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A P OSSI BI LI DAD E DAPOLÍT I CA RA CIONA L * Jon Elster  RBCS V o l. 14 n o 39 fe vere iro / 99 Introdução A idéia de organismo político, sugerindo que a ação política é uma ação individual em escala aumentada, é muito antiga. Entre suas ver- sões modernas estão as noções de engenharia social e planejamento econômico. Podemos defi- ni-la com mais precisão como a idéia de que as sociedades podem formar, e formam, preferên- cias, coletam informações, tomam decisões e as executam de maneira estrita ou, pelo menos, aproximadamente análoga à escolha racional indi- vidual. Este artigo apresenta uma análise crítica dessa idéia. A primeira seção examina até que ponto o aparato formal aplicado à escolha racional indivi- dual pode ser aplicado às decisões políticas, dando ênfase às diferenças entre a escolha individual e a escolha social. ** As diferenças mais conhecidas surgem no processo de formação de preferências. O teorema da impossibilidade de Arrow e seus desdobramentos subseqüentes mostraram que, de maneira geral, a noção de  preferências sociais não tem uma definição muito clara. Outro argumento, proposto pela primeira vez por Hayek, diz que as informações difundidas e espalhadas por toda a sociedade não podem ser reunidas em um centro para formar crenças sociais. Um argumento adicio- nal, associado particularmente aos teóricos da es- colha pública, é que a ação social tende a ser distorcida e deturpada pelos interesses privados dos agentes e das agências que os devem realizar. Concluo que o processo de tomada de decisões sociais tem, no melhor dos casos, uma semelhança grosseira com a escolha individual. A seção seguinte enfatiza o amplo espaço de indeterminação que existe nas decisões sociais. As decisões de largo alcance produzem efeitos de equilíbrio muito difíceis de avaliar teoricamente, porque a habitual metodologia ceteris paribus não * Tex to publ ic ado ori gi nal mente c omo o capí tul o IV do livro Solomonic judgements (Cambridge, Cambridge University Press, 1989). Tradução de Vera Pereira. Revisão técnica de Argelina Cheibub Figueiredo. ** No capítul o 1 do mesmo li vro, i ntitul ado “Whe n rationa- lity fails”, Elster estabelece os elementos básicos da teoria da escolha racional e aponta suas falhas, decor- rentes seja de sua indeterminação, seja de sua inadequa- ção. O autor organiza a análise desenvolvida no capítu- lo 4, objeto desta tradução, de forma a torná-la compa- rável à discussão realizada naquele capítulo.

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A POSSIBILIDADEDA POLÍTICA RACIONAL*

Jon Elster

RBCS V ol. 14 no 39 fevereiro/ 99

Introdução

A idéia de organismo político, sugerindoque a ação política é uma ação individual emescala aumentada, é muito antiga. Entre suas ver-sões modernas estão as noções de engenhariasocial e planejamento econômico. Podemos defi-ni-la com mais precisão como a idéia de que associedades podem formar, e formam, preferên-cias, coletam informações, tomam decisões e asexecutam de maneira estrita ou, pelo menos,aproximadamente análoga à escolha racional indi-vidual. Este artigo apresenta uma análise críticadessa idéia.

A primeira seção examina até que ponto oaparato formal aplicado à escolha racional indivi-dual pode ser aplicado às decisões políticas, dandoênfase às diferenças entre a escolha individual e aescolha social.* * As diferenças mais conhecidassurgem no processo de formação de preferências.O teorema da impossibilidade de Arrow e seus

desdobramentos subseqüentes mostraram que, demaneira geral, a noção de preferências sociaisnãotem uma definição muito clara. Outro argumento,proposto pela primeira vez por Hayek, diz que asinformações difundidas e espalhadas por toda asociedade não podem ser reunidas em um centropara formar crenças sociais. Um argumento adicio-nal, associado particularmente aos teóricos da es-colha pública, é que aação social tende a serdistorcida e deturpada pelos interesses privadosdos agentes e das agências que os devem realizar.Concluo que o processo de tomada de decisõessociais tem, no melhor dos casos, uma semelhançagrosseira com a escolha individual.

A seção seguinte enfatiza o amplo espaço deindeterminação que existe nas decisões sociais. Asdecisões de largo alcance produzem efeitos deequilíbrio muito difíceis de avaliar teoricamente,porque a habitual metodologiaceteris paribus não

* Texto publicado originalmente como o capítulo IV dolivro Solomonic judgements (Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1989).Tradução de Vera Pereira.Revisão técnica de Argelina Cheibub Figueiredo.

** No capítulo 1 do mesmo livro, intitulado “When rationa-lity fails”, Elster estabelece os elementos básicos dateoria da escolha racional e aponta suas falhas, decor-rentes seja de sua indeterminação, seja de sua inadequa-ção. O autor organiza a análise desenvolvida no capítu-lo 4, objeto desta tradução, de forma a torná-la compa-rável à discussão realizada naquele capítulo.

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é aplicável. Mais ainda do que nas decisões indivi-duais, imperam nas decisões sociais a incerteza e aignorância. Além disso, nessas decisões, a ignorân-cia não pode ser superada por procedimentos de

ensaio e erro. O “aprendizado pela experimenta-ção” desenvolve-se mediante inferências, no maisdas vezes não confiáveis, que partem das conse-qüências transitórias, de curto prazo e em pequenaescala, para os efeitos de equilíbrio em larga escalae longo prazo. Por outro lado, a própria noção de“fazer experiências com a reforma” beira a incoe-rência, pois o fato de os agentes saberem que estãoparticipando de uma experiência leva-os a adotarum horizonte de curto prazo que torna aindamenos provável o êxito da experimentação.

A terceira seção analisa a fraqueza de vontadee o excesso de vontade como formas de irraciona-lidade política. Ressalto as diferenças e as seme-lhanças entre a acrasia individual e a acrasia políti-ca, sendo a principal delas que as sociedades, pordefinição, não podem resolver seus problemasencarregando um agente executor externo de cum-prir sua vontade. O excesso de vontade políticatambém se diferencia do excesso de vontade indi-vidual, porque o sujeito e o alvo do primeiropodem ser indivíduos diferentes. Portanto, a tenta-

ção de adotar esse comportamento é maior, embo-ra os prognósticos de êxito a longo prazo sejamigualmente reduzidos.

A quarta e última seção considera a justiçacomo uma alternativa à racionalidade para orientara ação política. Dada a fragilidade da lógica instru-mental em política, a concepção de justiça escolhidanão pode ser conseqüencialista, como o utilitaris-mo. Ao contrário, o conceito de justiça deve focali-zar os direitos inerentes aos indivíduos de obterigual participação no processo decisório e no bem-estar material. Nessa seção, baseio-me amplamentenos trabalhos de John Rawls, Ronald Dworkin eJürgen Habermas. Advirto, porém, que meu objeti-vo não é propor ou mesmo esboçar uma teoria da justiça. Não sei como extrair de princípios funda-mentais uma teoria da democracia. Contudo, dada aexistência da democracia, principalmente da demo-cracia limitada pelo debate público racional, acredi-to que algumas implicações para a escolha e para aação política podem ser deduzidas.1

Escolha individual e escolha social

Para certa concepção, a política é como umaescolha individual em escala aumentada. Em pri-

meiro lugar, as preferências políticas — objetivos,trade-offs e prioridades — são definidas pelo pro-cesso político democrático. Em segundo lugar, asagências governamentais coletaminformações so-bre assuntos concretos e sobre as relações entremeios e fins, com a finalidade de formar umaopinião acerca de quais políticas públicas poderi-am melhor realizar esses objetivos. Finalmente,outras agências executam essas políticas considera-das ótimas. De acordo com essa concepção, oparlamento, o órgão central de estatística e o

governo formam um sistema unificado de tomadade decisões políticas racionais.

Não estou interessado naqueles que (se oshouver) acreditam que essa concepção é literalmen-te verdadeira, ou seja, que a escolha política podeser entendida pelos desejos, crenças e ações de umaentidade supra-individual, a “sociedade”. Ao contrá-rio, estou interessado naqueles que, embora acei-tando os cânones do individualismo metodológico,supõem ou argumentam que é possível procedercomo se essa concepção fosse correta.2 Em outras

palavras, estes últimos supõem que não há malalgum em tratar a sociedade como um ator unitário,dotado de valores estáveis e coerentes, de crençasbem fundamentadas e de capacidade para pôr emprática suas decisões. Esse suposto tem predomina-do no estudo das relações internacionais3 e nateoria do planejamento econômico.4 Por razõesóbvias, essa hipótese é menos evidente no estudoda política interna das democracias pluralistas. Mes-mo nesses regimes, porém, há uma forte tentação deusar a linguagem própria do ator. Esta seção susten-ta que tal linguagem, apesar de tentadora, tambémpode ser traiçoeira e levar a conclusões erradas.

O oportunismo oferece uma explicação geralpara a diferença entre sociedades e indivíduos. Émais fácil para um indivíduo enganar a outros doque a si mesmo. Quando os indivíduos se entregama ilusões que favorecem seus interesses pessoais,ou se entregam ao oportunismo, não se pode tercerteza de que o resultado agregado do seu com-portamento corresponda ao modelo de racionalida-

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de política do ator unitário. Gostaria de explicar osignificado dessa proposição nas três dimensões daescolha que me proponho a analisar nesta seção:preferências, informações e ação.

Em primeiro lugar, cabe definir o problemamais cuidadosamente como uma dificuldade dapolítica democrática. Isto é, excluímos as concep-ções que correspondem à máxima de Napoleão:“Tout pour le peuple, rien par le peuple”. Mais especi-ficamente, deseja-se que o método de agregaçãodas preferências individuais não seja ditatorial eque, além disso, seja invulnerável ao oportunismo;quer dizer, que o indivíduo não seja capaz de,falsificando suas preferências, produzir um resulta-do melhor, de acordo com suas verdadeiras prefe-

rências, do que aquele que obteria se revelasseessas verdadeiras preferências. Por último, deseja-seque o mecanismo garanta resultados compatíveiscom o ótimo de Pareto. O único método que satisfaza esses requisitos é alguma forma de votação porloteria, mas este método comporta tantas outrasdesvantagens que não deve ser examinado comseriedade. Embora, para certos casos especiais, sejapossível imaginar mecanismos à prova de estraté-gias para a revelação de preferências (ver, porexemplo, Ordershook, 1986, caps. 5 e 6), de uma

maneira geral, não se pode supor que as pessoassejam induzidas a agir com sinceridade por conta dointeresse pessoal.

O problema da compatibilidade de incentivosestende-se ao da coleta de informações sobreassuntos concretos. Quando se solicita aos agenteseconômicos que forneçam informações facilmentedisponíveis para eles, mas que não seriam disponí-veis ou teriam algum custo para os outros, pode-seassumir que eles se perguntarão se é do seuinteresse atender ao pedido. Sabe-se, por exemplo,que a única forma de tributação não sujeita adeturpações é um imposto cobrado dos indivíduosde uma só vez [lump-sum tax] e calculado emfunção de sua capacidade produtiva, e não de suaverdadeira produção. Mas é raro que o indivíduotenha interesse em informar corretamente sobresua capacidade produtiva. Igualmente, talvez nãoseja do interesse dos indivíduos informar comexatidão quanto estariam dispostos a pagar pelaprovisão de bens públicos. É fato bem conhecido

que as economias do tipo soviético criam incenti-vos perversos ao fornecimento da informação verí-dica. Às vezes, o medo de ser punido por trazerconsigo más notícias cria um estímulo para pintar

as coisas melhores do que, de fato, são; outrasvezes, é o interesse próprio que leva uma pessoa aapresentar a situação como pior do que é. Umexemplo é o administrador que presta informaçõessubestimadas sobre a produção a fim de evitar umaumento de sua cota. Problemas essencialmentesemelhantes podem surgir em qualquer sistemaque dependa da coleta de informações a partir defontes descentralizadas. Mais uma vez, embora, emcertos casos, o problema possa ser contornado, nãohá uma receita geral para induzir as pessoas a

prestarem informações verdadeiras.Finalmente, problemas com os incentivos

também ocorrem no nível da implementação. Nocaso do indivíduo, geralmente não há nenhumadistância entre tomar uma decisão e executá-la,excluindo-se a fraqueza de vontade ou a inaptidãofísica. Em casos típicos, o caráter unitário do atorindividual assegura que suas decisões, uma veztomadas, serão executadas. A falta de unidade dasociedade torna essa hipótese muito mais proble-mática. Não se pode, em geral, confiar em que os

agentes incumbidos da execução das decisõesdeixem de levar em conta seus próprios interessesou sua concepção pessoal do interesse geral.5

Tampouco seu principal pode estar o tempo todoocupado em monitorar as atividades desses agen-tes, no mínimo porque os agentes da monitorizaçãopodem ser, eles mesmos, corruptos.6

Não é necessário, porém, fundamentar nossoargumento nos perigos do oportunismo. Na verda-de, não se deveria fazê-lo. Embora sempre exista operigo de uma conduta voltada para a satisfação dointeresse próprio, até que ponto esse comportamen-to está realmente presente varia muito. Boa parte daliteratura sobre escolha social e escolha pública,com seu pressuposto sobre a universalidade docomportamento oportunista, parece simplesmentefora de contato com o mundo real, onde há muito dehonestidade e senso do dever. Se as pessoas semprese comportassem de maneira oportunista quandocontassem com a impunidade, a civilização tal quala conhecemos não existiria.7 Não se deve partir do

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pressuposto de que a única tarefa da política sejainventar instituições que submetam o interesse opor-tunista a objetivos socialmente úteis. Uma outratarefa de igual importância é criar instituições que

incorporem uma concepção válida de justiça. Se aspessoas não se sentirem enganadas pela sociedade,a tentação de enganar a sociedade se reduzirá muito(Rawls, 1971, pp.177-183 e 567-577).

O que se deve perguntar, então, é se umasociedade justa, que conte com normas efetivas dehonestidade e confiança, corresponde a uma boaaproximação do modelo de ator unitário da políticaracional. Uma resposta concisa é que apesar de,com certeza, ser esta uma aproximação melhor doque a noção de uma sociedade de oportunismo

generalizado, continuam existindo sérias dificulda-des. Embora desapareça o problema da implemen-tação, os problemas da agregação de preferências eda centralização das informações não desapare-cem. Ainda que as preferências sejam declaradascom sinceridade, a noção de “vontade popular” éincoerente. Mesmo que os indivíduos procurassemdeclarar suas preferências e capacidades da manei-ra mais verídica possível, e mesmo que deixemosde lado os custos de oportunidade de fazer relató-rios e o risco de que a informação já esteja desatua-

lizada quando for finalmente usada, o centro não aconsideraria muito útil. As pessoas geralmente têmum conhecimento tácito, embutido e pessoal, e nãoexplícito, verbal e abstrato, sobre seus estadosmentais e suas capacidades produtivas (Polanyi,1962). As empresas não têm acesso à totalidade dafunção de produção com que operam; precisamsaber o que estão fazendo, mas não têm incentivospara saber o que poderiam fazer, até que sejamforçadas a isso pelas circunstâncias (Nelson e Win-ter, 1982, cap. 4 e passim). Os consumidorespodem ser incapazes de dizer que compras plane- jam fazer nos próximos anos. Essas objeções bemconhecidas8 ao planejamento central continuamsendo, a meu ver, irrefutáveis.

Os sistemas políticos concretos aproximam-se em diversos graus do modelo do ator unitário.Quanto mais tentam realizar seus objetivos porintermédio do planejamento deliberado, isto é,quanto mais sua auto-imagem é a do ator unitário,mais tendem a desviar-se desse modelo na prática.

As economias de tipo soviético exemplificam bemesse paradoxo. As democracias pluralistas, ao con-trário, tendem a realizar mais, em virtude de tenta-rem fazer menos. O planejamento macroeconômi-

co que se utiliza do instrumento das políticas fiscaise monetárias tem mais probabilidade de alcançarseus objetivos do que as formas mais ambiciosas deplanejamento físico. O planejamento físico centra-lizado requer informações muito detalhadas e tam-bém tende a gerar oportunismo. O primeiro proble-ma é inerente ao planejamento físico; o segundoproblema, se minha análise é correta, decorre dafalta de legitimidade. Se as pessoas acham queestão sendo enganadas, por que não deveriamenganar o sistema de volta? Os sistemas políticos

que deixam mais decisões a cargo do indivíduo, aocontrário, economizam informações e simultanea-mente geram mais confiança.

Concluindo esta seção, cabe observar que aanalogia entre escolha individual e escolha socialtambém pode ser feita da perspectiva oposta. Emvez de alegar-se que a sociedade deve ser interpre-tada a partir do modelo do ator unitário, pode-sepropor que o indivíduo deveria ser compreendidoa partir do modelo da sociedade dividida.9 Primei-ro, por causa dos problemas de agregação de

preferências internos à própria pessoa; segundo,por causa do auto-engano e de outras formas decompartimentalização cognitiva; terceiro, por cau-sa da fraqueza de vontade e de outros obstáculos àexecução de decisões. Os indivíduos, como associedades, muitas vezes não sabem o que querem,ou não sabem o que sabem, ou deixam de realizaro que decidiram fazer. Acredito, porém, que aanalogia falha em um ponto decisivo: os indiví-duos, ao contrário das sociedades, têm um centroorganizador — às vezes chamado de vontade,outras vezes de ego — que procura constantemen-te integrar as partes fragmentadas.10 As sociedades,ao contrário, não têm nenhum centro.

Indeterminação políticaNesta seção, desenvolvo um argumento de

duas partes contra a exeqüibilidade da engenhariasocial em grande escala. Primeiramente, alego quenão existe nenhuma teoria que nos permita predi-

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 17

zer os efeitos de equilíbrio a longo prazo degrandes reformas sociais. Segundo, afirmo que ametodologia do ensaio e erro não pode substituir aprevisão teórica. Ou seja, a teoria é impotente, e

não se pode aprender pela experiência e com aexperimentação. Em conseqüência, as escolhaspolíticas são feitas em condições de radical indeter-minação cognitiva.11

Ora, essas afirmações são muito amplas. Nãotentarei demonstrar sua validade como proposiçõesgerais, embora acredite que muitos dos meus argu-mentos específicos possam ser generalizados.12 Emvez disso, procederei à análise de três exemplos: astransições da aristocracia para a democracia, dapropriedade privada para a propriedade cooperati-

va e de uma economia planejada para uma econo-mia de mercado. Nesta e nas seções seguintes,utilizarei as análises de Tocqueville sobre a demo-cracia e o ancien régime.13 Para usar um exemplocorrente e controverso, analisarei a proposta desubstituir a propriedade privada dos meios de pro-dução pela propriedade cooperativa.14 Por fim,farei algumas referências ocasionais às reformaseconômicas em curso na China.

Acredito que a primeira parte do meu argu-mento não suscite grandes discordâncias. Imagine-

se que a sociedade está em um estado (aproxima-do) de equilíbrio, no sentido de que os recursospessoais, as crenças, as normas, os hábitos e osobjetivos dos indivíduos estão bem ajustados entresi e ao ambiente natural e institucional.15 Nossaintenção é prever as conseqüências de grandesmudanças no sistema de direitos de propriedade ouno sistema político. Numa primeira abordagem doproblema, convém ponderar sobre duas perguntasbásicas: como será o novo equilíbrio quando tudoo mais estiver adaptado à mudança institucional? Equal será a via de transição para o novo equilíbrio?

Retomarei essas questões mais adiante, mascabe observar, primeiramente, que elas levantammuitos problemas. A existência de um estado deequilíbrio e a tendência para aproximar-se deledevem ser demonstradas, e não pressupostas. Refe-rindo-se ao impacto da Revolução Francesa, em umtexto escrito em 1855, Tocqueville observou: “Jáouvi dizer por quatro vezes na minha vida que anova sociedade, conforme a criou a Revolução,

havia enfim encontrado seu estado natural e per-manente, mas os acontecimentos subseqüentesdemonstraram que isso estava errado.” (Tocquevi-lle, 1953, p. 343). Nessas situações, devem ser

levadas em conta quatro possibilidades: (a) que oprocesso está se aproximando de um equilíbrio,mas ainda não o alcançou; (b) em qualquer tempodado, o processo encaminha-se para o estado deequilíbrio, mas este, em si mesmo, desloca-seconstantemente devido a mudanças no ambienteexterno; se a velocidade da mudança no ambienteexterno for maior do que a velocidade da adapta-ção a este meio, o equilíbrio nunca será alcançado;(c) o sistema não tem um ponto de equilíbrio fixo,mas converge para um ciclo-limite. Já se disse, por

exemplo, que a conseqüência permanente da Re-volução Francesa foi introduzir uma mudança cícli-ca entre o orleanismo e o bonapartismo (Lévi-Strauss, 1960, p. 94; Aron, 1967, p. 292); que ossistemas políticos do Planalto Birmanês estavamem um estado de “equilíbrio móvel”, contendociclos de 150 anos (Leach, 1954, p. xi); e que associedades modernas estão condenadas a oscilarentre dois sistemas terríveis — capitalismo e socia-lismo —, cada um deles parecendo sedutor quandovisto da perspectiva do outro (Dunn, 1985).16 (d) O

sistema é inerentemente instável. Mesmo que oambiente seja estável, o sistema não comporta nemum estado de equilíbrio fixo nem um ciclo-limite. Aprimeira pergunta do parágrafo anterior pressupõeque (a) seja uma explicação adequada ao comentá-rio de Tocqueville.

Meu argumento principal, todavia, não é queas perguntas são inadequadas, mas que não podemser respondidas, mesmo que seus pressupostossejam satisfeitos. No estado atual das ciênciassociais, não se pode sequer imaginar como seriauma teoria do equilíbrio social geral — uma teoriaem que tudo fosse endógeno, de modo que ametodologia usual deceteris paribus seria inaplicá-vel. Os cientistas sociais são, em geral, razoavel-mente bons para prever os efeitos de curto prazo demudanças marginais; para afirmar, por exemplo,que se a taxa de mulheres casadas reduzir-se em xpor cento, a oferta de mão-de-obra crescerá em ypor cento. Mas os impactos de longo prazo demudanças nos padrões de trabalho sobre a religião,

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o casamento, os conflitos sociais ou a marginalida-de continuam sendo inteiramente inacessíveis paranós. Para pensar em um exemplo mais dramático,imaginem-se os problemas enfrentados pelos pla-

nejadores chineses. Eles se defrontam com a tarefaextremamente complexa de estimar os efeitos deequilíbrio a longo prazo sobre o estado de equilí-brio produzido por reformas de mercado introduzi-das numa sociedade predominantemente agrária eimpregnada de duas poderosas ideologias antimer-cado: o confucionismo e o marxismo. Como podemos planejadores chineses dizer de antemão se essasideologias irão frustrar as tentativas de introduzirum sistema de mercado, ou se o mercado é que sedeixará corromper pelas ideologias?

A referência teórica para a análise da segundaparte do meu argumento deriva da argumentaçãodesenvolvida por Tocqueville a respeito da demo-cracia política na América. Sua discussão,17 travadaprincipalmente com os críticos franceses da demo-cracia, toma a forma de uma refutação de uma sériede falácias; ao todo, quatro. Essas falácias consis-tem em, partindo dos efeitos locais, parciais, a curtoprazo ou de transição da democracia, fazer inferên-cias erradas sobre os efeitos, no nível global,líquido, a longo prazo, do seu estado de equilíbrio.

Observando que os primeiros efeitos eram emmuitos casos negativos, os críticos franceses inferi-ram equivocadamente que a democracia era inde-sejável. O fato de as inferências serem injustificadasnão prova, é claro, que as conclusões sejam falsas.Tocqueville alegou, porém, que os efeitos de equi-líbrio da democracia podiam ser observados nosEstados Unidos18 e que sistematicamente demons-travam que as conclusões dos outros estavamerradas. No caso de reformas ainda não implemen-tadas ou concluídas, não se pode mostrar da mes-ma maneira que as inferências levam a conclusõesequivocadas, apenas que não há razões para crerque conduzam a conclusões corretas.

E feitos locais versus efeitos globaisTocqueville fornece um exemplo instrutivo

da tendência falaciosa de generalizar o efeito deuma mudança institucional, introduzida em peque-na escala, para o efeito obtido quando essa mudan-ça é realizada em grande escala. Discutindo os

efeitos do casamento por amor, prática muitodifundida nas democracias, Tocqueville (1969, p.596) escreve que “nossos ancestrais tinham umaopinião muito peculiar sobre o casamento. Notan-

do que os poucos casamentos por amor no seutempo quase sempre terminavam em tragédia,chegaram à decidida conclusão de que, nessasquestões, era muito perigoso confiar no própriocoração”. Em seguida, indica duas razões pelasquais essa opinião é indefensável. A primeira é adiscriminação negativa: casar por amor numa so-ciedade em que isso é exceção é atrair desastre,pois ir contra a corrente tende a provocar a hostili-dade dos outros e, por outro lado, a gerar rancor naprópria pessoa. A segunda é aauto-seleção negati-

va: somente pessoas muito opiniáticas topam sairna frente contra a corrente — e isso não é umacaracterística favorável a casamentos felizes.

O desempenho de cooperativas de trabalha-dores pode ser também influenciado peladiscri-minação (positiva ou negativa) e pelaauto-sele-ção (positiva e negativa). Examinemos primeiro adiscriminação positiva. Diz-se que, para as coope-rativas sobreviverem numa economia capitalista,elas precisam contar com uma organização deapoio, fortemente motivada por uma ideologia

(Gunn, 1984, pp. 57-61). Na medida em que essasorganizações têm razão de ser, é evidente que obom desempenho das cooperativas nelas apoia-das não nos permite inferir que um sistema decooperativas se sairia igualmente bem. O caso dadiscriminação negativa é mais estudado. Freqüen-temente se diz que o capitalismo, principalmentesuas instituições financeiras, dá um tratamentodesfavorável às cooperativas, de modo que o maudesempenho de algumas cooperativas isoladasnão pode servir de argumento contra o princípiodo cooperativismo (ver, por exemplo, Bowles eGintis, 1976, p. 62). Uma objeção a essa interpre-tação afirma que, em um mercado financeirocompetitivo, nenhuma instituição pode se dar aoluxo de perder uma oportunidade de lucro (No-zick, 1974, pp. 252-253), e ainda que, por suaestrutura de propriedade, as cooperativas são al-vos imperfeitos para investimento e empréstimo(Miller, 1981). Mas nenhuma dessas objeções éinteiramente convincente.19

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 19

A auto-seleção se dá quando as poucas coo-perativas existentes em um meio predominante-mente capitalista atraem (ou só contratam) pessoasmuito motivadas e idealistas, dispostas a trabalhar

com afinco, a suportar os custos da participação e,se necessário, a aceitar uma redução de salário. Ascooperativas dos trabalhadores florestais do Nor-deste dos Estados Unidos parecem adequar-se aessa descrição (Gunn, 1984, cap. 3). As cooperati-vas de Mondragon, na Espanha, também têm con-seguido selecionar os candidatos e admitir apenasaqueles que se afinem com o sistema de valorescooperativistas (Bradley e Gelb, 1982). A auto-seleção positiva aparece em mais alto grau aindanos kibutz de Israel (ver Ben-Ner e Neuberger,

1982). É claro que a viabilidade dessas cooperati-vas não implica que o modelo seja facilmentetransferível para outros lugares. A situação é decerta forma análoga à das escolas particulares deforte motivação ideológica em comparação com asescolas públicas. Como as escolas particulares mui-tas vezes conseguem atrair professores excepcio-nalmente motivados, produzem resultados difíceisde encontrar em um sistema mais amplo, no qual ocorpo docente constitui-se, em média, de um cortetransversal da população. A auto-seleção negativa

também poderia ser encontrada no exemplo deTocqueville: “É possível que essas experiências dereforma atraiam indivíduos instáveis, demasiadopropensos a correr riscos e pessoas sem orientaçãopragmática.” (Putterman, 1982, p. 152).

A divergência entre os efeitos locais e globaistambém pode ocorrer sem que haja seleção ediscriminação, se houver interferência de umaexternalidade positiva ou negativa. Se uma coope-rativa isolada pode pegar carona nas empresascapitalistas, seu desempenho será melhor do queobteria como participante de um sistema de coope-rativas. Se as cooperativas forem ruins de inovação,mas boas em imitar, serão bem-sucedidas enquantohouver firmas capitalistas dinâmicas para imitar.Em termos mais conjecturais, a motivação paraparticipar em empresas auto-administradas depen-de de um sentimento de superioridade moral quepressupõe que a maioria das firmas seja capitalista.

Por outro lado, cooperativas isoladas pode-riam ser prejudicadas (a) pelas externalidades ne-

gativas criadas pelas empresas capitalistas ou (b)por não conseguirem internalizar externalidadespositivas geradas por elas mesmas. Um exemplo doprimeiro caso é a “externalidade ideológica” criada

pela presença do trabalho assalariado na econo-mia. Em um contexto predominantemente capita-lista, as cooperativas bem-sucedidas serão tentadasa empregar trabalhadores assalariados a fim deaumentar sua flexibilidade de ajustamento a mu-danças nas condições do mercado.20 Com isso, noentanto, elas podem acabar perdendo tanto asvantagens intangíveis quanto as vantagens tangí-veis decorrentes das intangíveis. Outro exemplo daprimeira situação é a “externalidade da barganhacoletiva”, que Peter Jay (1980, p. 40) definiu da

seguinte maneira: “Na medida em que a grandevantagem proporcionada pela economia geridapelos trabalhadores é causar [...] o enfraquecimentoda barganha coletiva, eliminando então o dilemacatastrófico entre o aumento do desemprego ou aaceleração da inflação, isso não pode ser compro-vado pela análise da experiência de cooperativasindividuais numa economia gerida pelo capital, emque existe uma profunda percepção da necessida-de da organização sindical e da barganha coletiva.”

Um exemplo da situação (b) é a “externalida-

de empresarial” criada pelas cooperativas. Numaempresa de gestão democrática, os indivíduos do-tados de talento empresarial não só tomam boasdecisões: eles educam os companheiros. Os traba-lhadores de Mondragon, por exemplo, têm suaprópria escola técnica. Se os operários que sebeneficiaram com o treinamento saem da empresae arranjam emprego numa firma capitalista, o efeitoé, na realidade, tornar disponível gratuitamentepara outras empresas esse treinamento. Mesmo quea cooperativa seja expulsa do ramo porque osretornos de sua atividade são inferiores aos dasfirmas capitalistas típicas, o retorno social pode serbem maior para a cooperativa do que para a firmacapitalista. Outro exemplo da situação (b) é o da“externalidade política” criada pelas cooperativas.Se ser membro de cooperativas produz cidadãosmelhores e se o espírito cívico é um bem público,as cooperativas geram benefícios difusos não cap-tados pelo mecanismo de preços (Pateman, 1970;ver também Krouse e McPherson, 1986). Pode-se

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questionar essa interpretação alegando, primeiro,que, para muitas pessoas, a participação econômi-ca diminui a participação nos assuntos políticos, emvez de aumentá-la. Parafraseando Oscar Wilde, há

muitas noites para aproveitar. Segundo, há dúvidasde que a participação nas decisões econômicastenha efeitos positivos em outras arenas, salvo seestas forem consideradas valiosas por si mesmas.Os efeitos irradiadores da participação são funda-mentalmente subprodutos.21

E feitos parciais versus efeitos líquidosUm exemplo engraçado formulado por Toc-

queville é o seguinte: “como não existe nenhumaorganização preventiva nos Estados Unidos, há

mais incêndios lá do que na Europa, mas, em geral,eles são apagados mais depressa porque os vizi-nhos sempre chegam rapidamente ao local doperigo”. (Tocqueville, 1969, p. 723). A estrutura daargumentação é a seguinte. Queremos analisar oefeito de uma variável independente (regime polí-tico) sobre uma variável dependente (número decasas destruídas pelo incêndio). Entre a causa e oefeito há duas variáveis intervenientes que intera-gem de maneira multiplicativa: o número de casasque pegam fogo e a proporção dos incêndios que

não são rapidamente extintos. Não é difícil imagi-nar adversários da democracia americana enfati-zando o primeiro efeito parcial e os defensoresrealçando o segundo. Mas a verdadeira questão ésaber se o efeito líquido é positivo ou negativo. Nafalta de informações mais precisas sobre a força dascorrentes adversárias, talvez não seja possível res-ponder a essa pergunta.

Uma forma de raciocínio muito próximo des-ta é a seguinte: Tocqueville foi o primeiro a ter aocasião de observar que a democracia tende aaumentar as oportunidades das pessoas de modopotencialmente perigoso e a assinalar, em seguida,que a democracia também tende a reduzir o desejodessas pessoas de aproveitar essas oportunidades.Tocqueville (1969, p. 138) observou que a Consti-tuição americana “conferiu muito poder ao presi-dente, mas tirou-lhe a vontade de usá-lo”. O poderdecorre de suas prerrogativas e de seu poder deveto, a falta de vontade de sua constante preocupa-ção em reeleger-se. Raciocínio semelhante é apli-

cado à religião, conforme se pode conferir pela justaposição de duas passagens: “Enquanto a leipermite ao povo americano fazer tudo, existemcoisas que a religião os impede de imaginar e

proíbe de ousar fazer.” (idem, p. 292). E prossegueTocqueville: “Duvido que o homem seja capaz desuportar a completa independência da religião e atotal liberdade política ao mesmo tempo. Soulevado a pensar que se ele não tem fé, precisaobedecer, e se é livre, precisa acreditar.” (idem, p.444). O ponto central da primeira passagem é quea religião é endógena nas democracias, ao passoque a segunda diz que a religião tende a restringira liberdade potencialmente perigosa que também éparte integrante da sociedade democrática. Natu-

ralmente, os adversários da democracia focalizam oque as pessoas podem fazer nesse regime, enquan-to seus defensores dão ênfase aos limites, endoge-namente gerados, sobre o que elesvão querer fazer.

Estruturas causais semelhantes podem surgirno caso do socialismo de mercado. De fato, ocaráter dualista desse sistema é óbvio, poismerca-do e socialismo têm conotações muito diferentes epodem apontar para direções bem opostas. Assim,é possível esperar que o aspecto socialista do

sistema, ou seja, a propriedade dos meios deprodução pelos trabalhadores, promova um espíri-to de cooperação e solidariedade, enquanto oaspecto de mercado tenderia a operar na direção deum espírito de competição e até de hostilidade. Édifícil dizer a priori se as relações pessoais numasociedade socialista de mercado seriam modeladasmais pelo primeiro do que pelo segundo aspecto.

O impacto sobre a distribuição de rendatambém é ambíguo. Por um lado, seria de esperarque a distribuição de renda dentro das empresasentre trabalhadores de diferentes níveis de qualifi-cação fosse relativamente igualitária. Por outrolado, é possível que haja desigualdades duradourasentre trabalhadores de qualificações semelhantesem empresas diferentes. Como não há mercado detrabalho numa economia socialista de mercado,não existe nenhuma tendência natural para a uni-formização dos níveis de salários. As empresasbem-sucedidas, além disso, não tendem a se ex-pandir e, portanto, a absorver outros trabalhado-

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 21

res.22 E mesmo que convidem outros trabalhadoresa entrar para essas empresas, os últimos a chegarpoderiam receber um retorno inferior ao dos pio-neiros, caso tenham de pagar o valor de mercado

por uma ação da empresa.23 Caberia a esperançade que, em um ramo lucrativo de atividades, acriação de novas empresas obtivesse o mesmoresultado que a expansão das firmas tem no capita-lismo. Todavia, a criação de novas empresas levamais tempo do que a expansão das antigas e, nessemeio tempo, a atividade pode perder em lucrativi-dade. Quanto aos efeitos parciais, pode-se argu-mentar que a distribuição de renda no socialismode mercado poderá ser mais ou menos igualitáriado que no capitalismo.

E feitos de curto prazo versus efeitos de longo p r a z o

Essa distinção é um caso especial da ante-rior, mas suficientemente importante para mere-cer uma reflexão em separado. Tocqueville (1969,p. 224) escreveu a esse respeito que, “a longoprazo, o governo democrático deveria aumentaras forças reais de uma sociedade, mas não podereunir de imediato, em um ponto determinado eem um dado momento do tempo, forças tão po-

derosas quanto as que estão à disposição de umgoverno aristocrático ou de uma monarquia abso-lutista”. Aplicado à guerra, o argumento diz que“um povo aristocrático que, ao lutar contra umademocracia, não conseguir destruí-la na primeirabatalha, sempre correrá o risco de ser derrotadopor ela” (idem, p. 658). Aplicado à tributação, oargumento alega que “a liberdade engendra muitomais mercadorias do que destrói, e nos paísesonde isso é compreendido, os recursos do povosempre aumentam mais rápido do que os impos-tos” (idem, p. 209).

Posteriormente e de maneira independente(suponho), Schumpeter (1961, p. 83) fez a mesmaafirmação em seu famoso comentário de que “umsistema — qualquer sistema, econômico ou não —que, em cada momento do tempo, utiliza damelhor forma todas as suas possibilidades pode,ainda assim, a longo prazo, ser pior que um sistemaque não o faz em momentonenhum do tempo,porque seu fracasso pode ser uma condição neces-

sária do nível ou velocidade do seu desempenho alongo prazo”.24 Para avaliar a eficiência de umsistema, é preciso levar em conta sua capacidadede criar novos recursos e não simplesmente a de

alocar os recursos existentes de modo ótimo.Argumento semelhante pode ser aplicado aocaso da propriedade cooperativa. “Seo emprego parcimonioso e estático de capacidades decisóriasescassas, que caracteriza as organizações hierárqui-cas, pode ser vantajoso a curto prazo, essa mesmacaracterística pode ter a propriedade de retardar amultiplicação de capacidades que um sistema maisparticipativo ocasionaria, e que, na realidade, serevelaria muito benéfica.” (Putterman, 1982, p. 149;grifos no original). Esta é uma transposição para a

esfera da democracia econômica do argumento deTocqueville acerca da democracia política. Note-seque a questão não é que os sacrifícios a curto prazosejam uma condição necessária para o crescimentoa longo prazo, conforme demonstra a necessidadede investimentos (sacrifício do consumo imediato),como uma forma de obter um aumento futuro doconsumo. Ao contrário, trata-se de que a ineficiên-cia no curto prazo (e a conseqüente perda deconsumo) pode ser um subproduto inevitável dosistema que apresenta o melhor desempenho a

longo prazo. O sacrifício imediato (a curto prazo)está correlacionado com o desempenho a longoprazo, mas não é sua causa.

E feitos de transição versus efeitos do estado deequil íbr io

Tocqueville (1969, p. 688) escreveu que “épreciso ter cuidado para não confundir a realidadeda igualdade com a revolução que logra introduzi-la nas condições da sociedade e nas leis”. Osprodutos do equilíbrio endógeno da democracianão devem ser confundidos com os produtos tem-porários da democratização. Os últimos podem serindesejáveis, mas os primeiros muito desejáveis,como Tocqueville demonstra em uma grandequantidade de situações. Por exemplo, “enquanto aigualdade propicia a solidez dos princípios morais,a insurreição social que a promove tem uma in-fluência muito perniciosa sobre eles” (idem, p.599). E mais: “embora as ambições cresçam durante

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o processo de criação de igualdade, essa caracterís-tica é perdida quando a igualdade se torna um fatoda realidade” (idem, p. 629). Inversamente, emseus comentários ao segundo volume sobre a

Revolução Francesa, Tocqueville questiona a no-ção de que os regimes sem liberdade políticafavorecem a criação literária, porque dão maistempo para as pessoas se dedicarem aos seusinteresses particulares. Muito pelo contrário, dizTocqueville (1953, pp. 345-346), a transição daausência de liberdade para a liberdade é que tendea estimular as artes. Quando a tirania se instala, oespírito criativo desaparece.

Esse argumento tem aplicações muito am-plas. Para analisar um sistema econômico, social ou

político, não se deve examinar seu desempenhoimediatamente posterior à sua introdução, masesperar até que as propriedades de equilíbrio dosistema tenham tido tempo de emergir.25 Quer osistema de transição tenha um desempenho melhorou pior do que o novo estado de equilíbrio,certamente será diferente deste em muitos e impor-tantes aspectos. “Portanto, comparar a eficiência deuma instituição participativa, que conta com mem-bros hierarquicamente adaptados, com a eficiênciade uma instituição hierárquica com o mesmo tipo

de membros pode ser um procedimento tenden-cioso, pois a instituição participativa que tem essetipo de membros pode não ser uma proxy adequa-da para uma organização participativa bem consti-tuída que poderia desenvolver-se em condiçõesmais ideais” (Putterman, 1982, p. 149). Ao contrá-rio, numa economia cooperativa bem organizadahaveria ganhos de transição a ser alcançados com oretorno da hierarquia, pois, durante um certo tem-po, seria possível usufruir tanto das capacidadesgeradas pelas cooperativas quanto da utilizaçãoeficiente dessas capacidades que a hierarquia haviapossibilitado.

Além desses quatro argumentos usados porTocqueville para mostrar que o aprendizado pelaexperiência e com a experimentação não podesubstituir a teoria, gostaria de tratar de outra razão,ainda na linha de Tocqueville. Assim como algunstemas analisados até aqui, minha questão refere-seà dimensão temporal da mudança política. Aocontrário de Tocqueville, porém, abordo o tempo

tanto do ponto de vista dos atores quanto de umobservador externo. Em termos genéricos, e tudo omais permanecendo constante, um sistema queestimula o planejamento a longo prazo terá, com o

correr do tempo, um desempenho superior a umoutro que leva os atores a adotarem horizontesmuito curtos. Mas, é claro, os outros fatores podemnão permanecer constantes. Tocqueville disse quea democracia americana é produtiva a longo prazo,apesar de induzir os atores a pensarem em horizon-tes de tempo muito curtos. Nas democracias, aspessoas “têm medo de si mesmas, temem que, coma mudança de seus gostos, venham a lamentar nãoterem sido capazes de abandonar algo que antiga-mente foi objeto de seu ardente desejo” (Tocquevi-

lle, 1969, p. 582). Por isso elas “realizam muitosempreendimentos com rapidez em vez de erigiremmonumentos duradouros” (idem, p. 631). No en-tanto, seu desempenho a longo prazo é melhor doque o das pessoas capazes de enxergar mais longe.Cada realização isolada é menos impressionante,mas “sua incansável atividade, sua grande abun-dância de energia e força” (idem, p. 243) permite-lhes realizar muito mais.

Todavia, a estabilidade das preferências doconsumidor é apenas um fator determinante do

planejamento a longo prazo. Outro fator, muito maisimportante, é a estabilidade do ambiente institucio-nal. Os agentes econômicos relutam em realizarinvestimentos que demoram muito para produzirfrutos se temem a imposição de novos impostos oumudanças no sistema básico dos direitos de proprie-dade. As reformas em curso na China são uma boailustração desse ponto. Os reformadores chinesesdizem claramente que estão empenhados numagigantesca experiência. Em uma frase muito repeti-da, comparam o processo de reformas “a sentir aspedras debaixo dos pés quando cruzam o rio”,sugerindo que pode ser necessário voltar a umaposição anterior, caso determinada linha de açãoconduza a águas mais profundas. Essa atitude certa-mente induz os agentes econômicos a tomar umaperspectiva de tempo muito curta. Sabendo que, nahipótese de um fracasso da reforma, ela será imedia-tamente abandonada, adotam uma atitude prudentee cautelosa que, por sua vez, aumenta a probabili-dade de fracasso. Essa tendência é reforçada pelas

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 23

pressões políticas para obter resultados rápidos,devidas, em parte, ao fato de a reforma agrária de1978 ter obtido um êxito tão rápido e tão notávelque os operários agora esperam que a reforma

industrial tenha igual sucesso; em parte porque osgrupos conservadores tenderão a usar, a qualquercusto, qualquer prejuízo imediato como pretextopara bloquear o processo das reformas.

Isso implica, na prática, que os novos empre-sários somente se disporão a investir se houverperspectivas de superlucros, suficientes para recu-perar seus investimentos em um prazo de dois atrês anos. Numa economia que transita do planeja-mento centralizado para o regime de mercado hámuitos desequilíbrios a ser explorados por empre-

sários desejosos de enriquecer depressa.26 Há mui-to menos incentivos para investir produtivamente alongo prazo. Além disso, os empresários bem-sucedidos tendem a não reinvestir os lucros naempresa, preferindo empregá-los em mansões par-ticulares, menos vulneráveis ao confisco pelo Esta-do. Da mesma maneira, os camponeses investemseus rendimentos em habitação, em vez da melho-ria das suas terras, pois não estão muito convenci-dos da promessa do governo de respeitar o prazode 15 anos de arrendamento das terras.

Por conseguinte, a situação dos planejadoresé muito difícil. Em termos ideais, gostariam deapresentar cada nova reforma como definitiva eirreversível, já que a eficácia e os benefícios de umareforma dependem muito da certeza que se tenhade que ela durará tempo suficiente para valer apena fazer investimentos de longo prazo. Na práti-ca, é claro que tais afirmações não são críveis nafalta de instrumentos irreversíveis de comprometi-mento prévio. Na próxima seção argumento que osplanejadores chineses talvez não tenham mesmocondições de assumir esses compromissos. Alémdo mais, não está claro se desejariam assumi-los,mesmo que pudessem. Se as reformas de mercadoprovocassem fome e desemprego generalizado,eles não desejariam se ver impedidos de abandonartais compromissos.27 Concluo, portanto, que aprópria noção de “fazer experiências de reformas”não tem quase nenhum sentido, a não ser que osplanejadores consigam enganar os agentes econô-micos, levando-os a pensar que a reforma é defini-

tiva e irreversível. Isso se faz uma vez ou duas, masdecerto não é possível enganar o povo o tempointeiro. Cada reviravolta provoca uma perda deconfiança; cada recuo na travessia do rio derruba

algumas pedras e torna mais difícil a nova tentativade atravessá-lo.

Irracionalidade políticaDe acordo com o modelo da ação racional

individual,* a irracionalidade pode decorrer dafraqueza de vontade, do excesso de vontade e dedistorções na formação das crenças ou preferên-cias. Não discutirei aqui os análogos políticos daúltima classe de fenômenos. Pelas razões explica-

das na primeira seção, não existe nenhum modelocanônico de crenças e preferênciasracionais naesfera da política; portanto, não existe uma noçãoclara do significado de crenças racionais e prefe-rências racionais. Acredito, em vez disso, que afraqueza de vontade e o excesso de vontadeefetivamente surgem no decorrer da ação política;a primeira, porque a sociedade talvez não sejacapaz de manter decisões passadas, já que nenhu-ma autoridade superior obriga-a a sustentá-las; osegundo, porque a sociedade, mais ainda do que o

indivíduo, está constantemente sujeita à tentaçãode empregar meios cujo conhecimento os tornariaineficazes. Não admira, portanto, que a analogiaentre indivíduo e sociedade seja muito imperfeita.Na realidade, o valor da comparação está nasinúmeras dissimilitudes que ajudam a compreenderclaramente o que está envolvido nas duas modali-dades de irracionalidade.

No indivíduo, a fraqueza de vontade podedecorrer seja do poder da paixão, seja da incapaci-dade de sustentar uma decisão tomada no passado.O primeiro caso é exemplificado pelo homem queabandona a mulher porque se apaixonou por outra;o segundo, pelo homem que promete a si mesmocomeçar a fazer ginástica no dia seguinte. Existemalguns análogos políticos imperfeitos às duas situ-ações. As sociedades democráticas podem ceder aimpulsos antidemocráticos mobilizados por temo-res irracionais ou pela demagogia. Impostos cria-

* Modelo dezenvolvido no capítulo 1 do mesmo livro.

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dos como medidas temporárias tendem a se tornarpermanentes não obstante a firme intenção deaboli-los assim que desaparecer a situação que osprovocou. Em um nível mais geral, os políticos

empenhados na sua reeleição estão constantemen-te sujeitos à tentação de postergar a resolução dosproblemas.

No caso do indivíduo, as respostas gerais àfraqueza de vontade são o comprometimento pré-vio [ precommitment ] (Elster, 1984; Schelling, 1984,caps. 3, 4 e 6) e obunching* (Ainslie, 1982, 1984 e1986). Para um homem, o casamento é um compro-metimento prévio com uma mulher que torna me-nos provável, embora legalmente possível, o divór-cio. O tempo que demora concluir um processo de

divórcio cria uma oportunidade para que a paixãoesfrie um pouco e ele reflita melhor. Posso me forçara fazer ginástica fixando um contrato de pagar umagrande quantia a uma instituição de caridade se nãocumprir a decisão. O último problema, ao contráriodo primeiro, também pode ser resolvido porbun-ching: se eu não começar a correr hoje, será quealgum dia o farei? Na discussão que se segue,deixarei de lado obunching, que não me parece serum mecanismo importante na política, e me con-centrarei no comprometimento prévio como solu-

ção para a fraqueza de vontade política.Numa análise anterior do problema, Spinoza

estabeleceu uma analogia clara entre o comprome-timento prévio do indivíduo e o da política:

Não é de modo algum contrário à prática que asleis sejam tão firmemente estabelecidas que opróprio rei não as pode revogar. Os persas, porexemplo, costumavam adorar os reis como deu-ses, no entanto os próprios reis não tinham poderpara revogar as leis já estabelecidas, como revela

claramente o livro de Daniel, capítulo 6; e, emlugar algum, ao que eu saiba, um rei é nomeadode modo incondicional, sem quaisquer termosexplícitos. Na verdade, isso não é contrário nem àrazão nem à obediência absoluta devida ao rei,pois as leis fundamentais do Estado devem serencaradas como decretos permanentes do rei, de

modo que seus ministros prestam-lhe obediênciatotal quando se recusam a executar uma ordemsua que transgride às leis. Pode-se esclarecer esseponto com o exemplo de Ulisses, cujos compa-

nheiros de fato cumpriram sua ordem ao serecusarem, apesar de todos os seus pedidos eameaças, a desamarrá-lo do mastro do navioenquanto ele estivesse enfeitiçado pela canção dasereia; e deve-se creditar ao seu bom senso queele lhes tenha agradecido depois por terem cum-prido sua intenção original de maneira tão obedi-ente. Até mesmo os reis seguiram o exemplo deUlisses; geralmente, instruíam seus juízes a nãoterem nenhuma deferência com as pessoas naaplicação da justiça, nem mesmo com o próprio

rei, se porventura ele ordenasse algo que signifi-casse uma transgressão às leis estabelecidas. Por-quanto os reis não são deuses, mas homens,muitas vezes adulados pelo canto da sereia. As-sim, se tudo ficasse na dependência da vontadeinconstante de um único homem, nada seriaestável. (Tractatus politicus, VII.1)

Raciocínio semelhante aplica-se às democra-cias.28 Se todas as questões estivessem sujeitas aovoto por maioria simples, a sociedade não teria

estabilidade e previsibilidade. Uma pequena maio-ria pode ser facilmente derrubada por eventualida-des da participação ou pela mudança de opinião dealguns poucos indivíduos. E o que é mais importan-te, se a maioria fosse movida por paixões passagei-ras ou expedientes imediatos, poderia atuar demaneira imprudente e passar por cima de direitosindividuais concedidos por decisões anteriores.Todas as democracias, diretas ou indiretas, semprecontaram com instrumentos estabilizadores paraevitar que todas as questões fossem resolvidas pormaioria simples o tempo todo. Nas democraciasrepresentativas modernas, a auto-imposição de li-mites [self-binding] pode assumir várias formas (verElster e Slagstad, 1988). A abdicação ao poder nademocracia se dá quando a assembléia delega, demodo irrevogável, determinada parcela de poder aorganismos independentes, como o Federal Reser-ve Board ou o Fundo Monetário Internacional. Asconstituições políticas também contêm limitaçõesao poder democrático, por meio de uma combina-

* O termo bunching, neste contexto, significa tomar váriasdecisões ao mesmo tempo e não uma de cada vez.

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 25

ção de regras substantivas de proteção à privacida-de, à propriedade e às liberdades civis, e regras deprocedimento que exigem mais do que uma maio-ria simples para a realização de uma mudança

constitucional.Entretanto, a analogia entre a auto-imposiçãoindividual e a auto-imposição política de limites éextremamente restrita. Um indivíduo pode com-prometer-se com determinadas ações, ou, pelomenos, tornar mais difícil e menos provável des-viar-se delas, recorrendo a uma estrutura legalexterna e independente de si próprio. Masnãoex iste nada externo à sociedade. Com exceção dealguns casos especiais, como a abdicação de pode-res ao FMI, as sociedades não podem confiar sua

vontade a estruturas fora do seu próprio controle:os vínculos sempre podem ser desfeitos se associedades assim o desejarem. O problema não éexplicar por que tantas constituições fracassam emimpor obediência a seus criadores e nunca passamde meros pedaços de papel escrito. A questão estáem compreender de que maneira muitas constitui-ções conseguem adquirir essa misteriosa capacida-de de serem obedecidas.29

Para ilustrar o problema, retorno ao processode reformas em curso na China. Além dos proble-

mas criados pela atitude experimental em relação àsreformas, um importante obstáculo ao êxito e aoprogresso chinês é a ausência do princípio dalegalidade, que se define da seguinte maneira: (a)uma ação individual é permitida a não ser que existauma lei que a proíba expressa e inequivocamente;(b) a intervenção do Estado é proibida a não ser queexista uma lei que a autorize expressa e inequivoca-mente. Em vez disso, a tradição chinesa contém umaconcepção positiva da lei, segundo a qual (a) umaação individual é permitida se houver uma lei que aautorize expressamente; (b) o Estado tem o direitode intervir em todas as atividades não permitidas,mesmo que não sejam expressamente proibidas.30

Se uma atividade não é permitida pela lei, osindivíduos podem ou não ser autorizados a realizá-la — eles nunca podem saber. Por exemplo, houveuma época em que havia uma lei permitindo aconfecção de cartazes murais. Mais tarde, quandoessa lei foi revogada, interpretou-se que havia umaproibição de confeccionar cartazes, embora não

tivesse sido aprovada nenhuma lei que os proibisseexpressamente. Igualmente, “até 1980, o tamanhoda empresa privada era limitado a sete trabalhado-res. A restrição foi revogada, mas não se decretou

nenhuma lei que permitisse o emprego de mais doque sete trabalhadores até 1987, de modo que asimples suspensão do limite de sete trabalhadoresnão foi suficiente para favorecer a formação deempresas privadas. [...] A não ser que uma autorida-de estatal tenha explicitamente introduzido nasregras um determinada prática, ela poderia serarbitrariamente considerada ilegal.” (Roemer, 1988).

Nesse tipo de sistema, os sinais políticos sãomais importantes do que as leis para indicar aosindivíduos o que eles podem ou não podem fazer.

Janos Kornai diz que existem limites para a reformaeconômica em qualquer economia socialista en-quanto a “burocracia não esteja disposta a respeitarum refreamento voluntário de intervir” (apud Dernberger, 1987). Mas essa não me parece ser amaneira correta de formular a questão. O problemaé se a burocraciaé capaz e está disposta a se fazer incapaz de intervir , já que a tentação de fazê-losempre estará presente. Há necessidade de novasmedidas constitucionais, inclusive medidas queretirem a interpretação da Constituição das mãos

daqueles que ela supostamente deve conter. Atual-mente, “o Congresso Nacional do Povo pode decre-tar qualquer lei que deseje, ignorando o espírito ea letra da Constituição. Isso porque a Constituiçãoconcedeu o poder de interpretar a Constituição aoComitê Permanente do Congresso Nacional doPovo. [...] Não se pode sequer imaginar que esseórgão subordinado interprete uma lei decretadapor seu organismo de origem, isto é, o CongressoNacional do Povo, como sendo inconstitucional.”(Chiu, 1987).31

Afirmei, até aqui, duas coisas a respeito dasreformas na China. Primeiro, que a ausência deregras permanentes e estáveis impõe dificuldadesaos agentes econômicos para a realização dosinvestimentos de longo prazo necessários ao suces-so das reformas. Nas atuais circunstâncias, issotalvez seja inevitável. Se os planejadores tivessemde se comprometer de modo irreversível e definiti-vo com um sistema específico de propriedade,tributação e transferências para os particulares, o

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resultado poderia ser desastroso, acarretando de-semprego e fome em larga escala. O comprometi-mento prévio pode gerar mais problemas do quesoluções quando o contexto é suficientemente

incerto e imprevisível.32 Em termos ideais, nósgostaríamos de poder distinguir os bons dos mausmotivos para quebrar regras; os bons motivosseriam a razão para criar regras em primeiro lugar,e os segundos seriam exceções legítimas devidas acircunstâncias não previstas. (Afinal de contas, àsvezes temos boas razões para cancelar uma consul-ta ao dentista.) Os indivíduos usam uma variedadede expedientes para fazer essa distinção, mas estessão sempre frágeis e vulneráveis ao auto-engano(Ainslie, 1986). Pareceria ainda mais difícil para um

sistema político construir não só salvaguardas deprimeira ordem contra a impulsividade, mas tam-bém salvaguardas de segunda ordem contra aobediência irracionalmente rígida ao primeiro tipode garantias e proteções. Não é uma questão devigiar os guardas, mas de fazê-los abaixar a guardaem casos de força maior.33

Meu segundo comentário sobre a prática dosreformadores chineses, que trata da falta do princí-pio da legalidade, é mais crítico. Aceitar a necessida-de da experimentação e os perigos de um compro-

metimento muito rígido é uma coisa; admitir alegislação retroativa e a invocação de uma concep-ção positiva da lei é outra. Essas práticas estimulama passividade e a relutância em assumir qualquertipo de risco. Nesse sentido, o atual regime vemperpetuando os anos turbulentos vividos entre 1957e 1976, que criaram nas pessoas uma tendênciaprofundamente arraigada de viver no tempo futuro,constantemente se perguntando sobre como suasações seriam interpretadas e punidas se “o outrolado” retomasse o poder. O primeiro passo nadireção de uma reforma constitucional deve ser,portanto, introduzir o princípio da legalidade.

Finalmente, há uma questão de maior profun-didade: será que os reformadores poderão realizarreformas constitucionais sem um compromisso nor-mativo com o princípio da legalidade e com osdireitos individuais? Se eles introduzirem um siste-ma constitucional e renunciarem a alguns dos seuspoderes apenas para fazer a economia funcionar, osagentes econômicos sempre irão temer que os

direitos venham a ser abolidos quando a economiaenfrentar dificuldades. Mesmo que os planejadoresabdicassem do poder de interpretar a Constituição,por muito tempo teriam ainda condições de agir fora

da lei. A curto e médio prazos, o Partido ComunistaChinês não poderá fazer-se efetivamente incapazde reverter o processo de reformas. Ele tem muitasespécies de poder,mas não o poder de se faz er sem poder . Ulisses teve sorte porque tinha à mão atecnologia necessária para impor a si mesmo umalimitação. Os planejadores centrais não dispõem demeios para atar suas próprias mãos e para impedirseus subordinados de as desatar. Em conseqüênciadisso, os agentes econômicos tenderão a adotar umhorizonte curto de tempo, de modo que o sistema

terminará realmente entrando em crise. Somente see quando os direitos são adotados em bases nãoinstrumentais adquirem a desejada eficácia instru-mental, porque somente então o governo terá credi-bilidade para declarar que as violações dos direitosnão serão toleradas.

Ao sugerir que os efeitos salutares da liberda-de são essencialmente subprodutos, sigo mais umavez a opinião de Tocqueville (1952, p. 217):

Tampouco penso que um genuíno amor pela

liberdade é despertado pela perspectiva de re-compensas materiais; na realidade, essa perspec-tiva é muitas vezes duvidosa, pelo menos no quediz respeito ao futuro imediato. É verdade que, alongo prazo, a liberdade sempre traz conforto ebem-estar para aqueles que sabem como conser-vá-la e, muitas vezes, grande prosperidade. Entre-tanto, às vezes, ela não traz comodidades dessanatureza e, inclusive, há ocasiões em que odespotismo é mais capaz de assegurar um brevedesfrute dessas amenidades. Na realidade, os que

prezam a liberdade apenas por causa dos benefí-cios materiais que ela oferece nunca a conservampor muito tempo.

Tampouco aqueles que prezam a liberdadeapenas por causa dos benefícios materiais que elaoferece conservaram esses próprios benefícios. Atentativa deliberada de criar liberdade política comomeio de obter prosperidade material é uma formade excesso de vontade. Para que a liberdade seja

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 27

valiosa do ponto de vista instrumental é preciso quese saiba que ela tem uma base não instrumental,caso contrário ela não garantirá a segurança e a pazde espírito que ocasionam seus efeitos salutares.

Saber que as liberdades só foram concedidas pormotivos instrumentais retira parte de sua eficáciainstrumental, porque os cidadãos nunca podemconfiar em que o governo não virá a mutilá-las, seassim lhe parecer vantajoso a curto prazo.

Um problema correlato está latente em muitosprogramas governamentais de frentes de trabalho.34

Entre os benefícios freqüentemente citados dessesprogramas está seu efeito sobre o auto-respeito daspessoas que têm emprego. De fato, é verdade queestar desempregado e viver à custa do seguro-

desemprego pode ser nocivo para o auto-respeitode uma pessoa, mas não é evidente que um trabalhocujo único e principal objetivo é criar o auto-respeito produza o efeito pretendido.35 Para gerarauto-respeito, um trabalho precisa ter como objetivoimediato a produção de bens e serviços socialmenteconsiderados valiosos. O valor não instrumental doauto-respeito somente pode ser alcançado comosubproduto do valor instrumental de produzir bense serviços. A experiência dos programas de frentesde trabalho na década de 30 apóia essa opinião:

A economia política das frentes de trabalho criouuma série de obstáculos aos fatores de produção,à tecnologia, à organização e ao tipo de produtos.Esses obstáculos afetaram o valor social do produ-to. Não só a eficiência das medidas tornou-semuito inferior à dos programas comparáveis decontratos, como também as forças políticas deuma economia de livre iniciativa tornaram essesprogramas não competitivos. A restrição dos tiposde projetos foi provavelmente o fator mais grave

na diminuição do valor do produto.Os benefíciosnão pecuniários que deveriam ser derivados dos programas de frentes de trabalho — sustentaçãoda moral, das qualificações e dos hábitos de traba-lho — dependiam eles mesmos, e de maneiradecisiva, do valor do produto. (Kesselman, 1978,p. 215; grifos meus)

Entre as políticas que, por razões semelhan-tes, acabam gerando o resultado contrário ao qual

se destinavam estão: as tentativas de manter os jovens nas escolas (ou universidades), mais paraevitar que eles se tornem problemas do que paraensinar-lhes conhecimentos; a generalização da

ênfase na participação, no process valuese nodignitary values, como objetivos em si mesmosmais do que como instrumentos de aperfeiçoamen-to dos resultados; e, nas economias de planejamen-to central, a prática de fixar deliberadamente metasirrealizáveis para forçar os agentes a um esforçomáximo. Esses programas tendem a dar melhoresresultados (e, portanto, são mais atraentes) napolítica do que no caso do indivíduo, porque, naprimeira hipótese, o sujeito e o objeto da vontadeexcessiva são agentes distintos. Quando o governo

promove a liberdade para incentivar a iniciativados cidadãos, ou cria empregos para manter o auto-respeito dos trabalhadores, os grupos alvo nãoprecisam estar informados dessas intenções. Umindivíduo, ao contrário, dificilmente está alheio àsua intenção de vencer a insônia ou de ser maisespontâneo.

Todavia, as sociedades democráticas são cons-truídas sobre a premissa de que o governo não deveenganar os cidadãos, mesmo que seja para o própriobem deles. A condição da publicidade, propagada

por Kant e Rawls,36 elimina o tipo de embuste capazde permitir que o governo ponha em prática políti-cas insustentáveis à luz do dia, tais como trabalho,educação e participação fictícios. Mesmo nas socie-dades não democráticas e em sociedades apenasformalmente democráticas, nas quais essa condiçãoé violada, em geral os governos não são capazes desustentar o embuste por muito tempo. A hipocrisia écontagiosa. Treinamentos e empregos de faz-de-conta criam estudantes e trabalhadores de faz-de-conta. O entusiasmo simulado com que o gerente dafábrica anuncia as metas planejadas para o anoseguinte acaba por traí-lo.

Alternativas ao racionalismo napolítica

Se a concepção de racionalidade baseada noator unitário não consegue orientar ou explicar aação política, quais seriam as possíveis alternativas?A questão da explicação reduz-se a uma análise do

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comportamento individual uma vez reconhecida anecessidade de desagregar o processo político.Nesta seção focalizo o problema normativo: quetipos de argumentos para a ação são coerentes com

os limites cognitivos à racionalidade que estouprocurando mostrar? A resposta de Michael Oake-shott e Friedrich Hayek seria a de que a fragilidadeda razão humana exclui por completo a reformaconsciente e deliberada. Na opinião desses autores,tentativas de mudar a sociedade numa direçãoespecífica consistem no que denominam de “racio-nalismo” e no que Otto Neurath chamou de “pseu-do-racionalismo”, a incapacidade da razão de defi-nir e respeitar seus próprios limites. Sustentarei,porém, que não se pode extrair essa conclusão

excessivamente cética, porque nem todas as razõespara a reforma são de natureza conseqüencialista.

Dentro do paradigma da teoria das decisõesforam formuladas várias alternativas à abordagemconseqüencialista. Isaac Levi (1974) sugere, porexemplo, que a segurança e o diferimento podemsuplementar a racionalidade instrumental como cri-tério de escolha em condições de incerteza. Éevidente que ambos são relevantes para a açãopolítica. Na escolha da forma de energia — fóssil ounuclear —, é muitas vezes difícil estimar os custos e

os riscos (Elster, 1983b, apêndice 1). Uma linha deargumentação consiste em pressupor que o pior vaiacontecer, e optar, por exemplo, pelos riscos locaisde um acidente nuclear, ao invés do risco universaldo efeito estufa. Outra maneira de pensar é darênfase à necessidade de ganhar tempo e manterabertas nossas opções até que se tenha um maiorconhecimento dos riscos envolvidos na escolha.

Neste artigo, quero ir além da abordagem dateoria das decisões e sugerir que a justiça propor-ciona uma motivação alternativa para a realizaçãode reformas políticas. Não acredito que as principaisreformas políticas realizadas no último século te-nham-se apoiado sobretudo em razões instrumen-tais; ao contrário, elas foram defendidas por movi-mentos sociais ancorados numa concepção de justi-ça. Ilustro essa proposição com dois principaisexemplos: a extensão do direito de voto e o surgi-mento do welfare state. Posteriormente, aplico amesma idéia a algumas propostas em curso para areforma econômica. Baseio-me na concepção da

justiça comodireito não instrumental à igualdadede consideração e de respeito que, sob vários formas,é subjacente aos estudos de John Rawls e RonaldDworkin. Isso inclui principalmente o direito à igual

participação na formulação de decisões políticas eno bem-estar material. Segundo essa concepção, asdesigualdades apenas se justificam em um conjuntomuito restrito de condições. A exclusão do direito devoto somente se justifica por razões de grave inca-pacidade mental. Desvios do padrão de completaigualdade nas condições de bem-estar material sópodem ser justificados por dois critérios de não-perversidade: primeiro, não deveria haver compen-sação e redistribuição quando os benefícios conce-didos aos indenizados forem pequenos em compa-

ração com os custos que acarretam para outros;37segundo, não deveria haver compensação se estaimplicar tratar os beneficiários como não responsá-veis por seus próprios estados mentais.

O ponto central da minha argumentação éque, na medida em que o princípio subjacente àsreformas for considerado fundamentalmente justo,no sentido acima indicado, as pessoas estarãodispostas e motivadas a suportar os custos datransição e a experimentar diversas modalidades deimplementação. Quem achar essa proposição ex-

cessivamente idealista talvez se sinta mais interes-sado numa outra maneira de formulá-la: se umareforma é geralmente considerada justa, é difícilalguém fazer-lhe oposição de modo um poucomais entusiasmado. Geralmente é fácil distinguir averdadeira oposição às reformas de campanhasque sabidamente não vão dar em nada, destinadasapenas a adiar o inevitável.

Examinemos primeiro o caso da extensão dodireito de voto. Nas democracias, o direito de votoé necessariamente limitado pela idade e pela con-dição de cidadão (ou residente). Além desseslimites, não há restrições inerentemente indispen-sáveis e, na maioria das democracias, hoje em diaexistem poucas restrições além dessas. Antigamen-te, porém, houve numerosas e fortes limitações.Pode-se distingui-las por seu conteúdo substantivoou, o que é melhor, por sua motivação subjacente.

Restrições econômicas, como a posse depropriedades ou o pagamento de impostos, foram justificadas pelo menos de quatro maneiras diferen-

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tes.38 Primeiro, antes da introdução do voto secre-to, a prosperidade econômica foi muitas vezesentendida como garantia daintegridade que seconsiderava necessária para evitar que os eleitores

fossem comprados.39 Segundo, considerava-se fre-qüentemente que a posse de propriedades conferiaaos seus donos uma competência especial paraparticipar da política, ou porque a propriedade eravista como uma proxy para a educação (daí o fatode que possuir propriedades eximia a pessoa doteste de alfabetização), ou porque se acreditavaque a propriedade era uma garantia de que oindivíduo dispunha do tempo livre necessário, ouainda porque se pensava que ter propriedadeslevaria o indivíduo a interessar-se pelo bem-estar

da sociedade a longo prazo e não ser movidoapenas pelo desejo de obter ganhos imediatos. Osproprietários de terras, por exemplo, foram espe-cialmente favorecidos por essas razões. Terceiro, ataxa de imposto fixo por pessoa [ poll tax] foidefendida porque se acreditava que a disposiçãopara pagar impostos demonstrava um alto nível demotivação e interesse nas questões políticas.40 Aprincipal alegação a favor da poll tax, no entanto,era que ela indicava que um cidadão era competen-te para deliberar. Por último, as limitações econô-

micas foram justificadas com base na justiça comu-tativa: não deve haver tributação sem representa-ção, e vice-versa. Entre esses argumentos, os trêsprimeiros são claramente instrumentais, no sentidode que seu objetivo é produzir decisões substanti-vamente boas. Passariam no teste “de racionalida-de” e até mesmo no teste de “inspeção especial” doque constitui uma classificação admissível (Ely,1980, pp. 31, 120-124 e 146-148). O último argu-mento baseia-se em considerações sobre a justiça,mas de um tipo muito especial e restrito, comoargumento abaixo.

A maioria das outras restrições pode serclassificada em uma dessas categorias. A exclusãodos filhos que residem com a família mas não têmum quarto próprio era uma prática usual na Grã-Bretanha antes de 1914, e justificava-se por umarazão de integridade: não era possível formar umaopinião política de modo adequado e independen-te se a pessoa não dispusesse da privacidademínima de ter um quarto só para si na residência da

sua família. A relação estabelecida entre o sufrágiouniversal e o serviço militar obrigatório baseia-seem razões de justiça comutativa.41 A privação dodireito de voto dos soldados que estão no serviço

ativo, ao contrário, justifica-se pelo fato de seremmembros temporários da corporação e de, por isso,não terem interesse algum na sua prosperidade alongo prazo (Ely, 1980, p. 120). Alega-se essamesma razão para vetar a representação estudantilnos organismos dirigentes das universidades e paraimpor requisitos estritos de residência para queuma pessoa tenha o direito de votar em eleiçõeslocais. A comprovação de ser alfabetizado tem afinalidade de separar os eleitores mais competentesdos menos qualificados. A privação do direito de

voto dos doentes mentais justifica-se pelos mesmosmotivos. Os criminosos não podem votar enquantoestiverem confinados, ou mesmo depois de soltos,por razões de justiça comutativa, mas os legislado-res possivelmente também foram influenciadospela idéia de que as opiniões políticas dos crimino-sos condenados tendem a ser distorcidas ou falsas,e, portanto, eles não devem ser representados.42

Por fim, a exclusão das mulheres foi justificada porrazões de competência ou de justiça comutativa(porque as mulheres não são obrigadas ao serviço

militar).Os argumentos baseados na justiça comutati-

va partem de uma visão da sociedade como umasociedade anônima, em que os cidadãos cooperamvisando obter vantagens mútuas. Embora os contri-buintes do imposto de renda possam estar dispos-tos a gastar uma parte do que pagam com os nãocontribuintes, geralmente insistem em participar dadecisão de empregar o dinheiro dessa maneira e,crucialmente, em excluir os não contribuintes dessadecisão.43 “Não há representação sem tributação.”Mais adiante, sustento que existe uma ambigüidadena expressão “não contribuinte”, que pode incluirtanto os que estão permanentemente incapacitadospara o trabalho e, portanto, não têm condições depagar imposto de renda, quanto os que estãotemporariamente sem emprego. Por ora basta notarque, nas duas acepções, destituir os não contri-buintes (ou, em decorrência, os que não prestamou não podem prestar serviço militar) do direito devoto baseia-se numa concepção muito estreita de

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justiça. Trata-se da visão de que uma sociedadebem organizada nasce de uma negociação entreindivíduos motivados pelo interesse próprio, naqual os que não têm nada a contribuir e, por

conseguinte, nenhum poder de barganha tambémnão podem esperar receber coisa alguma, excetodas instituições de caridade.44

O sufrágio adulto universal fundamenta-senuma concepção mais simples e mais atraente, quetranscende ao mesmo tempo as considerações ins-trumentais e de justiça comutativa. De fato, a socie-dade é uma joint venture, mas o que une seusmembros não é apenas o interesse mútuo, mastambém o respeito mútuo e a tolerância recíproca.Se o primeiro passo no desenvolvimento da demo-

cracia foi a idéia de que nenhum grupo de pessoaspodia imaginar-se intrinsecamente superior aos ou-tros (Barry, 1979), o segundo foi que nenhum grupopodia imaginar-se intrinsecamente inferior aos ou-tros. Esse argumento, reformulado, desenvolve-seda maneira que se segue. (a) Não existe nenhumgrupo, seja qual for sua definição (os ricos, osnobres, os proprietários de terras, os homens, osvelhos, os educados ou os inteligentes), cuja totali-dade dos seus membros seja intrinsecamente maisapta do que os não membros para tomar decisões

políticas. (b) Como as afirmações de superioridadeou inferioridade podem ter no máximo validadeestatística, há razões para que as pessoas se sintamofendidas e rebaixadas pela exclusão decorrente deuma generalização que inevitavelmente comportaexceções. (c) A escolha de especialistas para averi-guar o fundamento das afirmações de superioridadee inferioridade é uma questão passível de disputa,da qual nenhum grupo potencialmente inferiordeveria ser excluído. (d) Caso fique demonstradoque os membros de algum grupo carecem danecessária competência e motivação, dever-se-iapresumir que a razão disso foi a falta de oportunida-des de participação, e não um déficit inato deinteligência. Além disso, os indivíduos excluídosteriam boas razões para duvidar de que as decisõestomadas pelos habilitados a votar sejam guiadaspela preocupação de um dia incorporá-los (Ely,1980, pp. 220-221). (e) Especificamente, não hárazão alguma para acreditar que a integridade — omais importante critério de habilitação para a parti-

cipação política — seja mais freqüentemente encon-trada em qualquer dos grupos mencionados, ou emqualquer outro grupo. O governo dos inteligentes,ricos e cultos tende a tornar-se, e a continuar sendo,

o governo para os inteligentes, ricos e cultos. (f) Osque são impedidos de votar raramente são impedi-dos de reclamar que deveriam votar. Em conse-qüência disso, os grupos privilegiados se vêemfrente a frente com um dilema: caso se recusem aoferecer explicações, enfraquecem sua própria po-sição como donos de uma sabedoria superior; sefornecerem explicações, implicitamente estarão re-conhecendo os grupos excluídos como seus iguaisem inteligência.45 Uma vez instalada alguma formade democracia, a defesa de um privilégio parcial

torna-se insustentável; não haverá compromissopossível entre contrários: a democracia tem deexpandir-se ou desaparecer. A condição de publici-dade assegura que a igualdade é promovida pelaprópria tentativa de combatê-la.

Freqüentemente se diz que a extensão dodireito de voto deve ser interpretada em termos deexigências de legitimidade (ver, por exemplo, Free-man e Snidal, 1982). Os governos e as classesdominantes aboliram sucessivamente as restriçõesao direito de voto porque foram obrigados a fazê-lo

para manter sua legitimidade. Se o sufrágio adultouniversal não tivesse sido concedido, haveria umgrande descontentamento e inquietação social; porisso, governos escolhidos por um eleitorado restritooptaram pelo menos pior, ou seja, foram motivadospela racionalidade instrumental ao ampliarem odireito de voto. Essa opinião pode ter algum grau deverdade, mas fica muito aquém de uma explicaçãocabal. Argumentos baseados na legitimidade pres-supõem outras razões. A não ser que a maioria dapopulação desejasse a extensão do sufrágio poroutros motivos, os governos não perderiam legitimi-dade por não concedê-la. Minha opinião é que,entre esses outros motivos, argumentos baseadosem justiça tiveram importância. A concessão dodireito de voto às mulheres é o exemplo mais claro.Não foi uma concessão propugnada por um partidoou movimento político, com o propósito de usar ovoto para promover os interesses sociais e econômi-cos das mulheres; ao contrário, a exclusão dasmulheres do direito de votar foi considerada intrin-

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 31

secamente intolerável e degradante.46 Quanto àclasse operária, as motivações estiveram muitasvezes intimamente relacionadas com a defesa deinteresses econômicos. No entanto, como fica claro

a qualquer leitor de A formação da classe operáriainglesa, de E.P. Thompson, a luta pelo voto masculi-no foi em grande parte motivada por simplesargumentos de justiça.47

O surgimento dowelfare state é análogo àextensão do direito de voto, e ambos os fatos estãointerligados. Em primeiro lugar, é preciso fazeruma distinção entre dois aspectos dowelfare state.Por um lado, algumas de suas iniciativas têm aforma de poupança compulsória ou de contribui-ção compulsória para um fundo comum de risco,

sem nenhum componente redistributivo. Por outrolado, algumas atividades são essencialmente redis-tributivas. Embora a maioria dos serviços dewel- fare combine os dois elementos, é interessantedistingui-los.

Quanto às primeiras atividades, é o seu cará-ter compulsório que as torna um componente dowelfare state. As pessoas podem fazer e fazempoupanças para a velhice e seguros contra doençase acidentes pessoais. No entanto, os pagamentosde seguros por livre escolha dos indivíduos foram

crescentemente substituídos por descontos com-pulsórios em folha de pagamento.48 Às vezes, ossistemas de indenização compulsória conservam abase atuarial dos sistemas privados. Nesse caso, osargumentos para mantê-los só podem ser paterna-listas. Os indivíduos se comprometem, por inter-médio dos políticos, com medidas que gostariamde tomar enquanto cidadãos privados, não fossesua fraqueza de vontade. Mas os sistemas compul-sórios diferem do seguro privado de duas maneiras:não são atuarialmente corretos, no plano do indiví-duo, nem autofinanciáveis, no plano coletivo.

O seguro compulsório é muitas vezes acom-panhado de medidas redistributivas. As pessoasgeralmente não recebem de volta, quando chegam àvelhice, o equivalente atuarial do que pagaramdurante a vida inteira. É verdade que existemaspectos redistributivos na maioria dos sistemas deseguro privado: “Como nenhuma classe de risco éinteiramente homogênea, sempre parece haver umcerto subsídio dos riscos ligeiramente mais elevados

dentro de uma classe pelos riscos ligeiramente maisbaixos” (Abraham, 1986, p. 84). Os aspectos redistri-butivos do seguro social vão deliberadamente alémdesses efeitos, em geral no sentido de um nivela-

mento. É o que acontece com freqüência cada vezmaior nas companhias privadas de seguros, quandoestão proibidas por lei de adotarem certas classifica-ções para diferenciar entre classes de risco. Porexemplo, se as classificações por sexo fossem proi-bidas, “os homens subsidiariam as aposentadoriasdas mulheres e estas subsidiariam o seguro de vidados homens” (idem, p. 92). Esse tipo de políticapode levar a situações absurdas. Por exemplo, “nãoparece correto pedir aos segurados por invalidezque arquem com o custo total dos subsídios aos

hemofílicos”(idem, p. 99). Desde que a sociedadedecida usar o seguro compulsório para fins redistri-butivos, não é adequado exigir que cada programaem separado seja autofinanciável. De fato, não hárazão alguma até mesmo para exigir que todos osprogramas sejam autofinanciáveis, pois não há porque manter essa forma de redistribuição inteiramen-te separada da redistribuição pela tributação. Oresultado final é owelfare state, um sistema no quala correlação original entre prêmios e benefícios emgrande medida desapareceu.

Embora a contribuição compulsória para umfundo comum de risco e a redistribuição muitasvezes andem juntas no modernowelfare state, adistinção entre ambas não deixa de ter utilidade. Porum lado, o sistema público oferece proteção contramuitos casos de invalidez que jamais seriam cober-tos pelos seguros privados. Os portadores de ce-gueira congênita ou de defeitos genéticos nãopodem contratar seguros contra essas fatalidades,pois não se pode fazer seguro contra um evento que já ocorreu. É difícil fazer seguro privado contra odesemprego, pois os riscos para os diferentes indiví-duos não são estatisticamente não correlacionados,como seria necessário a um sistema sólido deseguros. Na outra ponta do espectro, alguns compo-nentes do sistema de seguro social ainda obedecemaproximadamente aos princípios atuariais (Page,1983, pp. 67 e 75). A meio caminho entre essespólos, alguns serviços comportam um elementoredistributivo mais amplo, outros, um componentede fundo de risco. Este último corresponde à con-

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cepção da sociedade como uma joint venturepara aobtenção de vantagens mútuas, ao passo que ocomponente redistributivo reflete um princípio maisfundamental de simples justiça.

Pode-se explorar mais a fundo essa distinçãointroduzindo a idéia de um “véu de ignorância”.Muitas teorias sobre a justiça distributiva coincidemna opinião formal de que uma justa distribuição derecursos é aquela em que os agentes racionaisescolhem por trás do véu de ignorância, emboradiscordem quanto à “espessura” desse véu. Usandoterminologias distintas, mas em essência equivalen-tes, as teorias podem concordar que a distribuiçãode produtos ou de bem-estar não deveria ser afetadapelos aspectos “moralmente arbitrários” das pes-

soas, embora divirjam quanto ao que é arbitrário e oque é relevante. O fundo de risco ocorre por trás deum véu muito fino, que permite às pessoas conhece-rem suas aptidões, preferências e riqueza, mas nãosua futura capacidade e oportunidade de auferirrenda. Nessas circunstâncias, os indivíduos racio-nais admitirão fazer seguro contra riscos, isto é,pagar um prêmio para um fundo comum do qualpodem extrair indenizações. A redistribuição ocorrepor trás de um véu mais grosso, que nega às pessoaso conhecimento de muitas, talvez a totalidade, das

suas qualidades e dotes pessoais. Quando estão portrás de um grosso véu de ignorância, as pessoas seperguntam como gostariam que uma sociedadefosse organizada se desconhecessem os bens oupreferências que passariam a possuir. Os indivíduosracionais talvez queiram proteger-se contra o riscode nascerem pobres, ou pouco dotados de aptidõesprodutivas, ou excessivamente dotados de gostosdispendiosos.

A noção de fino véu de ignorância deve serentendida de modo bem literal: como não sabemoso que o futuro nos reserva, há sentido em tomarprecauções. O véu grosso, ao contrário, não podeser entendido literalmente, pois temos noção denossas aptidões, preferências e riqueza. Os véusgrossos são apenas expedientes literários para ex-pressar a idéia de que o bem-estar dos indivíduosnão deveria ser afetado por determinados atributosarbitrários — justamente aqueles que são abstraídospor trás do véu em questão. O mais fino desses véusgrossos corresponde a uma concepção meritocrática

da justiça, segundo a qual as pessoas têm direito aosfrutos de suas aptidões e esforços, mas não aosfrutos da propriedade herdada. Um véu um tantomais grosso é aquele proposto por Ronald Dworkin,

que afirma que a distribuição do bem-estar deveriaser “sensível à ambição”, mas não “sensível aosdotes” (Dworkin, 1981, p. 2). O véu mais impenetrá-vel é o que John Rawls formulou ao dizer que asambições e preferências, inclusive as preferênciasde tempo, preferências de lazer e a aversão ao risco,não são menos arbitrárias moralmente do que asaptidões. O utilitarismo baseia-se em uma idéiasemelhante, mas chega a conclusões diferentes porincluir uma noção distinta do que constitui a escolharacional por trás do véu de ignorância.

O componente redistributivo dowelfare statebaseia-se na premissa de que alguns atributos dosindivíduos são moralmente arbitrários, incluindo-se entre eles, no mínimo, as aptidões e inaptidõesinatas. O Estado de bem-estar corresponde a umacrença generalizada de que é injusto deixar que aspessoas sofram por causa de acidentes genéticosque não podem controlar. Segundo essa perspecti-va, a visão meritocrática parece ser inconsistente.Se o acaso social deve ser eliminado como fatordeterminante do bem-estar, por que o acaso gené-

tico deveria ser respeitado? Entretanto, a opinião deDworkin também pode ser acusada de inconsistên-cia (ver especialmente Roemer, 1985). Como sepode defender a idéia de que um nível baixo deambição e uma elevada taxa de desconto temporalnão são também produtos do acaso social e gené-tico? Se o forem, por que não servem de base paraa compensação? Esta parece ser a questão filosóficacentral do debate atual sobre owelfare state.49

Para responder a essas perguntas deve-secomeçar observando o fato de que owelfare state

moderno está inserido em uma democracia políticaque se baseia, entre outras coisas, na condição depublicidade. Dizer a um cidadão que ele temdireito à previdência social porque não é responsá-vel por suas preferências é pragmaticamente inco-erente.50 Não se pode tratar as preferências de umapessoa como uma desvantagem que justifica umacompensaçãoe, ao mesmo tempo, considerar essasmesmas preferências como contribuições legítimaspara o processo político; não se pode a um só

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 33

tempo tratar o indivíduo como movido por forçaspsíquicas fora do seu controlee como racional eacessível à argumentação. Essas práticas talvezpossam ser justificadas para um terceiro interlocu-

tor alegando-se que é melhor permitir que pessoasirresponsáveis tenham acesso ao processo políticodo que provocar um tumulto político excluindo-as.Mas, numa sociedade democrática, uma políticaque não pode ser explicada de maneira coerente àspessoas envolvidas deve ser rejeitada. Restringindoa concessão de benefícios materiais, protegem-seos valores cruciais da consideração e respeito.Aqueles que têm condições de trabalhar mas serecusam a fazê-lo não deveriam receber auxílio, damesma maneira como aqueles que têm condições

de poupar e se recusam a fazê-lo não deveriam sercompensados por sua incontinência. A democraciapolítica inclui um componente de justiça comutati-va ou dequid pro quo: não é que se deva exigir queos cidadãos façam incondicionalmente determina-das coisas (como pagar impostos ou ir à guerra),mas sim que se deveria pedir-lhes que façamdeterminadas coisasse podem faz ê-las.

Entretanto, como já adverti, esse princípioaustero é apenas um começo de resposta. Se fosseaplicado à maioria das sociedades contemporâne-

as, muitos o considerariam injusto, e com razão,porque os recursos econômicos necessários paraformar preferências de modo autônomo são desi-gualmente distribuídos. Em qualquer sociedade háindivíduos que, por razões idiossincráticas, sãosurdos aos incentivos e, em casos mais graves,precisam ser sustentados pelo Estado. Mas, numasociedade de bases justas, o sustento não seriadado como compensação, e os indivíduos benefi-ciados se distribuiriam de modo mais ou menosaleatório, como os doentes mentais, entre todos osgrupos sociais. A maioria das sociedades contem-porâneas não se aproxima dessa condição. Elasincluem grupos numerosos cujos membros sãosistematicamente impedidos, pela pobreza ou pelafalta de oportunidades de emprego, de desenvol-ver uma atitude de responsabilidade por seusatos.51 Tratá-los como se as condições do contextofossem justas, dizendo-lhes que devem culpar ape-nas a si mesmos por seu fracasso, é prova de má-fé.Enquanto não for eliminada a influência de fatores

genuinamente arbitrários, como a riqueza, a justiçaimpõe considerar moralmente arbitrárias algumascaracterísticas que seriam vistas como não arbitrá-rias, não fosse pela existência das primeiras.

A extensão do direito de voto e dowelfarestate realizou-se a despeito de várias objeções defundamento instrumental. Dizia-se que as classesnão proprietárias iriam abusar de seu poder eleito-ral, confiscar a riqueza dos ricos e, por fim, empo-brecer todo mundo, inclusive elas mesmas. A trocado risk pooling pela redistribuição criaria uma novaclasse de parasitas, que iriam explorar o núcleo depessoas trabalhadoras da população até que, nofinal, também elas acabariam sendo prejudicadaspelas reformas. Por outro lado, defensores das

reformas formularam argumentos baseados na ex-pectativa de vantagens instrumentais. O processopolítico sairia ganhando com a maior diversidadede opiniões e perspectivas que acompanharia aextensão do direito de voto. A provisão de benefí-cios previdenciários reduziria as taxas de morbida-de e mortalidade, não só entre os não proprietárioscomo também entre as classes possuidoras, porreduzir a incidência de doenças contagiosas. Eassim por diante, toda uma longa lista de supostosriscos e vantagens.

Se aceitarmos a argumentação desenvolvidanas seções anteriores, essas razões são errôneas, eos argumentos positivos às vezes são duplamenteequivocados. É praticamente impossível anteciparos efeitos líquidos a longo prazo do estado deequilíbrio instalado por grandes reformas dessetipo. Além disso, alguns argumentos positivos nãoresistem a uma exposição à luz do dia. A condiçãode publicidade impede que se defendam medidascuja única e principal justificativa é o impactoesperado sobre o caráter dos cidadãos, os quaisdeveriam tornar mais entusiásticos, dotados deespírito público ou mais passivos. A norma daigualdade, pelo contrário, é transparente e irresistí-vel; é uma característica inevitável de uma socieda-de democrática, baseada na discussão racional epública. Como afirmei antes, opor-se a essa norma já implica reconhecê-la. Ignorá-la é rejeitar osmarcos democráticos da discussão e da justificação.

Concluo fazendo alguns comentários sobretrês propostas recentes para a reforma econômica.

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São elas: (a) a proposta de James Meade (1964) emprol de uma “ property-owning democracy”, desen-volvida por Richard Krouse e Michael McPherson(1986);52 (b) propostas para a criação de um “divi-

dendo social” ou garantia de renda em um nívelsuficiente para proporcionar uma subsistência de-cente, sem obrigatoriedade de trabalhar como retri-buição (Van Parijs e Van der Veen, 1986);53 e (c) ademocracia econômica no plano da empresa, tendocomo fim imediato ou último a plena propriedadedos trabalhadores (ver Elster e Moene, 1989). Todasessas propostas envolvem grandes mudanças naatual organização capitalista da produção. Minhaopinião é que as duas primeiras não têm chances dedar certo, porque não se baseiam numa simples

concepção de justiça, firmada na igualdade e capazde estimular um movimento de massas. Trata-se deprojetos detalhados sobre uma mecânica das uto-pias — sonhos ou pesadelos tecnocráticos destituí-dos de potencial para insuflar vida a um movimentosocial. Qualquer tentativa de colocá-los em práticaencontraria forte resistência, porque as pessoas sesentiriam convidadas, e com razão, a participar deuma experiência em ampla escala, destituída dequalquer valor intrínseco e de valor extrínsecoextremamente incerto.

Examinemos, em primeiro lugar, a propostade Meade, que se fundamenta numa combinaçãode imposto progressivo sobre a propriedade ereforma radical do imposto sobre a transmissão deheranças. Este último visa induzir os detentores degrandes propriedades a legar sua riqueza a umgrande número de indivíduos relativamente po-bres. Haveria duas maneiras de alcançar esse obje-tivo: pela tributação “de cada doação ou herança deacordo não só com o tamanho da doação ouherança individual, mas também de acordo com ariqueza do beneficiário”, ou pela tributação dobeneficiário “quando ele recebe uma doação ouherança, não em função do tamanho dessa doaçãoou herança, nem da totalidade do seu patrimôniona época do recebimento da doação ou herança,mas de acordo com o tamanho do montante totaldo que ele recebeu durante toda sua vida na formade doações ou de heranças” (Meade, 1964, pp. 56-57). Na opinião de Krouse e McPherson, essesistema asseguraria que “todas as pessoas começas-

sem a vida com uma substancial renda da proprie-dade”. Serviria também para criar atitudes psicoló-gicas diferentes da experiência corrente, uma vezque os “operários de uma empresa seriam proprie-

tários de ações de outras empresas: estando subor-dinados à autoridade dos gerentes em uma empre-sa, ajudariam a fiscalizar os gerentes de outrasfirmas”. Por último, a renda gerada por esse sistemacriaria os recursos materiais necessários para aformação de cooperativas de trabalhadores, semque fosse preciso impô-las como uma modalidadecompulsória de propriedade.

As pretensas conseqüências dessa propostasão extremamente duvidosas. O projeto de taxaçãoda herança acarretaria incentivos despropositados

e problemas alarmantes de implementação.54 Alémdisso, não há razão alguma para imaginar que todosseriam escolhidos por alguém para serem contem-plados com uma doação ou herança. Não é difícilimaginar o impacto negativo sobre a auto-estimadaqueles que não fossem escolhidos por ninguémpara herdar ou receber propriedades em doação.Por outro lado, a sugestão de que ter parte napropriedade de outras empresas proporcionariaalguma compensação ao fato de ser subordinado àautoridade gerencial na firma que a pessoa trabalha

é um absurdo.55 Portanto, a proposta é falha emdois aspectos: os supostos benefícios são altamenteconjecturais e, além do mais, o projeto não contémnenhuma virtude intrínseca de levar as pessoas a sedisporem a suportar os custos do ensaio e errodurante um período de experimentação.

Examinemos em seguida as demais propostasde imposto de renda negativo, dividendos sociais,subvenções universais e similares. Há evidentesobjeções à viabilidade econômica de conceder umarenda garantida, substancial e incondicional a todasas pessoas. Nesse caso, direi apenas que qualquerproposta dessa natureza tende ao fracasso porqueserá vista como injusta e até exploradora.56 Aspessoas que escolherem trabalhar em troca de umsalário em vez de viverem numa comunidade porconta de um auxílio universal terão de pagar maisimpostos para sustentar os que fizeram a segundaopção. Eles bem poderiam pensar — a meu ver,corretamente — que são explorados pelo outrogrupo. Contra essa objeção foi feita a seguinte

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contra-argumentação (Van Parijs e Van der Veen,1986): toda pessoa, por suposto, teria liberdadepara escolher a subvenção incondicional; se algu-mas preferiram não fazê-lo, não poderiam reclamar

porque outras o fizeram. Sua preferência peloconsumo em vez do lazer não é razão para impedirque outras tenham preferências diferentes. A essaargumentação respondo de duas maneiras. Emprimeiro lugar, algumas pessoas poderiam perma-necer na força de trabalho simplesmente porqueacham que alguém tem de estar trabalhando. Con-templando os felizes membros da comunidade,elas poderiam resmungar, com raiva: “E se todomundo fizesse o mesmo?”. Em segundo lugar,mesmo que algumas pessoas realmente prefiram

trabalhar, porque valorizam o consumo, isso não érazão para impor-lhes tributos mais pesados. Elaspodem preferir a semana de 40 horas à semana de50 horas que trabalham por causa dos elevadostributos que lhes são impostos pelos que escolhe-ram viver à custa da subvenção. Assim, o argumen-to sobre a liberdade perde sentido, já que ostrabalhadores seriam forçados pelos não trabalha-dores a trabalhar mais do que desejam.

Examinemos, por fim, as propostas relativas àpropriedade dos trabalhadores, ao socialismo de

mercado e semelhantes. Conforme expliquei nasegunda seção deste artigo, é difícil prever asconseqüências de um regime de cooperativa. Muitacoisa ficaria na dependência dos arranjos escolhi-dos. Teria de haver uma escolha entre uma demo-cracia representativa e uma democracia direta. Osgerentes poderiam estar sujeitos à demissão ime-diata ou ser nomeados para períodos mais longos.Poderiam deter amplos poderes discricionários ouser obrigados a consultar a assembléia geral emtodos os assuntos importantes. Os direitos e deve-res econômicos associados à admissão, filiação esaída de uma cooperativa poderiam tomar diferen-tes formas. Seria necessário escolher entre o finan-ciamento da dívida ou a inversão no capital socialda empresa, inclusive com a possibilidade devender ações fora da cooperativa, incorporandoacionistas sem direito a voto. Dadas todas essasvariações, é provável que um arranjo exeqüívelpudesse ser encontrado, com paciência e disposi-ção para suportar experiências. Ao contrário das

outras propostas discutidas acima, a idéia de pro-priedade cooperativa parte de uma concepção de justiça capaz de oferecer a necessária motivação. Aextensão da igualdade política e social para o

campo da economia provavelmente encontraráoposição por parte de muitos interesses estabeleci-dos, o que provocará uma desaceleração do ritmodo progresso. Os proprietários formularão pseudo-soluções e rituais de participação para ganhartempo. Os sindicatos resistirão a essa usurpação desua autoridade. Se meu raciocínio estiver correto,tudo isso tenderá a ser visto como não mais queresistências destinadas a fracassar.Faz sentidodefender a propriedade cooperativa — ela visaeliminar os mais importantes resquícios da autori-

dade e da hierarquia na sociedade, a matéria deque se constituem os movimentos sociais (ver, porexemplo, Jones, 1968).

NOTAS

1 Essa é a maneira como compreendo os textos recentesde Rawls, principalmente Rawls (1985).

2 De modo análogo, para determinados fins, as célulaspodem ser entendidas como se fossem unidades funda-mentais da análise médica ou biológica, independentedo conhecimento de sua estrutura molecular.

3 Uma discussão desse ponto encontra-se em Snidal(1986, especialmente pp. 29-36).

4 Uma discussão desse ponto encontra-se em Johansen(1977, cap. 2).

5 Para uma análise da enorme literatura sobre burocraciasinteressadas em maximizar seus orçamentos ou outraspráticas corruptas, ver Mueller (1979, cap. 8).

6 Andvig e Moene (1988) elaboraram um modelo queinclui essa possibilidade.

7 Elster (1989) desenvolve uma defesa dessa possibilidade.8 Ver especialmente os estudos de Friedrich Hayek, des-

de Hayek (1937) até Hayek (1982).9 Os ensaios reunidos em Elster (1986) examinam várias

analogias desse tipo.10 Outros comentários sobre essa questão podem ser

encontrados em Elster (1985 e 1986a).11 Não são essas as únicas fontes de indeterminação

política. O problema da agregação de preferências,discutido na seção anterior, implica que a sociedadepode não ser capaz de avaliar as conseqüências da ação,mesmo que se suponha que são previsíveis.

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12 A teoria geral dosecond-best (Lipsey e Lancaster, 1956),principalmente, proporciona uma explicação mais abs-trata e unificada de muitas das afirmações que faço aseguir.

13 Elster (1988b) contém uma discussão mais extensa.14 Baseando-me em Elster e Moene (1989).15 A análise do equilíbrio em Stinchcombe (1983) é um

bom exemplo disso.16 Para uma breve discussão dessas “preferências contra-

adaptativas”, ver também Elster (1983a, pp. 111-112).17 Ou melhor, minha reconstrução do seu argumento.

Apesar de sua metodologia muito complicada, Tocque-ville, como historiador, orgulhou-se de esconder aestrutura do seu raciocínio.

18 Essa afirmação é um tanto simplificada. Tocquevillesabia que diversas correntes políticas ameaçavam aestabilidade da democracia na América. Em várias oca-

siões, afirmou que o sistema poderia evoluir para umatirania da maioria sobre a minoria, uma espécie dedespotismo tutelar moderado, ou para uma plutocracia.Essa afirmação é coerente com seu pressuposto de quea sociedade americana que observou, por volta de 1830,havia adquirido uma estabilidade relativa e temporária,ao contrário do fluxo constante que encontrou na vidapolítica francesa.

19 Para contestar a opinião de Nozick, pode-se citar a cartade John Stuart Mill em apoio a uma cooperativa quevinha sendo alvo da concorrência desleal de suasequivalentes capitalistas. “Tomo a liberdade de anexaruma contribuição de £ 10 para ajudar, na medida emque essa quantia seja útil, na luta que a cooperativa dosfabricantes de fechaduras de Wolverhampton vem sus-tentando contra a concorrência desleal dos mestres doramo. Não é de meu desejo protegê-los da concorrêncialeal [...] mas vender com prejuízo com a finalidade dedestruir os competidores não é fazer concorrência leal.Nessa concorrência, se prolongada, os competidoresque dispõem dos menores recursos, apesar de quepossam ter todos os outros fatores de sucesso, serãonecessariamente esmagados sem que tenham cometidoerro algum. [...] Estou agora convencido de que elesdevem ser apoiados contra a tentativa de arruiná-los”(apud Jones, 1968, p. 438). Como objeção ao argumen-to de Miller, cabe observar que a cooperativa seria atécerto ponto mantida sob controle porque saberia que,

no futuro, poderia precisar atrair novos capitais. Se osacionistas externos (sem direito a voto) não receberemdividendos satisfatórios, não serão encontrados futurosacionistas. Sabendo disso, é possível que os atuaisacionistas não se desencorajem diante do fato de acooperativa ter a liberdade formal de reduzir os dividen-dos a zero. (Jay, 1980, pp. 14-15).

20 Jones (1968) inclui vários exemplos desses “fracassosprovenientes do sucesso”.

21 A respeito dessa idéia, ver Elster (1983a, cap. 2, seção 9).22 Uma exposição simples e inteligente das razões dessas

diferenças de comportamento entre cooperativas de

trabalhadores e empresas capitalistas, dessa perspecti-va, encontra-se em Meade (1972).

23 Meade (1980). Essa prática é seguida nas cooperativasmadeireiras dos Estados Unidos (ver Gunn, 1984), masnão, por exemplo, nas cooperativas de Mondragon.

24 Como se poderia prever, Leibniz formulou o mesmoargumento antes: “On pourrait dire que toute la suite deschoses à l’infini peut être la meilleure qui soit possible,quoique ce qui existe par tout l’univers dans chaque partie du temps ne soit pas le meilleur ” (Leibniz, 1875-90,vol. 6, p. 237; ver também vol. 3, pp. 582-583).

25 Note-se que as diferenças entre efeitos de transição eefeitos do estado de equilíbrio não coincidem comaquelas observadas entre os efeitos a curto e a longoprazo, pois é possível distinguir diferentes perspectivastemporais dentro do estado de equilíbrio.

26 Por exemplo, estão aparecendo bancos privados cujosacionistas obtêm lucros de mais de 30% sobre oinvestimento. Em situações normais, seria de esperarque isso gerasse competição, com alguns bancos co-brando taxas de juros mais baixas para os empréstimose taxas mais elevadas para os depósitos, a fim de atraircapitais para financiar os empréstimos. Mas não é issoque acontece, porque o Estado fixa um limite máximopara a taxa de juros sobre os depósitos. Esse limite énecessário por causa da taxa artificialmente baixa,determinada por razões políticas, para os empréstimosconcedidos pelos bancos estatais às empresas públicas.Como os bancos estatais têm de financiar os juros sobreos depósitos com os juros que recebem pelos emprés-timos, o nível baixo destes últimos força para baixo olimite dos primeiros.

27 Em um artigo publicado emThe Economist , 21/ 3/ 1981,F. Bates faz uma observação semelhante: “Será que umgoverno democrático pode comprometer-se de maneiraconfiável em aderir a uma política independentementede suas conseqüências — assegurar que a base mone-tária não crescerá mais do que x %, ainda que osotimistas estejam errados e que a política gere desem-prego em massa, rápido crescimento da capacidadeociosa e somente reduza a inflação gradualmente? Odilema é o seguinte: talvez a teoria esteja certa, mas aúnica maneira de testá-la é convencer o povo de que ogoverno persistiria nela mesmo que estivesse errada”.

28 Para uma análise da mudança de função do Império daLei — de proteger contra a monarquia absoluta parauma proteção contra a democracia absoluta — verSejersted (1988).

29 Agradeço a Adam Przeworski por sugerir-me essa ma-neira de colocar a questão.

30 O Código Penal Chinês de 1979 não reconhece oprincípio da “não punição sem a existência prévia deuma lei que defina o ato como criminoso” (nullumcrimem, nula poena sine lege). O artigo 79 do Códigoprevê que “uma pessoa que comete um crime nãoexplicitamente definido nas seções específicas do Códi-go Criminal pode ser presa e condenada após a aprova-ção da Corte Suprema do Povo, de acordo com o artigo

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A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 37

mais próximo do Código” (Chiu, 1987). No Ocidente, aocontrário, o raciocínio por analogia só é permitido noCódigo Civil.

31 Conforme me foi sugerido por Tang Tsou, essa descri-ção legalista é equivocada. Na realidade, o ComitêPermanente é a instância superior e o “organismo deorigem” é que é subordinado.

32 Vejamos novamente a história do Livro de Daniel nacova dos leões. Conta-se ali como o rei Dario foiludibriado pelos inimigos de Daniel e levado a promul-gar um decreto segundo o qual “quem quer que roguea Deus ou ao homem durante 30 dias, exceto a ti, Oh rei,será mandado para a cova dos leões”. Quando Danielfez suas orações a Deus, seus inimigos denunciaram-noa Dario e exigiram que ele fosse mandado para a covados leões. Dario tentou escapar da difícil situação mascolocaram-no diante dos termos da lei: “nenhum decre-to ou estatuto que o rei estabeleceu poderá ser modifi-cado”, diante do que o rei teve de ceder. Como se sabe,os leões não tocaram em Daniel; mesmo assim, ahistória ilustra os riscos do comprometimento prévio.Quando uma pessoa se compromete de maneira rígidacom determinadas regras de procedimento, pode ficarimpedida de fazer a escolha certa em circunstâncias nãoprevistas.

33 Cass Sunstein indicou-me dois exemplos americanosinteressantes que destacam a ambigüidade das exce-ções às regras constitucionais. Em Korematsu v. UnitedStates, 323 U.S 214 (1944), consideraram-se constitucio-nais medidas de confinamento de cidadãos americanosdescendentes de japoneses. Em New York Times Co. v.United States; United States v. Washington Post Co., 404U. S. 713 (1971), considerou-se inconstitucional a tenta-tiva de interromper a publicação dos “Documentos doPentágono”. Nos dois casos, os defensores das medidasrestritivas alegaram que a Constituição não deve seruma camisa-de-força para a ação governamental quan-do a segurança militar da nação está em jogo. “AConstituição não é um pacto suicida”. Não me parececlaro, porém, se essas opiniões representavam (a) o tipode tentação que a Constituição visa prevenir, (b) umapreocupação legítima de que a Constituição possaimpor restrições excessivamente estritas ao governo, ou(c) uma alegação de que a Primeira Emenda às vezespode ser sobrepujada por outros itens da Constituição.

34 A argumentação que se segue baseia-se em Elster

(1988a).35 Igualmente, movimentos políticos que se justificam peloauto-respeito que proporcionam aos seus participantesprovavelmente não conseguem êxito nem a esse respei-to (Elster 1983a, pp. 98-100).

36 Referências e uma discussão mais profunda encontram-se em Elster (1983a, pp. 92-93).

37 Isso inclui, como caso especial, as transferências quepioram a situação dos beneficiários. A fórmula intenci-onalmente vaga “A água pode vazar, mas não deveentornar demais” é compatível tanto com a teoria deRawls quanto com o utilitarismo, bem como com a

teoria “de senso comum” da justiça exposta por Froh-lich, Oppenheimer e Eavey (1987). Sou também inten-cionalmente vago a respeito da natureza daquilo que édistribuído, pois os argumentos desenvolvidos a seguiraplicam-se igualmente às condições de bem-estar mate-

rial, aos bens primários, às capacidades básicas ou àsoportunidades de acesso aowelfare.38 A argumentação que se segue baseia-se em Seymour e

Frary (1918), McGovney (1949), Williamson (1960) eKay (1986).

39 Na realidade, o argumento apenas mostra que comprareleitores ricos é mais caro, o que pode ser compensadopelo fato de que quando o direito de voto é limitado aosricos, há menos eleitores para subornar.

40 Stephen Holmes chamou minha atenção para o fato deque os romanos impunham condições econômicas aodireito de voto com a finalidade de arrancar informa-ções dos cidadãos a respeito de suas propriedades

tributáveis. Em tese, essa regra também servia ao propó-sito de selecionar os cidadãos suficientemente interessa-dos na res publica para levar sua riqueza ao conheci-mento das autoridades.

41 Os cidadãos atenienses perdiam o direito ao voto porconduta covarde na guerra e por não pagarem suasdívidas com o Estado (MacDowell, 1978, pp. 160-165).

42 Como afirmou Aiskhines no discurso A gainst T ima-rkhos: “O legislador considerou impossível que o mes-mo homem fosse mau na vida privada e bom na vidapública” (apud MacDowell, 1978, p. 174).

43 Evidentemente, é assim que os países ricos hoje deci-dem conceder ajuda financeira aos países pobres.

44 Gauthier (1986) formula a mais recente e sistemáticaexposição desse ponto de vista.45 Essa percepção crucial deriva da obra de Habermas,

conforme interpretada em Elster (1983a, cap. 1, seção5).

46 Na Grã-Bretanha, houve também um fator de justiçacomutativa. Devido às tarefas vitais desempenhadaspelas mulheres durante a Primeira Guerra Mundial,tornou-se impossível alegar que elas não tinham nada aoferecer em troca do sufrágio. O fato de as mulheresproporcionarem um bem coletivo de importância cru-cial — as crianças que asseguram a continuidade dasociedade — também podia ser usado como argumento(como provavelmente o foi).

47 Caberia também levar em conta um argumento denatureza puramente instrumental-utilitarista para a am-pliação do direito de voto, segundo o qual a eliminaçãodessa degradante discriminação representouipso factoum ganho em bem-estar social. Contudo, mais uma vez,essa consideração instrumental é parasitária em relaçãoa uma razão não instrumental, qual seja, a injustiçainerente a um tratamento desigual.

48 Esses descontos são formalmente apresentados comocontribuições do empregador. Porém, os economistasconcordam que são, de fato, deduções da folha depagamento, no sentido de que sem a contribuição

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compulsória do empregador os salários dos emprega-dos seriam mais altos na proporção do desconto.

49 Para evitar ambigüidades, deve-se entender que há doisaspectos na ambição. Por um lado, pode-se desejar in-centivar a ambição para o bem de todos. Qualquer teoriada justiça deve levar em conta a necessidade de pagarmais às pessoas, quando isso é necessário, a fim de criarempregos socialmente úteis. Por outro lado, pode-se pen-sar (como Dworkin) ou não pensar (como Rawls) que aambição é uma base moralmente importante para recom-pensas mais altas. Imagine-se três operários de qualifica-ção equivalente, A, B e C, que escolhem trabalhar duran-te uma jornada diária de 4, 8 ou 12 horas, respectivamen-te, em troca de um dado salário por hora. Poder-se-iapensar, como Rawls e o utilitarismo, que é moralmente justificado taxar C (e talvez B) e empregar o produto parasubsidiar A, e, mesmo assim, ficar abaixo da alíquota detributação que poria os três em boa situação, isto é, seessa alíquota pusesse A em má situação (Rawls) ou redu-

zisse o bem-estar total (utilitarismo) em comparação comum percentual inferior. Dworkin, porém, não aceitariaqualquer taxação sobre diferenciais de renda por causada ambição em lugar das aptidões.

50 Dworkin (1981, parte 1) menciona o evidente absurdode uma política pública que indenizasse os indivíduospela infelicidade causada por suas crenças religiosas.

51 Certos grupos têm uma posição mais ambígua. Conside-re-se a atitude dowelfare state com os ciganos em umasociedade afluente como a Noruega. A única coisa queos impede de levar uma vida de trabalho regular e deaprendizado escolar é sua própria atitude em relação aessas coisas. Eles gostam de ser livres, de viajar e de nãoprecisar de fazer planos para o futuro. Deveria asociedade salvá-los de dificuldades e dar um apoio maisgeral ao seu estilo de vida, às expensas dos outroscidadãos? Voltarei a um problema semelhante quandoanalisar a proposta de um dividendo social.

52 Ver também os comentários em Elster (1986b).53 Ver também os comentários em Elster (1986c).54 Elster (1986b) arrola algumas das dificuldades.55 Nesse ponto, Meade (1964) é mais realista quando

afirma que “os investimentos [teriam de ser escolhidos]por especialistas em nome do homem das ruas”.

56 Frank (1985, pp. 256-257) formula um argumento seme-lhante.

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