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Os roteiros de ‘Eles não usam black-tie’: uma aproximação ao projeto poético de Leon Hirszman (Los guiones de ‘Ellos no usan smoking’: una aproximación al proyecto poético de Leon Hirszman) Laila Rotter Schmidt Universidade Federal de São Carlos - UFSCar [email protected] Resumen: Película que tiene resonancia nacional e internacional, ‘Ellos no usan smoking’, de Leon Hirszman (1981), actualiza la obra de teatro homónima de Gianfrancesco Guarnieri (1956), de gran importancia en el teatro brasileño, para el contexto de efervescencia social y política de los años 70-80, expresando una postura crítica, dentro de los moldes de lo nacional-popular. Este trabajo propone un enfoque que se centra en el proceso creativo que dio origen a ‘Ellos no usan smoking’, haciendo uso de referencias teóricas y metodológicas de la “Crítica Genética” y centrándose en las diferentes versiones de los guiones de la película. Para Cecilia Salles, el proceso creativo puede ser caracterizado como un “camino con tendencia” en permanente movilidad, lo que conduce a diferentes posibilidades de obra artística. Entre las fuerzas motrices que subyacen a las tendencias del camino es el “proyecto poético” del artista: los principios éticos y estéticos que guían sus acciones. (1998, p. 26-27; 37-39) Entre los numerosos documentos que registran el camino constructivo de ‘Ellos no usan smoking’, tres diferentes versiones de guiones creadas por Hirszman y Guarnieri son de interés para los propósitos de este trabajo. A través de un análisis comparativo de estos guiones, se pretende establecer relaciones entre los cambios que condujeron a los diversos intentos de materialización de la obra, tratando de identificar las recurrencias en las decisiones y las implicaciones de éstas en su poética. 1

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Os roteiros de ‘Eles não usam black-tie’: uma aproximação ao projeto poético de

Leon Hirszman (Los guiones de ‘Ellos no usan smoking’: una aproximación al

proyecto poético de Leon Hirszman)

Laila Rotter Schmidt

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

[email protected]

Resumen:

Película que tiene resonancia nacional e internacional, ‘Ellos no usan smoking’, de Leon

Hirszman (1981), actualiza la obra de teatro homónima de Gianfrancesco Guarnieri

(1956), de gran importancia en el teatro brasileño, para el contexto de efervescencia

social y política de los años 70-80, expresando una postura crítica, dentro de los moldes

de lo nacional-popular.

Este trabajo propone un enfoque que se centra en el proceso creativo que dio origen a

‘Ellos no usan smoking’, haciendo uso de referencias teóricas y metodológicas de la

“Crítica Genética” y centrándose en las diferentes versiones de los guiones de la

película.

Para Cecilia Salles, el proceso creativo puede ser caracterizado como un “camino con

tendencia” en permanente movilidad, lo que conduce a diferentes posibilidades de obra

artística. Entre las fuerzas motrices que subyacen a las tendencias del camino es el

“proyecto poético” del artista: los principios éticos y estéticos que guían sus acciones.

(1998, p. 26-27; 37-39)

Entre los numerosos documentos que registran el camino constructivo de ‘Ellos no usan

smoking’, tres diferentes versiones de guiones creadas por Hirszman y Guarnieri son de

interés para los propósitos de este trabajo. A través de un análisis comparativo de estos

guiones, se pretende establecer relaciones entre los cambios que condujeron a los

diversos intentos de materialización de la obra, tratando de identificar las recurrencias

en las decisiones y las implicaciones de éstas en su poética.

1

En otras palabras, el objetivo es identificar y comprender las “tendencias” y “modos de

acción” (SALLES, 2006, p. 36) que caracterizaron el pensamiento en proceso de los

creadores y dirigieron el camino constructivo de ‘Ellos no usan smoking’, buscando

contribuir con la aproximación al proceso creativo de esta película, que es el objeto de

nuestra investigación de maestría en desarrollo.

Palabras clave: Cine brasileño moderno - Leon Hirszman - Proceso de creación -

Guiones

Os roteiros de ‘Eles não usam black-tie’: uma aproximação ao projeto poético de

Leon Hirszman

O presente trabalho tem por objetivo contribuir com a aproximação ao processo de

criação do filme brasileiro Eles não usam black-tie, dirigido por Leon Hirszman e

lançado em 1981. Esta abordagem parte do referencial teórico e metodológico da Crítica

de Processo e se concentra na leitura de três diferentes versões de roteiros criadas para o

filme. As considerações aqui tecidas compartilham alguns resultados obtidos na minha

pesquisa de mestrado, ora em vias de finalização.

Obra internacionalmente reconhecida, realizada por um dos cineastas fundadores do

Cinema Novo, este filme atualiza para os anos 70 a peça homônima de 1958 escrita pelo

destacado dramaturgo brasileiro Gianfrancesco Guarnieri. Eles não usam black-tie trata

das repercussões de uma greve em uma família operária, e dialoga com acontecimentos

que marcaram a história sociopolítica brasileira, como a greve dos metalúrgicos do

maior centro industrial do país, o ABC paulista, e o processo de abertura política após

quase vinte anos de ditadura militar.

Sob o viés da crítica de processo transcende-se o objeto final da criação (a obra

dita “acabada”, em si mesma) para buscar uma aproximação ao percurso criativo que

lhe deu origem. De acordo com a pesquisadora brasileira Cecilia Salles, que há mais de

15 anos dedica-se aos processos criativos de diferentes manifestações artísticas, as

reflexões sobre a obra em construção oferecem um novo caminho de aproximação à

arte, que “incorpora seu movimento construtivo”. (2006, p. 13) A crítica de processo,

denominação proposta por Salles, (2010, p. 15) tem raízes na Crítica Genética,

2

disciplina que surgiu no âmbito da literatura, no contexto francês do final da década de

60.1 De acordo com Almuth Grésillon, uma de suas fundadoras, a disciplina está

interessada nas obras in status nascendi. (2007, p. 12)

A aproximação ao objeto artístico em processo se dá por meio dos “rastros”

deixados pelo artista de seu percurso criativo. (SALLES, 2008, p. 25) Estes são

denominados por Salles como “documentos de processo”, que constituem “registros

materiais do processo criador. São retratos temporais de uma gênese que agem como

índices do percurso criativo”, (1998, p. 17) e são, portanto, o objeto de estudo da crítica

de processo.

Nesta perspectiva, nossa proposta com este trabalho é compreender uma parte do

percurso criativo do filme Eles não usam black-tie: a roteirização. Para isso, tomaremos

os roteiros enquanto “índices” do pensamento em processo de Leon Hirszman. Deste

modo, desejamos, a exemplo de Josette Monzani, pesquisadora brasileira pioneira no

estudo de processos de criação no cinema, “apontar um método a mais de pesquisa

cinematográfica, contemplando os roteiros feitos para a obra - parte usualmente

esquecida do material do processo de criação - e buscando extrair do movimento

representado por eles o “desenho” do pensamento de seu autor”. (2005, p. 17)

Hirszman afirma ter se interessado pela peça de Guarnieri, Eles não usam black-tie,

desde que a assistiu pela primeira vez em uma montagem no Rio de Janeiro, em 1959,

(A CLASSE..., 1981, p. 2) tendo a considerado “decisiva para o nascimento do moderno

teatro brasileiro”. (1995, p. 53) 20 anos depois, o diretor reúne as condições para tornar

realidade o projeto de transpor a peça de teatro para o cinema. A produção do filme teve

início em janeiro de 1979, quando a Embrafilme, produtora e distribuidora estatal

brasileira na época, firmou o contrato de coprodução de Eles não usam black-tie.

Hirszman, que morava no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo para começar a

realização do filme. Pouco depois de sua chegada, teve início o movimento grevista dos

trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista, o que motivou o diretor a interromper os

trabalhos no filme de ficção para filmar o documentário ABC da greve, que não foi

finalizado por ele em vida. Ao retomar a realização de Eles não usam black-tie, o

1 Cecilia Salles considera que a terminologia “Crítica de Processo” seja mais abrangente que “Crítica

Genética”. Para a autora, “muitas das questões que envolvem a criação artística nos transportam para

além de seus bastidores, ou seja, além de seu passado registrado nas gavetas dos artistas”, deste modo,

“ao olhar retrospectivo da crítica genética, estávamos adicionando uma dimensão prospectiva, oferecendo

uma abordagem processual. Surge assim, a crítica de processo”. (2006, p. 169)

3

diretor se reuniu com Guarnieri, quem convidou para colaborar com ele no roteiro, para

começar a escrevê-lo.

Na extensa pesquisa de campo por nós realizada durante o mestrado, tendo como

principal fonte o Arquivo Edgard Leuenroth (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

- Universidade Estadual de Campinas),2 encontramos mais de uma dezena de roteiros,

sendo três matrizes e nove fotocópias, que denominamos cópias “a”, “b”, “c” e assim

por diante. Dentre estes documentos identificamos três versões distintas de roteiro, que

nomeamos como Roteiro I, Roteiro II e Roteiro III. Apesar de o primeiro não ter data,

está identificado como “primeiro tratamento”. Como os demais compartilham a mesma

data (27/01/1980), o estabelecimento da sequência entre eles resulta de nossa leitura

interpretativa.3

O Roteiro I pode ser considerado um documento privado concebido para ser

retrabalhado, modificado, em outras palavras, um “rascunho”, um estado particular do

processo. O percurso criativo a partir do Roteiro I, por outro lado, marca a passagem do

“rascunho” para a versão considerada “final”, no sentido de ser a versão apta a ser

utilizada nas filmagens.

A compreensão da transposição do primeiro tratamento para o Roteiro II, e deste para o

Roteiro III exige um trabalho comparativo, que abarca um conceito característico das

pesquisas processuais, o de rasuras. Grésillon afirma que, apesar de a rasura não ser “a

única forma a ocasionar vestígios de reescritura”, trata-se de “um dos elementos capazes

de confirmar a dimensão temporal própria a todo processo de escritura”, (2007, p. 98)

sendo de fundamental importância para a compreensão de um percurso criativo. (grifo

nosso)

2 O local principal de ubiquação dos documentos de processo da nossa pesquisa de mestrado é o Arquivo

Edgard Leuenroth, IFCH - Unicamp, localizado em Campinas/SP, onde se encontra depositado o acervo

pessoal de Leon Hirszman. Constituem fontes secundárias de depósito e pesquisa a Biblioteca Paulo

Emílio Salles Gomes, da Cinemateca Brasileira, em São Paulo/SP, e a Cinemateca do Museu de Arte

Moderna, no Rio de Janeiro/RJ.3 A sequência entre estas duas versões foi estabelecida levando-se em conta, principalmente, a existência

de correções manuscritas em um roteiro que se encontram datilografadas em outro, a evolução técnica

perceptível entre as versões, a presença de anotações, no caso do Roteiro III, que se referem à filmagem e

também a identificação de algumas cópias desta versão com o nome de membros da equipe, indicando ter

sido este roteiro utilizado na realização do filme.

4

Paradoxalmente, a rasura é simultaneamente perda e ganho. Ela anula o que foi

escrito, ao mesmo tempo em que aumenta o número de vestígios escritos. É nesse

próprio paradoxo que repousa o interesse genético da rasura: seu gesto negativo

transforma-se para o geneticista num tesouro de possibilidades, sua função de

apagamento dá acesso ao que poderia ter se tornado texto. (2007, p. 97)

Salles observa que as rasuras são o “resultado da discrepância entre aquilo que se tem e

aquilo que se quer: o construído e a necessidade”. (1998, p. 154) Esta divergência

conduz o artista à ação, de modo que “no processo de escrever e corrigir o pensamento

se ordena”. Assim, a rasura nos coloca em contato com o “trabalho mental e físico

agindo, permanentemente, um sobre o outro”. (1998, p. 148)

No que tange às rasuras, uma particularidade do processo criativo de Eles não usam

black-tie merece atenção. Tendo em vista que o processo criativo de uma obra

audiovisual depende de um grupo de pessoas para realizar-se, o roteiro tem como

propósito mediar o processo individual do roteirista e a coletividade da equipe,

(SALLES, 2010, p. 173) sendo, portanto, um documento feito para ser lido e utilizado

por diferentes sujeitos. É nesta perspectiva que podemos compreender o fato de haver

diferentes cópias dos Roteiros II e III, e cada uma destas registrar rasuras próprias,

possivelmente realizadas por diferentes membros da equipe.

Considerando que nosso interesse neste trabalho é compreender o processo de

roteirização de Eles não usam black-tie, procuraremos nos concentrar nas rasuras dos

roteiros que se inserem neste âmbito, sem adentrar nas operações que se referem à

realização fílmica. Deste modo, nossa análise se dará sobre: a) as rasuras do Roteiro I,

que não possui cópias; b) a matriz datilografada do Roteiro II; c) as rasuras da cópia “c”

do Roteiro II; e d) a matriz datilografada do Roteiro III. A opção pela cópia “c” dentre

as três existentes do Roteiro II justifica-se pelo fato de esta ter dado origem à matriz do

Roteiro III. No caso do Roteiro III, nos limitaremos à matriz datilografada, em razão de

o processo de produção possivelmente ter se baseado nesta, de modo que as rasuras em

cópias desta versão extrapolam o âmbito da roteirização.4

4 No caso do Roteiro II, a cópia “a” tem poucas correções e a cópia “b” tem anotações muito parecidas

com as da cópia “c”, porém, em caligrafia distinta. Além de a cópia “c” ser a mais completa, uma vez que

tem maior quantidade de alterações que as demais, é a cópia que possivelmente deu origem ao Roteiro III,

visto que são as rasuras desta as transcritas para a matriz, inclusive um esboço da capa da última versão

de roteiro. Parece-nos provável ter sido a matriz do Roteiro III a versão “definitiva”, utilizada na

produção - isto por que há três cópias desta identificadas com nomes de membros da equipe (cópia “a”:

Leon; cópia “c”: Tânia Savietto - assistente de direção; e cópia “f”: Juarez Dagoberto - responsável pelo

5

Concentrando aqui nossa leitura nas cópias que serviram à experimentação de Hirszman

e Guarnieri em torno do roteiro, tomaremos as rasuras como vestígios das opções dos

roteiristas, as quais conduzem aos critérios e razões que direcionaram esta etapa do

percurso criativo. Buscaremos então identificar tendências que apontem para o “projeto

poético” do diretor, ou seja, “seu plano de valores e sua forma de representar o mundo”.

(SALLES, 2002, p. 192)

O Roteiro I tem um título provisório, Nós se gosta muito mais,5 diferente do título da

peça que acabou sendo utilizado no filme. Por outro lado, a trama tem o mesmo núcleo

dramático do texto teatral: O jovem operário Tião, ao saber que a namorada Maria está

grávida, marca o noivado para dali a duas semanas. Seu pai, Otávio, líder sindical,

anuncia que dentro desse mesmo período, uma greve operária pode estourar. A previsão

de Otávio se confirma, e Tião, com medo de perder o emprego e não ter como sustentar

sua futura família, fura a greve, sendo expulso de casa e abandonado por Maria.

Apesar de aterem-se ao núcleo dramático do texto teatral, no Roteiro I os roteiristas

invocam muitos novos elementos para representar a classe proletária no contexto que

lhe era contemporâneo. A trama não é mais ambientada no Rio de Janeiro, nos anos 50,

mas em São Paulo na virada dos anos 70 para os anos 80. Foram introduzidos novos

tópicos à discussão, relacionados às condições de vida na metrópole, como a violência,

a repressão policial, a marginalidade, o desemprego e a migração nordestina. O papel da

televisão e a participação da mulher no trabalho são outras questões contemporâneas

que aparecem no primeiro roteiro de Eles não usam black-tie.6

Cabe observar que muitas destas questões foram discutidas por Hirszman e Guarnieri

antes de iniciarem a escritura do roteiro. As conversas entre os roteiristas se encontram

registradas nos Argumentos, documentos textuais e sonoros depositados também no

Arquivo Edgard Leuenroth. Nos Argumentos, o diretor dá sinais de distanciar-se da

peça, criando um novo núcleo dramático para obra.7 No entanto, tal afastamento acaba

som direto), e que documentos de produção como o Storyboard e os Calendários de filmagem se baseiam

na matriz do Roteiro III. Na cópia “e” as falas da personagem “Chiquinho” encontram-se sublinhadas, o

que indicia ter sido possivelmente esta versão distribuída aos atores.5 Trecho do samba-tema da peça, que evidencia as relações afetivas entre os moradores da favela carioca.6 Sobre estas questões, Cf. SADER (1988).7 Enquanto a peça narra a história das repercussões da greve numa família operária, nos Argumentos está

em discussão o drama de grupo de teatro amador que monta a peça Eles não usam black-tie em São Paulo

nos final dos anos 70. Com isto, a “espinha dorsal” da obra passa a ser o teatro e não a greve, deslocando

a discussão do movimento operário para a função social da arte e dos artistas-intelectuais de esquerda.

6

se afirmando como meio e não como finalidade, visto que o diretor retoma o núcleo

dramático da peça logo em seguida, na escritura do primeiro roteiro. Neste sentido

podemos considerar os Argumentos como um recurso para estudar, debater e

amadurecer a discussão da temática grevista na contemporaneidade paulista ancorada

no contexto sociopolítico da época.

Enquanto o movimento processual entre o texto teatral e o Roteiro I, passando pelos

Argumentos, é fundamentalmente intersemiótico,8 visto que caracteriza parte substancial

do trabalho de transcriação da peça para o filme,9 o trajeto dos roteiristas entre o

primeiro tratamento de roteiro e a versão que serviu de guia para a realização do filme

tem uma dinâmica distinta, e neste sentido a observação das formas pelas quais as

rasuras se manifestam entre as diferentes versões de roteiro, constitui o primeiro passo

para sua compreensão.

Neste sentido, é relevante a distinção de Grésillon entre rasuras que podem ser

visualmente identificadas, por ela denominadas “visíveis”, daquelas que exigem uma

leitura comparativa de diferentes versões para serem percebidas, chamadas “imateriais”.

(2007, p. 98) A autora classifica, ainda, as rasuras em relação ao momento de sua

elaboração, tratando de “variante de escritura”, que significa que a rasura intervém no

curso da escritura, em oposição à “variante de leitura”, que se caracteriza quando a

variante vem depois da leitura do rascunho. (2007, p. 100-101)

No que se refere a Eles não usam black-tie, conforme já comentamos, as diferentes

versões de roteiros possuem rasuras manuscritas sobre o texto datilografado, podendo,

assim, ser enquadradas no que Grésillon define como “variantes de leitura”, uma vez

que as anotações manuscritas certamente foram feitas depois e não ao mesmo tempo em

que a datilografia. Além de tais rasuras “imediatamente visíveis”, encontramos também

nos roteiros as rasuras “imateriais”, ou seja, diferenças entre uma versão e outra que não

se encontram indicadas por traços ou anotações manuscritas.

As rasuras dos roteiros revelam, portanto, uma segunda “camada” destes documentos, e

apontam para um movimento interno, formado por ações diferentes, temporalmente

distintas do processo criativo: a escritura, a leitura/rasura e a reescritura. Este

movimento caracteriza cada uma das versões, ou seja, o Roteiro I é escrito

8 A transposição entre sistemas de signos diferentes, por exemplo, da arte verbal para o cinema, Jakobson

denomina “transposição intersemiótica” (JAKOBSON, 1977, p. 72).9 Para Haroldo de Campos o termo “tradução” não é adequado para tratar da poesia, ou de qualquer tipo

de texto criativo, sentido em que o autor prefere o termo “transcriação”. À medida que distancia o ato

transcriativo da tradução, Haroldo o aproxima da crítica e da criação. (CAMPOS, 1987; 2004)

7

(datilografado), lido, rasurado e reescrito (datilografado), transformando-se em Roteiro

II. Este por sua vez, passa pelo mesmo processo para chegar a Roteiro III.

Tendo em vista que as rasuras podem modificar não apenas o conteúdo da escritura,

mas da própria reescritura, ou seja, das próprias rasuras, nos roteiros de Eles não usam

black-tie, enquanto as rasuras sobre a matriz datilografada são exclusivamente como

variantes de leitura, as rasuras sobre as rasuras podem diferenciar-se em variantes de

leitura e variantes escritura. Nesta direção as diferenças de caligrafia e de canetas

utilizadas nas anotações auxiliam na identificação das diferentes revisões realizadas.

O Roteiro I é o mais extenso, e detém a maior quantidade de rasuras dentre as versões.

Uma das características mais marcantes da matriz datilografada do primeiro tratamento

é que nesta se encontram pouquíssimos indicadores da decupagem, de modo que a

divisão sistemática das cenas em planos é desenvolvida nas rasuras. É a estes elementos

que diz respeito a maior parte das anotações manuscritas do Roteiro I, que também se

referem a ajustes de conteúdo como cortes, modificações e adições de cenas inteiras, de

partes de cenas, de diálogos e de rubricas. O tipo de caneta utilizado nas rasuras, bem

como sua caligrafia e tipologia, parece indicar que sobre o Roteiro I se deu mais de uma

revisão, realizada possivelmente por uma única pessoa.10

Praticamente todas as correções manuscritas no Roteiro I foram transcritas para a matriz

datilografada do Roteiro II. No entanto, por vezes sofrem pequenos ajustes, os quais, em

geral, conferem um caráter textual ao que na rasura é indicação pontual, sem alterar o

seu sentido.11 Por outro lado, na transcrição do primeiro tratamento para a versão

subsequente observamos também a existência de rasuras “imateriais”, ou seja, novas

modificações que foram sendo operadas durante a datilografia do Roteiro II e que não

estão rasuradas visivelmente no Roteiro I. Isso nos permite supor que a escritura /

10 As diferenças na tonalidade da caneta azul utilizada indica que possivelmente houve mais de uma

revisão no roteiro. Neste sentido também contribui o fato de haver cenas cortadas e ao mesmo tempo

alteradas, o que caracteriza duas operações distintas sobre a mesma cena. No caso das cenas cortadas e

modificadas, estas podem ter sido cortadas e logo em seguida os roteiristas voltaram atrás e as

renumeraram-modificaram (por ex., as cenas 46-47, 60, 115 e 120), ou, ainda, cenas podem ter sido

renumeradas-modificadas e logo em seguida cortadas (cenas 35 e 59).11 Por exemplo, no Roteiro I (p. 29), as rasuras indicam o acréscimo de uma cena com a indicação “Frente

cinema - desistem - pipoqueiro”, e a transcrição desta no Roteiro II (p. 34) é: “Frente de um cinema.

Cartazes do filme em exibição e dos próximos programas. Movimento de público na bilheteria.

Pipoqueiro. Carrocinha de refrigerantes. Em P.C. Tião e Maria olham os cartazes. Resolvem comprar

pipocas. Vão ao pipoqueiro e compram dois saquinhos. Confabulam e desistem de ir ao cinema. Saem

caminhando abraçados”.

8

datilografia do Roteiro II foi feita pelos próprios roteiristas (e não por um copista, por

exemplo), ou pelo menos foi supervisionada por eles.

Entre as rasuras “imateriais” entre os Roteiros I e II se enquadra a mudança de título que

no primeiro tratamento era Nós se gosta muito mais e na versão seguinte já aparece

como a definitiva, tomada do texto teatral, Eles não usam black-tie.

No Roteiro II, por sua vez, as rasuras são tão variadas quanto no Roteiro I, embora

existam em menor quantidade. Estas continuam se referindo, em sua maioria, à

renumeração das cenas e planos, bem como à decupagem, que vai sendo mais bem

detalhada, com a especificação de ângulos e movimentos de câmera, por exemplo.

Diferentemente do Roteiro I, no Roteiro II encontram-se claramente diferenciadas duas

revisões, temporalmente distintas, (uma feita a caneta e outra subsequente feita a lápis)

caracterizando certamente variantes de leitura.

Por outro lado, diferentemente do Roteiro I, a passagem do Roteiro II para o Roteiro III

é realizada na íntegra, o que significa dizer que não há alterações na transcrição das

rasuras “visíveis”, bem como rasuras “imateriais” entre a segunda e terceira versão de

roteiro. Nesta direção, é interessante observar que no Roteiro II (p. 84), há uma

indicação que diz “atenção: datilografar na ordem...”. Isto possivelmente significa que

os roteiristas rasuraram o Roteiro II e o entregaram para um copista transcrever, de

modo que, diferentemente do Roteiro I, não tenham interferido neste processo. Neste

sentido, podemos afirmar que com as rasuras feitas na segunda versão de roteiro,

transcritas na terceira versão, esta foi considerada “pronta” para ser distribuída à equipe

com vistas à realização do filme.

Estas observações acerca da dinâmica das rasuras colaboram na compreensão dos

critérios que direcionaram o trabalho criativo de Hirszman e Guarnieri nos roteiros de

Eles não usam black-tie, os quais, conforme sublinha Salles, normalmente vão se

delineando por meio do próprio movimento criador:

Ao corrigir ou rasurar uma possível concretização de seu grande projeto, o artista

vai explicitando para ele próprio o que espera da obra, e assim, seus propósitos

ganham contornos mais nítidos e, ao mesmo tempo, esse mesmo conjunto de

princípios coloca a obra em constante avaliação e julgamento. (SALLES, 1998, p.

154)

Em relação ao conteúdo das modificações, partindo do acompanhamento ao movimento

processual entre o Roteiro I e o Roteiro III registrado nas rasuras, percebe-se que pouco

9

é alterado no que se refere ao núcleo dramático de Eles não usam black-tie: as

personagens, as situações principais que compõem a história, o tempo e os locais no

qual esta se passa permanecem, de maneira geral, inalterados. Por outro lado são

significativas as alterações em relação aos recursos narrativos dos quais os roteiristas se

valem.

Nesta direção, Ismail Xavier diferencia fábula e trama. Esta distinção tem raízes, na

narratologia, em Gerard Genette, e possui sentido análogo ao da oposição proposta

pelos formalistas russos no contexto do conto, entre “fábula”, que seria “a sequência

dos acontecimentos representados tal como eles teriam se desenrolado na vida” e

“trama”, que “remete ao agenciamento particular desses acontecimentos pelo autor”.

(AUMONT; MARIE, 2006, p. 115)

Deste modo, mantendo comum a mesma fábula, cada versão de roteiro apresenta

possibilidades distintas em relação à trama. Conforme já comentamos, a maior parte das

rasuras, tanto no Roteiro I quanto no Roteiro II, é dedicada à elaboração da decupagem,

acrescentando, assim, componentes especificamente cinematográficos à narrativa, até

então inexistentes. Os ajustes no “conteúdo” das cenas, ou seja, nas descrições de

cenário, diálogos e rubricas, também são extensos (principalmente no primeiro

tratamento), e se dão por meio de movimentos plurais como cortes, alterações e adições.

A partir das recorrências encontradas nestas operações, demarcamos três movimentos

processuais principais entre as três versões de roteiro de Eles não usam black-tie: a) A

elaboração da decupagem; b) A redução da extensão da narrativa, eliminando cenas e

enxugando diálogos e rubricas; c) A alteração na relação entre o perfil e as ações das

personagens, em especial dos protagonistas Tião e Otávio.

Os constituintes da imagem e som receberam atenção especial nos roteiros, uma vez que

são elaborados, revistos e encorpados ao longo das três versões. Deste modo, observa-se

um movimento linear crescente que, ao invés de rever, cortar e alterar os elementos da

decupagem, os aperfeiçoa, no sentido técnico de sua descrição e padronização, e os

enriquece, no sentido artístico de seu detalhamento e incremento.

Deste modo, parece que Hirszman tinha, desde o princípio, uma dimensão um tanto

exata da composição audiovisual das suas cenas, sendo que, nesta altura do trabalho,

suas ações estavam menos voltadas à experimentação criativa e mais direcionadas à

instrução de sua equipe técnica, buscando demonstrar, com a máxima precisão, aquilo

que estava bem definido na sua cabeça. Esta ansiedade com a perfeição dos detalhes,

10

que transparece na análise das versões dos roteiros, é marca do trabalho de Hirszman, já

apontada por Bozicanin (2011) em relação ao filme São Bernardo (1972).

Outros elementos da narrativa elaborados e desenvolvidos ao longo das versões,

diferentemente da decupagem, possivelmente não estavam tão bem resolvidos para o

diretor, que continua manipulando a obra em busca da forma desejada, valendo-se dos

roteiros para experimentar diferentes possibilidades de obra. Uma destas inquietações

diz respeito à extensão da narrativa.

De modo geral, observa-se tanto nas rasuras do Roteiro I quanto do Roteiro II um

esforço no sentido de “enxugar” a trama, ou seja, de reduzir sua extensão e torná-la

mais precisa. Este empenho se caracteriza, por um lado, pela escolha de meios mais

econômicos para transmitir as mesmas informações, e por outro, pela supressão de

ações e informações que não contribuem diretamente com o desenvolvimento da trama.

Nesta direção, uma ação bastante recorrente nas rasuras, principalmente do primeiro

tratamento, é a supressão de cenas nas quais os personagens se deslocam de um lugar a

outro, criando elipses e reduzindo a sequencialidade da narrativa. Por outro lado,

algumas redundâncias na narrativa vão sendo eliminadas nas rasuras, por exemplo,

ações que deixam de ser encenadas para ficar implícitas na narrativa, bem como

informações que são suprimidas dos diálogos para permanecem apenas nas ações, e

vice-versa. Há casos, ainda, de ações que, ao invés de serem suprimidas, recebem outro

tratamento formal, ou seja, aparecem na narrativa de diferentes maneiras. Também é

comum a omissão de pequenos trechos dos diálogos, o que, sem interferir na ação ou

alterar o sentido da fala, o contribui diretamente com a concisão das cenas.

Estes exemplos referem-se a informações da narrativa que não se perdem, mas são

apenas transmitidas de maneira mais concisa. Contudo, também se observa ao longo das

versões a elisão de determinadas cenas ou diálogos que de fato suprimem determinados

dados da narrativa, os quais, na maioria dos casos, podem ser considerados secundários,

uma vez que não prejudicam o desenvolvimento da trama.

Estas diferentes operações entre o Roteiro I, Roteiro II e Roteiro III contribuem, de um

modo geral, para a precisão da narrativa de Eles não usam black-tie. Contudo, também

existem diversos cortes e alterações entre as versões, tanto em cenas inteiras quanto em

diálogos e rubricas, que afetam o sentido das ações e informações, interferindo

significativamente na trama. Grande parte destas está relacionada, a nosso ver, aos

recursos narrativos por meio dos quais o perfil das personagens se revela.

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Hirszman e Guarnieri deram grande importância à construção das personagens desde

suas discussões iniciais. Nos Argumentos o desenvolvimento das personagens consistiu

em listar as suas características, imaginar sua história de vida, definir seus medos e

desejos, criar um “iceberg”. (CHION, 1989, p. 113) A partir do Roteiro I, para que estas

características pudessem ser demonstradas, foi necessário criar e inserir as personagens

em situações que permitissem expressá-las.

Contudo, no Roteiro I é possível notar que a caracterização das personagens se vale com

muita frequência dos diálogos, enquanto no Roteiro II e no Roteiro III passa a se apoiar

mais nas ações e situações nas quais as personagens se encontram envolvidas. Cabe

destacar que isto não significa que o filme se torne menos dialogado, mas sim que a

caracterização das personagens se vale menos deste recurso para realizar-se.

Nesta perspectiva, Michel Chion sublinha que “um filme não deve descrever, mas

mostrar, o caráter das personagens. Devemos mostrar o caráter pela ação”. (1989, p.

227) Assim, apesar de o diálogo ser expressão fundamental do caráter ou perfil das

personagens, o roteiro de cinema não se pode apoiá-las unicamente na fala.

A impressão de ingenuidade que nos deixa a leitura de certos roteiros de iniciantes

deve-se ao fato de eles utilizarem os diálogos como meio de expor os pensamentos,

como se as personagens se abrissem sem reticências e com uma consciência total do

que vivem e sentem. (CHION, 1989, p. 101)

O movimento de contensão das falas, no Roteiro I, dá-se principalmente em relação às

personagens Tião e Otávio, de modo que não apenas se reduz o peso do diálogo na

definição de seus perfis, mas se reelabora determinadas situações nas quais eles se

encontram envolvidos.

Tião é a personagem mais discutida pelos roteiristas nos Argumentos, de modo que

muitas das características conferidas a ele no momento inicial da criação são

preservadas no Roteiro I, apesar do retorno ao núcleo dramático da peça. Além disto, no

primeiro tratamento de roteiro, diversas ações que no texto teatral eram narradas ou

simplesmente sugeridas, passam a ser encenadas. O movimento processual entre as

versões de roteiros ruma no sentido inverso, já que muitas das situações que passavam a

ser encenados no Roteiro I voltam a ser narrados ou a permanecer subentendidos no

Roteiro II e no Roteiro III.

Para Xavier, a narração ou apresentação sumária está relacionada ao “gesto do narrador

que resume extensões de tempo razoáveis (uma semana, um mês ou até anos na vida de

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um personagem ou de uma sociedade) em poucas páginas ou mesmo frases”, ao

contrário da cena, que é uma “forma de apresentação detalhada de uma situação

específica com unidade de espaço e continuidade de tempo.” (2003, p. 72) Uma

distinção análoga se dá entre o que permanece “subentendido” e o que é “encenado” na

narrativa. Novamente, seguindo Xavier: “É comum em qualquer discurso narrativo

distinguir entre o que se representa explicitamente e o que é apenas sugerido. Sem

nomear a ação ou fato, posso deixar subentendida sua ocorrência”. (2003, p. 74)

No Roteiro I Tião também fala muito sobre sua posição em relação à greve, sobre as

motivações e justificativas para suas atitudes, a exemplo do que acontece no texto

teatral. Estas falas vão sendo gradativamente reduzidas ao longo das versões.

Estas opções do diretor revelam possivelmente a preocupação em não abrir brechas, nos

roteiros, que justifiquem a opção de Tião por furar a greve, mas, ao mesmo tempo, de

não reduzi-lo à “encarnação do mal” na trama. Sua fala, seus argumentos contribuiriam

nessa direção, e talvez decorra disto a decisão de reduzi-los, uma vez que sua postura é

muito mais explícita na matriz datilografada do primeiro tratamento do que nas versões

seguintes. Os ajustes de Hirszman e Guarnieri concedem cada vez menos espaço verbal

e de encenação ao posicionamento ideológico de Tião, de modo que ele passa a explicar

menos suas atitudes com palavras, bem como a não revelar para o espectador todas as

experiências que vivencia.

No que tange à Otávio, podemos começar lembrando que esta personagem foi pouco

discutida e não ocupava lugar de destaque nos Argumentos, sendo no Roteiro I, em

razão da reaproximação ao texto teatral, que este volta a ser protagonista. No entanto o

perfil de Otávio, principalmente no que diz respeito a seu posicionamento político em

relação à organização dos operários e da greve, sofre alterações bastante significativas,

as quais estão diretamente relacionadas à realocação do movimento operário no centro

da trama. Deste modo, pode-se dizer que determinadas características da personagem

começam a ser desenvolvidas tardiamente em relação a outros aspectos da narrativa,

que já vinham sendo estruturados desde os Argumentos, como é o caso da personagem

de Tião. Parece natural, portanto que a personagem de Otávio, bem como as questões

políticas que a ele são associadas, criadas no Roteiro I, sejam “lapidadas” ao longo das

versões subsequentes, sofrendo alterações significativas por meio das rasuras.

O movimento mais significativo, neste sentido, tem relação com a questão já apontada

anteriormente do equilíbrio entre ação e diálogos buscado pelos roteiristas na

caracterização do perfil da personagem. Ao longo da elaboração das versões de roteiro,

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a postura política de Otávio passa a depender menos de um discurso evidentemente

político-didático, fundamentando-se mais nas suas ações. Cabe observar que,

diferentemente do que acontece com Tião, no caso de Otávio, apenas os diálogos

sofrem elisões, enquanto suas ações, principalmente aquelas decorrentes da expansão do

fio da greve no Roteiro I, permanecem sendo encenadas.

Estas modificações podem ser relacionadas, incialmente, ao anseio de Hirszman por

uma comunicação ampla e densa com Eles não usam black-tie. O diretor afirmou, em

entrevistas, que não gostaria que o filme se reduzisse a um panfleto político: “Não

queríamos fazer um cinema político convencional, com um discurso chatíssimo”; e

ainda: “O filme não faz propaganda. Ele é uma crítica. Seria muito tolo o Guarnieri e eu

cairmos no dogmatismo, enviando ao público mensagens prontinhas”. (HIRSZMAN,

1995, p. 55 e 57) (grifo nosso)

Por outro viés, transparece do percurso criativo, que num momento inicial os roteiristas

eles encharcaram o roteiro com discursos políticos e posições explícitas, como que para

deixar claro para si mesmos qual era a postura da personagem de Otávio, e de seu

opositor, Sartini, para depois reduzir a extensão e aliviar a carga político-didática de tais

discursos, integrando as posições políticas ao cotidiano das personagens.

Diferentemente do Roteiro I, em que os cortes e alterações significativos estão

relacionados principalmente a Otávio e Tião, no Roteiro II as ações e informações

eliminadas da trama estão relacionados principalmente ao perfil das personagens

secundárias. Este movimento, que afeta também personagens como Maria e Romana,

aponta para a preocupação primeira dos roteiristas como sendo para com Otávio e Tião

e, num segundo momento, para com o ajuste entre todas as personagens.

Apesar de inserir-se no contexto do deslocamento da caracterização das personagens

dos diálogos para as ações, este movimento também está relacionado à concisão da

narrativa. Como no Roteiro I foram eliminadas praticamente todas as cenas que não

agregavam informações ou ações essenciais para a trama, no Roteiro II os roteiristas

possivelmente voltaram-se às intrigas secundárias, na tentativa de reduzir a extensão do

roteiro e promover novo enxugamento narrativo.

A partir disto podemos imaginar que Hirszman e Guarnieri, na busca por concisão da

narrativa, num primeiro momento procuraram formas mais precisas de transmitir as

informações, contudo, possivelmente quando já não havia muito mais o que “enxugar”,

começaram a eliminar informações, e para tanto elegeram as ações e situações

secundárias, que não estavam diretamente relacionadas ao núcleo dramático.

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A partir destas considerações podemos afirmar, portanto, que o parece ter direcionado a

criação entre os Roteiros I, II e III é o anseio por concisão e precisão. Esta tendência

permeia todos os movimentos processuais elencados, desde a criação, detalhamento e

aprimoramento da decupagem, passando pelas operações de redução da extensão da

narrativa que conferem concisão à trama, até o balanceamento entre diálogos e ações

que caracterizam as personagens. O que não contribui com o desenvolvimento dos fios

principais da trama (e que poderia, assim, afrouxá-los) vai sendo eliminado, tornando a

narrativa concisa, lacônica e rigorosa.

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