o tempo como pena - ana messuti

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Ana Messuti TEMPO COMO PENA Tradução TADEU ANTONIO DIX SILVA MARIA CLARA VERONESI DE TOLEDO Prefácio ALBERTO SILVA FRANCO O EDITORA 1 4 1 REVISTA DOS TRIBUNAIS

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  • Ana Messuti

    TEMPO COMO PENA

    Traduo TADEU ANTONIO DIX SILVA

    MARIA CLARA VERONESI DE TOLEDO

    Prefcio ALBERTO SILVA FRANCO

    O

    EDITORA 1 4 1 REVISTA DOS TRIBUNAIS

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Messuti, Ana O tempo como pena / Ana Messuti ; traduo Tadeu Antonio Dix Silva, Maria

    Clara Veronesi de Toledo ; prefcio Alberto Silva Franco. - So Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2003.

    Bibliografia. ISBN 85-203-2441-X

    1. Penas (Direito penal) I. Franco, Alberto Silva. II Ttulo. 03-3701 CDU-343.24

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Tempo como pena : Direito penal 343.24

  • ANA MESSUTI

    OTEMPO COMO PENA Traduo

    TADHU ANTONIO DIX SILVA MARIA CLARA VERONESI DE TOLEDO

    Prefcio ALBERTO Sn VA FRANCO

    ED ITORA I \ i r REV I STA D O S T R I B U N A I S

  • O 1 E M P O U U M U rttrN A A N A MESSUTI

    Traduo: TADEU ANTONIO D I X SILVA MARIA CLARA VERONESI DE TOLEDO do livro em espanhol El tiempo como pena, Buenos Aires, Campomares Libros, 2001.

    desta edio: 2003 E D I T O R A R E V I S T A D O S T R I B U N A I S L T D A .

    Diretor Responsvel: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO Visite nosso site: www.rt.com.br CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11-2433 e-mail de atendimento ao consumidor: [email protected] Rua do Bosque, 820 Barra Funda Tel. (Oxxl 1) 3613-8400 Fax (Oxxl l ) 3613-8450 CEP 01136-000 - So Paulo, SP, Brasil

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    Prefcio: ALBERTO SILVA FRANCO

    Impresso no Brasil ( 0 9 - 2 0 0 3 ) ISBN 8 5 - 2 0 3 - 2 4 4 1 - X

  • PREFCIO DA EDIO BRASILEIRA

    Afinal de contas, qual o papel do prefaciador? o de ser a in-terface entre o autor e o leitor. Na realidade, uma pessoa convidada pelo autor para ser o canal de comunicao com quem v o livro ex-posto numa vitrine, esparramado entre outros sobre u'a mesa de li-vraria ou espremido numa estante. O nome do autor, quando ele nacionalmente famoso, torna o prefcio descartvel, porque o leitor adquire a obra fiando-se no que dele j conhece. Se isso no ocorrer, o ttulo ser o primeiro dado visual de atrao. O leitor apanha o li vro, l a quarta capa - quase sempre um pequeno resumo de seu con-tedo - , d uma vista d'olhos nas orelhas para colher dados sobre o autor e parte direto para a leitura do prefcio, que poder convenc-lo, ou no, do ato de compra. O prefaciador ocupa, na concretizao desse contrato de venda e compra, uma posio-chave. Se o prefcio for longo demais, rebarbativo, o leitor ficar cansado, interromper sua leitura e recolocar, livro no local de onde o tirou. Se for uma pea por demais avara, o prefcio no ter nenhuma valia e no con-vencer o leitor da necessidade de incluir o livro entre seus perten-ces. Saber a medida exata do prefcio, tornar transparente a pessoa do autor e contextualizar o contedo do livro constituem as tarefas e, porque no dizer, a angstia do prefaciador.

    Confesso, mui lealmente, que senti um frio na espinha quando li a mensagem na qual Ana Messuti me fazia o convite para ser o pre-faciador da traduo, em lngua portuguesa, de seu livro, O tempo como pena. Conhecia o texto; sabia de seu enorme valor em virtude da estreita correlao por ela estabelecida entre o direito penal e a filosofia de direito, e tinha lido o prefcio subscrito pelo maior pena-lista da Amrica Latina, Eugnio Ral Zaffaroni, com o qual o livro fora lanado na Argentina. Se tudo isso j no fosse, de antemo, suficiente para inibir-me na concretizao da tarefa solicitada, have-

  • 6 O TEMPO COMO PENA

    ria ainda a ser considerada a dolorosa situao poltico-penal brasi-leira. Por todos esses motivos, tentei, sem sucesso, demover Ana Messuti de seu chamamento. Ela foi intransigente e no pude, en-to, recusar o amvel mn^s.

    O ofcio de prefaciador encerra, sem dvida, duas exigncias bsicas: um breve relato sobre a pessoa do(a) autor(a) e uma exposi-o no aprofundada sobre o tema versado.

    Falar sobre Ana Messuti rememorar, antes de tudo, o momen-" to em que a vi, pela primeira vez, h alguns anos. O cenrio fcil de ser montado. Um encontro marcado, em Montevidu, para o lana-mento de um livro para o qual eu dera uma discreta contribuio. Um avio de carreira extremamente atrasado. Uma madrugada fria no ae-roporto da capital uruguaia. Ali, num canto, depois de horas e horas de espera, aguardava-me uma mulher esguia, envolvida numa longa echarpe, com os olhos encobertos por culos de aros grandes e com um largo sorriso na boca. No sei explicar, mas tive a ntida impres-so de que j a conhecia. De algum lugar. H algum tempo. Mesmo a dificuldade de expressar-me corretamente em lngua espanhola -no conseguia libertar-me do idioma italiano, que tinha aprendido um pouco nos tempos padovanos - no impediu a fluidez da conver-sa. Havia no ar uma atmosfera de empatia que, a partir de ento, tor-nou possvel estabelecer laos de amizade que foram solidificados nos encontros posteriores, em So Paulo, onde Ana Messuti, alm de dois cursos,-em ano.s seguidos, na Escola Paulista da Magistratu-ra, foi palestrante no Seminrio Internacional do IBCCRIM e, em Genebra, seu lugar de residncia. Ana Messuti argentina de nasci-mento; foi professora na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, onde iniciou sua carreira de docente em Filosofia de Direito; fez curso na Universidade de Roma, La Sapienza, e se espe-cializou na mesma disciplina, com especial nfase em filosofia, sob enfoque penal. Mora, h muitos anos, na Europa, trabalhando como funcionria das Naes Unidas primeiro em Viena e agora em Gene-bra. Tem inmeras publicaes em revistas especializadas.

    Trata-se de pessoa que, apesar de seu reconhecido saber, no perdeu a simplicidade do trato, a lhaneza de atitudes, a espontanei-dade na maneira de ser, falar e agir, o cariz poltico de seu pensamen-

    -

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  • PREFCIO DA EDIO BRASILEIRA 7

    to e a capacidade de sustentar o dilogo democrtico. Conversar com Ana Messuti sempre o exerccio prazeroso de manter contato com um ser humano de grande sensibilidade e boa oportunidade de apren-dizagem de conceitos que no ficam encapsulados em determinados setores do direito, mas esto franqueados sempre a uma viso de lar-go espectro, sem preocupao com armaes sistemticas.

    Espao e tempo so dois desses conceitos que desfrutam de mul-tifacetada percepo na natureza e na sociedade e no se submetem a uma perspectiva meramente intuitiva. Um e outro apresentam uma extraordinria complexidade e provocam reflexes, em contnua mutao, sobre os respectivos significados sociais. No mundo glo-balizado, por exemplo, como observa Manuel Castells, "tanto o es-pao quanto o tempo esto sendo transformados sob o efeito combi nado do paradigma da tecnologia da informao e das formas e pro cessos sociais induzidos pelo processo atual de transformao his trica".1 No importa onde se deu o fato: o sistema tecnolgico de comunicao tem capacidade de transmiti-lo, ao mesmo tempo, para todo o mundo. Espao e tempo compartilham um entrosamento no nvel do absoluto. Quem no se recorda de 11 de setembro de 2001 ? As tevs estavam ligadas desde a notcia de que um avio se chocara contra uma das Torres Gmeas em Nova York, e os telespectadores, no mundo inteiro, presenciaram o segundo ataque contra a outra Torre. Espao e tempo concomitantes. Quem no assistiu guerra preven-tiva movida pelos Estados Unidos contra o Iraque e no acompanhou, momento a momento, a destruio de Bagd, por misses teleguia-dos e bombas lanadas por avies ultra modernos? Espao e tempo conectados. E no isso o que ocorre tambm no mercado de capi-tais? Um simples toque de uma tecla de computador no suficiente para mudar a direo do mercado financeiro e desequilibrar, de modo funesto, a economia de um pas distante? Espao e tempo em sincro-nia. No sem razo que se defende, na sociedade em rede, um des-dobramento do conceito de espao. De um lado, o espao dinmico, o chamado espao de fluxos: "fluxos de capital, fluxos da informa-o, fluxos da tecnologia, fluxos de interao organizacional, flu-

    ( " Castel ls , M a n u e l , Sociedade em rede, t rad . R o n e i d e Venancio Ma je r , S o Paulo, Edi to ra Paz e Terra , 2000 , v o l . l , p. 404 .

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    xos de imagens, sons e smbolos(...) Nesse caso, o suporte material dos processos dominantes em nossas sociedades ser o conjunto de elementos que sustentam esses fluxos e propiciam a possibilidade material de sua articulao em tempo simultneo". 2 De outro, o es-pao esttico, ou seja, o espao de lugar no qual a organizao do espao se funda na experincia comum. "A grande maioria das pes-soas nas sociedades tradicionais, bem como i&s desenvolvidas, vive em lugares e, portanto, percebe seu espao com base no lugar. Um lugar um local cuja forma, funo e significado so independentes dentro das fronteiras da contigidade fsica". 3

    Ana Messuti cuida das categorias tempo e espao, no no enfo-que do mundo globalizado - "espao tempo cristalizado" - , 4 mas sob a tica dessas categorias no mundo penal, ou, de modo mais con-creto, na ponta final do sistema penal, ou seja, na execuo da pena privativa de liberdade. Aqui, o espao e tempo adquirem significa-dos e valores diversos. O espao no prevalecer sobre o tempo, como na sociedade globalizada da atualidade, mas fora de dvida que as duas dimenses, forosamente, se inter-relacionam embora o tem-po assuma, nesse contexto, valor mais expressivo.

    A priso o lugar da excluso. Nela vivem os que foram expulsos da sociedade, sob fundamento de que praticaram fatos merecedores de reprovao. Seus muros delimitam as fronteiras com o mundo ex-terno e impedem a comunicao com os que se encontram do lado de fora. H na priso um distanciamento, uma separao fsica, um hiato em relao comunidade social como um todo. Em resumo, uma ruptura do contexto social. Mas quem se encontra na priso? Algum condenado a cumprir, em tal lugar, uma pena privativa de liberdade durante um determinado tempo. O tempo, portanto, mais do que o espao, apresenta-se, no dizer de Ana Messuti, como "o verdadeiro significante da pena". Mas a que tempo a autora alude? Ao tempo medido? Ou durao do tempo? Enquanto o espao , em si mesmo, mensurvel, o tempo apresenta uma categorizao natural, "uma or-dem de sucesses" que se subdivide em segundos, minutos, horas, dias,

    < 2 ) Castells, Manuel, op. cit., p. 436. < 3 ) Castells, Manuel, op. cit., p. 447. 141 Castells, Manuel, op. cit., p. 435.

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    meses e anos. Em se tratando de pena privativa de liberdade, a medida natural do tempo no serve, portanto, para determin-la com a neces-sria exatido. Se isso exato e se o tempo da pena no pode ficar merc da impreciso, mister que se fixe sua durao. A pena deve ter um lapso de tempo previamente determinado: deve ter uma extenso temporal que corresponda a determinada intensidade. S assim ser possvel referenciar a pena intensidade da leso provocada, ou seja, gravidade da conduta criminosa. O quantum de tmpo que a norma jurdica estipula a durao abstrata e objetiva da pena. E o tempo de pena, posto sob medida, expressa to somente "a extenso e o nme-ro". E o tempo que a sociedade estatui para que o delinqente fique excludo do espao social e deixe de participar do tempo social no qual transcorre a vida cotidiana. Para quem estiver imobilizado na priso, no entanto, a qualidade do tempo totalmente diversa. O tempo de pena tem significados diferentes na vida cotidiana e na vida na priso. Naquela, esse tempo constitui algo totalmente indiferente; nesta, o tempo de pena incorpora-se vida do condenado. A o tempo de pena no apenas o fluir do tempo natural: o tempo de pena vivido por um ser concreto, de carne, de ossos e de sangue. E o SEU tempo de pena, o SEU tempo existencial. Como enfatiza Ana Messuti, se "cada pes-soa sente por si mesma tambm viver, por si mesma, a pena, como uma experincia intransfervel, nica. Ainda que a pena esteja previs-ta e quantificada, de modo uniforme, objetivo, cada um a viver como prpria. Cada um viver sua prpria pena".

    O pensamento penetrante de Ana Messuti vai muito alm da abre-viada sntese formulada nesta proposta de apresentao de seu livro e demanda um exame atento do leitor. Alm do tema central contido em tempo como pena, Ana Messuti desenvolve, no mesmo livro, ou-tros trabalhos complementares como "Piranesi, o espao, o tempo e a pena"; "A vtima e o 'no-sujeito de direito'"; "Direito penal e di-reitos humanos"; "O terceiro: uma interpretao" e "Reflexes so-bre o pensamento penal", todos eles focados no "perguntar filosfi-co" endereado ao direito penal.

    Esse "perguntar filosfico" vemacalharno atual momento, quan-do se questiona o sentido que se empresta ao controle penal. O scu-lo XXI perdeu, de pronto, seu valor simblico. No trouxe nenhuma novidade ou transformao. Ao longo de seus trs primeiros anos,

  • 10 O TEMPO COMO PEiN A

    reforou a sociedade do espetculo proveniente da ltima dcada do sculo passado, sociedade esta que dramatiza a violncia e banaliza a vida humana. Os efeitos do ingresso do Brasil, no processo de glo-balizao, no cessaram; antes, sofreram um gritante e visvel agra-vamento: o Estado-nao continuou a minguar; as polticas pbli-cas ficaram cada vez mais na dependncia exclusiva das agncias fi-nanceiras internacionais; os vrios ramos do Direito sofreram um forte processo de flexibilizao; a excluso social aumentou num percen-tual aterrador. S o controle penal persistiu com rigor e abrangncia, estimulado num ritmo sem precedentes pelos meios de comunica-o social. Normas penais entraram, a todo vapor, na linha de produ-o da fbrica legislativa e, com elas, as penas se tornaram mais exas-perantes e as garantias processuais, de modo ostensivo, se deteriora-ram. No preciso muito pensar para encontrar uma explicao con-vincente para o maior rigor punitivo: de um lado, a necessidade de di fundir o medo e o conformismo em relao aos descartveis do pro-cesso globalizador, aos excludos, aos ninguns; e, de outro, a ne-cessidade de punir expansivamente a falta de lealdade ao sistema de mercado e, desse modo, buscar a sua preservao antepondo-o aos valores, direitos e garantias do cidado. Em resumo, fortaleceu-se a idia de um Estado-nao que se comporta, de modo transigente e malevel para fora, ou seja para o mercado mundial e se mostra au-toritrio, quando no arbitrrio e desumano, para dentro, ou seja, para a sociedade dos excludos. Liberdade, democracia, garantias penais e processuais so palavras de uso desfocado no vocabulrio do mer-cado. Segurana a palavra-chave que veio em substituio, escrita em letras maisculas. A sndrome da insegurana e do medo tomou conta de todos os meios massivos de comunicao e, por via de con-seqncia, contagiou a populao. O poder poltico aprestou-se para produzir mais tipos penais, mais agravaes de sanes punitivas, mais regimes disciplinares violentos e despropositados, como se a legislao penal pudesse ter o efeito mgico de resolver conflitos so-ciais, de reduzir a violncia ou de dar sossego opinio pblica. Cor-ruptissima Republica, plurimae leges, j dizia Tcito, h sculos. 5 Apesar do hipcrita posicionamento do poder poltico, o crime or-

    ( 5 > Tcito, Annale, III, 27.

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    ganizado persiste sem uma adequada definio legal; a corrupo inrcia todos os poderes do Estado; e a ineficcia o trao caracte-rstico do poder punitivo. A proposta de uma luta sem trguas con-tra o crime e uma cruzada implacvel contra o criminoso; enfujj, a adoo de uma linguagem blica serve apenas para legitimar, como afirmam Zaffaroni e Nilo Batista, "o exerccio do poder punitivo $or via da absolutizao do valor segurana". 6 E, ento, o Estado Social e Democrtico de Direito ser definitivamente eliminado pelo Estado de polcia.

    A abordagem filosfica de que Ana Messuti lana mo em seu tempo como pena abre horizontes para efeito de aclarar as muitas indagaes e as profundas perplexidades que ensejam os rumos do direito penal da atualidade. No tenho dvida em dizer que seu "per-guntar filosfico" flui na contra marcha do pensamento em voga, mas , sem dvida, uma nova abertura que identifica Ana Messuti como a caminhante de que fala o poeta Antonio Machado: 7

    "Caminante, son tus huellas el camino, y nada ms; caminante, no hay camino, se hace camino al andar."

    ALBERTO SILVA FRANCO

    Zaffaroni, E. Ral e Batista, Nilo, Direito penal brasileiro. Rio de Ja-neiro, Revan, 2003, vol. 1, p. 59.

  • PREFCIO DA EDIO ARGENTINA

    bastante alentador 1er um livro em cujas pginas a filosofia do direito aproxima-se do direito penal e questiona seus conceitos. Isso no comum em nossos dias. Com certeza a literatura penal no re-parar nele e continuar em seu caminho com a soberba dos bises que correm para o abismo. Leitor: tens em tuas mos um livro contra a corrente. Custa nadar - 1er ou pensar - contra a corrente, porm vale a pena faz-lo quando esta te leva at uma altssima catarata que termina em um fundo de pedras pontiagudas.

    Ana Messuti contribui ao explicar que h um mundo do direito penal, do mesmo modo que h um mundo do esquizofrnico, que bastante impenetrvel e pouco explicvel para o extraneus. Ns, os penalistas, o conhecemos, transitamos por suas cidades fantasma-gricas, suas paisagens de plstico, pousamos nosso olhar sobre suas rvores de papelo e seus animais cnicos, e tambm sabemos que tudo isto impede a viso de um espao ermo, onde a vida se esgotou antes de nascer.

    Este o mundo penal, onde o tempo medido a partir do tempo de ningum, onde se priva do tempo a um humano que se constri como no-humano, porque se pressupe que, antes de cometer um delito, l ele o cdigo penal para saber por quanto tempo de oferta ao mercado poder ser privado e se determina isso de acordo por meio de um clculo de rentabilidade e de risco. Se apena um humano que no existe nem nunca existiu e que, caso existisse, seria claramente um psictico inimputvel e no poderia ser apenado.

    No mundo penal, apena-se um humanide artificial porque le-sionou uma pessoa, mas esta no ouvida, esta pessoa despojada de sua leso. No mundo penal, a leso sofrida pelo senhor (Estado, repblica, monarca- aquele que manda) e a vtima apenas um dado, uma prova, que se no se ajusta a esse papel, est obrigada e coagida

  • 14 O TEMPO COMO PEiN A

    a comparecer, inclusive com o mesmo tratamento dado ao seu ofen-sor. Em sntese: o ofensor no a pessoa que ofendeu, mas algum que estrutura a retorta alqumica do direito penal, e a vtima no a pessoa ofendida, mas um dado que mister tra|er ao processo; a v-tima no mais pessoa, uma prova.

    Entre estes robticos engenhos do mundo penal, aparece um su-posto terceiro, que o juiz. Este toma os fantoches penais como par-tes e ilude-se pensando ser o terceiro que faz a justia. Retribui o mal ao ofensor como uma necessidade absoluta, e cr que com isso res-taura o direito, volta no tempo, elimina o morto, o lesionado, o ultra-jado. J no houve morte, leso, ultraje por obra de sua retribuio. O terceiro onipotente e ainda que atue em nome do Estado, o faz com se fosse emissrio do divino. Pior ainda se decidir olhar adiante e ter a alucinao de que sua misso a do sistema imunolgico da sociedade, pois, nesse caso, vislumbrar para si uma identidade leu-cocitria.

    Os Direitos Humanos ficam a salvo, ou seja, ningum tem a ou-sadia de violar os Direitos Humanos das estruturas penais, mas to-dos se desinteressam dos direitos das pessoas envolvidas, porque estas ficam fora do mundo penal.

    Leitor amigo (ou inimigo): no sou ningum para dar-te conse-lhos, mas, por ser um antigo cliente das tabernas penais, costumo faz-lo. Se trabalhas com o direito penal, vais bem em tua carreira e avanas burocraticamente, melhor que termines aqui a leitura des-te livro, que apenas pode perturbar o brilhante futuro que te oferece o mundo de fantasia do direito penal. Se no te dedicas ao direito penal, ou se o fazes, e te encontras insatisfeito nesse mundo, reco-mendo que o leias. Talvez, ao virar a ltima pgina, sintas a tentao de abandonar o direito penal. No te confundas: no se trata de dei-xar o direito penal, mas o mundo do direito penal. A chave est em tratar de reconstruir o direito penal a partir do lado de fora desse mundo. E para isso este livro deve ser lido.

    EUGNIO RAL ZAFFARONI Diretor do Departamento de Direito Penal

    e Criminologia da Universidade de Buenos Aires.

  • SUMRIO

    PREFCIO DA EDIO BRASILEIRA - A l b e r t o Silva FRANCO ... 5 PREFCIO DA EDIO ARGENTINA - EUGNIO Ral Z a f f a -

    RONI 13

    INTRODUO 17 1. O TEMPO COMO PENA 19

    1.1 Pena e retribuio 19 1.2 A medida 24 1.3 Relao entre delito e pena 25 1.4 A pena de priso 27 1.5 O lugar 27 1.6 O tempo 33 1.7 Outro tipo de medida 35 1.8 Delito e tempo 37 1.9 Priso e morte 38 1.10 Templum, tempus 41 1.11 O tempo da pena 42 1.12 Concluso 46

    2. PIRANESI, O ESPAO, O TEMPO E A PENA 51 Concluso 61

    3. A VTIMA E O "NO SUJEITO DE DIREITO" 71 4. DIREITO PENAL E DIREITOS HUMANOS: os crculos her-

    menuticos da pena 79 5. O TERCEIRO: UMA INTERPRETAO 97

  • O TEMPO COMO PENA 16

    REFLEXES SOBRE O PENSAMENTO PENAL 6.1 Algumas reflexes

  • INTRODUO

    Em todas as disciplinas h certas esferas de franca contigida-de com outras disciplinas. Ao atuar nessas esferas ignorando essa contigidade, corre-se o risco de asfixiar a prpria disciplina, de fechar uma vlvula de comunicao que no s a enriqueceria, mas tambm lhe proporcionaria a perspectiva necessria para compre-ender a si mesma.

    Para a filosofia, um dos temas mais inquietantes, mais profundos, o tempo. Para o direito, a continuidade no tempo das relaes que regula um dos objetivos primordiais. Para o direito penal, o tempo a medida de uma pena que se converteu praticamente na pena por ex-celncia: a priso. E, fechando o crculo, uma das disciplinas mais conflitivas, mais merecedoras de reflexo da filosofia do direito, o direito penal. Todas estas perspectivas confluem no ser humano, cuja temporalidade a sua prpria vida e de cuja temporalidade se cuida.

    Proponho a relao tempo-pena desde de um ponto de vista re-tributivo, visto que apenas essa perspectiva oferece clareza para as anlises da medida da pena, que o fio condutor destes trabalhos.

    Inicio pela medida da pena, o clculo da durao da pena, ou seja, o pensamento calculante, a fim de que este pensamento - que o pen-samento admitido e requerido em nossa vida diria - nos leve a outro, ao pensamento meditante, o pensamento que reflexiona e aprofunda.

    Talvez minha contribuio se limite a mostrar a dimenso filo-sfica do direito penal, a necessidade de meditar sobre os problemas ticos que nos apresenta. Porque sem dvida alguma, se o direito tem uma esfera de contigidade com a filosofia, uma esfera que precisa ser iluminada pelo pensamento filosfico, essa esfera o direito penal.

    A N A MESSUTI

  • 1

    O TEMPO COMO PENA

    SUMRIO: 1.1 Pena e retribuio - 1.2 A medida - 1.3 Rela-o entre delito e pena - 1.4 A pena de priso - 1.5 O lugar -1.6 O tempo - 1.7 Outro tipo de medida - 1.8 Delito e tempo 1.9 Priso e morte -1 .10 Templum, tempus - 1.11 O tempo da pena - 1.12 Concluso.

    1.1 Pena e retribuio A multiplicidade de teorias que pretendem justificar a pena re-

    vela o profundo problema de conscincia que esta instituio susci-ta. A pena um exemplo de "m conscincia".

    E natural que o causar um mal ao prximo desperte um senti-mento de culpa e, por conseguinte, a necessidade de explicar as ra-zes que tenham levado a agir desse modo. Praticamente todas as teorias que foram elaboradas em torno da pena buscam justific-la" demonstrando que esta consiste apenas num meio que leva a um fim - qualificado como um bem.

    Todavia, a pena corresponde a sentimentos muito arraigados, como o sentimento de culpa que aparentemente desperta.

    Benveniste assinala que a origem do termo em grego era poine, que correspondia exatamente ao significado de vingana, dio: a re-tribuio destinada a compensar um crime, a expiao de sangue. Da que tambm se d a transposio afetiva em dio, vingana con-siderada como retribuio.1

    Benveniste, E., Le vocabulaire des institutions indoeuropennes, Paris, Les ditions de Minuit, 1969, vol. 1, p. 68.

  • 2 0 O TEMPO COMO PEiN A

    O conceito de retribuio tem uma importncia fundamental para a vida social, responde estrutura do intercmbio, sem a qual a vida social no existiria. Cada prestao d lugar a uma contraprestao. E, ao aceitar com todf naturalidade que a prestao qualificada como positiva d lugar a uma contraprestao qualificada como positiva, haveria tambm que se aceitar que uma prestao negativa d lugar a uma contraprestao negativa.

    Ao basear a pena no intercmbio, como u?na parte deste, ou seja, uma das prestaes que o integram, deve-se considerar que a pena se d e no se aplica. Isto seria vlido no caso em que se tra-tasse de uma relao sujeito-objeto, na qual o sujeito aplicaria de-terminada coisa ao objeto. Entre dois sujeitos s admissvel que um d e o outro receba, e vice-versa. O dar e o receber tm uma raiz etimolgica comum: Benveniste considera que esta raiz "do" no significava exatamente nem dar nem receber, mas tanto um ou como outro, segundo a construo do termo. 2 Assim como na vida eco-nmica este dar e receber sucede-se harmonicamente, na vida so-cial e jurdica tambm.

    Esta reciprocidade das prestaes to indissolvel da vida so-cial que a mesma palavra comunidade a compreende. Com efeito, em munus se encontra o conceito de dever, funo, mas tambm fa-vor, e com-munis significa literalmente "quem participa nos munia ou munera"? certo que h uma obrigao de dar na medida em que se recebe, e aqueles que participam neste dar e receber formam parte da comunidade." Desse modo, a idia de retribuio inerente vida social. Responde a determinada simetria das prestaes, que permi-te o equilbrio do sistema. Estabelecer as normas de comportamento entre os indivduos significa respeitar essa simetria.

    Por isto, quando algum causa um dano a outro, preciso re-parar esse dano. Mas, como a comunidade de pessoas no um sis-tema mecnico, mas social, tem uma histria, e como a histria irreversvel e no pode dar marcha-r, no possvel recolocar as

    1 2 1 Benveniste, E., Don et change dans le vocabulaire indoeuropen, L'anne sociologique, III srie, 1948-1949, p. 8.

    < 3 ) Benveniste, E., op. cit., p. 15.

  • O TEMPO COMO PENA 2 1

    coisas em seu lugar, impor a simetria restabelecendo simplesmen-te a situao anterior.4

    No entanto, ainda que esta reparao fosse plenamente possvel, o equilbrio estaria restabelecido somente em parte, pois, a menos que a reparao constitusse ao mesmo tempo uma pena para o autor do delito, por si s no bastaria para restabelecer o equilbrio perdido. Porque este no se esgota em relaes interpessoais. O delito no s constitui uma leso a um dos membros da comunidade de pessoas, mas lei dessa comunidade de pessoas. Altera o equilbrio em dois planos: o individual e o social. A reparao pertencente ao primeiro e a retribuio ao segundo. Esta concepo juridicamente pura da pena, ou seja, desprovida de toda valorizao alheia prpria violao da ordem jurdica , por exemplo, a de Hegel: "... o que importa que o delito deve ser eliminado no como o surgimento de um mal, mas como leso do direito como direito, e ento preciso averiguar qual a exis-tncia que tem o delito e como deve ser eliminado". 5

    Ou seja, independentemente do mal que haja causado, o delito deve anular-se porque em si mesmo um mal. A reparao de suas conseqncias no constitui a pena. Embora possa ocorrer uma coin-cidncia de fato, esta coincidncia nunca conceituai. Por isso pergunta de Nietzsche - "como pode o 'fazer sofrer' ser uma repara-o?" 6 - cabe responder que o "fazer sofrer" da pena no visa repa-rar, mas castigar.

    Da que se deva distinguir entre os dois conceitos: reparao e retribuio. A principal finalidade da retribuio parece ser reafir-mar determinada situao considerada justa, adequada, ou simples-mente desejada, que tenha sido ameaada ou modificada por um ato no desejado. 7

    ( 4 ) Mathieu, V., Perch punirei Milano, Rusconi, 1978, p. 126. < 5 1 Hegel, G. W. F., Fundamentos de Ia filosofia dei derecho. Buenos

    Aires, Siglo Veinte, p. 127. ( 6 > Nietzsche, F., Genealogia delia morale, trad. it. de F. Masini, Cies

    (TN), Mondadori, 1979, p. 49. < 7' Mackenzie, M. M., Plato, on punishment, Califrnia, University of

    Califrnia Press, 1985, p. 25-26.

  • 2 2 O TEMPO COMO PEiN A

    Na realidade, a situao, como conseqncia do delito, no foi apenas ameaada, mas alterada. A retribuio supe a volta do justo equilbrio das coisas, considerado em funo do que ocorre ao agen-te e no em funo do que se restitui vtima.8

    A distino entre o que corresponde vtima e o que correspon-de ao delinqente imprescindvel para definir a pena. O que corres-ponde vtima fundamenta-se no direito desta a receber uma repara-o pelo dano sofrido. Mas a pena, como correspondente ao delin-qente, funda-se tambm em um direito, que por sua vez um dever no s da vtima, mas da comunidade de pessoas, porque a comuni-dade de pessoas converte-se dessa forma na destinatria indireta de toda leso sofrida por uma pessoa, posto que considera que cada le-so a uma pessoa ameaa, pe em perigo, toda a comunidade. Da que no s interessa "aquilo que se restitui vtima" mas, principal-mente "aquilo que sucede ao agente".

    E o que acontece ao autor do delito precisamente a pena como retribuio da comunidade de pessoas que se viu ameaada pelo seu ato. E a retribuio da pena uma retribuio negativa, porque pre-tende negar o delito.

    Portanto, se a reao que supe a retribuio se origina de uma leso a uma pessoa, no tambm contraditrio que a mesma comu-nidade de pessoas, mediante a pena, inflija um mal pessoa do de-linqente? Durkheim assinala esta contradio como uma das cau-sas da suavizao das penas. H, diz ele, uma verdadeira e irremedi-vel contradio no ato de vingar a dignidade humana ofendida na pessoa da vtima, violando-a na pessoa do culpado. 9

    Mas, observa este autor, a contradio irremedivel e, dado que no pode ser eliminada, tem levado a suavizar as penas, pois o delin-qente, como pessoa, tambm merece o respeito da comunidade de pessoas. Uma possvel soluo seria considerar que a pena no sig-nifica "violar a dignidade humana" do delinqente, mas, ao contr-rio, respeit-la, considerando-o um ser racional que recebe o que

    Mackenzie, M. M., Plato, on punishment..., cit., p. 232. Durkheim, E., Deux lois de L'volution pnale, L'Anne Sociologi-que., IV srie, 1899-1900, p. 90.

  • O TEMPO COMO PENA 2 3

    merece segundo seus atos. Assim se justificaria a pena em funo da simetria necessria para a vida social.

    Alm disso, essa "violao da dignidade humana" - para empre-gar as palavras de Durkheim - consiste, sobretudo, na negao de uma vontade. Desde a perspectiva retributiva, a negao dessa vontade imprescindvel para a existncia da comunidade de pessoas, porque essa vontade tem-se manifestado contrria a ela. A comunidade de pesscfos deve reafirmar-se ante cada manifestao de uma vontade que pretenda neg-la, dando uma resposta uniforme, nica e ltima. Sua contraprestao o elo final da cadeia. No d lugar a outra prestao. E este carter de ltima prestao nasce da desigualdade que existe entre os sujeitos do intercmbio no qual intervm a pena.

    "Com respeito a teus pais - e o mesmo diramos a respeito de teu amo, se o tivesses - no dispunhas de uma igualdade de direitos que te permitia trat-los da mesma forma que eles a ti; no podias pois, ainda que falassem mal de ti, falar mal deles, nem golpe-los, ainda que te golpeassem etc. Como ento desfrutars essa igualdade com respeito tua ptria e suas leis?" 1 0

    No h igualdade de direitos entre a comunidade de pessoas e cada um de seus membros. Por isso, quando a comunidade "gol-peia", no h um "golpe" em troca. Por esta razo, a pena pena e no vingana.

    A vingana encerra o perigo de outra relao de desigualdade no apenas entre os sujeitos mas entre as prestaes. Porque a vin-gana exerce-a o ofendido, e ao ofendido o dano se apresenta, no em sua limitao quantitativa e qualitativa, mas apenas como dano em geral, e ao retribuir pode exceder-se, o que levaria outra vez a um novo dano."

    Uma das razes de ser desta relao em que se inscreve a pena a necessidade de que se retribua respeitando certas regras quantitati-

    ( 1 0 > Plato, Critn o dei deber, 50 d. Obras completas, Madrid, Aguillar, 1969.

    "" Hegel, G. W. F., Lineamenti di filosofia dei diritto, trad. it. de F. Messineo, Bari, Laterza, 1994, Aggiunte compilate da E. Gans, 65, Al 102.

  • 2 4 O TEMPO COMO PEiN A

    vas e qualitativas, que haja contraprestao e no uma nova presta-o que no guarde relao com a primeira.

    1.2 A medida Benveniste indica que a raiz med no se refere a uma medida

    no sentido de medio (para a qual existe a raiz me, donde provm mensis, ms, medida de dimenso) mas medida que se impe s coisas. No se trata de " m e t i o r m a s de "moderari", ou seja, de submeter a medida. Comparando-a com a acepo de medida de dimenso, diz: "Ns vemos algo muito diferente em "modus": uma medida de constrio, que supe uma reflexo, premeditao, e se aplica a uma situao desordenada". 1 2 Nesta definio temos v-rios elementos: por um lado, limitao, reflexo, deliberao; por outro, uma situao desordenada.

    No tema que nos ocupa, a situao desordenada que provocou o delito, apenas com sua existncia, exige que a segunda prestao seja produto de uma deliberao, reflexo, assim como o a resposta a uma pergunta. Pelo simples fato de ser resposta, contraprestao, a pena leva em si certa medida. Alm disso, pretende, porque nisso consiste, impor medida, submeter medida determinada situao. Mas no a uma medida arbitrria, e sim a uma medida j estabeleci-da. Por isso podemos dizer, com S. Cotta, que a pena um ato que rene os trs tipos de medidas seguintes: uma medida interna ao ato, pela qual se d um atuar com certa medida; uma medida externa, pela qual se d um atuar segundo certa medida; e a medida final, que o ato est destinado a introduzir. 1 3

    S. Cotta refere-se pena como o ato que rene esses trs tipos de medidas, porque, ao seguir previamente determinado procedimen-to, evidente que respeita determinados limites. Tratar-se-ia, pois, de um ato com medida ("atto automisurantesi"); contudo, o autor assinala que este carter dado tambm pela necessidade de que guarde certa proporo relativamente ao ato pelo qual responde. E,

    ( , 2 ) Benveniste, E., op. cit., vol. 2, p. 128. "" Cotta, S., Perch la violenzal Japadre, L. U. L'Aquila, 1978, p. 76.

  • O TEMPO COMO PENA 2 5

    quanto ao segundo tipo, a medida segundo a qual se exerce o ato, estaria dada pelas normas penais (consistiria na "misura esterna all'atto"). E tambm teria uma medida orientada a uma^finalidade, reequilibrar as posies. 1 4

    Por isso, distingue-se o ato da pena do ato que a antecede, ainda que exteriormente sejam dois atos idnticos. Como o sacrifcio, con-siste em um ato violento, mas a sua violncia no a mesma que o provoca. "Nada mais diverso que estas duas gotas de sangue e, no entanto, nada mais similar." metfora com que Girard refere-se ao sacrifcio aplicvel pena. E uma mesma substncia a que mancha e a que purifica, h uma aparente identidade entre o mal e o rem-dio. 1 5 Mas, apesar dessa identidade aparente, a pena e o delito se contrapem em virtude da presena ou ausncia de medida, dessa medida que tambm um moderari: restabelecer um equilbrio. Pois ali onde falta a prestao correspondente, h uma situao de desequi-lbrio, que preciso corrigir para restabelecer a normalidade perdida.

    Portanto, parte da medida do ato no qual consiste a pena ser dada pela relao que guarda com o delito.

    1.3 Relao entre delito e pena Sua manifestao mais simples seria a lei de talio. Mas desde

    um ponto de vista prtico, esta leva a situaes absurdas (furto por furto, roubo por roubo, olho por olho, dente por dente...).

    A dificuldade que deriva da busca de uma igualdade entre os atos encontrar-se-ia tambm no intercmbio no qual se funda a vida social. O intercmbio requer uma operao intelectual que v alm da aparncia exterior das coisas e dos atos e encontre um elemento que permita compar-los. E preciso superar a igualdade especfica e a natureza imediata da coisa. "Somente, segundo este ltimo as-pecto [a forma exterior especfica do castigo], o roubo, o furto, a multa e a pena de priso so totalmente diferentes; mas segundo

    < 1 4 ) Cotta, S., Perch la violenzal..., cit., p. 96. < 1 5 > Girard, R., La violenza e il sacro, trad. it. de O. Fatica e E. Czerkl,

    Milano, Adelphi, 1980, p. 58 e 59.

  • 2 6 O TEMPO COMO PEiN A

    seu valor, sua propriedade geral de ser violaes [leses], encon-tra-se o elemento comparvel." 1 6

    Precisamente possvel que se realize o intercmbio entre deli-to e pena, porque ambos tm um mesmo valor negativo, sua proprie-dade geral de ser leses. Por isso, a pena como retribuio a um mal no pode ser seno um mal. Do contrrio, como seria possvel com-parar um mal com um bem?

    No entanto, uma vez encontrado o elemento comum que permite estabelecer a relao de intercmbio, preciso encontrar uma propor-o entre essas prestaes, proporo que, como temos visto, no pode basear-se na mera igualdade. O ato com a medida da pena define-se assim, entre outras coisas, pela proporo que guarda com o que o precede e causa. 1 7 "Se a geometria fosse adaptvel s infinitas e obs-curas combinaes das aes humanas, deveria existir uma escala correspondente de penas em que se graduassem desde a maior at a menos dura", 1 8 aconselhava Beccaria. No obstante, sucedeu o con-trrio: ante a grande variedade de atos que podem constituir um delito, a resposta foi-se uniformizando pouco a pouco, at converter-se prati-camente em uma s. Uma vez descoberta a igualdade interna, ou seja, a propriedade geral de ser leses, ante a grande diversidade com que se manifestam as leses que constituem delito, ope-se como pena qua-se sempre uma mesma leso. "De maneira que se eu tiver trado o meu pas, vou para a priso; se matei meu pai, vou para a priso; todos os delitos imaginveis so castigados do modo mais uniforme. Parece-me ver um mdico que para todos os males emprega o mesmo remdio". 1 9

    Hegel, G. W. F., op. cit., p. 129 e 130. 0 7 1 "C'est le triomphe de la libert, lorsque .les lois criminelles tirent

    chaque peine de la nature particulire du crime. Tout l'arbitraire cesse; la peine ne descend point du caprice du lgislateur, mais de la nature de la chose; et ce n'est point l'homme qui fait violence l'homme." (Montesquieu, De l'esprit des lois, Paris, Garnier-Flam-marion, 1979, 1, XII, captulo IV, p. 329). Tambm Beccaria dedica um captulo "Proporcione fra i delitti e le pene". Beccaria, C., De los delitos y de las penas, Madrid, Alianza Edito-rial, 1995, p. 36.

    "" Chabroud, C., Archives parlementaires, tomo XXVI, p. 618, citado por M. Foucault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, p. 138.

  • O TEMPO COMO PENA 2 7

    Produz-se um fenmeno semelhante apario da moeda nas relaes comerciais. Nesse sentido, Foucault faz notar que a priso oferece uma certa clareza jurdica, pois permite quantificar exata-mente a pena em funo do tempo. "H uma forma-salrio da priso que constitui, nas sociedades industriais, sua 'evidncia' econmi-ca. E permite que ela apresente-se como uma reparao". Com efei-to, ao apropriar-se do tempo do condenado, a priso parece traduzir concretamente que o delito lesionou no s a vtima mas a sociedade inteira. "Evidncia econmico-moral de uma penalidade que calcu-la os castigos em dias, meses, anos, e que estabelece equivalncias quantitativas: delito-durao". 2 0

    1.4 A pena de priso A definio da pena de priso que Hobbes oferece a seguinte:

    "por esta palavra, 'priso', entendo toda limitao do movimento cau sado por um obstculo externo". 2 1 E uma definio ampla que, como explica em seguida, compreende no s a priso propriamente dita, mas tambm a deportao ou exlio, as gals, as pedreiras e minas, ou simplesmente os grilhes. Ocupar-nos-emos da pena de priso pro-priamente dita, que a nica que permanece at hoje, pois a uniformi-zao da pena consistiu tambm na uniformizao do "obstculo ex-terno" que se ope liberdade de movimento: os muros da priso.

    1.5 O lugar Durkheim se refere ao lugar que se destinava s prises, cuja

    presena relaciona com a apario de certas condies que permi-tiam aexistnciade estabelecimentos pblicos com espao suficiente, militarmente ocupados, organizados de um modo concebido para impedir as comunicaes com o exterior. E essas condies nascem quando a vida coletiva alcana determinada intensidade e continui-dade, perfilando-se na distribuio do espao social a linha de de-

  • 2 8 O TEMPO COMO PEiN A

    marcao que separa a autoridade de seus subordinados. 2 2 Durkheim anota que as trs prises que existiam em Jerusalm quando houve a invaso dos caldeus localizavam-se uma no portal de Benjamin, outra no palcio do rei e a ltima na residncia de um funcionrio pblico. Tambm em Roma as mais antigas prises encontravam-se na fortaleza real.

    lgico que o lugar da pena estivesse sob o controle imediato dos que estavam autorizados a execut-la. Durkheim assinala, p(S-rm, que na poca referente a suas citaes a priso ainda tinha so-mente um fim preventivo, de deter a pessoa supostamente culpada (se bem que as condies de vida nela eram tais que constitua um verdadeiro castigo). 2 3 A este respeito sumamente interessante uma passagem de "As leis", em que Plato fala de trs prises, cada uma delas com uma funo especial.

    "Haver na cidade trs prises: uma delas situada na praa p-blica, comum maioria dos delinqentes, que assegurar a guarda dessas pessoas; a segunda, no lugar de reunio do conselho noturno, que se chamar casa de correo ou reformatrio; a terceira no cen-tro do pas, no lugar mais deserto e mais agreste possvel, ter um sobrenome que indique seu carter punitivo." 2 4

    A primeira teria por fim a segurana, prevenir outros delitos, "assegurar a guarda das pessoas".

    A passagem 909b, indica os que iro s outras prises: "o juiz colocar na casa correcional aqueles a quem inspire um desequil-brio ou insensatez, que no conotem maldade temperamental ou de carter". Ou seja, os considerados recuperveis. A funo corretiva era confiada aos funcionrios do conselho noturno. evidente que esta priso no tinha carter punitivo, mas corretivo. Ao contrrio, a ltima das trs prises destinava-a para "aqueles (...) semelhantes a bestas ferozes, no contentes em negar a existncia dos deuses...".

    Ou seja, entre as outras duas prises h uma diferena segundo a gravidade do delito cometido ou as tendncias criminais do delin-

    < 2 2 ) Durkheim, E., op. cit., p. 83. ( 2 3 > Durkheim, E., op. cit., p. 83. ( 2 4 ' Plato, Las leys, 908c, op. cit.

  • O TEMPO COMO PENA 2 9

    quente. E esta diferena est marcada pelo lugar destinado priso. A priso propriamente punitiva tem reservado "o lugar mais deserto e agreste possvel".

    Algo semelhante se apresenta na organizao espacial do in-ferno de Dante: "Ei son tra 1'anime pi nere; diverse colpe gi li grava al fondo...". E na nota explica que se trata de uma analogia entre a lei da gravidade fsica, "tutti i corpi gravitano verso il cen-tro delia terra" e a lei da gravidade moral, "i peccati sono puniti in ordine di gravit, dali'alto al basso". 2 5 Tambm no Canto IX, refe-rindo-se a Giudecca: "Quell ''l pi basso loco e'1 pi oscuro, e'l pi lontan dal ciei che tutto gira...". Porque a Giudecca correspon-de ao centro da Terra e est no ponto mais baixo, no s material-mente mas moralmente, dado que a gravidade dos pecados vai au-mentando de cima para baixo. Assim sendo, em Giudecca se apli-ca o mximo da pena, e o mximo da privao de Deus (luz), isto , o mximo de trevas: a maior distncia espiritual corresponde en-to maior distncia material, tomando como referncia o cu, que o lugar que se supe mais prximo a Deus. 2 6

    Esta dimenso espacial da pena atribui ao lugar onde se cum-pre uma importncia fundamental. Quanto mais grave o delito, mais distanciado o delinqente. Em nossa pena terrena, a funo da luz, que em Dante se atribui a Deus, seria cumprida pela comunidade de pessoas.

    Voltando a Plato, a priso punitiva implicaria o total isolamen-to do delinqente frente ao resto da comunidade de pessoas. E evi-dente o desejo de apart-lo (nenhum contato com os homens livres). A primeira vista, a nica certeza nessa priso punitiva a excluso da comunidade de pessoas. Prova disso que nem sequer com a morte terminava essa excluso, pois: "uma vez morto, o corpo ser lana-do fora das fronteiras do pas, sem sepultura". 2 7

    ( 2 5 ' Dante, La divina commedia, Inferno, Canto VI, 87, a cura di D. Mattalia, Milano, Rizzoli, 1980.

    < 2 6 ) Dante, op. cit., Canto IX, p. 27-28, nota. < 2 7 ) Plato, Las leyes, 909e, op. cit. Gernet interpreta o ato de expulsar o delinqente para fora das fronteiras do pas da seguinte forma:

  • 3 0 O TEMPO COMO PEiN A

    Gernet se refere a formas de penalidades que so em si mesmas e antes de tudo religiosas, que tm por objeto a eliminao de uma mancha ou que supem a idia de consagrao do culpvel, a quem a comunidade abandona s potncias divinas para libertar-se ela mesma destas potncias. 2 8 Porque fora das fronteiras se estende um espao desconhecido, onde no impera a ordem, mas o caos. As fron-teiras marcam uma ruptura no espao: o territrio habitado e organi-zado ("nosso nrando") e um espao que no pertence comunidade de pessoas, que ainda est submetido s potncias divinas. 2 9

    Contudo, o ser humano, com a ajuda da tcnica^ "cosmomizou" praticamente toda a Terra. J no existe caos sobre a Terra. O "mun-do", "nosso mundo", se estende por toda parte. Ainda assim, os muros que separavam cosmo e caos no cumpriam s uma funo de prote-o. Sua funo consistia sobretudo em marcar a diferena entre ambos os territrios. E tambm a diferena entre aqueles que habita-vam um deles e os que se encontravam no outro.

    Ao no existir o caos, pareceria que o espao uno e indiferen-ciado. Inclusive ilimitado. Mas o limite no aquilo em que algo acaba, mas a partir do qual algo comea a existir. Se o espao social perdesse os limites que o separam do caos, deixaria de ser o espao social.

    A necessidade fundamental da diferenciao para manter sua identidade, que nasce dos limites dentro dos quais foi criado, leva o espao social a construir o seu prprio caos. A priso o caos que a prpria comunidade construiu. Caberia objetar que sempre se compa-'

    "... dans le cadavre, il y a encore de la vie, il y a du pouvoir mal-faisant, autrement dit du 'sacr' - il y a un objet possible de deuotio: par son expulsion hors des frontires, par la destruction complte de ses restes, par le vent, l'eau et le feu, on s'efforce de l'anantir, non pas dans un sentiment de rage pure, non pas mme dans une pense de prcaution ou de dfense et pour empcher un retour offensif, mais la manire d'un piaculum". (Gernet, L., Anthropologie de la Grce antique, Paris, Maspero, 1976, p. 327 e 328).

    1 2 , 1 Gernet, L op. cit., p. 291. < 2 , ) Liliade, M., Lo sagrado y lo profano, trad. espanhola de L. Gil, Ma-

    drid, Guadarrama, 1967, p. 42.

  • O TEMPO COMO PENA 3 1

    rou o caos a um territrio desordenado, sem regras, e que na priso, pelo contrrio, seguem-se regras muito mais rigorosas que no espa-o social. Porm, no podemos esquecer que este caos foi um caos construdo com propsitos muito claros. caos enquanto "no-cos-mos", e sua desordem - no sentido de falta de harmonia - consiste precisamente em acentuar o rigor da norma. A diferena do caos original - que significava a ausncia total de norma - , o caos cons-trudo significa a normatividade excessiva. A regra que no busca a harmonia do coabitar, mas sim a rigidez da imobilidade.

    Assim como as fronteiras delimitam dois territrios, os muros da priso tambm o fazem dentro da cidade. A priso caracteriza-se, so-bretudo, pela mnima comunicao com o mundo social externo. Uma priso tal precisamente pela impossibilidade de franquear livremen-te suas portas. Seus muros marcam uma ruptura no espao social. Ain da que aparentemente, ou seja, por sua instalao, no esteja, como regra geral, separada, isolada fora do contexto urbano - como esto territorialmente os cemitrios - , a comunicao que mantm com a sociedade que vive s suas portas muito mais limitada do que a des tes ltimos. Porisso, a priso punitiva de Plato ocuparia o lugar mais agreste e ilhado possvel, fora do permetro urbano. E ainda que hoje ela se encontre algumas vezes em pleno centro urbano, sempre ser, para quem a observa, o lugar mais afastado e isolado da cidade.

    E interessante a interpretao deste fenmeno de excluso como um ato simblico pelo qual se expressa a reprovao. A comunidade de pessoas no tem nada que ver com o autor de determinados atos. Se tolerasse sua presena, se persistisse a coexistncia com essa pes-soa, essa tolerncia e essa coexistncia poderiam ser interpretadas como uma aceitao. E a aceitao no est distante da cumplicida-de. E assim que de uma atitude meramente passiva poder-se-ia de-duzir uma atitude positiva. "A pena um meio convencional para a expresso de atitudes de ressentimento e de indignao, assim como juzos de desaprovao e reprovao, seja das prprias autoridades punitivas, seja daqueles em cujo nome se aplica. Em poucas pala-vras, a pena tem uma importncia simblica que praticamente no se encontra em outros tipos de sano." 3 0

    Feinberg, J., Doing and deserving, Princeton, Princeton University Press, 1970, p. 98.

  • 3 2 O TEMPO COMO PEiN A

    Entretanto, seu significado simblico no se esgota na manifes-tao de uma reprovao, mas se estende individualizao dos que merecem a reprovao. Neste sentido se inverteria o raciocnio "est no crcere porque um delinqente", e se diria " um delinqente porque est no crcere". Mas em ambos os casos - expresso de re-provao, individualizao dos delinqentes - o que se busca rea-firmar a inocncia da comunidade de pessoas.

    Os muros da priso separam os inocentes daqueles que no o so. Cabe ento perguntar se os que esto fora desses muros so realmente inocentes. Dando-se uma definio negativa da palavra, isto , se considerarmos inocentes somente aqueles que no tenham violado a lei, essa classificao seria admissvel. Contudo, se ado-tarmos uma definio positiva, considerando que a inocncia sig-nifica sobretudo confiana, sob dois aspectos independentes entre si: porque o inocente confia nos outros, mas ao mesmo tempo se entrega aos outros, com f neles, 3 1 resultar que as pessoas da co-munidade de pessoas que coexistem fora dos muros da priso tam-pouco so inocentes. Evidentemente no merecem a confiana dos outros. E no que no confiem a posteriori, porque estes outros tenham cometido delitos, mas sim a priori, porque previram que eles os cometeriam. Por isto, a pena o smbolo da falta de inocn-cia na comunidade de pessoas. 3 2

    Tambm se poderia considerar de um ponto de vista simblico que a pena de priso um talio. O delinqente interrompeu a comu-nicao social prpria da comunidade de pessoas; em conseqn-cia, isto , como retribuio, ser privado dessa comunicao social que ele interrompeu.

    claro que se a pena se esgotasse em seu contedo simblico, seria vlido perguntar, como o fez Feinberg: agora condenamos os delinqentes a uma servido penal, como uma forma de indicar que

    < 3 ' ) Cotta, S., Itinerari esistenziali dei diritto, Napoli, Morano, p. 135. ( J 2 ) " proprio grazie a questa generalizzazione delia diffidenza. (...)

    operata dal diritto, che questo ci offre la testimonianza palese di un primo e fondamentale aspetto dell'esistenza: la sua mancanza di innocenza" (op. cit., p. 140).

  • O TEMPO COMO PENA 3 3

    seus delitos so infames. Por acaso no se poderia fazer o mesmo trabalho de uma forma mais econmica ainda? No existe um modo de estigmatizar sem infringir uma dor (intil) a mais ao corpo, fa-mlia e capacidade criadora do condenado? 3 3

    Todavia, a pena no se esgota em uma funo meramente sim-blica: pretende, alm disso, infligir um mal, castigar.

    1.6 O tempo Assim como h uma ruptura no espao marcada pelos muros da

    priso, h tambm uma ruptura no tempo. A pena de priso se diferencia de todas as outras penas pela for-

    ma como combina estes dois elementos: o tempo e o espao. Esta interseo entre tempo e espao marca o comeo de uma durao distinta, qualitativamente diversa. E isto apesar da pena ser medida com a mesma unidade que se utiliza para medir o tempo social, o tempo comum.

    A separao fsica no define por si s a pena de priso. Ao refe-rirmo-nos a uma pena deste tipo lgico perguntar: por quanto tem-po? Porque o tempo, mais que o espao, o verdadeiro significante da pena. Existe uma enorme diferena entre passar trs dias na pri-so e passar toda a vida: h toda uma vida de diferena.

    Ao construir a priso, pretende-se imobilizar o tempo da pena. Separ-lo do tempo social que transcorre no espao social. A pri-so uma construo no espao para calcular de determinada ma neira o tempo. O fluir do tempo se ope firmeza do espao. O ordenamento jurdico, mediante a priso, procura dominar o tem-po. Pareceria que o tempo no qual transcorre a vida social normal fosse um tempo relativo, e que o tempo da pena, que transcorre na priso, assumira um carter absoluto. "No espao tudo est imvel e claro na geometria da proporo; tudo transcorre e flui no ritmo do tempo." 3 4

    1 3 3 1 Feinberg, J., op. cit., p. 115. 0 4 1 Argan, G. C., L'arte moderna 1770-1970, Firenze, Sansoni, 1974,

    p. 44.

  • 3 4 O TEMPO COMO PEiN A

    Trata-se de um emprego muito particular que o direito faz do tem-po Se a pena retribuio, como a pena de priso consiste fundamen-talmente no transcurso de determinado tempo, empregar-se-ia o tem-po como castigo. No seria o nico exemplo de interpretao especial do tempo por parte do direito penal. Por exemplo, Gernet recorda o conceito de flagrante. No se tratava de um meio de prova privilegiado mas de uma parte mesma do conceito do delito. 3 5 Graas ao flagrante, o delito dava lugar imediata execuo da pena. O que havia passado se falia presente. Esta unidade concentrada no tempo, no presente, esta continuidade, era um ideal do direito penal: que a sano constitusse um s corpo, sem interstcios, com o fato delitivo. Tudo se desenrola no presente, sem que a idia de um passado, inclusive recente, tenha nenhuma interveno.3 6 Esta prescindibilidade, ou desejo de prescin-dir do passado, tambm se observa na noo de fur tum, que significa-va a coisa subtrada. Tampouco no caso de se encontrar o delinqente com o produto Jurtum, era necessrio voltar ao passado para provar o que havia acontecido. Mas a operao ou administrao do tempo por parte do direito levava a maiores distncias ainda: o direito arcaico assemelhava ao delito flagrante aquele que acontecia pelo descobri-mento do objeto subtrado no domiclio do ru. Neste caso, havia uma distncia temporal, porque no se podia efetuar a constatao do deli-to "no mesmo momento" em que havia sido cometido. No obstante, mediante uma fico, esta distncia temporal se desvanecia, o tempo intermedirio no contava para nada. 3 7

    Persiste o ideal de continuidade entre o delito e a pena. Beccaria recomenda, especificamente com relao funo de finalidade exemplificadora que atribui pena: com efeito, assinala, "a celeri-dade da pena mais til, porque quanto menor seja a distncia do tempo que passa entre a pena e o delito, tanto mais forte e duradoura ser na mente a associao destas duas idias, delito e pena, de tal modo que se considerem o primeiro como causa, e a outra como efeito conseguinte e necessrio". 3 8

    ( 3 5 ) Gernet, L op. cit., p. 267. < 3 6 1 Gernet, L., op. cit., p. 267. < 3 7 ) Gernet, L op. cit., p. 269. ( 3 8 1 Beccaria, C op. cit., cap. 19, p. 61.

  • O TEMPO COMO PENA 3 5

    E tambm persiste a repugnncia para indagar no passado: "Po-dero os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do tempo passado, que no volta mais, uma ao j cometida?", pergunta Bec-caria. 3 9 O castigo e a dor no podem desfazer o fato. Nada pode o ser humano diante do que j aconteceu. O que j no pertence ao ho-mem porque pertence ao passado.

    Mas, como Mathieu sustenta, a pena absurda ritma perspectiva puramente temporal de "o que se passou, passou". Para este autor a pena assume como um todo nico o conjunto dos fatos passados, pre-sentes e futuros, preocupando-se em fazer que esse todo responda, na medida do possvel, a um princpio universal de justia, no qual aqui-lo que ainda no existe possa compensar aquilo que j no existe, aquilo que foi pese ainda como se fosse presente; e, por ltimo, aquilo que deveria ter sido e no foi influa para determinar o equilbrio.4 0

    1.7 Outro tipo de medida - De que forma determinar o valor relativo de um prazer ou de uma

    pena, se no mediante uma estimao quantitativa? O conceito des ta medida enquanto determinao do mais ou do menos est defini-do em "Protgoras, ou os Sofistas", onde se fala de uma verdadeira "cincia da medida" (metrtik techn), que seria a cincia do excesso e do defeito (Plato tambm a chama de aritmtica, arte da medida).4 1

    Trata-se de uma verdadeira sabedoria que permite ao homem escolher entre o bem e o mal, entre o prazer e a dor, aplicando um critrio quantitativo. tanta a importncia que atribui medida nes-te Dilogo, que se refere a ela tambm como a salvao de nossa vida, porque a condio de nossa salvao reside em uma correta escolha entre o prazer e a dor, apreciando com exatido o numeroso e o es-casso, o maior e o menor, o mais longnquo e o mais prximo.

    Esta possibilidade de quantificar o prazer ou a dor, estimando "um mais" ou "um menos", tambm um elemento da pena, dado

    ( 3 " Beccaria, C., op. cit., cap. 12, p. 45. ( 4 0 ' Mathieu, V., op. cit., p. 278. ( 4 " Plato, Protgoras, o los sofistas, 356a, op. cit.

  • 3 6 O TEMPO COMO PEiN A

    que para fixar sua devida relao com o delito necessrio compar-los. Todavia, esta comparao no pode ser somente qualitativa (en-quanto propriedade geral de ser leses). Para que o ato da pena seja um ato "com medida" deve ser proporcional ao ato do delijp. E essa pro-poro s se conhecer medindo a intensidade de ambos os atos. No obstante, j no se trata da medida como qualidade do ato, mas de uma medida que tem significado muito diverso. Inclusive sua raiz no med, mas me. O verbo no seria moderari, e sim metior. Alm do mais, de me provm mens, i. e., "lua!', e em latim, mensis, i. e., "ms", medida de dimenso, "qualidade fixa e passiva cujo emblema ser a lua me-dindo o ms". 4 2 Seria a corrente acepo do termo "medir", no como submeter a uma medida, e sim no sentido de quantificar.

    Mas diferentemente do espao, que em si mesmo algo mensu-rvel, que se oferece como algo a medir, o tempo sempre se apresen-ta para ns como algo j provido de uma medida natural, como algo j dividido em partes por meio da sucesso das estaes e dos dias, e "pelo movimento do relgio celeste que a natureza precavida colo-cou nossa disposio". 4 3

    Por isso, ao medir o tempo no se realiza a mesma operao uti-lizada para medir o espao, porque o tempo no carece de medida natural prpria, no sentido de que j aparece, se apresenta, em certo modo, dividido em partes que se sucedem. O que se pretende com os instrumentos que se empregam para medir o tempo alcanar certa preciso, certa exatido na subdiviso das partes. Koyr recorda que s quando a civilizao urbana experimenta necessidades de preci-so em sua vida pblica e religiosa que se comea a medir o tempo.

    Apesar de a Bblia ensinar que Deus embasou o mundo "no n-mero, no peso e na medida", at Galileu ningum havia procurado superar com o nmero, o peso e a medida a impreciso da vida co-tidiana. 4 4

    < 4 2 ) Benveniste, E., op. cit., vol. II, p. 128. < 4 3 ) Koyr, A., Du monde de l'"-peu-prs" l'univers de la prcision,

    Etudes d'histoire de la pense philosophique, Paris, Saint-Armand/ Gallimard, 1981, p. 353.

    < 4 4 ) Koyr, A., op. cit., p. 334 e 335.

  • O TEMPO COMO PENA 3 7

    Quando a privao da liberdade assume o carter de pena (e no de preveno, correo, ou qualquer outro fim de preservao social), a exigncia de preciso se torna manifesta. Sendo o tempo o princi-pal elemento da pena, no pode ficar merc da impreciso. A deter-minao temporal da pena adquire uma importncia fundamental.

    1.8 Delito e tempo Na pena de priso "o mais" ou "o menos" da leso que supe a

    pena a durao. Por isso, Beccaria assinala que no a intensidade da pena e sim sua extenso que tem o efeito maior na alma humana. Mas essa "extenso" deve corresponder a determinada "intensida-de"; do contrrio, no seria possvel compar-la com o delito, que uma leso com determinada "intensidade" (gravidade). necess-rio medir a intensidade de ambas. Se a pena medida por sua dura-o, qual intensidade corresponder a determinada durao?

    Que relao guarda o tempo com o delito? Evidentemente que o delito no se mede segundo o tempo que dura. Santo Agostinho, no Livro XXI, Captulo XI, de "A cidade de Deus", intitulado "Exign-cias da justia com respeito s penas", contesta aqueles que conside-ram injusto castigar os pecados desta curta vida, por mais graves que sejam, com um suplcio eterno: "Como se a justia da lei alguma vez tivesse levado em conta o tempo despendido em cometer a falta para determinar o castigo!" 4 5

    E refere-se tambm durao da priso, assinalando o absurdo que seria quantificar o castigo segundo a durao do dei ito, v isto que para determinar a gravidade do crime aplicam-se outros critrios distintos do tempo que durou sua perpetrao. 4 6

    E sumamente interessante observar que neste mesmo captulo e apenas um pouco mais adiante, faz referncia relao tempo-pena: por um lado no h relao entre durao do delito e a durao da pena; por outro, observa-se que assim como em um instante pode-se

    1 4 5 1 Santo Agostinho, Obras de San Agustn, La Ciudad de Dios, XVII, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1964, XXI, cap. 11.

    < 4 6 i Santo Agostinho, op. cit., XVII, cap. 11.

  • 3 8 O TEMPO COMO PEiN A

    cometer o delito mais grave, tambm em um instante pode-se apli-car a pena mais grave. Ou seja, a durao da aplicao da pena no seria indcio de sua gravidade. Prova disto seria, conforme Santo Agostinho, a pena capital. No obstante, ao considerar que o castigo residiria em afastar para sempre o condenado da sociedade humana, se introduziria a um elemento temporal. O "para sempre" a res-posta pergunta: por quanto tempo queremos afast-lo da sociedade humana? E precisamente a condenao morte a pena capital por esta resposta: para sempre.

    1.9 Priso e morte Esta referncia pena de morte talvez permita estabelecer um

    paralelo com a pena de priso. O distanciamento que esta ltima persegue no seria comparvel ao que se logra, de forma definiti-va, com a morte? A expulso o efeito imediato de uma e de outra pena. No presente, ambas tm um mesmo significado: a excluso; somente quanto s suas conseqncias futuras se diferenciam. Mas, seguindo Santo Agostinho, as conseqncias futuras, por serem futuras, "no existem ainda, e se no existem ainda, no existem realmente; e se no existem realmente, no podem ser vistas de nenhum modo, mas apenas podem ser previstas por meio das pre-sentes, que j existem e se vem". 4 7

    Em uma, no presente se prev a possibilidade do regresso; na outra se exclui essa possibilidade. Significa dizer que a pena de pri-so se diferencia da pena de morte pela presena ou ausncia da pos-sibilidade de se reincorporar coexistncia social.

    Contudo, no presente ambas interrompem essa coexistncia. Quando se dir que dois seres coexistem ou que existem a um

    mesmo tempo? Quando no existe sucesso entre eles, os dois exis-tem: quando no se do ao mesmo tempo a existncia de um e a ne-gao do outro. Tanto na pena de morte como na de priso se d a "negao do outro". Nega-se ao sujeito apartando-o, porque o que se deseja que ele no continue existindo no presente de todos.

    < 4" Santo Agostinho, Obras de San Augustin, Las Confesiones, II, Ma-drid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1964, XI, cap. 18.

  • O TEMPO COMO PENA 3 9

    At que ponto pode-se considerar que ambas as penas se dife-renciam apenas pelo elemento quantitativo? Ou seja, que a durao de uma muito maior do que a da outra. Do ponto de vista dos sujei-tos de cujafxistncia o delinqente tenha sido afastado, o "para sem-pre" da pena de morte compreende apenas uma durao mais pro-longada. Eles tampouco sero "para sempre", razo pela qual no podero comprovar o "para sempre" da pena de morte.

    Ambas podem ser comparadas a das viagens. Em uma se pre-v, se espera o regresso; na outra no.

    Aceitando-se essa diferena quantitativa, seria tambm acei-tvel a hiptese de Gernet, que ao analisar certas penas infamantes nas quais se expunha publicamente o delinqente, aponta que ha-via penas temporais e relativamente, benignas que podiam sercon sideradas como suavizaes ou simbolizaes da pena de morte. 4 8 Mas atualmente, sendo a pena de priso a pena por excelncia que absorveu tambm o carter infamante, no obstante consistir em uma ocultao e no em uma exposio - , poder-se-ia aplicar a mesma hiptese. Com o que resultaria uma pena mais suave que a de morte, residindo a diferena to-somente nesse elemento quan titativo de sua durao. Nas penas de priso perptua ou por pero-dos que excedem a vida normal de um ser humano tampouco se prev "o regresso", a reintegrao. Afasta-se o delinqente "para sempre", como na morte.

    Na priso perptua, como diz Mathieu, a inteno a mesma que subjaz na pena de morte: "no voltar mais a estar entre ns". O sig-nificado dessa sentena clarssimo, diz esse autor: no podes rein-tegrar-te ao sistema de liberdade seno morto. Mas, para chegar a este ltimo estado, na priso perptua deixa-se que a natureza inter-venha. Por isso, o autor denomina a pena de priso perptua como "sentena de morte retardada", e considera-a uma hipocrisia, uma vez que se confia a execuo da pena natureza e ao tempo. 4 9 (E poderamos acrescentar s condies em que se vive em muitas pri-ses e a todos os padecimentos que a priso traz consigo).

    < 4 8 > Gernet, L., op. cit., p. 289 e 291. ( 4 9 ) Mathieu, V., op. cit., p. 282.

  • 4 0 O TEMPO COMO PEiN A

    No caso da priso perptua ou das penas superiores s possibi-lidades de vida do delinqente, contudo, no se considera que a morte sobrevenha como uma pena diferida. Essas penas respon-dem simplesmente necessidade de medir, no sentido de quantifi-car, a pena. A morte ocorre margem da pena, e a pena a excluso por determinado tempo, no a morte. Que esta a interrompa um fato que pode tambm acontecer em penas de curta durao. O absurdo que nos parecem essas condenaes a um nmero de anos que excede as possibilidades de vida do delinqente se explica porque, para o direito penal, em certo sentido no importa nada do que ocorre realmente. Pois, como Mathieu esclarece um pouco an-tes, "o fato que o direito penal considera a justia prescindindo do tempo e dos processos que se sucedem no tempo. A pena deve seguir-se ao delito, como uma conseqncia artificial dele mesmo; porm os processos reais e, por conseguinte, temporais que formam e acompanham a pena so acidentais". 5 0

    Portanto, mais que indiferena com respeito aos processos tem-porais, em certo sentido h uma submisso dos mesmos por parte do direito penal aos fins que lhe so prprios; como assinala Gernet, por parte do direito h uma certa liberdade no uso de um conceito do qual efetivamente no pode prescindir, mas que adapta aos fins que lhe so prprios.

    Porque ao direito penal o que interessa, fundamentalmente, que a pena guarde a relao devida com o delito; por isso, ainda que o sujeito no tenha a mnima possibilidade de "viver toda sua pena", esta se fixa em funo da meta de restabelecer o equilbrio, independentemente de que depois no se cumpra realmente. Neste aspecto sobretudo, ou seja, em sua fixao, reafirma-se o carter simblico da pena.

    M. Foucault, 5 1 referindo-se a Kantorowitz ("Os dois corpos do rei"), assinala um paralelismo entre o corpo do rei e o corpo do con-denado. No corpo do rei, ao lado do elemento transitrio que nasce e morre, h outro que perdura, que o suporte fsico e ao mesmo tempo

    (51" Mathieu, V., op. cit., p. 213. ( " Foucault, M., op.cit., p. 37.

  • O TEMPO COMO PENA 4 1

    intangvel do reino, o objeto de uma iconografia e de uma doutrina poltica e jurdica, o fundamento de um poder. No outro extremo, o diminuto corpo do condenado tambm motivo de um cerimonial, um discurso terico, uma construo jurdica. Ao exercer sobre ele um poder excedente, provocar-se-ia segundo Foucault, um desdo-bramento. Como se o direito criasse um desdobramento metafsico do corpo do delinqente^para poder aplicar-lhe penas que no guar-dam proporo com as coordenadas reais de seu corpo natural.

    O delinqente no sobrevive sua morte. O que imortal no o delinqente mas a comunidade de pessoas, que persiste como tal, apesar de que mudam as pessoas que a integram. E perante ela que se mede o tempo da pena. O tempo da pena se quantifica em funo do tempo da sociedade, e no do tempo do delinqente. Este se ex-clui somente do nico tempo de que em realidade se lhe pretende excluir: o tempo que transcorre no espao social.

    1.10 Templum, tempus Montesquieu assinala que os templos eram o refgio dos delin-

    qentes, sobretudo na Grcia, onde os homicidas, expulsos da cida-de e da presena dos homens, no tinham outro asilo seno os tem-plos, nem outros protetores seno os deuses. Referindo-se a Tcito, diz que "os magistrados tinham dificuldades para exercer a funo de polcia, pois o templo protegia os crimes dos homens, como as cerimnias dos deuses". 5 2

    O templo permitia ao delinqente sobreviver. Se a priso cou siderada uma suavizao da pena de morte, como vimos, tambm constitui nesse sentido um refgio. Entretanto, o templo cumpria a mesma funo que a priso atual: ocultar o delinqente, ocult-lo de nossos olhos. A lei mosaica considerava inocentes os homici-das involuntrios, mas os ocultava aos olhos dos pais do morto. Seguindo Montesquieu, poderamos aventar que, assim como no templo se protege a cerimnia divina, na priso se protege o delin-qente (no seria a sociedade a protegida, como usualmente se afir-ma, mas sim o delinqente).

    1 5 2 1 Montesquieu, op. cit., I. XXV, cap. 3, p. 163 e 164.

  • 4 2 O TEMPO COMO PEiN A

    Esta analogia com o templo leva a outra, ainda mais pertinente ao tema que nos ocupa. "Tal como uma igreja que constitui uma rup-tura de nvel dentro do espao profano de uma cidade moderna, o servio religioso que se celebra no interior de seu recinto marca uma ruptura na durao temporal profana..." 5 3 O mesmo ocorre na pri-so, pois assim como h uma ruptura no espao marcada pelos mu-ros, tambm existe uma ruptura no tempo.

    Esta interse entre tempo e espao marca o comeo de uma durao distinta, qualitativamente diversa. Isso no obstante o fato de que a pena se mede com a mesma unidade que se utiliza para medir o tempo social, o tempo comum.

    1.11 O tempo da pena O tema da relao entre o tempo e a pena, da utilizao do tem-

    po como pena, ou seja, do tempo como algo mais que a medida da pena, nos remete necessariamente relao entre o tempo e o di-reito. A pena um dos casos em que o direito subordina o tempo aos fins que almeja. Poder-se-ia dizer tambm que o direito assi-mila o transcurso de determinado tempo, o tempo do sujeito da pena, a um transcurso que prprio do direito.

    Para Gerhart Husserl, 5 4 esse transcurso prprio do tempo do di-reito no a simples durao, o fluxo natural dos instantes. O direito tem um tempo abstrato, precisamente porque busca superar o ime-diato, o contingente da experincia ingnua do tempo.

    O mundo da experincia natural, o mundo cotidiano do ser hu-mano, um mundo no qual reina a dvida. A indigncia humana consiste precisamente na impossibilidade de dispor do futuro. A falta de previsibilidade do futuro se origina na transitoriedade pr-pria do ser humano, que por sua vez se origina em sua nica certe-za: seu ser um ser que caminha para a morte. Quando o direito vincula conseqncias jurdicas s circunstncias da realidade so-

    Eiliade, M., op. cit., p. 65. 1 , 4 1 Stella, G., I giuristi di Husserl, L'interpretazione fenomenologica

    del diritto, Milano, Giuffr, 1990, p. 155 e ss.

  • O TEMPO COMO PENA 4 3

    ciai exclui o fluxo dessa realidade para um futuro incerto. Dada sua vocao de transcendncia, o direito procura libertar-se da dvida, da transitoriedade. As normas jurdicas criam um mundo que no conhece a dvida. Nesse mundo no h futuro, porque o futuro foi antecipado nas normas.

    Entretanto, para que o direito se concretize na realidade, para que "se realize", deve passar do mundo "destemporalizado" que criou $ realidade social que responde ao fluxo natural do tempo. Ou seja, deve voltar dimenso temporal de que havia se separado. Esse pro-cesso se desenvolve pela aplicao da norma jurdica.

    "O tempo objetivo - disse G. Husserl - no transcorre mais ve-lozmente ou mais lentamente caso seja uma criana, um velho, um paciente no dentista, um orador em uma reunio pblica ou um sol-dado no campo de batalha o afetado pelo transcurso temporal." As sim sendo, cabe dizer exatamente o contrrio, caso esse transcurso se experimente no interior da conscincia. Por isso, h que se acres cer ao tempo natural e ao tempo objetivo do direito o tempo subjeti vo, o tempo da conscincia. 5 5

    O que acontece com a pena? A norma jurdica que estabelece a pena antecipa o futuro, determinando uma quantidade de tempo que ser a durao da pena. Contudo, no ser a mera durao como su-cesso de instantes do tempo natural, mas uma durao objetiva, abstrata, medida com independncia dos contedos concretos alheios sua finalidade.

    A pena, quando aplicada ao sujeito, se "temporaliza" no tempo de vida do sujeito. Isto , seu transcurso seguir o fluir do tempo natural no qual transcorre a vida biolgica do sujeito: seguir seu gradual envelhecimento, e poder, inclusive, ser interrompida por sua morte. Neste caso, o tempo objetivo impedir o cumprimento do termo que o direito lhe havia fixado.

    Mas tambm o tempo da pena experimentado na conscincia do sujeito que a vive. Tambm a pena tem sua terceira dimenso tem-poral: a do tempo subjetivo, o tempo da conscincia. "Se compreen-demos bem o que significa, por exemplo, 'viver o tempo', nos da-

    < 5 S I Stella, G., I giuristi di Husserl, L'interpretazione..., op. cit., p. 196.

  • 4 4 O TEMPO COMO PEiN A

    mos conta de que cada pessoa vi ve um tempo comum, que pode com-preender, mas vive tambm o seu prprio tempo, um tempo intradu-zvel, que sente por si mesma, assim como uma fome que s ela ex-perimenta, uma vida que s ela vive e uma morte que s ela morre... Ningum pode substituir outro nesta experincia nossa e, simulta-neamente, de cada um." 5 6

    Quo insubstituvel ser ento a experincia do que vive a pena. Pois '%e cada pessoa sente por si mesma", tambm viver "por si mesma" a pena como uma experincia intransfervel, nica. Ainda que a pena esteja prevista e quantificada, de modo uniforme, objeti-vo, cada uma viver como prpria. Cada um viver sua prpria pena.

    Por um lado, a mesma unidade de medida vai medindo o trans-curso da pena. Pois a pena vai formando a si mesma medida que transcorre. Por outro lado, vai-se produzindo no sujeito a percepo desse transcurso. Por um lado, a magnitude; por outro, a intensida-de. "Assim como a magnitude fora de algum nunca possui intensi-dade, a intensidade, dentro de algum, nunca possui magnitude." 5 7

    A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser pre-cisamente "o tempo da pena", no pode ser a mesma daquele que vive livre de pena. Qualquer atividade que se realize durante esse tempo no ser verdadeira atividade, estar impregnada do tem-po e do espao da pena. Ainda que aparentemente esteja em mo-vimento, o sujeito da pena est imobilizado em determinado es-pao, no qual transcorre um tempo diferente. E esta imobilidade poder-se-ia qualificar de espera. "Esta (referindo-se espera) en-volve todo o ser vivente, suspende sua atividade e o imobiliza na angstia que lhe causa". E embora no se refere pena, a seguin-te definio de Minkowski parece muito pertinente: "na espera o ser reflexiona sobre si mesmo, se encapsula, caberia dizer que procura expor o mnimo de si s agresses do ambiente hostil e, ao proceder dessa forma, separa-se deste ambiente e traa os seus

    < 5 6 1 No prefcio de E. Paci verso italiana de E. Minkowski, Le temps vcu, Torino, Einaudi, 1971.

    < 5 7 ) Bergson, H., Essai sur les donnes immdiates de la conscience, Paris, Flix Alcan d., 1906, p. 171.

  • O TEMPO COMO PENA 4 5

    prprios l imites". 5 8 Esta reflexo sobre si mesmo traz seus pr-prios limites diante do ambiente hostil, indica o isolamento in-terno do sujeito, conseqncia do isolamento externo que a pena como expulso lhe imps.

    Porque "o outro" que pode despertar-lhe a memria de si est fora dos muros da priso. Os demais, que compartilham a sorte do condenado, no podem despertar-lhe "memria de si", do que foi antes de inicfer a pena. S a conscincia de seu estado atual. Por isso, as relaes mantidas dentro da priso no o ajudaro a recordar-se de si mesmo, do que era antes que a pena seccionasse o espao e o tempo. Seu recordar ser limitado e empobrecido, pois sua memria ficou merc de suas prprias foras: j no recebe o estmulo exter-no do mundo, que foi seu mundo e que lhe fechou as portas.

    A relao de coexistncia que nasce dentro dos muros da priso no livre, foi imposta pelas circunstncias da pena. E uma relao entre os que foram excludos da comunidade de pessoas. E essa ex-cluso poderia inclu-los em outra comunidade baseada em uma es-pera comum: a de sua dissoluo.

    Se estes so os estados prprios de quem vive a pena, seus tem-pos seriam o presente do pretrito e o presente do futuro. E a am-bos correspondem respectivamente a memria e a espera: "Porque estas so trs coisas que existem de algum modo na alma, e fora dela j no vejo que existam: presente de coisas passadas (a me-mria), presente de coisas presentes (viso) e presente de coisas futuras (expectativa)". 5 9

    Na pena, a viso do presente se obscurece ante a expectativa do futuro. O presente s tem valor como passagem do futuro ao passa-do, pois, como vimos, todo o ser est concentrado na espera.

    Assim como na cano qual se refere Santo Agostinho, a pena antes de comear pura expectativa, pois medida que transcorre vai passando memria, o presente da pena sendo s uma passagem do que se espera para o que se recorda. Como a pena leso, todo o ser procurar recha-la, epara isso lhe resta a memria ou a espera.

    ( 5 8 ) Minkowski, E., op. cit., p. 89 e 92. < 5 9 ) Santo Agostinho, op. cit., cap. 20.

  • 4 6 O TEMPO COMO PEiN A

    Pois o presente s ser a simultaneidade, a interseco do tempo com a priso, que o espao da pena.

    1.12 Concluso O problema da justa proporo entre delito e pena se oculta nas

    finalidades no retributivas que se atribuem pena de priso. Com efeito, como coloca Mathieu, a priso tornou-se pratica-

    mente o nico meio de castigar os delitos, no porque se aprecie seu valor simblico ou porque se pretenda reprimir a vontade do ru. A razo mais importante, diz, outra: ter tomado a pena como um meio de defesa da sociedade e de seus membros; manter prisioneiro o cul-pado serve para impedi-lo de causar dano. E precisamente porque a priso restou como nica modalidade da pena, pretende-se justificar a pena justificando a priso. 6 0

    Alm desta justificativa da priso como "medida de segurana", tambm se a justifica alegando que apenas um meio para corrigir e recuperar o delinqente. Tratar-se-ia de um servio que a comunidade presta queles membros que demonstraram com seus atos a necessi-dade de serem submetidos a uma terapia corretiva. Esta analogia entre o trabalho do juiz e o do mdico, a pena e a terapia, o delito e o sintoma de uma doena, aparece vrias vezes nos dilogos de Plato.6 1

    Mas, em ambos casos, na priso-medida de segurana, ou na priso-correo ou curativa, se coloca o problema de fixar sua dura-o, que, como temos visto, o elemento fundamental da pena de priso. Quando se ter a certeza de que o sujeito deixou de represen-tar um perigo para a comunidade? Como fixar de antemo o momento em que isto ocorrer? Este seria um ponto de enlace entre ambas as teorias, pois se poderia responder: no momento em que se tenha re-cuperado. Mas, como indagar a pessoa do delinqente para assegu-rar-nos de sua correo? Poder-se-ia responder a esta pergunta di-zendo que h sinais exteriores que podem manifestar essa transfor-mao. Mas quem estaria apto a interpretar esses sinais? Se conside-

    m Mathieu, V., op. cit., p. 255. ""' Plato, La Repblica, 410b, op. cit.

  • O TEMPO COMO PENA 4 7

    rarmos o sujeito um enfermo, talvez seria competente o mdico ou o psiclogo; mas ao consider-lo como um inadaptado social, talvez a pessoa indicada seria o assistente social. Mas, ento, a funo do juiz deveria ser substituda por stes profissionais; em cujas mos ficaria efetivamente a execuo di) sentena. 6 2 Nesse caso, a sentena no seria uma sentena, mas a prescrio de um tratamento. E muito difcil prescrever de antemo e sem conhecer bem o paciente quanto durar o tratamento. Deste modo introduzir-se-ia no dipi to uma in-certeza que este sempre procurou evitar. Incerteza no s quanto 'durao das penas, mas tambm quanto funo que efetivamente cumpririam, j que a correo de um delinqente to difcil de pre-dizer como a cura de um doente. Assim, a pena seria uma instituio de funes hipotticas, possveis, algo como um corpo legislativo institudo no para promulgar leis, mas pela possibilidade, ainda que remota, de que algum dia chegue a promulgar uma lei.

    Alm do mais, a melhor prova de "sade" que nos poderia dar o delinqente seria sua capacidade de levar uma vida respeitvel junto ao seu prximo, no seio mesmo da comunidade de pessoas da qual tenha sido afastado. Mas, ento, nasceria uma dupla incerteza: quanto tempo ele deveria ficar sob "observao" at que possa considerar-se realmente "curado"? E, por outro lado, recordando a funo de segurana que se atribua sua deteno, estaria a comunidade de pessoas disposta a enfrentar o risco de seu retorno, sem provas deter-minantes de sua inocuidade?

    Sem dvida, quando se procura fixar a durao da pena, no se colocam estas consideraes. Resolve-se tudo no mais simples dos modos: a medida da pena fixada buscando a proporo com o deli-to. Isto significa que no se levam em conta as finalidades que pre-tendem justific-la, mas a necessidade de retribuir segundo a gravi-dade do delito.

    Evidentemente, no h sentido em fixar a durao da pena se-gundo a gravidade do delito quando a pena no pena, seno terapia, correo, medida de segurana etc. Claro que no ser o mesmo cor-rigir ou curar quem cometeu um homicdio ou o autor de um simples

    ( 6 2 > D'Agostino, F., Diritto e secolarizzazione, Milano, Giuffr, 1982, p. 72.

  • 4 8 O TEMPO COMO PEiN A

    furto. Mas poderia acontecer que este ltimo se revele muito mais "enfermo" ou potencialmente perigoso que o primeiro.

    Esta contradio entre a medida da pena e da finalidade que se lhe atribui nasce da necessidade de oferecer garantias ao sujeito da pena. Porque o problema, fundamental ao meu ver, o seguinte: a pena no por ser considerada medida de segurana ou terapia deixa de ser pena.

    Em primeiro lugar, ambas se impem ao sujeito, seja qual for a sua vontade. Em segundo lugar, no apenas na maioria dos casos so vivenciadas como um castigo, mas tambm, objetivamente, do pon-to de vista social, so consideradas como conseqncias desagrad-veis de atos reprovveis. Portanto, continua-se castigando, ainda que sem reconhec-lo.

    Como observa Mathieu, um equvoco de certo modo volunt-rio: deseja-se continuar castigando e ao mesmo tempo dizer que no se faz isso. Por meio do juiz, a sociedade se desculpa com o conde-nado por submet-lo a um sofrimento que "tem todo o aspecto de uma pena", ainda que - e se procura deixar bem claro - no o seja. 6 3

    Deste raciocnio caberia deduzir o seguinte: a pena seria aplica-da "involuntariamente". Perderia assim, uma de suas caractersticas essenciais: a medida, no sentido de moderao, modus, enquanto significa reflexo, deliberao. Aquilo que poderamos chamar "a planificao" da pena estaria ausente na priso-medida de seguran-a ou terapia. O mal causado seria acessrio, incidental.

    Nesse sentido, haveria motivos para justificar a lgica retributi-va pela necessidade de proteger o sujeito desse mal "sem medida", ajustando-o a uma medida determinada. Em virtude desta lgica, a pena sempre seria fixada em funo do passado, do ato delitivo, e, portanto, a medida da pena teria um ponto de referncia mais claro e mais preciso, dentro do que lhe cabe, do que aquele que proporcio-naria a eventual cura ou reabilitao: incerta e sem prazo definido.

    Mas tambm a lgica retributiva assenta-se na idia de "digni-dade", que resultaria imprpria como atributo de uma pessoa que deve submeter-se correo ou terapia. 6 4 Esta seria facilmente asseme-

    1 6 3 1 Mathieu, V., op. cit., p. 16. "*" Hegel, G. W. F., op. cit., p. 128.

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    lhada a uma criana ou a um louco. Claro que tudo isso exigiria uma definio de "dignidade", que, ao que parece, denota determinada capacidade, neste contexto, em particular, para cometer delitos.

    A priso considerada como lugar de aplicao da pena, definiti-vamente, pode ser definida pela indicao de uma nica caractersti-ca: encontra-se fora do espao social. Portanto, a pena de priso a destinao a um lugar que se encontra forta do espao social. A pena de priso a excluso do espao social. Esta a finalidade primordi-al da priso: a excluso. Toda futura participao na comunidade e no espao da comunidade requer essa prvia excluso.

    O nexo entre delito e pena est claro, pois ambos so leses. Dessa perspectiva, quem interrompeu a simetria da comunicao social deve ser privado dessa comunicao social que interrompeu. Contudo, "o delito tem uma extenso quantitativa e qualitativa determinada, ra-zo pela qual deve possu-la tambm a sua negao." 6 5

    O problema reside precisamente em comparar "a extenso quali-tativa e quantitativa" do delito e da pena. Porque delito e pena so sim-plesmente coisas heterogneas, mas, segundo seu valor, sua proprie-dade geral de ser leses, so coisas comparveis. Cabe ao intelecto buscar a aproximao da igualdade de valor entre uma e outra. 6 6

    Porm, como o intelecto poder comparar a leso que signifi-ca o delito com a determinao temporal quantitativa e abstrata da pena de priso?

    Que relao guarda a durao da pena com a gravidade do deli-to? Se a gravidade do delito sua intensidade, como determinar a intensidade da pena? Que durao corresponde a determinada inten-sidade? possvel medir a intensidade da pena baseando-se no tem-po objetivo, medido pelas unidades com as quais se mede o tempo do trabalho e da vida social? E, se possvel, quantas unidades tem-porais corresponderiam a cada delito?

    Todavia, isto no possvel, porque a determinao temporal quantitativa e abstrata carece por si s de contedo punitivo.

    < 6 5 ) Hegel, G. W. F., op. cit., p. 128. ( 6 6 ) Hegel, G. W. F., p. 129.

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    Como transformar a magnitude, tantos meses, tantos anos, tan-tos dias, em intensidade? S na conscincia do sujeito se opera a converso de magnitude para intensidade, porque a intensidade um fenmeno interior, pessoal, ntimo, intransfervel. Logo, cada um vive de forma nica e imprevisvel sua prpria pena. Da que quando se dita a sentena no se sabe com certeza qual castigo se est aplican-do. Pois as unidades temporais nas quais se fixa a pena sucedero com maior ou menor lentido segundo o sujeito. E medida que o sujeito interiorize essa durao, ir q