revista_cultura entre culturas_nº1_extractos

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    Entre lusofonia e lusofania se faz voz e viagem

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    ficha tcnica /.|

    direcoPaulo Borges

    comisso de honraFranois JullienHans KngJean-Yves LeloupRaimon PannikarMatthieu RicardAgostinho da Silva (In Memoriam)

    conselho de direcoPe. Anselmo BorgesConstana Marcondes Csar (Brasil)Carlos Joo CorreiaFrei Bento DominguesAntnio Cndido FrancoMarkus Gabriel (Alemanha)Dirk-Michael Hennrich (Alemanha)Rui LopoAmon Pinho (Brasil)Andrs Torres Queiruga (Galiza)Miguel RealJos Eduardo ReisLuz Pires dos ReysAdel SidarusFrancisco Soares (Angola)

    conselho editorial

    Joo Read BeatoFabrizio Boscaglia (Itlia)Duarte Drumond BragaAntnio Cardiello (Itlia)Paulo FeitaisMiguel GullanderCem Komrcu (Turquia)Jos Lozano (Galiza)Rui MatosoJorge Telles de MenezesRodrigo Petrnio (Brasil)Romana Valente Pinho (Brasil)Cinzia Russo (Itlia)Isabel SantiagoLus Carlos Santos

    Maria SarmentoMaurcia Teles da SilvaRicardo Ventura

    traduo e reviso de textoDirk-Michael HennrichRui LopoJorge Telles de MenezesLuz Pires dos ReysMartina Weitendorf

    comunicao e imagemSofia Costa MadeiraTiago Lucena

    direco de arteLuz Pires dos Reys

    design grficoXnia Pereira Reys

    impressoMultitipoArtes Grficas, Ld.a.

    PropriedadePaulo Borges

    tiragem1000 exemplares

    ISSN1647-6697

    depsito legal309912/10

    edioncora EditoraAvenida Infante Santo 52 - 3 esq.1350-179 Lisboatel + 351 213 951 223fax + 351 213 951 222e-mail [email protected] http://www.ancora-editora.pt

    assinaturas (pedidos editora)1 Ano 2 Anos

    Portugal 30.00 55.00Europa 35.00 65.00Extra-Europa 40.00 75.00pagamento: cheque ou transferncia bancria

    direitos de autor 2010 Cultura Entre Culturas

    Revista Cultura ENTRE CulturasRua Carlos Ribeiro, 30 - 41170-077 Lisboa(endereo para correspondncia)tel + 351 918 113 021(para lanamentos e apresentaes)

    e-mail [email protected] http://arevistaentre.blogspot.comfacebookhttp://www.facebook.com/group.php?v=info&ref=ts&gid=230286389667

    Todos os artigos so da inteira responsabilidade dos seusautores.

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    entre portas|\|editorial

    Eis que surge o primeiro nmero da revista Cultura ENTRE Culturas. Nasce num mundo em crise,numa conjuntura nacional e internacional de grande insatisfao e incerteza, mas tambm de crescenteaspirao e j efectivao da busca e ensaio de Outra Coisa, de alternativas aos paradigmas ainda vigentesque em geralda educao poltica e economia - ostentam o seu fracasso e caducidade. Desfeitosmuitos dos mitos que deram corpo moderna civilizao ocidental, patentes os problemticos efeitos dasua mundializao, tornado evidente que no podemos assim continuar, mas tambm que no queremosnem podemos regressar ao passado, colocam-se uma vez mais, de forma assaz intensa, as perenes esempre novas questes: Que fazer? Para onde ir? Que sentido dar existncia, vida, cultura e civilizao, tais quais actualmente as temos?

    A diferena reside, por um lado, em que estas questes j no podem hoje ser colocadas e respondidas

    nos estritos e estreitos limites antropocntricos, pois o homem descobre-se cada vez maisinterdependente da totalidade da natureza, dos seres sencientes e do universo em que con-vive, bemcomo do sagrado que reemerge das runas de um mundo profanado; por outro, na presente ps, hiper outrans-modernidade multicultural, o ponto de partida e de chegada de qualquer busca de soluo no podetambm ser restrito a uma dada cultura ou civilizao, impondo-se desde incio como o do seu espaocomum que se abre, concretiza e aprofunda nas dinmicas interaces entre todas elas.

    Mais do que pretender dar s grandes questes da nossa poca respostas j feitas e doutrinal ouideologicamente fechadas, Cultura ENTRE Culturas oferece-se como espao de interrogao e debateplural. no desvendamento e aprofundamento da diversidade do humano e da sua tessitura inter e trans-

    cultural que a revista aposta. Para tal dispe-se a promover e/ou associar-se a diversas iniciativas culturais,estabelecendo parcerias. Embora se invista numa revista de qualidade, com nmeros que sirvam dereferncia, no pretendemos fechar-nos num mundo acadmico e apostamos fortemente no cultivo dedinamismos culturais e sociais criativos e libertadores.

    Se optamos por questionar o temaQue dilogo entre culturas? - , fazendo dele no apenas umenunciado, porque, por um lado, pretendemos ser uma revista que pense e faa pensar, quedesassossegue e desacomode, no se satisfazendo com lugares-comuns, sobretudo com os maisvenerados; por outro, por no estarmos certos de que, apesar de vivermos numa poca celebrada comomulticultural, em que a interculturalidade invade os discursos poltica, cultural e institucionalmente

    correctos, haja efectivamente um di-logo intercultural digno desse nome, em que os diferentes se

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    busquem mutuamente compreender a partir da perspectiva do outro, habilitando-se por essedescentramento a uma outra e mais funda compreenso de si mesmos.

    Remetendo os leitores para o texto que expressa a Matriz e os Propsitos de Cultura ENTRECulturas, passo a apresentar o contedo da revista, no podendo deixar de destacar a riqueza e adimenso internacional dos inditos publicados neste nmero. A cultura portuguesa e lusfona estemblematicamente representada por Agostinho da Silva, um dos grandes precursores, entre ns e nomundo, da importncia dada ao aprofundamento do dilogo intercultural. Agostinho visionou mesmo opotencial mais universal de Portugal e da Lusofonia como o de se converterem em espao inter etranscultural, frtria de todas as lnguas, naes, cultos e culturas, esfera trans-territorial jamais fechadasobre si, aberta ao dilogo e convivncia planetrios. Os inditos de Agostinho da Silva so apresentados ecomentados por alguns dos seus melhores especialistas (Amon Pinho, Miguel Real e Romana ValentePinho). Temos ainda a singular honra de acolher nestas pginas autnticos gigantes vivos do pensamento edo dilogo interculturais, que expressa e generosamente nos enviaram textos sobre o tema: RaimonPannikar e Franois Jullien (textos inditos em Portugal, o ltimo a sair simultaneamente em Frana), HansKng e Jean-Yves Leloup (textos muito recentes e totalmente inditos). Estes nomes integram, comMatthieu Ricard e o imperecvel Agostinho da Silva, a nossa ilustre Comisso de Honra, que no podia sermais expressiva da amplitude e alcance do nosso propsito. A estes inditos junta-se o do pensador checoVilm Flusser, ele prprio um smbolo de interculturalidade, pois publicou em vrias lnguas, tendoescolhido a portuguesa para o texto aqui publicado e para algumas das suas obras maiores.

    Entretanto, quando a revista estava prestes a imprimir, recebemos uma carta de Raimon Pannikar,anunciando que chegou, aos 91 anos, o momento de se retirar de toda actividade pblica, directa ouindirecta, mas que continuar a nosso lado de um modo mais profundo, ou seja, no silncio e na orao,pedindo-nos que igualmente assim estejamos com ele neste derradeiro perodo da sua existncia.

    Agradece a todos os que continuem a difundir o seu pensamento e a compartilhar os seus ideais. Comfunda comoo, constatamos que a colaborao que enviou para Cultura ENTRE Culturas pode tersido o seu ltimo acto pblico. Resta a pena de no ter sido possvel, pelo seu cansao, entrevist-lo paraeste nmero da revista, como esteve previsto.

    No domnio do ensaio, a revista alia nomes consagrados, como o Professor Carlos Silva, aos de alguns dosmais promissores jovens e menos jovens investigadores e pensadores que se vm destacando dentro efora do meio universitrio. Os textos compem um mosaico onde se complementam a reflexo sobre anatureza da cultura e a proposta de um nomadismo inter e trans-cultural (Paulo Borges), o contrasteentre os paradigmas de uma cultura do ente e de uma cultura do entre (Maria Sarmento), o dilogo

    intercultural e a vocao eremtica (Carlos Silva), a universalidade trans-lusfona da lusofonia (PauloFeitais) e os pressupostos para reconstruir a ideia de universalidade a partir de Kant (Rui Lopo). RicardoVentura oferece um estudo sobre os primeiros relatos dos missionrios portugueses acerca das religiesasiticas, fruto de uma investigao que promete obrigar a repensar a histria conhecida das relaesentre o Ocidente e o Oriente, acentuando o pioneirismo portugus, mas tambm as paradoxais razes donosso atraso nos estudos orientais. Na esfera das artes, Miguel Real escreve uma impressiva crnica sobrea festa do Bumba-meu-boi no Nordeste brasileiro e Ins Borges estuda o imprevisto paralelo entre ofamoso gravurista Piranesi e Schuiten, o contemporneo desenhador de BD.

    Quanto aos cadernos de poesia e fotografia, a luz fulgura entre a sombra e a palavra na dana entre

    imagem e verbo, revelando alguns dos mais inovadores nomes das presentes e futuras artes e letras

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    portuguesas. Aos osis de silncio do consagrado fotgrafo suo Beat Presser, outro dos notveisestrangeiros que se associam a este projecto, juntam-se os espaos felizes de Ilda Castro, iluminados porHildegarda de Bingen, as enigmticas tessituras de Adama, os hierticos orculos e as surpreendentessimetrias de Francisco Soares, o movimento natural de Rui Fernandes, acenado e acentuado pela divina

    palavra de Isabel Santiago. E preside ainda o verbo de Duarte Braga, a iniciao de Luiza Dunas, os sagazesaforismos de Dirk Hennrich, romntico alemo convertido ao pensamento portugus e a pensar emportugus, a palavra to nova e to rara de Donis de Frol Guilhade. Tudo estrelas de mpar brilho, comode cada um de ns dizia Agostinho da Silva.

    Completam este nmero vrias recenses sobre algumas obras fundamentais e uma bibliografia,necessariamente no exaustiva, mas ainda assim extensa, sobre o tema da revista. Esta bibliografia deve sercompletada pela extensa informao bibliogrfica oferecida por Carlos Silva ao longo e no fim do seuestudo.

    Finalizamos agradecendo a todos os que contriburam para que esta revista fosse possvel, destacando,

    alm da generosa colaborao de todos os autores, o contributo de alguns cuja amizade nos honra: a plenadisponibilidade e apoio desde o incio manifestados pelo editor, Dr. Baptista Lopes; o incansvel e totalentoso trabalho de paginao e direco artstica de Luiz Pires dos Reys, cujo mrito extensivo aodesign grfico de Xnia Pereira Reys (ambos igualmente fundamentais na concepo do blogue da revista);o empenho e a eficcia de Dirk Hennrich na obteno dos inditos de Hans Kng (e sua traduo) e VilmFlusser, bem como na colaborao de Beat Presser; a verdadeira epopeia e o rigor das tradues erevises de Rui Lopo e Luiz Pires dos Reys; as revises que MartinaWeitendorf e Jorge Telles de Menezesfizeram da traduo de Kng.

    Resta-me esperar que os leitores e assinantes possam viabilizar este projecto e que Cultura ENTRE

    Culturas incarne realmente o mais fundo simbolismo que vislumbro na esfera armilar que tremula nanossa bandeira: no o imprio mundial, mas a perfeio e o entrelaamento de todos os fenmenos, serese coisas, tradies, naes, cultos e culturas, artes, saberes e lnguas. Tudo o que torne possvel umaentre-cultura da paz, compreenso e fraternidade escala planetria, abraando a natureza, o homem etodos os seres sencientes. Que todo o esforo neste sentido frutifique para o bem de tudo e todos!

    Paulo Borges

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    a presentao

    |/| entreprojecto

    Matriz

    A revista Cultura ENTRE Culturas assume-se como matriz dialogal enTre experincias e razes,culturas e saberes, religies e espiritualidades, tradies e civilizaes, bem como enTre elas e o indizvel

    que as possibilita e transcende.

    O nome exprime a vocao de suscitar ou desvendar pontes, elos e armilas enTre domniosilusoriamente distintos e afinal intimamente ligados, convertendo fronteiras em pontos de passagem,termos em mediaes, limites em limiares.

    Cultura ENTRE Culturas, lugar do no-lugar, vislumbra-se um ponto de equilbrio/desequilbrio entreos modos oriental e ocidental de percepo e vivncia do real: algo enTre a diversidade evolutivaocidental e a instantaneidade intuitiva oriental que a uma e outra rena no trnsito para alm/aqum deambas. Lugar insituvel do inter-valo entre isto e aquilo, nele tempo-eternidade, espao-vacuidade,

    palavra-silncio, discurso-percurso respiram e singram de mos aliadas.

    Estruturada sistemicamente, tal clareira de reflexo holnica e integral, a revista um organismo vivo queevoluir plasmando o que da realidade em cada momento se desvela e re-vela, pois a verdade se dita peloolhar sobre ela lanado.

    Cultura ENTRE Culturas ter periodicidade semestral e alternar entre ser predominantementededicada a temas e autores. Incluir cada nmero estudos e ensaios sobre espiritualidade, filosofia, arte,literatura e cincia, prezando-se a publicao de autores nacionais e estrangeiros, bem como de inditos.Haver ainda um ou mais cadernos onde convivero poesia e fotografia, porventura as linguagens de mais

    despojada e depurada apreenso, vivncia e transfigurao do real. No se trata de poesia + fotografia, masantes de entender tais linguagens como duas possveis asas da "theoria" e da "pragmtica" do real, qual ovemos e recriamos, rasgando os limites de cada domnio de linguagem para o ilimitado que lhe subjaz.

    O real no tem linguagem e nesse sentido nem real. Somos ns que o lemos/criamos atravs dadiversidade de modos e cdigos por que a linguagem o/se configura. Nisso o/se faz presente-ausente nessealgo indizvel que nos visita tanto quanto se nos furta. enTre essa presena e ausncia, no hfen que une-cinde presena-ausncia, que Cultura ENTRE Culturas habita: terra de todo o mundo-ningum,sempre virginal e frtil matriz onde entrelaado tudo germina, floresce e frutifica e aonde tudoentranado regressa e repousa: indivduos, povos e naes, cultos, culturas e civilizaes, saberes, artes eespiritualidades.

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    Propsitos

    Cultura ENTRE Culturas elege-se pelos seguintes propsitos:

    1. Contribuir para o desenvolvimento de uma conscincia-experincia integrais, multidimensionais, inter etrans-disciplinares do real e do que possa haver alm-aqum do que como tal se designa, enriquecendocriativamente a vida e a existncia mediante a compreensiva realizao das suas supremas possibilidades.

    2. Explorar antigas e novas possibilidades espirituais, mentais, ticas, artsticas, cientficas, educativas,ecolgicas, comunicacionais, sociais, polticas e econmicas, alternativas crise e declnio do paradigmacivilizacional ainda dominante e que obedeam ao soberano critrio do melhor possvel para todos osseres sencientes, humanos e no-humanos.

    3. Promover o conhecimento e dilogo entre culturas, civilizaes, religies e espiritualidades, bem comoentre estas, o atesmo e o agnosticismo, no esprito da mais ampla imparcialidade e universalismo.

    4. Contribuir para a harmonia e a no-violncia na relao do homem consigo, com a natureza e comtodos os seres sencientes, capazes de sentir dor, prazer e emoes.

    5. Despertar e orientar para estes fins a cultura e a sociedade portuguesas, bem como a comunidadelusfona, valorizando e promovendo as tendncias nelas latentes que mais apontem neste sentido.

    Reclamando-se desse sempre insituvel enTre cada coisa e cada outra, enTre cada coisa e tudo/nada,este projecto vislumbra essa terra de todo-o-mundo-ningum que a ptria dos anjos do real, evocada porSophia de Mello Breynera ptria daqueles que, nada almejando para si, passam pela vida dando o que a simesmos ultrapassa e no pertence.

    EnTre os muitos anjos do real planetrios esto, insuflando as velas da nossa cultura, homens como Lusde Cames, Padre Antnio Vieira, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, FernandoPessoa, Almada Negreiros, Jos Marinho, Agostinho da Silva e Verglio Ferreira, decenrio deAnjos do Realem vida, respirao e ddiva to diversas quanto unas. Eles nos inspiram e movem, enTre tantos outros.

    EnTre a lusofonia, que em abertura ao universo nos congrega, e a luso-fania que a cada um e todos podelibertar, se faz a viagem do presente projecto. Porque no nasceu de si, tambm em si se no esgota.Parcerias podero acontecer, tornando mais frtil e diversa a disseminao do paradigma que aquigermina.

    Um paradigma Armilar, como a Esfera que se entrelaa e tremula numa das muitas bandeiras do mundo,simbolizando todas e nenhuma.

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    |.|: ensaio gerale n s a i o s

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    Paulo Borgesa cultura entre iluso e des-iluso

    para um nomadismo inter e trans-cultural

    Procurando pensar a natureza ambgua da cultura, iniciamos a reflexo com um notvel pargrafodA Origem da Tragdia, transcrito para comodidade do leitor:

    um fenmeno eterno: sempre a Vontade insacivel, pela iluso que derrama sobre as coisas, encontraum meio de ligar as suas criaturas existncia e de as forar a continuar a viver. Este deixa-se fascinar pelo prazersocrtico do conhecimento e pela iluso de poder sanar com ele a eterna chaga da existncia; aquele sente-se

    fascinado pelo vu sedutor da beleza que a arte deixa flutuar diante dos seus olhos; outro deixa-se, por sua vez,seduzir pela consolao metafsica de que, sob o turbilho das aparncias, a vida eterna prossegue o seu cursoindestrutvel: para no falar das iluses mais comuns e mais fortes ainda que a vontade capaz de suscitar a todoo instante. Estes trs graus de iluso so, de resto, reservados s naturezas mais nobres, nas quais o peso e amisria da existncia suscitam um desgosto mais profundo, mas que podem fugir a tal desgosto escolhendoestimulantes adequados. Com tais estimulantes se constituiu tudo o que designamos por civilizao: de acordo como seu doseamento obteremos, preferencialmente, ou uma cultura socrtica, ou artstica ou trgica, ou melhor, seformos buscar exemplos histria, teremos ento ou uma cultura alexandrina, ou helnica ou budista1.

    Sem avaliar o rigor e justeza desta identificao histrica das formas de cultura, que nos pareceproblemtica, em particular no que concerne a budista, interessa-nos fundamentalmente a ideia de que amorfognese de todos os tipos de cultura (Kultur) obedece a estimulantes (Reizmittel) que permitemiludir o desgosto (Unlust) perante o peso e a misria da eterna chaga (ewige Wunde) de umaexistncia (Daseins) qual os sujeitos so eterna e renovadamente ligados pela iluso (Illusion) que aVontade insacivel (gierige Wille) derrama sobre as coisas (Dinge) 2. Os vrios aspectos da cultura, dosmais elaborados e eruditos filosofia, cincia, arte e religio aos mais comuns que constituem toda acivilizao humana, correspondem assim a vrios graus de iluso (Illusionsstufen) onde os homens, comoque numa fuga para diante, procuram enganar-se a respeito da sua condio ou ocult-la a si mesmos,camuflar e esquecer a ferida trgica que os constitui na ciso, na dor e na mortalidade (o verbohinwegzutuschen, traduzido aqui como fugir a, tem o sentido de enganar algum a respeito de algumacoisa ou de ocultar alguma coisa a algum). A cultura e a civilizao surgem assim como produtos dessailuso que a vida vontade de viver lana continuamente sobre as coisas e como anestsicos dessedesgosto, ausncia de gozo ou desejo (Un-lust) que constitui a natureza paradoxal e autocontraditria da

    prpria vontade de viver. A cultura e a civilizao, em todas as suas manifestaes, revelam-se um sistemade estmulos, a bem dizer estupefacientes, de cuja iluso ficam dependentes os sujeitos que neles buscamevadir-se da dor inerente a essa inconsciente e sedenta vontade de viver que continuamente os propulsana ex-istncia. Uma embrionria toxicodependncia mental/emocional desvela-se assim a natureza ntima dacultura e da civilizao que, em busca de se evadir do mal-estar que a habita, pois inerente vida,naturalmente segrega mltiplos paliativos, dos mais subtis e internos, no s aceites como prezadossocialmente, aos mais grosseiros e externos, que pelos seus efeitos mais visivelmente danosos podem serinterditos pela moral social. Seja como for, a droga e a embriaguez seriam inerentes a todo o processocultural e civilizacional 3 e no apenas ao consumo de lcool e psicotrpicos. Como escreveu Freud: A

    1 Friedrich Nietzsche,A Origem da Tragdia, 18, traduo, apresentao e comentrio de Lus Loureno, Lisboa, Lisboa Editora, 2004, p.152.2 Friedrich Nietzsche, Die Gebrt der Tragdie, 18, Werke, I, edio de Karl Schlechta, Mnchen, Carl Hanser Verlag, 1966, p.99.3 Cf. Ernst Jnger, Drogas, Embriaguez e Outros Temas , traduo de Margarida Homem de Sousa, reviso de Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Lisboa,Relgio dgua, 2001.

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    Maria Sarmentouma Cultura do Ente face a uma Cultura do Entre

    contributo para a compreenso de novos paradigmas interculturais

    O dilogo intercultural , nos nossos dias,mais do que uma necessidade incontornvel, ele, outrossim, um imperativo social e humano; o

    justo caminho para a aproximao a uma culturade paz (1) e de aceitao participada do outro ecom o outro. Esse outro at aqui consideradocomo estrangeiro, estranho, desconhecido,e que, por isso mesmo, se afigura como geradorde medos e de desconfianas.

    O velho paradigma das relaes entreculturas tem colocado o homem, desde hmilhares de anos, numa atitude defensiva,agressiva e, quantas vezes, autista e desconfiadaface ao que diverso. O medo de mais umanova e irremissvel perda depois do

    anunciado luto de deus e da expulsoprimeira do homem afigura-se como um dosmais difceis ns a desfazer no actual paradigmacultural, que v o homem como ente separadoda realidade, separado, por isso, de si mesmo edo mundo.

    No tem sido fcil ao homem compreenderque sujeito e objecto no so fenmenosseparados; que no h, a no ser como iluso,isso de eu e de meu. S a viso de umacultura livre da ideia de posse poder ser

    condio essencial para que a cultura do entre sedesenhe como possibilidade, caminho que seapresenta para contrariar, por assim dizer, umacultura de guerra, uma cultura doente.

    Seremos ns capazes e estaremos dispostosa renunciar? a pergunta que, em primeirolugar, devemos fazer, quando iniciamos umaqualquer via, percurso ou caminho. Porque sempre de uma renncia que se trata. Renunciara qu? o que tentaremos perceber,perscrutando no pensamento, a lembrana doque Real, no futuro que nos leva Origem.

    Como tudo o que ontolgico.

    As posturas que obstaculizam o encontroentre culturas tm na base, parece isto claro, omedo da perda de alguma coisa. grande o

    pnico do homem de se ver desapossado,desenraizado de algo que configura, na suamente, o que pensa que seja o que ele e atmesmo o que sonha ser. A entramos na zonados mitos que configuram a identidade de umindivduo, de um povo. Mitos que impregnam oser de Ser, mas que, na realidade no tmsignificativo peso ntico. Ver-se-, num olharmais atento, nesses mitos, (2) a relatividade quelhes limpar a face, para poderem ser vistosna sua real essncia, esta comum a todo o serhumano cado no mundo. E a essncia do

    homem ser no mundo com o que, de divino,h em si e naquele.

    Os medos atrs referidos dominam, muitasvezes de modo inconsciente, o homem econfiguram um muro que tapa e esconde a luzde uma nova viso. Ver-se o homem despido deidentidade: de mitos, de ptria, de ser; ver-sesem ente, ver-se em falta, doente, no temsido de fcil aceitao. No , pois, semresistncias de vria ordem que o homemembarca nesta nova viagem. Viagem que tem

    que ser feita com as naus que tecem ndias aindamais insituadas, ainda mais afastadas no nevoeirodo nevoeiro mais perdido dos tempos. At quese ache no princpio o fim que se busca, ou tos se esbatam ou fundam ambos os conceitos, esejamos sem princpio e sem fim, eternamentesendo.

    terrvel o engano que consiste emconfundir identidade, com superioridade, emito, com o Absoluto. bem de ver que aidentidade cultural do foro do relativo, que ascontingncias e caractersticas que enformam a

    mente do indivduo, no so mais do que umas

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    Paulo FeitaisA lusofonia no lusfona, mas universal

    doce e amado esposo,Sem quem no quis Amor que viver possa,Por que is aventurar ao mar iroso

    Essa vida que minha, e no vossa?Como por um caminho duvidoso

    Vos esquece a afeio to doce nossa?Nosso amor, nosso vo contentamento

    Quereis que com as velas leve o vento?

    Cames, Os Lusadas, Canto IV, 91.

    A lusofonia no cobre um fundo cultural comum, mas um espao de ecloso cultural aberto. No huma cultura lusfona, nem as culturas que se encontram no espao da lusofonia esto marcadas, de formaindelvel, por uma mesma intencionalidade destinal. O que se pode dizer que o espao lusfono se

    apresenta ao mundo como a possibilidade de se romper com o regime logocntrico que marca a vignciada metafsica ocidental enquanto configurao civilizacional criadora de uniformidade1 e instauradora dumfechamento onto-fenomenolgico da experincia humana do mundo em relao ao horizonte grcil daemergncia da vida espiritual veiculadora duma cultura eco-eudemonaca, sem a anomalia sapiencial quesepara o humano do animal, a sociedade da natureza, o terrestre do celeste.

    A uniformizao eurocntrica leva destruio das culturas ancestrais que eclodiram para l dosconstrangimentos do totalitarismo da mesmidade sem um avesso de si que a impelisse transmutao. Eaqui cabe uma chamada de ateno para algo que tem que ser atendido com seriedade: ainstrumentalizao da cultura portuguesa e do pensamento portugus, nascido margem da metafsica semum impulso interno para o outro de si, para os colocar ao servio dum gesto totalitrio anlogo totalitria imposio da mundividncia eurocntrica ao resto do mundo, no s se apresenta como um

    erro grotesco, como atraioa o sentido espiritual da expansividade da vida tica e do pensamento seminalpara o ainda no pensado, para o preterido pela tradio metafsica ocidental, prprio do pensamentoportugus e assumido por autores to importantes quanto, por exemplo, Antero de Quental, LeonardoCoimbra, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Jos Marinho, Eudoro de Souza, ou Agostinho da Silva,para s referir estes e para no referir os que hoje seguem na sua senda2.

    E a Lngua Portuguesa no constringente em termos espirituais e existenciais, ou seja, no aparececomo um obstculo at mesmo sua ultrapassagemtem sido um tero aberto emergncia de outrasvias de apropriao lingustica do mundo, coisa prpria de uma lngua viva, capaz de dar luz outraslnguas.

    Por isso, qualquer tentativa de domesticar a lngua, de a contratualizar em nome de imperativoseconmicos e polticos, um passo na destruio da lusofonia, do que ela tem de mais original eimperioso para o mundo, a sua no constringncia em termos espirituais.

    A Lngua Portuguesa no conhece fronteiras, no se institui como um territrio mental instaurador debarbarismos. Desse centro de divergncia coalescente, no se v nem estrangeiros nem brbaros. Ter aLngua Portuguesa como Ptria, indo para alm do lugar-comum pessoano que tem sido usado para tudo epara nada, no ser mais do que cidado do Universo, encarado como o que, a cada instante, em cada um

    1 Neste artigo sigo de muito perto a argumentao de Franois Jullien, na sua obra De luniversel, de luniforme, du comum et du dialogue entre cultures , Fayard,Paris, 2008. Sobre a imposio eurocntrica da uniformidade, contrria ao verdadeiro dilogo intercultural, veja- se o captulo II dessa obra, intitulado Deluniforme, pp.31-38.No captulo seguinte o autor explora o conceito de comum. Tendo em conta que a compreenso deste conceito apresenta duas vertentes, uma, inclusiva eoutra, exclusiva, h que apostar no ncleo semntico radicado na vertente inclusiva e abrangente, aberta: A comunidade tem por vocao, no o fechar -se, maso abrir-se. p. 48.2 Aqui cabe chamar a ateno para a obra de Paulo Borges que se me afigura cada vez mais central no que respeita compreenso do sentido da abertura dopensamento portugus, e da cultura portuguesa no que h nela de mais autntico, ao universal encarado como comunho de tudo em todos e no comototalitarizao duma parte que se quer apropriar da verdade que pertence a todos na medida em que todos participam do pleno. Chamo vivamente a atenodo leitor para a mais recente obra do autor, acabada de publicar, Paulo BORGES, Uma Viso Armilar do Mundo. A vocao universal de Portugal em Lus de Cames,Padre Antnio Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Verbo Editora, Lisboa, 2010.

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    Rui Lopo

    contributo para a re-construo da ideia de universalidade -notas para um elogio crtico de Kant(excerto de um estudo)

    Montaigne, Pico de la Mirandola e outros renascentistas abriram o caminho para a afirmao dainexistncia de uma natureza humana (dada, pr-determinada, fixa, imutvel). H que relacion-lo edemonstrar esta relao como uma implicao necessriacom a descoberta moderna da universalidade,mais ou menos correlativa da descoberta da universalidade da razo e da racionalidade do universal,correlativos estes por sua vez da geografia inventiva da modernidade que props novos continentes

    conscincia mediante uma cartografia totalizante e do projecto da matematizao universal, por sua vezcorrelativos s tico-polticas de viso csmico e advenincia processual da filantropia (desde Kant) e deuma jurisdio poltica mxima, segundo a revoluo cosmopoltica (os cortes epistemolgicos damodernidade afinal tambm estabeleceram novos elos e nexos entre cosmologia, antropologia emetafsica).

    O erro (de traduo?) de interpretao mais comum neste ponto prende-se com a colocao darelao entre a universalidade da razo e a racionalidade do universo, que nos faz levantar imediatamente a jclssica objeco que consiste na prudncia em relao pretenso totalizante e projectiva da razo sobreo universo no momento que apenas sucedeu que a razo se desvendou ou equacionou a si prpria comouniversal, isto , como comum a todo o gnero humano.

    A excluso de quaisquer humanos da dignidade ontolgica humana (isto de agentes de ingredincia e

    agncia da humanidade no ser e do ser na humanidade) tornou-se formalmente invivel com a declaraode 1791 e com a de 1945. Todavia, esta universalidade descoberta e revelada foi desde logo confundidacom algo de definitivamente real, quando representa apenas uma ainda limitada (no tempo, espao eradicao social) forma de auto-conscincia de alguns aspectos do processo scio-histrico de construoconcreta do universal, em acto e devenincia.

    1Encontra-se no conceito de Universalidade

    de Kant uma chave. Uma chave hermenutica.

    Um ponto de partida. Um lugar em que aconscincia filosfica europeia se (auto)concebeu como capaz de uma abrangnciamxima, ou total, que inaugurou os tratamentosposteriores da questo do universal: lugar emque se encontram no s as perenes pretensesde conhecimento, interpretao e compreensodo Mundo, mas igualmente o lugar em que se da auto-revelao de que tais pretenses influemdeterminantemente sobre quaisquer juzosrelativos aos prprios conhecimento,interpretao e compreenso do mesmoMundo.

    2A chamada viragem copernicana mais do

    que um novo alento dado a um idealismo

    assoberbado pelo acmulo crescente de dadosempricos que vinham enriquecer o conjuntodas disciplinas da Filosofia Natural, ouCosmologia constitui uma tentativa deestabelecer uma discursividade1 (que se quer)

    1 Dizemos discursividade e no discurso para sublinhar que mais do queter lanado uma concatenao discursiva determinada (um discurso quese deixa dizer como transcendental ou crtico), Kant abriu umapossibilidade discursiva cuja operatividade dotada de duraohistoricamente longa e assinalvel, cuja superao ainda no foidefinitivamente consumada. Quanto aos que observam um mtodocientfico, tm a escolher entre o mtodo dogmtico e o mtodo cptico,mas em qualquer dos casos tm a obrigao de procedersistematicamente. () A via crtica a nica ainda aberta (A histria darazo pura, Captulo IV da Doutrina Transcendental do Mtodo, II parte da

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    ricardoventuraconverso e conversabilidade: consideraes sobre os relatos das religies da sia

    na documentao do Padroado Portugus do Oriente (sculos XVI e XVII)

    Consideraes metodolgicas

    A documentao do Padroado Portugus do Oriente compreende um vastssimo corpus de textos,produzidos em contextos polticos e sociais diversos e dinmicos, na rea de actuao do imprio

    portugus do Oriente ao longo dos sculos XVI e XVII. Reportamo-nos assim, sobretudo, a reas tovastas e distantes como a actual ndia (sobretudo as zonas costeiras e o Tamil Nadu), o norte do actual SriLanka, o sul do Japo, o sul da China, bem como a todo o sudeste asitico, Tibete e a algumas ilhas daactual Indonsia, Timor, etc. Por correspondncia, reportamo-nos igualmente a um vasto e complexoleque de formas de religiosidade, das quais, seguindo um critrio de representatividade, destacaramos oHindusmo, o Budismo, o Confucionismo e o Taosmo.

    Na medida em que se tem vindo a dedicar ao estudo das estruturas sociais, polticas e administrativasnos diferentes espaos do imprio portugus ou espaos a ele adjacentes, a historiografia mais recentepermite-nos, hoje, resistir compreensvel tentao de generalizar as informaes existentes e interpret-las a partir das vises consentneas em torno do que possa ser, por exemplo, o Budismo ou oHindusmo. Ora, se, nos nossos tempos, aferir a operatividade e validade destes conceitos constitui, em

    si, um problema epistemolgico to desafiante, em relao ao perodo a que nos referimos esta posturano se prova to vlida como uma anlise no mbito da qual as notcias existentes sejam confrontadas comaspectos da histria da missionao, seu desenvolvimento e estratgias, em correlao com aspectos daaco poltica e administrativa e da relao dos agentes imperiais com os poderes e cidados locais.

    Quer isto dizer que, mais do que procurar justificar a validade cientfica dos relatos de missionriossobre as religies da sia, importa sobretudo integrar as vises neles constantes no mbito de umadinmica cultural e poltica imperialista, em que o intuito de converso predomina sobre a vontade desaber. Esta premissa prvia, de carcter histrico, parece, de facto, condicionar toda a anlise textualdestes documentos. Neste sentido, estas notcias sobre as religies da sia devero ser lidas, sobretudo,como testemunhos de um confronto em que um conjunto de perspectivas religiosas, doutrinais, filosficase existenciais procura sobrepor-se a outros. Ao contrrio do que viria a acontecer em muitos estudos dosnossos dias, o conhecimento era, nestas fontes, construdo com um intuito prtico agnico: conhecer para

    melhor refutar; o saber pretendia fundamentar uma prtica e, consequentemente, reforar uma forma depoder. Tambm neste sentido, notvel que, para alm da ambincia conflituosa que caracteriza estestextos, cujas estratgias abordaremos adiante, no abundem neles as tradues e os discursos directos dooutro.

    S aps a ponderao de algumas questes prvias, relativas aos contextos histricos e ideolgicos emque estes textos foram produzidos, podero ser devidamente valorizadas as informaes neles presentessobre as religies da sia. Esta perspectivao permitir uma viso mais clara e rigorosa sobre aconstruo do saber sobre as religies da sia, bem como sobre os elementos discursivos caractersticosdestas narrativas.

    A presena continuada num espao preciso, o contacto directo com religiosos e nativos e a recolha deinformaes in loco confere a estes documentos uma riqueza discursiva mpar. Aferidas as condicionantesdo contacto, podemos compreender melhor o valor das experincias narradas e dos conhecimentosadquiridos, e objectificar mais consequentemente as estratgias retricas adoptadas na construo de um

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    Carlos H. de C.Silva

    Vocao eremtica e dilogo intercultural

    do nico e sua diferenciao*

    Le silence intrieurcelui que Dieu bnit ne ma jamais isol des tres. Il mesemble quils y entrent, je les reois ainsi quau seuil de ma demeure. () Mais

    jimagine le silence de certaines mes comme dimmenses lieux dasile. Les pauvrespcheurs, bout de forces, y entrent ttons, sy endorment, et repartent consolssans garder aucun souvenir du grand temple invisible o ils ont dpos un momentleur fardeau. (Georges BERNANOS, Journal dun cur de campagne, (19361), in : uvres

    romanesques , d. Pliade, Paris, Gallimard, 1961, p. 1230)

    Paradoxal este abrigo na amplitude do que no se sabe ou se esqueceu, enquanto se escuta que no aqui ahora para fazer tendas, no esta a ptria definitiva.1 Estamos de viagem e nessa solido que, mesmo emcompanhia de humanidades todas, nos arrepia dessa singularidade de morrer, ou nascer, s.2

    Vem isto j marcado por uma cultura? Uma perspectiva mais ou menos provinciana, quase rstica emediterrnica nessa f de carvoeiro, de algum intimismo malso, ou numa transposta ascese intelectual maneira jansenista?3 Ainda que assim viesse assinalada tal geografia do pensar, tal resduo da mentalidadecolectiva, assim lavrada4, nem por isso se deveria esquecer aquele imaginrio alvio da bagagem de culturas sem

    gesto ou jeitoSim, que uma coisa a causa suada de um trabalhar cultivador, como na leira da agricultura, no sulco vital,

    outra histria a Cultura pensada, teorizada no abstracto de smbolos, sopesada pelo cmputo at de interesses evalores!5Cultura animino era a ideia de Cultura, outrossim a terra que se deixa adjectivar, o homem a ser

    * Texto elaborado em Janeiro de 2010, para o primeiro nmero da Revista Entre, a convite do Prof. Doutor Paulo Borges, a quemsaudamos pela iniciativa desta Revista,em sintonia com o carcter entre-tanto do que um nosso diferencial pensar haja tambm deinter-mdio As anotaes (que acabaram por ser numerosas) tm em vista complementar o denso da reflexo com breves comentrios,alm das indicaes bibliogrficas exemplificativas. Na Bibliografiafinal de meia dzia de ttulos, optmos por apenas trabalhos nossos, jque neles se contm muitas outras referncias que analismos e citmos.

    1

    Cf. as tres skensas trs tendas do cenrio do Monte da Transfigurao: Mt17, 4. Os vrios cultivos do abrigo, sempre no eco do thos desdeHERACLITO DE FESO, frag.B 119: thos anthrpoi damon, in: D.-K. (= DIELS, H. e KRANZ, W., (196612), Die Fragmente der Vorsokratiker, Dublin/ Zrich,Weidmann; doravante assim abreviado), t. I, p. 177.2Como diria Pascal, mas tambm Kierkegaard ou Dostoievski (cf. Olivier BOULNOIS, Philosophie et thologie dans lOccident mdival, in: FrdricMRI, (dir.), (2009), Orient-Occident, Racines spirituelles de lEurope, Paris, Cerf/ Fond. M. Bodmer, p. 357), naquela transposio da cultura literria para oimaginrio csmicode uma outra sabedoria par des gouffres, para usar esta expresso de Henri MICHAUX, Connaissance par les gouffres, Paris, Gallimard,1967.3 Assim se estaria com Georges Bernanos (vide exergo supra), no eco de uma religiosidade romntica e pessimista por entre o Santo Cura dArs e o esperanosotout est grce de Thrse de Lisieux. Cf. Guy GAUCHER, Tout est grce - Retraite avec Georges Bernanos dans la lumire de sainte Thrse de Lisieux, Paris,Cerf, 2009, pp. 20 et passim. Mas tambm se estaria com Claudel e outros, numa reflexo de fin de sicle que de sempre, no momento crtico hoje, decomeo de sculoVide as luminosas pginas de Paul VALRY, (1931 e 1933), Regards sur le monde actuel et autres essais, in : uvres, ed. Pliade, Paris,Gallimard, 1960, t. II, pp. 913 e segs.4 Lembre-se o laborare da cultura, na sntese orante e operosa (ora et labora), muito especialmente marcada pelo sulco, leira (e tambm delrio) que se traavaem torno do tposhabitado, cidade ou campo de cultivo. Cf. referncias em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, Liturgia e Cultura (Conferncia na Semanade Pastoral Litrgica em memria de Mons. Pereira dos Reis, Lisboa, 29/11/1979), in: Ora et Labora, XXVIII, 2-3, Abril-Set. (1982), pp. 126-156; e vide infra n. 36.5 O domnio das causas ainda o das coisas e desse nexo, impossvel no mbito do dom, da Vida, do Amor sem porqu. A inclinao, mais benigna(porque menos acusatria em termos de causa) vem da narrativa que se limita a fazer suceder sem indagar razes. Um historicismo mais liberal, mas nomenos encadeante, ainda quando fosse de catena aureaVide as observaes crticas, da perspectiva da Traditio, de um autor como Ren GUNON, (1945), Lergne de la quantit et les signes des temps, Paris, Gallimard, pp. 174 et passim; Id. (1946), La crise du monde moderne, Paris, Gallimard, pp. 35 e segs.; Id., (1984),

    Autorit spirituelle et pouvoir temporel, Paris, Vga, pp. 73 e segs.

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    trabalhado pelo seu mesmo obrar, um caminho de itinerncia na primitiva espiral da leira aberta pelo arado dabem mais bsica Civilizao.6

    Meios pobresdiro alguns, ainda moralizando o que ali, nos alvores da traio ao nomadismo puro e ancestral violncia selvtica, construiu a casa, o abrigo ainda que em obstculo de estalagem , estncia eestagnao, fazendo render a roda no pela arte de mais mover, porm da rota fortunae de mero, trgico,

    retornar.7 Mas, seja a inveno dessa inteligncia tcnica que sobressalta o animal humano em prometeicacondio8 , seja o bsico po para a boca9 , sem especulaes religiosas ou outras que logo politizem a quemcompete o qu, certo que o gesto, a habilidade de ser no aparente estar, falhou na conscincia. Sobretudo por seter tornado um estado, um tal fazer tendas, entediante ou sem a evidncia transfigurada do Mons Dei e dapreciosa vertigem assim despertadora.10 E, mais ainda, pelo enigmtico sedimento de morte em vida que aquelesono onde o ouvido no escuta, onde no se diz como a alma, como a Esposa do Cntico: eu durmo, mas omeu corao vigia11

    E, todavia, fica um prtico ainda que vazio, mormente como tal, por onde em silncio se faz a beatitude brevede uma alteridade, o toque da voz de Nada12 Aquele estar beira rio da existncia, no no postio dilogo

    gritado entre margens do rudo, mas no entrelaar mos com a serenidade em pessoa de um silncio ermo.13Tudo desaponta neste sentido e, no hiato de margens e rio e tudo, haja-se a evidncia de perceber outra gua,

    outra circulao de vida que remonta madrugante a essa voz de infncia, a esse choro mansinho, onde culturas eideologias relhas se calam e absolvem.14 E, no entanto,

    teima aqui uma enviesada simblica.15

    - 1 -

    Dans labandon o je suis perdu, la connaissance empirique de ma similitude avecdautres est indiffrente, car lessence du moi tient ceci que rien jamais ne le pourra

    6Cultura animicomo dizia CICERO (cf. A. ERNOUT e A. MEILLET, Dict. tymologique de la langue latine,sub nom. ), lado a lado, com a agricultura. Significativo

    paralelo entre a horta e a mente, ou na inveno desse jardim intermdio entre o destino cego do selvtico e a liberdade pura do reino do Esprito. Vide,como tal lugar sapiencial assim: Herv BRUNON, (dir.), (1999), Le jardin, notre double, Paris, d. Autrement (n 184) Uma questo de jardinagem, desde oPardes bblico at ao hedonismo do kpos de Epicuro Sobretudo um acerto da mo com a rotao da Terra e os desenhos em redondo que, evitando ocrculo fechado, se inventam em alargamentos ou concentraes desde a pr-histrica espiral (at dupla espiral). Cf. Jack GOODY, (1977), The Domestication ofthe Savage Mind, Cambridge, Cambr. Univ. Pr.; Esther PASZTORY, (2005), Thinking with thingsToward a New Vision of Art, Austin, Univ. ox Texas Pr., pp. 119 etpassim.7 No ser apenas um ficar entrevadopela possibilidade de estar, o Chan ou ozenradical na sua mesma mentira mental. Donde o obstculo espiritual: osErros da estalagem, a seguir aos do Caminho, ou do Mundo, e antes dos da Cripta(ou caverna), diablicos (cf. F. PESSOA, Ensaio sobre a Iniciao, in: ed.Antnio QUADROS, (1986), F. P.Obra Potica e em Prosa, vol. IIIProsa 2, Porto, Lello, & Irmo, p. 453: O Estdio gnstico), como os inimigos da alma: omundo, a carne e o diaboTudo se resumiria na cultura tradicionalista, repetitiva, do trgico eterno retorno do mesmo, esquecida do jogo, do aleatrio,ainda da tykhqual sorte de um tanto poder estar em cima ou em baixo da roda da fortuna8 Cf. a lio do mito de Prometeu na leitura de PLATO, Prot. 320c e segs.; vide Jean-Franois MATTI, (1996), Platon et le miroir du mythe, - De lge dor lAtlantide, Paris, PUF, pp. 153 e segs., a propsito da escatologia da Republica (X).9Sim: comer ou ser comido equao bsica doritoda Civilizao e ainda, neste sentido, da Cultura Cf. J. C. HEESTERMAN, (1993), The Broken World ofSacrifice An Essay in Ancient Indian Ritual, Chicago/ London, Univ. of Chicago Pr.. pp. 45 e segs.: Ritual; Bernard LEMPERT, (2000), Critique de la pensesacrificielle, Paris, Seuil, pp. 54 e segs.; e outras referncias em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, Dimenses essenciais da Cultura Um seu estudodiferencial e categorial (Elementos para uma Filosofia da Cultura) , in: Didaskalia, XXIX, (1999), pp. 189-226; vide tambm: Id., Do rito representao

    litrgicaReflexo sobre a diferenciao do a fazer, Comunicao XVI Semana de Estudos das Religies: Dos Mitos sagrados aos Cultos religiosos, org. Depart.de Sociologia, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religies da Univ. Nova de Lisboa, 14 de Maio de 2009, (a publicar).10 Importante destrina de categorias, entre um estado esttico e o dinamismo intrnseco de uma estao de alma. Cf. no vocabulrio mstico sufi, adestrina entre hl, ou awahl,estado (efmero) e maqm,como tal estao (adquirida e permanente): Faouzi SKALI, (1985), La Voie soufie, Paris, AlbinMichel, pp. 166 e segs.: Typologie des tats spirituels.11 Cf. Cant5, 2: Ego dormio, et cor meum vigilat (apud Vulg.). Compare ainda Cant8, 612 Dita via negativaem que mais do que o apofatismo denegador,h mesmo o negativo, a treva primordial do mito, a vacuidade original, ou essa voz dosilncio( sem som algum) Voz de Nada, tal se diz assim em snscrito o equivalente do senzartibetano, cf. F. PESSOA, (trad.), (1935),A Voz do Silncio, e outrosfragmentos, trad. para o ingls de Helena BLAVATSKY, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1969, p. 61. E vide infra n. 93.13Vem sentar-te comigo, Ldia, beira do rio./ Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos/ Que a vida passa, e no estamos de mos enlaadas./(Enlacemos asmos.)// Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as/ No colo, e que o seu perfume suavize o momento - / Este momento em que sossegadamente no cremos em nada, /Pagos inocentes da decadncia. (Ricardo REIS, (1914) Odes, in: Fernando PESSOA, Obra Potica, ed. M. Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, Aguilar Ed., 1972, p.256.14 Como o nosso Teixeira de PASCOAES, (19121), Regresso ao Paraso, Lisboa, Assrio & Alvim, 1986, to bem viu: por exemplo, p. 99: E esta voz, concebida, emseu dormente/ Esprito, o acordou; tal como um sonho/ Nos acorda ao quebrar da madrugada() e p. 168: Vede o Homem sonhando; e pelo sonho/ Remindo as ermascousas transitrias, / Concluindo a imperfeita Criao (). Vide ainda Id., (1937), O Homem Universal, em O Homem Universal e outros escritos, ed. PinharandaGomes, Lisboa, Assrio & Alvim, 1993, p. 76: A nossa alma perptuo desabrochar, no Infinito. As nossas ideias so estrelas desprendidas de uma nvoa em que

    jazemos adormecidos; mas nessas ideias acordamos, como no prprio centro da nossa pessoa, que est no centro das coisas a igual distncia do Grande e do Pequeno.15 Cf. Charles BAUDELAIRE, Correspondances, (em: Id., Spleen et Idal, in: (1857), Les Fleurs du Mal, Paris, Garnier, 1961, p. 13) : La Nature est un templeo de vivants piliers / Laissent parfois sortir de confuses paroles;/ Lhomme y passe travers des forts de symboles/ Qui lobservent avec des regards fami liers.//

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    remplacer : le sentiment de mon improbabilit fondamentale me situe dans le monde oje demeure comme lui tant tranger, tranger absolument. (Georges BATAILLE, (1943 e 1954), Lexprience intrieure , in : uvrescompltes V : La Somme Athologique, t. I, Paris, Gallimard, 1973, p. 84)

    Pretende ser este, contudo, um texto de reflexo pura, ou seja, no baseada em apoios de memriaou da imagtica cultural circunstante. Por conseguinte, sem ter de considerar as leituras de identidadedomstica, ainda maneira de Raymond Abellio em Assomption de lEurope, ou a denncia docomparativismo outrance no que ainda se poderia reler em Geoffrey E. R. Lloyd, Demystifiing Mentalities16; nem sequer de equacionar o divrcio unilateral do Ocidente e do Oriente na clebre expresso deRudyard Kipling, East is East, and West is West, and never the twain shall meet 17, ou de estabelecer umaespcie de cdigo gentico das grandes egrgoras colectivas em que, quais almas de formigueiros ou deoutros gregarismos instintivos, Oswald Spengler rev os ciclos obrigatrios das Culturas.18 Nada disso,que todas estas abordagens limitam-se a glosar o mesmo e o outro at exausto dialctica, porm sem averdade sangrenta, proletria para alguns, do plemos mais cru e sempre mais vero do que a diplomticaconciliao19, do que a hodierna utopia da comunicao como dispositivo preventivo contra a guerra20

    Deixemos os culturalismos da Cultura, os malabarismos ditos teorticos e at acusados de

    alienatrios, porm rebatidos ainda em meta-linguagens, parapeitos de nova sobranceria ideolgica.Deixemos o que a Cultura tem pretendido ser como Ideia, e cultivemos antes a inteligncia nesta raridade,sempre anticultural, que assoma a ironia socrtica e at, historicamente falando, o dito perodo axialemque a gesto das tendinhas particulares se interrogou de universal.21

    Colapsando assim o sabido em ordem a uma compreenso, interrogam-se caminhos, atalhos rpidos,variantes e sobretudo novos itinerrios que, sem dvida, arrastam culturas, modos de ser habituados emformas de vida e de estar, porm na verdade de um outro labirinto.22 O que importa j nem o estilo, como qual residualmente se pretendeu identificar o cheirinho ltimo burgus e bem comportado da Cultura esua moralidade23, nem sequer a mecnica maior de uma poca quase-autmata de um rigoroso ecomplementar niilismo sem jeito24, - o que importa (se h algo que importa) a labris, o machado-duploque, depois, d nome ao que como labirinto cinde antes de unir25, mostra antes de ser, ama a viagemsem ainda ps para a andar.

    Um dos signos mais interessantes foi o do exerccio desta espcie de voar sem asas, andar sem ps esobretudo pensar sem mente26 e nem estamos a falar a partir de uma bdica alma portuguesa27, capazde inventar velas na ironia de cascas de noz ultrapassando mares navegveis, e de trazer por casa, em

    16 Est sempre subjacente a questo da identidade Vide Raymond ABELLIO, (1978),Assomption de lEurope, Paris, Flammarion, sobretudo pp. 13 e segs.Cf. Geoffrey E. R. LLOYD, (1990), Desmystifiing Mentalities, Cambridge, Cambr. Univ. Pr. Vide, porm, John R. SEARLE, (1977), Pour ritrer les diffrences Rponse Derrida,trad. do ingls, Paris, De lclat, 1991 ; e Vrs. Auts., La diffrence culturelle en question, Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. CV, nouv.sr., 45 anne, juil-dc. (1998).17 E vide, pelo contrrio, Bede GRIFFITHS, (1982), The Marriage of East and West, London, William Colins & Co. Cf. ainda Michel FATTAL, (1987) Pour unnouveau langage de la raison Convergences entre lOrient et lOccident, Paris, Beauchesne. Cf. ainda Michel de CERTEAU, (1980), La Culture au pluriel, Paris,Christian Bourgois.18Vide Oswald SPENGLER, (1923), Der Untergang des Abendlandes,Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte, Mnchen, Deutscher Taschenbuch V., 1972, pp.210 e segs.: Die Symbolik des Weltbildes und das Raumproblem. Vide tambm Id., (1931), Der Mensch und die Technik, trad. port., Lisboa, Guimares Ed., 1980.19

    Cf. HERACLITO, frag.B 53: Plemos pnton mn patr esti (in: D.-K., t. I, p. 162) e vide Clment ROSSET, (1988), Le principe de cruaut, Paris, Minuit, pp. 33e segs.20 Temos presente o novo mbito dos media: Philippe BRETON, (1992), Lutopie de la communication, Lmergence de lhomme sans intrieur, Paris, LaDcouverte, sobretudo pp. 87 e segs. : La communication, une valeur post-traumatique. Vide tambm Philippe BRETON e Serge PROULX, (1996), Lexplosionde la communication, Paris, La Dcouverte, pp. 251 e segs. e Yves WINKIN, (dir.), (1981), La Nouvelle Communication, trad. do ingls, Paris, Seuil.21 Conceito deperodo eixo ou axial, de acordo com Karl JASPERS, (1951) em Origen y Meta de la Historia, trad. do alem., Madrid, Revista de Occidente, 19684,pp. 20 e segs., poca entre 1000 e 500 a.C. correspondente passagem dos Grandes Imprios s civilizaes em que emerge o individual e tambmcomplementarmente o universal.22Ancestral figura ou smbolo arquetpico da Cultura, o labirinto, ainda muitas vezes na base da planta do Templo (das prprias catedrais), representa acomplexidade, o n de todos os caminhos, numa espcie de mandala da humana vida. Cf. Lima de FREITAS, (1975), O Labirinto, Lisboa, ed. Arcdia, pp. 80 esegs.: Notas para uma histria do labirinto.23 A. L. KROEBER, (1957), Style and Civilizations, N.Y., Cornell Univ., pp. 60 e segs.24 Cf. Martin HEIDEGGER, Der Europische Nihilismus, in: Id., (19612), Nietzsche, Pfullingen, G. Neske, t. II, pp. 31 e segs.25 Cf. Jos de Almada NEGREIROS, (1982), Ver, ed. Lima de Freitas, Lisboa, Arcdia, pp. 160 e segs.: O Sagrado A Labris, pp. 161-162: O nome deste sinal labris, donde vem labirinto para a casa da labris. () O significado de labirinto o mistrio da dupla presena do sagrado.() deste sinal grfico, a labris, o qualdepois se materializa simbolicamente em utenslio religioso, o duplo machado dos sacrificadores no culto religioso, que nasceu a noo de medida, no como ns hoje aentendemos quantitativamente, mas sim qualitativamente, ant iga, simetricamente, isto , com medida sensvel.26 Cf. OSHO, (2006), Walk Without Feet, Fly Without Wings, and Think Without Mind, - responding to discipless questions, New Delhi, Full Circle Publ., 19991.27 Ter presente o nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, Marga absolvido ou caminho da Cruz? (com um Prlogo: Luzes portuguesas e lucidez budista), in:Paulo BORGES e Duarte BRAGA, (org.), (2007) O Buda e o Budismo no Ocidente e na Cultura Portuguesa, Lisboa, Ed. squilo, pp. 31-86.

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    Fulgur\\:|aces

    entre a sombra e a palavra: a luz

    f o t o g r a f i a |

    | p o e s i a

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    f e l i c e s r a d i c e s i l d a c a s t r o

    ilda castro

    Voa o ar e cumpre seu ofcio em todas as criaturas, o firmamento seu sustento

    e dele fortalece suas foras1

    1 As frases-ttulos dos trabalhos de Ilda Castro so excertos de poemas de Hildegard von Bingen (1099-1179)

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    b e a t p r e s s e r1

    beat presser

    o s i sd e s i l n c i o

    beatpresser

    1 www.beatpresser.com

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    adama

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    S im e t r i a s

    Francisco Soares

    FranciscoSoares

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    o s q u e p r e s i d e m

    d u a r t e d r u m o n d b r a g a

    No h repouso no fim nem no princpio.

    Se escutarmos bem, somos agitados

    de todos os lados pelos ventos antigos

    que dolorosamente os atravessam.

    Olha, dizias.

    Estamos sentados,

    catorze luas fazendo tenes de chegar.

    V bem senos podem assistir.

    Afinal, a origem e a origem

    semelhante revelao.

    A primeira aurora familiar, o

    dedo rubro de um deus que aponta

    desejando povoar os seus mundos.

    Mas nada ouvimos de deus algum.

    Ainda no os respirmos para fora

    do corpo, junto com o bafo morno.

    E no entanto em cada poa fosforente

    borbulha a cabea dum deus pequeno.

    Que coisa amar no mundo antigo?

    A origem nos fatiga um longo cansao.

    No nos comoveu, quando nela entrmos,

    o abrao estranho de sepulcro rosado.

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    rui fernandes

    rui

    fernandes

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    i s a b e ls a n t i a g o

    u m D e u s q u e d i za - d e u s

    Esta a mo de Deus.

    Uma mo repousando num rosto em que o eterno doura o efmero. A mo de

    Deus a apagar as rugas na plida face que no conheceu carcias nem sevcias e da

    qual j no se desocultam nem serenas nem conturbadas memrias. Esta a face em

    que Deus repousa a mo depois do mundo. O mundo foi criado e um rosto a

    recriao de tudo o que excede o limite. O mundo foi concebido e traado a partir

    de uma viso omnisciente de Deus, um rosto, como este, uma obliterao

    intermitente porque a recriao um acto cego de Deus que tacteia, na superfcie

    do mundo, o invisvel. Esta a mo de Deus cego desenhando o que no v e no se

    torna visvel.

    Esta a areia do deserto.

    A areia por onde passaram os rostos das almas peregrinas, as almas dos rostos

    deliquescentes pelo silncio continuado e ininterrupto com que certos homens,

    poetas e profetas, tocaram a glria de Deus e dos anjos. Este o trajecto de Deus a

    contornar o voo da asa com que em jbilo certas almas se desprenderam em

    direco ao vazio onde Deus no deixou qualquer vestgio e para onde Ele prprio,

    cego, se encaminha. Esta a areia em que os cristais reluzentes testemunham, em

    mudez e em nudez, a luminescncia dessa glria, dessa fuga, dessa partida, desseabandono de si e do mundo, esse desenraizamento de toda a matria e de toda a

    memria. Dos que caminhando na sombracom ela se desorientaram do mundo e se

    tornaram refulgentes, aparies cadentes. Esta a areia dos rostos que no silncio

    expressaram o ilimitado e partiram sem rastro; no seu encalo que Deus se dirige,

    porque tendo ficado para ltimo e cego, depois da criao do mundo, Deus precisa

    dos rostos daqueles com quem, no deserto, pode partilhar os caminhos do

    irretornvel. No s por causa da sua cegueira, mas tambm por causa dela, Deus,

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    i n i c i a o

    l u i z a d u n a s

    deixa o manto em que escreves a vida

    e volta-te.

    prosseguirs sem leitura;

    devolvido nudez cantars a lana disparada dos sonhos

    e o uivar dos lobos nas noites, cheias, de sombras;

    desvelars as plumas.

    onde sobrevoares aterrars,

    o teu olhar atravessar tudo o que v

    penetrars tudo o que tocas

    e nessa travessia no sabers regresso.

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    a f o r i s m o s dirk-michael hennrich

    Somos estilhaos sangrentos na carne do mundo.-

    Os homens no so dispersos apenas em vrioslnguas. Disperso cada um por si e disperso cadaum em si, sempre a procura da unio e da unidade:a eterna praga babilnica.

    -Quando nos evadimos de uma cultura, invadimosautomaticamente uma outra. Somos ento os

    brbaros e compreendidos como tal, quer dizer: nocompreendidos. Somos ento tolerados, sepossumos um certo conhecimento dos hbitoslocais, mas sempre com uma certa pena ou comum riso escondido. Os brbaros que no invadem eroubam, que no espalham o terror ou noarriscam existncias, so seres simpticos e umpouco desajeitados. Um pouco como os animaissimpticos no zoolgico, mas cuidado quandocospem, quando comem a grama do vizinho ouquando gritam como bichos ferozes. A seguir s hdois meios e uma soluo a destruio das suas

    existncias ou o impedimento de uma existnciadigna. O estrangeiro sempre ou inocente e ridculoou feroz e perigoso. Trat-lo como um da prpriaterra j seria um passo para uma cultura universal.

    -No existe explicao para um mundo que noexiste.

    -Somos todos em segredo idelogos. Necessrio somente uma multido que traga a nossa imagemno seu estandarte. Com o nmero dos discpulos

    aumenta tambm a fatalidade.-A ideia uma presa fcil da ideologia. Mas aideologia tenaz e somente morre quando alguma mata. Nenhuma ideologia morre sozinha.

    -

    Toda a aventura ideolgica uma desventura.-

    A Reminiscncia foi pelo mundo com a Provncia - erecolheu somente uvas secas.

    -

    Padre Antnio Vieira, Fernando Pessoa e Agostinhoda Silva no eram portugueses, apenas falaramuma lngua que se chama portugus. Eles eramvagamundos em nome de Deus (Vieira), do Mundo(Agostinho) e do Homem (Pessoa). A trindade deum mundo a haver.

    -Posso ser um fugitivo que pede refgio numa outracultura, mas porque fujo eu de uma cultura que

    promete tudo para todos? Talvez seja a histria queme domina e que me prende.-

    conveniente dizer que a xenofobia diminui com ograu de formao. Mas isto um erro. Um ensaiointelectual, para um dilogo entre culturas, provavelmente mais xenfobo do que uma conversaamvel entre um africano e um indiano numafrutaria de Lisboa.

    -Podemos ser fugitivos da nossa cultura e precisamosser fugitivos sem ser meros ignorantes. O verdadeiro

    fugitivo ainda tem a lembrana remota do lugar ouda penitncia de onde fugiu para o campo aberto edesconhecido. Todos ns deveramos ser fugitivos,pois sem fugir no h possibilidade de regressar.

    -Eles querem o total e permanecem no particular:Imperialistas.

    -Eles querem o total e anseiam o particular:Colonialistas.

    -

    A diferena entre o Imperialista e o Colonialista sebaseia na atitude ou na disposio. O que para um a vontade para o outro a saudade.

    -Noentardecer das culturas o mundo aparece numvestido escatolgico. Lnguas caiem em runas,identidades se dissolvem e ningum sabe o quesurgir. Uma cultura talvez, em que todos secontam tudo e todo o mundo escute. A narraoinfinita depois do fim das narrativas.

    -Assim estamos desde sempre a caminho. Somos

    bestas e queremos ser deuses e matamos todo deus

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    o r c u l o s

    franciscosoares

    orculos Sobre o dorso divinocaldaicos Ergue-se uma natureza i m e n s a .

    O curso daluaE a procisso dos astrs,

    O mundo slar e a luz universal;Os teres dos elementos,Sua cabeleira de serpentesDe olhos cintilantes

    E a asa de fogo.No a vejas, porm, tu no a vejas.O seu nome est marcado

    Pelo destino.No te juntesAo destino,Homem, filhoDe uma luz audaciosaE de aquticas tribos

    De ondas mltiplas.Quando vires o fogo sacroSanto brilhar sem forma, pulandoOs abismos do mundo inteiroEscuta a voz do fogo.Procura o Paraso.

    E no deixars nos precipciosOs resduos da matria: a imagemTem o seu quinho no pas

    Banhado de luz.Tempo do tempoNo corpo que se e

    sc

    oa

    sem velhice,Alheio rota dos astrs

    Uma deusa com du pla fa ce

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    d o n i s de frol guilhade a n t p o d ar a r e z a 1

    lembrando Rilke e sua voz, crislida boca

    (tinindo ptalas, qual de futuro as cantassem saudades)

    Ah, que far, minha alma,

    que eu mais ondeie, incerto embora,

    pelos fortuitos caudais que a brisa em mim esfria ao velejar-te

    l onde insone a superfcie das lgrimas cruas beija minha barca esguia

    e, ao tinir de seu cristal intacto, a boca me despreza

    e no acorra eu antes, ai, s correntes mais fundas,

    ali onde, em chamas, o cantor de olhar lquido e voz inclere,

    derrama, desde o cu das ptalas das torres nuas,

    com seu punho dourado a sangue da alma vgil e pronta,

    a rosa extreme da presena mais pura, terrvel ainda,

    que em seu alor futuro o anjo perfume

    e o sentir me antoje da mais perene alegria?

    1 Os poemas aqui apresentados integram o indito A voz maior que a boca, de 2010.

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    ditos

    /;|.|e inditos

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    raimon pannikarreligio, filosofia e cultura

    Problemtica

    Procuraremos agora apenas aflorar o nossoobjectivo, uma vez que no poderemos elaboraruma filosofia intercultural, mas apenasdescrever, a partir do exterior, essa terranullius,abrindo as janelas e as portas de forma a tentarcomunicar.

    7. Funo transformadora da filosofia1

    A descrio puramente formal da filosofiacomo actividade humana que se interessaprtica e/ou teoricamente pelos problemasltimos de que o homem tem conscincia

    permite-nos afirmar que sua misso vencer ainrcia possvel (e real) (fsica e sobretudomental) do homem que, instalado na sua culturade forma mais ou menos confortvel, no tentaver para alm do seu prprio mito.

    certo que cada cultura oferece filosofia alngua de que esta carece para formular as suas

    1 O texto de Raimon Pannikar que aqui se apresenta corresponde sseces finais (7 a 9, pp.117 a 124) do 3 Captulo, intituladoProblemtica, do seu estudo Religion, Philosophie et Culture, InterCulture, publicado em Outubro de 1998, no Cahier INTER Culture, n

    135, publicado pelo Instituto Intercultural de Montreal. Este artigo, porsua vez, constitui a traduo francesa (por Anne Moreau) do discursoinaugural do Primeiro Congresso de Filosofia Intercultural, realizado noMxico, em 1995, que teve como ttulo Filosofa y cultura: una relacinproblemtica e que foi publicado em ILU, Revista de Ciencias de lasReligiones n 1, 1996, pp125-148. A ttulo de contextualizao, naimpossibilidade de apresentar o texto completo, optmos por aquideixar o seu respectivo resumo (N. do T.):Religio, filosofia e cultura so trs elementos da realidade humana. Se aprimeira se pode comparar aos ps, com os quais o homem caminha rumo aoseu destino, a filosofia representaria os olhos que perscrutam esse caminhar, ea cultura corresponderia terra pisada na sua peregrinao concreta. Ainterculturalidade representa a relatividade (no o relativismo) de todo ohumano, e, por isso, tambm destas trs noes.

    A questo da natureza da filosofia j uma questo filosfica que estintimamente ligada quilo que a religio representa. Uma aproximaointercultural mostra que no podemos separar a filosofia da religio: uma eoutra so tributrias da cultura que as alimenta. Para fazer justia aoproblema, devemos introduzir a funo do mythos, complementar do logos.

    intuies. No todavia menos certo que cadafilosofia tenta questionar os prpriosfundamentos sobre os quais cada cultura sebaseia; a filosofia explora o contedo ltimo daviso do mundo mais ou menos explcita emcada cultura. Indicmos j que uma diferenaespecfica da filosofia em relao s outrasdisciplinas consiste no facto de ela recuar emvez de avanar. Isto , questiona os alicerces emvez de se lanar escalada de um edifcio(cultural) em construo. Neste sentido, afilosofia autntica skepsis, revolucionria,contestatria e transformadora.

    Por outras palavras, cada filosofia emerge doseio de uma cultura e, simultaneamente,colocando em questo os alicerces dessa

    cultura, ela torna-se capaz de a transformar.Com efeito, qualquer transformao culturalprofunda surgiu de uma actividade filosfica.Tem-se repetido que so os filsofos, se bemque com algum desfasamento cronolgico,aqueles que mais influenciam os destinos dahistria. Este carcter radical da filosofia faz comque ela se alimente de um subsolo no qual seenrazam tambm as outras culturas. Queremosdizer que o estmulo para o pensamentofilosfico provm do seu contacto subterrneocom outras razes. Ou, se alterarmosradicalmente a metfora, ser transculturalaquilo que transporta sementes longnquas e asdeixa cair na cogitao do filsofo (semesquecer a ironia e o humor encerrados nestacogitao uma filosofia sem humor perde ohmus que a mantm vigorosa, impedindo queela se estiole em fanatismo). Tentando terconscincia do seu mito, a filosofia abre-se interculturalidade para realizar a tarefa detransmitizao, transformando a viso prpriada cultura original.

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    Hans Kngcrise global da economia e um thos global(Indito de 18 de Dezembro de 2009)

    Eram todas oportunidades nicas, as quais eu pensava ter de aproveitar: falar na sede principal dasNaes Unidas em Nova York, no Congresso Internacional de Sinologia em Pequim, no Simpsio Anual daFundao Novartis em Basileia e enfim no Parlamento das Religies Mundiais em Melbourne. Porque quecom os meus 82 anos exigi de mim quatro curtas viagens to cansativas em menos de quatro semanas? Arazo porque em todas aquelas ocasies se iria tratar o mesmo importante tema, que neste ltimoperodo da minha vida se me afigura cada vez mais caro e me exige diariamente muito trabalho silenciosomas tambm, por vezes, viagens cansativasenquanto ainda tiver capacidade para tal.

    Est, de facto, em voga em todo o globo o grande tema do thos mundial. E tal no nadasurpreendente na poca da globalizao. Pois as sombras e desenvolvimentos errados, os fiascos e osescndalos da globalizao trazem cada vez mais esta conscincia ao homem: Uma globalizao eficaz datecnologia, economia e comunicao provoca consequncias desumanas, se no for desenvolvida de formahumana e humanitria e no obedecer a critrios verdadeiramente humanos.

    Deste modo, de acordo com uma vagarosa mudana da conscincia, impe-se o seguinte juzo eexigncia: Nenhuma globalizao sem um thos global! Como tambm j se imps a convico: Nenhumapaz mundial sem paz religiosa e dilogo religioso. Assim, tambm no poder existir paz entre as religiese culturas sem a conscincia de algumas marcas e critrios ticos fundamentais, ou seja, sem um thoshumano elementar, sem um thos mundial.

    Porm, Senhoras e Senhores, no se preocupem, no me tomo nem por vagabundo nem por salvador

    do mundo. Mas ns na Fundao para um thos Mundial (Weltethos) ponderamos muito seriamente sobre eprocuramos respostas para os problemas do mundo, sejam eles de natureza poltica, econmica, culturalou religiosa. No voo de regresso de Melbourne, no meio de uma trovoada sobre o Afeganisto, pensavanos nossos soldados atemorizados l em baixo e nos seus familiares preocupados em casa. E nesseinstante surgiu-me na mente o pensamento de que hoje, nesta mesma palestra, deveria, com efeito, falarsobre o thos mundial e a poltica mundial. Contudo, no menos importante nos nossos dias o temaanunciado thos Mundial e Economia Mundial.

    Dever interessar-lhes saber que a nossa Fundaopara um thosMundialprocurou h cerca de doisanos, ou seja, bem antes do comeo da crise econmica, dinamizar um grupo de trabalho composto poreconomistas, empresrios e pensadores da tica, que redigisse um Manifesto para um thos econmico

    global (Global Economic Ethic) que apresentmos ao pblico no Outono de 2009, em Nova York, Pequim,Basileia e Melbourne e para o qual a Fundao Weltethos instalou um stio prprio de Internet com o

    endereo http://www.globaleconomicethic.org.Porm, caros ouvintes, perguntar-me-o criticamente, ser possvel sair da crise mediante um thos

    econmico mundial? Respondo-lhes: Certamente que no apenas com um thos econmico mundial, mas,da mesma forma, no sem um thos econmico mundial. Para um nmero crescente de pessoas isto torna-se bvio: A maioria das crises actuais da crise financeira mundial at crise do futebol europeu relaciona-se com a existncia de normas ticas elementares. E do mesmo modo como o futebol precisa deregras globalmente vlidas, assim tambm a economia.

    Evidentemente, ns que lutamos por um thos econmico mundial, conhecemos as objeces doscpticos e daqueles pessimistas que qualificam declaraes deste tipo como sendo inteis. No entanto,pergunto-lhes: O que seria do mundo sem a Declarao Universal dos Direitos Humanos, ou a Carta dasNaes Unidas, ou mesmo sem os Dez Mandamentos? claro que constantemente se age contrariamente

    aos que estes documentos propem, nisso todo o thos contrafactual. Contudo: as normas ticasconstituem sempre e novamente advertncias que no podem ser omitidas, advertncias contra o

    http://www.globaleconomicethic.org/http://www.globaleconomicethic.org/
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    jean-yves leloup

    melquisedeque

    Deambulando eu ao acaso pelas ruas de Jerusalm, encontrei um velho solitrio, rosto enfiado quaseat aos cotovelos, sentado em certas runas. Sonhava ... Mas como no conseguisse eu discernir no seuolhar se se trataria de saudade, esperana ou profecia, aproximei-me.

    No eram pequenas as runas, pois havia lugar para ns dois e ainda sobejava. Aps algumas palavrasde cortesia, perguntei-lhe se gostaria de partilhar comigo as suas cogitaes ou algum dos seuspensamentos.

    Chamo-me Melquisedeque disse ele. Estremeci ao ouvir o nome do rei de Schalem, primeirohabitante daquilo a que viria a ser Jerusalm, muito antes de Abrao, David, Salomo e de todos osoutros que, com os seus sonhos, haviam causado assombro at nos muros e descampados da cidade.

    Melquisedeque no hoje um nome muito usado aqui em Jerusalm. No um nome judeu, nemcristo, nem muulmano, nem budista, nem indiano... Aproximei-me um pouco mais do ancio, comoquem se aproximasse duma estela h muito desaparecida, engolida pelo areal, e que ento voltasse superfcie por alguma razo desconhecida.

    Estou a pensar nos meus quatro filhos, disse ele. Mas tambm no quinto, aquele que ainda h-de vir ...Melquisedeque, de facto, tinha quatro filhos.Tivera, primeiro, um rebelde que adorava disputas e gostava de brigar por tudo e por nada, e nunca

    estava contente, nada parecendo satisfaz-lo, mas que, por vezes, aps questinculas interminveis com o

    pai, l acabava por aceitar as coisas e at obedecer-lhe.O segundo filho era mais submisso. Jamais punha em questo as palavras do pai, no se arriscando adar qualquer interpretao pessoal, tendendo antes para impor aos outros aquilo que ouvisse e tivessecompreendido das suas palavras, para que tambm eles se lhes submetessem sem discusso.

    O terceiro tinha ar de um filho responsvel, e sentia-se suficientemente vontade para discutir ouobedecer, conforme o estado de esprito. O importante, para ele, era estar de bem com o pai e adivinharaquilo que pudesse agradar-lhe.

    O quarto, por seu turno, era um filho silencioso, algo distante, que no ligava muito ao que o paipudesse dizer ou pensar, o importante para ele era no sofrer nem causar sofrimento e, por vezes at, oser feliz.

    Melquisedeque amava os seus quatro filhos e estes amavam-no, cada um sua maneira, mas os quatrono se amavam entre si.

    O filho rebelde queria sempre ter razo sobre os outros e raramente os deixava sossegados,importunando-os constantemente com os seus reparos e questes.

    O filho submisso e o filho rebelde tinham particular dificuldade em entender-seainda que, tanto umcomo o outro, se referissem constantemente s palavras do pai, ou a algum dos seus escritos. Um, diziaque elas deviam ser interpretadas e discutidas interminavelmente, caso contrrio poderiam, dizia, impedirde pensar, destruindo a inteligncia em vez de estimul-la.

    Ao que o outro respondia que isso no passava de pretenso e arrogncia. O que seria inteligente erao filho submeter-se primeiro inteligncia e palavras do pai; de outro modo, mais no faria do queextraviar-se, conduzindo os outros a uma compreenso delirante ou limitada daquilo que havia sido ditoou escrito. No interessava interpretar as palavras, mas a elas submeter-se nisso estaria toda aSabedoria.

    Melquisedeque bem via que os seus dois primeiros filhos no se escutavam, mas como poderia serdiferente? Ambos se tinham na conta do mais sensato, do mais forte, do eleito e bem-amado do pai.

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    FranoisJullienOs sujeitos culturais por vir1

    Uma nova questo: temos permanecido longa e duradouramente na ignorncia relativamente aossujeitos culturais que somos. Seja porque temos pensado o cultural como um fenmeno secundrio(relevando da super-estrutura ideolgica) em relao s condies da base (foras produtivas e relaesde produo, etc.) cuja estrutura no ser seno o reflexo e a cobertura invertidamente idealizada.Ora, contrariamente ao que este esquema prope afigura-se que ns temos equacionado de formalimitada o quanto as condies culturais podem ser determinantes para o prprio desenvolvimento daeconomiao que a situao do Extremo Oriente testemunha (por exemplo, como compreender a actualexpanso da China sem referir, em primeiro lugar, os seguintes factores ideolgicos: os de um regime denegatividade forte, surgido na sequncia das violentas convulses da Revoluo Cultural, suscitandoassim a actividade e a bulimia do enriquecimento, assim como uma espcie de vingana em relao aoOcidente e um desejo nacionalista de poder que substitui o crisol de socialismo da reunificao?). Outalvez porque, na filosofia clssica europeia, temos pensado um sujeito abstracto, primordial, no mediado,no situado, desde logo universal, transparente em si mesmo, substncia pensante do cogito ou sujeitotranscendental, independente a priori de algo que no seria para si mais do que circunstancial: que eutenha nascido aqui e agora, num tal meio, numa tal lngua, num tal momento das mutaes sociais epolticas assim como do debate das ideias. Descartes ou Kant, com efeito, no suspeitavam sequer quepensavam numa lngua (o latim-francs ou o alemo latinizado) que no nem neutra nem transparente,mas sobre a qual o filsofo dever fazer trabalhar as singularidades e os recursos; nem que eles estavam

    implicados numa histria singular do esprito (onde se toca a questo de Deus) cujas maiores opes uma vez que no nos distancimos delas nem viajmos para forade todo nos escapam.

    Seja assim de uma ou de outra maneira (na sua verso materialista ou idealista, se quisermos ainda prem jogo essas clivagens), o pensamento europeu, fortalecido pela dominao que estendeu pelo mundograas cincia, confundiu as suas opes singulares com aquilo que estabeleceu como o universal daverdade: no havia para si uma efectiva diversidade cultural a ter em conta, e ainda menos que pudesse prminimamente em causa as suas certezas.

    Foi assim necessrio no s o paciente trabalho dos antroplogos, mas sobretudo que ocorresse afissurao do domnio histrico do Ocidente para que a diversidade cultural do mundo no mais surgissecomo um conjunto de meras variaes do mesmo, uma natureza humana eterna e fundada na razo,variaes por todo o lado mais ou menos atrasadas, diferidas, mais ou menos exticas em relao a essedesenvolvimento necessrio do esprito humano que a Europa representava aos seus prprios olhos.Ora, sucede que as outras possibilidades culturais ressurgem agora, exigindo ser reconhecidas, outrascivilizaes convocam a nossa ateno de cidados do mundo, no j como se elas estivessem aqum dahistria europeia e assim inelutavelmente fossem levadas a integrar-se nela, mas como lhe sendo paralelase estando frente a frente. Pelo menos, reabrindo o diverso. De sbito, a filosofia, que esbracejavadesmedidamente segundo o todo do conceito (kat-holou), descobre-se retrospectivamente como umaactividade local (no o seria seno atravs do seu itinerrio, de Atenas a Berlim) e no mais comonecessria (mas deste modo, reconheamo-lo, tambm como tanto mais inventiva), isto , o conceito deuniversal descobre-se a si prprio como produto de uma histria cultural singular que est emcontradio com a exigncia que promove. Seremos assim, por isso, levados ao relativismo (aoculturalismo: cada cultura se dobrando sobre si prpria e se isolando no seu destino)? claro que no.

    1 Este texto constitui um excerto do recentssimo trabalho do autor, intitulado: Le pont des singesDe la diversit venir. Fcond it culturelle face lidentitnationale, Galile, 2010. [N. do T.]

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    Vilm Flusserda migrao dos povos

    Est se processando, em toda a parte, umaprofunda modificao na maneira comomoramos. Modificao comparvel apenas comquela que ocorreu no fim do paleoltico,quando a humanidade passou do estgionomdico para o sedentrio. Actualmenteestamos abandoando o estgio sedentrio, esomos de mudana. Indivduos e grupos sempre

    mais numerosos migram. A cena oferece, a umobservador distanciado, a viso de umformigueiro perturbado por um ptranscendente.

    Estamos em mudana, porque o nossoambiente est se tornando in-habitual, portantoinhabitvel: A casa, o lar, a ptria e o ambienteao qual estamos acostumados. A cena estcoberta pela densa capa do hbito, a qual nopermite que percebamos as estruturasfundamentais, apenas as modificaessuperficiais. E esta cobertura do fundo da cenaque cria a iluso de permanncia, e permite quetenhamos confiana na permanncia imutvel donosso ambiente. Pois actualmente as estruturasfundamentais esto ruindo, e ao faz-lodispersam a capa do hbito que as encobriu.Estamos perdendo a confiana na estabilidade dacena. De habitual, o nosso ambiente estpassando a estranho, e de habitantes, estamospassando a estrangeiros. Por isto estamos todosem mudana, quer migremos, quer continuemosem lugar fixo. No apenas os hindus em

    Londres, os argelinos em Marselha e osnordestinos em So Paulo, mas estando emmudana igualmente os londrinos, osmarselheses e os paulistas. Estamos todosalienados da circunstncia, na qual no mais nosreconhecemos.

    A mudana profunda que est a remover acapa do hbito tem a ver com a transformaodas estruturas tradicionais (famlia, escola, lugarde trabalho, cidade, Estado) em aparelhos. Tudose est funcionalizando. E isto esttransformando o ritmo da vida. Estamos sendocirculados de aparelho para aparelho, os quais

    so mutuamente sincronizados. A indstria sincronizada com os programas de televiso ecom os meios de transporte, a escolasincronizada com a indstria do turismo e como ritmo circular do Estado. O ritmo circular,que transforma a vida em pndulo, estprogramado. A mudana profunda que estremovendo a capa do hbito tem a ver com a

    programao da vida. a isto que somosincapazes de habituar-nos.A migrao dos povos que a consequncia

    disto consiste em ondas sucessivas debrbaros, (gente no funcionalizada), queinvadem a cena. Mas, desta vez, as ondas noprovm das estepes, (como no fim da Idadeantiga), mas dos teros de moas subnutridas esubmissas, de cor, essas matriarcas do futuro. Secontemplarmos os rostos de tais moas,reconheceremos a tripla violentao da qual sovtimas. Por parte dos seus machos, por parteda burguesia dominante, por parte dosaparelhos. De modo que reconheceremos nosrostos dessas moas sofredoras os traos dosnossos prprios crimes passados. Tais moasso as portadoras do futuro, e esto marcadaspelos traos do nosso passado. E isto que omais inhabitual na cena: que o futuro que estirrompendo o nosso prprio passado, quetemos o futuro nas costas. E que, se estamosmigrando, se estamos nos desenvolvendo, para fugir do futuro.

    Mas no isto que torna to inhabitual, tohorrvel, a actual migrao dos povos. Ohorrvel que os nens de barrigas edemticasque brotam dos teros e que nos perseguemesto avanando na mesma direco para qualestamos fugindo. Se querem alcanar-nos epassar para a nossa frente, porque tambmeles esto fugindo. Todos, perseguidores eperseguidos, esto em desenvolvimento,correndo rumo aos aparelhos.

    preciso distinguir, na migrao actual, trsmovimentos sobrepostos. O movimento a curtoprazo, a mdio prazo e a longo prazo. O

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    Agostinho da Silva

    I n d i t o sapresentados por Amon Pinho

    Os escritos de Agostinho da Silva que se lero a seguir foram extrados de sua correspondncia

    pblica. No daquela a que ele deu forma nos anos 1960, caso do Itinerrio catarinense, ou 70, a exemplo

    das Cartas a So Flixou da Carta chamada Santiago; tampouco da que produziu na dcada de 80, tais como

    as Cartas vrias ou a Hora, ttulo de extraco pessoana; mas da que abundantemente enviou, nos ltimos

    tempos de vida, a centenas e centenas de pessoas de vrias partes do globo. No me refiro ao interessante

    conjunto de epstolas, datadas de 1990, ao qual no foi atribudo, pelo autor, nenhum ttulo geral; nem s

    folhinhas dactilografadas de 1993, publicadas por Lus Carlos Santos sob o ttulo As ltimas cartas do

    Agostinho; e sim chamada Uma folhinha de quando em quando, srie de missivas redigidas entre Novembro

    de 1990 e Dezembro de 1991, assistemtica e parcialmente estampadas em alguns peridicos, sobretudo

    de Portugal, uma vez que tambm a estes Agostinho da Silva as fazia chegar, e na qual procurmos

    seleccionar e fixar textos ainda no publicados e tematicamente afins ao presente nmero de Cultura

    Entre-Culturas .Donde pois Aviso ao mundo, de Outubro de 1991, poema ortonmico em que nos deparamos com

    uma notvel sntese de aspectos decisivos do pensamento do mitificado epistolgrafo do Prncipe Real,

    tanto quanto do seu centenrio cedro, e o texto De Pretrito mais que imperfeito, Dirio indito de Mateus-

    Maria Guadalupe, de Fevereiro do mesmo ano, prosa heteronmica assinada pelo engenheiro-entomlogo

    algarvio que se dizia realmente meio espanhol posto que criado na fronteira sobre o gueda e

    descendente de gente que viera de Espanha , e no s, tambm mourisco,e mais, beduno puro

    Gharb-al-Andalus, e cujo ideal humano era ser, a um tempo, artista, sbio e santo.

    Desde entre Hiprion, Orum, Eutopias e Dharma, Geia, Ai, Distopias e Samsra, desde portanto

    entre Tudo que o Nada , vem pois George Agostinho acompanhado das reflexes de Miguel Real e

    Romana Valente Pinho, assomar nas pginas inaugurais de Cultura Entre-Culturas. E, como de costume,

    vem sem concesses, sem deixar de provocativamente nos lembrar que boa leitura aquela que leia o

    que no h entrepgina e pgina da mesma folha. Afinal, no passamos a vida fabricando o real? Ns que

    arriscamos imaginar, porque todo o concreto vem de imaginar, que o o que verdadeiramente

    tradicional a inveno do futuro?

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    dest

    arte

    )|/e das outras

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    miguel realo imperador do mundo

    No terreiro, ao corrido do rio Mearim, em So Luiz do Maranho, norte do Brasil,rabiava-se o bumba-meu-boi, uma armao de ripas presadas por embiras escondendo noseu bojo avantajado um homem curvado compondo um boi de madeira; a armaocobria-se de veludo escuro donde sobressaa, como uma avantesma, a mscara de focinhodescomunal de um touro negro, de lngua pendida, armada de algodo amassado tingidode vermelho; estrelinhas luzentes de flandres e lato, imitando pedras preciosas,

    adornavam a coberta de veludo, e franjas de fitas de chita colorida arrastavam-se pelocho tapando os ps do homem-boi; entre os chavelhos do animal, de pontas douradas,invocando prosperidade, uma estrela prateada reluzia aos clares da fogueira; na traseira,cabriolando, puxavam s risadas o rabicho de piaaba do mostrengo um bando demolequinhos pretos-pretos, filhos das irms pretas da Irmandade de Nossa Senhora daBoa Morte, que s pretas-pretas acolhia, pretas casadas com pretos, todos da mais puraraa preta. Os cavaleiros-vaqueiros, de montadas ajaezadas de faixas de chita franjada, demltiplas cores, simulavam picar o touro com as varas, danando este no terreiro, emtorno da fogueira, fugindo das investidas dos cavalos. As zabumbas adiantavam o ritmosob as mos invisveis dos escravos e as macars fremiam pesadas de sementinhasruidosas, as velhas negras ruflavam pandeires e os moleques negrinhos silvavam apitosde pau-brasil ensurdecendo o ar. Um menino branco-branquinho, louro, de pele lvida,

    olhos aguados de azul, descendente da antigos holandeses conquistadores do Maranho,