no boom da festa
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A festa do Divino Esprito Santo, as festas de santos catlicos padroeiros das
Aldeias, a festa do Tur, as comemoraes do dia Sete de Setembro e do Dia do
ndio, as assemblias indgenas e os torneios de futebol constituram-se no foco
da anlise de Antonella Tassinari e resultaram na etnografia da populao Karipuna
do Amap. A anlise do conjunto de festas karipuna privilegiada para a
compreenso do estudo da construo cultural, entendida como demarcao
de fronteiras tnicas e (...) formao de um sentimento de unidade por parte de
um grupo de famlias, a sua organizao segundo certos princpios e padres de
sociabilidade e a conjunta elaborao simblica de valores e vises de mundo.
(p. 16)
A populao Karipuna se compe de aproximadamente 1700 pessoas quase
todas residentes s margens do rio Curipi no norte do Estado do Amap, que
convivem com Galibi-Marworno, os Palikur e um pequeno grupo Galibi. O termo
Karipuna indica uma identidade de ndios misturados, civilizados ou avanados,
que tanto atribuda como assumida pelas famlias. (p. 16)
Tassinari diz ter escolhido, como mtodo de pesquisa, a humildade e o
dilogo com os componentes do grupo estudado. Seu envolvimento com a
populao Karipuna teve incio em julho de 1990, a partir de uma experincia de
campo ainda quando cursava o ltimo ano de graduao. No total a autora
realizou seis estadias relativamente curtas, de aproximadamente um ms cada
uma (p. 59), num prazo de trs anos, dos quais resultou sua tese de doutorado
defendida em 1998 que, por sua vez, deu origem ao livro.
Para Tassinari, que inicialmente objetivava estudar o grupo Karipuna
TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. 2003. No bom da festa: o
processo de construo cultural das famlias karipuna do Amap. So Paulo:
EDUSP. 413 pp.
Zlia Maria Bonamigo
PPGAS/UFPR
Campos 5(1):197-200, 2004.
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Zlia Maria Bonamigo
RESENHAS
comparando-o com outros grupos indgenas, a mudana para o estudo das diferentes festas como partes de
um conjunto articulado, pelo uso de uma anlise sincrnica, possibilitou o desenvolvimento da noo de
construo cultural. Esta engloba a rede de relaes sociais identificvel e a coerncia e singularidade cultural.
O passado heterogneo construdo nos anos de convivncia das famlias s margens do rio Curipi: todos se
consideram parentes, sua sociedade tem fronteiras pouco precisas, fluidas e indefinidas, e estabelecem redes
de relaes com grupos de trocas e de ajuda mtua para organizar os trabalhos e preparar as festas.
Para a escrita da etnografia, a autora se beneficia do movimento da antropologia nas ltimas dcadas.
Enfatiza o ritual como situao privilegiada para a anlise da cultura que engloba tanto a tradio quanto a
mudana. V a tentativa de apreender as especificidades culturais a partir de elementos aparentemente
frouxos ou desordenadores: as escolhas individuais que apresentam o esquema csmico (Sahlins), a
manipulao dos smbolos pblicos pelos sujeitos (Obeyesekere), o prprio posicionamento dos sujeitos, ou
as emoes do autor usadas como veculos que tornam acessveis certos conceitos nativos (Rosaldo), o
esforo situado em certos indivduos em elaborar conceitualmente os esquemas csmicos (Barth) (p. 39).
Tais abordagens criticam os modelos abstratos da antropologia, por demais ordenados, coerentes, integrados,
objetivos, mas trazem outra proposta, ou seja, a possibilidade de trabalhar como categorias de desordem,
conforme definidas por Roberto Cardoso de Oliveira: individualidade, subjetividade e historicidade, que so
entendidas como nica forma de apreender o fenmeno cultural, o que, por sua vez, pode no ser to
coerente, fixo, rgido e objetivo (...), mas tambm no impossvel de ser pesquisado. (p. 39)
O estudo da genealogia lhe revelou, em vez de uma viso exgena da noo de mistura, a relao de
todas as famlias com um ncleo comum de antepassados e a existncia de padres prprios de organizao
social. Destaca o movimento de famlias nucleares em busca de um determinado isolamento para criar os
animais sem incomodar o vizinho, o que d origem a novas aldeias.
Em suas anlises comparativas, a autora diz que as relaes sociais estabelecidas pelos Karipuna ocorrem
em duas esferas: aquela dos grupos locais endogmicos, em que preponderam imagens que evocam
consanginidade; e aquela mais ampla que envolve a possibilidade de troca de cnjuges, que engloba de
uma forma aberta aquelas famlias do Curipi que esto fora do grupo local e que pertencem a etnias indgenas
ou a famlias no-ndias da regio. Unem-se para atender ao objetivo de cooperao e ajuda mtua, fundamentais
para que as famlias sobrevivam.
Entre os Karipuna existem os mutires, nos quais as famlias convidam umas s outras para a realizao
de uma tarefa. Os anfitries devem servir bebida, especialmente o caxiri, e refeio, e os convidados ajudam
a executar o servio. Na vez seguinte o quadro se reverte.
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No bom da festa: o processo de construo cultural das famlias karipuna do Amap
RESENHAS
Quanto s festas, a autora cita especialmente as relaes de trabalho, a cooperao e a ajuda mtua
pelas famlias do rio Curipi, de cujas relaes se depreende um modelo de reciprocidade que fundamenta o
argumento da idia de construo cultural.
Os trabalhos comunitrios so servios indispensveis para a coletividade de uma aldeia. As festas
representam o encerramento de um pequeno ciclo de retribuio, a partir do pagamento de cada famlia a um
santo ou aos karuna (os seres sobrenaturais) de um paj, e h necessidade de compartilhar o vigor para o
trabalho, por meio dos mutires. Algumas famlias doam alimentos porque gostam de festejar. As festas se
tornam grandes momentos de redistribuio das riquezas e de contato com os seres sobrenaturais.
O Tur karipuna considerado pelas famlias Curipi oportunidades de danar, beber e cantar com os
karuna e de lhes oferecer caxiri como reconhecimento das curas que fizeram atravs dos pajs. Faz parte de
um conjunto que envolve festas catlicas e cvicas. Os Turs so realizados preferencialmente em um final de
semana de lua cheia do ms de outubro. A preparao feita com muita antecedncia. Na data prxima da
festa, utilizam madeiras brancas e leves para construir os bancos do Tur. Mastros so esculpidos e toras
erguidas e cruzadas ao alto.
A autora ressalta a Festa Grande ou Festa do Divino na qual fica bem visvel a forma alegre e dinmica
dos Karipuna. A festa comea a ser organizada um ano antes de sua realizao. A tarefa dos festeiros fazer
com que a festa se realize. Eles tomam essa incumbncia para pagar uma promessa feita ao Divino ou para a
construo de casas e cura de doenas; por isso todos e no somente os festeiros se comprometem e todos
se mobilizam na limpeza da aldeia, na preparao dos alimentos e na doao de donativos.
Os festejos do Divino ou da Festa Grande comeam bem antes da quarta-feira da Ascenso e terminam
aps o domingo de Pentecostes. Na quinta-feira comemora-se a ascenso de Jesus; dez dias depois
comemorado o dia de Pentecostes. Entre os dois dias existem diversas atividades preparatrias e de
encerramento. Entre as duas datas h espao de cinco dias em que as famlias retomam a rotina.
No sbado que antecede o Maiuhi Xapel, os convidados da capela se renem para os preparativos e os
caadores recebem munies. No dia do Maiuhi Xapel, os rojes comeam cedo. s 8 horas, a Casa de Festa
se enche. Ao mesmo tempo o almoo preparado com caxiri.
Na semana da festa os caadores voltam a receber munies para que a caa seja o bastante para as
refeies de trs dias de festa. Na terceira noite h a torrao do caf e uma refeio que preparam o comeo
da festa no dia seguinte, quarta-feira, que comea com rojes e recebe barcos e canoas de outras aldeias. Na
capela enfeitada ocorre a entrega das fitas e a entoao da Cano do Meio-Dia. s seis da tarde toca o sino
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da capela para a Ave Maria e o Canto da Boa-Noite. As velas so acesas, e o baile comea. A msica
interrompida pelos caciques que aproveitam para discursar. A msica pra com os sinos da meia-noite que
chamam todos para as ladainhas na capela. Os devotos fazem fila para beijar as fitas da imagem do Esprito
Santo. Depois o baile continua. No domingo, h culto pela manh. tarde, reunio do Conselho da Aldeia e
um novo grupo de festeiros comea a chegar por ocasio da festa grande (Pentecostes), embora os festeiros
da Ascenso ainda sejam requeridos para organizar a procisso da Meia-Lua e a derrubada do mastro.
Aps nove dias da Ascenso, os festeiros soltam rojes, e a vila do Esprito Santo comea a ficar cheia.
A vspera do Pentecostes o dia da Procisso da Meia-Lua. Tudo ocorre ento de modo semelhante festa da
Ascenso. Ao lado do mastro derrubado se manifestam os que querem ser festeiros no ano seguinte. Do
destino ao mastro e a bandeira branca, e a festa continua normalmente com baile na casa das festas.
Tassinari analisa tambm ocasies, em geral festivas, que colocam as famlias Curipi como partes de
redes de trocas mais amplas. Reporta-se ao ano de 1920, quando houve uma preocupao nacional dirigida
regio do Amap por ser a antiga zona do Contestado Franco-brasileiro, devido populao local apresentar
caractersticas afrancesadas. Nesse perodo introduzida tambm a escola do Curipi, que tem seu projeto
participado pelas famlias Karipunas.
Alm disso, as famlias aprendem formas valorizadas de se apresentar como anfitris das autoridades
locais, como ocorre na festa de Sete de Setembro. Junto com a escola chegam os jogos de futebol, como
atividades de educao fsica.
A autora diz ter procurado dar conta de um processo de construo cultural visvel num momento
privilegiado da histria das famlias karipuna, processo que no sem conflitos. Seus antepassados passaram
por fugas, explorao, insegurana, opresso e a busca de uma espao na regio do baixo Oiapoque. Sua
vida conjunta marcada por um acordo tcito tanto na aceitao de uma chefia comum, pela participao de
trabalhos conjuntos, quanto pela tica dos pajs de nunca declarar o nome de um feiticeiro, ou pela prtica de
abrir outra aldeia em momento de conflito entre vizinhos.
No mito karipuna da Cobra-Grande, em que a cobra no morta, mas dobrada, observa que ela
mantm seu poder destrutivo. No contato com a alteridade, que base da sociabilidade karipuna, o conflito
permanece latente ao estabelecimento de um acordo, ou seja, as famlias karipuna do Amap estabelecem um
processo de construo cultural que tambm um processo de elaborao de estratgias e mecanismos para
administrar o perigo do contato com a diversidade.
Zlia Maria Bonamigo mestranda no Programa
de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFPR.
Zlia Maria Bonamigo