAMARTINE, 1980; SANTA ROSA, 1974; NOBRE, 1971; DANTAS, 1976). Outra corrente é a

1 Sobre a questão do escravismo no sertão ver Abreu (1960, p. 261-2) e Ianni (1962, p. 47-65).

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dos autores que, ao dedicar um parágrafo ou mesmo um capítulo aos negros no Seridó, não trabalham cientifica-mente os dados que possuem. Mesmo assim, somente estes autores, até agora, se preocuparam em utilizar uma fonte primária, como são os processos de inventários, para o estudo da presença do escravo na Província e no sertão (MEDEIROS FILHO, 1983; CASCUDO, 1955).

Pretendemos aqui estudar a presença e a vinculação do escravo na economia rural sertaneja, como força de trabalho, ao lado de outras formas de relações de pro-dução, envolvendo trabalhadores pobres livres, em uma região de economia de subsistência apoiada na pecuária. Depois, nosso objetivo será apontar alguns dados que permitam uma maior compreensão a respeito do grada-tivo declínio desta mão de obra cativa, durante a segunda metade do séc. XIX, no Seridó.

Trabalharemos, nesta parte do trabalho, com os dados oferecidos pelos 308 inventários, onde foram arrolados 650 cativos; pelas 264 cartas de alforrias que deram liberdade a 274 escravos; e pelas 252 escrituras de compra e venda de escravos, através das quais foram negociados 277 cativos. Também utilizaremos as infor-mações e dados contidos nos relatórios de Presidentes de Província, no mapa de matrícula de escravos nas estações fiscais e no censo oficial de 1872.

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A população escrava da Vila do Príncipe, através dos inventários, é melhor retratada se separarmos os proprie-tários de terras e os não proprietários. De acordo com os dados do Quadro 282 (da versão original), a posse do escravo entre os inventariados no município foi registrada em 152 processos ou 49,4%. Entre estes, 138 (44,8%) eram proprietários de terras e 14 (4,6%) não proprietários. Dos 156 (50,6%) inventariados que não utilizavam da força de trabalho escravo, 129 (41,9%) eram proprietários de terras e 27 (8,7%) trabalhavam terra alheia.

Os inventariados que não possuíam terras, mas eram donos de escravos, somaram 14, com 43 escravos entre eles, havia sete moradores em propriedades rurais, com pequeno rebanho (bovino e equino), possuindo também poucos instrumentos agrícolas. Um era negociante, deixando uma grande soma entre as suas passivas. Três deviam ser meeiros, pois tinham a posse da casa, mas não da terra, onde trabalhavam lavouras e tratavam o gado; além disso, todos possuíam tear de fiar algodão. O outro grupo é formado pelos três moradores da Vila que possuíam gado, mas nenhum utensílio para o trabalho na roça. Este último grupo, ao todo, tinha dez escravos, divididos entre o trabalho no criatório e os serviços

2 No capítulo original da dissertação, os quadros eram numerados em algarismos romanos. Ao final do capítulo que o leitor agora lê encontram-se os mesmos quadros com a mesma numeração em algarismos arábicos.

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domésticos. Sobre os inventários dos não proprietários e sem escravos, desenvolveremos adiante.

Ao observar o Quadro 29, notaremos que muito poucos proprietários de terras possuíam muitos escra-vos. Apenas cinco com mais de 15 escravos cada um, ou seja, 35% do total. O maior plantel de escravos por proprietário, na Vila do Príncipe, pertence a Izabel Maria da Conceição (1860), com 31 escravos. A grande maioria dos proprietários de terras (26,1%) possuía apenas um escravo. Já a maioria dos inventariados sem terra (35,7%) possuíam dois escravos para auxiliá-los em seus serviços.

Os escravos contidos nos inventários, a partir do levantamento de sua faixa etária, demonstraram estar aptos para o trabalho, estando incluídos 146 homens (43,3%) e 161 escravas (51,4%) para todo o período de 1850/1888 (no Quadro 30). Nota-se que era superior o número de mulheres (51,4%) cativas em idade produtiva, o que denota a sua significativa participação nas lavouras, no trabalho doméstico e em outras atividades.

Observa-se ainda que a população cativa na Vila do Príncipe era uma população jovem e capaz para o serviço. Se também considerarmos as crianças com idade acima de cinco anos aptas para o trabalho, entre os escravos sadios existentes nesta fonte, encontraremos 248 cativos ou 73,6% do seu total. Já entre as mulheres, essa per-centagem eleva-se para 77,4% do seu total, ou seja, 242

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cativas em condições de trabalho. Já os escravos mais velhos (o que não invalida de todo a sua aptidão para o trabalho) somam 13,6% do total dos cativos constantes nos inventários.

Os escravos doentes somam 24 homens, o que repre-senta apenas 7,1% do total de homens, com uma média de idade de 29,6 anos. As escravas doentes são 15, o que corresponde a 4,8% do total de mulheres cativas cons-tantes nos inventários, com uma média de idade de 27,2 anos. As doenças nos escravos dos inventários, como se pode observar no Quadro 32 eram, na maioria das vezes, males que nos possibilitam trabalhar, como: ser coxo; ser vesga e até mesmo aleijado da mão e sem dedos. Outros males os impossibilitavam temporariamente, como: ter algum membro quebrado, ser asmático, ter hérnia e achaques (que, na linguagem local, significa um mal em pequeno grau de intensidade ou passageiro, como uma dor de cabeça ou nevralgia). Os mais incapacitados mesmo seriam aqueles afetados pela cegueira e os incluí-dos como doentes, pois não podemos precisar a extensão desta doença. Esta relação até nos parece pequena face às precárias condições de alimentação e vida a que esta população estava submetida.

Entre os escravos relacionados nos inventários, predominam os crioulos (negros nascidos no Brasil) entre os homens e mulheres, com uma porcentagem

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de 34,4% ou 116 crioulos e 24,6% ou 77 crioulas (Quadro 31). É interessante notar que os escravos mais velhos são arrolados como escravos “gentio d’Angola”, representando 12 cativos, entre homens e mulheres, ou 1,8% e 1,9%, respectivamente.

Diana Soares Galiza, em seu estudo sobre o declínio da mão de obra escrava na Paraíba, durante o período de 1850 a 1890, analisou diversos municípios daquela Pro-víncia. Entre eles, Piancó e Pombal, localizados no sertão paraibano vizinho ao Seridó. Ali, ao contrário da Vila do Príncipe, predominaram os escravos de cor parda, que atingiram 30,8% do total estudado, seguido dos cabras, que representavam 24,9% dos escravos constantes nos inventários analisados no município de Pombal (PB), para os anos de 1850/1888 (GALIZA, 1979, p. 320).

Segundo a classificação de procedência étnica de Manuel Diegues, na nossa área de estudo houve um pre-domínio maior do escravo africano negro, ao contrário da Província vizinha, onde o elemento pardo foi o que preva-leceu, o que denota um elevado índice de miscigenação entre os escravos ali encontrados (DIEGUES Jr, 1963, p. 103). A este respeito, o professor José Crispin da UFRN está estudando uma comunidade de “pretos retintos” residentes na Colônia Boa Vista, situada no município de Parelhas no sertão do Seridó. Em seu trabalho, ainda em andamento, o professor constatou que esta colônia

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não tem a sua origem em uma formação quilombola, mas sim na “concentração de negros libertos em terras livres e disponíveis”. É interessante notar que ainda hoje a cor é preservada, como se ela fosse um sinal de sua cultura.3

Como também ocorreu no sertão do São Francisco, não encontramos, na nossa pesquisa, qualquer indício de uma escravidão insurgente ou mesmo elementos cativos agressivos no Seridó. Os relatórios dos chefes de polícia, inclusive, são omissos com referência à presença do escravo norte-rio-grandense, a não ser nos esporádicos censos populacionais.

A única referência à rebeldia de escravos foi encon-trada em um anexo do inventário de Manuel Batista Pereira, processado em 08/07/1857. No pedido do alvará de licença para vender o escravo João pertencente ao seu sobrinho tutelado, o órfão José Eustáquio de Araújo Gama, o Coronel Antônio Aladim de Araújo declara que este escravo e o escravo Lourenço pertencente a ele próprio são acusados de roubo. No entanto, o fato de serem levados para serem amansados no açoite e terem confessado, não significa que foram realmente os autores do roubo. A acusação torna-se ainda mais fragilizada se considerarmos a idade dos escravos (abaixo de 20 anos) e o alto preço em que foram avaliados (1.200$000rs e

3 Sobre a Colônia Boa Vista leia-se sobre Otávio Pinto em Cascudo (1975, p. 67-9).

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1.400$000rs) em um período de franca campanha aboli-cionista, quando o valor médio do escravo na região era de 630$000 para os inventários e nas escrituras de compra e venda não alcançava 700$000rs.

Quanto às atividades desenvolvidas pelo escravo, utilizamos basicamente o quadro de matrícula dos escravos nas estações fiscais e o censo de 1872. Os in-ventariantes não são constantes em suas especificações sobre as aptidões dos escravos, o que nos leva a supor que a mão de obra escrava, na Vila do Príncipe, era ocupada indiscriminadamente, onde fosse necessária.

Infelizmente, nem nos inventários dos 650 escravos declarados (apenas 13 tiveram suas profissões definidas), nem nas escrituras de compra e venda e nem nas cartas de alforrias, a especificação do cativo para o trabalho foi registrada.

Os dados do Quadro 33 permitem analisar a distribui-ção do trabalho escravo nas diferentes atividades da vida econômica da região, incluindo os municípios de Jardim e Acari. As escravas se destacavam nos serviços domésti-cos, como cozinheiras e costureiras. Domar cavalos, cons-truir cercas para proteger as plantações, abrir cacimbas para abastecimento de água para o rebanho, preparar o solo para o plantio, serviços de pedreiro, eram alguns dos ofícios entregues ao negro escravo. Além dos lavradores, criadores e artistas, encontramos, entre as profissões ou

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ocupações mais comuns, os escravos de ganho, conhe-cidos também como jornaleiros. Os jornaleiros eram aqueles escravos que trocavam a sua força de trabalho por alimentos ou por pequenas pagas – os pecúlios. Neste mesmo quadro, eles representavam 24,1% dos matricula-dos e 2,9% dos escravos recenseados na região.

Nos inventários, estes escravos de ganho ou jor-naleiros (atividade que também era exercida pelas mulheres) identificam-se como trabalhadores que, ao prestar serviço a uma outra pessoa, recebem, em troca, uma quantia chamada pecúlio, que irá possibilitar-lhes, possivelmente, a compra de sua liberdade.

Kátia Mattoso (1982, p. 141) afirma que:

[...] a especialização do escravo é determinada segundo as necessidades do mercado ou a boa vontade do senhor. O escravo é às vezes, alugado ao dia, à semana, ao mês, ao ano ou por mais tempo [...] Para prazos curtos o contrato é verbal; para os períodos mais longos é feito um registro em cartório. Os escravos que trabalham nas cidades, podem ser verdadeiros assalariados e receber um ganho diário, que devem reverter por completo ao seu senhor [...] a menos que este resolva lhe dar uma gratificação.

Assim foi que ficou registrado no inventário de Do-mingos Teixeira da Fonseca em sua relação de dívidas passivas, “a quantia de 40$000rs a escrava Sebastiana; 60$000rs a Gaudêncio e a Rosário 140$000rs, todos escravos pertencentes a José Joaquim. Devia ainda a

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Felícia 180$000rs, escrava de Manoel Batista de Aguiar”. “Guilhermina Senhoria de Medeiros, devia à escrava do Cel. Ezequiel de Araújo Fernandes, 10$000rs”. Manuel Guedes do Nascimento, inventariante e esposo de Francisca Guedes do Nascimento, recebe da Josefa (22 anos) a quantia de 899$99rs2 pelo valor de liberdade paga com o seu pecúlio (a escrava havia sido avaliada, no inventário, por 400$000rs); do escravo Elizeu (24 anos) a quantia de 599$99rs1 pelo valor da sua liberdade paga com o seu pecúlio (o escravo havia sido avaliado para fins de inventário em 600$000rs); do escravo Nicolau (34 anos) a quantia de 155$037rs pelo valor da sua liberdade paga com o seu pecúlio (o escravo, com pouca vista, foi avaliado para fins do inventário em 400$000rs).4

É interessante ressaltar que o preço do escravo, avaliado nos inventários, nem sempre correspondia ao seu valor real. No momento da negociação (quer venda, quer manumissão) é que o valor era estipulado, segundo as necessidades do senhor.

No inventário de Josefa Maria da Conceição, entre as suas dívidas passivas, encontramos a que se refere ao escravo Vicente, “a quantia de 13$500rs, provenientes de gêneros alimentícios”. No inventário de Izabel Maria da

4 INVENTÁRIOS de Domingos Teixeira da Fonseca (09/03/1958); Guilhermina Senhoria de Medeiros (10/10/1885) e Francisca Guedes do Nascimento (28/05/1878).

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Conceição, consta a dívida da inventariada para com os escravos “Joaquim de 14$000rs, Daniel Fonseca 14$000rs (ambos com idade entre 20 e 25 anos)” o que nos leva a crer terem sido dívidas de alguma atividade ligada à lavoura ou à pecuária. Ana Suzana devia “as suas escravas Felismina 2$000rs e Clara 5$000rs por serviços prestados”. Já Manoel Felipe Franco “devia ao seu escravo Romualdo 200$000rs”, sem especificar o serviço realizado. O padre Gil Braz de Maria Santíssima devia “à escrava Brazilina por três bois 120$000rs; ao escravo negro Juvenal por três bois 140$000rs; e ao escravo negro Joaquim por um boi 40$000rs”.5

Entre as cartas de alforrias contidas nos livros de notas do 1º Cartório de Caicó, destacamos a dos “escravos Antônio e Tereza (ambos com idade avançada, achacados e com moléstias) que pertenciam ao Cap. José Raimundo Vieira”. O casal de escravos teve a sua liberdade, sob a condição de acompanhar e servir ao seu senhor até a sua morte e, após “pagarem 800$000rs pelo seu valor com recursos que serão retirados da sua terça” (grifos nossos).6

O jurista Perdigão Malheiro, na segunda metade do século XIX, declarava que “não é raro sobretudo no

5 INVENTÁRIOS de Josefa Maria da Conceição (1879); Izabel Maria da Conceição (24/02/1860); Ana Suzana (05/02/1872); Manuel Felipe Franco (10/12/1867) e Padre Gil Braz de Maria Santíssima (1878).

6 1° Cartório de Caicó. Livro n° 36, p. 87 (11/08/1868).

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campo, ver entre nós cultivarem escravos para si terras nas fazendas dos senhores, de consentimento destes; fazem seus todos os frutos que são seu pecúlio” (MA-LHEIROS, 1976, p. 63).

Os registros nas dívidas passivas dos inventariados e nas cartas de alforria nos levam a considerar que o escravo do Seridó estava, no final do século XIX, engajado na produção de alimentos e no trato com a pecuária de maneira muito específica. Não podemos afirmar que a produção da sua lavoura fosse capaz de abastecer um mercado local, ou mesmo que eles participassem deste comércio, pois faltam-nos dados que comprovem esta tese. Mas a concessão de uma parcela de terra para cultivar o seu próprio alimento e, algumas vezes, poder comercializar o seu pequeno excedente, fica patente nesta documentação. Por outro lado, o acesso à posse de cabeças de gado (a maior riqueza da região) nos sugere uma relação escravo/senhor muito flexível, em uma região sertaneja escravista, contrariando mais uma vez a historiografia tradicional.

A situação econômica da região, basicamente de subsistência, o precário estado da agricultura pouco desenvolvida e as periódicas secas, que ocasionavam uma queda muito grande na taxa média dos lucros dos proprietários de escravos no Seridó, dificultavam a ma-nutenção de um grande plantel. Muitas vezes o capital

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empatado na compra de escravos era necessário para saldar alguma dívida ou mesmo melhorar o nível de vida da família. Como ocorreu em 09/02/1869, quando Trajano José de Oliveira e Manuela Maria de Jesus permutaram “uma escrava de 10 anos (crioula) por 1 parte de terra de criar ao nascente do rio Barra Nova com 200 braças de terras, com casa de taipa, açude e benfeitorias no sítio Caiçara, incluindo porção de madeira e tijolos”7.

O inventário da liberta Mariana (ver anexo) nos permite avançar um pouco mais nesta discussão, sur-gindo como um dado novo desta sociedade escravista do sertão do Seridó. A posse legal do bem (no caso, 11 cabeças de gado) com direito a legar nos reporta a uma firme posição de direito adquirido, por uma ex-escrava, nesta sociedade estruturada pelo escravismo colonial, onde o próprio escravo já representava um bem possuído por alguém de direito. Ora, a posse de cabeças de gado requer terra, pasto para a sua manutenção e é justamente nesta concessão, neste acesso à parcela de terra para cul-tivar ou mesmo para soltar o gado, que nós consideramos que o trabalho realizado pelo escravo no sertão do Seridó não fugia aos padrões das demais regiões brasileiras. Também no sertão da Província do Rio Grande do Norte se fazia presente uma forma de brecha camponesa.

7 Idem, ibidem, p. 86.

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Tadeusz Lepkowiski considerou a expressão brecha camponesa para exprimir a existência de atividades que, nas colônias escravistas, escapavam ao sistema de plan-tation entendido em sentido estrito. Este autor percebia duas modalidades de brecha camponesa: 1) a economia de subsistência independente que os negros fugidos or-ganizavam nos quilombos; 2) os pequenos lotes de terra concedidos em usufruto nas fazendas, aos escravos não domésticos, criando uma espécie de mosaico camponês--escravo (CARDOSO, 1979, p. 133).

Para Sidney Mintz, citado por Ciro Cardoso, as modalidades de atividades camponesas possíveis sob o sistema escravista do tipo colonial são: camponeses não proprietários, onde estão englobados os posseiros, arrendatários, moradores e parceiros; camponeses pro-prietários, atividades camponesas nos quilombos e o protocampesinato escravo (CARDOSO, 1979, p. 133-135).

É justamente este protocampesinato escravo que vamos considerar no Seridó. Esta modalidade de brecha camponesa de forma alguma coloca em dúvida o sistema escravista, uma vez que o escravo continua a depender do sustento do senhor. Aquela produção do seu lote de terra, mesmo em quantidade que permitisse realizar uma negociação, correspondia a um complemento de suas necessidades. Por outro lado, esta prática foi usada pelos senhores estritamente para minimizar seus gastos para

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com o escravo e também, como mecanismo de controle para impedir a fuga, no momento em que o escravo passa a ter apego a sua parcela de terra cultivada. Assim, se o protocampesinato foi uma conquista do escravo dentro do sistema escravista colonial, esta conquista represen-tou para o senhor uma maneira de reforçar, barateando os custos de produção e a manutenção da mão de obra, numa região caracterizada pela agricultura de subsistên-cia, como foi o sertão do Seridó no final do século XIX.

É inegável que a brecha camponesa representou um papel importante na transição da mão de obra escrava para a mão de obra livre, com a crescente conscientização do negro da importância do seu trabalho para a econo-mia local, além de lhe permitir um início de acumulação de capital.

A porcentagem do valor dos escravos sobre o pa-trimônio total nos dá uma noção mais precisa do peso do escravo na economia local. Para esta análise, con-sideramos todos os inventariados (possuidores e não proprietários de terras) e calculamos a percentagem do número total de inventários, para cada década e em cada tipo de bem (gado, escravos e terras para os senhores de propriedades rurais, e gado e escravos para os trabalha-dores de terra alheia).

Nesta direção, dos 60 inventariados proprietários de terras da década de 50, de acordo com os dados contidos

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no Quadro 34, em 20 processos a mão de obra escrava representava 33,3% da fortuna deixada a seus herdeiros. Na década de 60, foram 58 inventariados levantados, e esta percentagem subiu um pouco mais, foi para 23 inventários, o que correspondia a 39,6% do monte desses processos. Nos anos 70, há uma queda vertiginosa na po-pulação escrava, não só pela evasão do tráfico interpro-vincial, como pelas alforrias concedidas e/ou compradas. Assim, nesta década, apenas nove proprietários de terras possuíam escravos, que representavam 24,6% do valor total de suas fortunas. Vale ressaltar que, também nesta época, o preço médio do escravo caiu muito, fator que muito contribuiu para esta baixa percentagem do valor do escravo no monte final do inventário. Finalmente, na década de 80, apenas um senhor de terras inventariado mantinha escravos em suas propriedades, correspon-dendo o seu valor a 1,4% do monte final. Neste período, uma outra mercadoria valiosa despontava na formação de fortunas, a terra.

Entre os não-proprietários de terras, a posse e uti-lização da mão de obra escrava foi mais representativa na década de 50, quando, em cinco inventários, o valor dessa força de trabalho representava 12,2 % do monte total. Na década de 70, apenas um não proprietário de terra tinha escravo.

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o preço dA mão de obrA

Para o cálculo da variação do preço do escravo nos inventários, tomamos como base o preço de um escravo homem, entre 18 e 25 anos. O preço máximo alcançado pelo escravo, nesta fonte, foi de 1.600$000rs, no período 1855/1859. O preço mínimo foi registrado no último período dos limites temporais da nossa pesquisa, 1885/1890, quando chegou a 200$000rs, tendo perdido todo o seu valor de mercado. Esta baixa do valor mínimo do escravo começou a se acentuar a partir do período 1870/74, quando caiu de 800$000rs para 600$000rs. Já para o valor máximo, houve uma queda de 1.500$000rs para 1.000$000rs do período 1860/64 para 1865/69. No período seguinte (1870/74), houve uma recuperação, che-gando o preço máximo aos 1.500$000rs novamente. Mas, após este último período, o preço máximo do escravo foi sofrendo uma baixa gradativa (Quadro 35).

O preço do escravo na Vila do Príncipe mostrou--se, através desta fonte, mais elevado do que em outras regiões do Nordeste. Foi pequena a diferença do preço do escravo em Campina Grande e Recife, mas no Município da Vila do Príncipe ele se mostrou mais valioso em de-terminado período. Já em relação aos preços alcançados pelos escravos do Sudeste, esta diferença é muito signifi-cativa, de acordo com os dados do Quadro 36.

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O maior valor alcançado pelo escravo sertanejo foi 1.600$000rs entre 1858/1871, na Vila do Príncipe; durante o mesmo período, também foi quando o escravo agres-tino teve o melhor preço, valendo 1.500$000rs. Para a capital da Província pernambucana, o maior valor que o escravo ali atingiu foi 1.400$000rs. Mas, em Rio Claro, zona cafeeira do Sudeste, no período de 1872/1884, esta força de trabalho chegou a valer 2.000$000rs.

O preço deste escravo sertanejo é melhor analisado com o cálculo do seu valor médio, através dos inventá-rios (preço de avaliação) e das escrituras de compra e venda de escravos (preço de mercado).8 O valor médio nas escrituras de compra e venda teve o seu período mais elevado em fins da década de 50, quando atingiu 1.160$000rs, que correspondeu à mais alta avaliação média entre as escravas negociadas. Já os homens, neste mesmo documento, tiveram o seu preço médio mais alto, em torno de 1.060$000rs. Nos inventários, o preço médio dos escravos seridoenses foi mais regular. Para os homens, atingiu 875$000rs e para as mulheres, 850$000rs. A primeira queda do preço do escravo na região ocorreu no mesmo período em ambas as fontes, ou seja, de 1861 a 1865.

8 Para essas considerações trabalhamos detidamente com o preço médio de escravos e escravas, no Gráfico XIII (MATTOS, 1985).

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Se consultarmos o quadro das moléstias que afeta-vam a população9 constataremos, neste período, duas grandes crises demográficas que atingiram também o rebanho, caracterizando assim uma economia cons-tantemente vulnerável, daí a queda desses preços. No período seguinte (1866/70), há um franco aumento do preço médio dos escravos nos inventários, apesar de uma ligeira queda na valorização média desta força de traba-lho sendo negociada através das escrituras de compra e venda, de 1.060$000rs para 975$000rs.

Entre os anos de 1871 a 1875, o escravo negociado é o único que sofre uma ligeira alta no seu preço médio, de 975$000rs para 980$000rs. No entanto, registrou-se, neste período, uma baixa vertiginosa nos valores médios das escravas negociadas (de 980$000rs para 620$000rs), e das cativas avaliadas nos inventários (de 880$000rs para 650$000rs, e de 790$000rs para 530$000rs, respectiva-mente).

Este período pré-seca (1877-1879) foi muito crítico para a economia local, conforme os dados do Quadro 38, além de ter sido o período de maior incidência de nego-ciações realizadas com escravos. A partir deste período, registrou-se uma queda pronunciada nos valores médios do escravo negociado (de 650$000rs para 320$000rs), tendo as demais categorias uma baixa mais moderada.

9 Cf. Anexo II do Capítulo l (MATTOS, 1985).

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Interessante foi que as mulheres chegaram a ter seu valor médio, tanto nos inventários como nas escrituras, em torno de 350$000rs, durante o último período, de 1881 a 1888. Já entre os escravos, este é o único momento em que a sua valorização nos inventários é superior à das escritu-ras, ou seja, 400$000rs naqueles e 370$000rs nestas fontes. Neste período, minado pela campanha abolicionista, o valor médio do escravo seridoense é muito baixo, assim como o número de escrituras assinadas, quatro para um período de sete anos, sendo que apenas um escravo é vendido para fora da Província.

o declínio dA mão de obrA escrAvA

Para melhor entendermos o gradativo declínio da utilização da mão de obra escrava em nosso município, utilizaremos os dados oferecidos pelos inventários, pelas escrituras de compra e venda de escravos, pelas quotas de distribuição do fundo de emancipação, e pelos relatórios de presidentes de Província.

O estudo dos processos post-mortem acusa uma diferença para mais 20,8%, no período de 1870/1888, dos inventariados sem escravos a declarar, em relação ao pri-meiro período (1850/1869) conforme os dados contidos no Quadro 37. No segundo período, este plantel ficou re-duzido a três inventariados com, no máximo, 15 escravos.

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A crise que se abateu sobre a região, na década de 70, antes mesmo da grande seca, também pode ser sentida nestes dados. A grande maioria dos proprietários do Seridó empregavam até 5 escravos em suas terras como força de trabalho cativa em suas terras, durante o período de 1870/1888.

Já nas 252 escrituras de compra e venda de escravos, existentes nos livros de notas do 1º Cartório de Caicó, constam 277 escravos negociados. Destes, de acordo com os dados do Quadro 38, 43 foram remetidos para fora da Província de forma oficializada, o que é um número bastante reduzido. Paraíba e Pernambuco foram as Pro-víncias que mais receberam escravos da Vila do Príncipe, 25 e 13, respectivamente. Já para o Ceará somente dois foram negociados e para o Piauí e para Bahia somente um para cada uma das Províncias. É interessante observar que um cativo foi enviado para a França.

De acordo com estas fontes, as comercializações realizadas dentro da própria Província foram muito significativas. Assim que, durante todo o período, foram negociados 251 escravos, sendo 111 entre sítios, 59 cativos negociados dos sítios para a Vila e 36 da Vila para os sítios. Sem dúvida estes dados denotam que a mão de obra escrava na Vila do Príncipe foi contratada, essencialmente, para os trabalhos no meio rural.

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Mas o quadro geral da movimentação da população escrava incluída no relatório do presidente Passos de Miranda, em 08/10/1876, registra, para a Província norte--rio-grandense, um total de 15.818 escravos saídos da Província até o ano 1875. Dentre as Províncias que mais cativos receberam da do Rio Grande do Norte, sobressa-íram: a do Paraíba, com 6.435 escravos, seguida pela de Pernambuco, com 5.928, a de São Paulo, com 1.554, e a do Ceará, que recebeu 1.277 escravos.10

Pela precariedade de fontes existentes nos arquivos públicos sobre a Província do Rio Grande do Norte, não nos será possível aprofundar a discussão. A relação dos escravos despachados para fora da Província ou o seu imposto de exportação seria um documento que nos ajudaria a entender melhor o verdadeiro desempenho do sertão seridoense ou mesmo da Província no forne-cimento de mão de obra para as lavouras do sul. Mas os dados acima já nos dão uma ideia do que representou, em termos de declínio de mão de obra escrava, o tráfico interprovincial de cativos para a Província do Rio Grande do Norte.

Por outro lado, de acordo com o arrolamento do chefe de polícia de 16/02/1862, com o censo oficial de 1872 e com os relatórios de presidentes de Província

10 RELATÓRIO do Presidente da Província do Rio Grande do Norte, Passos de Miranda (1876, p. 31).

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relacionados aos anos de 1882, 1883, 1885 e 1888 nota-se que o declínio da população escrava na Província, em relação ao sertão do Seridó, foi mais brusco, conforme se observa no Quadro 39.

Em 1888, o Seridó possuía 27,3% de toda a população cativa da Província, que somava apenas 482 escravos, o que significava um total ínfimo, mas a percentagem do sertão representava, possivelmente, uma certa resistên-cia no sertão à abolição do regime escravista, seja pela necessidade da mão de obra mais econômica, seja pela manutenção das relações sociais que se cristalizaram na região. Ressalta-se o fato de que, a despeito das crises por que passaram os proprietários sertanejos norte-rio--grandenses, tenham encontrado condições de manter a mão de obra escrava até a promulgação da Lei Áurea.

A história da economia da Província do Rio Grande do Norte esteve dividida, como vimos, entre a pecuária no sertão e a cultura da cana-de-açúcar no litoral. Em decorrência da conjuntura externa desfavorável, a produção de cana-de-açúcar da Província e do Império, na segunda metade do século XIX, esteve em profunda crise, devido aos bons preços que o açúcar da beterraba conquistou nos mercados internacionais, diminuindo consideravelmente as exportações do açúcar brasileiro. Por outro lado, o desenvolvimento da cultura do café nas Províncias do sul (vale do Paraíba e oeste paulista) fez

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com que a venda de escravos para esta região se tornasse um atrativo para os escravagistas locais.

É verdade que esta participação se torna cada vez menor ao final do nosso período, como podemos constatar pelos dados que nos são fornecidos através do fundo de emancipação. Verifica-se nos relatórios do Ministério da Agricultura relativos aos anos de 1878, 1862 e 1883 que a quota federal destes anos é sempre mais elevada para a região sertaneja, conforme foi especificado para cada município (Quadros 39 e 40).

O paulatino declínio da força de trabalho escravo na Vila do Príncipe ocorreu como nas demais regiões do Império. Esteve ligado aos fatores mais diversos, desde aqueles mais genéricos (má alimentação, condições de saúde e higiene) até a introdução gradativa de moda-lidades diferenciadas de trabalho livre, embora ainda não traduzindo relações de produção verdadeiramente capitalistas.

A AlforriA

Após a lei do Ventre Livre, de 28/09/1871, o escravo passou a ter o direito de requerer a sua alforria, à custa de suas próprias economias, como vimos anteriormente.

A participação do escravo em atividades criativas possibilitou-lhe formar um pecúlio em dinheiro, gado

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ou bens imóveis, para a aquisição de sua liberdade. Este pecúlio, fruto de muitos anos de trabalho, muitas vezes, quando o senhor se negava a conceder a alforria, o escravo o entregava ao juiz local, que determinava seu valor e outorgava sua manumissão, caso o depósito fosse suficiente – são as conhecidas alforrias judiciais. Na Vila do Príncipe, encontramos o caso da escrava Maria, de 35 anos, que requereu sua liberdade, judicialmente, após o falecimento do senhor, Cap. Manoel Pereira Monteiro, pagando em moeda corrente o valor de 800$000rs “fruto do seu pecúlio em posse do Exmo. Juiz da Comarca”.11

Ou então, o próprio administrador da propriedade se incumbia desta parte, como ocorreu com a escrava Francisca, de 38 anos, pertencente a José Simões Santos, que “pagou 500$000rs por sua liberdade com a condição de fidelidade e obediência de escrava até a morte de cada um de nós”, com dinheiro e bens administrados por José Morais do Nascimento. 12

Entre as cartas de alforria arroladas no 1º Cartório (Quadro 41), 42% ou 111 manumissões foram pagas. A título de exemplo, destacamos as cartas de liberdade dos forros Anselmo (35 anos) que pagou 600$000rs pela sua liberdade em moeda e bens; Gonçalo (27 anos) pagou 1.000$000rs da mesma forma; Inácia (50 anos) pagou 400$000rs em “bens imóveis e algum dinheiro”; Clemen-

11 1° Cartório de Caicó, Livro n° 35, p. 31 (04/04/1862).12 1° Cartório de Caicó, Livro 36, p. 48 (22/06/1867).

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tina (25 anos) pagou 300$000rs em moeda e bens; Josefa (40 anos) pagou 500$000rs “em gado e moeda”.

Já em alguns documentos, pode-se precisar melhor o tipo de pecúlio que os escravos conseguiram juntar, como na alforria do escravo Antônio, cuja liberdade lhe custou 300$000rs e 1 besta parida; Vicencia (16 anos) resgatou a sua liberdade em dinheiro e 150$000rs em gado; Antônio (59 anos) pagou 400$000rs em bens de criar.

Para alguns escravos, no entanto, o pecúlio era insu-ficiente para adquirir a sua liberdade de imediato, mas um acordo selado verbalmente com o senhor lhe permitia quitar o saldo das formas mais variadas. Domingos (32 anos) pagou 200$000rs no ato da assinatura da carta de liberdade e “deverá pagar os 100$000rs restantes em 3 pagamentos no prazo de 3 anos”; Tereza (27 anos) pagou 100$000rs ao ser assinada a alforria, os outros pagamen-tos no mesmo valor “em janeiro próximo e o terceiro em julho de 1884 e o quarto em janeiro de 1885”; o forro José pagou 650$000rs no ato da assinatura e os “250$000rs restantes pagará livre em serviços”; Jovina, cuja liberdade custou 500$000rs “pagou 350$000rs e no fim de 2 anos pagará a diferença”.

Mas as reservas para alguns cativos eram bem va-liosas, considerando a sua condição de escravo em área de pecuária. É o caso da forra Angélica (40 anos), que pagou com 4 vacas com crias a sua liberdade, que custou 140$000rs; Gabriel (13 anos) teve a sua liberdade avaliada

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em 13 cabeças de gado; Rosária conquistou a condição de liberta, pagando em gado 800$000rs; Felina (15 anos) pagou com 12 cabeças de gado; Rosa conquistou a liberdade por 380$000rs em moeda e 3 bois avaliados em 52$000rs e 4 vacas avaliadas em 332$000rs, totalizando 764$000rs; João (30 anos) conquistou a sua liberdade assumindo uma dívida do seu senhor de 40$000rs a Domingos Alves de Figueiredo por letra assinada mais uma égua e uma poldra; Rita (40 anos) pagou em gado 500$000rs pela sua liberdade.

As cartas de alforrias condicionais somam 45 no Seridó, entre elas destacamos a da escrava Maria, de 30 anos, que pagou 100$000rs pela sua liberdade, em 25/11/1853, e teve como condição ter filhos escravos até a morte do seu senhor. No entanto, a mais interessante é a carta de alforria da escrava Ana, de 55 anos, assinada em 06/03/1856. A cláusula condicional reza que “pelos bons serviços e por achaques de moléstias que ela padece, recebendo em paga uns humildes bens que ela possui, perdoando-lhe pelo amor de Deus o resto que poderia valer, ficando ela obrigada a servir-me enquanto eu for viva”.13

De acordo com os dados contidos no Quadro 42, fica patente que no município do Príncipe e na Província da Paraíba a cláusula mais comum nas cartas de liber-dade foi a de “acompanhar o senhor até a sua morte”. Mas também era comum outras cláusulas como: “pelo

13 1° Cartório de Caicó. Livro n° 30, p. 75 e n° 33, p. 17.

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tempo que me convier”; “acompanhar por 7 anos”; “servir ao filho do padre Targino enquanto convier”; “viver em minha companhia até os 25 anos” e até mesmo “ter filhos escravos até o dia de minha morte”.

Kátia Mattoso (1982, p. 46) afirma que ao fazer

um exame atento dos motivos e das condições pelos quais era dada a liberdade, permite verificar que todas as cartas que possuem cláusulas de tempo e condições suspensivas poderiam ser incluídas no rol das alforrias pagas. Podemos considerar a condição imposta à liberdade do escravo como uma espécie de pagamento. A condição de ‘ser livre após o falecimento do senhor’, cria logo a imagem de escravos que são liberados no fim de sua vida quando suas faculdades físicas e mentais eram bastante diminuídas.

Vale ressaltar que não encontramos, entre as 264 ma-numissões da Vila do Príncipe, nenhuma com cláusulas suspensivas. As alforrias compradas foram pagas com re-cursos econômicos do próprio escravo ou de seus parentes.

As cartas de alforria compradas na Província da Paraíba e da Vila do Príncipe (Quadro 43) nos revela que, no sertão do Seridó, como naquela Província segundo estudos realizados por Diana Galliza (1979), o maior percentual coube às ma-numissões pagas pelo próprio escravo, chegando a nossa região a 53,6% ou 67 cartas de liberdade. No Seridó, das onze cartas de liberdade compradas por parentes, duas foram pagas pelo marido, uma pelos filhos e oito pela mãe.

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Como se pode ver no Quadro 43, das 137 cartas de liberdade do nosso município, 17 foram concedidas a escravos com idade acima de 45 anos, o que contraria a afirmativa de que as alforrias eram concedidas com o intuito de se desfazer de um incapaz ou mesmo inútil. Ao contrário, a grande incidência de alforrias nas faixas etárias mais aptas para o trabalho (de 6 a 13 anos e, princi-palmente, de 14 a 45 anos) só vem a confirmar a afirmativa das frequentes necessidades econômicas do senhor e o uso deste recurso para recuperar parte do dinheiro inves-tido em sua compra, ainda mais se levarmos em conta as constantes crises por que passou a região. Essa tese torna--se incontestável quando observamos que, das 264 cartas de alforrias registradas, 94 (35,6%) foram na década de 60, quando o valor do escravo na Vila do Príncipe alcançou o seu preço máximo – 1.500$000rs (Quadro 36).

Nos anos 50, foram concedidas e/ou compradas 80 cartas de liberdade (30,3%); já nos anos 70, foram regis-tradas 81 alforrias (30,6%) e, de 1880 a 1888, apenas 9 cartas de alforrias (3,5%) foram arroladas. A maioria de manumissões concedidas gratuitamente às mulheres (77,3%) na Vila do Príncipe está ligada, segundo Kátia Mattoso, “ao fato de que elas têm, sobre o mercado de trabalho, um valor um pouco inferior ao valor do escravo homem” (1982, p. 46).

Admitimos que os dados oferecidos por esta fonte não representam o universo total para análise da extinção

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da escravidão no Seridó, no entanto, muito contribuíram para a redução da população escrava na região, além de oferecer condições de um novo enfoque ao estudo da mentalidade do senhor proprietário e da conflitante interdependência das relações senhor/escravo, na so-ciedade escravista colonial do séc. XIX.

Com o exposto acima, a presença do escravo no sertão da Província do Rio Grande do Norte, na segunda metade do século passado, torna-se inquestionável. Mesmo que a força de trabalho escravo no município do Príncipe não tenha sido, em números absolutos, muito significativa em comparação a outras regiões brasileiras, ela foi suficiente para podermos constatar o engajamento dessa mão de obra na produção de alimentos. Por outro lado, essa presença e participação atuante do escravo na economia local reforçava o sistema colonial escravista ali existente. A crise que esse sistema começou a atra-vessar, em todo o Império, nos anos 50 (com a supressão do tráfico de escravos) com a escassez e encarecimento desta mão de obra, na região nordestina, na década de 70, ela alcançou o seu ponto máximo com o fornecimento de braços escravos para as lavouras cafeeiras do Sudeste. Os cultivadores do Sul necessitavam e podiam pagar, por esta força de trabalho, altos preços, enquanto que, no Nordeste, era cada vez mais difícil manter, conservá-la ou mesmo pagar por ela. Esta desagregação paulatina transformou as relações de produção ali assentadas, e

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propiciou o surgimento de formas de trabalho livre muito próprias (ainda não totalmente capitalistas), que subsis-tem até hoje no Seridó.

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Anexo i: quAdros

QUADRO 28 – NÚMERO E PERCENTAGEM DOS POSSUIDORES DE ESCRAVOS SOBRE OS INVENTARIADOS NO MUNICÍPIO DA VILA DO PRÍNCIPE 1850/1890

PROPRIETÁRIOSCOM ESCRAVOS SEM ESCRAVO TOTAL

No % No % No %

COM TERRA 138 44,8 129 41,9 267 86,7

SEM TERRA 14 4,6 27 8,7 41 13,3

TOTAL 152 49,4 156 50,6 308 100

Fonte: Inventários post-mortem – 1850/1890

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QUADRO 29 – QUANTIDADE DE ESCRAVOS POR INVENTÁRIO COM TERRA E SEM TERRA E TOTAL

QUANTIDADE DE ESCRAVOS POR

INVENTÁRIOCOM TERRA % SEM TERRA %

1 36 26,1 3 21,5

2 22 16 5 35,7

3 25 18,2 3 21,5

4 11 8 -

5 10 7,2 1 7,1

6 7 5,1 -

7 3 2,2 1 7,1

8 1 0,7 -

9 5 3,6 1 7,1

10 3 2,2 -

11 3 2,2 -

12 3 2,2 -

13 4 2,8 -

15 1 0,7 -

16 2 1 ,4 -

21 1 0,7 -

23 1 0,7 -

TOTAL 138 100 14 100

Fonte: Inventários post-mortem – 1850/1890

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510

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215

1258

127

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/65

3425

28

6925

266

360

129

1866

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2323

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1871

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1823

2-

4312

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-33

76

1876

/80

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1-

3010

141

-25

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1881

/88

29

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152

216

-29

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1850

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146

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1731

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QUADRO 31 – TIPO FÍSICO DOS ESCRAVOS NOS INVENTÁRIOS

HOMENS % MULHERES % TOTAL

MULATOS 29 8,7 47 15,1 76

CRIOULOS 116 34,4 77 24,6 193

PARDOS 20 5,9 21 6,7 41

PRETOS 2 0,6 2 0,6 4

CABRAS 20 5,9 31 9,9 51

D’ANGOLA 6 1,8 6 1,9 12

NÃO ESPECIFICADOS 144 42,7 129 41,2 273

TOTAL 337 - 313 - 650

Fonte: Inventários post-mortem – 1850/1890

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QUADRO 32 – DOENÇAS MAIS COMUNS DOS ESCRAVOS RELACIONADOS NOS INVENTÁRIOS – 1850/1888

DOENçAS HOMENS/IDADE % MULHERES/IDADE %

HÉRNEA

1/- -

1/35 13,1 -

1/39 -

CEGUEIRA -1/24 -1/10 13,1 -

ACHACADOS

1/34 -1/25 1/441/47 13,1 1/30 26,71/45 1/28

DOENTES

- 1/221/14 1/281/48 1/171/44 1/-1/32 21,8 1/35 46,71/29 1/08

- 1/26- 1/48

COXO1/38 -1/40 13,1 -1/60 -

COM ASMA1/05 1/35

- 4,3 1/50 20- 1/38

DOENTE DOS NERVOS 1/35 4,3 -

VESGA - 1/- 6,6PERNA

QUEBRADA 1/29 4,3 -

BRAçO QUEBRADO 1/13 4,3 -

MUITO QUEBRADO 1/10 4,3 -

SEM DEDO 1/05 4,3 -TOTAL 23 100 15 100

Fonte: Inventários post-mortem – 1850/1890

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249

QUADRO 35 – PREÇO DO ESCRAVO ENTRE 18 E 25 ANOS NA VILA DO PRÍNCIPE

ANOS PREçO MÍNIMO PREçO MÁXIMO

1850/1854 250$000 1000$000

1855/1859 300$000 1600$000

1860/1864 700$000 1500$000

1865/1869 800$000 1000$000

1870/1874 600$000 1500$000

1875/1879 300$000 900$000

1880/1884 300$000 800$000

1885/1888 200$000 900$000

Fonte: Inventários post-mortem – 1850/1888

QUADRO 36 – PREÇOS COMPARATIVOS EM MIL RÉIS DOS ESCRAVOS NA VILA DO PRÍNCIPE, CAMPINA GRANDE, RECIFE E RIO CLARO (SP) 1854/1888

ANOS V. PRÍNCIPE CAMPINA GRANDE RECIFE RIO CLARO

1854/1857 300$-1000$ 500$ 450$ - 500$ 550$ - 650$

1858/1871 650$-1600$ 1000$ - 1500$ 700$ - 1400$ 1177$

1872/1884 300$-000$ 800$ - 1000$ 400$ - 886$ 1800$ - 2000$

1885/1888 200$-900$ 100$ - 600$ 283$ 900$

Fonte: Para V. do Príncipe – Inventários post-mortem – 1850/1888. Para as demais regiões: Viana, Marly – Op. cit. p. 63 Quadro VIII

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QUADRO 39 – POPULAÇÃO ESCRAVA EXISTENTE NA PROVÍNCIA E NO SERTÃO DO SERIDÓ – 1855/1888

Província RIO GRANDE DO NORTE SERIDÓ %

(1) 1855 20.244 2.179 107

(2) 1872 13.484 2.624* 19,4

(3) 1873 10.282 1 .969 19,1

(3) 1881 9.367 1.905 20,3

(4) 1882 9.109 1.298 14,2

(5) 1883 8.807 1.160 13,1

(5) 1884 7.627 885 11,6

(6) 1887 2.161 -

(6) 1888 482 132 27,3

Fonte: (1) Arrolamento do chefe de polícia – R.P.P. Leão Velloso – 16/02/1862 – p. 6 – A.N.(2) Censo de 1872 – IBGE *a partir deste ano, constam as matrículas das agências do Príncipe, Acari e Jardim(3) R.P.P. Sátiro de Oliveira – 16/03/1882 vol. 13 – A.E.N.(4) R.P.P. Cunha Barreto – 09/02/1883 p. 15 – A.N.(5) R.P.P. Correa de Araújo – 08/06/1885 p. 23 – A.N.(6) R.P.P. Amintas de Costa Barros – 13/09/1888 p. 10 – B.N.

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QUADRO 40 – DISTRIBUIÇÃO NO RIO GRANDE DO NORTE DAS QUOTAS DO FUNDO DE EMANCIPAÇÃO OCORRIDAS NOS ANOS DE 1878, 1882 E 1883.

MunicípiosAno de 1878 Ano de 1882 Ano de 1883

Nº de Escr Despesa Nº de

Escr Despesa Nº de Escr Despesa

Natal 2 2218$900 11 5350$000 15 6236$928S. José de Mipibu 5 2987$580 13 7512$742 19 9427$757

Papary 1 - 8 3445$416 11 4411$967Canguaretama 3 1379$000 10 4825$182 14 6548$429Ceará-Mirim 3 2300$000 10 7310$000 14 8299$171Touros 1 500$000 4 1400$000 4 1400$000Macau 1 549$225 3 1449$225 4 1799$225Angicos 3 1244$910 10 2446$805 12 3061$405Jardim 3 1578$045 10 3888$113 12 4688$113Acari 5 1735$700 10 3537$200 13 4744$700Caraúbas 1 665$500 4 1653$000 5 2025$500Assu 4 1070$000 7 2005$000 15 4041$264Sant’Ana do Mattos 2 1050$000 2 1050$000 7 2900$000

Pau dos Ferros 3 2270$000 6 3870$000 20 5430$000Imperatriz 2 2006$500 8 5031$428 14 6481$426Príncipe 8 3336$847 20 8555$847 26 11334$847Triumpho 3 800$000 5 1700$000 6 2000$000Goianinha - - 11 5550$000 13 6547$420Mossoró - - 4 1797$520 8 2107$520Apody - - 3 2000$000 3 2000$000Porto Alegre - - 2 940$000 3 1271$513Nova Cruz - - - - 5 940$000Macaíba - - - - 7 1148$996Arez - - - - 1 225$000Serra Negra - - - - 2 800$000TOTAL 50 25.692$207 161 75.317$478 253 99.871$181

Fonte: IBGE - Rel. Min. Ag – João Lins Vieira Sinimbu – 1878; Henrique Francisco d’Avila – 1682; Afonso Augusto Moreira Pena – 1883

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QUADRO 41 – CARTAS DE ALFORRIAS ARROLADAS NO SERIDÓ DU-RANTE OS ANOS 1850/1888

TIPOS DE ALFORRIAS Nº ALFORRIAS Nº ALFORRIADOS %

GRATUITAS * 106 113 40,2

COMPRADAS OU PAGAS 111 111 42

CONDICIONAIS PAGAS 14 15 5,3

CONDICIONAIS GRATUITAS 31 33 11,7

POR TESTAMENTO 1 1 0,4

POR ATO JUDICIAL 1 1 0,4

TOTAL 264 274 100

* sem condiçãoFonte: Livro de Notas n° 25 a 38 – 1° Cartório de Caicó

QUADRO 42 – CARTAS DE ALFORRIAS CONDICIONAIS ASSINADAS NAS PROVÍNCIAS DA PARAÍBA E NO SERTÃO DO SERIDÓ – RN – 1850/1888

CLÁUSULAS ALFORRIAS NA PARAÍBA % ALFORRIAS NO SERIDÓ %

TRAB. PARA O SENHOR ATÉ A MORTE

31 68,8 138 69,4

TRAB. PARA FILHOS OU PARENTES

7 15,6 13 6,5

CLÁUSULAS OUTRAS * 7 15,6 48

TOTAL 45 100 199 100

* “pelo tempo que me convier; acompanhar por 7 anos; servir ao filho do padre Targino enquanto convier; viver em minha companhia até os 25 anos; ter filhos escravos até o dia de minha morte”.Fonte: Cartas de alforrias contidas nos Livros de Notas do 1° Cartório de Caicó 1850/1888 e Galliza, Diana – op.cit., p. 156, Quadro 38

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QUADRO 43 – CARTAS DE LIBERDADE, COMPRADAS NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA E VILA DO PRÍNCIPE (RN) – 1850/1888

PARAÍBA (1) % SERIDÓ %PELO ESCRAVO 199 73,7 67 53,6POR PARENTES 22 8,2 11* 8,8POR TERCEIROS 13 4,8 -POR SOCIEDADES EMANCIPADORAS 7 2,6 -

SEM ESPECIFICAçÂO 29 10,7 47 37,6TOTAL 270 100 125 100

(1) A prof. Diana Galliza pesquisou 8 municípios na Província paraibana* 2 alforrias pagas pelo marido; 1 pelos filhos e 8 pela mãeFonte: Dados contidos no Quadro (alforrias compradas ou pagas e alforrias condicionais pagas) Galliza, Diana – op.cit. – p. 147, Quadro 36.

Anexo ii: inventário dA libertA mAriAnA, 1877Ilmo. Sr.Lavra-se o auto da residência, bens declarados e par-

tilhas pelos herdeiros de conformidade com o dispositivo no artigo 60 do Reg. de 13 de outubro de 1873, Príncipe, 4 de maio de 1877.

Tendo falecido em minha casa a liberta Mariana, escrava que foi de meu pai, Ten. Cel. Manoel Vieira de Me-deiros, deixando 11 cabeças de gado vacum a saber: 3 vacas c/crias deste ano, 2 solteiras, 2 bois de 4 eras, 1 novilhote, 2 garrotes e uma garrota, e por que existem três filhos da mesma escrava a saber: Luiza de Pedro Antonio de Gusmão Cavalcanti – Joana pertencente ao dito seu pai que residia no termo de Jardim e aquele Pedro Antonio no Juazeiro desde

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o princípio e Francisco que ignora-se onde esteja e a quem pertença. Visto ter sido vendido a 10 anos para partes da Província de Pernambuco e nenhuma notícia se tem dele, e por que tais bens deverão ter algum destino segundo a lei, faço a presente declaração a fim de que V. S., seja cientificado da existência de tais bens e que lhes dê destino que for de lei. Deus guarde V. S., Mulungunsinho, 3 de maio de 1877.

Dr. Antonio Serrano Gonçalves de Andrade, Juiz Municipal.

d’órfãos deste Termo do Príncipe.Assinado: José Vieira de Medeiros.Auto da existência e partilha dos bens deixados pela

falecida Liberta Mariana.Aos 5 dias do mês de maio de 1877, nesta cidade do

Príncipe e casa de residência do Dr. Juiz Municipal d’órfãos Antonio Serrano Gonçalves de Andrade, onde, eu escrivão do meu cargo vem aí pelo dito Juiz me foi apresentada uma declaração feita por José Vieira de Medeiros, morador no sítio Mulungunsinho deste Termo, pela qual declarava existir onze reses pertencentes a Liberta Mariana a qual havia falecido em sua casa e que igualmente existia 3 filhos da mesma, escravos, como tudo se vê da mesma declaração acho que fica fácil fazer este auto; e me ordenava de fazer o auto da existência de tais bens e partilha pelos filhos da mesma falecida a saber: Luisa escrava de Pedra Antonio Gusmão; Joana escrava do Ten. Cel. Manoel Vieira de Me-

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deiros e Francisco ausente em lugar incerto pelo qual que passando a descrevê-los o mesmo Juiz avaliou os ditos pela maneira seguinte:

Achou o Juiz valer três vacas c/ crias 54$Achou o Juiz valer duas vacas solteiras 32$Achou o Juiz valer dois bois de 4 eras 28$Achou o Juiz valer o novilhote 7$Achou o Juiz valer os dois garrotes 10$Achou o Juiz valer a garrota 5$Importaram os bens existentes acima descritos em 136$

Achou o Juiz que dividida a quantia supra declarada, pelos três filhos da falecida, toca a cada um a quantia de 45$333.

Concluída a avaliação e partilha supra, se deu aos quinhões pela maneira seguinte:

Quinhão de Luiza 45$333.Deu-se-lhe uma vaca c/ cria do valor de 18$ Deu-se-lhe uma vaca solteira do valor de 16$ Deu-se-lhe dois garrotes do valor de 10$ Repondo-lhe o ausente Francisco 1$333

Quinhão de Joana 45$333Deu-se-lhe uma vaca c/ cria do valor de 18$ Deu-se-lhe um boi no valor de 14$ Deu-se-lhe uma garrota no valor de 5$ Do ausente Francisco 1$333

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Deu-se-lhe mais um novilhote no valor de 7$Quinhão de Francisco ausente a quantia de 45$333

Deu-se-lhe uma vaca no valor de 18$ c/ cria mais uma vaca solteira no valor de 16$, mais um boi no valor de14$. Repõe a cada um dos dois irmãos 1$333.

Assim houve o auto de existência dos bens deixados pela liberta Mariana, avaliação e partilha tudo perfeito de conformidade com a lei (Art. 60 do regimento de 13 de novembro de 1872) que rege a matéria. Observando-se em tudo a maior igualdade de direito. E para tudo constar lavrei o presente auto que assinou o Juiz Inácio Gonçalvez Vale e eu escrivão subscrevo.

Antonio Serrano Gonçalvez de Andrade.Aos sete dias do Mês de maio do dito ano nesta

cidade do Príncipe faço estes autos concluídos do Dr. Juiz Municipal d’Órfãos Antonio Serrano Gonçalves de Andrade do seu presente termo. Eu Ignácio Gonçalves Valle escrivão (assino).

Julgo por sentença a presente partilha e mando que se guarde e cumpra por inteiro. Não há custos. Os bens avaliados, digo, os bens partilhados passarão em poder dos senhores herdeiros, c/ exceção do ausente para o qual nomeio curador ao cadete José Vieira de Medeiros.

Cidade do Príncipe 14/05/1877.

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Aspectos da escravidão do Seridó em documentos históricos

Helder alexandre Medeiros de Macedodepartamento de história (Caicó), uFrn

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A existência de comunidades negras na região do Seridó tem sido realçada por estudos realizados desde a década de 1990. Além da Boa Vista dos negros,1 dos Negros do Riacho2 e da Macambira,3 situadas, respectiva-mente, nos municípios de Parelhas, Currais Novos e Lagoa Nova, são apontadas, também, outras comunidades nos territórios de Acari, Caicó, Cerro Corá, Ipueira, Jardim do Seridó e Serra Negra do Norte.4 Boa Vista, Negros do Riacho e Macambira são aquelas sobre as quais se pro-duziram mais trabalhos e onde, conforme enunciam as

1 CAVIGNAC, Julie Antoinette (coord.). Relatório antropológico da Comunidade Quilombola de Boa Vista (RN). Natal: INCRA-SR 19/UFRN/FUNPEC, 2007.

2 ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. Os negros do Riacho: estratégias de sobrevivência e identidade social. 2.ed. Natal: EDUFRN, 2009 [1994].

3 PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade de Macambira: de “Negros da Macambira” à Associação Quilombola (Relatório Antropológico). Natal: INCRA-SR 19/UFRN/FUNPEC, 2007.

4 ASSUNÇÃO, Luiz. Quilombos – comunidades remanescentes (RN). Galante, Natal: 1-4, 26 nov, 2006. O autor aponta a existência das seguintes comunidades, inseridas nos municípios: Acari – Higinos; Caicó – Furna da Onça, Rio do Peixe e Bom Sucesso; Currais Novos – Negros do Riacho; Cerro Corá – Negros do Boinho; Ipueira – Boa Vista e Negros do Barcão; Jardim do Seridó – Pretos do Bom Sucesso; Lagoa Nova – Macambira; Parelhas – Boa Vista dos Negros, Poço Branco e S. Sebastião; Serra Negra do Norte – Negros da Serra.

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pesquisas já mencionadas, existem iniciativas locais de associativismo, tendo sido, tais comunidades, certifica-das pela Fundação Cultural Palmares.5

Tal existência impõe, para os historiadores, a neces-sidade de se reexaminar o que já foi produzido acerca da história do Seridó, bem como certas premissas que emergem desses livros, especialmente aquelas ligadas ao apagamento gradual da presença dos africanos, crioulos e seus descendentes na formação dos territórios e das famílias situadas no sertão do Rio Grande do Norte. Procedemos a esse reexame, de maneira superficial, na primeira parte deste ensaio. Por fim, apresentamos dados acerca das histórias de homens e mulheres de cor, pro-venientes de documentação judicial e religiosa coletada a partir de nossas pesquisas em acervos do Seridó, com a proposição de caminhos para se pensar, a partir das relações entre o universo da escravidão e o da família, o entendimento do passado da região do Seridó.

5 Os certificados expedidos pela Fundação Cultural Palmares foram publicados no Diário Oficial da União de 04.06.2004 (Boa Vista dos Negros), 19.08.2005 (Macambira) e 07.06.2006 (Negros do Riacho). Cf. MINISTÉRIO DA CULTURA. FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas por Estado. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br>. Acesso em: 02 ago. 2010.

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dA historiogrAfiA regionAl Aos trAbAlhos AcAdêmi-cos

A valorização do passado lusitano dos conquista-dores que desbravaram o sertão, por meio do enalte-cimento da memória dos fundadores das fazendas de gado e, portanto, das estirpes tradicionais, foi assunto recorrente na historiografia regional que foi produzida sobre o Seridó a partir da primeira metade do século XX. Essas publicações, escritas por pesquisadores e eruditos da própria região do Seridó – ou que se debruçaram sobre seu passado –, nos legaram, de maneira geral, uma imagem de que as principais famílias da ribeira tinham, predominantemente, componentes de origem portugue-sa em sua estrutura. Uma tradição que é frequente entre esses estudos é a de traçar um elo entre as famílias que povoaram as ribeiras do sertão do Rio Grande e os seus descendentes – incluindo os autores –, fazendo alusões às famílias que colonizaram a região.

Escolhendo-se as obras escritas por Manoel Dantas, José Augusto Bezerra de Medeiros, José Adelino Dantas,

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Jayme da Nóbrega Santa Rosa, Olavo de Medeiros Filho e Sinval Costa6 é possível ter uma ideia dessa valorização e de como a presença de outros indivíduos (índios, africanos, crioulos e mestiços) foi inserida ou não nos livros. Nessas obras constatamos, em algumas mais, em outras menos, o reforço da proeminência de famílias com componente português em sua constituição na qualidade de principais sustentáculos do processo de territorialização do espaço antes ocupado pelos nativos. É preciso considerar que esses trabalhos não estão descolados do tempo e do espaço onde foram produzidos, ou seja, são livros que guardam marcas da historicidade dos autores, de suas vivências e de suas visões de mundo. Manoel Dantas, José Augusto Bezerra de Medeiros, José Adelino Dantas, Jayme Santa Rosa e Olavo de Medeiros Filho, dessa maneira, promovem

6 Tal escolha implica em considerarmos que existem outras obras que tratam do processo histórico de formação do território do Seridó. Elegemos, aqui, as obras que consideramos mais representativas por direcionarem seu foco para os processos históricos de conquista e colonização da ribeira do Seridó, dando-nos, pois, uma visão de conjunto sobre a territorialização desse espaço.

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uma operação histórica que é indissociável do seu lugar de produção e da sua própria escrita7.

Esses autores têm um traço bastante peculiar e que lhes é comum: nos galhos mais distantes de suas árvores genealógicas estão os patriarcas de tradicionais famílias do Seridó cuja importância histórica eles mesmos re-validam em suas obras, como Tomaz de Araújo Pereira, Caetano Dantas Corrêa, Rodrigo de Medeiros Rocha, Se-bastião de Medeiros Mattos, Antonio de Azevêdo Maia e Cipriano Lopes Galvão. Suas versões da história da ribeira do Seridó, portanto, mesclam o peso que seus avoengos tiveram na constituição das nobiliarquias sertanejas ao ritmo com que ocuparam importantes cargos nas instân-cias administrativas da região, dos tempos coloniais até a República. Tal afirmação corrobora o pensamento de

7 A inspiração para pensar essas questões advém das discussões empreendidas por Michel de Certeau. Para o autor, “a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita” (CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: Id. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 65). No caso dos livros que estamos analisando, trata-se de um discurso historiográfico que não foi gestado em uma instituição científica e tampouco seus autores tinham formação específica na área de História. É necessário refletir, por outro lado, que quatro dos cinco autores tinham formações acadêmicas (Manoel Dantas e José Augusto Bezerra de Medeiros eram advogados; José Adelino Dantas, enquanto sacerdote, era filósofo e teólogo; Jayme Santa Rosa era químico), além de que todos eram membros de sociedades de pesquisa histórica, como o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

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Olívia Morais de Medeiros Neta, para quem autores como Manoel Dantas e José Augusto Bezerra de Medeiros – e poderíamos acrescer, aqui, José Adelino Dantas, Jayme Santa Rosa e Olavo de Medeiros Filho – escreveram sobre “um Seridó enredado à árvore genealógica”, fundando, pois, um “discurso historiográfico [que] é produzido como forma limite para o espaço e para justificar ou reafirmar a presença e relevância de determinadas linhagens gene-alógicas no Seridó potiguar.”8

Não podemos deixar de anotar que dois desses autores foram sujeitos ativamente participantes da cena política do Rio Grande do Norte. Manoel Dantas, militante do Partido Liberal e depois do Partido Republicano, chegou a ser Intendente do município de Natal. José Augusto Bezerra de Medeiros, por sua vez, dentre diversos cargos eletivos, foi governador do Estado do Rio Grande do Norte na década de 1920, tendo participado ativamente, junto com Juvenal Lamartine de Faria, da ascensão e fortaleci-mento do “Sistema Político do Seridó”9. Não é coincidência,

8 MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. Ser(Tão) Seridó em suas cartografias espaciais. Dissertação (Mestrado em História), UFRN, 2007. p. 16.

9 O processo de fortalecimento do “Sistema Político do Seridó” pode ser visualizado em LINDOSO, José Antonio Spinelli. Coronéis e oligarcas no Rio Grande do Norte (Primeira República e outros estudos). Natal-RN: EDUFRN, 2010. p. 25-59, bem como em MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense. Natal: Sebo Vermelho, 2007. p. 181-99.

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portanto, que os seus escritos sejam marcados por tons de enaltecimento aos patriarcas lusitanos que ergueram fazendas e construíram famílias no Seridó, os quais se tornaram, com o passar do tempo, raízes de extensas linhagens que desembocaram na oligarquia algodoeiro--pecuarista – a qual, nas duas primeiras décadas do século XX, dominou a cena política no território potiguar.

É de se atentar, também, que os cinco autores men-cionados eram sócios efetivos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), entidade fundada em 1902 na efervescência da chamada “Questão de Grossos”10, cujos objetivos, previstos estatutariamen-te, eram os de “coligir, metodizar, arquivar e publicar os documentos e as tradições (...) pertencentes à história,

10 A falta de clareza entre os limites da Capitania do Rio Grande e da Capitania do Ceará, desde o século XVIII, gerou conflitos de ordem jurisdicional que desembocaram nessa questão, que tomou o nome de Grossos por ser o território deste atual município um dos pontos do dissenso. A questão dos limites foi decidida judicialmente, através do concurso de renomados juristas, que se valeram de importante documentação histórica para atestar a posse do Rio Grande do Norte. A reunião desses documentos, passado o conflito judicial, foi um dos motivos que ensejou a criação de um instituto histórico no território potiguar.

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geografia, arqueologia e etnografia, principalmente do Estado, e à língua de seus indígenas (...)”.11 Tais objetivos se coadunavam com o espírito dos demais institutos históricos situados no território brasileiro, surgidos após a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838.

Podemos dizer, desse modo, que as pesquisas reali-zadas pelos historiadores ligados ao IHGRN tinham sua matriz teórica influenciada pela historiografia produzida no IHGB e demais institutos no decurso do século XIX, que se interessava pela construção de “histórias locais”, como já afirmamos anteriormente. Os historiadores ligados a esses centros de pesquisa, pois, contribuíram para a “cons-trução de uma história branca e europeia para o Brasil”12, ao centrarem suas preocupações na questão da raça.

11 ESTATUTOS do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte citados por MENEZES, Karla. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte: um perfil de sua historiografia entre 1902 e 1907. Caderno de História – UFRN, Natal, v. 3/4, n. 1/2, jul./dez.1997/jan.jun.1998.

12 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 136.

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Grupos que poderíamos chamar de “minoritários”, como índios, africanos, crioulos, mestiços, ciganos e cristãos-novos13 aparecem com pouca frequência nas obras dos autores citados. Estas produziram determi-nadas versões da constituição familiar da ribeira do Seridó em que outras histórias foram, de certa maneira, eclipsadas por uma maneira ocidentalizante de produzir o conhecimento histórico. Essa literatura, pois, acabou reproduzindo o sentimento de superioridade tão caro ao Ocidente, espelhando o paradigma eurocêntrico de história, ou, dizendo em outras palavras, uma maneira eurocentrada de perceber o processo histórico e, via de regra, a própria realidade.14

Indo contra essa corrente, propomos, a partir de nossas pesquisas e de outras que serão nominadas pos-teriormente, uma “descolonização” do saber acerca da história do Seridó. A nossa premissa é a de que africanos, crioulos e seus descendentes também se enquadram enquanto sujeitos históricos do processo de formação

13 Segundo Olavo de Medeiros Filho, considerando as informações fornecidas pela tradição oral, a Freguesia do Seridó teria sido colonizada, também, por cristãos-novos imiscuídos entre os conquistadores vindos do Reino (MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: CGSF, 1981. p. 5).

14 A crítica ao paradigma eurocêntrico está sendo feita, principalmente, com base em BLAUT, James M. The colonizer’s modelo of the world: geographical diffusionism and Eurocentric history. New York/London: The Guilford Press, 1993.

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das famílias do Seridó, ao lado dos demais grupos sociais, sendo esta o primeiro passo para que efetuemos essa ope-ração historiográfica de “descolonizar” o saber. Perceber sua participação política e suas estratégias de sobrevi-vência, mesmo em fontes produzidas pelo conquistador, pode confirmar a possibilidade que temos de produzir um conhecimento histórico que não seja voltado apenas para confirmar o eurocentrismo.

Um dos livros da historiografia regional que se aproxima bastante desse modelo de “descolonização” do conhecimento é Os Álvares do Seridó e suas ramifica-ções (1999), de autoria de Sinval Costa15. Na obra o autor promove um estudo sobre a família Alves, que se enraizou no Seridó a partir da instalação do português Domingos Álvares (ou Alves) dos Santos na fazenda das Lajes, ribeira do Quipauá. O seu casamento com Joana Batista da En-carnação resultou em catorze filhos conhecidos, cujos descendentes estabeleceram moradia em fazendas como Piató, Catururé, Raposa, Umari, Luiza, Lajes, Sabugi, Malhada da Areia, Angicos, Sobradinho e São Roque. Embora trate da história e da genealogia de uma família

15 Sinval Costa, nascido em Caicó em 1931, é graduado em Engenharia Civil, com pós-graduação em Engenharia Sanitária. Foi funcionário da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE e, atualmente, mora em Recife-PE. Desenvolve pesquisas na área de história e genealogia desde a década de 1960 e é uma referência, na contemporaneidade, dos estudos sobre as linhagens no Seridó.

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descendente de um português radicado no Seridó, Sinval Costa demonstra os diversos tipos de relacionamentos entre seus descendentes, desde os oficializados pela Igreja Católica até aqueles considerados informais ou atípicos, envolvendo pardas e caboclas.

Além de fazer essas menções envolvendo diretamen-te a família de Domingos Alves, Sinval Costa incluiu, num dos apêndices de seu livro, um riquíssimo conjunto de informações contendo dados sobre casamentos de outros portugueses, índios, africanos, crioulos e mestiços, cole-tados nos livros de assento da Freguesia do Seridó16. Isso nos leva a inferir que o autor acredita na possibilidade de ter havido agrupamentos familiares de outra natureza na ribeira do Seridó, envolvendo pessoas que não apenas os brancos e/ou descendentes de elementos vindos do Reino.

Trabalhos acadêmicos produzidos sobre o Seridó, a partir dos anos de 1980 em diante, revisaram, gradativa-mente, o quadro proposto pelos historiadores regionais acerca da presença de africanos, crioulos e seus descen-dentes na história do Seridó. Trabalho pioneiro, nesse sentido, é a dissertação de mestrado em História de Maria Regina Mendonça Furtado Mattos, estudo monumental do ponto de vista da quantidade de fontes analisadas,

16 COSTA, Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações. Recife: Ed do autor, 1999. p. 331-5.

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onde analisou os fatores responsáveis pela interrupção do desenvolvimento socioeconômico da Vila do Príncipe, no período de 1850 a 1890, que acarretou a caracterização desse lugar como portador de população extremamente pobre. Perscrutando o perfil demográfico do Príncipe oitocentista, a autora demonstrou, através dos registros de paróquia, dos inventários post-mortem e dos recen-seamentos oficiais que a população desse município era formada não apenas de brancos, mas de parcela conside-rável de caboclos, pardos, negros e mestiços17.

No que diz respeito ao território sertanejo, dois trabalhos apontaram, da mesma forma, para o entendi-mento de que a sociedade que foi construída no sertão do Rio Grande tinha como característica marcante a mistura entre luso-brasílicos, africanos, crioulos e índios, embora o seu objetivo não fosse primordialmente este. O primeiro, a dissertação de mestrado em História de Cláudia Cristina do Lago Borges, que fez um estudo sobre a escravidão negra no Seridó colonial, culminando com a análise da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.18 O segundo, a tese de doutorado em His-

17 MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890. Sertão do Seridó – Um estudo de caso da pobreza. 1985. 247f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1985.

18 BORGES, Cláudia Cristina do Lago. Cativos do Sertão: um estudo da escravidão no Seridó, Rio Grande do Norte. 2000. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista, Franca, 2000.

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tória de Douglas Araújo, que analisa o desmoronamento da antiga sociedade rural, visibilizado pela decadência das fazendas de Caicó e Florânia no período de 1970 a 199019.

A tese de doutorado em Ciências Sociais de Mui-rakytan Kennedy de Macêdo igualmente explorou a realidade do sertão do Seridó, abordando a história da família através da relação entre o patrimônio (cabedal) e o cotidiano, durante o século XVIII. Um dos capítulos da tese diz respeito justamente à composição demográfica das famílias que povoaram a ribeira do Seridó a partir da expansão pecuarística no período posterior à “Guerra dos Bárbaros”, onde o autor demonstra a existência de agrupamentos familiares envolvendo africanos, crioulos, índios e mestiços – além dos que eram formados por elementos luso-brasílicos20.

Assinalamos um considerável número de trabalhos igualmente feitos a partir da realidade das comunidades negras do Seridó, produzidos, especialmente, por antro-pólogos e historiadores. Acerca dos Negros do Riacho, situados no município de Currais Novos, é necessário

19 ARAÚJO, Douglas. A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o desmoronamento das fazendas agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-1990). 2003. Tese (Doutorado em História). UFPE, Recife, 2003.

20 MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio familiar e cotidiano nos sertões do Seridó (século XVIII). 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). UFRN, Natal, 2007.

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lembrar da contribuição do estudo etnográfico desen-volvido por Luiz Carvalho de Assunção, fruto de sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais, no qual o autor discutiu como a identidade social do grupo era ela-borada e representada pelos membros da comunidade, a partir da trajetória de suas vidas.21 No final da década de 2000 a comunidade dos Negros do Riacho foi novamente revisitada, desta vez, por Joelma Tito da Silva, que, a partir do uso da história oral, analisou, em sua dissertação de mestrado em História, os usos que os moradores do lugar fazem da memória, da identidade e da história.22 No que diz respeito à comunidade Macambira, o trabalho com mais profundidade é o relatório antropológico coorde-nado por Edmundo Marcelo Mendes Pereira em 2007, que reconstituiu o perfil sócio-histórico da “Terra dos Lázaros”.23

21 ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. Os negros do Riacho: estratégias de sobrevivência e identidade social. 2.ed. Natal: EDUFRN, 2009 [1994].

22 SILVA, Joelma Tito da. As Eras e o Riacho: memórias, identidade e território em uma comunidade rural negra no Seridó potiguar. 2009. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009.

23 PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade de Macambira: de “Negros da Macambira” à Associação Quilombola (Relatório Antropológico). Natal: INCRA-SR 19/UFRN/FUNPEC, 2007; PEREIRA, Edmundo. Terra dos Lázaros: etnografia, historiografia e processo quilombola na Serra de Santana (RN). In: SCHWADE, Elisete; VALLE, C. G. O. do (orgs.). Processos sociais, cultura e identidades. São Paulo, Annablume, 2009. p. 89-143.

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Em se tratando da Boa Vista, localizada no município de Parelhas, pelo menos duas monografias de graduação em História foram produzidas e, o que é mais importante, por historiadores ligados à comunidade por fortes laços genealógicos: a primeira, em 2004, por Maria do Socorro Fernandes da Cruz24 e a segunda, em 2007, por Sebastião Genicarlos dos Santos.25 Após a realização de estudos para subsidiar relatório antropológico, coordenado por Julie Cavignac e editado em 2007,26 outras pesquisas foram desenvolvidas e/ou publicadas, tendo como foco a realidade sócio-histórica da comunidade de Boa Vista.27

24 CRUZ, Maria do Socorro Fernandes da. Comunidade rural de Boa Vista dos Negros: territorialidade, identidade étnica e invisibilidade social de um povo quilombola. 2004. Monografia (Graduação em História) – UFRN, Caicó, 2004.

25 SANTOS, Sebastião Genicarlos dos. História e identidade no território de Boa Vista dos Negros. 2007. Monografia (Graduação em História) – UFRN, Caicó, 2007.

26 CAVIGNAC, Julie Antoinette (coord.). Relatório antropológico da Comunidade Quilombola de Boa Vista (RN). Natal: INCRA-SR 19/UFRN/FUNPEC, 2007.

27 CAVIGNAC, Julie A. Os filhos de Tereza: narrativas e religiosidade na Boa Vista dos Negros/RN. Tomo, São Cristóvão-SE, n. 11, p. 77-102, jul/dez. 2007; CAVIGNAC, Julie A. Os “troncos velhos” e os “quilombinhos”: memória genealógica, território e afirmação étnica em Boa Vista dos Negros (RN). Ruris – Revista do Centro de Estudos Rurais, v. 2, n. 2, p. 11-41, set. 2008; BÖSCHEMEIER, Ana Gretel Echazú. Natureza de mulher, nome de mãe, marca de negra: identidades em trânsito e políticas do corpo na comunidade quilombola de Boa Vista dos Negros. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – UFRN, Natal, 2010.

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po r t r á s d o s d o c u m e n t o s m A n u s c r i t o s

As pesquisas que desenvolvemos desde a gradua-ção28 e o mestrado,29 embora tenham foco na população indígena que viveu no Seridó entre os séculos XVIII e XIX, acabaram demonstrando que tais sujeitos históricos – os índios – conviviam com luso-brasílicos, com africanos, com crioulos e com os mestiços de diversas qualidades (pardos, mamelucos, cabras e, a exemplo, mulatos). Essas pesquisas foram embasadas, em parte, na consulta das fontes de natureza judicial, como os inventários post--mortem, os quais, nas descrições dos bens dos defun-tos, geralmente, traziam os nomes e as qualidades dos escravos: pretos, mulatos, cabras, de Angola e crioulos.

28 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX. 2002. 169p. Monografia (Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2002.

29 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande. 309f. Dissertação (Mestrado em História) - UFRN, Natal, 2007.

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O termo crioulo, provavelmente de origem africana30, indicava os escravos nascidos na América portuguesa e que eram filhos de pretos, isto é, de pais nascidos na África.31 Eduardo França Paiva, porém, considera que é mais prudente falar de crioulos como aqueles que nasce-ram nas possessões portuguesas na América e que eram filhos de mãe africana. Essa proposição fundamenta-se no fato de que, na maioria dos registros documentais, a paternidade dos crioulos era omitida, dando-se prece-

30 A origem africana do vocábulo criollo foi apontada pelo Inca Garcilaso de la Vega nos seus Comentarios Reales de los Incas (1609) apud PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. 286f. Tese (Concurso para Professor Titular em História do Brasil – Departamento de História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. p. 222.

31 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del Rey (1700-1850). 2004. 278f. Tese (Concurso para Professor Titular em História do Brasil – Departamento de História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 68; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 37; MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.105-6. Os dicionários especializados em história colonial da América portuguesa também confirmam o significado de crioulo como sendo o escravo negro nascido no Brasil, distinto do escravo negro nascido em África (METCALF, Alida. Crioulo. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. p. 227; FARIA, Sheila de Castro; VAINFAS, Ronaldo. Escravidão. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1822). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 208.

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dência, portanto, ao registro do nome e qualidade32 da mãe – do que resulta não se ter uma ideia bem clara, ainda, acerca de como seriam qualificados os filhos de um casal em que apenas o pai fosse africano.33 O significado que o dicionário de Rafael Bluteau (1712) forneceu para crioulo, todavia, considera-o como sendo o “Escravo, que nasceo na casa do seu senhor”34. Esta definição, segundo a opinião de Eduardo França Paiva, soa como problemá-tica, já que “(...) entre os escravos nascidos nas Américas houve, também, mestiços de todas as ‘qualidades’, que não eram confundidos com ‘criollos’ ou com ‘crioulos’ na documentação existente.”35

32 Estamos utilizando a noção de qualidade, ao invés de grupo social ou cor ou raça tendo em vista que, segundo Russell-Wood, aquela comporta uma sobreposição dos elementos que se reputavam às populações que viviam na América portuguesa: relações (familiares, de parentesco e profissionais), condições (econômicas, políticas, sociais, religiosas e étnicas), a ascendência, a naturalidade, os privilégios e as aptidões (RUSSELL-WOOD. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).

33 PAIVA, Eduardo França. Op. cit., p. 223. 34 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico,

architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. v. 2 (B-C), p. 613.

35 PAIVA, Eduardo França. Op. cit., p. 223. É possível, segundo Eduardo Paiva, que o dialeto utilizado no dicionário de Rafael Bluteau estivesse usando a palavra “escravo” como sinônimo de “negro” ou “preto”, daí o equívoco em relação ao significado da palavra crioulo.

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Não são conhecidos levantamentos populacionais “oficiais” incidindo, especificamente, sobre as qualidades da população escrava da ribeira do Seridó no século XVIII. Recorremos, pois, à quantificação dos cativos arrolados nos inventários post-mortem da ribeira do Seridó desse mesmo período para, ao menos, termos uma represen-tação parcial de como se apresentava essa população. Os dados estão compilados na Tabela 1. Trata-se de uma representação parcial, reiteramos, vez que os inventários post-mortem armazenados nas comarcas não se referem à maioria ou totalidade da população de determinado território. Segundo a legislação colonial, em tese, os in-ventários deveriam ser abertos no caso de falecimento de um dos cônjuges do casal quando houvesse órfãos,36 mas essa cláusula poderia ser estendida para o caso de haver bens a serem partilhados, independentemente da existência de filhos menores de 25 anos e que não fossem casados.

As informações advindas desses inventários post--mortem nos mostram que 31% dos escravos da ribeira do Seridó nesse período eram crioulos. Depois destes,

36 Cf. CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. Primeiro Livro das Ordenações, Título LXXXVIII – Dos Juízes dos Órfãos, 4 – Inventários. 14.ed.fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 207-8.

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o grupo numericamente superior era o dos africanos37 qualificados como do Gentio de Angola, que represen-tavam 20% dos cativos. Logo após vinham aqueles que foram assinalados, nos registros, apenas como “escravos”, que somam cerca de 15% do universo dos dados, o que quer dizer que tiveram a sua qualidade despersonalizada, nas descrições dos arrolamentos – fosse pela pessoa que, na época, produziu o registro, fosse pelo inventariante, que dava à carregação os bens pertencentes ao monte da fazenda. É possível inferir, a partir dessa amostra fornecida por 71 inventários post-mortem, que, concomi-tante à presença de cativos mestiços (mulatos e cabras) e oriundos da África havia um processo de crioulização

37 Embora o termo africano seja de uso corrente na historiografia para mencionar os escravos provindos da África, Sheila de Castro Faria nos adverte para os perigos de sua utilização sem que possa ser contextualizado ou sem definir de quais regiões do continente negro. Segundo a autora, “Tratar dos africanos como um grupo, significa incorporar mais um sem-número de etnias ao complexo cultural do Brasil. Antes de mais nada, é necessário frisar que o termo africano, para designar os negros oriundos do tráfico atlântico de escravos, é anacrônico para o período colonial e, mesmo, para a primeira metade do século XIX.” (FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del Rey (1700-1850). 2004. Tese. UFF, Niterói, 2004. p. 31).

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demográfica38 em curso na ribeira do Seridó no decorrer do século XVIII, isto é, de predominância dos escravos já nascidos nas terras brasílicas – ainda que haja um

38 Crioulização é um conceito utilizado na problematização de Luciano Mendonça de Lima para compreender as possibilidades de reprodução natural da população escrava de Campina Grande, na Paraíba. É entendida, segundo esse autor, como sendo “(...) um complexo processo de transformação econômica, demográfica e cultural, que implicou na paulatina predominância dos escravos cativos crioulos em relação aos africanos e cujo ritmo variou no tempo e no espaço, de acordo com as vicissitudes históricas das sociedades escravistas.” (LIMA, Luciano Mendonça de. Cativos da “Rainha da Borborema”: uma história social da escravidão em Campina Grande – século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009. p. 176-7). Para Luís Nicolau Parés tal conceito pode ser desdobrado em duas vertentes: a “(...) crioulização cultural (isto é, o processo de transformação a que estiveram sujeitas as culturas africanas no Brasil) e (...) [a] crioulização demográfica, ou seja, o crescimento da população crioula (crioulo aqui entendido como indivíduo negro de ascendência africana nascido no Brasil)” (PARÉS, Luís Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador, n. 33, p. 88, 2005).

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relativo equilíbrio numérico entre os crioulos (31%) e aqueles provenientes da África (cerca de 29%)39.

Quando passamos a examinar os registros de batizado, de casamento e de óbito da Freguesia da Glo-riosa Senhora Santa Ana, instância religiosa que cobria, durante o século XVIII e primeiras décadas do século XIX, praticamente todo o território do que hoje conhecemos como Seridó, o painel demográfico modifica-se. É preciso lembrar que, enquanto os inventários post-mortem refe-riam-se a uma pequena parcela da população – notada-mente aquela que tinha posses a serem partilhadas – os registros de paróquia, ao menos em tese, deveriam regis-trar todos os cristãos da freguesia em seus rituais (bati-zado, casamento e exéquias). Observemos os registros

39 Para a composição desta cifra reunimos os escravos qualificados como Gentio de Angola, Gentio da Guiné, Gentio de Arda, Nação Congo e Nação da Costa, além daqueles que foram nomeados de “negros” e “pretos”. Segundo Eduardo França Paiva, além dos termos que designam nações, os vocábulos preto, negro, escravo, africano, guiné, etíope, sudanês e natural foram aplicados, em diferentes épocas e espaços, para qualificar, especificamente, os africanos na América luso-espanhola. O autor adverte, contudo, que, embora a partir de meados do século XVI os termos negro, preto e escravo tenham sido apreendidos como sinônimos, nem todo escravo era negro africano e, por outro lado, a maioria dos negros africanos, na América luso-espanhola colonial, eram escravos (PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII – as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho, p. 221).

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de casamento40 da freguesia para o período de 1788 a 1821, apresentados nas Tabelas 2 e 3.

A partir dos dados apresentados nas tabelas, perce-bemos que o grupo mais numeroso, entre os nubentes que contraíram matrimônio no território da Freguesia do Seridó, era o dos mestiços (42,37% dos noivos e 43,78% das noivas), onde estão inclusos os pardos e as pardas, os cabras e as cabras e os mulatos e as mulatas. Logo após, 37,39% dos noivos e 37,31% das noivas foram qualificados como brancos. Os indivíduos de origem africana (7,20% dos noivos e 5,79% das mulheres) e crioula (4,63% dos noivos e 5,79% de noivas) vêm em seguida. Numerica-mente, pois, os crioulos não eram a maioria dos noivos e das noivas nessa documentação paroquial. Todavia, é preciso lembrar que se trata do olhar da Igreja Católica acerca das diversas populações que habitavam os seus territórios – as freguesias –, isto é, parte (ou tudo) do que está assentado no registro é fruto da percepção que os sacerdotes tinham dos seus fregueses.

Foi em documentos dessa natureza – registros de batizado e casamento – que encontramos referências a sujeitos históricos ligados ao surgimento da comunidade da Boa Vista, circunscrita, atualmente, no território do município de Parelhas. A narrativa presente na memória

40 Foram excluídos, dessa contabilização, 360 registros de noivos e 356 de noivas que foram transcritos para o livro de assento sem a sua qualificação.

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dos moradores da Boa Vista, recolhida por Julie Cavignac, evidencia, de maneira geral, que a comunidade teria o seu princípio em uma negra chamada Tereza, a qual teria sido casada com outro negro, Domingos (em outras versões, Domingos aparece como seu filho). Tereza, pro-vavelmente uma retirante, teria recebido um pedaço de terra de um coronel situado nas proximidades do sítio que seria conhecido, posteriormente, como Boa Vista. Nesse território, junto com Domingos, teria gerado seus filhos, cujos descendentes encontram-se parcialmente residindo no mesmo lugar, conservando uma memória genealógica acerca dos ancestrais e a posse da terra. Esta é apenas uma versão do mito fundador da Boa Vista.41

O primeiro registro que encontramos nos docu-mentos paroquiais, passível de ser cruzado com essa memória genealógica da Boa Vista, foi o casamento de Manuel Fernandes da Cruz com Vitorina Maria da Con-ceição, realizado na Matriz do Seridó (hoje, Catedral de Sant’Ana, de Caicó) em 14 de setembro de 1819.42 Ambos os noivos eram naturais e moradores na Freguesia do Seridó. Manuel Fernandes, filho legítimo de Domingos Fernandes e Tereza Fernandes da Cruz. Vitorina Maria,

41 Acerca do mito de fundação da comunidade Boa Vista, vide CAVIGNAC, Julie Antoinette (coord.). Relatório antropológico da Comunidade Quilombola de Boa Vista (RN). Natal: INCRA-SR 19/UFRN/FUNPEC, 2007. p. 72-87.

42 PSC. CPSJ. Livro de Casamentos no 2. FGSSAS, 1809-1821. (Manuscrito).

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filha de Gonçalo Freire e Joana Maria. Com a filiação do noivo, chegamos à mãe ancestral da comunidade Boa Vista: Tereza Fernandes da Cruz, que, conforme o assento paroquial, era esposa (e não mãe) de Domingos Fernandes – o que não invalida a hipótese, igualmente, de Tereza ter sido mãe de um segundo Domingos Fernandes ou, também, de ser filha de outra homônima.

Um detalhe do registro de casamento de Manuel Fernandes e Vitorina Maria, porém, tem que ser anotado: ambos foram qualificados, pelo padre que fez o assento, como pretos forros. Dizendo de outra maneira, tanto Manuel Fernandes como Vitorina Maria, em algum momento de suas vidas, foram escravos e, posteriormen-te, conseguiram sua alforria. Por outro lado, isto também implica dizer que, no caso de Manuel Fernandes, pelo menos a sua mãe, Tereza Fernandes, também deve ter sido escrava – considerando que a linha de transmissão da escravidão era matrilinear – e, através de algum tipo de mecanismo, conseguido sua liberdade.

Através dos assentos paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Guia, do Acari, conseguimos rastrear dois filhos de Manuel Fernandes da Cruz e Vitorina Maria da Conceição. O primeiro, Antônio, nasceu em 13 de janeiro e foi batizado no dia 05 de julho de 1835, tendo sido apadrinhado por Dario Gomes Barreto e sua mulher, Francisca Ferreira de Medeiros. A cerimônia do

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batizado aconteceu no “sítio Boa Vista” e, na averbação do assento, o pequeno Antônio foi qualificado com um “P”. Tal distintivo, que era aposto ao lado dos registros pelos sacerdotes responsáveis pela produção e guarda dos livros de assento, era, provavelmente, uma maneira de qualificar os “pardos” – camada mais numerosa da população do Seridó, segundo esse tipo de documenta-ção.43 A segunda filha, Tereza, nasceu em 13 de março e foi batizada em 19 de abril de 1836, igualmente no “sítio da Boa Vista”, tendo sido seus padrinhos o casal José Gomes Pereira e Cosma Maria da Conceição. Tereza foi qualifica-da, na averbação do registro de batizado, com a letra “N”, distintiva de “negro”.44 Pela experiência que temos com o exame das fontes paroquiais, em geral, o qualificativo “negro” era utilizado para distinguir indivíduos livres, cuja mãe fora cativa e, posteriormente, alforriada – nascendo, seus filhos, sem a mancha da escravidão.

Encontramos, igualmente, nos acervos paroquiais das duas freguesias acima citadas – Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó e Nossa Senhora da Guia do Acari – assentos de batizado de filhos do casal Roberto Fernan-des da Cruz e Ana Quitéria. Pela proximidade cronoló-gica e pelo fato de, em um dos documentos, o casal ser qualificado como “pretos forros”, trata-se, provavelmen-

43 PNSGA. SP. Livro de Batizados no 1. FNSGA, 1835-1872. (Manuscrito).44 PNSGA. SP. Livro de Batizados no 1. FNSGA, 1835-1872. (Manuscrito).

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te, no caso de Roberto Fernandes, de mais um filho de Domingos Fernandes e Tereza Fernandes da Cruz. O primeiro assento de batizado é o do pequeno José, cuja cerimônia foi realizada na Capela de Nossa Senhora da Conceição em 20 de agosto de 1815. Nesse registro, Roberto Fernandes e Ana Quitéria foram qualificados como “pretos forros”.45 Os padrinhos de José, possivel-mente, eram da mesma família de seu pai, a julgar pelo sobrenome: Bernardino Fernandes da Cruz, que lhe apadrinhou junto com Custódia Maria, ambos, à época, solteiros.

Três anos depois, na mesma capela, Roberto Fer-nandes e Ana Quitéria compareceram para o batizado de outro filho, também chamado de José, nascido em 28 de fevereiro e batizado em 03 de maio de 1818. No registro da cerimônia, consta a naturalidade dos pais do pequeno José: Roberto Fernandes era natural da própria Freguesia do Seridó, enquanto Ana Quitéria era natural da Freguesia de Mamanguape. José, que foi apadrinhado por Joaquim José de Azevêdo, casado, e Josefa Maria de Jesus, foi qualificado, na averbação do assento, como “negro” (N).46

O outro registro de batizado de um filho de Roberto Fernandes da Cruz está inscrito no livro mais antigo da Freguesia do Acari. Trata-se do assento de Joaquim, “pardo”

45 PSC. CPSJ. Livro de Batizados no 2. FGSSAS, 1814-1818. (Manuscrito).46 PSC. CPSJ. Livro de Batizados no 2. FGSSAS, 1814-1818. (Manuscrito).

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(P) na averbação, que nasceu em 02 de dezembro de 1834 e foi batizado em 02 de maio do ano vindouro (1835), na Matriz de Nossa Senhora da Guia. É provável que Ana Quitéria já tivesse falecido, pois Roberto Fernandes da Cruz aparece, no documento, como sendo casado com Luiza Maria da Conceição, o casal sendo apontado, pelo padre autor do registro, como natural e morador na própria freguesia. Foram padrinhos do pequeno Joaquim o casal Caetano Dantas de Medeiros e Ana Joaquina de Jesus.47

Os nomes de Domingos Fernandes, Tereza Fer-nandes da Cruz, Manuel Fernandes da Cruz e Roberto Fernandes da Cruz integram o repertório de ancestrais rememorados pela memória genealógica da comunidade de Boa Vista. Nomes que, para além de sua vinculação com as parentelas construídas nesse espaço, apontam para a presença de outras famílias no Seridó. Famílias cuja estruturação, historicamente, envolveu indivíduos de diferentes qualidades (pretos, “pardos”) e condições (cativos, forros e livres), desde, pelo menos, meados do século XVIII. Seus descendentes, enraizados na comuni-dade de Boa Vista e dispersos pelo Rio Grande do Norte e Paraíba, são exemplos vivos de como o estudo das re-lações entre escravidão, família e sociedade se constitui enquanto caminho imprescindível para a compreensão do próprio passado do Seridó.

47 PNSGA. SP. Livro de Batizados no 1. FNSGA, 1835-1872. (Manuscrito).

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Ap ê n d i c e :Tabela 1 – Qualidades dos escravos arrolados em inventários post-mortem da ribeira do Seridó (1737-1800)

QUALIDADE TOTAL %

Cabra 18 8,6

Crioulo/crioula 65 31,0

Escravo/escrava 32 15,2

Gentio da Guiné 8 3,8

Gentio de Angola 42 20,0

Gentio de Arda 1 0,5

Mestiço 1 0,5

Mulato/mulata 31 14,8

Nação Congo 2 1,0

Nação da Costa 2 1,0

Negro/negra 5 2,4

Preto 1 0,5

Tapuia 2 1,0

TOTAL 199 100

Fonte: Inventários post-mortem da Comarca de Caicó, 1737-1800 (57); Inventários post-mortem da Comarca de Acari (10), 1770-1798; Inventários post-mortem da Comarca de Currais Novos, 1788-1799 (04). No levantamento acima não estão incluídos quatro cativos, dos quais não foi possível discernir sua qualidade devido à ilegibilidade da documentação.

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Termo de Vista do Promotor de Capelas ao réu Luiz Chermont de Brito

transcrição paleográfica de Maria José nascimento

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Em 1876 Luiz Chermont de Brito, tesoureiro mestiço da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Príncipe (Caicó), foi acusado de ter “ocultado a quantia de duzen-tos mil réis” pertencente à confraria. A ação era movida, em tese, por dezenas de irmãos confrariais. A acusação colocava sob suspeição Luiz Chermont e pedia sua demis-são, visto que além de ser criminoso, somente um homem branco, segundo os estatutos da Irmandade, poderia ser tesoureiro. Chermont se defendeu primeiro provando que a lista dos irmãos acusadores fora recolhida sem o real conhecimento deles (a maior parte analfabeta), depois contra-atacava acusando um ex-tesoureiro branco, Fran-cisco Borges de Mello, de manipular os irmãos. Provada sua idoneidade, mesmo assim ele foi demitido, não por sua desonestidade, mas por estar ocupando um cargo que, segundo as normas da confraria, somente homens brancos poderiam ocupar.

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[Termo do promotor (1)]Termo de VistaAos seis dias do mez de outubro do di-to, faço nestes autos com vista aoPromotor de Capellas ( ) paradizer o que ( ) de justiça.de fis neste termo. EuIgnacio Gonçalves. Valle. Escrivão aucrus

VistaTendo as irmandades religiosas incontestáveldireito à regularem-se por seos compromissos os com-petentemente aprovados, a serem representados emtodos os seos interesses e direitos por mesas regedo-ras eleitas espontaneamente pela maioria de votosde seos irmãos que considerão aos votados mesários aomais idoneos e mais habilitados a promoverem osinteresses direitos e prosperidade da Irmandadeparece-me que estas mesas legitimamente organisa-das são as unicas competentes a representaremos direitos e interesses da Irmandade; e que só a ellasdevem os demais irmãos recorrerem em suas pre-tenções ou por seo intermédio obterem qualquer pretensãoque lhe pareça justa, do juiso da Provedoria salvos oscasos de recursos e agraves das deliberações das diasmesas ou mobilidade destas. Nestas, cir-cunstancias de legitimidade me parece estar àactual mesa regedora de Nossa Senhora doRosário da Capella desta Cidade que minhaopposição legitima foi opposta contra a suaeleição, e a idoneidade de seos membros, num

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[Termo do promotor (2)]consta ter-lhe sido feito representação alguma arespeito. Vê-se porem afl-2-destes autoshua petição de diversos irmãos da referida Ir-mandade pedindo a esse respeitável juiso daProvedoria admissão do actual thesoureiro damesma Luiz Chermont de Brito, offerecendocomo unico motivo um facto odioso e não provado,que mesmo diversos dos reclamantes da dita dimissãoo contestarão afl-7- disendo não terem dado consin-timento para suas assignaturas. Afl-6-vê-seum attestado da mesa e irmandade assignadopor maioria absoluta de votos manifestando os de-sejos da Irmandade na conservação do dito thesou-reiro por considerá-lo útil aos interesses da mesma.Este thesoureiro defendendo-se, em sua respostade ( ) ( ) diz que tendo sido chamado a contas pres-tou-as perante esse juiso, ficando a Irmandade a dever-lhea quantia de um conto tresentos setenta e trez miltresentos e oitenta reis ( 1,373c380) que elle thesourei-ro perdu-ou a irmandade, disendo que tudo deve cons-tar do respectivo livro de contas, e concluio allegandodos serviços prestados a mencionada Irmandade.Prestando-se attenção a petição defl-2-; a defesa de fl-4 a 6 e dos documentos acclamados,vê-se claramente que os direitos e interesses damencionada Confraria estão garantidos e cabe adireção da respectiva mesa regedora legalmenteeleita; e que somente existe contra os interesses dajá mencionada Confraria o modo inconvenientee injurioso com que foi aggredida a irmandade napessoa do seu actual thesoureiro; e as maneiras in-prudente com que este se houve em sua respostacitada com referencia a pessoa do seo antecessor, semtambém ter provado com documentos authenticos terpartido desta mencionada aggressão. Por todos

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[Termo do promotor (3)]todas as considerações expostas pareceu-me que tantoos reclamantes, como os reclamados só tem direi-to a merecerem do recto Juiso da Provedoria napresente á sensura de seus actos, em ter-mos que possa evitar á reprodução de actossimilhantes, tão fatais aos interesses e harmoniada predita Confraria; N. Sª. porem decidirá como for mais justo.Cidade do Príncipe, 7 de Outubro de 1876O Promotor ad hoc, de CapellasEgidio Gomes de Brito

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Seguindo os passos de Feliciano José da Rocha

danycelle Pereira da SilvaMestranda em antropologia Social, uFrn

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Este texto tem como base uma pesquisa iniciada na graduação1 que versa sobre a memória de um ex-escravo, Feliciano José da Rocha, que viveu na cidade de Acari, localizada na região do Seridó norte-rio-grandense. Apre-sento Feliciano e sua história, assim como alguns de seus descendentes e retalhos de sua memória.

A narrativa de Feliciano José da Rocha está inserida no contexto histórico do Seridó colonial do século XVIII. Feliciano José da Rocha está ligado à vida de Antônio Paes de Bulhões2, fazendeiro de muitas terras na região do Acauã, e que em um ano de seca severa viajou para o litoral buscando alento para sua família que ficara no Seridó-RN. Antônio Paes de Bulhões pediu auxílio a um fazendeiro em Camaratuba, Paraíba, que lhe negou qualquer ajuda, entretanto este fazendeiro disse que seu escravo, Feliciano José da Rocha, tinha alguns víveres próprios que possivelmente queria vender. Antônio Paes de Bulhões encontrou alento na figura de Feliciano, que,

1 A monografia intitulada: “O escravo que virou coronel”: Lembranças de Feliciano José da Rocha, em que trago os primeiros elementos que compõem a vida de Feliciano.

2 Antônio Paes de Bulhões, filho de Manoel da Costa Viera e Maria Paes de Bulhões, é nascido na região de Pernambuco. Seu Pai, antigo senhor de engenho, foi assassinado por um vizinho que provocou a vingança por parte de Antônio Paes de Bulhões. Após vingar-se ele vem para o Seridó, temendo represálias. Ao chegar a Acari, casa-se com Ana de Araújo Pereira, filha de Tomás de Araújo Pereira, um dos fundadores da cidade (DINIZ, 2008).

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não aceitando o dinheiro daquele que seria seu futuro senhor, lhe ofertou os víveres para sanar a fome daqueles que ficaram em Acari.

Antônio Paes de Bulhões se impressionou com a atitude do escravo e passado o período de forte seca, conforme havia prometido, voltou e libertou Feliciano. Ele passou a trabalhar para seu novo dono, que logo o alforriou, assumindo a função de vaqueiro de Bulhões em uma de suas melhores fazendas. O ex-escravo conquistou posses e comprou duas fazendas: a Fazenda Barrentas e a Fazenda Cacimba das Cabras.

Feliciano casou-se com uma escrava que ele mesmo alforriou, ainda possuindo outros tantos detalhes de sua história que são singulares para um forro. Manuel Dantas, cronista que faz a primeira menção dentre os relatos escritos, conta que Feliciano:

Foi ao Recife, e encontrando um português desses que acabavam de saltar em terra ao Deus-dará, sem outros haveres mais que os socós de madeira, o chapéu de Braga, a japona de cotim e as calças de baeta de fundilhos cosicados, fez-lhe proposta de casamento com sua filha Severina, convencendo-o de que todos os habitantes do Brasil eram negros, excetuados somente os das grandes cidades. (DANTAS, 2001, p. 29)

Entre outros tantos elementos coletados durante a pesquisa, a narrativa de Feliciano aparece como excep-cional diante do contexto da época. Feliciano é o símbolo

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de um passado de dor que se reflete na perpetuação do presente. Feliciano é a figura que encarna uma forma mais branda e encena a generosidade dos fazendeiros brancos, insistindo no mito da harmonia racial. O que ele foi para a sociedade acariense, assim como sua história, relegada a narrativas escritas, de pequenos trechos e pro-fundos silêncios, mostra a invisibilidade negra na cidade de Acari na atualidade.

Não se pode afirmar como Feliciano alcançou sua independência financeira e social, as narrativas mostram duas vertentes, uma que foi tropeiro e outra que foi fazen-deiro. Esta última é a mais forte, já que Feliciano chegou a ter duas propriedades. Mas, antes de adentrarmos pelas riquezas materiais que conseguiu, vamos nos deter na riqueza familiar que construiu.

Conforme as narrativas escritas e orais, Feliciano comprara a alforria da escrava Paula Pereira de Jesus, e se casara com ela. Apesar de casar-se com uma alforriada, ele casou uma de suas filhas com um português. Podemos nos perguntar diante desta atitude se ele queria clarear a linhagem, já que ser escravo ou alforriado significava não só um calvário quando se estava sob o jugo de um Senhor, mas também quando a tão sonhada liberdade chegava. Livres juridicamente, estes homens estavam presos às relações sociais anteriores (MATTOSO, 2003). Nesse caso, Feliciano tenta participar da conservadora

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sociedade seridoense da época. O casamento de Seve-rina com o português Antônio José é um indício desse fato e marca a entrada do liberto numa história que foi socialmente contada.

Feliciano teve nove filhos. Alguns desses filhos casaram com parentes consanguíneos3, enquanto outros se casaram com pessoas externas ao grupo familiar. Também é possível identificar o casamento entre primos (paralelos e cruzados, com maior incidência) e entre tios e sobrinhas. A leitura de alguns documentos4 também mostra a incidência de Feliciano como compadre de moradores dos sítios vizinhos às suas terras, como o Saco dos Pereira. De fato, como em outros contextos sociais rurais, pode-se perceber uma característica muito fre-quente entre as pessoas que vivem no campo: as relações de compadrio. Certamente, assim como o casamento, as relações de compadrio estabelecem redes, trocas entre famílias ou perpetuam costumes dentro de um mesmo grupo (FRANCO, 1974).

No caso da família de Feliciano, o compadrio servi-ria, então, para reforçar laços de afinidade existentes e aparece como estratégia matrimonial, como por exemplo, no caso dos casamentos de filhos de Feliciano com pessoas de Currais Novos e outras localidades vizinhas.

3 Constatação feita a partir do cruzamento de dados e da árvore genealógica.4 Inventários, livros de óbito e batismo.

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Tanto o compadrio como as formas de nominação são elementos interessantes a serem pensados em relação ao núcleo de Feliciano. Não há como saber como se dava a nominação no núcleo familiar, entretanto, pelo nome é que foi possível identificar uma “rama” da família Rocha na atualidade.

Suzete Suely da Rocha Córdula5, 54 anos, carrega o “Rocha” em seu nome, já seu pai Nelson tinha como sobrenome “Feliciano da Rocha”, assim como seu avô Horácio Feliciano da Rocha. A perpetuação do nome nos faz acreditar que existiu uma preocupação em conser-var a memória do primeiro Feliciano da Rocha, embora durante a pesquisa não se tenha conseguido chegar ao filho de Feliciano que teria originado este ramo da família. As memórias familiares que remetem a Feliciano são diluídas. A memória de Suzete não guarda detalhes de sua genealogia, não avança além das suas vivências; mas é justamente no relato do seu cotidiano que podemos verificar similitudes.

Na profissão dos homens da sua família estão as pro-fissões que nos remetem à do próprio Feliciano. Se Feli-ciano foi um tropeiro, podemos refletir acerca do repasse de tradições, de um gosto familiar, o de ser viajante. Outra memória que é forte e uma das únicas de Suzete que

5 Suzete é moradora de Acari, dona de casa e uma das possíveis descendentes de Feliciano.

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remetem a Feliciano é a que sua avó Iluminata contava, que “as terras foram tomadas”. Quando questionada sobre detalhes, ela desconhece as pessoas responsáveis. Só o fato de recordar essa passagem contada pela avó, nos mostra como a terra é um elemento norteador desta história. A linha de Suzete até Feliciano não pôde ser completada, mas suas recordações nos fornecem vários elementos de relação com o ex-escravo. O importante é que Suzete tem consciência de um pertencimento à história de Feliciano.

Mesmo não conseguindo completar a linha genea-lógica de Suzete, graças à ajuda de historiadores e dos interlocutores, foi possível avançar e completar a linha que liga Joselito Jesus de Araújo Silva 6 até Feliciano José da Rocha. Ao contrário de Suzete, ele não carrega no nome uma herança de Feliciano, mas é o exemplo claro de que o esforço para “clarear a raça” deu certo.

A linha que leva Jesus a Feliciano advém da filha mais famosa do forro, Severina. Ela foi casada por seu pai com um português para clarear a raça. Severina teve doze filhos e destes apenas uma filha parece ter casado com um parente consanguíneo (sobrinha que casou com tio). O que se observa a partir dos dados cartoriais é que

6 Jesus, que prefere ser chamado de Jesus de Rita de Miúdo, foi um dos primeiros interlocutores na cidade de Acari e foi contactado através de um blog “Acari do meu amor” onde reivindicava parentesco com o ex-escravo.

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Antônio José e Severina casaram seus filhos com pessoas de outras localidades ou famílias, inclusive um português advindo da cidade do Porto casou com uma das filhas de Severina. Isto mostra que a opção de “clarear a raça” pode ter sido inicialmente atribuída a Feliciano, mas foi executada pelos seus descendentes, como Severina e Antônio José, que por meio das alianças matrimoniais optaram por pessoas fora do círculo familiar.

fe l i c i A n o e s u A s t e r r A s

O bem mais precioso para qualquer homem que nasceu no sertão é a terra. A terra é o chamado bem de raiz, que nunca perde seu valor dentro do universo serta-nejo. A narrativa de Feliciano envolve duas propriedades, os sítios Barrentas e Cacimba das Cabras. Ele chega a Acari logo depois da sua fundação por Manuel Esteves de Andrade em 1737. A partir da transcrição dos inventários de três filhos de Feliciano, assim como das menções às propriedades em sua genealogia, traço algumas ideias que permitem minimamente concluir que este ex-escravo tinha de fato terras e gado em Acari.

A fazenda mais frequentemente mencionada entre os cronistas e entre meus interlocutores é a Barrentas, que consta nos inventários dos seguintes filhos de Fe-liciano: Feliciano Pereira da Rocha e Maria Pereira da

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Rocha7. Os dois filhos possuem terras de criar e uma casa de morada, de acordo com os inventários consultados. Os bens destes dois filhos de Feliciano indicam uma prática muito comum entre os camponeses e agricultores: dar aos filhos que vão casando o chão de morada e a terra de criar (WOORTMANN, 1995). Apesar de constatar uniões entre parentes consanguíneos no Saco dos Pereira, por exemplo, como é o caso do casamento de Feliciano Pereira com Joana Maria da Conceição (moradora do Saco dos Pereira), aparentemente, os herdeiros da segunda geração após Feliciano foram se desfazendo das terras.

Consta no inventário de Tomáz de Araújo Pereira (o terceiro), falecido em 1847, terras nas Barrentas e no Saco dos Pereira (MEDEIROS FILHO, 1981). A linhagem dos Araújo, que inclusive é a mesma família da esposa de Antônio Paes de Bulhões – o benfeitor de Feliciano – é quem ficou com a posse das terras, que, ao longo dos anos, foi repassada à família Bezerra, atual proprietária da fazenda. A outra fazenda citada pelos relatos orais e es-critos é Cacimba de Cabras, que não consta em nenhum dos inventários aos quais tive acesso. Apenas foi possível saber que a propriedade foi transmitida pelas últimas três gerações da família Bezerra. Os inventários ainda trazem menções a outras fazendas que possivelmente foram de posse de Feliciano ou de seus herdeiros, como as terras

7 O inventário está em nome de seu marido, Francisco da Cunha Ribeiro.

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na Serra de São Cosme e Olho d’Água. A Serra de São Cosme aparece no inventário de Maria Madalena, filha de Feliciano José da Rocha, como herança de sua mãe, Paula Pereira da Rocha.

Além das terras de criar, é interessante destacar que Feliciano Pereira e Maria Pereira, filhos de Feliciano José da Rocha, eram donos de escravos e de mais proprieda-des, assim como de outros bens. O estudo das estratégias no uso dos nomes e da ocupação das terras, assim como a utilização das teorias do parentesco, me permitiram avançar nessa primeira reflexão. A figura de Feliciano aparece como fio que costura histórias, memórias e tradições. O brusco ressurgimento de tantas pessoas, nomes, terras que foram silenciados são rastros a serem perseguidos para descortinar um passado que foi negado por manter uma ligação direta com a escravidão.

referênciAs:

ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. São Paulo: Edusc, 2006.

DANTAS, Manoel. Homens de Outr’ora. Natal: Sebo Vermelho, 2001.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Bra-sília: [s. n.], 1981.

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FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Editora Ática, 1974.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vér-tice, 1990.

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003.

PRICE, Richard. Memória, Modernidade, Martinica ( fragmen-tos de um livro). Ilha, v. 2, n. 1, 2000. Disponível em: «http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/14637». Acesso em: 2 ago 2012.

WACHTEL, Nathan. Aula Inaugural no College de France. In: Revista Vivência, Natal, UFRN/CCHLA, v. I, n. 28, 2005.

WOORTMANN, E. F. Herdeiros, Parentes e Compadres. São Paulo: UnB/HUCITEC, 1995.

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Depoimento de Dona Zélia Tum, Moradora da Comunidade

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Vou falar um pouco sobre mim, pois faço parte de um grupo de descendentes de quilombola. Primeiro, preciso falar dos meus antepassados que vieram das regiões dos Bantus, que são originados da Angola, Moçambique e Congo, sudaneses, procedentes da Guiné, Daomé e Costa do Marfim. Bantus e Sudaneses pertenciam a dois grupos culturais, pois os portugueses chegaram à África no século XV. O escravismo já existia nesse continente, pois houve aumento do tráfico de escravos, que foram trocados por armas de fogo, munição, tecidos, sal, água, aguardente, fumo, açúcar etc. Depois, o trabalho escravo no Brasil, após 1550, foi para os engenhos de cana, minerações, muitos iam para as lavouras e os outros para serviços domésticos. Dormiam nos porões das casas-grandes e se alimentavam com feijão e farinha de mandioca, para uma jornada de mais de 15 horas de trabalho exaustivo, e habitavam as senzalas, que eram grandes galpões, em chão gelado e, muitas vezes, acorrentados com grilhões.

Essas construções precárias tinham paredes de barro e coberturas de sapé ou eram cobertas com outros tipos de vegetação. Quando repartidas, o espaço era o pequeno, sendo que as divisórias eram de palhas trançadas, ou pau a pique com pouca privacidade. Uma vez por ano recebiam roupas ou tecidos de algodão grosseiros, pois em muitas fazendas havia teares para fabricação desses tecidos, tarefa feita pelas escravas. Os escravos eram atacados nas aldeias ou mesmo em vários reinos afri-

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canos. Os mercadores trocavam e vendiam homens, mulheres e crianças acorrentados. Os cativos iam para as fronteiras à espera do desembarque.

A travessia variava até o ponto de chegada, cerca de 35 dias para o Recife e de 60 dias para o Rio de Janeiro. Nas caravelas eram levados em média 600 cativos. Em razão das embarcações não terem um limite, muitos negros morriam na viagem, e estes navios ganharam o nome de tombeiros, uma alusão às tumbas ou sepulturas. Todos eram expostos aos tocaias perto do desembarque para serem comercializados. Os preços variavam de acordo com o sexo, a idade e as condições físicas, e eram avalia-dos pelos dentes, como um cavalo de puro sangue, como um touro de uma boa raça.

A violência fazia parte do dia a dia dos escravos, era trabalho forçado, castigos como: chicote, tronco, cangalheiras, máscaras de flandres, algemas, correntes e até palmatória. Os que fugiam e eram capturados eram torturados pelos capitães do mato. Eram obrigados a usarem colares de ferro com bastões e guises no pescoço para não fugir. Eram ferrados com a letra do dono com ferro em brasa, como os animais do próprio dono.

Os escravos revidavam, roubavam os pertences dos senhores, assassinavam feitores, capitães do mato e até familiares dos seus senhores, sabotavam plantações, colocando fogo nas lavouras, quebrando equipamen-

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tos dos engenhos. Muitos escravos que fugiam e eram bem-sucedidos se embrenhavam no mato e formavam quilombos. Os quilombos, como o dos Palmares, o mais conhecido, que fazia parte do estado de Alagoas, chegou a reunir mais de dois mil membros, espalhados por várias aldeias.

Eles praticavam a caça, a pesca, criavam porcos e galinhas e cultivavam seus próprios alimentos. Comer-cializavam seus produtos com os povoados vizinhos em troca de armas, pólvora e ferramentas de trabalho. Zumbi foi o mais famoso chefe desse quilombo, razão pela qual tornou-se um símbolo para a cultura afro-brasileira. Quando as autoridades se aliaram aos fazendeiros, foi porque viam o quilombo como uma grande ameaça e queriam a todo custo destruí-lo. Mas, depois de 20 anos de guerra intensa, as autoridades contrataram os servi-ços do Bandeirante Paulista Domingo Jorge Velho, que montou uma operação para destruir o quilombo comple-tamente em 1694. Zumbi e alguns quilombolas consegui-ram fugir e continuaram atacando vilas e incentivando a fuga dos escravos. A luta não teve longa duração; em 20 de novembro de 1695, Zumbi foi encontrado morto, sua cabeça foi enviada ao Recife e exposta em praça pública, para servir de exemplo para todos os escravos.

Agora já posso falar de mim. Quero saudar o pre-feito, as autoridades presentes. Senhoras e senhores,

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meu nome é Zélia Maria de Lima, nasci em 02/12/1948, no sítio Talhado, município de Acari. Estudei no grupo escolar Thomaz de Araújo, na época fui discriminada com apelidos. Fiz curso de bordados a mão e também de corte e costura com certa dificuldade, ultrapassei todas as barreiras. Tenho o 1º grau, que já terminei depois de adulta, gosto de trabalhar manualmente com crochê, fuxico, bordado, ponto vagonito, pinto pano de prato e acho que estou pronta para aprender mais alguma coisa nova, pois é só procurar.

Falar da minha mãe é o máximo. Ela era uma mulher pobre, mas honesta, trabalhadora, compreensiva, com-panheira, tinha o dom de escutar, dar conselho, era uma ótima cozinheira e fazia de tudo que estava ao seu alcance para que os filhos fossem felizes. Passou por muitas di-ficuldades, pois antes de ser empregada no Thomaz de Araújo, onde era merendeira, ela lavou roupa de ganho, trabalhou em casa de família, cozinhando para a própria sobrevivência dos filhos, que somos 11 vivos e 1 falecido, que morreu há uns 11 anos.

Hoje, minha mãe também já é falecida. Meu pai trabalhou por muito tempo na zona rural; depois que veio para a cidade, viveu da pesca, trabalhou muitos anos na usina Noka e Dantas, depois na Sambra. Quando o algodão acabava as safras, ele ia procurar locais para plantar uma vazante, hortas ou até mesmo um roçado

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para aumentar o feijão, milho, a batata-doce para a ali-mentação dos pequenos. Para minha família, a vida não foi fácil, nem tivemos regalias, minha vida foi parecida com a da minha mãe, com a da minha avó, que me criou até os 12 anos. Ela faleceu com 62 anos em 1960, e eu fui para a casa da minha mãe. Minha avó criou 5 filhos sozinha, pois meu avô saiu para o brejo de Bananeiras para uma farinhada e nunca mais voltou. Ela criou 4 filhos dela e 1 sobrinha, depois 2 netos, sozinha como pai e mãe, cuidando do roçado, limpando mato, apanhando algodão, cortando lenha de foice e machado, cortando mato na vazante.

Ainda pisava sal grosso da casa grande, milho pra mungunzá, moía milho pra fazer cuscuz e xerém. Minha avó era conhecida como Bibi. Quero falar dos meus bisavôs, eles eram legais, pois lembro das comidas de época que minha bisa fazia, os filhós da semana santa, as pamonhas e canjicas, bolo de milho e bolo preto. Se-bastiana era o nome da minha bisavó, mas todos a conhe-ciam como mãe gorda, ela rezava novena para os santos juninos e também para o Pai Eterno e São Sebastião, que eram santos de sua devoção. Ela era cabocla também, jovem, ajudava crianças para serem alfabetizadas. Meu bisavô era mais conhecido com pai velho, ele era cheio de graça, pretinho, mas com cavanhaque, e que fazia graça para todos rirem. Pela idade tinha o olho claro e eu me

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lembro dele – olho azulado. Gostava de contar histórias antigas e fazia os amigos rirem. Ele era descendente de quilombola, na época as dificuldades eram muitas. Hoje já é mais fácil para viver, pois temos mais facilidade para o aprendizado, a saúde, garantias de direito e a cidadania.

Ainda existe racismo, mas é considerado crime, graças à Constituição Federal. Veja Vicentino, hoje con-seguiu chegar ao congresso como deputado, com muita garra, trabalhando para que seja respeitado; Pelé, o rei do futebol, o melhor jogador de todos os tempos; Milton Nas-cimento, um dos maiores cantores brasileiros; Gilberto Gil, cantor e Ministro da Cultura, também lutando contra a discriminação racial. Os negros não pediram para vir para o Brasil, mas vieram como animais, na marra. Ainda bem que nós, descendentes, não tivemos que passar o que os nossos antepassados passaram, graças à princesa Izabel, que assinou a Lei Áurea.

Mesmo assim, algumas pessoas ainda se deixam escravizar.

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o An j o Au r o r A

edilene azevedo (Historiadora local)

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De acordo com pesquisa feita através de relatos orais, pois não existe nenhum registro, a história do Anjo Aurora aconteceu no final dos anos de 1800.

Contam as pessoas que seus antepassados relata-vam a história do Anjo Aurora assim: Aurora era uma menina que morava na Boa Vista, no município de Pa-relhas. Ela era descendente de escravos, e foi criada pela avó, que se chamava Rosária, e por seu avô Ivo. Certo dia, a criança saiu com a avó para pegar lenha no mato. Depois de algum tempo no mato, a criança sentiu sede, e pediu para ir pra casa tomar água; pegou a lenha, a rodilha, colocou-as na cabeça e seguiu pra casa sozinha. Só que, durante esse percurso, a menina perdeu-se, não encontrando mais o caminho de casa. Sem destino certo, andou vários quilômetros dentro do mato. Depois de alguns dias, espalhou-se a notícia que a menina tinha se perdido. (Naquela época a comunicação era difícil). Após quatro dias, uma negra chamada Luísa, que morava na Cachoeira Preta, no município de Jardim do Seridó, foi passear na casa de Antônio Orago, que morava no lado norte do rio Cobra. Chegando à casa de Antônio Orago e sabendo da notícia sobre Aurora, Luísa disse que quando vinha no caminho tinha visto uns urubus sobre-voando o Riacho do Bananeiro. Com essa informação as pessoas saíram à procura da menina. Foi Zé Silvestre quem encontrou Aurora. O corpo estava intacto.

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Depois que Zé Silvestre deixou o local para avisar a outras pessoas, os urubus começaram a comer o corpo de Aurora. Diz-se que urubu só come gente que morre assim depois que o corpo é encontrado.

O Anjo Aurora estava perto de um serrote, junto de um riacho, e tinha cavado o chão, com certeza à procura de água. Ela andava com o paninho da rodilha e este foi encontrado cheio de sangue das espinhadas que ela tinha sofrido. O Anjo Aurora foi encontrado no leito do riacho e lá mesmo foi enterrado; o interessante é que ao dar as primeiras chuvas o riacho desviou suas águas, não passando por cima de onde estavam os restos mortais do Anjo.

Dizem também as pessoas que, ao terminarem de sepultar o corpo, ouviram sussurros e risos de felicidades.

No início existia só uma cruz no local; com os mila-gres que começaram a acontecer no ano de 1942, Chico Marques (que era irmão de Ana Áurea, mulher de Henri-que Silvestre) e Chico Orago fizeram a primeira capelinha. Quem colocou o nome na primeira cruz foi Terezinha de Pedro Paulino (mãe de Maria D’Arc).

As primeiras promessas eram pagas com fitinhas amarradas em pedras. Os passarinhos levavam parte dessas fitas para construírem seus ninhos. (Relato de Maria Davi).

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Bicho Velho fez duas reformas na capelinha, pois a Capelinha fica nas suas terras. A primeira delas foi em 1950. No tempo do ocorrido, as terras pertenciam a Teo-tônio. No ano de 1985 foi feita mais uma reforma, dessa vez, quem iniciou foi Geraldo Severino, e quem terminou foi seu filho Genaldo. Foi quando colocaram laje no teto e uma porta resistente, doada por Zé Lazio (Relato de Bicho Velho).

No ano de 2007, outro fato interessante aconteceu, uma senhora da comunidade sonhou que a Capelinha ia cair. Ficou impressionada com o sonho, foi até lá ver e encontrou uma rachadura na parede, que se não fizessem um serviço, ela caía mesmo. Foi feita uma campanha e um sorteio de uma cesta básica, tendo sido arrecadado o suficiente para a reforma, a compra de jarros e flores e para a doação de uma quantia para os vicentinos (asso-ciação de apoio às pessoas carentes) de Jardim do Seridó.

Ainda existem no local o crucifixo e a imagem, que foram as primeiras coisas que foram colocadas lá. Muitos relatos de milagres são contados e para testemu-nhar, até pessoas de outras comunidades colocam vários objetos na Capelinha para pagar suas promessas.

Informantes: diversas pessoas da comunidade

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PARTE IV Irmandades negras do Seridó

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Majestades negras: Irmandades de Nossa Senhora do Rosário no Seridó

Muirakytan k. de Macêdodepartamento de história (Caicó), uFrn

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ro s á r i o n e g r o

Os moradores da Vila estavam frente a frente com o rei e a rainha. Eram os primeiros reis do Seridó. A pro-ximidade era de palmos. Os reis, ainda sem garbo, des-filaram pelas vielas, acompanhados de sua corte. Eram reis negros, cujos corpos eram propriedade de homens brancos. Sebastião Pereira, rei dos Congos e Maria José Neves, rainha dos Congos, tomaram a majestade mesmo sem deixarem de ser escravos, pobres e descalços. O coro-amento festivo que ocorreu em 1773 na Vila do Príncipe (hoje Caicó) era das realezas da irmandade do Rosário dos Homens Pretos. Uma agremiação de homens e mu-lheres unidos pela cor, pela dor da restrição da liberdade e pela alegria da festa. Apesar dos muitos infortúnios, havia o que se celebrar.

Corporações congêneres tinham raízes feudais. Em fins da Idade Média a mortalidade devastadora, as migrações repentinas e as privações inauditas forçaram a vida comunitária em direção à organização da ajuda mútua dos extraviados e desvalidos. O temor da faina dos quatro cavaleiros do apocalipse ( fome, morte, guerra e peste) produziu o movimento caritativo e confraternal que reunia cristãos em torno de devoções católicas: as irmandades leigas. Associar-se a uma dessas agremiações

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era poder contar com algum socorro para o corpo e com escolta qualificada para a alma, especialmente em uma época em que ambos corriam quase os mesmos riscos.

A devoção ao Rosário teve seu princípio em uma manifestação mariana. A Virgem revelou ao patrono dos dominicanos, São Domingos de Gusmão (1206), as virtu-des da oração por meio do Rosário, que o santo passou a difundir. O Rosário é composto por vinte “mistérios” divididos – depois da Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae –, em quatro Coroas que recordam passagens da história do Filho e da Mãe de Deus: a primeira Coroa compreende os mistérios gozosos (anunciação de Jesus), a segunda os luminosos (vida pública de Jesus), a terceira os dolorosos (paixão de Cristo) e a quarta os gloriosos (ressureição do Senhor).

No século XV os africanos de Lisboa já eram cha-mados pelos dominicanos para participarem de uma confraria que zelava pelo altar de Nossa Senhora do Rosário (SILVEIRA, 2012, p. 15). Dali, surgiria a primeira irmandade negra do Rosário. A associação entre negros africanos, festas, movimento confrarial e o Rosário só tenderia a crescer. Após a vitória na batalha de Lepanto (1571), atribuída à graça da Senhora do Rosário, o papa Gregório XIII instituiu os festejos à santa em todas as igrejas onde existisse uma Confraria do Rosário.

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reis mestiços

No Brasil colonial, no século XVII, os festejos a Nossa Senhora do Rosário se cristalizaram sob o patrocínio dos jesuítas. Embora de matriz católica, essa festa abriu os poros para mestiçagem, misturando à tradição católica elementos culturais diversos, como o ritual introduzido pelos negros africanos para coroação de reis e rainhas do Congo. A referência africana lembrava a conversão de chefes congoleses ao catolicismo, especialmente Mbemba Nzinga (1507-1542), conhecido pelos portu-gueses como Afonso I.

As representações do rei e da rainha eram sim-bolismos que revelavam a honorabilidade e respeito dos irmãos alçados à realeza, fato que interessava aos escravos. Por outro lado, a encenação da realeza era tomado no imaginário lusitano como uma vitória da evangelização sobre reis negros africanos (SOUZA, 2005, p. 85). A autoridade granjeada com o status majestático conferia prestígio perante os demais confrades escravos e libertos. Era também uma época em que o estatuto da escravidão agia poderosamente para subordinar os negros e mestiços, e também desdenhava desses rituais que celebravam a ascensão simbólica de negros.

Por isso que, não raro, ocorria o embate entre o clero e os membros das irmandades, entre as fronteiras

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da celebração leiga e a da religiosa, entre o poder civil e os festeiros. A tensão nascida em ambiente escravista de fratura social severa, atravessava toda a irmandade. Seus festejos sempre foram acolhidos com reserva pela igreja e governo civil, a ponto de forçar mudanças no folguedo. De um lado, a igreja a reclamar pela pureza dos ritos católicos, de outro, as autoridades civis a temer por este instante de autonomia dos negros momentaneamente enobrecidos (BORGES, 2005, p. 61). Interessante é que até os dias de hoje estes conflitos ainda estão presentes nas relações internas e externas das irmandades.

cAbedAl finAnceiro dAs irmAndAdes

O grau de independência das confrarias dependia do nível de organização e do vigor financeiro das asso-ciações. Grande parte do que as irmandades possuíam era fruto de contribuições dos irmãos (mensalidades, anuidade), de esmolas coletadas pelas vilas, de bens deixados em herança por irmãos falecidos e raramente de aluguéis de imóveis.

Os “peditórios” em Minas Gerais, por exemplo, quando liberados pela Coroa, eram realizados pelos irmãos de mesa ou juízes. Estes mamposteiros percorriam as vilas envergando a opa da irmandade e uma caixa com a imagem de Nossa Senhora do Rosário. Alfaias que legitimavam

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a esmola e a satisfação do cristão que via ali uma doação direta à santa (BORGES, 2005, p. 33). No Seridó as ir-mandades arrecadavam donativos dos cidadãos antes e durante a festa.

Estas reservas financeiras serviam para organizar a devoção, para os festejos e, na época da escravidão, raramente para a compra de alforria, devido ao alto custo da liberdade e baixa capitalização da confraria. Mais que isto, financiavam os apropriados serviços fúnebres católicos dos irmãos: missas, toques de sinos e sepultura cristã no interior das igrejas da irmandade.

diversAs festAs, reinAdos diversos

As práticas de coroação e investidura do séquito variavam conforme as condições locais. Devido à mesti-çagem cultural e à diversidade geográfica, as festas das irmandades do Rosário tomaram formas diferentes. No Seridó os festejos são realizados com danças que simulam um combate (ou sua preparação) e coreografam o cortejo dos reis pelas ruas e igrejas. Outros elementos podem ser realçados em uma ou outra irmandade: missas, toques de sino, procissões, banquetes e coroação.

A estrutura geral das cortes das irmandades é formada, no topo, por Rei e Rainha, seguidos por juízes. Para os postulantes, ocupar tais cargos demandava contribuições

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financeiras significativas, de sorte que aqueles que con-corriam a estas posições deveriam possuir cabedal ou bons patrocinadores. Não era impossível escravos eleitos reis adiarem a compra da alforria devido às despesas com sua festa de coroação. Abaixo dos “magistrados” operavam o “escrivão” e/ou “tesoureiro”. Este último era geralmente um homem branco, contabilista e fiscali-zador livre do mundo escravo. Era escolhido também por dominar o código da escrita e da leitura. Na base da irmandade ficavam os membros da mesa diretora e os inúmeros irmãos sem postos.

A fortunA míticA

A festa da irmandade revela uma versão vitoriosa dos negros. Na celebração eles são os escolhidos, são aqueles que por aclamação são socialmente mais importantes. Na festa, as dignidades nobiliárquicas alcançadas se contrapõem ao modesto cotidiano material que envolve parte dos integrantes das irmandades no Seridó. A medida de “povo escolhido” é palpável na narrativa do mito, que ainda circula na cidade de Jardim do Seridó e em versões próximas, repetidas em outras localidades.

Narra o mito que, em tempos remotos, os brancos encontraram uma imagem de Nossa Senhora do Rosário em uma ilha (que segundo as diferentes versões pode ser

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um tronco ou uma serra ou ainda outro local) e tentaram trazê-la para o Seridó. Porém, misteriosamente, a imagem sempre voltava para o seu lugar de origem. O definitivo traslado somente se efetivou quando os negros resgata-ram a imagem, ao som de batuques e ao passo da dança de pulos (AMARAL, 2007).

irmAndAde dos negros do rosário de cAicó

Na pecuária colonial sertaneja a mão-de-obra escrava negra foi indispensável. Se fomos vaqueiros nos primeiros tempos coloniais, foi em meio à população de negros e mestiços que em largos períodos foi superior à população branca. Em nossas pesquisas sobre o século XVIII, os escravos representavam 20,25 % da riqueza dos fazendeiros seridoenses, compondo junto com as terras e o gado, 79 % de tudo que os seridoenses proprietários possuíam (MACÊDO, 2007).

As irmandades negras foram se proliferando à medida que a colonização portuguesa foi se interio-rizando no Brasil e ao passo em que os escravos se multiplicaram nas terras recém-colonizadas. A primeira confraria do Seridó nasceu próxima à época da sacra-mentação territorial da região. A Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana foi criada em 1735 e já em 1771 foi criada, por iniciativa de um grupo de negros cativos e

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livres, a irmandade do Rosário dos Homens Pretos. No início a irmandade se congregava na igreja de Sant’Ana, orago da sede da freguesia, enquanto seus membros acumulavam recursos financeiros para a construção de um templo próprio, que foi erigido na segunda metade do século XVIII. Embora não se saiba com exatidão a data da construção, sabemos que em 1788 já eram realizados sepultamentos no santuário (BORGES, 2000).

Data de 16 de junho de 1771 o documento intitulado Termo de Aceitação que Fazem os Irmãos das Constitui-ções deste Compromisso. Nele constam “as constituições do compromisso da irmandade”, que deviam ser seguidas e respeitadas por todos os seus membros. Em 9 de feve-reiro do ano seguinte o Termo foi enviado para Portugal para ser avaliado pela Mesa de Consciência e Ordem. Neste documento foi composta o que seria a primeira Mesa da irmandade: Sebastião Pereira, rei dos Congos; Maria José Neves, rainha do Congo; Afonso Pereira, juiz; Luzia Gomes, juíza; José Mendes, escrivão; Maria Tereza, escrivã; José Gomes Vilela, Manoel Fernandes Jorge, João Alves dos Santos, Joaquim Pereira da Silva, João Gomes Vilela, Antônio Fernandes de Souza, Manoel Alves dos Santos, Miguel Flores, João Gonçalves Melo, Paulo Fernandes; Manoel Pereira, procurador; Ana Maria das Neves, Manoel Gonçalves Pereira; Francisco Xavier dos Santos, procurador; Manoel Gonçalves Melo, tesoureiro.

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O tesoureiro, segundo o documento, deveria ser obri-gatoriamente branco. Em 27 de dezembro de 1773 o Compromisso (estatuto) da irmandade foi aprovado por D. José, rei de Portugal, que oficializou a instalação da primeira mesa administrativa da irmandade (BORGES, 2000).

Quatro reinados compõem atualmente a irmandade do Rosário de Caicó: Samanaú, São João do Sabugi, Rio do Peixe e Riacho de Fora. Um sistema de rodízio anual determina qual desses reinados irá indicar reis e juízes (BORGES, 2000).

Hoje a abertura da festa é marcada pelo repicar dos sinos do santuário. No mesmo dia acontece a pas-seata com o Estandarte de Nossa Senhora do Rosário e a primeira novena. Em um costume que cessou nos últimos anos, o grupo de lanceiros, bandeira e músicos participava da alvorada e se apresentava matinalmente pela cidade, recolhendo doações. À noite escoltavam o reinado até a igreja e após a novena voltavam a dançar. Atualmente somente estas últimas atividades ocorrem, sendo mais frequente a presença do grupo de folguedo na solenidade de encerramento, quando acontece a coroação dos novos reis e procissão com a imagem de Nossa Senhora do Rosário.

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irmAndAdes do rosário do seridó

Outros grupos ligados à devoção do Rosário foram criados na região. Documentos de arquivos seridoenses dão conta da existência dessas confrarias em Currais Novos, Acari, Serra Negra do Norte e Jardim de Piranhas. Hoje continuam atuantes somente as confrarias de Caicó, Jardim do Seridó e Serra Negra do Norte.

Não há pesquisas suficientes que expliquem os motivos da desativação da agremiação de Currais Novos. Ela teria sido fundada ainda no final do século XIX. Na primeira década do século XX ainda era relacionada entre as irmandades da paróquia (LIVRO... 1904-1915, p. 112). É possível que tenha sido refundada junto ao altar de São Vicente no dia 26 de outubro de 1940, mas tempos depois passou muitos anos sem funcionar ( JUNIOR, 2012). Ao que tudo indica não teve, e não tem, a forte conotação étnica das congêneres dos séculos XVIII e XIX, embora antes da década de 40, tenha se organizado com sede e formado corte com reinado (GALVÃO, 2013; QUINTINO FILHO, 1987, p. 65-66). Por iniciativa de leigos, sua reati-vação ocorreu no ano de 2011 nas festividades em honra de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da comunidade do bairro do Brejo, em Currais Novos.

Por sua vez, a irmandade serra-negrense foi refun-dada no ano de 1990, através do empenho de Geraldo

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Eustáquio da Silva, conhecido popularmente por “Geraldo de Negro Velho”, falecido em 2005. Há indícios de que o documento de criação desta irmandade seja de 1871 (LIMA, 2010). Entre 1990 e 1993 o grupo foi organizado e construída a Igreja do Rosário de Serra Negra do Norte, inaugurada de forma incompleta durante primeira festa, em 1993, quando foram coroados reis Geraldo Eustáquio da Silva e Andreia Sandra da Silva (GOIS, 2013).

As origens da festa do Rosário de Acari remontam ao ano de 1867, quando a primitiva igreja de Nossa Senhora da Conceição (cuja imagem fora transladada) foi dedi-cada à Nossa Senhora do Rosário. No entanto, somente no fim da década de 1930 é que a celebração da Festa do Rosário foi fixada entre a última semana de dezembro e o primeiro dia do ano-novo. A irmandade existia por aquela época, hoje não mais (MEDEIROS, 2007). Espo-radicamente, nos dias de hoje, a irmandade de Jardim do Seridó faz apresentações durante a Festa de Acari.

Sobre a presença da irmandade do Rosário em Jardim de Piranhas não temos pesquisas mais maduras. O historiador Diego Marinho Gois nos informou que há naquela cidade uma Casa do Rosário, como presença arquitetônica da existência de uma associação fraternal. Dado que reclama por pesquisas mais aprofundadas.

No ano de 1863 é datada, tradicionalmente, a criação da irmandade dos negros do Rosário de Jardim do Seridó.

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Seu fundador seria Joaquim Antônio do Nascimento. Até a Abolição da escravidão no Brasil, aquela confraria foi composta pelos negros cativos e forros da Vila de Jardim do Seridó e da comunidade Boa Vista.

Não fugindo à regra das irmandades negras, a de Jardim do Seridó era dirigida por uma mesa de negros, mas a tesouraria era ocupada por um homem “branco e de posses”. Esta irmandade guarda muitos aspectos comuns com as congêneres, mas diferentemente do que acontece em Caicó, a Festa do Rosário jardinense tem duração de apenas três dias e ocorre em conjunto à festa de São Sebastião.

As irmAndAdes se irmAnAm

As irmandades do Rosário que continuam a existir no Seridó possuem características muito semelhantes. A organização atual das confrarias guarda traços ainda coloniais: corte composta por reis, juízes e súditos. Os cargos de reis e juízes estão divididos em dois grupos: “perpétuos” e “do ano”. Os reis, rainhas, juízes e juízas perpétuos só são substituídos em caso de falecimento, renúncia ou outro motivo de grande significação para as irmandades. Nesses casos, os membros das irmandades, em assembleia, apontam os substitutos. Já os reis e juízes do ano são escolhidos pelos membros da irmandade em encontro realizado geralmente ao término da festa.

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Durante todo o período da Festa do Rosário, especial-mente o grupo de músicos e “saltadores” desfila pelas ruas da cidade, apresentando sua coreografia e arrecadando donativos para a irmandade. Não raro dançam em casas onde são convidados e lá são recompensados com ofertas monetárias pelos anfitriões. Todas as noites de ofício religioso seguem em cortejo conduzindo a corte para a igreja, escoltados pelos lanceiros, bandeiras, tambores e pífaros.

Uma parcela de membros da irmandade integra o grupo de batedores de caixas, bumbos, tocadores de pífanos, dançarinos (“saltadores”) e porta-bandeira. Este grupo toca e dança uma música completamente instru-mental, com ênfase ritmo-percussiva muito pronunciada. Os dançarinos trazem geralmente nas mãos um bastão enfeitado por fitas coloridas, assemelha-se a uma lança (espontão). Daí o bailado que executam receber o nome de “Dança do Espontão”. O porta-bandeira costuma vir à frente do grupo, carregando uma bandeira na qual se encontra a imagem de Nossa Senhora do Rosário.

É comum que em eventos ocorridos fora do âmbito religioso, tocadores, dançarinos e porta-bandeira se apre-sentem em nome das irmandades, uma vez que reis e juízes geralmente só se apresentam durante as festivida-des religiosas. Em todos esses aspectos as irmandades do Rosário seridoenses guardam semelhanças. No entanto,

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elas se fazem diferentes quanto à forma de administração, de maior ou menor independência da Igreja católica, e na maneira de tocar e dançar, visto que o grupo jardinense pratica uma música e dança com ritmo mais acelerado.

Outro aspecto que diferencia as irmandades seri-doenses diz respeito às datas em que as mesmas come-moram as festividades do Rosário em suas respectivas cidades e comunidades. Enquanto em Jardim do Seridó a celebração se realiza no período de 30 de dezembro ao primeiro dia do ano seguinte, em Caicó a Festa do Rosário acontece no mês de outubro, entre os dias 20 e 30. Já a Comunidade Boa Vista dos Negros festeja sua devoção em sua própria capela entre os dias 5 e 14 de outubro. Em Caicó, Acari e Serra Negra existem igrejas dedicadas à Senhora do Rosário. Na Igreja matriz de Jardim do Seridó, dedicada à Nossa Senhora da Conceição, há um altar consagrado à Senhora do Rosário, ao qual se devota a irmandade jardinense.

monumento identitário

O “branqueamento” da história seridoense é revela-dor de estratégias sociais autoritárias. Surge quando de-terminados grupos querem se afirmar no poder a qualquer custo, inclusive invisibilizando a diferença. Este procedi-mento era moeda corrente na algibeira historiográfica,

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memorialística e não escapava até ao discurso médio sobre a região, proferido pelos próprios seridoenses ou estudiosos renomados. Câmara Cascudo, em viagem pelo Seridó, a despeito de seu treinado olho etnográfico, não registrou traços significativos da presença negra entre os seridoenses (CASCUDO, 1984). No entanto, ele mesmo escreveu sobre a irmandade dos Negros do Rosário de Caicó. Não havia como encolher a participação dos afro--brasileiros na história do sertão pecuarista, as irman-dades negras, dado sua persistência e estatura histórica, eram monumentos desta memória, que para além da coreografia folclorizada, varam com seus espontões quase três séculos de resistência identitária.

referênciAs:

AMARAL, Francisca Benvinda Vieira. A festa do Rosário de Jar-dim do Seridó: depoimento. Entrevista concedida à Sebastião Genicarlos dos Santos, Rosenilson da Silva Santos e Joaquim José Ferreira Targino. Jardim do Seridó, 6 set 2007.

BORGES, Cláudia C. do Lago. Cativos do sertão: um estudo da escravidão no Seridó: Rio Grande do Norte. Dissertação (Mes-trado em História) – Faculdade de História, Unesp, Franca.

BORGES, Lília Maia. Escravos e libertos nas irmandades do Ro-sário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: século XVIII e XIX. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2000.

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CASCUDO, Luís da Câmara. Viajando o sertão. 3. ed. Natal: Companhia Editora do Rio Grande do Norte/Fundação José Augusto, 1984.

DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó Antigo. Ga-ranhuns: O Monitor, 1961.

EDIVALDO JÚNIOR. Confraria do Rosário. out. 2012. Disponí-vel em: <http://religiosidadeemcn.blogspot.com.br/p/comfra-ria.html>. Acesso em 27 mar. 2013.

GALVÃO, Willian Pinheiro. Re: sobre a confraria do Rosário em Currais [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 27 mar. 2013.

GOIS, Diego Marinho de. Re: negros do rosário de Serra Negra [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 25 mar. 2013.

GURGEL, Deífilo. Espaço e tempo do folclore potiguar. Natal: Prefeitura de Natal, 1999.

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Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Jardim do Seridó-RN: entre história e memória

diego Marinho de goisdepartamento de história (Santarém), uFoPa

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Anualmente, a cidade de Jardim do Seridó celebra a tradicional Festa de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário, cujo marco inaugural é o ano de 1863. Na segunda metade do século XIX, a Villa do Jardim, como era denominada a localidade, desmembrada da cidade do Acari em 1858, vivenciava uma época de intensas trans-formações políticas, econômicas e sociais, resultantes do processo de emancipação religiosa e política. Em 1856, foi criada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Azevedo, que, dois anos depois, tornou-se Villa do Jardim. Todo esse processo foi marcado por mudanças na formação de um novo espaço público, que deixava de ser Povoado, passando a ter independência no âmbito de suas ações.

No contexto religioso, houve a nomeação de um vigário, o Padre Francisco Justino Pereira de Brito, de-signado para cuidar dos assuntos espirituais, enquanto, em seu contexto político, a Vila era administrada pelo presidente da Câmara, José Barbosa Cordeiro, que, jun-tamente com os demais vereadores, administrava o bem público ou os assuntos temporais.

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Com base em um abaixo-assinado escrito por volta de 1885 pelos moradores da então Povoação da Concei-ção do Azevedo, solicitando a elevação do povoado à categoria de Vila, a localidade era descrita como:

Huma das mais vantajosas d’esta Província para o estabelecimento de hum grande Povoado, e Fóco de Comércio e Civilização, por ser ela onde passa com preferência à outras a estrada pública dos gados vacum e cavallar, que das Províncias do Piauhy e Ceará, do Oeste, e Norte desta Província se encaminhão para as feiras de Pedras de Fogo, e outras da Paraíba e Pernambuco. (MARTINIANO NETO, 1993)

Na segunda metade do século XIX, o espaço jardinen-se trocava o seu aspecto puramente rural por uma nova configuração, dando suporte a uma estrutura urbana, edificada de acordo com as exigências da sociedade. Em 1860, a antiga capela de Nossa Senhora da Conceição foi transformada em Igreja Matriz, cujo trabalho foi super-visionado pelo Padre Francisco Justino Pereira de Brito. Com o erguimento de um templo maior, chegou para habitar, em um dos altares laterais, a diminuta imagem de Nossa Senhora do Rosário. O antropólogo Veríssimo de Melo conheceu essa imagem em 1963, descrevendo-a da seguinte forma:

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Esta imagem, que fotografamos, é uma velha e expressiva peça de madeira, de meio metro, talvez, de altura, com as características das imagens portuguesas. A informação que circulava era de que a imagem tem mais de cem anos. A festa teria surgido depois da chegada da imagem a Jardim do Seridó. (MELO, 1964)

Com base nas informações supracitadas, podemos concluir que, com a chegada da imagem, surgiu a devoção à Virgem do Rosário, cujo culto, no Brasil, fora confiado, sobretudo, aos negros, libertos ou cativos. Esse evento, portanto, presenteou, iconograficamente, a antiga Villa do Jardim, atual cidade de Jardim do Seridó.

É importante registrar que tal devoção foi trans-formada em Festa “em 1863, por Joaquim Antônio do Nascimento, tendo como primeiro batedor de caixa Luiz Joaquim de Santana, tambor-mor Marcelino da Boa Vista e capitão de lança Francisco do Logradouro.” (REVISTA DA FESTA, 1978)

A respeito da chegada da imagem de Nossa Senhora do Rosário à Villa do Jardim, a história oral conservou diversas narrativas, que eram passadas de geração a geração, de pais para filhos. Vejamos a narrativa da senhora Inácia Maria da Conceição, Inácia Caçote (in memoriam), 90 anos de idade na época da entrevista e o depoimento do senhor José Fernandes do Amaral:

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Meus avôs falava que ela apareceu numa serra, aí foram buscar com músiga [música], chegava butava, aí ela voltava pra traz, pra o mesmo lugar. Depois foram buscar as caixinhas, essas caixinhas, os tambor com seus espontões, aí foram buscar, aí trouxeram, ela ficou, aí ficou chamando ela de Nossa Senhora do Rosário; foram os negros que vieram, que foram buscar. (CONCEIçÃO, 2005)

Como o pessoá diz, ela vivia lá num mato, lá numa ilha, num sabe? aí acharam num tronco, aí pegaram, trouxeram ela pra cá, aí quando foi no outro dia ela voltou pra lá sem ninguém levar [...] porque essa santa tava com nós aqui, vinha trazer pra cá, aí ela voltava pra lá, aí quando foi pra ficar permenente [permanente], assim a história diz, eu num sei muito bem, aí levaram, aí vamos fazer a festa, aí foram, os negros foram pra lá, trouxeram ela debaixo da procissão, a batucada, começou a batucada. Trouxeram ela praqui, aí ela ficou, ela ficou, num voltou mais. (AMARAL, 2005)

Estas narrativas representam um arquétipo em con-tínua criação, pois a voz do recitante, no momento da performance, o atualiza por um momento. Essa “movên-cia” do texto está relacionada à flexibilidade e liberdade das transmissões vocais, conforme aponta Paul Zumthor (1993). Nelas se encontram dados semelhantes, como a busca de outros sujeitos pra legitimar suas falas: “o pessoal diz”, “meu avô falava” e de uma santa católica que “ficou” após ser cultuada pelos negros; porém, por serem “palavra viva”, essas narrativas vão sendo repensadas e reescritas na memória, a partir de efeitos da realidade no cotidiano. As narrativas citadas apresentam lugares diferentes para o aparecimento da Virgem do Rosário. O senhor Amaral

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diz que ela surgiu num “mato”, numa “ilha” e num “tronco”, enquanto Dona Inácia focaliza tal aparição “numa serra”, o que denota que tais narrativas são construídas a partir de referenciais do presente dos seus intérpretes.

Embora a Festa de Nossa Senhora do Rosário tenha iniciado em 1863, a criação da irmandade do Rosário, sociedade religiosa reconhecida pela Igreja e também pelo Estado, só aconteceu no ano de 1885, quando a Assembleia Legislativa da Província do Rio Grande do Norte aprovou o estatuto da congregação. Nesse período, a Igreja e o Estado estavam ligados através dos laços do Padroado, sendo o Estado responsável por alguns assuntos religiosos, entre eles a criação das irmandades. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário, da cidade de Jardim do Seridó foi, então, efetivamente criada através da Lei nº 951, de 16 de abril de 1885.

Com base nessa Lei ou Compromisso, tornou-se possível perceber como era formada a irmandade do Rosário, uma vez que a Lei dispõe sobre a estrutura organizacional da sociedade. O artigo 1º institui a irman-dade de Nossa Senhora do Rosário na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, “cuja imagem está collocada na igreja matriz desta cidade”, enquanto os incisos seguintes dispõem sobre as pessoas que devem fazer parte dessa grei, devendo haver “um juiz, uma juíza, por eleição, um thesoureiro, um procurador e um escrivão”.

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Ao tesoureiro, entre outras funções, cabe “determinar de accordo com a mesa a solenidade da Santa, segundo os dinheiros existentes em seu poder”. As solenidades são celebradas nos dias 30 e 31 de dezembro e 1º de janeiro de cada ano, quando a Igreja comemora o dia de Santa Maria Mãe de Deus, sendo que, na cidade de Jardim do Seridó, é comemorado, nesta data, o dia da festa de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião.

A festa conta com a participação de dois grupos de negros do Rosário: o da cidade de Jardim do Seridó, também chamado de “Caçotes”, e o da comunidade rural Boa Vista dos negros, localizada atualmente no municí-pio de Parelhas. Esses dois grupos dividem as funções nos festejos, seja na parte referente à dança do Espontão, seja no Reinado.

Cada sujeito constrói suas memórias, seus próprios textos de festas, de acordo com suas vivências passadas. As festas, ou suas lembranças, não são únicas para os negros do Rosário. Assim, para Dona Inácia, do grupo “Caçote”, as “velhas” festas dos negros aconteciam da seguinte forma:

Ali eles tiravam pra passar o dia batendo, aqueles três dias batendo caixa e tirava aquele dinheiro. Aí no dia da festa saía um com a coroa e tirava uma esmola pra Nossa Senhora do Rosário, num sabe? Como agora ainda tá sendo, aí pronto era assim, só não tinha essa história de música. Aí depois a gente ia pra casa de Doutor Paulo, depois da missa de onze

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horas, de dez, neste tempo era de onze, hoje em dia é dez. A gente ia pra Doutor Paulo; e no dia do encontramento, do encontro da rainha, a gente vinha pra igreja de três horas, aí havia a coroação, a gente subia pra casa de Monsenhor Ernesto. Lá ele dava um, umas coisas, fazia, dava um lanche, dava uns negócios a eles. Eles batiam caixas lá um pedaço, a gente voltava pra trás, ia tudo deixar na casa do Rosário; cada cá vinha pra suas casas. Aí adepois começaram a botar dança de rua, aí pronto, já foi remodelando o encontro dos negros, mas de primeiro só era assim, como eu ‘tava dizendo. (CONCEIçÃO, 2005).

A história contada por Dona Inácia gira em torno da performance de coroação dos reis, o que denota o lugar ocupado por essa senhora nas festas. Dona Inácia foi eleita rainha perpétua em 1933. Esse fato tornou-se um marco em sua memória, de tal forma que suas lembranças sobre as festas dos negros sempre eram contadas a partir desse fragmento. Além disso, sua narrativa é marcada também pelo passar “três dias batendo caixa”, uma alusão ao lugar social do seu pai Antônio Caçote, como chefe da festa e responsável pela dança do Espontão.

O foco de sua narrativa incide ainda no fato de ter sido essa tradição uma prática legitimada por pessoas de destaque na cidade. Assim, a apresentação de sujeitos como “Doutor Paulo” e “Monsenhor Ernesto” consiste em ressaltar que essas festas são apoiadas por pessoas de melhores condições financeiras, que, embora não estejam presentes, assistindo ao ritual de coroação dos negros,

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preparam “um lanche”, enfim, incentivam as festas. Por-tanto, para Dona Inácia, destacam-se, como momentos principais dessas festas, o “bater caixa três dias”, “a coro-ação” e os encontros nas casas dos jardinenses.

Já para o senhor Zé Vieira ( falecido), antigo morador da comunidade Boa Vista, as festas eram boas e tinham outras características:

As coisas mais bonita que há naquela festa é a Alvorada. No meu tempo, a gente, os negros mais velhos daqui, quando era quatro e meia se levantava todo mundo da casa do Rosário. Ali pegava aquelas caixas, aqueles tambores, pegava e ia lá pro patamar da igreja. Quando soltava o foguetão das 5 horas, aí tocava caixa, tocava música, tocava tudo, tudo. Às vezes esses mais velhos daqui, parece que já morreu quase tudo, aí eles chegavam na casa do Rosário às 7 horas, pra tomar café, tomar banho. Agora hoje não tá assim, não tá sendo assim, eu não sei se esse ano vai ser, mas não tá mais sendo assim. Alvorada não tem mais, porque os saltadores são tudo novo, aí vai pras bandas, aí quando chega de quatro e meia, cinco horas da madrugada, é, da manhã, aí não dá mais tempo ir pra igreja. (VIEIRA, 2005).

Nessa narrativa são apresentadas duas imagens de festas: a festa do “meu tempo”, cujo destaque era a alvorada das 5 horas da manhã, e a festa “hoje”, que nem “alvorada não tem mais”. A partir dessa perspectiva, percebe-se que, para Zé Vieira, o passado é visto de forma maravilhosa, diferentemente do presente desafiador ou destruidor das coisas boas do passado, pois este, com

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suas novas atrações, como as “bandas” de forró, faz com que as alvoradas do passado deixem de existir.

Perante as lembranças (re)vividas, pode-se concluir que essas narrativas são, como afirma Certeau (1994), a possibilidade de representar as trajetórias táticas que, segundo critérios próprios, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos da produção para, a partir deles, compor histórias originais.

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referênciAs:

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VIEIRA, José Herculano. Entrevista concedida a Diego Marinho de Gois, Jardim do Seridó, 30 dez. 2005.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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A irmandade de Jardim do Seridó e os folcloristas: pensando a visibilidade e a representação dos negros do Rosário

bruno goulart doutorando em antropologia, unb

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Figura 1: O rei perpétuo, Seu Enoc, na casa do Rosário. Ao lado, a coroa azul do reinado de Caicó. (Laísa Marra, 01/01/2011)

As irmandades de negros, conhecidas em muitas regiões por suas congadas, como por exemplo em Minas Gerais e Goiás, são uma forma de organização religiosa bastante difundida entre a população afro-brasileira. As associações de negros surgiram, no Brasil, nos finais do

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século XVI e inícios do século XVII, em pleno período es-cravocrata. Essas “irmandades de homens pretos”, como se referiam diversos intelectuais, ficaram conhecidas como a forma institucional em que se expressou o catoli-cismo negro no Brasil. Entre os principais santos católicos de devoção destas estão Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito. A principal atividade realizada por elas era a organização de festas anuais para o santo de devoção, sendo a data de realização variável de acordo com o santo e o lugar onde se localiza a irmandade.

Um fato curioso é que o catolicismo negro nunca se separou institucionalmente da igreja católica (BASTIDE, 1971). Dessa forma, essas associações cristãs não eram institucionalmente independentes. As lideranças reli-giosas, por exemplo, continuaram a ser vinculadas ao catolicismo institucionalizado no Brasil, e a maior parte das celebrações religiosas dos negros era a mesma que a dos brancos. Com exceção, é claro, dos momentos das festas dos santos, quando podemos encontrar uma forma de devoção religiosa que se diferencia do “catolicismo tradicional”, “da Igreja”. Durante esses períodos de festa, então, além das formas de devoção organizadas em torno de missas e procissões, temos ainda as danças, músicas e coroações de reis e rainhas negros. E mesmo essas devo-ções “não tradicionais” eram feitas, se não com o apoio da Igreja, pelo menos com sua tolerância (BASTIDE, 1971).

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Na região do Seridó do Rio Grande do Norte essas irmandades tiveram uma visibilidade considerável, ao contrário da população negra no geral, tida como quase ausente na região. É verdade que antes da cultura do algodão tomar força, o gado exigia pouca mão de obra escrava. O que acontece, porém, é que esse dado histórico foi interpretado pelos historiadores do estado como uma quase ausência de negros no Seridó. Tal discurso pode ser encontrado nos escritos de vários intelectuais como, por exemplo, Cascudo (1955, p. 52, 520) e Veríssimo de Melo (1977, p. 9-10), que subestimavam a presença negra no Seridó e afirmavam uma colonização predominantemen-te de brancos portugueses para a região.

O que aparece como paradoxal nos escritos desses dois folcloristas é que foram eles, também, que irão fazer os primeiros registros e referências à irmandade publicados em livros de circulação nacional. Apesar de afirmarem que o Seridó era uma região “branca”, contri-buíram significativamente para a visibilidade que a ir-mandade tem hoje no estado potiguar. Inclusive ela é hoje representativa no folclore, sendo até mesmo chamada a se apresentar na capital do estado, Natal, durante as co-memorações do dia do folclore, como ocorreu em agosto de 2011, no evento do governo estadual Agosto da Alegria.

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Pensando na importância destes dois folcloristas para o contexto da irmandade de Jardim do Seridó, gostaria de apresentar aqui as representações que estes intelectuais fizeram da irmandade de Jardim. Minha intenção aqui é dupla, por um lado tem um esforço peda-gógico, no sentido de ser uma tentativa de disponibilizar essas representações dispersas sobre a irmandade em um único lugar, mas por outro lado tem também um esforço crítico, ou seja, apresentar também uma reflexão pessoal sobre essas mesmas representações.

Contudo, antes que possamos apresentar as repre-sentações dos folcloristas, gostaria de apresentar, de maneira introdutória, minha representação tipológica da irmandade. Meu intuito é situar o leitor não iniciado aos elementos principais da irmandade de Jardim, para que, então, a discussão posterior faça sentido.

o que é A irmAndAde de jArdim: umA def in i -ção tipológicA

A irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião de Jardim do Seridó é composta pelo grupo que se autodenomina e é denominado de negros do Rosário. É composta por dois grupos provindos de localidades di-ferentes, os negros de Jardim, provenientes da cidade que contém a sede da irmandade (a Casa do Rosário), Jardim

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do Seridó, e os negros da Boa Vista, da comunidade qui-lombola de mesmo nome, localizada no município de Parelhas. A principal atividade realizada pela irmandade é a festa anual em devoção à Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, que acontece entre os dias 30, 31 de dezembro e 1º de janeiro.

A festa é conhecida pela dança e música do grupo, apresentadas durante os cortejos e procissão que acon-tecem nos dias de festa. A dança é conhecida como dança do espontão e se encontra presente, também, em outras irmandades do Seridó, apesar dos movimentos da dança variarem de cidade para cidade. A dança recebe esse nome porque é performatizada com uma lança enfeitada com fitas coloridas nas pontas. Já a banda responsável pela música é uma tradicional banda de pífaro composta pelos seguintes instrumentos: pífaro, caixa, bumbo e tarol. Entre as atrações da festa temos, também, a coroação do rei e da rainha do ano, e cargos alternados anualmente entre os negros da Boa Vista e os negros de Jardim.

Os negros do Rosário estão divididos em cargos rituais que, apesar de algumas variações ao longo do tempo, se mantêm mais ou menos estáveis. Há dois grandes grupos: os membros do pulo, responsáveis pela dança do espontão e pela banda de pífaro, e os membros do reinado que desfilam atrás dos membros do pulo

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durante os cortejos e procissões. Entre os membros do pulo temos os seguintes cargos: o chefe da irmandade, responsável por treinar a coreografia encenada durante a dança; o porta-bandeira, que vai à frente das apresen-tações dançando com a bandeira do santo nas mãos1; o capitão de lança, que substitui o chefe na sua ausência; o restante dos membros do pulo; e os músicos, que tocam instrumentos de caixa e pífaro (instrumento de sopro que é parecido com uma flauta tocada lateralmente). Com exceção dos músicos, todos os ocupantes desses cargos performatizam a dança do espontão.

Já o reinado conta com diversos cargos, como os guardas de honra, rei e rainha do ano, rei e rainha perpétuos, juiz e juíza, escrivão e escrivã, presidente e presidenta, além de dois juízes e juízas perpétuos. Como podemos ver pela designação dos cargos de rei, é possível dividi-los em dois: os perpétuos e os anuais. Os primeiros são vitalícios, e os segundos são trocados todos os anos. É claro que essa tipologia variou ao longo da história da irmandade. O relato apresentado aqui é apenas uma descrição que tomou como base minha experiência junto aos negros do Rosário entre os anos de 2010 e 2012. Agora gostaria de apresentar as representações feitas pelos folcloristas.

1 Geralmente são dois porta-bandeiras, dependendo da apresentação, um representa N. Sra do Rosário e o outro, São Sebastião.

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Figura 2: Os músicos da irmandade em apresentação na procissão em homenagem à padroeira da cidade: “Negão”, Antônio do Pífaro, Seu Assis e Robson, respectivamente (05/12/2010).

A irmAndAde de jArdim e os folcloristAs

A irmandade do Rosário de Jardim foi classificada pelos folcloristas como sendo uma das principais contri-buições negras à cultura nacional. De fato, a irmandade conta em sua performance com dois tipos de cargos rituais, os membros do pulo e o do reinado, os primeiros responsáveis pela música e dança do espontão e os se-gundos pelos cargos reais. Esses dois traços da irmanda-de foram primordiais nas classificações dos folcloristas.

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O reinado e a dança do espontão foram as principais características apontadas nas descrições dos folcloristas.

O reinado pode ser encontrado em várias manifes-tações culturais pelo país, como, por exemplo, nas festas de congadas. Inclusive as aproximações entre congadas e a festa do Rosário não se dá apenas na presença do reinado, pois ambas também possuem apresentações com danças “guerreiras”. Assim, nas categorizações dos livros tipo enciclopédicos dos folcloristas, encontramos referência à irmandade de Jardim do Seridó inserida em congadas ou dança do espontão. Ambas as tipologias entram no quadro classificatório das manifestações populares proposto por Mário de Andrade como danças dramáticas (1982).

Mário de Andrade via as danças dramáticas como performances que encenavam certos enredos de fundo religioso. Ele acrescenta também que três traços são característicos dessas danças: a presença dos cortejos − que na irmandade de Jardim configura a parte central de sua apresentação; a presença das reisadas, ou reinados − como é mais comum se referir à corte que se apresenta nos cortejos do contexto aqui em discussão; e o enredo, que encena a luta entre mouros e cristãos − característica sobre a qual não encontrei referência alguma na irman-dade de Jardim. De qualquer forma, essas noções irão influenciar o folclore do Rio Grande do Norte em toda a sua trajetória, como veremos agora.

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Câmara Cascudo, o intelectual mais reconhecido do estado potiguar, manteve uma relação de amizade com Mário de Andrade, trocando correspondência com o paulista durante um longo período (1924-1944). Os dois também viajaram pelo interior do Rio Grande do Norte durante a visita de Mário de Andrade à região Nordeste (em 1928-29)2. Foi nessa proximidade e no diálogo com o modernista que Cascudo desenvolveu sua obra. Por isso, muitas das expressões de Mário de Andrade, como a de danças dramáticas, foram tomadas de empréstimos para pensar as várias manifestações culturais do Rio Grande do Norte. É a partir dessas referências que o autor irá se referir à irmandade do Rosário, aqui em questão, tanto como congada, quanto como dança do espontão.

No Dicionário do folclore brasileiro, ao descrever a congada e as coroações de reis e rainhas negro(a)s, Câmara Cascudo se lembra da irmandade de Jardim do Seridó: “No Rio Grande do Norte (Caicó e Jardim do Seridó), a coroação resiste travestida de dança do espontão [...], onde há Rei e Rainha que vão solenemente à missa dominical acom-panhados de séquito, tambores e lanças, mas já coroados porque os sacerdotes recusam colaboração” (1962, p. 231)3.

2 Inclusive durante a visita de Mário de Andrade ao Rio Grande do Norte, os dois intelectuais visitaram a cidade de Jardim do Seridó.

3 Cabe apontar aqui que, atualmente, a coroação de reis e rainhas acontece antes da missa noturna em frente à igreja Matriz.

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Cascudo também classifica a irmandade na dança do Espontão, mais especificamente ao definir o espontão como uma

[...] meia lança usada como distintivo pelos sargentos de infantaria até fins do séc. XVIII, spontone, esponton, com uso idêntico, desde a Idade Média, em França e península italiana. Denomina uma dança guerreira, que acompanhava a procissão e festa de Nossa Senhora do Rosário no Nordeste do Brasil. A dança do espontão ainda existe nos municípios de Jardim do Seridó e Caicó, no Rio Grande do Norte, onde a elas assisti em 1943 e 1944. Desde a madrugada de 31 de dezembro, um grupo de negros com espontões, uma lança e uma bandeira branca, percorre as ruas, ao som de três tambores trovejantes. O chefe é o portador da lança, capitão de lança. Nas residências visitadas, o grupo se detém e dança, agitando a lança e os espontões, em acenos guerreiros, saltos e recuos defensivos, num ad libitum impressionante. Não há canto. É bailado de guerra, ao som de tambor marcial (1962, p. 298).

Nas classificações que Cascudo propõe para enten-der a irmandade, a imposição do colonizador português é maior do que a influência propriamente negra, visto que se tratava de uma festa feita por negros; reconhece, no entanto, a contribuição negra para construção da identidade nacional. Assim como Mário de Andrade, o intelectual potiguar insiste no elemento europeu (latino) nas suas explicações sobre a irmandade. Sobre a dança, Cascudo busca as origens do espontão, objeto utilizado nas performances coreográficas, nas lanças dos sargentos de infantaria da Idade Média na França e Itália.

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Assim, apesar de Cascudo ter dado atenção à irmanda-de, ele minora a influência dos próprios negros, apontando apenas para a perspectiva da imposição do universo colo-nizador. A influência negra no folclore brasileiro se resume, aqui, a mímicas, ou repetições, de um universo ibérico (português). No entanto, Cascudo reconhece que esse universo, ao ser transposto para o Brasil, foi modificado. Assim, a mestiçagem e o hibridismo dessa manifestação cultural são valorizados apenas para atestar o sucesso do processo civilizatório português. Não que Câmara Cascudo não apresentasse, em alguns casos, origens africanas para explicar certas manifestações culturais. Contudo, no que se refere à irmandade de Jardim do Seridó, isso não ocorre. Coloquemos, por hora, essas críticas à parte. Acontece que muitos dos folcloristas posteriores a Cascudo irão trilhar os caminhos do mestre intelectual potiguar, tanto na preferência das manifestações culturais, como nos traços percebidos destas: a coroação dos reis e rainhas e a dança do espontão. Veríssimo de Melo, por exemplo – que visitou Jardim para presenciar a festa no ano de 1963 –, no seu livro encomendado pela FUNARTE, O Folclore do brasileiro – Rio Grande do Norte (1977), faz referência três vezes à irmandade de Jardim; como dança folclórica, como folguedo folclórico e quando estabelece um calendário com as principais festas do estado. Como dança folclórica o autor a enquadra na categoria “zabumbas”:

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Nas festas de coroação do rei e rainha dos pretos do ano, em Jardim do Seridó – 31 de dezembro e 1º de janeiro –, saem à rua os zabumbas. Formados por filas de pretos, dançam ao ritmo de duas caixas (tambores) e ao som de pífaros (‘pifa’, como chamam), empunhando bastões a que denominavam de ‘pontões’. (Ou espontões)

As músicas executadas pelos pífaros são alegres e expressivas. Registramos lá as melodias denominadas ‘Palmeirinha’, ‘Piauí’, ‘A mãe do bode eu sei quem é...’ (1977, p. 34)

Em relação aos folguedos folclóricos, o autor não menciona diretamente a irmandade de Jardim do Seridó. Dentro do subtópico “espontão”, em folguedos, encontra-mos a seguinte descrição:

O folclorista Alceu Maynard Araújo (1964) registrou um folguedo de pretos em Currais Novos (RN) [cidade próxima à Jardim do Seridó, que tinha irmandade do Rosário com apresentação da dança do espontão, mas hoje em dia se extinguiu], no ano de 1961. Durante as festas do Menino Deus e Reis apresentava-se o Espontão – dança e cortejo de doze a quinze figurantes, todos com espontão, espécie de bordão embandeirado. Vestem-se de branco (os ‘soldados’), usando casquetes e dançam ao ritmo de três caixas surdas.Pela descrição, parece tratar-se mais de um zabumba, do gênero que presenciamos em Jardim do Seridó-RN (1977, p. 38).

E por fim, quando trata do “calendário de festas tra-dicionais” do Rio Grande do Norte, no mês de dezembro, mais especificamente 31 do referido mês, aponta para a festa dos negros do Rosário:

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Festa dos Negros do Terço do Rosário, em Jardim do Seridó, ligada à irmandade do Pretos de N. S. do Rosário. O ponto alto das comemorações é a coroação do rei e rainha negros do ano. Os zabumbas de pretos da cidade e dos municípios vizinhos de Parelhas e Caicó percorrem as ruas nos dias 31 e 1 de janeiro. Há uma imagem barroca de N. S. do Rosário que é venerada pelos membros da irmandade tradicional4 (1977, p. 66).

O autor se restringe apenas a descrever certos elementos e classificar as irmandades. Ao contrário de Cascudo, não procura apresentar neste livro em especí-fico as origens da festa, porém, podemos perceber uma tendência a enquadrar a manifestação cultural em cate-gorias utilizadas para conceituar as manifestações afro--brasileiras, como é o caso de termos como zabumbas.

Ao se aprofundar na descrição das irmandades de negros no Seridó, principalmente as de Caicó e Jardim, Veríssimo de Melo afirma que:

Na verdade, além de sua aparente significação católica, N. S. do Rosário seria para os negros transposição do ídolo de sua religião primitiva. Talvez Iemanjá, para os sudaneses, principalmente. Ou a boneca, para os bantos, ídolo que sobrevive nos maracatus. Não podendo adorar seus deuses publicamente, – porque os senhores de engenho não permitiam o culto fetichista, – os escravos se filiavam às irmandades católicas, onde podiam tranquilamente, pelo processo que mais tarde se chamaria de sincretismo, – adorar nos santos da igreja católica romana os seus ídolos africanos. (1980, p. 109)

4 Hoje não é mais essa imagem que se utiliza nos dias de festa. A imagem foi substituída por outra mais contemporânea. Contudo, a imagem antiga ainda existe, e ela é de responsabilidade dos tesoureiros, que a guardam em suas casas enquanto ocuparem o cargo.

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Essa perspectiva não era própria de Veríssimo, mas uma influência de outros intelectuais que pesquisavam a religiosidade afro-brasileira nos anos 1960-70 no Brasil, autores como Roger Bastide.

Neste ponto podemos retomar agora a crítica que fiz à Cascudo e de sua ênfase nas origens lusitanas das irmandades. Veríssimo de Melo, ao contrário de Cascudo, aponta a origem da festa como sendo claramente de influência de cosmologias africanas, quando o mesmo afirma que a origem da festa se encontraria “disfarçada-mente” nas cosmologias que vieram da África. Contudo, essa perspectiva merece crítica pois percebe as irmanda-des enquanto reminiscência, algo do passado, que como aponta Melo, apresentam um “interesse apenas histórico e lúdico. Desgarrados de seu antigo contexto [...]” (1980, p. 108). Dois problemas podem ser verificados em Veríssimo de Melo quando fala das irmandades negras do Seridó: ao ver as irmandades como reminiscências e produtos de um arcaísmo, o autor deixa de percebê-las no pre-sente, algo que faz sentido e importa para as pessoas. Inclusive hoje, longe de ser uma manifestação cultural em extinção, a irmandade de Jardim tem se tornado um símbolo da afirmação da identidade negra na região do Seridó. O segundo problema é que, ao fazer referência a um passado africano, o folclorista busca inspiração em outros intelectuais, como Roger Bastide, e não nos

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próprios negros do Rosário. Assim não consegue entender a importância da irmandade para os e pelos próprios negros do Rosário.

considerAções finAis

É indiscutível que os folcloristas contribuíram signifi-cativamente para a visibilidade dos negros do Rosário em nível estadual e até mesmo nacional. Foram eles os respon-sáveis por colocar a irmandade do Rosário no circuito da cultura popular do estado, o que se desdobra, nos dias de hoje, em inúmeros espaços de apresentação e possibilida-des diversificadas de vivenciar a irmandade. Em Caicó, por exemplo, o grupo dos negros do Rosário da cidade gravou um CD com sua banda de pífaro juntamente com outro grupo folclórico, os caboclinhos de Ceará-Mirim. Ainda que tenha certas reservas em relação a esse processo, que não cabe discutir neste momento, no quesito visibilidade os folcloristas foram bastante eficazes.

Contudo, cabe nos perguntar que visibilidade é essa? Se por um lado os folcloristas, ao textualizarem a irman-dade, conseguiram tal feito, por outro, eles contribuíram para a criação de certos conceitos que atrapalham que enxerguemos a irmandade em todo seu potencial con-temporâneo. Os folcloristas acima referidos acreditavam que estavam diante de uma manifestação cultural que era

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uma sobrevivência, um resíduo de um tempo passado, no qual ela fazia sentido. Observavam, então, a irman-dade como uma espécie de fóssil vivo, que deveria ser registrado para que não se perdesse no esquecimento. Todavia, contrariando o pessimismo sentimental desses folcloristas, a festa continua forte mesmo com seus 150 anos de tradição, completados no ano de 2013. Ela é hoje um importante espaço de lazer, religiosidade, afirmação étnica e política para os negros do Rosário. É um espaço onde a parcela da população negra do Seridó está visível.

Cabe agora, na comemoração desses 150 anos de festa, os negros do Rosário se aproveitarem desse espaço aberto pelos folcloristas, de maneira autônoma. O poten-cial político e de afirmação étnica da festa hoje consiste, a meu ver, em aproveitar dessa visibilidade para formular suas próprias narrativas sobre a irmandade, discutir seus saberes e construir uma identidade positiva para o negro no Seridó, não mais marcada por preconceitos como “selvagens”, “bravos”, “perigosos”, e outras expressões de racismo. Mais que algo do passado, vejo a irmandade do Rosário como uma das possibilidades de futuro para que os jovens e antigos negros do Rosário desconstruam a posição invisível e estereotipada relegada aos negros no Seridó.

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Figura 3: Breno, membro do pulo, brincando com a filmadora durante a novena da festa (Laísa Marra, 30/12/2010)

referênciAs:

Andrade, Mário de. As danças dramáticas no Brasil. In:______. Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/Instituto Nacional do Livro, 1982. t. I

BASTIDE, Roger. “Os dois catolicismos”. In: As religiões africa-nas no Brasil. São Paulo: Ed. USP, 1971. v. I

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro: A-I. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, 1962.

______. História do Rio Grande do Norte. Rio: Mec, 1955.

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MELO, Veríssimo de. As confrarias de N.S. do Rosário como reação contra-aculturativa dos negros no Brasil. Afro-Ásia, n. 13, p. 107-118, 1980.

______. Folclore brasileiro – Rio Grande do Norte. Rio de Ja-neiro: FUNARTE, 1977.

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A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Acari/RN: memória e história

Fábio de Melo Morais graduado em ciências sociais, uFrn

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A região do Seridó apresenta uma particularidade que intriga os pesquisadores. Durante muito tempo, alguns historiadores defenderam que no Rio Grande do Norte a mão de obra escrava não foi expressiva. Por isso, a historiografia norte-rio-grandense clássica deixou poucas informações sobre o passado escravocrata e si-lenciou sobre a presença das populações afro-brasileiras. Entre os que defendiam essa visão, encontramos Câmara Cascudo (1955) e Veríssimo de Melo (1977), que, apesar de descreverem elementos que dizem respeito à presença afro-brasileira no Rio Grande do Norte, fizeram-no de forma superficial.

Essa visão clássica vem pouco a pouco sendo desconstruída por historiadores e antropólogos que analisam um maior conjunto de documentos históri-cos e constatam a presença de núcleos populacionais negros distribuídos em toda região. Um dos indicadores culturais da persistência negra no Seridó é a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos negros, que, durante todo o período colonial, contava com escravos cativos e forros. Tal confraria está presente nas principais cidades do Seridó, Caicó, Jardim de Piranhas, Acari, Jardim do Seridó, Currais Novos e São João do Sabugi e desempenha até hoje um papel significativo para o estudo da questão afro-brasileira do Rio Grande do Norte. A festa de Nossa Senhora do Rosário e a dança do Espontão revelam-se

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como importantes fontes de conhecimentos de um passado pouco analisado.

As irmandades negras serviam como espaço de sociabilidade, solidariedade e assistência entre os seus membros escravizados e os forros. No Seridó, iniciou na segunda metade do século XVIII. Segundo Cavignac (2007, p. 104),

No Seridó, encontramos o primeiro registro da festa (de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos) a partir de 1771 e da fundação da irmandade de Caicó, em 1773, e no decorrer do século XIX, nas outras cidades [...]. Podemos pensar que as irmandades negras se desenvolveram, sobretudo no século XIX, com a cultura do algodão, pois essa atividade requereu um número maior de mão de obra escrava.

Com o decorrer dos anos, algumas irmandades dei-xaram de funcionar e de realizar anualmente a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Outras continuaram ativas e mantêm suas atividades até os dias de hoje, a exemplo das irmandades das cidades de Caicó e Jardim do Seridó, junto com a comunidade da Boa Vista dos negros, situada na cidade de Parelhas/RN. Acari e Caicó têm uma igreja dedicada à Nossa Senhora do Rosário, originalmente a primeira capela da cidade, e mantêm a festa à Nossa Senhora do Rosário. Em Acari, não há mais a irmandade e a memória sobre ela está dispersa. Os registros memo-rialísticos e historiográficos locais dão mais ênfase aos seus fundadores portugueses. A ausência da população

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negra no período da escravidão, a princípio, parece ser uma ideia predominante em Acari. Porém, é difícil ima-ginar uma festa dedicada a Nossa Senhora do Rosário, santa católica dos afro-brasileiros na cidade, sem a pre-sença de um público festejante negro e mestiço.

Motivado por essa inquietação, desenvolvi pesquisas na cidade em busca de informações que pudessem ajudar a entender esse passado ainda pouco estudado. Descobri uma memória subterrânea (POLLAK, 1989) escondida nas poucas lembranças dos atores de uma irmandade que resistiu o quanto pôde. Essa memória flutuante é, de certo modo, limitada e contraditória.

Assim, a história recente da irmandade de Acari se resume a um homem conhecido como Manuel Beie, responsável e principal agente da irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Com sua morte, a irmandade parou de funcionar. A literatura local descreve Seu Manuel Beie da seguinte maneira:

Negro, de estatura mediana, robusto, cabelo pregado no casco, barba feita, bigode tratado, tinha o branco dos olhos puxado para o amarelo e o nariz chato como a permitir que uma lágrima passasse de um olho para o outro. [...] Figura de respeito, humilde e correto, deixou de si, para todos nós, exemplo de bondade, de amor ao trabalho, à família e à igreja e o de manter acesa a chama da tradição dos seus antepassados que se acabou com ele (BEZERRA, 2004, p. 31).

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[...] Trazia consigo toda beleza de um príncipe africano e nas festas do Rosário era um rei. Beie era sinônimo dos negros do Rosário. Com toda dificuldade os negros saíam todos os anos, mantendo teimosamente uma tradição que nossa falta de memória deixou morrer. [...] Quem não sentiu emoção, ouvindo sua voz forte ecoando nas naves da Igreja de Nossa Senhora da Guia ou de sua querida Senhora do Rosário? [...] Quando chegou ao céu foi recebido por Nossa Senhora do Rosário, que havia lhe preparado uma festa de arromba. “Meu Deus, para quem é essa festa toda? Para você Beie. Aqui no céu você sempre será o rei que não foi na terra” (BATISTA, 1993, p.175-176).

Há pouca informação histórica sobre a irmandade em Acari. A descrição mais antiga da festa foi feita em 1974 por Jaime Santa Rosa:

A velha casa de culto religioso foi consagrada como a Igreja do Rosário. Nela se realizavam no tempo, os festejos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em que escravos, vestidos a caráter e com certo luxo, desempenhavam os papéis de rei, rainha e outras personagens, tanto em solenidades na própria igreja em que as figuras régias se assentavam em tronos, como em passeata pelas ruas da vila com guardas reais, munidos de espontões, que dançavam, e músicos com tambores surdos e pífanos, que davam ritmo (SANTA ROSA, 1974, p. 75).

O período de 1920 e 1970 ainda está presente na memória dos moradores mais antigos da cidade. Ele é marcado pela chegada de Seu Manuel à cidade de Acari e pelo fim da irmandade após a morte dele. Existem relatos orais que revelam a presença da irmandade com sua corte, os homens do pulo e seus integrantes participando da festa

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de Nossa Senhora do Rosário. Podemos ainda identificar os nomes de pessoas que participaram da irmandade e das celebrações religiosas, especialmente a família Beie e a família Cajazeiras. Nossas fontes orais (Seu Hermes Me-deiros, Dona Maria Olindina da Conceição e Dona Hilda Francinete) relataram ter assistido à festa. De acordo com os nossos interlocutores, havia uma corte (rei, rainha, juízes e escrivães), os homens da dança ou do pulo e a banda. Os integrantes, nos dias de procissão, usavam vestimentas brancas e saíam pelas ruas da cidade com seus espontões, dançando ao som dos tambores. Saíam de casa em casa pedindo aos moradores ajuda para a manutenção da irman-dade. Os dias de festa eram marcados por muita animação.

Figura 1 – Foto da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Acari-RN. Fonte: Acari em Revista, ano 4, n 4, [s.d.].

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A irmandade parou de funcionar dois anos antes da morte de Seu Manuel Beie, em 1970. A festa, atualmente, vem sendo mantida por moradores da cidade, porém, não tem a mesma grandiosidade de antes, como afirmam nossos interlocutores. Hoje a festa se resume apenas à parte religiosa, com missas e novenas durante os dias de celebração; à procissão no último dia da festa; e à parte social, que fica posta em um pavilhão à frente da igreja.

Figura 2 – Foto da antiga igreja de Nossa Senhora do Rosário, Acari.

Fonte: BEZERRA, Paulo. Cartas dos sertões do Seridó. Natal: Lidador, 2000.

Não se sabe o real motivo que levou a irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Acari a encerrar suas atividades; apenas sabemos da importância de Seu Beie. Durante a pesquisa, não foi possível encontrar elementos suficientes que deixassem claros esses motivos.

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referênciAs:

BATISTA, Geraldo. Moleque do Acari. Natal: Edição do Autor, 1993.

BEZERRA, Paulo. Outras Cartas do Sertão do Seridó. Natal: [s. n.], 2004.

CASCUDO, Luís da C. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: MEC, 1955.

CAVIGNAC, Julie Antoinette. Relatório antropológico da co-munidade quilombola de Boa Vista (RN): complementação. Natal: UFRN/INCRA-RN, 2007.

LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Unicamp, 2003.

MELO, Veríssimo de. Folclore brasileiro: Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 2/3, p. 3-15, 1989.

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Saltadores dos Negros do Rosário: experiências na comunidade Boa Vista dos Negros

lourival andrade Júniordepartamento de história (Caicó), uFrn

Mônica luiza belotto de oliveira andradeProfessora substituta do departamento de educação (Caicó), uFrn

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Durante alguns dias, fomos à comunidade Boa Vista dos negros, localizada em Parelhas, para conversarmos com os responsáveis pela dança mais tradicional da co-munidade, conhecida no meio acadêmico como dança do Espontão.

Incialmente a ideia era registrar essa manifestação artística e identificar coreográfica e tecnicamente o de-senvolvimento histórico e cultural desse traço identitário para os negros da Boa Vista e, de alguma forma, entender a dança dentro das atividades comunitárias e da irman-dade dos negros do Rosário, já que todos os saltadores/dançarinos fazem parte dessa confraria de leigos.

Por conta das conversas, e depois de outra visita à festa de Nossa Senhora do Rosário em Jardim do Seridó--RN, no dia 30 de dezembro de 2012, em que os nossos narradores se apresentaram, decidimos reelaborar a ideia inicial e descrever a dança a partir da narração dos intérpretes, bem como buscar avaliar os efeitos dessa manifestação na comunidade como um todo, sem deixar de lado a observação técnica e científica tanto da dança como das falas de nossos interlocutores.

É indiscutível que a dança está diretamente rela-cionada com a devoção à Nossa Senhora do Rosário e à festa para ela realizada na cidade de Jardim do Seridó--RN. Os narradores explicitam em suas falas que a maior emoção é dançar na festa e se dedicarem para que ela nunca acabe:

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Para mim é uma alegria muito grande dançar. Eu sou dedicado mesmo à Festa de Nossa Senhora do Rosário. Já há 29 anos que eu faço esta festa, nunca parei um ano. Graças ao meu bom Deus, e espero daqui para frente, enquanto puder, tá ali junto com eles, dando força para eles, para que a gente nunca deixe esta festa cair, porque é uma coisa muito importante para gente e principalmente para a comunidade. É uma festa que já desde 1863 que ela é realizada e graças a Deus até hoje a gente sempre cultiva ( João Batista Fernandes).

Historicamente, os negros de Angola foram uns dos maiores propagadores da devoção ao rosário e, por conse-quência, à Nossa Senhora do Rosário. É importante registrar isso, visto que os negros da Boa Vista informam que suas origens são angolanas, o que reforça sua identificação com a devoção e com as próprias características ineren-tes às demonstrações de fé estabelecidas pelas irmanda-des de negros tanto na África como na Europa e, depois, no Brasil. Sua dança passa a fazer parte do arcabouço cultural que fortaleceu a religiosidade negra no Brasil com suas hibridações e filtragens durante a escravidão e após a libertação dos negros. Sua dança se universaliza.

Essa conexão entre dança e fé fica evidente quando os narradores mostram que dançar na Festa é diferente de dançar em outro lugar e em outra data.

Na festa a gente leva mais a questão da irmandade, porque os negros do Rosário fazem tanto a parte do folclore como faz a parte religiosa, tá entendendo? É como a gente falaria, é com

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mais emoção né, a gente passa o ano todinho esperando essa festa, essa festa é de três dias e onde a gente expõe a emoção de participar (Gerônimo Roque de Lima).

Na festa é com mais garra [...] ali eu tô dando de mim o que eu posso mesmo, porque eu acho que lá na festa eu me sinto assim muito, sei lá, assim muito focado naquilo ali né... eu dou outra emoção ( João Batista Fernandes).

O que ficou evidente nas entrevistas é que os dan-çarinos não conhecem a história da dança ao longo dos séculos e não a identificam como uma luta guerreira e de disputa. Em suas falas aparece com frequência o termo “sempre foi assim”, naturalizando a manifestação. Até mesmo a origem da dança na comunidade fica nas memórias fragmentadas e sem escopo documental. A oralidade é uma das marcas mais representativas dessas comunidades tradicionais e que acaba, por conta disso, reproduzindo e resignificando os gestos e as sensibilida-des de seus antepassados, não deixando morrer o que foi construído pelos seus antecessores, tampouco se preocupando em entender de forma racional e científica a sua produção. Eles fazem porque percebem que isso é deles, para eles e só pode ser representado por eles. É quase como um enaltecimento da ancestralidade, em que passado e presente fazem parte do mesmo tempo, que é orgânico, significativo e demarcador de uma cultura milenar que teima em não ser apagada.

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A dança, que é somente realizada por homens, possui acompanhamento rítmico de zabumba (bumbo), tarol e pífano (segundo membros do grupo, somente estes instrumentos são utilizados na dança realizada pela comunidade)1. No acompanhamento sonoro não há letra nem melodia, apenas uma estrutura rítmica organizada em três “toques”, como chamam os saltadores. Esses três toques são característicos do grupo dessa comunidade, diferenciando-se do ritmo adotado por outros grupos de negros do Rosário, como o do município de Caicó, por exemplo.

A dança é organizada conforme a sequência desses três toques, sendo que em cada um deles aparecem caraterísticas específicas. No primeiro “toque” a dança realiza-se em forma de deslocamento, com um passo saltitado, rápido e forte, que tem uma estrutura mais ou menos determinada, já que cada saltador imprime ca-racterísticas pessoais a ele. Nesse momento destacam-se os movimentos dos pés e os saltadores carregam a lança (espontão), porém sem dar destaque a movimentos es-pecíficos para ela; os movimentos do tronco e dos braços acompanham o ritmo com naturalidade, sem demonstrar uma intenção específica no manuseio do espontão.

1 O grupo fez questão de frisar a utilização somente desses três instrumentos para se contrapor ao que foi vinculado em um folder da Fundação José Augusto que informou que os instrumentos utilizados eram: cuíca, caixa, zabumba, pandeiro, triângulo, pífano etc.

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No segundo toque os saltadores organizam-se em diferentes formações espaciais, iniciando por uma roda e passando a outras formações, como linhas paralelas. Nesse momento apresentam uma maior variedade de movimentos de pés, sempre saltados, pequenos, rápidos e fortes, e apresentam também movimentos nos quais há destaque para outras partes do corpo, como o giro de quadril e a grande flexão das pernas em movimentos de agachamento (o que exige do dançarino grande flexibi-lidade e força muscular). Esses movimentos são sempre realizados em conjunto, ou seja, todos os membros rea-lizando o mesmo movimento ao mesmo tempo, exceto nos momentos em que uma dupla de saltadores destaca--se do grupo dirigindo-se ao centro da roda ou entre as linhas paralelas para realizar evoluções, que segundo eles não são “ensaiadas”, mas são realizadas utilizando movimentos já conhecidos pelo grupo (tradicionais) e “comunicados” ao outro pelo olhar e pela experiência no dançar. Entre esses movimentos aparecem os cruza-mentos de lanças e os apoios de lança sobre o ombro do companheiro.

Embora essa tenha sido identificada como uma dança guerreira, e esses movimentos pareçam retratar momentos de luta, desafio e demonstração de força, os membros da comunidade, em seu discurso, não reforçam essa característica.

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Não sei se lá atrás isso marcava, se era uma maneira de dizer: ‘o negro é forte’. Não sei, se lá atrás, isso está no meu modo de fazer, embora eu não ache que estou fazendo. Lá atrás deveria ter esse tipo de visão (Gerônimo Roque de Lima).

Aparece também no relato dos membros outro signi-ficado para esses movimentos, que, segundo Gerônimo, podem representar a união e a alegria do grupo.

No terceiro toque a organização espacial fica mais livre, permitindo movimentos com ou sem deslocamento. Cada membro do grupo escolhe livremente que movi-mentos deverá realizar, obedecendo ao repertório de mo-vimentos já tradicionais da dança, buscando comunicar--se através da atividade corporal com outros membros, realizando movimentos com os espontões e mantendo a energia forte e contagiante que é característica da dança.

O grupo dos “Saltadores dos negros do Rosário”, como gostam de ser chamados2 os dançarinos da comunidade, visto que o que eles fazem é “saltar os negros do Rosário”, é composto pelos seguintes membros: a) saltadores: os que dançam, todos com as lanças (espontões) nas mãos; 2) batedores: responsáveis pelo acompanhamento sonoro do grupo; 3) capitão de lança: que, segundo o grupo, tem a função de organizar, orientar, agendar apresenta-ções, cuidar dos fardamentos e cuidar da manutenção do grupo, além, é claro, de saltar e incentivar os outros

2 Para eles “Dança do Espontão” foi dado pelo “pessoal da História” (Gerônimo).

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saltadores; 4) bandeirista: o saltador que vai à frente do grupo, estabelecendo trajetórias e mudanças nos “toques”, orientando os movimentos, incentivando o grupo.

O grupo não costuma se encontrar para ensaiar a dança, já que essa é uma tradição bastante antiga entre eles, e os dançarinos alegam que “já nascem sabendo”.

Eu aprendi... Eu acho que não aprendi, eu já nasci com ela nos pés, porque eu, desse pessoal dos antepassados eu peguei já muito pouco com as pessoas mais idosas. Pronto, meu pai, quando eu comecei eu tinha 11 anos, meu pai, que eu queria muito ter aprendido com ele, que era um dos..., era capitão de lança, era um dos do grupo, era inesquecível mesmo do grupo, era aquele cara que dançava bastante mesmo e eu não consegui pegar os passos dele porque quando ele morreu eu tinha doze anos né, e aí ele já foi, as pessoas mais velhas já foram... O que eu pude ver eu fui aprendendo com as pessoas ( João Batista).

Relatam também que não têm percebido mudanças na forma de dançar, acreditando que fazem exatamente como faziam seus antepassados, porém, durante as entrevistas, relataram detalhes que já não reproduzem atualmente, como o fato de pedir dinheiro e mantimentos às pessoas durante a festa, embora digam que isso ainda acontece por decisão de membros isolados e não mais como uma atitude do grupo. Outro exemplo de mudança citada pelo grupo é com relação à lança. Relatam que “antigamente”, quando uma lança caía, somente o mestre

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de lança ou bandeirista poderia juntá-la do chão, mas que essa “regra” já não tem sido utilizada pelo grupo.

Isso demostra que o grupo não está fossilizado, e que a dinâmica das manifestações populares do patrimônio imaterial está viva nas atitudes da comunidade.

Vale salientar que essa dança está presente nas irmandades de negros, principalmente as dedicadas à Nossa Senhora do Rosário, mas há traços específicos em cada uma delas. Não há uma formatação coreográfica geral para todos os grupos, sendo que as variações são definidas pelas próprias características da comunidade. No caso dos saltadores dos negros do Rosário da Co-munidade de Boa Vista dos negros, eles não utilizam o fardamento lembrando soldados e tampouco proferem gritos durante a dança, como ocorre em outros grupos deste gênero. Os saltadores dos negros do Rosário vestem-se com camisetas que possuem uma estampa de Nossa Senhora do Rosário e apenas gritam os vivas para a padroeira e protetora do grupo ao final da dança.

Mesmo com pequenas alterações, o grupo mantém um caráter de pertencimento e de sensibilidade com relação à importância da dança para a comunidade e para a religiosidade que aflora entre os homens saltadores e as mulheres que os assistem sem identificar exclusão, mas sim como uma manifestação oriunda das relações estabelecidas no passado e ressignificadas no presente.

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O título do livro reproduz uma frase de saudação da irmandade de N. Sra. do Rosário de Jardim do Se-ridó (RN), marco da presença histórica e do legado cultural dos africanos no Brasil. A imagem evocada é de uma árvore que revela a fortaleza das práticas sociais afro-brasileiras plantadas no semiárido e que se ramifica e frutifica no espaço da cultura. Tal realidade suscitou a presente publicação, que brotou de um trabalho coletivo que objetiva valorizar o patrimônio afro-brasileiro no Seridó potiguar e incentivar o debate sobre a questão racial, ao mesmo tempo em que desenvolvia ações concretas de promoção socioeducacional nas comunidades negras seridoenses. Os resultados das investigações acadêmicas e do trabalho conjunto dos antropólogos e dos historiadores são confrontados à fala dos representantes desta memória, que narram, à sua maneira, os eventos e os seus traumatismos. As pesquisas desenvolvidas por professores e alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), da Universidade de Brasília e de outros colaboradores de renome internacional estão agora disponíveis para o grande público. Ao atravessar o Seridó negro o leitor irá se debruçar sobre questões atuais da história e da antropologia no Brasil.

Esta publicação foi realizada com o apoio:

CAPES UFRN PROEX EDUFRN CNPq MEC (PROEXT)