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Na edição de julho/ 2010, Revista Regional (www.revistaregional.com.br) conversou com o jornalista Caco Barcellos durante sua passagem por Sorocaba.

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Page 1: Reportagem Caco Barcellos

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genteentrevista e texto Piero vergíliofotos tiago albertim

ocês já devem ter visto o trabalho que eu faço na tele-visão. Alguém não me conhece? Uma pessoa levantou a mão! Prazer, meu nome é Caco Barcellos; eu sou repórter”. A saudação, dita em tom bem humorado,

levou às gargalhadas os espectadores que prestigiaram a sua palestra, realizada em maio, em Sorocaba. Brincadeiras à parte, Cláudio Bar-celos de Barcellos – o sobrenome realmente é duplicado – é um rosto conhecido da maioria das pessoas.

Mesmo assim, vamos a uma rápida apresentação. Em mais de 30 anos de carreira, o jornalista trabalhou em revistas como “Veja” e “Isto É” antes de ser contratado pela Rede Globo na década de 80. Na emissora, participou da cobertura de guerras e catástrofes naturais – a mais recente foi o terremoto no Haiti –, além de produzir diversas reportagens investigativas, que já lhe renderam alguns prêmios.

É o caso, por exemplo, de uma matéria na qual Caco Barcellos identificou, num cemitério clandestino em São Paulo, os corpos de oito vítimas da repressão política, consideradas “desaparecidas” durante o regime militar. O trabalho – resultado de dois anos de investigação – foi exibido em julho de 1995 e ganhou o Prêmio Caixa Econômica Federal de Jornalismo Social.

Desde 2006, ele comanda a equipe do “Profissão Repórter”: o projeto, de sua autoria, começou como um quadro no “Fantástico”, e posteriormente ganhou edições especiais até se transformar num programa independente. A ideia era ousada: recrutar jovens profissio-nais que não tivessem nenhuma experiência em TV. Para o jornalista,

o fato de serem novatos aumenta a chance de criar uma identificação com o telespectador, pois o sujeito que está assistindo se coloca no lugar do repórter.

“Internamente, foi um desafio enorme. Geralmente, o repórter de rede adquire o privilégio de trabalhar para o mundo depois de uma trajetória de mais ou menos 12 anos. Então, eu tinha que provar que era possível fazer um trabalho tão bom quanto àque-les que já estavam no ar. Talvez melhor. Senão, era trocar seis por meia dúzia”, relembra.

Quatro anos mais tarde, não restam dúvidas de que essa foi uma aposta que deu certo. O “Profissão Repórter” é hoje um programa aclamado pelo público e pela crítica. Caco avalia que são vários os fa-tores que explicam o sucesso da atração, mas aponta como o grande diferencial a preocupação com o conteúdo. “O nosso dever é registrar notícias que são relevantes, de preferência, de alto interesse público. Na escolha das pautas, a gente constata que nem sempre o que se faz no Brasil é o suficiente. Produz-se muita coisa boa, mas há coisas que nem todo mundo faz. E nós vamos atrás dessas brechas”, sentencia.

De fato, a multiplicidade de temas é constante. Somente na tem-porada 2010 já foram retratadas a prostituição, homossexualidade e a rotina dos usuários de crack, entre outros. Mas o programa também abriu espaço para assuntos mais amenos, como, por exemplo, os bas-tidores de um show de Roberto Carlos e, é claro, a Copa do Mundo. “Alguns jornalistas afirmam que só existem 20 pautas no mundo. Para eles, tudo é uma eterna repetição. Eu acho que não. Há viés, e meios de observação que cabem a cada um descobrir”.

Caco Barcellosv“

O professor repórter

Page 2: Reportagem Caco Barcellos

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Olhares cruzadOsO veterano acredita que as pessoas tendem a

contar melhor uma história quando estão envolvidas nela. Por essa razão, cada tema é explorado sempre por três ou quatro duplas. “São olhares cruzados buscando um mesmo assunto. Aumenta a nossa chance de falar a verdade quando a gente tem pontos de vista diferentes. Até porque uma verdade, vista sob um ângulo só, é mais difícil de ser atingida. Sempre há o fator da relatividade”.

Caco faz questão de frisar que a equipe do programa é “bastante heterogênea”. De um grupo atualmente composto por 26 pessoas, fazem parte repórteres que foram selecionados entre famílias de baixa renda, mas em contrapartida, há aqueles que vieram das elites paulistanas. Desde que o projeto começou, uma deficiente visual – Daniele Haloten, que ficou conhecida do grande público quando interpretou a personagem Anita, na novela “Caras & Bocas” – e uma ex-dependente de crack já passaram pelo “Profissão Repórter”.

Ele conta que todos são obrigados a fazer sua sugestão de matéria. A regra também se aplica a todas as outras eta-pas do processo. “Normalmente, as redações se dividem em grupos distintos: escuta, produção, reportagem e edição. No “Profissão Re-pórter” não tem isso; é uma equipe só. Os integrantes exercem todas as funções. O melhor caminho para fazer bem feito é o envolvimento radical”, defende.

A premissa do jornalístico – mostrar os bastidores da notícia e os desafios da reportagem – é levada a sério, sobretudo, quando esbarra na questão ética. “Toda redação discute isso, mas as inquietações do jornalista não vêm a público: nós fazemos questão de expor. Numa outra vertente, não temos problema, em exibir, por exemplo, os bas-tidores de alguma gracinha: um erro, um escorregão do cinegrafista, uma frase ‘maldita’, no sentido de errada ou, até mesmo, provocante, instigante. Há quem não goste, e diga que é exibicionismo, mas o ob-jetivo é retratar que a gente tem dúvidas e erra como todo mundo”.

dO táxi à redaçãOVoltemos um pouco no tempo para tentar compreender um

pouco mais da “filosofia” do envolvimento radical, descrita alguns

Revista Regional

conversou com o

jornalista durante sua passagem

por Sorocaba

parágrafos acima. Aos 18 anos, esse gaúcho, natural de Porto Alegre, tornou-se taxista. Algum tempo depois, surgiria a oportunidade de trabalhar em um jornal, que, para a sua sorte – ou seu azar; como ele faz questão de complementar, brincando – fica-va na mesma rua do ponto.

“Era estagiário e achava que se a Redação descobrisse que eu era taxista, acabariam as minhas chances de ser efetivado. Tinha medo de que os repórteres embarcassem no meu táxi, mas um dia me distraí e um editor me flagrou. Quando cheguei à Redação, pensei que seria demitido, porém o che-fe mandou que eu fosse imediatamente para a rua escrever sobre essa rotina. No texto, contei diversos macetes do motorista, pois eu vivenciava aquilo. Eles gostaram tanto que foi a primeira reportagem assinada do jornal”, lembra.

A contratação fez com que o jovem abandonasse a faculdade de Matemática para ingressar no curso de Jornalismo. Desde então, mais de três décadas se passaram, e, ao longo desse período, foram muitos os projetos desenvolvidos. Paralelamente ao seu

trabalho na Rede Globo, Caco Barcellos é autor do livro “Rota 66” (1992), sobre a Polícia Militar de São Paulo, ganhador do prêmio Jabuti na categoria reportagem.

Em 2004, lançou sua segunda obra, “Abusado”, uma repor-tagem romanceada sobre o tráfico de drogas nos morros cariocas, também vencedora do prêmio Jabuti, na categoria não-ficção, e do prêmio Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Três anos de-pois, escreveu a peça de teatro “Osama, the Suicide Bomber of Rio”, para o projeto Conexões, do National Theatre of London.

Para Caco, há momentos em que o dinheiro e o prestígio devem ser colocados em segundo plano, em nome de um objetivo maior. Ele conta que sonhava em ter uma casa na praia, mas resolveu investir suas economias no “Rota 66”. “O livro começou a vender muito e a grana começou a voltar, só que também vieram juntos 18 processos. Teve uma época que eu usava toda a minha renda para me defender. Como fui absolvido em todas as oportunidades, acabaram desistindo de me acusar. Só que a obra continuou vendendo. Tanto que deu para comprar o terreno e construir a casa na praia. Eu acho bem mais legal porque agora eu posso colocar o livro dentro”, finaliza.

Caco Barcellos durante palestra realizada em Sorocaba; antes,

o jornalista concedeu uma entrevista coletiva à imprensa

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• Ainda criança, procurava juntar dinheiro para não onerar o pai, que era, segundo Caco, um clássico trabalhador brasileiro de baixa renda, desses que tem dois, três empregos;

• Embora reconheça que essa atitude não é um exemplo, Caco conta que aprendeu dirigir caminhão com 15 anos. Aos 18, ele se tornaria taxista;

• Depois que se formou em jornalismo, Caco passou cinco anos viajando pelo mundo. Nesse período, colaborou com a impren-sa alternativa escrevendo para a Cooperativa de Jornalistas de Porto Alegre e para a revista Versus, que publicava reportagens sobre lutas populares na América Latina;

• Fanático por futebol, Caco é torce-dor do Internacional de Porto Alegre e, sempre que pode, adora jogar uma pelada;

• O jornalista queria ser jogador profissional e, num tom bem humorado, confessa que se sente frustrado porque os técnicos não reconheceram o seu talento para o esporte;

• Em 2001, Caco trabalhou com o repórter cinematográfico Marco Antonio Gonçalves em uma série de reportagens sobre a guerra civil angolana exibida pelo Fantástico. “Angola, a Agonia de um Povo” recebeu o Prêmio Líbero Badaró, promovido pela Revista Imprensa;

• Aos 60 anos, Caco é adepto da macrobiótica desde 1971. Todos os dias, ele come arroz integral, legumes no vapor e algum tipo de carne – branca – na chapa;

• Caco assume que é uma pessoa bastante esquecida. Ele brinca que, na sua casa, as pessoas nunca se despedem na primeira vez, pois sa-bem que ele vai voltar para buscar alguma coisa;

• Caco tem muito medo da morte. Para todo lugar que vai, ele carrega uma mochila, com uma espécie de “kit de sobrevivência”.

• Na Globo, ele já foi correspondente internacional em Londres e Paris.

• Foi eleito duas vezes o melhor cor-respondente, em 2003 e em 2005, pelo site Comunique-se;

• Ao lado do cinegrafista Sérgio Gilz e da correspondente do jornal O Globo Débora Berlinck, cobriu, em 2004, o conflito entre palestinos e israelenses na cidade de Nablus. Na ocasião, quando os jornalistas tentavam entrar nos territórios palestinos ocupados para ouvir a população local, tiveram o carro de reportagem alvejado por soldados israelenses.

urante a palestra em Sorocaba, Caco Barcellos revelou que, para ele, a informação é a melhor aliada para enfrentar uma situação de risco, e que, ao contrário do que deveriam, as pessoas aceitam-na de maneira muito passiva; perguntam pouco para o jornalista. O idealizador do “Profissão Repórter” enfatizou seu desejo de que a sociedade se torne mais crítica e questionadora.Como bom profissional que é, Caco parece seguir esse preceito na prática. Antes da apresentação, ele recebeu os colegas de imprensa para uma entrevis-

ta coletiva e, a cada pergunta, lançava pelo menos um novo questionamento, como o leitor irá perceber. A reportagem da Revista Regional estava lá e selecionou os melhores momentos da conversa, que você poderá conferir logo abaixo.

Qual a sua avaliaçãO sObre O jOrnalismO investigativO pra-ticadO nO brasil?Eu acho que se pratica pouco; embora muita gente diga o contrário. Hoje em dia, é cada vez mais frequente o jornalismo baseado em declaração: um gravador, uma entrevista e pronto: denúncia no ar! Isso está longe de ser uma investigação; apenas uma entrevista é muito pouco. Há inclusive aqueles que não checam, até porque tem a entrevista garantida e a justiça aceita como prova. Você não inventou nada, está ali gravado e tem fonte, mas eu acho muito pouco. Prefiro provar que cada palavra gravada aqui é verdadeira, e às vezes, isso demora dois anos. E antes disso eu não colocaria jamais no ar.Eu sei que tem muitos veículos de rádio, TV e internet colocando denúncia ao vivo no ar. Isso é um grande equívoco. Como é que você vai checar? Saber se é verdade ou não? No dia seguinte? Aí você vai cometer erros: o primeiro, no dia seguinte, desmentindo. Em jornalismo investigativo, não pode haver polêmicas: “Ah, o outro lado disse o contrário”. Então, trabalhe meu caro, antes de divulgar.Qualquer veículo pode fazer investigação, desde que haja com responsabilidade. É da natureza do jornalismo investigativo a busca da prova. Essa observação que eu faço não é uma crítica; é uma constatação. Hoje se faz muito jornalismo declarató-rio, atribuindo-lhe caráter investigativo. Não é verdade.

atualmente, O cursO de jOrnalismO está entre Os mais prOcuradOs nas universidades. vOcê acredita Que issO é reflexO de uma glamOrizaçãO da prOfissãO, já Que muitOs prOfissiOnais sãO cOnsideradOs celebridades? até Que pOntO a televisãO cOntribui para issO?O que você chama de glamorização? É mostrar que o jornalista tem vida bacana? Não sei; o que é? Quando eu comecei, quem ganhava bem era o chefão, secretá-rio do jornal. Todo mundo tinha uma vida complicada: as pessoas trabalhavam demais para ganhar salários ridículos. Isso foi mudando com o tempo. Com o surgimento do telejornalismo no Brasil, a profissão passou a ser mais valorizada, e os estudantes sabem disso. Nossa remuneração hoje é parecida com a de outras áreas. Os mais bem sucedidos jornalistas recebem salários equivalentes aos de grandes médicos, engenheiros, etc. No passado não era assim; é a minha maneira de ver.Glamorização porque se torna conhecido? Tem gente que gosta dessa notoriedade, mas eu asseguro: é impossível que as pessoas se identifiquem com o seu trabalho sem muito esforço e dedicação, ou seja, bastante trabalho, que corresponde a apro-ximadamente dez, 12 anos de atividades diárias.

em diversas OpOrtunidades, vOcê assumiu publicamen-te Que tem medO da mOrte. esse temOr nãO sOa cOmO um paradOxO para um dOs ícOnes dO jOrnalismO investigativO nO país?Na verdade, eu não vejo associação direta. As pessoas normalmente veiculam ao jornalismo investigativo um caráter denuncista. Mas investigar é muito mais do que denunciar, dar porrada em alguém. Eu posso fazer jornalismo investigativo sobre o show dos Stones no Brasil: contextualizar, destacando a infraestrutura e a importância do evento. Isso também é investigação e eu não estou correndo risco de morte. Veja o exemplo do “Profissão Repórter”. Você acha que é investigativo ali? Todo mundo diz que é. A gente conta histórias positivas, do brasileiro que dá certo, de “heróis” que trabalham 50 horas num dia de 24. É uma forma de inves-tigação porque a gente prova que as coisas são verdadeiras. Quando é necessário, há críticas também, mas não precisa ser sempre isso.

GENTE

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