m&u16-o mito e o valor da democracia racial
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Captulo 15
O MITO E O VALOR DA DEMOCRACIA RACIAL1
I
Estas notas intentam breve reflexo sobre o problema das relaes raciais no
Brasil e o que fazer a respeito. Creio que no h exagero em se pretender que este um
dos maiores problemas com que o pas se defronta. Levamos quase quatro sculos de
nossa histria de longe a maior parte dela a construir uma sociedade que associava o
escravismo com a heterogeneidade racial e vinculava a estigmatizao resultante da
escravido a atributos fsicos de alta visibilidade. O difcil legado que da herdamos no
apenas envolve o drama da desigualdade e da excluso socioeconmica de vastas
parcelas da populao brasileira, que passaram a inserir-se na estrutura social ps-
escravido em condies extremamente desfavorveis. Esse legado tem tambm como
componente uma perversa dimenso de psicologia coletiva, consubstanciada no fato de
que at mesmo certo sentimento bsico de auto-estima tende a ser negado populao
negra brasileira. O problema certamente mereceria muito maior ateno e interesse doque de fato recebe em termos de anlise e ao pblica e a reduzida ateno que lhe
dada provavelmente conseqncia e expresso, ela prpria, do nosso legado escravista.
Destaco que minha disposio nestas notas analtica, orientada pelo empenho de
apreender e realar aspectos que o diagnstico mais comum das relaes raciais no Brasil
com freqncia omite e de esboar, a partir da, certa perspectiva quanto natureza das
dificuldades que se abrem aos esforos destinados eventual superao de seus traos
negativos. A discusso a ser feita se move em torno da tenso entre o esclarecimento dos
fins a serem buscados e o diagnstico acurado das condies dadas. De qualquer forma, aperspectiva que adoto torna dispensvel que me ocupe em indagar se o racismo existe no
Brasil ou em xing-lo: os postulados que orientam a discusso (e que a avaliao do
1 Trabalho apresentado ao seminrio internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da AoAfirmativa nos Estados Democrticos Contemporneos, patrocinado pela Secretaria dos Direitos daCidadania do Ministrio da Justia, Braslia, 4 a 6 de julho de 1996.
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problema como um dos maiores problemas nacionais certamente evidencia) incluem
tanto o reconhecimento inequvoco da existncia do racismo brasileiro quanto a
inequvoca afirmao de seu carter odioso.
II
Meu ponto de partida consiste na indagao sobre a meta a que caberia aspirar:
qual a sociedade que almejamos no que se refere s relaes raciais? A resposta, a meu
juzo, clara: queremos uma sociedade em que as caractersticas raciais das pessoas
venham a mostrar-se socialmente irrelevantes, isto , em que as oportunidades de todo
tipo que se oferecem aos indivduos no estejam condicionadas por sua incluso neste ou
naquele grupo racial. Isso vale, antes de mais nada, para oportunidades relativas scondies materiais de vida e sua conexo com recursos de natureza intelectual:
oportunidades de emprego, de acesso educao etc. No Brasil da atualidade, possvel
apontar alguns ramos de atividade profissional que se aproximam desse desiderato de
irrelevncia das caractersticas raciais, apresentando importncia por se tratar de
atividades socialmente valorizadas e, como conseqncia, de veculos mais ou menos
freqentes de ascenso social. o caso da msica popular e do esporte, especialmente o
futebol. Parece bastante claro, por exemplo, que a estrutura profissional do futebol
brasileiro tende atualmente a premiar o talento ou o mrito profissional de maneiraindependente das caractersticas raciais dos jogadores: as chances de que um jogador de
futebol talentoso chegue, digamos, seleo brasileira, com o prestgio e as vantagens
decorrentes, no parecem depender de que se trate de um profissional negro ou branco.
Infelizmente, isso no significa que o racismo e a discriminao estejam excludos de
tudo o que diz respeito ao futebol ou ao esporte em geral, como evidenciado pela
reduzida presena de profissionais negros nas equipes esportivas das redes de televiso
brasileiras, em claro descompasso com a proporo de atletas negros.
Mas a irrelevncia das caractersticas raciais como aspirao ou meta vale
tambm para as oportunidades que se abrem ou fecham em outro plano: as oportunidades
de intercmbio e interao social de qualquer tipo com quem quer que seja. Este plano
compreende mesmo algo que surge como uma espcie de teste decisivo quanto
existncia ou no de racismo em determinada sociedade, a saber, as oportunidades mais
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ou menos difundidas de ocorrncia de formas ntimas de convivncia e intercmbio entre
pessoas de categorias raciais diferentes, incluindo-se de maneira destacada o intercmbio
especificamente amoroso e o maior ou menor estmulo a que aconteam casamentos
inter-raciais, com suas conseqncias para os padres de reproduo que se do na
sociedade e para a medida em que se preservam fronteiras ntidas ou rgidas entre os
diferentes grupos raciais. Aquilo de que aqui se trata pode ser talvez esclarecido por
referncia idia de um mercado em operao: a questo que se coloca a de at que
ponto a coexistncia de gente que apresenta caractersticas raciais diferenciadas resulta
em restries ao envolvimento igualitrio e desimpedido nas transaes do mercado
seja do mercado econmico convencional ou daquele, mais significativo em termos de
psicologia coletiva, em que se do intercmbios ou transaes de natureza pessoal. Na
sociedade racista, assim como a eventual posse dos recursos financeiros necessrios podeno resultar em habilitar um homem negro a consumir livremente no mercado (a
escolher, por exemplo, o restaurante de sua predileo), assim tambm o fato de ostentar
traos individuais ou pessoais que o tornem eventualmente o alvo de sentimentos
favorveis de certa mulher branca, sentimentos que hipoteticamente ele prprio retribua,
no o habilita a desfrutar sem mais (isto , sem pesados nus para ambos) da
oportunidade de experincia pessoal possivelmente rica que a disposio de ambos em
princpio representa.
Isso redunda, como ser talvez claro, em afirmar o individualismo como valorcrucial. A perspectiva esboada envolve o reconhecimento de que h decisiva conexo
entre o individualismo e o prprio ideal democrtico entendido no sentido mais rico e
exigente, ou no sentido em que se costuma falar de democracia "substantiva". Uma
sociedade no ser democrtica na medida em que as oportunidades dos indivduos
estejam condicionadas por sua insero nesta ou naquela categoria social: sejam quais
forem os critrios com base nos quais tais categorias se constituam (raa, classe, etnia,
religio, gnero...), a sociedade assim caracterizada ser fatalmente hierrquica e
autoritria, e as oportunidades diferenciais por categorias expressaro, ao cabo, o
desequilbrio nas relaes depoderentre elas e a subordinao de umas s outras. Assim
como no queremos a sociedade racista, tampouco queremos a sociedade que oprime
minorias (ou maiorias) tnicas, a sociedade machista, a sociedade marcada pelo dio aos
"infiis" e a discriminao religiosa e aspiramos igualmente a neutralizar tanto quanto
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possvel os efeitos da desigualdade de oportunidades que decorre da estrutura de classes
da sociedade capitalista.
Trata-se aqui de algo que, nos estudos relacionados com problemas de poder e
estratificao social, a sociologia contempornea designa convencionalmente como o
predomnio de fatores de adscrio, em que o status social de uma pessoa aparece
vinculado a certo trao ou condio que ela compartilha com outras normalmente em
virtude j do prprio nascimento e, portanto, de maneira independente dos seus mritos
pessoais ou do zelo e eficincia com que se desempenhe nas atividades de qualquer
natureza que sejam por ela desenvolvidas. Ao contrrio da condio marcada pela
adscrio (da qual a atribuio de status de acordo com caractersticas fsicas como raa e
sexo so os casos mais extremos, dada sua total independncia relativamente livre
deliberao e ao desempenho individuais), o ideal democrtico corresponde antes sociedade que faculta a livre busca da realizao pessoal e que estimula e premia
adequadamente os esforos e mritos pessoais correspondentes.
Naturalmente, como sugerido no que dissemos anteriormente a respeito da
possibilidade de desfrutar da riqueza contida nas relaes e intercmbios de todo tipo (em
especial as relaes ntimas e estritamente pessoais), o que h de spero e negativo na
viso de um individualismo desenfreado e competitivo estaria contrabalanado, na
sociedade democrtica assim concebida, pelo fato de que a deliberao pessoal livre
poderia exercer-se tambm no sentido de facultar ao indivduo o estabelecimento delaos sociais solidrios, clidos e duradouros. Mas tais laos seriam ento livremente
buscados ou consentidos, e a resultante imerso dos indivduos em grupos sociais
diversos nas diferentes esferas de atividade e interao expressaria suas decises
autnomas e no a mera operao de fatores de adscrio.
III
Dessa perspectiva decorre uma conseqncia importante para a discusso das
relaes raciais no Brasil. Trata-se da reavaliao que ela permite da ideologia "oficial"
brasileira de democracia racial. comum a denncia dessa ideologia como mistificao e
mascaramento de uma realidade de racismo e discriminao e portanto como algo de
que a sociedade brasileira deveria desvencilhar-se para que pudesse vir a ter a melhoria
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real no plano das relaes entre as raas. Naturalmente, se tomada como suposta
descrio do que na realidade se passa nas relaes raciais no pas, a ideologia da
democracia racial no pode ser seno denunciada como a grande mentira que seria (ou ),
de forma a se poder ter no lugar dela o correto diagnstico das dificuldades e
perversidades existentes.
Contudo, tomada como caracterizao da meta a ser buscada, a ideologia da
democracia racial se revela no apenas adequada: ela mesmo insubstituvel,
precisamente por afirmar uma condio em que as diferentes caractersticas raciais se
tornam irrelevantes. Como meta, ela claramente superior, por essa razo, ao modelo de
sociedade que transparece como tendncia ou resultado provvel da valorizao e da
afirmao aguerrida eventualmente beligerante de diferentes identidades raciais como
tal. preciso ponderar que a idia de luta de raas difere por um aspecto crucial da velhaidia da "luta de classes" concebida como instrumento de emancipao. Pois da luta de
classes teoricamente possvel esperar que, por meio da manipulao dos fatores que
respondem pela conformao e existncia das classes sociais, se venha a ter como
resultado a eliminao das classes como tal e a superao da prpria sociedade de classes,
ou a edificao da sociedade sem classes. Ora, a idia de uma sociedade multirracial
transformada em sociedade "sem raas", ou de uma s raa, absurda (e
inadmissivelmente racista e violenta em uma de suas interpretaes possveis, a de
eliminao fsica das demais raas). Da que a eventual luta de raas dever fatalmenteser seguida pela convivncia das raas que tenham lutado. E se a sociedade resultante da
experincia de luta entre as raas poder vir a ser racialmente igualitria, a memria de
dio racial (como a experincia dos Estados Unidos nos adverte, apesar de todos os
xitos recentes dos esforos de promoo social da populao negra) dificilmente lhe
permitir ser tambm autenticamente harmoniosa e fraterna na convivncia entre as
raas. Na verdade, essa sociedade tender para o apartheid, com as relaes entre os
grupos raciais assumindo a forma de uma espcie de "federao" e com as raas se
confrontando "de potncia a potncia" e de maneira pelo menos latentemente hostil,
conforme o modelo ainda prevalecente na arena internacional em que coexistem os
nacionais de diferentes pases formalmente iguais, mas separados.
No se trata aqui necessariamente de tomar como ponto de referncia positivo o
estado nacional e de fazer a apologia da fuso nacionalista das identidades individuais
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com a identidade nacional, ou da prpria definio da identidade pessoal por referncia
nacionalidade. Embora a definio da identidade pessoal suponha sempre sua articulao
com algum tipo de coletividade e a assuno, mesmo se crtica, de elementos que se do
nas relaes com os demais, cabe fazer duas ponderaes restritivas: por um lado, os
focos potenciais ou reais de identidade coletiva que poderiam desempenhar tal funo so
mltiplos (nao, classe, grupo tnico, religioso, racial etc.), e no h razo, em termos
de princpios abstratos, para se privilegiar o foco correspondente coletividade nacional;
por outro lado, os fatores em torno dos quais se define a nacionalidade e se constri o
estado-nao so, naturalmente, um exemplo importante de operao da adscrio que
acima apreciamos de maneira negativa e certamente possvel aspirar pela condio
em que a afirmao do individualismo como valor chegue neutralizao da relevncia
da prpria nacionalidade. Do ponto de vista de nossa discusso, porm, o que importa que, qualquer que seja o mbito ou alcance da coletividade (local, nacional, planetria)
que tomemos como dada para considerar a questo especfica das relaes raciais e suas
implicaes para o carter mais ou menos democrtico da coletividade como tal, o que
cabe desejar que o fator raa, assim como vrios outros, seja irrelevante. E no h
como escapar, no futuro visvel, da importncia do estado-nao como parmetro de
importncia decisiva em tal discusso em nosso caso, da sociedade brasileira e do
estado nacional brasileiro.
IV
Se concordarmos em reconhecer o valor do individualismo em correspondncia
com a aspirao democracia e o que h de vlido na ideologia brasileira da democracia
racial como descrio da meta a ser buscada, restar uma qualificao crucial a ser
ponderada. Trata-se, naturalmente, de que falar de aspirao ou meta no dizer nada a
respeito das condies que efetivamente prevalecem na sociedade brasileira da atualidade
quanto s relaes de raas e j se admitiu anteriormente que essas condies so
inequivocamente odiosas dada a existncia efetiva do racismo e suas seqelas. Coloca-se,
assim, a questo de como, nas condies estruturais e sociopsicolgicas dadas, se pode
pretender agir com eficcia no sentido de superar as deficincias existentes e assegurar
que se caminhe em direo meta da efetiva democracia racial.
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Essa qualificao acarreta, em particular, uma ponderao: a de que, na situao
real existente, na qual a desigualdade objetiva de condies de vida se associa com
condies ideolgicas e psicolgicas em que amplas parcelas da populao negra so
privadas at mesmo da auto-estima e em que a condio de negro resulta numa
identidade freqentemente negativa aos olhos dos prprios negros, a afirmao aguerrida
da identidade negra pode assumir significado instrumental ou representar mesmo um
passo necessrio no processo que permita a aproximao situao de maior igualdade
e eventualmente assegure a prpria meta de irrelevncia das caractersticas raciais. Isso
introduz algo claramente paradoxal diante das reservas h pouco manifestadas quanto s
possveis conseqncias negativas da afirmatividade racial: o preo a ser pago para a
alterao para melhor das condies sociopsicolgicas negativas que parecem
caracterizar boa parte da populao brasileira de cor negra pode ser precisamente amobilizao coletiva feita em termos tais que envolveria por fora a criao de um nimo
beligerante mais ou menos robusto. At o ponto em que a avaliao das condies
prevalecentes a envolvida seja empiricamente correta, no h como evitar admitir a
existncia de um trade-offno qual valeria a pena sacrificar o conformismo de parcelas
talvez majoritrias da populao negra (ainda que esse conformismo pudesse ser visto
como favorvel "paz" racial) em favor do acesso de tais parcelas a uma autopercepo
de maior dignidade e mais afirmativa e reivindicante. Admitido isso, porm, cabe
tambm reconhecer que a avaliao adequada da situao existente, quer em termosfatuais ou valorativos, v-se cercada de dificuldades, que se ligam com as complicaes
prprias da questo da articulao entre a identidade pessoal e as vrias referncias
coletivas de que aquela identidade pode valer-se.
Uma primeira dimenso a ser destacada quanto a essas dificuldades refere-se ao
pouco que sabemos, propriamente e com segurana, a respeito das complicaes e
sinuosidades do assunto. Em particular, os delicados aspectos de psicologia coletiva
envolvidos mereceriam estudos cuidadosos e sofisticados, ao invs da carncia de
esforos e da pobreza analtica que marcam a rea.
Se passamos ao plano substantivo, um aspecto equvoco o de que as
caractersticas raciais, por si mesmas, representam um fundamento antes precrio para o
esforo de redefinio de identidade e de mobilizao coletiva. Pois a identidade supe a
insero numa cultura e a absoro dela e a referncia a raa, por si s, est longe de
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fornecer um substrato cultural suficientemente forte e atraente para a mobilizao
empenhada na redefinio da identidade.2
Por certo, existe a possibilidade do recurso a uma identidade africana, caso em
que se trataria de associar, como tem ocorrido com o movimento negro no Brasil, a
caracterstica racial a um rico conjunto de traos de natureza inequivocamente cultural.
Mas h um patente artificialismo na pretenso de que a populao negra brasileira deva
vir a sentir-se propriamente africana em termos culturais e a construir sua identidade a
partir da. No obstante o bvio elemento de coero e violncia na transferncia inicial
de populaes africanas para o Brasil, para as geraes atuais a insero na complexidade
cultural da sociedade brasileira um dado do qual dificilmente podero esquivar-se
(nesse sentido, naturalmente, como Rousseau advertiu com especial fora, a coero
compe o substrato sociocultural da vida de quem quer que seja, ainda que de maneiramenos bvia ou dramtica do que a que se tem quando a escravido se acha envolvida).
E mesmo se cumpre reconhecer, em consonncia com a afirmao do individualismo
como valor, que o que cabe desejar quanto identidade individual que ela prpria
venha a ser, tanto quanto possvel, o objeto de deliberao pessoal reflexiva e autnoma
por parte dos indivduos, no h como deixar de reconhecer tambm duas outras coisas:
primeiro, que essa deliberao livre e reflexiva dever necessariamente "processar" o
material sociocultural disponvel e o condicionamento adscritcio por ele exercido
material este que, no caso da populao negra brasileira, inclui algo muito maiscomplexo do que a memria de origens africanas mais ou menos remotas (sem falar do
desafio posto pela modernidade ocidental para a identidade dos africanos da prpria
frica atual); segundo, que a nfase na livre deliberao individual quanto identidade
dificilmente poderia compatibilizar-se com a idia de uma espcie de predeterminao
forosa de uma identidade africana para os negros do Brasil. claro que o cidado
brasileiro de raa negra pode sentir-se brasileiro (com o que isso talvez implique de
reivindicao de certo legado que tambm europeu e ocidental), assim como pode
2 Sem dvida, a cultura a cristalizao, por assim dizer, de traos ou disposies de psicologia coletiva,os quais podem referir-se raa tanto quanto a qualquer outro aspecto da coletividade. No sentido aquirelevante, porm, a cultura certamente no se reduzs disposies de psicologia coletiva referidas raa.Alm disso, parte crucial do problema em questo tem a ver com o fato de que, no caso presente, taisdisposies redundam elas prprias numa identidade racial negativa e no comprometimento da auto-estima.
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reivindicar sua insero na categoria universal de homem e tratar de definir sua
identidade pessoal com base nessa opo universalista.3
Naturalmente, essa perspectiva no redunda em colocar necessariamente em
xeque a legitimidade de esforos de proselitismo como o que se tem com o movimento
negro brasileiro. Do ponto de vista doutrinrio ou valorativo, tal movimento certamente
legtimo, em princpio, como esforo de persuaso intelectual e de mobilizao. Mas, em
primeiro lugar, a perspectiva esboada questiona, sim, a acuidade da avaliao fatual das
chances de xito desse esforo no sentido de vir a empolgar extensamente a populao
negra do pas, pois tais chances parecem reduzidas nas condies sociopsicolgicas
prevalecentes. Em segundo lugar, articulada com a nfase dada anteriormente meta de
irrelevncia social das caractersticas raciais, ela contm uma advertncia que se aplica ao
prprio plano valorativo, chamando a ateno para o elemento de autocrtica eautolimitao que se impe a um esforo de redefinio mais ou menos artificial de
identidades coletivas que: (1) no pretenda ser vtima do perigo de arrogncia e
autoritarismo a contido, reconhecendo que seu xito depende da adeso voluntria e se
possvel lcida das pessoas a que se dirige; e (2) no pretenda comprometer de vez as
chances de criao de uma efetiva democracia racial em que seja possvel a convivncia
no s igualitria, mas tambm fraterna e harmoniosa de indivduos livres.
Cabe ainda mencionar dois aspectos. O primeiro deles freqentemente tomado
nos debates a respeito da questo racial no Brasil, dando origem a confuses de efeitosimportantes. Trata-se da questo da miscigenao, com sua clara relevncia para o
problema da definio (ou redefinio) de uma identidade negra. Pois, se temos intensa
miscigenao e mescla de traos raciais, surge a questo de onde fazer passar a linha
divisria (ou as linhas divisrias) entre as diversas categorias, com conseqncias para as
orientaes e eventuais polticas a serem adotadas. Assim, se se admite que a
miscigenao resulta na existncia de mltiplas categorias que merecem ser tomadas
como diferentes, qualquer poltica que tenha raa como referncia se torna mais
3 Lembro-me de ver na televiso, nos Estados Unidos de fins dos anos 60, uma entrevista de JamesBaldwin, o conhecido escritor negro norte-americano, na qual, a propsito de certa pergunta doentrevistador, proclamava ele vigorosamente: "Eu no sou um negro, sou um homem!". No seminriosobre Multiculturalismo e Racismo a que o presente texto corresponde, algum contraps a essa evocaoo fato de que Baldwin foi, no obstante, um militante do movimento dos direitos civis naquele pas.Talvez se tenha com ele uma ilustrao da perspectiva adequada, na qual o engajamento no combate desigualdade e ao racismo no redunda no fechamento ou no abandono da capacidade de adotar o pontode vista individualista e universalista.
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problemtica e de colocao em prtica mais difcil. Contudo, o critrio que tem sido
adotado e afirmado pelo movimento negro, de acordo com o qual se juntariam sob a
rubrica de negros tambm os mestios ou pardos, dificilmente admissvel: a idia
de tomar como negro quem quer que tenha uma gota de sangue negro vale tanto,
naturalmente, quanto a idia de tomar como branco quem quer que tenha uma gota de
sangue branco. Esse critrio redunda, na verdade, em claro exemplo de assimilao
injustificada das orientaes resultantes dos padres norte-americanos de relaes raciais,
onde a caracterstica de ser negro muito mais fortemente estigmatizada como uma
espcie de enfermidade contagiosa, que se contrai mesmo com pequena exposio a ela:
uma gota e se est contaminado de negritude. Tanto mais espantosas so certas
perspectivas notavelmente distorcidas que se podem encontrar em setores do movimento
negro brasileiro, que, empenhados em assegurar nitidez nas fronteiras raciais como parteda luta em prol das populaes negras, no hesitam em qualificar a miscigenao como
nada menos do que genocdio certamente adotando o ponto de vista segundo o qual
ela resulta no embranquecimento do pas. Alm do patente absurdo do emprego de
uma expresso fortemente marcada pela sugesto de violncia para indicar o fato de que
as pessoas, com certa freqncia, ao decidirem unir-se e reproduzir-se (amar-se!), tratem
a raa como irrelevante e ignorem as fronteiras raciais, outra dificuldade, naturalmente,
a de que, dependendo de como se olhe, esse embranquecimento pode ser igualmente
visto como enegrecimento. Ironicamente, o critrio norte-americano justamente oque mais deveria favorecer essa maneira de ver: se uma gota de sangue negro basta para
que as pessoas sejam negras, quanto mais miscigenao houver, mais negros teremos na
populao.
H uma importante qualificao a ser introduzida quanto a este aspecto, a qual se
impe se nos preocupamos em fazer justia s sinuosidades acima apontadas na
psicologia coletiva das relaes raciais no Brasil. Diferentemente do que se sugere no
pargrafo anterior (e do que se sugeriu anteriormente a propsito da idia do livre
relacionamento amoroso entre pessoas de grupos raciais distintos), pode dar-se que a
busca de parceiros brancos por parte de indivduos negros seja, como certamente ocorre
com freqncia no pas, tudo menos a expresso de irrelevncia das diferenas raciais:
ela pode ser, ao contrrio, justamente a expresso da assimetria nas relaes raciais e um
correlato da falta de auto-estima negra, que acarreta como conseqncia a assimilao de
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um padro esttico branco pela populao negra. Como Diva Moreira, por exemplo, nos
tem feito notar em seu trabalho, esses fenmenos terminam por vitimar especialmente a
mulher negra, pelo fato simples de que os homens dispem com maior freqncia de
oportunidades de escolha menos limitadas. Eles so uma clara e dolorosa manifestao
da patologia que marca as relaes raciais entre ns. Ainda que sua ocorrncia no afete
o princpio mesmo da irrelevncia da condio racial como desiderato a ser buscado, ela
sem dvida fortalece a idia da necessidade de passagem por um momento afirmativo
com respeito identidade negra, no obstante os problemas e as dificuldades envolvidas
nessa afirmao.
O segundo aspecto acima anunciado, que se liga com o primeiro, pode ser
expresso pela frmula bombstica que se costuma encontrar na literatura sociolgica
brasileira sobre relaes raciais: a do paralelismo das escalas cromtica e social. Eladestaca o fato de que, em decorrncia das origens escravistas de nossa heterogeneidade
racial, as caractersticas raciais dos indivduos se correlacionam com sua posio
socioeconmica, indo-se da presena mais marcante de negros na base da estrutura social
presena dominante de brancos no seu pice, com os mestios tendendo a ocupar
posies intermedirias. Isso resulta em vincular um importante componente social ao
problema das relaes raciais, o que tem conseqncias relevantes para opes de
polticas pblicas a serem exploradas brevemente em concluso.
V
Que dizer, como decorrncia de tudo isso, sobre a questo da ao afirmativa?
Tomada genericamente em termos de aes adotadas pelo estado e intencionalmente
dirigidas ao avano e melhoria nas relaes raciais no pas, a proposta de ao afirmativa
claramente irrecusvel. Como se sugeriu no incio, a pouca ateno prestada ao
problema racial no Brasil, incluindo a insensibilidade revelada pelo estado brasileiro para
com ele, pode ser vista como parte do muito que h de negativo em nosso legado
escravista. Creio, porm, que h lugar para alguns matizes importantes aqui.
A meu juzo, h certamente uma esfera em que a ao do estado deve dirigir-se
explcita e diretamente questo racial como tal: trata-se da esfera correspondente
prpria neutralizao do preconceito e da discriminao raciais. Naturalmente, o estado
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j se faz presente nessa esfera por meio da criminalizao formal da discriminao racial
na legislao brasileira. Os problemas aqui envolvidos so, porm, antes de tudo
problemas culturais ou de psicologia coletiva. evidente que a ao do estado nesse
plano deixa muito a desejar, com conseqncias importantes para a prpria eficcia real
da legislao mencionada, que raramente faz sentir seus efeitos, ou mesmo acionada,
numa cultura que na verdade racista e tolerante com as infraes do princpio legal.
Alm do aperfeioamento dos dispositivos e mecanismos legais e jurdicos, de maneira a
torn-los mais sensveis questo racial e mais geis em responder a ela, seria possvel
esperar do estado disposio muito mais ativa para agirpedagogicamente contra o
preconceito: caberia a ele regular e fiscalizar apropriadamente as diversas esferas em que
se produz a inculcao dos valores pertinentes, que vo desde a escola, como instituio
formal de ensino e socializao dos imaturos, at, por exemplo, o mundo dos comerciaisde televiso como veculo inocente de mensagens insidiosas sobre o valor esttico e
social ligado s diversas raas.
Creio, porm, que muito mais problemtica a idia da ao afirmativa tomada
como o empenho, por parte do estado, de promoo social e econmica dirigida
especificamente populao negra como tal. A discusso anterior ter provavelmente
deixado claras as razes dessa avaliao restritiva. Tais razes so, por um lado,
tcnicas, no sentido de se referirem dificuldade de se definir de maneira
suficientemente ntida os que se habilitariam e os que no se habilitariam aos benefciosdesse tipo de ao, e portanto dificuldade de se colocar em prtica e administrar
apropriadamente as decises eventualmente adotadas. Mas o aspecto tcnico das razes
em questo desdobra-se imediatamente num aspecto humano. Pois seria claramente
odiosa, nas condies gerais que caracterizam as vastas camadas destitudas da populao
brasileira, a pretenso de se estabelecer a discriminao entre as raas como critrio para
a ao de promoo social do estado. Pondere-se que justamente na base da estrutura
social, onde obviamente se encontram os alvos potenciais mais importantes do esforo
social do estado, que mais se mesclam e integram socialmente populaes racialmente
diversas, sem falar da ocorrncia mais intensa da prpria miscigenao.
A ao do estado mais diretamente no plano econmico-ocupacional ter,
portanto, de ser orientada por critriossociais antes que raciais. Esta forma de ao no
somente evita as dificuldades tcnicas, alm de ajustar-se ao valor da no-
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discriminao e da democracia racial: ela provavelmente tambm a mais capaz de
assegurar, dada a correlao racial-social anteriormente assinalada, a prpria promoo
social dos negros brasileiros. Como assinalava George Reid Andrews em sua
comunicao neste mesmo seminrio, Cuba provavelmente o pas mais bem sucedido,
em todo o planeta, no que se refere a igualar as condies de categorias raciais diversas
sem ter tido polticas especificamente dirigidas populao negra. Este , acredito, o
exemplo que se deveria procurar seguir.
Parece apropriado fechar estas notas lembrando que o Brasil, por seu turno, nos
muitos decnios transcorridos desde a abolio da escravatura, talvez o pas mais bem
sucedido em termos de dinamismo e desenvolvimento econmico. O resultado, no
entanto, a sociedade desigual, injusta e racista que a est diante dos nossos olhos.
Portanto, um sim, sem dvida, ao afirmativa, num sentido que envolve a oposiofrontal perspectiva daqueles que pretendem ver nas condies da dinmica econmica e
tecnolgica da atualidade as razes para uma espcie de abdicao do estado. Ao
contrrio, tais condies, com suas conseqncias socialmente perversas (em que nossos
fatores autctones e tradicionais de desigualdade e excluso so cumulados em seus
efeitos pela atuao de fatores modernos), no fazem seno tornar mais imperiosa a
necessidade da ao intencional do estado para compensar tais conseqncias, ainda que
as circunstncias tornem tambm mais difcil a prpria ao do estado, impondo seu
enxugamento e agilizao. Faamos, pois, um estado to gil e enxuto quanto possvel,mas to complicado quanto seja necessrio para dar conta da tarefa social que lhe cabe.
Tarefa em cujo cumprimento a indispensvel promoo social da populao negra vir,
cabe esperar, como decorrncia.
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