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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro ROMA, A PÓLIS POÉTICA DE PIER PAOLO PASOLINI CÉSAR CASIMIRO FERREIRA 2014

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

ROMA, A PÓLIS POÉTICA DE PIER PAOLO PASOLINI

CÉSAR CASIMIRO FERREIRA

2014

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ROMA, A PÓLIS POÉTICA DE PIER PAOLO PASOLINI

CÉSAR CASIMIRO FERREIRA

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos

Rio de Janeiro

1º semestre 2014

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ROMA, A PÓLIS POÉTICA DE PIER PAOLO PASOLINI

César Casimiro Ferreira

Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos

Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).

Examinado por:

_______________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Sonia Cristina Reis – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Rita de Cássia Miranda Diogo – UERJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman – UFRJ

_______________________________________________________________

Professor Doutor Mauro Porru – UFBA

_______________________________________________________________

Professora Doutora Annita Gullo – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Sonia Cristina Reis – UFRJ

_______________________________________________________________

Professor Doutor Carlos Gonçalves Terra – UFRJ

Rio de Janeiro

1º semestre 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Ferreira, César Casimiro

Roma, a pólis poética de Pier Paolo Pasolini/ César Casimiro Ferreira. – Rio

de Janeiro: UFRJ/ FL, 2014.

165 f. : 30 cm

Orientadora: Maria Lizete dos Santos

Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras

Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

Referências Bibliográficas: f. 149-157

1. Pasolini, Pier Paolo. 2. Narrativa Italiana do Século XX. 3. Una vita violenta.

4. Mamma Roma. 5. Cinema Italiano. 5. Cidade e Literatura. 6. Roma. I.

Santos, Maria Lizete dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III.

Roma, a pólis poética de Pier Paolo Pasolini.

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RESUMO

Roma, a Pólis Poética de Pier Paolo Pasolini

César Casimiro Ferreira

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos

Resumo da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).

O presente trabalho, cujo corpus é composto pelo romance Una vita violenta

(1959) e o filme Mamma Roma (1961), ambos de autoria de Pier Paolo

Pasolini, objetiva refletir sobre a importância da cidade de Roma como cenário

da produção poética desse multifacetado intelectual italiano. Para tanto são

examinados os processos narrativos presentes nas citadas obras, que se

nutrem do universo das borgate romanas, nos anos 1950. Por se tratar de um

trabalho de caráter interdisciplinar, utilizamos como embasamento teórico

leituras voltadas para múltiplos campos, com destaque para Giulio Carlo Argan

(2010), Richard Sennett (2008), Jacques Le Goff (1998) e Elvira Godono

(2001).

Palavras-chaves: Pier Paolo Pasolini; Narrativa Italiana do Século XX; Una vita

violenta; Mamma Roma; Cinema Italiano; Cidade e Literatura; Roma.

Rio de Janeiro

1º semestre 2014

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RIASSUNTO

Roma, a Pólis Poética de Pier Paolo Pasolini

César Casimiro Ferreira

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos

Resumo da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).

Questo lavoro, il cui corpus è costituito dal romanzo Una vita violenta (1959) e il

film Mamma Roma (1961), entrambi scritti da Pier Paolo Pasolini, riflette

sull'importanza della città di Roma come scenario della produzione poetica di

questo poliedrico intellettuale italiano. Sono esaminati i processi narrativi

presenti nelle opere citate, che si nutrono dell’universo delle borgate romane

nel 1950. Poiché si tratta di un lavoro di natura interdisciplinare, usiamo come

base teorica, letture rivolte su multipli campi, soprattutto Giulio Carlo Argan

(2010), Richard Sennett (2008), Jacques Le Goff (1998) ed Elvira Godono

(2001).

Parole chiavi: Pier Paolo Pasolini; Narrativa Italiana del 900; Una vita violenta;

Mamma Roma; Cinema Italiano; Città e Letteratura; Roma.

Rio de Janeiro

1º semestre 2014

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ABSTRACT

Roma, a Pólis Poética de Pier Paolo Pasolini

César Casimiro Ferreira

Advisor: Prof. Dr. Maria Lizete dos Santos

Abstract of the thesis submitted to the Graduate Program in Neo-Latin

Literature at the Federal University of Rio de Janeiro, as part of the

requirements necessary to obtain the title of Doctor of Neo-Latin Languages

(Neo-Latin Literary Studies, option: Italian Literature).

ABSTRACT

The present paper which’s corpus is composed by the novel Una vita violenta

(1959) and by the motion picture Mamma Roma (1961), both by Pier Paolo

Pasolini, has the objective of reflecting over the importance of the city of Rome

as background of the poetic production of this multifaceted Italian intellectual.

For such the narrative processes presented in the cited works which nourish the

universe of the 1950’s roman borgates are examined. Been this a paper of

interdisciplinary characteristics, it is used as theoretical foundation literature of

many different fields, with highlights to Giulio Carlo Argan (2010), Richard

Sennett (2008), Jaques Le Goff (1998) and Elvira Godono (2001).

Keywords: Pier Paolo Pasolini; 20th century Italian Narrative; Una vita violenta;

Mamma Roma; Italian films; City in Literature; Rome.

Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Minha gratidão constante à Maria Lizete dos Santos pelos anos de convivência

e amizade. Permanecerá, entre tantas, a boa lembrança de seu entusiasmo e

sabedoria quando, nas aulas de literatura, narrava com apreço as aventuras do

pequeno “burattino di legno” ou as páginas do “Gran libro del cuore”. Ainda, nas

lições sobre cinema, quando nos fez admiradores maiores da Sétima Arte.

Agora me dirijo a novos caminhos, um novo passo de nossa Ascensa al Monte

Ventoso.

Obrigado a:

Andréa Cabral de Souza Gomes pela presença em todas as horas.

Angela Maria da S. Corrêa pela elegância generosa no auxílio às questões

práticas e administrativas.

Annita Gullo pelas aulas enriquecedoras de língua e cultura italianas.

Elena Gaidano pela conversa incentivadora.

Julia Maciel pela tradução para a língua inglesa.

Luciana Nascimento de Almeida pelas palavras amigas.

Maria Denise Genovese pelo auxílio de sempre.

Maria Franca Zuccarello (in memoriam) pela leitura engrandecedora e pelas

contribuições e incentivos na ocasião da arguição de meu mestrado.

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Sonia Cristina Reis pela paciência, auxílio e gentileza durante o período no

qual exerci a função de representante discente do Programa de Pós-

Graduação e Pesquisa em Letras Neolatinas.

A todos os professores do Departamento de Letras Neolatinas, em particular

aos do Setor de Italiano.

A minha mãe por acreditar sempre.

Aos funcionários da secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Letras.

Aos meus amigos da Escola de Belas-Artes, que me acolheram e me

apresentaram a um “Nuovo mondo” cheio de novas cores e formas.

Agradeço a CAPES pelo financiamento integral desta pesquisa.

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“Gioia provai che agli angeli Solo è provar concesso!... Al core, al guardo estatico La terra un ciel sembrò.” 1

1 Alegria provei que aos anjos

Somente é concedida provar! ... Ao coração, ao olhar estático A Terra um céu pareceu. (Verdi: 1936, p. 06 – trad. nossa)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p.12

CAPÍTULO I

LITERATURA E CIDADE MODERNA, p. 14

1.1 Roma, a Urbi, p. 18

1.2 O escritor e a cidade, p. 23

1.3 Roma: a Borgata idealizada, p. 26

1.3.1 Mamma Roma, p. 30

1.3.2 Una vita violenta, p. 41

CAPÍTULO II

PAIXÃO E IDEOLOGIA, p. 91

2.1 Vislumbres sobre a cultura italiana, p. 92

2.2 Da palavra escrita à palavra icônica: relendo a realidade, p. 102

2.3 A cidade no cinema de Pasolini, p. 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS, p.146

REFERÊNCIAS, p.149

ANEXOS, p. 158

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INTRODUÇÃO

Pier Paolo Pasolini (Bolonha,1922–Roma,1975), um dos intelectuais

mais importantes dos Novecentos italiano, legou-nos uma vasta e vária

produção poética que tem merecido incontáveis estudos e reflexões.

Artista multifacetado, Pasolini imprimiu suas digitais nos mais diferentes

campos da expressão artística e, sob a égide da Poesia, investiu na busca

constante de modos diversos de experimentação da realidade. Estabelecia,

sempre, uma relação visceral com as cidades, principalmente com aquelas nas

quais vivia – Casarsa, Bolonha, Roma, dentre outras – e as perenizava em

suas obras.

Roma, cidade na qual o poeta viveu durante vinte e cinco anos de sua

idade madura, foi a inspiração para poemas, romances e filmes.

Nosso trabalho propõe uma leitura, principalmente, mas não apenas, de

duas obras deste escritor bolonhês que se nutriram do cenário da Cidade

Eterna, em especial da sua periferia, nos anos 1950, como fonte fundamental

de sua temática. Examinando seu filme Mamma Roma (1961) e seu segundo

romance Una Vita Violenta (1959), procuraremos evidenciar a importância

daquele ambiente em suas produções, destacando as estratégias narrativas

utilizadas na recriação dos cenários da borgata romana.

Nosso trabalho está dividido em dois capítulos. No primeiro, Literatura e

cidade moderna, abordaremos inicialmente um conjunto de reflexões acerca da

história da cidade moderna, da Roma Antiga até a modernidade, com as

cidades industriais. Para tanto, utilizaremos como embasamento teórico alguns

textos do historiador Giulio Carlo Argan e do sociólogo Richard Sennett.

Contemplaremos a relação da história das cidades, particularmente a de Roma,

com a literatura moderna, evidenciando que as urbes ocidentais, de uma forma

ou de outra, atingem um destino semelhante com o culminar das politicas de

massificação dos tempos Modernos ou Pós-modernos.

Ainda no primeiro capítulo, evidenciaremos a importância das urbes para

a formação das narrativas modernas, alicerçando-nos nos textos de Walter

Benjamin, Rogério Lima e Ronaldo Costa Fernandes. Para concluir este

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capítulo, apresentaremos um estudo sobre as obras de Pasolini, Mamma Roma

e Una vita violenta.

No segundo capítulo – Paixão e Ideologia –, nos aproximaremos, mais

especificamente, da ideologia emanada da obra do autor em estudo, buscando,

a princípio, repensar sobre sua crítica à sociedade italiana da segunda metade

do século XX e, ainda, sua dedicação ao mundo dos marginalizados dos

grandes centros modernos. Serão tomadas em consideração, também, as

ideias defendidas pelo intelectual a respeito de questões teóricas relativas às

técnicas cinematográficas, repensadas e discutidas em seu livro Empirismo

eretico (1972).

Poesia, narrativa, teatro, cinema, música, pintura. As artes, na obra de

Pasolini, estão entrelaçadas de forma inseparável. E, para não esfacelar a sua

fértil obra, que, modelada pela Poesia, visita várias manifestações de arte,

muitas vezes nos repetiremos neste trabalho, fazendo em nosso discurso,

mesmo que de forma breve, acenos às questões que são caras ao autor

bolonhês.

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CAPÍTULO I

LITERATURA E CIDADE MODERNA

O sol amanhece na cidade, entre edifícios, casas e pessoas. A

paisagem, aos poucos, é iluminada pela luz suave e avermelhada do sol, em

meio ao silêncio da cidade que acaba de despertar. Agora, os sons tomam

conta daquele vazio no fim da madrugada. As pessoas acordam e calmamente

iniciam suas atividades. As palavras, as buzinas, os motores de carros e tantos

outros sons dominam e produzem uma mistura sonora singular que apenas

sentimos, tão bem, nas metrópoles e, quem nelas habita logo a torna familiar.

O orvalho toma conta dos gramados que, ao passar do pedestre apressado,

torna-se gotícula que logo será evaporada pelo calor matinal. A massa de

pessoas caminha lenta, ou apressadamente, em direção a um destino

particular ou incerto. Seria um pouco difícil, talvez impossível, descrever todas

as atividades que se desenvolvem numa urbe moderna. O ritmo frenético de

nossas vidas nos torna, de certa forma, escravos da rotina. A vida metódica

nos faz perder a percepção primeira de que habitamos uma paisagem

modificada pelo Homem.

Observar, em repouso, numa tarde de verão uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura desta montanha, desse galho. Mas fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada situação, através da sua reprodução. (BENJAMIN, 1996: p. 101)

Assim, podemos pensar que quando observamos a paisagem, da

montanha ou da cidade, estamos “respirando a aura dessa montanha” ou

dessa cidade. Mas, o homem contemporâneo surge com uma necessidade de

aproximação desses elementos que fazem partem de sua rotina e é através da

arte que ele os reproduz. É possível considerar que são poucas as pessoas

que estão realmente atentas a esses detalhes da vida moderna. Tal é o

exagero de funções exercidas e de informações recebidas que não temos

consciência daquilo que acontece, verdadeiramente, ao nosso redor. A

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paisagem é aos poucos rarefeita em nossas mentes, ou seja, escravos da

rotina nós perdemos, aos poucos, a capacidade de percepção dos detalhes do

meio em que vivemos. Passamos a olhar para a cidade como um todo e vemos

apenas a massa de pessoas, prédios e casas numa grande moldura.

A literatura, ao longo dos tempos, vem tentando retratar de diversas

formas esse movimento que testemunhamos nas paisagens urbanas. Para

Walter Benjamin também a fotografia surge como uma forma nova de arte,

como uma forma de capturar um instante de realidade. Afirma:

Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1996: p. 94)

O fotógrafo, assim como o escritor, nos dá uma percepção sua,

subjetiva, como Benjamin afirma: “a natureza que fala a câmara não que fala

ao olhar”. Se a fotografia é capaz de nos revelar instantes de uma realidade

perdida, única, que somente existe no momento em que o fotógrafo dispara

sua câmara, o escritor faria o mesmo processo ao observar a paisagem e a

transformar em palavras, narrativa ou poesia.

Podemos considerar que aquilo que nos chega através da literatura é

sempre a visão do instante em que o autor observou a cidade e/ou a paisagem.

Então, partindo dessas considerações, poderíamos pensar na importância do

papel exercido pelas paisagens em determinadas obras literárias, assim como

essas influenciam ou influenciaram a concepção de alguma obra. Levando-se

em conta o papel criador do escritor no ato de observação do perímetro

urbano, ele filtra, e recria uma realidade só dele, que o leitor, futuramente,

tentará compreender.

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Richard Sennett (1943-), em seu livro Carne e Pedra (1994), refaz o

percurso da história da civilização humana ocidental através do papel das

cidades na vida dos cidadãos e vice-versa, e nos possibilita entender muitos

dos fenômenos relativos ao nosso cotidiano. Sennett trabalha com a relação

entre o corpo humano e o espaço urbano e nos leva a reconsiderar as

questões sociais e estéticas do nosso tempo.

Nesse contexto de mudanças, o homem moderno passa a ter como

destino comum as grandes cidades, por acreditar que nelas haveria uma vida

harmônica e mais justa do ponto de vista social. Contudo, como lemos abaixo,

essa ideologia não se refletiu em algo concreto, pois as vontades individuais de

se manter uma estratificação socioeconômica se consolidaram com as políticas

de paisagismo urbano, o que manteve os mais humildes segregados dos mais

ricos.

No mundo moderno, a crença em um destino comum dividiu-se de forma curiosa. Segundo as ideologias nacionalistas e revolucionárias, o povo tinha um só destino; a cidade, porém, tornou falsas essas afirmações. Ao longo do século XIX, o desenvolvimento urbano valeu-se das tecnologias de locomoção, de saúde pública e de conforto privado, do mercado, do planejamento de ruas, parques e praças para resistir à demanda das massas e privilegiar os clamores individuais. (SENNETT, 2008: p. 372)

O fenômeno das grandes metrópoles modernas ganha força a partir da

revolução industrial. Assim, a vida nos centros urbanos passa a ser orientada

também pelo fenômeno da velocidade, ou seja, com a invenção dos meios de

transporte mecânicos, o individuo pôde, pela primeira vez na história, se

deslocar rapidamente por grandes distâncias. E a paisagem não se torna tão

atrativa. Segundo Sennett, ela não excita o indivíduo que acaba não a

percebendo:

[...] Tudo isso acontece porque esta transferência só é viável graças a uma outra experiência física – a experiência da velocidade. Hoje em dia, viaja-se com uma rapidez que nossos ancestrais sequer poderiam conceber. A tecnologia da locomoção – dos automóveis às grandes rodovias – permitiu que as pessoas se deslocassem para áreas além da periferia. O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos por ele ou nos afastamos dele. A imagem do espaço urbano arraigada a esses poderes de movimento é necessariamente neutra: o motorista pode dirigir com segurança apenas com o mínimo de distrações

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idiossincráticas; dirigir bem requer: sinais padronizados, linhas que demarquem as pistas, tubulações de esgoto, além de ruas sem pedestres, ocupadas apenas por outros motoristas. Transformado em um simples corredor, o espaço urbano perde qualquer atrativo para o motorista, que só deseja atravessá-lo e não ser excitado por ele. (SENNETT, 2008: p. 16)

Então, a percepção do mundo em nossa volta torna-se, aos poucos,

cada vez menor. Lugares, prédios, casas, praças transformam-se em manchas

criadas pela velocidade dos veículos. Como Sennett afirma abaixo, o viajante

passa a vivenciar o mundo como uma experiência narcótica na qual a geografia

urbana é fragmentada e, poderíamos afirmar, o próprio sentimento de mundo é

fragmentado numa rotina de muitos afazeres e pouco tempo. O Homem da

cidade não é mais como antes, passando a ser um escravo do seu próprio

espaço e tempo:

Os deslocamentos são mais rápidos num meio ambiente cujas referências tornaram-se secundárias. Assim, a nova geografia reforça a mídia de massa. O viajante, bem como o telespectador, vivencia o mundo como uma experiência narcótica; o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e descontínua. (SENNETT, 2008: p. 17)

Frente a essa e a outras tantas observações sobre a vida moderna nas

grandes metrópoles, nos vemos diante da possibilidade de não só tentar

compreender o processo de transformação de valores sociais em nossa própria

rotina de vida, mas, também, como essas transformações repercutiram nas

criações de obras literárias. Sendo o contexto social, como sabemos, de

grande importância na elaboração de determinadas obras, principalmente as

que refletem uma preocupação por parte do autor em retratar determinado

período de tempo ou espaço, não podemos separar totalmente, a princípio, a

realidade reinventada da ficção. Por isto, e porque Pier Paolo Pasolini, o autor

que está no centro deste trabalho dedicou parte considerável de sua obra

poética à Cidade Eterna, encaminhamos nosso olhar para Roma.

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1.1 Roma, a Urbi

Romanae spatium urbis et orbis idem est.2 (Ovídio, 1862. p.366)

O delírio de grandeza registrado nas palavras do célebre Ovídio já

demonstrava, desde tempos mais remotos, o pensamento egocêntrico de que

Roma era o centro do planeta e de lá viera o que havia de mais importante no

mundo antigo. Assim, criam que todos deveriam se curvar ao grande império

construído pelos romanos. Durante muitos séculos essa sensação se manteve,

ou seja, o sentimento pelo o qual os povos do império estariam em situação de

privilégio em relação aos demais povos. E, dessa forma, acreditou-se que essa

condição se manteria ad eternum. Contudo, como bem se sabe, o que ocorreu

ao longo dos séculos não foi exatamente isso, o Império foi, aos poucos, se

dissolvendo até seu fim. Esse término do poder militar e político não constituiu,

exatamente, o fim do seu poder de influência cultural para o resto do mundo,

até porque as raízes das tradições romanas já estavam disseminadas ao redor

de toda a Europa e, consequentemente, ao redor do mundo. E, mesmo com

seu fim, a Roma antiga continuou a servir de modelo, a influenciar e modificar

os destinos de inúmeros povos. A fascinação criada pelos políticos romanos,

por aquela sociedade, ao mesmo tempo tão primitiva quanto avançada, é

capaz de viver ainda hoje no nosso imaginário. Todos nós temos um pouco da

Roma fazendo parte de nossas vidas. Pode ser na nossa língua, religião,

sangue, nome, modelo político etc., ou simplesmente na admiração dos que

leem sobre o que foi essa cidade que se tornou um exemplo de modelo de

poder por diversos séculos. Afirma Argan (2010: p.175): “Roma, cidade de

Deus, porto da salvação, modelo de cidade-capital, só podia ser uma cidade

ideológica, ou seja, imaginária e imaginada [...]”.

Pensar na cidade de Roma pode nos levar a uma série de imagens de

tempos da República ou Império romanos. É pouco provável que algum

indivíduo, conhecedor de um mínimo da história da sociedade ocidental, não

associe a Cidade Eterna ao poder e atração de outros tempos em que esta

2 “A grandeza da cidade de Roma e a do mundo é a mesma.” (Trad. nossa).

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civilização dominou praticamente toda a Europa. Crescemos instigados pelos

relatos dos livros que narram a ascensão e o declínio de uma região através de

sua supremacia política e militar. Roma criou um dos maiores impérios do

poder que o mundo já conhecera e, assim, sobrevive no imaginário de todos

nós, mesmo depois de séculos de sua queda enquanto potência militar.

Inegavelmente, a influência dessa cultura continua até a atualidade. Vivemos

numa sociedade que é fruto de uma cultura surgida na região do Lácio, que se

expandiu pela península Ibérica e, depois, atravessou o oceano Atlântico.

Querendo ou não, a cultura romana circunda as nossas realidades de forma

direta ou indireta. Ademais, criamos a nossa fantasia sobre o que é ou foi

Roma, e a literatura nos ajuda a imaginar aquela cidade, aquele povo, através

de suas narrativas. Inúmeros são os romances que se dedicam e se utilizam do

cenário romano como suporte às suas narrativas, assim como obras

cinematográficas que perpetuam as paisagens da Cidade Eterna. Enfim, Roma

sempre foi utilizada como um lugar popular, no sentido de contínuo, para

ilustrar o desenrolar de várias narrativas. E, assim, através da arte de

descrever e contar a História criamos os nossos juízos sobre esse pedaço de

terra, pequeno se considerarmos as dimensões globais, contudo, gigante se

considerarmos a sua tradição cultural.

A história da Roma antiga pode ajudar a esclarecer os motivos que

levaram a criação dessa ideia de modelo de cidade que conhecemos na

atualidade. A tradição de se criar um centro, e a partir dele se enraizar as

pessoas ao redor, já surgira no modo de fundação de novos domínios

romanos, como podemos ler no trecho abaixo, onde fica evidente a

preocupação primordial em se criar uma sede, o umbigo da futura cidade.

Para fundar uma cidade, ou reconstruí-la após a conquista, os romanos estabeleciam um ponto que chamavam umbilicus — um centro urbano equivalente ao umbigo humano —; a partir dele, os projetistas mediam as distâncias e as dimensões de cada espaço a ser construído. No chão do Panteão, como um jogo de damas ou xadrez, esse centro tinha um valor estratégico, localizando-se diretamente sob o oculus, do qual se descortina o espaço celeste através do domo. (SENNETT, 2008: p. 114)

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Assim, nascendo esse centro de poder, as pessoas começavam a

migrar, aos poucos, para as áreas em volta. O umbilicus era parte reservada à

elite daquela sociedade; então, evidenciamos a existência de uma divisão de

classes:

Como nas cidades provincianas, a geometria do poder, no centro de Roma, inibiu a exposição das diversidades. À medida que as regras foram se impondo no Forum Romanum, ao fim do período republicano, os mercadores, açougueiros verdureiros e peixeiros mudaram-se para bairros distantes, deixando a zona livre para advogados e burocratas; depois, quando os imperadores construíram outros fóruns, seus séquitos os acompanharam aos novos espaços. (SENNETT, 2008: p. 123)

A partir da citação acima, notamos que, aparentemente, nunca houve

em Roma uma situação de paridade entre as pessoas; pelo contrário, a

vontade dos governantes romanos refletia um desejo de separação bem

marcado do papel social exercido por cada um de seus cidadãos.

A superioridade da elite de governantes e de seus seguidores precisava

ser bem delimitada e marcada. E, ao longo de séculos, os imperadores

construíram uma sucessão de monumentos, como, por exemplo, o Panteão3,

que os representavam fisicamente, propagando por todo o império as figuras

de seus governantes. Como Sennett afirma, o governo não existia sem a

3 Panteão: certamente, um dos monumentos antigos mais bem preservados de Roma, é um grande

exemplo de reutilização cristã de um edifício sagrado, originalmente dedicado a todos os deuses. Está localizado no coração do antigo Campo Marzio, em um dos pontos mais baixos de Roma, e domina com a imponente fachada o lado meridional da Piazza della Rotonda. A construção original, da qual restam apenas alguns traços, foi realizada em 27 a.C. por Marco Vipsanio Agrippa, genro de Augusto, cujo nome aparece na inscrição da fachada. O monumento foi totalmente reedificado entre 118 e 125 d.C. pelo imperador Adriano, que como é notório não costumava inscrever o próprio nome em edifícios que construía. Depois de alguns restauros realizados pelos imperadores Severi, no início do terceiro século d.C., o monumento caiu em estado de abandono até 608, quando foi cedido pelo imperador bizantino Focas ao Papa Bonifácio IV, que o transformou na igreja de S. Maria ad Martyres. Em 1625, o Papa Urbano VIII, pertencente à família Barberini, levou as vigas de bronze do pórtico para fazer os quatro pilares do célebre baldaquino de Bernini, da Basílica de São Pedro e oitenta canhões para Castel S. Angelo. Ele se tornou, em 1870, o santuário dos reis da Itália; o Panteão abriga os restos mortais de Vittorio Emanuele II, Umberto I e Margherita di Savoia. Está também nele enterrado o artista renascentista Raffaello Sanzio. (http://www.060608.it/it/cultura-e-svago/beni-culturali/beni-archeologici/pantheon.html)

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pedra, e é através do mármore que muito da história romana se manteve com o

passar dos anos.

O Panteão também marcou o drama de sua época. A ordem visual e o poder imperialista de Roma estavam ligados de maneira indissolúvel. O imperador precisava que seu poder fosse evidenciado em monumentos e obras públicas. O governo não existia sem a pedra. Segundo um historiador, o Panteão “surgiu quando ritos e regras, oriundos de um passado distante, ainda não tinham sido abandonados, e o advento de um período novo e completamente diferente era apenas pressentido.” [...] O Panteão corresponde a um esforço, exercido na própria Roma, para que todos olhassem, acreditassem e obedecessem. (SENNETT, 2008: p. 94)

Assim, em Roma, há o crescimento da ideia de imutabilidade da cidade;

a própria pedra utilizada nos monumentos era o símbolo de uma situação de

aparente estabilidade. De certa forma se criou no imaginário da população que

o império se manteria de qualquer forma e as figuras dos seus líderes

continuariam valorizadas:

Os romanos, sobretudo, gostavam de olhar para imagens que enfatizassem a continuidade da cidade, a durabilidade e a imutabilidade de sua essência. Suas narrativas visuais repetiam sempre o mesmo enredo, expressando desastres cívicos ou eventos ameaçadores, resolvidos pelo surgimento de um notável senador, general ou imperador. (SENNETT, 2008: p. 96)

Esse pensamento de continuidade e equilíbrio era um fator que

caracterizava a situação política da Cidade Eterna, ou melhor, os romanos

eram ensinados a acreditar verdadeiramente nessa condição de superioridade,

até mesmo teatralizando uma utopia de vida que, na prática, não existia. A

injustiça e o desequilíbrio social reinavam em Roma, mas de alguma forma

fictícia essa verdade não era percebida na sua totalidade, como lemos no

trecho abaixo:

Todas essas razões faziam com que o ideal da Roma contínua e essencial fosse uma ficção necessária para os romanos. Obviamente, valores estáveis encobrem a insegurança, a miséria e a humilhação cotidianas. Contudo, não bastaria estabelecer apenas que a cidade era “eterna”. A vasta aglomeração urbana não tinha nada a ver com a pequena vila fundada às margens do Tibre, nem sua história política caracterizava-se pela conservação e continuidade. Assim, para tornar crível a ficção da “Cidade Eterna”, o imperador precisava

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dramatizar seus poderes enquanto o povo mais ou menos teatralizava a vida na cidade. (SENNETT, 2008: p. 103)

De qualquer forma, mesmo que os governantes romanos tentassem

encobrir as injustiças existentes na cidade, essas apareceriam principalmente

na divisão de classes, econômica e geograficamente. O preconceito gerado

através do choque de classes começara a crescer já na Roma antiga:

Se retomamos à Antiguidade, é em Roma, sobretudo, que se cria, do ponto de vista dos costumes, uma oposição muito forte entre a cidade e o campo. E é aí que começa a aparecer um vocabulário que vai ser reforçado precisamente na Idade Média. Os termos relacionados à cidade denotam a educação, a cultura, os bons costumes, a elegância: urbanidade vem do latim urbs; polidez, da polis grega. A Idade Média herda da Antiguidade latina, e reforça, esse menosprezo pelo campo, sede do bárbaro, do rústico. (LE GOFF, 1998: p. 104)

Essa situação preconceituosa pode ser presenciada ainda nos dias

atuais na Itália. Assim, pouco a pouco, surge o que chamamos atualmente, no

Brasil, de subúrbio, ou seja, os povos do campo, mal vistos, se dirigem para as

proximidades da capital romana e, assim, compelidos a viver no perímetro da

cidade, começam a se fixar às margens, na sub urbe:

A cidade vai portanto lançar seu poder sobre certa extensão em volta, na qual exercerá direitos mediante coletas de taxas: é isso que se chamará de subúrbio. É certo que já existiam em Roma os arrabaldes, por exemplo, os arrabaldes dos marinheiros, plebe, como mal-afamada Suburre; mas a unidade contemporânea entre cidade e seu subúrbio, tão interdependentes, data da Idade Média. (LE GOFF, 1998: p. 17)

Então, o quadro atual de separação entre as partes mais ricas e pobres

de uma determinada cidade moderna tem suas origens há muitos séculos.

Apesar de, como afirma Le Goff, a condição contemporânea de relação entre

subúrbio e centro datar da Idade Média, sabemos que foi na Roma antiga que

surgiram as raízes da injustiça social com a qual convivemos até os dias atuais

inclusive no Brasil, por exemplo. Sobre a relação entre Pasolini e Roma, cidade

na qual ele habitou nos anos 1950, discursaremos no próximo subitem.

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1.2 O escritor e a cidade

A cidade, para Pasolini, era muito mais que apenas um local de

residência, pois não vivia de forma passiva o vínculo entre espaço e cidadão.

Além de existir como elemento formador da coletividade de um grupo social,

Pasolini era uma espécie de explorador do que havia de mais “primitivo”

(entendido como primeiro, inaugural) na sociedade romana. A capital e

metrópole italiana, para a qual se mudou no início dos anos 1950, dá ao

escritor os mecanismos dos quais necessitava para começar a investigar

aquele mundo de diversidades e experimentar as formas de vida que

considerava mais “arcaicas”. Ele tinha consciência do papel que a cidade

oferecia, como nas palavras de Argan, de produto artístico e favorecedor da

arte: “A cidade favorece a arte, é a própria arte”, disse Lewis Mumford.

Portanto, ela não é apenas, como outros depois dele explicitaram, “um

invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico

ela mesma.” (ARGAN, 2010: p. 73).

Pier Paolo Pasolini rompeu com a imagem que se faz, normalmente, da

cidade de Roma; para ele a urbe não é apenas o centro e o modelo do poder

de outrora; é muito mais um centro moderno, ou que ao menos procura essa

modernidade, um local repleto de especificidades que o torna, ao mesmo

tempo tão acolhedor e espantoso. Roma é mais que história ou prestígio; é,

antes de tudo, uma cidade moderna, como qualquer outra para Pasolini, onde

ocorrem as mesmas injustiças verificadas em outras pelo mundo afora. Dessa

forma, os mitos de continuidade e poder do povo romano são enfraquecidos

pela arte de Pier Paolo, quando ele evidencia, principalmente, a decadência e

as injustiças existentes naquela sociedade, no pós-guerra.

O historiador romano Giulio Carlo Argan confirma a realidade

demonstrada por Pasolini, em sua obra poética. Afirma que a Cidade Eterna

surge no século XX com os mesmos problemas de outras metrópoles, às quais

se equipara; que atualmente, a antiga capital de um dos maiores impérios

europeus que já existira, é apenas mais uma cidade inchada e desorganizada

dentro dos padrões gerados pelo crescimento das cidades capitalistas, como

podemos ler no trecho abaixo:

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Não havendo mais relação entre história e natureza, ou arquitetura e interior, Roma começou a inchar-se ou a deformar-se como uma bexiga, não teve mais nem arquitetura, nem interior, engoliu estupidamente em seu tempo não mais histórico um interior não mais mitológico, e agora está devorando cada vez mais estupidamente os Castelos. Não é mais uma cidade, mas um deserto apinhado de gente, desagregada pela própria especulação que a fez crescer sem medida. (ARGAN, 2010: p. 206)

Cresceu sem medidas e, nos anos de 1940 e 1950, estava cercada por

áreas de exclusão, chamadas de borgate. Pasolini criou forte relação de

proximidade com as borgate de Roma, ou seja, com a periferia, onde se

estabeleceu ao mudar-se para a cidade, inicialmente por imposição econômica,

mas, depois, por escolha de vida, por afinidade com as pessoas que ali viviam.

Estava convencido de que, na periferia, encontraria “personagens reais”, que

serviriam de inspiração e modelo para suas futuras obras. O povo que ali

encontrara conservava o que havia ainda de mais natural na sociedade

romana, ou seja, pessoas menos contaminadas pela modernidade. Conhecia

bem o movimento de formação das periferias, que representava o desejo de

afastar do centro da cidade os menos prestigiados e, por isso, sabia que ali,

encontraria os vestígios de uma civilização de humildes que, ao longo da

história, foram impelidos a viver nas margens. Para o historiador francês

Jacques Le Goff o ato de expulsar os mais impuros surge com o sepultamento

dos mortos fora dos limites da cidade, nas civilizações grega e romana, era

uma espécie de “higienização” que se manteve até o surgimento do

cristianismo:

Os gregos e os romanos impeliam o morto impuro para fora da cidade, o mais das vezes, sobretudo para as pessoas ricas ou importantes, ao longo das principais vias que partiam da cidade. O cristianismo urbaniza os mortos, e a cidade torna-se também cidade dos mortos; o cemitério, um lugar de sociabilidade, alheio a todo respeito religioso: ele somente terá um estatuto exclusivamente religioso tardiamente, a partir do século XIII. Até então, é um lugar de encontro e mesmo diversão. (LE GOFF, 1998: p. 12)

A periferia tanto servia de refúgio aos que precisavam sair do núcleo do

poder, por não integrá-lo, como tinha a função de atrair aqueles que vinham de

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outras regiões em busca de sobrevivência. A fixação ao redor de Roma

manteve-se graças à relação de troca entre os mais ricos e os mais pobres, o

que no passado representava uma das bases de seu equilíbrio social. Assim,

vimos que os mais impuros eram punidos com a segregação, mesmo após a

morte. O desejo de classificar e separar, que nos é tão íntimo até os dias

atuais, se concretiza com o distanciamento como punição. Dessa forma, os

muros que protegiam as cidades medievais possuíam, além da função física de

proteção e separação, o encargo simbólico de evidenciar o mundo dos

esclarecidos e o mundo dos mais rústicos: “A muralha separa a cidade, lugar

de civilização luminosa, e o campo, lugar de rusticidade tenebrosa.” (LE GOFF,

1998: p. 118).

Podemos considerar, então, que, antes de tudo, uma cidade não é

constituída apenas por seus monumentos e construções, ou seja, aquilo que dá

existência à urbe são os cidadãos que nela habitam:

Assim como não existe uma língua, mas apenas situações de língua (o que Saussure chama de états de langue), também não existem cidades, a não ser como situações urbanas. Não creio que se possa pôr em discussão a importância da história de Roma; mas, como cidade, o que é realmente Roma? A de Augusto ou a de Constantino? A comovente ruína medieval ou a cidade renovada de Leão X? A capital política do cristianismo, como queria Sisto V, ou a capital do reino e, depois, da república italiana? Entre todas essas situações, não há evidentemente nenhuma correlação, ou melhor, nenhum desenvolvimento lógico, não podemos certamente dizer que a Roma de Domiciano evoluiu para a Roma medieval dos Orsini e dos Colonna, nem que a Roma de Gianlorenzo Bernini evoluiu para ao Roma de Sacconi ou de Piacentini. A única continuidade, a rigor, o único desenvolvimento histórico é dado pela transmissão de certos significados através de certos signos arquitetônicos; mais exatamente, pelos diversos significados que, nas épocas sucessivas, foram atribuídos a esses signos. Não venham dizer que isto vale para Roma e não, digamos, para certas cidades modernas, por exemplo, as americanas. Uma cidade pode ter uma história de décadas, outra de séculos — a história é um fato eminentemente urbano, entre história e cidade a relação é estreitíssima, tanto assim que cidade e civilização são palavras que tem a mesma raiz. Mas a história é animada dialética, até mesmo luta, de pensamentos e atos, não é a aceleração uniforme de uma função mecânica. Existiram e podem existir cidades históricas de vinte mil almas; existem aldeias industriais de quatro ou cinco milhões de habitantes. (ARGAN, 2010: p. 238)

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A Roma escolhida por Pasolini não era a de Dominiciano ou a de

Bernini; era a Roma dos pobres e marginalizados: a borgata, cantada em prosa

e verso, como veremos a seguir.

1.3 Roma: a borgata idealizada.

A cidade tem importância capital na produção literária. [...] O romance é fruto da modernidade, do fortalecimento das relações mercantis, do aparecimento do capitalismo incipiente e do processo de fortalecimento das cidades como núcleos promotores de cultura. Não mais os castelos, a corte palaciana, a praça pública ou os conventos. É na cidade e por causa da cidade que o romance aparece, floresce e se modifica. [...] A cidade não apenas será fomentadora do novo gênero como também, em determinado momento da história literária, substituirá a Natureza como elemento fundamental da narrativa. (LIMA; FERNANDES, 2000: p. 19)

Como lemos na citação acima, o surgimento do romance está ligado de

forma mais restrita ao crescimento das grandes cidades, quando do fim das

relações medievais e o surgimento da era moderna. Se a cidade possibilitou o

nascimento do romance, podemos pensar que esta determina o

enfraquecimento da narrativa clássica.

Para Walter Benjamin, a narrativa começa a morrer, dando início ao

nascimento do romance, a partir do momento que surge a imprensa, que marca

a gênese da produção em massa do livro, o que, consequentemente, irá

dispensar, pouco a pouco, a necessidade da figura do narrador tradicional. Se

este último era caracterizado pela transmissão, de geração em geração, das

narrativas orais dando espaço para a contação no âmbito coletivo, o narrador

moderno surge de forma mais isolada e segregado das experiências pessoais

contidas na tradição clássica, como lemos a seguir:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa — contos de fadas, lendas e mesmo

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novelas — é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1996: p.201)

Pasolini, narrador moderno, se diferencia dos outros narradores

modernos, a ele contemporâneos – Alberto Moravia, Elsa Morante, Italo

Calvino, por exemplo –, principalmente por ter buscado na periferia romana a

aproximação com o objeto de sua mimese. Ele não é exatamente como os

narradores atuais, que reproduzem as histórias passadas ou vividas por outros,

ou que ficcionam experiências para escrever suas obras. Aproximou-se aos

narradores clássicos que, reproduzem suas histórias através de seu

aprendizado.

As personagens das obras de Pasolini, no período em que escreveu

partindo de suas vivências na capital italiana, surgem quase sempre ligadas à

periferia, pobreza ou marginalidade. Ele valorizou os mais humildes, porque

neles via o que havia de mais arcaico (no sentido de primeiro) na cultura

italiana, no início da segunda metade do século XX. As pessoas que viviam na

periferia, nas borgate, nos ambientes menos contaminados pelo capitalismo,

foram as que mereceram o olhar especial do escritor. Sobre os excluídos,

podemos entender que para existirem pessoas oprimidas por um sistema

econômico deveria haver uma relação de troca, ou seja, uma causa e um

efeito. Se os burgueses pelos quais Pasolini nutriu grande repúdio se

aproveitavam de um sistema de opressão aos mais pobres, é verdade que esta

troca vinha de um sistema de dupla dependência, que já surgira desde a Idade

Média. Podemos fazer tal constatação a partir da figura do mendicante, que era

presença desejada na cidade:

A respeito da mendicância urbana, nossa mentalidade evoluiu complemente: eis o ponto em que sopra o espirito de continuidade: até a crise do século XIV, o pleno emprego predomina, mais ou menos, na cidade medieval; e se o pobre deve recorrer à mendicância, esta é, se não louvada, ao menos reconhecida. Na Igreja as novas ordens do século XIII,

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dominicanos e franciscanos, denominam a si mesmas ordens mendicantes. O mendicante é quase que desejado na cidade, ele permite ao burguês trabalhar pela sua salvação oferecendo esmolas. Hoje nos submetemos a um sistema totalmente distinto. Nas cidades medievais, se os conselhos de cidade tivessem tomados resoluções proibindo a mendicância, teriam sido completamente incompreendidos e, provavelmente, teriam suscitado rebeliões. A mendicância tinha como efeito, um duplo mérito: de um lado, coloca em evidência a miséria do homem, e, de outro, para aqueles que se acham do lado bom da roda da Fortuna, ela dá a oportunidade de trabalhar por sua salvação mediante a esmola, que persiste, e até se desenvolve, com a forma de caridade que é, de longe, a mais recomendável. Praticamente se ia à procura dos pobres, fazendo-os migrar para a cidade para oferecer ao burguês a possibilidade de fazer caridade. (LE GOFF, 1998: p. 51-4)

A ironia de tudo isso é que, na atualidade, não sentimos mais esse

desejo pelos mendicantes ou mais humildes, por razões obvias de evolução

religiosa, no sentido de mudança, mas também pela inserção de uma nova

mentalidade trazida pelo capitalismo. Hoje, assim como as personagens de

Pasolini (a exemplo: Mamma Roma como prostituta; Vittorio como cafetão e

mendigo etc.), esse tipo de comportamento ou pessoas são mal vistos e

indesejados ou temidos em nossas cidades modernas.

A cidade como cenário na literatura moderna tem um papel considerável,

pois serviu e continua servindo como pano de fundo para diversos romances.

Contudo, é simples pensar que cada autor terá a sua impressão própria ao

recriar um determinado ambiente, naturalmente o mundo é visto e percebido de

formas diferentes por cada indivíduo; assim, uma mesma paisagem urbana

poder vir representada de diversas maneiras, primeiramente por escritores

diferentes, que não comungam da mesma sensibilidade, ou, de outra forma,

pode ser recriada com aspectos diferentes pelo mesmo artista, o qual sofreu

algum tipo de mudança interna que o leva a sentir o mesmo ambiente como

algo novo. É o que temos bem esclarecido no trecho a seguir:

Curiosamente, o espaço que pode ser exato não é tão exato como no ensaio: a cidade de Paris num romance de Balzac, o Rio de janeiro de Machado de Assis, e assim por diante, tomam outra dimensão quando passam a fazer parte do romance. É a mesma Paris a Paris de Balzac e a Paris, por exemplo, de Karl Marx, em sua obra 18 de Brumário? Não é porque a Paris de Balzac é uma Paris vista pelos olhos de um

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criador, é uma Paris recriada apesar de toda a intenção de “verdade” e registro. O Rio de Janeiro de Machado é um acúmulo de nomes de lugares públicos: mas o verdadeiro romance de Machado acontece nas salas. Mesmo nas cenas de rua, são mais importantes o sentimento e a psicologia dos personagens que a descrição da paisagem urbana. E o Rio de Janeiro de O cortiço, de Aluísio de Azevedo? Mesmo em sua visão de testemunho e registro realista, Aluísio constrói uma cidade à sua maneira. A cidade do romance é imaginada. (LIMA; FERNANDES, 2000: p. 30)

A função do narrador, após o surgimento do romance, passa a ser

também a de denunciante de problemas e realidades sociais, assumindo,

através de suas escritas, a recriação daquilo que via como não “correto” nos

espaços de grandes concentrações humanas. Além disso, sabemos que esses

discursos não eram exatamente, nem poderiam ser, o que existia na realidade

concreta, como podemos perceber no trecho a seguir. O narrador, por vezes,

trazia um caráter ideológico naquilo que representava em seus romances:

O narrador é também de um novo mundo. Por trás dele estão os discursos políticos, sociais, filosóficos de uma época de grandes transformações. Na era industrial, o romance vai ser o mais sério denunciante de uma realidade massificadora e desumana, seja por meio de romances de cunho naturalista como os de Zola, seja por meio de narrativas personalísticas como as de Flaubert. (LIMA; FERNANDES, 2000: p. 35)

Assim, é natural afirmarmos, no caso de Pasolini, que ele cumpria

exatamente esta atividade de caráter ideológico ao recriar de forma pessoal a

periferia, os subúrbios romanos em seus romances e, também, em seus filmes.

Para Ronaldo Costa Fernandes, o cinema e o teatro são formas de arte

que podem prescindir da figura do narrador, mas o romance está

intrinsicamente associado ao seu narrador, ou seja, sem este não haveria

aquele:

O cinema e o teatro podem utilizar-se do narrador eventualmente, mas ele nunca deixará de existir no romance com o risco de o romance transformar-se em outra coisa que não seja o romance tal como o conhecemos hoje em dia. Se um elemento é tão intrínseco assim ao seu meio, deve existir uma correspondência de ordem conceitual maior. Ele não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o elemento inaugural. O romance sempre vai apresentar-se como fruto do desajuste e de crítica social, e o narrador, como aquele que

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levanta as provas para julgar. A crítica social não será necessariamente explícita; pode o herói ser um personagem em crise ou a crítica aparecer por meio de leituras suplementares dos códigos velados do autor. (LIMA; FERNANDES, 2000: p. 28)

Dessa forma, podemos constatar, mais uma vez, que o romance é fruto

desse desequilíbrio social que leva, consequentemente, à crítica através de

denúncias. E é através da arte da escrita que essas inquietações da sociedade

são mostradas e evidenciadas para o grande público.

Então, quando pensamos no papel exercido por Pier Paolo Pasolini, no

período em que esteve intimamente envolvido com a representação da periferia

romana em suas obras, consideramos que esse artista buscou se aproximar de

uma realidade marcada por injustiças com raízes seculares para denunciar e

tornar mais clara a existência de uma parte oprimida e esquecida pela

sociedade italiana, na primeira metade dos novecentos, como se verifica no

filme Mamma Roma e no romance Una vita violenta, por exemplo.

1.3.1 Mamma Roma

Mamma Roma (1962), o segundo filme de Pier Paolo Pasolini, narra a

vida de Mamma Roma, uma prostituta de quarenta anos, que pensa ter-se

libertado de seu cafetão, Carmine, e tenta reconstruir sua vida. Assim, ela vai

para Roma com seu filho, Ettore, que ignora o passado da mãe. Instalam-se

em um pequeno apartamento, num conjunto habitacional. Mamma Roma

começa a trabalhar como feirante, com a esperança de que Ettore tenha uma

nova vida. Contudo, o rapaz conhece outros adolescentes do bairro, que o

desvirtuam. Logo o antigo rufião de Mamma Roma retorna e todo o seu

passado volta a assombrá-la. Ao fim, seu filho acaba morrendo num hospital,

encerrando todo o sonho de reconstrução de uma vida longe do submundo da

prostituição.

O filme tem início com a tomada de uma ceia, numa evidente releitura

da famosa pintura de Leonardo da Vinci Il cenacolo (A última ceia). Na cena,

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Mamma Roma é colocada em frente à noiva numa posição desafiadora em

relação à nova esposa de Carmine. Assim, a protagonista representaria a

função de um fantasma do passado, que vem afrontar e revelar para a jovem

todos os erros e delitos cometidos por seu ex-rufião.

Mamma Roma, a personagem principal, começa a cena carregando

alguns porcos para a festa de casamento de seu antigo rufião, Carmine. Na

sequência, uma modinha cantada na festa de casamento do amor de infância

de Mamma Roma com Clementina descreve a relação entre os protagonistas

desse trio. Os versos repletos de injúrias denotam a raiva, a violência e o afeto

que unem Mamma Roma e Carmine, ou seja, a prostituta e seu cafetão.

Apesar de sentir-se aliviada, porque esta separação marca o início de uma

nova fase em sua vida, de liberdade, Mamma Roma deixa claro seu

ressentimento contra aquele que a explorara. A cena retrata fortemente as

tantas emoções e contradições das personagens.

A abertura do filme é marcada, então, por uma festa tensa, animada por

versos simples e populares. É uma sucessão de ironias e ofensas entre os

noivos e a antiga prostituta.

Os versos começam com um tom de sutil ironia invocando,

primeiramente, a flor de acácia, aparentemente um sinal de saudade, de um

amor secreto. A seguir, as palavras de Mamma Roma denunciam um

sentimento de ameaça contra a nova vida de Carmine e este, sem perder

tempo, ironiza a secura da protagonista, comparando-a a uma flor de areia.

Para o rufião, a antiga prostituta simula manter uma vida de santa, mas, na

verdade, sente raiva pelo casamento de Carmine, que, por vaidade e egoísmo,

abandona aquela que alimentou, com o sacrifício diário de seu corpo, a sua

vida de explorador de mulheres. Na sequência, Mamma Roma responde,

citando a flor de menta, revelando uma ternura que diz manter Carmine pela

nova esposa, que não perde tempo e responde com acidez, comparando sua

rival a uma flor de abóbora, como algo que não teria muita utilidade; ironiza

cruelmente dizendo que a protagonista era louca por Carmine e que, a partir

daquele momento, sem ele, termina na lama. A conclusão vem nas palavras de

Mamma Roma, ao dizer que seu ex-rufião é uma flor de merda e que ela agora

sente-se livre de uma corda, mas que, ao contrário, a outra será uma nova

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serva e, por isto, que não há inveja alguma, pois está livre. Mamma Roma, de

certa forma, exerce o papel de apenas uma antiga namorada de infância do

rufião.

Mamma Roma: Fior de gaggia, quando io canto io canto con allegria, ma se io dico tutto rovino ’sta compagniaaa! Carmine: Fior de sabbia, Tu ridi, scherzi, fai la santa donna, e invece in petto schiatti da la rabbia. Mamma Roma: Fior de menta, fèrmete língua, chè ce sta n’innocente: è mejo che nun veda e che nun senta! Sposa: Fior de cucuzza, ’na donna per ’sti baffi andava pazza, e adesso che li perde ce va in puzza! Mamma Roma: Fior de merda, io me so’ libberata da ’na corda, adesso tocca ’n’altra a fà la serva! A sora sposa, senza invidia! So’ libbera, so’ libbera! 4 (PASOLINI, 1989: p.365)

Os versos da canção, na festa de casamento de Carmine, anunciam a

linguagem simbólica que será usada ao longo do filme. Nesse trecho, Pasolini

emprega uma linguagem simples, acessível, popular e poética.

Em outra sequência, como em uma caminhada durante a noite, Mamma

Roma circula pelas ruas centrais, onde a prostituição se estabelecia, com as

luzes da cidade ao fundo. A câmera segue o curso sinuoso da protagonista,

que vai encontrando diversas figuras daquele mundo e, assim, conta uma parte

de sua história de vida a cada um que se aproxima dela. Narra, por exemplo,

seu casamento forçado com um homem cinquenta anos mais velho que ela,

acontecimento que usa como justificativa à sua entrada no mundo da

prostituição. Cada personagem caminha ao lado de Mamma Roma e depois

desaparece na noite, como fantasma. Esse movimento nos mostra a atmosfera

4 Mamma Roma: Flor de acácia, /Quando eu canto eu canto com alegria,/ mas se eu digo tudo destruo

esta companhia! /Carmine: Flor de areia,/ Você ri, brinca, faz-se de mulher santa,/ e, ao contrário, no

peito explode de raiva./ Mamma Roma: Flor de hortelã,/ segure a língua, que é uma inocente:/ é

melhor que não veja e que não escute!/ Esposa: Flor de abóbora,/ uma mulher por esses bigodes

andava louca,/ e agora que os perde fica com raiva!/ Mamma Roma: Flor de merda,/ Eu me liberei de

uma corda,/ agora é a vez de outra fazer-se de empregada! A senhora esposa,/ sem inveja! Estou livre,

estou livre!

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das noites romanas; o fluxo revela a influência da personagem, sempre no

centro do enquadramento, que, gradualmente, vai se retirando desse ambiente

soturno, desse mundo paralelo de prostituição até, finalmente, sentir-se livre.

Pasolini vê no cinema um elemento de expressão que reflete a língua e

a realidade, permitindo manter a verdade envolvida no próprio ato de filmar,

expondo o real cotidiano. Segundo ele, o ser humano é tão simples como

aparece na obra cinematográfica, como se a vida representasse um filme

natural e, logo, uma linguagem universal. Para ele, a iluminação, o som, o

cenário, as personagens devem parecer reais e nada deve ser tocado. Em

Mamma Roma, Anna Magnani representa seu papel grande parte do tempo

com improvisações livres, a pedido do diretor ou por vontade própria.

A configuração do ambiente tem uma função importante no filme: de um

lado, prédios residenciais da cidade moderna; de outro, permanece a Roma

antiga. Ao fundo, podemos ver, diversas vezes, a cúpula da Basílica de São

Pedro evidenciando a distância que existia entre as “duas Romas”.

A narrativa fílmica se desenvolve, por um longo período, na região

central da metrópole, contrastando com um mundo às margens, o da periferia.

Ao mesmo tempo, a cidade aparece como uma espécie de devastação figurada

pelos grandes espaços abertos por causa das demolições de edifícios antigos,

uma assolação que tomou conta do próprio Homem. Poucos são os momentos

de alegria vividos por Mamma Roma e Ettore.

Pasolini faz de Mamma Roma o juízo da sociedade romana e de suas

classes. Ressalta o poder e a força da cidade urbana. Denuncia a decadência

e abandono das borgate.

Quando Ettore agonizava no hospital, sua mãe pressente seu triste fim

com uma espécie de telepatia; ela sente a agonia de Ettore, que a chama.

Chorando, desesperadamente, a protagonista corre até a janela de seu

apartamento: ao redor, seus vizinhos a acompanham e observam, em silêncio.

A protagonista, absorta olha a paisagem em primeiro plano, seca e vazia; ao

fundo, o contraste com os edifícios da cidade. O subúrbio é impassível e essa

realidade apresenta-se aos olhos de Mamma Roma, revelando o seu fracasso

diante da incapacidade de enfrentar a força devastadora da cidade.

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Ettore é sacrificado e com seu sacrifício Pasolini buscou representar a

imagem de Cristo entre os pobres; e não hesita em apresentá-la na cena final:

Ettore está amarrado à cama e seu corpo é filmado de modo a sugerir a

simetria perfeita deste com uma cruz. Assim como Cristo, o rapaz sofre em

cada membro a dor da tortura. Suas últimas palavras clamam pela mãe, num

retorno a sua origem. É sua redenção; é um novo Cristo. O plano da câmera

evidencia a morte de Cristo na pintura de Mantegna (1431-1506).

Não somente em Mamma Roma, mas em todos os filmes que produziu

Pasolini faz referências a grandes pintores e, numa perfeita integração das

diversas manifestações de arte em sua obra poética, utiliza-se de músicas de

compositores consagrados, como, por exemplo, em Accattone, La ricotta e

Vangelo secondo Matteo.

No filme em exame, além das referências às já citadas pinturas

consagradas, como a do Cristo de Mantegna, Pasolini traz para ilustrar cenas

de sua narrativa alguns trechos de concertos de Antonio Vivaldi.

A escolha da música clássica, recurso utilizado nos filmes que dirigiu,

tem a função de acentuar a forte oposição entre os mundos periféricos e os de

“alta” cultura, criando uma aparente incoerência entre a imagem e a música.

Duas músicas, em especial, marcam o filme em exame e evidenciam a

intenção do autor ao inseri-las na narrativa fílmica. Trata-se de duas peças da

cultura musical italiana: o Concerto em Dó maior, de Vivaldi, uma obra de arte

da música clássica, e Violino tsigano, um falso tango, uma canção popular

composta por Cesare Andrea Bixio e Cherubini, em 1934. Esta última, cantada

na voz de uma criança, pode simbolizar a volta no tempo e representar o amor

entre Carmine e Mamma Roma, o que para a protagonista soa como memória

de um tempo feliz, mas efêmero.

Outra música, presente desde o início do filme, ilustra os movimentos da

protagonista e de Ettore, assim como acontece com as obras de Bach, em

outro filme seu: Accattone5. O tom da composição de Vivaldi serve para

aumentar a intensidade do sofrimento inexorável ao destino trágico dos

5 Accattone (1960), primeiro filme de Pier Paolo Pasolini, foi longamente trabalhado em nossa

Dissertação de mestrado e, por isto, no presente trabalho, nos privamos de uma análise mais profunda

do filme supracitado, por entendermos se tratar de uma interdependência de discursos.

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protagonistas. Neste caso a música pode ser comparada com a função do coro

na tragédia grega.

Em decorrência dos limitados recursos de produção e, também, em

observância a sua ideologia, Pasolini recruta para seus filmes atores amadores

das ruas de Roma, fato que reforça o efeito de realidade desejado pelo diretor.

O ator que representa a personagem, Ettore Garofalo, o filho da protagonista,

trabalhava num restaurante como garçom, quando Pasolini o conheceu.

Identificou nele os traços de uma pintura de Caravaggio, Fanciullo con canestro

di frutta (1593-1594), ao vê-lo entrar no ambiente com uma cesta de frutas.

Neste ponto, consideramos fundamental, abrir um parêntese para tratar

da importância de Caravaggio, mas não somente desse pintor, na obra de

Pasolini.

No prefácio de Caravaggio (2012), Lorenzo Mammì afirma que a

importância que damos hoje atribuída à obra de Caravaggio deve-se muito ao

trabalho de Roberto Longhi, que dedicou muitos anos de sua vida ao estudo da

herança caravaggiana: “Como artista da dimensão que tem hoje, Caravaggio

foi uma descoberta do século XX. Mais exatamente, uma descoberta de

Roberto Longhi.” (LONGHI, 2012, p. 07). Pier Paolo Pasolini foi um grande

admirador e estudioso da obra de Caravaggio e este fato se repercutiu em seu

cinema que tangeu diversos argumentos, desde a decisão inicial em filmar a

periferia romana no final dos anos 1950 com Accattone e Mamma Roma até o

derradeiro filme em 1975: Salò o le 120 giornate di Sodoma.

À evidência minuciosa da figura corresponde a evidência minuciosa do texto, sem esconder, porém, uma separação intransponível, porque a imagem não é a coisa e o texto não é a imagem. Levado a cabo, o realismo gera uma realidade fantasmagórica, e descrição mais fiel é também a mais profundamente estilizada. E é revelador que tenha sido Longhi, mestre da arte de pôr em relação ao elo entre Caravaggio e Pasolini, os realistas mais problemáticos e complexos da arte italiana, senão ocidental. “Tudo o que posso saber sobre Caravaggio”, escreve Pasolini, “é o que Longhi disse”. (LONGHI, 2012, p.14)

Essa relação com a pintura não se restringe a Caravaggio, mas a

diversos pintores italianos do Renascimento ou de outros períodos. Pasolini

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quis reproduzir quase que insistentemente as imagens que via nas pinturas. É

uma busca que se torna possível de concretizar quando começa a rodar seus

filmes. A luz, os enquadramentos, as figuras dos atores tentam se aproximar da

visão que Pasolini tinha conhecido nos seus anos de observação:

In realtà questi ruderi mi sono piaciuti appunto come potrebbero essere piaciuti al Pontormo, cioè mi riconducono in fondo sempre ad una ispirazione rinascimentale [...], per quanto in realtà il pittore che mi ispira figurativamente più di tutti anche come colore direi, è Masaccio soprattutto: cioè un pittore più fermo. [...] Anche la fotografia, vorrei assomigliasse un po' alle riproduzioni in bianco e nero del Masaccio. [...] In quanto ai ruderi, dirò anche che in una sequenza, quando Ettore va per la prima volta con Bruna a far l'amore ne ho scelto uno che è un po' un simbolo fallico, senza per altro sottolineare troppo questa simbologia".6

Para o nosso cineasta, a iluminação, o som, o cenário e as personagens

deviam parecer reais, sem que nada fosse tocado. Ele via no cinema um

elemento de expressão que reflete a língua e a realidade, permitindo manter a

verdade envolvida no próprio ato de filmar, expondo o real cotidiano. Como

anteriormente dito, considerava o ser humano tão simples como aparecia na

obra cinematográfica, como se a vida representasse um filme natural e, logo,

uma linguagem universal.

Poderíamos afirmar, então, que a representação da luz no cinema de

Pasolini, buscava o típico chiaroscuro dos quadros de Caravaggio.

Principalmente nos seus primeiros feitos filmes, em preto e branco, há uma

referência direta a vários pintores renascentistas. Através desse mecanismo o

cineasta tentava “sacralizar” os moradores humildes da periferia romana, como

6 "Na verdade, estas ruínas me agradaram como poderiam ser apreciadas por Pontormo, isto é, me

reconduzem sempre a uma de inspiração renascentista [...], embora, na realidade, o pintor que me

inspira figurativamente mais que todos também como cor, diria, é Masaccio acima de tudo: isto é, um

pintor mais parado [...] mesmo a fotografia, queria que se assemelhasse um pouco às reproduções de

preto e branco de Masaccio. [...] Quanto às ruínas, direi também, que é uma sequência, quando Ettore

vai pela primeira vez com Bruna para fazer amor, eu escolhi um que é um pouco um símbolo fálico, sem,

no entanto, enfatizar o simbolismo também." (tradução nossa)

Quaderni di Filmcritica. Con Pier Paolo Pasolini, a cura di Enrico Magrelli, Bulzoni 1977. (Disponível em

http://www.pasolini.net/)

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acontece em seu primeiro filme, Accattone (Desajuste social), no qual a figura

do protagonista é filmada através de panorâmicas lentas, num caminhar que

lembra a Via Crúcis. Em Accattone, o que interessa para Pasolini é a luz, a

sombra, o branco e preto, claros e escuros, enquadramentos de cenas que

parecem pintadas e remetem diretamente à tradição figurativa italiana.

A relação de Pasolini com a pintura seria muito mais original e primeira

do que se pensamos na sua relação com o cinema. Ou seja, na sua biografia a

paixão pela pintura surge mais cedo, durante as aulas de Roberto Longhi, que

irão culminar com escritos sobre a pintura italiana.

Dessa forma, pensamos que o trabalho cinematográfico de Pier Paolo

Pasolini possa ser facilmente associado à pintura italiana, principalmente à

renascentista e barroca.

Fechamos aqui o longo parêntese sobre Caravaggio e a importância da

pintura na obra de Pasolini e retomamos o discurso que fazíamos em nossa

leitura de Mamma Roma.

A postura icônica do nosso autor mascara a fraqueza da criança de rua:

Ettore é um rapaz frágil, resignado pela implacabilidade da sociedade. O papel

principal do filme foi dado à atriz Anna Magnani, que havia sido consagrada ao

ser dirigida por Roberto Rossellini em Roma, cidade aberta (1945). Sua

interpretação causou grande admiração em Pasolini, pois a atriz soubera

encarnar com maestria a imagem de uma mulher oriunda de classe popular,

que, mesmo tendo vivido de forma não muito bem aceita pela sociedade,

consegue superar o seu passado, tentando fugir do destino trágico.

Mamma Roma, o segundo longa-metragem de Pasolini, apresentado no

Festival de Cinema de Veneza, em 1962, foi bem recebido, inscrevendo o

nome do autor entre os grandes diretores do cinema italiano. Nesse filme, a

cidade está representada em imagens que se misturam entre o soberbo e o

simples, mostrando dois lados sociais. Mesmo assim, os subúrbios

desfavorecidos, as borgate da capital, são os que chamam a atenção:

adolescentes desocupados, terrenos baldios, ladrões e prostitutas passeiam

nas margens incertas de uma área urbana esquecida.

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A vida diária desse “subproletariado”, como nosso autor designou essa

classe setorial, é filmada em tons de cinza; as noites são escuras e os dias

iluminados com a luz de um branco tênue, empalidecido. A câmera constrói a

narrativa através das figuras das personagens locais e do cenário de ruínas

vagas. O enquadramento os acompanha com um zoom que rastreia aquele

ambiente em câmera lenta.

A vida da dupla formada por Mamma Roma e Ettore é organizada em

episódios que seguem uma sucessão cronológica de acontecimentos. Assim,

tem início com as cenas da sua chegada ao centro da cidade. Em seguida, eles

se mudam para um novo bairro, no qual o jovem começará a conhecer os

prazeres e dissabores da vida na cidade. Dessa forma, existem, ao mesmo

tempo, dois movimentos correspondentes: o primeiro é a tentativa de esquecer

definitivamente o passado perturbador da protagonista; o segundo é a nova

vida que se abre diante de um universo de possibilidades de futuro para o

jovem Ettore, que vem do campo para cidade, como um legítimo representante

da classe dos burini (termo romanesco que designa a classe dos camponeses

e agricultores). Contudo, esse movimento de vida não é algo simples e

permanente, pelo contrário, a todo tempo o passado oculto de Mamma Roma

vem à tona como, por exemplo, na longa sequência em que ela visita o lugar

de seu antigo emprego, que ficava no meio de prédios em ruínas. Esses

lugares tornam-se uma oportunidade de retratar a brutalidade daquele mundo

e, de certa forma, permite mostrar a força do caráter daquela ex-prostituta que

sabe jogar com palavras e conceitos, entendendo o sentido de sua função na

sociedade romana.

Existe, ainda, o jogo de palavras com o próprio nome dado à

protagonista, Mamma Roma, que remete à mitologia da fundação da Cidade

Eterna na qual a mãe que amamentou Rômulo e Remo, os gêmeos fundadores

de Roma, era uma loba. E lupa é um termo que, desde tempos remotos, é

usado para referir-se a uma mulher forte e livre ou, ainda, a uma prostituta.

Mamma Roma é de certa forma essa loba que tenta salvar Ettore, uma criança

selvagem trazida para a cidade, para os males da urbe. É uma loba solitária à

procura de uma forma de tornar seu filho uma pessoa respeitável, algo que ela

mesma nunca conseguira para si. Realmente, um jovem analfabeto e pobre

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não teria muitas possibilidades diante da sociedade urbana moderna;

normalmente, ele teria uma vida simples e limitada.

Ettore sentiu os efeitos da doença contraída na infância e vê o resultado

final como algo natural e inevitável, evidenciando, assim, a banalização da

morte nas camadas mais pobres de uma sociedade desigual. Essas

personagens reforçam a importância da questão social presente nas obras de

Pasolini. A figura principal do filme, a mãe-prostituta, por amor tenta salvar seu

filho, buscando influenciar o seu destino para impedir que ele se tornasse mais

uma vítima das injustiças sociais. Mamma Roma sacrifica seus próprios sonhos

a fim de concretizar suas esperanças de liberdade. Trabalhando como feirante

no mercado rionale, ela luta para resgatar seu filho da sua condição e se sente

decepcionada com o comportamento demonstrado pelo rapaz, que se perde ao

cair de amor por uma mulher mercenária. A crucificação simbólica de Ettore, ao

fim, constitui sua única forma de redenção, de ser feliz.

Pasolini encontrou um cenário ideal ao filmar no novo subúrbio de

Roma, bairros novos, com lotes vagos, um lugar que supria todas as suas

intenções de representação. Capta a beleza inesperada dessas regiões

“arcaicas”, na borda da cidade; propõe uma visão poética da ruína. Nos anos

1960, a Itália vivia um período de forte crescimento econômico, em decorrência

do Plano Marshall, que visou à recuperação do capitalismo europeu. Contudo,

ainda havia enormes diferenças sociais no país. Um número considerável de

pessoas, menos instruídas e amontoadas em bairros degradados, lutava para

encontrar um lugar naquela nova sociedade.

Quando a personagem Mamma Roma apresenta Ettore à cidade grande,

seu sonho é apenas viver em seu novo lar, bonito e localizado em um bairro

habitado por pessoas boas. Infelizmente, aquele lugar não era propício para se

estabelecer as boas relações sociais que a protagonista esperava. Logo Ettore

faz amizades com outros rapazes encontrados nos terrenos baldios, lugares

marcados ao redor por ruínas de antigos prédios, e não demora muito tempo

para o rapaz mergulhar na vida marginal.

Mamma Roma entende que seu filho está perdido e nunca sairá de sua

condição miserável. Cansado e doente, anda com os amigos que o levarão

para seu martírio final. Sua mãe tenta encontrar algum conforto na ideia de que

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Ettore seja uma vítima inocente. Entretanto, a conversa que tem com o padre

evidencia a questão de sua responsabilidade sobre aquilo no que se

transformara seu filho. O religioso não poupa a protagonista de sua culpa e

afirma que “sobre o nada não se constrói nada”. A herança recebida pelo jovem

não era o melhor exemplo de como construir uma vida honesta. Mesmo assim,

aquela mulher acredita que se Ettore tivesse os meios, seria uma pessoa boa.

Então, ela promete seguir a sugestão do padre e começar sua vida do zero,

educar seu filho, fazendo-o aprender uma profissão. No entanto, Ettore já não

tem tempo para essa reabilitação. Ele é o símbolo de uma geração perdida,

ignorante demais para sobreviver ao mundo moderno e, ao mesmo tempo,

muito orgulhoso para aprender ou para ser explorado.

Pasolini traz à luz todos os problemas econômicos e sociais verificáveis

na Roma dos anos 1960, desde os princípios morais da responsabilidade até

os financeiros da falta de oportunidade de trabalho. Na opinião do autor, não

havia muita esperança para as classes sociais menos favorecidas. Ettore

acaba cometendo os mesmos erros dos outros pobres e miseráveis e nem

mesmo o amor e a compreensão de sua mãe poderia salvá-lo. A falta de amor

e fraternidade na sociedade, que Pasolini nos mostra, leva o rapaz a aprender

com suas falhas e a se acalmar; sucumbindo encontra o seu lugar.

A temática da sociedade segregadora, da vida de população à margem

da Cidade Eterna encontra-se, também, fortemente em Una Vita violenta,

romance que examinaremos na sequência.

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1.3.2 Una vita violenta

Una vita violenta (1959), o segundo romance publicado por Pasolini, tem

como protagonista o jovem Tommaso Puzzilli, mostrando a história do rapaz

que, através de suas experiências, adquiri uma consciência humana e política.

O jovem nasce em um bairro da periferia romana, em uma família miserável,

sendo instado a assumir um comportamento violento e amoral, sobrevivendo

através de pequenos golpes.

Por causa de uma briga, na qual ele esfaqueia outro jovem, é

condenado a dois anos de prisão. Enquanto cumpre a sentença, sua família

consegue uma nova residência e, quando sai da prisão, Tommaso reencontra

seus entes estabelecidos em um apartamento do INA7. Fascinado pelo conforto

quase de "classe média", pensa que poderá começar uma nova vida,

respeitável, mas o seu sonho de ascensão social estava fadado ao fracasso. O

protagonista descobre que havia contraído tuberculose e é, portanto, obrigado

a se submeter a um longo tratamento, que destrói toda possibilidade de

trabalho e estabilidade social.

Internado num hospital, ele conhece um grupo de pacientes politizados e

começa seu processo de amadurecimento, que o torna consciente de sua

condição individual e social. Recebendo alta, adere ao Partido Comunista.

É testado quando, num período de inundações, as águas do rio Aniene

atingem o bairro onde vivera, ele prontamente aceita o convite dos

companheiros para ajudar os necessitados. Mergulha na água e na lama para

auxiliar os bombeiros. Esse gesto generoso, no entanto, lhe é fatal. Tommaso

sofre um ataque de tosse, e morre.

Desde o primeiro capítulo, o narrador se detém sobre o espaço físico, a

dimensão geográfica romana, na qual se movem as personagens do romance,

e possibilita ao leitor traçar uma cartografia de parte de Roma. Os nomes das

ruas, das vielas, dos rios, das pontes são sempre valorizados. O protagonista,

Tommaso, circula pela periferia romana trazendo novamente o delineamento

7 INA – Istituto Nazionale delle Assicurazioni: foi responsável pelo programa de casas populares do

governo italiano, nos anos 1950, para famílias de baixa renda.

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da Roma dos proletários. Não é a Roma dos ricos, da burguesia, mas a Roma

delimitada, marginalizada, a dos humildes que lutam pela sobrevivência, um

povo à margem, que habita as baracche da borgata romana. Pasolini traça

com detalhes a geografia de ruas e praças periféricas, ao longo de toda a

narrativa de Una vita violenta. Percebemos que a periferia da Cidade Eterna é

fundamental para o desenvolvimento de sua narrativa.

No primeiro capítulo, “Quem era Tomás”, temos a apresentação da

personagem principal, Tommaso Puzzilli, que nos conduzirá neste caminho

pelos caminhos da periferia romana. Ao protagonista somam-se alguns outros

personagens que o acompanharão durante toda a narrativa.

Tommaso, Lello, il Zucabbo e gli altri ragazzini che abitavano nel villaggetto di baracche sulla Via dei Monti di Pietralata, come sempre dopo mangiato, arrivarono davanti alla scuola almeno una mezzoretta prima. Lì intorno c’erano già però pure altri pipelletti della borgata, che giocavano sulla fanga col coltellino. Tornmaso, Lello e gli altri si misero a guardarli, accucciandosi intorno, con le cartelle che strusciavano sulla fanga: poi vennero due o tre con una palla, e gli altri buttarono le cartelle sopra un montarozzetto, e corsero dietro la scuola, nella spianata ch’era la piazza centrale della borgata.8 (PASOLINI: 1959, p. 09)

O protagonista tem apenas 13 anos de idade, sendo chamado pelo

diminutivo Tommasino; é apenas um garoto “con la faccina tonda e

lenticchiosa, che pareva sempre sporca di grasso.” 9 (PASOLINI: 1959, p. 12).

Está conhecendo o mundo de uma forma não ideal, ou seja, descobre o

ambiente degradado de uma Roma violenta, de desesperados:

«Ammazzete», gridò quello che poteva essere padre di famiglia, con l’aria di un mino alle prime sparate, «come, c’hai ancora coraggio de parlà? Co’ quei diec’anni de passivo che porti dietro ’a schina?»

8 Tomás, Lello, o cabeçudo e mais outros garotos que moravam nas barracas junto aos muros de

Pietralata, depois do almoço, chegaram à escola coisa de meia horita antes, como de costume. Por ali ao

redor, encontravam-se já outros franganotes do bairro a jogar ao prego, na lama. Tomás, Lello e os

companheiros puseram-se a observar o jogo, agachando-se a volta, as sacolas sobre um montículo de

areia e correram para trás da escola, para o terreiro que era a praça central do bairro. (PASOLINI, 1965:

p. 11)

9 Com aquela cara tão redonda e pachorrenta que parecia está sempre coberta de gordura. (PASOLINI,

1965: p. 14)

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«Se! Diec’anni!» gridò beffardo Tommasino, con la faccetta scottata dalla rabbia, quasi facendosi un pianto, «ma si nun ne tengo manco tredici!».10 (PASOLINI: 1959, p. 23)

O narrador irá deter-se inúmeras vezes à descrição da paisagem que

circunda esses rapazes moradores periféricos, como lemos a seguir:

Dopo le due, due e mezzo, la vita a Pietralata tornava sotto traccia. Non si vedevano che masnade di pupi, in mezzo ai lotti, o qualche donna allo sgobbo. Non c’era che sole e zella, zella e sole. Ma era ancora marzo, e faceva presto il sole a calare, giù dietro Roma. L’aria tornava in penombra e quasi gelata. Come i ragazzini risortivano fuori di scuola, era quasi l’ora del tramonto: e la borgata era ancora deserta, perché gli operai staccavano dal lavoro più tardi, il cinema aveva aperto da poco, e i due o tre bar ancora si dovevano affollare dei soliti senza speranza.11 (PASOLINI: 1959, p.11)

O pequeno Tommaso parte, seguindo seu amigo Lello pelos

descampados da periferia, e esse caminhar nos permite conhecer pouco a

pouco aquele mundo:

Lo staccò un’altra volta, e un’altra volta, sull’altopiano, riandò al passo. Ma stavolta gli ficcò di lasciarsi riprendere da Tommasino, che sudava come una fontanella: e scesero appaiati giù per le gobbe, verso il mucchio di catapecchie lì sotto dove abitavano, sulla strada tra Pietralata e Montesacro, poco prima del punto dove la cloaca del Policlinico sbocca nell’Aniene. Nel villaggio di baracche era già accesa qualche luce, che si rifletteva sul fango. Gli altri ragazzini stavano giocando alla porta di casa, mentre dentro, in quelle stanzette dove vivevano in dieci o undici, si sentiva tutto uno strillare di donne che litigavano e di creature che facevano la piagnarella.12 (PASOLINI: 1959, p. 13)

10

Mata-te – gritou o tal que já podia ser pai de família, com o ar de garoto. – como é que ainda tens

coragem de falar, com os dez anos de passivo que já tens às costas?

Olha, dez anos! – gritou Tomasinho, sério, a cara torcida de raiva, quase a chorar. – Mas se eu ainda só

tenho treze! (PASOLINI: 1965, p. 24)

11

Depois das duas, duas e meia, a vida em Pietralata regressava à monotonia habitual. Não se viam

senão grupos de miúdos, no meio dos lotes, e uma ou outra mulher na sua lida. Aquilo era apenas sol e

imundície, imundície e sol. Estava-se ainda em março, de modo que o sol se punha muito cedo, lá para

baixo, para lá de Roma. Caía a penumbra e o ar tornava-se quase gelado. Os rapazinhos saíram da

escola, quase ao pôr do sol. O bairro estava ainda deserto, pois os operários largavam o trabalho mais

tarde, o cinema abrira há pouco e os dois ou três bares estavam ainda cheios com os desesperados

habituais. (PASOLINI: 1965, p. 13)

12 Parou uma vez e outra ainda, sobre a assentada, partindo de novo a passo. Mas desta vez apeteceu-

lhe deixar-se alcançar por Tomasinho, que suava em bica. Desceram em par, camada abaixo, em

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No trecho acima continuamos conhecer o modo de vida na borgata o

narrador descreve não só o ambiente bem como as habitantes desses

casebres.

Lello entra na barraca onde morava e Tommaso faz o mesmo; sua mãe

ainda não havia preparado seu jantar e o menino demonstra sua raiva ao

chorar. Depois vão todos jogar futebol de bonecos em frente às suas barracas

onde moram, num local miserável:

La strada che portava a Montesacro, con l’asfalto ridotto a qualche pizza sulla polvere brecciolosa e sparsa di sporcizie e di rifiuti, andava dietro all’Aniene. Il fiume scorreva sotto delle scarpate impuzzolite, specie nel punto dove c’era lo sfocio della cloaca del Policlinico; dall’altra parte si alzavano altre scarpate, dove si vedevano case e casette, qualche cantiere, altri villaggi di tuguri.13 (PASOLINI: 1959, p. 14)

Tommaso não consegue uma mesa para jogar e, enraivecido, fica

apenas observando os amigos jogarem; depois, se dirige para um local

próximo a uma ponte sobre o Aniene onde verá o movimento das prostitutas:

Lì cominciò ad osservare il movimento. In pizzo al ponte, in alto, sotto una specie dí colonnetta bianca che pareva quella d’una tomba, stavano due zoccole: tutte indispettite, una con un soprabito rosso, e una con un golf di maglia nera, urtosa e scapigliata. Erano tracagnotte tutte due, con la pancia che parevano incinte, le cianche corte e grosse, due facce nere e pelose con la fronte bassa da scimmie e la borsa in mano. Se ne stavano ferme lassù, oppure facevano qualche passo avanti e indietro. Intanto dai carosielli quattro o cinque marinai, sbandati, stanno salendo tra i pini. S’arrampicarono su per lo stradello della scarpata e arrivarono accanto alle scaje in pizzo al ponte. Stettero per un po’ a chiacchierare, con quelle che rispondevano male, cattive come due cambiali in protesto, e

direcção ao aglomerado de casebres onde ambos moravam, junto a estrada entre Pietralata e

Montesacro, um pouco antes do sítio onde o esgoto do Policlínico desaguava no Aniene.

No povoado de barracas estava já acessa uma ou outra luz, que se espelhava na lama. Os outros garotos

brincavam à porta de casa, enquanto lá dentro, nos cómodos em que se empilhavam aos dez e doze, se

ouvia a caramunha de mulheres que discutiam e de crianças a choramingar.

(PASOLINI: 1965, p. 15)

13 A estrada que conduzia a Montesacro, transformada num lodaçal sobre o chão semeado de pedras e

imundices, seguia ao longo do Anieno. O rio corria ao fundo das encostas fedorentas, especialmente no

ponto onde desaguava a cloaca do Policlínico. Na outra margem, erguiam-se mais encostas, onde se

lobrigavam casas e casebres, um ou outro barracão e mais aglomerados de tugúrios miseráveis.

(PASOLINI: 1965, p. 16).

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loro che si divertivano a vederle infregnate e a far finta di non aver bisogno dei soldi loro. Poi alla fine compararono, e cominciarono a ridiscendere per la scarpata: le due zoccole e due marinai, gli altri stettero lassù sul ponte, fumando, ad aspettare il turno loro.14 (PASOLINI: 1959, p. 17)

Após observar esse movimento, dos marinheiros com as prostitutas,

volta a buscar seus amigos, mas não os encontra. Caminha até achar o Lello,

convida-o para espiar a cena dos rapazes com as meretrizes e seguem para o

rio. Sentam-se protegidos por uma moita e ficam observando os dois casais.

Ao amanhecer, Tommaso vai em busca de sucatas:

Verso mezzogiorno, Pietralata era tutta fradicia, che luccicava. Sul vecchio fango secco della spianata c’era una crosticina di fango nuovo, di cioccolata, dove i maschi ruzzolavano come maialetti giocando a pallone. Tommasino reggeva in una mano il sacco vuoto dove aveva messo il ferrovecchio, l’altra mano la teneva in saccoccia, dove tutte ciancicate stavano le due piotte rimediate andando per ferro, tra i mucchi d’immondezza lungo le scarpate della Tiburtina.15 (PASOLINI: 1959, p. 21)

Mais tarde, encontra alguns amigos e para num campo onde havia uma

partida de futebol; acaba forçando sua participação na brincadeira, fato que

desagrada os demais garotos gerando uma longa discussão entre eles. Mas

consegue entrar no jogo e se sente poderoso; comemora o seu feito: “«So’ ‘na

14

Pôs-se dali a observar o movimento. No leito da ponte, ao cimo, junto a uma espécie de colunata

branca que semelhava a túmulo, viam-se duas galdérias, ambas muito enfadadas, uma com um casaco

vermelho e outra com um casaquinho de malha preta, aborrecida e desgrenhada.

Eram ambas gorduchas, tinham os ventres tão empinados que até pareciam grávidas, as pernas curtas e

grossas, dois rostos negros e peludos, de testa estreita, simiesca, e traziam a carteira na mão. Não se

conservavam paradas lá em cima, pois davam alguns passos para cá e para lá. Entretanto quatro ou

cinco marinheiros abandonaram os carrosséis, em debandada, caminhando por entre os pinheiros.

Treparam pelo carreiro, encosta acima, e chegaram perto do leito da ponte.

Estiveram um pouco a tagarelar com elas que respondiam mal, más com duas letras de protesto,

divertindo-se por vê-los furiosos, fingindo não terem necessidade do dinheiro deles. Por fim, chegaram a

acordo e começaram a descer a encosta: as duas galdérias e dois dos marinheiros, pois os outros

deixaram-se ficar sobre a ponte, à espera de vez. (PASOLINI: 1965, p. 19)

15

Pelo meio-dia, Pietralata era um lodaçal que rebrilhava. Sobre a lama seca anterior, havia agora uma

camada nova, cor de chocolate, em que os miúdos se rebolavam como bacorinhos, jogando a bola.

Tomasinho segurava numa das mãos o saco vazio onde metera o ferro-velho, tendo a outra mão enfiada

na algibeira onde, todas amarrotadas, trazia as duzentas liras amealhadas andando à cata de ferro por

entre as montureiras e ao longo das encostas da Tiburtina. (PASOLINI: 1965, p.22)

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potenza, so’!» gridava, spalancando la boccuccia senza labbra coi quatro

dentini marrone sbocconcellati”.16 (PASOLINI: 1959, p. 25).

Entretanto, sua alegria dura pouco, pois logo arruma uma briga que

termina em uma cena de violência: “E siccome il piccoletto non la piantava,

preso da un attacco di rabbia, gli ammollò altre due lattate, e in soprappiù gli

diede uno spintone che lo mandò giù,, e come fu per terra, [...] gli s’accostò e gli

lasciò andare due o tre pedate alle costole.” 17 (PASOLINI: 1959, p.26)

Na parte final do primeiro capítulo, Tommaso, depois da briga, retorna

correndo para a Pequena Xangai, procura por Lello em sua casa, mas encontra

apenas um cão, que é descrito pelo narrador também como um pobre coitado:

“Non c’era nessuno. Solo il vecchio cane nero sfiatato, che non si ritrovò

neanche la forza d’abbaiare, digiuno com’era, e s’accontentò d’alzarsi, di

guardarsi attorno [...] e lì si sdraiò sulla fanga, mista alla piscia e ai resti delle

minestre.”18 (PASOLINI: 1959, p.27). Depois vai para casa e não encontra a

comida pronta:

Ma la pila stava ancora a bollire sopra il fornelletto. La madre era di là, nell’altra stanza: altra stanza per modo di dire, perché era tutta una bicocca, separata solo da una tenda grigia e marcita e da una paretina di cartone sopra un’armatura di pezzi di assi di tutte le sorte, male inchiodati.19 (PASOLINI: 1959, p.28)

Ajoelha-se e começa a fuçar próximo ao armário do cômodo enquanto

seus dois irmãos, Tito e Totò, observam. O rapaz não lhes dá atenção, pelo

contrário, os ignora e chega até mesmo a agredir um deles. Neste trecho do

16

Eu cá sou uma fera – gritava, arreganhando a boca, quase sem lábios com quatro dentes castanhos e

salientes. (PASOLINI: 1965, p.26)

17 Como o puto não se calava, tomado dum acesso de ira aplicou-lhe outras duas latadas e a seguir um

empurrão que o atirou por terra. [...] aproximou-se e aplicou-lhe ainda uns dois ou três pontapés nas

costelas. (PASOLINI: 1965, p.27)

18 Não estava lá ninguém. Só o velho cão, negro e alquebrado, que nem forças teve para lhe ladrar, do

jejum em que estava, e se limitou a levantar-se, a olhar à volta [...] e ali se estendeu na lama, misturada

com urina e restos de comida. (PASOLINI: 1965, p. 28)

19 Mas a panela estava ainda a ferver sobre o fogareiro e a mãe na outra divisão. Outra divisão é como

quem diz, porque aquilo não era mais do que um só quarto dividido por um pedaço de lona cinzenta e

suja e um tabique de cartão mal pregado a umas tantas tábuas dos mais diversos feitios.

(PASOLINI: 1965, p. 28)

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romance podemos notar, mais uma vez, o desespero causado pela miséria na

qual viviam esses personagens; um de seus irmãos encontra um pedaço de

pão velho, embaixo do armário, e logo o pega para comer:

Vedendo che Tommasino non gli dava retta, gli s’accostò ancora un poco, e gli posò la testa sopra il ginocchio, col barbozzo sulla coscia. Tommaso, infastidito, diede un colpetto in su col ginocchio, e l’altro fece un capriolo sul pavimento, contro la cassa, picchiando la cucuzza. Stette quasi per piangere lì, a pancia in aria come si trovava, ma in quel momento la sua attenzione fu attirata da un pezzetto di pane che, il mattino, gli era caduto sotto la credenza. Rivoltò la pancetta in basso e, dopo due tre tentativi, riuscì ad acchiappare il boccone di pane, e ricominciò a succhiarlo.20 (PASOLINI: 1959, p.28)

Após se alimentar, Tommaso sai de casa apressadamente e dirige-se à

escola em Pietralata: “Era già quasi ora d’andare a scuola, ormai: un po’ di sole

era risortito a far luccicare il fango di Pietralata, e i ragazzini se ne stavano un

po’ qua un po’ là, in attesa.”21 (PASOLINI: 1959, p.31). No fim da aula, o

protagonista fica na sala limpando o ambiente, na tentativa de chamar a

atenção do professor, que concentrado não percebe o esforço do rapaz,

deixando-o enraivecido; o mestre demonstra um interesse e preocupação por

Lello.

Tommaso acompanha o professor na saída da escola e, depois da

despedida, o segue, exprimindo toda sua ira, resmungando sozinho:

“«C’hai paura! A froscio! Ma che ce troverai a Lello, quo’o

stronzo morto de fame, che nun c’ha manco er padre, nun

c’ha, nun è fijo de nissuno! Ma viè co’ me, che un ragazzetto

20

Ao ver que Tomás não lhe dava troco, chegou-se ainda mais a ele e pôs-lhe a cabeça sobre o joelho, o

queixo assente nas coxas. Tomás, aborrecido, deu o jeito com o joelho e o miúdo rebolou no chão,

batendo com o toutiço na caixa. Esteve quase a romper em choro, de barriga para o ar, posição em que

ficara, mas, no mesmo instante, a sua atenção foi desviada para um naco de pão que, de manhã, lhe

caíra para debaixo do armário.

Virou-se de barriga para baixo em após duas ou três tentativas, conseguiu apanhar o pedaço de pão,

começando a chupá-lo. (PASOLINI: 1965, p. 29)

21

Já eram horas de ir para escola; uma amostra de sol tinha vindo refletir-se sobre a lama de Pietralata e

os rapazitos espalhavam-se por aqui e por ali, à espera. (PASOLINI: 1965, p. 31)

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bravo, io, no un pidocchioso come quello! A froscio!»”22

(PASOLINI: 1959, p.35)

Fechando o capítulo, outra cena de degrado: Lello e outros rapazes

correm em busca de leite em pó, que estava sendo distribuído aos pobres por

uma senhora num carro: “L’autista gli diede due tre pacchi di latte in polvere.

Cominciarono a strappare i pacchi e a abbuffarsi di polvere, a manciate, che si

stavano per strozzare.”23 (PASOLINI: 1959, p.36)

Segundo capítulo, “Noite na Cidade de Deus” inicia-se com a busca de

Tommaso por Lello. Vai encontrá-lo num baile, no salão do Partido Comunista.

Era domingo, em Pietralata. O narrador se detém na descrição do ambiente e

personagens presentes naquele local:

E infatti i marciapiedi, se si potevano chiamare così quelle due piste di fango e serci ai lati della strada, erano tutti pieni di giovinottelli imblusati e di militari del Forte. Era inverno, dicembre: ma faceva un caldo che si sudava, e la nebbia che copriva Pietralata e i campi attorno all’Aniene pareva il vapore di un bagno.24 (PASOLINI: 1959, p.38)

Na sequência lemos sobre a confusão criada pela apreciação de

fotografias antigas do grupo de rapazes nas quais encontram um motivo de

diversão, ou seja, riam das próprias imagens:

Cacciò dalla saccoccia il suo portafoglio, cominciò a smucinare delicatamente con le dita fra i reparti, e finalmente prese una fotografia, dove si vedevano lui stesso, altri amici suoi, e il Cagone. Stavano in mutandine da bagno, in fila, quelli di dietro in piedi, quelli davanti rannicchiati: e guardavano tutti verso l’obiettivo facendo i Rudi. Tutti si gonfiavano per parere più fusti: c’era Nazzareno che pareva che stesse per schiattare per lo sforzo

22

Raios te partam! [...] - Não queres nada comigo, hã? Tens medo, ó panasca? Não sei o que acha no

Lello, um merda dum miserável, não sou um piolhoso como ele, ó maricas! (PASOLINI: 1965, p. 34)

23 O ‘chauffeuer’ passou-lhes dois ou três pacotes de leite em pó. Rasgaram os pacotes e meteram o pó

à boca, às mãos cheias, a ponto de se engasgarem. (PASOLINI: 1965, p. 35)

24 De facto, os passeios, se assim se podiam designar aquelas pistas de lama e cascalho de cada banda

da estrada, estavam apinhados de garotos, vestidos com camisolas, e soldados do Forte. Estava-se em

dezembro, no inverno portanto, mas fazia um calor de suar e a névoa que cobria Pietralata e os campos

junto ao Anieno parecia o vapor de um banho turco.” (PASOLINI: 1965, p. 38)

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che faceva a allargare i pettorali e a spingere le spalle in avanti tenendo le mani sui fianchi. Il Cagone pareva una vecchia, secco come un baccalà. Guardandolo, sia il Budda che Nazzareno, cominciarono a sganassarsi dalle risate loro, adesso; ma più che risate erano urli, che gli scartavetravano la gola e gli facevano fare uno sforzo che si dovettero piegare sulla vita e rotolare fin quasi sotto il tavolo.25 (PASOLINI: 1959, p.41)

Tommaso, Lello e Cabeçudo caminham e encontram outros amigos, que

não dão atenção às fotografias; Tommaso confessa sua admiração pela figura

do ex-líder italiano, Mussolini: “[...] «Ecchelo, chi è stato ‘n’omo!», e se lo stava

a filare con ammirazione, tutto malandro.” 26 (PASOLINI: 1959, p.42).

Seguem pelas ruas, assim que o baile acaba, e o narrador se detém na

descrição da personagem Cagão:

Il Cagone se ne stava addossato alla colonnetta, accanto a Lello, come un sacchetto di tutti stracci, col baveretto del cappotto tirato su, e con sopra i ricci zozzi bagnati dalla nebbia. Aveva un cappottino liscio, sdrucito e sbrillentato, che gli si perdeva fino agli stinchi, facendolo sembrare un prete, [...] Era figlio d’una scausa e d’uno zaraffa, e teneva altri due tre fratelli, sparsi per Roma. Il padre passava due anni a bottega e un mese fuori. [...] Sua madre s’era messa a fare la vita che lui era pischello.27 (PASOLINI: 1959, p.44)

25

Rapou a carteira do bolso, começou a folhear o conteúdo com os dedos e por fim pegou numa

fotografia onde estava ele mais alguns amigos, entre os quais o Cagão, todos em calção de banho,

alinhados os detrás de pé, os da frente agachados. Olhavam para a objetiva a armar em Rudi. Todos se

inchavam para aparecer mais fortes. O Nazareno parecia estar prestes a rebentar por causa do esforço a

que se obrigava, de mãos à cinta, para alargar os músculos e fazer peito.

Ao olhar para ele, para aquela linda figura, tanto o Buda como o Nazareno começaram, por sua vez, em

grandes risadas. Mais do que gargalhadas, eram urros que lhes estoiravam a garganta e os obrigavam a

tal esforço que tiveram de se vergar e apoiar às tábuas da mesa. (PASOLINI: 1965, p.41)

26

[...] - Este sim, este que foi um homem! E ficou a olhar o retrato, cheio de admiração o malandro.

(PASOLINI: 1965, p. 42)

27

O Cagão, esse, estava encostado à coluna, junto ao Lello, como um fardo de farrapos, com a gola do

capote puxada para cima e os cabelos sebentos humedecidos pela névoa. Vestia capote esfarrapado

que lhe chegava até as canelas, fazendo-o parecer um padre. [...] era filho duma galdéria e dum

cadastrado e tinha outros dois ou três irmãos perdidos por Roma. O pai passava dois anos na grelha e

um mês à luz do dia. [...] Quanto à mãe, tinha-se botado a fazer a vida, ainda ele era puto. (PASOLINI:

1965, p. 44)

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Os rapazes são tomados pela fome e tentam enganar um vendedor de

azeitonas, tentando ludibriá-lo com uma moeda sem valor. O feirante não se

deixa enganar e acaba sendo agredido por um dos meninos. Saem

caminhando, novamente, e encontram um grupo de fascistas, que fazem um

protesto; se envolvem na confusão, que termina com a chegada da polícia: “Le

guardie arrivavano da due parti, da Via del Seminario e da Piazza della

Minerva: così i naissini che erano presi in mezzo, cominciarono a tagliare per gli

altri vicoletti che restavano.”28 (PASOLINI: 1959, p.53). Reúnem-se numa

pizzaria na qual, após beberem vinho, discutem com um tipo comunista.

Mais tarde, decidem roubar uns rolos de cobre e furtam um carro para

transportá-los, aproveitando do grande número de automóveis estacionados

perto do Teatro Argentina:

Lello ci s’accostò, si guardò intorno, puntò forte il ginocchio contro lo sportello, acchiappò bene con le due mani la maniglia e diede un colpo secco. Lo sportello si aprì, e Lello sgusciò dietro il volante, aprendo l’altro sportello.29 (PASOLINI: 1959, p.58)

Sem grande esforço colocam o veículo em movimento e saem pelas

ruas, na noite de Roma. De repente, a personagem Maluco percebe a

presença de um carro estrangeiro e decidem furtá-lo; em poucos minutos se

apossam da mala e de uma bolsa achadas nesse automóvel.

Seguem em busca de um comprador para o produto do furto. Logo

encontram um receptador e negociam o valor da venda. Fecham um acordo,

mas o Cagão se interessa também por um revólver, que acaba entrando no

acordo final:

Andò a un divanetto, dov’era appoggiata una grossa bambola, di quelle delle pesche di beneficenza; le staccò la testa e cacciò una bella pancotta di grana, assieme a una rivoltella ch’era lì tra le saccate. Il Cagone l’allumò subito, tutto preso. [...]

28

Os guardas surgiram de dois lados, da rua do Seminário e da praça Minerva. Por isso os fascistas,

apanhados no meio, começaram-se a escapar pelas outras travessas. (PASOLINI: 1965, p. 53)

29 Lello aproximou-se, olhou em torno, fez pressão com o joelho sobre a portinhola, segurou o manípulo

com ambas as mãos e deu um golpe seco. A porta abriu-se. Lello estendeu-se por debaixo do volante,

abrindo a outra porta. (PASOLINI: 1965, p. 57)

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«Daje, venticinque sacchi, vaffan....» fece, tremando, «ma però ce metti sopra pure ‘a spiritosa!».30 (PASOLINI: 1959, p.62)

A seguir, retomam suas andanças pela Cidade Eterna, se aproveitando

do dinheiro, comendo e bebendo. Têm a ideia de aprontar um novo golpe,

dessa vez um assalto. Dirigem-se a um posto de gasolina. Hugo apontou o

revólver ao empregado, que estava a colocar a mangueira no descanso:

Gliela teneva a due centimetri dal petto, e faceva tremare tutta la mano per mostrare d’aver paura, perché quando uno ha paura è il momento che spara. [...] «Basta che nun m’ammazzi, che c’ho famija», disse il benzinaro bianco come una candela, togliendosi svelto svelto la borsa e dandola al Cagone.31 (PASOLINI: 1959, p.65)

Saem em fuga, Tommaso canta para comemorar o feito. Diz que não

temem a cadeia nem a morte mais terrível. Logo se desfazem da arma usada

no assalto e do carro surrupiado para, em seguida, furtarem um outro

automóvel, pois planejam novo assalto. Partem em velocidade. Encontram

mais um posto de gasolina, no qual um funcionário dormia. Aproveitando desta

situação, começam a furtar, levando o dinheiro e um compressor. Contudo, o

derradeiro assalto não terá um final tão bom. Entram em mais um posto de

gasolina e, dessa vez, Hugo agarra o frentista para roubá-lo:

Nel momento che questo prese la pompa in mano, gli s’avventò addosso stringendolo per le braccia dietro la schiena alla carabiniera: Ugo scattò da parte dietro, e gli mise un braccio attorno alla gola, stringendolo così di brutto che gli faceva uscire gli occhi di fuori. [...] In quel momento venne fuori da dietro il casotto, su dal ciglione della ferrovia, l’aiuto benzinaro. [...] Subito mise la mano in saccoccia e cacciò la pistola: una pistoletta Maus quadrata, e

30

Dirigiu-se a um sofazito em que estava recostada uma boneca grande. Desatarraxou- lhe a cabeça e

tirou lá de dentro um maço de notas assim como um revólver que estava ali entre o dinheiro. O Cagão

deitou-lhe os luzios, interessado. [...] Porra, passa para cá os vinte e cinco mil – disse a tremer -, mas

acrescenta também o revólver! (PASOLINI: 1965, p. 61)

31

O Cagão mantinha a arma a dois centímetros do peito do assaltado e fazia tremer a mão toda para

mostrar medo, porque quando um tipo tem cagaço é que dispara mesmo. [...] Não me mate, que tenho

mulher e filhos! – lamuriou-se o sujeito, branco que nem um círio, sacando lesto a bolsa e passando-a

ao Cagão. (PASOLINI: 1965, p. 64)

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la puntò, pronto a impiombare i quattro gratta.32 (PASOLINI: 1959, p.72)

Para fugirem, sequestram o frentista e o carregam dentro do carro

durante um bom tempo; depois de uma sessão de espancamento, o liberam

num local ermo.

Nas páginas seguintes os rapazes continuam a peregrinar pela noite,

buscando formas de diversão e de autoafirmação. Decidem gastar o dinheiro

dos furtos e roubos com prostitutas. Salvatore afirma: “«Semo belli, bulli,

ballamo bene, rubbamo bene, mettemo bbene!»”33 (PASOLINI: 1959, p.75).

Procuram por uma prostituta, Marianna la Nasona. No caminho,

Salvatore encontra um cão de rua e sente ternura pelo animal: “«Prendemolo e

portamolo co’ noi!» gridò Salvatore, preso da uno slancio di affetto, e

dimenticando la Nasona, con gli occhi che per la tropea gli si vedeva solo il

bianco.”34 (PASOLINI: 1959, p.76). Neste trecho do romance, o narrador mostra

que os rapazes, que são capazes de fazer um assalto, cometer violência contra

trabalhadores, podem se deixar comover por um cãozinho.

Continuam a buscar pela meretriz, mas não conseguem encontrá-la. No

caminho entram em um baile. Entretanto, como já estava sendo tocada a última

música da noite, são impedidos de entrar no local. Conseguem convencer o

funcionário a deixá-los entrar e, insatisfeitos, discutem com os integrantes da

banda de música, que não queriam mais tocar naquele horário. Por fim, depois

de muita conversa, saem a caminhar pelas ruas de Roma, bêbados e

cantarolando acompanhados pelos músicos. Parados em frente a uma

funerária, cantam. Quando a polícia chega, fogem em direção à Via Merulana.

Dirigem-se à Praça Vittorio e, de tão cansados, caem no sono. Ao acordarem,

tomam o bonde e voltam para casa. 32

No momento em que o sujeito pegou na bomba, colocou-se à retaguarda dele e apertou-lhe um braço por detrás das costas, como fazem os carabineiros. Hugo saltou da parte de trás e passou-lhe um braço à volta do pescoço, apertando com tanta gana que quase fazia saltar os olhos do homenzinho cá para fora. [...] Nessa altura surgiu o ajudante do posto por detrás do casinhoto [...] Meteu a mão na algibeira, sacou de lá uma Mauser e apontou-a, pronto a chumbar os assaltantes. (PASOLINI: 1965, p. 71) 33

“Somos belos, bailamos bem, bifamos bem e pinamos bem”. (PASOLINI: 1965, p. 74).

34 “– Agarramos o gajo e levamo-lo conosco! – Gritou Salvador, vencido por um impulso de ternura e

esquecendo a Pencuda.” (PASOLINI: 1965, p. 74)

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A narrativa nos permite traçar a cartografia de Roma, com a indicação

de lugares da boêmia e do baixo mundo, dentre outros.

Na conclusão do capítulo, Lello, durante uma corrida apressada pelo

bonde, é atropelado:

Ma di botto, con uno stridore che fece sudare l’ossa, la vettura diede una frenata così di brutto, che Tommaso fu sbattuto contro la groppa del fattorino. [...] Lello cercando di urlare, ma in realtà con una voce fina fina, che pareva venisse da un altro mondo, e non fosse lui che parlava, diceva: «Ahioddio, aiuto!» Pure il piede era frattagliato: la scarpa, la carne, l’ossa formavano tutta una poltiglia rossa di sangue.35 (PASOLINI: 1959, p. 91)

Vida de desgraças e miséria. Jovens abandonados à própria sorte, sem

perspectivas, sem rumos. Vivem em um ambiente que é bem conhecido, ainda,

em muitos países do chamado Terceiro Mundo.

No terceiro capítulo, “Irene”, é apresentada a personagem, que, no

decorrer do romance, virá a ser a companheira de Tommaso.

O protagonista dirige-se a Garbatella onde encontrará um grupo de

meninos jogando futebol, mas seu intuito era o de observar as meninas que

estavam próximas: “Ecco perché Tommaso pedalava quatto quatto per la

spianata, lasciando perdere le partitelle, e passando solo accosto ai gruppi

delle femmine, filandole.36 (PASOLINI: 1959, p. 94). Mas seu passeio em frente

às meninas não surte muito efeito e, logo, é interrompido pela carroça que

recolhia cães das ruas. A narrativa se volta, então, para a descrição do cão que

está sendo recolhido:

Il capoccia teneva in mano come una lenza, lunga, proprio come quelle che usano i pescatori sul Tevere: ma anziché il filo pendeva dalla cima una striscia di cuoio. All’altro capo di questa striscia era attaccato, per il collo, un cosetto buffo che veniva avanti trotticchiando, tic tic tic tic su delle zampette da grillo. [...] Il capoccia lo fece quasi volare fin

35

Mas, de repente, num estridor de arrepiar os ossos, o carro travou de esticão, a ponto de Tomás ir contra o condutor. [...] Lello tentava gritar, mas, na realidade, saía-lhe uma voz tão fina que parecia vir do outro mundo, como se não fosse ele a falar: - Socorro! Socorro! Também o pé estava esmagado: sapato, carne e ossos formavam uma medonha pasta vermelha, sanguinolenta. (PASOLINI: 1965, p. 89) 36

Por isso Tomás caminhava, moita, pelo terreiro adiante, não ligando importância ao desafio para

poder passar rente ao grupo das raparigas e olhar para elas. (PASOLINI: 1965, p. 89)

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presso il camioncino, dove gli altri carcerati raspavano con le zampe contro la parete e respiravano forte.37 (PASOLINI: 1959, p. 96-7)

A partir desse episódio, surge o pretexto para Tommaso conversar com

Irene, que estava acompanhada de outras meninas. Ele, depois de hesitar, se

dirige à moça, conversando sobre os cães, “[...] sui vantaggi e sugli svantaggi

che questi portano in casa: lei aveva l’esperienza fresca di Fido, e Tommaso di

cani ne aveva conosciuti, in borgata.”38 (PASOLINI: 1959, p. 100).

Ele faz um discurso acerca das relações de apego aos animais; ela,

contudo, exprime um sentimento de alívio pela perda do seu cão, apenas

levado pela carroça. Tommaso oferece um novo animal à moça, que responde

negativamente, afirmando não ter interesse algum. Na sequência, Irene se

despede das amigas e o rapaz a acompanha no caminho para casa. É tomado

por reflexões sobre a forma como os dois se conheceram:

«Si nun era che venivo qua, a ’a Garbatella, da ’n amico mio, enun me fermavo a guardà li regazzini a giocà a pallone, e poi nun c’era er fatto dell’acchiappacani, quanno se saressimo incontrati, noi due?»39 (PASOLINI: 1959, p. 101-2)

Ele se anima a perguntar sobre o filme que estava em cartaz no cinema,

fingindo desinteresse; ela responde que passava Quo Vadis. Tommaso a

convida para o assistirem no dia seguinte.

Temos aqui, no espaço da miséria e desalento, uma referência a Roma

antiga, aproximada aos protagonistas de Una vita violenta. No filme dirigido por

Mervyn LeRoy, Quo Vadis, (EUA, 1951), o general Marcus Vinicius, após três

anos em campanha, retorna a Roma e conhece Lygia, por quem se apaixona.

37

O chefe segurava numa das mãos uma linha de pesca comprida, tal e qual as que usam os pescadores

do Tibre, rematada por uma espécie de coleira e cabedal. Trazia amarrado pelo pescoço, um cãozito que

trotava tic-tic-tic sobre as patitas de aranhiço. [...] Só quando chegou muito perto, mesmo ao pé das

pessoas, viu-se que tinha o lombo esfolado, com bocados de peles cinzentas e sarnosa, entre os raros

tufos de caracóis negros. O patrão quase o fez voar para dentro da carroça onde os outros

encarcerados arranhavam as paredes com as patas, resfolegantes ansiosos. (PASOLINI: 1965, p. 94)

38

[...] acerca das vantagens e desvantagens de os ter em casa. Ela tinha a experiência recente do ‘Fiel’ e

Tomás sabia a história dos cães lá do bairro. (PASOLINI: 1965, p. 97).

39 Se eu não tivesse vindo aqui à Garbatella a casa dum amigo e não tivesse parado a ver os miúdos jogar

bola e depois não tivesse chegado a carroça dos cães, quando é que nós os dois nos teríamos

encontrado? (PASOLINI: 1965, p. 99)

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Ela, uma cristã, não quer relacionar-se com um guerreiro. Apesar de ter sido

criada como romana, era filha adotiva de um general aposentado e, por isto,

refém de Roma. Marcus pede a Nero que ela lhe seja dada pelos serviços

prestados ao império. O imperador comete suas atrocidades e, quando queima

Roma e culpa os cristãos, Marcus salva Lygia e a família. Quo Vadis mostra

uma cidade marcada por conflitos e violência, como a Roma de Pasolini. O

filme inspirou-se no livro homônimo de Henryk Sienkiewicz, publicado em 1895.

Voltando a Una vita violenta, Tommaso e Irene descobrem pontos em

comum, como o fato de o pai da moça ser funcionário do município assim como

o do protagonista. Na manhã seguinte, Tommaso se dirige a Garbatella: “In una

di queste piazzette, al capolinea dei tram, accanto a un cinemetto dei preti,

Tommaso spipettava nervosamente, tutto apparecchiato, aspettando Irene.”40

(PASOLINI: 1959, p. 105). A moça se atrasa um pouco e causa certa irritação

no rapaz. Contudo, quando ela chega, Tommaso demonstra toda sua emoção,

enrubescendo ao vê-la.

Já ao entrar no cinema o protagonista demonstra seu interesse pela

moça, tocando-a, nesse momento ainda de forma respeitosa.

Ma erano arrivati davanti al Garbatella, coi cartelloni investiti dalla bella luce del sole. Nella piazzetta lì davanti c’era un baretto, e attorno a questo, una ventina di giovanotti. Tommaso si fece ancora più nero in faccia, e tossicchiando, pilotò Irene dentro l’ingresso, verso la cassa, posandole appena appena con aria protettrice le mani sui fianchi. Irene prese subito un’aria ammusata e sofferente, come hanno le fidanzate.41 (PASOLINI: 1959, p. 108)

As páginas que seguem narram a inúmeras tentativas de sedução que

Tommaso fará durante a permanência do casal na sala de cinema, insinuações

e toques que acabam por irritar a moça. Com tanta insistência, ao fim o jovem

acaba por conseguir os seus objetivos: “Tommaso mise un braccio attorno alle

40

Numa dessas praças, junto ao término das linhas dos eléctricos, perto dum cinemazinho de padres,

Tomás fumava nervosamente, todo de ponto em branco, à espera de Irene. (PASOLINI: 1965, p. 102)

41

Tinham chegado diante do Garbatella, com seus cartazes inundados pela luz do sol. Na praceta ali

defronte havia um barzito e, volta deste, amontoavam-se uns vinte rapazotes. Tomás tornou-se ainda

mais sombrio e, tossicando, conduziu Irene para a entrada, até a bilheteria, pousando-lhe uma das mãos

na cintura, com ar protetor. Irene tomou, de súbito, o jeito sério e dócil que apresentam as noivas.

(PASOLINI: 1965, p. 105)

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spalle d’Irene, tenendosela stretta. Anche a questo lei abbozzò, facendosi

soltanto più seria e ammusata, e continuando a guardare il film con l’occhio che

le luccicava un po’ commosso”42 (PASOLINI: 1959, p. 109). A moça acaba se

entregando às investidas de Tommaso, que demonstra um pouco de

sensibilidade ao afirmar seus sentimentos “«A Irè, io te vojo bbene, mica

scherzo, te vojo bbene, t’o’o ggiuro!»” 43 (PASOLINI: 1959, p. 114).

Quando saem do cinema, se despedem com um beijo e marcam um

novo encontro. O jovem retorna a Pietralata, envaidecido pelo seu primeiro

encontro. No caminho encontra dois de seus amigos, o Macaco e o Cagão, e

vão furtar uns frangos em Anguillara. Ao amanhecer do sábado de aleluia,

continuam a furtar frangos em outros bairros da periferia romana.

Terminando o capítulo, o narrador informa os motivos que levaram os

rapazes a roubar galinheiros; tinham necessidade de uma caminhonete para

transportar bronze e, para isso, tentam convencer um amigo a emprestar-lhes o

veículo, sem sucesso. Precisando de dinheiro para o aluguel do veículo,

tencionam roubar roupas nos varais, que, por causa do tempo de chuvoso,

estavam todos vazios. Daí a ideia de roubar o galinheiro do padre, perto da

Ponte Mammolo.

Intorno alla chiesa e alla casa del prete c’era un muretto. I tre girarono intorno a questo, e andarono a parte dietro, dove stava il gallinaro. [...] «Ma che ca... ce frega!» disse, «quello è er padre der Bove, è più ladrone de Alì Babbà.44 (PASOLINI: 1959, p. 119)

O furto não dá o resultado esperado, pois no local havia pouquíssimas

galinhas. Resignado, o protagonista lamenta ter de passar a Pasquetta sem

42

Tomás passou-lhe um braço pelos ombros e manteve-a assim apertada contra si. Também isto ela

consentiu, embora se tornasse mais séria e reservada, com uns olhos que lhe brilhavam, de comovidos.

(PASOLINI: 1965, p. 106) 43

- Ó Irene, gosto de ti, fora de brincadeira, palavra que te quero muito. (PASOLINI: 1965, p. 110)

44

A igreja e a casa do padre eram rodeadas por um muro. Caminharam os três ao longo dele e

chegaram à parte de trás, onde ficava o galinheiro. [...] – Mas de que é que tens medo? O padre ainda é

mais ladrão que o Ali Babá! Se nos descobre é mais capaz de querer roubar a nós! (PASOLINI: 1965, p.

115)

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dinheiro: “Domani è Pasqua, dopodomani è Pasquetta, io devo uscì co’ la mi’

ragazza e dovemo stà pure in bianco!» 45 (PASOLINI: 1959, p. 122).

Na manhã de domingo, Tommaso encontra um rapaz que lhe pede para

tirar uma fotografia. O protagonista aproveita-se da situação e foge correndo

com a câmera fotográfica, que vende, conseguindo o dinheiro para sair com

Irene. E chegamos ao quarto capítulo, “A Batalha de Pietralata”.

Nesse capítulo é narrada a tentativa de prisão de um dos amigos de

Tommaso, o Cagão, o que gera uma revolta entre os moradores de Pietralata

e, também, uma resposta forte dos carabinieri.

A narrativa se inicia com um grupo de rapazes conversando, sentados

num bar, entre eles o Cagão, quando se aproximam alguns policiais, causando-

lhes certa tensão:

Il Cagone e gli amici suoi, dunque, se ne stavano al bare, quando videro venire avanti per la Via di Pietralata tre persone, in borghese; ma i compari però li riconobbero subito. Due erano poliziotti, e uno era un carabiniere della borgata, pure lui in borghese. 46 (PASOLINI: 1959, p. 127)

A notícia da presença dos guardas logo se espalha por todo o bairro e

curiosos se aglomeram no local. Depois de alguma observação, os policiais

dão voz de prisão ao Cagão, contudo, o jovem não se conforma e reage

fazendo o possível para não ser levado. As tentativas de arrastar o rapaz

contra sua vontade suscitam uma revolta nas mulheres que observavam e “[...]

cominciarono a gridare, ancora un po’ a mezza voce, qualche parola contro i

piedi piatti. «A disgrazziati! A infami! Vergognateve!»”47 (PASOLINI: 1959, p.

128-9). Na sequência, Cagão é algemado e levado pelos policiais:

Uno dei poliziotti che lo reggeva, dovette usare una mano, perché gli altri giovanotti non si spostavano un centimetro, e le donne si stringevano sempre più intorno. Così il Cagone riuscì

45

Amanhã é domingo de Páscoa, depois Pasquetta, já estou a ver que tenho de sair com minha miúda

sem nenhum. (PASOLINI: 1965, p. 118) 46

Portanto, o Cagão e os amigos estavam no bar quando viram chegar-se, pela rua de Pietralata acima,

três indivíduos à paisana. Os companheiros reconheceram-nos logo. Eram dois policiais e o outro um

carabineiro do bairro, também à paisana. (PASOLINI: 1965, p. 123)

47

[...] desataram a gritar, contra os chancudos, primeiro quase só a meia voz: - Desgraçados! Infames!

Tenham vergonha! (PASOLINI: 1965, p. 124)

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mezzo a liberarsi un’altra volta e si attaccò a un altro tavolino, scartavetrando per terra col ventre, sul marciapiede infangato.48 (PASOLINI: 1959, p. 130)

Porém, a resistência do rapaz – Cagão deu uma mordida no braço de

seu algoz –, e as agressões verbais dos moradores irritam os policiais, que

acabam por agredir violentamente o preso, que desmaia, aumentando ainda

mais a algazarra. A revolta se transforma em violência e termina com a fuga do

guardas, agredidos pela população. Cagão se aproveita da situação para

escapar e se esconder na casa de seu amigo Chacal.

Na segunda parte deste capítulo, lemos sobre a volta da polícia ao bairro

de Pietralata, para prender todos os culpados pela balbúrdia que ocorrera

anteriormente. Os carabineiros chegam à localidade de surpresa, durante a

madrugada, e prendem o Cagão, que havia se escondido no quarto de Chacal:

Sporse la testa, e vide uno che non era una faccia conosciuta; fece per richiudere lesto la porta, pensando: «Chi è che me l’ha fatta, ‘sta spiata?» ma quello mise un piede in mezzo, e prese il Cagone per il collo, tirandolo mezzo fuori. Come fu fuori, gli diede una mazzata dietro la collottola, che gli fece sbattere la testa contro lo spigolo della porta. Il Cagone crollò, sturbato: stavolta era fatto. Intanto vennero gli altri poliziotti, lo presero ch’era intontito e cascava da tutte le parti [...].49 (PASOLINI: 1959, p. 134-5)

Na continuidade, os policiais passam a madrugada a buscar o Macaco,

para prendê-lo:

Intorno alle altre baracche c’erano almeno una quarantina di carabinieri, pure loro con gli elmetti, le cartuccere e gli sputafuoco imbracciati: chi bussava alle porte delle altre

48

Para abrir caminho, um dos policiais que o sustinha teve que usar uma das mãos, porque os outros

rapazes não se afastavam um centímetro e as mulheres apertavam ainda mais o cerco. Por isso o Cagão

conseguiu safar-se de novo agarrando-se a outra mesa e atirando-se de barriga para o chão, sobre o

passeio enlameado. (PASOLINI: 1965, p. 126)

49

Deitou a cabeça fora e viu que não era cara conhecida. Tentou muito lesto, fechar a porta, pensando:

‹‹Mas quem é que me terá denunciado?›› O outro, porém, meteu o pé de permeio e segurou o Cagão

pelo pescoço, puxando-o para o lado de fora. Quando o conseguiu, ferrou-lhe uma tal pancada no

cachaço que o fez dar com a cabeça na quina da porta. O Cagão agitou-se, turvado, desta vez é que era.

Entretanto, chegaram mais policiais, seguraram-no, pois estava aturdido e tombava para todos os lados.

(PASOLINI: 1965, p. 130)

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casette, contro il prato, chi portava via dei giovanotti, e pure delle donne.” 50(PASOLINI: 1959, p. 137).

Os policiais, que tinham estado mais cedo em Pietralata, quando da

agressão dos populares, indicam cada um dos envolvidos, prendendo outros

dois rapazes, o Buda e o Cabeçudo, e revistando todos os casebres. Colocam

todos em caminhões e jipes que estavam à espera dos presos; as mulheres,

que observam tudo, reagem com indignação, causando certo burburinho. O

narrador descreve a cena das mulheres que caminhavam atrás de seus

maridos, aprisionados pela polícia, como uma verdadeira procissão religiosa,

enfatizando o sofrimento do povo da periferia:

La nonna dello Sciacallo sgambettava appresso a tutti quegli uomini armati, buona buona, e pareva ancora più piccoletta, una cimicetta, una formicola, con le mani strette come stesse a pregare, e rigirava intorno gli occhi neri, vergognosa, che a buon bisogno chiedeva lei scusa agli altri, come una ragazzina. Camminava strusciando le ciabatte sulla fanga, con la vestina verde, e tutti quei capelli bianchi bianchi e ruspi, messi alla scacciapensieri, intorno alla faccia nera come un tizzo, quasi sorridendo con la bocca sdentata, come andasse in processione.51 (PASOLINI: 1959, p. 143)

Ao amanhecer, os policiais vão embora, deixando o vazio e o silêncio

nas ruas de Pietralata. Tommaso retorna ao bairro, pois ficara com Irene na

Garbatella. Surpreso com o ocorrido, preocupa-se, procurando por notícias

para entender tudo o que acontecera durante a noite; temia por si mesmo:

“«Avemo chiuso!» pensò, con le gambe che già gli tremavano. «Si cercavano er

Cagone cercavano pure a me!»”52 (PASOLINI: 1959, p. 146).

50

A volta das outras barracas havia uns quarenta carabineiros equipados, também, com capacetes, e

cartucheiras e metralhadoras debaixo do braço. Enquanto uns batiam à porta dos casebres, os outros

levavam rapazes e até mulheres. (PASOLINI: 1965, p. 132) 51

A avó do Chacal dava à gambia atrás de todos aqueles homens armados. Parecia ainda mais pequena,

uma pulga, uma formiga, com as mãos estendidas como se estivesse a pregar, girando à volta os olhos

negros, envergonhada, como que a pedir desculpa. Caminhava arrastando as chinelas na lama, de

vestido verde, os cabelos e eriçados a emoldurar-lhe a cara negra como um tição, e quase sorria

beatificamente, com a boca desdenhada, tal como se seguisse numa procissão.(PASOLINI: 1965, p. 138)

52

‹‹Prenderam gente!››, pensou, as pernas a tremer-lhe. ‹‹Se procuravam o Cagão, também procuravam

por mim!››. (PASOLINI: 1965, p. 140)

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O protagonista volta apressadamente para sua casa, na Pequena

Xangai:

Il padre era al tavolo, con Tito e Toto da una parte e dall’altra, zitti pure loro, intenti a raspare col cucchiaio la scodella. Il fratello più grosso mangiava s’un pezzo di panca ch’era presso la porta, un po’ in luce, con la scodella tra le ginocchia. La madre, invece, mangiava in piedi, accanto al fornelletto a carbone.53 (PASOLINI: 1959, p. 148)

Nas páginas finais desse capítulo verifica-se uma leve mudança nas

características do protagonista, que se mostra assustado pelo que acontecera

nas vielas de Pietralata. Por medo, ele simula ter mudado, ser homem sério:

“Cercava di far notare che non se n’andava in giro, la notte, almeno per quella

volta, e che si metteva a dormire senza tante stupidaggini: ch’era un bravo

ragazzo, insomma.”54 (PASOLINI: 1959, p. 149). Fica toda a noite na porta de

sua barraca, incomodando alguns passantes; mantém-se firme no papel de

bom moço. Por fim, esboça uma emoção, sentindo-se só: “Tommaso si sentì

come una lacrima che gli spuntava. Ma subito la ricacciò in gola.” 55 (PASOLINI:

1959, p. 152).

Começa o quinto capítulo, “Canções da vida”, que encerra a primeira

parte do romance e tem como foco central a preparação de uma serenata para

Irene.

A narrativa se inicia com o protagonista falando aos amigos Macaco e

Carlitos sobre a sua vontade de fazer uma serenata para a amada. Carlitos

avisa que não tinha como retirar seu violão do penhor. Tommaso promete ao

amigo providenciar a quantia necessária. Caminhando encontra com Anita,

mãe de Lello, recorda dos amigos e pensa na sorte que tivera:

53

O pai estava à mesa, com Tito e Totó, cada um de seu lado e os miúdos mantinham-se em silêncio

ocupados em rapar o prato com a colher. O irmão mais velho comia sentado num banco, junto à porta,

com o prato seguro entre os joelhos. A mãe, por sua vez, ceava em pé, junto ao fogareiro de carvão.

(PASOLINI: 1965, p. 142)

54

Esforçava-se por fazer notar que não ia dar uma volta à noite, pelo menos daquela vez, e que se iria

deitar sem necessidade de fazer tolices. Enfim, que era um rapaz às direitas. (PASOLINI: 1965, p. 143)

55 Tomás sentiu uma lágrima a querer assomar-lhe aos olhos. Mas conseguiu dominar-se, engolindo-a.

(PASOLINI: 1965, p. 146)

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La vita gli sorrideva, una volta tanto. Su Lello, al Policlinico, a nessuno finora gli era puzzato il naso, e il Cagone, a bottega, s’era retto: era stato costretto ad ammettere degli altri, quelli del Vicolo della Luce, dato che l’avevano messo a confronto: ma lui di nomi, non ne aveva fatto manco uno, anche perché giobbava, si faceva venire gli attacchi epilettici, al succhiotto, e due tre volte s’era tagliato i polsi con le lamette.56 (PASOLINI: 1959, p. 148)

Na seqüência, há o desfecho da prisão de Salvador: consegue escapar

da prisão e, depois de uma longa fuga a pé, é encurralado e pego. Já o Maluco

passeava de automóvel, quando é seguido por um carro da polícia e sofre um

acidente fatal:

Ma gli si parò davanti la Circolare Rossa, e dovettero continuare per il viale dello scalo: lo presero sotto sterzo, non fecero neanche duecento metri, un attimo, e s’andarono a incartocciare addosso a un albero. Li tirarono fuori a pezzi. Il Matto era morto.57 (PASOLINI: 1959, p. 157)

Para concluir a narrativa sobre o desfecho da batalha de Pietralata, o

narrador revela o que ocorrera com Hugo que, estando num barbeiro, é

surpreendido e preso.

Então, a narrativa se volta para o protagonista, que vai à Praça Esedra

para prostituir-se, conseguindo, assim, dinheiro para realizar a serenata. Lá,

encontra um homem nos mictórios, que logo lhe desperta a atenção. Contudo,

o homem fica atraído por dois soldados, e Tommaso se irrita:

In quel momento, però, passarono davanti al vecchio e davanti a lui, due bersaglieri: tutti belli inquartati, due rocce, e con un bozzo nei calzoni che pareva facessero fatica a camminare. [...] Il vecchio, passando di nuovo davanti a Tommaso, come se non l’avesse visto mai, andò appresso a quelli. Tommaso restò li come un farlocco, incerto, con una faccia che quasi gli veniva da piangere come a un ragazzino.58 (PASOLINI: 1959, p. 159)

56

A sorte favorecia-o, mais uma vez. De Lello, internado no Policlinico, ninguém suspeitava e o Cagão,

na cana, aguentara-se bem. Fora forçado a admitir os outros, os da travessa da Luz, pois os tinha

acareado, mas não dera um nome sequer, até porque fazia grandes fitas, provocava ataques epiléticos e

golpeara os pulsos umas duas ou três vezes. (PASOLINI: 1965, p. 149) 57

Viram-se diante da Circolare Rosse e tiveram que meter pela avenida do cais, mas nem duzentos

metros chegaram a fazer. Aquilo foi obra de um minuto, estamparam-se logo de encontro a uma árvore.

Tiraram-nos cá para fora aos pedaços. O Maluco estava morto. (PASOLINI: 1965, p.151)

58

Naquele momento, porém, passaram diante do velho e diante dele dois soldados muito

desempenados, duas torres, com um tal volume entre as pernas das calças que até parecia-lhes

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Desapontado, continua na Ponte Garibaldi, procurando por novo cliente.

Observa um grupo de rapazes que também esperavam alguém disposto a

pagar por seus serviços amorosos. Tommaso, então, se dirige à Praça de

Espanha, onde encontra meninos jogando bola. Faz amizade com outros

rapazes, alguns como ele, que se prostituíam, outros em busca desse serviço:

«Chi è ‘sto mas-chio? Nun s’è vizto mai da ‘ste barti! Ammazza guant’è bbono!» Tommaso ghignò, portandosí la sigaretta alla bocca, e soffiò poi il fumo in faccia al froscetto che aveva parlato.59 (PASOLINI: 1959, p. 164)

Aqueles que buscavam serviços também preterem Tommaso e, outra

vez, ele sai enraivecido por não ter conseguido o dinheiro que precisava: “«Li

mortacci vostra! Sarebbe da metteve tutti co’ la faccia ar muro! Che ca...

campate a ffà, su ’sta tera?» «E mo’, come le rimedio ’ste otto piotte»”60

(PASOLINI: 1959, p. 167). Caminha e se sente debilitado, pois não se

alimentava desde a noite anterior. Ouve o discurso de um jovem contrário ao

comunismo, mas não dá atenção ao que o rapaz falava:

Fumando come masticasse veleno, si guardava intorno. Non gliene fregava più niente. Ammazza ammazza, tanto son tutti una razza. Chi glielo faceva fare d’essere destro, sinistro, questo e quello: era libero cittadino, anarchico della morte, e basta.”61 (PASOLINI: 1959, p. 170).

Cai a noite e ele continua sozinho, andando pelas ruas Marsala e Giolitti.

Observa as prostitutas à espera dos clientes. Enfraquecido pelo jejum

dificultar o andar. [...] O velho passou de novo diante de Tomás, como se nunca o tivesse visto, e seguiu

no encalço dos outros. Tomás ficou para ali, todo lixado, hesitante, com cara de choro como um

garotito. (PASOLINI: 1965, p.153)

59

Mas quem é esse homem? Nunca o vi por estes sítios! Reparem como ele é bom! Tomás deu uma

risadinha, levou o cigarro à boca e depois soprou o fumo à cara da maricona que estivera a falar.

(PASOLINI: 1965, p. 156)

60

Raios os partam! Deviam ser todos encostados à parede! Más que andam a fazer neste mundo? Como

hei-de eu arranjar massa? (PASOLINI: 1965, p.159)

61

Tomás nem sequer o ouvia. Olhava à volta, fumava como se mascasse veneno; não lhe importava

nada tudo aquilo, tipos das direitas, das esquerdas, disto ou daquilo, são todos da mesma raça. Ele era

cidadão livre, anarquista do coração e basta. (PASOLINI: 1965, p. 161)

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63

prolongado, mal consegue caminhar. Entretanto, vê umas das prostitutas

caminhando com a carteira cheia de dinheiro e planeja roubá-la. Neste trecho

revela-se o desespero do protagonista, que o leva a agredir violentamente a

prostituta, para poder arranjar o dinheiro do qual precisava:

«Ih, li mortè!» urlò come le fu addosso, prendendole la borsa e dandole una strattonata con tutta la forza. Ma quella che ormai se l’aspettava non mollò. S’era attaccata alla borsa, con tutte due le mani e s’era messa a urlare. Tommaso allora le allentò un cazzotto, e poi un altro, sulla bocca. Quella cadde in ginocchio, ma senza lasciare la borsa, che stringeva per il manico. [...] Così quella, gridando di dolore, mollò la stretta.62 (PASOLINI: 1959, p. 174)

As agressão às prostitutas, aos homossexuais perduram até os dias

atuais, inclusive na sociedade brasileira.

O protagonista consegue finalmente o dinheiro. Retorna a Pietralata e

encontra com Macaco e Carlitos e, de vespa, vão até a Garbatella, onde

encontram outros conhecidos e tomam café num bar. Tommaso se irrita com

uns homens que jogavam cartas no bar e riram de Irene, que conheciam.

Macaco arruma confusão com um carteiro e tudo termina em briga. Por fim,

vem um apaziguamento, regido pelo dono do bar:

Il Zimmìo andava dritto verso la porta, e invece di andare dritto verso la porta, andò fuori con l’accuso, non ci vide più, e si buttò come un fijo de ‘na mignotta sul fattorino agguantandolo con tutt’e due le mani stretto per il bavero, e bocca contro bocca [...] Prese una improvvisa decisione, si avvicinò al Zimmìo, con una faccia che diceva: «Ma che, semo proprio oriundi, qua? A morè, noi venimo da la gavetta! Damme retta, dà retta a ’sto dritto, nun fa lo stupidello!», lo prese sotto il braccio, con un occhio perduto lontano, e lo fece accostare al fattorino, a cui, a sua volta battè una mano sulla spalla, con più confidenza, spingendolo verso il Zimmìo. «’Namo», disse svelto, «semo tutti italiani! Dateve ’a mano, e passa appresso!»63 (PASOLINI: 1959, p. 181-3)

62

– Porra! Gritou ao chegar-se a ela, pegando-lhe na carteira e aplicando-lhe um encontrão com toda a

gana. Mas ela, que já estava prevenida, é que não a largou. Agarrara a bolsa com ambas as mãos e

pusera-se aos berros. Tomás aplicou-lhe dois murros nas ventas. Ela caiu de joelhos, mas não largou a

carteira que segurava pela pega. [...] A mulher largou a carteira a ganir de dor. (PASOLINI: 1965, p. 165)

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64

Seguem para o centro de Garbatella e param em frente ao sobrado onde

morava Irene. Carlitos começa a tocar o violão sob a janela da moça, que

mantém as janelas fechadas. Curiosos se aglomeravam para ouvir a música.

Alguns rapazes, entre eles Xangaiano, começam a pedir a Carlitos para tocar

pra eles. Mas o cansaço e a vontade de ir embora causa nova discussão entre

os que queriam ouvir música e os que queriam parar. Desse desentendimento

inicial, surge uma nova briga, dessa vez entre Xangaiano e Tommaso, que

saca de um canivete. O protagonista fere o rapaz e foge na escuridão da noite,

dando fim à primeira parte do romance:

Shangaino se ne stava lì fermo; s’era messo le mani sotto la giacca, sulla camicia, e le aveva levate tutte sporche di sangue. Allora aveva cominciato a gridare aiuto, e s’era appoggiato al muretto per reggersi, con la schiena: così scivolò pian piano contro i mattoni scocciati, e rimase lì a sedere, con gli altri che un po’ lo guardavano, cercando d’aiutarlo, un po’ tentavano d’acchiappare Tommaso.64 (PASOLINI: 1959, p. 194)

Furtos, roubos, prostituição, violência marcam a adolescência de

Tommaso Puzzilli, na periferia, narrada na primeira parte do romance Una vita

violenta.

“O cheiro da liberdade” é o capítulo que abre a segunda parte do

romance. Neste capítulo é narrada a história de vida do pai do protagonista,

Torcato Puzzilli, que viera do interior da Itália após o fim dos combates da

Segunda Guerra Mundial e de ter perdido todos os seus bens materiais.

Estabelecera-se em Roma, primeiramente numa escola e, depois, na barraca

em Pietralata.

63

O Macaco já se dirigia para a porta, mas em vez disso, não suportando mais chalaças, não teve mão

em si e atirou-se ao carteiro, apertando-lhe as goelas com ambas as mãos e, cara na cara. [...]

Tomando uma decisão imprevista, acercou-se do Macaco com uma cara que parecia dizer: ‹‹Somos

alguns selvagens? Nós somos gente civilizada! Ora toma atenção, não te faças de estúpido!››, pegou-lhe

por debaixo dos braços, os olhos perdidos na distância, e fê-lo aproximar-se do carteiro, a quem, por sua

vez, deu uma palmada nas costas, com mais confiança, puxando-o para perto do Macaco.

– Vá – disse, desembaraçado –, nós cá somos todos italianos! Apertem as mãos e arrumem isso!

(PASOLINI: 1965, p. 172-3)

64

O xangaiano metera as mãos por debaixo do casaco, sobre a camisa e trouxera-as sujas de sangue.

Desatara a berrar por socorro e apoiara as costas à parede para se ter em pé. Escorregou lentamente

pelos tijolos abaixo e ficou ali sentado no chão, enquanto os outros ora olhavam para ele, esforçando-se

por o ajudar, ora tentavam agarrar Tomás. (PASOLINI: 1965, p. 184)

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65

Torquato era padrone d’una casetta, magari messa su coi tufi, in mezzo alla campagna, a un chilometro da Isola Liri, che gli era rimasta dalla madre: intorno c’era un po’ di metri di terra, che se li lavorava, e c’aveva messo le stalle pei maiali, le pecore e le galline. E con questo Torquato era stato pure nominato bidello delle scuole di Isola Liri: così s’era potuto sposare con la sora Maria, dopo un bel po’ d’anni che si stuzzicavano: nel trentaquattro era nato il primo figlio, e nel trentasei Tommaso; poi avevano avuto una femmina ch’era nata morta. Quando venne la guerra, Torquato fu chiamato sotto le armi, e l’otto settembre ritornò a casa, sbandato come tutti gli altri. Ma gli toccò risloggiare subito, però, e stavolta con tutto quello che c’aveva, insieme alla carovana dei profughi che scappavano verso Roma.65 (PASOLINI: 1959, p. 197)

No bairro de barracas de latas, Torcato se firmou e conseguiu um

emprego municipal de varredor de ruas. A narrativa passa a focar a construção

dos prédios populares INA, que são erguidos na localidade, para os servidores

públicos: “Ma ecco che un giorno cominciarono a impiastrare di palazzi tutto lì

intorno, sulla Tiburtina, poco più su del Forte: era un’impresa dell’INA Case, e le

case cominciarono a spuntare, sui prati, sui montarozzi.”66 (PASOLINI: 1959, p.

199). Antes mesmo do término das edificações, os moradores das imediações

as invadem, sendo, porém, despejados, entre eles a família de Tommaso.

Depois de alguns meses, os imóveis começam a ser ocupados legalmente.

Assim, num golpe de sorte, o pai do protagonista é contemplado com um dos

apartamentos e, logo que a família o ocupa, Tito, irmão de Tommaso, é

acometido por uma doença, vindo a falecer. A partir daí, o outro irmão de

Tommaso, Totó, se sente sozinho. A narrativa detalha os primeiros momentos

de ausência do irmão.

65

Torcato era dono dum casinhoto modesto de paredes rebocadas, no meio dos campos, a cerca dum

quilometro de Isola Liri. O casinhoto herdara-o ele da mãe. À volta, havia dois palmos que cultivava e

onde construíra currais para os porcos, as ovelhas e galinhas. Além disso, era contínuo na escola de Liri:

graças a isso pudera casar com a senhora Maria. Havia muito que namoriscavam: em trinta e quatro

nascera-lhes o primeiro filho e Tomás dois anos depois; mais tarde veio uma garota que nasceu morta.

Ao rebentar a guerra, Torcato foi chamado e a oito de Setembro regressou a casa, vencido como os

outros. Coube-lhe porém a sorte de ser desmobilizado mas desta vez abalou com tudo o que possuía,

juntando-se à caravana de refugiados que desbandavam para Roma. (PASOLINI: 1965, p.187)

66

Um dia, porém, começaram a encher tudo ali à volta com edifícios, primeiro na Tiburtina e pouco

depois até mesmo no Forte; construções de imobiliária INA e as casas começaram a nascer aqui e por

ali, pelas terras cultivadas e baldios. (PASOLINI: 1965, p.189)

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66

Tommaso estava preso, por ter esfaqueado o personagem Xangaiano. O

narrador usa a técnica de fashback para descrever o que ocorrera depois das

facadas e da fuga narradas no capítulo anterior: o protagonista dorme na rua e,

ao amanhecer, ao chegar em casa, encontra a polícia à sua espera. Assim, o

leitor toma conhecimento da prisão de Tommaso e de sua condenação a dois

anos de cárcere. Na segunda parte deste capítulo, é narrada a sua volta à

família, após cumprir sua pena: “Quando Tommaso tornò a libertà era un bel

tramonto di maggio. Era la prima volta che Tommaso vedeva l’INA Case finito:

quando lui era andato a bottega ancora era tutto un mucchio di cantieri.” 67

(PASOLINI: 1959, p. 205).

Na continuidade da narrativa, como poucas vezes acontece neste

romance, o protagonista, ao chegar a sua nova casa, chora, demonstrando

emoção com sua nova condição de vida.

Tommaso s’era fermato a guardare la sua casa, che era una delle due o tre palazzine pitturate di color rosa scuro: si alzava quasi in pizzo alla via, contro le praterie, tutta bella pulita e nuova. Poi, con un nodo alla gola per la commozione, che quasi piangeva, Tommaso entrò dentro, ingrugnato, un poco, per non far vedere quello che provava. Era sempre vissuto, dacché se ne ricordava, dentro una catapecchia di legno marcio, coperta di bandoni e di tela incerata, tra l’immondezza, la fanga, le cagate: e adesso invece, finalmente, abitava nientemeno che in una palazzina, e di lusso, pure, con le pareti belle intonacate, e le scale con delle ringhiere rifinite al bacio. Salì, sapeva ch’era per niente, tanto per vedere, perché le chiavi non ce l’aveva, e in casa non c’era nessuno, ché erano tutti allo sgobbo a quell’ora. Arrivò all’interno ventinove. Qui una nuova bella sorpresa lo aspettava: sulla porta c’era attaccato un biglietto da visita, con su scritto Puzzilli: PUZZILLI, in lettere grandi e lavorate. «Li mortaaaacci!» bofonchiò Tommaso, ridendo rosso rosso, con gli occhi che sempre gli luccicavano per la commozione.68 (PASOLINI: 1959, p. 207)

67

Tomás saiu em liberdade, por um belo pôr do sol de Maio. Era a primeira vez em que via o bairro

econômico acabado, pois quando fora metido na prisão o mesmo não passava ainda de um monte de

barracões. (PASOLINI: 1965, p. 195)

68

Parou a olhar para a sua casa, um dos dois em três prédios pintados em cor-de-rosa escuro. Erguia-se

quase ao fundo da rua, rente às terras, a reluzir de nova. Comovido, com um nó na garganta e ganas de

pôr-se a chorar, Tomás entrou, um tanto acanhado, para disfarçar o que sentia.

Vivera sempre, ao que se lembrava, numa barraca de madeira a desfazer-se, coberta de latas e de lona

encerada, entre imundícies, lama e excrementos. E agora, até que enfim, morava numa casa decente,

um prédio de luxo, de paredes bem rebocadas e escada com balaustrada, à sombra.

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67

As condições de vida na periferia romana, nas borgate eram

desumanas. A miséria era tal que fazia as casas populares, padronizadas,

parecerem construções de luxo.

Nas páginas seguintes, o protagonista deixa a sua nova casa e se dirige

a Pietralata. Interessante é notar que ele agora sente certa indiferença ao olhar

para a Pequena Xangai, o antigo bairro em que morara:

Guardava con aria indifferente quelli che stavano ancora lì, nelle casette degli sfrattati, o magari alla Piccola Shangai, trucidi morti di fame, che se ne andavano a fette in giro, scannati, in cerca del soldo.69 (PASOLINI: 1959, p. 208-9)

Mostra-se mais autoconfiante ao retornar e reencontrar os velhos

amigos; todos riem e fazem piadas com ele, mas o protagonista demonstra

desinteresse: “«Ridete, ridete, a facce de coltello», pensava, con gli occhi

stretti, «intanto io ve do ner cu... a tutti quanti!»”70 (PASOLINI: 1959, p. 210).

Na sequência, é narrado o reencontro com Lello e ficamos cientes da sequela

deixada pelo acidente sofrido com o bonde, anteriormente.

Tommaso retorna ao bairro popular do INA e vê um grupo de rapazes

jogando futebol de mesa, entre outras brincadeiras. Aqui, destaca-se a

dificuldade sentida pelo protagonista para se aproximar daquele grupo. O

narrador informa sobre as duas classes sociais que habitavam aquele bairro.

Tommaso ce lo sapeva che all’INA Case abitavano due categorie di persone: da una parte impiegati dello stato [...]. Dall’altra parte c’erano quelli che avevano abitato nei tuguri e nelle casette, a cui il comune di tanto in tanto assegnava

Subiu, embora soubesse que o fazia em vão, mas só para observar, até porque não tinha as chaves e

ninguém estava em casa, todos no trabalho àquela hora. Chegou ao número 29. Aqui, uma nova

surpresa o aguardava: pregado na porta, um cartão de visitas, com o nome Puzzilli impresso. PUZZILLI

em letras grandes e rebuscadas. (PASOLINI: 1965, p.197)

69

Reparava com ar indiferente nos que viviam ainda naqueles sítios, naquelas barracas esfrangalhadas,

na Pequena Xangai talvez, desgraçados, mortos de fome, que formigavam em seu giro; esfarrapados, à

cata de uns cobres. (PASOLINI: 1965, p.197)

70

‹‹Riam-se, riam-se, caras de cu››, pensava, de olhos apertados, ‹‹que eu estou-me lixando para

todos››. (PASOLINI: 1965, p. 198)

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68

qualche casa, e che era tutta gente morta di fame o della mala.71 (PASOLINI: 1959, p. 213)

Ele fica observando os rapazes e não consegue se enturmar; sente

vergonha pelo seu jeito e pela forma como se veste. Antes de se afastar do

local, reflete sobre sua vida comparando-a à daqueles moços, já não querendo

misturar-se a eles:

«Me farebbe ricarcerà», stava pensando, «pe’ sapè perché li pijano pe’ stronzi! Intanto, stronzi stronzi, eccheli llí! Nun pensano a niente, giocano, se divertono, se fanno le studentine, pzt! E c’hanno er papà che je passa ’a grana!» «Questi me sa», continuò a pensare, «che tra de loro nun se fanno cattiverie... E che, conoscheno ‘a vita, questi? Eppure me ce vorrebbe mischià, in mezzo a loro! Mannaggia la morte, vorrebbe pure io esse stato ammestrato così, esse bravo ragazzo come loro!»72 (PASOLINI: 1959, p. 216)

Por fim, dirige-se à igreja do bairro e, ao entrar, demonstra novamente

sua origem marginal, pois não conhecia sequer uma oração básica do

catolicismo: “«Boh!», poi si ricordò di farsi il segno della croce: pregare no,

magari, perché si ricordava l’avemaria solo fino al «Signore sia teco».73

(PASOLINI: 1959, p. 217). Procura pelo pároco e lhe diz que precisa de

algumas informações importantes:

«Mbeh», si decise Tommaso. «Io, padre, avrei deciso de sposamme co’ ’na ragazza... So’ venuto da lei anche pe’ un consiglio... Senta, padre, se lei me fa la gentilezza d’aiutamme,

71

Tomás sabia que, no bairro econômico, moravam duas categorias de pessoas: de um lado,

funcionários públicos, [...]. Da outra banda, contavam-se os que tinham morado nos tugúrios e barracas,

aos quais, lá de vez em quando, cabia uma casa, tudo gente morta de fome ou malvada. (PASOLINI:

1965, p.202)

72

‹‹Dava a vida – pensava – só para saber o que tem estes palermas na cabeça. Não pensam em nada,

brincam, divertem-se, armam em estudantes! Claro, o paizinho entra com as coroas! Parece –

continuava a pensar – que entre eles não sabem o que são dificuldades... Que sabem eles da vida? E cá

estou eu, que me queria misturar com eles! Raios os partam! Se eu também tivesse tido os mesmos

princípios, poderia ser um rapaz tão bem educado como eles››. (PASOLINI: 1965, p.204)

73

Depois lembrou-se de fazer o sinal da cruz, rezar não, porque só sabia de cor a Ave-Maria até ao ‹‹...o

Senhor seja convosco››. (PASOLINI: 1965, p. 205)

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69

da spiegamme, non so, quello che dovrei fare...».74 (PASOLINI: 1959, p. 220)

No diálogo que se segue, havido com o padre, revela-se que o rapaz

chegara aos vinte anos de idade.

O encontro com sua mãe lhe causa uma nova emoção. Tommaso tem

sua primeira noite de sono em seu novo lar:

Ormai dovevano essere le sette, e Tommaso andò verso casa. Salì: era aperta. Sua madre c’era, e lo aspettava. Tommaso l’abbracciò, e lei, abbracciandolo, si mise a piangere. [...] Che notte passò Tommaso! La più bella, si può dire, della sua vita: perché, pure se dormiva, non dormiva proprio, ma era sempre un po’ sveglio, e, così, poteva sempre pensare di essere dentro la sua casa, una casa bella, grande e a regola d’arte, come quella dei signori.75 (PASOLINI: 1959, p. 223)

“Primavera no INA-CASE”, o segundo capítulo da segunda parte,

focaliza os primeiros dias de Tommaso em sua nova casa e,

consequentemente, o início de sua nova vida, após sair da prisão. Sentindo-se

mais feliz, ao amanhecer, o rapaz veste-se de forma melhor, tentando

concretizar na aparência a mudança que sentia internamente:

Tommasino fece tutte le sue cose calmo calmo, si vestì e si mise la camicia con la cravatta: aveva concluso ormai che maglioni, magliette e tutta quella roba, così da ragazzini, da malandri, non stava più, ormai, a un bravo ragazzo con tutte le carte in regola.76 (PASOLINI: 1959, p. 224).

74

– Bem – decidiu-se Tomás –, eu padre, estou decidido a casar-me com uma certa rapariga... vim até

aqui pedir-lhe um conselho. Veja, padre, se me pode ajudar, aconselhar-me, porque realmente não sei o

devo fazer... (PASOLINI: 1965, p.208) 75

Já deviam ser sete e Tomás encaminhou-se para casa. Boa! Estava aberta! A mãe já chegara e

esperava por ele. Tomás abraçou-a e ela, abraçando-o também, pôs-se logo a chorar. [...]

Que noite passou Tomás! A mais bela, assim se pode dizer, da sua vida: porque, embora dormisse,

realmente não dormia, a modos que sempre meio desperto e assim podia pensar que estava em casa,

numa bela casa, grande e bem construída, como a dos ricos. (PASOLINI: 1965, p.211)

76

Tomasinho arranjou-se com toda a calma, vestiu-se e enfiou camisa e gravata. Chegara já à conclusão

de que camisolas, blusões e todos os trajes de rapazelho, à malandro, não quadravam a um rapaz já

criado, com a papelada toda em ordem. (PASOLINI: 1965, p. 212)

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70

Vai para Garbatella e, no mercado de peixes, encontra um amigo,

Settimio, ao qual pergunta por Irene. Recebe informações sobre a sua

pretendente, e, por insegurança, pede ao amigo que prepare um reencontro

com a amada:

«Mbeh, sì, me vorrebbe rimette co’ Irene», disse, dopo averci pensato un momento, «e lo sai com’è, per tutto er tempo che so’ stato fori... tu me comprendi quello che vojo dì... nun j’ho scritto mai, manco ’na riga... Insomma e più d’un anno che me so’ fatto latino. Come fai mo’ a presentatte così? Vorrebbe combinà ’na puntata, pzt, co’ quarcuno che ce mettesse ’na bona parola!».77 (PASOLINI: 1959, p. 226)

Tommaso manifesta a vontade de trabalhar e Settimio promete arranjar-

lhe um emprego no mercado de peixes. O protagonista exprime alegria:

“«Raccomandamose un po’ a ‘i pesci!» disse alla fine Tommaso, tutto allegro.”

78 (PASOLINI: 1959, p. 228).

Emoção e desejo de trabalhar marcam a transformação por que passa

Tommaso. Na sequência é narrado seu reencontro com Irene, que acontece

como o planejado. Contudo, o narrador começa a introduzir no protagonista os

primeiros sintomas de mal-estar físico, que aos poucos o deixará ainda mais

doente:

Scesero dal tram, a Piazza Vittorio, e se la fecero a sole e tacchi, su verso Piazza Esedra. Tommaso era tutto serio e ingrugnato, un po’ perché era troppo contento d’essere lì, tutto incravattato, con la mecca al fianco, un po’ perchè, fin dal mattino, non si sentiva tanto bene: dato forse che la notte, per l’emozione del giorno appresso, non aveva chiuso occhio. Si sentiva strano: aveva la sudarella a freddo, e gli tremavano un po’ le gambe e tutto il corpo, chissà per quale motivo.[...] Però non si sentiva bene proprio: e come furono accanto ai gabbinetti di Piazza Vittorio, tutti lavorati come due tempietti indiani, s’ingrugnò ancora di più.79 (PASOLINI: 1959, p. 229)

77

– Bem, sim, eu queria voltar a falar para Irene – confessou, depois de ter pensado um instante. –

Percebes como são estas coisas, não é? Estive todo este tempo fora... tu percebes o que eu quero

dizer... não lhe escrevi... nem uma linha... Quero dizer, há mais dum ano que não dou sinal de mim.

Depois disto, com que cara vou aparecer? Claro, preferia combinar um encontro com alguém que

preparasse o caminho. (PASOLINI: 1965, p.214)

78

– Vou dedicar-me aos peixes! – disse, por fim, Tomás, todo contente. (PASOLINI: 1965, p. 216)

79

Desceram de autocarro na Praça Vittorio e fizeram a pé o caminho até a praça. Tomás seguia muito

sério e compenetrado, porque lhe agradava está ali, todo engravatado, com a miúda ao lado, e ainda

porque, de manhã, não se sentira lá muito bem, até porque à noite, pelas emoções do dia, não

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71

Durante o passeio pelas ruas de Roma, o rapaz continua sentindo-se

mal; mesmo assim, vai ao cinema. No intervalo do filme, irrita-se com a

algazarra do público, demonstrando arrogância, porque já não se identificava

com aquelas pessoas: “Tommaso li guardava con rabbia, quasi con odio.

Appetto a loro si sentiva una persona superiore, che non fa più quelle

stupidaggini: s’era lui la maschera, vedevano: a quell’ora li aveva già presi tutti

a calci fino fuori alla strada.” 80 (PASOLINI: 1959, p. 231-2). Fica patente a

discriminação existente entre as classes sociais. Sentindo-se destacado por

habitar em um conjunto residencial e vestir-se melhor, menospreza as pessoas

da classe que integrara até recentemente.

Seguindo, Tommaso declara seu amor a Irene, manifestando também o

desejo de querer transforma-se: “io te vojo bbene, e pe’ questo che vojo cambià

da come che so’: nun vojo più esse Tommaso!»”81 (PASOLINI: 1959, p. 233).

Emocionada, a moça ouve o rapaz relatar seu encontro com o padre e falar de

suas intenções de casar. Não há, efetivamente, um pedido de casamento, mas,

apenas, uma comunicação direta e objetiva das pretensões do protagonista.

Os namorados voltam para casa e, no caminho, Tommaso revê Lello

que agora mendigava sentado numa calçada:

Lello, con la schiena contro il muretto, teneva la gamba infelice stesa sul marciapiede, col calzone tirato su, in modo che si vedeva la cianca senza piede: pure la manica era rivoltata, per mostrare il moncone. Con questo, si teneva stretto contro il petto un ragazzino d’un anno o due: l’altra mano, quella sana, la teneva lunga verso i passanti, per farsi dare l’elemosina.82 (PASOLINI: 1959, p. 235)

conseguira pregar o olho. Sentia-se estranho, tinha suores frios e sentia tremores nas pernas e no corpo

todo, sem saber porquê. [...] Mas, na verdade, não se sentia lá muito bem. Quando chegaram perto dos

urinóis da praça Vittorio, todos lavrados como templos hindus, sentiu-se ainda mais mal disposto.

(PASOLINI: 1965, p. 217) 80

Tomás observava-os com raiva, quase com ódio. Em comparação com eles, sentia-se uma pessoa

superior, que já não faz coisas estúpidas. Fosse ele o porteiro e já os teria corrido a pontapé para o olho

da rua. (PASOLINI: 1965, p. 219)

81

Gosto de ti e por isso quero transformar-me, nunca mais voltar a ser o Tomás de antigamente.

(PASOLINI: 1965, p. 220)

82

Lello, encostado ao muro, tinha a perna estendida no passeio e as calças arregaçadas para que se

visse o aleijão. Tinha também a manga da camisa arregaçada, para que lhe visse o coto.

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72

Na continuidade, o narrador introduz, pela primeira vez, a intenção de

Tommaso ingressar no Democracia Cristã, partido da elite, dos homens ricos,

na opinião do protagonista:

«Embè», disse Irene, «questi ce so’ nati signori! Hai visto quando c’hanno i fiji, se fanno chiamà babbo... mammina... Li regazzini li tengono sempre curati, che nun je fanno mancà manco er latte de la formica... Li fanno studià fin che so’ grandi...» «So’ tutti de la democrazia», disse Tommaso. «Ecco perchè!» 83 (PASOLINI: 1959, p. 236)

O namoro dos jovens continua e rapaz leva a namorada para conhecer

seus pais. Ao saírem, indo mais uma vez ao cinema, o protagonista continua a

sentir-se cada vez pior:

Neanche quel giorno Tommaso si sentiva come Dio comandava: era intirizzito dall’aria fredda, che in conclusione fredda fredda non doveva essere, dato che gli altri ragazzi se ne andavano via tranquillamente con le magliette e i panni leggeri, che ormai avevano cominciato a mettere, e decisi a tenerli pure se nevicava, a buon bisogno: e non tremavano per niente. Tommaso tremava, invece, e c’aveva pure un po’ di tosse.84 (PASOLINI: 1959, p. 237-8)

Na saída do cinema, o narrador introduz dois aspectos que denunciam o

caráter do protagonista, que, apesar de tentar seguir uma vida honesta, não

consegue dominar seu instinto violento. Primeiramente, surge uma das

manifestações mais violência do protagonista, que abusará sexualmente de

sua noiva, subjugando-a e humilhando-a.

Senza più complimenti, fece per spingerla in giù, farla allungare indietro sull’erba: «Mettete ggiù, mettete ggiù!» le diceva, già con l’affanno, preso da un attacco di petto. Ma Irene resisteva con decisione, diceva: «No, no, a Tomà!» Così Tommaso per il momento lasciò perdere: ma intanto

Apertava ao peito um garoto de um ano ou dois e estendia a mão escorreita à caridade dos transeuntes.

(PASOLINI: 1965, p. 221) 83

– Ora – comentou Irene –, estes já nasceram senhores. Os filhos tratam-nos como papá e mamã...,

trazem-nos sempre muito bem tratados, nada lhes falta... mandam-nos estudar até serem homens... –

Por isso são todos da democracia cristã – acrescentou Tomás. (PASOLINI: 1965, p. 222)

84

Mas nem mesmo ainda naquele dia Tomás se sentia como Deus manda: estava entanguido de frio,

embora frio, frio, não se pudesse dizer que estivesse dado que os outros andavam tranquilamente pela

rua com camisas e fatos leves que já vestiam há muito obrigados pela necessidade a conservá-los

mesmo que nevasse. Tomás, pelo contrário, tremelicava e tinha um bocado de tosse.(PASOLINI: 1965, p.

224)

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73

incominciò a allungare la mano sotto la sottana.85 (PASOLINI: 1959, p. 241)

Irene, tutta abboccata e rassegnata, si tirò su dall’erba inguazzata, pulendosi la schiena, guardandolo di sguincio: e lui niente, nemmeno la guardava, svampando con la fronte arricciata e l’occhio invelenito, bianco per il freddo.86 (PASOLINI: 1959, p. 243)

A segunda manifestação violenta de Tommaso segue-se ao ato sexual

forçado; ele faz uma cena de ciúmes e agressão ao buscar explicações sobre

como tinha sido a vida de Irene durante o tempo em que ele cumpria sua pena.

Não acreditando na honestidade da moça, na sua ausência, se irrita e parte

para mais uma agressão:

Tommaso non la lasciò finire: già era pronto, e le allentò uno sganassone in una guancia che quasi le rivoltò la testa. Irene dapprincipio non capì, come: lo guardò incerta, impaurita. Poi si prese la faccia tra le mani e si mise a piangere, piano.” 87 (PASOLINI: 1959, p. 246).

Na volta a casa, ele tenta convencê-la de que seu comportamento tinha

sido ditado pelo amor e a jovem, comovida, se despede dizendo que também

gostava dele.

Chegando ao conjunto habitacional INA, encontra um grupo de rapazes

que jogavam futebol e fica ali, observando-os. Alguns o acompanham na ida

para casa, quando encontram um mendigo que logo se torna alvo de

brincadeiras e xingamentos; aproveitam-se da fraqueza do idoso para humilhá-

lo com crueldade, como diversão. Tiram as vestes do homem e ateiam fogo:

85

Sem mais aquelas, procurou atirá-la ao chão, fazê-la estender-se na erva. Deita-te, deita-te – dizia-lhe,

já em ânsias e num acesso de tosse. Mas Irene resistia com decisão: - Não, não, ó Tomás.

Ele aquietou-se, por momentos, mas logo a seguir começou a estender a mão por debaixo da saia.

(PASOLINI: 1965, p. 226)

86

Irene, resignada, afastou-se da erva húmida, sacudindo as costas do vestido, fitando-o de soslaio e

ele, nada, nem sequer olhava para ela, de testa enrugada, uns olhos a luzir cheios de maldade, na cara

descorada de frio. (PASOLINI: 1965, p. 229)

87

Tomás não a deixou terminar. Já estava preparada e ferrou-lhe uma tal bofetada que quase lhe fez dar

uma volta á cabeça. Irene, a princípio, não percebeu: olhou para ele, insegura, medrosa. Depois, cobriu

a cara com as mãos e começou a chorar, devagarinho. (PASOLINI: 1965, p. 231)

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Fecero un mucchio della giacca e dei calzoni: e mentre due tre tenevano stretto il vecchio per le braccia, gli altri finirono per spogliarlo, ridendo come zoccole. Gettarono sul mucchio, schifati per la tanfa, la camicia, il maglione caccoloso, le mutande, il berretto, le scarpe. Gli lasciarono solo i pedalini: poi lo spinsero da una parte, ignudo come l’aveva fatto mamma, con tutti quei capelli bianchi, e appiccarono il fuoco. 88 (PASOLINI: 1959, p. 252-3)

O capítulo seguinte, “Que procurava Tommaso?” focaliza o período em

que Tommaso esteve internado no Forlanini, e como nesse hospital sofre

influências políticas que o ajudaram a criar consciência da dinâmica social. Nas

primeiras páginas, o protagonista continua a manifestar sintomas de sua

iminente doença:

Si presentò, qualche giorno appresso, al Celio: qui gli fecero una visita fatta bene, le lastre e tutto: alla fine gli dissero una parola che non aveva inteso mai, ossia che aveva una cosa ai polmoni, che gli faceva venire quelle ghiandole, e che doveva subito mettersi sotto cassa mutua, e farsi curare. Tommaso non capiva: faceva, un po’ preoccupato, un po’ malandro: «Boh!» Insomma si fece spiegare meglio, e gli dissero, in conclusione, ch’era tubercoloso, e doveva andare subito al Forlanini.89 (PASOLINI: 1959, p. 254)

Mostra-se descontente com a internação. O narrador descreve

detalhadamente sua entrada no ambiente hospitalar e, também, a despedida

de sua mãe, que o acompanhara na internação:

“Stava un po’ zitta, perché era venuto il momento che Tommaso doveva, salutare la madre, e questa se ne doveva andare. In principio lei, intimorita, non lo capì: glielo dovette dire

88

Fizeram um monte com o casaco e as calças e, enquanto mantinham o velho seguro pelos braços, os

outros acabaram por o despir completamente, rindo como perdidos. Atiraram para o monte a camisa, a

camisola borrada, as cuecas, o barrete, os sapatos, tudo isso a exalar um pivete danado. Só lhes

deixaram as meias e depois empurraram-no para um lado, tal como a mãe o botara a este mundo,

tendo a mais só os cabelos brancos. Pegaram fogo à roupa. (PASOLINI: 1965, p. 237)

89

Apresentou-se, dias depois, no Celio: aí observaram-no bem, com chapa e tudo: por fim, disseram-lhe

umas palavras até que ali ele nunca ouvira: tinha qualquer coisa nos pulmões que lhe provocava aquele

estado e devia inscrever-se imediatamente num Instituto de Assistência para receber tratamento.

Tomás não percebia: ‹‹Hum!...›› Em suma, pediu explicações mais claras e disseram-lhe, em conclusão,

que estava tuberculoso e devia dirigir-se imediatamente ao Forlanini. (PASOLINI: 1965, p. 239)

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l’infermiera stessa. Allora la sora Maria diede al figlio uno sguardo disperato, incerta.”90 (PASOLINI: 1959, p. 256-7)

Tommaso sente dificuldades para dormir em sua primeira noite no

Forlanini, pois estava muito irritado.“Finalmente, dopo un bel pezzo, gli prese

sonno, e s’appennicò. Ma era come se non dormisse: sognava, e, nel tempo

stesso, era quasi sveglio, con tutti i sentimenti.”91 (PASOLINI: 1959, p. 259).

Nas páginas seguintes, o narrador se detém longamente em descrever o

sonho de Tommaso. Resumidamente; o sonho se inicia com o rapaz vendo-se

em sua velha barraca de lata, onde tudo parecia bonito e limpo; sua mãe,

Maria, arrumava a casa enquanto seus irmãos, Tito e Totó, brincavam na lama.

Depois, vê o pai bem vestido e, no lado de fora, todos os vizinhos alegres e

reunidos; sua mãe serve a comida e, de repente, entram os vizinhos que

gritam: “«Viva gli sposi, viva gli sposi!»” 92 (PASOLINI: 1959, p. 262). Os noivos

são seus pais. Enquanto observa a festa, Tommaso come macarrão; sua mãe

oferece-lhe uma série de guloseimas, descritas como sendo pratos deliciosos.

O sonho transforma-se em pesadelo, quando Tommaso vê deitado em sua

cama o Lello, todo ensanguentado, com uma das mãos esfacelada e uma

perna esmagada, exatamente como ocorrera no acidente com o bonde. Lello o

aconselha a fugir, para evitar ser preso. O sonho termina numa rua onde o

protagonista, acompanhado da mãe, ouve as sirenes do carro da polícia.

Acorda gritando por socorro.

Tommaso conversa com um dos internos do Forlanini e demonstra

repulsa à ideia de permanecer muitos meses internado. Esse novo amigo

introduz, primeiramente, os pensamentos sobre os protestos contra a direção

do hospital e de seus dirigentes, que vão nortear os acontecimentos no

antepenúltimo capítulo de Una vita violenta:

90

Calou-se por instantes, porque chegara o momento de Tomás se despedir da mãe e de esta abalar. A

princípio, ela, atemorizada, não o percebera e a própria enfermeira teve de lho dizer claramente. Só

então a sora Maria deitou ao filho um olhar desesperado e hesitante. – Adeus, Tomás! – disse, a meia

voz, – que Deus te guarde! (PASOLINI: 1965, p. 240)

91

Por fim, um bom pedaço de tempo depois, adormeceu. Mas era como se não dormisse: sonhava e ao

mesmo tempo tinha todos os sentidos despertos. (PASOLINI: 1965, p. 242)

92

Vivam os noivos! Vivam os noivos! (PASOLINI: 1965, p. 245)

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«Mo’ però ce sentono a noi! Co’ ’sto ciocco che je stamo facendo ce devono pe’ forza dà i diritti nostri! Qui fanno a chi magna de più, l’assistenza nun ce incula pe’ niente: hanno cominciato a stufà! E poi quanno che uscimo de qui bisogna che ce danno quello che ce spetta, eh! E poi subito, immediatamente, appena finita ’a malattia, c’hanno da dà ’a possibilità de lavorà!»93 (PASOLINI: 1959, p. 266)

Nessa conversa, o rapaz conta para Tommaso que Bernardino, o líder

do movimento, falecera há dois dias; o protagonista é vencido pelo cansaço e

dorme até a manhã seguinte, quando acorda com o badalar dos sinos que

anuncia o funeral do jovem morto.

La campanella era una sola, suonava svelta e forte; tre colpi in un modo: dan dan dan, e tre colpi in un altro: den den den. Poi taceva un po’, poi riprendeva i tre colpi alternati. E così avanti, sempre uguale. Suonava a morto: questo suono sì che Tommaso lo capiva bene, che lo riconosceva. Il rintocco pareva ancora più forte, dato che c’era ancora abbastanza silenzio, con tutto che si sentiva bene che la vita ormai andava. E quasi incocciava, entrando da tutte le parti, dalla finestra, dal corridoio, col suo suono acuto e stridente.94 (PASOLINI: 1959, p. 269-70)

O protagonista reafirma sua revolta em estar naquele local. Levanta-se e

cumpre seu ritual de higiene, vestindo-se com sua melhor roupa para fazer o

desjejum:

Andò di nuovo all’armadietto, e prese il vestito meglio che c’aveva, meglio per modo di dire, che ce l’aveva da due anni, e comprato pure sotto becco, a Porta Portese: s’acchittò come

93

- Eles têm que pensar em nós! Com os protestos que estamos a fazer, têm por força de satisfazer o

nossos direitos! Melhor alimentação e assistência. Que nos deem uma ajuda autêntica ao sairmos e

garantia de emprego quando nos curarmos! (PASOLINI: 1965, p. 249)

94

O sino era um só, soando desenvolto e forte, três badaladas duma vez, dam-dam-dam, e três doutra,

dem-dem-dem. Silenciava por momentos e voltava aos dobres alterados. E isto muitas vezes, sempre do

mesmo modo. Dobrava a finados, toque que Tomás identificava bem. Reconhecia-o. Os dobres

pareciam ainda mais fortes, porque o silêncio se adensara, embora se percebesse que a vida despertara.

Tornara-se quase insuportável, entrando por todos os lados, janelas, corredores, agudo e estridente.

(PASOLINI: 1965, p. 252)

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poteva, con la cravatta e la camicia pulita. Infine fu pronto.”95 (PASOLINI: 1959, p. 271)

Depois, caminha com os companheiros nas ruas internas do Forlanini e

percebe que seguiam para o funeral do líder, porém não acompanha o cortejo

e retorna ao interior do hospital, irritado. Deita-se, contudo, não suportando o

tédio, volta a caminhar pelas escadarias internas até descobrir uma sala

entulhada de livros na qual “[...] raggomitolata, riciancicata, con la falce e il

martello, c’era una bandiera rossa, nuova.” 96 (PASOLINI: 1959, p. 277)

Na seqüência da narrativa, há uma marcação de tempo, no período em

que Tommaso acostuma-se com a rotina e o convívio hospitalar:

Passò qualche settimana, un mese, due, e Tommaso cominciò a far l’ossa alla vita del Forlanini. Però verso luglio, successero dei fatti che risballottarono tutto un’altra volta, e per un pezzo, poi, a Tommaso, gli toccò di pagare le decime.97 (PASOLINI: 1959, p. 278)

Nas páginas seguintes são narradas, com detalhes, as consequências

da greve iniciada pelos funcionários do hospital, que trazem ao protagonista

uma consciência política. : “Gli infermieri, i sanatoriali, com’erano chiamati lì,

avevano fatto delle richieste, è regolare: ma le chiacchiere erano rimaste a

zero. Finchè, appunto, una bella mattina, armarono lo sciopero.” 98 (PASOLINI:

1959, p. 278). Assim, surge um pretexto para os internos começarem uma

revolta no hospital, reivindicando melhores condições de atendimento.

95

Foi ao armário, e tirou o melhor fato que tinha (melhor é um modo de dizer, pois já o tinha há dois

anos e comprara-o em segunda mão na Porta Portese) aperaltou-se o melhor que pôde, de gravata e

camisa lavadas. Por fim, ficou pronto. (PASOLINI: 1965, p. 253)

96

Abriu a gaveta do fundo e descobriu uma bandeira vermelha com a foice e o martelo, coberta de

poeira, amarrotada e rota, embora fosse nova. (PASOLINI: 1965, p. 258)

97

Passaram-se semanas, um mês, dois, e Tomás começou a habituar-se à vida do Forlanini. Por alturas

de julho, porém, passaram-se coisas que viraram tudo do avesso e a Tomás coíbe também pagar a

décima, participar nelas. (PASOLINI: 1965, p. 259)

98

Os enfermeiros, os sanatoristas, como ali eram designados, tinham apresentado as suas

reivindicações, mas não foram atendidos. Até que uma bela manhã entraram em greve. (PASOLINI:

1965, p. 259)

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A substituição dos funcionários por soldados gera descontentamento

entre os militares e os internos que participavam da célula comunista da U.T.T.

(União dos Trabalhadores Tuberculosos), que decidem enfrentar os policiais

dando início à primeira rebelião, que culmina com a tentativa de prisão de

Guilherme, seu líder, e o enfrentamento com a polícia.

Na parte final do antepenúltimo capítulo evidencia-se a intenção de o

narrador criar uma consciência social e política no jovem Tommaso. Através de

sua participação e convívio com homens mais experientes politicamente, ele se

tornará como um deles, participando ativamente dos protestos.

Seguem-se prisões e agressões dentro do Forlanini: “Scesero altri

poliziotti, coi manganelli. Successe un macello. Qualche malato prese di petto

uguale i poliziotti, cominciando a fare a botte, come poteva, poveraccio, che

nemmeno ce la faceva a reggersi in piedi.” 99 (PASOLINI: 1959, p. 280-1).

Depois de negociações e algumas lutas, jatos de água fria foram lançados

sobre os doentes e a tropa de choque recua, contudo, retorna depois de uma

hora e prende os dirigentes do U.T.T., e expulsa ou transfere outros internos

que participaram do motim. Dois dos dirigentes, Guilherme e Pezzo, escapam

dos policiais e se escondem na enfermaria onde ficava Tommaso. A partir dai,

é descrita a série de fugas e esconderijos nos quais os dois dirigentes, com a

ajuda direta do protagonista, se refugiam. Cabe ao rapaz a função de levar-lhes

comida:

«Mo’ ce devi da pensà te, a quei due: io c’ho altre cose da fà, e ormai me cercano pure a me, me sa. Tiè, ecchete ’a chiave. Aricordate da portàje da magnà, sa’, no li fà morì de fame! Te saluto, a morè, e me riccomando, fa le cose a filetto!» Acchiappò e se ne andò.100(PASOLINI: 1959, p. 288)

99

Desceram mais policiais armados de cassetetes. Foi um massacre. Alguns doentes aferram-se aos

guardas desatando ao murro, como podiam, coitados, pois mal conseguiam ter-se de pé. (PASOLINI:

1965, p. 261) 100

— Agora cabe a ti pensar nos dois. Eu tenho outras coisas a tratar e, além disso, também andam à

minha procura. Fica tu com a chave. Não te esqueças de lhes levar de comer, senão morrem de fome!

Os meus cumprimentos amigo, com a recomendação de que faça as coisas a preceito. (PASOLINI: 1965,

p. 267)

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É, também, incumbido pelo líder Guilherme de levar um manifesto à

polícia no qual se pedia para evitar atos de violência. Assim, sempre mais, ele

ganha consciência política.

Os empregados voltam ao trabalho mesmo sem conseguir ter as

reivindicações aceitas. Nos parágrafos finais, Tommaso ajuda os dois

companheiros na fuga definitiva do hospital, através de um caminho

subterrâneo. E, apesar de ter a possibilidade de também escapar, acata o

conselho dos amigos e permanece no Forlanini:

«Ma che fai? Ma che scappi a ffà? A te nun te conoscono, te conviene restà qui, e fatte curà come se deve...» Per la prima volta sorrise un pochetto: «Mica vorrai fà er pazzo come me, no, che me so’ messo pure contro er partito, per volè fa troppo, anziché sta co’ la panza ar sole e pensà a la salute!» Certo, a Tommaso gli andava proprio di fare quello scavalco, e andarsene a ruzzicare in libertà, ma capiva che quello aveva ragione, e ammorgiò subito, zitto, aiutando gli altri a arrembarsi su per la rete. Ma prima d’andarsene, Guglielmi si rivolse di nuovo a Tommaso, e lo guardò fisso negli occhi, con quella sua povera faccia di gomma. «Grazie, a Puzzilli», gli fece, «sei stato dei mejo!» e gli strinse la mano.101 (PASOLINI: 1959, p. 296)

“Velho sol” é o título do breve penúltimo capítulo na qual é narrado o

retorno de Tommaso, ao bairro de Pietralata após a temporada no hospital. O

rapaz observa, atento, as mudanças havidas durante sua ausência, novos

prédios e menos barracas:

Avevano sfranto nel centro sette otto file di casette di sfrattati e di strade, e avevano costruito tre quattro palazzoni nuovi, scuri e grandi, come monti, pieni pieni di finestrelle, con tanti cortiletti, ingressi e scale, che toglievano il sole alle altre casette ch’erano rimaste intorno e ai lotti gialli come la fame. [...] Tommaso, per la via deserta bruciata dal sole, pedalava allegrotto con le mani in saccoccia, abbastanza soddisfatto dentro di sé, per tutti quei cambiamenti: si guardava intorno,

101

— Mas que queres tu fazer? A ti não te conhecem, convém-te mas é ficar e curares-te. E, pela

primeira vez, teve um sorriso.

— Talvez queira armar em maluco, como eu, que me pus contra o Partido, para ser ainda mais ativo, até

que me vi de barriga ao léu e a pensar na saúde! Claro, a Tomás apetecia-lhe mesmo dar o salto, ir gozar

a liberdade, mas concordava em que aquele tipo tinha razão, e desceu, ágil, ajudando os outros a trepar

a rede. Antes de partir, Guilherme voltou-se, olhou-o bem nos olhos com aquela cara que até parecia de

borracha. — Obrigado, Puzzilli, foste dos melhores — e apertou-lhe a mão. (PASOLINI: 1965, p. 274)

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come un padrone che torna sui suoi posti dopo un po’ di tempo, e siccome conosce la zona a palmo a palmo, s’accorge di tutto, sgama tutto, sia quello ch’è restato uguale sia quello ch’è cambiato.102 (PASOLINI: 1959, p. 298-9)

É verão e o jovem caminha debaixo do sol forte até a sede do Partido

Comunista em seu bairro. É recebido com indiferença, apesar de demonstrar o

seu interesse e emoção por ter decidido filiar-se:

«So’ stato ar Forlanini, no... e lì, mo’, me volevo iscrive pure io ar partito... Ma co’ quella baraonda ch’avemo fatto, m’hanno consijato d’aspettà che uscivo fori... Mo’ ce so’ venuto: che devo fà?»” 103 (PASOLINI: 1959, p. 300)

O funcionário pede-lhe que retorne à noite, quando haveria reunião geral

do comitê. Saindo da sede do partido, reencontra o Cabeçudo, que, com outros

amigos, ia tomar banho num rio. O protagonista sente-se destacado, pois havia

mudado e não reconhecia naqueles jovens tantos rostos familiares como antes:

Camminando i due compari parlavano del più e del meno: per lo più delle amicizie comuni che c’avevano, che Tommaso, essendo stato fuori più di un anno, era tanto che non ne sapeva niente. Ormai quasi più nessuno abitava alla Piccola Shangai: nelle baracche ci stava gente nuova, quasi tutti buri, tarpani venuti su dai più zozzi paeselli pugliesi, calabresi.104 (PASOLINI: 1959, p. 302)

Tommaso pergunta por Cagão e o Cabeçudo mostra-se surpreso com o

fato de o protagonista desconhecer o destino do antigo amigo. A narrativa,

102

Mesmo no centro, tinham demolido umas sete ou oito filas de tugúrios miseráveis e construído uns

três ou quatro prédios novos, escuros e altos como montanhas, crivados de janelas, com tantos pátios,

entradas e escadas tolhendo o sol aos casinhotos que teimavam em se manter de pé, assim como as

casas abarracadas, pintadas de amarelo como a fome. [...] Tomás prosseguia feliz pela rua deserta e

abrasada do sol, as mãos nas algibeiras, muito satisfeito com todas aquelas edificações.

Vistoriava tudo, tal como um proprietário que regressa ao seu lugar após certo afastamento e, porque

conhece o sítio palmo a palmo, repara em tudo, tanto o que ficou na mesma como aquilo que sofreu

alteração. (PASOLINI: 1965, p. 276)

103

—Eu estive no Forlanini, bem, e lá... sim, eu queria também inscrever-me no partido... mas por causa

daquela barraca que armamos, fui aconselhado a esperar que saísse cá pra fora... e cá estou. Que devo

fazer agora? (PASOLINI: 1965, p. 278) 104

Os dois parceiros falavam disto e mais daquilo. Da maior parte dos amigos comuns que tinham,

Tomás não sabia nada, por ter estado um ano ausente. Além disso, já quase nenhum morava na

Pequena Xangai. Nas barracas morava gente nova, quase todos bimbos, labregos vindos da província,

gente da Apulia, calabreses. (PASOLINI: 1965, p. 280)

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então, passa à voz da personagem Cabeçudo, que conta como e porquê

Cagão cometeu suicídio. A história começa com a mãe do Cagão, que se

prostituía:

La madre del Cagone, la Vecchiona, batteva ai Cerchi. Erano ormai quattro o cinque anni: quella era la zona sua, e ogni sera, come faceva scuro, era lì pronta, e ci stava fino all’ultimo tranve, che la riportava alle casermette di Piazza San Giovanni di Dio, a Monteverde Nuovo: lì abitava con lo zaraffa, il pappone suo. Ce n’erano altre cinque sei uguali a lei, vecchie colleghe, la Spagnola, la Capitana, Marisa. Si mettevano in alto, verso la Passeggiata Archeologica, sul muretto diroccato intorno ai Cerchi, o in mezzo al grande prato ovale, nella scarpata sotto il piazzale Romolo e Remo, tra le fratte, sulla melma.105 (PASOLINI: 1959, p. 303)

Cabeçudo conta que, à noite, alguns rapazes faziam brincadeiras com

as prostitutas. Primeiramente, Maluco, fingindo interesse nos serviços de uma

delas, a faz exibir-se, levantando a saia, e atira em seu corpo um punhado de

neve: “La mignotta si mise a strillare come una scellerata, per il gelo e la rabbia,

mentre gli altri intorno si buttavano a terra smascellandosi dalle risa.” 106

(PASOLINI: 1959, p. 305). Nas noites seguintes, ganha contornos mais

humilhante, pois o Bureta, outro dos rapazes, defeca numa folha de jornal e

atira sobre a Velhona, repetindo o ato várias vezes. Esse tipo de agressão,

chamada de brincadeira, só acaba quando Patachiola, o cafetão da Velhona,

prepara uma emboscada juntamente com outros homens. Numa noite, antes

que lançassem o embrulho contra as prostitutas, são surpreendidos e terminam

numa luta violenta:

Il moretto settentrionale si ritrovò una mascella spaccata, sputava sangue e denti, gli altri due fratelli roscetti, che avevano cercato di tagliare, se la cavarono meglio, con gli occhi gonfi e le costole scocciate a calci. Il Buretta tenero non era: a una pignata del Patacchiola, cadde per terra, lungo, sulla fanga.

105

A mãe dele, a Velhona, batia o Cerchi, ia já para uns quatro ou cinco anos. Era ali a zona dela e todas

as tardes, quando começava a escurecer, lá estava. Aguentava até ao último elétrico que a levaria às

barracas da praça S. João de Deus, em Monteverde Novo, onde morava mais o protetor. Havia mais

umas cinco ou seis como ela, colegas antigas, a Espanhola, a Capitoa e a Marisa. Faziam as coisas para os

lados da Passeggiata Archeologica, junto ao muro derrocado do Cerchi ou no meio das terras, na

encosta sob a Praça Romulo e Remo, entre as moitas, mesmo na lama. (PASOLINI: 1965, p. 280)

106

A galderia desatou a estrilar como um celerado, por via do gelo e da raiva, enquanto os tipos se

atiravam pro meio do chão, escangalhando-se a rir. (PASOLINI: 1965, p. 282)

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Ma faceva finta d’essersi sturbato: e appena il Patacchiola si voltò, per andare a sventrare pure gli altri, il Buretta schizzò di nuovo in piedi, con in mano una baiaffetta, che intanto aveva sfoderato: schizzò in piedi, e ammollò quattro cinque puncicate sulla schiena al Patacchiola, che stavolta fu lui a cascare, urlando l’animaccia sua. 107 (PASOLINI: 1959, p. 307)

Depois desse episódio, a mãe do Cagão, aproveitando-se da internação

do seu rufião, passa a fazer ponto em outro local. Mas, ao sair do hospital, o

cafetão a mata com mais de dez facadas. Ficando sem a mãe que o

sustentava, e doente, sem poder trabalhar, Cagão é encontrado enforcado em

sua casa. Cabeçudo conclui a longa narrativa sobre a morte do amigo Cagão.

Encerrando este capítulo, Tommaso vai à reunião do Partido e pode

testemunhar que a divisão de dinheiro arrecadado era feita de forma

individualista, evidenciando a dinâmica de funcionamento partidário:

«Ma che stanno a fà?» pensava Tommaso. «Li bijetti? Quali bijettí? Sgobbano sopra li bijetti der ballo! Eh sì, è chiaro, i bijetti de la riffa... Delli Fiorelli je li dà indietro, invece de buttalli... Hai capito, ’sti giudii, se inzuccano cinque sacchi peruno!»” 108 (PASOLINI: 1959, p. 312)

Não obstante sua decepção permanece na reunião e até ajuda na

arrumação do ambiente. O narrador focaliza os pensamentos da personagem

principal, que observa tudo e reconhece a maior parte dos homens ali reunidos.

Lembra com detalhes das circunstâncias em que conhecera cada um dos

membros do partido ali presentes. Terminado o encontro, o jovem se esforça

para falar com Passalacqua, o delegado federativo. Nessa conversa

percebemos que o protagonista alcançara consciência de classes:

107

Um massacre. O moreno setentrional levou um soco nos queixos que até cuspiu sangue e os dentes.

Os dois irmãos sardentos, que tinham procurado fugir, apanharam tantas ou tão poucas que ficaram

com os olhos inchados e as costelas arrombadas a pontapé. Mas o Bureta lá mole é que não era: foi a

terra com uma morraça do Patachiola e ficou ao comprido estendido na lama. Fingiu-se desmaiado e

mal o Patachiola se voltou, para ir malhar nos outros, o Bureta pôs-se de pé, empunhando um canivete

que tirara da algibeira e ferrou duas ou três chinadas nas costas do Patachiola. Desta vez, foi ele a cair, a

gritar pela mãezinha. (PASOLINI: 1965, p. 284)

108

‹‹Que estarão eles agora a fazer?›› pensava Tomás. ‹‹Os bilhetes? Ah!, Pois é, Delli Fiorelli divide o

dinheiro em vez de entrar com ele... Já os topei, estes penduras abafaram cinco mil liras cada um!››

(PASOLINI: 1965, p. 288)

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«Che nun ve dovèssivo mette in testa altre cose...» continuò. «So’ poveraccio, so’ de ’a classe operaia pure io... E poi nun so se v’è venuto a l’orecchio, ma a ogni modo fate presto a informavve, come me so’ impegnato io giù ar Forlanini... So’ stato io a buttà er bando, so’ stato io che spizzavo da tutte ’e parti pe’ aiutà Gujermi... Lo conoscete voi Gujermi, er segretario de ’a sezzione a l’ospedale?... Ho fatto er possibbile! Quindi questo ve dovrebbe bastà pe’ favve capì chi so’ io e come la penso io...»109 (PASOLINI: 1959, p. 321)

O delegado o esclarece que precisaria apresentar-se com dois filiados

para conseguir a tão sonhada carteira do partido. Assim ele faz, encerrando a

penúltima parte do romance:

E così fu: dopo qualche giorno, Tommaso si presentò alla sezione, con le due persone che dovevano fare da testimoni, cioè Delli Fiorelli stesso e il Gricio, fu segnato, pagò quello che doveva pagare: e finalmente riuscì a intigne er pane dentro er sugo: si mise la tessera in saccoccia, pronto a lottare pure lui per la bandiera rossa.110 (PASOLINI: 1959, p. 322)

“A eterna fome” é o título do último capítulo do romance. O foco são as

dificuldades financeiras ainda vividas pelo protagonista nos últimos instantes de

sua breve vida.

Apesar de suas promessas, ele volta a prostituir-se e a ter uma vida

delinquente. Mas, faz um ato heróico, ao salvar a vida de uma moradora da

Pequena Xangai, e morre por causa do agravamento da tuberculose.

O capítulo final se inicia com uma espécie de relatório, sobre os ganhos

financeiros de Tommaso, que eram insuficientes para o padrão de vida que

almejava:

I conti si faceva presto a farli: delle quattromila lire che il principale passava a Tommasino all’ultimo minuto dell’ultima ora del sabato sera, poco prima di staccare, due mila erano per la rata del vestito; dalle altre due mila bisognava levare i soldi per il tram per tutta la settimana: il 209 dieci lire al mattino, venti

109

— Outra coisa não poderia ser... — acrescentou — eu sou um tipo pobre, da classe operária... e

depois, não sei se já lhe chegou aos ouvidos, se não procure informar-se, o meu procedimento no

Forlanini... fui eu quem safei o grupo, fui eu quem auxiliou o Guilherme... você conhece o Guilherme, o

secretário da seção lá no hospital? Fiz o que pude! Acho que isto basta pra demonstrar o que penso.

(PASOLINI: 1965, p. 295)

110

E assim foi: uns dias depois, Tomás apresentou-se na Secção com as duas testemunhas, o próprio

Delli Fiorelli e o Gricio, inscreveu-se e pagou o que era devido. Alcançando o que desejava, meteu o

cartão na algibeira, pronto a lutar pela bandeira vermelha, como os outros. (PASOLINI: 1965, p. 296)

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la sera fa 180 lire, altrettanto l’8, perché Tommasino scendeva alla fine del primo tronco e il resto se lo faceva a piedi: 180 più 180 fa 360. Dieci nazionali al giorno doveva pure fumarle, facevano 600 lire. Una saccata se la teneva per lui, in zucca: l’altra la dava in famiglia, perché i suoi per quel mese erano d’accordo che s’accontentavano così.111 (PASOLINI: 1959, p. 323)

Tommaso então trabalhava como fruteiro e o dinheiro que ganhava não

lhe era suficiente para ir ao cinema com Irene. Decide, por isto, voltar à antiga

vida de prostituição, para completar seu orçamento. Na continuidade, é descrita

a forma como o protagonista exercia seu ofício: vai ao cinema com o que lhe

restara no bolso para pagar o ingresso e lá, ao entrar, logo começa a explorar o

ambiente à procura de um possível cliente: “Nelle ultime file c’era un posto:

nero, Tommaso ci s’andò a sedere: era lì che stava a zezza un tizio, che, pur

vedendolo a distanza e allo scuro, gli era parso subito da naso.” 112 (PASOLINI:

1959, p. 323). Esforça-se para fazer-se notar por esse jovem, com uma série

de movimentos na cadeira.

Le luci si rismorzarono. Subito Tommaso allargò le gambe, accostando la gamba sinistra a quella del vicino: e stette lì a aspettare. Se ne stava fermo, come un gatto quando guarda un cane, sulla seggioletta scassata: con la faccia dove i cigolini marone si confondevano col rosso che la copriva come una coccia. [...] Tommaso lo filava incazzato. «E che aspetti, a stronzo!» pensava tra di sé. Cambiò posizione, dando un colpo con la schiena dietro che quasi spezzava lo schienale della seggiola dove stava seduto, e un altro col ginocchio che quasi spezzava

111

As contas eram fáceis de fazer: das quatro mil liras que o Casaca lhe entregava, no último minuto da

última hora de sábado à tarde, um pouco antes de encerrar, duas mil eram para a prestação do fato; das

duas mil restantes tinha que separar o dinheiro dos transportes de toda a semana: para o 209, dez liras

de manhã, vinte à tarde, faz cento e oitenta mais cento e oitenta fazem trezentas e sessenta. Dez

cigarros por dia somam seiscentas liras. Guardava quinhentas liras para ele e entregava outro tanto à

família, porque os pais concordaram em que naquele mês se satisfariam assim. (PASOLINI: 1965, p. 297)

112

Havia um lugar na última fila e foi-se lá sentar. E que mesmo à distância e no escuro topara um

maricas sentado na cadeira vizinha. (PASOLINI: 1965, p. 299)

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lo schienale della seggiola che c’aveva davanti. 113 (PASOLINI: 1959, p. 327)

Demora um pouco, mas consegue a atenção do rapaz, a quem presta os

serviços sexuais. A narração focaliza o pagamento exigido do cliente que,

primeiramente, oferece cem liras, as quais, furioso, Tommaso recusa. Exige

uma quantia maior. Diante da insistência, o rapaz lhe dá mais duzentas liras.

Contudo, ainda não satisfeito e usando de sua experiência no ofício da

prostituição, afirma: «quanto piagni! Ma che, piagnete sempre voi? Tutti eguali!

Dite sempre che nun c’avete ’na lira, ve ricomannate, e invece ’a grana ’a

tenete niscosta...»” 114 (PASOLINI: 1959, p. 333). E, diante das negativas do

jovem, utiliza-se do último recurso para extorquir maior quantia; saca de um

canivete:

«Namo, caccia la grana», rifece Tommaso, continuando a dare colpetti all’orlo della giacca, un po’ più forte, in modo da far vedere la parte dentro, sul petto coperto dalla camicia grigia. [...] Tommaso allora prese, cacciò una mano dentro la saccoccia della giacca, smucinò un pochetto nella fodera rotta, e levò stringendolo nel pugno un coltello a serramanico chiuso: se lo portò, sempre stretto nel pugno, tra le cosce all’altezza del ventre, alzando la gamba destra per fare ombra.115 (PASOLINI: 1959, p. 334)

Ameaçado, o rapaz lhe entrega o dinheiro que mantinha escondido

dentro de um dos sapatos e Tommaso, satisfeito, sai do cinema. Na manhã

seguinte, o protagonista acorda irritado ao verificar que havia chovido toda a

113

Voltaram a apagar-se as luzes. Tomás alargou as pernas, encostado a esquerda à do vizinho e ficou à

espera, sem se mexer, como um gato a mirar um cão, com aquela cara onde os olhos se confundiam

com as borbulhas. [...]

O rabicho ainda não se mexera. Tomás olhava para ele, insistente. ‹‹Mas, ó palerma, de que estas tu à

espera?››, pensava para si. Mudou de posição, dando um jeito que quase despedaçava as costas da

cadeira, e mudou os joelhos de tal modo que por pouco não arrombava a cadeira de fronte. (PASOLINI:

1965, p. 300-1)

114

—Deixa-te de choradeiras! Mas porque é que vocês se choram sempre? São todas iguais! Dizem que

não têm nem mais uma lira e afinal trazem sempre dinheiro escondido. (PASOLINI: 1965, p.305)

115

— Vá, passa para cá o dinheiro! — Insistiu Tomás, continuando a sacudir o casaco, agora com mais

força, a modos de fazer ver a parte de dentro e o peito, coberto pela camisa cinzenta. Meteu a mão na

algibeira do casaco, rebuscou no forro roto, e sacou de lá uma navalha de ponta e mola: levou-a à altura

da barriga, levantando a perna direita para fazer sombra. (PASOLINI: 1965, p. 306)

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noite e o dia continuava nublado: “«Li mortacci sua de ’sta pioggia!» rifece forte,

nero, perché gli rodeva di sverginare a quel modo il bluso nuovo.” 116

(PASOLINI: 1959, p. 338). Pede que a mãe prepare água para seu banho e,

porque seu pai estava ocupando o banheiro, acaba se banhando numa bacia,

na cozinha. Veste a roupa nova e sai cantando feliz, pois havia um pouco de

sol. Nas ruas do INA, encontra outros rapazes:

Paonazzo in faccia e snodato dentro il bluso, fece l’ultimo pezzo di Via Cesana, e imboccò la Tiburtina. Con lui scendeva giù dall’INA Case una batteria di giovinottelli che non conosceva. Erano di quelli stronzetti mezzi figli di papà, studentelli con le capocce spelacchiate e le facce da pipparoli, che volevano fare i malandri.”117 (PASOLINI: 1959, p. 344)

Num bar encontra com outros amigos, que jogavam cartas e fazem

piada com a roupa nova e o jeito do protagonista. Tommaso aceita o convite de

um dos companheiros, o Alberto, e, montados numa Vespa, vão ver a cheia do

rio:

Fin dove l’occhio poteva arrivare, da una parte verso i monti di Tivoli, dall’altra lì presso, verso Tiburtino, non c’era altro che acqua. [...] La massa d’acqua si spingeva giù, gialla e densa, coi ribolli che s’intorcinavano, fino contro l’argine della Tiburtina, schiumeggiando: lì si fermava, rabbiosa, rinculava, s’incanalava un’altra volta sul letto solito del fiume, e ammucchiandosi in cavalloni lividi, passava come una furia sotto il ponte.118 (PASOLINI: 1959, p. 350)

Durante o dia, o temporal continua. Devido ao mau tempo, Tommaso

telefona para Irene, remarcando um encontro. Assim, sozinho, vai ao cine

116

— Raios partam a chuva! — protestou em voz alta, chateado, porque naquele dia ia estrear o fato

novo. (PASOLINI: 1965, p. 310)

117

Todo inchado no fato novo, calcorreou o último troço da rua Cesana e desembocou na Tiburtina. Rua

abaixo, seguia também uma malta de putos do INA, que ele não conhecia. Eram uns palermas, filhos da

mamãe, estudantinhos de cabelo cortado rente e cara de bebê, a armar em malandros. (PASOLINI:

1965, p. 316)

118

Mas naquele domingo, todo este trecho de terra estava transformado num mar autêntico. Até onde

a vista podia alcançar, para os montes do Tivoli de um lado, para o Tiburtino, do outro era tudo um

lençol de água.[...] A massa d’água corria a escumar, amarela e densa, redemoinhando até os diques da

Tiburtina. Ali, quedava, raivosa, refluía, encanava-se de novo no leito costumeiro e, empinando-se em

vagalhões lívidos, passava, numa fúria, por debaixo da ponte. (PASOLINI: 1965, p. 321)

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Boston para assistir C'è un sentiero nel cielo. Lá encontra com outro velho

amigo, o Macaco, e após uma conversa divertida saem do cinema.

Antes de darmos sequência, convém uma referência a C’è un sentiero

nel cielo (1957), filme romântico dirigido por Marino Girolami, no qual o jovem

casal de protagonistas – Manuela, uma espanhola, e Cláudio – enfrentam

vicissitudes para viver sua história de amor. Casam-se e tem uma vida

miserável até que a jovem descobre ser herdeira universal de um tio milionário.

Em analogia com o filme, Tommaso sonha com a possibilidade de uma vida

feliz, longe da miséria, ao lado de Irene.

Nesse ponto, o narrador direciona a história para a longa permanência

dos rapazes num bar, ilhados pelo temporal.

Il bar era tutto pieno, con un fumo e un puzzo di panni zozzi e bagnati che strozzava. Ci stavano tutti, più o meno, Lello, il Zucabbo, Cazzitini, lo Sciacallo, il Zellerone, il Minchia, il Freghino, il Budda, il Gricio, Nazzareno, e anime benedette, che se ne stavano ammucchiati sul pavimento tutto bagnato, chi giocando a carte chi chiacchierando.119 (PASOLINI: 1959, p. 359)

Carlitos chega com um violão e anima ainda mais os rapazes, quando

começa a cantar. Ainda no bar, o narrador introduz o tema da fome, e três dos

rapazes contam histórias de inanição e dificuldades para encontrar comida.

Todos riem, divertindo-se com as circunstâncias descritas, denotando uma

ironia com a própria situação de desesperados. A chuva aumenta e todo o

bairro é invadido pela água:

Le luci per qualche istante si riaccesero: la strada davanti al bar era un lago, c’erano almeno due palmi d’acqua. E, nell’altre strade, quelle basse, al centro della borgata, si vedeva sbrilluccicare altra acqua, alta fino alle finestrelle degli scantinati. Le case spuntavano direttamente dall’acqua, al riflesso delle quattro lampade: e già la roba vecchia, i paletti, i cenci, l’immondezza dei cortiletti cominciava a galleggiare.120 (PASOLINI: 1959, p. 365)

119

O bar esteve repleto, inundado de fumo e dum cheiro a roupa suja e molhada que tresandava. Mais

ou menos, estavam lá todos. O Lello, o Cabeçudo, o Cazzatini, o Chacal, o Zellenone, o Minchia, o

Freghio, o Buda, o Graccio, o Nazareno e, louvado seja, uns empilhados sobre o soalho todo molhado,

outros a jogar as cartas e ainda uns tantos entretidos no paleio. (PASOLINI: 1965, p. 329)

120

As luzes acenderam-se por instantes. A rua diante do bar estava num lago, havia bem uns dois

palmos de água. Na outra rua, a mais funda, no centro do bairro, via-se rebrilhar mais água, até quase à

altura das janelas dos casebres. As casas despontavam diretamente da água, ao reflexo dos quatro

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Ao saber que a Pequena Xangai estava totalmente inundada, Tommaso

decide ir até lá para ajudar. No caminho, encontra com um carro dos bombeiros

e se junta a eles. Assim, em seu bairro natal, de forma heroica, o protagonista

salva uma mulher da enchente. Ironicamente, a reconhece como sendo uma

das prostitutas do rio Aniene:

«Mo’ arivo, a signò! Stateve bbona!» gridò Tommaso, dal pantano. Il meglio veniva adesso, al centro dello spiazzo, per dove passava la corrente d’acqua e fanga che scendeva giù dai montarozzi. Tommaso ci si buttò, muovendo tutte le braccia come un pupazzo, per camminare, ché era andato sotto fino al bellicolo, e la corrente, benché non sembrava, era forte e trascinava in giù verso il fiume, che rimbombava a pochi passi. Immelmandosi come un maiale, diguazzando in quella ciufega, a denti stretti, con gli occhi fuori per la fatica, arrivò davanti alla bicocca della donna, dall’altra parte. [...] Intanto, l’aveva riconosciuta. Era una zoccola, che batteva a Montesacro, sul ponte dell’Aniene: il pappone era un amico suo.121 (PASOLINI: 1959, p. 373-4)

Salva ainda dois meninos, carregando-os, com muito esforço, pela lama

até a sede do partido. Lá se instalam todos os desabrigados, esperando o pior

passar; nesse tempo, dois garotos encontram a bandeira do partido e brincam

como índios. Ao ver a brincadeira, Tommaso se irrita e toma o objeto deles.

Neste trecho, é mostrado o valor de salvação que representava para o

protagonista aquela bandeira: “Solo in quel pannaccio rosso, tutto zuppo e

ingozzito, che Tommaso ributtò lì a un cantone, in mezzo a quella calca di

candeeiros. Já a roupa velha, as estacas, os farrapos e o lixo dos pátios começavam a boiar. (PASOLINI:

1965, p. 334)

121

— Aí vou, mulher, aí vou! Tenha calma! — gritava Tomás, do chavascal. O melhor vinha agora, ao

meio do terreno, por onde a corrente de água e lama que escorria já pelas encostas abaixo. Tomás

atirou-se, movendo os braços como um fantoche, para poder andar, pois estava afundado até o umbigo,

e a corrente, embora não o aparentasse, era forte e arrastava tudo em direção ao rio, que ribombava a

poucos passos. Enlameando-se como um porco, metido até o pescoço naquela porcaria, de dentes

cerrados, os olhos esbugalhados de cansaço, alcançou a barraca onde a mulher se encontrava. [...]

Entretanto, reconhecera-a. Era uma pega que batia o Montessacro sobre a ponte do rio Anieno. O

protetor dela era, por sinal, amigo de Tomás. (PASOLINI: 1965, p. 342)

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disgraziati, pareva brilluccicare, ancora, un po’ di speranza.” 122 (PASOLINI:

1959, p. 377).

Na manhã seguinte, sozinho em casa, acorda sentindo-se muito mal.

Percebe, ao tossir, que escarrava sangue:

Ma poi, non volendo, gli occhi gli s’affissarono sulla canottiera, e vide ch’era tutta macchiata di rosso. Era sangue. Quand’era stato ammalato, gli sbocchi di sangue non li aveva avuti mai. In principio gli parve come un sogno: guardò e riguardò quelle macchie di sangue, e le toccò col dito: era fresco, s’appiccicava.123 (PASOLINI: 1959, p. 378)

Nas derradeiras páginas, o rapaz pede ajuda à mãe, que o leva a um

hospital, onde recebe a visita dos amigos e da sua Irene:

La domenica, venne a fargli visita pure Irene, com l’amica Diasira, e con Settimio. Gli portò un po’ di frutta e un po’ di marsala, aspettando un momento che non c’erano i suoi, e gliela mise lì sul comodino, in silenzio. [...] poi non si potè trattenere e, nascondendosi la faccia contro il braccio, cominciò a piangere, a piangere.”124 (PASOLINI: 1959, p. 380-1)

Os amigos do partido decidem prestar-lhe uma homenagem pelo ato

heroico, que lhe custara a vida, dando o seu nome à seção do partido em

Pietralata. Desenganado, os médicos o autorizam a ir para casa nos seus

últimos dias de vida.

No último parágrafo de Una vita violenta é descrita a morte do jovem

protagonista. O livro se encerra sem mais nenhuma linha após seu falecimento;

ele era o fio condutor de toda a narrativa, então, não interessava o que viria

122

Só aquele pedaço de pano rubro, húmido e todo amarrotado, que Tomás colocara em seu lugar, no

meio daquele bando de desgraçados, parecia espalhar ainda um clarão de esperanças. (PASOLINI: 1965,

p. 345)

123

Mas, depois, sem querer, os olhos pousaram-lhe na camisa e viu que a tinha toda manchada de

vermelho. Era sangue. Nunca tinha tido hemoptises, mesmo quando doente. Ao princípio aquilo

pareceu-lhe um sonho ruim: olhou muitas vezes para as manchas de sangue, tocou-lhes com o dedo e

verificou que era fresco e peganhento. (PASOLINI: 1965, p. 346)

124

Domingo também Irene o veio visitar, acompanhada de Diasira, a tal amiga dela, e de Settimio.

Trouxe-lhe fruta e uma garrafa de marsala, aquele delicioso vinho siciliano, muito alcoólico e

perfumado. Esperando que a família dele se afastasse, colocou-a em silêncio sobre a mesa de cabeceira.

[...] Depois, não conseguiu dominar-se e, escondendo a cara entre as mãos, começou a chorar, a chorar.

(PASOLINI: 1965, p. 348)

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depois. A morte é descrita superficialmente. Tommaso apenas tosse, e, na sua

cama, em casa, ainda tem esperança de curar-se. Nem ele mesmo, apesar de

ser irônico com a própria situação, acreditava que terminaria assim. Sua morte

se conclui com um copo de marsala, num lindo dia de setembro:

In fondo in fondo ancora non l’avevano benedetto; da qualche ora la tosse gli si era fermata, e aveva pure chiesto alla madre un po’ di quella marsala che gli aveva portato Irene. Ma poi, come diventò notte, si sentì peggio, sempre di più: gli prese un nuovo intaso di sangue, tossì, tossì, senza più rifiatare, e addio Tommaso.125 (PASOLINI: 1959, p. 382)

Através de suas narrativas, literárias e fílmicas, Pasolini manifestou seu

desejo de denunciar o mundo dos excluídos, um “mundo primitivo”, que ele

considerava possuir um valor de riqueza humana superior ao mundo “burguês”

atual. Em sua opinião, esse “mundo primitivo” beirava ao sagrado, pois

acreditava não ter sido contaminado pela cultura burguesa ou capitalista do

início do século XX. Assim, em sua obra, cantou e valorizou a geografia e a

cultura italianas da periferia romana, dos excluídos, para que pudéssemos

compreender um pouco mais um mundo incógnito, que lhe era caro.

Cita, em seus romances, nomes de rios, ruas, pontes, praças, traçando

a cartografia de uma Roma oculta, que não figura nos mapas e roteiros

turísticos.

O lugar de onde Pasolini se manifestava como pessoa civil,

semelhantemente ao “eu lírico” presente em sua produção poética, será

detalhado no capítulo II, quando examinaremos os textos teóricos nos quais o

autor tece considerações sobre os caminhos trilhados pela sociedade italiana a

partir do boom econômico provocado pelo Plano Marshall e nos

aproximaremos de sua “paixão e ideologia.”

125

De verdade, de verdade mesmo, não lhe tinham cantado o ‹‹bendito››. Havia já umas horas que a

tosse não o incomodava e até pedira a mãe um copito do vinho que Irene lhe trouxera.

Mas depois, ao cair da noite, sentiu-se pior. Golfou sangue, tossiu, tossiu, sem conseguir dominar-se, e

adeus, Tomás. (PASOLINI: 1965, p. 349)

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CAPÍTULO II

PAIXÃO E IDEOLOGIA

Pier Paolo Pasolini foi romancista, cineasta, dramaturgo, ensaísta,

tradutor, crítico literário, jornalista, professor e, sobretudo, poeta. “É o único

artista dos Novecentos italiano em que a vida e a poesia se encontram de tal

forma entrelaçadas que, enquanto a poesia é um contínuo discurso sobre a

vida, a vida parece modelar-se sobre os ritmos e as exigências da Poesia”

(SANTOS, 1993: p.2).

Pasolini, que entendia a Poesia como força motriz da própria vida, foi

artista completo e participou intensamente da vida cultura de seu país, escreve

Maria Lizete dos Santos em sua dissertação de mestrado (1993; p.4)

Era crítico, principalmente, da sociedade de consumo, que teria

provocado “uma padronização da cultura, massificado os indivíduos, provocado

uma ‘monstruoso mutação antropológica’”. (SANTOS, 1993; p.4)

Provocava principalmente os jovens que, em sua opinião, aceitavam

passivamente os valores impostos pela sociedade de consumo e renunciavam

às várias manifestações culturais inerentes aos universos camponês e

subproletário, como designava a classe menos favorecida da sociedade,

aqueles que não tinham condições de vida que lhes permitissem viver com

dignidade. Ser subproletário, para o autor italiano, significava viver na periferia,

nas borgate, em precárias condições. É com o olhar voltado para as borgate,

principalmente, que Pasolini constrói sua rica e vasta obra poética.

Suas reflexões teóricas encontram-se explicitadas, especialmente, nos

livros Le belle bandiere (1977), no qual se encontram seus diálogos com os

leitores, Empirismo eretico (1972) e Passione e Ideologia (1973).

Neste capítulo, abordaremos o livro Empirismo eretico, o qual apresenta

uma série de teorias que refletem sobre aspectos dos diversos campos

artísticos nos quais Pasolini ousou percorrer, partindo das polêmicas questões

linguísticas italianas e passando por reflexões sobre literatura e cinema, por

exemplo. Tais reflexões encontram-se em sintonia perfeita com o objetivo

principal desta tese, a relação de Pasolini com a Cidade Eterna, especialmente

com suas borgate, como vimos no primeiro capítulo.

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Pasolini foi um grande estudioso da cultura italiana, principalmente da

literatura, da qual foi um ávido leitor. Tinha autoridade bastante para analisar a

produção cultural que lhe era contemporânea e propor novos caminhos.

2.1 Vislumbres sobre a cultura italiana

Em Empirismo eretico, inicialmente, o autor produz ideias que buscam

uma compreensão da situação linguística italiana, durante o período do pós-

guerra. Afirmava a não existência de uma verdadeira língua italiana nacional,

ou seja, uma língua que causasse uma ligação de unidade em todo o território

italiano. Em sua opinião, na Itália havia, ainda, uma situação de desigualdade

entre a língua de uso e a língua literária:

Questo implica un fato che del resto è ben noto: in Italia non esiste una vera e propria lingua italiana nazionale. Cosicché, se vogliamo ricercare una qualche unità tra le due figure della dualità (lingua parlata, lingua letteraria), dobbiamo cercarla al di fuori della lingua, nell’interno di quell’individuo storico che è contemporaneamente utente di queste due lingue: uno è riccamente descrivibile in una unitaria totalità di esperienze. Tale individuo quale sede spirituale o coabitazione della dualità, è il borghese o piccolo-borghese italiano, con la sua esperienza storica e culturale, che è inutile qui definire: credo basti semplicemente alludervi come una comune conoscenza.126 (PASOLINI: 1972, p.09)

Considerava que a língua escolhida como unificadora da Itália

representava, na verdade, uma língua classista, que presumia apenas uma

pequena parte da sociedade italiana, a burguesia:

La lingua italiana é dunque la lingua della borghesia italiana che per ragioni storiche determinate non ha saputo identificarsi con la nazione, ma è rimasta classe sociale: e la sua lingua è la

126

Isto implica um fato que é bem conhecido: na Itália não há uma verdadeira língua italiana nacional.

Assim, se quisermos procurar alguma unidade entre as duas figuras da dualidade (língua falada, língua

literária), devemos procurá-la fora da língua, dentro daquele indivíduo histórico que é,

simultaneamente, usuário destas duas línguas: um é ricamente caracterizável em uma unitária

totalidade de experiências. Este indivíduo como sede espiritual ou coabitação da dualidade, é o burguês

ou pequeno-burguês italiano, com a sua experiência histórica e cultural, que é inútil definir aqui: Eu

preciso apenas aludir a ele simplesmente como um conhecimento comum. (Trad. nossa)

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lingua delle sue abitudini, dei suoi privilegi, delle sue mistificazioni, insomma della sua lotta di classe.127 (PASOLINI: 1972, p.10)

Deixa evidente sua crítica à situação linguística de seu país, declarando

sua posição em relação à condição de segregação entre os dois mundos; o da

burguesia e o das classes populares.

Pasolini, depois de mais de dez anos de convivência com os moradores

da periferia romana, assume um discurso delusório em relação à situação de

pureza primitiva que enxergara no universo das borgate romanas dos anos

1950. Após o Plano Marshall e o aburguesamento do subproletariado,

considerava impossível realizar uma mimesis linguística naquela região, pois

era um mundo já extinto diante dos avanços econômicos dos anos que se

seguiram. Um discurso de denúncia representaria um “fenômeno estilístico

superado”, afirmava:

È vero anche che il discorso rivissuto in funzione di denuncia di un mondo miserabile, ladro, affamato, disponibile perché preistorico, sembra d’improvviso un fenomeno stilistico superato – e i Riccetti e i Tommasi si muovono remoti come in un’urna greca [...]” 128 (PASOLINI: 1972, p.17)

Na citação acima, o escritor refere-se às personagens de seus romances

do período romano, Ragazzi di vita e Una vita violenta, respectivamente

Riccetto e Tommaso.

A industrialização da península itálica, iniciada principalmente a partir do

fim da Segunda Guerra Mundial, teve seu auge nos anos 1960 e, desde então,

aquele mundo inocente idealizado por Pasolini sofre um declínio até seu total

desaparecimento. Como consequência dessa mudança de padrões de vida, há

a homogeneização da língua italiana em detrimento dos dialetos. Dessa forma,

nosso escritor passa a observar que a língua assumira um método tão prático

127

A língua italiana é, então, a língua da burguesia italiana que, por razões históricas, não tem sido capaz

de se identificar com a nação, mas manteve-se classe social: e a sua língua é a língua dos seus hábitos,

dos seus privilégios, das suas mistificações, em suma, da sua luta de classe. (Trad. nossa)

128 Também é verdade que o discurso revivido em função de denúncia de um mundo miserável, ladrão,

faminto, disponível porque pré-histórico, parece, de repente, um fenômeno estilístico superado - e os

Riccetti e os Tommasi se movem remotos como numa urna grega. [...] (Trad. nossa)

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que passaria a ser uma língua das fábricas e da publicidade, ou seja, uma

língua capitalista:

Si potrebbe dire, insomma, che centri creatori, elaboratori e unificatori di linguaggio, non sono più le università, ma le aziende. Se ossservi per esempio potere di soggestione linguistica enorme che hanno gli slogans nel ‹‹linguaggio della pubblicità››: linguaggio vero e proprio, in quanto sistema con le sue norme interne e i suoi principi regolatori tendenti alla fissazione. Parte di queste sue norme e di questi suoi principi linguistici cominciano già a passare alla lingua parlata: ma ciò che è maggiormente rilevante è l’archetipo linguistico offerto dallo slogan: un massimo addirittura metafisico di fissazione diagrammatica.129 (PASOLINI: 1972, p.22)

Pasolini explica que a Itália passava por um processo que ele denomina

de homologação da cultura italiana, já antevendo o que nos dias atuais

chamaríamos de globalização. Havia uma aparente vitória da língua técnica do

Norte; contudo, se o Sul perdesse seus dialetos, paralelamente o Norte

também abriria mão de suas especificidades linguísticas ao assumir como

língua unitária o que Pasolini denominou de “sublinguagem”:

Ora, il Nord non può certamente proporre come alternativa i propri dialetti – che esso stesso ha contribuito a rendere arcaici né più né meno che quelli del Sud – né la sua pronuncia, né i suoi particolarismi linguistici: insomma la sua dialettizzazione della koiné. Ma il Nord industriale che possiede quel patrimonio linguistico che tende a sostituire i dialetti, ossia, quei linguaggi tecnici che abbiamo visto omologare e strumentalizzare l’italiano come nuovo spirito unitario e nazionale. Il Nord possiede tale linguaggio tecnologico in quanto mezzo linguistico principe del suo nuovo modo di vita: è questo sottolinguaggio tecnico che il Nord industriale propone, come concorrente al predominio nazionale, contro la koiné dialettale romanesco-napoletana: e che, in effetti, è già vitoriosa, attraverso quella stessa influenza egemonica unificatrice che hanno avuto per esempio le monarchie aristocratiche nella

129

Pode-se dizer, então, que os centros criadores, elaboradores e unificadores de linguagem, não são

mais as universidades, mas as empresas.

Observa-se, por exemplo, o poder de sugestão linguística enorme que têm os slogans na <<linguagem

da publicidade>>: linguagem de fato, enquanto sistema com as suas regras internas e os seus princípios

reguladores que visem a fixação. Parte dessas normas e desses princípios linguísticos começa já a passar

para a língua falada: mas o que é mais importante é o arquetípico linguístico oferecido pelo slogan: um

máximo realmente metafisico de fixação diagramática. (Trad. nossa)

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formazione delle grandi lingue europee. 130 (PASOLINI: 1972, p.25)

Considerava que a língua única e de massa unificava o país e, ao

mesmo tempo, o Sul perdia a seu espaço para a língua setentrional. O próprio

Norte industrializado, que possuía suas especificidades linguísticas, também

sofria esse prejuízo. Se Pasolini, por um lado, percebe um fenômeno que ele

chamou de “vingança” do Sul em relação ao Norte; por outro lado, se mostra

resignado com a visão de um iminente futuro de massificação:

È la rivincita dei periferici, insomma: è la vittoria dell’Italia reale su quella retorica: una prima ondata periferica romanesco-napoletana corrispondente al primo momento reale dell’Italia antifascista ma ancora semisviluppata e paleoborghese, e ora una seconda definitiva ondata settentrionale, corrispondente alla definitiva realtà italiana, quella che si può predicare all’Italia dell’imminente futuro.131 (PASOLINI: 1972, p.25)

Numa Itália que considerava estereotipada e falsa, ele percebia que a

língua tecnológica agradava à burguesia, que pretendia concluir o processo de

homologação cultural de todo o país. Assim, a nova língua tecnológica não o

agradava, como lemos na citação abaixo. Ele a reconhecia como fenômeno

social e a considerava como algo menor, que de forma alguma poderia evoluir

para uma “riqueza expressiva” a qual o italiano alcançou ao longo de séculos:

130 Então, o Norte não pode certamente propor como alternativa os seus próprios dialetos – que este

mesmo contribuiu a tornar arcaicos nem mais nem menos que aqueles do Sul – nem a sua pronúncia,

nem as suas peculiaridades linguísticas: em suma, a sua dialetização da koiné. Mas o Norte industrial

que possui o patrimônio linguístico que tende a substituir os dialetos, ou seja, estas linguagens técnicas

que vimos homologar e instrumentalizar o italiano como novo espírito unitário nacional. O Norte possui

tal linguagem tecnológica como meio linguístico príncipe do seu novo modo de vida: é esta sub-

linguagem técnica que o Norte industrial propõe como concorrente ao predomínio nacional, contra a

koiné dialetal romano-napolitana: e que, na verdade, já é vitoriosa, através da mesma influência

hegemônica unificadora que tiveram, por exemplo, as monarquias aristocráticas na formação das

principais línguas europeias. (Trad. nossa)

131

É a vingança dos periféricos, em suma; é a vitória da Itália real sobre aquela retórica: um primeiro

movimento periférico romanesco-napolitano correspondente ao primeiro momento real da Itália anti-

fascista, mas ainda semidesenvolvida e paleoburguesa, e agora um segundo e definitivo movimento

setentrional, o que correspondente a definitiva realidade italiana, aquela que se pode pregar para a

Itália do iminente futuro. (Trad. nossa)

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La nuova lingua tecnologica della borghesia, di per sé, non mi interessa, personalmente la detesto, e il mio assunto di scrittore è quello di oppormi ad essa: ma non ignorandola. Essa è un fenomeno reale: ma non si pone come nuova ‹‹stratificazione›› dell’italiano (una delle tante ‹‹stratificazioni›› che giustapponendosi e non superandosi, hanno formato la ricchezza espressiva dell’italiano, con tutto quanto di aleatorio ciò comporta)132. (PASOLINI: 1972, p.29)

Pasolini afirma que o italiano foi praticamente uma língua literária

durante séculos e que, por motivos políticos e devido a seu prestígio literário –

lembremos o peso da obra de Dante, de Petrarca e Boccaccio –, se tornou uma

língua unitária. Considerava, também, que o italiano – o florentino que, dizia ser

a língua mais eleita de todos os tempos –, era unitário do ponto de vista

linguístico, uma vez que a língua de massa, da imprensa ou televisão já se

fazia entender de Palermo a Turim. Afirma, contudo, que, no momento em que

os italianos abriam a boca, cada um falava uma língua própria, individual ou

regional. Em suas observações, assinalou que o centro linguístico da Itália não

era mais o literário de Florença, mas o tecnológico representado principalmente

por Milão, cidade industrial da qual surgiram as palavras técnicas que criaram

uma pátina unificadora de toda a língua italiana. Dessa forma, ele evidencia o

processo de insegurança e mobilidade da língua, pois havia grandes

contradições com aquilo que se estruturava artificialmente e o que era

concretizado foneticamente pela população:

Noi italiani viviamo concretamente la tendenza di una struttura a essere un’altra struttura: viviamo il suo movimento di modifica, per una sua interna volontà a modificarsi. Ossia: l’istituizione fonica, la ‹‹ struttura reale ›› della nostra fonazione è sempre quella di una koinè dialettizzata: il mio ‹‹tutto solidale fonetico›› prevede ‹‹ roza ›› ‹‹ tempo ›› ‹‹ tè ››, tra le mie ‹‹ opposizioni funzionali ›› non c’è ‹‹ s ›› sonora tra due vocali ecc.: tuttavia io vivo la tendenza di questa mia ‹‹ struttura reale ›› a conformarsi ad altre ‹‹ strutture reali ›› (per esempio, dato che sono residente a Roma, a certe abitudini

132 A nova linguagem tecnológica da burguesia, por si só, não me interessa; pessoalmente a detesto, e

meu dever de escritor é aquele de me opor a esta, mas não a ignorando. Esta é um fenômeno real: mas

não surge como nova ‹‹estratificação›› do italiano (uma das muitas ‹‹estratificações›› que justapondo-se

e não superando-se, formaram a riqueza expressiva do italiano, com tudo quanto de aleatório isto

implica). (Trad. nossa)

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della fonazione romana), oppure e soprattutto a uniformarsi a una possibile istituizione linguistica nazionale – il famigerato fiorentino colto. La mia lingua non consiste dunque in una struttura stabile, ma vive l’inquietudine motoria, il bisogno di metamorfosi di una struttura che vuol essere altra struttura.133 (PASOLINI: 1972, p.61)

O autor expressou, diversas vezes, sua decepção em relação à situação

político-cultural da Itália no pós-guerra, pois já não tinha esperança nos rumos

que a cultura daquele país tomara; não cria que fosse possível “descobrir uma

Itália sem falsidades”. Crítico contundente da burguesia, dizia-se marxista por

representar uma oposição total a sua sociedade. Afirmou, em diversas

oportunidades, que desejava renunciar à cidadania italiana. Como símbolo de

seu ceticismo em relação ao futuro, podemos ler o seguinte depoimento:

“Invecchiando si diventa allegre perché si ha meno futuro e quindi meno

speranze e questo dà un grande sollievo” 134.

Nos anos 1960, o autor considerava que havia uma profunda crise na

cultura italiana; a sociedade passava do denominado por ele Paleocapitalismo

para Neocapitalismo. Desse modo, como já dito, percebia que seu país perdera

aquela cultura popular que ele tanto valorizara. Foi neste contexto de mudança

que ele decide ingressar no mundo do cinema, que, em sua opinião, não seria

somente uma mudança de técnica, mas de língua, o que, na realidade,

representava um protesto contra a língua italiana.

133

Nós italianos vivemos concretamente a tendência de uma estrutura para ser outra estrutura: vivemos

o seu movimento de mudança, por sua vontade interna de mudar.

Ou seja: a instituição fônica, a ‹‹estrutura real›› da nossa fonação é sempre aquela de uma koiné

dialetal: o meu ‹‹todo solidário fonético›› prevê ‹‹roza›› ‹‹tempo›› ‹‹tè››, entre as minhas ‹‹oposições

funcionais›› não há ‹‹s›› sonora entre vogais etc.: no entanto, eu vivo a tendência desta minha

‹‹estrutura real›› a conformar-se a outras ‹‹estruturas reais›› (por exemplo, dado que sou residente em

Roma, a certos hábitos da fonação romana), ou e acima de tudo a uniformar-se a uma possível

instituição linguística nacional – famigerado florentino culto. Minha linguagem não consiste, portanto,

numa estrutura estável, mas vive a inquietação motora, a necessidade de transformação de uma

estrutura que quer ser outra estrutura. (trad. nossa)

134

“Envelhecendo nos tornamos alegres porque temos menos futuro e esperanças e isto dá um grande

alívio”. (trad. nossa). Depoimento retirado de: SICA, Gabriella. Pier Paolo Pasolini poeta (Rai Educational-

Einaudi, 2001).

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O cinema, para ele, era uma outra linguagem, um sistema de sinais que

vale para várias nações e representa a realidade não através de símbolos,

como são as palavras, mas através da própria realidade, teoria por ele

incansavelmente repetida.

D’altra parte: il ‹‹ segno ›› del linguaggio del cinema è arbitrario? Vorrei precisare subito che non intendo istituire un’equivalenza fra ‹‹ segno ›› cinematografico in quanto lingua estetica, gergale, e segno letterario: ma intendo stabilire una equivalenza tra ‹‹ segno ›› cinematografico, in quanto il cinema sia un possibile sistema o struttura linguistica, di rapporto sociale.135 (PASOLINI: 1972, p.75)

A ideia de que a Itália era um país que vivia linguisticamente de forma

instável era uma das muitas defendidas por Pasolini. Opinava que a nação

estava inserida em uma situação precária, de mudanças constantes:

Il fatto di essere italiano mi costringe a non essere strutturalista, a non avere la testa dello strutturalismo. Io vivo in un establishment idiota quanto precario. Non ho intorno alcuna certezza sociale. Per esempio le strutture foniche e gramaticali della mia lingua sono instabili, arbitrarie, infinitamente cangianti, infinitamente turbate da forme concorrenti, e tenute insieme da una volontà ordinatrice o fittizia o autoritaria ecc. ecc. 136(PASOLINI: 1972, p.77)

Ele evidencia que a unidade linguística do país estava ainda em

formação e, por isto, todos os cidadãos contribuíam de alguma maneira no

processo. Nota, também, que a burguesia já possuía uma natureza linguística

estável, como em outros países europeus, ao passo que os dialetos estavam

num outro nível de formação histórica. Assim, conviviam, nos anos 1960, na

Itália, dois níveis históricos diversos, duas estruturas sociais diferentes: o Norte

135

Por outro lado: o ‹‹sinal›› da linguagem do cinema é arbitrário?

Gostaria de salientar desde já que não tenho a intenção de estabelecer uma equivalência entre ‹‹sinal››

cinematográfico como linguagem estética, gírias, e sinal literário: mas pretendo estabelecer uma

equivalência entre ‹‹sinal›› cinematográfico, considerando que o cinema seja um possível sistema ou

estrutura linguística de relação social. (Trad. nossa)

136

O fato de ser italiano me obriga a não ser estruturalista, a não ter a cabeça do estruturalismo. Eu vivo

em um establishment idiota tanto quanto precário. Eu não tenho entorno nenhuma certeza social. Por

exemplo, as estruturas fônicas e gramaticais da minha linguagem são instáveis, arbitrárias, infinitamente

mutantes, infinitamente perturbadas por formas concorrentes, e mantidas em conjunto por uma

vontade ordenadora ou fictícia ou autoritária etc. (Trad. nossa)

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industrial em contraponto com o Sul pré-industrial, como se lê no trecho a

seguir:

Io, parlando – nell’atto puro e semplice del parlare – vivo una struttura che si sta strutturando: contribuisco io stesso, e lo so, a tale strutturazione, che non so tuttavia su cosa si fonda e cosa sarà ecc. ecc. Inoltre, se la classe sociale in cui vivo ha delle strutture abbastanza precise – assomiglia cioè, a parte ogni giudizio di valore, a tutte le altre piccole borghesie europee – tuttavia la mia società nel suo insieme vive a due livelli storici diversi, è una coesistenza di due strutture sociali diverse.137 (PASOLINI: 1972, p.77)

Pasolini reafirma, como anteriormente dito, que sua ideologia seria o

marxismo, que poderia salvá-lo de uma perda da realidade: “È a questo punto,

che nell’ossessivo bisogno di tornare al marxismo – ossia all’unica ideologia

che mi protegga dalla perdita della realtà. [...]” 138 (PASOLINI: 1972, p.79).

E opta realmente pelo mundo dos excluídos, pois em diversos trechos

afirma sua simpatia pelas questões que levem em conta a cultura dos

periféricos. Julga que a escolha linguística de um autor deva denotar uma

consciência de classe social e, no caso da mímesis, de uma linguagem

determinada, essa transbordaria em decisões ideológicas.

La scelta linguistica è il primo sintomo di una coscienza sociale: essa è infatti la scelta del mondo moderno (la borghesia comunale) contro il mondo vecchio (clericale-universalistico). La mimesis dei vari possibili linguaggi della lingua borghese è prefigurata tutta in questa prima scelta: ma, a differenza dell’Ariosto, Dante ha una chiara coscienza delle categorie sociali (la lingua di Francesca, la lingua dei barattieri): che è

137

Eu, falando – no ato puro e simples de falar - vivo uma estrutura que está se estruturando: Eu mesmo

contribuo, e sei, a tal estruturação, que eu não sei sobre o que se baseia e o que será etc. etc. Além

disso, se a classe social na qual vivo tem estruturas bem precisas - assemelha isto é, a parte quaisquer

juízos de valor, a todas as outras pequenas burguesias europeias - mas a minha sociedade no seu

conjunto vive em dois níveis históricos diferentes, é uma coexistência de duas estruturas sociais

diferentes. (Trad. nossa)

138 É neste ponto, que na necessidade obsessiva de voltar ao marxismo – ou seja, à única ideologia que

me proteja da perda da realidade. [...] (Trad. nossa)

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profondamente democratica, data la sua ascendenza probabile alle esperienze corporativistiche, e alle annesse lotte sociali.139 (PASOLINI: 1972, p.91)

Assim, quando um autor assume o discurso de uma de suas

personagens, jamais poderia ser fiel inteiramente às experiências vividas pelas

figuras idealizadas, porque, simplesmente, o escritor não pertence àquele

mundo psicológico; logo, o discurso é uma recriação, sempre:

Nel caso di un autore sia costretto, per rivivere i pensieri del suo personaggio, a rivivere le sue parole, vuol dire che le parole dell’autore e quelle del personaggio non sono le stesse: il personaggio vive dunque in un altro mondo linguistico, ossia psicologico, ossia culturale, ossia storico. Eli appartiene a un’altra classe sociale. E l’autore dunque conosce il mondo di quella classe sociale solo attraverso il personaggio e la sua lingua.140 (PASOLINI: 1972, p.94)

Pasolini esclarece o porquê dessa impossibilidade de tomada da

realidade, pois, em sua percepção, essa relação só poderia aproximar-se do

real porque a experiência vital pertence apenas a quem vive os sentimentos

com veracidade:

Un approccio di altro genere sarebbe solo sociologico o scientifico: un autore, conoscerebbe dunque del suo personaggio, gli aspetti della realtà, la sua realtà effettuale, pratica, relativa al resto del mondo: ma non conoscerebbe la sua realtà reale, inalienabile e irripetibile in altre situazioni, neanche analoghe. Insomma la sua esperienza vitale, il suo sentimento delle cose.141 (PASOLINI: 1972, p.94)

139

A escolha linguística é o primeiro sintoma de uma consciência social: esta é, de fato, a escolha do

mundo moderno (a burguesia municipal) contra o mundo velho (clerical-universal). A mímesis das várias

linguagens possíveis da língua burguesa está toda prefigurada por todo nesta primeira escolha: mas, ao

contrário de Ariosto, Dante tem uma consciência clara das categorias sociais (a língua de Francesca, a

dos vigaristas): que é profundamente democrática dada a sua ascendência provável às experiências

corporativistas, e as lutas sociais que o acompanham. (trad. nossa)

140 No caso em qual um autor seja forçado, para reviver os pensamentos de seu personagem, a reviver

as suas palavras, isso significa que as palavras do autor e as do personagem não são as mesmas: o

personagem vive num outro mundo linguístico, ou psicológico, ou cultural, ou histórico. Ele pertence a

uma classe social diferente. E, então, o autor conhece o mundo daquela classe social só através da

personagem e sua língua. (Trad. nossa)

141 Uma abordagem outro tipo seria apenas sociológica ou científica: um autor conheceria , portanto, o

seu personagem, os aspectos da realidade, a sua verdadeira realidade, a prática, em relação ao resto do

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Como já se disse, o autor demonstrou grande interesse no processo de

modificação cultural e econômica do seu país e, ao longo dos anos, percebeu

que o interesse das políticas públicas se voltou do subproletariado para outros

setores da sociedade. Ou seja, a classe social menos favorecida não era mais

uma preocupação do governo, ocasionando, por certo tempo, uma estagnação

dessa parte da sociedade italiana. Contudo, com o passar dos anos, esses

trabalhadores foram sendo substituídos por uma nova classe, baseada na

tecnocracia, onde a mão-de-obra surge cada vez mais especializada, como em

todas as economias de consumo. Pasolini percebera esse movimento e tinha

consciência de que o mundo ao qual dedicara tanto amor estava se perdendo;

os analfabetos e humildes eram substituídos pela educação voltada à

industrialização, como pode-se perceber no trecho abaixo:

Quella sezione molto vasta della società italiana che è il sottoproletariato (nella fattispecie romano, ma idealmente comprendente, sia quello delle capitali del Sud, sia quello del Sud contadino), che era investita di un così cocente interesse negli anni cinquanta, ora, benché nessuno dei suoi problemi sia risolto, e le sue condizioni di vita siano praticamente le stesse, è fuori dal fuoco dell’interesse. E non per ragioni meschine, per una frenesia di attualità. Ma perché l’interesse si è spostato, per una tale oggettiva e imponente mole di ragioni storiche e sociali, verso altri problemi (quella della completa industrializzazione dell’Italia, in evoluzione verso gli altri livelli neocapitalistici, e verso il sogno in via di realizzazione della tecnocrazia) che è naturale che tutti gli altri problemi scadano e si presentino come arcaici.142 (PASOLINI: 1972, p.104)

mundo: mas não conheceria a sua verdadeira realidade, inalienável e insubstituível em outras situações,

nem mesmo semelhantes. Em suma, sua experiência de vida, o seu sentimento das coisas. (Trad. nossa)

142 Aquela grande parte da sociedade italiana que é o subproletariado (neste caso o romano, mas

incluindo tanto o das capitais do Sul, como o do Sul camponês), no qual se investiu com intenso

interesse na década de 1950. Agora, embora nenhum de seus problemas esteja resolvido, e as suas

condições de vida sejam praticamente as mesmas, está fora do foco de interesse. E não por razões

mesquinhas, por um frenesi da atualidade. Mas porque o interesse se deslocou por causa de uma

quantidade tão objetiva e impressionante de razões históricas e sociais, em direção a outros problemas

(o da total industrialização da Itália, em evolução para outros níveis neocapitalistas, e para o sonho em

via de realização da tecnocracia) que é natural que todos os outros problemas expirem e se apresentem

como arcaicos. (Trad. nossa)

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Mais adiante, explica esse processo de uniformizar a cultura dos

diversos países utilizando-se, como exemplo, a linguagem cinematográfica,

que é um processo singular de representação da realidade, o que para ele é

uma língua que ultrapassa limites de classes:

Le strutture della lingua del cinema si presentano dunque più che come internazionali e interclassiste, come transnazionali e transclassiste: prefigurano una possibile situazione socio linguistica di un mondo reso tendenzialmente unitario dalla completa industrializzazione dal conseguente livellamento implicante la scomparsa delle tradizioni particolaristiche e nazionali.143 (PASOLINI: 1972, p.129)

Mais uma vez ele assinala uma ameaça às tradições específicas de

cada cultura e a industrialização como causadora desse mal.

2.2.2 Da palavra escrita à palavra icônica: relendo a realidade

Como já explicitado, no início dos anos 1960, Pasolini passa do mundo

da reprodução escrita da realidade para o mundo das imagens do cinema.

Assim é possível considerar o porquê dessa aparente mudança de expressão

poética que, numa análise mais imediatista, poderia parecer uma forma de

continuidade ao seu trabalho de escritor. Porém, como ele próprio nos explica,

não havia uma vontade de continuidade, mas, sim, um desejo de alcançar uma

nova forma de expressar-se através do cinema:

Il sentire di non poter più scrivere usando la tecnica del romanzo, si è trasformato subito in me, per una specie di autoterapia incoscia, nella voglia di usare un’altra tecnica, ossia quella del cinema. L’importante era non stare senza far niente o fare negativamente. Tra la mia rinuncia a fare il romanzo e la mia decisione di fare il cinema, non c’è stata soluzione di continuità. L’ho presa come un cambiamento di tecnica. [...]

143 As estruturas da língua do cinema se apresentam mais do que internacionais e interclassistas, como

transnacionais e transclassistas: prefiguram uma possível situação sóciolinguística de um mundo

tornado tendencialmente unitário pela completa industrialização resultante do nivelamento envolvendo

o desaparecimento de tradições particularistas e nacionais. (Trad. nossa)

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103

Facendo il cinema io vivevo finalmente secondo la mia filosofia. Ecco tutto.144 (PASOLINI: 1972, p.138)

A realidade representada pelo cinema era a própria realidade, ou seja,

ele considerava que as imagens, diferentemente da metáfora na descrição de

uma personagem de romance, não poderiam senão exibir o real. Dessa forma,

o cinema não copiaria a realidade, mas expressaria “a realidade com a

realidade”:

Il cinema non evoca la realtà, come la lingua letteraria; non copia la realtà, come la pittura; non mima la realtà, come il teatro. Il cinema riproduce la realtà: immagine e suono! Riproducendo la realtà, che cosa fa il cinema? Il cinema esprime la realtà con la realtà. [...] Il cinema è la lingua scritta di tale realtà come linguaggio.145 (PASOLINI: 1972, p.139)

A Sétima Arte aparece para ele muito além do que apenas

representação; a realidade é um cinema natural:

Se si può dire che la realtà – come rappresentazione di se stessa, ossia come linguaggio – ‹‹ è un cinema in natura ›› , si può dire anche che il cinema, riproducendola, cioè divenendone il linguaggio scritto, evidenzia quello che essa è, ne sottolinea la fenomenologia. Il cinema ci fornisce dunque ‹‹ una semiologia in natura della realtà ›› [...] La realtà si esprime da sola; e che la letteratura non è altro che un mezzo per mettere in condizione la realtà di esprimersi da sola quando non è fisicamente presente. Cioè la poesia non è che una evocazione, e ciò che conta è la realtà evocata che parla da sola al lettore, come ha parlato da sola all’autore.146 (PASOLINI: 1972, p.141)

144

O sentimento de não poder mais escrever usando a técnica do romance se transformou

imediatamente em mim, por uma espécie de autoterapia inconsciente, no desejo de usar uma outra

técnica, ou seja, a do cinema. O importante não era ficar sem fazer nada ou fazer negativamente. Entre

a minha renúncia de fazer romance e minha decisão de fazer cinema, não houve uma solução de

continuidade. Foi como uma mudança de técnica. [...] Fazendo cinema eu vivia finalmente de acordo

com a minha filosofia. Isto é tudo. (Trad. nossa)

145 O cinema não evoca a realidade, como a língua literária; não copia a realidade, como a pintura, não

imita a realidade, como o teatro. O cinema reproduz a realidade: imagens e som! Reproduzindo a

realidade, o que faz o cinema? O cinema expressa a realidade com a realidade. [...] O cinema é a língua

escrita de tal realidade como linguagem. (Trad. nossa)

146 Pode-se dizer que a realidade – como representação de si mesma, ou seja, como uma linguagem –

‹‹é um cinema in natura››, também pode ser dito que o cinema, reproduzindo-a, isto é, tornando-a

linguagem escrita, evidencia o que esta é, enfatiza a fenomenologia. O cinema dá-nos, portanto, ‹‹uma

semiologia in natura da realidade›› [...] A realidade se expressa por si só; a literatura não é senão um

meio para colocar a realidade em condições de se expressar sozinha, quando ela não está fisicamente

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Durante os protestos de 1968, ocorridos em diversos países

concomitantemente, Pasolini expressou sua indignação com os caminhos que

o movimento estudantil tomava. Ele considerava que aquela massa que se

movia com reivindicações pacifistas, como o fim da Guerra do Vietnã, por

exemplo, não poderia, no caso da Itália, representar a verdadeira essência da

população mais injustiçada que verdadeiramente necessitava de atenção. Dizia

que um jovem estudante romano, que aparentemente por livre arbítrio

escolhesse lutar por ideias momentâneas não seria um verdadeiro

representante de algo novo, ou seja, esses jovens manifestantes já receberiam

uma ideologia pré-constituída pela sociedade burguesa italiana. Assim, escreve

um poema intitulado: “Il PCI ai giovani”, no qual declara sua paixão pelos filhos

dos proletários, que via encarnados na figura dos policiais que agrediram os

estudantes. Tal poema gera uma polêmica exatamente por configurar uma

aparente contradição. Pasolini é acusado de assumir uma posição favorável ao

governo, representado na força policial, contudo, ele demonstrara sensibilidade

ao perceber que os estudantes representavam a verdadeira burguesia ao

passo que os policiais eram oriundos das classes mais baixas, filhos de

proletários:

II PCI ai giovani!! È triste. La polemica contro il PCI andava fatta nella prima metà del decennio passato. Siete in ritardo, figli. E non ha nessuna importanza se allora non eravate ancora nati... Adesso i giornalisti di tutto il mondo (compresi quelli delle televisioni) vi leccano (come credo ancora si dica nel linguaggio delle Università) il culo. Io no, amici. Avete facce di figli di papà. Buona razza non mente. Avete lo stesso occhio cattivo. Siete paurosi, incerti, disperati (benissimo) ma sapete anche come essere prepotenti, ricattatori e sicuri: prerogative piccoloborghesi, amici. Quando ieri a Valle Giulia avete fatto a botte coi poliziotti, io simpatizzavo coi poliziotti!

presente. Ou seja, a poesia não é mais que uma evocação, e o que importa é a realidade evocada que

fala por si para o leitor, como falou sozinha ao autor. (Trad. nossa)

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Perché i poliziotti sono figli di poveri. Vengono da periferie, contadine o urbane che siano. Quanto a me, conosco assai bene il loro modo di esser stati bambini e ragazzi, le preziose mille lire, il padre rimasto ragazzo anche lui, a causa della miseria, che non dà autorità. La madre incallita come un facchino, o tenera, per qualche malattia, come un uccellino; i tanti fratelli, la casupola tra gli orti con la salvia rossa (in terreni altrui, lottizzati); i bassi sulle cloache; o gli appartamenti nei grandi caseggiati popolari, ecc. ecc. E poi, guardateli come li vestono: come pagliacci, con quella stoffa ruvida che puzza di rancio fureria e popolo. Peggio di tutto, naturalmente, e lo stato psicologico cui sono ridotti (per una quarantina di mille lire al mese): senza più sorriso, senza più amicizia col mondo, separati, esclusi (in una esclusione che non ha uguali); umiliati dalla perdita della qualità di uomini per quella di poliziotti (l’essere odiati fa odiare). Hanno vent’anni, la vostra età, cari e care. Siamo ovviamente d’accordo contro l’istituzione della polizia. Ma prendetevela contro la Magistratura, e vedrete! I ragazzi poliziotti che voi per sacro teppismo (di eletta tradizione risorgimentale) di figli di papà, avete bastonato, appartengono all’altra classe sociale. A Valle Giulia, ieri, si è cosi avuto un frammento di lotta di classe: e voi, amici (benché dalla parte della ragione) eravate i ricchi, mentre i poliziotti (che erano dalla parte del torto) erano i poveri. Bella vittoria, dunque, la vostra! In questi casi, ai poliziotti si danno i fiori, amici. [...] 147 (PASOLINI, 1972: p. 155)

147 O PCI aos jovens!/É triste. /A polêmica contra o PCI feita na primeira metade da década passada./

Vocês estão atrasados, meus filhos./ E não tem nenhuma importância se vocês não eram ainda nascidos.../ Agora os jornalistas do mundo inteiro (inclusive os da televisão) ficam puxando (como creio que ainda se diz na linguagem das universidades) o saco de vocês./ Eu não, amigos./ Vocês têm a face de filhos de papai. /Boa raça não mente./ Vocês têm o mesmo olhar maligno./ São medrosos, incertos, desesperados (ótimo), mas sabem como ser prepotentes, chantagistas e seguros:/

prerrogativas pequeno-burguesas, amigos./ Quando ontem no Valle Giulia, vocês brigavam com os policiais, eu simpatizava com os policiais!/ Porque os policiais são filhos de pobres. Vêm das periferias, rurais ou urbanas que sejam./ Quanto a mim, conheço muito bem o jeito deles terem sido crianças e rapazes,/ as preciosas mil liras,/ o pai que também continuou sendo um rapaz, por causa da miséria, que não confere autoridade./ A mãe calejada como um carregador, ou delicada, por alguma doença, como um passarinho;/ os tantos irmãos, o barraco entre os jardins com a salvia vermelha (em terrenos alheios, loteados), os baixos sobre os esgotos;/ ou os apartamentos em grandes conjuntos populares etc. etc./ E depois vejam como se vestem: como palhaços, com aquele pano áspero que fede a rancho,

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Apesar de longo, o poema acima merecia ser transcrito, pois nele fica

clara a posição ideológica a favor das classes menos favorecidas da

sociedade. Voltar-se contra os jovens manifestantes significou angariar a

antipatia da classe estudantil e da burguesia. Mas ele manteve-se firme em seu

propósito de apontar as desigualdades sociais, através de suas obras. E, por

considerar que a palavra escrita já não era suficiente para expressar suas

ideias, passa a fazer uso da palavra icônica.

Pier Paolo Pasolini confessou, diversas vezes, o seu amadorismo ao

começar a fazer cinema. Suas primeiras obras retratam exatamente esse

quase experimentalismo com a câmera, algo que acabou por enriquecer o seu

trabalho, pois o cinema italiano ganhou um novo modo de apresentar

personagens, cenários etc.; numa época em que o Neorrealismo perdia força

surge essa nova forma de coletar a realidade. Talvez não seja correto fazer

uma aproximação entre o cinema de Pasolini e o Neorrealismo italiano, porque

são estilos bem diferentes. Entretanto, são facilmente confundidos pelo grande

público, que busca num ou noutro semelhanças e relações comuns.

Se pensarmos em alguns aspectos típicos do Neorrealismo, como, por

exemplo, o uso de imagens em preto e branco, ou o trabalho com atores

amadores, poderemos classificar o nosso cineasta como neorrealista. Porém,

num olhar mais cuidadoso, não poderemos passar muito desses poucos

elementos. É o próprio Pasolini a explicar e desfazer esse equívoco comum

acerca de sua obra numa entrevista dada à televisão francesa, em 1966, ao

jornalista Jean-André Fieschi, num documentário intitulado Cinéastes de notre

temps: Pasolini l'Enragé. Parafraseando-o, poderíamos afirmar que são

caserna e povo./ O pior de tudo, naturalmente, é o estado psicológico ao qual são reduzidos (por umas quarenta mil liras ao mês):/ sem sorriso, sem amizade com o mundo, separados, excluídos (numa exclusão que não tem igual);/ humilhados pela perda da qualidade de homens em troca da de policiais (ser odiado faz odiar)./ Eles têm vinte anos, a idade de vocês, meus caros e minhas caras./ Estamos obviamente de acordo contra a instituição da polícia./ Mas voltem-se contra a Magistratura, e vocês verão!/ Os jovens policiais que vocês por sagrado vandalismo (de nobre tradição herdada do Risorgimento) de filhos de papai, espancaram, pertencem à outra classe social./ No Valle Giulia, ontem, tivemos assim um fragmento de luta de classes: e vocês, amigos (embora do lado da razão) eram os ricos, enquanto os policiais (que estavam do lado errado) eram os pobres./ Bela vitória, portanto, a de vocês! Nestes casos, aos policiais se dão flores, meus amigos. (Trad. nossa)

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profundas as diferenças entre um filme neorrealista e o seu cinema. Segundo

ele, o Neorrealismo tem um grande percentual de planos-sequência, planos

gerais ou planos médios: as cenas em primeiro plano são poucas e existem em

função da vivacidade expressiva. A característica desse fenômeno estilístico é

a esperança no futuro, oriunda da revolução cultural marxista nascida da

Resistência, que justifica o amor ao homem médio italiano. Nos filmes de

Pasolini não existem planos-sequência; os planos médios ou gerais são

poucos; há, sim, a predominância dos primeiros-planos, não em função da

expressividade, para dar um sentido de sacralidade. A função não é a da

esperança, mas a do desespero. Não há o amor pelo homem médio, para

quem o autor expressava o seu repúdio. Define esse homem médio no curta-

metragem La Ricotta, por exemplo, usando a fala da personagem do diretor de

cinema, que é interpretado por Orson Welles:

E ne è fiero! Fiero di essere un uomo medio! Un uomo massa. Così la vogliono i suoi padroni. Ma lei non sa cos’è un uomo medio? È un mostro. Un pericoloso delinquente. Conformista! Colonialista! Razzista! Schiavista! 148 (PASOLINI, 1989: p.475)

A paixão de Pasolini voltava-se, sim, pelo herói ou anti-herói, por vezes,

oriundos do subproletariado.

Continuamos a olhar a produção poética de Pasolini a partir do livro

Empirismo eretico. Notamos, também, uma exaustiva tentativa de teorizar

conceitos acerca dos mecanismos de criação cinematográfica. Escreve uma

série de considerações, que buscavam exemplificar ou apenas repensar os

rumos da Sétima Arte, durante os anos 1960. Observa que, enquanto a língua

instrumental traz consigo uma grande elaboração, fruto de séculos de história,

a linguagem visual que está na base do cinema ainda se apresentaria como

“pré-gramatical ou pré-morfológica”. Assim, para um escritor completar sua

operação de criação bastaria consultar o seu dicionário interno repleto de

historicidade, que cada indivíduo possui, e fazer o uso da forma considerada

148

E é orgulhoso! Orgulhoso de ser um homem médio! Um homem massa. Assim querem os seus

patrões. Mas o senhor não sabe o que um homem médio? É um monstro. Um criminoso perigoso.

Conformista! Colonialista! Racista! Escravista!

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adequada. No entanto, para o cinema essa operação seria bem mais

complicada, pois não existe um dicionário de imagens já concebidas:

Non esiste un dizionario delle immagini. Non c’è nessuna immagine incasellata e pronta per l’uso. Se per caso volessimo immaginare un dizionario delle immagine dovremmo immaginare un dizionario infinito, come infinito continua a restare il dizionario delle parole possibili. 149 (PASOLINI, 1972: p. 173)

Com relação aos objetos, que serão representados na tela, mostra-nos

que, apesar da não existência de um dicionário de imagens, eles trazem uma

história simbólica comum a todos e uma memória visual que lhes garante o

direito de uso pelo autor cinematográfico, assim como os neologismos

poderiam ser usados na linguagem poética.

Non esistono dunque, in realtà, degli ‹‹oggetti brutti››: tutti sono abbastanza significanti in natura per diventare segni simbolici. Ecco perché è lecita l’operazione dell’autore cinematografico: egli sceglie una serie di oggetti o cose o paesaggi o persone come sintagmi (segno del linguaggio simbolico) che, se hanno una storia grammaticale storica inventata in quel momento – come in una specie di happening dominato dalla idea della scelta e del montaggio – hanno però una storia pre-grammaticale già lunga e intensa.150 (PASOLINI, 1972: p. 175)

Pasolini considera, também, que no cinema não existiria a possibilidade

de o autor utilizar-se de termos abstratos, porque essa seria uma das

“diferenças principais entre a obra cinematográfica e a literária”, já que as

“imagens são elementos concretos” e o “cinema é uma linguagem artística e

não filosófica”:

149 Não existe um dicionário de imagens. Não há nenhuma imagem rotulada e pronta para uso. Se por

acaso quiséssemos imaginar um dicionário de imagens deveríamos imaginar um dicionário infinito,

como infinito continua a ser o dicionário das palavras possíveis. (Trad. nossa)

150

Não há, portanto, na realidade, ‹‹objetos feios››: todos são significativos o suficiente na natureza

para se tornar sinais simbólicos. Eis porque é legítima a operação do autor cinematográfico ele escolhe

uma série de objetos ou coisas ou pessoas ou paisagens como sintagmas ( sinal da linguagem simbólica)

que, se têm uma história gramatical histórica inventada naquele momento – como uma espécie de

happening dominado pela ideia de escolha e de edição – no entanto, têm uma história pré-gramatical já

longa e intensa. (Trad. nossa)

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Questa è probabilmente la differenza principe tra l’opera letteraria e l’opera cinematografica (se importa fare tale confronto). L’istituzione linguistica, o grammaticale, dell’autore cinematografico è constituita da immagini: e le immagini sono sempre concrete, mai astrastte (è possibile solo in una previsione millenaristica concepire immagini-simbolo che subiscano un processo simile a quello delle parole, o almeno delle radicali, in origine concrete, che nelle fissazioni dell’uso, sono diventate astratte). Perciò per ora il cinema è un linguaggio artistico e non filosofico. Può essere parabola, mai espressione concettuale diretta.151 (PASOLINI, 1972: p. 176)

Em uma outra observação, afirma que as escolhas de um cineasta nas

operações que deve fazer com as imagens não podem ter a mesma

“objetividade da escolha de um vocabulário como aquele já instituído pelas

palavras”, pois esse último comporta toda uma tradição diacrônica. Também, a

língua literária pode ser dividida em prosa e poesia enquanto que com as

imagens pode-se fazer “apenas cinema”:

Anche la lingua letteraria è naturalmente fondata su una doppia natura: ma in essa le due nature sono separabili: c’è un ‹‹linguaggio della poesia››, e un ‹‹linguaggio della prosa››, talmente differenziati tra loro da essere in realtà diacronici, da seguire due diverse storie.Attraverso le parole io posso fare, compiendo due operazioni diverse, una ‹‹poesia›› o un ‹‹racconto››. Attraverso le immagini, almeno finora, io posso fare soltanto del cinema (che soltanto per sfumature può tendere a una maggiore o minore poeticità o a una maggiore o minore prosaicità: questo in teoria. In pratica, come abbiamo visto, si è rapidamente costituita una tradizione di ‹‹lingua della prosa cinematografica narrativa››).152 (PASOLINI, 1972: p. 178)

151

Esta é provavelmente a diferença principal entre obra literária e obra cinematográfica (se é

importante fazer tal comparação). A instituição linguística, ou gramatical, do autor cinematográfico é

constituída por imagens: e as imagens são sempre concretas, nunca abstratas (é possível apenas numa

previsão milenarística conceber imagens-símbolos que passem por um processo semelhante ao das

palavras, ou pelo menos de radicais, em origem concreta, que nas fixações do uso, tornaram-se

abstratas). Então, por enquanto, o cinema é uma linguagem artística e não filosófica. Pode ser parábola,

nunca expressão conceitual direta. (Trad. nossa)

152

A língua literária, também é naturalmente fundada sobre uma natureza dupla: mas estas duas

naturezas são separáveis: há uma ‹‹linguagem da poesia›› e uma ‹‹linguagem da prosa››, assim

diferenciadas entre elas para serem na realidade diacrônicas, para seguir duas histórias diferentes.

Através das palavras eu posso fazer, realizando duas operações diferentes, uma ‹‹poesia›› ou uma

‹‹narrativa››. Através das imagens, pelo menos até agora, só posso fazer cinema (que apenas para

esboçar pode tender a uma maior ou menor poeticidade ou maior ou menor prosaicidade: Isto na

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No cinema seria, portanto, mais difícil distinguir a “língua da prosa” e a

“língua da poesia”, pois, na época em que viveu não se havia definido com

objetividade a “língua do cinema”. O cinema, em sua opinião, seria poesia,

“cinema de Poesia”

O “cinema de poesia”, assim definido por Pasolini, tem como uma de

suas características o uso da “Soggettiva Libera Indiretta” – retomando o seu

discurso, quando teoriza sobre este mecanismo na língua como “Discorso

Libero Indiretto” –, que é o momento no qual o cineasta assume a identidade

da personagem, ou seja, a sua visão da realidade, as suas especificidades

linguísticas, seu pensamento. Dessa forma, a câmera se identifica também

com a visão de mundo da personagem, como lê-se abaixo, permitindo ao autor

criar com mais liberdade estilística:

Il ‹‹cinema di poesia›› come si presenta a qualche anno dalla sua nascita – ha dunque in comune la caratteristica di produrre film dalla doppia natura. Il film che si vede e si accepisce normalmente è una ‹‹soggettiva libera indiretta››, magari irregolare e aprossimativa molto libera, insomma: dovuta al fatto che l’autore si vale dello ‹‹stato d’animo psicologico dominante nel film›› – che è quello di un protagonista malato, non normale – per farne una continua mimesis – che gli consente molta libertà stilistica anomala e provocatoria.153 (PASOLINI, 1972: p. 187)

Pasolini defende que o naturalismo da língua da prosa encontra uma

limitação na criação naturalística do cinema, assim, podemos entender que,

com uma única imagem, o cinema é capaz de apresentar um rosto com todos

os seus detalhes. Já na língua da poesia, que não é por si só natural, retrataria

essa mesma imagem com metáforas, porque a construção de um vocabulário

de comunicação através da descrição de imagens necessita de invenções da

teoria; na prática, como vimos, se constituiu rapidamente uma tradição de ‹‹língua da prosa

cinematográfica narrativa››). (Trad. nossa)

153

O ‹‹cinema de poesia›› – como se apresenta há alguns anos, desde seu nascimento – tem, portanto,

em comum a característica de produzir filmes da dupla natureza. O filme que se vê e se entende

normalmente é uma ‹‹soggettiva libera indiretta››, talvez irregular e aproximativa muito livre, em suma:

devido ao fato de que o autor se vale do ‹‹estado psicológico dominante no filme›› - que é aquele de um

protagonista doente, não normal - para fazer uma mímesis contínua - o que permite a ele muita

liberdade de estilo incomum e provocante. (Trad. nossa)

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própria imagem. Para ele, a poesia dos filmes clássicos não era obtida

utilizando-se da “linguagem específica da poesia”; assim, “não eram poesias,

mas narrativas”. A poeticidade desses filmes estaria em algo que ele denomina

de “interno”.

La formazione di una lingua della ‹‹poesia cinematografica›› implica dunque la possibilità di fare, al contrario, degli pseudo-racconti, scritti con la lingua della poesia: la possibilità insomma, di una prosa d’arte, di una serie di pagine liriche, la cui soggettività è assicurata dall’uso pretestuale della ‹‹soggettiva libera indiretta››: e il cui vero protagonista è lo stile.154 (PASOLINI, 1972: p. 189)

Podemos também notar que o escritor estava ciente de que a sua

passagem pelo mundo da escrita de romances e poesias representara uma

nova etapa na sua vida de expressão artística, que pouco se assemelhava com

o que ele havia feito antes, e, na verdade, o cinema era visto como uma “outra

língua”: “Ciò che non è arbitrario è invece dire che il cinema è fondato su un

‹‹sistema di segni›› diverso da quello scritto parlato, ossia che il cinema è

un’altra lingua.” 155 (PASOLINI, 1972: p. 197).

Retomando a questão do naturalismo no cinema, Pasolini utiliza-se do

exemplo da representação da imagem de um carregador que, para ser

reproduzido, bastava apenas que fosse filmado um carregador real. Assim,

esse objeto seria reconhecido pelo público como real, independentemente de

outros aspectos como falas artificiais, porque ele é um elemento da realidade,

e, logo, seria um elemento naturalístico. O escritor italiano utiliza-se desse

exemplo para afirmar que a burguesia de seu país se incomodava com esse

naturalismo, já que temiam a realidade, como Pasolini a define:

Per realtà intendo dire il mondo fisico e sociale in cui si vive, qualunque questo sia. Chi si esprime, attraverso qualsiasi

154

A formação de uma língua da ‹‹poesia cinematográfica›› implica, portanto, a possibilidade de fazer

ao contrário, das pseudonarrativas, escritas com a língua da poesia: a possibilidade, em suma, de uma

prosa de arte, de uma série de páginas líricas, cuja subjetividade é assegurada pelo uso do pretextual da

‹‹soggettiva libera indiretta››: cujo verdadeiro protagonista é o estilo. (Trad. nossa)

155

O que não é arbitrário é dizer que o cinema é baseado em um ‹‹sistema de signos›› diferente daquele

escrito falado, o que significa que o cinema é uma outra língua. (Trad. nossa)

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sistema di segni, tuttavia non può interpretare tale realtà da evocarsi (o attraverso simboli di natura segnica o attraverso simboli di natura figurale) che storicamente, e quindi realisticamente.156 (PASOLINI, 1972: p. 253)

A sua visão se voltava, portanto, para o preconceito burguês em aceitar

os elementos naturalísticos, pois a imagem de um carregador representa uma

visão estética burguesa da realidade e, parafraseando-o, não importava que

fosse uma imagem que lhe agradasse ou representasse sua filosofia, já que o

cinema como técnica audiovisual representa apenas a realidade.

Em relação ao enquadramento, podemos pensar que os elementos que

o compõem falarão sempre por si, independentemente da vontade do diretor.

Assim, mesmo num fundo branco com a imagem de um único elemento não

havia a possibilidade de a imagem exercer total autonomia, ou seja, a vontade

expressiva de criação fica condicionada a esses elementos mínimos que

compõem o panorama geral ou campo visual selecionado. Pasolini defende a

tese de que a unidade mínima do cinema não é a imagem vista como

enquadramento, porque não existe nada composto apenas de um elemento:

Non è vero che l’unita minima del cinema sia l’immagine, quando per immagine si intenda quel ‹‹colpo d’occhio›› che é l’inquadratura [...] Credo che non possa esistere una inquadratura composta da un solo oggetto: perché non c’è un oggetto, in natura, composto solo di se stesso, e che non sia ulteriormente divisibile o scomponibile, o che almeno non presenti di sé diverse ‹‹forme››.157 (PASOLINI, 1972: p. 206)

Explica que esses objetos que compõem o ambiente do enquadramento

são reais e, assim, interferem de maneira drástica no resultado final da imagem

que o cineasta queria exprimir. Logo, se imaginássemos que uma ideia de

156 Por realidade pretendo dizer o mundo físico e social em que vivemos, seja ele qual for. Quem se

expressa, através de qualquer sistema de signos, todavia não pode interpretar tal realidade para evocar-

se (através de símbolos de natureza de signos ou através de símbolos de natureza figural)

historicamente, por conseguinte, realisticamente. (Trad. nossa)

157 Não é verdade que a unidade mínima do cinema seja a imagem, quando por imagem se entenda

aquele ‹‹relance›› que é o enquadramento [...] Acredito que não possa haver um enquadramento

composto por um único objeto: porque não há nenhum objeto, na natureza, composto somente por si

mesmo, e que não seja divisível ou decomponível, ou pelo menos não apresente diferentes ‹‹formas››.

(Trad. nossa)

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enfoque estivesse numa personagem apenas, esse individuo seria o centro do

enquadramento; contudo, os objetos comportados no cenário iriam, cada um

deles, informar algo para o espectador. Pasolini afirma que poderia incluir ou

excluir esses “objetos da realidade”, mas a realidade desta “língua do cinema”

permanece:

Per quanto l’inquadratura sia dunque in dettaglio, essa è sempre composta di vari oggetti o forme o atti reali. Se io inquadro il primo piano di un uomo che parla, e dietro intravedo dei libri, una lavagna, un pezzo di carta geografica ecc., non posso dire che tale inquadratura sia l’unità minima del mio discorso cinematografico: perché se io escludo o l’uno o l’altro degli oggetti reali dell’inquadratura, cambio l’inquadratura in quanto significante. Ora, posso certo, se voglio, cambiare l’inquadratura. Non posso però cambiare gli oggetti che la compogono, perché essi sono oggetti della realtà. Posso escluderli o includerli, ecco tutto. Ma sia che io li includa o che li escluda, ho con essi un rapporto assolutamente particolare e condizionante. Scandaloso dal punto di vista linguistico. Perché nella lingua che sto usando con l’inquadrare quest’‹‹uomo che parla›› – la lingua del cinema – la realtà, nei suoi oggetti e forme reali particolari, permane, è un momento stesso di quella lingua.158 (PASOLINI, 1972: p. 206)

A comparação do cinema com as artes figurativas é algo equivocado,

em sua opinião, pois essa semelhança está apenas no fato de ambas

reproduzirem a realidade, com meios próprios:

A questo proposito vorrei ricordare che l’analogia del cinema con le arti figurative, è sempre stata una nozione equivoca. La composizione del mondo, in pieno e vuoti ecc. davanti alla macchina da presa, ha qualche analogia con la pittura solo nel

158

À medida que o enquadramento esteja em detalhe, este é sempre composto de vários objetos ou

formas, ou atos reais.

Se eu enquadro o primeiro plano de um homem que fala, e atrás, entrevejo alguns livros, uma lousa, um

pedaço de um mapa etc. não posso dizer que tal enquadramento seja a unidade mínima de meu

discurso cinematográfico, porque se eu excluir um ou outro dos objetos reais do enquadramento, mudo

o enquadramento enquanto significante.

Agora, certamente posso, se quiser, mudar o enquadramento. Mas eu não posso alterar os itens que o

compõem porque eles são os objetos da realidade. Posso excluir ou incluí-los, isso é tudo. Mas se eu

incluí-los ou excluí-los, tenho com eles uma relação absolutamente particular e condicionante.

Escandalosa do ponto de vista linguístico. Porque na língua que eu estou usando com o enquadrar este

‹‹homem que fala›› - a língua do cinema - a realidade, nos seus objetos e formas reais particulares,

permanece, é também um momento próprio daquela língua. (Trad. nossa)

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senso che sia il cinema che la pittura ‹‹riproducono›› la realtà, con mezzi a loro propri. E questa riproduzione della realtà dà al cinema – e forse anche alla pittura – la caratteristica di quella lingua abnorme e particolare che è una lingua solo scritta ‹‹la lingua scritta dell’azione››. Ci sono dunque alcuni elementi – chiamiamoli compositivi – che sono nella matrice sia del cinema che della pittura: è a quelli che il cinema si riferisce – solo indirettamente, quindi, e per decisione stilistica dell’autore, attraverso le esperienze già fatte della pittura.159 (PASOLINI, 1972: p. 212)

Os elementos compositivos podem circular entre as duas obras, contudo

as comparações estariam limitadas a isso, pois Pasolini ressalta que o cinema

conta com a sonorização, o que o torna uma obra audiovisual. O cinema mudo

seria o verdadeiro “cinema de arte”, portaria uma limitação ligada à história da

estilística do cinema. O mudo, depois da inserção do som, serviria como uma

escolha de estilo.

Como já dito, o cinema é definido como “a língua escrita da realidade”,

um cinema natural que, de fato, é uma linguagem. Assim, podemos pensar no

nosso cotidiano, que é sempre seguido por diversos olhares, o que Pasolini

compara a diferentes câmeras, que registrariam nossa realidade sob diferentes

ângulos, e um anularia o outro, pois para “se reproduzir a realidade através da

sua evocação devemos obrigatoriamente interrompê-la”, logo o cinema é um

contínuo plano-sequência. Abaixo lemos a sua confissão de amor à realidade:

Se il cinema altro non è dunque che la lingua scritta della realtà (che si manisfesta sempre in azioni), significa che non è né arbitrario né simbolico: e rappresenta dunque la realtà attraverso la realtà. In concreto, attraverso gli oggetti della realtà che una macchina da presa, momento per momento, riproduce [...]. Ecco, a questo punto si può individuare il rapporto della mia nozione grammaticale del cinema con quella che è, o almeno io credo essere, la mia filosofia, o il mio modo di vivere: che mi sembra altro, poi, che un allucinato, infantile e

159

A este respeito, gostaria de lembrar que a analogia do cinema com as artes visuais, sempre foi uma

noção equivoca. A composição do mundo, em cheio e vazio etc. frente da filmadora, tem alguma

analogia com a pintura somente no sentido de que tanto o cinema quanto a pintura ‹‹reproduzem›› a

realidade, com os seus próprios meios. E esta reprodução da realidade dá ao cinema - e talvez até

mesmo à pintura - a característica daquela língua anormal e particular é uma língua somente escrita ‹‹a

língua escrita da ação››. Então, existem alguns elementos - os chamamos compositivos - que estão na

matriz tanto no cinema quanto na pintura: são a estes que o cinema se refere - apenas indiretamente,

assim, e por decisão estilística do autor, através das experiências já feitas da pintura. (Trad. nossa)

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pragmatico amore per la realtà. Religioso in quanto si fonda in qualche modo, per analogia, con una sorta di immenso feticismo sessuale. Il mondo non sembra essere, per me, che un insiemi di padri e di madri, verso cui ho un trasporto totale, fatto di rispetto venerante, e di bisogno di violare tale rispetto venerante attraverso dissacrazioni anche violente e scandalose.160 (PASOLINI, 1972: p. 233)

Considerando-se as afirmativas anteriores, ele faz observações sobre a

técnica do plano-sequência. Usa o exemplo do assassinato de Kennedy, que

fora filmado. Para o escritor, esse evento marca o exemplo típico do plano-

sequência, pois, registrado por um espectador, de um ângulo qualquer, sem

premeditação, representa uma verdadeira visão subjetiva já que vemos a morte

do presidente americano através de um único olhar. Para ele, faltam diversas

perspectivas, como a visão do assassino ou da esposa de Kennedy etc. Assim,

se fizéssemos todos os outros planos-sequência, estaríamos diante de outras

subjetivas, que refletem a realidade vista de diferentes ângulos. Logo, cada um

desses representaria a realidade simultaneamente e, se uníssemos todas

essas subjetivas, faríamos uma montagem, o que anularia a realidade, visto

que criaríamos uma ambiguidade ao colocar em evidência a relatividade do

presente.

La soggettiva è dunque il massimo limite realistico di ogni tecnica audiovisiva. Non è concepibile ‹‹vedere e sentire›› la realtà nel suo succedere e se non da un solo angolo visuale: e questo angolo visuale è sempre quello di un soggetto che vede e sente. Questo soggetto è un soggetto in carne ed ossa, perché anche se noi, in un film di finzione, scegliamo un punto di vista ideale, e quindi in qualche modo astratto e non naturalistico, ecco che esso diviene realistico, e, al limite, naturalistico, nel momento in cui piazziamo in quel punto di vista una macchina da presa e un magnetofono: esso risulterà

160

Se o cinema não é outro que a língua escrita da realidade (que se manifesta sempre em ações),

significa que não é nem arbitrário nem simbólico: e representa a realidade através da realidade. Em

termos concretos, através dos objetos da realidade que uma câmera, momento a momento, reproduz

[...]. Portanto, neste ponto se pode identificar a relação da minha noção gramatical de cinema com

aquela que é, ou pelo menos eu acredito ser, a minha filosofia, ou o meu modo de vida: que me parece

mais que um alucinado, infantil e pragmático amor pela realidade. Religioso porque é baseado em

alguma forma, por analogia, com uma espécie de fetichismo sexual imenso. O mundo não parece ser,

para mim, que um conjunto de pais e mães, aos quais eu tenho uma inclinação total, feita de respeito

reverente, e de necessidade de violar tal respeito reverente através de profanações mesmo violentas e

escandalosas. (Trad. nossa)

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come qualcosa di visto e udito da un soggetto in carne e ossa (cioè con occhi e orecchie).161 (PASOLINI, 1972: p. 241)

Fica patente que a ideologia expressa por Pasolini nos diversos campos

artísticos manifesta-se diretamente em suas obras. Ele não se sentia

confortável no mundo da burguesia italiana da metade do século XX, mas

assumiu a sua condição social. Assim, considerava que vivia numa sociedade

estereotipada e falsa, responsável por excluir os mais humildes a zonas

periféricas das cidades, como a borgata romana, que ele considerava uma

espécie de lager construído pelos fascistas.

Pasolini observou também que seu país passava por uma mudança

antropológica profunda, que eliminava a riqueza das diversidades culturais até

então existentes. A denominada homologação da cultura, como já dito, foi

duramente criticada em especial na questão linguística, pois ele via uma

grande perda ao se forçar a massificação do italiano literário ou da tecnologia a

toda população da península. Assim, durante os anos 1960, buscou outras

formas de expressão, principalmente no cinema, porque percebera que aquele

universo de aparente pureza, anônimo e popular estava desaparecendo com o

crescimento econômico que nivelava todos numa mesma pátina.

Pier Paolo Pasolini voltou seu olhar para periferia romana não por acaso.

Sua vontade em representar o mundo dos esquecidos pelo sistema capitalista

italiano surge a partir da estada forçada na borgata de Roma, no início dos

anos 1950. É sabido que sua ida para a Cidade Eterna deveu-se a fatores

pessoais, mas é lá, mesmo diante de sua trajetória pessoal de pobreza e

dificuldades inúmeras, que ele encontra a sua fonte de inspiração, que

determinará todo o curso de suas produções futuras.

161

A subjetiva é, portanto, o limite mais realista de cada tecnologia audiovisual. Não é concebível ‹‹ver e

sentir›› a realidade no seu suceder e senão apenas de um único ângulo visual: e este ângulo de visão é

sempre aquele de uma pessoa que vê e ouve. Esta pessoa é uma pessoa de carne e osso, porque mesmo

se nós, que, num filme de ficção, escolhemos um ponto de vista ideal, e então de alguma forma abstrato

e não naturalístico, eis que este torna-se realista, e, no limite, naturalístico, no momento no qual

colocamos naquele ponto de vista uma câmera e um gravador: este resultará como algo de visto e

ouvido por uma pessoa em carne e osso (ou seja, com olhos e ouvidos). (Trad. nossa)

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Imaginar as borgate como um lugar de excluídos pode parecer um senso

comum, contudo nem sempre todos acreditam que nesses locais possam

existir tantas dificuldades simples de sobrevivência. Primeiramente, a distância

com o grande centro torna o subúrbio um lugar de difícil acesso para as

camadas dominantes economicamente, além do pouco interesse existente este

fato cria uma situação de comodismo diante do universo dos excluídos. Se não

há acesso, o desconhecimento pode imperar ajudando a gerar uma visão

distorcida acerca das minorias.

A periferia romana do pós-guerra era composta por migrantes de

diversas regiões pobres da Itália, principalmente oriundos do Sul, como os

napolitanos, sicilianos etc. Um povo que trazia consigo a esperança de uma

oportunidade, de melhoria nas condições de vida. Vimos no Brasil semelhante

processo de migração com os retirantes nordestinos, principalmente, que

vieram em busca de sobrevivência nas grandes capitais do sudeste brasileiro.

Podemos considerar esse mecanismo como algo recorrente nas grandes

economias ocidentais da segunda metade do século XX, que sofreram com o

mesmo modelo de industrialização, o qual exigira uma grande mão-de-obra

com pouca especialização inicialmente. Não foi exclusividade da Itália a

migração dentro do próprio território. O fenômeno do crescimento em

determinados pólos de riquezas como Roma, Milão ou Turim fez inflar regiões

ao redor dos grandes centros, criando o cenário decadente acima explicitado.

O movimento de ida e volta para o centro retratado nas obras de Pasolini era

uma questão de sobrevivência, pois, imigrar para o centro (de Roma) era a

única possibilidade de muitos encontrarem um pedaço de pão. Na borgata não

havia nem o básico.

Esses migrantes eram fundamentalmente falantes dialetais com pouco

ou quase nenhum estudo e ocupam o entorno de Roma. Surgem assim as

borgate, ou seja, um aglomerado de pessoas ao redor de Roma cria uma

região marcada pelo improviso nas construções, com barracas provisórias ou

ocupando prédios em ruínas. Esse povo buscava alguma melhoria de vida ou

simplesmente a própria sobrevivência, como já dito; a rotina era marcada pelo

expediente, ou seja, um dia de cada vez sem o direito a sonhar com futuro

diferente. Eram abandonados e esquecidos pelo governo e, principalmente,

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pela parte mais afortunada da sociedade italiana, que demonstrara

desinteresse pelo que acontecia nas partes periféricas da capital italiana; a

burguesia não aceitava a integração com os mais humildes, porque estes

representavam um passado agrário e pobre do qual o povo itálico tentava se

distanciar cada vez mais em direção a uma economia mais rica.

Os atores recrutados por Pasolini para as filmagens de seu primeiro

filme, principalmente, eram oriundos do próprio ambiente da periferia romana.

O ator Franco Citti, em uma entrevista, afirmou que esses atores

representavam a verdade daquele local, pois eram ladrões que roubavam

comida para sobreviver. Na sua visão, apesar de roubarem, eram inocentes, ou

seja, por furtarem frutas, por exemplo, para saciar a fome, estes não

representariam verdadeiramente um marginal, porque não roubavam um

banco, por exemplo. Sua opinão nos faz repensar o valor que damos ao furto

nas sociedades modernas ocidentais. Se considerarmos a visão de Citti,

aceitaremos que as personagens de Accattone ou de Una Vita violenta não são

criminosas de fato, mas apenas vítimas da exclusão econômica e

desesperadas por causa da fome. Esse é um olhar idealizado, pelo qual numa

análise mais apaixonada, que Pasolini nos queria passar, somos levados, por

humanidade, a assumir o discurso de inocência dos moradores da borgata.

Contudo, devemos, por força da racionalidade e do respeito às leis, entender

que, apesar da aparente pureza dessas personagens, elas eram delinquentes

de um mundo degradado pelas injustiças do capitalismo italiano. Não nos cabe

juízo de valor; devemos, somente, evidenciar que a mensagem da literatura ou

do cinema de Pasolini reflete diretamente seu ideal de mundo e realidade.

Os italianos lamentavam a riqueza passada, a história grandiosa do

Império Romano e a do Renascimento, numa época em que deixaram de ser o

centro do mundo, se assim podemos dizer. Esses cidadãos se recusavam a

mostrar para o planeta seus problemas sociais. Como a Cidade Eterna, depois

de tantos séculos de poder, se apresentava assim tão decadente e injusta?

Esta talvez fosse uma questão que atormentasse toda a Itália. O preconceito

classista tem suas raízes exatamente nesse passado glorioso que fez da

pequena península europeia o centro da cultura ocidental. E a burguesia

decadente buscava essa glória não mais existente. Partindo desse ideal de

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superioridade, é fácil compreender o porquê da dificuldade em se aceitar uma

população analfabeta e pobre inundando a antiga capital do Império. Se, no

passado, todos os caminhos levavam a Roma, no século XX diante de tantas

mudanças sociais, os caminhos continuavam levando o povo a Roma, contudo,

agora não só a esta cidade e sim a todas aquelas que poderiam oferecer um

futuro melhor, do ponto de vista da sobrevivência.

Pasolini pode ser considerado um poeta de esquerda, desde o seu

ativismo no Partido Comunista Italiano até o fim de sua vida com as críticas

políticas e sociais na década de 1970. Suas poesias eram “decadentes”, no

sentido que valorizavam uma forma de vida que se perdia, como nos versos

escritos em friulano, que intencionavam resgatar as tradições perdidas de suas

próprias origens familiares. Poesia nunca poderia ser uma mercadoria, pois é

algo inconsumível e, assim, escrever versos surge como uma forma de

protesto contra o mundo consumista e de massa.

Seu primeiro livro é de poemas, Poesie a Casarsa (1942), é seguido de

outras obras dedicadas à poesia. Produzir em dialeto, mesmo que idealizado,

era uma forma de condenar o regime de governo fascista o qual não queria

uma Itália que falasse dialetos, um país de camponeses e operários.

Os anos 1940 marcam a grande produção de Pasolini em poesia. Nesse

período, ao assistir os filmes neorrealistas, ele começa a investir na produção

em prosa, ou seja, é a Sétima Arte que instiga no poeta quase anônimo o

interesse naquilo que o levaria futuramente ao seu primeiro romance de

sucesso, em 1955, Ragazzi di vita (Meninos da vida). Em Roma, nos anos

1950, Pasolini desperta para um novo mundo, muda de ambiente, se

enriquece, e lá absorverá toda a inspiração para os seguintes livros, como já foi

dito.

O mundo degradado das periferias romanas se espelha nas grandes

cidades, em diversos continentes ao ponto de parecerem tão próximos. No

Brasil, esse universo de miséria e degradação não difere muito daquilo que

Pasolini denunciava em sua época; vemos um bom exemplo no filme de Hector

Babenco, Pixote a lei do mais fraco (1981), o qual narra as atrocidades

cometidas por funcionários, da extinta FEBEM, nos delinquentes juvenis

detidos. Naquela instituição, esse universo de violência e desesperanças se

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aproxima ao mostrado pelo intelectual italiano considerando que as histórias de

pequenos delitos, violência etc. são questões universais. Uma das cenas mais

famosas do citado filme brasileiro se passa num pôr-do-sol, no Arpoador,

quando três meninos fazem um balanço de suas vidas, após terem fugido de

seus algozes. Nesse ambiente, a personagem Lilica pensa que logo

completaria 18 anos e não poderia cometer mais crimes, pois atingiria a

maioridade e, se interroga: “O que pode esperar uma bicha... da vida?”, logo,

Pixote responde: “Nada, Lilica.” Assim, é possível compreender que o mesmo

ambiente fechado e sem saída que encontramos nos romances e filmes de

Pasolini se repete aqui, perto de nós. A simples resposta do menino diz tudo

que precisamos saber sobre o que lhes reserva o futuro: nada. Ou seja, não há

esperanças. A resignação é o ponto chave de um mundo fechado em si

mesmo, do qual não se tem como escapar.

Também, a exemplo de Pasolini, o cineasta Hector Babenco escolheu

para representar a personagem Pixote um menino da classe dos excluídos,

Fernando Ramos da Silva que, lamentavelmente, não soube inserir-se nas

regras da sociedade e, apesar do êxito obtido pelo filme, voltou à sua vida de

sempre, num ambiente de total miséria. Chegou a tentar a carreira de ator,

ingressando em uma famosa rede de televisão, mas acabou demitido por não

conseguir decorar os textos que lhe eram atribuídos, porque era semi-

analfabeto. Voltou à criminalidade e acabou assassinado por policiais, em

1987.

Convém lembrar que o mundo marginalizado na poética de Pasolini é

representado como sendo o lugar da “pureza primordial”, do “instinto primeiro”.

Ou seja, o lugar onde poderiam ser encontradas relações interpessoais

verdadeiras, sem influências do neocapitalismo, um lugar do passado.

O lamento do passado talvez seja um dos pontos chaves para se

compreender a produção poética de Pasolini. É noto o seu amor pelo arcaico,

no sentido das tradições mais primitivas da cultura humana, porque a tradição

e valores sociais mais recentes, como aqueles da classe dominante, não lhe

agradavam; de certa forma, expressava o ódio pela burguesia e suas crenças

de dominação e estabilidade. Esse passado que o escritor tanto buscava

valorizar esteve presente como uma sistemática procura em suas obras. Ele só

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deixa, aparentemente, esse universo nos seus últimos anos e luta contra a

burguesia, quando percebe que o processo de “homologação” da cultura já era

um fato consumado. A partir de então, passa a expressar a falta de esperanças

na sociedade italiana.

Pasolini deixou uma polêmica reflexão sobre as dinâmicas políticas,

sociais e sexuais na modernidade onde o corpo passa também a ser um

produto de mero consumo, desprezível e descartável.

Retomando à sua relação com o passado, notamos que o seu lamento

da cultura que se perdia surge também com o fascínio pela capital italiana e a

valorização dos falantes dialetais e humildes. Contudo, com o passar das

décadas e o processo de transformação econômica italiano, surge em Pasolini

o descrédito na sua própria nação, fato que o leva a voltar-se a culturas que

considerava ainda puras, ou seja, não contaminadas pelo consumismo. O

Terceiro Mundo passa a ser um novo objeto de admiração, em particular a

África, região na qual percebe a autenticidade camponesa e o poder

revolucionário que primeiramente buscou na região do Friuli e, depois, no

subproletariado romano.

A África para Pasolini é uma reserva de contradições irreconciliáveis,

que culminam em confrontos, nas ditaduras, nos massacres. Um lugar onde o

colonialismo não tinha sido capaz, até então, de eliminar a vida tribal e as

tradições primitivas. O seu sonho continuou até ele perceber que o Terceiro

Mundo nada mais era que uma espécie de continuação das periferias das

grandes cidades europeias, quando as culturas se aproximam e se tornam

quase que idênticas. Na atualidade, é difícil discernir entre imagens de jovens

ou paisagens das periferias ao redor do mundo. Quase tudo se confunde e não

sabemos se observamos a África, a Ásia ou as Américas. O movimento de

imigração é inverso, se, no passado, foram os europeus que invadiram o

continente africano em busca de riquezas, hoje são os africanos que invadem a

Europa. Assim, o processo de homologação cultural ganha cada vez mais força

em direção a um mundo universal, no qual as diferenças se perdem.

Observando os barracos, o calor e a poeira das periferias das grandes

cidades brasileiras, por exemplo, não torna-se complicado imaginar o cenário

da borgata de Pasolini. Todos os dias milhares de pessoas humildes, simples

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trabalhadores despertam, ainda no escuro do fim da madrugada, para uma

longa jornada em direção a mais um dia de trabalho. A luta é pela simples

sobrevivência; em ônibus ou trens lotados vemos os rostos que denunciam o

cansaço de dias e mais dias de esforço; em retribuição, ao fim do mês, um

valor que mal pode garantir os direitos básicos de sobrevivência. Este cenário

atual, vivido no Brasil, se aproxima muito daquele denunciado por nosso

escritor há mais de 50 anos, na Itália. Seu convívio com a miséria da periferia

romana o levou a expressar em seus versos a realidade na qual vivia numa

“estupenda e miserável cidade”:

Stupenda e misera città, che m'hai insegnato ciò che allegri e feroci gli uomini imparano bambini, le piccole cose in cui la grandezza della vita in pace si scopre, come andare duri e pronti nella ressa delle strade, rivolgersi a un altro uomo senza tremare, non vergognarsi di guardare il denaro contato con pigre dita dal fattorino che suda contro le facciate in corsa in un colore eterno d'estate;[...]162 (In: Le cenere di Gramsci. Milano: Garzanti, 1976. pp. 91-112.)

Roma ensina a Pasolini um novo modo de ver o mundo e vivê-lo, num

momento de mudanças internas e externas. Ele dedica suas vivências à

produção poética, que culminará em várias formas de expressão. Seus versos

enaltecem e, ao mesmo tempo, criticam a Cidade Eterna, onde cada detalhe da

rotina da cidade é observado, vivido. Como resultado, temos em sua poesia

uma visão apaixonada a tal ponto que aquilo que seria visto, por muitos, como

negativo passa a ser valorizado e transformado em aprendizado. Roma, em

sua percepção, seria capaz de retirar a inocência de todos, de corromper e

desvirtuar aqueles que possuíssem algum vestígio de pureza ainda, pois ele

162

Estupenda e miserável cidade,/ que me ensinou o que alegres e ferozes/ os homens aprendem desde

crianças,/ as pequenas coisas nas quais a magnitude/ da vida em paz se descobre, como/ ir árduos e

prontos no meio da multidão/ das estradas, voltar-se para outro homem/ sem tremer, sem

envergonhar-se/ de olhar o dinheiro contado/ com os dedos preguiçosos do mensageiro/ que sua contra

as fachadas na corrida/ numa cor eterna de verão; [...] (Trad. nossa)

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próprio absorve daquele meio ensinamentos que o transformam em um ser

mais duro, mais resistente às adversidades da vida.

“Pobre como um gato do Coliseu” é esse o verso inicial da segunda

parte do poema “Il pianto della scavatrice”, no qual o poeta rememora os anos

de vida nos quais esteve participante na rotina da cidade de Roma. Como

sabido, ele viveu, de forma humilde, sobrevivendo, inicialmente, com seus mal

remunerados trabalhos de professor.

Sua rotina é narrada de forma poético-realística, evidentemente

idealizada, mas reflete a natureza das condições simples de todo um povo que

vivia obrigado a lutar cada dia em busca de superação. Sua comparação a um

gato é bem marcante, pois denota a total miséria neste momento de sua vida.

Não haveria pobreza maior do que a de um gato de rua, e ao mesmo tempo

maior liberdade. Existe nesse poema a rotina do movimento pendular de ida e

volta da periferia para o centro:

Povero come un gatto del Colosseo, / vivevo in una borgata tutta calce / e polverone, lontano dalla città e dalla campagna, stretto ogni giorno / in un autobus rantolante: /e ogni andata, ogni ritorno era un calvario di sudore e di ansie. / Lunghe camminate in una calda caligine, /lunghi crepuscoli davanti alle carte ammucchiate sul tavolo, tra strade di / fango, / muriccioli, casette bagnate di calce / e senza infissi, con tende per porte... Passano l'olivaio, lo straccivendolo, / venendo da qualche altra borgata, / con l'impolverata merce che pareva frutto di furto, e una faccia crudele / di giovani invecchiati tra i vizi / di chi ha una madre dura e affamata. Rinnovato dal mondo nuovo, /libero - una vampa, un fiato / che non so dire, alla realtà che umile e sporca, confusa e immensa, / brulicava nella meridionale periferia, / dava un senso di serena pietà. Un'anima in me, che non era solo mia, /una piccola anima in quel mondo / sconfinato, /cresceva, nutrita dall'allegria di chi amava, anche se non riamato. / E tutto si illuminava, a questo amore. Forse ancora di ragazzo, eroicamente,

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e però maturato dall'esperienza / che nasceva ai piedi della storia. / Ero al centro del mondo, in quel mondo di borgate tristi, beduine, / di gialle praterie sfregate / da un vento sempre senza pace, venisse dal caldo mare di Fiumicino, / o dall'agro, dove si perdeva / la città fra i tuguri; in quel mondo che poteva soltanto dominare, / quadrato spettro giallognolo / nella giallognola foschia, bucato da mille file uguali / di finestre sbarrate, il Penitenziario / tra vecchi campi e sopiti casali. Le cartacce e la polvere che cieco / il venticello trascinava qua e là, / le povere voci senza eco di donnette venute dai monti / Sabini, dall'Adriatico, e qua / accampate, ormai con torme di deperiti e duri ragazzini / stridenti nelle canottiere a pezzi, / nei grigi, bruciati calzoncini, i soli africani, le piogge agitate / che rendevano torrenti di fango / le strade, gli autobus ai capolinea affondati nel loro angolo / tra un'ultima striscia d'erba bianca / e qualche acido, ardente immondezzaio... era il centro del mondo, com'era / al centro della storia il mio amore / per esso: e in questa maturità che per essere nascente / era ancora amore, tutto era/ per divenire chiaro - era, chiaro! Quel borgo nudo al vento, / non romano, non meridionale, / non operaio, era la vita nella sua luce più attuale: / vita, e luce della vita, piena / nel caos non ancora proletario, come la vuole il rozzo giornale / della cellula, l'ultimo / sventolio del rotocalco: osso dell'esistenza quotidiana, / pura, per essere fin troppo / prossima, assoluta per essere fin troppo miseramente umana.163 (In: Le cenere di Gramsci. Milano: Garzanti, 1976. pp. 91-112.)

163 Pobre como um gato do Coliseu,/ Eu vivia numa borgata cheia de cal/ e pó distante da cidade/ e do campo, apertado todos os dias/ em um ônibus barulhento:/ e cada ida, cada retorno/ era um calvário de suor e ânsias./ Longas caminhadas em uma névoa quente,/ longos

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Espremido em um ônibus barulhento vindo de uma periferia distante de

tudo, e viajando em tardes quentes. O poeta mimetiza o cotidiano daquele povo

e suas rotinas cansativas. E, apesar de todas as dores, insiste em ver uma

beleza naquele lugar, como se nenhum dos problemas e injustiças pudesse

modificar o que havia de puro na borgata.

Ao longo do poema, acima citado, o poeta defende seu amor

incondicional àquele povo humilde, num território repleto de jovens

esqueléticos trajando suas camisetas rasgadas, no meio de ruas enlameadas e

de lixo. “Era o centro do mundo” que ainda reservava um ambiente proletário e,

justamente por esta condição de simplicidade, o poeta se encantava por aquela

realidade duramente vivida. A Cidade Eterna, naquele momento, concentrava e

atraía pessoas oriundas das mais diferentes províncias italianas. O poeta nos

mostra essa região de uma beleza incontaminada, ainda não proletária, ainda

não moderna, num caos de um burgo medieval, para o qual ele dirigiu seu

crepúsculos diante aos papéis/ empilhados sobre a mesa, entre estradas/ de lama,/ muros baixos, casas caiadas/ e sem janelas, com cortinas invés de portas .../ Passam o vendedor de azeitonas, o vendedor/ de trapos,/ vindo de alguma outra periferia,/ com mercadoria empoeirada que parecia /resultado de roubo,/ e um rosto cruel dos jovens envelhecidos entre os vícios/ de quem tem uma mãe dura e esfomeada./ Renovado pelo mundo novo,/ livre – uma chama, uma respiração/ que não sei o que dizer, à realidade/ que humilde e suja, confusa e imensa,/ pululava na periferia meridional,/dava uma sensação de serena piedade./ Uma alma em mim, que não era só minha,/ uma pequena alma naquele mundo/ sem limites,/crescia, alimentada pela alegria/ de quem amava, mesmo que não amado./ E tudo se iluminava, a este amor./ Talvez ainda de menino, heroicamente,/ e no entanto amadurecido pela experiência/ que nascia aos pés da história./ Eu estava no centro do mundo, naquele mundo/ de borgate tristes,/ beduínas,/ de prados amarelos riscados/ por um vento sempre/ sem paz, viesse do mar quente de Fiumicino/ ou do campo, onde se perdia/ a cidade entre os casebres, naquele mundo/ que podia somente dominar,/ quadrado espectro amarelado/ na névoa amarelada,/ perfurado por mil filas idênticas/ de janelas gradeadas, a Penitenciária/ entre velhos campos e casas adormecidas./ Os papeis e o pó que cega/ a brisa arrastava aqui e ali,/ as pobres vozes sem eco/ de mulherezinhas vindas dos montes/ Sabinas, do Adriático, e aqui/ acampadas, agora com enxames de esqueléticos e duros meninos/ estridentes nas camisetas em pedaços,/ nos cinza, queimados calções/ os solos africanos, as chuvas agitadas/ que criavam torrentes de lama/ as estradas, os terminais de ônibus/ afundados em seu canto/ entre uma última faixa de grama branca/ e algum ácido, ardente lixão .../ era o centro do mundo, como era/ no centro da história o meu amor/ por este: e nesta/ maturidade que para ser nascente/ ainda era amor, tudo era/ para tornar-se claro – era,/ claro! Aquela aldeia nua ao vento,/ não romana, não meridional,/ não operária, era a vida/ na sua luz mais atual;/ vida, e luz da vida, cheia/ no caos ainda não proletário/ como a quer o áspero jornal / da célula, o último/ movimento de impressão: osso/ da existência cotidiana,/ pura, para ser demasiado/ próxima, absoluta para ser/ demasiado miseramente humana. (Trad. nossa)

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olhar enaltecendo a poesia encontrada na simplicidade das coisas, na gente

humilde, na desorganização e na falta das condições mais básicas de vida.

“É gente humilde. Que vontade de chorar,” diriam Chico Buarque e

Vinicius de Moraes. Em outro de seus poemas, encontram-se as características

que reforçam sua ideologia fortemente baseada na ideia de pureza do passado

em comparação com a poluição de um mundo moderno contaminado por

elementos burgueses os quais lhe descontentavam:

Io sono una forza del Passato. Solo nella tradizione è il mio amore. Vengo dai ruderi, dalle chiese, dalle pale d'altare, dai borghi abbandonati sugli Appennini o le Prealpi, dove sono vissuti i fratelli. Giro per la Tuscolana come un pazzo, per l'Appia come un cane senza padrone. O guardo i crepuscoli, le mattine su Roma, sulla Ciociaria, sul mondo, come i primi atti della Dopostoria, cui io assisto, per privilegio d'anagrafe, dall'orlo estremo di qualche età sepolta. Mostruoso è chi è nato dalle viscere di una donna morta. E io, feto adulto, mi aggiro più moderno di ogni moderno a cercare fratelli che non sono più.164 (in Poesia in forma di rosa. Milão: Garzanti, 1964, p. 21-22)

Seus versos refletem a desilusão de um homem que buscou, durante

toda sua vida, encontrar o lugar onde acreditava que ainda existissem homens

“primitivos”, sem a contaminação neocapitalista. Mas, os “irmãos” que buscava

e foram encontrados nas borgate romanas, aos poucos, foram desaparecendo

conforme a cultura os massificava. Seus versos, assim como no poema

anteriormente transcrito, denotam seu amor ao mundo mais ingênuo e puro

164 Eu sou uma força do passado./ Só na tradição está o meu amor./ Venho das ruínas, das igrejas,/ dos retábulos, das aldeias/ abandonados no sopé dos Alpes dos Apeninos,/ onde viveram os irmãos./ Giro pela Tuscolana como um louco,/ pela Appia como um cão sem dono./ Ou olho os/ crepúsculos, as manhãs/ de Roma, da Ciociaria, do mundo,/ como os primeiros atos da Pós história,/ os quais eu assisto, por privilégio de registro,/ da borda extrema de qualquer idade/ sepultada. Monstruoso é aquele que nasce/ das entranhas de uma mulher morta./ E eu, feto/ adulto, vago/ mais moderno do que qualquer moderno/ procurando irmãos que não existem mais. (Trad. nossa)

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que tanto valorizava, numa evidente expressão de resignação com os rumos

que levavam a juventude italiana em direção à destruição das culturas mais

antigas.

E o poeta continua a narrar a geografia das ruas romanas, com o seu

caminhar por lugares de conhecimento comum, mas é uma procura condenada

ao fracasso, pois ele se coloca numa posição de distinção aos demais irmãos,

porque como uma força do passado não poderia encontrar outros iguais. Logo

conclui que “monstruosos são os que nascem das vísceras de uma mulher

morta”, ou seja, alude às futuras gerações, que vêm ao mundo de mães que

não pertencem mais às culturas de tradições no passado. Assim, a cultura

massificada vem duramente criticada nesses versos.

A cidade que por vezes parece apenas o nosso lugar de abrigo, nosso

lar, pode se mostrar sedenta e nutrir-se de seus próprios criadores, ou seja,

nós mesmos. Caminhar rumo a um destino qualquer é a rotina de milhares de

citadinos, em várias metrópoles ao redor do mundo; atualmente, com o

processo de globalização, não percebemos tão evidentemente as semelhanças

de vivências que no passado eram diferenças, e consistem em aproximar todos

os habitantes de metrópoles a um único modelo de vida. Este transforma

realidades antes diversas num único conjunto de comportamentos, como modo

de se vestir, alimentar-se, dentre outros. A indústria acaba por lançar sua

influência e poder criando cidadãos-irmãos no modo de vida. Entretanto, tais

aproximações não se restringem unicamente a comportamentos físicos e

culturais, mais ainda à forma unificada de pensar e agir.

A vida no mundo moderno surge como um elemento único, ou seja, as

cidades são cada vez mais parecidas umas com as outras num processo que

provavelmente não poderemos evitar. Talvez o futuro da Humanidade seja

diminuir especificidades e anular pouco a pouco culturas, pois, atualmente,

mesmo com tantas aproximações de comportamentos, vemos ainda que

especificidades de cada região se mantêm vivas em cada ponto do globo. Mas

nos questionamos até quando isso será possível. É provável que levemos

ainda alguns séculos ou, no mínimo, décadas para que vejamos um mundo tão

similar tornado único. Ainda testemunharemos a agonia das cidades, que

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padecem com o processo de massificação das culturas, pois, com a chegada

cada vez maior das novas tecnologias, é quase impossível impedir que os

jovens, o futuro do planeta, não se contagiem com a cultura única. Nesse

cenário, constatamos que o destino de todas as culturas converge para um

ponto comum, fato que, se por um lado é positivo, principalmente o econômico,

por outro surge como ameaça real, que gera um empobrecimento das riquezas

culturais que existem até hoje.

Pasolini havia percebido esse processo, principalmente com relação à

questão linguística. Porém, esta preocupação deve ir muito além, porque uma

série de tradições, como aquela ligada ao folclore, está se perdendo, visto que

as novas gerações não se prendem mais à cultura dos genitores,

demonstrando pouco ou nenhum interesse em manter hábitos e tradições

ancestrais. Ao contrário, envergonham-se de suas origens, negando-as quase

que insistentemente, a reconhecê-las.

Tomando como exemplo a obra de Pasolini, Vittorio, protagonista de

Accattone, é uma personagem que vive no ambiente dos excluídos da borgata

romana. Como já evidenciado, este é um modelo de anti-herói comum em

diversas narrativas modernas. Também no romance de Clarice Lispector, A

hora da estrela (1977), a personagem principal se apresenta de forma inocente.

Oriunda do Nordeste brasileiro, Macabéa, busca um lugar na metrópole, mas

não consegue o seu espaço na vida da grande cidade. Assim como Stella,

personagem de Accattone, que demonstrara uma inocência pura, inconsciente

do próprio destino repleto de fatalidades e injustiças o qual vivera com

resignação, a protagonista do romance de Lispector, nas palavras da própria

autora, nos traz a história de inocência sofrida, pisada, uma miséria anônima. É

um retrato do Brasil daquela época num olhar de caráter social. Sobre a

criação do livro a autora afirma:

Fala de uma moça tão pobre que só comia cachorro quente, mas a história não é só isso não, a história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima. [...] o personagem é nordestino, de alagoas. [...] e depois no Rio de Janeiro tem uma feira dos nordestinos, no Campo de São Cristóvão e, uma vez eu fui lá e peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro, daí começou a nascer a ideia de um... Depois eu fui

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numa cartomante e imaginei... (ela me disse várias coisas boas que me iriam acontecer) e imaginei quando tomei o táxi de volta que seria muito engraçado se um táxi me pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então, daí foi nascendo também a trama da história. (Entrevista à TV Cultura, 1977: 2:00)

A vontade de esconder aquilo que nos incomoda na sociedade moderna,

na vida das grandes cidades é algo que parece coletivo, como o desejo de

higienização da urbe da Idade Média, anteriormente mencionado, ao qual Le

Goff se referia. Tudo aquilo que foge a um determinado padrão estabelecido

pela burguesia ou pelo status quo é sempre marginalizado, e, se pensarmos

apenas nessa segregação de indivíduos em uma parte da cidade, devemos

considerar como algo que não agride tanto, se compararmos a outros atos

muito mais cruéis que testemunhamos na vida moderna. A vontade de limpar e

esconder aquilo que nos toca negativamente viveu e vive intensamente no

desejo coletivo dos citadinos, pois é muito mais fácil fingir não ver ou ignorar

homens marginais, moradores de rua ou prostitutas do que encarar as

questões sociais de forma ativa.

Pasolini acreditava que essas pessoas eram grandes vítimas do sistema

econômico que vigorava na Itália do pós-guerra e nelas se inspira para criar

suas personagens e protagonistas. Vittorio, homem simples, vaga pela

periferia, escondido, no submundo, da mesma forma que Mamma Roma

encoberta numa realidade velada.

São submundos regidos pelo crime, pequenos delitos e prostituição, ou

seja, tudo aquilo que a burguesia não queria ver. Mas, se observamos a nossa

sociedade, constatamos que não acontece algo muito diverso aqui, ou até

mesmo em todas as outras metrópoles do mundo moderno, na época atual e

ainda concomitante ao período em que Pasolini absorvera sua inspiração.

Clarice Lispector em sua crônica intitulada Mineirinho, que a própria

autora confessa ser uma de suas obras preferidas junto com O ovo e a galinha,

nos mostra o desfecho da vida de um marginal, no início dos anos 1960, no Rio

de Janeiro: é assassinado violentamente por treze tiros. A escritora narra

claramente essa vontade coletiva de matar, de extinguir o problema, no caso a

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marginalidade. Assim, como Vittorio morre massacrado por um caminhão,

Mineirinho personagem real, parafraseando Lispector, morre com treze balas

quando uma somente bastava, as outras são a nossa vontade de matar:

E eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar... era prepotência. (Clarice Lispector em entrevista à TV Cultura: 1977)

Se um menino de rua é amarrado a um poste, no Rio de Janeiro, por um

grupo de “justiceiros” (www.odia.ig.com.br, 12.02.2014), se Mineirinho é morto

pelo nosso ódio, não é algo muito diferente do que acontece na realidade

recriada por Pasolini em seus dois primeiros filmes. Em Accattone, vemos uma

morte, ao fim, como solução dos problemas da vida do protagonista que não

encontrando seu lugar na sociedade morre atropelado. O mesmo acontece

com Ettore, que é corrompido pela cidade de Roma, apesar dos esforços de

sua mãe em salvá-lo. Em Ragazzi di vita e Una vita violenta, romances que

inspiram os filmes Accattone e Mamma Roma, ao longo dos capítulos há uma

série de mortes de personagens secundários vítimas de tragédias, como morte

em trilhos de bonde, desabamentos de prédios, afogamentos etc., atos que

demonstram bem o fechamento daqueles ambientes do mundo à margem. O

próprio protagonista do segundo romance citado, Tommaso, no último capítulo

morre de tuberculose. Então, considerando que essas mortes são convenientes

ao tipo de narrativa empregada por Pasolini, podemos pensar, também, que

sejam convenientes às sociedades modernas, pois, coletivamente, não surtem

muito efeito e nem solidarizam tanto as penas capitais empregadas pelo nosso

sistema político. Ou melhor, considerando como mortes omissas de

marginalizados todas aquelas geradas pelo imobilismo ou prevaricação dos

cidadãos ou governantes, porque morrer de tuberculose ou no desabamento de

um edifício não é culpa direta de quem nasceu num ambiente pobre, porém é

causada pelo descaso de todos nós. A inércia de atitudes nos aproxima

enquanto sociedade, pois, na Itália ou no Brasil, mudam as paisagens, mas o

descaso com o mundo dos excluídos é igual. Assim, de certa forma, nesse

mundo que Pasolini quis recriar, a responsabilidade recai sobre todos os

omissos. Como Clarice Lispector demonstrara, cada uma das balas que matam

os ragazzi di vita tem um pouco da nossa vontade de exclusão; aquilo que nos

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incomoda preferimos não ver como tentativa de esconder os problemas, o

submundo das nossas cidades.

O submundo165 é tema de inumeráveis produções poéticas no século

XX. É um cenário que vem sendo utilizado de forma constante em produções

artísticas. Lembremos de Pier Vittorio Tondelli, na narrativa, entre outros, ou no

cinema como é o caso de Fellini em Le Notti di Cabiria (1957), e mais

contemporaneamente o romance Io non ho paura (2001) de Niccolò Ammaniti.

E, não se restringe ao cinema italiano essa paixão pela periferia. Em Taxi driver

(1976), filme de Martin Scorsese, vemos um dos exemplos máximos do

comportamento higienizador que pode ser encontrado na camada da

sociedade que deseja limpar o submundo do crime ou miséria. A personagem

representada por Robert De Niro, sofredor de insônia, decide viver como taxista

nas noites da metrópole nova-iorquina; acredita que encontrará uma forma de

passar seu tempo ocioso. Fato interessante é a forma como a cidade nos é

apresentada, quase como algo devastador, uma sucessão de letreiros

luminosos que se perdem em movimentos rápidos da câmara. No seu circular

dentro de seu carro, vê a paisagem que se perde e se confunde com suas

alucinações; está inserido no mundo de marginais, drogados e prostitutas.

Conhece uma jovem prostituta e tentará fazer justiça com as próprias mãos,

para livrá-la da influência de um cafetão. Considerava essa adolescente,

personagem de Jodie Foster, uma vítima da sociedade, de um declínio moral, e

tinha obsessão em salvá-la. Assim, na cena final, vemos uma das mais

sangrentas sequências do cinema na qual todos os marginais exploradores do

submundo são mortos violentamente. Em seus devaneios finais, ficamos sem

saber exatamente se ele termina como um herói, pois salvara a jovem, ou se

tudo não passara de mais uma alucinação. De qualquer forma, o filme nos faz

reconsiderar esta visão do submundo porque passamos a entender aquilo que

não nos é agradável e podemos transformar em herói um assassino, quando

nos é conveniente. Na realidade, talvez, este último protagonista represente

mais uma vez o desejo coletivo de higienização nas cidades modernas.

165

Considerando tal termo não somente como pejorativo, de coisa menor ou ilegal, mas sim como um

ambiente de segregação social.

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Pier Paolo Pasolini demonstrou, ao longo de sua vida, uma capacidade

rara de expressão em diversos campos do pensamento humano. Provocador,

ele movimentava a vida cultural na Itália. Já se afirmou que ele não queria

verdadeiramente provocar reações radicais às suas ideias, das quais ele fora

vítima. A crítica era inerente à sua personalidade; como qualquer pessoa, ele

defendeu sempre sua verdade, suas crenças, sua ideologia.

Foi fiel à sua ideologia; levantou “belle bandiere” e dialogou com seus

leitores, formulou, nos anos 1960, um discurso lúcido sobre o futuro do

capitalismo, promoveu releituras de textos do teatro grego, aproximando-os do

modo de vida contemporâneo, com foco nos mecanismos de exclusão e

preconceitos presentes nas sociedades ocidentais.

2.3 A cidade no cinema de Pasolini

Como advertimos na Introdução, nosso trabalho é reiterativo, pois as

questões caras à Pasolini permeiam toda a sua obra. Assim, novamente

trataremos da relação do nosso autor com a cidade de Roma, que é tema e

cenário da maior parte de sua obra.

[...] bem sabemos que Roma senhora e mestra de povos tem sobre si, para alguns, uma grave culpa; Roma, desde seus inícios, foi sempre Itália. (GRAMSCI, 1979: p. 61)

A cidade de Roma, ao longo de séculos, sempre foi alvo de olhares

oriundos das mais diversas partes do mundo, especialmente por ser o cerne da

história do Grande Império. Porém, muito além das questões políticas e

militares, esta urbe compõe um dos centros criadores de conhecimento e

cultura, que se irradiou por todo o Ocidente, transformando a Cidade Eterna em

paradigma e inspiração para muitos povos. No entanto, a cidade chegou ao

século XX em posição de semelhante paridade com os outros centros

europeus que se desenvolveram posteriormente. Sua influência diminuiu

drasticamente e, aos poucos, o consumismo do sistema capitalista se

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incorporou aos seus modos de vida. Ademais, por integrar o grande grupo de

regiões que formaram a atual Itália, Roma, assim como as demais regiões que

compuseram este país, sempre sofreu com as disputas internas, fator

complicador do desenvolvimento na era moderna.

Não obstante seus problemas econômicos, políticos e sociais, esta

região foi objeto inspirador de vários artistas, entre eles Pasolini, como já

demonstramos neste trabalho. Todos os filmes que nosso artista produziu

utilizando-se do cenário romano – Accattone (1961), Mamma Roma (1962),

Uccellacci e uccellini (1966), especialmente –, possuem uma fotografia

caracterizada pela iluminação natural da cidade. Tal fotografia enfatiza a luz

forte de um sol marcante, duramente retratado por tomadas que funcionam

como enquadramentos, verdadeiras molduras cinematográficas a partir da

delimitação da tela. Este artifício é valorizado por Pasolini como mecanismo de

recriação da realidade, e a iluminação, por vezes, é um recurso utilizado para

mostrar o tipo desejado de personalidade de cena que o diretor de um filme

almeja. Assim, nem sempre o desempenho facial dos atores é suficiente para

que o objetivo da atmosfera da cena seja alcançado. Como lemos a seguir, o

posicionamento da luz é essencial para que o espectador perceba muito mais

do que simples feições:

O caráter de um rosto pode ser transformado pela iluminação. [...] a iluminação de cima espiritualiza o rosto e lhe dá um aspecto solene ou angelical (personagens religiosos) ou ar de juventude ou frescor. A iluminação de baixo transmite um sentimento de inquietação e produz um aspecto perverso ou sobrenatural. A iluminação oblíqua dá relevo e solidez a um rosto, mas pode torná-lo feio e acentuar-lhe os sulcos, ou indicar uma personalidade ambígua, meio má, meio boa, simbolicamente meio luz, meio sombra. A iluminação de frente esbate defeitos, aplana relevos, amacia contornos, torna o rosto mais belo, mas tira-lhe a personalidade. Projetada de trás, a iluminação idealiza o personagem, dá-lhe uma qualidade etérea. Essa espécie de iluminação é uma versão moderna da auréola de santos ou de um médium. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.165)

No nosso cotidiano, vivemos diversamente essas experiências, pois,

apesar das mudanças constantes de ambientes e iluminações, quase nunca

entramos num universo no qual a luz foi pensada para surtir uma sensação

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especial. A exceção se dá em locais onde a arte impera como teatros, mostras,

raríssimos projetos arquitetônicos etc.

Em Mamma Roma, por exemplo, a iluminação é um recurso explorado

pelo diretor bolonhês que, em cada cena, busca valorizar os ambientes e,

principalmente, as expressões. Os cenários da periferia romana aparecem com

a luz capturada de forma dura, quase que ofuscante; o sol é poeticamente

inflexível e castiga aquele povo. Da mesma forma, a obscuridade dos

enquadramentos, à noite, sufoca as personagens num universo sem pontos de

fuga, no qual todos parecem condenados à imutabilidade.

Assim como a iluminação é usada artisticamente, o som também exerce

a função de cumprir interesses expressivos do diretor e pode ser manipulado e

transformado de inúmeras formas; a partir do advento do cinema sonorizado,

criaram-se muitas possibilidades de recriação da realidade, apesar de, no

início, ter-se chegado a imaginar que o público não suportaria um filme

inteiramente sonorizado. Hoje, já não conseguimos conceber uma obra

cinematográfica totalmente silenciosa. Suportamos, sim, filmes ou com poucos

diálogos, como, por exemplo, O baile (1983) de Ettore Scola, no qual as

músicas, expressões e interpretações narram o argumento da obra, sem a

necessidade de diálogos falados. Mais recentemente vemos outro exemplo de

obra que utiliza artisticamente o som: a produção americana All Is Lost de 2013

(Até o fim, título em português), na qual o ator Robert Redford interpreta o

papel de um navegador solitário, que se torna um náufrago em meio ao oceano

Pacífico. Pelo fato de o protagonista não ter com quem se comunicar, o filme

valoriza todos os sons oriundos do ambiente marinho e da luta do personagem

pela própria sobrevivência, além de oferecer uma trilha sonora que foi

internacionalmente aplaudida. Retomando: no cinema, o som também pode ser

moldado artisticamente:

Os princípios gerais que governam o uso do som em filme são similares aos que se aplicam no caso de imagens: economia, contenção, adequabilidade, variedade, variação da realidade. A inferioridade do som gravado, em comparação ao som na realidade, oferece vantagem compensadora de possibilitar toda espécie de usos artísticos. Nesse terreno também, a arte não reside em imitar a natureza, mas em criar um mundo coerente,

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expressivo, de som em termos cinematográficos. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.193).

Logo, diálogos, falas, ruídos, músicas etc. representam sempre uma

segunda forma de expressão poética do diretor, podendo ter a mesma ou maior

força figurativa que as imagens.

O cinema, considerado a Sétima Arte, é constantemente comparado à

pintura, por trabalhar com imagens recriadas; a aproximação é quase que

inevitável. Contudo, o cinema, por representar uma arte dinâmica em

movimento, difere das outras formas de representação da realidade como a

fotografia ou pintura, por exemplo, por seu inerente movimento. Um retrato ou

uma tela têm características de imobilidade e estão limitados pela moldura ou

margens do papel fotográfico, algo que restringiria a nossa percepção do

espaço recriado, enquanto a tela cinematográfica nos permite uma apreensão

diversa, pois aberta a um universo infinito, no qual a imaginação do espectador

é constantemente estimulada. Assim, o cinema estaria numa categoria que

possibilita uma assimilação diferente do espaço:

O resultado de a câmara nunca sair da pintura é que a pintura parece ilimitada em espaço. Isso é devido a um curioso efeito psicológico. Em vez de a visão do espectador ser limitada pela moldura do quadro que ele sabe ser real, é limitada apenas pela fronteira que ele considera como convencional – a borda da tela. Substituindo seu próprio enquadramento pelo da pintura, o cinema substitui o espaço pictórico por espaço cinematográfico; e com esse truque assimila o espaço pictórico dentro do espaço ilimitado da natureza que a câmara habitualmente mostra. Isso ilustra a essência bastante arbitraria de nosso conceito de espaço no cinema. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.83-4)

Mesmo diante dessas diferenças de apreensão, não podemos descartar

a possibilidade de existirem filmes que nos suscitem a mesma sensação

despertada por uma pintura, pois tudo dependerá do nível de poeticidade

buscada pelo diretor.

A efemeridade da vida é uma espécie de fantasma que atormenta a

fragilidade da existência humana. Somos provisórios, diferentemente da arte

que produzimos; um dos principais valores da arte está em sua continuidade,

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além do seu caráter único. Logo, os momentos registrados numa fita magnética

dão a sensação de mais valor ao cotidiano simples que passa diante de nós,

quando é eternizado no olhar de uma lente cinematográfica:

A historicidade da arte vai de par com a durabilidade – ars longa vita brevis. É uma qualidade da arte ser duradoura e muitas artes permitem que uma experiência seja perpetuamente renovada. Como já foi dito antes, uma das coisas que fazem as pessoas darem valor à arte e cultivá-la é a sua qualidade perene. Um romance ou um filme pode ser lido ou revisto ad infinitum. Os fatos da vida real, por outro lado, não podem ser precisamente repetidos. A estória nunca se repete, mas a arte se repete. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.205)

Pasolini entendia o cinema como “a língua escrita da realidade”, que por

isto, sempre denotaria um meio de expressão artístico. Logo, apesar da

natureza concreta das imagens, é sempre possível recriar a realidade de uma

forma abstrata, considerando-se que o olhar que controla cada movimento da

câmera é único devido singularidade de cada indivíduo, assim:

O filme é uma espécie de escrito, mas um escrito através de imagens. Pode mesmo expressar ideias completamente abstratas, desde que sejam adaptadas à natureza do veículo e formuladas em termos pictóricos concretos.” (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.209).

Superando o nível concreto das imagens, a segunda existência do filme

conecta-se à percepção psicológica do observador. Desse modo, cabe ao

artífice cinematográfico conceber imagens capazes de causar algum tipo de

reconhecimento no espectador, pois, dessa forma, quem assiste ao filme

poderá criar vínculos emocionais que o convencem, envolvem num universo

único que existia, antes, apenas na mente criadora. Dependendo de sua

capacidade de recriação e convencimento, o artista poderá ter êxito ou não,

como afirma Stephenson:

O segundo nível em que um filme existe é mental. Nesse nível, a realidade é uma realidade de ideias, de emoções, de comportamento, de caráter, de verdades fundamentais e universais. Nesse nível o artista procura criar um todo artístico que convencerá por sua profundeza emocional ou ideológica e por sua veracidade. Nesse nível, tudo dependerá da intensidade da experiência do artista e da sinceridade de sua expressão. Os componentes físicos de um filme podem ser

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tratados com grande sensibilidade, e o estilo ser excelente – mas o filme fracassar no nível mental. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p. 216)

A singularidade da recriação dos diálogos da vida real no cinema é

sempre uma incumbência difícil, pois os atores tendem a artificializar, quando

da execução de suas atuações. Ciente disso, Pasolini busca o único recurso

que poderia usar em seu cinema, que era garimpar na própria periferia os

intérpretes de seus personagens. Partindo dessa idéia, consegue se aproximar

àquele mundo de sons únicos, utilizando-se de “um local e de gírias

autênticos”, como compreendemos no trecho abaixo:

Há muitos casos em que se tira o melhor partido da capacidade da câmara e microfone de reproduzirem locais autênticos, ou sotaques ou a graça de uma gíria ou dialeto genuínos. Os cenário de Ladri di biciclette, Man of Aran, We are the Lambreth boys, Un Coeur gros comme ça, transmitem algo que nenhum estúdio pode igualar. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.214)

O cinema, no passado, foi utilizado como elemento de massificação de

ideologias, da mesma forma que a televisão ou rádio. Principalmente na Itália,

que buscava uma unificação real de seus povos, os meios de comunicação

tiveram papel capital na construção do país, durante o século XX.

A influência da Sétima Arte no cotidiano das pessoas é evidente, porque

o cinema possui o poder de servir como distração em situações de crises

sociais mais graves, por exemplo. Como elemento manipulador de sensações

e emoções, pode ser um artifício sofisticado para causar o bem-estar geral, ou,

ao menos, a percepção deste último. Além do mais, na atualidade, notamos

que a maior parte dos indivíduos busca sempre uma forma de fuga de suas

realidades. Se antes era “o cinema o ópio” das massas, hoje temos as formas

de comunicação modernas, ou seja, apenas uma substituição de meios.

Reação emocional a filmes frequentemente sofre críticas. Mas o cinema, permitindo-nos desfrutar experiências substitutivas, proporciona uma válvula de escape, até mesmo um meio de sublimação, para impulsos que poderiam tornar-se socialmente indesejáveis. Forma também um ponto de concentração para devaneios que podem ajudar pessoas a suportar as decepções e monotonia da vida diária. O ópio das massas, hoje em dia,

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não é a religião e sim um composto de cinema e televisão. Sem dúvida, um fator no declínio no hábito de frequentar cinemas foi uma melhoria no modo de vida que, além de tornar mais amplamente acessíveis outras formas de recreação, também tornou menos necessária a espécie de alienação popular que o cinema oferece – embora muitos tenham encontrado uma alternativa hipnótica diante de um aparelho de televisão. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.220)

Os recursos utilizados por Pasolini em seus filmes são sempre bem

simples, pois, além de possuir pouca experiência com as técnicas

cinematográficas, quando decidiu fazer filmes, possuía poucos meios para criar

efeitos mais elaborados. Suas obras apresentam, por isso, uma série de

limitações, se comparadas a filmes produzidos na mesma época. Mas, embora

aparentemente carentes de recursos, seus filmes possuem qualidade artística

que, por vezes, torna as inconsistências técnicas insignificantes e não

percebidas. Em O Evangelho Segundo São Mateus, por exemplo, notamos que

os cenários, figurinos são bem simples; no entanto, esses detalhes são

superados pela escolha dos atores, que assimilam o desejo do diretor,

expressando com olhar e gestos toda a dramaticidade do Evangelho em

representação. Assim, na opinião da crítica, como lemos abaixo, a técnica de

Pasolini dispensa recursos mais elaborados:

Em Il Vangelo Secondo Matteo, de Pier Paolo Pasolini, tanto o anjo que anuncia o nascimento de Cristo quanto o diabo que tenta Jesus durante os seus quarenta dias de jejum são tratados como qualquer outro personagem do filme e, em ambos os casos, são absolutamente convincentes. As cenas são de muito mais efeito do que se fossem fotografadas em dupla exposição ou através da névoa do desfoque. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.227)

O mesmo recurso das imagens lentas e panorâmicas longas é utilizado

com o som. No filme supracitado, o som é substituído pelo silêncio das

personagens: “Longos períodos de silêncio, especialmente no começo do filme,

são usados com muito efeito em Il Vangelo Secondo Matteo, de Pier Pasolini.”

(STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.179).

A percepção da realidade não depende necessariamente de uma

fidedignidade ao objeto recriado; assim, o espectador pode interpretar de

maneira particular uma imagem. Logo, não se pode imaginar que exista uma

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simples relação concreta de exatidão entre a cena e o objeto, mas sim uma

assimilação de caráter psicológico, fato que torna o trabalho do cineasta muito

mais complexo que imaginá-lo como singelo recriador de realidades.

O espectador não espera do cinema – ou só espera parcialmente – uma ilusão física. A plateia procura acreditar não tanto no que vê como no que concebe, e (como já foi dito) o que conta não é a fidelidade da imagem à realidade, mas a facilidade como pode ser aceita de direito como realidade. A impressão que causa em nós não é tanto perceptiva como psicológica, emocional e estética. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.228)

A cidade na literatura moderna é um elemento constantemente presente,

pois a partir do processo de industrialização, como já dito, as cidades começam

a crescer e a concentrar toda grande massa de pessoas. A percepção de

tempo e espaço muda e os escritores, que na sua maioria eram moradores dos

grandes centros, absorvem todas essas sensações e reverberam em seus

romances a cisão entre as pessoas e as cidades, evidenciando os grandes

contrastes entre os indivíduos e esse novo mundo menos acolhedor.

Godono afirma que a cidade se torna uma personagem, quando

extrapola a divisão entre pessoas e o lugar, assumindo um papel próprio:

La letteratura modernista, o almeno gran parte di essa, rifiuta invece l’esistenza di una logica nella realtà e si limita a prendere atto della scissione psichica dell’individuo indotta dalla dall’assenza di un legame affettivo con lo spazio urbano; in tal modo il “divorzio fra la persona e i luoghi in cui si si svolge la sua esistenza trova il suo immediato corrispondente analogico in una sorta di distonia fra anima e corpo che a sua volta ritorna sul punto di partenza e vi trasporta un’ulteriore carica negativa”. Si può dire che la città diviene personaggio letterario quando si pone su un altro piano rispetto al protagonista, un piano parallelo, talvolta, alla sua sfera emozionale: la città diviene elemento antagonista al soggetto di una narrazione che porta in primo piano la frattura tra l’io e il dove. Parallelamente, si attiva la frattura fra l’io e il quando, destinata ad acuirsi (sia pure per gradi) alla fine dell’età moderna.166 (GODONO: 2001, p.05)

166

A literatura modernista, ou pelo menos grande parte dela, rejeita a existência de uma lógica na

realidade e se limita apenas a constatar a divisão psíquica do indivíduo induzida pela ausência de um

vínculo afetivo com o espaço urbano; assim, o "divórcio entre a pessoa e os lugares nos quais se

expressa a sua existência encontra o seu imediato correspondente analógico em um tipo de distonia

entre a alma e corpo, que por sua vez, retorna ao ponto de partida e transporta a uma carga negativa

adicional". Pode-se dizer que a cidade torna-se um personagem literário quando se coloca em um plano

em respeito ao protagonista, um plano paralelo, por vezes, à sua esfera emocional: a cidade torna-se

um antagonista ao tema de uma narrativa que traz à tona a fratura entre o eu e onde. Ao mesmo

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O espaço das grandes cidades sofre uma significativa alteração logo

após o término da Segunda Guerra Mundial levando a uma remodelação de

modos de vida, hábitos e costumes. A partir disso testemunhamos um acelerar

de padronizações de formas de comportamento, principalmente influenciado

pelo papel planificador do cinema, que surge como arte universal levando todas

as culturas a sofrerem algum tipo de imposição de um pensamento

massificado.

Pasolini, reiteramos, criticou duramente essa “homologação” de culturas.

Sabia, contudo, que se tratava de um processo inevitável, com o qual todos

teríamos de nos habituar. O modelo americano é o imposto e copiado: “Lo

spazio urbano postbellico è rimodellato dall’omologazione consumistica,

un’omologazione di mode e status-symbol indispensabili per essere accettati

nel nuovo universo cittadino.”167 (GODONO: 2001, p.40). Então, o ambiente

urbano segue os caminhos únicos em direção a um modo de vida a ser

exemplo e a gerar status aos que nele se adaptam em detrimento de uma

cultura diversificada e ao mesmo tempo mais rica.

Surge, então, um fator determinante nas grandes cidades: o gueto, para

usar o termo empregado por Godono. Do gueto, ou borgata emerge uma parte

da população que age conforme a maneira de discriminação da qual são

vítimas. As personagens de Pasolini florescem exatamente da parte

marginalizada da sociedade, das periferias, ou seja, dos guetos ou borgate: “Si

può essere ghettizzati, nella metropoli “alla moda”, se si è cresciuto nello

“squallore” della periferia urbana o in provincia, come i giovani di Una vita

violenta.”168 (GODONO: 2001, p. 41)

Pasolini exerce sua função de intelectual consciente de seu quase que

dever de denunciar as injustiças de seu país, o qual é o berço e modelo de

quase todas as culturas modernas ocidentais. A Itália influenciou decisivamente tempo, se ativa a fratura entre o eu e o quando, destinada a agravar-se (ainda que gradualmente), no

final da era moderna. (Trad. nossa)

167

O espaço urbano pós-guerra é reformulado pela homologação consumista, uma homologação de

modas e símbolos de status indispensáveis para ser aceito no novo universo citadino. (Trad. nossa)

168 Se pode ser guetizado na metrópole “da moda", se você cresceu na "miséria" da periferia urbana ou

nas províncias, como os jovens de Uma vida violenta. (Trad. nossa)

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o desenvolvimento dos padrões artísticos e culturais de toda a Europa e logo,

na visão de Gramsci, os intelectuais italianos possuem um ar cosmopolita

diferente dos demais, pois estes já estão presentes nos costumes de outros

povos:

O cosmopolitismo dos intelectuais italianos é exatamente similar ao cosmopolitismo dos outros intelectuais nacionais? Este é o problema: para os italianos, o cosmopolitismo está em função de uma posição particular que é atribuída à Itália, à diferença dos outros países; isto é, a Itália é concebida como complementar de todos os outros países, como produtora de beleza e de cultura para toda a Europa. (GRAMSCI, 1979: p. 48)

Ao utilizarmos o conceito de gueto, como um dos elementos

fundamentais do cenário de produção pasoliniana, podemos afirmar que tal

componente foi uma constante na vida pessoal e poética do autor, cujo

primeiro e importante trabalho para o cinema surge com a elaboração dos

diálogos de Le notti di Cabiria (1957), de Federico Fellini, filme que já mostrava

um ambiente do submundo romano.

A paixão do nosso autor pelo universo dos excluídos é reiterada em

suas primeiras produções, confirmando o interesse na recriação do chamado

gueto:

In Accattone e in Mamma Roma, è presente il neorealismo ‘felliniano’ nella representazione del mondo della prostituizione, che riclica in parte il materiale narrativo di Le notti di Cabiria, un film al quale non acaso aveva collaborato lo stesso Pasolini.169 (REPETTO:1998, p.148).

No século XIX, a invenção da fotografia surge como um elemento

modificador das formas de artes tradicionais, principalmente a pintura que

rompe definitivamente com a cópia da realidade como a percebemos

concretamente. Assim, previsões de que a fotografia permitiria uma maior

liberdade artística acabam se confirmando posteriormente, mesmo sem ter-se

considerado na época o surgimento do cinema;

169

Em Desajuste social e Mamma Roma, está presente o neorrealismo "felliniano" na representação do

mundo da prostituição, que recicla em parte o material narrativo de Noites de Cabiria, um filme que não

por acaso colaborou o próprio Pasolini. (Trad. nossa)

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Uma profecia de 1855: “nasceu para nós, há poucos anos, uma máquina, orgulho de nossa época, que a cada dia pasma nosso pensamento e espanta nossos olhos. / Essa máquina, em menos de um século, será o pincel, a paleta, as cores, a habilidade, a prática, a paciência, o golpe de vista, o toque, a mescla, o brilho, o truque, o modelado, o acabamento, a realização. / Em menos de um século, não haverá mais pedreiros na pintura: haverá apenas arquitetos, pintores na acepção plena da palavra. / Não pensemos que o daguerreotipo mata a arte. Não, ele mata o trabalho de paciência e homenageia a obra do pensamento. / Quando o daguerreotipo, esta criança gigante, tiver atingido a idade madura; quando estiverem desenvolvidos toda a sua força e todo o seu poder, então o gênio da arte o agarrará pelo colarinho e exclamará: ‘Tu és meu! és meu agora! Nós vamos trabalhar juntos!.’” A. J. Wiertz, Œuvres Littéraires, Paris, 1870, p.309. Do artigo intitulado “La photographie”, publicado pela primeira vez em junho de 1855, em La Nation, e que termina com uma referência à nova descoberta da ampliação fotográfica, que possibilita a ampliação de fotos em tamanho natural. Os primeiros pedreiros são para Wiertz, aqueles “que se preocupam somente com a parte material”, que a realizam bem. (BENJAMIN: 2009, p. 713)

Para Benjamim a câmera cinematográfica também é uma ferramenta de

criação artística, da mesma forma que Pasolini a concebera. Um fotógrafo

agiria como um pintor, pois este último executa seu trabalho através da própria

sensibilidade e percepção, ou seja, com o sentimento, como afirma o pensador

alemão. Logo, a lente da câmera é o instrumento de criação do retratista, assim

como o pincel, o lápis é para o pintor ou o cinzel é para o escultor:

A objetiva é um instrumento como o lápis ou o pincel; a fotografia é um procedimento como o desenho e a gravura, porque o que faz o artista é o sentimento e não o procedimento. Todo homem que tenha uma inspiração feliz e a habilidade necessária pode, pois, obter os mesmos efeitos com qualquer um desses meios de produção. (Louis Figuier, La Photographie au Salon de 1859, Paris, 1860, pp.4-5. In: BENJAMIN: 2009, p. 723)

O mecanismo de apreensão da arte é sempre algo que sugere um ato

de subjetividade e nem sempre a relevância dada a determinado objeto

reconhece o seu verdadeiro valor artístico. Se pensarmos num quadro pintado

por uma pessoa anônima, como tantos que decoram os ambientes, logo

perceberemos que o valor artístico da obra pode até ser reconhecido, porém

dificilmente atingirá a mesma valia de grandes mestres da pintura. Mesmo

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existindo inúmeros casos de artistas descobertos e redescobertos após anos

de suas mortes, não há nenhuma garantia de que pinturas incógnitas integrem

um dia o cânone respeitado. Se, no caso das artes plásticas, o valor da obra é

sempre atrelado a questões individuais, o mesmo acontece com um filme, que

ganha mais ou menos o caráter de arte, segundo o espectador. O cineasta

sempre estará subordinado à percepção de cada integrante do público que

julga sua obra. Dessa forma, o que reconhecemos como grande clássico da

Sétima Arte é o resultado da apreciação da coletividade que, em algum

momento, elencou tal obra como tendo uma importância maior que as demais.

Então, parafraseando o trecho a seguir, o valor da obra de arte é sempre de

natureza subjetiva:

A análise precedente da contribuição do artista e do espectador à ilusão do filme permite-nos tentar uma resposta às perguntas: “Como devemos julgar uma obra de arte? O que é bom? O que é ruim? Como diferenciar o bom do ruim?” Dissemos que, como cada espectador contribui ele próprio para a impressão artística geral, o mesmo filme será visto de maneira diferente por pessoas diferentes. O mundo da arte não é igual ao da Matemática e da Ciência em que, uma vez aceitos os postulados básicos, as conclusões se seguem por uma lógica impessoal, comprovada e universalmente iguais para todo mundo. O cientista pode provar tudo. O artista, ao contrário, nada pode provar; oferece apenas sua experiência que o espectador individual pode ou não aceitar e reconhecer, como correspondendo a algo que ele preza. Nem pode o crítico provar coisa alguma. Pois o valor de uma obra de arte só é calculado com referência a um julgamento subjetivo. (STEPHENSON; DEBRIX: 1969, p.223)

Gramsci considera que cada grupo social com papel no sistema de

produção teria os seus próprios intelectuais, concebidos por ele como

orgânicos, que são aqueles que se dedicam a defender ou criar a ideologia de

uma categoria específica. E o proletariado também produziria intelectuais

orgânicos. Assim, todo homem é capaz de desenvolver uma atividade

intelectual, independentemente do grupo ao qual pertence.

Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar. (GRAMSCI, 1979: p. 8)

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Apesar de toda a teoria acerca da intelectualidade múltipla existente até

mesmo nas classes menos favorecidas, como a dos periféricos, Gramsci afirma

que existia, e acrescentamos ainda existe, uma divisão entre o povo e os

intelectuais: “[...] existe uma fratura entre o povo e os intelectuais, entre o povo

e a cultura.” (GRAMSCI, 1979: p. 26). Logo, haveria um afastamento entre as

classes, pois os mais humildes encontram-se privados de uma boa formação

escolar, afastados da erudição, que seria controlada por um grupo monopólico

de cultura. Esse processo de inacessibilidade aos bens culturais, descrito pelo

intelectual sardo, só perde força a partir do momento em que a educação

passa a ser implementada mais fortemente na Itália, reduzindo o número de

analfabetos e, consequentemente, possibilitando ao povo o acesso a um novo

universo de intelectualidade.

Outra questão relevante, a da identidade italiana, ainda é bastante

complexa nos dias atuais, tendo sido determinante para que as injustiças

sociais se mantivessem durante o século XX, pois as dificuldades econômicas

sempre recaíram com mais força sobre aqueles que sofriam com o

analfabetismo e consequente pobreza. O sentimento de italianidade se

construiu demasiadamente lento no país, surgindo, primeiramente, apenas

numa pequena parte de detentores do poder econômico ou cultural, que

dominavam a língua nacional. Gramsci afirma que a língua é um elemento

objetivo de criação de um sentimento nacional:

Sentimento nacional, não popular-nacional: isto é, um sentimento puramente “subjetivo”, não ligado à realidade, a fatores, instituições objetivas. Trata-se ainda, por isso, se um sentimento de “intelectuais”, que sentem a continuidade de sua categoria e de sua história, única categoria que teve uma história ininterrupta. Um elemento objetivo é a língua, mas – na Itália – ela se alimenta pouco, em seu desenvolvimento, da língua popular que não existe (exceto em Toscana), ao passo que existem os dialetos. (GRAMSCI, 1979: p. 58)

Na Itália, onde havia enormes diferenças dialetais, a constituição desse

sentimento era dificultada, apesar da grande migração interna, do enorme

deslocamento dos habitantes das regiões mais pobres do país para os grandes

centros e zonas mais industrializadas. Os migrantes internos constituíam a

força de trabalho no país, mas eram incorporadas em funções subalternas,

como Gramsci afirma:

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Após a formação de uma burguesia nacional e do advento do capitalismo, iniciou-se a emigração do povo trabalhador, que ia aumentar a mais-valia dos capitalismos estrangeiros: a debilidade nacional da classe dirigente, assim, atuou sempre negativamente. Ela não emprestou disciplina nacional ao povo, não o fez sair do municipalismo no sentido de uma unidade superior, não criou uma situação econômica que reabsorvesse as forças de trabalho emigradas, de modo que estes elementos se perderam, em grande parte, incorporando-se às nações estrangeiras em funções subalternas. (GRAMSCI, 1979: p. 69)

A imigração da mão-de-obra é um processo reconhecido como resultado

do método de estabelecimento do capitalismo, que dependia da exploração de

grandes quantidades de trabalhadores, pois as fábricas precisavam de

operários que fossem capazes de produzir em pouco tempo as demandas de

bens de consumo. Então, as cidades começam a se estabelecer tal como as

conhecemos atualmente e, como uma das consequências, surge a imigração

de trabalhadores, em massa.

O processo migratório gera o início das grandes diferenças sociais do

século XX, que culmina com as explorações de caráter econômico numa parte

da sociedade relacionada diretamente com a mão-de-obra. Assim, a

precariedade das condições de trabalho e a má remuneração, entre outros

fatores, criam condições para o estabelecimento e crescimento das periferias,

dos guetos etc. É essa periferia, esse gueto, as borgate, que estão no centro

das obras de Pier Paolo Pasolini analisadas no presente trabalho, que se

encaminha para as considerações finais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da produção poética de Pier Paolo Pasolini nos possibilitou

uma variada fonte de exploração, pois este multifacetado intelectual tangeu

diversos meios expressivos. Sua rica e polivalente obra gera um universo

instigante para quem ousa se debruçar sobre seu legado, já que Pasolini é

reconhecido por repensar sobre a própria função social de artista. Partindo da

poesia, alcançou muitas outras formas de arte e manifestou uma grande

consciência crítica e política.

Nosso trabalho não poderia englobar toda a criação desse polígrafo,

pois isto demandaria um estudo que iria além do nosso objetivo. Assim,

buscamos uma leitura direcionada a algumas das obras nas quais o escritor

bolonhês se inclinou à recriação poética dos subúrbios romanos do período

Pós-Segunda Guerra Mundial. Defendemos a ideia de que o espaço da borgata

romana e, também, a própria Cidade Eterna tiveram importância fundamental

na mímesis elaborada por Pasolini em suas primeiras obras, principalmente.

É possível encontrar similaridades entre as grandes cidades modernas,

a partir do processo de consolidação do sistema capitalista, já no século XIX,

até o advento das grandes economias mundiais que concentraram riquezas e

impuseram suas culturas em detrimento das especificidades regionais que

engrandeciam o mundo anteriormente. Logo, a massificação cultural, vista

como o sobressair de um modo de vida único e ditado pelas regras econômicas

globais, gerou um mecanismo de desvalorização e, consequentemente, uniu os

grandes centros numa única pátina de comportamentos. Este fato, agregado à

força centralizadora dos meios de comunicação modernos como cinema e a

televisão, permitiu o surgimento de gerações marcadas por um pensamento

único e “homologado”, na acepção de Pasolini. Desta forma, mesmo com

enormes similaridades entre as urbes modernas, percebemos que a obra

deixada por nosso autor não poderia utilizar-se de outros espaços, pois a Itália

do Pós-Guerra, particularmente Roma, apresentou características marcantes

entre as cidades européias. Destacamos as dificuldades de criação de uma

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identidade verdadeiramente italiana que, naquela época, tinha como elemento

desagregador as diferenças linguísticas evidenciadas na presença dos diversos

dialetos. Nosso escritor esteve inserido neste processo de mudanças físicas,

econômicas e, principalmente, culturais, como uma testemunha da decadência

daquilo que para ele era mais estimado, ou seja, a cultura “primitiva” que

resistia no ambiente de pessoas humildes, analfabetas, simples herdeiras de

uma tradição que já não existia em outros lugares.

A modernidade trouxe consigo transformações inerentes a este processo

de mudança; não foi possível a nenhum país crescer sem que se perdesse

alguma especificidade cultural, e Pasolini estava ciente disso. Mesmo assim

criticou exaustivamente a perda desse mundo “primeiro” e, ainda sabendo que

o globo passava por um transcurso inevitável, manteve suas posições, que já

nos anos anteriores a sua morte, pareciam ultrapassadas. Talvez ao fim, como

ele próprio afirmava, tornou-se um homem sem esperanças, ressaído ao seu

tempo.

Suas estratégias narrativas possibilitaram ao leitor de seus primeiros

romances uma imersão no universo de um grupo de segregados e esquecidos

pela sociedade romana; as páginas de suas narrativas recorrem,

constantemente, à descrição da geografia da cidade de Roma, principalmente

da região central e periférica. Da mesma forma, este intelectual optou por

produzir seus primeiros filmes, que no princípio tinham um caráter quase que

experimental, utilizando-se dos mesmos ambientes descritos em seus livros.

Voltamos a esclarecer que para este trabalho elegemos duas obras em

especial, o romance Una vita violenta e a obra cinematográfica Mamma Roma,

por apresentarem como tema as borgate romanas, lugares por onde Pasolini

circulou; e, na qualidade de testemunha in loco, pode retratar e recriar aquele

ambiente, recolhendo informações mais precisas dessa cultura.

Para melhor contextualizar nosso trabalho, fizemos, ainda, algumas

considerações acerca das teorias de Pasolini sobre as técnicas do cinema,

entre outras, pois elas representam a essência de uma vida dedicada ao

pensamento crítico direcionado aos diversos meios expressivos.

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Esse percurso de leitura da obra pasoliniana permitiu-nos identificar

diversas trilhas percorridas pelo artista, do Friuli ao Oriente, tendo como meta

alcançar o lugar original, utópico, no qual as pessoas mantivessem intacta a

sua cultura e não se deixassem “homologar” pelo neocapitalismo.

Por fim, esperamos que nosso estudo possa despertar ainda mais o

interesse pela produção poética de Pier Paolo Pasolini e contribuir para o

enriquecimento dos estudos literários italianos no Brasil.

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Título: Paixão e perversão: emblemas de uma vida em forma de poesia. Autor: Maria Lizete dos Santos Dissertação de Mestrado UFRJ Ano: 1993

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Sinopse: A crônica da vida de Pasolini: o alicerce familiar; o mito do “mundo primordial” do Friuli, do subproletariado romano, do Terceiro Mundo. A produção artística: a Poesia como emblema de paixão e perversão. Título: Poesia: o lugar do indizível em Pier Paolo Pasolini. Autor: Maria Lizete dos Santos Tese de doutorado UFRJ Ano: 2001

Sinopse: O olhar e a escrita-plural de Pier Paolo Pasolini. As trilhas da literatura ao cinema. Os referentes teóricos pasolinianos. As reinvenções no pacto entre a Realidade à Poesia.

Afinidades eletivas: o diálogo de Glauber Rocha com Pier Paolo Pasolini (1970-1975) Autor: Duvaldo Bamonte Tese de doutorado USP Ano: 2002 Este trabalho discute principalmente a interlocução do cineasta brasileiro Glauber Rocha com os europeus, em especial o diretor italiano Pier Paolo Pasolini, buscando similaridades entre os filmes Cabeças cortadas (1970) e Porcile (1969), além de explorar a temática de viagem em Claro (1975) e Uccellacci e Uccellini (1966). Recortes e rasuras no corpo: Sagrado e erotismo no Teorema de Pasolini

Autor: Erly Milton Vieira Junior

Dissertação de mestrado

UFF

Ano: 2004

O trabalho estuda as noções de sagrado, erotismo e corpo defendidas por

Pasolini em contraste com o pensamento de autores como Bataille e Auge,

além de outros mais. Estuda, ainda, elementos da linguagem cinematográfica

propostos pela teoria do cinema de poesia para a criação de uma discussão do

corpo na função de espaço transgressivo.

Pier Paolo Pasolini: O cinema como língua escrita da ação Autor: Adao Fernandes da Silva Dissertação de mestrado UFMG Ano: 2007

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Esta dissertação analisa a parte teórica desenvolvida por Pier Paolo Pasolini acerca das técnicas cinematográficas, objetivando criar uma pertinência do pensamento pasoliniano com questões atuais ligadas à semiótica e à teoria do cinema. Pier Paolo Pasolini : uma poética da realidade Autor: Marlos Guerra Brayner Dissertação de mestrado Unb Ano: 2008 Este trabalho faz uma leitura do livro Empirismo eretico considerando aspectos de teoria linguística e cinematográfica na obra de Pasolini. O autor faz uma análise de poemas e filmes do intelectual bolonhês estudando as suas noções de um sistema de representação semiótica e de realidade. Protegido pelas contradições - Coletânea de crônicas jornalísticas de Pier Paolo Pasolini (1960 a 1965) Autor: Aline Greff Buaes Dissertação de mestrado USP Ano: 2009 A autora apresenta uma tradução comentada do italiano para o português de uma coletânea de crônicas publicadas por Pier Paolo Pasolini na coluna semanal da revista Vie Nuove entre os anos de 1960 e 1965. De Ragazzi di vita a Accattone: Pier Paolo Pasolini da literatura ao cinema. Autor: César Casimiro Ferreira Dissertação de Mestrado UFRJ Ano: 2009 Neste trabalho, focalizam-se o romance Ragazzi di vita e o filme Accattone, ambos de autoria do escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, com o escopo de se analisar as relações entre Literatura e Cinema, sob diversos ângulos. A análise se centra, em especial, na questão da transposição da narrativa literária em escrita cinematográfica (argumento, roteiro) e decupagem. Também, reflete-se sobre a forma de vida nas periferias romanas do pós-guerra. O cinema trágico-poético de Pier Paolo Pasolini: Appunti per un’Orestiade africana; Édipo rei; Medeia. Autor: Ulysses Maciel de Oliveira Neto Tese de doutorado UERJ Ano: 2009

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A tese se dedica ao estudo das obras de Pier Paolo Pasolini direcionadas aos textos clássicos ligados a questão existencial arcaica/ humana, como a continuação de Oréstia, de Esquilo, Appunti per un’Orestiade africana (1967) e Edipo re (1967). Assim, o autor defende a adequação do trágico ancestral ao “cinema de poesia” de Pasolini. Salò e o Cinema Impopular segundo Pier Paolo Pasolini Autor: Flávio Costa Pinto de Brito Dissertação de mestrado PUC-Rio de janeiro Ano: 2010 Esta dissertação estuda o último filme de Pier Paolo Pasolini, Salò, o 120 giornate di Sodoma (1975), buscando uma relação entre esta produção cinematográfica e os escritos do intelectual italiano contidos nos livros Empirismo Eretico (1972), Scritti corsari (1975) e Lettere Luterane (1976), assim, relacionando influências teóricas anteriores na obra de Pasolini que culminaram na realização de sua derradeira obra para o cinema. Pier Paolo Pasolini, l'uomo arrabbiato: um percurso para o trágico Autor: Maria Rita Aguilar Nepomuceno de Oliveira Dissertação de mestrado UNICAMP Ano: 2010 Esta dissertação analisa, principalmente, os aspectos trágicos no cinema de Pier Paolo Pasolini, além de tratar destes aspectos em diversas outras obras como: Accattone, Mamma Roma, Il Vangelo secondo Matteo, entre outras. Ainda estuda os mitos trágicos nas peças Orgia, Affabulazione e Pilades. Já nas obras La Rabbia e Appunti per un'Orestiade africana analisa a teoria acerca dos documentários e também estuda as tragédias gregas recriadas por Pasolini como Edipo Re e Medea, além da “tragédia moderna” em Teorema. Michel Foucault, leitor de Pasolini: a propósito da ontologia do presente

Autor: Francisco Victor

Tese de doutorado

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia/ UFPB-UFPE-UFRN

Ano: 2012

Esta tese aproxima o pensamento de Michel Foucault e Pier Paolo Pasolini

numa discussão acerca de uma ética de atitudes para uma filosofia do

presente, levando em conta o que foi produzido na vida e na obra de ambos

intelectuais.

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Murilo Mendes, Pier Paolo Pasolini e as religiões de seus tempos. Autor: Vinícius Nicastro Honesko Tese de doutorado UFSC Ano: 2012 Esta tese faz um estudo comparativo entre as poéticas de Pier Paolo Pasolini e Murilo Mendes, considerando o processo de esvaziamento da linguagem e modos de vida no mundo moderno. O autor da tese defende que os dois poetas viveram as “religiões de seus tempos” e fizeram uma leitura particular do mundo no qual estavam inseridos, quando esse lhes foi apresentado com aspectos do impossível.

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ANEXOS: Obras de Pier Paolo Pasolini Narrativa: 1. Ragazzi di vita, 1955 2. Una vita violenta, 1959 3. Atti impuri, Amado mio, 1982 4. Il sogno di una cosa, 1962 5. Alì dagli occhi azzurri, 1965 6. Teorema, 1968 7. La divina Mimesis, 1975 8. Un paese di temporali e di primule, 1993 9. Romàns, 1994 10. Storie della città di Dio. Racconti e cronache romane 1950-1966 11. Petrolio, 1992 Poesia: 1. Poesia a Casarsa, 1942 2. Poesie, 1945 3. I diarii, 1945 4. I pianti, 1946 5. Dov’è la mia patria, 1949 6. Tal còur di un frut, 1953 7. La meglio gioventù, 1954 8. Il canto popolare, 1954 9. Dal diario, 1954 10. Le ceneri di Gramsci, 1957 11. L’usignolo della chiesa cattolica, 1958 12. Roma 1950, 1960 13. Sonetto primaverile, 1960 14. La religione del mio tempo, 1961 15. Poesia in forma di rosa, 1964 16. Poesie dimenticate, 1965 17. Trasumanar e organizzar, 1971 18. La nuova gioventù, 1975 Antologias: 1. Poesie, 1970 2. Le poesie, 1975 3. Poesie e pagine ritrovate, 1980 4. Per conoscere Pasolini, 1981 5. Sette poesie e due lettere, 1985 6. Pier Paolo Pasolini, “Una vita futura”, 1985

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Ensaios e entrevistas: 1. La poesia dialettale del novecento, 1952 2. Canzoniere italiano. Antologia della poesia popolare. 1955 3. Passione e ideologia, 1960 4. L’odore dell’India, 1962 5. Empirismo eretico, 1972 6. Scritti corsari, 1975 7. Lettere luterane, 1976 8. Volgar’eloquio, 1976 9. Le belle bandiere, 1977 10. Il caos, 1979 11. Descrizioni di descrizioni, 1979 12. Il sogno del centauro, 1983 13. Il portico della morte, 1988 Teatro: a- Traduções: 1. L’Orestiade, de Ésquilo, 1960 2. Il Vantone, de Plauto, 1963 b- Obras: 1. Orgia, 1968 2. Caldéron, 1973 3. I Turcs tal Friùl, 1976 4. Affabulazione, Pilade, 1977 5. Porcile, Orgia, Bestia da stile, 1978 Epistolário: 1.Lettere 1940-1954, 1986 2. Lettere 1955-1975, 1988 Obra gráfica: 1. I disegni 1941-1975, 1978

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Filmografia (ficha técnica): Direção: 1961 Accattone Argumento, roteiro e direção: P. P. Pasolini; colaboração aos diálogos: Sergio Citti; fotografia: Tonino Delli Colli; cenografia: Flavio Mogherini; música: Carlo Rustichelli; música de J. S. Bach «Passione secondo Matteo»; montagem: Nino Baragli; ajuda na direção: Bernardo Bertolucci; assistente de direção: Leopoldo Savona; intérpretes: Franco Citti (Vittorio Cataldi vulgo Accattone), Franca Pasut (Stella), Silvana Corsini (Maddalena), Paola Guidi (Ascenza), Adriana Asti (Amore), Adriano Mazzelli (o cliente de Amore), Romolo Orazi (sogro de Accattone), Massimo Cacciafeste (cunhado de Accattone), Francesco Orazi (o Burino), Mario Guerani (o delegado), Stefano D’Arrigo (o juiz), Enrico Fioravanti (agente policial), Nino Russo (agente policial), Emanuele di Bari (Pietro), Franco Marucci (Franco), Carlo Sardoni (Carlo), Adriana Moneta (Margheritona), Polidor (agente funerário), Danilo Alleva (Iaio), Sergio Citti (o garçom), Elsa Morante (uma detenta); os amigos de Accattone: Luciano Conti (o Moicano), Luciano Gonini (Piede d'oro), Renato Capogna (o Capogna) Alfredo Leggi (Pupo Biondo), Galeazzo Riccardi (o Cipolla), Leonardo Muraglia (Mommoletto), Giuseppe Ristagno (Beppe o louco), Roberto Giovannoni (o Tedesco), Mario Cipriani (Balilla), Roberto Scaringella (Cartagine), Silvio Citti (Sabino), Giovanni Orgitano (o Scucchia), Piero Morgia (Pio); os napoletanos: Umberto Bevilacqua (Salvatore), Franco Bevilacqua (Franco), Amerigo Bevilacqua (Amerigo), Sergio Fioravanti (Gennarino), Adele Cambria (Nannina), Mario Castiglione (Mario), Dino Frondi (Dino), Tommaso Nuovo (Tommaso); produção Arco Film (Roma) / Cino Del Duca (Roma); produtor: Alfredo Bini; distribuição: Cino Del Duca; duração: l16`.

1962 Mamma Roma Argumento, roteiro e direção: P. P. Pasolini; colaboração aos diálogos: Sergio Citti; fotografia: Tonino Delli Colli; cenografia: Flavio Mogherini; coordenação musical: Carlo Rustichelli; música: Antonio Vivaldi: “Concerto em dó maior para flauta, cordas e baixo contínuo”; “Concerto em dó maior para fagote, cordas e baixo contínuo”; “Concerto em ré menor para viola d'amore, alaúde, cordas e baixo contínuo” ; “Violino tzigano” de Cherubini e Bixio, cantado por Joselito; montagem: Nino Baragli; Ajuda na direção: Carlo di Carlo; assistente de direção: Gianfrancesco Salina; intérpretes: Anna Magnani (Mamma Roma), Ettore Garofolo (Ettore), Franco Citti (Carmine), Silvana Corsini (Biuna), Luisa Orioli (Biancofiore), Paolo Volponi (o padre), Luciano Gonini (Zaccarino), Vittorio La Paglia (o senhor Pellissier), Piero Morgia (Piero), Leandro Santarelli (Begalo, o Roscio), Emanuele di Bari (Gennarino o Trovatore), Antonio Spoletini (um bombeiro), Nino Bionci (um pintor), Roberto Venzi, Nino Venzi (um cliente), Maria Beinardini (a esposa), Santino Citti (pai da esposa), Lamberto Maggiorani (um doente); os amigos de Ettore: Franco Ceccarelli

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(Carletto), Marcello Sorrentino (Tonino), Sandro Meschino (Pasquale), Franco Tovo (Augusto), Pasquale Ferrarese (Lino lo Spezzino); prostitutas: Elena Cameron, Maria Benati; enfermeiros: Renato Montalbano, Enzo Fioravanti; peripatéticos: Loreto Ranalli, Mario Ferraguti; cafetões: Renato Capogna, Fulvio Orgitano, Renato Troiani; coagidos: Mario Cipriani, Paolo Provenzale; doentes: Umberto Conti, Sergio Profili, Gigione Urbinati; produtor: Alfredo Bini; distribuição: Cineriz; duração: 105`. 1963 La ricotta (episódio de RoGoPaG) Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia (preto, branco e cor): Tonino Delli Colli, cenografia: Flavio Mogherini; figurinos: Danilo Donati; música: Carlos Rustichelli; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Orson Welles (o diretor), Mario Cipriani (Stracci), Laura Betti (a primeira atriz), Edmonda Aldini (a segunda atriz), Vittorio La Paglia (o entrevistador), Ettore Garofolo, Maria Bernardini; produção; Arco film-Cineriz-Lyre; distribuição: Cineriz La rabbia (primeira parte) Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; material de arquivo e de repertório; montagem; Nino Baragli; comentário: Giorgio Bassani e Renato Guttuso; produção: Gastone Ferrante pela Opus film; distribuição: Warner Bros. 1964 Comizi d’amore Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia: Mario Bernardo e Tonino Delli Colli; montagem: Nino Baragli; intervenções e entrevistas: Pier Paolo Pasolini, Alberto Moravia, Cesare Musatti, Giuseppe Ungaretti, Camilla Cederna, Adele Cambria, Oriana Fallaci, Antonella Lualdi; comentário: Lello Bersani e P.P. Pasolini; produção: Alfredo Bini pela Arco film; distribuição; Titanus. Sopralluoghi in Palestina Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia: Aldo Pennelli; intervenções: don Andrea Carraro e P.P.Pasolini; comentário: P.P. Pasolini; produção: Arco film. Il Vangelo secondo Matteo Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia: Tonino Delli Colli; cenografia: Luigi Scaccianoce; figurino: Danilo Donati; música: J. S. Bach, W. A. Mozart, A. Webern, S. Prokofiev, Missa Luba congolês; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Enrique Irazoqui (Cristo), Margherita Caruso - Susanna Pasolini (Maria), Marcello Morante (José), Mario Socrate (João), Ferruccio Nuzzo (Mateus), Alfonso Gatto (André), Enzo Siciliano (Simão), Rodolfo Wilcock (Caifás), Francesco Leonetti (Herodes II), Natalia Ginzburg (Maria de Betânia), Settimo Di Porto, Rossana di Rocco; produção: Alfredo Bini pela Arco film, Lux C.ie cinématographique de France; distribuzione: Titanus. 1966

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Uccellacci e uccellini Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia: Mario Bernardo e Tonino delli Colli; cenografia: Luigi Scaccianoce; figurino: Danilo Donati; música: Ennio Morricone; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Totò (o pai), Ninetto Davoli (o filho), Femi Benussi (a prostituta), Rossana di Rocco, Lena Lin Solaro, Gabriele Baldini, Francesco Leonetti (a voz do corvo); produção: Alfredo Bini pela Arco film; distribuição: Cidif. La terra vista dalla luna (episódio de Le streghe) Argumento e roteiro: Pier Paolo Pasolini; fotografia (technicolor): Giuseppe Rotunno; cenografia: Mario Garbulia e Piero Poletto; figurino: Piero Tosi; música: Piero Piccioni; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Silvana Mangano (Assurda Caì), Totò (Ciancicato Miao), Ninetto Davoli (Basciù Miao), Laura Betti, Mauro Cipriani; produção: Dino De Laurentiis; distribuição: Dear-United Artists. 1967 Che cosa sono le nuvole (episódio de Capriccio all’italiana) Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Tonino Delli Colli; cenografia e figurino: Jurgen Henze; música: Domenico Modugno e P. P. Pasolini; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Toto (Jago), Ninetto Davoli (Otello), Laura Betti (Desdemona), Adriana Asti (Bianca), Franco Franchi (Cassio), Ciccio Ingrassia (Roderigo), Francesco Leonetti (o marionetista), Domenico Modugno, Carlo Pisacane; produção: Dino De Laurentiis; distribuição: Dear-United Artists. Edipo re Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Giuseppe Ruzzolini; cenografia: Luigi Scaccianoce; figurino: Danilo Donati; montagem: Nino Baragli; intérpretes Franco Citti (Édipo), Silvana Mangano (Jocasta), Alida Valli (Mérope), Carmelo Bene (Creonte), Julian Beck (Tirésias), Francesco Leonetti, Ninetto Davoli, P. P. Pasolini; produção: Alfredo Bini pela Arco film; distribuição: Euro. 1968 Teorema Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (eastmancolor): Giuseppe Ruzzolini; cenografia: Luciano Puccini; música: Ennio Morricone; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Terence Stamp (o hóspede), Silvana Mangano (Lucia, a mãe), Massimo Girotti (o pai), Anne Wiazemsky (Odetta), Andrès José Cruz (Pietro), Laura Betti (Emilia), Ninetto Davoli, Alfonso Gatto, Carlo De Mejo; produção: Manolo Bolognini e Franco Rossellini pela Aetos film; distribuição: Euro. La sequenza del fiore di carta (episódio de Amore e rabbia) Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Giuseppe Ruzzolini; música: Giovanni Fusco; intérpretes: Ninetto Davoli; produção: Castoro film e Anouchka film (Itália-França); distribuição: Italnoleggio.

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1969 Appunti per un film sull’India Curta-metragem para um projeto de filme sobre a Índia. (apresentado num programa televiso TV 7). Appunti per una Orestiade africana Argumento: P. P. Pasolini; fotografia: Giorgio Pelloni; produção: Gian Vittorio Baldi; distribuição: Dae. Porcile Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Tonino Delli Colli, Armando Nannuzzi, Giuseppe Ruzzolini; cenografia: Danilo Donati; música: Benedetto Ghiglia; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Pierre Clementi (o homem do deserto) Jean-Pierre Léaud (Julian), Alberto Lionello (Klotz) Ugo Tognazzi (Herdhitze), Anne Wiazemsky (Ida) Marco Ferreri (Hans Günther), Franco Citti, Ninetto Davoli, Margherita Lozano; produção: Gian Vittorio Baldi pela IDI cinematografico, l film del1’Orso, CAPAC (Itália-França); distribuição: Indief. Medea Argumento e roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (eastmancolor): Ennio Guarnieri; cenografia: Dante Ferretti; figurinos: Piero Tosi; música: coordenada pelo autor; montagem: Nino Baragli; intépretes: Maria Callas (Medea), Giuseppe Gentile (Jasão), Laurent Terzieff (o centauro), Massimo Girotti (Creonte), Margareth Clementi (Glauce), Paul Jabara, Gerard Weiss; produção: Franco Rossellini pela In San Marco, Les film number one, Janus film (Itália-França-Alemanha); distribuição: Euro. 1971 Il Decameron Roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Tonino Delli Colli; cenografia: Dante Ferretti; figurinos: Danilo Donati; música: Ennio Morricone; montagem: Nino Baragli; lntérpretes: Franco Citti (Ser Ciappelletto), Ninetto Davoli (Andreuccio), Angela Luce, Jovan Jovanovic, Giuseppe Zigaina, P. P. Pasolini; produção: Franco Rossellini pela Pea, Les productions Artistes Associés, Artemis film (Itália-França-Alemanha); distribuição: UA-Europa. 1972 12 dicembre Colaboração ao filme sobre o 12 de dezembro 1969, produzido e divulgado por Circoli Ottobre-Lotta continua; distribuição (comercial): Due. I Racconti di Canterbury Roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Tonino Delli Colli; cenografia: Dante Ferretti; figurinos: Danilo Donati; música: Ennio Morricone e P. P. Pasolini; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Hugh Griffith (Gennaio), Laura

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Betti (a mulher de Bath), Ninetto Davoli (Perkin), Josephine Chaplin (Maggio), Franco Citti, Alan Webb, P. P. Pasolini; produção: Alberto Grimaldi pela Pea; distribuição: UA-Europa. 1974 Il fiore delle Mille e una notte Roteiro: P. P. Pasolini; fotografia (technicolor): Giuseppe Ruzzolini; cenografia: Dante Ferretti; figurinos: Danilo Donati; música: Ennio Morricone; montagem: Nino Baragli e Tatiana Casini Morigi; intépretes: Ninetto Davoli (Aziz), Franco Citti (o demônio), Franco Merli, Ines Pellegrini, Teresa Bouché, Margareth Clernenti; produção: Alberto Grimaldi pela Pea e Les productions Artistes Associés (Itália-França); distribuição: UA-Europa. 1975 Salò o Le 120 giornate di Sodoma Roteiro: P. P. Pasolini e Sergio Citti; fotografia (technicolor): Tonino Delli Colli; cenografia: Dante Ferretti; figurinos: Danilo Donati; música: coordenada por Ennio Morricone; montagem: Nino Baragli; intérpretes: Paolo Bonacelli ( o Duque), Giorgio Cataldi (o monsenhor), Umberto Paolo Quintavalle (a Excelência), Aldo Valletti (o Presidente), Caterina Boratto (senhora Castelli), Elsa De’Giorgi (senhora Maggi), Hélène Surgère (senhora Vaccari), Sonia Saviange (a pianista), Ines Pellegrini, Franco Merli; produção: Alberto Grimaldi pela Pea e Les productions Artistes Associés (ltália-França); distribuição: UA-Europa.

Colaborações: 1954 - La donna del fiume de Mario Soldati (roteiro em colaboração) 1955 - Il prigioniero della montagna de Luis Trenker (roteiro em colaboração) 1957 - Le notti di Cabiria de Federico Fellini (colaboração para os diálogos em romanesco) 1957 - Marisa, la civetta de Mauro Bolognini (roteiro em colaboração). 1958 - Giovani mariti de Mauro Bolognini (roteiro em colaboração). 1959 - Morte di un amico de Franco Rossi (colaboração em argumento). 1959 - La notte brava de Mauro Bolognini (roteiro e argumento). 1960 - La dolce vita de Federico Fellini (colaboração ao roteiro). 1960 - Il bell’Antonio de Mauro Bolognini (roteiro em colaboração). 1960 - La giornata balorda de Mauro Bolognini (argumento e roteiro em colaboração).

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1960 - Il carro armato dell’8 di settembre de Gianni Puccini (roteiro em colaboração). l960 - La lunga notte del 43 di Florestano Vancini (roteiro em colaboração). 1960 - La canta delle marane (curtametragem) de Cecilia Mangini (argumento e comentários). 1961 - La ragazza in vetrina de Luciano Emmer (roteiro em colaboração). collaborazione). 1962 - Una vita violenta de Brunello Rondi e Paolo Heusch (argumento e colaboração ao roteiro). l962 - La commare secca di Bernardo Bertolucci (argumento e consultoria para o roteiro). 1969 - Ostia de Sergio Citti (argumento e roteiro em colaboração, supervisão à direção). 1972 - Dodici dicembre de Giovanni Bonfanti (cooperação à idealização e às filmagens). 1973 - Storie scellerate di Sergio Citti (argumento e roteiro em colaboração).

Como ator: 1960 - ll gobbo de Carlo Lizzani (Leandro, o aleijado). 1967 - Requiescant de Carlo Lizzani (Don Juan). 1967 - Edipo re (o grande Sacerdote). 1971 - Il Decameron (aluno de Giotto). 1972 - I racconti di Canterbury (Geofffey Chaucer).