roche daniel cultura das aparencias cap.5

32
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Daniel

Rache

A c u t t u r ~

d ~ s ~ r ~ r ê n c í ~ s

~

 

i ~ ~ N i ~ ~ Uma

h i ~ t ó r i a da

indumentária

s7945S

seculos

XVII-XVIII)

J JF

f C G SP R

Ó ipo

 81b

 

oteca

Data 

Tradução

Assef Kfouri

enac

IFSC

Cãmpus

Gaspar

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s

k ~ i

er l. r

'] f

f l. ~ f l . l. ?

f l.

n f l. nf l. f l.

ri

LuÍ

X V

,l.,

LuÍ XVI

Paris era

uma

cidade

onde se

julgava pela

aparênc

ia;

não há

país no

mundo

onde seja mais fácil

se impor por ela.

Casanova,

Memórias.

ARECONST

IT

UIÇÃO da hierarquia das

aparências

parisienses é prejudicada

por lacunas nas fontes. Entretanto, essas mesmas lacunas podem

elucidar

cer

tos aspec

to

s do antigo sistema indumentário.

1

Analisemos primeiro a questão

da propriedade privada. Quando o notário, e depois o historiador, tenta esti

mar

o valor da roupa

na

fortuna de uma família, um e outro são obrigados a

kvar em

conta

as

posses

de

cada

um

dos cônjuges, as quais,

em

vir t

ude

das

cláusulas

contratuais

de

casam

ento,

eram

excluídas da c

omunhão

de

bens. Por

ISO , todo o guarda-roupa, ou parte dele, pode desaparecer, embora

as

roupas

possam ser descritas sem serem avaliadas. Os historiadores das províncias são

misafortunados, pois às vezes encontram

detalhes

de enxovais de

casamen-

.,1coisa

extremamente rara em Paris, onde a ata

de

matrimônio

se

contentava

fazer uma breve descrição e avaliação das roupas de cada cônjuge.

3

Thdas

I

noss s

cifras ~ v e m ser vistas como

mínimas

, cómo estimativas rasas.

\ogler (org.), Les

actes otari

és

sou

rce de l l istoire

socialc XVI  - XIX siêcl

es Estrasburgo, 1979.

T

Lmoq

ue,

•Lc

li

nge de maison d ans l

cs tro

ussca

ux du

p

ays

Onh

c•, em

Etlmologie fra n

Çlli.re

,

1986.

A

Daumard F. ur

et, Stnrctures socrales

à

Pt

  s

a u XVTil  siêcle Pari

s,

1967, pp. 7-11 .

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98 oG\

A economia

do

s guarda-roupas

s

inventários eos índices

de circul ção

Os preços registrados pelos notários eram,

em

geral, acima do preço r

eal

que

os bens poderiam alcançar, se levados a leilão.

4

Isso não invalida noss

amostragem, pois nosso propósito não é uma história dos preços de roupa,

que não seria

de

todo desinteressant

e

mas um estudo da evolução de

valores

similares entre os reinados de Luís XIV e Luís XVI.

Ir

além exigiria out

ros

instrumentos, a criação

de

um índice complexo

de

preços, levando

em

conta

qualidade, e

uma

comparação do novo não impossível com base

em

t u r s  

com o usado (por meio dos inventários notariais). Não é o valor comercial

das roupas

que nos

interessa, mas suas mudanças e na medida do possíve

l

a

comparação com outros elementos que com elas combinam para formar um

sistema, tais como jóias e acessórios.

Existem outras possíveis omissões prejudiciais.

A

fraude provavelmente

afetou as roupas

menos

do

que

outros elementos do patrimônio, como ouro,

dinheiro e jóias. De qualquer modo, é absolutamente

impossível avaliar a frau-

de, e e la tem um papel menos importante do que numerosos outros casos de

desaparecimento, que revelam o papel complexo da roupa na economia coti

diana da cidade.

6

É

possivel que, pelo

menos

nos estratos inferiores da socieda-

de, a ausência total de roupas em um inventário notarial possa simplesmente

indicar extrema pobreza. Os verdadeiros pobres deixavam a vida terrena com

um

único traje e um par

ele

sapatos, e eram enterrados com todos os seus per

tences.

As

descrições

subseqüentes de

suas roupas ressaltam dois traços

ca

racterísticos deles: eles usavam andrajos e remendavam as roupas adquiridas

no mercado

ele

segunda mão; vestiam tudo o que possuíam, de acordo com os

relatór

io

s preparados no necrotério

7

e com os boletins de ocorrência da polícia

quando da prisão de vagabundos nas estradas da le-de-France.

8

Não me foi possível encontrar. até o momento , os registros

de

leilões nos arquivos parisienses. Nas

pro-

víncias, esse tipo de fonte raramente tem sido descoberto c utilizado, pois a penas um a peq u

ena

parte

dos inventários oco

rreu

por

meio de

liquidação j udicial ou venda.

Ver

mai s adiante, o

capí

tulo

8, ·o

triunfo d

as

aparências: nobr

es c roup

as•.

A situação não

era

muito diferente nas cidades de província estudadas. Cf.

A

Joffre, Le uérement à Li·

mogcs er rlans ses cnuirons d apri:s

Ics

iuuentaires apri;s

déci:s,

1740-1840, trabalho

de

conclusão de curso

Limoges, 19

80 (8 do

s inventários deixam

de men

cionar roupas); B. Garnot, C

la

sses populaires

urbame.s

au

XV

III  siêcle, l e.remple de Clrarrres, tese

de

doutorado e m Letras, 3 vols., tomo 2, Renncs, 1985 ,

pp .

52

4-543 .

R.

Cobb,

a more

Paris, 1rad. fra ncesa, 1985, pp. 21-24

c

70-86; O. Roche, Le peuplc de

Paris,

Paris, 1981,

pp.

190- 1

97.

Das 278 pessoas presas

em

1780, somente 28 possuíam

uma

muda d e roupa. Cf. M. Chreticn, La pop11la·

tion marginale dans le.s enuirons de Pans à

la

ueillc de

la

Réuolwion, trabalho

de

conclusiío

de

curso, P  ris

I, 1985, pp. 1

3,

1-140.

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s de Lu is XlV a Lu is XV ibo 99

Mais freqüentemente os pt . s dos cônjuges sobreviventes eram con

siderados bens pessoais e por isso

escapavam

da divisão entre he rde iros. Esse

é

provavelmente o principal motivo

do

d

esaparecimento

de 10 % a 15%

dos

guarda-r

oupas mascu linos e fem ininos. Não seria de todo impossível recobrá

los no momento do óbito algu ns

anos mais

tarde, mas somente após um esfor

ço que seria desproporcional aos resultados, e

sem

garantia de sucesso, dadas

as dificuldades de pesquisa nos arquivos notariais. Na maioria dos casos, há

explicações

para a ausência

de

roupa

s:

a

partilha post mortem

e

ntr

e os filhos,

as

doações,

a ca rênc ia temporária a venda em benefício da comunidade.

A dita viúva declara que os be ns pessoais e roupas-br

ancas do

dito defun

to foram parcialme nte d

est

inados para o uso dos ditos fi l

hos

e parcialmente

vendidos,

e o dinhe iro daí proveniente usado para mandar rezar missa a Deus

pelo dito defunto. 

9

Cuidadosamente registrada pelo notário, a declaração feita

pela

esposa do mestre Pierre Richandeau, um fabrican te de fitas, mostra que a

revenda e a re utilização de roupas não

se

limitavam às classes in fer iores, e qu e

as duas práticas e

ram

freqüente m

en

te associadas - era um modo de as famílias

enfrentarem um pe ríodo de dificuldades. A viúva de Jean-Baptiste Thie rry, ad

vogado no Parlamento de Paris, declarou

no inventário

que não havia roupas

pretas, po rque seu filho e o dito Cha ntrelle, seu criado, as usaram como trajes

de

luto

•. Nesse caso, a reutilização estava liga

da

às

nec

es

sidad

es

do luto fami

liar e doméstico. Essa e ra uma

pr

ática c

omum

, como ilustra a a ntiga

canção

:

'

Qu

ando vovô morrer, vou ficar com

suas

velhas calças, qua

nd

o vovô morrer,

vou ficar

co

m suas calças de pa no  . A transmissão das roupas do avô para os fi

lhos e netos era talvez em parte uma expressão da transferência de autoridade

e redistribuição de papéis

de uma

geração a outra, e

sp

ecialmente no ca mpo,

apesar

de nas cid

ades

também. A prática sobrevive ainda hoje, c

om

uma forte

carga

afetiva e simbólica, quando conservamos alguns itens e m nosso guarda

roupa

ap

ós

a

mort

e de

alguém

me nos

por

seu

valor prático do

qu

e

par

a nos

lem

brar de que m os usou e para refo rça r uma fidelidade. Na sociedade antiga,

a

escassez faz

ia de tais atos de reutil ização uma necessidade.

11

Os hospitai

s,

os pobre

s,

os indigentes, os amigos e os parentes menciona

dos

nos testamentos

er

am os principais beneficiários da redistribuição cotidiana.

'Quanto às roupas do dito defundo, a dita viúva Poulain [esposa de um padeiro]

declarou

que, como seu esposo havia fa lecido no hospital de la Cha rité, suas rou-

' Archives nationales. Minutier

cc

mral, LX IX, 185, 1701.

J\rchives nationales. Minmier central,

XII

, 654, 1776.

Archives nationales. Minutie r ce

nt r

al, IV 336, 1707 (inve

nt

ário pós

tumo de J\dricn

Vo

ll

éc, comer

cia

nte

de carne .

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100

-<f,

A economia dos guarda-roupas

pas tinham

fi

cado lá, e que ela dera a um pobre

uma

velha calça de couro.n 2 Doa

ções de roupa

como

caridade eram co

muns em

todos os estratos

da

sociedade.

Eram parte

da

ec

onomia de

doação, e se m dúvida

um

a parte não negligenciável,

tanto

por suas

çons

eqüênci

as financeiras diretas quanto

por

se

us efeitos cultu

rais indiretos;

quer

por revenda quer por doação

de

caridade, as roupas

de

um

grupo ficava m disponíveis para outro. A viúva Picheis

inf

ormou

que seu

mari

d

o,

um advogad

o,

tendo morrido no Hospital Municipal, deixou o excedente

de

suas roupas par

a

aqu

ela instituição, co mo

é

hábito 

13

O como

é

h ábito sugere

uma ordem

de

grandeza, pois a mortalidade hospitalar provavelmente represen-

tava um quarto de todas as

mort

es em Paris. Mesmo que nem todos tivessem

algo para deixar, um bom número contribuía tanto para o precário equilíbrio

das

finanças das casas de saúde quanto para a circulação social das roupas.

1

'

1

Quando assinalam ausê ncias, os inve

nt

ários podem revel

ar

outras práticas.

Breves anotações às v z s mostram o cônjuge sobrevivente recuperando roupas

deixad

as

com

uma

lavade ira ou lavanderia.

O

inventário do m

es

tre Guillaume

Bertrand, um fundidor de metal e dourador residente na rue de la Verrerie, é

um exemplo disso: Segue a lista de roupas que está na lavanderia, dois lençóis,

uma

camisa de

hom

e m, uma camisa de mulher, uma pillia de guardanapos, dois

goJTos

de

lã,

um

a trouxa

de

panos

de

prato e dois lenços coloridos .

  5

É possível

ter um vislumbre do modo como as roupas eram cu idadas e da evolução

das

ma

neir

a

s,

mas tais referências são raras. E

ntr

etanto, a

prát

ica de v

ender

roupas

das pessoas falecidas, para cobrir os gastos diversos com sua doença e morte ou

para contribuir com as despesas da família, parece ter sido

comum.

Prover os

consumos

do grupo fami li

ar

parece

ser

absolutamente

comum

.

Jean

r i d a u l

um advogado, viúvo de Anne Rouillet, declarou a seu not

ár

io

[ .. ]que

em

vista de sua modesta

fo

rtuna e da duração da enferm idade

da dita defunta, o senhor Br idau lt foi obrigado a ve nder a maior parte de

seus móveis, parte de seu próprio guarda-rou pa e do de sua falecida espo

sa, b

em

como jóias e prataria, e que aind a res tavam no Mont-de-Piété dois

vestidos de seda, tudo pela soma de 39 libras.'

6

Vemos uma v  z mais uma prática generalizada. Em suma a extensão

das

lacunas

corresponde à pobreza

da

família -

temporária em

alguns

casos.

pe

rmanente em outros -

que levava à redistribuição e à c

ir

culação de itens

por meio de doação, e

sm

ola e revenda.

2

Archives nntionalcs.

Minutier

ce ntral,

XXVII

I, 89,

1707.

u Archivcs nntionalcs. Minutier

cemr

a l, XV

 

820, 1781.

D.

Roc

he

, • Paris capitale des pauvrcs·, relatório de

tr

abalho, lnstiruto Europeu de Florença, F l o r e ~

1986.

u Archives na tionalcs.

Minutier

ce

mral, Cl , 1717,

17

89.

16

Archivcs na tional

cs

. Minuti

er

cent ral, XVI 11 , 880, I789.

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A

hiera

r

quia das apa

rências na Paris

de

Luís XIV a Luís XV I

o

101

O grande

número de

inventários

est

udados significa

que podemos

pro

vavelmente

ig

norar

esse probl

ema.

Podemos

assim

prosseguir do

patrimôni

o

à sua

composição, da avaliação do lu

gar das

roupas na riqueza,

que

revela a

topografia

social

das

aparências,

à

co

mpos

ição dos guarda-roupas,

que

expres

sam

na vida cotidiana a hie rarqu ia

das

aparências e

seus

el

ementos

consti

tutivos. Uma imagem

que

desponta é de certo

modo

e mbaciada em

virtude

das características de idade e das ausências. As listas de roupas reconstituídas

com

base nos inventários não são completamente dessemelhantes das listas

de objetos recuperados pela arqueo logia estrat

igr

áfica. A le itura das camadas

permite

calcular

índ

ices

que precisam ser

testados.

Um

índice baixo geralmen-

te

r

eve

la uma difusão

lim

it

ada

, mas tamb é m pode indica r

que

um

patamar de

consumo

já fora ultrapassado havia muito. Um

acúmu

lo

el

e

itens pode indu-

zir

o escritor

à

i

mprec

isão,

sendo

isso

particularm

e

nt

e

comum nos

estratos

superiores da sociedade e da riqueza. Caso seja necessár io levar e m

conta

os

valores, é indispensável olhar cuid

adosament

e os itens e os elementos que

compõem os guarda-roupas. Quando

compa

radas

à

riqueza total,

as

roupas

nos permitem apr

eciar

não apenas

as

diferentes práticas sociais,

mas

também

como

elas se confundem pelo simples fato de resul tarem de

uma

constante

acomodação e

ntr

e modos individuais e coletivos de apropriação. Estilos de

vida

dos quais os

gr

upos familiares são os elem

entos

de retransmissão, ex

pressam-se nas aparências. As roupas são, portanto,

um

bom

meio

de

perce

ber

o processo

por me

io do qual

se

forjam as

persona

lidad

es

sociocultura i

s

entre

as

práticas

que constituem

os principais tipos da existência social e os da eco

nomia

or

dinária. Elas

definem

o

campo do

cotidiano na

in teração

do

consumo

e da necessidade.

17

Na cidade do século XVIII, as r

oupas

con

tribuíam para

a

consciência dos cost

umes

em tra nsformação, cujo significado antropológico

e moral foi amplamente debatido pelos con temporâneos de Louis Sébastien

Mercier a Rétif de La Bretonnc, de Legrand d Aussy a Desmeunier.

 8

O

r lh mento dos signo

s

ndumentári s

Nessa grande

transformação

cultural, pode-se di

scernir duas

te

nd

ências.

Ahierarquia dos signos ele

dif

e renciação social estava

propensa

a desaparecer

da

vida

pr

ofissional e pública?

Ao mesmo tem

po não te ria

havido uma

mu-

dança nos significados das aparências, para realÇar as personalidades sociais

J.·M. Uarbicr. Le quotiditn et son éccno  e  Paris, 1981, p

p.

125-126.

11

G. Bcnrckassa, Le conce

pt

de

m

OCJt r

s (

1 1

XVI I

  si  le texto inédito.

Page 8: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

http://slidepdf.com/reader/full/roche-daniel-cultura-das-aparencias-cap5 8/32

102 .ç. A economia dos

guarda-roupas

e traba

lh

ar

de forma

diferente

o espaço social?

Qual

ser

ia e

nt

ão o

papel

das

maneiras

de

vestir

na

definição

da

esfera privada e

na

constituição

do

espaço

público? Sua e

merg

ência, car

acte

ristica, no

domínio

político,

por exemp

lo,

da

modernidade

da

segunda

part

e do século XVIII,

sem

dúvida

tra

nsfor

mou o

mundo

das aparências

. Numa sociedade desigual, a hi

era

rquia

das

represen

t

ações deve

coincidir

com

a hi

erarquia

social; era a

própria representação

que

a estruturava. Esse

era

o

argume

nto tradiciona l dos

crít

icos

da moda

e do luxo

dos novos-ricos, pois a

moda

baralhava as cartas, e os novos-ricos usurpavam

as apar

ênc

ia

s

que ficavam r

ed

uzidas a

imposturas

.

 9

Se o nobre

era

basi

ca

me

nte

o

que

representava, e o

burguês

o que produzia,

aquele

devia

antes

e

tudo

parecer

e este, ser.

Havendo

confusão, a

opi

nião pública

se

via perdida.

Uma

releitura do

Burgués fidalgo

pode nos

ajudar

aqui.

A

peça

de

Moliêre

se

inseria

em

uma

longa tradição de

sá tir

a a

bur

gu

eses ambic

iosos e revelava

a

presença

de

tensões soc

iais urbanas, exacerb

adas

pelo

crescen

te papel da

corte,

com

a qual o

dramaturgo como se

sabe,

tinha

intimidade. Ela

se

junta

a

outras apresent

ações dos ridículos,

provinci

anos ou novos-ricos, como

em

Ge01-ges

Dandin e Monsieur

de

Pourceaugnac. Dessa

dupla

perspectiva,

Moliêre

era um observador perspicaz dos t

ab

us

da aparência

que estruturam as

for·

mas

~

vida privada.

Monsieur Jourdain

é um bur

guês

que aposta

na eficácia

da

mudança

de

comportamento. Já no primeiro ato, ele surpr

ee

nde seu

pro-

fessor de

sica e

seu

professor de

dança

aparecendo de roupão

e touca

e

dormir,

porque

prete

nde

lhes ap

r

esentar

o

espetácu

lo de

sua

m

eta

morf

ose:

Hoje , diz el

e

vou-me vestir

como

as pessoas

de qualidade

 . Ele exibe

suas

m

eias

de seda, seus calções apertados de veludo vermelho e sua jaqueta

e

veludo verde, o ca lçãoz

inh

o para os exercícios

mat

inais e

sua túnica

indi

ana

e

reitera o

impacto

dos signos

exter

ior

es

de sua

transfor

mação social desfila

n

o

seus

lacaios, para cujos magníficos libr

és

e le

busca

e logio e

adm

iração.

A

figura de

Monsieur Jourdain

provoca o riso

de

correção social e

susten-

ta o

des

e nvolvimento cômico

da

peça

com

várias

li

ções.

A

primeira

é

demons-

trar

claramente

no registro cômico, os

la

ços

e

ntre

o

ap

rendizado

das

maneiras

de

um cava

lh

e iro e os modos

de se

vestir. Os

diferentes

in

strut

ores - o

profes-

sor de

dança, o professor

de

música, o

professor

de esgrima e o

professorde

filosofia -

ensinam

n

ão

obstante suas quere

las,

que na

vida

das pessoas e

qualidade tudo

está

vinculado, que o gestual e a cultura são uma coisa

só.

mestre

alfaiate

cabe

afinal faz

er m  

profunda

revelação.

É

ele

que

me

lhor

pressa que mudar

de

condição é mudar de roupa. Mas as coisas não dão

19

J . Habcrrnas,

L

es

pa

cc

public  a

n:l1é

ol

ogie

de

la

publicitc com me dimc

  si

o constitutiue tlc

la

sociltt

se  trad.

fra

ncesa,

Paris, 1978,

pp

. 24-25.

Page 9: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

http://slidepdf.com/reader/full/roche-daniel-cultura-das-aparencias-cap5 9/32

A hierarquia das apa rências na Paris

de

Luís XIV a Luís

XV

I

;:y. 103

pois o burguês n

ão

consegue

administrar sua

nova pele, que trinca por todos

os lados, e a socie

dade

tradicional,

em nome

do '1Jom senso",

que

Monsieur

Jourdain deveria personificar, denuncia

seus

extravagantes excessos. Moliere

se

coloca do lado da

s o

~  

holística e

da economia

política cristã: posições

sociais confusas, costumes em desordem, lacaios agravando os efeitos nefas

tos da des

ordem.

No último terço do

sécu

lo XVIl, a peça ilustra

um

te

ma

qu e

reaparece

um

s

éc

ulo depois n

as denún

cias dos observadores

mor

ais e dos ser

mões.

As

desastrosas conseqüências da mudança social compõem a moldura

dos

hábitos urbanos. O alfaia te rouba

se

us cli

entes

,

se

u terno

é

feito de tecido

roubado, os

aprendizes

ridicularizam

um

cavalheiro,

um senhor

é obje to da

zombaria de

seu

criado, um marido estúpido não tem

auto

ridade aos olhos

da esposa, um pai perdeu pres tígio na própria famíl ia. Nada

acontece como

deveria, e a soci

eda

de

não mais funciona como deve, quando não

se

pode

mais confiar nas aparências. O final da peça ainda ridiculariza o burguês ina

dequadame

nte

vestido, e o traje do Mamamouchi, sob a máscara de um

fa

lso

exotismo, es t

abe

l

ece

defini

tivamente

os traços

da

personage m.

Monsieur

Jourdain

essa famosa

fi

gura

da

mitologia an

tibur

guesa, p

er

sonifi

ca as

questões na

batalha das aparências

da

sociedade antiga. Ele d

ev

ia

serv

ir, embora

em

vão,

como

adv

ertê

ncia a todos os transgressores de classe

em uma

época

em que,

com

a

ajuda

do absolutismo, a escala de valores sociais

estava

endurece

nd

o.

Mais exatamente, a

peça vem

sendo

lida

como

uma

de

monstração

da

hostilidade do

autor

e dos clãs que o apoiavam contra Colbe

rt

,

encarnação

da bur

guesia em via

de

enobrecimento,

da

indústria de tecidos de

Rheim

s para controlador-geral das finanças.

20

De qualqu

er

modo, a

peça

ini

ciou um debate sobre imi tação social: a ninguém era seguro assumir as roupas

de figuras públicas ou

de

mestres

da

ostentação.

A

economi

indumentári priv d

no

começo

do

século

XV

Agora

é pr

eciso testar essa tese,

medindo

o papel das roupas na socie

dade parisiense,

por meio

de um estudo das

dif

e

rentes man

e iras de ves tir.

As

tabelas 1 e 2

resum

em os resultados obtidos por volta de 1700 e 1789. Esco

lh

e

mos

os be

ns

móveis como

medida

de

com

paração. Um estudo dos

patrimônios

imobiliários esba

rr

a em sérias dificuldades

quando se

trata de avaliar as pro-

priedades, sendo i 1útil no caso

da

maioria, c o n s t i t ~ de não-proprie tários.

»

J.

Marion, "Le bou rgcois gentilhomrnc  , Reuue tl ldstoire littérairc e la Francc , 1938.

" D. Rochc, e peuplc tlc Paris,

ciL

pp. 75·79 c 80·83.

Page 10: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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104 edt

Aeconomia

dos guarda-roupa

s

Sua adoção

como

critério

também

só faria aumentar enormemente

as

difere&

ças de riqueza. Ademais, temos de aceitar a possibilidade de estabelecer urt

nexo, a despeito dos diferentes meios

monetários

estudados, pois passamos

entre

o fim

do

século

XVII

e o último quartel do século XVlll,

de um

período

de turbulência para uma época de estabilidade, e temos de levar em conta

alta geral dos preços. Do mesmo modo, temos de aceitar, não obstante os

r s-

cos,

que

se pode argumentar com base nas médias nominais.

Para co

mpreender

as mudanças, e como se

compunham já que

nãoé

possível calcular um índice dos preços do consumo diário como se faz h

podemos

expr

essar

os valores obtidos no preço

de

um

produto

com

um

va

social decisivo, o de

um

sesteiro de trigo (300 litros aproximadamente),

vendi-

do no

mercado

central de Paris e servindo

de

referência.

22

Entre os

bens

o-

biliários, distinguimos

entre

'llJens de

us?

  · objetos de uso diário,

que incluem

vestimentas e roupas-brancas, e 'llJens de troca , ou de reserva, tais como

n-

vestimentos, rendas, débitos e dinheiro.

públicos, burgueses

e artistas

dos bens

móveis

(em libras)

• Calculado sobre

ce

m inventários

por ca

tegoria.

m

17

e roupa- do total

branca de bens

(valor móve is

médio em

I

•• r ·1édia calculada sobre guarda·roupas reconstituídos •completos•.

Archivcs nationales. Minuti

ercen

tral,

XXVI,

253, 1711.

bens de roupa·

uso diário branca 

Page 11: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hicrôlrquiôl dóls

ôlpôlrênciôlS na

Paris de Luís XIV

ô

Luís XV I

;ty 105

Tabela

2 Valor dos guarda-roupas

eda roupa-branca em 1789

1btal

Bens de uso

Vestuário % % %

dos

bens

diário c roupa- do total dos bens de de roupa-

móveis

(em

libras)

branca de

bens

uso diário

branca•

. (em libras) (valor móveis

médio em

libras)

Nobres 500.000 112.000 6.000 1,2

5,3

27

Assa lariados 1.776 442 115

7,5 3 35

Criados domésticos 8.251 990 293 3,5 29,6

40

Artesãos e lojistas 8.457 2.036 587 6,9 28,8

27

Funcionários

87.500 8.699 694 0,7 7,9

29

públicos, burgueses

e

artistas

IbtaJ •

605.984

124.167 7.689 1,2

6

31,6

o Calcul

ado so

br

e

ce

m inventários por

ca

t

eg

oria.

Média calculada

sobr

e g

uarda-roupa

s r

eco

nstituídos •

comp

l

etos

•.

Tabela 3. nominallevalor deflacionado dos guarda-roupas eda roupa-branca

1700-1789)

Por volta

de

1700 Por volta de 1789

Valor nominal Valor

em

trigo• Valor n

om

inal

Va

lor

em

trigo• •

(em

libras)

(em

sesteiros)

(em libras) (em

sesteiros

)

Nobres

1.800 97,6 6.000

254

Assalariados

27 1,4 85 3,6

Criados domésticos

55 2,9

293 12,4

Artesãos e l

oj

istas 344 18,5

587 24,8

Fun

cionários 148 7,9

694

29

,2

públicos, burgueses

e artistas

1btal

2.374 128,3 7.659

324

o Ca

lculado com

ba

se

no

s pr

eços decenais

médios

do mercado de

Paris, 1695-1704; I scsteiro

de

trigo

8

,61ibras.

Calculado

com

base

no

s preç

os

decennis médios

do

mercado de Paris, 1780  789: 1 sesteiro de trigo •

23

,6libras.

Tabela

4

Aumento no valor dos guarda-roupas 1700-1789)*

Nobres

Assalariados

Criados

domésticos

Aumento da

Aumento nos Aum

ento

nos

Aumento em

valor

riqueza móvel(%) be

ns de

uso(%) guarda-roupas(%) d

eflacionado••

(%)

700 730 233 163

129

44 215 148

96 80

436 321

(cont.)

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8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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106 'Ó'>

Artesãos e

lojistas

Funcionários

púb

licos,

bur

gueses e

artis

tas

A economia dos guarda-roupas

A

um

ento da Aumento nos Aumento nos Aumento e m valor

riqueza móvel

(96) bens de

uso ) guarda-roup

as

(96) deflacionado• •

(96)

106 71 7 35

224

248

369

272

• Calculado com base nas cifras dadas nas tabelas I , 2 c 3.

• • Calculado com base nas médias decenais do pr

eço

do

ses

tciro

de

trigo no mercado de Paris,

16

35-1765,

18,6 libras, c 1780-1789, 23,6 libras.

As

jóias, que têm um papel no sistema das apa rências e cujo valor é

comparativamente instrutivo,

merec

em um tratamento separado; e las

tam

bém eram um modo de acumular capital ou, entre os menos abastados,

uma

reserva para os dias ruins ou para as necessidades imprevista

s.

Nas jóias dos

ricos e nos modestos t

esouros

dos pobres, os papéis da aparência do inv

esti

mento estavam intimamente relacionados. Elas podem elucidar as dife renças

sociais

de comportame

nto. A evidência sugere que, na sociedade parisiense

dos séculos XVII e XVIII, a riqueza padronizava verticalmente os háb itos

de

cons

umo

,

enquanto

a pobreza e a necessidade faziam convergir outras esco

lh

as,

com

mais força talvez do

que as

atividades. A longo prazo,

os

contrastes

permitem

m edir os des locamentos

soc

iais das práticas.

Na Paris de 1700, em todos os níveis de riqueza, gastava-se relativame

n-

te pouco

com

vestuário e rou pas-brancas: 1  entre funcionários e pessoas de

aptidões, 8  entre

artesã

os e comerciantes,

um

a média global

de

2,9 , c

ifra

que, embora esconda as variações, não é inteiramente

sem

valor, pois é

cal

culada sobre quinhentas heranças. O vestuário não

era evidentemente

uma

forma de investimento primordial da riqueza privada, como fica claro quando

se compara com os índices calculados para a fortuna mobiliária e os bens de

uso.

Em

ambos os casos, a hierarquia é quase a

mesma,

e

mbor

a ela fique mais

ace

ntuada

ao

longo do século. N

uma

ponta

da

escala, a nobreza possuía v

es

timentas e roupas-brancas no valor médio de 1.800 libras,

em

valor nominal;

na outra ponta, os assalariados, independentes e organizados, possuíam ves

timentas e roupas-brancas no valor médio de 27 libras, sendo 15 libras só de

vestimentas. Caso vendessem suas roupas, a nobr;eza poderia comprar

15 mil

libras de trigo, e >s assa lariados, menos de 400 libras.

Thnto

em

val

or

nom inal

quanto

deflacionado,

um

lugar-comum nas

des

crições sociais

da

Paris tradicional

salta

aos olh

os

:

opulência

e miséria se

Page 13: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hil rarquia das apa.rências na Paris dl Luis XIV a Luis XVl

ibfo 107

ombreavam e se provocavam. Se o nobre parisiense

médio

decidisse trocar

suas

roupas

por grãos de

trigo sem

recorrer à padaria

, ele te ria o suficiente

para prover pelo menos cinqüenta pessoas com

um

quilo de

pão

por dia

durante

um

ano. u.m

operár

io parisie

nse que vendesse sua

s

roupas

só con

seguiria

se

alimentar durante menos de três

meses.

No entanto, a nobreza

parisiense investia menos de 3% do seu capital móvel

em

roupas, excluindo

jóias.

Se

estas fossem incluídas, o inv

estimento

aumentaria em

2

ou 3%,

o que ultrapassa em 15%

um patrimônio

típico,

evidência

clara

da imensa

importância das aparências nos círculos

onde

riqueza,

poder

e

cultura

esta

vam concentrados.

uxo d

roup

ristocrátic

No

tempo

de

Luís

XIV,

vestimenta aristocrática t

inh

a dois traços carac

terísticos.

Prime

iro, as duas nobrezas,

espada

e a toga, gastavam de forma

semelhante

em

roupa. Segundo, o dimorfismo sexual era fortemente acentua

do

; o valor dos guarda-roupas

das

mulheres era o dobro

do

dos guarda-roupas

masculinos. Thdavia,

em

ambos

os casos, duas qualificações são necessárias:

as

roupas mais·caras

eram encontradas entre

as famílias

que freqüentavam

a corte. Havia

uma

hierarquia de

maneiras

e

de

guarda-roupas

determinada

pela

riqueza e pelo papel social. O

duque

e a

duquesa

d'Aumont possuíam

roupas no valor

de

ma is

de

5 mil libras,

embora

suas jôias valessem

menos de

200 libras (os herdeiros

dev

em tê-las dividido e

ntr

e si); as roupas da duquesa

de

Nevers valiam

quase

2 mil libras, e

as

jóias, nesse caso,

aparente

m

ente

também desapareceram.

23

Com guarda-roupas va lendo 2 mil ou 3 mil libras,

alguns grandes magistrados, conselheiros de Estado, como Gérard Le Camus,

24

ou

um presidente do Parlamento,

como

Monsieur

de

Longueil,

  5

facilmente

se

rivalizavam

com

esses

repr

esenta

ntes

dos círculos cortesãos.

Se

dividirmos

o

valor

dos

guarda-roupas ver tabelas

1 e 2), constata

remos

um

escalonamento

normal

dos gastos: 90% valiam

menos de

1.000

libras e

apenas

50%, menos de 500 libras. Para a maioria, o

valor

méd io

ficava entre 300 e 1.000 libras, e um quarto dos nobres gastava

um

pouco

mais

com

suas

roupas

do

que

um próspero

comerciante ou um

retroseiro

afortunado.

um

pequeno número de grandes fortunas

que

sugere,

até

11

Archives nationales. Minutier central , XXXI, 56, 1715.

·' Archives nationales. Minutier central,

XCVI

, 213, 1710.

; Archives nationales. Minutier central, XXVI, 295, 1715.

Page 14: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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108 <}.

A e

co

nomia

dos

guarda-roupas

mesmo magnífica o

papel de

exibição e luxo e o aumento

dos gastos

os

tentatórios dos

círculos

cortesãos.

No entanto, não

vemos aqui

o efeito dos

gastos excepcionalmente altos

com

roupas dos príncipes

franceses

ou

eu

ropeus. Alguns

nunca usavam duas

vezes

o mesmo traje, e

não

s

urpr

eende

que com o

tempo

, a

opinião pública

se sentisse afrontada. Às vésperas da

Revolução, com

um

orçamento

anual de mais

de 120 mil libras, Maria Anto

nieta e ncomendou quarenta

trajes

oficiais ou se mi-oficiais,

sem contar

suas

muitas roupas

menos

formais.

26

Na época de Luís XIV somente os nobres que recebiam pensões ou doa

ções do rei podiam sustentar um nível equivale

nte

de consumo , c

omo

os prín

c

ip

es

de sangu

e, Orléans, Condé, Conti e os filhos legítimos,

assim como os

duqu

es e pares.

27

No final do s

éc

ulo XVll,

mais

de 50 

da

nobreza parisiense

tinha

fortunas

de mais

de 50 mil libras, 20 

tinham

de 100 mil libras; ambos

os

grupos tinham

atitudes semelhant

es em

relação às

roupas

, isto é, os gastos

eram

altos,

por

ém relativame

nte

limitados. Com

menos

de 800 libras,

Louise

de

Mesme,

duquesa de

Vivonne, gastava um pouco

mais

do

que

a viúva de

Nicolas de La Mothe,

um simples conselheiro

do rei, cujo guarda-roupa

estava

avali

ado em

700 libras.

28

Em um

nível bem

mod

esto

de

fortuna, e

ntre

5

mil

e

10

mil libras

de at

ivo mobiliário, não e

ra

absolutamente

incomum

e ncontrar

um

quarto da herança

na forma

de

roupas; e

sse

era o caso de Louis Milen

de

Gunely,

um

capitão da cavalaria,

ou

de Marie Le Vassor, viúva

de

Louis

An

celin, lorde

de

Gournay, controlador-ge ral

da

casa

da

rainha.

29

O número

de

indivíduos

preo

cupados com a simplicidade,

ou

forçados a ela, era pequeno.

Se lembrarmos que a maioria desses inve ntários era lavrada em uma

idade

avançad

a para a época, ve

remos que

eles refletem

uma tendência de acumu

laç

ão

e conservação

maior

do

que de

estratégias competitivas; estas eram mais

característ

icas dos jovens,

embora

também estivesse m presentes

em

algumas

centenas de famílias cortesãs.

Os

índices e os valores

nominais

e deflacionados c

onfirmam

amplamen·

te a existência

de

gastos extravagantes

da nobr

eza,

mas eles

desmentem

s

exageros

habitualmente

aceitos pelos pregadores, moralistas e alguns historia

dores, quando

na

verdade eram os excessos ele um pequeno número

próximo

do Re i Sol e

de

seus imitadore

s.

6

A. Ribeiro, D1  ss

in Eig

ll

iccnth Cent

ur

y Europc  1715-17

119

 

Londres , 1984, pp . 58-59.

27

J . 1 ~

Laha

tu t

,

L

e.s

rlucs et p

  ll

r

S

Pa ris, 1972, p. 300 .

J\rc

hives

nat

ional

cs

.l\linutier

ce

m ra l,

XXXIII

,

-114

, 1709, e

IX

,

57

4, 1709.

29

J\rchiv

cs

national

cs

. Minutier

ce

ntral , LI V 703, 1710 , c XCIV 132, 1709 .

Page 15: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hierarquia

das

aparências na Paris de Luís

XIV

a Luis XV I i > 109

obrir nudez

popul r

Os baús e guarda-roupas

das

classes

inferior

es, que o

casamento

e o tra

balho

estabilizavam e integravam,

tinham

roupas de valor consideravelmente

menor: cem

inventários en

um

eravam

vestimentas e

roupas

-

brancas

totalizan

do 2.700

libras, isto

é,

27libras

em

média por res idência, ou 32 libras

se

incluir

mos apenas os guarda-roupas completos reconstituídos do começo do sécu lo

XVlii.

As

roup

as

tinham relativ

amente

pouca importância nos bens

móveis

herdados: 5%, ou cerca de 3%, se l

eva

rmos em conta a

modesta

propriedade

das

classes

infer

ior

es. Mas elas

tinham

uma

participação significati

va

no

s be

ns

de

uso

diário: 8%, o que

evide

ncia a diversidade

do

comportamento e m te rmos

de

consumo. Entre as h

era

nças abaixo de 500 libras (dois terços dos assalaria

dos

parisienses mo

rriam

com um cap ital menor , as roupas

representavam 7%

da

riqueza mobiliária, e as roupas-brancas - acima de 3 mil libras de patrimô

nio,

ou

seja, 5% dos casos- re

pr

esentavam

menos de

1%. Nos la res mais abas

tados,

as

roupas, novas e velhas, de cima e de baixo, e

ram propor

cionalmente

menos importantes do que nos lares mais pobres. É possível entender então

por

que

as famílias pobres

ameaçadas

de doença,

desemprego ou morte de

um

parceiro eventualmente recorriam às roupas como expediente temporário. A

vestimenta, mais

ainda

do que entre a nobreza parisiense, é um signo efetivo

da

hi

erarquia econômica e sua expr

essão

nas representações sociais, que são

mais facilmente medidas contra a mobiliza

ção

dos valores de uso.

Além disso, o

dimorfismo

sexual indum

en

t

ár

ia e ra muito menos acen

tuado; os guarda-ro

up

as masculinos e fem ininos tinham valores

muito

pare

cidos,

como

também

e

ram

parecidos na medioc

ridad

e (os

dos

h

omens

valiam

pouca coisa mais). No caso de vinte guarda-roupas cujos custos exatos conhe

cemos, o valor

médio do

s

guarda-roupas mascul

inos

era

17 libras, o

dos

gu

ar

da-roupas femininos, 15 libras. O valor médio dos guarda-roupas femininos

ultrapassava o dos

guarda-roupas

m

ascu

linos em oito casos; o oposto

era

ver

dadeiro em doze casos.

Thnto os artesãos das gu ildas quanto os trabalhadores mais ou

menos

regulares,

atraídos pela

cidade

e

por

seu comércio,

gastavam

sessenta vezes

menos com roupas-brancas e v

es

timentas

do

que a

nobr

eza militar ou toga

da Dois mundos existiam lado a lado:

um

em que a moda e a acumulação

eram

tudo, como La Bruyere observou e

exp

licou

no

capítulo intitulado De la

mode

de

sua obra

Les

caracteres o outro

em

que a necessidade imperava, e a

Wnília

tipica precisava de todos os seus r

ecursos

para sobreviver, e

nada so

brava

para a boa vida: [O povo] t

em

uma base boa e nada exterior, [os grandes]

Page 16: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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110

-<f

A economi a dos guarda-roupas

têm

exteriores e aparências .

30

Para o historiador da cul tura material, esses

meros tão baixos

sugerem

uma

capacidade limitada de reposição

de

roupas,

uma

quase impossibilidade de responder às mudanças de estação e

uma

mar

ginalização

nas

prátiças de higiene

que

d

ependem

de roupa-branca. Os pobres

tem

iam o inverno e saudavam o clima quente,

quando

os caprichos do tempo

lhes

eram

mais gentis.

riado

sdoméstic

os

  nosco

nfin

s

da

s culturas indum e

nt

á

ri

as

Na

época do reinado de Luís XIV boa

parte

dos criados domésticos pari-

sienses

havia ultrapassado a fronteira da necessidade. Pregadores e moralis

tas havia muito

vinham denunciando

o luxo excessivo das roupas

elos

cri

aclos

31

e dur

a

nte

todo o século XVIII, satiristas e polemistas continuaram a denun

ciar

esse comportam

ento

tão propício

à

usurpação elo

status.

Nossos in

ventár

ios n

os permitem

interpr

etar um

pouco

melhor

as

re-

presentações e convenções. O valor global dos guarda-roupas excedia 5

mil

libras, ou seja,

uma

média de mais de

50

libras

por

residência sem contar

as roupas-brancas,

que

eram quase o dobro do total para os assalariados.

principal característica da classe doméstica urbana, comparada ao conjunto

das classes trabalhadoras,

era

sua visibilidade. Os c

ri

ados domésticos

em

geral

vestiam-se melhor. Uma minoria usava libré e marcas distintivas, c

uj

a

fun-

ção social dese

mpenhava um imp

ortante papel simbólico,

quer

afirmando o

status

e a riqueza dos

senhores quer

contribuindo para

uma

ambiva lência

no

comportamento dos criados, despersonalizados

mas

beneficiários de um

valor

social agregado.

As roupas

elos

criados

eram

modernas e interessantes de outro modo: o

guarda-ro

up

a

comp

leto de

uma

criada ou

um

a camareira valia o dobro elo de

um criado ou simples lacaio. lsso devia

ser

imitação do dimorfismo sexual

observado nos degraus mais altos ela hierarquia social, embora bem menos

pronunc

iado

quando

expresso

em

valor nominal: 34 libras para um gu

arda

roupa masculino, 61 libr

as

para um femin in

o.

O grau de interesse

que

as famí

lias e

os

indivíduos mostravam

por suas

aparências

emerge

mais claramente

30

J

de

La

r u y ~ r

oc la

modc

et

dcs grands

em

Les

caracteres

ou les ma;urs de cc

sii:clc

s•

ed

, Paris,

1690.

31

J S<1batier F igaro ct son maitre, les domes tiques au XVIII 

sicc

le, Paris, 1984, pp. 47-60; C. Fairschilds CJo

m

es ti

c

Em:mics,

Serulmt and

tir

ei

r Masters

in

0 d

Re

gime

Frarr

cc

Baltimorc/

Londrcs

, 1984, pp.

31

-38; S.

C

Maza, Serua

ms and Masters

in Ei

g

lrt

ccn

tlr

Cerrtwy

France Princeton, 1984, pp. 25-26 c 119-123.

Page 17: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hierarquia das

~ p a r ê n c i a s na

Paris de Luís

XIV

a Luís XVI

roellt

com

a proporção dos

seus

gastos:

por

volta

de

1700, eles r

epresentavam 2

dos

bens móveis e 20 dos

bens de

uso diário; para os

que tinham

mais

de

3

mil

libras de riqueza, as cifras

são

de 0,2 e

14

; para os

que tinham menos

de 500

libras, 1,8 e

6

respectiv

ame

nte

. Em

outras

palavras, os

criados

mais

ricos

imitavam o

comportamento

dos

seus

senhores, e

mesmo

os mais pobres,

graças

a

um

padrão

de

vida mais alto por volta do fim do

século

XVII,

ainda

tinham mais roupas do

que

os pobres

em

geral. Criadas, c

amareiras

,

boas

co

zinheiras, damas

de companhia

e

enca

rr

egadas da

administração doméstica

exibiam um

certo

ar de

frivolidade na maioria

das

vezes,

mas sobretudo nas

grandes casas;

seus

colegas e maridos

eram menos

afetados, a

não ser que

desempenhassem funções serviçais de alto nível,

como

maitres

d hôtel,

*

ca

mareiros pessoais ou

chefs.

Os inventários revelam seu papel coletivo como

intermediários culturais.J2

Não

era a libré o elemento crucial. As libr

és

pertenciam

aos

sen

h ores,

faziam

parte do

conjunto de

símbolos exteriores do

status;

contribuíam

para

uniformizar uma população desigual facilitando a identificação e,

além

disso,

na

virada do século XVII, espicaçavam as vaidades aristocráticas

em competi

ção. Originalmente restrita

à

família real e aos

grandes

solares aristocráticos,

a

libré

se difundira

por

todas as casas privilegiadas,

que

rivalizavam

entre

si

na

ostentação dos trajes

de

gala

com os quais ornamentavam seus

porteiros,

lacaios

, cocheiros, postilhões, carregadores

de

liteiras,

valets de chambre,

* '

em

suma,

seus homens,

especialmente

aqueles

cujas funções

os

faziam

transitar

por

espaços públicos e privados. A proliferação das librés

esplêndidas

e

cus

tosas, talhadas em tecidos ricos,

guarnecidas de

franjas, galões e

botões

caros,

em cores

selecionadas e brilhantes, tornou-se

parte

do espetáculo

de

rua.

A

moda, ao

estimular

e

incrementar

a extravagância,

atraiu

a

atenção

das

autoridades,

que tentaram

controlá-la.

33

Em 1717,

um

édito real

limitou

o

número

de criados de libré e restringiu as

marcas

distintivas

à

cor das franjas

e

dos

galões;

em

1724,

um

decreto proibiu os criados

de

libré

de

usarem ouro

e

prata

nos trajes,

sobretudo em

casacas e culotes,

em meias

de

seda orna

mentadas

ou ainda

em

ve ludos, sob pena de confisco

das

vestimentas,

multa

para os

senhores e prisão para os

cr

iados.

Como

t

odas as

leis

suntuárias

esses

decretos

eram emitidos

em

vão. As librés

luxu

osas ostentadas

por

criados do-

'

Responsáveis

pelos serviços de mesa . (Nota

do

tradutor.)

1

D Rochc, Les tlomesÍiques parisicns co

mm

e intenn

éd

iair

es

cultrm;ls

u XV

siêcle. Lcs

im

ennétliaims c

ul

-

t'lll'eÜ, Aix , 1982.

Criado

de quano, camare iro. (Nota do tradutor.)

1

J. Sabatier,

Fi

garo et son maitre,

cit ., pp

.

50-54;

S.

C.

Maza, Scrvc

mts mui

Masters in

Ei

g

ht

centil Ccntury

mn e, cit. , pp. 121-123.

Page 18: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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  2 ~ A economia

dos

guarda roupas

mésticos audaciosos e insolentes podiam lh

es

garantir impunidade ou mobili

zar

uma

multidão hostil. Elas

punham

em risco a

ordem

social por seu custo

excessivo, prejudicial

às

riquezas das famílias, e por ocultarem a verdadeira

posição social

~

empregadores e criados. A legislação tentou controlar o que

não podia suprimir, impondo

uma

libré despojada mas identificável, proibindo

a ornamentação excessiva. A história das librés da criadagem era

parte

da his-

tória elos gastos suntuários da nobreza parisiense, e ressalta a importância das

marcas sociais numa sociedade desiguaJ.3

4

Em 1789, a Assembléia Constituinte, vendo o fenômeno

como uma ex-

pressão do status servil dos

cr

iados aboliu as librés. Mas o conflito entre a

visibilidade necessária para controlar os criados domésticos e a rejeição dos

símbolos de desigualdade só poderia

ser

resolvido nos séculos XIX e

XX

com

a implantação de

um

novo código. As regras verticais que, na sociedade tra-

dicional, impunham librés suntuosas e coloridas gerando diferenças pessoais

invisíveis aos olhos dos senhores, e o poder social dos senhor

es

visível

aos

olhos do mundo, foram substituídas pelas normas horizontais da discrição na

indumentária dos criados domésticos,

que

devia ser apagada e sóbria, ao

mes-

mo tempo parecida e diferente da roupa dos senhores, expressiva em deferên

cia e distância. A verdadeira diferença e o papel dos criados domésticos como

intermediários no final do século

XVII

eram menos

uma

questão de libré

do

que

dos muitos atos ligados às relações de subordinação. Antes

que

a ubiqüi

dade do salário houvesse

unif

ormizado a posição dos criados domésticos, os

presentes

em

espécie, roupas velhas

entre

eles, eram parte da remuneração,

além

de

comida e alojamento. O contrato de trabalho às vezes previa a doação

aos criados de peças de roupa, tecidos ou mesmo uma gratificação, de modo

que eles pudessem trocar as velhas roupas para

um

festival ou funeral.

Fica evidente nos testamentos parisienses que os empregadores

fre-

qüentemente legavam peças de vestuário ou roupas-brancas a seus criados e

criadas.

35

François Grimod de Beauregard deixou a seus dois laca ios

[ ..]todas as [sua

s]

camisas de dormir sem bordado e as camisas diurnas

também sem bordado, todos os [seus] coletes, toucas de dormir, meias de

todo tipo, velhas e novas, todos os [seus) casacos, coletes, culotes, cami

solas, colarinhos, pano de barbear e lenços, exceto o conjunto

de

botões

de

ouro

de um

casaco, e a cada

um

uma dúzia de [suas] mais belas e finas

camisas bordadas.

J •

S. C. Maza.

Scrvtmts and

Ma

stcrs in

Ei

ghtce

mlr

C

c111wy

Fran

ce 

cit., pp. 316-325.

l J. Sabatier

, F i

g

  ro

et sonmaftre

cit., pp. 26-27

c

267-270;

C.

F airchilds,

Domcstic En e  cs, Servallt and

Mast

ers

in

Old R

eg

ime

Francc cit., pp . 54-55 c 96-97.

Page 19: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hierarquia das aparências na Paris de Luis XIV a Luis XVI

ey.

3

Embora as peças excepcionais,

como

roupas

usadas nos eventos

da corte,

tecidos

de ouro e prata, rendas preciosas, jóias e

amamentas caros

fossem

às

vezes exc

luídos dos legados, e

embora

os

v lets

e

camareiras geralmente

rece

bessem

roupas usadas ou fora

de

moda, as doações dos

senhores

e a reforma

feita posteriormente pelos criados alimentavam

uma

intensa cotTente de troca

e circulação. This legados

eram úteis

e vantajosos,

além

de serem um agente

eficaz de mudança cultural

por

meio da influência

que

acabavam

exercendo

sobre

o comportamento e as mane iras. Eles

eram um

fator de coesão na po

pulação

urbana e

um

e l

emento

na

ambigüidade

moral e social dos criados

domésticos. Macacos de seus senhores , dizia

uma

expressão consagrada,

mas

exagerada.

As

roupas dos criados

eram

os estandartes de seus senhores, e por

meio delas eles esposavam os

mode

los e aspirações

dominantes

e

instruíam

as pessoas comuns sobre outros estilo de vida. Eles podiam ser invejados ou

denunciados, e os

escr

itores se

encarregavam

disso em boa medida;

por

mi

metismo ou osmose, os criados eram agentes de

uma

profunda transformação

social

e cultural. A socialização

indumentária era

ao

mesmo tempo

o signo e

a conseqüência desse papel,

que

provavelmente remontava aos

primórdios

da

era

moderna. Além disso,

esse

papel afetava todo o

corpo

social,

uma

vez

que

os

criados

punham em

contato o

campo

e a cidade, meios refinados e

infer

io

res.

Em Paris, pelo menos, os criados estavam

por

toda parte e podiam receber

lições

de todas as categorias sociais.

ediocridades

burguesas

Entre a burguesia de ofícios e a

das

artes, os

guarda-roupas

valiam

três

vezes mais do

que

os dos criados domésticos e cinco vezes os

dos

assalaria

dos.

No

geral, eles

representavam apenas

0,5%

da

riqueza mobiliária, e isso

porque

os bens móveis desse

grupo continham itens que eram

raros na classe

trabalhadora, como rendas;

entretanto representavam

13% dos bens de uso,

ou

seja, um montante significativo nos gastos habituais da burgu

es

ia, embora

ainda estivessem longe da extravagância aristocrática. Cerca de vinte famílias

tinham

guarda-roupas

que

valia m

mais

de

300 libras,

mas

em um

quarto

de

las

o valor não chegava a 50 libras. É nas fortunas medianas, entre 3 mil e

mil

libras de bens móvei

s

que

encontramos

exemplos de elevado

consumo

de roupa

mas o

mundo

parisiense dos funcionários, advogados, profissionais ,

liberais

e mesmo intelectuais

geralmente

não

chegava a

extremos nos

gas

tos

com vestuário, e a acumulação

era

relativamente rara. Excepcionalmente,

Page 20: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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114 o<;\

A economia

dos guarda-roupas

Elisabeth Lecamus

36

e seu marido, um rico advogado cujo

patr

imônio estava

avaliado em 7 mil libras, haviam gastado, juntos, 1.154 libras em vestimentas

e roupas-brancas, isto é, 16 do patrimônio do casal; esse

era

um nível de

consumo

in

du me

ntária quase aristocrático.

Em contrapar

tida, Louise

Dela

fresnay, viúva de um ·cirurgião, deixou aos herdeiros roupas que valiam menos

de

80 libras,

 7

Jean Thochet, procurador no Châtelet, tinha roupas no va lor de

90 libras,

38

e o notário François

Ra

imond e esposa tinham

juntos

300 libras

de

roupa

.

39

O contraste en tre os guarda-roupas

fe

mininos e masculinos era gene

ralizado. Na família Lecamus, um terço ia para o marido e dois terços para a

esposa; na ma i

or

ia dos casos, os burgueses gastavam com a aparência cerca de

50 menos do que as burguesas, mas

nem

todas podiam

se

dar a esses luxos

de elegância, mormente se tinham vários filhos.

Era

bastante

raro, mais entre médicos do que entre advogados,

como

observou Françoi

se

Lehoux,;oencontra r referências das togas doutorais outra

jes

de

gala destinados às cerimônias judiciárias ou acadêmicas, cujos custos

às vezes elevavam as avaliações geral

mente

modestas das roupas mascu

linas.

Esses trajes

podiam

permanecer nos guarda-roupas das facu ldades, ou figurar

nos legados, e assim não aparecer nos inventários;;

1

de qualquer modo, não

era obrigatório

comprá

-los, pois se podia assistir às cerimônias em traje preto

e ch

apé

u quadrangular.

No

geral, a pequ

ena

magistratura do t

empo

de

Luís

XIV se

distinguia mais pela moderação indumentária e um

cer

to

ar

utilitário

do que por uma preocupação com o decoro. Se esses magistrados gastavam

apenas moderadamen te e evitavam a ostentação, isso em

parte

se devia

pro

vavel

me

nte a uma opção econômica -

eram

parcimoniosos em questão finan

ceira - e provavelmente também à expressão de uma atitude religiosa e

moral.

Fo i desse meio social que saír

am

as testemunhas ou participantes da reforma

religiosa do século, incluindo o jansenismo. Eles priv

il

egiavam o essencial ao

acessório e o conforto

à

moda; graças a uma

fi

delidade

ed

ificante aos princí-

pios que asseguravam a coesão espiritual e cultural.

Chegamos finalmente aos artesãos e lojistas.

A independência

econômi

ca e a posse

de uma

loja ou ofici

na

por dois terços dos indivíduos

que

com

põem

nossa amostragem faziam uma

enorme

diferença en tre esses artesãos e

lojistas e os comerciantes de rua não organizados, que em geral viviam a um

34

Ar

chivcs nationalcs. Minutier central XX I i 383, 1700.

37

Ar

chivcs nationales. Minutier central CI, 123, 1708.

34

Arc

hives

nationales.

Minutier

ce ntral, CIX, 399, 1710.

39

Ar

chives

nat

ionales. Minutier central, CI, 138, 1715.

40

F Lehoux, Le cadre de uie des médecins parisiens u XVII 

si

ecle, Paris, 1976, p. 246.

41

Tbid , p. 241 .

Page 21: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hierarquia

das

aparências

na

Paris de Luís XIV a Luís

XV

I 115

passo

da pobreza; eles também estavam dista

ntes

dos mercadores abastados

e bem-sucedidos no mundo dos negócios e do comércio. Formavam el

es um

grupo coerente,

p s s ~ í

fortunas modestas, muitos

se destacavam

na

rua

ou no

quarteirão onde atuavam e freqü

entemente

e ram funcionários da cor

poração a

que

pertenciam (

um

a posição

às

vezes decidida por idade), alguns

tinham obtido sucesso, outros haviam es tagnado; eram, e

nfim

, uma classe

in

termediária.

Eles gastavam um montante considerável com roupa: 344 libras em mé

dia, doze vezes mais do que os assalariados e o dobro dos fu ncionários plebeus.

O valor de seus guarda-roupas variava de 10 a 1.000 libras, porém dois patama

res

são visíveis. Um terço desses guarda-roupas valia

en

tr

e 100 e 300 libras, em

que o guarda-roupa de um dos cônjuges desapareceu em um quarto dos casos,

de

modo que são valores presumivelmente subavaliados; nos d

ez

casos acima

de

300 libras,

as

roupas são numerosas, variadas e requ intadas. Essa pequena e

média

burguesia gastava muito

com

roupas:

8

dos

bens

móveis e 28 dos

bens

de uso, ou seja, a melh

or

proporção de qualquer grupo parisiense. O fato é tanto

mais

significativo, pois um pouco menos da metade (45 ) dos

art

esãos e lojistas

despendia mais de 20 da fortuna mobiliária em roupas. Os dois índices juntos

revelam

uma

propénsão ao requinte indumentária,

que era

novamen

te

mais

pronunciado entre mulheres do que homens. Os meios inte

rm

ediários, entre 5

mil

e 10 mil libras

de

fortuna,

eram sem

dúvida os mais afetados. Acima

de 10

mil

libras

de

patrimônio,

as

roupas se

to

rnavam menos importantes proporcio

nalmente. As roupas mais comuns, e amiúde as mais caras e luxuosas, estavam

nos guarda-roupas dos

grup

os median

os,

como mostram os números do quadro

seguin t

e;

eles eram os modelos desse meio social.

Valor dos gua

rd

a

 roupas

dos

artesãos

e

ojistas

por

volta de

700

Oa 50 libras 26

50 a 100 libras 27

100

a 300

libras

37

> 311

libras 1O

100

guarda-roupas

t

rimônios inferiores

a500 libras

Oa

50

libras 15

50 a 100 libras 8

>

800

libras 3

26

guarda-roupas

cont.)

Page 22: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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116

..ç.

A economia dos guarda roupas

atrimô

nios

superiores

a O

mi

l

libras

Oa 50 libras

3

50 a 100 libras

4

>

100 libras

5

12 guarda-roupas

Não

eram

os ricos

nem

os pobres desse

meio

social

que

definiam a

nor-

ma do consumo indumentária mas sim as categorias medianas nas quais

não havia diferença notável

entre

artesãos e comerciantes.

No

extremo

da

escala Antoine Bourgoing mestre seleiro e construtor de carruagem embora

possuísse uma fortuna mobiliária de cerca de 3 mil libras deixou a seus

her-

deiros

um

guarda-roupa

no

valor

de apenas

8 libras;

em

contrapartida

Gilles

Oudry

um

comerciante de caldeiras com

um

patrimônio

de

cerca

de

10

mil

libras gastava mais de 1.100 libras com suas roupasY

Os

mais ricos não

des

ejavam

sucumbir à

desvairada imitação de

um mo-

delo mais extravagante de consumo enquanto os mais pobres não podiam

fazê-lo. O jogo das

apar

ências era entretanto

um

ele

mento

fundamental nas

divisões da sociedade dos artesãos e lojistas parisienses. Os

que

estavam no

caminho

do

~ x

apreciavam o prestigio conferido pelas aparências e inv

es-

tiam

uma

parte considerável

de

suas rendas com esse fim

em

vista; os que já

haviam

alcançado o sucesso

tinham menos

necessidade disso

enquanto

aque

les que se achavam nos níveis inferiores

da

escala

de

prosperidade os mais

pobres

sem serem

excluidos nada podiam fazer. Uma preocupação com a

roupa parece ter caracterizado os grupos e individuas mais ambiciosos e mais

determinados a alcançar a integração

por

meio da riqueza. Thlvez isso tenha

sido resultado do efeito vitrina

no

comércio ou

no

setor de ofícios em que

uma

aparência próspera era indispensável ao crédito; o decoro e as convenções dos

lojistas burgueses e a discreta elegância das

mulheres

sem

dúvida também

contribuíram; para os homens enfim

era

de algum modo

uma

herança dos

hábitos adquiridos

antes

do casamento

na comp

etição econômica e sexual dos

anos

passados como companheiros de turma.

Para

encontrar

evidência da distinguibilidade dos pequenos lojistas e

ar-

tesãos

prec

isamos nos voltar para outros indicador

es

 

como

jóias prataria 

móveis finos e livros; tais indicadores  juntame

nt

e com roupas aproximavam

a

pequena

e média burguesia parisiense o ~ model

os

do

suc

esso aristocrático

e

bur

guês. ·

Se

os artesãos gastavam di

nheiro

para se vestir

er

a tanto por

um

Archives nationales. Minutier centra

l

12 1700; XXVIII 104 1710.

Page 23: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hiera

rqui d

s aparências

n

Paris de Luís XIV a Luís XVI o b-117

desejo de distinção social quanto pelo pr zer da elegância ou respeito pelos

imperativos da moda. O

tr

aje requintado er presença obrigatória

entre

os

mais

ambiciosos.

m o

séc

ulo

XVII: três sensibilid des

indumentári s

Na sociedade parisiense sob o reinado de Luís XIV as vestimentas e rou

pas-brancas tinh m relativamente pouco valor,

em

bora não fosse negligenciá

velem nenhum grupo social. Em relação ao mercado de consumo potencial,

elas eram importantes, se pudermos extrapolar totalidade com base em nos

sa amostragem. Os 450 mil ou 500 mil habitantes da capital

tinh m

acumulado

roupas

no valor de várias dezenas

de

milhões

de

libras.

No

topo, um pequen

porção

da população - a nobreza e os membros mais ricos do terceiro estado,

grupos heterogêneos mas detentores do poder real - er p rte ativa do ci

clo das despesas ostentatórias: roupa er

um

signo

que

podia

compreender

excesso

e extravagância, junt mente com outros elementos do lu

xo;

er um

símbolo no desfile social das posições e condições. É significativo que, nesse

mundo das aparências, o traje dos criados domésticos tinha o propósito de ser

uma

demonstração-adicional da on ipotência dos seus senhores. Por meio das

roupas, os criados er m introduzidos nos hábitos de

consumo que

eles,

por

sua

vez

passavam adiante outros setores da população. Cabarés, tabernas,

teatros, festas e feiras er m os lugares mais óbvios para tais transferências,

mas a casa e a família

tinh m

a mesm importância, senão mais. Na

b se

es

tavam aqueles qu e haviam cruzado o limi  rda simples necessidade, assalaria

dos estabilizados pelo trabalho e integrados pelo casamento, cuj  s atividades

os

punh m

em contato com os pequenos patrões das oficin

  s

e lojas, os quais

já tinh  m condição de ostent r alguma elegância. O consumo popul r deu ao

vestuário um papel de motor na economia. Entre esses dois grupos, os arte

sãos

e lojistas revelavam suas próprias atitudes características e um gama de

tipos de comportamento; burguesia de ofícios e rendas também fez escolhas

específicas,

que

revelavam

um

preferência pelo útil e necessário em detri

mento do

de

coro.

Havia diferentes sensibilidades

indumentári s

nessas burguesias, uma

vez que as roupas mais caras e bund ntes não er m automaticamente encon

tradas nas

m i o r e ~

riquezas. Tr

ês

tipos de

h bitus

são visíveis.

No

primeiro,

0

D

Kalifa, Le

cosr 

e rians la per

ir

e

bourgeoi.sie

artisanale er marclwnde parisienne 1

695

-

171

5 Paris I, I 980,

pp. 39-40.

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8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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  8 <f> A economia dos guarda-roupas

a posse de roupas estava reduzida ao utilitário: o indivíduo tinha as roupas

necessárias, apropriadas

às

convenções do meio e adaptadas às exigências re-

ligiosas, sociais e econômicas. Para os mais pobres, a escolha das roupas

era

uma qu

estão de necessidade e o motivo proteção vinha

em

primeiríssimo

lu

gar.

No

segundo, dava-se grande importância ao requinte

indumentária

como

indicador de distinção social. preocupação com

as

aparências e o efeito

que

causavam era basicamente uma característica dos grupos intermediários da

burguesia mercantil, artesanal e liberal, isto é, daqueles

que

constituíam a

principal coluna social da vida urbana, nem pobres nem ricos,

porém

em situ-

ação confo

rt

áve l e desejando

um

a vida melhor. atitude fundamental dest

es

estava conforme

com as

regras religiosas e morais da civ

i1i

zação

das

boas

ma-

neiras.

No

terceiro, havia indivíduos e micromeios abertos à mudança. Os

va-

lores de imitação e a influência da moda vindos do a

lt

o ditavam

uma

es t

ét

i

ca

específica. Para os mais ricos, ela podia levar à

acumu

lação primitiva de um

considerável capital

indumentária

Essas três sensibilidades existiam independentemente de fatores econô

micos. O sistema indumentária parisiense consistia menos de

uma

rigorosa

superposição

de

estratos correspondendo a níveis econômicos e sociais do que

de

um

contínuo entrelaçamento de escolhas e de

compor

t

amento que

podiam

operar

simul

taneamente entre

ricos e

menos

ricos.

A

dimensão do fenôme

no

adquiriu

um

valor coletivo

com

uma

acumulação

que

era

o resultado

de

um grande

número

de escolhas individuais. A roupa

era

o espelho da vida

de

homens e mulheres. Estas tiveram um papel dinâmico e motor em todos

os

meios,

sa

lvo talvez en tre assalariados, classe em que prevalecia a igualdade

do necessário, e

entre os mais abastados da aristocracia, homens obrigados a

afirmar

seu

prestígio e posição mediante gastos suntuários, símbolo de

status

social

  ,

44

que

gastavam em roupas tanto quanto suas co

mp

anheiras; cortesãos

e íntimos do rei eram impelidos pela lógica da etiqueta a

um

excessivo consu

mo indu

mentá

ria,

elemento

integral do

ethos

aristocrá

ti

co, fundamentalmen

te distinto do

das

classes profissionais burguesas. Entre estas, as

mulh

eres

é

que eram

o

elemento

motor

na

transformação das

sens

ibilidad

es

.

Ass

im

, no alvorecer do Século das Luzes, o

sistema

indu me

ntária

pari

sie nse obedecia a três lógicas: a da sociedade

de status

e posição, a da raciona

lidade controlada das esco

lh

as econômicas burguesas e a

da

necessidade para

os pobres.

Nenhuma

dessas lógicas se limitava exatamente a

um

es trato social,

N. Elias,

a soci

été de cour prefácio de R. Chartier, trad. francesa, Paris, 1985, pp. 54-55.

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A hierarquia

das aparênàas na

Paris de Luís XIV a Luís XVI l o 119

mas

elas

se

espalhava m por todos os grupos que

se

entrecruzavam no espaço

da

cidade, de

maneir

a que

estes

tinham suas próprias razões e restrições.

Ov

  lor

da

roup

às

vésp r

s

d

Re

volução

Por volta do fim do Antigo Reg

im

e, tudo havia mudado

ver

tabelas 2, 3

e 4). Para todos os

gr

upos sociais, exceto a burguesia mercantil e de ofícios, os

gua rda-roupas haviam a

um

entado de valor mui

to

mais rapidamente do

que

os

bens de uso diário, e para todos, sem exceção, mais do que o

crescime

nto mé

dio

dos patrimônios mobiliários. Em valor nominal ou deflacionado, o

quadro

é o mesmo, embora o aumen to seja

um

tanto me

nor

quando cal

cu

lado

em

se

teiros

de

tr

igo

em

vez de em dinheiro. Todos agora possuíam mais, os

bens

de

luxo

eram mais amplamente difundidos, e toda expressão social e intima das

aparências havia adquirido gr

ande

importância . As categorias inte

rm

ediárias

- os empregados domésticos, os assalariados mais ricos e a burguesia próspera

- pontificavam na arena das aparê ncias e do

bem-estar

material, com

uma

taxa

dia

de crescim

en

to

de

mais

de

250  .Mas, se todos es tava m mais ou menos

ga

nhando,

os

fossos

haviam

ampliado e

se

deslocado na topografia

soc

ial. O

nascimento de uma sociedade

de cons

umo, no último quarte l do

século

XVIll,

estava fundamentado em uma série

de

transformações e reclassificações das

sensibilidades e do habitus social.

sconqu

i

st

s

do povo

Na base da pirâmide social, tinha havido uma profunda transformação.

  5

Ovalor global dos guarda-roupas das classes in feriores agora passava de 8.500

lib

ras, ou seja,

um

a média por família de 85 libras,

115

libras se incluída a

roupa-branca, ou seja,

um

a taxa

de

cr

esc

imen to

de

215 em valor nominal

em relação ao começo do

séc

ulo e de 148 

em

valor de fl

ac

i

ona

clo.

Ao

mesmo

tempo,

a participação

elo

v

es

tuár io nos patrimônios havia crescido

ele

5 para

7 596 e os bens ele consumo diário

tinham

a

um

entado quase quatro vezes. A

roupa era agora

um

item

import

a

nt

e nos orçamentos dos menos abastados,

mas um item

que

revela, ai nda mais claramente do

que

antes, as diferenças

e

riqu eza e o eqi.lilibrio

que

havia, ou não, entre necessidades, possibilidades

• Resumo, aqui ,

as

principais

conclusões

do trabalho

de

O. Rochc,

Lc pertple

e

Paris 

c

it.

,

capí

tulo VI,

pp.

165 201.

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120 -.n

A cconomja

do

s guard a-roupas

e esco

lh

as individuais; as roupas eram importantes para todos,

mas

sobretudo

para os

mais

pobres,

como

mostra o quadro a segu ir:

1700

1789

Para fortunas in feriores a 500 libras 7 5% 1696

Para fortunas

supe

riores a 3 mil libras 0,6 96 1,696

Esse impressionante aumento se

dev

eu bas icamente às

compras

das mu-

lh

eres. Os guarda-roupas mascul

in

os valiam, em média,

36

libras, e os femi-

ninos, 92,

qu

er

dizer,

um in

cremento

de du

as vezes

para

os

hom

e

ns

e de

seis

vezes para as mulher

es

. A mulher do povo parisiense havia adotado o modelo

geral de

co

nsumo indum

entária

e o dimorfismo sexual era agora a regra para

todos. Às vezes, ele

assumia

uma forma extrema: Jean Bertos, um empregado

do co

mércio

de ca rne que morreu e m 4

de

novembro de 1784, deixou roupas

no valor de 38 libras, ao passo

que

sua viúva tinha um

gua

rda-

roupa de 346li

br

as;4

6a

esposa de

Ju

li

e n Patel, empregada

numa

fábrica

de

sorvete, tinha

2  4

libras de

roupa

e o marido, apenas

60 .

47

Para compreender essas dife renças de

comporta

mento,

pr

ec

i

saríamos

ter condições de traçar a vida in

dum

entária

de um casal. É

certo

que as

mulh

e

res

chegava m

ao

casamento

ma

is providas

de ro

up

as do que os home

ns

, e a

difer

ença só tendia a aumentar se a

família

co

nseguisse

escapar

dos in fortúnios e aza res

da v

ida frág

i1

 

48

As mulheres

tendiam

não

apenas

a conservar as roupas

mas

também a adquirir novas. A

classe traba

lh

adora in tegra

da

havia

entrado

no ciclo do con

sumo.

Essa

foi

uma

revo

lu

ção silenciosa fundamental, tão imp

ortante quanto

a alfabetização. A

busca por mais conforto

foi

inicialmente uma carac terística feminina, e o de

sejo

de parece

r me lhor,

um

traço

de

a

mb

os os sexos.

Provavelme nte observamos aqu i as conseqüências de

uma

onda geral

de imi tação, na qual os criados

dom

és ticos haviam d

ese

mpenhado

um

pap

el

important

e

desd

e o início do século.

Dur

a nte o re in

ado

de Luís

XVI

, o valor

global

dos

guarda-roupas dos criados ultrapassou 29 mil libras,

ou

seja, ho

uv

e

um

crescimento

record

e, de

436 , o dobro do cr

esc

ime nto entre as classes

in feriores

em gera

l e

ce

rca de

três

ou

quatro

vezes

mais

do que o aumento mé

dio

em

todos os

inven

titrios somados. Essas mudanças são indicativas de duas

'

6

Archives nationalcs. Minuti

er

cent ra l,

CXI, 362, I784.

Archiv

es

national

cs

. Minutier c

entra

l, CV

, 1368, 1782.

•a

A

Farge,

a

uic frag il

c

uiolcncc pouuoirs ct solidarité à

ans

1111 XVIII  siêcl

e

Paris,

1986.

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1\ hierarquia das aparências na Paris de Luís XIV a Luís XVI

~ 2

atitudes que eram características dos criados

domésticos

parisienses: a

acumu-

lação

de roupas em

uma base

temporária e

um

dimorfismo sexual contínuo

e bastante pronunciado. Mais do

que

em

outros

meios,

as

roupas

circulavam

entre os criados por. doação, furto e ganância, que era facilmente satisfeita

pela

apropriação, voluntária ou involuntária, de peças dos guarda-roupas de seus

empregadores:

 9

Por vo lta

de

1700, os criados domésticos investiam no

próprio

guarda-roupa 10% do total de suas despesas habituais,

subindo para

30% em

1780. Vemos os resultados de um aumento da imitação, assi

na

lados por todos

os observadores, e nos quais o uso de librés cada vez mais luxuosas simboli

zava um rompim

ento

da

ordem

no mu ndo do consumo habitual. O

contras

te

entre o comportamento dos homens e das mulheres, visível desde o fim do

século XVII, persistiu: 88 libras, em

méd

ia, para

um

guarda-rou

pa

masculino,

e

151

libras para

um feminino

,

mas aquel

e

cr

esceu tão rápido quanto

este

(ta

xas de 257 e 246%). Isso comprova a melhoria elo padrão de vida dos criados

domésticos, quando comparado ao de outros assalariados.

50

Thdavia, a m u

dança

foi ma is

acentuada

entre os mais ricos, meio em

que o dimorfismo sexual havia diminuído: maítres d hôtel

mordomos

e chefs

gastavam tanto

quanto

suas esposas (o va l

or médio

dos guarda-roupas dos que

possuíam

mais de

3 mil libras

era

de

225 libras para os

homens

e de 230 libras

para as mulheres . Seguindo o exemplo de seus empregadores, as roupas des

ses serviçais eram variadas, numerosas, requintadas e

ornamentadas.

Já entre

cocheiros, porteiros, palafreneiros e si

mples

lacaios, os guarda-roupas fem i

ninos haviam

mudado

muito mais do que os masculinos. Ve mos os efeitos da

maior ou menor proximidade dos criados com seus senhores ao cabo de uma

tendência que Rétif de

La

Bretonne e Louis Sébastien Mercier situaram n os

anos

1770 , quando as

mulheres

da classe trabalhadora e os criados

domésticos

começaram a

ansiar

pelo

bom

gosto e a

prestar atenção

nos

próprios trajes

,

e quando as coquetes

começaram

a desejar os vestidos graciosos da moda .

51

O

que

antes

estivera confinado ao estreito círculo da alta nobreza ou da

bur-

guesia abastada tornara-se um fenômeno generalizado, donde o baralhamen to

socia l das condições c posições.

5

Cam

are

iros e senhores, criadas e senhoras

confundiam-se no teatro urbano, c

omo

havia muito já o eram na conve

nção

do

palco.

5

3

J.

Sa

baticr, Figa

ro c

so

 

maitr

e

cit.,

pp

. 269·270.

O. Roche, e

peuple de

Paris

,

ci1.,

pp

. 75-94.

L. S. Mercicr,

ThiJ

ec  xde Paris, 12 vols., tomo 10, Amsterdã, pp. 190·191 ; Rétif do La Brotonnc, cs 11uits

dt

Paris, 7 vols., Londres/ Paris. 1788, pp. 2493-2494 c 2521 -2522.

12

J. Sa

bati

er

, F lgaro

e

so

 

maitr

e

ci t. , pp. 52-54.

5

J. Emelina, Les valcts et I

cs

seruant

cs

dans te tiléátre comique cn France de 1610

à

17

00

Grcnoblc, 1975; e

M. Ribaric- Dc mers, e valet ct Ia so tdJrette, de Moliere à ta Rtivo llllion , Paris, 1971 .

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122 e

A economia dos

guarda-roupas

sup

erfluid ez d

as

roup as da

nobr

ezapré revo lucion

ár

ia

Às

vésperas da

Revolução, as nobrezas

parisienses não

eram mais

h )-

mogêneas do que

no

tempo

de Luís

XIV:

7 dos

patrimônios

mobiliários

ui·

trapassavam o milhão de libras e 80 excedi

am

500 mil

li

bras. O aumento

- 700 - em menos de um século é cons iderável, provavelmente

resultado

da concentração

em

Paris daqueles nobres

atraídos

pelo serviço do Estado

ou

pela vida

na

corte; en tre

algumas

enormes fortunas da cidade, contavam-

se

as dos Argouges, d'Aguesseau, Boulongne, Orm

esso

n, Saron e Soubise. Pr )-

porcionalmente aos

gastos, as roupas (6 mil libras

em

média;

nunca

menos

de

100 libras)

eram menos importantes:

1,2 do capital mobiliário (2,9

em

1700), 5,3

dos

be

ns de

uso diário (13

em

1700). Entretanto, as atitudes

em

relação à roupa eram

muito semelhantes

os gastos

não aumentavam sistema-

ticamente com o nível de riqueza. O crescim

ento

no valor dos guarda-roupas

aristocráticos - 233

em termos

nominais, 163

em

termos reais-

revela

uma

nova situação: um teto de consumo às vezes de prodigalidade, havia sido

atingido, dificil

de ser

ultrapassado.

Homens

e

mulheres

continuaram

a

gas-

tar igualme nte, magistrados e hommes d épée

tinham

atitudes muito parecidas,

embora nas famílias de parlamentares os guarda-roupas da s

mulh

eres fossem

com

freqüência mais

valiosos do que os dos

homens.

Foi graças a

um

a

mudan-

ça

no

co

mportam

ento

feminino que

a padronização do

habitus

tivera êxito no

seio

da

nobreza.

5

 

A

maior parte das

famílias nobres gastava

com

vestuário e

roupa-br

anca

cem vezes

mais

do

que

as famílias proletárias e

quase

dez

vezes

mais do que as famílias burguesas, o que corresponde à integração geral das

aparê

ncias.

As atitudes dos nobres

parisienses

e m relação ao vestuário eram bastan·

te

uniformes.

Elas esti

mulav

am o

comércio

e a

moda

e

davam

o tom para

os

outros

grupos

sociais,

incentivando mecanismos de

imitação

que

eram

adota·

dos

de

acordo

com

os recursos disponíve

is.

A

moda havia

sido comercializada,

tanto e m Paris como em Londres.

55

A crítica aos excessos na indumentária

agora podia deixar o

terreno da

moral e

da economia par

a se

tornar um argu

·

menta político, sobretudo contra os gastos suntuários dos cortesãos.

Madame

Campan

conta como as mulheres da alta nobreza corriam a imitar o compor·

tamento

frívolo de Maria Antonieta:

F. Bluchc, L

es

t

lu arl

cmc

ut

de Paris

au

XV111

  sii:clc, 1717 1771, Paris, 1960, só discute realmen-

te o comportamento masculino.

N.

McKcndrick er a/., Tlu: Birtlt o[ a Cmrsumcr ciety, Londres, 1982, pp. 34·

100

. Esse trabalho notáv

el

permite compa ra

ções

en tre Paris e Londres.

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8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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A hierarquia

das

aparências na Paris de Luís XIV a Luís XVI

Os gastos das

jove

ns damas aumentaram enormemente murmuravam

mães e maridos;

algumas

doidivanas contraíram dívidas, houve cenas

de

família deploráveis, muitos casais brigaram

ou

se

estranharam

e corria o

rumor

de

que

a.rainha arruinaria as mulheres francesas[ ..] S6

;t;,.

 23

Esse breve relato tem a

vantagem

de

mostrar como

o comportamento

feminino era percebido, muito embora, na aristocracia de Versalhes, os dois

sexos gastassem

quase

a mesma coisa com a

aparência.

 7

O relato

documenta

a reação do público

med

iante o

consumo

extravagante dos cortesãos, e capta a

realidade de um meio específico e

de

uma

fa

ixa e tária. As co nseqüências eco

nômicas

para o

com

é rcio de luxo e as verdadeiras repercussões políticas ainda

precisam ser

determinadas.

s

modest s co nqui

stas

d

burguesia

por volt de 789

A

acumulação

extravagante e custosa era, por certo, um fenômeno típico

da nobreza parisiense. Entre os burgueses ligados

ao

comércio ou aos oficios,

o

gasto

médio

com

roupas chegava a 587libras. Era a categoria social que

me-

nos

progresso fizera

desde

o início do século; e la apenas duplicou a fortuna

mobiliária,

aumentou os bens de uso diário em

71

e as roupas em 70 , ou

em 35 , se usarmos o trigo como medida. Todavia, o valor dos guarda-roupas

se manteve em u m patamar em torno de 200 libras,

embora

47 deles não

atingissem esse patamar.

Conquanto

o vestuário e a roupa-branca fossem im

portantes para lojistas e artesãos, o grupo como um todo parece

ter

mantido,

em

vez de

aumentado

, os gastos com roupa. Ele havia sido influenciado pela

revolução

indumentár

ia logo cedo, e, por volta

de

1700, todos

os ind

i

cadores

o

posicionavam imediatamente atrás da nobreza. Esse meio trabalhador e pro

dutivo ainda precisava

manter sua

posição na hierarquia urbana

elas aparên-

cias, e, às vésperas de 1789, ele

ape

nas

ma

nteve o consumo nada além disso.

Há duas explicações possíveis: a mobilidade asce ndente dos mais

empre-

endedores e afortunados, híbridos

soc

iais que

escapam

de nossa

amostrag

em;

ou o desenvolvimento econômico dos oficios talvez não fosse igual para to

dos

de

sorte

que

a análise pode

mascarar uma gama de dest

i

nos que

um dia

Cf.

Mad

amc

Campan

, Mé

moires

s

ur

ltr uie

pri

uéc de la reine M

arie

-

t\nroi

ne

rr

e  Paris,

p. 72

; c Madamc de

Genlis, icrio

mwrr

e crirrquc er ra isomré de la Cour eles usages Paris, 1818.

r

Seri

a útil poder traçar gast

os

de toda uma vida, pois é certo

que os enx

ovais das

jo

ve

ns mulh

eres casadas

da

nobreza poderiam re

pr

esentar uma grande parte

de

seus dotes. Em 1787 , o e nxoval da ma

rque

sa de

a

1burdu Pin cu stou 45 mil libras

à

sua famflia, e

nquanto

a noiva do barão de Mommorcncy vestia

25

mil libras. Ver também

A.

Ribeiro,

r

css in

Eig

htee

nrh

Cc nrunJ

Eu

ro

p

e

1715-1789 

cit., pp. 56-57.

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8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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124 o<} economia dos

guarda-roupas

poderão

ser

mais

bem

conhecidos. Não

surpreende que

o dimorfismo sexual

e

uma seme

lhança

de

comportamento se

mantivessem,

qualquer que fosse

o nível de riqueza.

As

diferenças

se

manifestavam alhures,

por

exemplo na

acumulação de jóias, dinheiro

ou

valores comerciais. Em

um

meio

que

viu sur

gir, entre 1790 e 1793, os traços característicos da mentalidade revolucionária,

uma multidão de pequenos e médios burgueses já gastava talvez, às vésperas

da Revolução, ligeiramente

menos

do que

seus

avós

e

bisavós da época do Rei

Sol. Entretanto,

eles

gastavam seis vezes mais

em

roupas do que os jornaleiros

e trabalhadores assalariados,

com quem tinham

contato diário na oficina ou no

balcão, e

com quem

partilhavam

suas

vidas e até, essencialme nt

e,

sua cultura.

Jacques-Louis Ménétra,

que

passou de

um

nível social para outro

no

decorrer

da vida, mostra claramente os contrastes de comportamento, pelo

menos

dos

celibatários e

homens

casados.

58

Antes de se casar, no

seu

giro

pela

França,

ele

deu pouca importância à própria aparência, substituindo

suas

poucas posses

terrenas

quando

surgia a necessidade ou a oportunidade;

mas

ele

era

perfei

tamente

capaz de se fazer apresentável

e, uma

vez estabelecido e

um pouco

mais velho, passou a vestir-se como um burguês parisiense, tendo cuidados

com a aparência. A roupa

era

provavelmente e em certa medida um motor do

comé cio, mas isso não demandava ostentação, pelo contrário.

Entre a burguesia

de

ofícios e a

das

artes, as mudanças foram mais

acen

tuadas. O

aumento no

valor dos

seus

guarda-roupas é espetacular, pois, jun

tamente

com

os criados domésticos, é a categoria com a mais alta taxa de

aumento

entre 1700 e 1789: 369% e 272% em termos de trigo. Entretanto, a

importância

das

roupas na riqueza mobiliária não se alterou: 0,5%

em

1700 e

O 7 em

1789;

em

relação aos

bens

de uso diário, chegou

mesmo

a declinar,

caindo

de

13% para 8%. Isso sugere

uma

moderação

no

uso da roupa,

que

de

certo modo unificou

um grupo

diverso

em suas

atividades e riqueza:

1996

dispunham

de

menos

de mil libras, não estando, portanto, muito distantes

das

classes inferiores,

enquant

o

21 tinham

mais de

10

mil libras. Entre os mais

ricos, o valor das roupas

era

mais alto; gastavam grandes

somas

em roupa

branca e vestuário de alta qualidade e tinham muitos e custosos acessórios,

mas seus guarda-roupas ainda

tinham

relativamente pouca importância

em

suas

heran

ças; o inverso era o caso daqueles que estavam na base

da

escala

de

riqueza.

As

vestimentas, roupa-branca e jóias de Jean-Baptiste Munirei, um

advogado solteiro,

59

representavam.menos de 90 dos poucos bens avaliados

pelo

no

tário, isto é, 300 libras; em contrapartida,

no

caso

de

François Guillau-

  '

J .-L Ménétra, joumal de ma uic, D. RDche (org.), Paris, 1982.

9

Archives nationale

s.

Mínutier central,

LXXIII,

991, 1778.

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A hierarquia das apa rências na Paris de Luis

XIV

a Luis XV I

1/ o 125

me Thousseau, outro advogado no Parlamento,

60

esses bens excediam 4 mil

libras ou

seja, mais de

10

  do total. O dimorfismo sexual

se

mantinha, pois

a média dos guarda-roupas femininos era de 739 libras, e a dos homens, 320

libras.

6

A fraca representação das diferentes profissões não permite distinguir

quaisquer variações no comportamento

de

cada

um

a delas.

Contudo

, no caso

dos

dois grupos mais

bem

re

prese

ntados, advogados e médicos,

não se

cons

tatam diferenças significativas.

A

burguesia parisiense das profissões liberais

participou ativamente da revolução indumentária do século XVIli, especial

mente as mulheres, e os ricos investiam na aparência tanto quan to a nobreza.

Assim no espetáculo social, ela contribuiu de modo ativo para o baralhamento

das hierarquias visíve is.

Ao

término desta avaliação inicial,

parece bastant

e claro

que

o estudo

da

roupa não pode

se

contentar com uma análise

unicamente

econômica;

uma comparação dos núme ros e das descrições qualitativas dos conteúdos

dos

guarda-roupas nos dirá mais sobre as conexões entre os grupos sociais e

sua aparência. Em 1789, em todos os níve is da sociedade parisiense, as roupas

ti

nham

uma impo

rt

ância limitada, mas

não

negligenciável, nos

patrimônios

mobi

liários; a

import

ância

de

las era maior

entre

assalariados e nos círculos do

comércio e dos ofícios e menor e ntre a nobreza e a burguesia;

de mod

o geral,

ela

era inversame

nt

e proporcional ao

aumento

da

prosperidade, pois

um

certo

teto parece ter sido logo atingido, e a riqueza não é apare

ntement

e um

cr

itério

adequado para a compreensão dos hábitos indumentários.

62

Se examina rmos

apenas os bens de uso diário e a distribuição hierarquizada dos guarda-roupas,

essas duas atitudes, que combinam necessidade e esco

lha

se confirmarão.

A

despeito do fosso

ent

re burguesia e nobreza, existia uma certa unidade nos

dois meios, que concentravam cult

ur

a, poder e riqueza, unidade essa que de

sempenhava um papel de motor no aumento do consumo. O restante da po

pul

ação

seguia atrás.

'Ibdos gastavam mais para melhorar a apa rência, embora a distância en-

tre

os

mais ricos e

os

mais pobres a

um

entasse drasticamente. A unific

ação

do

l abitus

gra

dualm

ente afetou toda a população,

um

a vez

que

numerosos inter

mediários- os mais afortunados en tre os pobres, os solte iros interessados em

seduzir, os criados insolentes ou submissos e as mulheres de qualquer catego-

An:hive

s national

_cs

.

Minutier

ce

ntr

al, LXXIII , 968, 1775.

7296

dos guarda-rou pas masc

ulin

os va

li

am me

no

s

de

400 libras, 52  ficavam e

ntre

100 c 500 libras; para

as

mulheres, 24  não chegavam a 400 libras, 12  ultrapassavam mil libr

as

. C

B.

Mcrz, Le

cos

tume de

bowgtoiS parisic

 

s

de

professions l

iiJéral

es, trabalho de conclusão de curso, Paris I, 1983, pp. 26-32.

a RMaillard,

ontriiJwions

à

l histoirc du cost ume dans la noblessc à a fin du XVlll ,

traba

lh

o

de

conclusão de curso. Paris, 1979, p. 66.

Page 32: ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

8/18/2019 ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.5

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126 <f> Aeconom

ia

dos guarda-roupas

ria social - difundiram as novas escolhas e

os

efeit

os

mediatos ou im

ed

i

atos

d

moda, no geral e nos de talhes. O fato de uma

mulher

do final do século XVIII

gastar duas vezes mais do

que

o marido, exceto talvez entre a nobreza, é

um

dado

de grand

e importància social e antropológica,

que

essa

era

um

a

atitu

de generalizada e não um

fenômeno

de classe. Ela já era a vitrina do homem,

talvez ainda mai s ta lvez

um

eficiente transmissor de

educação cu

ltural. A

moldagem das

aparências

,

que

transformou o corpo

feminino

e ntre os

séculos

XVII e XVIII, teve suas implicações na con

duta

e no aspecto dos homens.

63

As

tendências do século XIX e a diferenciação sexual no vestuário começara nas

cidades

bem

antes da revolução política e social de 7 8 9

Restam dois problemas: o prime iro é avaliar o papel real de Paris sua

primazia tanto e

ntr

e ca

mponeses

como

no

tecido

urbano

(voltaremos a

iss

o

depois de examin

ar

os traços característicos dos gua rda-roupas parisienses);

o

segundo

é

observar

a constituição dos

patrimônios jndumentário

s, a

fim

de

co

mpre

e nder as co nexões entre meios e necessidades e

en

tre os desejos in-

dividuais e as possibilidades reais que estruturam as economias familiares. É

lamentável, nesse

sent

ido, que tenhamos tão pouca info

rma

ção sobre as

rou

pas das crianças.

65

O traje infantil está e m

se

us primórdios e, portanto,

busca

um lugar novo no sistema indumentária Compreendê-lo melhor demanda

ri

a

outras

fontes e

um

out

ro

est

udo.

É

c

er

to

e

ntr

eta

nt

o

que

um

a nova fronteira

e

ntre

ri

cos

e pobres es tava

sendo

criada:

66

as c

rianças

ricas vestiam-se como

crianças, as demais como adultos em miniatura.

6

l

P Perrot,

Le va rl eles appMcnces,

Paris,

1984

, pp.

61-6

8.

6<

P. Perrot,

Les dessus et les dessous

de

ler bowgeoi

se,

e

lri

stoire

u

vétement au

XI>.

" siecle,

Pari

s 19

81.

É uma

lacuna.

qu

e

se

observa e m 9096 dos casos, tanto mais surpr

ee ndent

e

qu

ando há crianças de pouca

idade; aliás, a idade, ou independência dos herdeiro

s

pode

se

r n exp

li

cação. Volta remos à poucas exce

ções.

66

N. Pellegrin, Les ma11iercs

d?rabrll

er les enfams sous Ug im

e,

texto inédito; P. Arics, L

c

  [am et

la

1