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Kicola: Estudos sobre a Literatura angolana no século XIX VOLUME I FRANCISCO SOARES

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Estudo formal e comparativo da lírica angolana do século XIX e de poetas brasileiros e portugueses da mesma época.

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Page 1: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Kicola: Estudos sobre a

Literatura angolana no século XIX

VOLUME I

FRANCISCO SOARES

Page 2: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Como citar:

Francisco Soares – Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX. I. Benguela: autor, 2010.

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Índice

Índice ....................................................................................................................... 3

Nota: .............................................................................................................................. 4

Circunscrições ................................................................................................................. 5

Introdução ......................................................................................................................................... 5

Apresentação e licitação sumárias do Corpus ................................................................................... 9

Seleção e exclusão de poemas fora do critério proposto ............................................................... 12

Divisão do período estudado em dois ............................................................................................. 13

Autores de referência ...................................................................................................................... 17

Determinação das obras de referência e do método ...................................................................... 19

Observações acerca de alguns conceitos operatórios utilizados .................................................... 22

Análise estilística do corpus escolhido ........................................................................... 32

As estrofes de quatro versos ........................................................................................................... 32

As estrofes de cinco versos ........................................................................................................... 111

As estrofes de seis versos .............................................................................................................. 125

As estrofes de sete versos ............................................................................................................. 148

As estrofes de oito versos ............................................................................................................. 158

As estrofes de dez versos .............................................................................................................. 185

Os sistemas estróficos ................................................................................................................... 201

Conclusão ................................................................................................................... 232

Obras Citadas ....................................................................................................... 236

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Nota: Kicola é uma palavra extraída a um dos poemas estudados neste livro. Significa proibição, tabu: “não pode ser”. Angola tinha no século XIX uma literatura mais informada e apurada e globalizada do que se pensa. Estudei-a em vários aspetos e, sobretudo, nos aspetos formais, mostrando que ela estava a par do que se fazia, pelo menos, em Portugal e no Brasil. Como até há poucos anos ninguém acreditava nisso (que houvesse ali uma poesia significativa o suficiente para ser investigada) dei como título principal do livro esta palavra, Kicola. É claro, com ironia.

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Circunscrições

Introdução Nenhuma literatura surge ou se desenvolve sozinha, por mais que a angústia da influência nos leve a negar. O estudo da formação de uma

literatura não pode, portanto, realizar-se fora das implicações desta

constatação.

Ela também orientou as minhas investigações sobre a literatura em

Angola no século XIX. Na pesquisa desenvolvida ao longo dos últimos

vinte e dois anos e de que dou conta agora em parte, comecei por

mapear e equacionar o corpus constituído pela lírica em verso enviada

de Angola para o Almanach de lembranças luso-brasileiro durante a segunda metade do século XIX. Ou seja: equacioná-lo relacionando-lhe

diametralmente as aflorações românticas portuguesa e brasileira, com

as quais essa lírica mantinha recorrentes afetos e interesses incestuosos.

Tal propósito inclui-se num outro, mais vasto, que é o de estudar a

poesia lírica versificada no século XIX em Angola para, através dessa pesquisa, dar dois passos importantes: primeiro, definir com segurança

a poética implícita, ou seja, o conhecimento literário funcionalizado

pelos líricos “angolenses”; depois, iniciar o levantamento da primeira

fase sistemática da formação da literatura de um país situando-a entre

congéneres.

A constituição do primeiro passo da pesquisa obrigava naturalmente a incluir, por motivos de segurança e de alarme contra incêndios, uma

enumeração formal, principalmente relativa à adoção de modelos estróficos e enunciativos contemporâneos. Os recursos técnicos, desideologizados como veremos que eles estavam em Angola na época,

eram adotados sem autocensura. Isto faz com que o seu estudo nos

dispense de reservas que a comparação ao nível dos conteúdos e referências imporia, fragilizando as nossas conclusões.

É por isso que vou aqui estabelecer uma hipótese inicial que, por ora, se limitará só àquilo que a semiótica chamaria a «forma da forma» e o

«conteúdo da forma», ou seja, aos arquétipos formais implicados pela

prática literária da comunidade angolense e respetivas ilações imediatas, especialmente ao nível das intertextualizações. Só por

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oportunidade falarei sobre o referencial personalizado que a biografia do

autor convoca, os conteúdos explícitos do poema, algumas

intertextualizações por via lexical, conceptual ou imagística. Faço-o

para facilitar no mundo referencial articulações literárias ainda

incipientemente apreendidas no relevo irregular dos textos. Ainda para

ir aquilatando, por comparações textualmente suscitadas, o valor, a

dimensão, o alcance dos nossos líricos tentames.

Para evitar desvios relativamente ao objetivo estrito, só por necessidade

comentarei também os implícitos filosóficos que o artista maneja como

um ferreiro na forja. O nervo das atenções estará centrado na maneira

de se construir os versos e as estrofes, ou seja, nos aspetos artesanais

considerados meramente técnicos.

Sigo uma perspetiva que o comparativismo não desdenharia, sobretudo

quando concebe que “uma poética plena também envolve os meios de produção” (Miner, 1996 p. 35) e quando percebe que as literaturas se

envolvem também transferindo blocos de informação técnica. Como escreveu Michael Werner, em “si mesma, a mudança transnacional —

que se pode também definir em termos de intertextualidade, de filiação

literária, até de legitimação pelo exterior — só revela, de um lado, a

existência de conjuntos que estão em relação uns com os outros, e, do

outro, o simples facto de que estas relações podem apreender-se sob a forma de transferências de informação” (1994 p. 17). A transferência

técnica, naquele nosso tempo, teve a grande vantagem de não se

condicionar ideologicamente, nem por questões de legitimação,

permitindo-nos assim rastrear com exatidão rotas fundamentais do comércio literário angolense.

Para que fiquem nítidas as pistas de aterragem, para que – ao mesmo

tempo – se abra caminho a hipóteses comparativas abrangentes, é que

investiguei o paralelismo com a lírica mais lida em Angola no século XIX, que era a portuguesa. Na maioria dos casos ela foi lida e

reverenciada no Brasil, não somente em Angola. No relativamente frágil

horizonte bibliográfico das «ilhas crioulas» angolanas do século XIX, os poetas ultrarromânticos lusitanos ocupavam, como se vai pormenorizar

em seguida, um lugar muito especial. Para se conhecer com exatidão os

artifícios apropriados, ou transformados, pelos ultrarromânticos

angolanos, acima de tudo a geração artesanal revelada pelo Jornal de Loanda de Alfredo Troni, tornava-se imperioso situar as pistas da comercialização literária — que por vezes registavam trânsito nos dois sentidos, o que também vou fixar adiante.

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Mas a literatura portuguesa e a brasileira estavam profundamente

ligadas ainda. Leia-se, por exemplo, o Cancioneiro alegre de Camilo Castelo Branco (Branco, 1879). O autor foi uma das referências do

ultrarromantismo lusitano e o grande modelador da figura ridícula do

‘brasileiro’, não o próprio mas o ‘torna-viagem’. A antologia está cheia de

brasileiros, alguns dos quais se vieram a revelar importantes para estas

investigações. Entre poemas e comentários – a maioria jocosos – deparamo-nos com Fagundes Varela (editado e re-editado no Porto),

Álvares de Azevedo (o poeta dos “delírios byronianos”), Gonçalves

Crespo (reclamado por Camilo – e não só – para a lírica portuguesa),

Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu.

A citação do Cancioneiro alegre é uma de entre outras possíveis, mas alguns factos e poemas ali transcritos reforçam o sentido e o paladar da

citação. Um dos poetas brasileiros que várias vezes apresenta

afinidades com (se não influencia diretamente os) poetas do corpus é Casimiro de Abreu. Não tenho notícia da leitura de livros seus em

Angola, por enquanto. Mas Eduardo Neves quase plagia o poema com que o brasileiro recebe Faustino Xavier de Novaes no Rio de Janeiro,

poema e facto comentados por Camilo no Cancioneiro alegre (Branco, 1879 pp. 145-147). As boas-vindas do brasileiro começam assim:

Bem-vindo sejas, poeta, A estas praias brasileiras! Na pátria das bananeiras As glórias não são de mais: Bem-vindo, ó filho do Douro! A terra das harmonias, Que tem Magalhães e Dias, Bem pode saudar Novais.

Magalhães e Dias são os dois Gonçalves fundadores do romantismo no

Brasil: Domingos Gonçalves de Magalhães e Antonio Gonçalves Dias.

Mas não é isso que o nosso poeta repete quando recebe o Almanach de lembranças, ao qual dedica a sua cândida colagem. É isto:

Bem vindo sejas, livrinho, á patria das africanas! onde há côcos e bananas os livros não são de mais. Rescendendo mil perfumes de tão variados artigos, vens visitar os amigos como um bom filho seus paes.

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A métrica, a distribuição rimática e parte do ritmo são os mesmos. Mas

também os quatro primeiros versos são quase iguais. Ora o Cancioneiro foi publicado em 1879 e o poema de Neves foi escrito “na occasião em

que recebi o A. de Lembranças de 1881”. Mais que não fosse terá lido ali

Eduardo Neves a composição de Casimiro de Abreu, que desde logo o

marcou.

Este simples episódio mostra o quanto era preciso sair daquele também

limitado meio (o das referências ultrarromânticas portuguesas) para

incluir as grandes figuras da lírica romântica brasileira. Desde logo a

obra incontornável de Gonçalves Dias, que tanto influenciou Casimiro

de Abreu e, entre nós, Maia Ferreira. Com o decorrer do trabalho,

apesar de não ter sinais da circulação de livros de outros românticos

brasileiros por Angola, fui-me dando conta de maiores similaridades e

relações literárias com poetas brasileiros. Fui portanto levado a

consultar sistematicamente as escolhas técnicas de outros poetas ainda: Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882) – o menos

coincidente; Álvares de Azevedo (1831-1852), procurado e lido por Antero de Quental (Neves, 1992 p. 85); o já citado Casimiro de Abreu

(1839-1860); Fagundes Varela (1841-1875); Castro Alves (1847-1871),

procurado e lido por Antero de Quental também. Todos estes nomes

estavam antologiados no Tesouro poético da infância, coligido e ordenado por Antero de Quental e publicado em 1883 para desfrute da infância portuguesa (AAVV, 1883). Esse livro circulou por Angola no

século XIX e eu pude espreitar ainda um exemplar no Arquivo Histórico

Nacional. Mais novos que os antologiados eram Cruz e Sousa (1861-

1898) – por estranho que pareça o mais coincidente com a nossa lírica –

e Olavo Bilac (1865-1918).

Os antologiados brasileiros apareciam já no Parnaso português moderno, reunido por Teófilo Braga (Braga, 1877). Eles emparceiravam com uma grande mistura de representantes de várias escolas poéticas

em vigor em Portugal no século XIX, entre os quais: Almeida Garrett (1799-1854), A. Feliciano de Castilho (1800-1875), Alexandre Herculano

(1810-1877), João de Lemos (1819-1890), A. X. Rodrigues Cordeiro (1819-1896), José da Silva Mendes Leal (1820-1886), Luiz Augusto

Palmeirim (1821-1893), Soares dos Passos (1826-1860), Bulhão Pato (1828-1912), João de Deus (1830-1896), Thomaz Ribeiro (1831-1901),

Ernesto Marecos (1836-1879), João Penha (1838-1919), Guilherme de

Azevedo (1840-1882), Anthero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Guilherme Braga (1845-1874), Gomes Leal (1848-1921),

Guerra Junqueiro (1850-1923).

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Apresentação e licitação sumárias do Corpus A escolha do Almanach de lembranças como fonte principal, um anuário que a partir de Lisboa circulava pelo império luso-brasileiro (já então

cindido mas culturalmente articulado), deve-se, como disse, à

necessidade de conjugar estes dois objetivos: uma clara mapeação das

fontes portuguesas e, tanto quanto possível, brasileiras; uma definição

minuciosa das soluções formais utilizadas pelos líricos angolenses.

Convido-vos a perceber porquê.

O Almanach de lembranças inicia a sua comercialização com o número para o ano de 1851, sob a responsabilidade de Alexandre Magno de

Castilho (Almanach de lembranças para 1851, 1853). Ao primeiro

responsável “sucederam, em 1861, na direção do Almanach, seu genro e sobrinho de mesmo nome, e António Xavier Rodrigues Cordeiro [...]

jornalista e poeta, editor do Trovador” (Oliveira, 1990 p. 200). É Rodrigues Cordeiro quem assumirá depois inteiramente a coordenação redatorial, com a morte do companheiro, ocorrida em 1872, data a

partir da qual passa o Almanach de lembranças a ver-lhe adjetivado o epíteto de “Luzo-Brazileiro”, que se manterá até ao final. A partir de

1896 a publicação passa de mãos uma derradeira vez, assegurada

agora a sua responsabilidade pública pelos sobrinhos de Rodrigues

Cordeiro.

A minha focagem, limitada como todas, incidirá somente nos números

até 1900. Não por acreditar eu numa estrita coincidência entre a

cronologia civil e a historiografia literária. Antes porque, mesmo para

melhor delimitar o período em causa (o do ultrarromantismo angolense),

preciso de começar por um corpus e, não tendo acesso prévio aos dados intrínsecos que lhe circunscrevam nova baliza, socorri-me de uma delimitação ao mesmo tempo simbólica e exata, consciente de que

qualquer outra escolha seria tão arbitrária quanto esta, já perfilhada antes por Mário António Fernandes de Oliveira no estudo sobre as

«Colaborações angolanas», que foi recolhido em Reler África (Oliveira, 1990). Um motivo histórico me levou também a lacrar em 1900 o conjunto de números em equação. Foi o de ter emergido pouco depois

em Luanda uma geração, a de Luz e crença (1902-1903) e dos Ensaios literários (1901-190[2?]), que procurou implantar novos cânones

estéticos e depurar opções ideológicas no país em formação1. Se em

1 Cf., de Manuel Ferreira, No reino de Caliban (Ferreira, 1976 pp. 13-14). Mário Pinto de Andrade, no prefácio a La poésie africaine d’expression portugaise, fala na “geração de 1896”, sem justificar o ano (Andrade, 1969 p. 15); não descobri razões para lhe situarmos a emergência nessa data, embora todos os seus autores venham do século XIX. Não creio também que a geração tenha conseguido mudar os cânones estéticos vigentes entre os escritores crioulos, quer porque não há sinais disso na lírica posterior, ainda muito marcada

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1901 havia publicações assumindo alternativas à cultura poética

dominante, por dedução, o domínio cultural do escol anterior tinha sido

ultrapassado em 1900.

Quanto à data do início do corpus, ela prende-se com razões mais simples ainda. Os primeiros poemas de subscrição africana publicados

no Almanach apareceram no número para o ano de 1855: um de localização muito vaga; o outro, de Dª Antónia Gertrudes Püsich

(colaboradora de A grinalda), explicitamente situado em Cabo Verde.

A primeira composição de que falo chama-se «Diálogo entre Pai

Matheuso e a Mãi Cassarina». Nela se procura registar a fonética e, com

menos sucesso, a sintaxe do português predicado em alguma zona de

África, ou por africanos. O tema, colorido com tons exóticos, é da

autoria de José Carlos Cerveira Valente e em nota que o acompanha se

refere que foi composto “logo depois da revolução de 1820”. O comentário aproxima o contexto da enunciação e a referência do

diálogo, a dita revolução, podendo portanto a data recuar até 1820.

Nesse procedimento (composição de uma ficção enunciativa – pouco importa se ‘real’ ou não) observamos um típico recurso romântico,

arrastado até à poesia militante angolana dos nacionalistas da

Mensagem, que é o de reforçar a verosimilhança por uma incidência de

pretensão biográfica e de caráter explícito.

Delimito, com estes dois poemas e a viragem do século, um primeiro

grande leque temporal, que vai de 1855 a 1900. Conforme o trabalho for

avançando podemos reduzir ou esquadrinhar o campo do seu

manuseamento.

* A escolha do Almanach foi, já o disse, consciente. De entre todos os órgãos de imprensa portuguesa onde colaboraram angolanos ou residentes, o que se destaca é precisamente este. Como diz Mário

António, “nenhuma outra publicação, editada fora de Angola, reuniu tão

grande número de colaboradores angolanos” e “em poucas se verificou a colaboração de nomes tão significativos da intelectualidade angolana”,

pelo ultra-romantismo serôdio, quer porque os autores de Luz & crença (a única das duas publicações até hoje conhecida – a outra eram os Ensaios literários e só Mário António parece ter lido) caem facilmente no neo-romantismo e na recuperação dos ideais (também eles românticos) da Revolução Francesa. Nenhum deles atinge, pois, segundo M. Ferreira, uma expressão clara de nacionalismo – nem de socialismo, ou de realismo panfletário.

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anotando ainda o crítico de Maquela que, “através dela, participaram

num diálogo verdadeiramente atlântico, pela parte que melhor conheço,

quantos, naturais ou radicados, mais seriamente prosseguiram

interesses culturais em Angola” (Oliveira, 1990 pp. 199; 245-246).

A importância ao nível da colaboração é acompanhada na receção

Sabemos que o anuário se vendia na colónia, sendo procurado com interesse suficiente para que os jornais o anunciassem. Veja-se, em

1874, o exemplo do Cruzeiro do Sul, onde pontificava o patético Urbano de Castro (Cruzeiro do Sul, 1873; 1874). Os exemplares do anuário para

esse ano estavam lá anunciados, na última página do n.º 17, pela casa

de Prado & Toulson, que se encontrava em liquidação – e aqui nos

interessam o título do jornal, o nome do seu pontífice e o nome dessa

casa comercial, que nos ligam à secção mais ativa culturalmente na

colónia desse tempo. É Mário António quem nos confirma, ainda, uma

receção genericamente entusiasmada: “essa, sumariada, a história da publicação que tão grande audiência teve em Angola, por toda a

segunda metade do século XIX, período a que aqui nos reportamos. Nenhuma outra publicação deve tê-la igualado no interesse público, um

interesse que abrangia as escassas elites de Angola” (Oliveira, 1990 pp.

200-201).

Ao colaborar repetidamente, sob as mais diversas formas e ao ler o

Almanach, a pequena comunidade literária angolense, nativa e residente, estava a dar os primeiros passos fora do berço e, ao mesmo

tempo, revia-se num lugar comum, canónico. Portanto ali podíamos

encontrar exemplos do conhecimento literário local e, ao mesmo tempo,

indicações acerca dos autores de referência coletiva.

* Este corpus, no entanto, não deve ser tomado como absolutamente fiel. Na verdade ele é virtual. Quer dizer, os poemas podem não ter sido

enviados tal como surgem nas páginas do anuário, pois o coletor assumia que os modificava ou lhes amputava partes, o que por sua vez

causava nos candidatos a poetas uma segura dose de autocensura, que

decerto lhes limitava qualquer apetite inovador. Entre a colaboração inicial e aquelas letras que nós lemos no periódico há a diferença que

vai da realização (pessoal) de um arquétipo à mutilação pelo protótipo

(do coletor-editor).

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No que diz respeito ao nosso campo de interesses, porém, penso que o

facto não prejudicará significativamente a recolha porque, uma vez

comparados os resultados com os de outro levantamento, feito sobre os

poemas publicados nos jornais da época e nos poucos livros, não há

diferenças significativas entre os colaboradores angolanos do Almanach

e os dos periódicos e livros que não editaram lá (exceção feita a alguma

da lírica assinada por Urbano de Castro no Cruzeiro do Sul, nomeadamente ao seu recurso repetido ao pentassílabo, que desaparece

nas “colaboração angolanas” para o anuário mas reaparece em Maia

Ferreira e Cordeiro da Matta).

Seleção e exclusão de poemas fora do critério proposto Pretendo incluir no corpus todas as composições de Cândido Furtado desde que chegou a Angola. João Cândido Furtado de Mendonça

d’Antas foi poeta d’A grinalda e residiu em Angola durante cerca de oito anos, tendo sido juiz em Luanda, entre outras funções mais adiante

especificadas. Aí escreveu o primeiro poema ‘local’ de elogio à mulher

negra. Depois partiu para Portugal e não mais regressou a Angola.

Não pesquisei somente os poemas do tempo em que residiu entre nós.

Integro mesmo as suas composições que, de referência luandense,

publicou depois de ter ido para Portugal. Tendo o poeta vivido em Angola, onde desempenhou funções relevantes para a sociedade

angolense da época, e tendo a sua poesia de referência africana sido,

semanticamente, importante para os poetas locais, penso que ela podia

ser ainda relida em Angola (e re-escrita em Portugal) em função desse convívio. Para salvaguardar consequências negativas que esta atitude

possa trazer ao trabalho, mantenho-me atento à data de publicação, ou

composição, dos seus poemas e à consonância técnica da sua poesia

com a dos textos cujo cânone versificatório pretendo surpreender.

Em relação a um poema assinado por “Judith...”, que não vem

localizado, senti-me levado a incluí-lo no corpus porque, sendo ele dedicado a Augusto Maria Lilla, um colaborador residente em Angola com quem “Judith”, pelos vistos, havia tido uma relação muito próxima,

podia ser escrito por uma angolana – membro, por exemplo, da família

Amzalack, visto que a autora se assume como judia.

Incluirei também dois poemas extraterritoriais de Abílio de Mendanha,

um enviado de Coimbra e o outro do Rio de Janeiro. Visto que todos os

outros poemas do Almanach assinados por este autor são remetidos de Angola, havia a hipótese de o mesmo continuar a residir na então

colónia mas, de passagem por Portugal e pelo Rio de Janeiro, ter

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enviado esses poemas ao anuário. Acresce que a passagem por

Coimbra, para um interessado em poesia, torna-se importante para

nós. Ela é reforçada por uma colaboração no Almanach para 1866, sobre Montemor-o-Velho (perto de Coimbra) e aí localizada, assinada

por D.ª Maria da Piedade Goes Mendanha Azevedo Raposo (1866/92).

Possivelmente a família próxima do poeta residiria inicialmente por aí.

Por sua vez é provável, também, que o subscritor viajasse para o Brasil em 1900 (ano em que assina colaboração daí), sendo que já desde a

década de 40, pelo menos, havia lá mais pessoas com esse apelido, que

me parece raro na época (Coelho, 1965)2. E, mais concretamente, um

homónimo do nosso versejador – se não mesmo o próprio – aparece

num processo de reabilitação de falido, sendo o falido ele, que possuía

uma farmácia, Abílio Augusto Goes Mendanha Raposo. Ora o nosso

poeta assina Abílio Augusto G. Mendanha Raposo. O documento,

captado em rede (Ministério da Justiça, 1921), é de 1921 (31 de

Janeiro) e manda passar um edital, a requerimento do comerciante datado de 27.1.1927, localizando-se no Rio de Janeiro, no interior do

Estado, mais precisamente na comarca de Paraíba do Sul (que é também nome de rio que por ali passa). É, portanto, possível que o

comerciante (ou farmacêutico) tivesse acabado por residir no Brasil,

andando por Angola num tempo mais recuado.

Finalmente, excluí uma composição de José da Silva Maia Ferreira, visto fazer ela parte do seu livro e não ter sido, portanto, escrita no

período considerado (1856-1900).

Divisão do período estudado em dois Ernesto Marecos e Cândido Furtado, permanecendo em Angola, e lá ou de lá publicando e escrevendo, antes do início de uma produção

carismática no país, ocupam, necessariamente, um lugar especial no

corpus estudado.

O primeiro não é só uma referência literária portuguesa que espalha em

Angola o ultrarromantismo de O bardo, é uma referência da vida

cultural da colónia a partir do momento em que nela canta ideais

libertadores e funda um primeiro jornal literário, para além de dirigir a

primeira peça teatral (O fugitivo da Bastilha) da Sociedade Providência – primeira a ser representada ou, pelo menos, a primeira sobre a qual há

documentação. Era, de resto, anunciado no próprio Almanach. Por

2 Um deles tratava da venda de “uma Venda” na Rua Direita D4 no Recife, segundo anúncio do Diário de Pernambuco, de 21 de Abril de 1842 (p. 4). No n.º de 25 de Abril aparece ainda o seu nome a leiloar bens de outra pessoa. Num anúncio saído a 7-7-1842, p. 3, fala-se de uma “Ana Joaquina, filha de José da Silva Mendanha, já falecido, empregado que foi no Trem (…)”.

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exemplo o número para 1866, na secção de anúncios, apresentava um

da Livraria Luso-Brasileira que iniciava a sua lista de títulos pelas

Primeiras inspirações e por “Juca, lenda africana”.

O segundo é, para além disso, um colaborador cujas contribuições

temos que estudar como fazendo parte do nosso corpus, de tal forma

elas podem contaminar o ambiente poético no local.

* Se dividirmos o tempo de publicação selecionado no Almanach (1855-1900) em duas metades a partir do ano da primeira colaboração

enviada de Angola (1856) — aumentando, portanto, um ano ao que

atrás fixara — a presença de qualquer dos dois poetas ultrarromânticos

é anterior à segunda metade (que englobaria os anos de 1878 a 1900). Tal facto reforça a ideia de que o seu papel pode ter sido determinante

na formação das opções estéticas da maioria dos colaboradores que

estudei, angolanos ou residentes.

A divisão, do período que decorre entre 1856 e 1900, em duas metades,

não é aleatória, mas combinatória. Ela foi-me sugerida inicialmente pela

ideia da existência de uma primeira geração literária angolana, a de 1890 ou a de 1880, conforme os ensaístas (“primeira geração” visto o

livro de Maia Ferreira constituir uma ilha na cronologia editorial do

país, mesmo levando em conta o Dedo de pigmeu de Arsénio de Carpo).

A ideia foi lançada por Mário António Fernandes de Oliveira (Oliveira, 1990 p. 334), divulgada posteriormente por Carlos Ervedosa, que

localiza a geração em 1880 – a meu ver com mais nitidez (Ervedosa,

1985 pp. 33, 44). As duas datas devem, porém, ser ligeiramente

corrigidas.

Primeiro a de 1890. Se colocássemos nos anos 90 do século passado a

linha divisória que traço em 1878, iríamos ignorar textos fundamentais

dessa geração, como «Kicôla!», de Cordeiro da Matta.

A poesia de Cordeiro da Matta, figura dita por Mário António a mais

saliente no relevo (não muito alto, reconhecemos) da sua geração, já completou o respetivo percurso mental nessa data. Basta resumirmos-

lhe a evolução intrínseca, no que diz respeito à temática mais

constante, que é a do amor, para vermos isso.

A lírica do “poeta negro do Rio Kwanza” começa por idealizar a mulher na linha da mentalidade ultrarromântica portuguesa e termina com

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francas expressões de desilusão face ao amor e de lamentação pelos

defeitos figurados no tópico da mulher enganadora, passando mesmo

por um momento místico ou, pelo menos, de grande isolamento. Claro

que essa evolução não é linear, por exemplo o poema «Cambuta», que

sai no Almanach para 1890, não fala da desilusão com a mulher, talvez por estar a glosar o tópico das africanas. Ilustra-se o desencantado

percurso nos poemas «Nunca mais...», «A ciosa», «Messalina», «Linda e má / deceção de D. Juan» e «Ideal». «Linda e má / deceção de D. Juan»

sai no suplemento ao Almanach para 1889, mas com data de 1881; «A

ciosa» sai no Almanach para 1886; «Messalina» sai no Almanach para 1887; «Nunca mais…» e «Ideal» saem no Almanach para 1890 (o que significa terem sido enviados cerca de dois anos antes), juntamente com

«Cambuta», que veio do álbum do senhor Joaquim José Bentes. Ora,

não podemos iniciar a geração com o Ultimatum quando o primeiro dos seus poetas não regista evolução significativa após essa data, sofrendo-

a anteriormente. De resto, Cordeiro da Matta morre em 1894, os

Delírios saem em 1888 e, do Almanach de lembranças, só mais três poemas podem ter sido escritos entre 1890 e 1894: «Sob palmeiras»

(culminância do breve instante místico), «Ela bem sabe…» e «Amar».

Por tudo isto está mais próxima da realidade a colocação de Ervedosa,

que fala na geração de 1880. Porém parece-me que o faz por

arredondamento. Parece-me que os factos decisivos para a emergência

da geração, em particular a publicação do Jornal de Luanda, surgem

dois anos antes ou mais.

Um segundo argumento, oriundo agora do estudo que realizei, joga

ainda a favor da correção para 1878. É que logo a uma primeira leitura

do corpus apercebemo-nos de um período inicial em que a produção enviada de Angola é pobre, descolorida, subscrita por escassos e

ocasionais autores, ou pelos dois citados poetas portugueses (Ernesto Marecos, de quem é publicada apenas uma décima de um poema saído

em livro mais tarde; Cândido Furtado, colaborador profícuo). Mas o

período em que a riqueza formal e o carisma de alguns poetas locais se notam melhor inicia-se em 1878, ano durante o qual se dá o

aparecimento e talvez a feitura das primeiras composições onde o

português e o quimbundo convivem lado a lado, como adiante irei confirmar. A que é provavelmente a primeira dessas composições está

ligada ao Jornal de Loanda.

O diretor do jornal é, dentro do pequeno sistema literário da época em

Angola, uma figura polarizadora. No seu jornal encontramos os nomes

de J. D. Cordeiro da Matta e Eduardo Neves entre os colaboradores e ali faz sair Toulson, como atrás disse, o possivelmente primeiro poema

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bilingue angolano. Estavam reunidas, pois, as condições sociais

necessárias à prestação literária dos angolenses: havia poemas,

publicações e práticas próprias, diferentes das anteriores e diferentes de

outras do espaço lusófono, e também havia um jornal agregador das

intenções literárias locais.

A divisão do período estudado em duas metades, a segunda iniciando-se em 1878, vê-se assim confirmada por factos literários importantes,

que nos permitem situar com mais precisão em 1878 o início da

publicação de textos líricos significativos dos autores da geração.

Na primeira destas fases instala-se o ultrarromantismo. Na segunda, o

ultrarromantismo diversifica-se linguisticamente (introduzindo o

quimbundo na poesia), literariamente (desenvolvendo os motivos

africanos antes aflorados por Cândido Furtado) e tecnicamente (com a

introdução de estrofes heterométricas, a composição de sonetos e o

aparecimento do dodecassílabo), sem deixar nunca de ser a principal referência destes poetas. A diversificação acompanhará a leitura de

obras realistas que moldaram as crónicas de costumes de Pedro Félix Machado e, sobretudo, Alfredo Troni – sendo breve e inconsequente o

entusiasmo de Cordeiro da Matta com o Realismo. Ela também denota

influências parnasianas (de João Penha), que serão bem mais marcadas

em Pedro Félix Machado (e aí talvez a figura de Olavo Bilac seja mais importante que a de João Penha). Mas nunca o ultrarromantismo

deixou de ser a escola dominante, como o foi em Portugal quase

durante a mesma época, pois as escolas divergentes eram minoritárias,

com pouca aceitação na imprensa inicialmente, pouco populares (ainda

quando o vieram mais tarde a ser).

A hipótese de que parti foi, pois, a de que os versos desta lírica se pautariam por um ultrarromantismo um pouco tardio, que só se torna

carismático a partir de 1878, ou seja, pouco depois de os seguidores portugueses de Castilho publicarem as suas obras. Não podemos, por

isso, dizer que os nossos homens andavam desfasados em relação aos

outros ultrarromânticos, ou que fossem meramente os seus epígonos, porque à poesia de referência acrescentam experiências próprias e o

fazem pouco depois de aqueles publicarem livros de poesia que os

definissem enquanto geração. Todo o ultrarromantismo lusófono era,

por esse tempo, tardio.

Necessário se tornava, agora, verificar a hipótese com uma pesquisa da qual extraísse o perfil exato do intercâmbio literário traficado entre

Angola, Portugal e Brasil (à espreita ainda por uma janela bem aberta). A suspeita que então se levantava era a de que, sendo tardio o

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ultrarromantismo desta poesia, algumas marcas (não estudadas até

hoje) existiriam nele das escolas que, em Portugal e Brasil, superaram a

do Visconde. As marcas que encontrasse permitir-me-iam afirmar que

os escritores angolenses conheciam a lírica posterior, e, portanto, eram

ultrarromânticos por opção própria, não por ignorarem as escolas

realista e parnasiana.

Autores de referência Era o Almanach um veículo do ultrarromantismo português, até por laços de família e de amizade3. Foi também veículo dos epígonos do

romantismo brasileiro, a quem já faltavam o fôlego animado e

habilidoso de Gonçalves Dias, a profundidade reflexiva de Domingos

Gonçalves de Magalhães, o introdutor do romantismo no Brasil, ou a

intensidade sentimental dos poetas da segunda geração, por muitos

também chamada ultrarromântica. Jacinto do Prado Coelho insere, por isso e mais precisamente, o anuário na linha da popularização da

“poesia romântica” (Coelho, 1965 p. 139). Parece natural assim que a

mentalidade literária a indiciar o seja também.

O mesmo sugere Mário António, ao falar na lírica de Cordeiro da Mata,

quando afirma que “a obra poética de Cordeiro da Mata transpõe para o

nível da incipiência cultural do meio que era o em que vivia, as sugestões de uma escola que não era propícia à descoberta, à

autenticidade: o ultrarromantismo” (Oliveira, 1990 p. 183). Mais

adiante, afirma o mesmo ensaísta: “está-se [em Angola] a meio do

século XIX, como se se estivesse no seu início. Ao findar esse século,

ainda são românticos os ecos registáveis em Cordeiro da Mata, considerado o pai da literatura angolana, mas os seus mestres foram

principalmente os ultrarromânticos, como a vasta colaboração do autor

angolano no Almanach de lembranças mostra” (Oliveira, 1990 p. 183). A afirmação do ensaísta angolano é difícil de rebater. Apesar das tímidas

inovações formais e de um poema, no máximo dois, em que o poeta negro do rio Kwanza parece aproximar-se do realismo literário, ele é

mesmo ultrarromântico e absolutamente nas colaborações para o

Almanach, como lembra Mário António.

Uma só reserva suscita essa afirmação do ensaísta de Maquela. É que me parece que a a opção ultrarromântica não derivava de falta de informação, era uma escolha do nosso tão prolongado costumismo.

3 De facto, Alexandre Magno de Castilho era irmão do Visconde, que aí publica, desde o primeiro número, colaboração diversa. António Xavier Rodrigues Cordeiro, para além do que acima sobre ele transcrevemos, era amigo de João de Lemos (Lemos, 1858 p. VI).

Page 18: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Uma das provas está precisamente nesta pesquisa, quando nos

deparamos com soluções formais que só podem aproximar-se de escolas

literárias posteriores.

*

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Determinação das obras de referência e do método Se estamos interessados em fixar, com a nitidez possível, estes aspetos,

torna-se incontornável uma pesquisa dos livros publicados em Portugal,

Brasil e que, pela data da sua publicação, podiam ser intertextos dos

poemas selecionados. Depois de definirmos as obras que nos

interessam é que podemos comparar ambos os corpus e chegar a uma

conclusão justa sobre o nosso ultrarromantismo.

Em se tratando de um verso rimado e metrificado com regularidade (só

duas composições não apresentam rima), pensei que o método mais

seguro para iniciar o seu estudo comparado começava por um

levantamento dos recursos técnicos utilizados, reduzindo “recursos

técnicos” aos tipos de versos, de rimas, de distribuições rimáticas e de

estrofes. Pensei-o porque era mais seguro investigar traços concretos,

tomados como neutros e precisos; mas também porque a competência

técnica dos artistas era o que mais os preocupava – e, portanto, aquele aspeto com que teriam maior cuidado, logo, aquele pelo qual é justo

julgá-los. O romantismo que chegara à colónia e fora aí bem recebido, como dá para ver estudando a bibliografia que circulava em Angola no século XIX, era moderado, conservador e formal. Por sua vez aos

nossos, interessava-lhes mais a destreza que o sentimento, o motivo ou

o tema, escolhidos numa lista já bem definida e consensual. Rodeados

por tradições analógicas, a agilidade e subtileza metafóricas, a composição de adivinhas e geometrias ocultas animava também mais os

nossos poetas que, assim, embora vivendo entre ultrarromantismo e

parnasianismo, eram muito barrocos graças a todas estas

particularidades.

Também Mário António não deixou de perceber o significado da mestria

técnica na poesia ultrarromântica angolense, ao comentar o livro de

Maia Ferreira: “o que nos parece mais relevante em Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas é antes uma demonstrada mestria no uso de diferentes medidas e uma desenvolta capacidade de organização poemática” (Oliveira, 1990 p. 330) – desenvoltura que

pressupõe uma diversificada prática de leituras.

A observação técnica de todas as obras publicadas em Portugal e Brasil

a tempo de exercerem influência sobre os poetas do corpus por nós escolhido seria, porém, demasiado morosa para que pudesse realizá-la no âmbito deste livro sem saturar o leitor interessado. Não sei mesmo

se os anos que vou viver ainda chegariam para realizar a tarefa. Pensei

resolver com maior economia o nosso problema fixando os paradigmas formais do ultrarromantismo português, em paralelo do brasileiro, e

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comparando esses paradigmas formais com a prática dos colaboradores

angolanos do Almanach e dos poetas mais conhecidos da época.

Para definir os paradigmas ultrarromânticos lusófonos entendi que o

melhor material era constituído pelo breve Tratado de metrificação portuguesa (Castilho, 1874), escrito por António Feliciano de Castilho para ser lido por todos os aspirantes a poetas.

Como disse atrás, o velho mestre dos ultrarromânticos portugueses

estava ligado familiarmente ao Almanach, onde o reverenciavam e onde colaborou, quer com poemas, quer com charadas – prática de

popularidade ativa entre os leitores angolenses, como disse. Era, pois,

natural que, dada a ascendência de Castilho sobre o Almanach, os versejadores do tempo estivessem bem dentro das recomendações do

mestre.

Tais recomendações, João Gaspar Simões especifica-as pela importância de dois livros de Castilho para o seu domínio “completo”

sobre “o quadro dos valores literários da época”: as Estreias poetico-musicaes para o Ano 53 (Castilho, 1907), “e sobretudo” o Tratado de metrificação portuguesa (Castilho, 1874), de 1851. As Estreias poetico-musicaes são uma coletânea de poemas do Visconde, musicados por diversos compositores, e podem não ter tido a influência determinante

que lhes confere o crítico presencista, pelo menos no que se refere às consequências estritamente literárias, às intertextualizações e às

imitações ou adoções técnicas. Já o mesmo se não dirá do Tratado, que estacionou solidamente no centro do espetro modelar ultrarromântico,

tanto em Portugal quanto no Brasil.

Tendo localizado essa obra nuclear, para completar a pesquisa pareceu-me obrigatório obter, como contraponto atual de referência, o

desenvolvido manual de Amorim de Carvalho que recebe o nome

feminino de Teoria geral da versificação (Carvalho, 1987). Trata-se de uma exploração sistematizada, também atenta a alguma da produção

literária brasileira e à produção realista, portanto mais abrangente.

Isto não significa, porém, que não tivesse consultado outras fontes. Fi-

lo com a introdução (intitulada «Poética histórica portuguesa») de Teófilo

Braga ao Dicionário de rimas de Costa Lima publicado na Lello, bem como com o «Manual de composição litteraria-poetica portugueza», de

José Simões Dias, obra “superiormente approvada” para o ensino; fiz o

mesmo com o Tratado da versificação portuguesa do polemista Alfredo

Pimenta e com o Diccionario de rimas luso-brasileiro, de Eugénio de Castilho, onde se publica um resumo do Tratado de metrificação de António Feliciano. Só não consultei, inicialmente, o Tratado de

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versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos. Pude no entanto

alcançar a obra graças à sua edição em rede e, consequentemente, acabei por integrá-la nesta versão do estudo (Bilac, Olavo e Passos,

Guimarães, sd). Como em nenhum dos poeticistas pesquisados (exceto

Bilac e Passos) vislumbrei algo pertinente para acrescentar ao

encontrado nos dois que primeiro indiquei, elegi aquelas duas obras (o

Tratado de metrificação e a Teoria geral da versificação) para um estudo

mais minucioso. O Tratado de Bilac e Passos veio contribuir decisivamente em alguns aspetos, pelo que passou a ser uma

componente de consulta obrigatória também.

Dado que a descrição das regras pode conter falhas, e dado que a

criatividade dos autores superou muitas vezes as regras dos seus

mestres, irei como já disse consultar várias obras em verso, publicadas

em Portugal ou no Brasil, que podiam, pela data da sua publicação

e/ou pelo nome dos seus autores, ter influenciado os nossos homens. Chamarei a tais autores poetas de referência e os livros consultados

serão citados conforme se torne conveniente.

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Observações acerca de alguns conceitos operatórios utilizados Para providenciar ao acolhimento e à sistematização dos dados, entendi conveniente agrupar os poemas em tipos definidos pelas espécies

estróficas e pelas distribuições métrico-rítmicas e rimáticas presentes

em cada um deles. Isso obriga-me a definir desde já os termos-chave

destas expressões.

Definição de verso

As evidências são difíceis de definir. É o caso do verso. A definição

pacífica é a tipográfica, ou editorial: verso é uma linha interrompida (raramente coincide o fim do verso com o limite da página, por isso digo

interrompida).

Pressupõe-se que esse corte é já um corte rítmico, para impor uma

pausa rítmica, suspender momentaneamente a enunciação por motivos

musicais ou rítmicos.

O verso mede-se por unidades métricas – algo parecido, segundo alguns, com o que se chama ‘pulsos’ na estrutura rítmica da música.

Essas unidades métricas estão agrupadas e separadas em função de

pausas menores, interiores ao verso, chamadas cesuras e que

geralmente coincidem com uma vogal tónica. Os conjuntos métricos são unidades complexas de ritmo (por isso chamadas em música ritmos – e

na antiga prosódia grega), que sofrem acentuação em torno de sílabas,

efeitos de entoação, efeitos prosódicos genericamente. A sua estrutura,

como a dos versos, é feita em crescendum, igualdade ou decrescendo de

intensidade, velocidade, enfim de ênfase.

Por vezes os poetas acumulam num mesmo verso – indicado

graficamente como tal – o que, ritmicamente, seriam dois versos. Nesses casos respeita-se a indicação gráfica e chama-se o conjunto de verso

composto. Nesse caso, se o final do primeiro verso simples é feito com

palavra de acentuação grave ou exdrúxula, só se contam os ‘pulsos’ ou metros até à vogal tónica, como se se tratasse de um verso isolado.

Exemplifico recorrendo a um poema («Eu ouvi!») de José da Silva Maia

Ferreira (Maia Ferreira, 2002 pp. 68-69):

A passos mais lentos que a dor que sofri

Page 23: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O verso, por ser composto de dois pentassílabos (como se tornou usual

no poeta português Guerra Junqueiro, mais tarde), chama-se

bipentassílabo e conta-se, metricamente, assim na língua portuguesa:

a-pa-ssos-mais-len | qu’a-dor-que-so-fri

1-2 -3 -4 -5 ; 6 -7 -8 -9 -10

Posto isto, que me parece consensual – ou, pelo menos, claro – passo à

definição de estrofe.

Definição de estrofe

As estrofes (etimologicamente: voltas, o percurso do coro no palco

durante o canto da estrofe) são definidas liminarmente como grupos de

versos. O nome deriva do que era dado à primeira parte da antiga ode

grega, à qual se seguiam a “antístrofe” e o “épodo” (Aurélio, 1999).

Esta definição (“grupos de versos”) é posta por vezes em causa, dado

haver estrofes de um só verso. Dupriez, que a usa, reconhece que o termo também se aplica aos dísticos e ao “monóstico” (Dupriez, 1997 p.

425). Há quem, no entanto, considere que as estrofes de um só verso

não são estrofes ou, pelo contrário, que a definição de estrofe deve ser

mudada. Penso que o problema não é muito pertinente e opto por uma definição comum e convencional, de dicionário, visto não ter isso

qualquer consequência no desenvolvimento do meu trabalho – feito face

a um corpus onde não surgem estrofes de um só verso. Mas, de qualquer forma, vejo que essas mesmas objeções levariam a colocar em

causa a definição de poema corrente ainda nos nossos dias ou, pelo menos, de poema em verso. Poder-se-ia alterar, no entanto, a definição

de estrofe fazendo-lhe uma ligeira modificação: a estrofe é um isolamento gráfico de versos ou o isolamento de um só verso. Neste sentido uso a palavra a partir de agora.

As estrofes, assim caraterizadas, englobam no seu estudo o dos diversos

tipos métricos, o dos tipos rítmicos e o das diferentes distribuições

rimáticas, pois as rimas e a respetiva conjugação, tal como os tipos métricos e rítmicos, sua homogeneidade ou variedade, surgem em

função do conjunto de versos (poema ou estrofe) no qual se inserem. Assim, os diferentes tipos estróficos não se definem só pelo número de

versos que os compõem, mas também pelos tipos de metros, ritmos e

rimas utilizados e pela distribuição de tais tipos no interior do conjunto.

Distancio-me, neste ponto, do que diz Amorim de Carvalho, logo na

abertura do vol. II da Teoria geral da versificação : “a estrofe é um certo

Page 24: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

conjunto de versos formando um todo ritmo-lógico” (Carvalho, 1987 p.

11). Distancio-me ainda que a saiba de acordo com outras, por exemplo

a de Dupriez: “conjunto de versos, limitados por duas pausas” (Dupriez,

1997 p. 425). O recurso à palavra “pausas” pode confundir e o “todo

ritmo-lógico” não tem poder descritivo suficiente para a variedade

estrófica. Não devo aceitar igualmente a redução teórica segundo a qual

a estrofe pode ser apenas caraterizada pela rima e não por esse “todo ritmo-lógico”. Não podemos delimitar os sistemas estróficos só pela rima

porque excluiríamos os que não têm rima e podíamos obrigar-nos a

incluir, numa só, várias estrofes que apresentassem as mesmas rimas

nos finais dos seus versos. Paralelamente, a mera definição “ritmo-

lógica” não contempla o processo de transporte (palavra que prefiro a «enjambement», ou «encabalgamiento») quando tal transporte se realiza

de uma para outra estrofe. Por efeito dessa figura de estilo, a “lógica”

que preside ao agrupamento semântico das palavras passa de um para

outro grupo de versos, transgredindo a expectativa criada pelo aparato gráfico e violando o fechamento lógico da estrofe – nesse momento

apenas gráfica e ritmicamente marcada.

Parece-me que, precisamente, o que isola um conjunto de versos é

desde logo a sua determinação gráfica, fixando visualmente uma

demarcação literária e, por essa via, impondo o fechamento rítmico.

Tendo por referência o espaçamento gráfico (equivalente a uma pausa sonora alongada quando o poema é dito – mais longa do que a pausa

entre dois versos), obtemos um parâmetro inicial claro para identificar

as aglomerações de versos, o que é indispensável para, em seguida,

classificarmos os tipos estróficos sem lhes impormos, à partida, regras

que podem não ter.

Amorim de Carvalho, de facto, vem a reconhecer a conveniência deste

recurso ao grafismo quando avisa: “no decorrer, para diante, desta

Teoria geral da versificação, ao falarmos de estrofe, concederemos, pois, ao que aparece manifestamente indicado nas próprias realizações poéticas, qualquer que seja a sua determinação (rimática, ou ritmo-

lógica, ou as duas intimamente ligadas como geralmente acontece) e

qualquer que seja a sua construção em relação ao pensamento (estrofe

simples ou composta)” (Carvalho, 1987 p. 27).

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Estrofe Simples e Estrofe Composta

Pelas mesmas razões, entendo que a diferença entre estrofe simples e

estrofe composta só se torna pertinente quando o autor, tanto pela

sintaxe quanto pelas rimas distribuídas, ou ainda, eventualmente, pelas

distribuições métricas, de todo não relacione duas partes de um

conjunto de versos por ele indicado como sendo uma estrofe. Quer

dizer: considero estrofes compostas aquelas que só graficamente se nos propõem como uma unidade, indicando-nos todos os seus outros

elementos (rima, sintaxe, ritmos e a restante memória literária do

sistema) a existência de mais do que uma estrofe quando graficamente

só nos aparece uma. A estrofe composta é percebida, portanto, como

uma espécie de macro-estrutura rítmica, um dado conjunto de ritmos

que se pretende isolar mas que, lá dentro, é formado por outros

conjuntos independentes uns dos outros.

Para seguir um exemplo de Amorim de Carvalho, a conhecida passagem

de Castro Alves, glosada por Caetano da Costa Alegre nos Versos:

Era um sonho dantesco... o tombadilho que das luzernas avermelha o brilho em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar ............................................... No entanto o capitão manda a manobra e após fitando o céu que se desdobra tão puro sobre o mar, diz do fumo entre os densos nevoeiros: «Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...»

é, para mim, constituída por duas estrofes simples e não duas estrofes compostas. Faltava-lhes, para as considerarmos compostas, não se

repetir nenhuma rima de cada uma das suas partes para a outra, e haver uma divisão em dois períodos assinalando a separação virtual

entre uma e outra parte da estrofe composta, podendo promover-se ainda uma distribuição métrica diferente para cada parte, o que

também não sucede aqui. De facto, o que faz Castro Alves é tão somente

mudar a definição métrica dos versos que não rimam emparelhados em face da métrica dos que rimam emparelhados, dando assim maior

unidade formal ao conjunto. Quando muito, acederia a chamar a cada

uma das partes desse conjunto, como propõem Guimarães Passos e

Olavo Bilac, uma “sub-estrophe” (Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd).

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Estrofe composta seria esta, retirada do nosso corpus:

Quem linda a vê e risonha,

como quem delicias sonha

de gosos de endoidecer; ha de, talvez, todo absorto

a seus pés prostar-se, morto,

e, como um louco, dizer:

-« Mulher de fórmas airosas,

de ondulações vaporosas,

cujo refulgente olhar,

quando, estático, o contemplo

julgo que de Deus um templo

estou, doido, a contemplar;

— onde, como se vê, só a disposição gráfica nos obriga a lermos uma

estrofe de doze versos, pois, pela sua sintaxe, como pela distribuição

rimática, temos duas estrofes de seis versos. Uma vez que a segunda

subestrofe contém o pensamento anunciado na primeira, pode-se

argumentar que o critério de grupagem é ‘lógico’ e não rimático. Pode ser em alguns casos, não aqui, numa composição em que também seria

lógico separar (como se faz sintaticamente) a parte em que se anuncia o

motivo e se descreve o quadro e a parte em que se pensa ou fala.

Repare-se na sequência:

Mostra-me o Eden dos crentes,

qu'eu quero os gosos ferventes

em doces taças haurir;

mostra-me os estranhos mundos

que seus mysterios profundos eu anceio descobrir...» –

E quem a vê, furibunda, como onda que a praia inunda,

e tudo quer esmagar, ha-de, talvez, perturbado,

e d'ella bem afastado

como um timido, exclamar: – Livrai-me, meu Deus, da furia,

que sua cega lamuria

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me faz o senso perder; –

Oh! como é melhor o inferno

do que este aborto do Averno,

que a paz me não deixa ter!...»

E ella poussue a belleza,

que o homem, soffrego, preza e está sempre a desejar.

E ella é dos zelos a escrava,

que s'inflamma como a lava,

que abraza e póde matar!...

O quadro geral do poema é este: uma estrofe composta - uma simples -

outra composta - outra simples. O critério de composição parece-me

rítmico neste caso. A primeira estrofe simples continua o pensamento que vem da primeira estrofe composta; se o critério fosse ‘lógico’ e a

lógica fosse a prevista atrás, a estrofe simples não podia ficar desgarrada. Portanto parece que o poeta apenas quer proporcionar-nos

uma alternativa, um cruzamento, entre um sopro mais largo e um canto

mais breve, como se alternasse entre partes de uma música

instrumental ou de um coro.

Esta breve discussão acerca das estrofes compostas não é

desnecessária, no âmbito particular da minha análise: ela justifica o

facto de considerar eu, para efeitos estatísticos, nas estrofes compostas,

as estrofes que as compõem e não o seu todo.

Hierarquização

Desde que haja regularidade métrica e rimática, como é o caso na

esmagadora maioria dos poemas estudados, o estudo das estrofes tem

que levar em conta a sua determinação gráfica e a constituição métrico-

rítmica, lógico-sintáctica e rimática.

Castilho, que define a estrofe de uma forma simples mas redutora4 (apreciada, no entanto, por Teófilo Braga), percebe a importância da

articulação dos recursos para cimentar a unidade estrófica, ao dizer

4 Cf. uma “redifinição” de Castilho, a pp. 142 da obra que vimos citando, onde através de uma disjuntiva se faz equivaler estrofes e “períodos métricos iguais”: “ (...) assentemos em que as estrophes ou periodos metricos eguaes, em que um poema longo ou curto se divide (...)”.

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que, “quando as estrophes constam de dois ramos, quer estes sejam

eguaes em quantidade de versos, quer deseguaes (...) o ouvido approva

muito, não só que esses dois ramos rimem um com o outro pelo fim,

mas que rimem em agudo” (Castilho, 1874 p. 143). E acha também que

deve cada ramo terminar com o fim de uma frase ou período sintático.

Dessa maneira reconhece, implicitamente, a importância da

consideração da métrica, da rima, da sintaxe, da ‘lógica’ e da relação entre elas para o estudo dos tipos estróficos. A sua determinação tinha,

de resto, origem numa tradição recuada, pois Dupriez assegura que, se

“a estrofe é heterométrica […] os versos com a mesma extensão rimam

habitualmente em conjunto” (Dupriez, 1997 p. 403).

A caraterização de estrofes que vou usar a partir daqui levará também

em conta todos os aspetos considerados relevantes na construção

formal do “conjunto de versos”, reunido como tal no próprio texto que

nos é apresentado. No entanto há necessidade de hierarquizar os aspetos considerados, pelo menos o rítmico-métrico e o rimático. Se

assim não faço, multiplico inutilmente os tipos, para além de não levar em devida conta o grau de diferenciação de umas estrofes em relação a

outras.

Na verdade, os tipos de recursos que menciono assumem caraterísticas

diferentes conforme o nível em que se situam. Se tivermos, por exemplo, oitavas heptassilábicas cuja distribuição rimática é [*AAB.*CCB],

indicando o asterisco a ausência de rima e o ponto o final obrigatório de

período, podemos associá-las com as sextilhas heptassilábicas cuja

distribuição rimática é [AAB.CCB]; mas a diferença do número de

versos é fundamental e obriga-nos a não incluir as duas no mesmo tipo. Essa diferença pode gerar outras importantes. Ela pode implicar, por

exemplo, que, no primeiro tipo, haja versos sem rima, o que não sucede

no segundo.

Opto, a partir deste exemplo, por uma hierarquização na qual aparece como primeiro critério para a classificação das estrofes o seu número de versos; como segundo critério o determinado pelo tipo de versos

(métrica e rimaticamente definido); como terceiro o determinado pelo

tipo de distribuições rimáticas realizado – deixando para um nível posterior de análise a articulação entre estas características o os

conjuntos sintáticos, articulação que traz implicações semânticas que

particularizam tanto as soluções estróficas que tornam inexequível criar

nessa base uma tipologia produtiva.

Opto por esta hierarquização porque ela parece mais “económica”: os tipos encontrados pelo número de versos são em menor número do que

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os encontrados pelas distribuições métricas; estes são em menor

número do que os encontrados pelas combinações rimáticas. Para além

disso, a distribuição rimática depende do número de versos e, por vezes,

está intimamente relacionada com a variabilidade métrica ou métrico-

rítmica, como iremos verificar ao longo da análise e como vimos no

exemplo, atrás transcrito, de Castro Alves.

Correspondentemente, vou analisar o corpus seccionando-o primeiro por tipos estróficos definidos em função do número de versos, depois

pelas distribuições métricas no interior de cada ocorrência dessas,

finalmente pela distribuição rimática dentro de cada estrofe.

Pontualmente, quando faça sentido, observarei a ocorrência ou

ausência de transporte dentro de algum tipo.

Distribuição Rimática e Sistema de Distribuição Rimática

A definição, a tipologia e o historial da palavra “rima” e do que ela

designa dariam, só por si, um grosso volume. A sua ligação ao ritmo, acentuando as opções conceituais no que diz respeito à definição de

estrofe, estabelece-se logo pela etimologia, pois rima e ritmo originam-se

do mesmo termo (Dupriez, 1997 p. 403). A rima não é para mim, como

se diz em Dupriez, “identidade de um certo número de fonemas ao fim de dois ou mais versos” (Dupriez, 1997 p. 401). Isto, quer porque pode

haver rima num só verso, quer porque ela pode ser feita sem que uma

ou mais das palavras que rimam esteja no fim do verso, quer ainda

porque é necessário determinar o “certo número de fonemas”. Entendo

que a rima é a coincidência, total ou parcial, entre dois ou mais fonemas, de duas ou mais palavras, preferencialmente colocadas nos

versos em consonância com o ritmo.

* Recorri indiscriminadamente a expressões tais como “distribuição

rimática” (ou rímica), sistema rímico (ou rimático, ou distributivo), esquema distributivo (ou rimático ou rímico), tipo distributivo.

Precisava, por uma questão de estilo, de um vocabulário diversificado

para designar um conceito recorrente.

O conceito que estes termos designam reporta-se à estrutura gerada pela colocação das rimas no interior das estrofes e dos poemas,

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resultando nos esquemas comuns entre os tratadistas (por exemplo:

[ABAB]) – e, por vezes, em outros mais raros. Ele engloba por igual a distribuição de rimas pobres e ricas, graves e agudas, esdrúxulas, e de

versos brancos (já que, em rigor, não há rimas brancas, porque

“branco” significa aí ausência, inexistência de rima).

Penso que não é necessário fazer aqui a definição dos tipos todos de rima, em geral bem descritos nos tratadistas. Faço, tão somente, uma

breve revisão da matéria.

Pobre é a rima com duas palavras da mesma classe gramatical; rica fica

ela se for feita com palavras de classes gramaticais diferentes. Não sigo,

portanto, a nomenclatura francesa, para a qual a rima é rica se houver

“identidade da consoante de apoio à vogal acentuada” e pobre se não for

“suficiente”, ou seja, se não rimarem a vogal tónica e os fonemas que se

lhe seguem (Dupriez, 1997 pp. 401-402). O que, nessa nomenclatura, é

“rica”, na que vou usar será “completa”, como especifico oportunamente. Vou, de resto, precisando estes conceitos operatórios

mais comuns conforme se vai tornando necessário.

Sistema

A noção de sistema na versificação pode-se derivar daqui (da imagem de distribuição rimática e da definição de estrofe). Os subsistemas (quatro,

definidos por Amorim de Carvalho, de quem transcrevo as respetivas

definições mais adiante, ao falar em sonetos) podem classificar-se em

função da variabilidade ou fixidez no número de estrofes e da colocação

dos tipos estróficos ao longo do poema.

Quando os tipos distributivos estão colocados ao longo das estrofes, ou do poema, de tal maneira que lhe apreendemos regras que permitam

reproduzir a estrutura por eles montada, critérios sistematizados (ou dedutíveis) para construir uma dada estrutura global, então podemos

dizer que há um sistema. Só que, em geral, os sistemas assim encontrados são pessoais, a maioria das vezes não têm continuidade.

Amorim de Carvalho, quando fala em sistemas estróficos, reporta-se principalmente àqueles que são reconhecidos e praticados por uma

dada comunidade literária, seja qual for o seu grau de variação.

Portanto: àqueles cuja regra e cujo critério são património comum.

Penso no entanto que o termo deve ser alargado para incluir os sistemas individuais a que a explosão romântica deu lugar, pelo

estilhaçar dos espelhos neoclássicos. No entanto, para não confundir mais o leitor (habituado a uma terminologia já estabelecida) só falo em

Page 31: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

sistemas estróficos quando abordo os sonetos do corpus. Aos restantes sistemas – os individuais – apanhados de passagem e comentados a propósito das oitavas encontradas, vou nomeá-los como “estruturas”

apenas, estruturas de imperfeição, ou de personalização, lá se verá

porquê.

Page 32: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Análise estilística do corpus escolhido

As estrofes de quatro versos As estrofes de quatro versos são as mais comuns no conjunto dos textos estudados (64 ocorrências em 119 composições). Não causa

perplexidade: o tipo é dominante na poesia romântica e ultrarromântica

portuguesa (Carvalho, 1987 p. 298). Mas não só: Bilac e Passos

reconhecem que são essas “as estrofes mais cultivadas” (Bilac, Olavo e

Passos, Guimarães, sd).

A primeira ocorrência nossa dá-se no primeiro ano em que surge

colaboração localizada em Angola, num poema de João Augusto de

Souza, que o envia de Benguela. Intitula-se ele «Na noute de S. João»:

Eis chegada a noute excelsa

da mais brilhante funcção, que em todo o orbe se faz na noute de S. João.

Festejos em toda a parte

celebra o mouro, o christão, todos elles á porfia

na noute de S. João.

Na sua choça o pastor, na cidade o cidadão,

entoão hymnos sem fim

na noute de S. João.

As velhas junto à lareira fiando na roca vão,

entretidas nos cantares

na noute de S. João.

As moças junto às fogueiras

a magas sortes se dão, queimando a herva primeiro

na noute de S. João.

Já arde a fogueira sancta

de resina e alcatrão;

Page 33: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

danção os moços em volta

na noute de S. João.

Rebenta a bomba e o foguete,

arde o fogo em profusão,

tudo folga e se diverte

na noute de S. João.

Correndo e rindo, os rapazes

saltando as fogueiras vão,

com mil jogos e brinquedos

na noute de S. João.

Aqui, que não ha lareiras,

sortes, fogueiras, condão,

só nos restão as saudes na noute de S. João!...

Venha de vinho um barril;

cada um seu cangirão;

bebamos até cahir

na noute de S. João.

Já de longe se aproxima

um bem assado leitão,

que findou sua existencia

na noute de S. João.

Gallinhas, tórtas, empadas,

arros com pato e um capão,

são cousas que nunca faltão

na noute de S. João.

Principiemos, por tanto,

C’os cópos cheios na mão; saudemos pois a Josino

na noute de S. João.

à saude mais d'aquelles

que temos no coração,

que folgarem lá na patria na noute de S. João.

Page 34: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Gloria a ti, Baptista excelso,

em todo o mundo christão,

bem dito seja o teu nome

na noute de S. João.

Só eu não tenho alegria

dentro do meu coração, n'este desterro em que vivo

na noute de S. João!

Só me lembra a cara patria

n'esta erma solidão;

com os mais prazer não sinto

na noute de S. João.

Praza aos céus que ainda um dia finde meu triste condão;

que inda vá folgar na patria na noute de S. João!...

Benguella 24 de Junho de 1854.

João Augusto de Sousa, 1856/233.

O autor é, possivelmente, o mesmo de outro poema («Aos irmãos de S.

Martinho»), publicado no ano seguinte (1857/345) e também enviado de

Benguela, mas sob anonimato:

Eis o dia, irmãos, da festa

do padroeiro do vinho! É chegado o dia alegre do nosso bom S. Martinho.

Dia votado às moafas5,

aos pifões e cabeleiras,

carraspanas, bicos, turcas, samatras e bebedeiras.

5 Moafa: bebedeira. Termo popular cuja origem não consegui saber. Há um apelido árabe igual e o som recorda o Uafwa (morrer) umbundo.

Page 35: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Reuna-se a irmandade;

nomeemos um juiz;

celebremos este dia,

bebendo como funís.

Façamos da nossa pança

armazém grande de vinho; só assim celebraremos

o dia de S. Martinho.

Venha Porto e Carcavellos,

também o Madeira sêcco6,

ao enxugar de garrafas

nenhum de nós seja pêcco.

Do nosso patrono a festa deve ser bem festtejada;

esqueçamos as tristezas da nossa vida passada.

Mettamos para o bandulho

quanto lá caiba de vinho,

para honrarmos a memória do patrono S. Martinho.

Mil brindes e mil saudes,

em nome da confraria: quem riquezas não possue,

Possua paz e alegria.

Se os bens da fortuna avara

duro fado nos negou,

deu-nos a bôca; eia! bebamos o vinho que Deus creou.

Roguemos ao nosso santo,

em nome do bem geral, finalise o mal das vinhas,

ao menos em Portugal.

6 Leia-se o poema «No aniversário de Filinto / a um amigo», encimado por uma citação de Horácio, na Lírica de João Mínimo (Garrett, 1829 p. 10).

Page 36: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Que acabe com essa praga,

ruina dos lavradores,

que tanto aterra e ameaça

os seus fiéis bebedores.

Sim, morramos abrigados

dentro d'immenso tonel, pois morrer de bôcca secca

É morte dura e cruel!

Se o milagre faz o santo,

como devemos esperar,

com boa festa p'ra o anno

pode o santinho contar.

Vamos beber no entanto do que ha, ou mal ou bem,

esperançosos na colheita do futuro anno que vem.

Anonymo Benguelense, 1857/345.

É fácil de notar o parentesco entre as duas composições, típicas dos

almanaques da segunda metade do século. Pelo conteúdo, calculo que o autor fosse português a residir em Angola, visto que retrata bem as

festas de São João em Portugal e, quanto às de Benguela, se limita a

apelar à moafa.

Nos índices do Almanach referentes aos anos entre 1872 e 1898 não vem referido o seu nome, nem aparece mais qualquer “anonymo

benguellense” – autógrafo do poema de 1857. Surge apenas uma colaboração em prosa de um J. A. de Sousa, mas é alguém que mora

em Abrantes e, no que escreve, não mostra vivência africana.

João Augusto de Sousa publica artigos em prosa sobre Angola,

idênticos aos que envia o “anonymo benguellense”. Em ambos pontua a

recorrência de menções a produtos comercializáveis de Angola, como a “goma copal” e a “urzella d'Angola”, fazendo pressupor a mesma

atividade, a mais comum nesse tempo: a do comércio, ou qualquer

outra, eventualmente na função pública, muito relacionada com essa.

Efetivamente, em 1845 João Augusto de Sousa é nomeado Guarda-mor

da Alfândega de Benguela, segundo ofício remetido ao Escrivão

Page 37: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Deputado da Junta da Fazenda (Angola. Governo-geral, 1845 p. 1).

Desempenhava ainda o mesmo cargo em Outubro do ano seguinte,

quando o Governador-geral ordena ao comandante do “hiate 15 de

Agosto para dar passagem ao Guarda-Mor da Alfândega de Benguela,

João Augusto de Sousa (Angola, Governo-geral, 1846 p. 1). No nº 239

do mesmo Boletim (Angola, Governo-geral, 1850 p. 3) aparece numa lista de subscritores “a beneficio dos colonos de Mossamedes”, respeitante aos moradores em Benguela e datada de 10 de Abril desse

ano.

Deve ter alinhado com os comerciantes portugueses, quer o fosse quer

não (para além de Guarda-mor), pois participou na revolta contra o

militar e negociante Joaquim Luiz Bastos, Governador nomeado do

distrito sobre o qual recaíam suspeitas (ao que parece infundadas) de

nativismo e ligações ao Brasil e à ideia de Independência.

A entrada em cena deste filho da terra permite situar por contraste João Augusto de Sousa. Sintomaticamente Joaquim Luiz Bastos e José da

Silva Maia Ferreira eram amigos. Maia Ferreira chama-lhe mesmo, em dedicatória, “compatriota”. O militar veio a morrer em Benguela em

1860. Era Major de Linha em 1851, quando embarcou (em Luanda)

para Benguela no “Brigue portuguez Progresso”, com 4 escravos. Na mesma altura contribuiu com 60.000 réis (em “duas pessas de galão”) para as “Exéquias fúnebres e Monumento do Exm. Conselheiro Pedro

Alexandrino da Cunha, que foi Governador-geral desta Província”

(Angola, Governo-geral, 1852 p. 3). Despacha, no ano seguinte, “2

escravos vindos do Sertão em 1852”, pagando 18000 réis por isso

(Angola, Governo-geral, 1852 p. 2). Apesar disso, o contributo para a homenagem ao ex-governador parece colocá-lo na facção mais

definidamente antiesclavagista, dado o combate que o mesmo levou a

cabo contra o tráfico para o Brasil.

João Augusto de Sousa esteve suspenso das suas funções por participar nos acontecimentos contra J. L. Bastos, em Janeiro de 1851

(estando Maia Ferreira ainda em Angola), tendo a suspensão sido

iniciada a 9 de Abril. Foi mais tarde reconduzido no cargo. Talvez a recondução se deva à política geral de perdão ou à influência de algum

parente.

Possivelmente seu parente seria Eduardo Augusto de Sousa, o Oficial

Maior da Secretaria do Governo-geral de Angola (Angola, Governo-geral,

1852 p. 1). Isso facilitou certamente a recondução no cargo. Muitos anos depois, no ofício nº 96 do Governador-geral F. J. Ferreira do

Amaral, datado de 9-3-1883, vem recomendado um morador da Huíla

Page 38: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

que dava pelo nome de Augusto de Sousa, não se adiantando mais nada

sobre ele. Pode ser da família de João Augusto, seu descendente

mesmo.

A documentação que vi não demonstra, portanto, se João Augusto de

Sousa era influente naquele meio social e muito menos se foi português

de origem (como penso) e comerciante, para além de Guarda-mor da

Alfândega.

Recordo que o poema descreve quadros tipicamente portugueses (as

velhas fiando na roca à lareira) dos quais se distancia depois:

Aqui, que não ha lareiras,

sortes, fogueiras, condão,

só nos restão as saudes

na noute de S. João!...

retomando mais adiante o tópico do exílio, degredo, na Costa Negra:

Praza aos céus que ainda um dia finde meu triste condão;

que inda vá folgar na patria

na noute de S. João!...

De qualquer maneira desconfio de que a sua prática poética não

transporta nenhum significado especial para nós.

«Na Noute de S. João», que também não é referido por Mário António

nas «Colaborações angolanas...», possui 18 quadras heptassilábicas com rima só nos versos pares e sempre aguda; o poema do “anonymo

benguelense” possui 14 quadras em heptassílabos com rima só nos versos pares, alternando graves e agudas. Às semelhanças formais

acrescenta-se a coincidência de localização: esta é, em todo o corpus, a única participação lírica oriunda de Benguela. Às duas espécies de semelhanças soma-se, ainda, uma terceira: a de conteúdo. Qualquer

dos dois poemas fala numa festa de Santo e na bebida que se consome,

até à exaustão, nessa festa. No entanto, mesmo que os dois poemas sejam de João Augusto de Sousa, eles não me parecem esteticamente

relevantes e a repetição do conteúdo mostra talvez as limitações do

autor e dos leitores. Apenas a recorrência do tipo estrófico no Almanach torna sintomática a sua presença.

Page 39: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

A última ocorrência (de estrofes de quatro versos) dá-se, justamente,

com a última colaboração, marcada pelo que em Portugal se chamou de

“neo-garrettismo”, o que logo se denuncia no título («Garrett»). Trata-se

de uma peça publicada a pp. 342 do Almanach para 1900, por Marcos Algarve, que assina do “Congo Portuguez” mas que, em 1909, se localiza

já em “Portimão”. Transcrevo:

(No centenário do poeta)

Se os vermes o teu corpo a pó já reduziram,

esse acto trivial não me enche de pavor!

Tuas cinzas de luz aos astros já subiram,

vibrantes e immortaes, nas azas do condor!

D'entre os vastos lauréis vindos das multidões,

reserva-se um altar á gloria genial: Ao sublime cantor do sublime Camões

saúda a débil voz do velho Portugal.

Na lusa patria nossa eu ouso erguer um brado,

um brado esperançoso e repleto de fé:

– Tomae, ó mocidade, o exemplo assignalado

do grande portuguez: – do immortal Garrett!

Marcos Algarve (Congo Portuguez), 1900/342.

Marcos Algarve (talvez pseudónimo, incluindo um topónimo em

homenagem à terra natal), era um poetastro neorromântico insignificante, que parece nesses versos influenciado por Mendes Leal –

exceto, talvez, no que diz respeito à métrica. Mas, por isso mesmo, constitui um indício de como estava a mentalidade literária vulgar

naqueles tempos. A escolha estrófica por ele feita é sobre o único tipo a

surgir ao longo de todo o corpus com a mesma constância: a estrofe de quatro versos.

No poema se refere o condor, que tem a missão de levar as cinzas

luminosas de Garrett para o céu. Trata-se de um pássaro da América do Sul (a palavra tem de resto origem sul-americana e chega ao português

pelo castelhano). O termo remete, literariamente, para o condoreirismo

que, mais ou menos entre 1850 e 1870, inflamou a poesia brasileira com uma retórica de cariz político e social muito empolada, sendo

Castro Alves o mais conhecido poeta dessa ‘escola’ (ao mesmo tempo

que poeta muito popular em Portugal e nas suas então colónias – Costa

Page 40: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Alegre, por exemplo, ainda o cita e glosa no mais famoso dos seus

poemas). O que é sintomático é um português residente em Angola

pegar num poeta e numa ‘escola’ do Brasil para escrever um poema

nacionalista, vincadamente português e neo-garrettiano.

O único livro referido é o Camões. A presença do título visa, sem dúvida, conotar ainda mais Camões e Garrett e, portanto, sublinhar o exemplo nacionalista do segundo. Mas é também curioso que seja este o

livro referido. A sua primeira edição circulou em Benguela por volta do

meio do século XIX pelo menos (aparece num espólio de 1855).

Intitulava-se Camões: poema. Veio a público em 1825, sendo um dos

primeiros marcos do romantismo português (ainda frágil). Camões é daquelas obras em que a influência de Rousseau, Chateaubriand e

Lamartine mais se faz sentir no autor. O que portanto recorda Marcos

Algarve é um livro dos primórdios do romantismo português,

influenciado por românticos moderados como Chateaubriand, pelo repescado Rousseau e por Lamartine – por sua vez influenciado por

Chateaubriand, Horácio e Virgílio e que influenciou ainda Camilo Castelo Branco, frequentando a progressista biblioteca de Antero de

Quental. Justamente Lamartine é uma das autorias que marca a poesia

de Castro Alves, o astro mais elevado do condoreirismo brasileiro. Os

brasileiros traduziram-no em 1843 e em 1846, pelo menos; é provável

que Maia Ferreira tenha lido, mesmo levado para Angola, uma dessas

traduções. O “episódio” Jocelyn, de Lamartine, é mencionado também num espólio benguelense de 1856. Talvez por influência francesa, ou

por antitética influência realista, a homenagem a Garrett é feita em

versos dodecassílabos – metro que, julgo, não mereceu nenhuma

atenção da parte do homenageado.

Último exemplar da antologia, este poema de Marcos Algarve (que ainda

assina mais colaborações nos anos seguintes) é típico da época por

várias razões, especialmente pelo nacionalismo português que se seguiu

ao ultimatum e pelo neo-garrettismo. No entanto este nacionalismo está marcado, como vimos, pelo condoreirismo brasileiro, o que o torna mais

tropical.

Regressando aos aspetos formais, que são o eixo da nossa investigação,

face a esse corpus e à tradição lírica lusófona parece-me correta uma

primeira divisão das estrofes de quatro versos em dois grandes grupos.

Page 41: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

as quadras do corpus

À estrofe típica do primeiro desses grupos vou dar o nome de quadra, lembrando-me de que ela vem de uma tradição popular, ou nessa

tradição se mantém com mais vigor. Amorim de Carvalho diz que “a

quadra tornou-se facilmente a estrofe predileta da poesia popular, em

heptassílabos, que são também os versos prediletos dessa poesia”

(Carvalho, 1987 p. 39). O autor esqueceu-se de acrescentar o pentassílabo. Embora não seja o metro predominante na quadra

popular portuguesa, o pentassílabo é o único nela utilizado para além

do heptassílabo. Do mesmo modo, não relacionou esses metros com um

esquema rimático predominante, havendo condições para o fazer.

Na quadra utilizam-se os heptassílabos e os pentassílabos,

predominando a distribuição de uma só rima, cruzada nos versos pares

([*A*A]). Bilac e Passos dizem que essa é a predominância entre os

“poetas populares” (Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd). Entre nós o primeiro exemplo surge logo em 1856 (p.233), no poema, já referido

acima, de João Augusto de Souza.

Quadra e quadra popular

Muitas vezes se confunde quadra e quadra popular. No entanto, elas

são distintas. A de que falamos aqui é definida pela métrica e pela rima

e, dentro dela, a chamada quadra popular — que não aparece no nosso

corpus — ocupa um lugar especial em função da estrutura analógica.

De facto, a quadra popular se define também por possuir claramente

duas partes: a primeira — em geral correspondendo aos dois primeiros

versos — codifica o que a segunda vai descodificar (quase sempre

através de comparação ou imagem), como no exemplo, brasileiro:

Atirei um limão ao rio,

De tão verde foi ao fundo: O povo acordou dizendo

Viva D. Pedro Segundo.

Descodificação para os menos informados: D. Pedro II foi entronizado

novo, pelo que é comparado ao limão verde.

Além do atrás dito, a quadra popular constitui, regularmente, uma totalidade própria, isolada. Melhor dizendo: cada quadra popular é um

poema, tal como cada soneto. Basta-se a si mesma. Ora, no nosso

corpus, o leitor não poderá ler nenhuma quadra nessas condições. Só

Page 42: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

métrica e rimaticamente as estrofes encontradas são iguais à maioria

das quadras populares.

Número de quadras e sua distribuição

No nosso caso também não há quadras pentassilábicas, embora em

outras páginas da literatura angolana do século XIX as houvesse, mesmo que em número relativamente reduzido. Por exemplo José da

Silva Maia Ferreira fecha com duas quadras pentassilábicas o longo

poema «Revelação de um sonho», escrito no Rio de Janeiro a 18-1-1849;

preenche com o mesmo tipo de quadras a maior parte do poema

«Benguelinha!»; usa-o para fecho do poema «Ainda a ela!», em duas

estrofes; na 3.ª e última parte do poema-romance «D. Beatriz», em três

quadras (Maia Ferreira, 2002 pp. 36, 101-102, 112, 117); e recorreu aos

pentassílabos mais vezes em diferentes tipos estróficos (quintilhas,

sextilhas, oitavas – sobretudo). Urbano de Castro usou muito quadras pentassilábicas e pentassílabos. Cordeiro da Matta algumas vezes em

Delírios recorre também ao mesmo tipo estrófico.

A quadra se resume portanto, no corpus, à estrofe de quatro versos heptassilábicos, de que encontramos 33 ocorrências, num total de 64

para todas as estrofes de quatro versos.

Quanto à rima, durante a primeira fase (1856-1877) predomina a

distribuição de uma rima (três ocorrências) em vez de duas (duas

ocorrências) e, na segunda fase (1878-1900), a distribuição de duas

rimas (18 ocorrências) em vez de uma (11), como também a de rima

cruzada (4 ocorrências na primeira fase e 26 na segunda), aparecendo apenas seis vezes (1 na primeira fase e as restantes na segunda) a rima

ABBA e, uma vez (1890/375), uma distribuição que é uma espécie de quadra coxa, para a qual não encontro correspondente, nem no corpus, nem nos poetas de referência, nem nos tratadistas: [AA*A]. Portanto: a segunda fase (aquela em predominam as colaborações angolenses) inverte as estatísticas da primeira e, no que diz respeito à distribuição

rimática, as da poesia portuguesa de referência.

A distribuição com duas rimas cruzadas, [ABAB], era adjetivada por

Bilac e Passos como própria dos “metrificadores escrupulosos” (Bilac,

Olavo e Passos, Guimarães, sd). No nosso corpus ela surge pela primeira vez numa composição de M. da C. (1873/212):

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Ao meu presado collega e amigo, o exmº sr. doutor Alexandre

Meyrelles de Tavora do Canto e Castro7, dignissimo procurador da

corôa e fazenda junto à Relação de Loanda.

Ouvi a um padre d'aldeia

no templo onde diz missa:

«Que vale ahi a justiça «só reina a immoralidade,

«que para o mal persuade?

«Esta é tão torpe e tão feia

«inimiga dos humanos,

«que os lança em erros insanos,

«e a cada passo um abysmo

«lhes cava com vil cynismo!

«Por habito a torpe e rude «as leis mais santas illude!

«E aquella deusa sublime,

«orac'lo d'alta sciencia,

«protege a pura innocencia,

«e dotes moraes lh'imprime.

«A bem do justo s'exprime, «do rico o mal não encobre,

«não se transvia na senda,

«é defensora do bem;

«é sua missão tremenda, «pois traz espada e traz venda,

«por não ver rico nem pobre,

«nem ser madrasta a ninguem.

«Amai, ó filhos queridos,

«este presente dos céos, «fugi dos homens perdidos,

«e orae por todos a Deus, «que nisto certo s'encerra

«a lei do Senhor na terra.

Assim prégara no templo

o nobre padre que eu sei.

7 Alexandre Bento Meirelles de Távora do Canto e Castro nasceu nos Açores (Angra do Heroísmo) em 10-03-1827 e morreu em Lisboa a 11-11-1896. Fez a biografia do Marquês de Sá da Bandeira. Em 7.9.1871 ascendeu a Comendador da Ordem de N.ª Sr.ª da Conceição de Vila Viçosa.

Page 44: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Tomai do padre o exemplo,

ministros que sois da lei;

fugi de putridos lôdos,

que é vossa nobre missão,

justiça fazei a todos,

quer sejam ricos, quer não;

da immoralidade feia jámais se diga campeia.

Justiça, deusa sublime,

orac'lo d'alta sciencia,

não só castigas o crime,

também salvas a innocencia.

M. da C., Loanda, 1873/212.

Do autor não consegui encontrar nenhum seguro indício. Poderá ser o

Dr. Moreira da Câmara, que no nº 22 do Cruzeiro do Sul, em Luanda, dedica um poema (datado de “5-Março-1873”) a João Osmundo

Toulson, nesse ano falecido e creio que pai de João Eusébio da Cruz

Toulson, figura de destaque na sociedade da época, autor de um dos

primeiros poemas angolenses (senão mesmo o primeiro) de convívio

linguístico entre o português e o quimbundo.

A estrofe integra-se num conjunto poemático irregular, aparecendo a

quadra só no final. Em verdade vinha não se estranha o seu surgimento

porque as duas estrofes anteriores estão baseadas, em boa parte, em

quadras heptassilábicas: a sextilha tem o esquema ABABCC e a décima o esquema ABABCDCDEE. Mas o conjunto do poema é fraco. Força pelo

menos três versos, não parece resultar de qualquer sensibilidade ao jogo de entoações ascendentes e descendentes e o seu conteúdo é

caraterístico dos defeitos da época: previsível, banalizado, visando

elogiar um bem colocado Procurador da Coroa a quem se dedica. Retoricamente começa por pedir auxílio a um padre d’aldeia que disse

não haver justiça por aí; incita os agentes dela a serem justos (o que

pressupõe a necessidade disso) e reafirma que, “não só castigas o crime

/ também salvas a innocência”. Ámen.

Mas esta é a única vez em que surge uma quadra com duas rimas cruzadas durante toda a primeira metade do período estudado, pois

nessa primeira metade predominam as quadras de uma rima cruzada (3 ocorrências) face às de duas rimas (2 ocorrências), cruzadas (1

ocorrência) ou emparelhadas e interpoladas (1 ocorrência também).

Page 45: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Todas as outras ocorrências se dão na segunda metade, mais

precisamente a partir de 1879.

A distribuição [ABAB], como já vimos valorizada por Bilac e Passos, é a

aconselhada por Castilho no Tratado de metrificação. O preceito suplementar que se propõe é o de que os versos ímpares de cada estrofe

rimem “em grave”, e os pares “em agudo”, o que nem sempre sucede no

corpus, mas também não é preceito de “obrigação rigorosa, como é para os francezes e na nossa lingua seria isso muito mais difficil” (Castilho,

1874 p. 144). Neste poema justiceiro também não se cumpre a regra,

embora se cumpra nos quatro versos da sextilha e nos versos 5 a 8 da

décima.

A predominância da distribuição com duas rimas cruzadas,

recomendada por Castilho, afasta-se da quadra popular mais comum,

mas o fraco número de ocorrências do esquema [ABBA] demonstra que

algo permaneceu da distribuição típica da quadra popular na

esmagadora maioria das quadras do corpus que dela se afastaram neste aspeto. Essa “alguma coisa” é o facto de, em qualquer dos dois tipos mais comuns, o sistema “cruzar” os versos (ou os que não rimam com

os que rimam, ou os de rima [A] com os de rima [B]).

Dado ser o tipo estrófico predominante na tradição lírica portuguesa e no ultrarromantismo brasileiro, não posso asseverar que se deva a sua presença exclusivamente ao conselho de Castilho, muito menos à

posterior louvação de Bilac e Passos, pois o mais natural é ter ele sido

apadrinhado por inércia e contaminação. Por esse mesmo motivo, não

vale a pena elencar aqui o conjunto de poetas que, na época,

praticaram tal tipo estrófico – embora, para a maioria das obras de referência, o trabalho tenha sido feito, servindo para confirmar o quanto

era comum o tipo.

O segundo esquema mais comum (*A*A) surge logo no já citado poema

de João Augusto de Sousa (1856/233). A sua última ocorrência dá-se

numa composição («Casa farta») de Jorge de Lucena (1900/168), autor de que lemos quatro, entre 1894 e 1900 – portanto caraterístico do fim

do período. É o seguinte o poema:

Conheço certo avarento com fama na visinhança de faltar ao seu casal com a precisa pitança. Estranhei-lhe o proceder

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a vêr se lh'o corrigia, mas o sovina maldito d'esta fórma respondia: “Dar ouvidos à calumnia é motivo de censura, em minha casa acredite em todos reina a fartura. Eu, a consorte, e pequenos todos bem fartos andamos ella de mim, e eu d'ella, e até os servos dos amos. Os rapazes 'stão ha muito fartos do progenitor, minha sogra inda ontem disse – 'Stou bem farta do senhor! .................................. Veja lá quanto é injusta a fama que me malsina; No meu lar reina a fartura, e eu nunca fui sovina. Jorge de Lucena (Angola), 1900/168.

Crítica de sabor vicentino à figura popular do avarento, é a penúltima

composição do corpus. Dos restantes poemas do autor aí, o mais próximo temporalmente é também uma ironia sobre a avareza, que teria

vitimado Camões. Os outros dois são um «Necrológio» a uma amada que entretanto falecera e um poema dedicado a Eduardo Neves. Este segue

na linha dos sonetos bilingues de Eduardo Neves e retrata uma cena cultural e social típica de Angola, terminando com a expressão

nanguibeta naguizola e a respetiva explicação.

O esquema distributivo aparece nas Espontaneidades de Maia Ferreira. Por exemplo numa quadra heptassilábica isolada, na parte II do poema

«Uma noite de Natal», publicado inicialmente quando Maia Ferreira

ainda vivia no Brasil, na Lizia poética, em 1848 (no entanto, o efeito de rima branca é moderado, aí, pela coincidência vocálica ao nível das

vogais tónicas, ambas ‘a’ aberto, seguidas por uma sílaba átona onde

coincide o ‘o’ fechado) (Maia Ferreira, 2002 p. 41); reaparece em duas quadras do longo poema «A ela», fechando cada uma das suas secções

(com rima aguda na primeira, grave e aguda na segunda), localizando-se o poeta no Rio de Janeiro em 22-2-1849 (Maia Ferreira, 2002 p. 49);

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domina completamente «O batel», com todas as dez quadras

(heptassilábicas) constituindo rima aguda exceto a nona (Maia Ferreira,

2002 pp. 83-84); regula a totalidade das estrofes do poema «Tenho fé»

(Maia Ferreira, 2002 p. 104), com versos heptassilábicos e rimas agudas

(todas em –ar); ocupa todas menos a última estrofe do poema seguinte

nas Espontaneidades, «A minha flor!» (Maia Ferreira, 2002 pp. 105-107), encimado por uma epígrafe de “Mme. Émile Girardin”8 (“Ah! Tu ne saurais m’oublier”); fecha o poema «Ainda a ela!» (Maia Ferreira, 2002 p.

112), encimado por uma epígrafe de Bocage (uma quadra também *A*A,

com rima aguda)9 em duas quadras heptassilábicas (de rima grave)

seguidas por outras duas pentassilábicas (de rima aguda). Continua-se

logo em seguida a mesma distribuição no romance «D.ª Beatriz» (Maia

Ferreira, 2002 pp. 113-117), encimado por uma epígrafe de Castilho e

praticado em quadras heptassilábicas, exceto a última, com cinco

sílabas (e outras que serão tratadas nos quartetos); passa depois para

as quadras de «Já não tenho fé» (Maia Ferreira, 2002 p. 134), onde os heptassílabos suscitam uma intertextualização garrettiana (“E depois

que as asas brancas / Este anjo desprendeu”), colocado no álbum de uma “excelentíssima senhora” de apelido Cravela, adúltera apaixonada

que teve um caso conhecido com o médico e bibliófilo Joaquim Vieira de

Carvalho (residente em Benguela) e, postula-se, com o próprio Maia

Ferreira (Maia Ferreira, 2002 p. 9). Finalmente vai-se embora do livro.

Mas reaparece nos poemas de Cordeiro da Matta inseridos em Delírios muitos anos depois, atestando mais uma vez a sua popularidade

angolense. Nomeadamente em «Rosalinda: imitação anacreôntica»,

poema da série “dos meus nonsenses”, escrito em Luanda em 1875, sobre pentassílabos; outro poema da mesma série, feito sobre

tetrassílabos (verso que só quase o poeta explorava entre nós, para além de algumas raras experiências de Maia Ferreira), escrito em 1876 em

Luanda, com a mesma distribuição rimática, é «Tudo a ti devo…». Numa longa composição, do mesmo ano ainda (1876), «Dois estudantes»,

reaparece o modelo, com heptassílabos e dedicado a Carlos Augusto da

Silva Júnior – acaso o mesmo “vigário do culto divino” referido sem

júnior no Boletim oficial (Angola. Governo-geral, 1874 p. 135) e que alugara uma “casa de sobrado na rua Salvador Correa” (Angola.

Governo-geral, 1874 p. 465)10; também para o mesmo ano o esquema se

8 1804-1855. Estava popularizada por citações de frases suas, ditos de espírito, ainda hoje muito frequentados na Internet.

9 Aí Bocage se dirige à sua musa, Armia, cujo nome evoca a musa de Maia Ferreira referida justamente neste poema, Arminda.

10 No n.º seguinte (03-10-1874) anuncia-se que a casa de um homónimo (também sem júnior) ficava na “praça do Bressane em frente d’alfandega” e que o mesmo vendia “estampilhas” (p. 477).

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repete, com heptassílabos, n’«A orfãzinha», escrita em Luanda; num

poema atípico desse ano, «Um vão receio», o tipo surge na primeira e na

última estrofes (a abrir e a fechar), em versos hexassílabos (exceto o

primeiro da última estrofe, que é heptassílabo – mas talvez um “me”

esteja ali a mais); surge depois numa composição de 1878, escrita em

Luanda, chamada «Loucura»; ressurge em «Nunca amei», mas também

com hexassílabos, igualmente escritos em Luanda em 1878; torna a voltar dois anos mais tarde, no poema «Ao sol do Cuanza», escrito já na

“Barra”, com heptassílabos; em «O bêbedo e a missa» repete-se o

esquema, com heptassílabos (e o poema vem datado de 1881 na “Barra

do Cuanza”), tal como na primeira secção do famoso poema «Negra!»,

publicado no Almanach para 1884; aparece, disfarçado por um conjunto enganador (a primeira estrofe), no poema «O que seria o meu

culto…», de 1881, também e ainda com heptassílabos; depois reaparece

no Almanach para 1886, no poema «A criança no berço», mas alicerçado em hexassílabos; surge na secção IV do poema «A um analfabeto», escrito no Tombo a 23-11-1881 – mas numa quadra isolada, atípica,

com trissílabos apenas e explicável em função do conjunto; ressurge, em 1883, no poema «Bem sei», localizado na “Barra”; com função de

mote aparece também, isoladamente, no poema «Porquê?!...», localizado

na “Barra” mas no ano seguinte, e no poema «Desilusão» (que se insere

na linha de desilusão com o amor feminino), datado de 1886; em «A

fisionomia» o esquema domina toda a composição, jogando rimas sobre heptassílabos de 1885. Na secção do livro intitulada «Quadras e

sextilhas» aparece nas quadras «Epigrama» (Barra do Cuanza, 17-06-

1881, versos heptassilábicos), «Epigrama» (homónima da anterior,

Tombo, Novembro de 1881, heptassílabos), «A alma dos poetas (Luanda, 1877, com 3 versos heptassilábicos e um verso hexassilábico). Na

secção «Lágrimas» aparece na primeira e na terceira (última) partes do

poema «À memória de José de Fontes Pereira Júnior / (assassinado em

23 de Agosto de 1875)», com epígrafe de José de Melo e data de 1875,

sobre versos hexa- e heptassilábicos; aparece também no seguinte, escrito em heptassílabos, em 1881, na “Barra do Cuanza”; a mesma

fórmula se repete por inteiro em outro epitáfio, «Ao passamento de uma

menina falecida em Luanda em Fevereiro de 1881», escrito na “Barra”

nesse mesmo ano.

Portanto, esta solução estrófica teve, apesar de minoritária nas

colaborações do Almanach, um lugar importante na poesia dos dois nomes principais da nossa poesia novecentista, José da Silva Maia

Ferreira e Joaquim Dias Cordeiro da Matta – tanto quanto a sua rival de versos com duas rimas cruzadas. Provavelmente ambos os esquemas

rimáticos, associados em geral ao verso heptassilábico, alternavam na

Page 49: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

preferência dos autores da época – diferenciando-se nisso da quadra

popular portuguesa.

Os esquemas rimáticos até aqui referidos para a quadra, apenas com a

exceção já de início indicada (1890/375), estão descritos no Tratado de metrificação (Castilho, 1874 p. 132), bem como na Teoria geral da versificação (Carvalho, 1987 pp. 38, 298), a par de outras distribuições que não foram seguidas pelos nossos poetas nos poemas estudados.

Uma delas, [AAAB/CCCB], surge nas Espontaneidades de José da Silva Maia Ferreira (Maia Ferreira, 2002 pp. 72-74). Tal esquema é também

seguido na «Canção» escrita por Cordeiro da Matta em Luanda, em

1879, publicada em Delírios. Ela aparece ainda na segunda secção de um poema (formalmente, um poema romântico típico) escrito em

Luanda em 1877 por Cordeiro da Matta e incluído nos Delírios. Mas é uma distribuição típica das oitavas, não das quadras; o jogo de rimas forma uma oitava e é reforçado pela colocação dos versos B em agudo –

seguida absolutamente por Maia Ferreira. De qualquer modo fica feita uma primeira aproximação.

Essa distribuição parece derivar da sextilha (onde é muito comum a

rima AABCCB) – ou a da sextilha deriva dela. No caso específico de «O

século XIX» (poema de Cordeiro da Matta onde figura na segunda secção) temos isso bem ilustrado. Ela pode ser aí, também, o resultado

de uma pressão interna, visto que no resto do poema temos estrofes de

seis versos com o esquema AABCCB. O esquema AAAB das quadras da

secção do meio, para além de instaurar uma simetria pela variação

métrica (antes e depois dele vemos repetirem-se sextilhas), parece um prolongamento, portanto, do esquema das sextilhas, que de forma geral

aí respeitam igualmente a regra de pontuar o final do 3.º verso.

Apesar de não aparecer no corpus deve, pelas ocorrências angolenses citadas e não citadas, levar-se em conta numa futura súmula da arte poética do século XIX no país. A sua presença resultará do magistério

de Castilho, que diz ter procurado e conseguido introduzi-la “entre os

contemporâneos” (Castilho, 1874 pp. 132-133). No Brasil também não foi desconhecida. Fagundes Varela, por exemplo, praticou-a no «Canto

do sertanejo», incluído em O estandarte auriverde, de 1863 (Varela, 2000;2002 pp. 33-34); no poema «Napoleão», que abre as Vozes da América, de 1864 (Varela, 2000;2002 pp. 3-6); na segunda secção do poema «Juvenília» e no poema «No ermo» (em estrofes compostas:

oitavas), ambos de Cantos e fantasias, de 1865 (Varela, 2000;2002 pp. 42-43; 62-64).

Page 50: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O facto de haver outras distribuições, entre os poetas de referência, que

não foram seguidas, indicia uma prática inserida num leque de opções

mais vasto, que era o dos preceitos românticos e ultrarromânticos

vigentes em Portugal e Brasil.

Os quartetos do corpus

No segundo tipo de estrofe de quatro versos que inicialmente referi,

também comum nos textos estudados (mas cujo primeiro exemplo surge

mais tarde, em 1863), outras espécies métricas estruturam os versos,

interligadas por várias distribuições rimáticas. A este último tipo

chamarei, para o distinguir da quadra, quarteto. Bilac e Passos parece

terem pensado mais ou menos o mesmo no seu Tratado de versificação, pois sempre que referem quartetos eles possuem versos com dez sílabas

métricas (Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd).

Também no corpus, entre os quartetos, predomina claramente o verso decassilábico (2 ocorrências entre 1863 e 1877 e 15 entre 1878 e 1893 –

o último ano em que aparece). Tal predominância torna-se concordante

com os elogios feitos por Castilho ao decassílabo, comparando o seu uso

entre os portugueses ao uso do hexâmetro entre os clássicos gregos e latinos e ao uso do alexandrino entre os franceses (Castilho, 1874 pp.

45-46, 50ss). No que me parece estar certo.

os quartetos decassilábicos

Os quartetos em decassílabos detetados encontram-se,

predominantemente, como disse, nos números para os anos de 1878 a 1893, portanto, na segunda metade do período. Isso de resto acontece

com todos os outros tipos de quartetos (excetuando os eneassilábicos, com uma só ocorrência em cada metade) e, como vimos, com as

quadras de duas rimas cruzadas.

Há quatro únicos exemplos de quartetos publicados em números

anteriores à edição para o ano de 1878, um dos quais será só

comentado adiante, quando me referir aos quartetos de versos

compostos.

Dos restantes três, um saiu no anuário para 1877 («A cruz do outeiro»):

Ei-la solitaria, erguida na cumiada do outeiro,

de musgo toda vestida pelo tempo enegrecida,

Page 51: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

ponto certo ao pegureiro.

No escabello carcomido

vae o pastor descansar;

e se a ovelha se extravia

uma prece a Deus envia

no chão, prostrado a orar.

Quando além pr'a azinhaga

o povo passando vae,

o velho diz á mais gente:

– eis a Cruz do Omnipotente

curvae-vos todos, curvae!

Já séculos são passados

que o christianismo te ergueu e d'ahi viste o crescente

que lá surgio do Oriente, que baqueou, e tremeu!

Viste a barbara invasão

por teus filhos dispersada;

e quando arrogante entrou nem ao menos abalou

o solo que te escudava!

Bem dito sejas pois, padrão sagrado, symbolo de perdão, de paz e amor;

em ti, encontra alivio o desgraçado,

ó Cruz do Redemptor!!

Narciso José Nogueira Braga (Zaire – Africa), 1877/359.

Publicado por um poeta insignificante no corpus, Narciso José Nogueira Braga11, fechando uma composição estruturada em quintilhas, trata-se de um quarteto assintomático, sustentado sobre decassílabos ligados

por duas rimas cruzadas.

11 Nada consegui saber dele. Há um homónimo brasileiro, comendador, que foi compadre de Rui Barbosa (uma sua filha casou com um filho do famoso político brasileiro). O seu nome vem referenciado em vários documentos das quatro primeiras décadas do sec. XX. Narciso é também referido, no motor de pesquisa Google, como lugar no Concelho de Braga.

Page 52: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Outro quarteto surge numa composição (1866/191) que é um plágio de

outra de João d'Aboim, o amigo de Maia Ferreira de quem este glosaria,

significativamente, o mesmo poema (Maia Ferreira, 2002 p. 30),

imitando-lhe a métrica (bipentassílabos), repetindo-lhe a distribuição

rimática, a rima em [-ar] e, naturalmente, a estrutura de diálage – que

ainda Cordeiro da Matta vem glosar num poema escrito em Luanda em

1877.

Finalmente, sobressai um exemplar (1864/116) construído sobre

quartetos decassilábicos, de João Cândido Furtado de Mendonça

d'Antas, que localiza a sua criação em Luanda. Este é, sem dúvida, o

exemplo mais importante do primeiro período. Ilustra-o uma imitação

feita por Álvaro Paes, que é datada já de 1876. Segundo Salvato Trigo,

Álvaro Paes publicou quatro poemas no Jornal de Loanda, datados de 1876, 1878, 1879 e 1880 (Trigo, 1977 p. 42). O primeiro, «A uma africana», é o que imita «No álbum de uma africana», de Cândido

Furtado (1864/116).

Ainda faz uma outra versão desses quartetos do poeta do Lima no

Almanach para o ano de 1881, ao repetir o motivo principal e a imagem da forma do corpo feminino oculta sob o véu subtil da cor, bem como a

do jaspe incrustando o branco da pele. As diferenças são formais: os quartetos de uma rima cruzada passam a quadras de duas rimas

cruzadas. Esse poema de Álvaro Paes recorda ainda, pelo título, métrica

e distribuição rimática, a composição «Africana – sonho oriental», de

Guilherme Braga, vinda a lume n'A grinalda, onde colaborava Cândido Furtado. Mas tudo o resto é diferente: o conteúdo referencial e

ideológico, a relação enunciativa entre autor textual e mulher africana (terceira pessoa em Guilherme Braga e segunda em Álvaro Paes e

Cândido Furtado).

Álvaro Paes publicou uma outra composição que denuncia a sua filiação ultrarromântica. Chama-se «Necrológio», pode ser lido no

Almanach para 1882 e recorda-nos um outro, homónimo, por igual satírico, escrito por Faustino Xavier de Novaes (Novaes, 1858), onde surgem também quadras heptassilábicas com duas rimas cruzadas. Só

a personagem retratada diverge: enquanto aqui se encena o caráter de

um “patife”, Novaes apresenta a máscara de um “tonto”.

A imitação de Álvaro Paes apenas reafirma a importância do poema de Cândido Furtado, fundador para a lírica angolana do século XIX. O

texto inicia, também no Almanach, uma série diferenciadora da lírica de então, por nela constituir motivo predominante, não somente a mulher

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angolana, mas a mulher negra ou de sangue negro. Daí dar-lhe uma

atenção especial.

Alba ligustra cadunt, vaccinia nigra leguntur N...

Qu'importa a côr, se as graças, se a candura, se as fórmas divinaes do corpo teu

se escondem, se adivinhão, se apercebem

sob esse tão subtil, ligeiro véu?

Qu'importa a côr se o ceptro da belleza

co'o mesmo enleio e brilho nos seduz?

e se o facho d'amor reflecte e esparge

ou no jaspe, ou no ébano, egual luz?

É menos bella, acaso, a violeta

porque o céu lhe não deu nevada côr? Não é gentil a escura pionía,

ou do verde lilaz a rôxa flôr?

Não tem encantos mil a noute escura,

não deleita então mais o rouxinol? Não serão do crepúsc'lo as sombras pálidas

mais bellas do que a luz d'ardente sol?

Não vive o alvo lyrio um dia apenas, e praso egual a candida cecem,

em quanto que nas balsas a saudade de cada vez mais viço e vida tem?

........................................................

........................................................

Qu'importa a côr se as graças, se a candura,

se as fórmas divinaes do corpo teu

se escondem, se adivinhão, se apercebem sob esse tão sutil, ligeiro véu?

J. Cândido Furtado (Loanda), 1864/116.

Como se pode ver, é constituído por quartetos com uma rima cruzada,

nos versos pares, em agudo, sendo os decassílabos heroicos. Tem um

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ritmo vivo, uma boa articulação entre métrica, ritmo e sintaxe e é talvez

das melhores composições de Cândido Furtado ali publicadas. O

mesmo tipo de composição usava, por exemplo, Álvares de Azevedo,

poeta da segunda geração romântica brasileira (também muitas vezes

chamada ultrarromântica) e cujo primeiro livro (o vol. I das Poesias) sai em 1853, um ano após a sua morte mas a tempo de ser lido em Angola

ou Portugal por Cândido Furtado e outros (Azevedo, 2000). Era, no entanto, um tipo comum, que juntava os quartetos à distribuição

dominante nas quadras e constitui a segunda distribuição mais comum

no segundo período estudado. Maia Ferreira, que não recorreu muito ao

decassílabo em quartetos, nem a esta distribuição em quartetos

decassilábicos, escreveu uma estrofe com estas caraterísticas no poema

dedicado a D.ª Maria II, colocado já no final das Espontaneidades e sem

obrigação de agudos (Maia Ferreira, 2002 p. 144).

Quanto ao conteúdo, o poema de Cândido Furtado foi e pode voltar a ser vítima das mesmas leituras anacrónicas que tanto se apressaram a

condenar Maia Ferreira por falta de nacionalismo ou de angolanidade. No caso, acusa-se Cândido Furtado de ter por mote a ideia de que,

apesar de negra, a mulher negra era bela. Acho que isso é uma

tresleitura mais.

O que temos ali é o diálogo com “uma africana”, feito no álbum dela. Não devemos ler os poemas ignorando as situações enunciativas – a

fictícia, explícita, e a real. Em função da situação típica (o poeta

escrevendo no álbum de uma dama, que naturalmente vai elogiar)

estranho seria que o autor dissesse à sua elogiada senhora: és negra

mas, vá lá, apesar disso és bonita! É bem mais possível que essa

africana se lastimasse por ser negra, ou por serem as negras vítimas de preconceito e subestimadas em função da cor. O poeta responde ao

preconceito no álbum, quem sabe continuando uma conversa prévia dos dois. E então vai mostrando que, seja sobre a pele negra, seja sobre

a pele branca, o amor e a beleza se manifestam igualmente: “ou no

jaspe, ou no ébano, egual luz”. Em nenhum momento se aceita, nomeia

ou mesmo reclama a inferioridade da mulher negra.

Os três últimos versos da primeira estrofe podem ser vítimas de objeção

também:

se as fórmas divinaes do corpo teu

se escondem, se adivinhão, se apercebem sob esse tão subtil, ligeiro véu?

A objeção viria de se pressupor e aceitar que a cor negra esconde a

beleza. É preciso reparar melhor nessa passagem: as formas do corpo

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da bela africana são “divinaes” e isso é colocado logo no início,

acautelando suscetibilidades; uma vez que ela é negra e essa cor é

associada à noite, à ausência de luz que esconde os objetos, o poeta

começa por aludir a tal qualidade, sem preconceito nenhum. Antes pelo

contrário, vai compondo uma gradação reveladora: “se escondem, se

adivinhão, se apercebem”, passando a pele a ser, platonicamente, o

“ligeiro véu” da forma ideal a que ela dá corpo. Como véu, aparentemente esconde para na realidade nos abrir a atenção e evitar a

evidência, que banalizaria a forma. O resto da composição apenas vai

reiterar a desmontagem do preconceito que, virado do avesso, ainda

levou leitores a dizerem que o poeta era preconceituoso.

Se confrontarmos esta leitura com a da epígrafe mais ainda se acentua

a beleza do poema. A epígrafe é da Égloga II, v. 18, de Virgílio – poeta

largamente frequentado por leitores portugueses, pernambucanos,

cariocas e angolenses. Parece um haiku e traduz-se assim: “as brancas alfenas caem, colhem-se as negras bagas”. A imagem é belíssima e

torna a brancura um véu que, descaindo, mostra as bagas negras – o

que no caso reforça a sensualidade do poema do Almanach. A ideia feita de que o branco é a cor da beleza torna-se neste contexto o véu que

esconde a beleza e proficuidade das bagas. E é de perguntar se “esse”

(“sob esse tão subtil, ligeiro véu”), no verso de Candido Furtado, se

refere a uma proximidade gramatical (a cor da pele) ou a um véu que a mulher elogiada vestisse e que fosse branco – possibilidade nada

incomum na Angola desse tempo – sob o qual se escondiam e,

finalmente, se apercebiam as negras bagas...

Podemos afirmar então que a presença significativa de quartetos é feita,

neste corpus angolense, na segunda metade do período considerado – predominando, na primeira metade, para as estrofes de quatro versos, a

quadra heptassilábica de uma só rima, cruzada.

Metricamente, o procedimento inicial é o que está mais próximo do

guião do Visconde. Castilho não refere, no Tratado de metrificação, as estrofes de quatro versos decassilábicos e apenas alude às quadras ao falar nos versos de sete sílabas. Também não faz, ao falar nos versos

decassilábicos, a distinção entre heroico e sáfico, chamando genericamente heroico ao verso de dez sílabas métricas e, descrevendo

as suas composições rítmicas possíveis, regista a dos decassílabos

sáficos sem lhes dar uma distinção que os isole (Castilho, 1874 pp. 45-46; 116). Já Bilac e Passos referem os heroicos, por este nome, que

numa passagem fazem equivaler ao próprio decassílabo (Bilac, Olavo e

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Passos, Guimarães, sd). Amorim de Carvalho também não nos indica se

predominam geralmente, entre os versos de dez sílabas, os decassílabos heroicos (como no nosso caso, não só nos quartetos mas em todas as

composições com versos decassilábicos) sobre os sáficos.

A alternância entre decassílabos heroicos e sáficos poderia, pois, não

implicar a consciência da conotação de cada tipo, respetivamente, com um estilo grave e outro mais lírico. Por isso várias vezes encontramos,

nas composições estudadas, decassílabos heroicos e sáficos alternados

na mesma estrofe, independentemente do conteúdo desses versos e

dessas estrofes, ou de outras constantes que presidam à distribuição

métrica12. Isso parece confirmar que os poetas do corpus não distinguiriam, juntamente com o ritmo, um estilo mais propício a um

ou outro “tom”: ao tom épico o “decassílabo heroico”, conforme lhe

chama Amorim de Carvalho; e ao lírico o decassílabo sáfico, por isso

mesmo mais “musical”, na definição do mesmo tratadista (Carvalho, 1987 p. 47). Simplesmente usavam duas alternativas rítmicas para

praticar alternâncias no interior de estrofes, de resto, regulares.

Amorim de Carvalho não reporta qualquer predominância, no que diz

respeito à distribuição rimática, para os quartetos (Carvalho, 1987 p.

37ss), embora diga que, entre os românticos, teve muita popularidade o de rima encadeada (Carvalho, 1987 p. 39). É, precisamente, um tipo

que não encontrei nos poemas estudados – e aqui deparamos com uma

segunda diferenciação formal entre esta poesia e a sua referência

paradigmática.

De entre os quartetos decassilábicos, a distribuição rimática mais constante, embora com dominância fraca, vai para o esquema [ABAB]

na primeira fase (com quatro ocorrências contra duas de uma só rima cruzada e nenhuma para o esquema ABBA), enquanto na segunda fase

predomina, com mais escassa diferença ainda, a distribuição [*A*A],

com 12 ocorrências, face ao quarteto de duas rimas cruzadas (com 10 ocorrências) e ao de esquema ABBA (8 ocorrências). Este salto

comprova-nos a diversificação das práticas que foi acompanhando a

inflação dos versos, ao passarmos de antes para depois de 1878.

Mistura-se aqui, predominantemente, a distribuição rimática típica da

quadra popular com a distribuição métrica própria da poesia erudita, tal como, simetricamente, se misturara nas quadras a métrica própria

12 Cf., p. ex., 1878/375, 1884/66 (antepenúltimo verso), 1888/218, 1888/453, 1890/224, 1890/383, S1890/47, 1892/284, 1893/223 (terceiro verso).

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das populares com a distribuição rimática dos “escrupulosos”. Isso é no

entanto comum nos poetas lusófonos da época, não nos dando portanto

caminho para farejarmos leituras específicas. Castro Alves, por

exemplo, pratica dois desses tipos de esquema em quartetos, nas

Espumas flutuantes, justamente *A*A e ABAB, fugindo à distribuição ABBA. Junqueira Freire recorre também muito a quadras e quartetos

com uma só rima, cruzada – v., por exemplo, «O jesuíta» (Freire, 1867

pp. 34-35).

quartetos decassilábicos de versos compostos

Ocorrem quatro vezes no corpus: uma na primeira fase considerada (1866/191), as restantes na segunda fase (1881/100, 1883/261 e

S1887/5513). Trata-se de quartetos escritos em bipentassílabos, os

únicos de versos compostos encontrados e um dos tipos métricos

dominantes nos quartetos de Maia Ferreira. Dessas quatro ocorrências,

porém, duas (1866/191 e 1883/261) resultam de uma imitação.

A única distribuição rimática é a de rima cruzada (três ocorrências para

estrofes de uma rima cruzada, sendo só uma delas na primeira fase, e

uma para estrofes de duas rimas cruzadas, na segunda metade do

período estudado).

A primeira ocorrência surge num poema já referido, que plagia outro do

poeta João d'Aboim, o tal que teria sido amigo de José da Silva Maia

Ferreira e de quem este glosa a mesma composição, como atrás disse. A

presença, nesse poema, desta espécie métrica parece resultar do plágio,

sendo pouco significativo o ‘autor’, de quem desconheço qualquer outra

colaboração, quer no Almanach, quer em jornais angolenses ou portugueses consultados – exceto uma possível “letra” de música

popular que remete ainda para a mesma estrutura de diálage, pois

intitula-se «Se eu fora».

A confirmar o pouco significado desta ocorrência está igualmente o facto de, na primeira metade do período por nós estudado, não se encontrar

mais nenhuma vez tal espécie estrófica, surgindo os outros quartetos

deste tipo entre 1881 e 1887.

Essas três outras ocorrências estão subscritas por Eduardo Neves

(1881/100), um poeta importante no corpus, por Augusto Maria Lilla (1883/261), um poeta menos importante que Eduardo Neves (e que também imita, ironizando sobre ele, o poema de João d'Aboim, ou o de

13 [S] indica neste caso tratar-se do Suplemento ao Almanach.

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José da Silva Maia Ferreira) e por Augusto G. de Castro (S1887/55),

poeta sem significado no que pude ler da poesia angolense.

O poema de Eduardo Neves («Amor e vinho: disparate lyrico»), que se

inicia com uma citação de Faustino Xavier de Novais, apresenta uma

distribuição de duas rimas cruzadas – para além de lembrar as duas

primeiras composições do corpus pelo amor ao vinho:

No album de Julião Carlos de Oliveira Monteiro Torres Oh vinho!... licor formoso!

A ventura devo-a a ti.

(Faustino Xavier de Novaes).

Se á noite, meu anjo, na rua te vejo,

e fico instantes a olhar-te, absorto, assalta-me logo tão forte desejo

que só o apago com vinho do Porto!

Ao ver dos teus olhos os raios tão bellos

eu tremo com medo que o fogo me apanhe;

no peito me nascem frementes anhelos que só os esqueço no vinho champagne!

Dos lábios vermelhos um breve sorriso

me faz, n'um momento, d'amor delirante!

Mas ai... que ao vel-os eu perco o juízo, então só me lembra bom vinho Alicante!

Não sei o que sinto nos seios d'est'alma

ao ver tuas faces rosadas e bellas:

é ancia, e é febre, que só se me acalma

com trago e mais trago de vinho Bucellas!

Eu sinto-me preso d'um terno delirio ouvindo-te a falla sonora e fagueira;

mas logo que fallas eu sinto um martyrio e vou apaga-lo no vinho Madeira!

Se d'esse teu seio tão puro e nevado as formas áirosas eu vejo uma vez,

não posso, ao fita-las ficar socegado

sem dois, ou tres copos de vinho Xerez!

Page 59: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Se tu, por descuido, erguendo os vestidos,

o lindo pé mostras... de tal me não gabo...

quizera... quizera... mil vinhos sortidos,

que até não faltasse d'Ungria e do Cabo.

Eduardo Neves (Loanda), 1881/100.

A solução, claro, não é inédita no romantismo lusófono, mesmo a

solução formal. Gonçalves Dias, por exemplo, usa-a na segunda secção

do poema «A mendiga», incluído nos Primeiros cantos (Dias, 1847) – livro que recebeu a pública admiração de Alexandre Herculano. Inicia a

secção com quartetos bipentassilábicos (mas de uma só rima, cruzada),

sempre em agudos (e nos versos pares, claro). Em seguida a secção

prossegue com a mesma distribuição (perdendo-se a obrigatoriedade da

rima em agudos) mas com os versos pares em pentassílabos.

José da Silva Maia Ferreira parece avesso a essa distribuição rimática para os quartetos de bipentassílabos. Usa-a, mas dá-me impressão que

o faz casualmente, apenas duas vezes, num quarteto de um poema

dedicado a D. Fernando II e no poema seguinte (nas Espontaneidades), inserido no álbum do seu amigo A. P. da Costa Jubim, que julgo ter

sido brasileiro ou residente no Brasil, onde o poeta o veio a conhecer.

A própria poesia de Novais também não desconhece esta estrutura, o

que veremos dando alguma atenção ao poema de Augusto Maria Lilla

(«Que queres?»):

(Imitação)

A A.J.S.

Se eu fôra palhaço que com trouanices os povos, de riso, fizesse estourar,

a ti, meus amôres, a ti só daria

meu riso de mômo, meu rosto d'alvar.

Se eu fora trapeiro, de sacco e de gancho

que vae ao monturo farrapos pescar ai! com que alegria, trapinhos e tudo

a ti eu viria, louquinho, offertar!

Se eu fôra choméco da gente do tom

que lindos chapins soubesse arranjar

Page 60: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

(não fazes idéa, não fazes, rolinha),

que chiques botinhas te havia de dar.

Se eu fôra de Vigo gallego chapado

que xó á bombinha xoubexe puxar

aos teus pés formosos, ó meu amorxinho

me viras chinguiços e trancas largar.

Mas... nem sou choméco, gallego ou palhaço,

nem mesmo trapeiro que vá gandaiar,

o que hei-de pois dar-te, diz luz dos meus olhos,

se nem pobres versos eu sei engendrar?

Augusto Maria Lilla (Casengo - Africa Occidental), 1883/261.

Ele coloca-nos um problema de fontes que entendo oportuno abordar,

não só para clarificarmos relações intertextuais como também para aferirmos o grau do significado da sua ocorrência no âmbito do objetivo

mais específico deste livro.

A imitação realizada por Augusto Maria Lilla poderia ter uma origem

diferente da representada por Valentim Augusto Monteiro da Silva (o plagiador de João d’Aboim) pela sua marca afetadamente irónica, que

as composições de João d'Aboim, Maia Ferreira e Monteiro da Silva

desconhecem. Uma vez que Faustino Xavier de Novaes publica, em

1885, o seu poema intitulado «Prégar no deserto!» (Novaes, 1855 p.

119), onde emprega a mesma estrutura retórica (e as mesmas figuras de estilo), e onde se refere aos que enriqueciam em Angola (Novaes, 1855

p. 120), recorrendo a um termo próximo do levantado por Lilla

(“labroste”, na ironia camiliana de Novaes; “labrego” na secura chã do

corpus), podíamos pensar que a imitação provinha do texto de Novaes, independentemente de poder ser a de Novaes tirada do livro de João d'Aboim ou do livro de Maia Ferreira. Bastava, para isso, que Novaes

tivesse antes publicado ou posto a circular o poema, visto que o de Lilla

sai no Almanach para 1883…

A biografia literária de Novaes podia reforçar a hipótese. Recordemos que Faustino Xavier de Novaes foi amigo de Ernesto Marecos, foi diretor

de O Bardo e o sátiro do ultrarromantismo, para a renovação do qual contribuiu também através da sua poesia, tecnicamente mais cuidada e

que introduz, para além da sátira, o uso frequente do soneto na escola do Visconde. São esclarecedoras as considerações que sobre ele e os

Page 61: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

poetas d' O bardo estabelece João Gaspar Simões na já citada História da literatura portuguesa.

A composição de Faustino Xavier de Novaes é, porém, vertida em

quartetos de bipentassílabos de duas rimas cruzadas e graves, seguido

cada quarteto por uma quintilha heptassilábica. Na composição de

Augusto Maria Lilla só há quartetos, como nas de João d'Aboim, Maia Ferreira e Monteiro da Silva; tal como nesses poemas, também no de

Augusto Maria Lilla há só uma rima cruzada, sempre em [-ar] e sempre

feita com um verbo.

No poema de Faustino Xavier de Novaes a frase que exprime a condição

– e, no último quarteto, a frase que exprime a adversidade – pode

ocupar somente o primeiro verso de cada estrofe, ao passo que nas

composições do corpus essa frase ocupa sempre os dois primeiros versos, sendo reservados os outros dois para indicar o que se faria se a

condição estivesse preenchida – e, no caso do último quarteto, para indicar a consequência do não preenchimento das condições

enumeradas. O poema de Augusto Maria Lilla, mesmo que o seu autor conhecesse a composição de Xavier de Novaes, deriva formalmente da

série iniciada em João d'Aboim — e segue, por consequência, o percurso

tropical dessa estrutura literária, não o “metropolitano”.

Este tipo estrófico (de uma só rima, cruzada) não encontra menção particular em qualquer dos tratadistas consultados. No entanto, o

próprio Castilho, no terceiro volume das Excavações poéticas (Castilho, 1904 p. 15) e nas Estreias poético-musicaes (Castilho, 1907 p. 37), usa esse metro em quartetos com duas rimas cruzadas, como faz Eduardo Neves (1881/100), que, “illustrado” e “dedicado […] amigo” do

Almanach, certamente frequentava a obra do mentor.

Ainda nas Estreias poético-musicaes, o mestre do ultrarromantismo português estrutura quartetos com bipentassílabos, mas ligados por

duas rimas com distribuição ABBA (Castilho, 1907 p. 95). A joalharia sentimental de Soares de Passos utiliza também o bipentassílabo em

estrofes de quatro versos, por várias vezes, preferindo sempre as duas

rimas cruzadas como Eduardo Neves (Passos, 1984 pp. 67, 109, 144, 160, 183, 193, 222)14; a par das suas vinham as loas de João de Lemos,

que também só pautou nesse tipo de quarteto com duas rimas cruzadas (Lemos, 1858 pp. 175, 270; Lemos, 1859 p. 153; Lemos, 1866 pp. 140,

183). Alinhando pela mesma bitola vinha o “príncipe dos poetas

portugueses”, Luís Augusto Palmeirim, que nesse tempo roubou o trono

14 Esta edição da Lello é baseada na 9.ª, de Teófilo Braga (Porto: 1908).

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a Camões com uma rima cruzada (Palmeirim, 1851 p. 25) e com duas

(Palmeirim, 1851 pp. 259, 265, 321, 387); em 1862, nos seus Versos, Bulhão Pato usou como os nossos poetas a distribuição *A*A em

quartetos bipentassilábicos, mas não lhe encontrei duas rimas cruzadas

(Pato, 2008).

Álvares de Azevedo, o ultrarromântico brasileiro, usa o bipentassílabo

com duas rimas cruzadas no poema «Anjos do mar», integrado na Lira dos vinte anos, por sua vez incluída no vol. I das Poesias saído (como disse, postumamente) em 1853 (Azevedo, sd p. 8). Junqueira Freire, fiel

à distribuição de uma rima cruzada, aplica-a sobre bipentassílabos no

poema «A devota», encimado por uma epígrafe de S. Tomás de Aquino

(Freire, 1867 pp. 104-107). Casimiro de Abreu, no poema «Segredos»,

utiliza também o mesmo tipo estrófico (Abreu, 2000; 2003 pp. 33-34).

Recorrendo a uma só rima cruzada, Castro Alves usa por duas vezes o

mesmo tipo estrófico nas Espumas flutuantes, que vieram a público em 1870, como se sabe (Alves, sd).

Quanto aos quartetos com decassílabos compostos com uma só rima cruzada, na lírica de Maia Ferreira é essa a distribuição rimática

preferida para tal tipo estrófico-métrico – portanto em coincidência com

os brasileiros (Maia Ferreira, 2002). Usa-a em 10 composições, em

alguns casos várias vezes ou mesmo estatuindo-as só sobre esse tipo.

A prática poética angolense não estava, pois, como se vê, distanciada

face à dos ultrarromânticos em Portugal ou no Brasil, mesmo quando

recorria a uma forma não prevista no Tratado de Castilho.

quartetos com outros tipos métricos

Os quartetos dodecassilábicos

Quanto aos quartetos não compostos em versos decassilábicos, deparamos com cinco ocorrências para os de doze sílabas métricas, a

primeira das quais em 1884 (p. 256) e a última já em 1900 (p. 342) –

todas, portanto, publicadas na segunda metade do período estudado.

Aqui deparamos predominantemente com distribuições de duas rimas,

em dois dos casos cruzadas e no outro emparelhadas e interpoladas (ABBA), havendo um poema apenas («Situação dolorosa») com uma só

rima, cruzada (S1890/45):

Em fragil lenho sobre o dorso do oceano – prestes a pasto ser dos feros tubarões –

levava ao lado seu o ousado marinheiro

Page 63: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

os dois melhores corações...

Eram os entes mais queridos d'este mundo:

a cara mãe – a doce imagem de Maria –

a santa immaculada, a que na leda infancia

nos dá alento e alegria;

e a boa esposa, a fida amiga, que o consôlo nos traz nas tristes horas d'amargura e dôr;

a pomba casta em cujas azas alvacentas

resplende dos anjos o alvor!...

Segura ousado o nauta do escuro vento a sorte,

emquanto doce riso nos lábios lh'errava,

olhando embevecido por esses caros entes,

que mais n'este mundo prezava.

Mas, quando folga ledo, eis s'obumbra o horisonte e rija tempestade os mares embravece!

já em gyro açodado eis corre o triste lenho, e o feminil seio estremece!...

O nauta que ditoso ao lado os seus mirava,

agora immerso em dôr amarga, lacrymoso,

impresso se lhe vê na -ha pouco- alegre fronte o amargo pungir doloroso!

........................................................................................................

........................................................................................................

........................................................

Oh! triste scena! já quasi presa das ondas

vê o filho do mar os caros entes seus!...

E co'a mente turbada o terno filho-esposo fulo ameaça os escarceus!...

Lá das agoas no fundo ellas desapparecem,

soltam no desalento os mais pungentes ais. E o nauta affeito á furia d'essas vagas

não decide, não póde mais!

Oh! como o dolorido, o angustiado filho

póde da morte a mãe adorada salvar,

se n'esse furioso e torvo abismo a esposa não póde às ondas arrancar?!

Page 64: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

........................................................................................................

.....................

Ah! se ha dôr mais pungente que a alma trucide,

é a que o varonil peito assim retalha

quando valer não póde, e os entes que idolatra

teem o oceano por mortalha...

Setembro de 1881.

J. D. Cordeiro da Matta (Barra do Quanza), S1890/45.

Saiu ele da retórica pena de Cordeiro da Matta, que lhe mistura três

dodecassílabos iniciais com um octossílabo final – ora com acento

rítmico na 6.ª e 8.ª sílabas, ora com acento na 4.ª e 8.ª, sendo que os dodecassílabos tanto acentuam a 6.ª quanto a 4.ª e a 8.ª. A variação no

ritmo dos versos não parece obedecer a qualquer regra para além do sentimento momentâneo do poeta, ou da sua momentânea intuição

expressiva — o que está de acordo com o espírito romântico. O

octossílabo não surge em mais nenhuma composição do corpus. Castilho afirma “que ainda não é usado em portuguez. Nada ha talvez

escripto nelle, afóra uma ou duas tentativas de José Anastacio da Cunha, que por ventura o estreou, e uma ou duas minhas, sem

continuação, nem imitador”. Acho que se esqueceu dos Apólogos de

Bocage aqui, Bocage que foi lido pelos nossos novecentistas (Pequeno

dicionário de literatura brasileira, 1987 pp. 25-26). Castilho valoriza-o “pelos seus elementos, e pelo que os francezes d'elle tem chegado a

fazer” (Castilho, 1874 pp. 42-44). A citação sublinha aqui, não só a raridade métrica, mas, sem querer, a cuidada especialização do artífice

angolano, que vamos confirmar pela breve lista de ocorrências

“metropolitanas”, aliás idênticas mas não iguais.

Numa das utilizações que o mestre ultrarromântico faz do octossílabo, conjuga-o, precisamente, com o dodecassílabo (percebido, portanto,

como sequência de três segmentos de 4 sílabas métricas cada), mas em

estrofes com sete versos. Mendes Leal narra, também, em octossílabos o seu “pequeno romance”, domesticamente intitulado «Esposa!» e tornado

público no tomo II de Mosaico. Mosaico era um “Jornal D'instrucção e Recreio/cujo lucro é applicado a favor/das/casas d'asylo da infancia desvalida” – e que teve, por isso, muita saída na altura; marcadamente

ultrarromântico, o segundo tomo foi publicado pela Imprensa Nacional

em Lisboa (como o primeiro, de 1839), mas em 1840, vindo o poema na p. 281. Fagundes Varela usa, em quartetos, um verso eneassilábico que

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me parece, na verdade, um octossílabo composto, um bitetrassílabo

(Varela, 2000;2002 pp. 34-35). Mais tarde, Guerra Junqueiro, na Morte de D. João escreve um longo poema todo em quartetos octossilábicos

(Junqueiro, 1974 pp. 416-428).

Convém lembrar, ao leitor menos especializado, que foi Guerra

Junqueiro inicialmente um poeta ultra-romântico, sobretudo nos livros

Mysticae nuptiae (1866), incluído em Vozes sem eco (1867), e Batismo de Amor (1868). A sua poesia, até à Morte de D. João, inclusivamente, mantém marcas técnicas que permitem aproximá-la da prática dos

ultrarromânticos. Por tal motivo incluí todas essas obras na minha

pesquisa, tendo analisado estatisticamente as que se lhe seguiam, em

particular as de data mais recuada, como A velhice do Padre Eterno (1885) e Finis patriae (1891), obras estas que se revelou possuirem

pouca afinidade com a poesia do corpus. Recorde-se, ainda, que a Morte de D. João foi “um grande êxito” (Jacinto do Prado Coelho (dir.), 1984 p.

514). Em Finis Patriae precisamente, numa composição que, por ser posterior à de Cordeiro da Matta, não influenciou este, deparamos com

a única sintonia de octossílabos e dodecassílabos em quartetos de duas rimas cruzadas, mas numa distribuição métrica inusitada e engenhosa,

seguindo-se ao octossílabo um tetrassílabo, a este um dodecassílabo e

ao dodecassílabo um trissílabo – formando o conjunto uma espécie de…

triciclo.

Para esta espécie estrófica, portanto, não encontro, em rigor, nenhum

exemplo entre os poetas ultrarromânticos portugueses ou brasileiros, o

que dá um rasgo de nítida originalidade ou modernidade à figura de

Cordeiro da Matta. Digo modernidade porque vejo exemplos de Olavo

Bilac, nos quatro quartetos do poema «Mater», em todas as estrofes

também de «O cavaleiro pobre (Pouckhine)», de Alma inquieta (Bilac, 2000-2003a pp. 5-6, 12-13). Cruz e Sousa experimenta igualmente o

octossílabo no sugestivo poema «Canção negra», em quartetos com duas

rimas cruzadas e numa composição em quintetos, «Inexorável» (Sousa,

2000b pp. 75-77, 46-48).

Os exemplos mais próximos do composto pelo “poeta negro do Rio

Quanza”, nos ultrarromânticos de referência, são conjugações de decassílabos com hexassílabos, ou de decassílabos com versos de

quatro sílabas. Do primeiro caso encontramos sinais em Tomás Ribeiro

(Ribeiro, 1908 p. 18), o poeta frequentado por Marecos; em Gonçalves Dias (Dias, sd p. 69), o poeta glosado por José da Silva Maia Ferreira;

Gonçalves Crespo (Crespo, 1942 p. 129)15; Mendes Leal (Leal, 1858 p.

15 O livro é prefaciado por Afrânio Peixoto. A inclusão de Gonçalves Crespo entre os poetas de referência torna-se necessária, não só pelo ultra-romantismo de alguns dos

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23); Ernesto Marecos (Marecos, 1878 pp. 64, 138); Guilherme Braga

(Braga, 1869 p. 19)16 – entre os brasileiros Álvares de Azevedo e Castro

Alves, que o usa por duas vezes nas Espumas flutuantes (Alves, sd). Da segunda espécie deparamos com exemplos de João de Lemos, no

primeiro (Lemos, 1858 p. 6) e no segundo Cancioneiro (Lemos, 1859 p.

213); entre as «Poesias diversas» de Gonçalves Dias (Dias, 1848 p. 113)

e em Gonçalves Crespo, numa ocorrência datada de 1869 (Crespo, 1942

p. 97).

Os exemplos de Gonçalves Crespo, Guilherme Braga e Ernesto Marecos

são, desta recolha, os únicos a apresentarem duas rimas cruzadas, e o

de Mendes Leal é o único de rima ABBA, pois no caso da conjugação de

decassílabos com um hexassílabo encontramos sempre uma rima

cruzada, ou nenhuma rima, e, na mistura de decassílabos com um

verso final de quatro sílabas, não encontramos rima sequer.

Castilho, nas suas primeiras Excavações, rentabiliza uma estrofe idêntica, em bipentassílabos finalizando por um verso de cinco sílabas –

seu quebrado, portanto (Castilho, 1904 p. 36).

Os quartetos dodecassilábicos com verso final quebrado encontram-se

em poetas ligados a escolas posteriores à do Visconde.

Num poema das Primaveras românticas, de Antero de Quental, aparecem quartetos dodecassilábicos, mas terminando por um

hexassílabo e com duas rimas cruzadas (Quental, 1922 pp. 8-9).

Junqueiro, na Morte de D. João, utiliza também o mesmo tipo estrófico (Junqueiro, 1974 pp. 192, 442). Estes autores, portanto, apesar de o

seu nome aparecer mais ligado ao Realismo, estão formalmente

próximos de Cordeiro da Matta em momentos que são também raros

pela originalidade do angolense. Quanto a Guerra Junqueiro, já me

justifiquei. A inclusão de Antero no meu espectro de pesquisa deve-se principalmente à data de publicação das suas obras, a acima citada e a

das Odes modernas. (Quental, 1865). Estudei também os Sonetos, visto que a primeira edição é de 1861, havendo uma outra de 1880. A edição

seus poemas, mais visível em Miniaturas (1875), como também por ter escrito um poema de elogio à mulher negra – «A Negra» (Crespo, 1942 p. 241) que, nas duas primeiras estrofes, possui afinidades com o poema «Negra!» de Cordeiro da Matta, como já notado acima. 16 Para além do livro citado, publicou também Poesias, resumindo-se a esses dois títulos a sua obra lírica. A data de publicação de Poesias (1898) inviabiliza qualquer possibilidade de ser essa uma obra de referência. A sua poesia panfletária não deixou marcas na lírica por nós investigada (Os falsos apóstolos, 1871; O bispo, 1874).

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de Oliveira Martins, a mais conhecida, é de 1886. A edição consultada

para esta pesquisa foi a de António Sérgio (Quental, 1943). Qualquer

das três antes citadas podia ter sido lida pelos nossos versejadores.

Pelo que disse atrás, Cordeiro da Matta aplicou aos dodecassílabos

misturados com o seu quebrado uma distribuição predominante em idêntica estrutura concebida para a conjugação dos decassílabos com o

seu quebrado. Por outro lado sabemos que vários poetas (por exemplo

Álvares de Azevedo na Lira dos vinte anos e Castro Alves nas Espumas flutuantes) usam o hexassílabo como quebrado do decassílabo sáfico, e isso é parecido com usar um octossílabo como quebrado de um

dodecassílabo com acento rítmico na sexta sílaba. Mas pode igualmente

o nosso lírico ter aplicado a formulação de Quental e Junqueiro apenas

trocando o hexassílabo pelo octossílabo. A troca deve-se, logicamente, à

maneira como se concebe o dodecassílabo. Ele pode ser usado num ritmo de 4+4+4, ou num ritmo de 6+6. Sendo usado no primeiro caso o

quebrado pode ser um tetrassílabo ou um octossílabo; sendo no

segundo o quebrado é um hexassílabo.

No poema em causa («Situação dolorosa») Cordeiro da Matta oscila entre

o uso de acentuação rítmica na 6.ª e na 8.ª sílabas – embora tendendo

para a 8.ª (sem que isso implique, necessariamente, um ritmo de 4+4+4). Pelo que qualquer das duas últimas hipóteses me parece

plausível mas especialmente a segunda. Tanto mais que Olavo Bilac, em

Alma inquieta («Mater»), que sai com a 2.ª ed. das Poesias, em 1902 (Bilac, 1902), usa o octossílabo (em quartetos) como quebrado do

dodecassílabo (mas com distribuição rimática ABAB), sendo os dodecassílabos formados num ritmo de 6+6, exceto um, verso hesitante

aliás, que segue o ritmo 4+4+4 (Bilac, 2000-2003a pp. 5-6). O conjunto

do poema é o mais próximo que li do de Cordeiro da Matta. António

Feijó, poeta que não pode ter influenciado o lírico do Kwanza, usa ainda quartetos dodecassilábicos, com ritmo 6+6 e quebrados octossilábicos

nos versos pares (a distribuição é a de duas rimas cruzadas). Isto surge

em Sol de inverno: últimos versos, no Epílogo da secção III, a dos Hinos (Feijó, 2006). Sol de inverno é de 1922, embora reúna poemas escritos, pelo que deduzo, até 1915. Portanto a estrofe do nosso poeta vem a

revelar-se precoce no meio literário lusófono – a julgar pelo que até

agora investiguei.

O poema de versos dodecassilábicos com rima emparelhada e

interpolada (ABBA) é da autoria de Alberto Marques Pereira e vem

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datado de 1888, sendo publicado no mesmo Almanach do de Cordeiro da Matta acima citado (S1890/61):

GUIA-ME!...

(Pierre Siéfert)

Algumas vezes perde a avesinha o trilho quando, alegre, percorre a abóboda infinita

e emquanto anciosa escuta, espreita e inda hesita

pipila a voz da mãe chamando pelo filho.

Já lhe pendia a aza enfraquecida e lassa,

Já despendia um pio, de duvida, de medo,

mas responde-lhe a voz n'um ninho do arvoredo,

que prompto ao que vagueia o itinerario traça.

Bem como a avesinha eu interrogo a via

que deverei seguir no labyrintho humano; mas falta-me d'Ariadna17 o fio e temo o engano

se a tua eburnea mão, m'o não mostrar um dia!...

4 de Fevereiro de 1888.

Alberto Marques Pereira, S1890/61.

Castilho, nas Novas excavações poéticas, recorre, em dois quartetos dodecassilábicos com datação provável de 1867, ao esquema ABBA; Guilherme Braga faz o mesmo, mas num só dos seus vários quartetos

dodecassilábicos (Castilho, 1905 p. 47). Não dei por nenhum outro caso

equivalente entre os poetas ultrarromânticos de referência, o que parece

natural, dada a extensão desse tipo métrico e rítmico diminuir

excessivamente o efeito de rima entre o primeiro e o quarto versos.

Isto levou-me a pensar como posterior ao ultrarromantismo o cultivo

desse tipo estrófico. Nas Claridades do Sul, de Gomes Leal, encontrei também quartetos dodecassilábicos com distribuição ABBA (Leal, 1901

pp. 215, 218, 311)18. O livro é de 1875 e parece ter alcançado grande

sucesso, a julgar pela advertência dos editores à segunda edição. A sua 17 Figura da mitologia grega, filha do Rei Minos, que ajuda Teseu a vencer o monstro do labirinto sem se perder nele mas é depois abandonada por Teseu, sendo então tomada por Dionísio como esposa. O fio de Ariadne é o fio que ela facultou a Teseu para que não se perdesse no labirinto.

18 A inclusão, que venho fazendo, de Gomes Leal, deve-se, não só à data da publicação, como também à celebridade do livro, registada na “Advertencia dos editores” feita à segunda edição. As afinidades técnicas encontradas acabaram por fornecer uma terceira e posterior justificação, reconheço que inesperada.

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história, nesse tempo ainda curta, possibilita portanto que seja por

influência de Gomes Leal que Alberto Marques Pereira (cujo primeiro

poema no corpus aparece no Suplemento ao número para o ano de 1889) tenha coligido estes quartetos. Se assim foi, trata-se de uma

influência rara, que devemos assinalar, por Gomes Leal ser um poeta

posterior ao ultrarromantismo (no entanto citado por Cordeiro da

Matta). Parece, de qualquer modo, que os paradigmas da lírica ultrarromântica estavam, finalmente, a ser superados na última década

do século XIX em Angola. Nesse contexto, o crescimento literário de

Pedro Félix Machado vem coroar todo o processo, manifestando uma

total superação do ‘espírito’ romântico.

As afinidades formais de Alberto Marques Pereira parecem confirmar-se

lendo O livro de Cesário Verde, publicado postumamente em 1887. Aí o poema «Contrariedades» desenvolve a mesma distribuição rimática. Fá-

lo, porém, em quartetos em que o último verso é um hexassílabo, o que diminui a distância entre o primeiro e o quarto versos. Repete-se

parcialmente o esquema no mesmo livro, mais adiante, no famoso poema «O sentimento d’um ocidental», dedicado a Guerra Junqueiro: no

poema, o primeiro verso é um decassílabo funcionando como quebrado

dos dodecassílabos. Ainda usa o mesmo esquema rimático em

«Humilhações», sendo o quarto verso de cada estrofe um decassílabo.

Sem quebrados, a distribuição aparece, ainda nesse livro, em

«Histórias» e na maior parte da 1.ª secção do poema «Nós».

Finalmente José Duro, pelo menos em «Doente» (último poema de Fel, saído em 1899, poucos dias antes da morte do poeta), usa também

quartetos dodecassilábicos com distribuição ABBA.

Estas afinidades denunciam, portanto, uma situação de viragem para novos paradigmas técnicos, ainda não completamente assumidos ou

incorporados, mas uma poética já em transição.

Dois dos três poemas (1884/256 e 1900/342) de duas rimas cruzadas

pertencem a dois poetas cuja permanência no território foi breve, um deles importante para a poesia liberal angolense (o já referido Cândido

Furtado, que no entanto envia o seu contributo de Oliveira de Azeméis, dezasseis anos após a partida para Portugal) e o outro insignificante (o

de Marcos Algarve, que publica a primeira colaboração lírica

precisamente no último número lido, localizando algumas composições

posteriores no Algarve, como disse atrás).

Page 70: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Ainda para esse tipo estrófico deparamos com uma ocorrência nas

Espumas flutuantes de Castro Alves (Alves, sd), uma em Guerra Junqueiro (Junqueiro, 1978 pp. 73-76) e uma última em António Xavier

Rodrigues Cordeiro (Cordeiro, 1889 p. 75)19, em quartetos não

indicados como tal graficamente e onde os versos se ligam por duas

rimas cruzadas. Neste último caso, aliás, o poema vem datado de 1891,

o que torna impossível falar de qualquer influência sobre Cândido

Furtado.

Junqueiro pauta-se também pelo quarteto dodecassilábico nas Vozes sem eco (p. 71), no Batismo de Amor (pp. 79 e 82), na Vitória de França (p. 101), na Morte de D. João (pp. 143, 160, 271, 275, 287, 299 e 308) e na Velhice do Padre Eterno (pp. 341 e 345), correndo-o com os versos atados por duas rimas cruzadas. Pelas datas de publicação, e pelo

ultrarromantismo de Cândido Furtado, creio que, a derivar de

Junqueiro esta espécie estrófica, ela terá vindo dos seus primeiros

livros, mais próximos dos ultrarromânticos.

Esse tipo de quarteto, no entanto, foi também cultivado por Gonçalves Crespo, sempre com duas rimas cruzadas (Crespo, 1942 pp. 254, 266).

Porém, surge aí numa secção de poemas que só saíram em livro em

1897, com a primeira edição, pelo que, pelo menos no caso de Cândido

Furtado, não é provável a influência de Gonçalves Crespo.

Finalmente o poeta do Só usa quartetos dodecassilábicos com duas rimas cruzadas, por exemplo no poema «Os figos pretos» (Nobre, 1892

pp. 88-90). Mas alterna aí com outro tipo de quarteto (de

bipentassílabos cruzados com os seus quebrados pentassilábicos).

Também ele, entretanto, não terá chegado a Luanda a tempo de Cândido Furtado o ler (o poema data, aliás, de 1889); só talvez Marcos

Algarve o pudesse apreciar (o Só vem a público em 1892 em Paris).

Podem estas ocorrências na poesia angolense derivar de Gomes Leal,

por usar ele mais vezes do que Antero esse tipo estrófico e pelas referências ao sucesso popular da sua obra, referências não

encontradas para as Odes modernas ou as Primaveras românticas. Gomes Leal — cujo livro, como já vimos, pode estar na origem dos 19 Tive em atenção a sua obra, apesar de publicada só nesse ano, em virtude de uma citação feita, logo num poema publicado no Almanach para 1892 (escrito, em princípio, até 1890). A citação é feita por Eduardo Neves, numa peça que termina por um verso em quimbundo. Porém, a consulta dessa obra não trouxe qualquer correspondência significativa, tendo já ela surgido numa altura em que a poesia dos residentes e angolenses caminhava, métrica e estróficamente, para a renovação que, em pormenores concernentes à técnica de composição, a aproximaria da poesia realista e parnasiana. O livro de Rodrigues Cordeiro surge com as características métricas e os tipos estróficos típicos do ultra-romantismo. Não houve, porém, nenhum retrocesso na poesia dos angolenses ou residentes fixos após a publicação desse livro. Dos quartetos dodecassilábicos há só dois exemplos, nos dois volumes das Esparsas: um, de que falo aqui, datado de 1885, num poema dedicado a Vítor Hugo; outro, datado de 1879 (II, p. 87), apresenta uma só rima cruzada.

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quartetos de rima emparelhada compostos por Alberto Marques Pereira

— nas Claridades do Sul delineia quartetos dodecassilábicos de duas rimas cruzadas (Leal, 1901 pp. 16, 104, 108, 129). Antero de Quental

acompanha-o nas Primaveras românticas (Quental, 1922 pp. 3, 171) e nas Odes modernas (Quental, 1865 p. 83). A partir daí vamos encontrar exemplos nos mais variados poetas portugueses e brasileiros, sobretudo

nos parnasianos (são muito comuns em Olavo Bilac, cujas Poesias saem em 1888; no português António Feijó, entre outros), mas também

nos realistas (por ex. Guilherme de Azevedo em A alma nova, de 1874), em Cesário Verde, em José Duro (v., por ex., «Alvíssima: oração»), etc.

Há uma outra via pela qual estes quartetos poderiam ter chegado a

Angola a partir de Portugal. Guilherme Braga, versificador que publicou

dos raros trechos ultrarromânticos dedicados a uma mulher africana,

rentabiliza quartetos dodecassilábicos de duas rimas cruzadas (só

numa dessas ocorrências a rima é emparelhada) no seu livro Heras e violetas, cuja primeira edição é de 1869 (Braga, 1869). Tendo sido

antologiado em A grinalda, coletânea da qual Cândido Furtado foi igualmente colaborador nos anos de 1859, 1860 e 1869, é natural que

Furtado conhecesse a poesia de Guilherme Braga e quadrasse por

influência dela os seus quartetos em dodecassílabos, que seriam lidos

com especial atenção na capital angolana mesmo depois do regresso a

Portugal. Reforçando essa ideia Guilherme Braga parece-me ser, entre os poetas ultrarromânticos, aquele que usa com mais frequência o

dodecassílabo, quer na composição de quartetos, quer na de outros

conjuntos de versos. Um dado suplementar é o de se encontrar ainda

hoje no Arquivo Histórico Nacional um livro seu, de 1872, escrito a quatro mãos em homenagem a José Cardoso Vieira de Castro, que viera

para aqui degredado e morrera cerca de um ano depois (Braga, et al., 1872). Talvez então, relativamente a esta ocorrência, não seja

necessário postular uma influência externa aos círculos “castilhistas”

do momento.

Uma terceira ocorrência, no corpus, de quartetos dodecassilábicos com duas rimas cruzadas («Saudade») deve-se a Abílio de Mendanha (1892/186), que a dedica “ao mimoso poeta, meu amigo, sr. Oliveira

Neves”:

No peito meu, saudade, erijo-te um sacrario

Ao lado de minh'alma;

Será meu coração o teu devocionario De prece terna e calma.

Page 72: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Perfume sempre flôr de rosas desfolhadas

É só o que me resta:

Findou o epithalamio20 e vivo das balladas...

A sorte minha é esta!

Não sei como voei num turbilhão escuro Até ao descampado;

É morto para mim o brilho do futuro

E fito o meu passado!

D'aquelle bom sorriso abraço-me à lembrança

Na triste soledade,

E, como tenho a alma exhausta de esperança,

Adoro-te, saudade...!

Abílio de Mendanha (Loanda-Africa Occidental), 1892/186.

O poeta pode ter estado pouco tempo em Angola21, mas provavelmente

conhecia o plágio, atrás referido, de Valentim Augusto Monteiro da

Silva. A ocorrência dá-se numa composição onde, como se pode ver, os

dodecassílabos alternam com os hexassílabos em simetria coincidente

com a da rima.

Detetamos estrofes iguais a esta num poema de Antero de Quental

publicado nas Odes modernas (Quental, 1865 p. 100), completamente

elaborado sobre esse tipo de quarteto, e na Morte de D. João, de Junqueiro (Junqueiro, 1974 pp. 192, 442). Uma espécie estrófica

parecida surge nas Excavações poéticas de Castilho (Castilho, 1904 p. 77), com a diferença de não se tratar de dodecassílabos, mas de

bihexassílabos.

A escassez dos quartetos dodecassilábicos é comum na lírica do corpus e na ultrarromântica de referência, o que se explica pelo facto de ser o

20 Originalmente, na Grécia, era um cântico feito no quarto da noiva, na noite do casamento, pedindo aos deuses (em particular a Himeneu) que abençoassem o casal. A vertente religiosa não impediu que o epitalâmio tivesse conteúdo erótico e, mesmo, licencioso.

21 É a seguinte a cronologia da sua participação no Almanach: 1887/279; 1891/197 (localizado de “1890, Monte-Mór-o-Velho”, trata-se de uma lírica em prosa); 1892/186; 1893/239; 1895/331 (“S. Marttinho do Bispo - Coimbra”); 1900/118 (localizado no Rio de Janeiro). O texto de 1893, cuja ficção enunciativa o coloca sob a invocação da morte da esposa, sintetiza no primeiro verso da última estrofe os penúltimos da última do poema de João d'Aboim e do plágio de Valentim Augusto Monteiro da Silva. Tal como Valentim Augusto, Abílio de Mendanha usa a terceira pessoa do singular em vez da primeira; recorre, porém, ao verbo [gemer], que o plagiador apaga da imitação.

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verso de doze sílabas recente na poesia portuguesa, tendo-o

paradigmaticamente introduzido Castilho22, que o pilhou decerto em

Victor Hugo (Carvalho, 1987 p. 45ss) e o apresenta inicialmente na sua

tradução dos Amores de Ovídio (Castilho, 1904 p. 53).

O dodecassílabo ressurge no vernaculista António Nobre e no

carbonário Junqueiro, a partir de Vitória de França (Junqueiro, 1870). Mas são os parnasianos (portugueses e brasileiros) que sobretudo o

cultivam – com destaque para Olavo Bilac (Bilac, 1902). A par deles,

Guilherme de Azevedo, Cesário Verde e José Duro recorrem também ao

dodecassílabo, como vimos.

No entanto, sendo na época o dodecassílabo introduzido em Portugal

por Castilho, vangloriando-se ele disso explicitamente no seu Tratado de metrificação, dizendo inclusivamente que “hoje (...) a custo se encontrará com poeta, quer portuguez quer brasileiro que lhe não tenha

mostrado praticamente a sua predileção” (Castilho, 1874 p. 50ss), não é necessário referir a presença desses metros em quartetos ao realismo

posterior, de António Nobre ou de Junqueiro, mesmo se Castilho nos

apresenta os dodecassílabos, no Tratado de metrificação, num soneto.

Só o facto de ser um verso tardio no corpus me leva a pensar nessa hipótese, visto que, mesmo entre os poetas ultrarromânticos, Guilherme

Braga chega a recorrer várias vezes a tal verso (Braga, 1869 pp. 15, 29,

39, 47, 79, 117, 135, 221, 227, 240).

Quartetos hexassilábicos

Para os quartetos incluindo versos hexassilábicos encontram-se no

corpus cinco ocorrências também, situadas na segunda metade do período estudado.

Duas delas foram subscritas por Joaquim Dias Cordeiro da Matta, o

poetas das margens do Quanza ao qual, como se sabe, confiava o

agente Héli Chatelain o apostolado da “poesia nacional” ...em

quimbundo.

Das outras três ocorrências, duas vêm assinadas por Abílio de

Mendanha, poeta que pode não ter tido residência prolongada em

Angola, e por Alberto Marques Pereira, figura que envia, ao todo, nove

composições líricas em verso para o Almanach a partir de território hoje angolano.

22 Na verdade, já o Marquês de Santilhana atribuía a responsabilidade pelos versos de 12 sílabas aos reinos de Portugal e Galiza, “y los alejandrinos de catorce sílabas, tomados, segun se dice, del poeta frances que escribió el Poema de Alejandro”. No entanto, o verso introduzido por Castilho distrai-se deste.

Page 74: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Pouco ou nada soube sobre a pessoa que respondia por este nome. Sei

que houve um capitão de navios envolvido no tráfico de escravos a

viajar entre Rio de Janeiro e Luanda em 1817 e que se chamava José

Marques Pereira, mas não sei se teve relação familiar com este, que

devia ser muito mais novo (Voyages). Há um Alberto Feliciano Marques

Pereira que era “Capitão do Exército da Índia (Coronel)” e foi retratado a

31 de Maio de 1897, apresentando-se então com esta figura:

O mesmo nome publica ainda manuais de ginástica e livros sobre temáticas coloniais, mas nos anos 50 e 60 do século XX. Em 1914 sai

uma edição d’Os lusíadas prefaciada por Alberto Feliciano Marques Pereira, nascido em 1866 e que morreu em 1935 ou 1936. A ficha

catalográfica da BNP indica-a como 2.ª ed., mas indica a edição de 1915

como 1.ª... Pode ser este o nosso autor e o coronel do exército da Índia.

Ele coordena ainda uma publicação sobre o Regime vigente no ensino normal primário na escola normal de Nova Goa, publicado em Nova Goa

pela Imprensa Nacional (Pereira, 1908) e uns Quadros cronológicos dos governadores gerais da província de Angola, reunidos por si, que o ligam diretamente a nós e sustentam por enquanto a hipótese de estarmos

perante a mesma pessoa (Pereira, 1889).

Alberto Marques Pereira parece ter acumulado influências posteriores

ao ultrarromantismo e talvez isso esteja associado à incidência antes

referida, bem como a esta. O soneto «Metempsychose» (1893/223) tem o mesmo título que um dos de Antero de Quental – datado, na edição de

Oliveira Martins, do período entre 1860-62. Os dois repetem a métrica e o esquema distributivo ([ABBA/ CCD/EED]). A diferença é,

principalmente, uma diferença de conteúdo e nisso a colaboração de

Alberto Marques Pereira é caraterística da poesia que venho estudando. Como acontece nesta ocorrência, ela mistura um léxico e sugestões do

ultrarromantismo com soluções formais posteriores. Por isto mesmo é um poeta que requer atenção particular, um poeta que não podemos

considerar insignificante – apesar de só ter colaborado cerca de seis

anos.

Page 75: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Em duas das ocorrências de quartetos hexassilábicos, espaçadas no

tempo (1886/440 e 1892/438) mas ambas da autoria de Cordeiro da

Matta, os versos não se misturam com outros tipos métricos no interior

das estrofes:

A CREANÇA NO BERÇO

Nas faxas envolvida,

fraca, molle, indolente,

dorme – leda – em seu berço

a creança innocente.

Bafejam-n'a dos euros

as virações frementes; devoram-n'a, anciosos,

mil olhares ardentes!...

No terno olhar que volve vê-se do anjo a candura;

dos seraphins espelho,

é sua alma pura!...

Do mundo alheia à lida, ignora d'elle a pena...

Não sabe o que a espera n'esta via terrena!...

Só de bençãos coberta, só de carinhos cheia,

é dos paes o attractivo

que os vivifica e enleia!...

Oh! que encanto, que graça,

não tem do berço a vida!... oh! como n'elle exulta

a infância appetecida!...

salvè, quadra viçosa,

Page 76: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

quadra de mil fulgores;

quadra no mundo estranha

á meseria e ás dôres!...

Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Margens do Quanza ), 1886/440.

*

SOB PALMEIRAS

Como d'alma no intimo

eu t'amo, doce sombra!

Como o peito, de jubilo

pulsa – grato – n'alfombra!...

Oh! doce ar que ao peito enfermo

de gosos ermo vens vida dar;

deixa as harpas eólias

os doces sons vibrar...

Que só de Eolo a musica sabe o triste alegrar...

Oh! ar que passas célere

entre as franças arfando, tu me deixas extactico

teus gemidos 'scutando...

Essa harmonia

angelical, tem perennal,

p'renal poesia.

Quando com notas módulas

perpassa o ar n'alfombra,

não sei que encanto magico tanto me prende à sombra!...

J. D. Cordeiro da Matta (Tombo-Margens do Quanza), 1892/438.

Page 77: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Nesse caso, as estrofes apresentam uma só rima, cruzada, tal como

acontece com a última aparição delas (1893/239), assinada por Abílio

de Mendanha, e misturando já versos hexassilábicos e decassilábicos.

As ocorrências de Cordeiro da Matta, de conteúdos fortemente

românticos, indiciam no entanto uma preferência pessoal, vastamente

regista em Delírios nos poemas que não foram publicados no Almanach de lembranças (Matta, 2001 pp. 40-41, 69-70, 71-73, 82, 120, 121, 124-126, 149 (II), 151-153, 183, 192, 199-200). De onde lhe terá vindo

essa preferência?

Garrett abre com uma estrofe igual às de Cordeiro da Matta o poema

«Beleza», das Folhas caídas, mas cruza duas rimas em vez de uma só. Cruzando uma só rima há uma única estrofe, no poema «Retrato /

(num álbum)» do mesmo livro (Garrett, 2000-2002 pp. 28-29).

O quarteto hexassilábico é o preferido por Herculano em A harpa do crente, inclusive com a mesma distribuição rimática. Usa-a por exemplo no poema «A cruz mutilada» (Herculano, sd pp. 81-82, 88-89), onde a relação com a sombra, precisamente nos sendo comunicada em

quartetos hexassilábicos – o poema é heterométrico – nos faz lembrar a

relação com a sombra a que é dedicada a bela composição de Cordeiro

da Matta publicada no Almanach para 1892.

Castilho compõe quatro estrofes de quatro hexassílabos, mas com uma

rima cruzada, na sua tradução parafrástica d’Os amores de Ovídio, na “Canção 1.ª” (Prelúdio) do vol. II (Castilho, 1858 pp. 7-8) e repete o feito

(com sete estrofes) na “Canção 2.ª / A um eunuco” (Castilho, 1858 pp.

16-17), bem como em duas estrofes da “Canção 2.ª / No circo de Roma”, mas já do 3.º vol., o mesmo da «Canção 6.ª / O rio», onde usa

novamente uma só rima, cruzada, e da «Canção 11.ª / Aversão e amor», onde só usa o tipo (Castilho, 1858 pp. 23, 39-42, 47). A “Canção 3.ª /

Ao mesmo”, do vol. II, é toda escrita nesse tipo estrófico, mas passando às duas rimas cruzadas, ao contrário da longa 18.ª, com uma só rima (Castilho, 1858 pp. 19-22, 89-95). Ainda no vol. II, a «Canção 5.ª / A

Corinna, infiel n’um banquete”, usa duas estrofes idênticas mas só com

duas rimas emparelhadas, nos versos do meio, reutilizando o esquema nas duas últimas (Castilho, 1858 pp. 29, 31); vem a repetir a façanha

em toda a «Canção 11.ª / Aversão e amor», onde só usa o tipo (Castilho,

1858 pp. 71-76). Castilho ainda usa a quadra hexassilábica na fábula

«A ribeira e o lago», incluída no segundo volume das Excavações poéticas (Castilho, 1904 p. 93), nas Novas Excavações poéticas com

uma distribuição diferente de todas as que encontrei no corpus

Page 78: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

(Castilho, 1905 p. 89) e nas Estreias poético-musicaes, numa

composição datada de 1849 (Castilho, 1907 p. 52)

João de Lemos, embora só uma vez, usa o quarteto hexassilábico no

Cancioneiro (Lemos, 1866 p. 232). Bulhão Pato usa duas rimas cruzadas, como Garrett, no poema «Oração da manhã», datado de

Junho de 1859 (Pato, 2008).

Domingos Gonçalves de Magalhães fechara o longo poema «A mocidade»

(datado de 1835), incluído em Suspiros poéticos e saudades, com seis quartetos hexassilábicos de duas rimas cruzadas (Magalhães, sd).

Ernesto Marecos apoiou-se nos quartetos hexassilábicos nas Folhas sem flores, com duas rimas cruzadas (Marecos, 1878 pp. 31, 309) e com

uma só rima, também cruzada (Marecos, 1878 pp. 56, 83).

O quarteto hexassilábico, genericamente, não foi referido por Amorim de

Carvalho, ou qualquer outro dos tratadistas consultados, pelo que não

admira a, mesmo assim, fraca frequência no corpus.

Tirando a versão d’Os amores feita por Castilho, os poetas românticos e ultrarromânticos não parecem ter engraçado muito com esta solução

estrófica. Dada a escassez de exemplos, consultei os números todos que

pude d’A grinalda. Pelo seu caráter de vulgarização da poesia romântica portuguesa ela se tornava sintomática. O resultado foi igualmente escasso: apenas uma ocorrência. Um versejador que muito publica ali (é

um dos dois redatores e o proprietário), Nogueira Lima, assina um

poema chamado «Junto à campa» onde as quatro primeiras estrofes são

de versos hexassílabos de uma rima cruzada (Lima, [1860] pp. 109-

112). Trata-se do último poema do número. Uma vez que a numeração

passa da p. 109 para a 112 não sei se está completo; uma vez que vem datado de 6-2-1861 é provável que a data de publicação desse número

d’A grinalda fosse posterior à indicada na capa.

Castilho usa ainda o verso hexassilábico numa estrofe de quatro versos

com uma rima cruzada, mas o primeiro desses versos é sempre

alexandrino. Isso ocorre na já citada tradução d’Os amores, no vol. I, “Canção 5.ª” (Castilho, 1858 pp. 63-65).

Uma vez que o tipo estrófico não possui ocorrências significativas no panorama romântico e ultrarromântico fui pesquisá-lo em escolas

posteriores. Antero de Quental, nas Odes modernas, recorre a ele, com uma rima cruzada, num poema datado de 1865: “Luz do sol, luz da razão / em resposta à poesia de João de Deus, «Luz da fé»” (Quental,

1875 pp. 67-71). Para encontrar exemplos idênticos é preciso ir até aos

Raios de extinta luz, coletânea de poemas inéditos do autor, escritos

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entre 1859 e 1863. Aí surge o mesmo tipo (com uma rima cruzada) nas

três estrofes finais de «Gargalhadas» (Quental, 1892 pp. 128-129). Para

encontrar exemplos idênticos é preciso também recuar aos Raios de xtinta luz (Quental, 1892 pp. 15-18, 145-146). As composições

chamam-se «Força-amor» e «Guitarrilha de Satan», vêm datadas de 1860

e 1869, porém têm uma distribuição rimática diferente: ABBA.

A conclusão a tirar parece-me, portanto, a de que o quarteto

hexassilábico de rima(s) cruzada(s) não foi muito cultivado pela escola

de referência.

As duas composições de Abílio de Mendanha onde encontramos estrofes com quatro versos hexassilábicos, apresentam-nos entremeados com

outros, tal como sucede no poema («Esperança / fragmento») de Alberto

Marques Pereira (S1890/30):

Que suavissima aragem se deslisa

nas auras da manhã! E ás florinhas do campo a meiga brisa

beija-as como irmã.

Aquelle enorme manto côr de anil envolve todo o céo;

sumiram-se as estrellas mil a mil

do outro negro véo.

Cahe a gota d'orvalho em chuva fina nas pétalas da flôr;

e os labios d'essas faces pequeninas a aspiram com amor.

Tranquillo dorme ainda o oceano um somno socegado;

calou no seio o seu gemer insano,

parou já, de cançado!

No entanto o trino alegre dos alados

esvoaçando aos pares escuta-se dos ramos elevados,

e a deslisar nos ares...

E em toda essa belleza da natura,

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o louco que delira...

cuida encontrar o balsamo que cura

nos sons d'ignota lyra!

25 d'Abril de 1887.

Alberto Marques Pereira (Luanda), S1890/30.

Destas três ocorrências, duas (S1890/30 e 1892/186) utilizam o

sistema de duas rimas cruzadas, como se cada tipo métrico chamasse

por uma rima própria. No primeiro caso, de Alberto Marques Pereira, os

versos ímpares são decassílabos e só um é sáfico, portanto o

hexassílabo é um quebrado, que surge nos versos pares.

É um modelo conhecido pela geração de 1878, já que o pratica J. D.

Cordeiro da Matta, com duas rimas cruzadas também (Matta, 2001). Mas a concorrência das duas rimas não era muito comum, pelo que

pude ler da época. É certo que Almeida Garrett a praticou no poema

«Avé, Maria», de Folhas caídas, que também alterna deca- e hexassílabos (Garrett, 2000-2002 pp. 40-41). No Brasil, Tomás António

Gonzaga recorreu à mesma fórmula métrica nas Liras 11 e 18, mas com

uma rima cruzada, nem sempre com palavras agudas (Gonzaga, 2006); Gonçalves Dias socorreu-se do mesmo tipo métrico e rítmico de

Gonzaga e Matta, mas em versos sem rima ou com uma rima cruzada,

sempre agudos, ou nem sempre. Casimiro de Abreu usa o mesmo

modelo (com obrigação de os versos pares serem agudos), de uma rima

cruzada, na famosa «Canção do exílio», a mais famosa depois da de Gonçalves Dias (Abreu, 2000; 2003 pp. 20-22). Fagundes Varela, da

segunda geração romântica, recorre ao mesmo modelo de Casimiro de Abreu em «O escravo», parcialmente em «Ao Rio de Janeiro» e sem rima

em «A lenda do Amazonas» - todos poemas de Cantos meridionais, de 1869 (Varela, 2000;2002 pp. 67-70, 72-73, 92-97). Álvares de Azevedo,

no poema «A tempestade – fragmento» (de Lira dos vinte anos), usa a distribuição de uma rima cruzada, sem obrigatoriedade de agudos nos

versos pares (Azevedo, 2000).

Na composição de Cordeiro da Matta publicada no Almanach para 1892 (p. 438) encontramos os quartetos hexassilábicos alternando

simetricamente com outros tetrassilábicos, num procedimento inédito

face ao corpus e para o qual não encontro correspondência nos poetas ultrarromânticos estudados. A mais próxima correspondência talvez

Page 81: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

seja a do próprio poeta que, nos Delírios, incluiu o poema A rosa, em

que os quartetos são de versos hexassílabos nos pares e dissílados nos

ímpares (Matta, 2001).

Castilho, um convertido ao romantismo, na versão de Os amores de Ovídio é que pode ter fornecido sugestões preciosas ao nosso poeta. No

Livro I usa uma sequência (não uma alternância) de estrofes com tetrassílabos para estrofes com um hexassílabo, seguido por

decassílabo heróico e os tetrassílabos sequenciam também

dodecassílabos com acento interno na 6.ª sílaba na mesma «Canção»

(Castilho, 1858 pp. 94; 93, 96), tal como no final da «Canção 14.ª» do

Livro II (Castilho, 1858 p. 74) e, de modo invertido (seguindo-se os

tetrassílabos aos alexandrinos), no fim da «Canção 12.ª» do Livro III

(Castilho, 1858 p. 81); na «Canção» seguinte do Livro I (11.ª) alterna

tetrassílabos com decassílabos heróicos – portanto, de certo modo, com

ritmos de seis sílabas – e depois os tetrassílabos são sequenciados por alexandrinos (Castilho, 1858 pp. 101-102). Na «Canção 1.ª» do Livro III

alterna também versos hexassilábicos com tetrassilábicos, mas agora seguidos estes por eneassílabos com acento interno, mais uma vez, na

6.ª sílaba (Castilho, 1858 p. 18).

Na «Canção 1.ª» do Livro II é que há duas sequências mesmo muito

próximas da habilidade de Cordeiro da Matta. Na primeira quartetos hexassilábicos são seguidos por quintetos tetrassilábicos – e estes por

um decassílabo heróico e seu quebrado hexassilábico; no final da

composição coloca dois quartetos tetrassilábicos a seguir a uma

sextilha hexassilábica (Castilho, 1858 pp. 8, 10). Na «Canção 6.ª / à

morte do papagaio» dá sequência a quartetos hexassilábicos com quartetos tetrassilábicos que, no entanto, não são indicados como tal

graficamente (vários deles formam uma só estrofe) mas pela rima, uma

só, cruzada nos versos pares (Castilho, 1858 p. 34).

Nos quartetos hexassilábicos da composição de 1892 surgem, nos versos ímpares, sempre palavras esdrúxulas, alternando com as graves

da rima, numa demonstração de bom domínio vocabular e de perfeição

técnica nem sempre detetável nos poetas ultrarromânticos portugueses mais conhecidos. João de Lemos, por exemplo, versejador exímio, que

patenteia um bom domínio do esdrúxulo, nem sempre consegue manter

uma composição inteira seguindo essa regra, como se pode ver a pp.

232 do volume III do Cancioneiro, onde apresenta vários quartetos com a rima em agudo mas com os versos ímpares a oscilarem,

aleatoriamente, entre o grave e o esdrúxulo. Castilho, na citada «Canção 1.ª» do Livro II é que faz o mesmo de Cordeiro da Matta, só falhando o

primeiro verso dos três quartetos hexassilábicos (Castilho, 1858 p. 8) –

Page 82: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

coincidência que reforça a sugestão de influência de Castilho sobre o

nosso poeta neste caso.

Castilho não foi o único romântico a jogar com ritmos de seis e quatro

sílabas. Foi, sim, dos que li, o único próximo de fazer alternâncias entre

estrofes de quatro versos tetrassilábicos e estrofes de quatro versos

hexassilábicos. Acontecendo isso na versão de Os amores, e havendo exemplos mais distantes (de conjugação de ritmos hexa e

tetrassilábicos) na Lírica de João Mínimo de Garrett (Garrett, 1829 p. 9), sou inclinado a pensar que, apesar de rara, a solução heteroestrófica de

Cordeiro da Matta pode vir de mais atrás, do neoclassicismo.

Quartetos eneassilábicos

Para os quartetos com versos eneassilábicos encontrei apenas duas

ocorrências (1863/351, de autoria anónima; 1899/376, de J. J. F.). Não consegui identificar o anónimo e talvez também não tenha conseguido

localizar J.J.F. Transcrevo o último poema («In memoriam»):

A... / Na missa do gallo

Foi na egreja. A voz do levita

entoava os psalmos sagrados e meus olhos fitaram-se em Christo

pelo brilho dos teus offuscados.

O teu vulto na sombra da nave

desenhava-se esbelto, gentil,

e teus lábios rezando orações eram frescos quaes rosas d'abril. E eu pedi a Deus com fervor,

contemplando belleza tão pura, que fizesse que o teu coração

palpitasse por mim de ternura.

.............................................

Passam annos. Na sombra da nave

lá diviso o teu vulto gentil, mas já sem a frescura suave,

que captiva nas rosas d'abril.

Tua face de rugas sulcada

mostra indicios de fundo soffrer,

Page 83: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

similhando uma flôr desfolhada

que não póde jamais reviver.

J. J. F. (Quissol - Angola), 1899/376.

Repare-se que, tal como sucede com Abílio de Mendanha, também J. J. F. compõe os versos certinhos, todos iguais, com acento rítmico na 6.ª

sílaba (depois, claro, na nona). Não só se trata de uma insensibilidade

aos vários momentos do poema e à articulação do conteúdo com a

forma. Trata-se também de uma mudança de paradigma. Se o leitor

puder, compare com a poesia de Guerra Junqueiro, do Guerra

Junqueiro realista, em particular com os seus bipentassílabos: toda

uma composição é vertida em versos bipentassílabos, sejam quais forem

as suas partes. O romantismo era mais sensível à articulação entre o

ritmo do verso e o conteúdo, pelo que fazia variações métrico-rítmicas no interior de cada poema. Nesse aspeto, o que vemos em Cordeiro da

Matta – para além de revelar imaginação e habilidade formais – é o paradigma romântico. Nestes poetas, ou versejadores, menos do que

bissextos, o que vemos é já o paradigma monorrítmico do realismo –

chamando realista à poesia de Guerra Junqueiro. Antonio Candido

afirma que essa prática (de empregar os “mesmos acentos tônicos em

todos os versos de um poema”) vinha já de Gonçalves Dias (Candido,

2002 p. 71).

O magoado e vingado subscritor localiza-se no “Quissol – Angola”. Há

um Joaquim de Jesus Ferreira que é possivelmente o nome que

preenche essas iniciais. Ele publica um quarteto isolado, intitulado

“Amor / A ***”, no Almanach para 1887 (p. 276):

Eu vi, um dia, para ti olhando,

cobrir-te as faces purpurina côr;

fugindo apoz, como gazella timida,

ouvi teus lábios murmurar: Amor!

Joaquim de Jesus Ferreira (Pungo-Andongo - Africa), 1887/276.

Talvez seja um poema apenas iniciado. É sem dúvida mais animado, e a imagem da gazela tímida a murmurar pelo poeta a palavra sagrada é

bem mais saudável que a do poema acima – embora pouco verossímil.

Entre ambos no entanto se nota a composição do mesmo tipo feminino, provavelmente bastante jovem. E entre ambos a monorritmia, neste

caso construída sobre a sequência 4+4+2.

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Joaquim de Jesus Ferreira passa, já no século XX, a localizar a

composição dos poemas em Lisboa, para onde veio viver – se

interpretarmos literalmente um deles (publicado no Almanach para 1906). No Suplemento ao nº para 1889 (p. 127), confessa-se europeu,

imaginando a reação dos “naturais” à corrigenda que constituía o

artigo, no qual demonstra familiaridade com a língua local.

De forma geral, Joaquim de Jesus Ferreira assina as colaborações

angolanas de Pungo-Andongo (de onde escreve uma nota necrológica sobre José Bernardo Ferrão, que nos confirma a ligação – por assim

dizer antropológica – de Ferrão ao segmento colonial); a localização de

J.J.F. é no Quissol, que ficava na jurisdição de Malanje; portanto, sendo

as terras relativamente perto uma da outra, é natural que as iniciais

correspondam ao mesmo nome. Tanto mais que uma charada sua

(1894/256) vem localizada do “Quiove, Angola” – ou seja: tanto mais

que Joaquim de Jesus Ferreira situa noutras terras outras

colaborações.

Excluo, portanto, a hipótese de se tratar de José Jacintho Ferreira da Cruz, inustrial e negociante, nomeado “em sessão de 5 de Janeiro do

corrente anno [1883], da Sociedade da «Geographia Commercial do

Porto» [...] socio correspondente da mesma, n’esta cidade [de Luanda]”.

Quanto ao conteúdo, a composição evoca um amor despertado na Missa do Galo e a posterior desilusão, do poeta primeiro (não resultou o seu

pedido a Deus para que ela o amasse) e dela depois (passados anos

tinha um rosto sofrido e envelhecido). Como quem diz, com dor de

cotovelo: não ficaste comigo, vê o que te aconteceu…

O primeiro dos dois poemas («Ao padrão do rio Zaire») parece também

ser de um português residente e ressuma ao nacionalismo lusitano da

época:

O que exprime essa Cruz, symbolo eterno

d'unidade cristã, aqui erguido, qual sacra sentinella a quem compete

a guarda d'este rio? Que mysterio

ergueu da Redempção mystico emblema n'esta praia longiqua entre os idólatras?

Essa Cruz é padrão levantado á memória d'hum heroe portuguez,

que o caminho do mundo, ignorado,

Page 85: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

com extremo valor abrir fez.

Essa Cruz silenciosa epopeia

stá dizendo à actual geração

que há tres séc'los pisou esta areia

um heroe portuguez, um christão.

Essa pedra é um verbo de gloria,

uma nota do hymno grandioso,

em qu'escrita s'encontra a historia

pelo mundo, d'um povo famoso.

E quem junto a tal cruzeiro

não sentirá altivez,

podendo ser verdadeiro,

a dizer «sou portuguez? E quem de rojo prostrado,

ante este symbolo sagrado, com ascetico fervor,

uma oração á memória

d'esse heroe da nossa historia

não eleva ao Creador?

Padrão d'avita grandeza

salvé! Sacro monumento!

Tens por guarda a natureza,

mar e Céu. Cofre opulento d'opulentas tradições,

que as vindouras gerações,

te possam sempre saudar!

E tu, qual ecco de gloria,

de Portugal a historia possas aos séc'los contar.

Anónimo, 1863/351.

Como se pode ver, é um elogio do heroísmo português da expansão, “entre os idólatras” numa “praia longínqua”. Talvez sofra influência

(pelo menos lexical) do Alexandre Herculano d’A harpa do crente (Herculano, sd pp. 81-89). Mas empobrece a harpa e o crente.

Os quartetos eneassilábicos aparecem aqui entalados entre a estrofe

inicial (decassilábica) e as finais (heptassilábicas). Junto com a estrofe

Page 86: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

inicial compõe uma primeira parte, formal, do poema – a parte em que

todos os versos recebem acento rítmico na 6.ª sílaba, seja qual for o seu

conteúdo.

O quarteto eneassilábico não é significativo no conjunto estudado, a

julgar pela quantidade e espécie de ocorrências. O facto de se tratar de

dois portugueses e de dois autores sem grande expressão no corpus reduz ainda mais a sua importância. De qualquer modo, uma vez que

aqui foram escritas, abordemo-las.

As duas ocorrências desenham estrofes com duas rimas cruzadas e a

última delas (1899/376) mistura essa distribuição com a de uma só

rima, cruzada.

O primeiro deles aparece numa composição onde se misturam vários tipos estróficos, nem todos de quatro versos e cujo motivo principal

ocorre apenas duas vezes no corpus. A segunda composição (de 1899, de J.J.F.) apresenta-se já inteiramente construída sobre versos eneassilábicos (os dois primeiros são na verdade octossílabos) e a

motivação tópica (a irreversibilidade do tempo, o desgaste que ele traz),

como o tema (o amor), são mais comuns na poesia estudada, ainda que

o autor seja pouco significativo e a sua dor de cotovelo tanto menos.

Este tipo de quarteto foi no entanto razoavelmente praticado pelos

poetas românticos e em Angola. Cordeiro da Matta recorre a ele nos

Delírios pelo menos uma vez, numa composição de 1878, com uma rima cruzada nos versos pares, sempre agudos e sempre em –ar (Matta,

2001). Assim mesmo ela aparece nas Folhas caídas de Almeida Garrett (que são de 1853), no poema «O álbum» (Garrett, 2000-2002 pp. 13-14)

e numa estrofe do poema «Retrato / (num álbum)» (Garrett, 2000-2002

p. 34). Aparece ainda nas Estreias poético-musicais (Castilho, 1907 p. 125), em Soares de Passos (Passos, 1984 pp. 181, 245), em Ernesto

Marecos, com duas rimas cruzadas (Marecos, 1878 pp. 100, 231). Surge

igualmente em Gonçalves Dias, com uma só rima cruzada (Dias, 1847 pp. 60, 100, 206), e com duas (Dias, 1847 p. 69) como na composição

de J.J.F., bem como em João de Lemos: a composição «A queixa

saudosa» (Lemos, 1859), por exemplo, é toda ela feita sobre quartetos eneassilábicos de duas rimas cruzadas, bem como um dos poemas do

vol. I do Cancioneiro (Lemos, 1858 p. 71). Esta espécie estrófica aparece

ainda nos Cânticos de Mendes Leal (Leal, 1858 pp. 73, 203), em Faustino Xavier de Novaes (Novaes, 1858 p. 184), nas Poesias de Luís Augusto Palmeirim (Palmeirim, 1851 pp. 36, 45, 245) e nas Heras e violetas de Guilherme Braga (Braga, 1869 p. 131), sempre com duas

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rimas cruzadas. Fagundes Varela adotou a mesma fórmula, com uma

rima cruzada, em «O foragido / (canção)», de Noturnas (1861) e «A roça», dos Cantos meridionais (Varela, 2000;2002 pp. 26-27, 74-75). Junqueira Freire usa também o quarteto eneassilábico na sua

distribuição preferida (uma rima cruzada) em «A freira» e «Meu filho no

claustro: canção materna» (Freire, 1867 pp. 96-103, 57-62). Finalmente,

Álvares de Azevedo usa-o com distribuição de duas rimas cruzadas em

«Morena» (Azevedo, sd p. 52).

Nem quanto à métrica nem quanto à distribuição rimática apresentada

nestes poemas o tipo estrófico mereceu qualquer menção por parte de

Castilho, ou de Amorim de Carvalho, onde fala nas estrofes que

predominaram no período ultrarromântico, apesar das conhecidas

composições de Soares de Passos em eneassílabos, dois deles em

quartetos eneassilábicos de duas rimas cruzadas (Passos, 1870 pp. 22-

25, 59-60, 85-86, 116-117, 178-181). No entanto, entre os poetas do século XIX pesquisados, é nos ultrarromânticos que habitualmente

encontramos quartetos eneassilábicos, pelo que a sua apropriação pela poesia angolense e radicada, inclusive através de Cordeiro da Matta,

confirma a integração na escola do Visconde.

Quartetos Mistos

Chamo «quartetos mistos» àqueles cuja definição técnica não pode ser

unívoca. Os primeiros a considerar são de versos com diferentes

definições métricas (heterométricos), em geral duas, pelo que António

Feliciano de Castilho dizia constarem de “dois ramos”.

Quartetos com diferenciações métricas internas

Os quartetos de “dois ramos” métricos aparecem no corpus a partir do Suplemento ao Almanach para 1890 (p. 30); fazem a sua última

prestação no Almanach para 1893 (p. 239). Ocupam, portanto, um

tempo muito restrito e tardio de produção.

Apesar desse período curto e com fraca intensidade de ocorrência, tais

poemas foram produzidos pelo poeta mais significativo do corpus, Joaquim Dias Cordeiro da Matta; secundaram-no dois poetas de

importância menor que a dele mas que, de qualquer modo, assinam

várias composições no Almanach datadas de Angola, inserindo-se formalmente ou lexicalmente nos mesmos paradigmas da poesia

angolense. Falo do renovador Alberto Marques Pereira (que assina nove

composições entre o Suplemento ao número para 1889 e o número para

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1895, tantas quanto Eduardo Neves) e de Abílio de Mendanha (que

assina cinco poemas, os últimos dois localizados em Portugal e no

Brasil, como vimos).

Neste período produziram-se portanto quatro poemas com tais

caraterísticas. Dois, de Alberto Marques Pereira (S1890/30) e de Abílio

de Mendanha (1893/239, este localizado em Luanda, ainda antes da partida para Portugal), misturam versos decassilábicos e

hexassilábicos, simetricamente, ligando-os através de duas rimas

cruzadas, o que também vimos atrás. O de Alberto Marques Pereira é de

um bucolismo paradisíaco, vendo o poeta na natureza matinal, ao

mesmo tempo, a inspiração e o bálsamo:

ESPERANÇA

(fragmento)

Que suavissima aragem se deslisa nas auras da manhã!

E ás florinhas do campo a meiga brisa

beija-as como irmã.

Aquelle enorme manto côr de anil envolve todo o céo;

sumiram-se as estrellas mil a mil

do outro negro véo.

Cahe a gota d'orvalho em chuva fina

nas pétalas da flôr;

e os labios d'essas faces pequeninas

a aspiram com amor.

Tranquillo dorme ainda o oceano

um somno socegado;

calou no seio o seu gemer insano, parou já, de cançado!

No entanto o trino alegre dos alados esvoaçando aos pares

escuta-se dos ramos elevados,

e a deslisar nos ares...

E em toda essa belleza da natura,

Page 89: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

o louco que delira...

cuida encontrar o balsamo que cura

nos sons d'ignota lyra!

25 d'Abril de 1887.

Alberto Marques Pereira (Luanda), S1890/30.

Repare-se como o poema é monorrítmico, no sentido preciso em que

assenta sempre sobre unidades de seis sílabas. Confirmamos, portanto,

aqui – apesar do ultrarromantismo do autor – uma mudança de

paradigma métrico mais característica das escolas posteriores à do

Visconde e que notarei mais à frente, a propósito de outra composição

de Abílio de Mendanha.

O poema de Abílio de Mendanha («Sobre um túmulo») imagina alguém chorando na sepultura da esposa, sem qualquer espécie de bálsamo,

devastado e renascendo depois para a saudade:

(Ao meu amigo João Lopes)

Os meus ultimos prantos derramei-os

Sobr'esta dura lousa, Onde a morte sem dó arremessara

Um coração de esposa.

Não mais nos duros transes da existencia, O balsamo divino

Veio adoçar os travos da amargura, Nosso comum destino.

Como a lava, rompendo em vivas chammas,

Tudo ante si devasta,

Assim minh'alma devastou, passando, A dôr intensa e vasta!

..............................................

Não morre o sentimento em quanto a vida

Em nós palpita e dura;

Em quanto o coração não arrefece Na fria sepultura!

E comtudo, ao pensar que eternas sombras

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Teu bello corpo sómem,

Senti-me renascer para a saudade,

Senti-me outra vez homem!

Homem que soffre e geme! Não turbando

Teu eterno repouso;

Brota do coração a voz que solta,

Um coração de esposo!

Abílio de Mendanha (Loanda-Africa Occidental), 1893/239.

Também aqui notamos a mesma monorritmia, com todos os versos

assentes em unidades de seis sílabas. De passagem repare-se na

reiteração de um pequeno cronótopo: “homem que soffre e geme” – o

mesmo que aparece naquela série de poemas em que se integra um

plágio feito por Valentim Augusto Monteiro da Silva. Na série, o poema de João d’Aboim (talvez o primeiro de todos) tem um dos versos finais

muito parecido: “Sou homem que sinto, que soffro, que gemo”…

É prática seguida pelos mais variados poetas portugueses do século XIX

a de fazerem quartetos idênticos ou iguais a este pela distribuição

métrica e rimática. Amorim de Carvalho (Carvalho, 1987 pp. 57-58) cita

Herculano (em quartetos de uma só rima cruzada, como sucede nos de Abílio de Mendanha) e Junqueiro (em quartetos de duas rimas

cruzadas, tal como sucede no transcrito poema de Alberto Marques

Pereira) e eu acima citei vários. Posso referir ainda, entre os

ultrarromânticos, exemplos em Castilho (Castilho, 1904 p. 51); em João

de Lemos – no primeiro Cancioneiro (Lemos, 1858 p. 60) e nas Canções da tarde (Lemos, 1875 p. 121); em Gonçalves Dias (Dias, 1847 pp. 89, 99, 124, 331). Os versos estão sem rima em Castilho, possuem duas

rimas cruzadas nas Canções da tarde e uma só rima, cruzada, no

Cancioneiro e em Gonçalves Dias. Soares de Passos usa também do mesmo tipo com duas rimas cruzadas (Passos, 1870 pp. 47-50, 127-

133). Mendes Leal compõe nesse tipo de quartetos, com uma rima

cruzada, nos Cânticos (Leal, 1858 pp. 29, 178, 185, 188) e com duas rimas cruzadas, na mesma obra (Leal, 1858 pp. 143, 197, 275).

Também Luís Augusto Palmeirim, com uma rima cruzada, nas Poesias (Palmeirim, 1851 p. 61), Ernesto Marecos – com duas rimas cruzadas (Marecos, 1878 pp. 64, 138) e Guilherme Braga (Braga, 1869 p. 19) –

também com duas rimas cruzadas. Álvares de Azevedo recorre ao

mesmo tipo estrófico nas secções I e II de «Crepúsculo nas montanhas» – poema que, nas duas outras secções, alterna três decassílabos com

um hexassílabo final, como sucede no anterior, «Crespúsculo no mar»;

faz o mesmo em todo o poema seguinte do livro, «Desalento» – sempre

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com uma só rima, cruzada nos pares como sucede com Abílio de

Mendanha (Azevedo, sd pp. 13-14). Fá-lo ainda num poema com algum

verso forçado, sem título mas incluído na série «O poeta» (Azevedo, sd p.

10). Repete-o seguidamente nas três secções do poema «Na minha terra»

(Azevedo, sd pp. 11-12), encimado por uma epígrafe de V. Hugo e que

apresenta sugestivas afinidades com o quase homónimo de Maia

Ferreira no que diz respeito à estrutura retórica (Maia Ferreira, 2002 pp. 26-32). Repete-o também no poema «Vida», encimado por Alexandre

Dumas; parcialmente no terceiro dos «Hinos do profeta», o fragmento «A

tempestade (Azevedo, sd pp. 17, 24). Os restantes quartetos

heterométricos da Lira dos vinte anos só fazem quebrado no quarto verso, tal como sucede em «Se eu morresse amanhã» (Azevedo, 2000-

2002 p. 64). Também são como os de Abílio de Mendanha os quartetos

da «Canção do exílio», de Casimiro de Abreu (Abreu, 2000; 2003 pp. 20-

22) e de Junqueira Freire em «Pobre e soberbo», nas secções I e III de

«Saudação», «À profissão / de Frei João das Mercês Ramos», parcialmente em «Canto», a III parte de «Nenia», (Freire, 1867 pp. 66-73,

152-154, 155-156, 159-165, 167, 203-204).

Gomes Leal estrutura em quartetos idênticos, com uma rima cruzada,

uma das composições das Claridades do Sul (Leal, 1901 p. 148) e, com duas rimas cruzadas, dois outros poemas da mesma obra (Leal, 1901

pp. 230, 278). Antero de Quental, nas Primaveras românticas, socorre-se também dos dois tipos de quarteto, com uma rima cruzada (Quental,

1922 p. 83) e com duas (Quental, 1922 p. 18).

A ocorrência de composições deste tipo não comprova nenhuma leitura

ou filiação específica, de tal forma elas são indistintamente comuns aos ultrarromânticos e aos poetas imediatamente posteriores. Só a

monorritmia coloca alguns dos colaboradores mais próximos das

escolas posteriores – mas apenas nesse aspeto.

Os outros dois poemas misturam, respetivamente, dodecassílabos com

octossílabos (S1890/45, de Cordeiro da Matta), e dodecassílabos com

hexassílabos (1892/186, de Abílio de Mendanha).

O de Cordeiro da Matta («Situação dolorosa») debruça-se sobre uma situação bizarra, em que alguém teria de escolher entre salvar a mãe e

salvar a esposa:

Em fragil lenho sobre o dorso do oceano – prestes a pasto ser dos feros tubarões – levava ao lado seu o ousado marinheiro os dois melhores corações...

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Eram os entes mais queridos d'este mundo: a cara mãe – a doce imagem de Maria – a santa immaculada, a que na leda infancia nos dá alento e alegria; e a boa esposa, a fida amiga, que o consôlo nos traz nas tristes horas d'amargura e dôr; a pomba casta em cujas azas alvacentas resplende dos anjos o alvor!... Segura ousado o nauta do escuro vento a sorte, emquanto doce riso nos lábios lh'errava, olhando embevecido por esses caros entes, que mais n'este mundo prezava. Mas, quando folga ledo, eis s'obumbra o horisonte e rija tempestade os mares embravece! já em gyro açodado eis corre o triste lenho, e o feminil seio estremece!... O nauta que ditoso ao lado os seus mirava, agora immerso em dôr amarga, lacrymoso, impresso se lhe vê na -ha pouco- alegre fronte o amargo pungir doloroso! ........................................................................................................................................................................................................................................................................ Oh! triste scena! já quasi presa das ondas vê o filho do mar os caros entes seus!... E co'a mente turbada o terno filho-esposo fulo ameaça os escarceus!... Lá das agoas no fundo ellas desapparecem, soltam no desalento os mais pungentes ais. E o nauta affeito á furia d'essas vagas não decide, não póde mais! Oh! como o dolorido, o angustiado filho póde da morte a mãe adorada salvar, se n'esse furioso e torvo abismo a esposa não póde às ondas arrancar?! .................................................................................................................................... Ah! se ha dôr mais pungente que a alma trucide, é a que o varonil peito assim retalha quando valer não póde, e os entes que idolatra teem o oceano por mortalha...

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Setembro de 1881. J. D. Cordeiro da Matta (Barra do Quanza), S1890/45.

De passagem repare o leitor no jogo, geralmente bem jogado, entre

ritmos baseados em segmentos de 4 sílabas métricas e ritmos com o primeiro acento principal na 6.ª sílaba. Digo bem jogado. Não só

porque, de forma geral, o acento recai numa sílaba forte, acentuada já

na palavra, mas também porque, de forma geral, o ritmo de 6+6

intensifica o tom dramático, indica um momento culminante da

argumentação poética (pressupondo sempre um efeito estético a par do

efeito retórico e do emotivo).

Repare ainda nesse mesmo desenvolvimento dramático. Ele conota o

mar, que seria através do barco uma passagem, com uma fronteira intransponível – à medida do naufrágio. O intento de atravessar o mar é

gorado e, mais, leva os seres amados e, mais ainda, o filho-esposo nem consegue decidir sobre quem salvar. De maneira que o mar aparece,

não só como fronteira intransponível, ainda conotado com a morte. Na

verdade, é uma passagem para a morte, a morte física dos entes

queridos e a morte psíquica do protagonista. Essa conotação, do mar e

da morte, está num acordo profundo com o próprio nome e conceito de mar em algumas das línguas e tradições angolanas. Embora o

desenlace nos desiluda (pela impossibilidade de decidir enquanto se vê

as duas mulheres amadas morrer), ele é coerente com tais referências.

O poema de Abílio de Mendanha («Saudade») é, como o anterior, triste, sem esperança – mas saudoso do sorriso da amada, possivelmente

versando o mesmo motivo da morte da esposa e da saudade como

renascimento sentimental

(Ao mimoso poeta, meu amigo, sr. Oliveira Neves) No peito meu, saudade, erijo-te um sacrario Ao lado de minh'alma; Será meu coração o teu devocionario De prece terna e calma. Perfume sempre flôr de rosas desfolhadas É só o que me resta: Findou o epithalamio e vivo das balladas... A sorte minha é esta! Não sei como voei num turbilhão escuro Até ao descampado;

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É morto para mim o brilho do futuro E fito o meu passado! D'aquelle bom sorriso abraço-me à lembrança Na triste soledade, E, como tenho a alma exhausta de esperança, Adoro-te, saudade...! Abílio de Mendanha (Loanda-Africa Occidental), 1892/186.

Repare agora o leitor em como o ritmo é sempre igual, assentando

sempre sobre a 6.ª sílaba. Por um lado isso mostra o perfeito domínio

técnico do verso; por outro a pouca sensibilidade a cada parte do que

atrás chamei argumentação poética e permite aproximá-lo mais de

escolas posteriores.

Repare também no conteúdo expresso. O tema é a saudade. O poeta ergue-lhe um sacrário (provavelmente metáfora do próprio poema) ao

lado de sua alma (na alma não, pois ela se encontra exausta de esperança – mas ao lado). O lugar-instante em que o emissor se

encontra é definido por ele negativamente. Mais do que isso, é definido

como um “descampado”, um vazio, portanto um não-ser e um não-

lugar. É deste nada, que se equipara indiretamente ao deserto como a

saudade norteafricana, é desta exaustão da esperança e da alma, que nasce a saudade sacralizada. Sendo ela fruto da solidão, não é por

pobreza de vocabulário que rima “soledade” com “saudade”, mas como

forma de indicar, uma vez mais, o tipo e a razão mais funda desse

sentimento saudoso, que era no caso a solidão. Com tal desenho, a saudade se aproxima do banzo, do sentimento agudo da ausência, da

despossessão, da remetência à condição de não-ser que sente o escravo

dentro do navio negreiro. Sendo português o autor e sendo portuguesa

a saudade original (com fundas raízes no norte de África), ele torna-a

(por essa mesma raiz desesperada e solitária) próxima do banzo. Há aqui uma deslocação simbólica, de um mundo de referência

inicialmente exógeno para um mundo de referência, também, endógeno.

Chegados a este ponto, é preciso diferenciarmos a presença de versos quebrados, como é o caso do octossílabo em relação ao dodecassílabo e

do hexassílabo em relação ao decassílabo, e a simples combinação de

versos, como é o caso da conjugação de dodecassílabos com hexassílabos, ou de hexassílabos com tetrassílabos (Carvalho, 1987 p.

244), praticadas ambas por Joaquim Dias Cordeiro da Matta.

Page 95: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O poema de Abílio de Mendanha conjuga versos dodecassílabos e

hexassílabos, o que podia fazer pensar em combinações de versos

simples. No entanto, os seus dodecassílabos estão acentuados na 6.ª

sílaba sempre, pelo que o hexassílabo se torna um quebrado, como já

disse.

A conjugação dos versos com os “seus quebrados respetivos” é referida por Castilho (Castilho, 1874 p. 142), desde que seja simétrica a mistura

(embora mais adiante, a pp. 144, o poeta refira elogiosamente o tipo

estrófico utilizado por Cordeiro da Matta, em que o quebrado surge no

último verso, tipo que diz ter sido introduzido em Portugal por Tomás

António Gonzaga, poeta de que ainda há edições do século XIX na

Biblioteca do Governo Provincial de Luanda).

A combinação entre versos simples não é referida pelo tratadista

ultrarromântico, sendo porém admitida como correta por Amorim de

Carvalho (Carvalho, 1987 p. 244) e praticada por Olavo Bilac.

Para cada um destes dois últimos tipos citados as distribuições são sempre de rima cruzada, apresentando cada um deles uma ocorrência

com estrofes de uma rima e outra com estrofes de duas. Castilho dizia,

porém, que, quando “as estrophes constam de dois ramos, quer estes

sejam eguaes em quantidade de versos, quer deseguaes [...] o ouvido

approva muito, não só que esses dois ramos rimem um com o outro pelo fim, mas que rimem em agudo” (Castilho, 1874 p. 143),

exemplificando com estes versos, de autoria não indicada:

Nasci no rico Oriente, Criei-me entre as verdes palmas Para amor.

Amor me poz no Occidente, fez-me d'alma duas almas

para a dor.

No caso dos poemas citados, o de Cordeiro da Matta (S1890/45) não rima os versos quebrados um com o outro (o que decorre naturalmente

do tipo estrófico rentabilizado na composição); só rima em agudo em

duas estrofes iniciais, tal como acontece com Alberto Marques Pereira (S1890/30) — que, no entanto, rima os versos quebrados uns com os

outros. Nos dois últimos (1892/186 e 1893/239), de Abílio de Mendanha e de Alberto Marques Pereira, rimam os versos quebrados

uns com os outros – mas nunca a par da acentuação em agudo.

Page 96: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

A terminação dos quebrados em agudo, mesmo quando não rimam

entre si, é uma prática muitas vezes respeitada em poetas como

Castilho, João de Lemos, Soares de Passos, João de Deus, Gonçalves

Dias, Tomás Ribeiro, Pinheiro Chagas, Ernesto Marecos, Luís Augusto

Palmeirim e Guilherme Braga, não o sendo em Mendes Leal. Em Garrett

e Herculano, porém, essa constante não se verifica, sendo aleatória a

ocorrência de rima aguda nos quebrados. Gomes Leal também nem sempre respeita a regra aconselhada por Castilho, assim como Antero

nas Odes modernas, ao contrário do que sucedia nas Primaveras românticas. Os poetas do corpus terão, pois, seguido aqui uma prática

anterior, ou posterior, não respeitando a norma ultrarromântica portuguesa. Mas seguiram a brasileira, pois entre os ultrarromânticos

brasileiros não se cumpre essa norma tão pormenorizada.

Quartetos e quadras com variações na distribuição rimática

Quando, numa sequência de estrofes, se distribuem, não só as rimas

por essas estrofes, mas também os tipos de distribuições rimáticas entre elas, acompanhadas ou não as variações rimáticas de variações

métricas, o conjunto de estrofes tende a apresentar-se como um

sistema. Nesse caso, a leitura das distribuições rimáticas e das

variações métricas (ou, eventualmente, estróficas) deve ser feita em

função de todo o poema.

No nosso corpus, encontrei quatro ocorrências de poemas onde as quadras apresentam variação nas distribuições rimáticas, todas elas da

segunda metade do período.

Um desses casos (1884/124) é o do famoso poema «Negra», de Cordeiro

da Matta:

I Negra! negra! como a noite d'uma horrivel tempestade, mas, linda, mimosa e bella, como a mais gentil beldade! Negra! negra! como a aza do corvo mais negro e escuro, mas tendo nos claros olhos, o olhar mais límpido e puro! Negra! negra! como o ébano, seductora como Phedra, possuindo as celsas fórmas, em que a boa graça médra!

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Negra! negra!... mas tão linda co'os seus dentes de marfim; que quando os labios entreabre, não sei o que sinto em mim!... II Se negra, como te vejo, eu sinto nos seios d'alma ardêr-me forte desejo, desejo que nada acalma; se te roubou este clima do homem a côr primeva; branca que ao mundo viesses serias das filhas d'Eva em belleza, ó negra, a prima!... Mas, se a pródiga natura gerou-te em agro torrão; s'elevar-te ao sexo fragil temeu o rei da creação; é qu'és, ó negra creatura, a deusa da formosura!... Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Barra do Quanza ), 1884/124.

O poema, no que diz respeito ao conteúdo, foi lamentavelmente mal-entendido, como se o poeta sentisse vergonha da cor negra – e logo num

poema em que essa cor é chamada ao título... O que me parece estar

dito ali é que a “cor primeva” (ou seja, primeira) dos homens não era

negra (o que está certo) mas branca (o que não está certo); não sendo

assim (ou seja, se os primeiros homens não fossem brancos, ou se os

negros fossem da cor ainda dos primeiros homens) a mulher negra ficava em primeiro lugar (“a prima”, ou seja: a primeira) face às

brancas. Repare-se que, por essa colocação, Cordeiro da Matta põe subtilmente os brancos do lado onde costumavam ficar os negros: o dos

primários ou primeiros habitantes do planeta. Para além disso é preciso atentar na estrutura retórica, semelhante à de Maia Ferreira no poema

«A minha terra» – igualmente mal entendido. O poeta põe, em cada

estrofe da primeira parte, uma frase referindo as conotações negativas da cor negra (assimilada à tempestade, ao corvo – ao medo) para em

seguida lhe realçar as qualidades. Temos que inserir esta estrutura

binária numa séria longa e tensa de diálogos entre ‘raças’. Melhor dito:

Page 98: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

entre preconceitos ‘raciais’. O poeta está como que a responder a um

terceiro interveniente no cenário enunciativo: explicitamente se dirige à

mulher negra; implicitamente aos preconceituosos. É como se lhes

dissesse: sim, a cor negra evoca isso, tudo bem, mas vejam como esta

mulher, tendo a pele dessa cor, não é nada disso, é bela, sensual,

atrativa. Se a cor das outras é já um argumento a seu favor (isso diria o

preconceito anti-negra) então a beleza numa cor que, para vocês, não favorece, é maior façanha ainda. Tanto mais que a passagem se reporta,

muito provavelmente, ao famoso Cântico de Salomão em que a Sulamita

responde aos preconceitos raciais (à inveja) das hebreias dizendo: eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão. Uma vez que a conjunção hebraica “ve” pode significar tanto “porém” quanto “e” – não tendo necessária

conotação adversativa – as traduções da Bíblia foram oscilando entre os

dois sentidos, o adversativo e o cumulativo – parecendo Cordeiro da

Matta inclinar-se para a adversativa. Também o verbo que se traduz muitas vezes por “sou” pode significar “estou”; a palavra que se traduz

por “negra” pode significar ainda “morena”, “escura”; isso tudo baralha

as traduções. O versículo seguinte, na Bíblia, conota a cor, a vadiagem e

o castigo: não repareis em eu ser morena [ou negra], porque o sol crestou-me a tez; os filhos de minha mãe indignaram-se contra mim, e me puseram por guarda de vinhas; a minha vinha, porém, não guardei. Essa tez morena era própria das mulheres errantes, por isso logo em seguida

a famosa diva é conotada com a errância: onde apascentas o teu rebanho, onde o fazes repousar pelo meio-dia, para que não ande eu vagando junto ao rebanho dos teus companheiros? Ela tem a cor das que andam vagando ao meio-dia, quando o sol é mais forte. Todo esse contexto bíblico ficou mal esclarecido até hoje, nem sei se alguma vez

vai esclarecer-se melhor. A contextualização imediata é, porém, essa: a

de uma mulher bela, perfeita, escolhida pelo Rei, que se orgulha de ser

bela e negra (ou morena, ou crestada). Uma das traduções (que o leitor

pode facilmente encontrar em rede) é esta: “eu estou morena e bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de

Salomão. Não olheis para o eu estar morena, porque o sol me queimou.

Os filhos de minha mãe se indignaram contra mim e me puseram por guarda de vinhas; a vinha, porém, que me pertence, não a guardei.”

Quer dizer que ela ficou morena por estar de guarda às vinhas (e

guardando-as não guardou a sua vinha, o seu corpo não ficou nos abrigos), por estar ao sol (“porque resplandesceu sobre mim o sol” –

(Josué, 2004)) e diz às filhas de Eva que não olhem mal para ela por

essa cor, porque essa é a cor da preferida, que é preferida pela sua beleza e que recebeu a bênção do sol. Portanto logo ali se desmente

Page 99: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

uma conotação preconceituosa e negativa entre ser negra (ou morena) e

não ser bela. Como aqui, neste poema de Cordeiro da Matta.

Para dar uma vivacidade própria ao discurso, o poeta recorre a quadras

heptassilábicas (a quadra mais comum em Portugal e no Brasil e talvez

a estrofe mais comum também). O ritmo das quadras tem predominância da soma 3+4, embora também explore 4+3 e 2+3+2, ou

ainda 5+2. A variação aumenta a vivacidade, mas o ritmo predominante

já é vivaz e quotidiano – mesmo nos países e nas culturas onde o

preconceito contra a cor negra se teria originado (na verdade ele é bem

mais antigo e de origens variadas).

Na segunda parte as quadras aparecem misturadas com outros tipos

estróficos. Na primeira há quatro quadras com uma só rima, cruzada

([*A*A]); elas são seguidas por uma quadra com duas rimas cruzadas ([ABAB]), uma quintilha e uma sextilha, todas em heptassílabos e

recuperando-se na quintilha e na sextilha a distribuição das quatro primeiras quadras ([AB*BA], [AB*BAA]), ou seja, quatro versos de uma

rima cruzada (se isolarmos os quatro primeiros versos). Quer dizer que,

neste caso, a distribuição com duas rimas aparece tão-somente como

alternativa, espécie de contraponto à outra que predomina ao longo do

poema, sinalizando, além disso, o momento em que a composição vai mudar o tipo estrófico, o ritmo e a estrutura retórica – ainda binária

mas introduzindo-se cada estrofe por uma condição ou concessão e

seguindo-se, em crescendo, a afirmação da superior beleza da mulher

negra.

Das outras três ocorrências alternam-se, na primeira («Revelação», 1879/403), [ABBA/ABAB], com dominância para o último destes dois

esquemas (o primeiro só surge na primeira estrofe) – dominância

comum ao corpus:

A... Vives em meus pensamentos há muito! Se longe existes dás-me o ideal dos tristes, se perto, incêndios violentos! És longe a musa saudosa que me deleita e entristece! E, perto, a luz misteriosa que me incendeia e enlouquece.

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Se és longe és astro do espaço que me attrae sem me queimar! se és perto, és iman, e eu aço, louco, sem tino, a girar! Quero olhar-te, e o brilho teu tem sobre mim tal condão, que em vez dos olhos ao céo erguer, me pendem ao chão! É que a imagem vaporosa que mais se adora com fé, nos envolve em luz radiosa que nos perturba... e se crê! Eis os segredos d'est'alma de quem pódes ser o céo n'este mundo, e essa palma, linda, mereço-t'a eu! Ou tão longe que eu só sinta por ti a meiga saudade; ou tão perto, tão distincta que me incendeies, beldade! José Bernardo Ferrão (Loanda), 1879/403.

As versos vão trocando o ritmo dominante (agora 4+3, ritmo mais

comum na quadra portuguesa) com outros, principalmente o seu

inverso, dominante na composição de Cordeiro da Matta (3+4). Atente-se ainda no léxico e nas conotações: embora a ‘musa’ não seja conotada

com nenhuma cor de pele, o vocabulário para descrevê-la quando está

longe é tipicamente português (saudoso, na aceção mais portuguesa

que junta deleite e tristeza; astro do espaço; imagem vaporosa),

enquanto o vocabulário para descrevê-la quando está perto nos aproxima dos ‘calores’ tropicais e do léxico usado por Cordeiro da Matta

(atente-se especialmente na imagem do incêndio amoroso),

acrescentado-se a metáfora do aço e do íman (“louco, sem tino, a girar”) – uma metáfora moderna, que também se encontra no poema ao rio

Quanza, do mesmo Bernardo Ferrão.

Depois, nesta sequência de quadras mistas, aparece «Cambuta»

(1890/293), do ilustríssimo Cordeiro da Matta. Aí surgem as três distribuições misturadas ([ABAB/ABBA/*A*A]), sendo as cinco

primeiras estrofes de duas rimas cruzadas e as duas últimas seguindo-

se na sequência indicada entre parêntesis:

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(Ao Ill.mº Sr. Joaquim José Bentes) Não é feia, nem é linda, mas tem o encanto ideal, a graça attrahente, infinda, que enlouquece a um mortal. Nada possue de galante, de divino ou seductor; porém, um todo que encante como o seu, não ha melhor. É câmbuta, isto é, baixinha, não sendo horrenda, nem feia, e posto seja negrinha tem as formas d'uma hebreia. Seus olhos claros, brilhantes, derramam uns taes fulgores, que dois astros fulgurantes não lhe ganham em primores. Quando airosa a vejo a andar, o seu corpo pequenino – de plastica singular – tem um quê tão peregrino, Que a alma logo s'invade d'uma estranha sensação, e palpita o coração de febril anciedade... A antiga esthetica grega que pelo bello morria, se visse este raro specimen uma estátua lhe esculpia!” Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Barra do Quanza), 1890/293.

A composição vem na linha de «Negra» e foi vítima também de incompreensões. O que no entanto o poeta diz é que a mulher de que

fala “tem as formas de uma hebreia” ainda que não o seja. É esse o

sentido de “posto seja negrinha”. O “posto”, sendo uma adversativa, não implica aceitação de menoridade para a “negrinha” por ela ter essa cor,

mas apenas que, sendo negra, não era provável ter as formas de uma

hebreia. Por tal motivo, por ter as formas de uma hebreia sendo negra, é que “a antiga estética grega” não a esculpiu – porque não conhecia o

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original. Repare-se ainda que o poeta, embora tenha em mente a Grécia

antiga, dá como exemplo mais próximo da beleza negra a hebraica, não

a grega. Realmente, quer pela cor, quer pela localização geográfica, a

hebreia estaria numa situação intermédia entre a Europa e a África

negra – onde havia também judeus, os etíopes, do seio dos quais

emergiu depois o cristianismo da Etiópia. Da mesma forma o facto de

ser cambuta não impede a beleza – o que podia contrariar o cânone

estético dominante.

Ainda assim pode o leitor perguntar-se porquê a hebreia, nesse caso, e

não qualquer outra das mais próximas. É que a hebreia e suas formas

foi também cantada pelo romantismo lusófono da segunda e terceira

gerações. Castro Alves andou apaixonado por duas irmãs hebreias,

filhas de uma senhora judia de origem italiana, todas de apelido

Amzalack e vários poemas seus refletem essa paixão; um deles,

encimado por um versículo do Cântico dos cânticos, faz mesmo rima com a palavra hebreia, no seguinte verso: “Tu és, ó linda, sedutora

Hebréia...” (Alves, sd p. 8). A beleza das filhas (e da mãe) tocou mais poetas ainda e o português Tomás Ribeiro também entrou na liça

cantando uma dessas hebreias. A beleza da mulher hebraica, de resto, é

conhecida por várias tradições literárias e, no mesmo Brasil romântico,

outros poetas dela falaram, como por exemplo Junqueira Freire na

«Canção do judeu» (Freire, 1867 p. 112). Uma vez considerada esta contextualização literária, torna-se cada vez mais claro que o poeta

angolense estava a realçar, nesse pano de fundo, a beleza da mulher

africana a par da beleza da hebreia.

O ritmo destes versos é, como em «Negra», muito vivo. A variação é mais intensa que em Bernardo Ferrão, ficando quase a par as duas

sequências mais comuns (3+4 ; 4+3) e recorrendo-se a várias

sequências alternativas, algumas raras, entre as quais destaco 2+5

(acompanhada no poema pela sua inversa, 5+2, que também aparece em «Negra»). São, no entanto, três poemas idênticos (os dois de Cordeiro

da Matta e o de Bernardo Ferrão) no que diz respeito ao ritmo e mesmo

a conotações africanas para o ideal feminino próximo.

Finalmente, a pp. 375 do Almanach para 1890, surge, numa primeira estrofe, uma distribuição inesperada ([AA*A]), que faz lembrar a

distribuição [AAAB/CCCB] descrita por Castilho e Amorim de Carvalho,

logo seguida, porém, pelas restantes estrofes, de uma só rima, cruzada:

***

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O teu rosto, oh tentadora, é pretinho qual amora; mas alegre com'oriente n'um bello romper d'aurora. Teus olhos bellos ornando um lindo rosto brejeiro... Parecem dois sóes brilhantes No interior d'um tinteiro. Tua bella dentadura, Em nacar puro engastada, brilha qual fulgido raio em noites de trovoada. Teu pé pequeno e bonito, A cintura fina, airosa; com tantos mimos, oh! linda, tens razão de ser vaidosa. És, pois, oh! preta beldade um montão de perfeições; E sendo, como és, tão bella, roubas muitos corações. I. I. F. (Africa Occidental – P. A.), 1890/375.

O poema vem ainda na linha das composições de elogio à mulher negra.

Nada sei sobre o autor, que é no entanto desastrado e não devia

frequentar companhias muito poéticas lá por Pungo Andongo. Talvez tenha lido Maia Ferreira (“teu pé pequeno e bonito”), eventualmente

outros poetas locais, parecendo às vezes que ironiza sobre o poema

«Negra» de Cordeiro da Matta, do qual está ritmicamente próximo. Mas

as leituras não lhe valeram de muito, convenhamos.

A estranha distribuição rimática inicial ([AA*A]) pode ser apenas fruto

de falta de jeito ou de consciência poética. Levando em conta que a rima

constitui uma coincidência de sons é de admitir, à partida, que há graus de coincidência, graus esses definidos variamente pelos

tratadistas. Castilho fala em rimas “impuras ou toantes” e “puras ou consoantes”, dizendo que na toante “a rima é imperfeita” porque “a

homophonia só attinge as vogais; na rima consoante, a rima é perfeita:

a homofonia é formada pelas vogais e consoantes”. Fala ainda em “rima completa” (quando a rima inclui a consoante que antecede a vogal

tónica) e “incompleta” (quando isso não acontece) (Castilho, 1874 p. 22). O Visconde recorre assim a quatro distinções para designar duas

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realidades, visto que, para definir as rimas consoantes e toantes,

capitaliza sobre três distinções: impura/pura, imperfeita/perfeita e

toante/consoante. Parece-me, por isso, mais racional a nomenclatura

utilizada por Amorim de Carvalho.

Na Teoria geral da versificação recorre este tratadista à designação de rima completa e incompleta para indicar uma homofonia completa e incompleta, dividindo-se a incompleta em consonântica (se coincidem

só as consoantes), vocálica (se coincidem só as vogais) e pós-tónica (se

coincidem só os fonemas posteriores à vogal tónica). Quanto à rima

completa, ela divide-se em perfeita e imperfeita, podendo a imperfeição

ser de origem consonântica ou vocálica. Faltaria, em nosso entender,

uma designação para as rimas — raras — que incluem a consoante pré-

tónica (Carvalho, 1987 pp. 301-305; 312-319), ou seja, aquelas que são

designadas por Castilho como completas.

A rima pode, portanto, incluir ou não a consoante que antecede a vogal tónica. É o caso de [lavra] e [palavra], que apresentam um grau de

coincidência maior do que [fiava] e [escrava], sendo que estas ainda apresentam um grau maior de coincidência do que [palavra] e [calava].

De igual modo podem mudar as vogais pós-tónicas entre duas palavras

de rima, ficando a rima a fazer-se só pela vogal tónica e/ou pela(s)

consoante(s) próxima(s), anterior ou posterior, como em [indício] e

[indica].

No que diz respeito às vogais, a coincidência entre elas pode ser total ou

parcial, baseando-se então o processo de graduação da rima nas

variações entre fonemas, como por exemplo entre [tentadora] e [amora],

(rima completa, imperfeita vocalicamente, seguindo a nomenclatura de Amorim de Carvalho), que não rimam como [amora] e [aurora] (rima

completa e perfeita, segundo o mesmo autor), ou na combinação entre

os dois meios de graduação rimática.

No caso do poema acima citado, encontramos uma variação entre fonemas, na rima do primeiro para o segundo verso, através das

palavras casadas no penúltimo exemplo (“tentadora” e “amora”) – ou

seja, uma rima completa mas imperfeita vocalicamente.

Castilho dizia que a “rima toante só se empregava em periodos (e não

estrofes) regulares de quatro versos, quer de dez syllabas — ou heroicos, quer de sette syllabas — ou redondilhos; esta segunda era a

mais usual; o primeiro e terceiro eram soltos; os toantes estavam no

segundo e no quarto. O canto começado por uma espécie de toante tinha obrigação de continuar por ella até ao fim” (Castilho, 1874 p.

116). Não se identificando, aqui, o tipo de composição que o tratadista

Page 105: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

parece ter em mente, muito praticado pelos poetas barrocos, podemos

considerar que a primeira rima [A] pode não ter sido considerada pelo

autor como tal, até por não ser, esta espécie de rima [“toante”], muito

cultivada pelos poetas românticos e pelos ultrarromânticos, como a

citação de Castilho deixa prever. A pouca informação e perícia literárias

do autor explicam por igual a falha percetiva. Sublinho que, no poema,

esta rima toante só surge na primeira estrofe, confirmando assim a

suspeição sobre a casualidade da sua presença.

Podemos, então, descrever essa primeira quadra como de uma rima

cruzada, reduzindo-a à distribuição rimática das restantes estrofes do

poema. Restar-nos-iam, pois, apenas três casos de variações na

distribuição rimática entre quadras de um mesmo poema.

Nos três casos encontramos uma distribuição predominante contraposta a outra(s) colocada(s) no início ou no fim dos poemas. Isso

parece demonstrar, nos autores estudados, uma depurada consciência do papel que, no processo de composição formal, pode ser

desempenhado pelas variações na distribuição rimática.

Um quarto caso (1892/438), inédito no contexto dos poemas estudados,

é o de uma composição de Cordeiro da Matta, já atrás citada, que mistura estrofes com versos hexassilábicos e estrofes com versos

tetrassilábicos, possuindo cada tipo métrico uma distribuição rimática

própria ([*A*A] para as estrofes de versos hexassilábicos e [ABBA] para

as estrofes de versos tetrassilábicos). A combinação de versos tetra e hexassílabos é considerada correta por Amorim de Carvalho (Carvalho, 1987 pp. 224, quadro anexo). A coincidência entre a distribuição rímica

e a distribuição métrica vem reforçar a ideia de uma consciência

depurada no trato formal do poema, ideia que já ficara de outras

proezas de Cordeiro da Matta. Note-se ainda, a esse título, a

distribuição perfeitamente simétrica das estrofes, dividindo o artifício duas metades rigorosamente iguais. Se atribuirmos o número [1] às

estrofes hexassilábicas e o [2] às tetrassilábicas temos esta sequência:

1-2-1 ; 1-2-1. A primeira parte da sequência tem um desenho igual ao das rimas cruzadas (ABA), tal como a segunda; se juntarmos o meio do

poema temos o desenho típico das rimas emparelhadas e interpoladas

(2112 = ABBA).

A composição destes desenhos, simétricos e assimétricos, não me

parece casual. É, pelo contrário, lúcida e nos liga à vertente barroca da lírica angolana, à composição de charadas e às culturas tradicionais

analógicas.

Page 106: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O que na leitura passava a ter mais interesse era a organização dessa

espécie de geometria oculta. Os significados que ela podia sugerir eram

geralmente articulados à semântica de superfície, aos significados

explícitos, mas não parecia tal articulação ter grande importância. No

caso do poema de Cordeiro da Matta, ele é dedicado à talvez mística

sombra da palmeira e as variações métrico-rímicas fazem-nos lembrar o

oscilar das sombras. Mas a totalidade da sequência (121121, equivalente a ABAABA na distribuição rimática) indica-nos uma

simetria, como se a segunda parte fosse espelho da primeira. Ora a

simetria não é natural, a natureza é contrapolar mas assimétrica. O

nosso rosto, por exemplo, tem duas metades mas uma não é nunca a

simetria da outra, os rostos são sempre simetrias imperfeitas e a

imperfeição vai sendo, curiosamente, acentuada com a idade. Quer

dizer que o significado da composição de simetrias através das

distribuições rimáticas e métricas remete-nos para conceitos abstratos,

de que a leitura ao nível de superfície não nos faria desconfiar. Hipoteticamente, conceitos relacionados com práticas e ritos maçónicos

e cristãos, tanto quanto com algumas esculturas bantos de Angola e desenhos na areia. São caminhos a explorar mas, por enquanto, tão

nebulosos quanto as manhãs de cacimbo na Quissama de Cordeiro da

Matta.

Dois quartetos em estruturas de mote e glosa

Finalmente, é de referir a presença de duas ocorrências particulares. A

primeira resume-se a uma quadra que serve de mote, glosada em

décimas (S1887/162):

MOTE (1)

Vox populi vox Dei, são palavras em latim:

que é certo eu bem o sei,

o exemplo está em mim!

Passaram mezes e annos

no sonho dos meus amores; da sorte acerbos rigores,

muito amargos desenganos.

Mil pensamentos tyrannos só comigo acalentei

fel amargo prelibei na descrença do porvir,

Page 107: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

sem deixar de repetir

vox populi vox Dei

Quizera ver minha amada

em dia santo e festivo;

poeta d'alma captivo,

desejava a minha fada. Pomba do céo enviada,

deu-me um dia o doce – sim

deu-me um ramo de jasmim

com um sorriso d'amor,

para dizer com rubor:

são palavras em latim.

Aos domingos no passeio,

era de noite e de dia precisava ver Maria,

seu amor e seu enleio. Avançava sem receio

na senda que bem tracei,

crença no peito gravei,

do provérbio popular,

nosso latim escolar, que é certo eu bem o sei.

Andava sem fé na vida,

sorria ao mundo descrente, um raio de sol candente

era a luz apetecida.

A minha imagem querida

seguio-me para onde vim,

deu-me um abraço e por fim chamei-lhe minha mulher,

p'ra que veja quem quizer:

o exemplo está em mim! (1) “A proposito do seu consorcio com a Exmª Srª D. Maria da Con-ceição Cardoso e Silva, após 11 anos d'ausência”

A. J. Machado (Malange - Africa Occidental), S1887/162.

Page 108: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Trata-se de uma espécie formal que foi comum na lírica portuguesa

anterior ao romantismo, mas inexistente no seio do ultrarromantismo

português, a julgar pelas obras compulsadas – se excetuarmos duas

composições de Castilho na sua juventude, claramente experimentações

prematuras, publicadas nas Novas excavações poéticas (Castilho, 1905 pp. 31, 61). O poema, de resto, parece-me forçar a ligação do mote à

glosa, pelo menos não vejo qualquer evidência entre o ditado latino e o facto de dois namorados acabarem por casar. Note-se ainda como o

poeta recorre a referências europeias: em vez de ela lhe mandar um

pedaço de cola, dá-lhe um ramo de jasmim – o que não é menos belo

mas indicia, quer-me parecer, um europeu ou, pelo menos, uma

mentalidade fortemente europeizada. Como também a composição e o

autor não têm qualquer relevância para nós, fiquemos por aqui.

A segunda ocorrência era menos previsível. Refiro-me ao «Fragmento»,

assinado por Augusto G. de Castro no Suplemento ao número para

1887 (pp. 55/56).

………………..............................................................................................................................................................………………..............

..........................................

Em Coimbra, 18 de Junho de 1872.

A ti peccadora formosa e perdida,

camelia pendida sem viço nem côr,

dedico estas trovas sem estro rimadas

e improvisadas em noute d'amor.

Já tudo repousa na velha cidade que a lua illumina com pallida luz,

só velam bohemios de capa e batina cantando à guitarra qu'encanta e seduz.

No leito d'areias, qual facha de prata, sereno o Mondego deslisa e rebrilha

e lá sobre a Ponte, num grupo se ouve

a banza, que um typo calouro dedilha.

Apoz breve tempo resôa no espaço

voz doce cantando que a alma innebria,

e a banza trinando, gemendo soluça em notas de fado, de grata harmonia.

Page 109: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Era a meiga BORBOLETA,

a linda desventurada

quem cantava docemente

esta canção maguada:

“Eu sou a mulher perdida,

sou ludibrio de quem passa, sou do mundo despresada,

sou a filha da desgraça.

O mundo tem precipicios,

tem medonhos tremedaes,

pegos tremendos, fataes;

e tem aromas ficticios,

impestados, tredos vicios

e compaixão fementida;

Julguei que nasci p'ra amar sonhei rosas no futuro,

mas bem cedo o fado duro

prantos me fez derramar.

Senti meu viço murchar

ao simoun da desgraça; em almoeda na praça

eu vi minha formosura;

hoje, pobre creatura,

sou ludibrio de quem passa.

É pão negro, amargurado

o que como em cada dia; só sente melancholia

meu coração maguado. Mal haja o ente malvado, que me tornou desgraçada

e que pobre abandonada

ao lodaçal me arrojou. Ai, na miséria em que estou,

sou do mundo despresada.

Por cego amôr seduzida

feriu-me o peito aguda séta

deixando a senda correcta, tornei-me a mulher perdida.

Page 110: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Sem ter no mundo guarida,

não sei, meu Deus, o que faça;

um raio de vossa graça

dae à pobre malfadada,

tende dó de mim, coitada,

sou a filha da desgraça.”

E a pobre BORBOLETA,

a meiga desventurada

soluçando terminou

sua canção maguada.

........................................................................................................

......

O astro da noute, sereno brilhando innunda com raios de nitido alvor,

o calmo Mondego, na velha cidade, a troupe bohemia que canta d'amor.

Augusto G. de Castro (Quillengues - Africa), S1887/55.

A composição apresenta-nos quatro estrofes de quatro versos

bipentassílabos e com distribuição [*A*A]; dessas quatro, a primeira

lhes soma duas rimas encadeadas compensando a falta de rima nos

versos ímpares e a segunda produz uma rima encadeada entre o segundo e o terceiro versos. Seguem-se duas quadras apresentando o

mesmo esquema rimático básico (uma rima, cruzada), a segunda delas

no papel de mote; encontramos depois uma sextilha e três décimas em

versos heptassilábicos, finalizando-se pela repetição da primeira das

quadras e, depois, por um quarteto com a distribuição [*A*A] também.

Levando em conta o título do poema e as reticências ocupando o espaço

da linha, suponho que se trata de um trabalho não publicado por

inteiro, pelo que a análise da sua composição não pode ser feita com segurança. No entanto, a presença do mote a meio, no caso de não ter

sido elidida uma presença inicial, parece inovadora em relação às composições de mote e glosa como a que anteriormente a esta referi. O

autor aparenta alguma habilidade técnica, não desenvolvida no entanto.

Não consegui saber nada sobre ele fora do Almanach. No Almanach para 1887 publicara também outro poema, desta vez recordando-se de

Sevilha. Assina Augusto Guilherme de Castro e localiza-se em

Page 111: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

“Quillengues – Africa” – uma localização original no contexto da época, o

do início da colonização do interior de Benguela ao Lubango.

A mistura de tipos estróficos diferentes, quer em número de versos,

quer em tipos métricos, quer em tipos de distribuição rimática, ou na

conjugação destas três variações, não é prática inovadora face à poesia romântica e ultrarromântica, podendo recensear-se exemplos em todos

os autores paradigmáticos, quer do romantismo, quer do

ultrarromantismo. Castilho divide mesmo “a atual poesia rimada” em

“regular e irregular”, achando a segunda “capaz de grandes effeitos,

mas sobremodo occasionada a precipicios” (Castilho, 1874 p. 141). A

poesia irregular é definida como aquela cujas estrofes não são

uniformes e, portanto, inclui os tipos agora considerados, de mistura de

espécies estróficas, excetuados os dois previsíveis (e, por isso, regulares)

constituídos pela sequência de mote e décimas (S1877/162), e pela

sequência de quintilhas e quarteto (1877/359).

As estrofes de cinco versos

No que diz respeito a estrofes de cinco versos, o corpus estudado indica-nos claramente dois tipos: o primeiro (que chamarei quinteto, para

facilitar a distinção face ao segundo, ao qual chamarei quintilha)

apresenta-nos versos decassilábicos em quatro poemas escritos entre

1871 e 1877 (portanto, na primeira metade do período considerado). Todos eles usam a mesma distribuição rimática: [*ABBA]. O segundo

tipo apresenta-nos versos heptassilábicos e a mesma distribuição

rimática predominante, surgindo entre o número para o ano de 1863 e

o Suplemento ao número para o ano de 1887 (S1887), num total de dez

ocorrências, atravessando portanto as duas fases consideradas.

Quintetos

Quase todos os quintetos encontrados foram escritos pelo mesmo poeta,

João Cândido Furtado de Mendonça d'Antas, pelo que fica diminuída a importância da sua emergência, tanto mais que o primeiro desses

quintetos é escrito a bordo do navio que o levou para Portugal, onde

Cândido Furtado se fixaria definitivamente. Nesse aspeto, os poemas que datou depois da sua vinda não marcaram, em nada, a literatura no

local.

Page 112: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Há no entanto quintetos compostos por Cordeiro da Matta nos Delírios, o que me levou a suspeitar momentaneamente de alguma influência, mas são bem diferentes. Porque inserem o tipo no acervo técnico da

nossa lírica, descrevo-os:

No poema «?!», não é só o título que é inovador, lembrando aliás o uso

da pontuação no título Scenas d’África de Pedro Félix Machado. A primeira estrofe é um quinteto em dodecassílabos, sendo quebrado

(hexassílabo) o verso do meio. A distribuição rimática está bem

combinada com a métrica e o ritmo: AA*BB. O poema fecha com outra

estrofe de cinco versos, agora hexassílabos e com uma distribuição mais

estranha: **A*A (Matta, 2001: 121).

O seu conteúdo é igualmente incomum na lírica do próprio autor.

Escrito no Tombo em 1881, ele emparceira bem com a humilde

«Oração» que o antecede no livro. 1881 é um ano profícuo na produção

lírica de Cordeiro da Matta e, portanto, nesse ano lhe encontramos composições de índole diversa: de amor, de piedade, de fascinação e

afastamento em relação às mulheres. Há, no meio disso tudo, um pequeno segmento de poemas de temática religiosa. Há um “improviso”

anticlerical feito «Na véspera de S. Pedro» (portanto em Junho), no

Tombo também, onde o santo é chamado de “intrujão”. Mais à frente há

um poema escrito em Agosto de 1881, sintomaticamente chamado «Só!...» e feito “quando me achei isolado no Tombo”. Aí se autorretrata

“como o monge, como o cenobita” – mas ainda sentindo apenas saudade

dos seus entes queridos, particularmente a “idolatrada filha”. Depois

vem a «Oração» a que me referi e, finalmente (o último de 1881), este de

que falo e que não é só original na forma.

Ele nos dá conta das inquietações e buscas místicas do “africano ousado” (Cordeiro da Matta) que, por via do pensamento (“eu deixando-

me alar / na asa do pensamento a mundos ignotos”), rompeu “todos os mistérios”, pois “as ideais regiões” sulcou “sem medo” – ele também

merecendo o cognome (creio que estava a confrontar-se com heróis

portugueses) de “excelso viajor” que tinha chegado aos “invisíveis mundos” – de que nos não deu, infelizmente, muitos sinais. É de

postular que tenha Cordeiro da Matta passado por alguma experiência

espiritual mais profunda nesse momento de solidão no Tombo, dela nos dando lírica e vaga notícia nos dois poemas, um deles escrito de tal

forma que o ineditismo das regiões alcançadas e a sua transcendência

se representam ou iconizam pelo ineditismo e pela variação formais.

No entanto, o facto artístico (ineditismo e variação formais) estava possibilitado por algo descrito pelos tratadistas: a distribuição rimática

Page 113: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

para as estrofes de cinco versos, segundo Bilac e Passos, era livre

(“rimam indiferentemente”) e o exemplo dado é de um esquema ABAAB,

também usado por Cesário Verde no poema «Cristalizações»23 e, como se

pode ver, idêntico ao de Furtado d’Antas exceto no primeiro verso.

Qualquer deles, no entanto, foi comum na época – o de Cordeiro da

Matta é que me parece original.

Uma variação ao esquema dado por Bilac e Passos (Bilac, Olavo e

Passos, Guimarães, sd) aparece num outro quinteto do Almanach enviado de Angola. A distribuição ([AAB*B]) é de um poeta sem grande

significado no corpus, apesar da sátira acutilante que assina («Epigramma»):

À força me embutiste

um livro de máos versos, que imprimiste, pedes-me agora a paga, tem paciencia,

que se m'os deste só pelo que valem, nada te devo em minha consciencia.

C. M. (Rio Zaire), 1874/263.

Como se pode ver, para além da distribuição rimática há uma diferença

ditada pelo cariz heterométrico da estrofe, que de resto funciona

isolada, constituindo só ela um poema. Que tem, como o de Cordeiro da

Matta, um verso mais curto – neste caso o primeiro; ainda possui um

verso sem rima (neste caso o quarto). Está alicerçado sobre unidades de seis sílabas (mais quatro, exceto no primeiro caso) e é precoce

relativamente à geração de 1878 (deve ter sido enviado para o Almanach em 1872 ou no ano seguinte).

Autoria

O autor subscreve como C. M., o que lembra Cordeiro da Matta, com o

qual apresenta as afinidades que vemos. Logo, mas mal.

A pp. 219 do Almanach para 1867, com as mesmas iniciais, é subscrito um artigo localizando-se o autor no Rio Zaire. Versa ele sobre “A língua

portugueza na costa occidental d'Africa”, o que me levou a pensar,

23 Escrito no inverno de 1878, foi publicado em dois periódicos de Coimbra em Maio e

Junho de 1879, portanto bem a tempo de ser lido por algum dos colaboradores do Almanach que, previsivelmente, esteve em Coimbra, ou por outros leitores residentes (Vieira de Castro seria um exemplo) e angolenses.

Page 114: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

novamente, em Cordeiro da Matta, por causa dos seus interesses na

área dos estudos linguísticos. O facto de os dois autores serem os

únicos do corpus a comporem em septilhas acentuou essa intuição, a par do facto de não haver grande distância temporal entre a primeira

colaboração de C. M. e a primeira colaboração do poeta angolense, pois

Cordeiro da Matta vê publicada a sua primeira colaboração em verso no

Almanach para o ano de 1879 (p. 407), portanto, só um ano depois da

última colaboração de C.M.

Mas o poema, vindo localizado como vem, desaconselha a conotação

com o poeta negro do Rio Quanza. A discordância da localização

mantém-se no epigrama de 1874. Por outro lado, Cordeiro da Matta não

poderia ter escrito, com dez anos (visto que nasceu em 1857) o artigo do

Rio Zaire, muito menos a correspondência enviada para o Almanach em 1864 e 1865, reproduzida no n.º para 1866, p. 35. Aí fala, com ironia,

em prémios que daria a quem adivinhasse uma adivinha que pôs: porque é que os cabelos da barba, nascendo mais tarde que os da

cabeça, embranquecem primeiro. Entre os prémios fala em “pequenas pontas de marfim com lavores feitos pelos indígenas, e finalmente as

célebres cinzembas e barretes de Mafuca” – assim, sem tradução. A

correspondência (de onde cito) vem localizada e datada de “Zaire, 1.º de

Janeiro de 1865”.

Como Mário António diz que a colaboração do pai de Cordeiro da Matta

antecedeu, no Almanach, a do filho, equacionei a hipótese de ter o artigo sido escrito por Agostinho José Cordeiro da Matta. Porém, a

localização do artigo mantém-se como entrave a essa hipótese.

Só dois poemas aparecem subscritos com as letras C. M.: este, de 1874,

e um outro (a septilha) de 1876. Os dois são enviados do Rio Zaire, são os dois intitulados epigramas e são os dois satíricos, compostos em

versos decassilábicos predominantemente heroicos.

O segundo epigrama surge na linha de outros (epigramas e poemas) de

Faustino Xavier de Novaes, onde o sátiro do ultrarromantismo revela o

mesmo ceticismo face aos médicos e à sua “arte” (Novaes, 1858 pp. 106,

147, 158 e outras).

Um poema que surge em 1873 (p. 212), «A justiça», vem assinado por M. da C. e localizado em Luanda. Esse poema apresenta similaridades com

um outro, «O cura d'aldeia», de João de Lemos (Lemos, 1859 p. 177) –

tendo os dois a mesma métrica e a mesma estrutura retórica. Tudo indica não se tratar da mesma pessoa, inclusivamente a estrutura e as

caraterísticas formais dos textos em causa. Por sua vez, no jornal A bofetada (Cruz, 1894), transcreve-se um belo soneto de Marinho da

Page 115: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Cruz, tratado como o “desgraçado rapaz”, que teria sido degredado para

África. Pela distância nas datas não cremos que seja ele o poeta que, no

corpus, assina M. da C. M. da C. poderão ser as iniciais de “o sr. dr. Moreira da Camara”, versejador que, segundo se lê no Cruzeiro do Sul (Câmara, 1873), dedica um poema a “o sr. J. O. Toulson, cavalheiro ha

pouco fallecido, e que era muito estimado”, poema datado de “5-Março-

1873”, precisamente o ano em que se publica esta composição no

Almanach.

Voltando ao enigma “C. M.”, segundo um «Auto do corpo de delito indireto», cuja cópia data de “Loanda, 23 de Março de 1881”, serve como

segunda testemunha no julgamento em causa um “Augusto Cezar

Manaças, solteiro, natural de Monforte, de idade trinta e dous annos,

commerciante estabelecido n'esta villa (Dondo)”. A ser este o autor dos

dois epigramas ele teria, portanto, em 1874, vinte e cinco anos, o que

parece perfeitamente razoável.

No Boletim oficial da colónia faz-se referência a um J. A. da Cunha Moraes, o qual, segundo Manuel da Costa Lobo (Lobo, 1954) teria publicado com Carlos Afonso (que também desconheço), em 1883, um

Album fotográfico-literário. Mário António transcreve um extenso relatório do Governador-geral sobre a “situação em Angola” nos anos de

1882 e 1883. Aí se refere que “uma publicação litteraria existe tambem de muito interesse (em Moçamedes), e é o Album d'Africa Occidental de

vistas e costumes [...]” (Oliveira, 1968 p. 682). Diz o Governador que o

“optimo photographo” da publicação é C. de Moraes, referindo em nota

Mário António que se trata de J. A. da Cunha de Moraes, sendo o

redator Francisco de Salles Ferreira, nome várias vezes encontrado na

imprensa angolense, irmão de um dos grandes bibliófilos da época - ambos referidos (Angola. Governo-geral, 1874) na minha obra sobre as

leituras em Angola no século XIX. Esta é, sem dúvida, uma das hipóteses mais estimulantes para determinarmos a autoria dos dois

poemas, mas não pude assegurá-la face a outras alternativas.

Uma delas aparece-nos a partir da leitura do jornal O exército ultramarino. Aí encontramos vários artigos de “A. C. de Moraes, alferes”,

ao qual a correspondência do jornal devia ser dirigida. No Boletim oficial entra um Augusto C. de Moraes numa lista de contribuintes que

pagaram emolumentos, onde aparece também o nome de Carlos da

Silva e o de José de Fontes Pereira como escrivão da administração do Concelho de Luanda (Angola. Governo-geral, 1874 p. 14; 12). No

Portugal-África, incendiado pelo Ultimatum inglês, deparamos com uma colaboração de um Augusto Cezar de Moraes, que penso ser o mesmo alferes de 1887 (Portugal-África, 1890). Como ficamos a saber pelo

Page 116: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

jornal O desastre, o “tenente Augusto Cezar de Moraes”, chefe do concelho de Malange, foi assassinado no dia 19 de Junho pelas “7 horas da noite” (Desastre, 1890 p. 1). É plausível que Augusto Cesar de

Moraes fizesse a carreira militar, iniciando-a no Rio Zaire, passando em

seguida a Luanda e, para subir de posto, fosse a Malange, onde se lhe

abria uma carreira de administrativo, talvez mais vantajosa e que, de

qualquer modo, era um dos prolongamentos, na época, da militar.

Pelo segundo volume da Angolana ficamos a saber do falecimento, em 1883 (3 de Abril), do cónego de Luanda, Henrique Ribeiro da Cunha

Menezes, que pode ser uma terceira hipótese (Oliveira, et al., 1971 p. 8).

Nada mais se indica, porém, acerca deste cónego. No entanto, pela

Monographia de Catumbella ficamos a saber que o cónego Henrique Ribeiro da Cunha de Menezes foi o primeiro professor da escola do sexo

masculino nessa vila, tendo tomado posse a 14 de Fevereiro de 1882

(Bastos, 1912 p. 57). A função docente aproxima-o (em princípio) da

literatura.

Uma quinta hipótese é a de se poder identificar este C. M. com António Antero de Jesus Castro e Moraes, que assina vários artigos enviados de

S. Thomé para o Almanach (p. ex.: 1894/271, 387, 471; 1895/132, 157, 303). Porém não lhe encontrámos nenhum poema lírico em verso,

apenas a transcrição de um, de autor ignorado, a pp. 471 do Almanach para 1894. No entanto, a colaboração deste autor é bastante tardia face

à de C. M. e não se localiza no Rio Zaire nunca.

Finalmente encontramos, no Almanach para 1871 (p. 253), uma composição assinada por “Dona C. M.” e sem qualquer referência a um

local. O poema é o seguinte:

Attrae o iman o metal mais duro,

A tenue chamma a borboleta leve,

O girassol segue o seu astro puro, E cada ser, o seu destino teve.

Foi minha sina, é meu dever amar-te; Minha ventura teu amor é só

No céo minha alma ind'hade a si chamar-te

Do santo laço a realisar o nó.

Laço sagrado a duas almas ternas,

Não póde a morte desatal-o, não; Deus, no segredo de suas leis eternas,

No céo as une, e uma só alma são.

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Como se vê, não há coincidências de conteúdo nem formais entre este

poema e os assinados só por C. M., excetuando no aspeto métrico (já no

rítmico divergem, pois aqui os decassílabos sáficos são muito mais

importantes). No entanto, a referência temporal é a mais próxima das

composições do corpus assinadas por C. M. e, de entre todas as hipóteses que posso colocar, esta é sem dúvida a mais interessante, por

se tratar de uma mulher. Mas não deparei com mais nenhuma

referência à sua pessoa. No Almanach para o ano de 1899, na secção de correspondência, surge uma “Dona M. C.”, localizando-se em Curityba,

à qual chamam “Filha de Traz-os-Montes”. No entanto, pela diferença

nas datas e pela inversão das iniciais, bem como pela diferença nas

localizações, não nos parece que seja a mesma pessoa.

Formalização e intertextualização

A limitada colaboração de C. M. pode explicar porque surge a variação face ao esquema dominante, do mesmo passo reduzindo a sua

importância. Trata-se, também, da única estrofe de cinco versos não redigida por Cândido Furtado e que apresenta versos decassilábicos

(heroicos), sendo igualmente a única onde esse tipo métrico é associado

ao hexassílabo. Semelhante, nisso (mas não na distribuição dos tipos

métricos dentro da estrofe), à solução formal usada por Casimiro de Abreu no poema «A juriti», escrito em Portugal com o esquema rímico

ABAAB (Abreu, 2000; 2003 pp. 35-36).

O tipo surge claramente ao arrepio das dominâncias do corpus – o que, não sendo decisivo, não deixa de contribuir para a impressão de

desfasamento (ou originalidade) do autor.

Esta primeira variação rimática (AAB*B) deve-se em parte à diferenciação métrica referida, pois o poema inicia-se por um

“quebrado” (hexassílabo) seguido por quatro decassílabos e, para reforçar a unidade abalada pela variação métrica do poema, o poeta “agrafa” o verso quebrado aos outros através da rima emparelhada

entre os dois primeiros.

Gomes Leal, nas Claridades do Sul, apresenta uma quintilha com a mesma distribuição rimática, mas com versos heptassilábicos (Leal, 1901 p. 74), numa composição que não podia influenciar o autor do

«Epigramma», visto que o livro saiu só em 1875. Castilho, no quarto dos seus «Epitaphios» (Castilho, 1905 p. 93), utiliza a mesma distribuição,

num quinteto onde os versos possuem todos doze sílabas métricas.

Finalmente Castro Alves usa, nas Espumas flutuantes, uma distribuição

Page 118: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

parecida: AA*BB, portanto alterando só a colocação do verso sem rima

para construir assim uma simetria.

Quintilhas

As quintilhas também não são especialmente significativas face ao

corpus constituído pelos poemas do Almanach. Em três das ocorrências esta espécie métrica surge misturada com outras. Seis das ocorrências

devem-se ainda a Cândido Furtado e, das outras quatro, só uma vem

subscrita por um poeta importante no conjunto considerado, o hábil

Cordeiro da Matta (1884/124), numa composição cujo esquema

rimático é diferente do predominante e onde a estrofe surge misturada

com uma quadra e uma sextilha. O mesmo Cordeiro da Matta usa

quintilhas heptassilábicas nos Delírios, no poema «A grandeza e o dinheiro», escrito em Luanda em 1877 (Matta, 2001 p. 54). Recorre a

uma distribuição rimática que constitui uma variação face ao esquema

*ABBA, pois cruza as rimas em vez de as emparelhar e interpolar.

Nas quintilhas, há duas variações face ao esquema rimático [*ABBA].

Primeira variação

A primeira surge num poema (1877/359) onde se misturam dois tipos estróficos e três distribuições rimáticas. O seu autor, porém, também

não é significativo para o corpus (Narciso José Nogueira Braga):

A CRUZ DO OUTEIRO

Ei-la solitaria, erguida

na cumiada do outeiro,

de musgo toda vestida

pelo tempo enegrecida,

ponto certo ao pegureiro.

No escabello carcomido

vae o pastor descansar; e se a ovelha se extravia

uma prece a Deus envia

no chão, prostrado a orar. Quando além pr'a azinhaga

o povo passando vae, o velho diz á mais gente:

– eis a Cruz do Omnipotente

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curvae-vos todos, curvae!

Já séculos são passados

que o christianismo te ergueu

e d'ahi viste o crescente

que lá surgio do Oriente,

que baqueou, e tremeu!

Viste a barbara invasão

por teus filhos dispersada;

e quando arrogante entrou

nem ao menos abalou

o solo que te escudava!

Bem dito sejas pois, padrão sagrado,

symbolo de perdão, de paz e amor; em ti, encontra alivio o desgraçado,

ó Cruz do Redemptor!!

Narciso José Nogueira Braga (Zaire – Africa), 1877/359.

A pouca significação do autor alia-se ao significado aleatório do próprio poema. Repare-se que, estando no Zaire, Narciso Braga nem se lembra

de que há ali um padrão, com maior importância histórica e mais densa poeticidade implícita. Isto reforça a suspeita de que a ocorrência não

tem qualquer interesse para nós.

autoria

Narciso José Nogueira Braga surge, no Índice dos almanaques publicado em 1892, como colaborador do Rio de Janeiro, só sendo

recenseadas prestações suas a partir do número para 1880 («À poesia»,

p. 171). Mário António Fernandes de Oliveira não o dá como colaborador. Provavelmente seria um português residente no Brasil que,

de passagem pelo Zaire, talvez em viagem de negócios, terá escrito este

poema, cujos referentes estão claramente ligados a uma natureza e a uma linguagem do Portugal europeu. No entanto, dado que a data do

poema é anterior à recensão das suas colaborações no Índice já citado, pode-se postular a hipótese de Narciso José Nogueira Braga viver então

em Angola e ter partido depois para o Rio de Janeiro. Por essa razão,

não deixo de incluir o seu poema no corpus, embora lhe reconheça uma

presença insignificante para a poesia angolense.

Page 120: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O poema estrutura-se em cinco quintilhas terminando por um quarteto,

prática positivamente referida pelo metrificador Castilho (Castilho, 1874

p. 138), embora o mestre da escola ultrarromântica falasse pensando

nas quadras, visto que não refere estrofes de quatro versos

decassilábicos, como é o caso desta.

Intertextualizações

A distribuição referida ([ABAAB], praticada por exemplo por Álvares de

Azevedo na Lira dos vinte anos, ou por Cesário Verde no já referido poema «Cristalizações» (aí com o primeiro verso dodecassílabo e os

outros decassílabos), aparece só na primeira estrofe do poema,

seguindo-se nas outras o esquema dominante ([*ABBA]). Tem, portanto,

uma presença insignificante na própria composição.

Porém, essa distribuição é dada como comum pelos tratadistas e foi

praticada, entre outros, por Castilho em heptassílabos, num poema

datado de 1860; por João de Lemos, em heptassílabos também (Lemos, 1858 pp. 164, 248, 256; Lemos, 1866 p. 175), bem como por Soares de

Passos (Passos, 1984 p. 185) e Ernesto Marecos (Marecos, 1865 p. 111), em quintilhas igualmente heptassilábicas e, no caso de Marecos, ainda

em bipentassílabos (Marecos, 1865 p. 89). Guilherme Braga recorreu

ainda à mesma distribuição, em quintetos dodecassilábicos terminando

por um hexassílabo (Braga, 1869 p. 29) e em quintetos decassilábicos (Braga, 1869 p. 51). Álvares de Azevedo rentabilizou-a em «A canção de

Don Juan», terceira secção do poema «Sombra de Don Juan», incluído

na terceira parte da Lira dos vinte anos (Azevedo, 2000).

Mas não foram só os ultrarromânticos a praticar a modalidade. Gomes Leal também compôs em quintilhas com essa distribuição nas

Claridades do Sul, tanto em versos heptassilábicos quanto em versos de dez sílabas (Leal, 1901 pp. 240, 247, 264, 270, 307). Junqueiro, em

bipentassílabos, na Morte de D. João (Junqueiro, 1974 p. 264), recorreu ao mesmo esquema rimático, sendo esse o tipo distributivo preferido

pelo autor nas estrofes de cinco versos.

Segunda variação

A segunda ocorrência é protagonizada por Cordeiro da Matta

(1884/124) e recolhe-se no poema acima referido, ao falar em quadras

misturadas com outros tipos de estrofe. A sua inserção resulta, quer-me parecer, da generalização do sistema estrófico próprio da quadra

praticada aí, o qual persegue a figura do crescendum relativamente ao

número de versos. A progressão no esquema distributivo das rimas, ao se passar da quadra para a quintilha e desta para a sextilha, evolui em correspondência: passa-se da rima cruzada à interpolada,

Page 121: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

acrescentando-se obrigatoriamente um verso branco no meio da parelha

central, de modo que se configura [AB*BA] a quintilha e [AB*BAA] a sextilha.

Intertextualização

Caso esta hipótese esteja certa, não é também especialmente

significativa a ocorrência, ainda que padronizada por um dos últimos grandes patronos da cultura novecentista angolense. O significado vir-

lhe-á, outrossim, da concertação entre uma solução formal incomum e

uma licitação da musa negra enquanto paradigma de beleza. Peça

jurídica liricizada orgulhosamente, como já escrevi não a reconheço afetada pela designação da negra como sobrinha de Eva (em vez de

irmã), pois a palavra prima, numa retoricização marcada por uma

linguagem arcaizante, a palavra prima costuma ser neste contexto sinónimo de “primeira”. Olhando, por exemplo, para a lírica de

Gonçalves de Magalhães, um dos fundadores do romantismo brasileiro,

ele escreve:

Mal que à Natura se abre a inteligência, E o primo pensamento a alma desperta, Logo a idéia de Deus d’ela se apossa, E a origem sua, e o seu destino aclara.

O “primo pensamento” só pode ser o primeiro pensamento. No poema

«O cristianismo», escrito na catedral de Milão a 17-10-1834, ele usa a

palavra no feminino com o mesmo significado:

[…]A Natureza Riu-se então, quando viu pela vez prima Um homem abraçar o outro homem, E em socorro comum viver jurarem.

No poema «A sepultura de Filinto Elísio / no cemitério do Père La

Chaise», torna a surgir a palavra:

Quiçá prima homenagem sejam elas Que ao manes teus humana mão tribute.

No «Adeus à Pátria» escreve, logo no começo:

Adeus, oh Pátria amada, Terra saudosa, onde eu abri meus olhos24 Pela vez prima ao sol americano;

24 Cf. o poema «À minha terra», de Maia Ferreira.

Page 122: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Quanto a Gonçalves de Magalhães e ao uso da palavra nos anos 30 do

século XIX, por um brasileiro, creio que chega.

Como licença poética, ajustada à métrica, Gonçalves Dias escreve

“primo” significando “primeiro” nos Primeiros cantos, publicados em

1847:

E ai do gamo que eu vir na coutada, Corça, onagro, que eu primo avistar!

O significado permaneceu em expressões usadas até hoje, como

“matéria-prima”, “obra-prima” e “prima-dona”.

O próprio Cordeiro da Matta usa a palavra com tal sentido aplicada às

“filhas da Europa”, que seriam “belezas primas” tais que o poeta nem pensava que pudesse havê-las “nestes climas”. Todo o contexto podia

ser ainda uma resposta ao livro de Capelo e Ivens, De Benguela às terras de Iacca, presente nas nossas fontes do século XIX (Ivens, 1881). Eles falam das mulheres do Hungo (não estendendo o adjetivo a todas

as mulheres negras) como “degeneradas filhas de Eva” e o nosso poeta

parece estar a responder-lhes argumentando que, pelo contrário, elas

são as primas, ou seja, as primeiras.

Quando falo na reduzida importância da ocorrência, reporto-me apenas

aos aspetos formais. Quero dizer, ao facto de ela derivar da sua

textualização, para sermos mais precisos, de uma regra interna à

composição do poema onde está inserida — não significando, portanto, o seu aparecimento que o poeta gostasse de um tal tipo estrófico. Ainda

assim, é de realçar o apurado sentido formal e a semelhança com o

brasileiro Castro Alves, quando este usa a distribuição AA*BB – sem

dúvida mais fácil de fixar pelo ouvido.

A quintilha, por si, foi poucas vezes perfilhada no corpus e tal facto acompanha, se nos fiarmos nos tratadistas, as escolas de referência. De todas as variações descritas, só a segunda é reconhecida por eles. A

distribuição rimática predominante não foi contabilizada, nem por

Castilho no Tratado de metrificação, nem por Amorim de Carvalho na

Teoria geral da versificação, que nos fala só em quintilhas com “duas

espécies de rima [.../...] Desde que os versos sejam todos rimados” (Carvalho, 1987 p. 40). Mesmo ao indicar os tipos estróficos mais comuns no romantismo, não refere esta distribuição rimática (Carvalho,

1987 p. 298).

Page 123: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Só mais adiante, ao citar exemplos de “esquemas estróficos, mais ou

menos comuns a diferentes poetas, ou criados pelo gosto caprichoso de

uns e outros poetas, por vezes encontrando-se com os de poetas das

épocas anteriores”, cita Amorim de Carvalho o “trovador” João de

Lemos, n’«A lua de Londres», onde o esquema irrompe logo no segundo

grupo de cinco versos da primeira décima (penso que isso acontece por

causa do cânone seguido por João de Lemos na composição dessa

forma estrófica).

A distribuição rimática predominante, porém, tanto para quintilhas

quanto para quintetos, nos poetas ultrarromânticos lusitanos, é a

mesma com que deparei no nosso corpus. Neste esquema rimático, muitas vezes, a rima do segundo com o quarto verso é feita em agudo,

procedimento só respeitado, entre as colaborações oriundas do que veio

a ser depois Angola, por Cândido Furtado, o requentado lírico d’A grinalda portuense – pelo que podemos dizer que esta especificação foi abandonada pelos versejadores angolenses e residentes.

Afinidades

A distribuição dominante na poesia estudada vem acolher-se à sombra

da lira do “talassa” João de Lemos, um dos ultrarromânticos mais

populares. É João de Lemos que João Cândido Furtado imita, infeliz, pegando n’«A lua de Londres» e contrastando-a com o brilho d’ «O sol

d'Africa»25, num exercício de auto-comiseração que só alcançaria

dignidade verdadeiramente poética e moderna com António Nobre a

convidar-nos para visitar o seu país de marinheiros.

Outros ultrarromânticos, em geral, praticaram o esquema perfilhado por João Cândido Furtado de Mendonça d'Antas, no que diz respeito à

distribuição das rimas pelos versos. Casimiro de Abreu, no Brasil, usou também o esquema *ABBA no poema «A juriti», como já referido (Abreu,

2000; 2003 pp. 35-36). Castro Alves, que também não cultivou muito a

quintilha, recorre uma vez à distribuição dominante – mas num

quinteto.

Quanto à métrica, a predominância de quintilhas em heptassílabos concorda com a prática apontada aos poetas românticos e ultrarromânticos por Amorim de Carvalho (Carvalho, 1987 p. 298), e

também com o estudo dos versos dos “antigos” feito por Castilho, que só

as refere quando fala nas estrofes de versos heptassilábicos, aceitando-as, mais à frente, na prática dos contemporâneos. No entanto Castro

25 1881/66; o poema, no entanto, vem datado de 1864.

Page 124: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Alves só uma vez compõe quintilhas nas Espumas flutuantes, o que deixa alguma reserva face aos tratadistas…

Apesar de Cândido Furtado ter sido o primeiro dos colaboradores

localizados em Angola a escrever os dois tipos de estrofes de cinco

versos cuja sequência rímica é predominante no conjunto do corpus, o que parece testemunhar a favor do seu prestígio entre os vates da então

colónia, o trovador do rio Letes, cujo bocejar faria inveja ao esquecimento, parece não ter convencido os poetas angolenses no que

diz respeito à distribuição métrica sua preferida. Tal facto em parte

explica-se pela menor presença de quintetos na poesia do ultrarromantismo português, muito menor do que a presença de

quintilhas com o tipo rimático praticado, quer em quintetos quer em

quintilhas, por Furtado d'Antas.

A influência da distribuição rimática via-se estimulada pela sua

presença em outros poetas, esses absolutamente paradigmáticos, enquanto com os versos decassilábicos isso não acontecia, pelo que a

geografia das rimas se aclimatou ao território, enquanto a contagem dos

metros em dez sílabas foi esquecida pelos nossos líricos.

Os quintetos, ao que parece, tornaram-se mais comuns só com a

“poesia realista” (Carvalho, 1987 p. 313), o que de início me levou a pensar estarmos perante mais um caso de assimilação de uma técnica posterior a uma retórica e a um léxico anteriores. Mas, sendo as

ocorrências desta métrica de Cândido Furtado, um típico versejador ultrarromântico, não parece que haja qualquer influência da “poesia

realista” que possa explicar a presença dessa forma estrófica na sua.

Podemos, assim, dizer que, nas estrofes de cinco versos presentes nos poemas estudados, as predominâncias métrica e rimática estão de

acordo, de forma geral, com a prática ultrarromântica, embora ao nível

da rima não sejam seguidos (como, nesse aspeto, não o foram no ultrarromantismo português) os postulados do estilista Castilho, e ao

nível da métrica se tenha abandonado a prática de Cândido Furtado

quando ela se afastou dos cânones da escola.

Page 125: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

As estrofes de seis versos

Determinação das sextilhas significativas

Se contabilizarmos o estudo das sextilhas encontramos, no total dos

textos do corpus, doze ocorrências para estrofes de seis versos. Duas aparecem na primeira fase do período estudado e dez na segunda, pelo

que esta me pareceu uma espécie caraterística da poética local, uma vez

que é de 1878 a 1900 que escrevem mais angolenses e residentes fixos.

Entre 1856 e 1877 há:

1) um anónimo que escreve, em 1863 e que não se localiza a não ser

pelo título: «Ao padrão do rio Zaire». A sextilha introduz o poema e não

apresenta rima. Quanto ao conteúdo, trata-se de um discurso, já comentado, de exaltação do “heroe portuguez”, “d’um povo famoso”,

“entre os idólatras”, cujo exemplo ergue, por sílabas bem contadas em

redondilha maior, a “altivez” do “ecco de gloria” de Portugal. Pelo que, provavelmente (mas não obrigatoriamente), estamos perante um colono

devoto da sua terra-mãe, quem sabe o “Vimaranense” que, sem outra

assunção de autoria, reincide no tema em 1885 (p. 301) com idêntico

fervor, agora dirigido contra os canhões ingleses a troarem em torno da questão do rio Zaire, como que farejando já o ácido e húmido rastilho do

Ultimatum. Não é, portanto, seguro atribuir a quem escreve os versos o estatuto de residente fixo ou definitivo, nem muito menos o de

“angolense”.

2) M. da C., um “nome” que, de Luanda, se declara retoricamente à

deusa Justiça no Almanach para 1873 (p. 212), é outro autor que, desconhecido, não me arriscarei a conotar, nem com angolenses, nem

com residentes fixos, nem com residentes estivais. Apresenta uma sextilha com distribuição ABABCC, mas no meio de uma composição

com estrofes irregulares, onde o número de versos parece casual.

3) A única presença importante, entre os colaboradores da primeira fase

que praticaram a sextilha, é a do comerciante José Bernardo Ferrão,

membro de um rol de dinâmicos sobrinhos-empresários do primeiro Ferrão que por ali picou nesse tempo. No entanto, José Bernardo

publica, até 1878, apenas «Melancolia» (1868/221), sendo a restante

colaboração lírica de sua autoria incluída em almanaques de 1878 para a frente. O rude epitáfio dedicado à figura do “Barão de Barth”,

epigrafado pelo D. Jayme de Tomás Ribeiro, onde usa de sextilhas em decassílabos (versos 1, 2, 4 e 5) e hexassílabos (versos 3 e 6), é

Page 126: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

precisamente a sua primeira colaboração desse ano – o que dá como

data provável de envio 1876 (o suicídio a que se reporta dá-se em

Setembro desse ano), ou começo de 1877. Mas, para nós, conta mais a

data da publicação, pois a partir dela é que se fizeram as leituras. Eis o

poema:

À MEMÓRIA DO BARÃO DE BARTH (1)

Quando ás tormentas da vida, em qu'alma o corpo abysmára, refoge o gesto suicida; o tiro que ella dispára com fria, gélida calma, tem por bucha as folhas seccas das mirradas flores d'alma. (THOMAZ RIBEIRO - D. Jayme)

Matares-te quando é já tão curta a vida!... Quando Deus lhe marcou tão curto espaço na breve duração não foi para a passarmos em delicias... brandos sonhos d'amor, doces, carícias, foi para expiação!... Ser philósopho é isto?! Ah! longe, longe princípios que nos levam a pôr termo á vida, com tal fim!... Se da philosophia é esta a essencia... antes uma fé céga e sem demencia eu quero para mim... Quando por alta noite te embebias co'a vista e com a mente pelo espaço os astros indagando; só mundos descobriste e suas leis?!... e não, d'elles acima, o Rei dos reis que a todos impoz mando; Que os seres distribue, as leis lhe imprime, os destinos lhe marca, – a que não temos direito a pôr um termo? Tua sciencia é vã se isto não viste... e o rude cérebro onde a fé persiste vale mais que o teu enfermo!... Toda a sciencia é vã se não descobre, como término Deus, e como intuito a perfeição humana:

Page 127: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

aquelle que a mente embebe nos espaços se alli não soube ler tão claros traços, já tem a mente insana... Se isto assim é, se tu assim o crias, e, obreiro do progresso, trabalhavas para destinos novos, porque te precipitas no caminho deixando do trabalho, tão mesquinho, tão triste exemplo aos povos?! Vês, se estudas os átomos tenuissimos, lhes indagas a essencia, e descriminas a edade e formação, que o homem decompõe e recompõe; mas onde nada encontra, nada põe que o seu poder é vão!... Crês tu que após de nós nem rosto ou sombra ficará?... e que, átomos perdidos na cosmica matéria, não volvemos a ter formas completas com que vamos brilhar, novos planetas, na região sidéria?... Se Deus o pensamento nos concede que anhela o infinito descobrir, e que era o teu fanal... se o mysterio é para nós a eterna ancia, como existe nas flores a fragrancia em nós ha o immortal!... Das tres grandes virtudes que a sciência do Senhor outorgou a cada homem como divina herança, a humilde não tiveste – a caridade? a fé, que até o rude persuade... nem sequer – a esperança? Onde termina, onde se occulta a fonte, a torrente caudal da vida humana, génesis infinito?!... Descobris-te-a tu?... julgaste ousado... e ao veres do mysterio o veu rasgado... soltaste o extremo grito?... Não soltaste, impossivel; porque ao homem não foi dado indagar dos sóes brilhantes que Deus está guardando...

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Mais que tu em sciencia, em fé sou rico... em quanto, sabio, partes, crente eu fico... fico em Deus esperando!... (1)”Sabio explorador allemão, que se suicidou em Loanda, com um tiro de revolver, no dia 7 de setembro de 1876”. J. B. Ferrão (Luanda), 1878/202.

Note-se a distribuição rimática, pouco habitual: **ABBA, ou seja: a de

uma quadra à qual se acrescentassem dois versos iniciais. Note-se

ainda que os versos A possuem métrica diferente dos outros.

Conteúdo intratextual

Neste, como em outros poemas do autor, notamos uma perspetiva

sincrética, onde a ciência não deve deixar de conduzir a Deus e à

aceitação da vida. O que torna o poeta mais interessante se nos

lembrarmos do vocabulário mais moderno que utiliza. Passo a explicar:

Numa rápida retrospetiva, sobre a globalidade das prestações em verso

que envia para o anuário, vemos que esta é, em termos de léxico e de

valores, diferente das outras. A moeda pela qual aferimos o sentido da

progressão da sua lírica é dupla: numa face é a da colonização; na

outra face é a do afastamento vocabular em relação às escolas de referência. No que diz respeito à colonização de Angola por Portugal, as

tentativas poéticas de Bernardo Ferrão passam do incitamento à

lamentação e, depois, à crítica aberta, não em nome dos colonizados ou

da independência, mas por causa da inconsequência atribuída à governação portuguesa. O que, aliás, era um tópico da imprensa crioula

também, dos filhos da terra.

O poema-charneira é o que sai no Almanach para 1880, onde convivem

o desânimo e a exaltação do patriotismo lusitano: “Não pode haver desvalidos / aonde houver portuguezes!”. Mas a composição publicada

no anuário para 1889 (p. 133), uma das mais ousadas do corpus, se critica a administração portuguesa apenas pelas razões acima aduzidas,

recorda algum vocabulário republicano e socialista, o do “povo honrado”, que virá castigar os abusos com “força, justiça, progresso /

três centelhas redemptoras / da tua aurora futura, / que espantará os

milhafres / e fará das hordas cafres / legiões trabalhadoras”, e dos

“povos vadios” – a final – “úteis colonos”.

Trata-se de um vocabulário que vemos na “confissão” publicada a pp.

224 do Almanach para 1881. Aí, o motivo arcaico da paixão no interior da Igreja, supostamente pecaminosa, vai ser contaminado pela crítica

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aos tiranos “Ante a magestade bíblica / do natal do Redemptor, / onde

o mysterio d’amor / auspicia ao mundo affagos / mysterio que aterra os

déspotas […]”. A composição é, aparentemente, eurocêntrica; não por

ser a figura feminina de loiras “madeiras” pintada “nas pinturas

immortaes! / Por entre as fitas róseas / dos labios”, nem por se

imaginar assim a “Virgem-mãe”, com olhos azuis e tudo, mas porque a

simbologia do ouro e da rosa, tal como tratada ali, é caraterística da lírica portuguesa e europeia, à qual indiscriminadamente o poeta

recorre, por vezes intertextualizando com o Cancioneiro geral (“dos lábios, eu vi no fundo, / pérolas taes que no mundo / nunca vi outras

eguaes”) — neste caso uma passagem que mostra que não era só às

mulheres negras que se elogiava a alvura dos dentes, o que certos

críticos empenhados e dessincronizados diziam ser um eufemismo…

disfemístico.

Só os poemas de 1868 e 1879 não pegam, de forma nenhuma, num vocabulário político. O primeiro já não se situa, porém, na semântica

estrita da escola ultrarromântica, pois ao léxico amoroso típico se junta a rejeição da tristeza, a simétrica exaltação da alegria e da vida, que

indiciam, como em Eduardo Neves ou em Cordeiro da Matta (neste pela

sátira à mulher fatal), um líquido afastamento no interior da círculo de

referências modelares, uma atitude que em Portugal era protagonizada

por Faustino Xavier de Novaes. O poema cola-se, portanto, à última geração ultrarromântica, não se lhe notando ainda as marcas

vocabulares que darão novidade às outras composições, como sucede

com a de 1879. Aí, a imagem do aço a girar enlouquecido em torno do

íman dá-lhe o traço de modernidade e concretude, que surpreende numa lírica de amor escrita por um discípulo de Castilho – e não sei até

que ponto Bernardo Ferrão foi isso.

É nesta ambiência textual que surgirá a primeira das três peças oratórias onde José Bernardo Ferrão figura as suas opiniões coloniais,

«Gratia Plena», de nome próprio, dedicada “À associação Commercial de

Loanda / em nome dos colonos vindos do Brasil na barca «Gratidão»” e

vinda a lume no Almanach para 1880. Não há nela qualquer indício, quer da ambiguidade da segunda, quer da crítica aberta realizada na

terceira composição. Nota-se apenas a denúncia pela representação de um “paiz saqueado / apos horrenda conquista” (Angola). Prolonga,

nesse ardor patriótico, uma “poesia que foi recitada pelo sr. J. B.

Ferrão” em 1874, na cerimónia oficial da inauguração da estátua de Salvador Correia, e que também está exarada em sextilhas de

hexassílabos (verso 1) e decassílabos às vezes coxos (restantes versos).

Aí, só no fim da penúltima estrofe se faz uma crítica, hipoteticamente apontada ao meio local e português: “Não é em pugnas vis e inglórias /

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Que se legam à pátria altas memórias, / É combatendo assim, homens

stultos” (Angola. Governo-geral, 1874 pp. 109-111)26.

Estas duas composições (de J. B. Ferrão no Almanach) abordam uma temática nova relativamente às anteriores. A politização da lírica era

previsível a partir da inclusão do poeta no grupo do Quanza, onde os

queixumes relativamente às intrigas em Luanda não deviam ser poucos

– e alguns deles viram a tinta negra do jornal O mercantil. Mas só ocorre nesta altura, o que isola ainda mais as líricas anteriores e em especial a

de 1868, que deve certamente as suas fragilidades a um entusiasmo

juvenil, ou pelo menos de iniciante.

De qualquer modo, as sextilhas de José Bernardo Ferrão surgem em

1878 (no Almanach), e não na primeira metade do período estudado (a composição em homenagem a Salvador Correia é que é, provavelmente,

de 1874, mas não tem o mesmo tipo de distribuição métrica). A

conclusão a tirar é a de que, caso todas estas hipóteses se continuem a confirmar conforme formos obtendo mais dados, a primeira fase do

período estudado não tem grande importância para a determinação da competência lírica dos restantes “colaboradores”. Mais uma vez. As dez

ocorrências entre 1878 e 1900 é que serão, possivelmente, caraterísticas das apropriações técnicas ao tempo realizadas em Luanda

e seus mal determinados arredores.

Descrição

Das sextilhas encontradas, cinco se agregam a outros tipos estróficos

para formar um poema. Não são, portanto, exclusivas. Cada uma representa uma solução rimática própria (uma não apresenta mesmo

qualquer rima) — própria, quer dizer, diferente das distribuições das

outras.

De todas elas, a primeira surge no Almanach para o ano de 1863 (p. 351), num poema anónimo, já referido; a segunda recolhe-se, dez anos

depois, numa composição irregular, a pp. 212 do Almanach para o ano de 1873, sendo a única sextilha do poema. Das dez seguintes, a

primeira é uma das constituídas exclusivamente por sextilhas e surge logo no ano de 1878 (p. 202), sendo todas as outras ocorrências

posteriores.

Em duas destas doze ocorrências (1863/351 e S1890/171) aparecem

versos decassilábicos (seria caso para lhes chamarmos sextetos); das

26 O poema vem localizado: “Loanda, 1 de março de 1874”.

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outras dez, duas alternam, simetricamente, decassílabos e hexassílabos

(1878/202 e 1880/222), outra apresenta-se com versos hexassilábicos

(1886/52, de Cordeiro da Matta, que utiliza o tipo métrico preferido de

Herculano para as sextilhas) e as restantes com heptassílabos (como

acontece na maioria dos poetas ultrarromânticos e nos poetas

populares nordestinos). Portanto, em doze ocorrências, apenas cinco

não são heptassilábicas, o que dá uma frequência significativa para

esse tipo métrico nas estrofes de seis versos do corpus.

Uma das sete recorrências da redondilha maior dá-se numa composição

já transcrita (1891/315, «Uma quissama») onde as sextilhas, com

distribuição [AABCCB], se seguem sempre a quadras com duas rimas

cruzadas, mantendo-se nos dois tipos estróficos o verso heptassilábico.

A junção dessas quadras com estas sextilhas resulta num esquema

típico da décima: [ABABCCDEED]. Hesito, portanto, em integrá-las ou

não como tal; dado que os esquemas, isoladamente, são também comuns, quer nas quadras quer nas estrofes de seis versos, e dado que

o autor preferiu separar umas de outras graficamente (como se não fossem décimas) — e dado, ainda, que todas as sextilhas e todos os

quartetos são estâncias, ou seja, terminam simultaneamente com o

período gramatical — considerei mais seguro estudá-las como estrofes

de seis versos.

Intertextualizações

A alternância de versos deca- e hexassilábicos nas estrofes de seis

versos, feita simetricamente como no poema ao Barão de Barth, era a

desejada por Castilho, sendo praticada por Alexandre Herculano n'A harpa do crente (Herculano, sd pp. 87-88). Também foi seguida por João de Lemos (Lemos, 1858 p. 168), Tomás Ribeiro (Ribeiro, 1908 pp. 21, 43), Faustino Xavier de Novaes (Novaes, 1858 p. 152), Ernesto Marecos

(Marecos, 1878 p. 18), Guilherme Braga (Braga, 1869 p. 107), Rodrigues Cordeiro (Cordeiro, 1889 p. 221) e Gonçalves Crespo (Crespo,

1942 p. 253) — este, porém, numa composição que não deve ter sido

publicada antes de 1897. Luís Augusto Palmeirim pratica um tipo idêntico, mas com versos de quatro sílabas. Guerra Junqueiro, por sua

vez, compõe também nesse tipo de sextilha no Batismo de Amor (Junqueiro, 1974 p. 83).

No Brasil Domingos Gonçalves de Magalhães recorre ao mesmo tipo

heterométrico (mas sem obrigação de simetria) no poema «A infância»,

dos Suspiros poéticos e saudades; nas primeiras estrofes de «A mocidade», do mesmo livro; no poema dedicado ao ministro

plenipotenciário José Joaquim da Rocha (o quebrado aparecendo no

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segundo verso e a estrofe sem rima); no poema «Adeus à pátria»,

também dos Suspiros poéticos (sem simetria, também sem rima) e, esporadicamente, no poema (do mesmo livro) “em resposta” ao

companheiro da primeira geração romântica brasileira, Araújo Porto

Alegre, bem como na primeira estrofe de «O homem probo» e «No álbum

de um jovem amigo» (Magalhães, sd). Álvares de Azevedo, na segunda

parte da Lira dos vinte anos, usa a mesma solução estrófica (sem obrigação de simetria) na parte I de «Um cadáver de poeta» (composição

inaugural do livro); já usara essa heterometria no tétrico poema

«Esperanças» (que inicia com um verso do romântico Alfred de Vigny,

que ele e Castro Alves admiravam), todo ele construído só sobre sextilhas de decassílabos com hexassílabos e que integra a primeira

parte do mesmo livro; da mesma forma, na série «Hinos do profeta», o

primeiro poema («Um canto do século») e o segundo («Lágrimas de

sangue») estruturam-se exclusivamente sobre este tipo, integrando

ainda a parte inicial da obra. Fagundes Varela constrói sobre sextilhas em simetria a mesma alternância (decassílabos e quebrados) no poema

«Aurora», que não tem rimas; retorna ao modelo (com rima só nos quebrados, uma distribuição muito da sua preferência) em «Ao Brasil»,

dos versos patrióticos O estandarte auriverde (1863); no poema «Sete de Setembro» (de novo com rima só nos quebrados); na segunda secção do

poema «Despedida» e no poema «Conforto» – em ambos os casos com

rima só nos quebrados (Azevedo, 2000). Castro Alves recorre cinco vezes ao modelo, com a mesma distribuição métrica e os quebrados

sempre em agudos, colocados simetricamente como queria Castilho.

Cruz e Sousa ainda cultiva essa heterometria com a sextilha (sem

imposição de simetrias), por exemplo no poema «Frémitos», com um

esquema distributivo que vamos encontrar mais à frente (Sousa, 2000-2002a pp. 23-25); recorre a elas ainda no poema «O botão de rosa»,

dedicado “a uma atriz” (provavelmente Julieta dos Santos) e com distribuições métricas variadas (Sousa, 2000-2002a pp. 27, 29); realiza

também com três sextilhas desse tipo os «Três pensamentos» (Sousa, 2000-2002a p. 114). Olavo Bilac usa dessas e de outras sextilhas na

«Noite de inverno», saída em Alma inquieta (Bilac, 2000-2003a), inclusivamente com soluções bizarras e originais, em que

experimentava a liberdade que nelas via (v. abaixo).

Apesar de uma tal frequência, e de outras que de seguida vou

enumerar, Castilho, ao referir as estrofes de seis versos entre as “rimas” dos “antigos” (Castilho, 1874 pp. 126, 134), parece ter em mente apenas

a sextina, que é um sistema estrófico praticado sobretudo pelos

quinhentistas portugueses. Talvez por isso recuse liminarmente esta forma nas suas recomendações aos poetas contemporâneos (Castilho,

Page 133: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

1874 pp. 126, 130, 131, 134, 138). Já o Tratado de versificação de Bilac e Passos não põe qualquer restrição ao uso das sextilhas, afirmando explicitamente: “Castilho condemna as sextilhas. Não achamos motivo

para isso. / Ao contrario, são dignas de cultivo, pois variam

immensamente.” (Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd) Os nossos

poetas partilhavam tal pensamento. Mas não só angolanos e brasileiros.

A sextilha, não a sextina clássica, tinha sido praticada por Almeida

Garrett, que sobre ela construíra os poemas «Este inferno de amar» e

«Gozo e dor», de Folhas caídas (Garrett, 2000-2002 pp. 15, 16) – de que ainda existe um exemplar, de 1849, no Arquivo Histórico Nacional em

Luanda, havendo outros, de várias edições, na biblioteca do GPL.

Alexandre Herculano, um dos patronos do romantismo português,

recorreu a sextilhas n’A harpa do crente, preferindo-as hexassilábicas, como são as que surgem nos poemas «A cruz mutilada» e «Mocidade e

morte — a Graça», incluídos nesse mesmo livro (Herculano, sd pp. 87, 88; 47-48), que terá circulado por Angola no século XIX. Entre os vates ultrarromânticos lusitanos encontram-se constantemente sextilhas, misturadas com outros tipos estróficos ou comparecendo isoladamente

numa composição. O próprio Castilho, apesar de não as descrever,

extraiu-as para as Estreias poético-musicais (Castilho, 1907 p. 67), as Excavações poéticas (Castilho, 1904 p. 169) e as Novas excavações poéticas (Castilho, 1905 p. 107). João de Lemos desmultiplica-as no Cancioneiro (Lemos, 1858 pp. 8, 64,85, 113, 118, 164, 168, 194, 196, 244; Lemos, 1859 pp. 79, 91, 128, 150, 195-198; Lemos, 1866 pp. 71,

81, 103, 117, 133, 138, 190, 229, 239) e nas Canções da tarde (Lemos, 1875 pp. 17, 23, 28, 57, 62, 64, 105, 154, 174), por incrível que pareça

não tão crepusculares quanto as Claridades do Sul. Soares de Passos, nas Poesias, também as pratica (Passos, 1984 pp. 136, 227), bem como os diferentemente epigonais Luís Augusto Palmeirim (Palmeirim, 1851

pp. 29, 73, 97, 121, 241, 323, 333, 389, 415); Faustino Xavier de Novaes (Novaes, 1855 pp. 74, 209, 216, 273; Novaes, 1858 p. 152);

Guilherme Braga, com versos heptassilábicos (Braga, 1869 pp. 107,

219) e com decassílabos (Braga, 1869 p. 223); e ainda F. Gomes de Amorim. Mendes Leal, uma espécie de Manuel Alegre do grupo, recorre

às sextilhas por diversas vezes nos Cânticos (Leal, 1858 pp. 16, 35, 43, 53), bem como o repassadíssimo mas requintado Tomás Ribeiro, quer

nos Sons que passam (Ribeiro, 1908 pp. 21, 32, 43, 44, 49, 71, 85, 146, 147, 243), quer no então famoso D. Jayme (Ribeiro, 1862 pp. 7, 31, 136, 276) – embora o ministro plenipotenciário de Portugal no Brasil preferisse as sextilhas decassilábicas (com ou sem quebrados), às

heptassilábicas, ao contrário do que sucede com os outros poetas

ultrarromânticos, quer os do corpus, quer os portugueses.

Page 134: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Pinheiro Chagas, político dado ao cultivo enganoso das musas, no então

elogiado Poema da mocidade foge (talvez por causa dos avisos de Castilho) a esse tipo estrófico, tendo apenas achado uma ocorrência lá

(Chagas, 1865 p. 21). Gonçalves Crespo torna-se, também, comedido na

aproximação às sextilhas, como podemos observar nas Obras completas, onde as usa três vezes só (Crespo, 1942 pp. 73, 253, 256).

Gonçalves Dias, por contraste, recorre a elas frequentemente (Dias,

1847 pp. 59, 67, 183, 337; Dias, 1848 pp. 14, 29, 39, 63, 130) e nessa

base estrófica estrutura as «Sextilhas de Frei Antão», que o inserem no

medievalismo dos ultrarromânticos de Coimbra e a que se referem

Fidelino de Figueiredo (Figueiredo, 1928 p. 159), Bilac e Passos e

Machado de Assis – preocupado o romancista brasileiro com a

nacionalidade literária da composição (Assis, 2008) e despreocupados

os parnasianos, que só as definem como escritas num “estylo classico”

(Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd). Recorre ainda a elas em várias secções do longo poema indianista «I-Juca Pirama». Álvares de Azevedo

recorre várias vezes à sextilha, não só nos poemas que já citei mas em

vários outros e com mais frequência na Lira dos vinte anos (Azevedo, 2000). Fagundes Varela usa também muitas vezes as sextilhas, com

variedade e originalidade (Varela, 2000;2002). Castro Alves revitaliza-as

com originalidade conjuntural no poema «A duas flores» e compõe

sextilhas as mais variadas nas Espumas flutuantes, onde esse poema se integra, recorrendo 16 vezes a elas (Alves, sd). Cruz e Sousa, para além

dos exemplos citados, recorre a sextilhas mais vezes ao longo da sua

obra; para não deixar o leitor sem títulos leia o poema «Saudação»

(Sousa, 2000-2002a pp. 99-101), todo feito sobre sextilhas e escrito no Desterro a 14-11-1880 (portanto numa fase ainda inicial da sua

carreira), e o poema «Versos» (Sousa, 2000-2002a pp. 104-107), que

deve ser da mesma época e lugar. O próprio Olavo Bilac organiza por

sextilhas o poema «Midsummer's Night's Dream» (Bilac, 2000-2003a p.

5).

Gomes Leal, nas Claridades do Sul, socorre-se apenas uma vez da sextilha (Leal, 1901 p. 319), assim como Antero de Quental, logo nas

Primaveras românticas (Quental, 1922 p. 119). Gomes Leal, porém, constrói com sextilhas o poema «A canalha» (cuja primeira edição é de

1873). O poeta-pedagogo João de Deus, na famosa elegia «A vida», utiliza, ainda com exclusividade, a sextilha. E Guerra Junqueiro recorre

a ela por quatro vezes em todos os livros que podiam ter sido lidos pelos

nossos poetas antes de eles publicarem o corpus (Junqueiro, 1974 pp. 83, 104, 254, 267).

Page 135: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Parece, pelo quadro de conjunto, que, a partir de certa altura, entre

autores influenciados pelo Visconde de Castilho, ou sobretudo entre os

outros, a sextilha começa a escassear – porém, mais em Portugal do que

no Brasil. Mas, nas fases mais fortes do ultrarromantismo e do

romantismo luso-brasileiros, essa modalidade estrófica era muito

representativa, embora não fosse dominante: detetam-se menos

ocorrências de sextilhas nos poetas desses períodos do que, por exemplo, de quadras, quartetos e oitavas. O tipo nem sequer é referido

por Amorim de Carvalho quando fala nas formulações estróficas

anteriores que permaneceram na escola ultrarromântica, ao contrário

do que sucede com as quintilhas, as quadras e quartetos e as oitavas.

Intratextualidades

No corpus estudado, pelo contrário, a sextilha é a espécie estrófica mais

significativa a seguir às de quatro versos. Foi praticada por Cordeiro da

Matta, que subscreve seis das doze ocorrências, por José Bernardo Ferrão (um dos poetas do Kuanza, juntamente com Cordeiro da Matta e

Eduardo Neves), por João de Lemos27, entre outros menos significativos (António J. Machado, para o qual não encontro identificação segura, M. da C. e A. G. de Castro, que também não consigo identificar

socialmente, nem antropologicamente).

Em número de ocorrências, a sextilha e a quintilha parecem equiparar-se. Mas, se levarmos em conta que, das estrofes de cinco versos, dez são

de Cândido Furtado e, metricamente, quatro delas não encontram

semelhança com todas as outras estrofes de cinco versos presentes no

corpus, vemos uma diferença quantitativa e qualitativamente

significativa entre quintilhas e sextilhas, favorecendo estas.

Conclusão

Isto não permite postular obrigatoriamente uma diferenciação

acentuada entre os poetas angolenses e os do ultrarromantismo

português ou brasileiro, dado que vários ultrarromânticos, como vimos atrás, utilizam ainda muitas vezes essa espécie estrófica, neles

igualmente predominando a sextilha heptassilábica (de pendor popular

e muito usada pelos cordelistas brasileiros) e a mesma distribuição das rimas. O destaque dado pela prática local à sextilha poderá explicar-se

pela influência de João de Lemos sobre a poesia angolense, visto ser o

poeta ultrarromântico português onde elas se encontram com uma

27 Que não podemos confundir com o homónimo português: este era caixeiro de profissão, casado com uma senhora da sociedade luandense - Dª Antónia E. Annapaz - que o acolheu depois de ele ter saído do colégio sacerdotal de Sernache em Portugal (cf. O Mercantil, nº 707, Luanda, 22-2-1882 e O Eco de Angola, nº 4, ano 1, 3-12-1881). Há um José de Lemos, talvez irmão deste, que subscreve um “logogripho” a partir do Bengo (1890/347).

Page 136: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

frequência significativa, tendo ele sido lido igualmente no Brasil com

apreço por poetas da segunda geração romântica.

A possível influência de João de Lemos é corroborada por outros

fatores: a admiração que por ele tinha Cândido Furtado, a popularidade

das suas composições, a admiração que por ele possivelmente nutria

também Ernesto Marecos, fundador d'A aurora, em 1856, colaborador na 2ª série d'O bardo, amigo de Faustino Xavier de Novaes, conhecido de Camilo Castelo Branco (que lhe prefacia um livro), de Tomás Ribeiro

e de Guilherme de Azevedo, a quem prefacia o volume Aparições, e colaborador literário do Diário de notícias. Ernesto Marecos era, portanto, membro de círculos literários do ultrarromantismo português,

meios onde a figura de João de Lemos aparecia como a de companheiro

mais velho e de mestre, ao mesmo tempo.

Da parte brasileira talvez fosse Fagundes Varela o ultrarromântico a

recorrer mais à sextilha, mas não tenho qualquer indício de que os angolenses o tenham lido. A Gonçalves Dias leram seguramente e por aí

lhes virá também estímulo para a composição de sextilhas.

Estudo das distribuições rimáticas nas sextilhas do corpus

As soluções rímicas encontradas, entre os poemas do corpus, em sextilhas nas quais nem todos os versos rimam, não são descritas na

Teoria geral da versificação. As distribuições com dois “ramos” rimáticos também não se encontram entre os exemplos para esse tipo fornecidos

por Amorim de Carvalho.

Só entre as sextilhas com três ramos rimáticos deparamos com uma

coincidência: a mais comum ([AABCCB], com cinco ocorrências, é

referida na Teoria geral da versificação a título de “uma das mais afortunadas sextilhas, desde os Românticos” (Carvalho, 1987 pp. 44-48;

Azevedo, sd).

A distribuição predominante – intertextualizações

Trata-se de um modelo distributivo raro nas ocorrências registadas em Tomás Ribeiro. Entre os poetas acima citados, é em João de Lemos e em

Gonçalves Dias que esse tipo de sextilha, no que diz respeito à

distribuição rimática, encontra maior frequência. Gonçalves Dias estrutura sobre elas e em bipentassílabos toda a secção I de «I-Juca

Pirama».

Page 137: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O veio brasileiro prolonga-se por outras gerações. Álvares de Azevedo,

que puxa para uma epígrafe sua João de Lemos, usa a mesma

distribuição rimática nos poemas «No mar», o primeiro da Lira dos vinte anos (Azevedo, sd pp. 6-7); «Anjinho» (Azevedo, sd pp. 7-8); «A cantiga do sertanejo» (Azevedo, sd pp. 8-9); «O poeta» (Azevedo, sd pp. 9-10); nas

sextilhas heptassilábicas de «Pálida inocência» (Azevedo, sd p. 15); nas

falas do Poeta em «Tarde de Outono» (Azevedo, sd pp. 19-20); nas heterométricas «Esperanças» (Azevedo, sd p. 21) – todas composições da

primeira parte da Lira dos vinte anos. Usa-as ainda nos poemas «Fantasia», «Meu sonho», «Seio de virgem» – todos da terceira parte do

mesmo livro (Azevedo, sd pp. 44, 45-46, 50) – sendo que, numa das

ocorrências (pp. 45-46) em eneassílabos. O conturbado Junqueira

Freire usa-o regularmente nas sextilhas em heptassílabos de «A órfã na

costura» (Freire, 1867 pp. 53-56). Fagundes Varela segue o modelo nas

sextilhas em heptassílabos em que se estrutura o poema «Tristeza»

(escrito em São Paulo em 1861, integrado em Noturnas – saído no mesmo ano); na cançoneta heterométrica «O sabiá», de Vozes da América (1864); nas sextilhas decassilábicas de «O resplendor do trono» e nas heptassilábicas de «Noturno» (ambas dos Cantos meridionais, de 1869); na composição das «Sextilhas», nas secções VI (em exclusividade)

e I de «Juvenília» (Varela, 2000;2002 pp. 19-20, 28-30, 39-41, 46-47,

53, 77-79, 89-90). Castro Alves também percorre o modelo no poema «A

duas flores» e mais nove vezes nas Espumas flutuantes (Alves, sd). Cruz e Sousa ainda recorre à mesma distribuição, por exemplo no poema «O

botão de rosa», dedicado a uma atriz (v. atrás). E mesmo Bilac, por

exemplo em «Noite de inverno» (Bilac, 2000-2003a pp. 14-16), que

integra Alma inquieta (incluída na segunda edição das Poesias, que é de 1902).

Vemos, portanto, que a distribuição começa a escassear só depois do

ultrarromantismo. Isso aproxima novamente a prática dos nossos

autores e a dos momentos ultrarromânticos mais fortes.

Nas duas previsíveis fontes portuguesas, mas principalmente em João de Lemos, a rima [B] da sextilha é aguda, sendo as restantes graves,

como acontece também com as sextilhas da mesma espécie escritas por

Mendes Leal (poeta que pouco as manejou) e pela maioria das sextilhas com essa distribuição rimática escritas por Ernesto Marecos, Guilherme

Braga e Rodrigues Cordeiro nas obras consultadas. Entre os brasileiros

não se respeita geralmente a obrigatoriedade da rima em agudo, embora haja casos notórios a respeitá-la, por exemplo Gonçalves Dias abre

(secção I) e fecha (secção X) «I-Juca Pirama» cumprindo integralmente a regra; Castro Alves respeita-a integralmente no poema «Dalila»,

encimado por uma epígrafe do Paraíso perdido, no poema «Ao ator

Page 138: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Joaquim Augusto, na primeira secção («Fotografias») do poema «Os

anjos da meia-noite» (Alves, sd pp. 86-89, 92-94, 95-96). Nos poetas do

corpus essa norma de composição é respeitada apenas por três vezes, num universo de cinco ocorrências: 1886/144 (num poema de Cordeiro

da Matta), 1890/338 (num poema de A. J. Machado, poeta

insignificante) e 1891/315 (noutro poema de Cordeiro da Matta, datado

de 1881).

Das cinco ocorrências desta distribuição, três estão assinadas por

Cordeiro da Matta, sendo as outras duas assinadas cada uma por um

poeta, uma delas por João de Lemos, homónimo local, e outra por A. J.

Machado, ambos pouco significativos. As de Cordeiro da Matta foram

redigidas antes das dos outros dois poetas, o que pode ser significativo

da sua influência sobre autores residentes de menores recursos

poéticos — ou angolenses, no caso de A. J. Machado o ter sido.

Pode significar isso, também, que a dominância desta distribuição no local se deve a Cordeiro da Matta, o qual poderia ter-se inspirado no

“trovador” João de Lemos ou em Gonçalves Dias, ou mesmo nos ultrarromânticos brasileiros – de cuja leitura em Angola continuo sem

sinais explícitos e diretos.

As restantes distribuições

Das restantes distribuições detetadas, apenas duas aparecem descritas

na Teoria geral da versificação de Amorim de Carvalho: [ABABCC] e

[ABBACC].

Uma sextilha com música

Das duas, [ABABCC] ocorre duas vezes: a primeira (1873/212) moldada

pela pena de um poeta sem significado no corpus (M. da C.), e a segunda forjada pela patronímica mão de Cordeiro da Matta (1879/407), sendo ambas escritas em versos heptassilábicos.

Transcrevo a de Cordeiro da Matta:

A MINHA SINA É sem norte a minha vida, e n'um mar revôlto vivo; escravo de dura lida eu sou a tudo captivo; atraz do ignoto corro, e na lucta eu soffro, eu morro. Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Loanda), 1879/407.

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Repare-se que não temos aqui, apenas, uma sextilha de versos

heptassilábicos e uma determinada distribuição rimática. Se quisermos

ouvir melhor a música, toda a orquestração desta sextilha, há muito

mais que dizer – antes mesmo de olhar para as rimas, outra secção da

mesma orquestra. Vou fazê-lo de forma simples e sem adotar nomenclaturas ou classificações pré-estabelecidas por alguma

classificação rígida. Faço-o assim porque pretendo sugerir uma ideia de

conjunto sobre aspetos do verso que a ciência ainda não consegue

descrever exatamente e, nas nomenclaturas pré-estabelecidas que

estudei, não encontrei alguma que me fornecesse essa ideia de

conjunto. Por vezes, a falta de termos apropriados, levou-me recorrer a

termos anteriores eventualmente definidos de outra forma e no âmbito

de um quadro classificativo diferente. Mas acredito que, também neste

caso, a coesão textual se encarrega de fazer perceber ao leitor o que lhe quero transmitir – a música ouvida lendo e relendo estes versos, o

ambiente musical no seio do qual as rimas trinam.

Em primeiro lugar reparemos no ritmo. O primeiro e o segundo versos

têm um ritmo de 3+4 (o acento rítmico surge na 3.ª e na 7.ª sílabas); o

terceiro verso muda para um ritmo tripartido (2+3+2), constituindo uma

simetria perfeita se a unidade de 3 sílabas for tida como centro ou espelho; o quarto é ainda um verso de transição, mas de novo bipartido:

4+3 (talvez o ritmo mais comum dos heptassílabos); o quinto e o sexto

apresentam-se num ritmo, bipartido, de 5+2. Ficam dois versos nas

pontas bem definidos ritmicamente e dois versos de transição no meio

da estrofe, constituindo um ritmo global simétrico mas de uma simetria

imperfeita – justamente no meio se aloja a imperfeição, como se para preparar o nosso ouvido musical para o remate perfeito. O remate

requer mudança na distribuição rimática, passando-se a emparelhadas como na oitava camoniana, mas também um ritmo mais pesado – mais

próximo, por isso, do conteúdo explícito. Repare-se que o ritmo de 5+2

implica uma secção inicial do verso com quatro sílabas seguidas sem acento (átonas quanto ao acento rítmico). Essa massa sonora, que é o

ruído de fundo sobre o qual despontam e brilham os acentos, é que

torna o verso mais pesado.

Se, porém, apurarmos o ouvido, parece que temos, dentro dessas

quatro sílabas, mais acentos – embora acentos com menor força. Para estudá-los precisamos de outra contabilidade, em que as unidades

rítmicas menores são constituídas ainda pela distância entre unidades

acentuadas de segundo grau. Inicialmente contei-as – e podemos contá-

Page 140: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

las, a título introdutório – pela distância entre sílabas tónicas (o número

– a massa sonora – de átonas entre duas tónicas). Por exemplo no verso

E na luta eu sofro, eu morro – onde culmina o efeito dramático do poema – teríamos

T (indicando tónica) + T + T + A (indicando átona) + T + A + T

Portanto, três tónicas iniciais e depois um ritmo binário, em que a cada

sílaba tónica sucede uma átona. Se olharmos para o primeiro verso

ocorre o mesmo, reforçando-se a sugestão de circularidade que as

simetrias também trazem no seu bojo.

Mas estamos a considerar tónicas sílabas como a de “E”, ou de “na”,

palavras monossilábicas e os monossílabos podem ser átonos ou

tónicos conforme a intensidade vibratória das suas vogais e conforme o contexto frásico no qual estão inseridos. O ritmo dos versos (ou das

frases) atoniza em geral essas sílabas, mesmo que sejam abertas e aparentemente acentuadas. Para o caso particular do verso, o leitor

pode consultar Samuel Gili Gaya. Ele estudou estas relações entre

ritmos, entoação, altura, massas sonoras e as vibrações das cordas

vocais que dão sustentáculo a tudo e puderam ser fixadas pela

tecnologia do século XX. Particularmente para este aspeto, a que chamo atonização pelo ritmo e pela entoação, há um texto específico numa

edição relativamente recente (Gaya, 1993 pp. 43-52). Atonizava é um

termo impreciso que uso para designar o facto de o conjunto sonoro nos

levar a dizer com brevidade essa tónica e o fator brevidade é que ‘atoniza’ a ‘tónica’, fazendo com que a perceção dela se reduza. Estou

então a chamar aqui unidades acentuadas às sílabas ou vogais que são

tónicas e alongadas – por mínimo que o sejam – pelo ritmo e pela

entoação. É sem dúvida uma contagem subjetiva. Porém, todo o ritmo é

subjetivo e por isso é que precisamos de contá-lo.

Assim contando, o primeiro verso é um exemplar perfeito de um ritmo

alternado, binário, assimilável ao trocaico, seguindo-se sempre a uma acentuada outra não acentuada. O conjunto pode ser esquematicamen-

te assim descrito: A+na+A+na+A+na+A (a última sílaba não se conta por

estarmos na língua portuguesa, tendencialmente grave; portanto não se conta por ser não acentuada – caso se contasse mantinha o ritmo

binário). Contemos toda a sequência estrófica:

A+na+A+na+A+na+A (1+1+1+1+1+1+1)

na+na+A+na+A+na+A (2+1+1+1+1+1)

Page 141: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

na+A+na+na+A+na+A (1+1+2+1+1+1)

na+A+na+A+na+na+A (1+1+1+1+2+1)

na+A+na+na+A+na+A (1+1+2+1+1+1)

na+na+A+na+A+na+A (2+1+1+1+1+1)

Se o leitor agora comparar só a sequência indicada pelos números

encontra facilmente uma distribuição bem orquestrada, acredito que

intuitiva, mas de uma intuição musical apurada:

1+1+1+1+1+1+1 2+1+1+1+1+1 1+1+2+1+1+1 1+1+1+1+2+1 1+1+2+1+1+1 2+1+1+1+1+1

Como se pode ver, após um primeiro verso completamente alternado (equivalente a rimas cruzadas na distribuição rimática), temos uma

evolução do posicionamento de duas sílabas não acentuadas juntas,

que vão progredindo até ao extremo (atingido no quarto verso – o último

dos dois de transição) e depois recuam, com a mesma gradação, para a

posição inicial. A contagem é, digamos, mais musical – o que o leitor

perceberá se acrescentarmos um pequeno pormenor:

A soma de duas sílabas não acentuadas com uma acentuada (2+1)

pode-se chamar ‘anapesto’ para o caso. A sequência de uma não

acentuada com uma acentuada pode chamar-se ‘iâmbica’. Se relermos agora os versos temos o primeiro, digamos de introdução musical, que é

só feito com iambos; depois o ‘anapesto’ vai-se deslocando até à ponta

extrema do verso (v. 4) e regressa ao início – ocupando os iambos os

espaços restantes. Naquele verso 4 junta-se a massa sonora átona maior com o mais intenso acento rítmico (o do final do verso, o que dá a

rima). Esse é o momento culminante do poema-estrofe. Ele dá-nos

também a imagem mais deprimente, mais trágica e mais precisa da composição: “eu sou a tudo cativo”. O homem sem liberdade nem

conhecimento, sem decisão, que vai preso atrás de tudo. Os dois

últimos versos, repare-se, vão acentuar gradualmente a sensação de queda, de desânimo, de quebra também do sopro com o regresso à

partição mínima (binária) da massa sonora. Esta coincidência junta à

ambiência metafísica de «A minha sina» uma conotação política e, por isso mesmo, à conotação política uma dimensão humana universal e

metafísica.

Page 142: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Se o leitor estiver interessado em compreender melhor (e possivelmente

melhor do que eu) este tipo de análise, pode consultar – a título de

bibliografia mínima – os livros referenciados entre parêntesis: (Cooper,

et al., 1963; Gaya, 1993; Levitin, 2010).

Intertextualizações

Regressando agora da análise em pormenor para a distribuição rimática e suas correspondência na época, vemos que este esquema rimático é

considerado por Amorim de Carvalho “uma redução da oitava camoniana” (Carvalho, 1987 pp. 44-48), dado que a sua construção

sobre rimas cruzadas termina por duas emparelhadas (como acontece

com a distribuição de vogais aentuadas e não acentuadas no quarto

verso). Carrega, por essa via, uma conotação nobre, épica, de que o

nosso poeta se terá apercebido, pois a usa para transmitir conteúdos

típicos de uma epopeia espiritual.

A distribuição, no entanto, foi muito cultivada pelos líricos durante os romantismos. Ela era dominante nas sextilhas artificiadas por Castilho

(Castilho, 1904 p. 169; Castilho, 1905 p. 107; Castilho, 1907 p. 67).

João de Lemos exercitou-a também, no primeiro volume do Cancioneiro (Lemos, 1858 pp. 113, 244); nas Canções da tarde, os decassílabos alternando com hexassílabos, ou univocamente os heptassílabos

(Lemos, 1875 p. 154); e no terceiro volume do Cancioneiro, em heptassílabos (Lemos, 1866 p. 138). Luís Augusto Palmeirim socorreu-

se duas vezes desse tipo estrófico, utilizando o heptassílabo e o

bipentassílabo (Palmeirim, 1851 pp. 323, 333). Tomás Ribeiro versou

pelo mesmo esquema estrófico, tanto nos Sons que passam, com

sextilhas de versos decassilábicos (Ribeiro, 1908 p. 46), quanto no D. Jayme (Ribeiro, 1862 pp. 7, 31), com metros, respetivamente, endeca e decassilábicos – em qualquer dos casos ocupando as ocorrências uma fatia mínima das suas escolhas formais. Mendes Leal também só por

uma vez versou o mesmo esquema, em sextilhas onde alterna versos

decassilábicos com um hexassílabo (Leal, 1858 p. 43).

Alternando decassílabos com os seus quebrados hexassilábicos, Gonçalves Crespo (Crespo, 1942 p. 73) compôs sextilhas rendilhadas

em Miniaturas, obra publicada em 1871. Fagundes Varela usa a mesma

distribuição rimática na secção III do poema «Juvenília» (Varela,

2000;2002 pp. 43-45), de Cantos e fantasias (1865), em estrofes heterométricas (3 heptassílabos, dois decassílabos e um tetrassílabo –

esquema repetido em todas elas).

Page 143: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Música e segredo: a segunda sequência citada pelos tratadistas

A segunda sequência rimática, das duas citadas pelos tratadistas e

referidas atrás ([ABBACC]), surge num outro poema de Cordeiro da

Matta (S1890/171):

A FELICIDADE Perfeita, quem jamais no mundo a teve?!... Quem tal, affoitamente, affirmar ousa, Co'ella apenas sonha... não a gosa! É nome que só no papel s'escreve, e nunca pertenceu à Realidade... No mundo quem a frúe, quem, na verdade?! 1889. J. D. Cordeiro da Matta (Barra do Quanza), S1890/171.

Formalização

Analisando como fizemos para a estrofe anterior, temos a seguinte

sequência rítmica:

A+T+AAA+T+A+T+A+T

A+T+AAA+T+A+T+A+T28

A+T+A+T+A+T+A+T+A+T

A+T+AA+T+AA+T+A+T29

A+T+AAA+T+AAA+T

A+T+AAA+T+AAA+T

Também ritmicamente é sugestivo o poema, pese embora a falha nos

versos 2 e 4, acentuando ritmicamente sílabas átonas. Essa acentuação é porém compensada por um jogo mais intenso e diversificado entre átonas e tónicas. Os dois versos finais, que veiculam a mesma

informação em termos de conteúdo explícito e em termos de rima,

também repetem o ritmo contado assim, no somatório do ritmo geral do verso e do jogo entre acentos tónicos e massa sonora átona. Tudo

28 Note-se que o acento rítmico incide sobre uma sílaba átona, em ‘afirmar’, por isso a contei como tónica.

29 Note-se que o acento rítmico incide aqui sobre uma sílaba átona, mais uma vez, um monossílabo átono neste caso. A falha é compensada pelo jogo entre os acentos entoados, que formam uma simetria se excluirmos a última vogal tónica – formam, portanto, uma simetria imperfeita. Isso corrige-se no verso seguinte, mais interessante ritmicamente.

Page 144: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

converge sobre eles, o que deve mesmo acontecer em sextilhas ou

oitavas fechadas por duas rimas emparelhadas.

Coincidentemente – e como exigia o assunto – escreveu-se com

decassílabos heroicos a sextilha inteira.

Intertextualizações

Este esquema rimático é dito por Amorim de Carvalho muito menos belo do que o inverso ([AABCCB]) e considerado, como o anterior,

espécie rara (Carvalho, 1987 p. 48). Face às distâncias encontradas já

entre a resenha dos tratadistas e a prática literária dos artistas, convém

darmos uma vista de olhos sobre a frequência desta solução

distributiva entre os poetas ultrarromânticos de referência.

João de Lemos percorre a sequência em todos os seus requisitos nas

Canções da tarde (Lemos, 1875 p. 17), com estrofes onde entremeiam

versos decassilábicos e hexassilábicos. Mendes Leal, nos Cânticos, faz o mesmo em metros heptassilábicos, mas também só uma vez (Leal, 1858

p. 53), e Ernesto Marecos socorre-se dela, ainda uma vez, nas Folhas sem flores (Marecos, 1878 p. 299).

No Brasil, Álvares de Azevedo compõe com sextilhas heterométricas

(alternando heptassílabos com tetrassílabos nos versos 3 e 6) a curta

“cantiga de viola” «O pastor moribundo», incluída na primeira parte da

Lira dos vinte anos (Azevedo, sd p. 18). Fagundes Varela usa a mesma distribuição rimática numa parte do poema «Em toda a parte»,

particularmente no início (Varela, 2000;2002 pp. 61-62).

Parece justificar-se, neste caso, o silêncio a que Amorim de Carvalho

votara a espécie.

Outras distribuições rimáticas

Quanto às distribuições raras, ou diferentes, apresentadas pelos poetas angolenses elas parecem sugerir, predominantemente, uma extensão

dos sistemas rimáticos próprios da quadra, como é o caso de, para além

das duas já citadas, [**ABBA] (no já comentado poema de José Bernardo Ferrão), [*A*ABB] (numa composição de Cordeiro da Matta),

[ABAB*A] (em outra, de A. C. de Moraes, que só está representado no

Almanach por ela). Na verdade, mesmo aquela que imaginamos derivada da oitava camoniana também se pode imaginar derivada de uma

quadra, à qual se acrescentaram dois versos emparelhados…

Desses três esquemas, o primeiro foi usado por Castro Alves nas

Espumas flutuantes uma vez, com as rimas ‘A’ simetricamente colocadas em versos quebrados (hexassílabos) agudos (Bernardo Ferrão

Page 145: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

só não respeita esta última exigência, de agudos). Para as outras não

encontrei correspondência.

Num outro caso (um poema de Augusto G. de Castro, personagem

pouco frequente nos nossos salões), encontra-se ainda uma distribuição

que parece a extensão de um esquema praticado nas quintilhas do

corpus: [ABBAA*]. Li estrofes assim num poema da Lira dos vinte anos (Azevedo, sd p. 55), de Álvares de Azevedo (o poema V da série «A

sombra de D. Juan») – mas o verso sem rima dá-se porque é o mote e o

mote ali nunca rima. Essas estrofes de Álvares de Azevedo, aliás, são

particularíssimas – quer pela sua heterometria, quer por outras

personalizações (como a repetição da palavra-rima, geralmente no

primeiro e no quinto versos).

Numa peça de um outro autor, Alberto Carvalho, por igual única

participação lírica no Almanach no período estudado, pratica-se uma sequência que recorda a mais comum entre as sextilhas investigadas: [*AB.*AB], com a rima [B] sempre em agudo e os versos de rima aguda

sendo quebrados (hexassílabos) dos restantes:

O ANJO DO LAR À memoria de minha santa mãe Feliz aquelle que p'ra dôr acerba pode encontrar saudavel refrigerio no seio de uma mãe; ouvir da sua voz as harmonias suaves como as notas do 'salterio, que a brisa traz d'além! Sentir, quando está adormecido, na fronte contrahida por maus sonhos um beijo protector; e as larvas que criara o pesadello fugirem como vultos bem medonhos ao raiar o alvor! E ella, a nossa mãe, que nos infiltra crenças puras e santas em nossa alma que jaz em embryão! É ella que, no meio da desgraça, por nós, amiga sempre e sempre calma, a Deus faz oração! Se rimos, é ainda ella que partilha n'este mundo as venturas que gosamos, sorrindo para nós; soffremos! por nós soffre e no seu peito

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conforto salutar tambem achamos, ouvindo a sua voz! Não poder eu tambem sentir como outros, de minha santa mãe o amor profundo, nos seus beijos d'amor! Ai! não posso porque – anjo saudoso de vêr os seus irmãos, voou do mundo aos pés do Redemptor! ......................................... ......................................... Feliz aquelle que p'ra dôr acerba pode encontrar saudavel refrigerio no seio de uma mãe; ouvir da sua voz as harmonias suaves como as notas do 'salterio que a brisa traz d'alem! Alberto Carvalho (Loanda), 1880/222.

A composição recorre ao título de um poema de Pinheiro Chagas, que se

publica juntamente com o da mocidade em 1865. Nesse poema, Pinheiro Chagas utiliza oitavas em eneassílabos e hexassílabos. Nas oitavas, a rima estruturava-se de maneira a recordar a distribuição

predominante nas sextilhas: [*AAB.*CCB], rimando as rimas [B] sempre

em agudo. A esse nível, as semelhanças com este poema de Alberto

Carvalho são evidentes, quer pela existência de dois versos de rima branca, quer pela pontuação no final dos versos agudos, quer, ainda,

por essa rima em agudo se localizar a meio e no final de cada estrofe.

Possivelmente, o autor, de que desconheço mais referências, terá escrito

sob influência do livro de Pinheiro Chagas.

Por fim, numa composição de Cordeiro da Matta, encontra-se uma

distribuição não descrita pelos tratadistas ([*A*BAB]), que recorda

vagamente estrofes de quatro versos ou, mais nitidamente, dois tercetos. No entanto, o exemplar encontra-se embutido num conjunto

onde a segunda parte das estrofes só possui versos que rimam, ao

contrário da primeira metade, na qual há sempre pelo menos um verso que não rima. Esse critério de composição interna do poema é que

organiza uma tal distribuição rimática e, portanto, não estamos perante a extensão pura e simples de um esquema rimático próprio das

quadras.

Page 147: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Repare-se agora que, ao todo, encontramos sete distribuições raras,

inéditas ou diferentes das descritas por Amorim de Carvalho. Num total

de doze ocorrências parece-me frequência muito significativa, tanto

mais que alguns destes esquemas rimáticos foram praticados por

poetas importantes, como Cordeiro da Matta e José Bernardo Ferrão.

Este leque de opções distributivas para a rima é mais frequente nos poetas estudados do que nos ultrarromânticos portugueses. No entanto,

entre os brasileiros e mesmo antes do Tratado de Bilac e Passos, que diz haver uma extrema liberdade combinatória nas sextilhas, é bastante

mais comum a variação rimática e métrica nestas estrofes. A

originalidade que assim se constitui, juntamente com a frequência

maior de sextilhas no período que vai de 1878 a 1900, confirma que

estamos perante soluções estróficas caraterísticas do conhecimento

poético local – aparentadas, neste caso, com o brasileiro.

Page 148: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

As estrofes de sete versos

Ocorrências

Para as estrofes de sete versos adoto aqui o termo «septilha», tal como

instrumentalizado por Amorim de Carvalho (Carvalho, 1987 p. 49).

Apesar de haver apenas duas ocorrências, de dois colaboradores diferentes, elas não seguem os mesmos cânones: uma vai misturando a

septilha com diferentes tipos estróficos; outra constrói um poema com

uma só septilha. A segunda, que é a mais antiga (1876/301),

desenvolve-se por versos decassilábicos e a primeira, a que surge

misturada com mais tipos estróficos (1890/226), estrutura-se com

versos heptassilábicos, pelo que podíamos fazer uma distinção entre,

por exemplo, septilhas e septetos.

Em qualquer dos dois casos, porém, a ocorrência é tão pouco significativa num continente quanto no outro – o que está de acordo

com o horizonte de expetativa, onde Bilac e Passos a adjetivam como ultrapassada (“hoje antiquadas, se bem que engenhosas”). Para a

história da formação da literatura em Angola, o mais velho dos autores

(C.M., cujo inventário se reduz a dois epigramas: o primeiro escrito

predominantemente em decassílabos e o segundo, agora citado, só

nesse tipo métrico) é insignificante.

A primeira ocorrência

Quanto à estrofe onde concentra a sua sátira («Epigramma», 1876/301),

lembra Marcial:

A um cirurgião que alugava um macho muito manhoso que tinha, e não queria que se dissesse que o alugava. O teu macho, que m'emprestas por dinheiro, dá coices, morde, cae, fica pegado; mas tu da gente humana carniceiro, tens n'elle, se não érro, um bom morgado, pois sempre que se aluga o teu sendeiro, além de obteres do aluguer a parte, tens logo que fazer pela tua arte. C. M. (Rio Zaire), 1876/301.

O poema começa por uma imperfeição métrica. Mas nem por isso o

ritmo é desinteressante. Aplicando a análise aplicada antes à sextilha

de Cordeiro da Matta, podemos encontrar um jogo imperfeito mas ainda

assim muito sugestivo:

Page 149: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

(2+1+3+1+3+1)

(1+1+1+1+1+1+3+1)

(1+1+1+1+1+1+3+1)

(1+1+3+1+1+1+1+1)

(1+1+3+1+1+1+1+1)

(1+1+1+1+3+1+1+1)

(1+1+3+1+3+1) O primeiro e o último versos quase se repetem e, na verdade, a primeira

parte do primeiro (onde se nota a diferença para o último) acho que

deriva de estar ali uma sílaba a mais (a primeira), que faz um

endecassílabo em vez de um decassílabo (o verso devia ser: “teu macho, que m’emprestas por dinheiro”). Os versos 2 e 3 e os versos 4 e 5

emparelham (na medida em que apresentam o mesmo ritmo interno

entre alongadas e acentuadas, por um lado, breves e não acentuadas por outro). O sexto verso é que é único. Isso dá ao conjunto uma

sugestão de regularidade com um mínimo de imperfeição, o mínimo que

ajuda a senti-lo mais natural, mais espontâneo – portanto mais de

acordo com o paradigma romântico. Note-se que, tirando isso, o modelo

é clássico, o dos epigramas de Marcial como disse.

Em número de versos, a estrofe acompanha-se no ultrarromantismo

português pelos salões de Tomás Ribeiro, misturando-se aos Sons que passam (Ribeiro, 1908 p. 223). Mas com uma variação no esquema distributivo das rimas, bem como com versos heptassilábicos.

Maia Ferreira compõe três das suas Espontaneidades em septetos, septilhas, ou sétimas. Só numa («Num álbum»), aliás de modelação

barroca, usa os decassílabos – porém com distribuição rimática diferente no final: ABABCBC (Maia Ferreira, 2002 p. 96). As outras duas ocorrências desse poeta inaugural são, uma em heptassílabos,

outra em pentassílabos – ambas com distribuição diferente desta de

C.M.

A segunda ocorrência

No segundo poema onde aparece uma septilha, na composição de

Cordeiro da Matta, ela surge determinada pelo conjunto formado com

as outras duas estrofes, ou seja, pelos critérios seguidos para compor a totalidade em que está inserida. Podemos acompanhar por instantes os

critérios a que me referi, estudando as relações entre as três estâncias.

Começo por transcrevê-las:

Page 150: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

IDEAL Nos meus sonhos de rapaz, de varias côres dourados, em que os entes adorados nada pareciam ter de terreno e mundanal, eu, um diff'rente ideal julgava achar na mulher! Nas aureas regiões do bello onde, louco, divaguei d'esse ideal em procura, nada d'extranho encontrei! Em vão pedi á poesia a sua melhor ficção: era tudo phantasia, era tudo uma illusão!... Simples e doida chimera que affaga e nos doira a mente, eis a incoercivel imagem, qu'embora, ás vezes perfeita, muita vez vemos luzente e pouco depois desfeita!...” Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Barra do Quanza), 1890/226.

Formalização

A sequência das estâncias é a seguinte: uma de sete versos com rimas

[*AABCCB] (um prolongamento da distribuição já conhecida pela sextilha angolense); a segunda com oito versos, o do início também sem

rima, ou branco ([*A*ACDCD] – na verdade são duas quadras); a terceira com seis versos onde se coloca, tanto quanto nas outras, um

verso branco no começo ([*A*BAB]).

A terceira estrofe assenta, como a primeira, sobre uma sextina

simetricamente dividida – simetria invertida no primeiro caso (AAB | CCB) e a segunda meramente estrutural (em cada metade o verso do

meio rima com o do meio da outra metade e é diferente dos dois das

pontas: *A* | BAB); mas apesar disso o esquema distributivo difere, somando-se a essa diferença a existência de dois metros sem rima,

facto que repete o que verificamos na segunda estância. A ligação entre

a terceira estrofe e a segunda é mais subtil: ao lermos a terceira sequência procurando encavalitar nela os oito versos da segunda, a sua

fórmula passaria a ser: [*A*B (todos brancos) / *BAB (ou seja: dois

Page 151: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

versos casam, como na última quadra da segunda estrofe, de forma

cruzada, com outros dois — embora aqui haja só uma rima)]. A terceira estrofe realiza uma espécie de síntese entre as duas primeiras, processo

que me parece recorrente em Cordeiro da Matta. Tal como as anteriores,

ela interpreta-se simetricamente, quer a comparemos com a sextilha,

quer a comparemos com a oitava.

Para acentuar a noção de simetria — que me parece o conceito

geométrico apropriado para descrever a estrutura da espacialização das

rimas no poema, conceito que interage com o de síntese — o poeta

reúne na primeira estrofe, respetivamente, menos um e mais um verso

do que nas seguintes. Ele cria dessa forma dois polos: quanto ao

número de versos a estrofe de síntese é a primeira; quanto às

sequências rímicas é a terceira estrofe a de síntese. O que se passa de

um para outro polo? Os versos em branco aumentam, ou diminuem,

conforme o ponto de partida; e o primeiro nunca se casa, seja qual for a

estância, tratando-se sempre de um substantivo.

Como a distribuição rimática é idêntica nos dois polos e, na estrofe inicial, há um verso em branco, sem paralelo, podemos dizer que o

esquema da septilha segue o das sextilhas.

Intertextualizações

Isso mesmo se confirma no estudo comparativo das fontes, mais adiante pormenorizado, e que nos mostra que só João de Lemos usou a

mesma sequência de rimas em versos heptassilábicos (entre os

portugueses). Cordeiro da Matta podia-se ter inspirado nele, mas

Gonçalves Dias escreve também num esquema distributivo semelhante, porque o primeiro verso é branco e os seguintes parecem, por igual,

tirados de uma sextilha. E Castilho, no princípio talvez de tudo, compôs

uma sétima com uma sequência de rimas onde a única diferença reside

na rima do verso inicial com o segundo e o terceiro (AAABCCB). Onde

Castilho acrescenta com rima os outros acrescentam sem. Por fim Castro Alves desloca o verso sem rima para a terceira posição

(AA*BCCB), sendo que o último verso é um quebrado e essa é a única

septilha que li nas Espumas flutuantes.

Regressando a Cordeiro da Matta, uma vez que o primeiro verso não

deve rimar e se recolhe, a partir dessa leitura, uma progressão bífida (primeiro ascendente, logo a seguir descendente), então o esquema

rimático escolhido tem que se organizar nos seis metros seguintes e

com todos a casarem, em dois ramos para sustentar a ideia de simetria,

de duplicidade, interna ao esquema e ao critério geral de composição.

Page 152: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Não se julgue demasiado ardilosa esta análise. A procura de simetrias,

vê-lo-emos, é decisiva como conceito nuclearmente perseguido pelos

nossos poetas, entre eles aparecendo com destaque o nome de Cordeiro

da Matta, que nos dará exemplos idênticos a este noutros poemas. O

apuro formal e a subtileza arquitetónica reveladas pelo autor estão

patentes ainda por outra via na composição de que falo, «Ideal», pois o

primeiro verso despede-se com uma tónica sempre igual à da palavra-rima do verso seguinte, ao passo que os restantes versos em branco

terminam por uma vogal tónica não repetida por outra palavra-rima da

mesma estrofe. A subtileza, algo barroca sem dúvida, está na própria

estrutura da peça, o que não é de estranhar num meio onde

proliferavam os cultores de “logogriphos”, “charadas” e outros ardis

urdidos muitas vezes em versos de manifesto apuro métrico e rimático.

O intenso culto da formalização, que já Mário António surpreendera em

José da Silva Maia Ferreira, é uma das caraterísticas mais salientes da lírica novecentista angolense. Posto onde está, ele vem reforçar o sabor

local da lírica de Cordeiro da Matta. Mas ao mesmo tempo também comprova que a presença, ali, de uma septilha é o resultado da

organização global do poema, não está lá porque o poeta gostasse de

um género de estrofe que nunca mais utilizou e que não intertextualiza,

em rigor, com ninguém.

Septilhas nos poetas de referência

Enquanto no corpus escasseavam as septilhas, o que sucedia entre

portugueses e brasileiros?

Castilho só falava de estrofes de sete versos, não fazendo quaisquer distinções no seu interior, pois só parecia reconhecer estrofes de sete

versos heptassilábicos (Castilho, 1874 p. 135), indicando apenas uma distribuição rimática para tal tipo ([ABABBCC]), distribuição essa que

não vemos em qualquer das duas colaborações de C.M. e Cordeiro da

Matta.

No entanto, o próprio Castilho escreveu septilhas com distribuição

rimática diferente ([AAABCCB]) e com versos dodecassilábicos quebrados em octossílabos (Castilho, 1905b p. 5). Os seus discípulos diletos, e de uma forma geral os poetas ultrarromânticos,

rentabilizaram também a septilha sem distribuírem nela as rimas de

acordo com o Tratado de metrificação.

Tomás Ribeiro compõe estrofes de sete versos por duas vezes nos Sons que passam, em decassílabos alternando com hexassílabos (Ribeiro,

Page 153: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

1908 p. 33), ou só em heptassílabos (Ribeiro, 1908 p. 223) como

Cordeiro da Matta; e por três vezes no D. Jaime: em heptassílabos (Ribeiro, 1862 pp. 16, 31); em decassílabos (Ribeiro, 1862 p. 25), como

na composição de C. M.. Pinheiro Chagas faz o mesmo no Poema da mocidade, num rendilhado de versos heptassilábicos (Chagas, 1865 p.

48). João de Lemos recorre às septilhas nas Canções da tarde, em

heptassílabos (Lemos, 1875 p. 16); no segundo volume do Cancioneiro, igualmente em heptassílabos (Lemos, 1859 pp. 68, 121, 165, 171, 179),

predominando uma distribuição que inverte o final da descrita por

Castilho: [ABABCCB], também usada por Álvares de Azevedo na Lira dos vinte anos; e no terceiro volume da mesma obra, também com versos heptassilábicos, com a distribuição descrita no período anterior

(Lemos, 1866 pp. 51, 194). Soares de Passos, simbolicamente, verte em

septilhas o poema «Enfado», com um esquema rimático diferente dos

dois por nós encontrados ([ABABCCB] e igual aos de João de Lemos e

Álvares de Azevedo). Com distribuição rímica igual à de Soares de

Passos, Ernesto Marecos compõe com septilhas uma das Folhas sem flores (Marecos, 1878 p. 181), bem como algumas (Marecos, 1865 pp. 171, 187, 206) das Primeiras inspirações (onde recorre, a pp. 43, a uma sétima com distribuição inusitada: [*A*ABBA]). Finalmente, Mendes

Leal também não desconhece as septilhas, embora só uma vez as tenha

visitado (Leal, 1858 p. 91).

Gonçalves Dias utiliza a septilha alternando metros de dez sílabas com

versos de seis (Dias, 1847 p. 332), ou repetindo metros heptassilábicos

(Dias, 1848 pp. 35, 264). Fagundes Varela usa-a sem rima, no longo

poema «O exilado» (Varela, 2000;2002 pp. 13-15) – onde no entanto a estrofe ganha sete versos por inclusão do verso de refrão numa sextilha;

esporadicamente (apenas uma vez) no poema «A sombra» (Varela,

2000;2002 p. 91) do livro Cantos do ermo e da cidade (1869), com

esquema AABCCBB (outro prolongamento da sextilha). Álvares de

Azevedo recorre à septilha na Lira dos vinte anos, em exclusivo no poema «Minha musa» (Azevedo, sd p. 50), com o esquema ABABCCB (uma quadra e um terceto, ligados pela rima ‘B’), e em «Pensamentos

dela» com o mesmo esquema (Azevedo, sd p. 51). Castro Alves, como

vimos, usa uma só septilha nas Espumas flutuantes (Alves, sd). Gonçalves Crespo incide sobre a mesma espécie estrófica numa

composição saída em Miniaturas, que alterna versos hexa- e decassilábicos (Crespo, 1942 p. 72), e num poema todo ele estruturado

em septilhas com bipentassílabos (Crespo, 1942 p. 127).

Para além destes, outros autores do século XIX perfilharam os

conjuntos de sete versos: Garrett compõe em septilhas «O anjo caído»

com as Folhas (Garrett, 2000-2002 pp. 12-13); elas possuíam também

Page 154: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

uma distribuição rimática diferente das duas por nós detetadas:

[AABBCBC]. João de Deus alisa o mesmo tipo estrófico em «Boas

Noites», uma recuperação da “pastorela trovadoresca” (Nemésio, 1942 p.

146), apresentando uma distribuição rimática muito própria. Gomes

Leal, um “quase semideus” para Cordeiro da Matta (Matta, 2001 p.

139), constrói em septilhas a sua «Troça à Inglaterra», publicada no

Porto em 1890. João Penha agita a septilha, juntamente com outros tipos estróficos, no poema «A tempestade», dedicado a Antero de

Quental (Penha, 1882 p. 114). Junqueiro, nas Vozes sem eco, destila, em septilhas heptassilábicas com a distribuição rimática proposta por

Castilho, o poema «À Espanha» (Junqueiro, 1974 p. 68).

No que diz respeito a Angola, entre poemas que não são do Almanach de lembranças, há várias septilhas em Cordeiro da Matta, geralmente misturadas em composições com mais tipos estróficos (como acontece

na do corpus) e com distribuições bizarras. Numa peça feita com três septilhas em hexassílabos ele usa a seguinte sequência: AABCBCC ;

AAA(rimas imperfeitas as três)BCCB ; AABCBCC (como a primeira, transformando o conjunto numa simetria). É uma espécie de esquema

de sextilha invertido com a introdução de um verso ao meio (Matta,

2001 p. 180).

As duas septilhas do corpus: aproximação aos poetas de referência

Nestes textos há, já o vimos, duas distribuições rimáticas. A primeira

(1876/301, de C. M.) é algo parecida com a descrita por Castilho no

Tratado de metrificação: [ABABACC]; tanto numa quanto noutra reserva o poeta a rima emparelhada só para o final da estrofe, tal como sucede

nas oitavas camonianas e como fez Tomás Ribeiro no D. Jayme (Ribeiro, 1862 pp. 16, 25) – no último dos exemplos em decassílabos,

como na composição de C. M.. Esta distribuição foi glosada ainda por João de Lemos nas septilhas do poema «Lembras-te?», incluído no

terceiro volume do Cancioneiro; no seu caso, os versos são de sete sílabas métricas, ao contrário do que sucede na composição de C.M., vagamente aparentada com os epigramas XXX e XLVII de Marcial (ao

médico Roch).

A segunda ocorrência, de Cordeiro da Matta, apresenta-nos igualmente três ramos rimáticos, mas distribuídos de tal forma que ficamos

convencidos de, simplesmente, se ter acrescentado um verso a uma

sextilha ([*AABCCB]), o que está de acordo com a integração da septilha no conjunto estrófico onde se insere, como vimos atrás, e recorda uma

Page 155: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

distribuição de Maia Ferreira para as oitavas no poema «A minha terra»

(*AABCCCB).

O tipo distributivo perfilhado pelo nosso poeta não era, porém, inédito

fora de Angola. Encontramos exemplos igualmente em João de Lemos,

nas Canções da tarde (Lemos, 1875 p. 16), num poema escorrido em heptassílabos, nisso também equivalente ao de Cordeiro da Matta. Gonçalves Dias, embora não distribuindo as rimas de forma igual,

agrupa também os sete versos por um entrelaçamento rimático muito

provavelmente inferido pelos esquemas próprios das sextilhas, obtendo

dois resultados diferentes: [*ABCBCA], alternando versos deca e

hexassilábicos (Dias, 1848 p. 332), e [*ABBCCA], em septilhas

heptassilábicas (Dias, 1848 p. 264).

Esta septilha de Cordeiro da Matta encontra ainda familiaridade, ao

nível da distribuição de rimas, com as já citadas de Castilho (Castilho,

1905 p. 5): [AAABCCB], faltando apenas a primeira rima [A] na composição do poeta angolense, como disse antes. Mas a falha deve-se

à regra de composição interna segundo a qual o verso inicial nunca rima, regra que pode ter sido seguida por João de Lemos e Gonçalves

Dias, como também atrás disse.

O próprio Cordeiro da Matta, nos Delírios, usa a mesma distribuição rimática numa outra composição heteroestrófica, intitulada «Porquê?!...»

e escrita na Barra do Quanza em 1884 (Matta, 2001 pp. 59-60).

Amorim de Carvalho, contraditando o Tratado de metrificação, afirma que “nenhuma combinação rimática terá imposto a septilha” (Carvalho,

1987 p. 49), que assegura ter pouco uso entre os modernos, ao contrário do que sucedia na Idade Média que vários deles veneravam.

Cita em seguida aquele estudioso diversos exemplos, todos com três

ramos rimáticos, e nenhum coincidente com os nossos.

Amorim de Carvalho tem motivos para apontar a rarefação da septilha

“entre os modernos” – frase digna de há três ou quatro séculos. Pelo

menos no que diz respeito às obras onde pesquisei, encontrei poucos

casos, numa coincidência mais com o corpus das “colaborações angolanas”. Significativamente, a maioria deles apresentam-nos

septilhas em versos heptassilábicos, o que está de acordo com o facto de Castilho só falar em septilhas quando aborda esse tipo métrico. A

estância de Cordeiro da Matta, embora recorrendo — por razões

internas à composição do seu poema — a um esquema rimático só detetado num poema de João de Lemos, é concordante com a prática

dominante nestes poetas portugueses, ao contrário da composição de C.

M., estruturada em decassílabos. O poeta do Icolo está, portanto, mais

Page 156: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

a par, aqui, das dominantes da rarefeita septilha romântica e ultrarromântica do que o seu antecessor C.M., leitor, como disse, de

Marcial.

O decassílabo, a sátira (epigramática ou não) e uma septilha do corpus

A presença dos decassílabos nessa composição de C. M. não parece coadunar-se com a intenção satírica, tanto deste quanto do outro

epigrama subscrito pelo mesmo autor, e tanto mais quanto se trata de

decassílabos heroicos — excetuando o do sexto verso, em vários aspetos

estranho à composição.

Em Francisco Xavier de Novaes, poeta satírico por excelência, encontro

apenas um exemplo, entre os seus vários epigramas, de um epigrama

com versos decassilábicos. Trata-se de um quarteto de duas rimas

cruzadas (Novaes, 1858 p. 25). No corpus encontro apenas um exemplo de sátira em que os versos eram decassilábicos. Trata-se de um poema

de Álvaro Paes, que banaliza a morte num título de revistas de moda («Necrológio à moderna», 1882/52). Ele assenta em quartetos de duas

rimas cruzadas. A presença dos decassílabos nessa composição deve-se,

porém, ao facto de o poeta iniciar com dois versos de tom solene:

A tesoura fatal d’Átropos crua o fio d'uma vida mais cortou.

Os dois versos iniciais revestem o ambiente enunciativo de alguma

tensão dramática. Mais ainda para o leitor avisado. Um escritor hoje

desconhecido, mas cuja biografia é muito interessante nestes contextos, Luiz Rafael Soyé (1760-1831), publicou um livro também ele original,

embora o não fosse no teatro da enunciação que nos prepara: Noites jozephinas de Mirtilo: sobre a infausta morte do serenissimo senhor D. José, principe do Brazil. Dedicadas ao consternado povo Luzitano em Lisboa, na régia oficina tipográfica, em 1760. As partes do livro são «Noites», as estrofes são quartetos decassilábicos de uma rima cruzada

(nos versos ímpares, claro), a linguagem é mais natural do que as poucas referências mitológicas fariam supor e os primeiros versos da

primeira noite são estes:

Suspende, Atropos fera. ai!. ai! não cortes Vida tão preciosa... Mas... que vejo? Desgraçados de nós!.. a Parca bruta Os anéis da tesoura uniu sem pejo.

Page 157: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Introduzindo o poema por uma ambiência dramática similar obtém-se

maior efeito cómico no caso angolano, pela expetativa que se cria de um

poema de tons trágicos, aumentando a surpresa quando nos sai uma

brincadeira no lugar de uma tragédia.

Pode ser que o decassílabo surja aqui em consequência de uma predileção pessoal também. No entanto, visto que os epigramas gregos eram compostos em hexâmetros (ainda que não exclusivamente), e visto

que Castilho compara o decassílabo português ao hexâmetro grego, é

natural que, no caso de conhecer o Tratado de metrificação, o versejador tenha utilizado metros heroicos pensando que, assim, estaria mais

próximo do epigrama clássico. A presença dos decassílabos resultaria

de uma opção genológica, feita sem o propósito de inovar no uso dos

decassílabos heroicos (normalmente considerados versos próprios para

assuntos graves e sérios), como no das septilhas (normalmente escritas,

nesta época, em heptassílabos), como na composição dos epigramas,

que Bocage consagrou em versos heptassilábicos.

Page 158: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

As estrofes de oito versos Quanto às estrofes de oito versos, no conjunto dos poemas estudados

encontram-se dez ocorrências, desde o ano de 1867 até ao de 1890.

Análise métrica, rimática e respetivos corolários

Alfredo de Sousa Netto

Entre essas, há seis oitavas em decassílabos formando um poema, de

ressonâncias vagamente maçónicas, assinado por Alfredo de Souza

Netto (1882/121) – de quem só registo, no corpus, duas composições.

Transcrevo o poema para melhor elucidação do leitor:

A MORTE DE J. B. ROUSSEAU (de Lefranc de Pompignam) Quando o cantor primeiro do universo expirou sobre as ribas congeladas onde, horrorisado o Ebro, vio disperso seu corpo inane; e as ondas contristadas os membros sepultaram no alvo seio; gemeo o thracio errante, os céos gemeram, nos antros onde a nova triste veio dos animaes os prantos se verteram. Morreo tambem da França o mago Orpheo! Musa, em cambio da dôr dá um supporte, agora eleva-lhe o immortal trophéo que exige a dura, a inexoravel morte. Dá que eu com os teus rasgos de prodigio lhe avive d'este dia agra saudade, que assim Virgilio jaz longe do estygio, e o tumulo trazeis na eternidade. D'uma brilhante, mas penosa vida, depõe emfim Rousseau da vida a carga, e distante da patria tão querida só na morte o pezar, na morte o larga. D'onde os males vieram, d'onde as dôres que o coração co'a alma lhe afogaram? que abhorrimento teve, quaes errores, que inimigos, que luctas se travaram! Até quando mortaes será bastante viverem só dos odios e vingança? será a bocca nossa que constante

Page 159: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

a linguagem vomite da matança? Rio-me do inimigo derrotado, mas eis que se levanta, e eu em terra graças, perdão lhe tenho supplicado ferido co'a arma que movera a guerra. Lá dentre as sombras, lá no reino eterno inveja pérfida escalando o throno co'a escura aza offusca ao deos do Averno a luz brilhante que não vê co'entono! Que ministro, que rei, que commandante venceu seu odio, ergueo a triste sorte? Por mais que faça o cidadão prestante não é varão senão depois da morte. O Nilo vio por suas longas margens os negros habitantes do deserto insultar co'alaridos de selvagens o astro que preside ao dia certo. Van grita!... e enquanto o barbaro insolente dos pulmões arrancava mil clamores, ia no curso a lucida torrente mostrando o deos aos seus blasphemadores. Alfredo de Sousa Netto (Loanda), 1882/121.

Dados biográficos

Pouco pude saber sobre este poeta, para além de que foi professor da

“primeira cadeira” da “Escola Principal” de Luanda (Angola. Governo-

geral, 1874 pp. 462-463), pelo que deduzo ter tido instrução desenvolvida para além do episódio da fuga de Moisés para a terra

prometida (episódio que ele usa aqui para conotar o sol e Deus, como Akhenaton). O poema revela o mesmo. Por exemplo a primeira estrofe

parece tirada de Virgílio quando ele refere Orfeu (filho do rei da Trácia,

onde passa o rio Ebro) no livro IV das Geórgicas:

As mães dos cícones, desprezadas pela devoção dele (à amada), entre os ritos sagrados dos deuses e as orgias do noturno Baco, espalharam o corpo despedaçado do jovem pelos vastos campos. Então, também enquanto o trácio Ebro rolava a cabeça arrancada do pescoço marmóreo, carregando-a no meio de sua correnteza, a voz dela e a frígida língua gritavam: `Eurídice! Ah! Pobre Eurídice!`. Com a alma a fugir-lhe a chamava, as margens repetiam o nome de Eurídice por todo o rio.30

30 Vv. 520-524. Tirado de Francisco de Assis Florêncio – «O mito de Orfeu conforme o quarto livro das Geórgicas». Disponível em rede: https://docs.google.com/viewer?url=http://www.filologia.org.br/cluerj-

Page 160: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

A última estrofe retoma um conhecido episódio bíblico. No entanto estas

intertextualizações (e outras de que ainda não fui atrás) podem só

derivar de ser o poema uma versão de um homónimo de “Lefranc de

Pompignan”.

Não tendo sabido quase nada sobre Alfredo de Sousa Netto, recolhi algumas notícias de João de Sousa Netto, não sei se parente chegado.

Pelos Boletins oficiais se percebe que foi comerciante e proprietário em

Luanda, autorizado a assinar “Letras por Direitos da Alfândega no 1.º

Semestre do próximo ano de 1852” (Angola, Governo-geral, 1852 p. 2).

Continuou autorizado a assinar Letras para o 2.º semestre de 1852

(Angola, Governo-geral, 1852 p. 10). Contribuiu com 10.000 réis para

as “Exéquias fúnebres e monumento do Exm.º Conselheiro Pedro

Alexandrino da Cunha, que foi Governador Geral desta Província”, tal

como o já citado Major Joaquim Luiz Bastos (Angola, Governo-geral, 1852 p. 2). Creio que exerceu funções de Vereador na CML, pelo menos

é nomeado como tal em 27-2-1852, quando António Augusto Teixeira de Vasconcelos era o Presidente (Angola, Governo-geral, 1852 pp. 1,

2).Tendo sido eleito segundo substituto do Juiz Ordinário para o biénio

1852-53, não assumiu justamente pela escolha para Vereador da

Câmara Municipal de Luanda. Era, ainda, proprietário de umas casas de Sobrado que tinham pertencido a Arcénio Pompílio Pompeu de Carpo

(Angola, Governo-geral, 1852 pp. 3, 4). Foi também “testamenteiro do

falecido Tesoureiro-geral Francisco de Assis Pereira” (Angola, Governo-

geral, 1852 p. 2). Tratava-se, portanto, de uma figura grada na Luanda

do meio do século passado. Pela diferença nas datas, Alfredo de Souza

Netto seria sobrinho ou filho de João de Souza Netto.

Intertextualizações

A composição publicada em 1882 é, como vimos, uma versão de Lefranc

de Pompignan. Ela constitui uma reflexão métrico-filosófica sobre a morte de Rousseau. Jean-Jacques Le Franc, marquês de Pompignan,

compositor dramático mas principalmente conhecido como poeta lírico,

não raras vezes depreciado (e satirizado por Voltaire), tinha precisamente nesta composição um dos mais nobres e famosos

exemplos da sua poesia, segundo a Wikipédia em francês. Inspirava-se, para além disso, nos textos sagrados e nos autores clássicos, como era próprio do seu tempo – já vimos, de resto, o quanto isso se sente neste

poema. A imagem de um leão nos antros chorando, com que fecha a

primeira estrofe da composição original, é justamente a passagem mais sg/anais/iv/completos/mesas/M8/Francisco%2520de%2520Assis%2520Flor%25C3%25AAncio.pdf. Consultado em 8 de Julho de 2010.

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famosa do autor no século XIX e, portanto, a tradução de Souza Netto

não fica desfasada relativamente à época. Infelizmente o nosso

versejador retira a essa imagem toda a sua força. Em vez de

Et dans les antres qui gémirent Le lion répandit des pleurs.

temos

nos antros onde a nova triste veio dos animaes os prantos se verteram.

O poema possui uma distribuição rimática e uma divisão em períodos

que, exceto na primeira estrofe (para a divisão em períodos), nos remete

para a existência de duas quadras distintas em cada oitava. Todas

essas oitavas apresentam a mesma distribuição rimática:

[ABAB/CDCD], sendo normalmente separadas ao fim do quarto verso por uma indicação de final de período. A distribuição é da

responsabilidade do tradutor, pois o poema original estava posto sobre

décimas com o esquema ABABCCDEED (uma espécie de soneto sem a

primeira estrofe).

Castilho refere um esquema rimático parecido, com dois períodos de

quatro versos também, mas ao falar nas oitavas de versos

heptassilábicos e não de versos decassilábicos, como é o caso desta composição de Alfredo de Souza Netto. Nesse tipo, referido por Castilho,

a distribuição muda do primeiro para o segundo grupo de quatro

versos, de maneira a ser a rima emparelhada num período e cruzada no

outro, ou vice-versa. Dessa forma, estabelecia-se um jogo entre as duas

quadras que as ligava (ainda que tenuemente) e justificava a sua apresentação no mesmo grupo de versos. No caso deste poema, nem

isso permite ligar os dois períodos, pelo que me parece que estamos

perante duas quadras em cada estrofe, tendo por essa razão

considerado eu, neste poema, existirem realmente quadras e não

oitavas.

O simbolista brasileiro Cruz e Sousa usa por duas vezes a mesma

distribuição referida por Castilho, em oitavas indicadas como tal graficamente, nos poemas «O botão de rosa» (Sousa, 2000-2002a pp.

26,27), onde junta igualmente oito versos apenas com rimas

emparelhadas (Sousa, 2000-2002a p. 28) e oitavas iguais às de Alfredo de Souza Netto (Sousa, 2000-2002a p. 29) – num conjunto em que

experimenta os mais variados tipos estróficos e, entre eles, vários tipos

de oitavas. O mesmo poeta repete a exibição de habilidade em «Smorzando», heterométrico e heteroestrófico também, com uma oitava

Page 162: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

(a derradeira estrofe) onde se repete o esquema distributivo do nosso

versejador (Sousa, 2000-2002a pp. 120-121); aí alterna dodecassílabos

com hexassílabos e decassílabos com hexassílabos também. Pelos

motivos expostos parecem-me casos isolados e que se devem

considerar, à mesma, como dois quartetos agregados graficamente.

Entre nós, só duas das oitavas do corpus aparecem misturadas com outros tipos estróficos (1882/173, 1890/226) e o seu surgimento, se no

primeiro caso parece ocasional (de resto, trata-se do fragmento de um

poema), no segundo (1890/226) já não: a oitava inscreve-se numa

composição simétrica do poema, onde aparece a meio, antecedida por

uma septilha e seguida por uma sextilha. Em qualquer dos dois

exemplos, porém – tanto quanto sucede com o de Souza Netto – não

estamos perante opções significativas, só por si, de um “gosto” que

defina o conhecimento literário praticado nesse tempo no país.

Restantes ocorrências: formalização e intertextualizações

Das oitavas, como dos quartetos e dos sextetos, podemos dizer que também ocorrem predominantemente na segunda metade do período

considerado, mais precisamente a partir do número para 1881 e até ao

número para 1894: 13 anos de produção.

As únicas duas aparições anteriores (1867/149 e 1867/374) estão subscritas por Cândido Furtado, que as envia de Angola e não oferece

mais nenhuma estrofe desse tipo no Almanach. Este facto mostra, como sucede com os quintetos e as quintilhas, que o poeta é, tecnicamente,

extemporâneo face à restante poesia do corpus.

A recorrência de oitavas é da responsabilidade dos mais diferentes nomes, entre os quais Cordeiro da Matta (que recorre a elas mais de

uma dezena de vezes nos Delírios), Eduardo Neves e José Bernardo Ferrão – trio que reúne a colaboração mais significativa da comunidade

literária angolana do último quartel do século passado. O número de

presenças e a assinatura destes poetas fazem com que a oitava seja, a par da sextilha, um dos mais importantes tipos estróficos da poesia

angolense a seguir às estrofes de quatro versos. A sua importância na poesia ultrarromântica de referência é igualmente grande, pelo que

estamos perante mais uma coincidência entre as opções dos nossos

escritores e as daqueles que lhes podiam servir de modelo, ou tábua

comparativa.

Os tipos métricos utilizados nas oitavas são os já canónicos decassílabos (com cinco ocorrências) e seus rivais de sete sílabas (com

quatro ocorrências), excetuando uma composição (1887/279, enviada

Page 163: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

de Malange), de Abílio Augusto G. Mendanha Raposo, personagem que

não terá deixado grandes consequências na produção literária de

Malange ou de Angola. Nessas oitavas todos os versos são

eneassilábicos – o que, no entanto, não constitui novidade face à poesia

de referência, já que esse tipo de oitavas, inclusivamente no que diz

respeito à sua distribuição rimática, aparece em Soares de Passos

vertida em eneassílabos (Passos, 1984 p. 169), em Pinheiro Chagas (Chagas, 1865 p. 154), Ernesto Marecos (Marecos, 1878 pp. 59, 195,

273; Marecos, 1865 pp. 20, 149) e Guilherme Braga (Braga, 1869 p.

53), outro nome recorrente. Gonçalves Dias utiliza também esse metro

em oitavas, mas acompanhando um esquema distributivo diferente

(Dias, 1847 p. 218; Dias, 1848 p. 26).

Das cinco ocorrências com versos decassilábicos, duas pertencem às

oitavas de Cândido Furtado publicadas no número para o ano de 1867

– oitavas, como vimos, extemporâneas face ao corpus; uma terceira surge na composição de Alfredo de Souza Netto, onde as “oitavas”, como

também vimos atrás, não passam de aglomerações de estrofes de quatro versos; a quarta pertence a uma composição irregular onde uma oitava

é seguida por uma estrofe de treze versos e por outra de onze versos,

pelo que pode ser insignificante a sua presença ali. Fica-nos só a

presença das oitavas de Jorge de Lucena (1894/450) — onde, mesmo

assim, a distribuição rimática recorda a junção de duas quadras de

uma rima cruzada ([AB*B/AC*C]).

Podemos, então, afirmar que as oitavas em heptassílabos são mais

importantes na poesia estudada. Este facto afasta-as da predominância

referida por Amorim de Carvalho para a camoniana – tanto mais que,

no corpus, nenhuma das estrofes de oito versos apresenta a distribuição rimática da chamada oitava camoniana, segundo o tratadista aquela “que verdadeiramente se consagrou” (Carvalho, 1987 p. 51). No entanto,

Cordeiro da Matta recorre a ela nos Delírios, num poema sobre heptassílabos de 1876 (Matta, 2001 pp. 43-44), apesar de a espécie ter

sido reduzida explicitamente por Castilho ao uso de versos

decassilábicos (Castilho, 1874 p. 127), como na epopeia lusíada.

No entanto, desde que a distribuição rimática não seja a do cânone

português, distribuição que não me pareceu predominante na prática dos poetas ultrarromânticos de referência, são mais comuns as oitavas

em heptassílabos do que as oitavas em decassílabos (ou em qualquer

outro metro). Em Pinheiro Chagas e Tomás Ribeiro, por exemplo, dois dos discípulos diletos de Castilho, as oitavas predominantes são também as de versos heptassilábicos, tal como sucede com a poesia do

popular João de Lemos e com a lira romântica e nacionalista de

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Gonçalves Dias, o modelo talvez maior de Maia Ferreira. Gonçalves de

Magalhães usa-as em hepta e tetrassílabos (no que diz respeito a

estrofes que tenham correspondência com as nossas distribuições

rimáticas). Em Cruz e Sousa (que pouco recorreu às oitavas, só cinco

vezes entre as que distribuem as rimas segundo esquemas comuns aos

nossos) e nas Espumas flutuantes de Castro Alves encontramos algum

equilíbrio, com ligeiro domínio, porém, do verso decassilábico.

As distribuições rimáticas nas oitavas do corpus

Para o uso de heptassílabos, Castilho lembra, em passagem de que já

me socorri, que “d'estes versos faziam também umas oitavas que eram

propriamente duas quadras, com duas rimas cada uma”: [ABBACDCD],

ou vice-versa (Castilho, 1874 p. 136). No caso do poema de Cordeiro da

Matta publicado a pp. 226 do Almanach para 1890, a oitava encontrada faz uma distribuição rimática estruturalmente idêntica à de Castilho,

na medida em que, de uma para outra parte dessa estrofe composta, se passa de uma para duas rimas cruzadas, à semelhança do que fez o

parnasiano João Penha no poema «Tempestades» (Penha, 1882 p. 113). Essa distribuição é no entanto mais parecida com as de Cruz e Sousa

quando apresenta, nos oito versos, quatro rimas cruzadas

(ABABCDCD). Antes deles, Maia Ferreira, na maioria das estrofes do

poema «A minha viagem», dedicado a A. P. da Costa Jubim (com quem

se iniciara nas lides literárias) e epigrafado por Garrett, explora uma distribuição que é o inverso da que depois fez Cordeiro da Matta:

ABAB*C*C, em heptassílabos (Maia Ferreira, 2002 pp. 120-123).

A variante de “Rogado”

Numa outra peça («Receio», 1880/87), publicada por um autor insignificante entre os colaboradores (que ainda por cima se fazia

“Rogado”), encontram-se dois quartetos, graficamente separados, que,

se fossem apresentados em conjunto, formariam uma oitava idêntica à

descrita por Castilho: [ABAB/CDDC]. Mas nem sequer são graficamente

assumidos como tal:

(A D. Carolina A. da C. Oliveira) Eu era o pharisatico, o descrente, o detractor da excelsa divindade; o riso a abrir-me os labios já dormentes semilhava o sorrir da tempestade. Do céo um anjo desce e eis-me diz: Sorri á vida, vá, que a vida é linda, E eu meio acordado julgo ainda f'lecidade de mais p'ra ser feliz.

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Rogado (Africa), 1880/87.

“Rogado” assina só três poemas no corpus, o primeiro a pp. 146 do

Almanach para o ano de 1879, o segundo este que descrevo agora e o terceiro a pp. 213 do Almanach para o ano de 1881. São poemas seguidos, ao ritmo regular de um por ano, revelando-se, entre eles,

algumas semelhanças importantes: são todos escritos em versos decassilábicos e os três mudam o esquema distributivo

(estruturalmente idêntico) de uma para outra estrofe: [ABBA/CDCD] em

1879, o já citado [ABAB/CDDC] em 1880 e [A**A/*A*A] em 1881. A

reforçar esta proximidade, o primeiro e o terceiro poemas apresentam

um verso inicial idêntico:

Tem o lubrico31 olhar de Fornarina32 (1879)

Tem o languido olhar da bailadeira (1881)

As estrofes de quatro versos do “Rogado” subscritor apresentam,

portanto, uma distribuição equivalente à descrita por Castilho. Tirando

estas, porém, não há mais nenhuma ocorrência, no corpus, que se possa aproximar das descrições do Visconde – o que vem confirmar que

não estamos perante uma presença caraterística da poética local.

Três ramos rimáticos

Todas as emergências detetadas abrem três ramos rimáticos. Os

esquemas distributivos, para além dos acima citados, resumem-se ao

mesmo número (três).

O primeiro é [ABABCCCB]/[ABABCCC*], em versos decassilábicos numa das composições, de 1867, de Cândido Furtado, e para a qual só

encontro correspondência portuguesa nas oitavas de que se compõe um

poema de João de Lemos (Lemos, 1858 p. 153), nas oitavas de outro

poema de Mendes Leal (Leal, 1858 p. 261 ss), nas que surgem,

misturadas com outros tipos estróficos, numa composição de Luís

Augusto Palmeirim (Palmeirim, 1851 p. 274) — mas em versos heptassilábicos, nos três casos. Em Castro Alves podemos encontrar

uma distribuição ligeiramente parecida (*A*ACCCA, que também ocorre em Maia Ferreira), com versos heptassilábicos (Alves, sd). Em Angola é

que temos, frequentemente, uma distribuição igual, anterior ao poema

de Cândido Furtado. Surge nas Espontaneidades de Maia Ferreira, em quase todas as estrofes de «A queima de um bosque» (Maia Ferreira,

31 O Grande dicionário de Vieira sublinha o caráter escorregadio, resvaladiço, do “lúbrico”, a sua fragilidade e só no final da entrada admite que “figuradamente propenso à luxúria” – o significado que me parece fruído aqui (t. III, p. 345).

32 Cf. Castro Alves: Itália “onde na terra o amor chamou-se – Fornarina”.

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2002 pp. 70-71); em quatro oitavas do final do poema «A minha terra»,

para o que diz respeito à primeira distribuição (Maia Ferreira, 2002 pp.

30-31). Repete-o, ainda, nas seis estrofes de «Sinto!» (Maia Ferreira,

2002 pp. 87-88); em «A uns olhos que eu vi», epigrafados por “J.

Aboim”, em todas as estrofes (Maia Ferreira, 2002 pp. 127-128);

finalmente, na última estrofe do poema «A sua majestade fidelíssima a

senhora D.ª Maria II» (Maia Ferreira, 2002 p. 145). Ainda no final do poema «A minha flor!» arranja Maia Ferreira uma variação deste

esquema, que me parece original: ABAB*CCB (Maia Ferreira, 2002 p.

107).

Na composição de Cândido Furtado (1867), a segunda estrofe, que fecha

o poema (constituído só por duas oitavas), faz no último verso uma rima

imperfeita com os três anteriores:

[ponderado/condemnado/engarrafado/Bastardo]. Isso torna o esquema

da segunda oitava ainda mais raro, tanto que não encontrei exemplos de rima imperfeita, entre os poetas de referência, que me pareçam

construídos propositadamente. Nos poetas do corpus há só um caso de rima imperfeita (sendo, a imperfeição, de raiz vocálica, ao contrário do

que sucede com esta), numa quadra – e concluímos que se devia tratar

de uma coincidência casual de que o próprio poeta não se teria

apercebido.

[*ABBACCA] (na outra composição de Cândido Furtado publicada no

Almanach para o ano de 1867) e [*AAB*CCB], com quatro ocorrências, duas delas a cargo de José Bernardo Ferrão (1881/224 e 1889/133),

uma subscrita por Abílio de Mendanha (1887/279, que o autor envia de

Malanje) e outra pelo guarda-livros Eduardo Neves (1882/54), são as

distribuições que restam.

Dos dois tipos distributivos, para o primeiro ainda não encontrei

correspondência. O último tipo distributivo, tanto quantitativamente

quanto pela assinatura de Eduardo Neves e José Bernardo Ferrão, torna-se dominante na poesia estudada. O facto é corroborado pela

publicação dos Delírios, onde Cordeiro da Matta recorre a esse tipo estrófico na primeira estância do “fragmento” «O mundo», escrito em 1874 em Luanda com versos hexassilábicos (Cordeiro da Matta, 2001 p.

45). Antes destes poetas, Maia Ferreira usara a distribuição com uma

variação interessante: o quinto verso rima com os dois seguintes, fazendo o esquema *AABCCCB, em heptassílabos, no conhecido poema

«À minha terra: no momento de avistá-la depois de uma viagem»,

dedicado a Joaquim Luís Bastos (Maia Ferreira, 2002 pp. 118-119).

Uma segunda alternativa pode-se ver ainda nas Espontaneidades: AAABCCCB. Esta é uma alternativa com significado forte na nossa

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poesia do século XIX. Aparece, nas Espontaneidades, na segunda estrofe de «O seu retrato!» (Maia Ferreira, 2002 p. 65); no longo poema (11 estrofes) «Recordação!», com as rimas B sempre em agudos (Maia

Ferreira, 2002 pp. 72-74); nas quatro estrofes de «Ao meu cunhado e

amigo J. J. Cruz Forte» e de «A uma jovem!», com a rima B sempre em

agudos no segundo e só uma vez em graves no primeiro (Maia Ferreira,

2002 pp. 85-86; 92-93); reaparece nas cinco estrofes de «O meu ramo!», com o verso B sempre em agudo (Maia Ferreira, 2002 pp. 99-100); em

quatro estrofes do final do poema «Um pensamento!», encimado por

epígrafe de André Chénier (Maia Ferreira, 2002 pp. 138-139). José

Justiniano da Cruz Forte (se não o próprio Maia Ferreira), no poema

incluído nas Espontaneidades e dedicado ao aniversário da esposa, encimado por uma epígrafe de João de Lemos, usa a mesma

distribuição (Maia Ferreira, 2002 pp. 130-131). Cordeiro da Matta

recorre, em 1882, sobre heptassílabos, à mesma distribuição de Maia

Ferreira: AAABCCCB (Cordeiro da Matta, 2001 pp. 122-123). É caso, portanto, para dizer que a distribuição faz parte do património literário

angolense, apesar de não surgir entre as colaborações angolanas para o

Almanach.

O esquema [*AAB*CCB], parente próximo deste, é referido por Amorim

de Carvalho com um exemplo, em eneassílabos, de Soares de Passos, e

outro, em heptassílabos, de Catulo da Paixão Cearense, poeta popular do nordeste do Brasil que viveu de 1863 a 1946 (Carvalho, 1987 p. 53).

Na lírica escrita e erudita brasileira, Gonçalves de Magalhães, Casimiro

de Abreu e Cruz e Sousa recorrem à mesma distribuição, com

predominância para versos heptassilábicos. Ela recorda a distribuição

predominante nas sextilhas do corpus, [AABCCB] – distribuição, como vimos, igualmente comum nos poetas ultrarromânticos portugueses,

mas em particular nas sextilhas de João de Lemos e de Gonçalves Dias.

Tirando a já referida composição de Abílio de Mendanha, escrita em eneassílabos, as outras três ocorrências deste esquema distributivo

dão-se em estrofes de versos heptassilábicos. Soares de Passos utilizou ainda este esquema rimático com versos heptassilábicos (Passos, 1984

p. 59), bem como João de Lemos no Cancioneiro (Lemos, 1866 p. 90); Gonçalves Dias fê-lo profusamente (Dias, 1847 pp. 96, 201, 339, 340;

Dias, 1848 pp. 42, 55, 71, 76, 117, 127, 196); em Gonçalves Crespo

reencontramo-lo, nas Obras completas, num poema saído em

Miniaturas, e num outro provavelmente só dado à estampa com a 1ª edição das Obras e que, por isso, não terá influenciado os nossos (Crespo, 1942 pp. 80, 265); Tomás Ribeiro também se destaca por uma

frequência que o distingue dos outros, nos Sons que passam (Ribeiro, 1908 pp. 20, 78, 131, 178, 203) e no D. Jayme (Ribeiro, 1862 pp. 13,

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229); Pinheiro Chagas por igual, no Poema da mocidade, apenas menos

uma vez que Tomás Ribeiro (Chagas, 1865 pp. 55, 63, 79, 87, 105, 113); Ernesto Marecos idem, aliás na sua lírica esse tipo é dominante,

surgindo em estrofes de versos heptassilábicos, eneassilábicos e

decassilábicos; Guilherme Braga, onde o tipo é também dominante,

usa-o em versos eneassilábicos e heptassilábicos; e, finalmente, Mendes

Leal (Leal, 1858 p. 113).

No Brasil Castro Alves usou por quatro vezes o mesmo esquema nas

Espumas flutuantes, uma das quais em heptassílabos, outra em hexassílabos e as outras duas em decassílabos (Alves, sd). Junqueira

Freire tinha recorrido a ele nas Inspirações do claustro, mas com pentassílabos, em «O misantropo» e «O renegado: canção do judeu»

(Freire, 1867 pp. 46-52, 111-121), sempre com as rimas B em agudos e

um ritmo binário (2+3); com heptassílabos ele recorre à mesma

distribuição rimática no poema «O apóstata: canção do católico»,

também com as rimas B em agudos (Freire, 1867 pp. 141-143).

Os poetas que mais frequentam este género distributivo são, destacadamente, Gonçalves Dias, Tomás Ribeiro e Pinheiro Chagas, o

que nos permite esboçar um quadro mais restrito de referências

determinantes, de resto já notado noutras ocasiões, e de quando em

quando alargado a João de Lemos ou Guilherme Braga, neste caso a Ernesto Marecos, cuja prática se aproxima de uma terra onde viveu e

na qual fundou o primeiro jornal literário.

Das outras sequências distributivas nenhuma aparece referida pelos

tratadistas, ou praticada pelos próceres do ultrarromantismo luso-brasileiro até onde o explorei. Nessas outras sequências a criatividade

formal dos nossos autores pôde, portanto, expandir-se livremente e eles

aproveitaram-na, então como em outros momentos antes mencionados.

O que demonstra que, em o cânone o permitindo, os colaboradores,

angolenses ou residentes, incrustavam no seu conservadorismo laivos

de imaginação, engenho e renovação.

Estruturas de personalização

Nas oitavas dos poetas de referência a composição dos versos obedece, por vezes, às regras de um jogo que requer o culto exímio da habilidade:

a estrofe dividia-se em dois períodos, o primeiro terminando

rigorosamente a meio; a rima [B] devia assentar em palavras agudas e as restantes em graves, podendo ser esdrúxulos ou não os termos que

não rimavam (versos 1 e 5).

Page 169: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

No corpus, a regra relativa à divisão da estrofe em dois períodos é

respeitada por Eduardo Neves e por Abílio de Mendanha. A regra das terminações em agudo já só é respeitada por Abílio de Mendanha, num

poema que tende a repetir um ritmo ternário (3+3+3) mas não sempre,

ou seja: faz isso mesclando a repetição com a informação, variação ou

imperfeição. Nesse poema, onde o número três tem uma função

estruturante, espalha-se a rima nas três oitavas de maneira a que, na primeira e na última, ela seja imperfeita por “diferença nos sons

vocálicos” (Carvalho, 1987 p. 312), repetindo-se parcialmente o som das

rimas em agudo da primeira para a terceira estrofe ([céus/adeus] passa

a [deu/céu]). Respeitando as determinações explícitas do jogo, ele ainda

assim não faz uma coincidência total dos sons envolvidos e devia

consegui-lo, se quisesse manter-se fiel ao cânone da escola

ultrarromântica. Ao não conseguir realizou, no entanto, uma simetria,

determinada justamente pela perfeição-imperfeição da rima:

AMOR E PERDÃO Eras tu a mulher qu'eu amava já não vives senão em minh'alma, recebeste dos anjos a palma, que te deram no reino dos ceos!... No suspiro final que exhalaste, sem alento na voz que morria, escutei-te da bocca, já fria escutei, ai de mim, teu adeus!... Foste tu a mulher qu'eu amei... como tu era firme e constante, como tu não mudava d'amante, nem de gelo era o meu coração! mas teus meigos e lânguidos olhos, se julgavam os meus criminosos; para mim se volviam piedosos... transbordando d'amor e perdão! Ai!... perdi a mulher qu'eu amava Só me resta uma sombra querida que me encanta e entristece na vida, ao lembrar-me do amor que me deu!... mas eu creio que morta na terra foi por Deus, convertida em estrella, e saudosa de mim... como eu d'ella... nosso olhar lá se encontra no céo! Abílio Augusto G. Mendanha Raposo (Malange - Africa Occidental), 1887/279.

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Se assinalarmos com sinal negativo [-] a imperfeição e com sinal

positivo [+] a perfeição fica-nos esta sequência:

- + -

– em que o lugar do espelho coincide com o sinal de mais.

Eduardo Neves também realiza o mesmo tipo de jogo e desvio, num dos

aspetos de que falo:

BEMVINDO Na occasião em que recebi o A. de Lembranças de 1881 Ao Sr. / Dr. Antonio X. Rodrigues Cordeiro Bem vindo sejas, livrinho, á patria das africanas! onde há côcos e bananas os livros não são de mais. Rescendendo mil perfumes de tão variados artigos, vens visitar os amigos como um bom filho seus paes. Envolto na capa humilde que te dão ao vir ao mundo, lá vens facêto, ou profundo trazer-nos varia instrucção: A um, em sabio concelho, vens o estudo lembrar, se quer um dia alcançar entrada no teu salão: A outro, nóvel cantor, como o auctor destas linhas, com sabias mão encaminhas das letras na varia senda. Lá vens a outro a lembrar mais cuidado nas charadas; não sendo bem meditadas pouco ou nada as recomenda. Aquell'outro mais ditoso que já foi á «salá» nobre, lá corre a ver se descobre se foi de novo attendido; E se vê alli seu nome

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assignando algum artigo, fica então mais teu amigo, É-te mais agradecido. Na tua amena leitura, todos distracção recebem, e sem distinção te devem, horas de encanto e prazer. Nas mãos do pobre és riqueza, nas mãos do rico és thesouro, nas do infante és livro d'oiro, sem a ninguem offender. Por isso longe da terra onde vi a luz do dia, recebo com alegria tua visita annual. Mas é tão pouco n'um anno uma visita somente!... ficaria mais contente se ao menos fosses mensal... É de suppor, bem o creio, que nunca seja attendido este singelo pedido que muitos já têem feito; mas ao menos na visita que no anno nos fizeres vem mais cedo, se quizeres, inda ser-nos mais acceito. Sê pois bemvindo, almanach á patria das africanas! onde ha côcos e bananas os livros não são demais. Rescendendo mil perfumes de tão variados artigos, vens visitar os amigos amigos dos mais leaes. Eduardo Neves (Loanda), 1882/54.

O poema tem um ritmo menos regular que o de Abílio de Mendanha, oscilando entre unidades binárias e ternárias (com tendência para

aquelas e chamando binárias às unidades que juntam uma sílaba não

acentuada com outra acentuada). Essa irregularidade parece um

critério principal da composição de todo o conjunto.

Page 172: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Repare-se que as primeiras seis estrofes alternam, duas a duas, rimas

em agudo nos versos quatro e oito (estrofes 1,2,5 e 6) e rimas em grave

nos mesmos versos (estrofes 3 e 4), orquestrando assim uma primeira

simetria, do mesmo tipo da anterior, alicerçada (como parte significativa

dos versos) num ritmo binário. Se conotamos ao sinal de mais o valor

de “canónico” (rima em agudo) e ao de menos o de uma “fuga”, podemos

representá-la através da seguinte fórmula:

+ + | - - | + +, figurando uma simetria: + + - | - + +

A figura, porém, vai complexificar-se, pois essas não correspondem à

totalidade da peça: as duas últimas estrofes ainda alternam entre si a

rima em agudo (estrofe 8) e a rima em grave (estrofe 7). Se excluirmos a

primeira e a última estâncias (aquela rimando em agudo, esta em grave)

fica uma simetria invertida, realizada pela alternância entre rimas [B]

agudas e graves:

Aguda | Grave | Grave] x [Aguda | Aguda | Grave

– onde aparecia aguda na primeira metade aparece grave na segunda e vice-versa.

Se agora tornarmos a juntar a primeira e a última estrofes ao conjunto,

configura-se-nos uma simetria invertida e duplicada:

{[Aguda|Aguda|Grave|Grave]x [Aguda|Aguda|Grave|Grave]}

Re-encontramos assim um ritmo binário e ficamos perante um jogo de

espelhos, como se vê construído sobre a alternância entre cumprimento e incumprimento da regra. Em poetas-charadistas, mais a mais

convivendo com tradições “adivinhancísticas” (Oliveira, 2007), isto não é

de estranhar nem de ignorar.

Outro artífice que domina a técnica da fuga personalizante às regras do

jogo é José Bernardo Ferrão. As suas variações organizam-se de

maneira a darem-nos igualmente uma imagem de simetria, uma

imagem circular e espelhada.

Page 173: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Numa composição («Confesso-me», 1881/224), votada ao misterioso

amor que assusta os déspotas, a simetria podia não existir inicialmente,

ou possuir outra configuração, visto que a quinta e a sexta estrofes se

encontram separadas por uma linha pontuada, recurso gráfico

normalmente usado para indicar a falha de uma ou mais estrofes, ou de

um ou mais versos:

Do templo ante as luzes pálidas por noite alegre, festiva, noite em que ninguém se esquiva a velar, esp'rando um Deus! Por entre os hymnos e cânticos de psalmos e profecias que anunciam o Messias, que o inferno cerra, abre os céos; Ante a magestade biblica do natal do Redemptor, onde o mysterio d'amor auspicía ao mundo affagos mysterio que aterra os déspotas, que já no céo se revela a fulgente e magra estrella que a Bethlem levou os Magos. Por entre os mil reverbéros já trémulos, e já baços das luzes, eu vi os traços d'um vulto tão seductor talvez aéreo, phantastico, que descesse d'entre as nuvens ou virgem que algum Rubens ali viesse depôr. Os cabelos tinha fulgidos tal como a Virgem-mãe as madeiras d'ouro tem nas pinturas immortaes! Por entre as fitas róseas dos labios, eu vi no fundo, pérolas taes que no mundo nunca vi outras eguaes! Para em tudo ser etherea nos olhos tinha a celeste linda côr, de que se veste ás vezes o mar e o céo; no porte, apesar de angélico,

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certo ar de mando e culto Ai manda-me, excelso vulto, o teu escravo sou eu! .......................................... Confesso-me, quando estatica curvada sobre Jesus, vi que beijavas... a luz perdi dos olhos... desterra, ó Deus justo, Deus magnanimo de mim este pensamento, mas, em peccado, um momento, troquei o céo pela terra! José Bernardo Ferrão (Loanda), 1881/224.

No entanto, tal como o poema nos aparece, as estrofes (seis no total)

encontram-se organizadas de modo a que na primeira, na quarta e na

quinta, os períodos as dividam ao meio, o mesmo não sucedendo com as estrofes dois, três e seis, a cada uma das quais corresponde apenas

um período (estâncias). Daí podemos extrair uma fórmula de simetria

invertida, idêntica à de Eduardo Neves, marcando-se à mesma com o

sinal de mais o cumprimento da regra e com o de menos a variação:

+ - - | + + -

Passemos agora ao poema saído no Almanach para o ano de 1889 (p. 133), peça oratória sui generis, que antecipa em um ano o Ultimatum sendo, talvez, em termos lexicais e ideológicos, a mais avançada do seu

tempo e lugar:

(No Album de Eduardo Neves) Serpente immensa de prata coleando em campo verde, Cauda que ao longe se perde nos inhospitos sertões, cabeça posta no oceano torcendo o corpo em mil voltas, e co'as escamas revoltas rasgando o solo em golphões! Tal és quando a tempestade do céo rompe as cataratas

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e das immensas cascatas rolam liquidas montanhas! Trazendo no bojo enorme que ruge como as crateras cabanas, colonos, feras arvores, troncos e penhas! Mas logo que o sol ardente as aguas bebe do espaço, brilhas qual polido aço mal se vê teu deslisar! Queria stateficar-te e sobre o dorço em torpor vagões aos mil de vapor velozes fazer rolar. E da tua foz ao teu berço mandar-te em milhares d'expressos força, justiça, e progresso, tres centelhas redemptoras da tua aurora futura, que espantará os milhafres, e fará das hordas cafres legiões trabalhadoras. Mas enquanto esta hora tarda E o olho vivo domina, deslisa pela campina no teu selvagem correr! E nos concelhos que te orlam onde mandam prestameiros (1) do olho vivo rendeiros deixa a miseria crescer. 'Té que um dia o povo honrado (embora o mova a cobiça) venha com força e justiça a este paiz sem donos castigar crimes, infamias solver vergonhas com brios e levar povos vadios a serem uteis colonos! Se acaso essa aurora brilha e um dia mão redemptora aqui aportar senhora, eu saudo este paiz! Eu! que contra o estrangeiro dava sangue e vida minha,

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entrouxo a malla mesquinha parto vingado, feliz!! Mas enquanto essa aurora tarda e o olho vivo domina deslisa pela campina no teu selvagem correr e nos concelhos que te orlam onde mandam prestameiros do olho vivo rendeiros deixa a miseria crescer.” (1) “Refere-se aos chefes e mais auctoridades dos concelhos do interior que só tratam de locupletar-se importando-lhes pouco os meios. Não há regra sem excepção” José Bernardo Ferrão (Dondo - Margens do Quanza), 1889/133.

Como se vê, nas quatro estrofes iniciais, a primeira e a quarta não fazem a divisão regulamentar em dois períodos, a segunda e a terceira

fazem-na, resultando a sequência numa fórmula igual à simetria das

rimas interpoladas:

- + | + - (na rima interpolada temos [AB | BA])

Nas últimas quatro estrofes alterna-se uma onde se faz a divisão em períodos (nº 5 e 7) com outra onde isso não sucede (nº 6 e 8),

resultando numa distribuição cruzada, uma simetria invertida,

formulável como as sequências rímicas cruzadas:

[+ - | + -] (na rima cruzada temos [AB | AB])

Ainda nesta composição, quanto à regra relativa às rimas em agudo, os

versos de rima [B] cruzam, alternadamente, estrofes com a rima em agudo e a rima em grave, só fugindo à regra a última estância, o que

sucede por repetir ela a quinta, que faz a rima com palavras agudas. A

ideia geométrica desenhada pelo jogo de alternâncias entre a regra e a variação é agora a de uma sequência relativamente longa de oposições

Page 177: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

binárias, recordando a figura da espiral e, mais uma vez, a distribuição

das rimas cruzadas.

Dada a familiaridade das sextilhas com as oitavas, imposta neste

particular pelas mesmas regras para os versos 3 e 6 das sextilhas,

procedi à comparação com o que se passava nas sextilhas a partir de

1878, ou seja, do advento público e notório da geração do Jornal de Loanda.

Pegando numa composição do mesmo poeta (J. B. Ferrão, 1878: 202),

reparei que o incumprimento relativo às rimas em agudos ou graves não

desenhava nenhuma figura. Mas o jogo entre cumprimento e

incumprimento da regra relativa ao final de período no verso 3

desenhava uma nova simetria. Se dividirmos ao meio as 12 estrofes do

poema, as primeiras seis formam a seguinte simetria:

- + +|+ + -

As últimas seis, por seu turno, formam a seguinte simetria, invertida:

- - + | - ++

Parti de 1878, mas a constituição de figuras simétricas opositivas

atravessa todo o corpus com uma frequência maior do que nas obras de referência. Logo na colaboração seguinte à de que falei mais acima [«Canto, riso, somno e amor / (versão)»)1859/338], Cândido Furtado

organiza as rimas de maneira a que, a meio do poema (estrofe 5) e no final, uma das terminações seja “amor” (nos versos ímpares da estrofe

do meio e nos versos pares da última estrofe), sendo que, na primeira

estrofe, uma das palavras-rima (no verso par) é “coração”:

Se em meus braços recostada tu soltas meiga canção, não sentes que te responde de manso o meu coração? É que o teu canto recorda horas de goso sem fim... canta, pois, anjo innocente, canta sempre junto a mim.

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Se sorris, brinca em teus lábios o anjo d'amor e paz, que d'alma a negra suspeita n'um só repente desfaz: É que o teu sorriso revela candura de um seraphim!... sorri, pois, anjo innocente, sorri sempre junto a mim. Se tu dormes socegada, casta virgem do Senhor, inda o teu halito puro me faz protestos d'amor! É que então arqueja livre teu seio d'alvo jasmim!... dorme, pois, anjo innocente, dorme sempre junto a mim. Se tu me dizes «eu te amo», eu julgo ver... oh! meu Deus!... em torno de mim na terra o eden dos sonhos meus! É que o puro amor celeste nos teus olhos achar vim: ama, pois, anjo innocente, ama sempre junto a mim. Vê que dentro do teu peito quiz Deus eterno encerrar tudo que seduz na terra, tudo que pôde encantar: Que os bens reaes da existencia, os gosos todos sem dor, em quatro vozes se exprimem: «canto, riso, somno e amor». João Cândido Furtado (Porto), 1859/338.

A distribuição das rimas pobres e ricas está igualmente bem organizada na peça, correspondendo a cada estrofe com rima pobre três de rima

rica, se excetuarmos a última, que faz rima pobre também e, segundo a regra, a devia tornar rica. A exceção explica-se porque, precisamente,

essa derradeira estrofe repete a fórmula de todas as outras pares

conjugando-a ao título, numa espécie de síntese final em modo que

Page 179: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

lembra as estruturas de mote e glosa. Com efeito, o artista espalha as

palavras do título uma no princípio de cada quarto verso das estrofes

pares, à vez, e seguidas sempre pela expressão “junto a mim”; na última

estância reúne todas essas palavras, como estão no título, elidindo a

absorvente expressão, o que faz com que o terminus não permita a rima

rica.

Também Cordeiro da Matta, cujo pai foi professor e escrivão em Icolo-e-

Bengo durante a infância paradisíaca do poeta, não foge a esta regra de

composição. Por exemplo no poema intitulado «A uma joven» (1881/45).

Nele cruza, com nitidez geométrica, as rimas graves e agudas, fazendo

coincidir a acentuação com o jogo entre rimas pobres e ricas, de tal

maneira que temos, nas três estrofes do poema, rimas agudas e ricas

nos versos ímpares da primeira, graves e pobres nos mesmos versos da

segunda estrofe, e agudas e pobres nos da terceira, que reúne assim

uma caraterística de cada par das duas anteriores:

És bella!… Do teu olhar Na doce luz resplandece, Um brilho, que se fitar… Deslumbra! offusca! enlouquece! … Tens das virgens decantadas Tudo o que mata e inebria!… As fórmas esculpturadas- Cheias de encanto e magia!... Olhar p'ra ti sem sentir No peito o fogo sagrado - É a Cupido mentir É ser do amor... renegado!...

Quanto às rimas dos versos pares, elas são sempre graves mas

alternam pobres nas estrofes das pontas com rica na do meio.

Logo a seguir, no mesmo número do Almanach (1881/180), Álvaro Paes subscreve «Africana»:

Tens nos olhos um abysmo de paixões e de ternura; leio n'elles quando scismo em desejada ventura. Às vezes féros, irados, outras meigos, divinaes;

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como os brilhos prateados d'estas noites tropicaes. O collo esbelto e gentil nas fórmas lindas, suaves, meio occulto em véo subtil, é como o collo das aves. Se não tens do jaspe a côr, é de veludo e setim; palpita mais em amor, eterno, ardente, sem fim! Se em ciúmes vingativa, tens da leõa a feição, tambem a chamma é mais viva quando se ateia a paixão. Ora meiga, ora sedenta da febre d'infindo amor; és como a calma, a tormenta, destas plagas de equador. Alvaro Paes (Loanda), 1881/180.

São seis quadras organizadas igualmente em simetria a partir da

distribuição de rimas ricas pelos versos ímpares. Se o leitor reparar, os

versos ímpares da primeira e da última estrofes possuem tal tipo de

rima, como que abrindo e fechando a composição.

Nem sempre a estruturação em simetria surge para substituir uma

regra comum. No entanto, sempre que as simetrias são construídas

sobre a distribuição das rimas graves, agudas e esdrúxulas (no corpus isso ocorre dezasseis vezes), o poeta rompe com a regra descrita por

Castilho segundo a qual, nas estrofes regulares, “onde na primeira

estrophe ficarem versos graves, onde agudos, onde exdruxulos, devem egualmente cair em todas as outras estrophes, versos graves, versos

agudos e versos exdruxulos” (Castilho, 1874 p. 142).

Podemos, pois, postular a hipótese de que as oitavas encontradas no

corpus, quando não respeitam as duas constantes de composição acima referidas (a divisão em dois períodos sintáticos ao fim do quarto verso e

a rima em agudo nos versos de segunda rima), organizam as estrofes de

maneira a não parecer ocasional a alternância entre o cumprimento e o incumprimento da regra. Fica assim desenhada uma estrutura que

Page 181: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

podíamos chamar “de imperfeição”, na medida em que ela surge para

substituir o incumprimento de uma regra; ou “de personalização”,

porque foge ao cânone sugerindo a existência de outro meramente

pessoal, se não só pontual. O aparecimento de “estruturas de

personalização” não deve, porém, ficar condicionado ao incumprimento

de uma regra, visto que, no corpus, é comum surgirem tais estruturas independentemente de virem cobrir uma “falta” a um preceito técnico. O que as carateriza, de forma geral, é, como nos casos estudados, a

configuração de vários tipos de simetrias, evocando os conjuntos figuras

como o círculo ou a elipse.

Como disse atrás, isto não acontece apenas com as oitavas. Logo num

dos primeiros poemas vindos de Angola e publicados no Almanach de lembranças (1857/345) deparamos com um primeiro exemplo de distribuição simétrica das rimas: na primeira metade do poema (nas

primeiras sete estrofes) de duas em duas estâncias surge uma com repetição das palavras-rima da primeira, ou seja, nas estrofes 1, 4 e 7

repetem-se, em posição de rima, as palavras “vinho” e “S. Martinho”, não tornando a suceder isso na segunda metade do poema. Portanto,

não só a peça está organizada simetricamente como também, dentro da

simetria inicial, encontramos outras figurações opositivas (na primeira

metade do poema).

Muitos mais exemplos podia citar, mas penso que sejam suficientes os

referidos para demonstrar a pertinência desse tipo de estrutura nas

peças estudadas. A percentagem da sua frequência, face à totalidade

das colaborações, parece-me demasiado elevada se a compararmos com

os poetas modelares. O acento posto na organização de estruturas de

personalização, quase todas simétricas, acorda-se à anterioridade lírica de José da Silva Maia Ferreira, em cuja poesia Mário António observara

já, não propriamente as simetrias, mas o apuro habilidoso que nelas

resulta.

Em complemento o cultivo, quer de charadas e logogriphos, quer da sua decifração, acorda-se ao gosto engenhoso, à composição de figuras

escondidas, que reforçam o sentido de mistério, de oculto e, portanto,

de sabedoria que já estava presente, no que à sabedoria diz respeito, pela imagem da simetria que, remetendo para o círculo, nos sugere uma

ideia de perfeição. A comprovada expansão da Maçonaria, da

Carbonária, da Kuribeka, no território, deve ter acentuado este gosto pelo ensinamento cifrado e geometrizado e pela procura de fazer

coincidir, na materialidade textual (e gráfica), um símbolo do absoluto.

Estes são, pois, os desenhos na areia dos nossos poetas.

Page 182: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Breve comparação com as obras de referência

A colocação das estrofes em função do cumprimento e do incumprimen-

to da regra é preparada igualmente por poetas ultrarromânticos,

embora em menor escala e não, que tenha visto, com oitavas.

António Feliciano de Castilho, o mestre do ultrarromantismo, faz isso com a rima emparelhada dos quartetos bipentassilábicos que escreveu

em 1849 e publicou nas Estreias poético-musicais (Castilho, 1907 p. 95). Aí, a rima [B], emparelhada, é grave nas estrofes pares e aguda nas

estrofes ímpares. Temos portanto a mesma sequência binária do último

caso atrás citado.

Mendes Leal, numa série de oito quartetos, organiza a simetria de

maneira a que, nos quatro primeiros, se alternem versos agudos e

graves em coincidência com os quebrados, que são os metros pares de cada estrofe; nos últimos quatro quartetos os versos são todos graves

(Leal, 1858 p. 178). Temos aqui uma estrutura bicéfala, tal como em

José Bernardo Ferrão.

Numa outra peça os quatro quartetos organizam-se de maneira a que as estrofes ímpares façam a rima [B] em grave e com os sons [-udo/-undo],

ao passo que as estrofes pares fazem a mesma rima com palavras

agudas e com o som [-ão] (Leal, 1858 p. 184).

Gonçalves Dias, por seu turno, organiza um poema de modo a que,

num total de treze estrofes, só a sétima não faça a rima [B] em agudo –

tratando-se, coincidentemente, de sextilhas cuja distribuição rimática

recorda a destas oitavas: [AABCCB] (Dias, 1848 p. 130).

Na primeira secção de um conhecido poema de Álvares de Azevedo, «Um

cadáver de poeta» (encimado por uma citação de George Sand),

encontramos sextilhas que misturam deca- e hexassílabos, coincidindo

os hexassílabos com finais de períodos nos versos 3 e 6 (Azevedo, sd p. 28). Aí o poeta alterna rimas graves e agudas numa sequência cruzada,

formando portanto uma simetria perfeita:

Grave Aguda | Aguda Grave

No primeiro poema da primeira parte da Lira dos vinte anos, intitulado «No mar» (Azevedo, sd p. 6), faz o mesmo poeta uma sequência de nove

Page 183: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

estrofes que, relativamente ao cumprimento-incumprimento da regra de

pontuar o terceiro verso, dá o seguinte resultado:

- - + + + + - - |+

Se excluirmos a última estrofe (que repete a primeira, sugerindo-nos

um tempo ou ritmo circular) temos uma simetria perfeita.

Num livro que já não é ultrarromântico, A morte de D. João, de Guerra Junqueiro, o autor faz exatamente o mesmo que fez Castilho no poema

acima citado, embora com a rima [B] das sextilhas heptassilábicas a

que aí recorre e que apresentam uma distribuição idêntica também à

destas oitavas: [AABCCB] (Junqueiro, 1974 p. 267).

Recorrendo a critérios diferentes, outros poetas românticos construíram suas simetrias e engenhosidades. Trago um exemplo de Castro Alves, o

poema intitulado «A duas flores» (Alves, sd pp. 82, 83). No início

aparece-nos um terceto com distribuição AAB. As estrofes seguintes são

sextilhas com a distribuição CCBDDE, de maneira que os versos que

não rimam na estrofe anterior fazem rima com o fim do primeiro terceto da seguinte. Para fechar a composição o poeta deixa-nos com um

terceto semelhante ao primeiro (AAB), em que porém o verso B rima

com o último verso da sextilha anterior. Como não é comprido, passo a

transcrever, para concretizar a imaginação do leitor:

São duas flores unidas, São duas rosas nascidas Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol. Unidas, bem como as penas Das duas asas pequenas De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu. Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos

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Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar. Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor!

A regra é levada sistematicamente até ao fim, de maneira que se torna

necessária uma última estrofe, de 3 versos como a inicial, para ‘fechar’ a rima do último verso da sextilha anterior. Fechando como inicia, o

poeta consegue insinuar em nós a imagem de uma estrutura circular, a

mesma que organiza as simetrias.

Page 185: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

As estrofes de dez versos

A décima, nome que dou aqui ao agrupamento de dez versos, é a

primeira solução estrófica publicada no Almanach e subscrita por alguém seguramente relacionado com Angola. Apesar de esse alguém

ser um lírico de referência, a sua escolha não vai tornar-se comum no

corpus e só ressurge entre 1881 e 1887, aparecendo em 1865 uma décima isolada no final de uma composição de Cândido Furtado, facto

que não tem sequência nem significado por si.

Das sete ocorrências encontradas, duas são de Cândido Furtado

(1865/283 e 1881/66), a última delas imitação d’ «A lua de Londres» de

João de Lemos e a primeira extemporânea relativamente às dos outros versificadores. A aparição de 1865 possui um esquema distributivo

idêntico ao da composição de 1881, com a única diferença de, nesse primeiro poema, os quatro versos iniciais fazerem uma rima cruzada,

como sucede com Maia Ferreira, enquanto no segundo caso fazem duas

rimas cruzadas.

Esta ocorrência de 1865 fecha uma composição em quintilhas cuja estrutura retórica nos remete para a oratória jurídica, recordando peças

idênticas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende (1516), como as da

polémica do “cuidar e sospirar”. O tipo repete-se, no corpus, em outra composição de Cândido Furtado, não sendo seguido por mais ninguém.

A décima indicia portanto, nesse primeiro momento, a preferência pelas

estrofes de cinco versos, que ela duplica.

A segunda emergência de Cândido Furtado (1881/66) resultará, como disse, da imitação do poema de João de Lemos, visto que o segue em

tudo: dez versos heptassilábicos rimando em dois sistemas de duas rimas cruzadas intercalados por dois versos emparelhados. A única diferença é que, na composição de Cândido Furtado, há onze estrofes,

ao passo que à lua de Londres bastam nove para alumiar o que diz. A

presença da décima aqui não nos indica, pois, uma preferência pessoal, apenas uma imitação colada à sua fonte, numa espécie de plágio

formal, que visa acentuar o contraste entre a lua de Londres (mal lida,

visto que o liberalismo previsível de Cândido Furtado não percebeu porque é que ela era o contraste da portuguesa) e o sol de África (de um

brilho que o cegava por excesso).

Page 186: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Dos outros cinco espécimes encontrados, a primeira décima é a de

Ernesto Marecos (1856/165), a tal que não terá sido escrita em Angola;

a segunda (1880/35) é de José Bernardo Ferrão; a terceira (1880/214)

vem subscrita por Eduardo Neves; as duas últimas são de A. G. de

Castro e de A. J. Machado (S1887/55, misturada com outros tipos

estróficos; e S1887/162, onde as décimas glosam um mote composto

por uma quadra).

A composição de A. J. Machado (S1887/162), com uma estrutura de

mote e glosa idêntica à dos clássicos portugueses, é anacrónica face aos

restantes poemas estudados, onde só um se parece com este,

precisamente o de A. G. de Castro (S1887/55), autor tão insignificante

quanto A. J. Machado. A própria emergência desta espécie formal, como

vimos ao falar das quadras misturadas com outros tipos estróficos, é

pouco importante para o nosso objetivo. O mote surge numa situação

inusitada e a glosa, ainda que feita em décimas, não é rigorosamente clássica (a primeira décima não faz glosa), aparecendo envolvida por

outra composição (em quadras e quartetos) — portanto numa totalidade

por igual inusitada para a formulação típica do classicismo europeu.

Em resumo: destes cinco poemas, dois deles não contam, pois possuem

referências retóricas e literárias em épocas mais recuadas da poesia

lírica portuguesa, sendo protagonizados por subscritores insignificantes e sendo esteticamente insignificantes também. Fica-nos, assim, apenas,

a décima de Ernesto Marecos, a par das publicadas no número para

1880 por Eduardo Neves e Bernardo Ferrão, como possíveis práticas

significativas para sintonizarmos o conhecimento literário local no que

diz respeito aos agrupamentos de dez versos que o não sejam apenas

graficamente.

Das três ocorrências de décimas a de Marecos surge isoladamente,

constituindo sozinha uma poema cujos tema e motivos se podem incluir

inteiramente nos da escola ultrarromântica, tal como as décimas de

José Bernardo Ferrão. No entanto, essa décima inicial do corpus pertence a um poema, como disse, homónimo, datado de 1854,

publicado nas Primeiras inspirações. O poema foi começado estando o autor em Portugal, antes da sua ida para Angola, razão que explica o

facto de o mesmo não se localizar em Luanda, como seria de esperar

estando fora do seu endereço habitual, ou da sua ‘pátria’.

Quer dizer que, das décimas exibidas, só os dois ensaios de Eduardo Neves e Bernardo Ferrão, publicados no número para 1880, são

realmente representativos. São-no pela originalidade, por pertencerem a

poetas importantes no corpus e por não recorrerem a uma estrutura

Page 187: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

caída em desuso nesta época. O que é sintomático das suas referências

literárias específicas, de espetro mais vasto, que talvez bebessem nas

mesmas águas do condoreirismo brasileiro, das décadas de 50 a 70 do

século XIX (AAVV, 1987 p. 116). Nos Delírios Cordeiro da Matta recorre também a décimas, mas pouco e, por vezes, disfarçadamente. Antes

deles, em Angola e no Brasil, Maia Ferreira tenta rentabilizar o tipo

estrófico por quatro vezes, uma delas perfeitamente casual (Maia Ferreira, 2002 p. 111). Na primeira das outras três ocorrências a

composição é totalmente feita sobre décimas. Chama-se «Era um anjo!»

e vale a pena transcrevê-la, quer pelo ‘primor’ formal, quer pela

desatenção a que tem sido votada, quer pelos conteúdos sugeridos

subtilmente – biográficos e não só:

No álbum do senhor F. V. da Cunha

Em uma noite sonhei Estar sentado junto a mim Mimoso Anjo do céu De asas brancas de cetim. – Era fermoso – inocente, Quando branda e docemente De seus olhos descerrava O cerúleo de oiro manto Que mostrava o seu encanto Que de amor extasiava. Sobre mim poisou a face, Sua face de jasmim, E querendo despertar-me – De seus lábios de carmim Ouvi com voz sonora Que arrebata e que namora Dizer-me, ó Santo Deus! – Doces palavras de amor Que exprimiam com fervor Os ardentes votos seus! Despertei, e do sonhar A realidade senti Não sei se era um anjo O corpo gentil que eu vi: Porém tinha o seu candor – Era do mundo o primor – E se não era do céu Porque asas não trazia, Com suave melodia Repetia o canto seu!

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Tinha nos lábios candura, Nos olhos meiguice e amor – Era lindo – como é linda A primavera da flor. Era puro como é pura Na desgraça e desventura A consoada maternal – E ingénuo quando dizia Que o amor que ele sentia Na terra não tinha igual. Ouvi o anjo da terra Que plos do céu me falava – Que juras de eterno amor Tão meigamente jurava. – Imprimi então um beijo Que a fez corar de pejo – Nos seus lábios de coral – E de prazer tão subido Soltei após um gemido – O gemido do meu mal! Neste enleio mergulhado – Fujamos – eu lhe bradei Do mundo que insano olvida Da natura a doce lei. – Dele audazes zombemos E a outro mundo voemos Onde possamos fruir – Quer aos roncos das procelas Quer em céu azul d’Estrelas A vida do teu sorrir!

Para além da habilidade rítmica e do rigor formal, que em muitos outros

poemas manifesta, revelando uma boa formação literária, note-se a

sugestão de assunto privado, o jogo enunciativo entre o tratamento da segunda pessoa no masculino e no feminino, o tema romântico da

inocência e do amor pelo anjo, o tema da fuga ao mundo tão presente

no livro do nosso primeiro poeta.

Todas essas características – exceto o jogo enunciativo entre feminino e masculino na designação do anjo – reaparecem no poema «O seu

retrato!» (Maia Ferreira, 2002 pp. 65-67). Inicia-se ele por um quarteto

(eneassilábico), segue por uma oitava (pentassilábica) e depois alonga-se por quatro décimas heptassilábicas escritas com a mesma habilidade

rítmica e o mesmo rigor formal e vocabular.

Page 189: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Finalmente o poema «O meu credo!» (Maia Ferreira, 2002 pp. 124-126),

que repete uma das componentes semânticas já explorada em «A minha

terra» (Maia Ferreira, 2002 p. 30), é também feito sobre décimas

heptassilábicas.

Em resumo, são só três ocorrências – embora ocorrências importantes e

que demonstram o domínio técnico do tipo estrófico.

Tipos de décimas encontrados e comparações com as referências

Todas as ocorrências foram compostas em versos heptassilábicos, como

acontece com Maia Ferreira. O facto vem na linha de uma tradição

muito comum entre os poetas portugueses e os condoreiristas.

Para o caso português vejam-se, a título de exemplo, os poemas

transcritos por Amorim de Carvalho (Carvalho, 1987 pp. 56-57): um primeiro cuja autoria não se refere mas que, pelas suas características

formais e principalmente ideológicas, não será anterior à segunda

metade do século XIX, podendo mesmo ser do autor da Teoria; o segundo é de Bernardim Ribeiro e o terceiro de D. Diniz. Todos eles

apresentam versos heptassilábicos, isto apesar das conhecidas diferenças entre os metros preferidos, por exemplo, na Idade Média

ibérica e na restante lírica portuguesa.

Quanto aos condoreiristas, entre eles avulta a cabeleira de Castro Alves,

com a qual o romantismo brasileiro encerra hiperbolicamente as suas

portas altaneiras e antitéticas. Mas também – antes dele – deparamo-

nos com décimas heptassilábicas na poesia de “Tobias Barreto, Bittencourt Sampaio, Franklin Dória, Pedro de Calasãs, Barão de

Paranapiacaba e José Bonifácio o Moço” – segundo Domingos Carvalho

da Silva (AAVV, 1987 p. 116).

A associação entre o heptassílabo e a estrofe de dez versos, apesar da

sua popularidade, vai contra o previsto pelos tratadistas: Castilho fala

das décimas apenas quando comenta os decassílabos. Tinha por referência, talvez, a prática do classicismo em Portugal, visto que nos

diz que “o seu tempo parece ter passado com os oiteiros e as glosas”

(Castilho, 1874 p. 139). A par dele e apesar dos exemplos acima citados, Amorim de Carvalho só reconhece a décima clássica, assimilando-a a

uma prática anterior ao século XIX (Carvalho, 1987 p. 56). Como é

regular o campo alinhado pelo sulco retilíneo dos Tratados!

Bilac e Passos, por seu turno, concebem só dois tipos de décimas: a que chamam clássica (v. em seguida) e outra, conseguida pela

“justaposição” de duas quintilhas, que acham desusada e conotam com

Page 190: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

o vilancete da literatura portuguesa quatrocentista (Bilac, Olavo e

Passos, Guimarães, sd). Não indicam métrica específica mas o exemplo

que fornecem é com heptassílabos – portanto metricamente

concordante com as ocorrências significativas do corpus e de Maia Ferreira.

A décima clássica é composta por duas partes, uma de quatro e outra de seis versos, ou o contrário, uma de seis e outra de quatro versos

(Castilho, 1874 pp. 137-138; Carvalho, 1987 p. 57; AAVV, 1987 p. 116).

No condoreirismo brasileiro o tipo dominante é o primeiro, com

distribuição [ABAB] (como Castro Alves usa no «Navio negreiro») ou

[*A*A] (de que há também ocorrências a registar no «Navio negreiro») –

sendo esta a distribuição dominante em Maia Ferreira. No que diz

respeito à segunda parte, se imaginarmos uma sextilha, o esquema é

[DDE/FFE]; se não o fizermos, seguem-se à quadra dois versos

emparelhados e, depois, outra quadra com o esquema [DEED].

Imagino uma sextilha por causa do que dizem os tratadistas

portugueses. Segundo Castilho, essas duas partes (os primeiros quatro versos e os últimos seis) corresponderiam a dois períodos sintáticos;

segundo Amorim de Carvalho elas definir-se-iam tanto logicamente

(“pelo pensamento” e pressupondo, ao que parece, uma

correspondência ao nível da sintaxe), quanto rimaticamente (Carvalho, 1987 pp. 59, 105ss). Maia Ferreira respeita geralmente (não

obrigatoriamente) essa regra.

Amorim de Carvalho fala nas décimas divididas em dois períodos, de

quatro e seis versos, tanto no capítulo dedicado às estrofes quanto no capítulo dedicado aos sistemas estróficos, distinguindo por isso na

décima a mera solução estrófica de uma orquestração prévia colocada

um nódulo acima, como a do soneto, que vem coincidir com a ideia de

texto e macro-texto. A única diferença entre os dois tipos está, para o

neo-castilhista, na “travação rimática”, visto que dá, para as décimas enquanto sistemas estróficos, [ABBAACCDDC] – deviam ser as

quintilhas justapostas de que falavam Bilac e Passos.

Coincidentemente, são as duas composições onde surge uma estrutura de mote e glosa que utilizam essa distribuição, o que reforça a sua

extemporaneidade, visto que a décima só enquanto estrofe é praticada

ainda no século XIX, principalmente por poetas ultrarromânticos. Isso pode-se confirmar em Soares de Passos (Passos, 1984 p. 139); Tomás

Ribeiro (Ribeiro, 1908 pp. 33, 34, 260; Ribeiro, 1862 pp. 14, 89);

Pinheiro Chagas (Chagas, 1865 pp. 29, 50); João de Lemos (Lemos, 1875 pp. 5, 11, 30, 55, 68, 86, 108, 134; Lemos, 1859 pp. 19, 72, 134,

146, 158, 180, 189, 192, 226; Lemos, 1866 pp. 22, 27, 36, 84, 103,

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107, 128, 141, 163, 170, 178); Luís Augusto Palmeirim (Palmeirim,

1851 pp. 8, 148); Mendes Leal, desde logo na «Dedicatória» dos

Cânticos, mas não só (Leal, 1858 pp. 13, 50, 111, 147, 186, 198, 209, 233, 315); finalmente, em Ernesto Marecos (Marecos, 1878 pp. 13, 53,

81, 104, 111, 134, 181, 255, 269; Marecos, 1865 pp. 1, 29, 39, 40, 46,

51, 95, 100, 118, 143, 156). Vemos aqui repetida uma coincidência que

já fixei atrás: a coincidência das décimas do corpus com práticas de

João de Lemos e Ernesto Marecos.

No Brasil, como disse, era a solução preferida pelos condoreiros, onde

se destaca o vulto inflamado de Castro Alves, que recorre a elas pelo

menos seis vezes nas Espumas flutuantes e só uma delas com decassílabos, numa distribuição clássica (Alves, sd). Mas também

Fagundes Varela recorreu às décimas, por exemplo no poema «O

arrependimento» (Varela, 2000;2002 pp. 98-99), escrito em

heptassílabos e com cinco rimas: ABABCCDEED – a distribuição preferida de Maia Ferreira e dos tratadistas. Mais tarde, Cruz e Sousa

ainda recorre várias vezes às décimas. Fá-lo, por ex., no poema «A imprensa» (“Desterro, 21 nov. 1880”), distribuindo as rimas de formas

variadas e em alguns casos bizarras (Sousa, 2000-2002a pp. 101-103).

No nosso terreno, Cordeiro da Matta usa umas décimas (indicadas

graficamente como quintilhas) em dodecassílabos compostos, no poema «Confissão» (“Luanda, 1878”), com uma distribuição rimática singular:

*A*AB*C*CB (Matta, 2001 pp. 58-59). No poema «O que eu peço», de “22

de Julho de 1886” (Matta, 2001 p. 181), apresenta dois quintetos e um

quarteto que, na verdade, se reduzem a uma décima e um quarteto,

porque o 5.º verso da primeira estância e o primeiro da segunda

emparelham rimando, como todos os versos dessas duas estrofes iniciais. Formam portanto uma décima de versos emparelhados – o que,

não sendo inédito, não era também comum. O facto leva-me a postular a coincidência de escolhas entre Cordeiro da Matta e Cruz e Sousa,

visto que ambos usam soluções originais nas suas décimas.

A décima enquanto sistema estrófico foi abandonada quando,

igualmente, a tradição lírica portuguesa (escrita) se afastou das

estruturas de mote e glosa. Castilho usa ainda essas estruturas de mote e glosa, mas em composições da sua juventude: uma dos tempos

de Coimbra (Castilho, 1905 p. 31); outra datada de 1824 (Castilho,

1905 p. 161); uma terceira fazendo já a glosa sem incluir o mote,

portanto a caminho do descampado (Castilho, 1904 p. 21).

As décimas com distribuição rimática idêntica ou igual à clássica, mas não incluídas em estruturas de mote e glosa, surgem, nos poetas de

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referência, apenas em Faustino Xavier de Novaes (Novaes, 1855 pp. 28,

173 «Em outeiros»; Novaes, 1858 pp. 16, 37, 55, 131, 237, 262, 274),

ora misturadas com outros tipos estróficos (Novaes, 1858 pp. 131, 262),

ora não. Uma única vez aparece essa distribuição em Mendes Leal (Leal,

1858 p. 50), talvez o mais panfletário de todos, nesse aspeto

companheiro de Castro Alves, que usa a conceção clássica (quadra mais

sextilha) pelo menos cinco vezes nas Espumas flutuantes (Alves, sd).

No poema publicado no Almanach de lembranças para 1880 (p. 214), intitulado «N'um batuque», o guarda-livros Eduardo Neves socorre-se

também do mesmo esquema rímico fora da estrutura de mote e glosa:

No album do meu presadissimo amigo José da Silva Leão

N'um batuque hontem andei,

onde vi certa morena, tão gentil era a pequena

que nem eu dizel-o sei. _Como está? lhe perguntei

logo que de perto a vi,

_Quer dansar? lhe repeti,

não se acanhe minha bella,_ _tunda bôbo, me disse ella,

ou antes: _saia daqui.

_Seja meu par, oh menina

não se zangue por tão pouco;_ _Uá salúca, é você louco,

Gámessenã'me qu'quina.

_D'esse olhar a luz divina

fascinado me deixou! se um beijinho, só, lhe dou

gozarei prazer infindo, -

_Quicôla, me disse, rindo, logo de mim, se affastou.

_Porque foge? venha cá, porque só me deixa aqui?_

_Uá môno... mundele inhi...

Guami'âme... ndé cuná. _Por favor, não se vá já,

é ainda muito cedo,_

_Quiússuca, disse a medo

Page 193: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

a moreninha tão linda,

Caté mungo, disse ainda,

e retirou-se em segredo...

Eduardo Neves (Dondo - Margens do Quanza), 1880/214.

A composição de Eduardo Neves pode ser, porém, imitação de outra, de

João Eusébio da Cruz Toulson, para a qual nos remete uma lírica de

Cordeiro da Matta (1888/383).

Não tenho condições para asseverar que tenha sido este ou aquele o

poeta a iniciar a pequena série textual em que se integra o batuque. Ela

era constituída por poemas de enamoramento escritos em duas línguas,

reservando-se a cada personagem uma dessas línguas: para a mulher

africana o quimbundo e para o poeta o português ‘de lei’.

Inclino-me, intuitivamente, a pensar que tenha sido João da Cruz

Toulson o pioneiro. Talvez tenham contribuído para isso alguns dos

dados biográficos que recolhi e passo a transcrever, em bruto:

No número 232 do Boletim oficial (Angola, Governo-geral, 1850 p. 4) fala-se na vinda de Lisboa de um navio (com destino a Benguela e

passagem por Luanda) onde viajava “D.ª Maria H. Toulson, e um filho

menor”. Não sei se Dª Maria Toulson será mãe ou avó do poeta.

No n.º 17 do Cruzeiro do Sul existente na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, na última página, anuncia-se a venda de

Almanachs para o ano de 1874, “em casa de Prado & Toulson”, casa que estava em liquidação. O anúncio torna a repetir-se nos números 19

e 22 (Cruzeiro do Sul, 1873; 1874).

No número 22, ainda do Cruzeiro do Sul, vem a notícia de uma visita ao cemitério: “No túmulo do sr. J. O. Toulson, cavalheiro ha pouco

fallecido, e que era muito estimado, depoz o sr. dr. Moreira da Camara a

poesia que em seguida transcrevemos com uma grinalda de perpétuas” (Cruzeiro do Sul, 1873; 1874 p. 3). O poema vem assinado de Loanda,

“5-Março-1873” e, entre outras coisas, dá o falecido como pai de várias

crianças, para além de pai dos pobres, e dos orfãos do asilo D. Pedro V, dizendo-nos com pouco génio que “da classe illustre,/Que amou

querido,/Foi gloria e lustre,/Fulgôr lusido!” - não havendo qualquer

indício de que classe seria essa. Diz-se, no mesmo poema, que deixou “A mãe e os filhos,/E a esposa cara!”. Não sei se se tratará do pai de

João E. da Cruz Toulson, mas parece-me provavel.

Page 194: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Segundo J. Castro Lopo J. O. Toulson “foi agraciado no ano de 1872

com a comenda da Ordem de Cristo, por relevantes serviços prestados

ao “Asílio” de D. Pedro V de Loanda. Morreu nesta cidade em Março de

1873, com a idade de 41 anos, e foi sepultado no cemitério do Alto-das-

Cruzes, onde tem jazigo perpétuo”. Toulson era “ao tempo um dos mais

antigos, respeitaveis e abastados negociantes de Loanda, sócio da firma

Prado & Toulson e encarregado da agência consular de França.//O notavel fundador e primeiro governador do Banco Nacional Ultramarino,

Francisco de Oliveira Chamiço, no relato do mesmo Banco, referido ao

ano de 1873, consignou palavras elogiosas à memória de João

Osmundo Toulson: «...um Cavalheiro respeitado pela sua inteligência e

inteireza de caracter. Em nome do Banco fiz dirigir à senhora viúva

daquele nosso falecido amigo os sentimentos de pesar que nos deixou

aquela prematura perda»” (Costa Negra, 1947 p. 10ss; Chamiço, 1890

p. 285).

João Osmundo Toulson era natural de Lisboa, filho de João Carlos

Toulson e de Maria Herculana Toulson, derivando a família, segundo Carlos Pacheco nos informou, de um súbdito de Sua Magestade inglesa.

João Osmundo tinha descendentes de Dª Eduarda Virgínia Toulson,

com quem era casado. A viúva, Eduarda Virgínia, casou, em Setembro

de 1874, em Luanda, com o capitão-de-fragata António do Nascimento

Pereira de Sampaio, então secretário-geral do governo de Angola.

Parte destes dados confirmam-se pela Angolana de Mário António, onde se confere que o comendador João Osmundo teria sido casado com D.ª

Eduarda Virgínia Toulson, a qual casou em segundas núpcias, em

Setembro de 1874, com o “capitão-de-mar-e-guerra António Nascimento

Pereira de Sampaio” (Oliveira, et al., 1971 p. 495).

Um ano após o seu falecimento o P.e Castanheira Nunes, personagem

significativa do ensino e da intelectualidade luandense da época33

(Santos, 1973 p. 131), discursa numa homenagem ao falecido (Angola. Governo-geral, 1874 pp. 119-120). Com uma inspiração saudosa (“a

saudade arrasta-me e a imaginação pinta-me um novo quadro que não

posso calar no íntimo da alma”) não chega a dizer que ele morreu, contornando o facto por um largo eufemismo, aparentemente objetivo:

“deixou o giro contínuo e compassado do tempo 365 dias e outras

tantas noites após a extincção dos movimentos internos e externos do amigo, que hoje commemoramos" (note-se a noção de morte absoluta:

“extinção dos movimentos internos e externos”). Pela notícia fica-se a

33 Escreveu o manual Mestre de leitura portuguesa, por volta de 1879. Talvez tenha chegado a escrever outro, intitulado O discípulo de leitura. Em 1879 publicou Duas palavras a respeito da ortografia portuguesa em Lisboa (26 pp.).

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saber que Toulson era compadre de J. M. da L. Miranda Henriques,

pessoa fortemente ligada ao ensino em Angola e que, por aí, também

nos interessa muito. O prof. Miranda Henriques, para além de outras

referências, era vice-presidente da Associação 31 de Outubro (Angola.

Governo-geral, 1865 p. 26). Lançou um “PROSPETO / Para um Colégio de Instrução Secundária.” Tal prospeto ilustrava o tipo de ensino e o tipo de professor representados pelo compadre de Toulson. Transcrevo-o:

JOSÉ MARIA DA LEMBRANÇA DE MIRANDA HENRIQUES, Professor proprietário da escola principal de Instrução primária desta Província: anuncia que se acha estabelecida uma aula de Instrução secundária, no Edefício da aula de Instrução primária, para o que está devidamente autorizado pela Câmara Municipal desta Cidade, que generosamente, e sem hesitação, concedeu a aula para este fim requerida como também para tudo o que o mesmo tente em benefício da Instrução pública. A aula será dirigida pelo próprio Professor, mas logo que o ensino o exija, lecionará parte das matérias, um Sacerdote ilustrado, que se acha nesta Província, e já anuiu aos desejos do anunciante, de o auxiliar logo que o ensino o exija. As matérias que se hão de lecionar nesta sala, são: 1.ª Gramática portuguesa e latina. 2.ª Latinidade. 3.ª Aritmética, geometria, e primeiras noções de álgebra. 4.ª Filosofia racional, e moral, e princípios de direito natural. 5.ª Língua francesa e inglesa.

As aulas começariam a 1-7-1852 (Angola, Governo-geral, 1852 p. 4).

No Jornal de Loanda (anónimo, 1880 p. 3), regista-se a nomeação e proxima partida, como escrivão do juizo de Mossamedes, do “sr. João

Euzébio da Cruz Toulson”, tendo tomado posse a 19 de Outubro (Presidência. Tribunal da Relação, 1880). É este homem que julgo

corresponder ao nosso poeta.

No Jornal de Mossamedes o nome de João Euzébio aparece numa benigna lista de doadores. Este último jornal faz, entretanto, uma

apreciação fortemente negativa da raça negra, acusando-a de “depravação, materialismo e tendencias para scenas burlescas” – de

onde se poder aventar a hipótese de Toulson não ser negro (anónimo,

1881).

N’O imparcial há várias referências ao apelido familiar. Uma é à presença de “D. Mery Ayala Toulson” na representação de várias peças;

na outra fala-se de uma récita na qual estiveram presentes “Toulson e esposa”, que não sabemos se seria o antigo escrivão do Juízo; numa

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terceira felicita-se “Juvencio Osmundo Toulson” pelo seu aniversário;

podia ele ser filho de João Euzebio (O imparcial, 1894 pp. 4; 1-2, 2-3;).

No jornal O mercantil aparece um “folhetim” (em rigor uma reportagem), datado de 23 de Setembro de 1887, cuja ação se passa em “Bungo-

house”, numa casa de ingleses que possuía um pequeno palco.

Sabemos da existência de tal casa em Luanda, no Bungo precisamente, o chamado “bairro dos ingleses”, onde havia por vezes representações

teatrais. Aí aparece, como membro da companhia de teatro

Shakespeare, Juvêncio Toulson (Anónimo, 1882; 1887).

No mesmo periódico há uma referência a João da Cruz Toulson como

“thesoureiro da alfandega”, assinando pomposamente uma lista de

saudações pelo nascimento do príncipe das Beiras (Anónimo, 1882;

1887 p. 2).

Esta figura típica da sociedade crioula e literária de Luanda pode bem ter sido o iniciador da pequena mas muito significativa série de poemas

bilingues no século XIX, estando toda a família, pelos vistos, fortemente

ligada às artes na cidade.

No âmbito do Almanach, o primeiro poema que recorre a expressões (não só palavras isoladas) em quimbundo é, precisamente, «N’um

batuque», de Eduardo Neves. Ele terá sequência, oito anos depois, na composição onde Cordeiro da Matta imita assumidamente “uns versos”

de João da Cruz Toulson. Entre a colaboração de E. Neves e a lírica

bilingue de Toulson o paralelismo é maior ainda que entre E. Neves e

Cordeiro da Matta: para além da estrutura de diálogo, e do pedido de

favores amorosos a uma africana que os recusa repetidamente; para além da já citada inclusão da língua na emmascaração de cada

personagem; há um léxico mais próximo. Os dois poemas iniciais da

série começam por tratar a “dama” de maneira diferente da de Cordeiro

da Matta: “menina”. Acresce a isso que os dois repetem o mesmo tipo

estrófico, que não é o do poeta de Icolo e Bengo. Ainda ao nível do léxico, no verso de Toulson aparece a expressão “Canã’ngana”, título de

um dos sonetos de Eduardo Neves integrado na série «Africanas».

Inclusivamente os dois, ao contrário de Cordeiro da Matta, não traduzem todas as expressões em quimbundo. As semelhanças entre as

duas produções iniciais são, portanto, notórias demais para deixarmos

de dizer que houve contaminação entre elas.

O difícil é mesmo saber qual dos dois autores escreveu a primeira

composição bilingue. Os dados biográficos e familiares recolhidos em

nada nos ajudam. Salvato Trigo testemunha que, no Jornal de Loanda, de Alfredo Troni, floresceu uma poesia “mestiça” e, no seio dela, viu a

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luz o poema de Toulson imitado por Cordeiro da Matta. Infelizmente não

nos avança o número, nem o mês ou o dia. O Jornal de Loanda iniciou a sua publicação no ano de 1878 e a colaboração de Eduardo Neves

aparece no Almanach para 1880. Ora, as contribuições para o anuário eram por norma enviadas dois ou mais anos antes daquele ao qual se

destinavam (o número para 1880 era posto em circulação,

naturalmente, no final de 1879). De toda a participação oriunda de Angola, só um poema, «Benvindo», que era dedicado pelo autor de

«Canã’ngana» ao diretor do Almanach, vem datado do ano anterior (1881) àquele em que se publica (1882). Mas a vaidade do destinatário e

os louvores aí tecidos ao periódico explicam tal facto. Abstraindo disso,

só nos anos em que houve “Suplemento” saíram poemas datados do

anterior e, mesmo assim, só dei por três casos, um deles enviado logo

em Janeiro, quer dizer praticamente dois anos antes.

Isto significa ter sido «N’um batuque» remetido ao Almanach de lembranças em 1878, ou seja, no mesmo ano em que o Jornal de Loanda veio a público pela primeira vez. Pelo que não é possível determinar o iniciador da pequena série — pequena mas cujos traços

retóricos estão disseminados por outras composições, como «Africanas»,

«Quadro africano», «O olhar d’uma africana», «A uma africana», do

mesmo Eduardo Neves, e no desastrado «Soneto» que Jorge de Lucena

lhe dedica.

Ora se, no que diz respeito aos motivos, alargando o espetro de «No

álbum de uma africana», de Cândido Furtado, as opções dos textos

bilingues inaugurais são largamente seguidas na lírica localizada no

país, enquanto opção técnica estrita as décimas de Toulson e Eduardo

Neves foram tão pouco influentes quanto os esquemas organizativos de

Cândido Furtado, ainda que possuindo elas uma forte coloração local.

As distribuições rimáticas nas décimas: estudo comparativo

A métrica dos versos conjuga-se ao uso dominante na lírica de referência (Carvalho, 1987 p. 106). O sistema rimático ([ABBAACCDDC]) é, já o vimos, o das estruturas clássicas e barrocas de “mote e glosa”, correspondendo no entanto à hipótese não-clássica de Bilac e Passos, quando falam nas décimas compostas por duas quintilhas (Bilac, Olavo e Passos, Guimarães, sd). Não é, no entanto, o esquema dominante entre os condoreiristas brasileiros, o que vem constituir uma forte limitação à proximidade entre os dois corpus. O facto de não haver aqui mote, nem glosa, isola a escolha de Eduardo Neves face aos outros colaboradores angolenses ou residentes34, tal 34 Só há mais duas ocorrências idênticas, ambas posteriores a 1880: S1887/55 e 162.

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como perante os poetas portugueses e brasileiros estudados, excetuado Faustino Xavier de Novaes, que por mais de uma vez marcou a lírica do poeta branco do rio Quanza. Faustino Xavier de Novaes, no dizer de João Gaspar Simões, “conquanto dirigisse O bardo”, onde Ernesto Marecos colaborou também, “punha a sua musa ao serviço da critica à poesia lamecha e sentimentalona” (Simões, João Gaspar; Delfim Santos; et alii, [1956] p. 286). Tal facto conjuga-se, em meu parecer, ao tom de brincadeira que tomam as composições bilingues, não só de Eduardo Neves mas também de João Eusébio da Cruz Toulson e de Joaquim Dias Cordeiro da Matta. É por isso natural que o esquema distributivo das rimas derive das Poesias e das Novas poesias do sátiro do Porto, visto ser nesses livros que ele recorre com maior frequência e num ambiente alegre. Quanto aos tratadistas, na Teoria geral da versificação Amorim de

Carvalho fala de uma sequência rimática parecida, [ABAAB/CDCCD], que surgiria “nos poetas da escola palaciana” (Carvalho, 1987 pp. 56-

57). Sá de Miranda, cujas Obras (numa edição de 1784) figuravam na biblioteca de Antero de Quental, estrutura sobre décimas com essa

distribuição os versos da conhecida «Écloga Basto», misturando-a com a

sequência [ABABA] (Miranda, 1969 p. 123).

António Feliciano de Castilho, ao falar nas décimas estruturadas em

grupagens de quatro e seis versos, aponta a coincidência entre a divisão sintática (“em períodos”) e a rimática; mas Amorim de Carvalho nada

anota sobre isso. No exemplo de Sá de Miranda a coincidência é respeitada, visto que há sempre fim de período no final do quinto verso,

quer dizer, quando muda a rima; nos poetas do corpus a divisão sintática não é pertinente nem coincidente, podendo — como sucede

com Augusto de Castro — a sintaxe indicar uma subdivisão da estrofe

em quatro versos mais seis e a rima não.

Das ocorrências enumeradas, quatro imitam a distribuição que

estrutura «A lua de Londres» e outros poemas de João de Lemos (Lemos, 1858 pp. 81, 206, 251)35, e a maioria das décimas de Maia Ferreira: ABABCCDEED. São elas a de Ernesto Marecos, que não foi escrita em Angola e, por isso, não conta para o caso; de um anónimo e

desconhecido, de José Bernardo Ferrão e de Furtado D’Antas. De todos

eles só José Bernardo Ferrão é significativo. O seu uso entre os poetas de referência oscila, no entanto, entre a exclusividade, a recorrência e a

ocasionalidade.

Em Soares de Passos é o único esquema distributivo das décimas. No

bardo Faustino Xavier de Novaes ela é repetida 17 vezes (Novaes, 1855

35 1856/165, 1863/351, 1880/35 e 1881/66. A distribuição ressurge ainda no Cancioneiro, I, pp. 81, 206 e 251.

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pp. 24, 41, 48, 63, 96, 114, 127, 212, 245, 269, 281, 295; Novaes, 1858

pp. 27, 83, 95, 146, 197) e, no reinado breve do “príncipe dos poetas

portugueses”, o faustoso amigo do Brasil Luís Augusto Palmeirim, ela é

também frequente (Palmeirim, 1851 pp. 1, 40, 66, 114, 227).

Por seu turno, a sua sombra apenas de passagem fixa os Sons que passam (Ribeiro, 1908 p. 260), de Tomás Ribeiro (em versos heptassilábicos), roçando os heptassílabos de D. Jayme na Parada de Gonta (Ribeiro, 1862 p. 14). O indianista Gonçalves Dias também lhe dá

escassa atenção (Dias, 1848 p. 8). E António Xavier Rodrigues Cordeiro

atira-se a tal esquema (com «Tasso no hospital dos doidos») apenas

numa recolha cujo título nos assegura que Portugal nunca deixou de

ser barroco, mesmo com Teófilo Braga: Parnaso português moderno36 (Braga, 1877 pp. 30-34, 315). Como disse atrás, Fagundes Varela

recorre à mesma distribuição, com heptassílabos, no poema «O

arrependimento» (Varela, 2000;2002 pp. 98-99).

Uma terceira ocorrência do corpus, quanto ao esquema distributivo, é a

segunda mais frequente: [ABBAACCDDC], socorrendo-se dela Eduardo Neves em 1880 «N’um batuque», e, em 1887, Augusto Guilherme de

Castro, radicado em Quilengues, em poético paralelo com A. J.

Machado localizando-se em Malange.

Os dois tipos restantes não se repetem vez nenhuma. A estes penso que

podíamos associar a distribuição criativa de Cordeiro da Matta,

desenvolvida ao longo das três estrofes iniciais do poema heteroestrófico

«Amor e saudade»: *ABABABC*C, *A*ABABC*C, ABABC*CD*D (Cordeiro da Matta, 2001 pp. 104-105). Num outro poema heteroestrófico (e

heterométrico) usa de novo um esquema sui generis, que parece tirado de um certo tipo de oitavas (descrito por Castilho): *ABAB*CDDC

(Cordeiro da Matta, 2001 p. 164).

A conclusão a tirar do rol é a de que a décima não tem grande significado para a definição do cânone poético local, nem pelos dez

versos, nem pelos esquemas rimáticos praticados. Ela apenas reforça a

ideia de que o verso heptassilábico era dos mais importantes, em

termos de frequência, para o corpus e mesmo para a lírica novecentista

angolense.

36 Reúne autores ultrarromânticos e realistas principalmente. Há cópias digitais disponíveis em rede no sítio da Biblioteca Nacional portuguesa.

Page 200: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

A insignificância conjuga-se ao que diz Amorim de Carvalho, que só

reporta uma distribuição – fixa – para a décima clássica, ou seja,

enquanto sistema estrófico (tipo, de resto, não encontrado por mim). A

emergência de imitações imperfeitas da estrutura de mote e glosa deve

explicar-se pelos limitados conhecimentos e pela inabilidade dos

autores, ambos pouco significativos e isolados em terras então muito

retiradas relativamente a Luanda (sobretudo no caso de A. G. de

Castro).

Resta registar que, mais uma vez, os poetas locais aproveitam essa

margem de insignificância no cânone poético da época para desenvolver

estruturas criativas, alternativas, que atestam o seu potencial criativo.

Page 201: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Os sistemas estróficos

Considero as décimas existentes estrofes e não sistemas, visto que não

se podem, com rigor, equiparar à estrutura clássica. Não tinha, portanto, comentado sistemas estróficos até agora, exceção feita às

“estruturas de personalização”, que são sistemas estróficos pontuais,

não-recorrentes.

Amorim de Carvalho subdivide os sistemas estróficos em quatro

espécies: “sistemas estróficos com número fixo de estrofes e formas

estróficas fixas”; “sistemas estróficos com formas estróficas fixas, mas

com número variável de estrofes”; “sistemas estróficos com número fixo

de estrofes, mas com formas estróficas variáveis”; “sistemas estróficos com forma e números estróficos variáveis”. Não vou ilustrar todos estes

tipos, pois só encontraremos o primeiro, reduzido aos sonetos, e o último, o das “estruturas de imperfeição” já focadas. Os nossos poetas

eram certamente pessoas timoratas, não queriam arriscar-se a muitas

variações fora do cânone, ainda por cima quando escreviam de uma

terra sobre a qual se dizia credulamente que os leões assolavam os

quintais da capital.

Apesar de nos depararmos com um só tipo de sistema estrófico, ele é

fundamental, a mais conhecida e prestigiada fórmula da tradição

literária europeia, pela qual os nossos poetas demonstraram uma

apetência no entanto rara entre os pares românticos e ultrarromânticos. Falo do soneto, a composição de quatorze versos, normalmente

organizados em dois grupos de quatro e dois grupos de três (no nosso

caso, não há exemplares de “soneto inglês”, aquele que reúne três

estrofes de quatro versos e lhes acrescenta uma com dois).

É sabido que os românticos e ultrarromânticos portugueses e

brasileiros, em reação dialética ao racionalismo formal dos neo-

clássicos, mostraram militantemente e persistentemente uma geral aversão pelo soneto (Carvalho, 1987 pp. 304-305). O cânone literário

que lhes alumiava o caminho era o da decomposição formal. É claro que os românticos não escreveram ainda como os surrealistas ou os

concretistas; mas a sua prática levou-os à mistura de tipos estróficos

numa espécie de sistemas pessoais, muitas vezes irrepetíveis e que no fundo se limitavam a combinar as espécies fixas herdadas da tradição

clássica e barroca. Os ultrarromânticos intensificaram de tal forma o processo que, não só neles o que era pessoal se confundia com o que

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era particular, também o que era explosivo se transformou

gradualmente apenas em estilhaços. O amortecimento do magma inicial

esfriou a vigilância anti-barroca dos neo-clássicos e dos primeiros

românticos, e deixou a cochilar o policiamento em que a literatura

liberal atenciosamente mantinha o racionalismo clássico. Desde logo a

partir da penumbrosa escavação poética do velho mestre cego.

O Visconde de Castilho, em quem o romantismo “classicamente”

amortece (que no entanto mantinha uma estranha relação de inveja

com Luís de Camões, a cujos Lusíadas compara os andrajosos luxos de

D. Jayme), diz que o “soneto portuguez nasceu com Bocage e com Bocage morreu” (Castilho, 1874 p. X), embora o próprio não soubesse

disso e admirasse profundamente “aquela triste e leda madrugada”. Os

seus discípulos vão-se deixar cativar pela nobilíssima cruzada e

enterram o soneto silenciosamente, com pudor.

Mais uma vez, a exceção no grupo dos ultrarromânticos portugueses é a

do sátiro Novaes, e um dos reincidentes sonetistas do nosso corpus é o guarda-livros Eduardo Neves, ironicamente natural de Santa Comba Dão. No Brasil, os românticos da segunda geração praticaram também,

esporadicamente, alguns sonetos – mas sem relevância de maior,

exceção talvez feita a Junqueira Freire.

os sonetos do corpus

Encontramos, ao todo, vinte e quatro sonetos (três formam uma só

peça, o que dá vinte e uma ocorrências). Dos vinte e quatro, quinze

recorrem ao verso com dez sílabas métricas — o que obedece ao cânone clássico (Castilho, 1874 p. 126ss; Carvalho, 1987 p. 63) — sendo uma

das ocorrências constituída pelos três sonetos juntos; a segunda

espécie mais frequente regista quatro presenças em dodecassílabos; em

seguida há duas em heptassílabos (uma sátira e uma imitação

desajeitada); finalmente, uma versão em versos de seis sílabas métricas.

Todos os sonetos do corpus se encontram na segunda metade do período estudado, mais precisamente entre os anos de 1882 e de 1900. As balizas temporais integram-se, portanto, nas dos quartetos, das

sextilhas e das oitavas, reforçando com aquelas o pequeno lote das

tímidas diferenciações angolenses em face dos modelos lusitanos — que eram modelos repassados. Elas revelam também uma aproximação

formal às soluções técnicas do parnasianismo, que entre nós atinge o

possível esplendor em Pedro Félix Machado – poeta que teve o cuidado

de não colaborar no Almanach de lembranças.

Page 203: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Excetuando José Bernardo Ferrão, canonicamente romântico neste

aspeto, os autores mais significativos apelaram à consagrada fórmula

do soneto, o que acentua a sua tateante especificidade técnica no

espetro literário do ultrarromantismo luso-brasileiro. Este sistema

estrófico vai, por isso, merecer uma atenção desenvolvida.

Um soneto hexassilábico

No número para o ano de 1895, a pp. 140, datado de “Loanda, janeiro,

20 – 88”, faz a sua aparição o único soneto do corpus escrito em

hexassílabos:

VISÃO

E***

Se eu vejo o teu sorriso, (A+T+A+T+A+T) teu talhe donairoso, (A+T+AAA+T)

do mundo tenebroso (A+T+AAA+T) descubro o paraiso. (A+T+AAA+T)

Se teu olhar diviso (A+T+A+T+A+T)

fitar-me tão bondoso... (A+T+A+T+A+T)

a terra – é amplo goso (A+T+A+T+A+T) a vida, – um outro riso. (A+T+A+T+A+T)

E scismo então comigo (A+T+A+T+A+T)

na esplendida ventura, (A+T+AAA+T) ventura d'algum céu: (A+T+A+T+A+T)

O seio teu amigo (A+T+A+T+A+T)

um dia, formosura, (A+T+AAA+T)

pousando contra o meu! (A+T+A+T+A+T)

Loanda, janeiro, 20 - 88.

Alberto Marques Pereira, 1895/140.

Coloquei propositadamente, frente a cada verso, a sequência de sílabas

átonas (breves, incluindo atonizadas) e tónicas (alongadas), para que o

leitor repare no apuro e na regularidade rítmicos do poeta, que oscila

entre, apenas, duas sequências.

Page 204: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O hexassílabo aqui tem acento rítmico, geralmente, só nas sílabas 2 e 6

– apresentando, portanto, estrutura binária (no sentido em que são

duas unidades rítmicas, embora estas sejam decomponíveis em

unidades mais pequenas). Contando pelas sílabas átonas e atonizadas

de um lado, tónicas de outro, encontramos uma alternância sistemática

e muito bem organizada entre ritmos binários (dominantes: vv. 1, 5, 6,

7, 8, 9, 11, 12, 14) e uma associação de ritmo binário (no começo do verso) com ritmo quaternário (no final), o que sucede nos vv. 2, 3, 4 e

nos versos do meio dos tercetos. Em qualquer dos casos o ritmo é

sempre ascendente, o que torna mais animado o tom geral do poema.

O conteúdo apresenta-se de uma sensualidade subtil, ainda evitando

ferir pudores mas abrindo já os olhos sobre a cena erótica (dois peitos

juntos e apertados, em chave de ouro). Igualmente subtil é a referência

ao mito islâmico, da “ventura d’algum céu” onde a sensualidade e o

erotismo figuram como prémios (prémios de resto conhecidos pel’Os lusíadas).

A distribuição das rimas dá no esquema seguinte: [ABBA/CDE], que é uma fórmula conhecida já pelos poetas quinhentistas portugueses e

pelos italianos em que eles se inspiravam.

O autor do soneto, Alberto Marques Pereira, cuja biografia desconheço,

assina ao todo nove líricas no Almanach, podendo a sua participação considerar-se tardia, pois ocorre entre 1889 e 1895. A originalidade métrica da peça face às obras de referência é tão absoluta quanto em

relação aos outros colaboradores, pois não lhe deteto equivalência. Ela

não se agrega, portanto, nem à literatura portuguesa modelar, nem à brasileira. Nesta encontrei dois sonetos (I e II) de Cruz e Sousa (Sousa,

2000-2002a p. 132), intitulados «Filetes», com versos hexassilábicos,

ágeis e gráceis, mas um esquema distributivo diferente:

ABAB/CDCD/EEF/GGF. Por coincidência, principalmente o segundo

associa (com maior intensidade que Alberto Marques Pereira) misticismo, erotismo e sensualidade – o que de resto estava prescrito no

ambiente simbolista, mesmo no do Desterro. Mas as coincidências não

passam daí.

Também a prática literária do território angolense estranha o fenómeno.

Nela só Cordeiro da Matta usa nos Delírios o soneto hexassilábico (Matta, 2001), mas numa distribuição diferente

(ABBA/CDDC/EFEFEF). A sua excessiva diferença não nos permitirá, pelo menos em face do conjunto investigado, estabelecê-la como típica.

Mas, em compensação, traz-nos um conteúdo redundante – apesar do

Page 205: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

modo leve e contagiante que usa para nos repetir os cronótopos

anteriores.

Dois sonetos heptassilábicos

Os dois sonetos escritos em versos de sete sílabas métricas estão

autoriados por Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1887/132) e pelo

desajeitado Jorge de Lucena (1897/99). Encontrei sonetos em heptassílabos na poesia de Cruz e Sousa, pelo menos doze: «No campo»

(Sousa, 2000-2002a p. 55); «Senhor de alma tão nobre, tão» (Sousa, 2000-2002a p. 62), «Lirial» (Sousa, 2000-2002a p. 17) e «Campesinas»

(Sousa, 2000-2002a p. 35ss) – dezoito sonetos, mas não tive acesso a

quatro deles.

A peça de Lucena é dedicada a Eduardo Neves e procura integrar a sua

série de motivação feminina africana, mas com tão pouca elegância que,

logo de início, irrompe com um disfemístico elogio: “É preta mas tem

uns pejos”! Cândido Furtado não fez isso: falava “nas graças, na candura”, nas “formas divinaes do corpo teu”, que vários anos depois

ainda Cordeiro da Matta vislumbrava na Quissama, já sem “véu”37. Veremos que, tecnicamente, este soneto será pouco significativo

também. Por isso mesmo regresso ao de Cordeiro da Matta:

MESSALINA

Em seu olhar de panthera

o brilho fascinador

scintilla!... Filha do amor

diz-se ao vêl-o... e não de féra!...

Louco, sem tino lhe erguera um templo a seu esplendor,

e a ella com vivo ardor deusa, anjo ou santo dissera!...

Porém, fallae-lhe em paixão, ou coisa que toca a fibra

e vereis um coração

que a nenhum affecto vibra.

Porque só tem affeição

37 Num poema datado de 1881, e dedicado ao seu amigo Carlos da Silva, também ele um crioulo a circular pelo Dondo e «hinterland» de Luanda, “a ilustre e culta”, como dizia Cândido Furtado ao falar aos filhos de Angola. A peça intitula-se «Uma Quissama» e vem no número do Almanach para 1891 (dez anos depois), a pp. 315.

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ao doce tinir da libra!...

J. D. Cordeiro da Matta (Angola), 1887/132.

O conteúdo articula-se bem com os cânones ultrarromânticos, uma vez

que o soneto – principalmente se não fosse escrito em decassílabos – era admitido (por Faustino Xavier de Novaes sobretudo) para veicular uma

carga irónica. Essa ironia desfaz a divinização da mulher, a conotação

com o anjo, que Maia Ferreira e o próprio Cordeiro da Matta, enquanto

românticos, promoveram. Nesse aspeto se articula também com o

trabalho de Faustino Xavier de Novaes e a lírica de Cruz e Sousa no

Brasil, que em muitos poemas desfizeram a imagem da mulher-anjo, ou

da mulher divina.

A distribuição rimática usada por Cordeiro da Matta é comum às

dominantes entre sonetos de versos decassilábicos ([ABBA/CDCDCD]), sendo amplamente maioritária em todos os seus sonetos; a segunda (de

Lucena, com o esquema ABBACDDC/EFG) é só parecida com a distribuição de um soneto em dodecassílabos assinado por “Paulo”. Na

peça de “Paulo” («Vingança», 1892/205) a diferença está nos tercetos.

Sendo a composição de Lucena dedicada a Eduardo Paulo Ferreira Neves, cheguei a pensar que “Paulo” fosse Eduardo Neves e o autor dos “pejos” estivesse a glosar-lhe o esquema distributivo, embora não pejado

de exatidão.

Porém, como já disse noutra passagem, o conteúdo do poema não

garante uma tal identidade. O modelo retórico do soneto de 1892 é o de uma exaltada declaração de amor, ao jeito ultrarromântico típico,

perdoando mesmo o desprezo, na linha também dos cuidados e

suspiros que se ouviam já desde o Cancioneiro geral de Garcia de Resende, mas cúmplice já do Gomes Leal que desejava ser a pedra em

que a lavadeira lavasse no rio – embora sem “desolação completa e prematura”. Ora o sentimento amoroso que se desenha nos sonetos de

Eduardo Neves é colorido, prazenteiro e nada vingativo, não coincide

com os estigmas deste poema. Nas suas declarações de amor não perdoa nem deixa de perdoar, compraz-se e goza (n)a visualização da

mulher angolense. “Paulo” pode, por tal motivo, não corresponder a

Eduardo Neves, e Jorge de Lucena podia mesmo não ter lido o soneto que ele escreveu. A distribuição por si adotada, se excetuarmos a

proximidade com “Paulo”, não tem correspondência antes da data em

que a peça foi composta.

Page 207: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Quanto à distribuição de Cordeiro da Matta em «Messalina», para além

de comum com versos decassilábicos o próprio poeta parecia preferi-la

nos heptassilábicos: usa-a em «A uns certos olhos», «Saudade», «O fogo

das paixões» (dedicado a Carlos da Silva) e, de forma ligeiramente

alterada (uma vez alternando ABAB/CDCD; outra CDC/DDC), em «A

uma zelosa» e num poema escrito na Barra do Quanza em 1887: «A um

fruto proibido» (Cordeiro da Matta, 2001 pp. 55, 135, 173, 185).

Fora de Angola, essa distribuição foi também estilizada por João Penha

em heptassílabos satíricos, como era típico dele (Penha, 1882 p. 143)38.

Não lhe encontrei correspondência nos sonetos em heptassílabos de

Cruz e Sousa, exceção feita para os sonetos IX, XII, XVI e XVIII da série

«Campesinas». Mas os poemas de Cruz e Sousa, pelas datas e locais de

publicação, não deparo com vestígios que provem relações de influência

deles, ou mesmo só de leitura. Quanto ao parnasiano português, ele

terá feito a mesma transposição operada pelo poeta negro do Quanza, pois o esquema distributivo é o dominante nos seus sonetos

decassilábicos. A derivação, embora rara neste verso, é portanto conhecida pelo uso de outro tipo de soneto e por um dos poetas de

referência, melhor: é tirada de um cânone, inova no seu interior e

demonstra, assim, que o reconhece.

Quatro sonetos em dodecassílabos

Estas quatro ocorrências são: uma autoriada por Alberto Marques

Pereira (S1889/60), duas outras por Eduardo Neves (S1890/35 e 167),

e a quarta fica anónima sob o pseudónimo ou poetónimo “Paulo”, de

que falei agora mesmo.

As distribuições rimáticas são [ABAB/AAB] (Alberto Marques Pereira), [ABBA/CCDEED] (Eduardo Neves) e [ABBACDDC/EEFGGF] (“Paulo”).

A métrica pela qual tenho definido estes sonetos é, segundo o próprio,

importada para Portugal por António Feliciano de Castilho (Castilho, 1874 p. 51; Carvalho, 1987 p. 305). Isso não é correto, se nos

lembrarmos dos apólogos de Bocage, escritos em alexandrinos (AAVV,

1987 pp. 25, 26) – e Bocage era um poeta lido em Angola no século XIX. A influência de Castilho neste caso é duvidosa, tanto mais que fornece-

nos ele um espécime de que não recolhi, quanto à distribuição rimática,

nenhuma correspondência entre os nossos sonetos dodecassilábicos. É possível que os colaboradores angolenses e residentes tenham lido o

38 O poema chama-se «A um renegado» e tem por baixo escrito: “(Guilherme de Azevedo)”.

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metro e a distribuição rimática ao mesmo tempo, numa composição

com outra assinatura, o que passo a investigar agora.

Os dois poemas de Eduardo Neves possuem uma distribuição idêntica à

perfilhada, em dois momentos diferentes, por Gonçalves Crespo nas

Miniaturas (Crespo, 1942 pp. 100, 104). Transcrevo-os:

O primeiro, «Quadro africano», vem na sequência da série «Cana’ngana»:

(SONETO)

(A meu irmão e bom amigo Miguel Neves)

Estava recostada a languida mulata:

d'um modo estudado, um pouco petulante,

deixava admirar a curva provocante

d'um seio sensual de morbidez innata.

Divisa-se não longe a rustica cubata;

á porta a mulequita, attenta, vigilante, espera da senhora, e de ar titubiante,

as ordens a cumprir, p'ra qu'ella lhe não bata.

A parda no emtanto olhava distrahida,

fitando o seu olhar na curva indefinida do sol, que do poente a terra vem beijar.

Passado algum tempo eis vira lentamente

e diz para a muleca, em tom de voz dolente:

Ngui bâna péxe âme... (1) e larga-se a fumar!...

Em dia de Natal de 1888.

(1)“dá cá o meu cachimbo”

Eduardo Neves (Dondo), S1890/35.

O soneto possui o cariz narrativo já notado em outros (sobretudo na

série «Cana’ngana»), emparelhando ainda com os versos de Gonçalves

Crespo – leia-se, por exemplo, «A sesta» (Miniaturas), composição famosa no fim do século XIX e que tem algum parentesco (em termos

‘diegéticos’) com esta. Mas mais. Acentua-se aqui a visualidade que tão bem carateriza as líricas de Cesário Verde e de Gonçalves Crespo.

Igualmente os aproxima a adjetivação, direta ou indireta, que raras

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vezes deixa um substantivo sem o adjetivar com uma qualidade

específica, definidora. Estas duas caraterísticas acompanham-se – aqui

e, muitas vezes, em Cesário Verde – pelo recurso ao dodecassílabo.

Talvez não seja alheia à coincidência a data de publicação d’O livro de Cesário Verde: Abril de 1887, portanto bem a tempo de ser lido por

Eduardo Neves e de o marcar neste soneto.

O segundo, «O olhar duma africana», vem dedicado a Alfredo Trony e

persegue os mesmos tópicos do primeiro, embora com algumas

variações importantes (por exemplo a da maternidade):

O OLHAR D'UMA AFRICANA

(Ao sr. dr. Alfredo Trony)

No seu formoso olhar, d'um negro avelludado,

tem ella, a moreninha, a languidez sublime

d'um meigo olhar de mãe, que ternamente exprime o seu materno amor ao filho muito amado.

O brilho ás vezes tem d'um astro inominado,

divisa-se-lhe um tic, um não sei quê que opprime: muitas vezes parece a absolvição d'um crime...

d'ignoto amor tem sempre o fogo insaciado!

Não sei que extranho brilho ás vezes n'elle vejo!

n'aquelle olhar ha sempre um férvido desejo

que nunca é satisfeito, e que nos causa pena...

Mas quando ella ás vezes nos fita meigamente

parece a Deus pedir, n'aquelle olhar fremente, tumissa, mambi âme, iuná uá nguimessena (1).

(1) ”Manda-me, meu Deus, aquelle que me deseja.”

Eduardo Neves (Dondo-Africa), S1890/167.

As mesmas aproximações a Cesário Verde sugere este soneto,

acrescentadas pelo verso “divisa-se-lhe um tic, um não sei quê que oprime” – onde a expressão “não sei quê” nos evoca expressões idênticas ou iguais de Cesário Verde, por exemplo nos poemas «Ironias

do desgosto» e «Noite fechada» (Verde, 2005). Outra caraterística

partilhada, que se nota em mais poemas de Eduardo Neves, é a da

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moderna integração do quotidiano na poesia – ainda quando esse

quotidiano seja exótico e recuado para muitos leitores do Almanaque.

Dado, porém, o facto de O livro de Cesário Verde ser publicado em 1887

só para amigos, numa edição de apenas 200 ex’s, é pouco provável que

Eduardo Neves o tenha lido. Pode ter lido algum poema na imprensa,

mas não no livro, cuja edição para o público mais vasto saiu só em

1901.

É por isso que pensei em Gonçalves Crespo, autor das Miniaturas e poeta onde a visualidade desempenha um papel importante também. A

quase coincidência na distribuição rimática reforçou-me a suspeita.

Disse quase coincidência porque o filho adotivo do Dondo mantém a

posição das rimas emparelhadas nos dois quartetos, enquanto em

Gonçalves Crespo, talvez o primeiro Antonio Candido que a literatura

viu nascer no Brasil, as terminações que emparelham no primeiro

quarteto são as que delimitam o segundo, ou seja, a rima [A] troca de posição com a [B].

Um segundo esquema distributivo parecido com este é o que rentabiliza

outro parnasiano, João Penha, em «Moribunda», soneto que dedica ao

poeta-filósofo Guerra Junqueiro (Cardoso, [1920] p. 14). A divergência

reside aqui na distribuição rimática dos tercetos. Essa mesma diferença nota-se em Cruz e Sousa, nos sonetos dodecassilábicos “Ao estrídulo

solene dos bravos! das plateias” e “Um dia Guttemberg c'o a alma aos céus suspensa” (Sousa, 2000-2002a pp. 6-8). No soneto dodecassilábico

«O final do Guarani», datado de “Santos, 15 jul. 1883” (Sousa, 2000-

2002a p. 67) muda a distribuição dos quartetos (que passa a cruzada), como no soneto «Guerra Junqueiro» (Sousa, 2000-2002a pp. 95-96) e

em «25 de Março / em Pernambuco para o Ceará» (Sousa, 2000-2002a

p. 81), escrito no Recife em 1885 – ano em que publica Tropos e fantasias, em colaboração com Virgílio Várzea, e dirige o jornal ilustrado O moleque, fortemente crítico e malquisto nos círculos política e socialmente corretos de Santa Catarina. Porém estes poemas, tirando o

ritmo (6+6) e as afinidades rimáticas, não possuem afinidades com os

de Eduardo Neves.

Mas o mesmo Cruz e Sousa pratica a distribuição de Eduardo Neves em

outros sonetos dodecassilábicos. Por exemplo: num dedicado à atriz Julieta dos Santos («Parece que nasceste, oh! pálida divina»); em outro

chamado «Na mazurka» e que me parece pertencer à mesma série e

época dos dedicados a Julieta dos Santos (onde a caraterização da personagem tem mais proximidade com os sonetos do Dondo); num

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poema de clara conotação política («Auréola equatorial», dedicado a

Teodoreto Souto – mas com a diferença que mais abaixo assinalo); no

soneto (dodecassilábico tanto quanto os outros) intitulado «Roma pagã»,

muito sugestivo quanto ao tratamento das cores de pele (branca e

“púrpura”) e muito próximo das descrições femininas de Eduardo

Neves; ainda em outros três, intitulados «Oiseaux de passage» (escrito

em francês), «Ideia-mãe» e «O seu boné» (Sousa, 2000-2002a pp. 9, 15, 71, 92, 69, 67-68, 68). Este último é dedicado “à atriz Adelina de

Castro» e datado de “Desterro, 13 jan. 1883”. Entre 1881 e 1884 o poeta

esteve ligado à “Companhia teatral Julieta dos Santos”, onde foi ponto e

nessa função viajou pelo Brasil. Quando não estivesse em viagem

continuava a viver em Santa Catarina (Florianópolis, então Desterro),

onde fundou em 1881, com Virgílio Várzea e Santos Lostada, o jornal

Colombo, em que se declaram parnasianos. No entanto lia “Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Guerra Junqueiro, Antero de Quental”. Só lê

Théophile Gautier, Gonçalves Crespo e Cesário Verde em 1889, ano em que inicia a adesão ao simbolismo. É significativo ter lido Gonçalves

Crespo e, sobretudo, Cesário Verde nesse ano. Significativo porque então poderá Eduardo Neves, apesar das diferenças entre Florianópolis

e o Dondo, o ter feito também. Infelizmente não podemos, pelos locais e

datas das primeiras publicações, assegurar que o poeta negro brasileiro

fosse lido pelo residente angolano. Infelizmente porque, já o vimos e

vamos ver ainda melhor, esta não é a única proximidade entre Cruz e

Sousa e a lírica pequisada.

O mesmo se passaria com Olavo Bilac, o grande parnasiano brasileiro e,

sem dúvida, um dos maiores poetas da língua portuguesa. No soneto

«Última página» (em dodecassílabos, como os que estamos a ver até aqui) ele usa a mesma distribuição de Eduardo Neves (Bilac, 2000-

2003a pp. 54-55). O soneto vem a público nas Poesias, que são de 1888 – portanto muito dificilmente sairia a tempo de o guarda-livros do

Dondo o ler antes de mandar para o Almanach.

Gomes Leal, nas Claridades do Sul, e o poeta-filósofo Antero de Quental, são os dois autores portugueses que estruturam sonetos exatamente

iguais aos de Eduardo Neves, pouco dado a profundidades filosóficas. Em Gomes Leal o esquema rimático dos tercetos é o dominante,

oscilando os quartetos entre o emparelhamento conduzido pelo nosso guarda-livros e as duas rimas cruzadas — que, de qualquer modo, são

menos frequentes. Em Antero de Quental os dois únicos sonetos em

dodecassílabos identificam-se, integralmente, com a distribuição do poeta branco do rio Quanza. Essas peças, de Antero de Quental, foram

escritas entre 1860 e 1862, tendo uma delas ainda visto a luz das

Primaveras românticas (Quental, 1922 p. 270) — ou seja, em 1872,

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perfeitamente a tempo de serem lidas por um ultrarromântico radicado

em Angola, até porque o seu conteúdo não chocava ainda abertamente

com a mentalidade de Castilho, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas. Mas

é precisamente o conteúdo que afasta ambos os autores – o que se

reforça num soneto incluído em Raios de extincta luz (que inclui poesias inéditas de 1859 a 1863), intitulado «A um crucifixo» (Quental, 2007). O

livro, porém, saiu só em 1892…

Dos restantes esquemas rimáticos, apenas o de Paulo

(ABBACDDC/EEFGGF ) consegui familiarizar – e deficientemente – com

as obras de referência. As dificuldades com que deparei prendem-se

com a mudança de rima do primeiro para o segundo quarteto. É uma

prática, no entanto, várias vezes realizada por poetas como Cruz e

Sousa, por exemplo no soneto heterométrico «Escárnio perfumado», mas

com distribuição rimática diferente nos tercetos e sem nenhum dodecassílabo (Sousa, 2000-2002b pp. 18-19). Por inteiro, com

dodecassílabos, encontro-a no soneto «Auréola equatorial» (Sousa,

2000-2002a p. 71).

Não encontrei correspondência para a terceira distribuição. Isso não

tem nenhuma importância, de resto, pela manutenção da mesma rima

ao longo de todo o soneto, uma aposta malabarística de Alberto Marques Pereira, digna dos insignes charadistas que muitos destes

versejadores foram, estudiosos das secretas combinações da linguagem

e, simultaneamente, esquecidos da importância dos motivos e dos

temas explícitos. Ou seja: barrocos.

Os sonetos decassilábicos

Aqui deparamo-nos, naturalmente, com uma diversidade mais

acentuada. Comecemos por

Uma distribuição rara

[ABAB/CDCEDE] (1890/315) é uma distribuição que só aparece uma

vez em todo o corpus, assinada por um desconhecido:

NUNCA MAIS!

Já não me alegra a luz do sol formoso

Que de manhã me vinha despertar; E a luz do teu olhar mysterioso

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É thesouro que já não posso amar.

Tudo o que nos céos vejo harmonioso,

Quando á noite nos banha alvo luar,

Já nada para mim vale, oh! desditoso,

Nem um raio do teu profundo olhar.

Foi-se-me pouco a pouco annuveando

O céo da minha vida, do meu norte,

Em que mil sonhos bellos fui sonhando.

E agora o que me resta? n'esta magoa?

Chorar, sempre chorar até á morte.

Queimar-me noite e dia n'esta fragoa.”

João Lino Mariz (Maianga da Viuva Clara – Luanda), 1890/315.

O soneto é homónimo de um poema de Cordeiro da Matta publicado

antes no corpus (1886/52) e o conteúdo altera-se ligeiramente em relação àquele. Parece bem concebido, o poema, erguendo-se sobre

decassílabos em geral bem ritmados e ganhando, por vezes, um tom

camoniano (sobretudo no último terceto).

Camilo Castelo Branco, num dos poucos poemas em verso que

escreveu, intitulado «A maior dor humana» e feito “na morte quasi

simultanea dos dois filhos de Teophilo Braga” (Cardoso, [1920] p. 12),

distribui de maneira igual a rima pelos tercetos, emparelhado-a no

entanto ao longo dos oito primeiros versos. O procedimento não ficou

inédito: Gonçalves Crespo termina com ele as encantadas Miniaturas. No Brasil, Cruz e Sousa usa a distribuição de Crespo e Castelo Branco,

mas num soneto heterométrico («Dilema», v. atrás «Escárnio perfumado»), também na «Metamorfose» (que tem uma rima imperfeita

no primeiro quarteto), no «Espiritualismo», na «Alma antiga», em «A

partida» (os três últimos em decassílabos), «Amor» – em dodecassílabos (Sousa, 2000-2002b pp. 17-18; Sousa, 2000-2002a pp. 71, 92, 93, 93-

94, 131). Olavo Bilac usa-o várias vezes – por exemplo nos sonetos

«Soneto», «Língua portuguesa», «Um beijo» (Bilac, 1902 pp. 3, 5, 7); nos sonetos V, VI, VIII, XI, XVII, XVIII, XXIV, XXV (“a Bocage”), XXVI, XXVIII

da «Via láctea» (Bilac, 2000-2003b pp. 5, 6, 7, 8, 11-12, 15, 16, 17); em

«As cruzadas» e «As Índias» de «Viagens» – e em quase todos os outros com a diferença de que neles se passa de ABBA para BAAB em

mudando de quarteto (Bilac, 2000-2003c pp. 5-6); em «Virgens mortas»

e «Desterro» (que são dodecassilábicos) e no soneto decassilábico «Ida»,

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de «Alma inquieta» (Bilac, 2000-2003a pp. 12, 26, 14). Parece, portanto,

que havia um cânone, subentendido provavelmente, vigorando

sobretudo no Brasil e face ao qual a distribuição do nosso Mariz

variava. Mas o próprio Olavo Bilac, embora muito menos vezes, usa a

distribuição de João Lino Mariz no soneto decassilábico «Vita nuova», da

mesma série/livro «Alma inquieta» (Bilac, 2000-2003a p. 21) e na

famosa série/livro «Via láctea», nos soneto I, XIV, XV, XXI, XVII, XXXI e XIII – “Ora, direis, ouvir estrelas”… (Bilac, 2000-2003b pp. 3, 10-11, 13-

14, 19, 9-10).

Entre os poetas que mais provavelmente (pelas datas) teriam

influenciado os nossos, em Antero de Quental é que vamos encontrar

um exemplo exatamente igual a este, um só. Não deixa por isso de ser

instigante a maior familiaridade com uma prática brasileira mas,

mesmo assim, uma prática pouco usual e tardia relativamente ao

século XIX. Talvez os nossos versejadores e poetas não estivessem tão isolados e desfasados como se pensou, talvez estivessem atualizados e

lessem, com relativa regularidade, periódicos onde se publicavam poemas de novos autores lusófonos. A pesquisa realizada sobre as

leituras que se faziam em Angola no século XIX confirma-nos isso em

grande parte.

Passemos agora a

Três distribuições menos comuns

1ª) [ABABCDCD/EEFGGF] (1890/383, datado de 18 de Fevereiro de 1888, e 1891/418) muda pelo menos uma rima de estrofe para estrofe, procedimento que é a base da sua raridade, e vem assinado por Alberto

Marques Pereira, exclusivamente:

PHEBE

Ao contemplar de noite os bellos raios da lua branca, merencoria e terna,

creio sentir os lyricos desmaios

d'uma triste canção que em mim s'interna.

E ouço na amplidão indefinida

as vibrações de estranhos instrumentos: Como que o pranto d'outra Margarida,

como que Ophelia a soluçar lamentos.

Comprehendo n'essa hora solitaria

Page 215: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

ás vezes a tristeza funeraria,

melancholica e vaga d'um ascêta,

Ou penso então na epocha affastada

em que n'uma varanda rendilhada

banhava o luar o vulto de Juliêta.

19 de Fevereiro de 1888.

Alberto Marques Pereira (Luanda), 1890/383.

*

FOR EVER

Quando morreres, eu, triste e choroso, na tua sepultura irei buscar

as saudades d'aquelle immenso goso, – sonho d'amor que nunca ha de voltar. –

Quando as sombras da noite mansamente,

baixarem dos cyprestes sobre nós,

reataremos silenciosamente dos laços d'este amor todos os nós.

E se breve não fôr – pomba ferida, –

ao pó da tua unir-se a minha vida, saciar na morte os éstos da paixão,

no intimo penar, que não se acalma,

guardarei este amor que tenho n'alma

n'um féretro – o meu próprio coração.

Alberto Marques Pereira (Loanda), 1891/418.

Como o leitor há-de, com facilidade, reparar os versos são

tendencialmente construídos em ritmo binário de 6+4 sílabas métricas (havendo alguns – muito poucos – com ritmo ternário de 4+4+2). Este

poeta possuía, sem dúvida, um especial sentido de ritmo.

Entre os autores portugueses ou lusobrasileiros de referência, os mais

assíduos frequentadores do soneto foram, sem dúvida, Gonçalves

Page 216: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Crespo e Gomes Leal — além de um Antero cujos Sonetos aparecem em

edição acessível tardiamente, como os livros dos parnasianos e simbolistas brasileiros. Num caso quanto noutro deparamo-nos com a

mudança de localização das terminações no interior de cada parte. Por

exemplo em Gonçalves Crespo (Crespo, 1942 p. 101) e nas Claridades

do Sul (Leal, 1901 p. 186), passa-se de [ABBA] para [BAAB]. Cruz e Sousa e Olavo Bilac não ignoraram essa prática, embora também não tivessem particular predileção por ela. O truque implica, por vezes, a

mudança do próprio esquema rímico de uma estrofe para outra, como

sucede ainda em Crespo (Crespo, 1942 p. 94) e nas Claridades (Leal, 1901 p. 37), onde se troca a rima cruzada do primeiro quarteto pela

emparelhada do segundo. Isso é muito mais raro ainda em Cruz e

Sousa e Bilac. Mais raro ainda, raríssimo, era mudar as rimas, de um

quarteto para outro, nesta época, e depois de um terceto para outro. Se

se começava por uma rima, por exemplo em [ar], ia-se com ela até ao

terceto e só aí era permitido mudar. Alberto Marques Pereira assina aqui, face aos líricos de referência, uma originalidade mais, aliás uma

quase antecipação.

Escrevo “antecipação” porque os tratadistas, ou não reconhecem este

esquema distributivo, ou ligam-no ao “soneto moderno”, com evidentes

limitações para nós, porque nenhum dos exemplos dados apareceu a

tempo de ser lido pelos colaboradores angolenses ou residentes. As citações de Amorim de Carvalho são tiradas de José Duro, amargo

poeta baudelaireano que viveu entre 1875 e 1899 e publicou o livro Fel em 1898 (com marcas da lírica de António Nobre e de Cesário Verde); de

Alfredo Guisado, modernista português colaborador do Orfeu, onde pontuava Fernando Pessoa com o império de sua mãe; e de Camilo

Pessanha, ainda só modificando uma das rimas, não as duas.

2.ª [ABABCDCD/EE*GG*] (S1890/147) é um procedimento idêntico a

este (limita-se a substituir a rima [F] por dois versos em branco). Integremo-lo, por isso, no mesmo tipo, como uma sua variação. O

subscritor é uma personagem da sociedade crioula de Luanda, Francisco José Camanha, que envia o espécime de “Mossamedes”,

“1889-Janeiro”, e desnecessário se torna garantir que não vi nenhuma correspondência para esta particularidade nos modelos lusitanos ou

brasileiros:

RECORDAÇÕES INTIMAS

(IMITAÇÃO) / À *** – (LOANDA)

Page 217: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Ao contemplar da noite os bellos raios

da lua branca, tão suave e terna,

creio sentir os lyricos desmaios

d'uma meiga canção que em mim se interna.

E ouço na amplidão indefinida

as vibrações d'estranhos instrumentos como que o triste pranto d'outra vida

como que Ophelia a soluçar lamentos.

Comprehendo n'essa hora solitaria

Às vezes a tristeza funeraria

Melancholica e vaga d'um asceta;

Ou penso então na épocha afastada

em que n'uma varanda rendilhada banhava a luz a tez de Marianna...

1889-Janeiro.

Francisco José Camanha (Mossamedes), S1890/147.

Não é impressão do leitor, o soneto imita mesmo outro, «Phebe»,

publicado por Alberto Marques Pereira no número para 1890, a pp. 383 e citado atrás nesta mesma secção, datado de 19 de Fevereiro de 1888

(este vem datado, como transcrevi, de “1889-Janeiro”). Na verdade quase o plagia. As pequenas diferenças sugerem, de quando em

quando, uma suavização por parte do plagiador. A substituição, no

final, de Julieta por Mariana não ajuda em nada e dá maior estranheza

ao esquema rimático. Factos que não salvam o soneto de ser isso: uma

cópia quase igual. Daí que perca interesse particular a sua distribuição

e se torne uma falsa raridade.

Francisco José Camanha envia, de Loanda, para a pp. 262 do Almanach para 1887, um artigo sobre o hábito da viuvez em Luanda e «hinterland», principalmente nos primeiros quinze dias após a morte do

marido. O artigo chama-se «Nga mutúri», sendo homónimo de uma

charadista do Dondo (cf. 1889/216) e da famosa ficção de Alfredo Troni. Assina Francisco José Camanha outra prosa de caráter etnográfico a

pp. 270 do Almanach para 1889. Publica, ainda, um polémico artigo sobre o “cariquêzo”, pedindo “que os meus patricios angolenses me defendam” (1886/175), assinando sempre de Luanda. Envia finalmente

(1889/270) um último artigo de caráter etnográfico. Provavelmente

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pertencia à mesma família de Severino José Camanha, a quem D.ª

Virgínia Toulson (viúva de João Osmundo Toulson) agradece a amizade

(Angola. Governo-geral, 1874 p. 52). Severino José Camanha teria

ligações ao Dondo. Pelo menos foi 2.º secretário da comissão para criar

uma corporação de bombeiros na localidade em 1874 (Angola. Governo-

geral, 1874 p. 178). Em Dezembro do mesmo ano se veio a achar em

liquidação, pedindo que lhe pagassem as dívidas (Angola. Governo-

geral, 1874 p. 587).

No número 63 do Boletim oficial, de 21 de Novembro de 1846 (p. 1), F. J. Camanha é nomeado vogal do Conselho de Guerra, dando-se como

Capitão desligado. Em se tratando da mesma pessoa, seria já homem

idoso quando publicou este soneto, o que parece desmentido pelo artigo

sobre os colaboradores angolanos publicado por D.ª Bernardina Neves a

pp. 268 do Almanach para 1883, por onde se depreende ser igualmente

F. J. Camanha um “patricio” angolense, mas jovem, dos “mais novos”. O

Capitão Camanha seria, quem sabe, progenitor do poeta.

3.ª Há, no final do período investigado (1900/118), uma segunda

sequência rímica no mínimo inusitada: [ABBA/ACACAC]. A sua raridade explica-se pela estrutura retórica adotada, que vem glosar a

declinação verbal: “Eu vi-te, tu me viste, nós nos vimos, / amei-te, tu amaste, nós amámos”... e por aí adiante, em versos de adolescente

ingénuo, que Abílio de Mendanha já não devia ser nessa altura. Como

não há muitas classes de verbos e elas se determinam pelas

terminações, viu-se o pobre versejador reduzido a três rimas – e nós

com ele.

Também me sinto escusado de comprovar que não há correspondência

para tal esquema na lírica de referência, que dificilmente se admitia tão

serôdia puberdade. Estas pequenas habilidades eram certamente desculpáveis nos álbuns onde os poemas tinham lugar e para os quais

eram escritos. Só para dar uma projeção maior ao feito, quem sabe

solicitada pela vaidosa dama, os amadores de versos e charadas se

lembravam do Almanach, funcionalizando-o no seu pequeno meio como instrumento para pedir namoro a alguém, ao mesmo tempo

secretamente e publicamente.

4.ª Comparáveis a este social e retoricamente são os dois sonetos

monórrimos (a um deles já me tinha reportado), exarados pela pena

formal mas irrequieta de Alberto Marques Pereira.

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Passemos, então, a considerar

A segunda distribuição mais frequente

[ABBA/CDCDCD] é o esquema a que mais recorria Faustino Xavier de Novaes, o amigo e companheiro de Ernesto Marecos que recorre a essa

mesma distribuição no Almanach para 1866 (169-170). O bardo portuense não estava só. Acompanhavam-no as Rimas de João Penha e terá tirado o exemplo de uma visita a Castilho (Castilho, 1904 p. 85) –

eventualmente, claro.

Fagundes Varela usa também a distribuição no soneto “Desponta a

estrela d’alva, a noite morre” (Varela, 2000;2002 p. 6) e em «Visões da

noite» (Varela, 2000;2002 p. 88). Álvares de Azevedo usa-a nos seus

poemas irónicos, venenosos e sarcásticos e na Lira dos vinte anos, em três intitulados «Soneto» e começados pelos seguintes versos: “Passei

ontem a noite junto dela”; “Os quinze anos de uma alma transparente”;

“Já da morte o palor me cobre o rosto” (Azevedo, 2000-2002 p. 53; Azevedo, sd pp. 45, 46). Castro Alves escreveu sete sonetos com esse

esquema, usando versos heroicos e sáficos (Alves, sd). Cruz e Sousa recorre a essa distribuição rimática no soneto irónico «Diatribe» (Sousa,

2000-2002b p. 16), num dos sonetos a Julieta dos Santos (mas em

dodecassílabos: “Um dia Guttemberg c'o a alma aos céus suspensa”);

logo no soneto seguinte, a ela também dedicado (“É delicada, suave, vaporosa”); num outro ainda a ela dedicado (“Lágrimas da aurora,

poemas cristalinos”); num dedicado ao seu desembarque (“Chegou

enfim, e o desembarque dela”); em «Após o noivado»; “Da mundana lida,

eis que cansado”; “De Mayseder gentil o vulto ingente” (datado de “24

dez. 1880”); “Minh’alma está agora penetrando”; “Alçando o livro colossal, ardente” – de 28.11.1882 (Sousa, 2000-2002a pp. 7-8, 10, 14,

15, 63-64, 66); «Benditas cadeias!», «Evocação», «Um ser», «Espírito

imortal», «Luz da natureza», «Asas abertas», «A grande sede», «A morte» e

«Mudez perversa» (Sousa, 2000a pp. 20, 48, 40, 25, 34-35, 38-39, 55,

24); «Enlevo», «Sem esperança», «Spleen de deuses» (Sousa, 2000b pp. 56, 28-29, 69); «Sonhador», «Visão da morte», «Foederis arca» (Sousa, sd

pp. 14, 19-20, 23). Olavo Bilac usa quase a mesma distribuição no

soneto «A um poeta» (beneditino…): quase porque troca a posição das rimas A e B do primeiro para o segundo quartetos (Bilac, sd p. 8). Onde

completamente usa o esquema, com decassílabos, é na «Via láctea» (Bilac, 2000-2003b pp. 4-5, 7-8, 12-13, 19), nos sonetos III (“Tantos

esparsos vi profundamente”), IV (“Como a floresta secular, sombria”), IX

(“De outras sei que se mostram menos frias”), XIX (“Sai a passeio, mal o

dia nasce”), XXXII (“A um poeta”).

Page 220: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Finalmente, em Angola, Cordeiro da Matta usa a distribuição também

nos sonetos em decassílabos «A um traquinas» e «O fado dos sábios»

(Cordeiro da Matta, 2001 pp. 35, 46).

Há três poemas no corpus escritos com esta geometria de rimas: dois aparecem em 1882 (de um Cândido furtado já ao ambiente tropical e de

um anónimo “Vimaranense”), o terceiro cinco anos mais tarde (de Augusto de Castro). Dois destes poetas não são significativos entre os

colaboradores; Cândido Furtado, sendo-o, é tecnicamente

extemporâneo, pelo que estas três aparições nada relevam de definitivo

sobre o conhecimento literário angolano do século XIX, sendo bem mais

significativos os dois exemplos dos Delírios. É, porém, de notar a ampla

coincidência com os sonetos de Cruz e Sousa no Brasil.

A distribuição comum

A distribuição mais frequentada é [ABBA/CCDEED]. A primeira emergência dá-se em 1884 (p. 138), desdobrada pelos três sonetos da

série «Africanas» de Eduardo Neves:

I

CANÃ'NGANA

Á sombra da palmeira sussurrante (A+T+AAA+T+AAA+T)

eu gozo as delícias de Capua, (A+T+AAA+T+AAA+T)

ouvindo com prazer cantar a ndua (1) (A+T+AAA+T+A+T+A+T)

na múrmura floresta verdejante. (A+T+AAA+T+AAA+T)

A brisa perpassando, de inconstante, (A+T+AAA+T+AAA+T)

oscula com meiguice a face tua; (A+T+AAA+T+A+T+A+T)

desprende-te essa trança e continua (A+T+A+T+A+T+AAA+T)

beijando-te esse collo provocante. (A+T+AAA+T+AAA+T)

Quem dera, minha amada, que esta vida (A+T+AAA+T+A+T+A+T)

me fosse dado vêr sempre envolvida (A+T+A+T+A+T+AAA+T) na luz do teu olhar, bella africana. (A+T+A+T+A+T+AAA+T)

Mas quando tento louco dar-te um beijo, (A+T+A+T+A+T+A+T+A+T) sem nunca saciares meu desejo (A+T+AAA+T+AAA+T)

tu foges, suspirando: – canã'ngana!(2) (A+T+AAA+T+AAA+T)

II

Page 221: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

UÁTOÁLA

E tu, que não calculas o tormento (A+T+AAA+T+AAA+T)

que soffre quem assim te vê fugir, (A+T+AAA+T+A+T+A+T)

começas lá de longe então a rir (A+T+A+T+A+T+A+T+A+T)

em quanto preza sou do desalento. (A+T+A+T+A+T+AAA+T)

E eu que dava a vida num momento (A+T+A+T+A+T+AAA+T)

por só um beijo teu poder fruir, (A+T+A+T+A+T+A+T+A+T)

quizera a tua imagem ver sumir (A+T+AAA+T+A+T+A+T)

p'ra sempre no voraz esquecimento... (A+T+AAA+T+AAA+T)

Mas quando tu me vês desanimado, (A+T+AAA+T+AAA+T)

o meu olhar sem luz, embaciado, (AAA+T+A+T+AAA+T)

com o peito arquejante e preza a falla; (AA+T+AA+T+A+T+A+T)

Vens assentar-te logo ao pé de mim, (T+AA+T+A+T+A+T+A+T)

e um beijo, um beijo teu39 me dás por fim (A+T+A+T+A+T+A+T+A+T)

dizendo com meiguice: - uátóála...(3) (A+T+AAA+T+AAA+T)

III

CÁ RIQUÊZO...

Que grata sensação, e que alegria (A+T+AAA+T+AAA+T)

me fazes n'esse instante desfructar (A+T+AAA+T+AAA+T)

que sinto com mais força palpitar (A+T+AAA+T+AAA+T)

meu pobre coração, que esmorecia!... (A+T+AAA+T+AAA+T)

Nem eu te sei dizer o que seria (A+T+AAA+T+AAA+T) de mim, se não chegasse a alcançar (A+T+AAA+T+AAA+T)

o beijo, com que então vens revocar (A+T+AAA+T+AAA+T) á vida, a minha esp'rança que morria!... (A+T+AAA+T+AAA+T)

Agora que eu me sinto satisfeito, (A+T+AAA+T+AAA+T)

que vejo levemente arfar teu peito, (A+T+AAA+T+A+T+A+T) e sinto o meu olhar pelo teu prêso; (A+T+AAA+T+AAA+T)

Só quero que tu digas, minha amada, (A+T+AAA+T+AAA+T) por essa linda bocca perfumada:- (A+T+AAA+T+AAA+T)

39 Compare-se este verso e as três últimas estrofes do soneto com esta passagem de Álvares de Azevedo em poema sem título: “Um beijo - um beijo só! eu não pedia / Senão um beijo seu / E nas horas do amor e do silêncio / Juntá-la ao peito meu!” (Azevedo, sd p. 10).

Page 222: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

mungo ngu tumissa cá riquêzo!...(4) (A+T+AA+T+AAA+T)

(1) ave;

(2) não senhor;

(3) “A traduça litteral d'esta phrase quer dizer; – está doce. –

Emprego-a no sentido de quem quer dizer: é tão bom.” (4) “amanhã mando-te um bocado de colla”.

Eduardo Neves (Loanda ), 1884/138.

Fui assinalando o jogo entre vogais curtas, átonas ou atonizadas, e

vogais ao mesmo tempo longas e tónicas para que o leitor se aperceba

da vivacidade e do nível de organização rítmica do poema. Apesar das

hesitações que podemos ter em alguma secção de verso, facilmente se reconhece a existência de um duplo padrão rítmico, em qualquer dos

casos ascendente: binário (A+T) e quaternário (AAA+T), associados em

quase todos os versos e com predominância de uma secção binária seguida por duas quaternárias. Esse padrão duplo encontra vibração no

panorama rítmico mais geral, uma vez que a maioria dos versos tem

acento ou cesura principais nas sílabas 6 e 10 mas há também um

acento secundário na 2.ª sílaba na maioria dos versos. Isso dá a mesma sequência de ritmo binário (2 sílabas iniciais, A+T), com duas secções

quaternárias (4+4, AAAT+AAAT). Os versos que não são assim

constituem variações dessas sequências. Os versos apresentam,

portanto, um ritmo simultaneamente vivo e claro, de padrão percetível

logo à primeira leitura embora não fossilizado, não repetido mecanicamente, portanto com alterações que traduzem a sua

autenticidade.

O jogo das rimas é também interessante para além do esquema distributivo mais notório. O primeiro soneto só tem rimas graves; o

segundo faz uma sequência curiosa, próxima do esquema distributivo

geral: GAAG+GAAG+GGG+AAG; o terceiro faz uma síntese entre os dois anteriores: as quadras rimam como no segundo (GAAG) e os tercetos

são todos em rimas graves como no primeiro.

Quanto à distribuição de pobres e ricas ela realiza-se numa sequência

dinâmica, alternada, com rimas ricas incrustando-se no meio da

natural predominância das concorrentes. O recurso a frases em quimbundo acentua-lhe o interesse, levando o leitor a pensar na

tradução para saber se a rima é rica ou pobre. Isso não só instila o

Page 223: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

quimbundo no meio do português incisivamente, leva a uma riqueza

suplementar: a de se acumular rimas em línguas diferentes.

Se o leitor ouvir toda esta orquestra a funcionar ao mesmo tempo

reconhecerá não serem só a visualidade, o pitoresco, a representação

diegética os fatores atrativos no poema. Também o ritmo e a rima nos

dão uma imagem de clareza viva, de jogo e de luz, sabiamente

articulados.

Mais uma vez não me interessa até que ponto foi trabalho consciente,

porque não é assunto que possa resolver aqui. Apenas ausculto, como

recetor, o que me é dado ouvir e organizo a minha receção. Mas acredito

que, se as vibrações da voz e dos instrumentos resultam naturalmente

da intensidade que sentimos aos usá-los, então as vibrações das rimas

e dos ritmos são também resultantes da mesma intensidade. E tudo o

que vivemos intensamente nos marca, acedendo, por essa mesma

tónica intensa, à consciência, à vigília.

A segunda ocorrência deste esquema rímico surge em 1885 (p. 157), dedicada a outra figura que a Luanda crioula conhecia, Francisco Maria

Quintela d’Assis e subscrita igualmente por Eduardo Neves; a terceira

publica-se no número para 1891, a pp. 316 (ainda subscrita por

Eduardo Neves); a quarta ocorrência vem assinada por A. C. Moraes

(1887/175) e a quinta por Alberto Marques Pereira (1893/223):

METEMPSYCHOSE

Dizem após a morte nada existe de tudo que se deu por este mundo. D'esse problema o tenebroso fundo

quem pode lá saber em que consiste?

Quando a hora final já nada diste do viver que correu n'um mal profundo, sentirei lentamente n'um segundo

os vermes a roer meu corpo triste.

Então, se a um outro ser minh'alma fôr,

separada do meu já sem vigor,

unida a outro destino, transmigrada,

eu tenho em mim a fé, esta certeza:

que, vivendo n'uma outra natureza, pulsará só por ti, oh minha amada!

Page 224: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

21 de Janeiro de 1888.

Alberto Marques Pereira (Loanda), 1893/223.

Talvez no primeiro verso falte a palavra ‘que’. Não que seja erro escrever assim a frase, mas ela até ajudava ao ritmo, intercalando uma

consoante entre duas, melhor, entre um ditongo e uma vogal que são

para ler em separado. Pode, em alternativa, faltar um sinal de

pontuação (dois pontos – dizem: após a morte nada existe). De qualquer

modo o ritmo conta-se da mesma maneira. Embora num momento ou

noutro forçando um pouco, a maioria dos versos soa naturalmente no

seu ritmo dominante, heroico. Um acento secundário oscila mais, entre

as sílabas 2, 3 e 4 em cada verso, introduzindo maior dinamismo ao

conjunto.

No que diz respeito às rimas, o conjunto é de rimas graves com exceção

dos dois primeiros versos do primeiro terceto – os mesmos que, no

conjunto dos tercetos, são responsáveis pelas rimas ricas.

Não tendo o brilho nem o conseguimento dos sonetos de «Africanas»,

este é, ainda assim, nos aspetos considerados (ritmo e rima), um soneto

com interesse.

A dominância do esquema distributivo deve-se, como é fácil de ver, a

Eduardo Neves, pelo que a sua presença pode ser justificada por uma

opção particular e respetiva influência, de resto limitada a mais duas aparições, não muito fulgurantes. Esta escolha, se por acaso deriva de um contemporâneo português ou luso-brasileiro, só pode vir de três

nomes: Gomes Leal, Antero de Quental ou Gonçalves Crespo. Em se

tratando de sonetos, é natural que o trio seja este, visto os

ultrarromânticos não se dedicarem à quatorzena.

Gomes Leal ilustra profusamente a sua preferência (Leal, 1901 pp. 29,

33, 34, 41, 44, 50, 55, 60, 147, 157, 159, 165, 166, 262, 263, 277, 286, 287, 289, 306, 319). Antero de Quental integra neste esquema rímico

nada menos que 47 dos 108 sonetos da edição compulsada, o que dá a

maior percentagem de frequência para os seus sonetos (43,5%). Quanto a Gonçalves Crespo, explora muitas vezes a distribuição nos tercetos

dos sonetos decassilábicos (e também dodecassilábicos), mas só lhe

observei três coincidências absolutas (Crespo, 1942 pp. 125, 126, 167),

em sonetos reunidos, os dois primeiros, em Miniaturas, e, o terceiro, em

Nocturnos. Apesar de escassas, as recorrências do parnasiano luso-brasileiro podem estar na origem da preferência de algum dos três

Page 225: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

colaboradores. Há pelo menos mais uma coincidência que fortalece essa

hipótese para o caso de Eduardo Neves.

Os primeiros sonetos do corpus que recorrem a esta solução distributiva formam, como disse, a série «Africanas». Cada um deles é, na verdade,

um pequeno episódio de uma breve narrativa que recorda as de «N’um

Batuque» e de «Kicôla». O soneto, como sistema estrófico, aparece normalmente isolado, forma sozinho um poema. Nos poetas do século

passado lidos por mim sistematicamente, só em Gonçalves Crespo, em

peças datadas de 1870, todas incluídas nas Miniaturas, e em outras posteriores, encontro um aproveitamento que escapa à regra, fazendo

equiparar um soneto ao episódio de uma história. O facto concretiza a

intuição difusa de Maria Antonieta Raymundo Moisés ao reconhecer,

em Miniaturas, “certo tom narrativo”, objetivando a “emoção poética [...] através de variados pormenores descritivos” (Pequeno dicionário de

literatura brasileira, 1987 p. 127) – o que é uma caraterística principal de «Africanas», a par da sua … africanidade. Por isso penso ter havido,

em paralelo com outras ou não, influência de Gonçalves Crespo sobre Eduardo Neves neste caso, ou pelo menos uma coincidência de escolhas

que é também muito significativa. As datas admitem que se trate de

influência, até no que diz respeito aos Noturnos, que saem em pleno auge da popularidade de Gonçalves Crespo (Pequeno dicionário de

literatura brasileira, 1987 p. 126), um ano antes daquele em que devia

ter sido escrito o primeiro soneto do colaborador do Dondo.

Uma segunda influência podia vir de Gomes Leal, das Claridades do Sul, precisamente por causa da sensual clareza de alguns dos quadros (até narrativos, de quando em quando) aí explorados com humor fino

também. Leia-se, por exemplo, «Hora do meio dia», soneto com a mesma distribuição rimática, escrito em versos heroicos; «Selvagem» – com

desejado cenário final que lembra as «Africanas»; «O amor do vermelho»

e «A um corpo perfeito», «A jovem miss», «Hora mística», «Fantasias», «Canibal» – dedicado a Cesário Verde, «Aventuras» (Leal, 1875 pp. 25,

125,126, 151, 209, 232, 246, 252, 256), ou as suas muitas alegorias. De igual modo me parece que Eduardo Neves se identificaria com o

ideal de uma lírica “mais sadia, forte e verdadeira, que não despreze o

amor, nem a imaginação, nem a liberdade” e que fuja “do exagero e do mau gosto” (Leal, 1875 pp. V, VII). Uma poesia, por isso também,

híbrida face às ortodoxias, aos cânones e programas literários – a

heterodoxia poética defendida por Gomes Leal no posfácio às Claridades do Sul.

Page 226: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

O último dos exemplos, «Metempsychose», de Alberto Marques Pereira,

glosa por sua vez o título de um homónimo de Antero de Quental,

escrito entre 1860 e 1862 (pouco antes, portanto, de o residente

versejador ter nascido) e recolhido nas Primaveras românticas. Mas, apesar de possuírem os dois a mesma métrica e a mesma sequência

rimática, e apesar de ambos se reportarem a uma alteridade absoluta (a

que o título desde logo obrigava), são opostos nos motivos perfilhados, nos intertextos aglomerados e nos conceitos e imagens que rodeiam

essa alteridade ou a representam.

O além de Alberto Marques Pereira é o do «Noivado do sepulcro», de

Soares de Passos, seco de sangue mas ainda com pessoas e paixões

(apesar das estéticas diferenças). A transcendência de Antero é nova e

paradoxal: ela surpreende na matéria fria a origem de um corpo em

“fogo estreme” (que é uma expressão comum entre os ultrarromânticos),

razão pela qual termina com o vigor de um coro de Verdi: “Lôbas, leões! sim, bebei meu sangue!” – tão oposta ao puído pulsar “só por ti, oh

minha amada!” de Alberto Marques Pereira, poeta irrequieto apenas na arquiteturação das rimas. A veemência retórica de um e a sonolência

imagística de outro atingem o nível das frases (Antero abusa das

exclamativas mas usa o modo imperativo com veemência, modo que

está ausente da “metempsychose” de A. M. Pereira). Há, ainda, último

pormenor diferenciador: duas rimas em agudo no segundo terceto da composição do nosso metempsicótico, não se constatando a presença de

nenhuma rima aguda no homónimo de Antero.

No Brasil Cruz e Sousa (eventualmente mais alguém) escreveu também

um soneto sob esse título e com a mesma distribuição rimática. Mas,

uma vez mais, as diferenças acabam por aí. Tirando a imagem (que faz lembrar Augusto dos Anjos) dos “vermes a roer meu corpo triste”, ainda

que “lentamente num segundo”, nada mais é de realçar na quatorzena do nosso versejador, à qual a própria colocação da situação dramática

no futuro enfraquece. Cruz e Sousa fala do assunto no presente, retrata

o corpo já ressequido, depois da alma que estará, quem sabe, já no céu, passa de novo pela visão do corpo e remata com um apelo à

ressurreição da mulher de tal forma que a imortalidade é a dela, pela

sua beleza e pureza. Di-lo com estas palavras:

Agora, já que apodreceu a argila

Do teu corpo divino e sacrossanto; Que embalsamaram de magoado pranto

A tua carne, na mudez tranqüila,

Agora, que nos Céus, talvez, se asila

Page 227: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Aquela graça e luminoso encanto

De virginal e pálido amaranto

Entre a Harmonia que nos Céus desfila.

Que da morte o estupor macabro e feio

Congelou as magnólias do teu seio,

Por entre catalépticas visões...

Surge, Bela das Belas, na Beleza

Do transcendentalismo da Pureza,

Nas brancas, imortais Ressurreições!

Alberto Marques Pereira começa por aquele verso infeliz e nunca atinge

um rasgo de génio, um voo, aceno que fosse, que reverta o discurso

para uma superação da nossa expetativa e nos deslumbre. Dá-nos a

moeda gasta do amor eterno com um vocabulário sem vigor, uma lira sem tremor nem veemência e uma chave, não de outro, de barro já

rachado. A imortalidade será a dele, encolhido noutro ser, transmigrado

mas ainda a pensar nela – superando sem dúvida o burro de Apuleio...

Cruz e Sousa versa largamente a mesma distribuição, que não foi a

mais popular no Brasil do século XIX. Que tenha visto, fá-lo no soneto

«Decadentes», em três dedicados a Julieta dos Santos (“Dizem que a arte é a clâmide de idéia”; “Imaginai um misto de alvoradas”; “Quando

apareces, fica-se impassível”), em «Dormindo», «Crença», «Eterno sonho», «Vanda», «Êxtase», «Celeste», «Natureza» (“aos poetas”), «Plangência da

tarde», «Frutas e flores», «Luar», “Estas risadas límpidas e frescas”, «Ideal comum» (“escrito a quatro mãos” com Óscar Rosas), “Rompeu-se

o denso véu do atroz marasmo”, “É um pensar flamejador, dardânico”

(“Desterro, 13 jan. 1883”), «Colar de pérolas», “Anda-me a alma inteira

de tal sorte”, «Noiva e triste», «Mãe e filho», «Surdinas», «Irradiações»,

«Ambos», «Os dois», «Triste», «Aos mortos», «Luar», «Mocidade», «Soneto»

(“Vão-se de todo os pardacentos nimbos...”), «Cega», «A ermida», «Água-forte», «Alma que chora», «Chuva de couro», «Primavera a fora», «Ninho

abandonado», «Crença», «Cristo e a adúltera», «Êxtase de mármore», «Inverno», «Falando ao céu», «Gloriosa», «O chalé», «Ilusões mortas» (“a

Virgílio Várzea”), «O sonho do astrólogo», «Cristo», «Frutas de Maio»,

«Eterno sonho», «Impassível», “Do som, da luz entre os joviais duetos”, «To sleep, to dream», «Visão medieva», «Recordação», «Canção de Abril»,

“Brancas Aparições, Visões renanas”, «Glórias antigas», «Ocasos», «Na fonte», «Plenilúnio», «Manhã», «Hóstias», «Psicologia humana», «Os

mortos», «Verônica», «Símiles», «A freira morta», «Claro e escuro», «Horas

de sombra», «Aleluia! Aleluia!», «Rosa negra», «Vozinha», «No Egito»,

Page 228: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

«Repouso», «Requiescat…», «Doce abismo», «Harpas eternas», «Dupla Via

Láctea», «Titãs negros», «Entre chamas», «O anjo da redenção», «Salvé!

Rainha!...», “Quando eu partir, que eterna e que infinita”, «Sempre e…

sempre»; em Broquéis (que sai no ano de 1893) a distribuição revela-se «Em sonhos…» (com uma rima imperfeita no primeiro quarteto), «Cristo

de bronze», «Clamando…», «Braços» (com a rima D imperfeita nos sons

vocálicos), «Sonho branco», «Canção da formosura», «Torre de ouro», «Carnal e místico», «A dor», «Encarnação», «Noiva da agonia», «Satã»,

«Afra», «Primeira comunhão», «Judia», «Deusa serena», «Tulipa real»,

«Dança do ventre», «Flor do mar», «Dilacerações», «Sinfonias do ocaso»,

«Rebelado», «Música misteriosa», «Serpente de cabelos», «Alda», «Acrobata

da dor», «Lembranças apagadas», «Majestade caída», «Incensos», «Luz

dolorosa»; dos Últimos sonetos (que saem já em Paris em 1905) todos exceto «Cárcere das almas», «Benditas cadeias!», «Deus do Mal», «Mudez

perversa», «Espírito imortal», «Luz da Natureza», «Asas abertas», «A

grande sede», «Um ser», «O grande sonho», «Condenação fatal», «Evocação», «Sexta-feira santa», «A morte», «Triunfo supremo»,

«Renascimento» – uma clara maioria; na sequência «Cabelos», «Olhos», «Boca», «Seios», «Mãos», «Pés», «Corpo» e em «Humildade secreta»,

«Enclausurada», «Enlevo», «Ausência misteriosa», «Metempsicose» (v.

atrás), «Visão guiadora», «Divina», «Requiem do Sol» e «As estrelas», de

Faróis (1900). É extenuante a lista, porém tão extenuante quanto

insinuante a constância da distribuição no poeta negro brasileiro.

No mesmo Brasil, Olavo Bilac virá a praticar esta distribuição muito

pouco. Por exemplo no soneto XVI da sequência/livro «Via láctea», o

único onde a vi. Temos aqui, portanto, a última demonstração, também

a mais cabal, das afinidades entre a lírica de Cruz e Sousa e a dos nossos colaboradores. Se por acaso algum poema ou livro seu

frequentou bibliotecas e lojas angolenses nesse tempo, será matéria a investigar. Se há outros autores, os que não pesquisei, que venham a

revelar a mesma concordância, por igual é matéria para se inquirir. Mas

que a afinidade existe, isso é indubitável.

Os tratadistas e as distribuições encontradas

Castilho condiciona a composição de sonetos ao sistema distributivo praticado pelos “nossos antigos” (Castilho, 1874 p. 127):

[ABBA/CDCDCD]. Acabámos de ver que esse é o segundo esquema preferido no corpus. É um segundo lugar onde cabem só três ocorrências – e nenhuma delas importante para determinarmos o

conhecimento poético local.

Entretanto esses dados precisam de ser completados com outros e o

facto é que Joaquim Dias Cordeiro da Matta parece recorrer

Page 229: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

preferencialmente a esse esquema rimático: fá-lo sete vezes em nove nos

Delírios, sendo que, das outras, no que diz respeito aos tercetos, é essa a distribuição – exceto num, no qual há uma facilidade: CDC/DDC.

Neste aspeto, portanto, as lições do mestre não tiveram seguimento

entre os colaboradores do Almanach mas parecem ter tido num dos

mais importantes poetas do nosso século XIX.

Contraditoriamente o Visconde reconhece, mais adiante, que “os

italianos e os nossos quinhentistas punham às vezes nos tercetos”

[CDE], como Alberto Marques Pereira no seu soneto hexassilábico, mas para logo rebater: “o uso desterrou com razão os tercetos desta espécie”

(Castilho, 1874 p. 136) – que no entanto se encontram, mesmo que

esparsos, em poetas brasileiros do século XIX.

Sete páginas antes ele reconheceria também, quanto aos quartetos, que

já tinha havido quem os cruzasse, como vários dos nossos

colaboradores. Entre eles Eduardo Neves, o mesmo Alberto Marques Pereira e Francisco José Camanha na sua peugada. Os angolenses e

residentes misturavam, portanto, sistemas rímicos dos quartetos e dos tercetos que eram típicos dos paradigmas clássicos, e por vezes

misturavam um sistema clássico a outro por eles inventado. Não

havendo cânones ultrarromânticos ou românticos para o soneto,

socorriam-se da mascaração das antigas soluções para afirmarem a contemporaneidade do seu trabalho. Aí é que foram “modernos” – mais

uma vez: formalmente.

Quanto a Amorim de Carvalho, também ele estuda separadamente “a

rima nas quadras do soneto” (Carvalho, 1987 p. 64 ss). O

condicionamento do leitor está garantido pela adjetivação do esquema, não só como clássico, também dos “mais prestigiosos” (Carvalho, 1987

pp. 63, 66). Ele aceita, a par de Castilho, que a rima cruzada “tem-se admitido frequentemente” nesse sistema rímico, passando a descrever

as inversões de ordem das rimas e, num dos casos, das distribuições rimáticas, de um para outro quarteto. Porém, quanto à mudança de rima do primeiro para o segundo quarteto, ela surge só quando se fala

no soneto moderno, com exemplos acima já citados.

Todas as distribuições rimáticas encontradas para a primeira metade

dos sonetos estão registadas por Amorim de Carvalho nesse passo, embora nem todas estejam descritas por Castilho e embora a última

seja exemplificada, na Teoria geral da versificação, apenas através de poetas que, seguramente, não influenciaram os estudados –mais uma solução formalmente antecipadora de algumas (raras) composições do

Almanach.

Page 230: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

Quanto aos tercetos, a distribuição mais comum ([CCDEED]), com nove

ocorrências, aparece referida entre casos, também “modernos” (com um

soneto de Marta de Mesquita da Câmara, poetisa de um

ultrarromantismo serôdio, ilhado já no século XX), de peças com

tercetos do soneto clássico com três rimas (Carvalho, 1987 p. 68). Mas

aqui o tratadista não é seguro, porque sabemos que Gonçalves Crespo,

Antero de Quental, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, Cruz e Sousa e mesmo Bilac usaram essa terminação também, como se pode ver pelas

referências anteriores. Releia-se ainda, de Gomes Leal, «A noite do

noivado» (Cardoso, [1920] p. 19; Leal, 1875 p. 97) e, de Guerra

Junqueiro, «Post-Scriptum» (Cardoso, [1920] p. 20) Qualquer deles, no

entanto, mesmo quando começou pelo ultrarromantismo, abandonou a

escola aderindo a novas conceções da poesia que os colaboradores não

partilhavam.

Uma distribuição para os tercetos parecida com esta última visita,

apenas uma vez, o corpus e não vem descrita por Amorim de Carvalho: [AABAAB] (há, na Teoria geral da versificação, um esquema inverso desse [CDDCDD], mas não com as rimas dos quartetos). O seu autor é,

mais uma vez, Alberto Marques Pereira.

A estrutura [CDCDCD], a “mais prestigiosa”, como vimos, não é a mais

comum no corpus (três ocorrências apenas).

Quanto às restantes distribuições, [CDECDE] ocorre duas vezes ao todo

(1895/140, na composição de Alberto Marques Pereira, e 1897/99, num

poema de Jorge de Lucena) sendo referida por Amorim de Carvalho

como “a mais interessante [...] pela sua regularidade” entre as que possuem três rimas, exemplificando-se com Luís de Camões (Carvalho,

1987 pp. 66-67). Essa distribuição não é, porém, pelo que vimos, dominante na poesia lírica portuguesa e brasileira investigadas. Nos

sonetos de Antero, por exemplo, vem à luz apenas cinco vezes, num

universo de 108 sonetos, e nas Claridades do Sul só detetei uma presença. Gonçalves Crespo utiliza-a nas Miniaturas, mas também com parcimónia (Crespo, 1942 pp. 93, 94, 100, 118 ). Os brasileiros

consultados usam-na poucas vezes. Alberto Marques Pereira terá, neste

caso, ido beber à mesma fonte que Leonor – a de Luís de Camões.

A distribuição [CDCEDE], que não tem parceria no corpus, acompanha-se com um exemplo de Alberto de Oliveira40. Amorim de Carvalho fala

40 Homónimo do poeta português, este, brasileiro, publicou em 1878 o seu primeiro livro, Canções Românticas; livro de facto romântico, teve a sua “contradicção” na obra Sonetos e Poemas, apodada de parnasianismo ortodoxo (Dicionário de Literatura, vol. III, p. 753) e publicada em 1885. É, no geral, visto

Page 231: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

nela a par das que, a partir do soneto clássico, apresentam

“modernamente” três rimas (Carvalho, 1987 p. 68). No entanto, como

vimos acima, Camilo Castelo Branco usa essa distribuição num soneto

seu. Nos sonetos de Antero de Quental ela é mesmo a segunda mais

frequente, ocorrendo numa percentagem de 30,5% (33 vezes), por

oposição à mais comum ([CCDEED]). Gonçalves Crespo, nas Miniaturas, recorre apenas uma vez ao esquema (Crespo, 1942 p. 139), apesar disso mais comum entre os escritores de referência que nos colaboradores

angolenses ou residentes.

A conclusão a tirar a partir destas comparações é significativa do grau

de variação e da situação intermédia em que se encontravam os nossos

colaboradores. Escrevendo num tempo em que o próprio

ultrarromantismo já admitia a composição de sonetos, mas não a

tornava canónica, eles não tinham muitos modelos para seguir entre os

seus mestres e paradigmas. Por isso recorreram alternativamente aos clássicos, aos “novos” e à mistura dos dois que gerou algumas soluções

pessoais interessantes do ponto de vista técnico mas, infelizmente, não

foi além disso.

O dado mais importante a reter é o da significativa coincidência dessas

práticas com as de poetas brasileiros como Cruz e Sousa (que foi

parnasiano e simbolista) e Olavo Bilac (parnasiano), mesmo com poetas românticos da segunda geração (Álvares de Azevedo sobretudo), apesar

de eles pouco visitarem o soneto e, como na última fase do

ultrarromantismo português, o fazerem com ironia.

formalmente como parnasiano, embora o conteúdo dos seus poemas pareça indicar-nos um poeta intrinsecamente romântico.

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Conclusão

Ao fim destes anos de pesquisa, agora acompanhado pelo raro leitor que

chegou até aqui, há conclusões a tirar.

Vou concluir a parte que me cabe; os mais habilitados continuarão este

último capítulo dando prosseguimento ao meu trabalho.

O primeiro resultado a salientar é o de que, entre os nossos patrícios

angolenses e os estrangeiros residentes, havia pessoas esclarecidas,

atualizadas e pensantes que trouxeram para o país alguma notícia do

que se praticava ‘lá fora’, na semiosfera euroamericana e

particularmente na lusófona. Isso mesmo se tornará mais claro quando

publicar o segundo volume destas investigações, relativo aos livros que

eram lidos em Angola no século XIX.

É uma conclusão que puxa por outra: o perfil literário dos nossos versejadores era tendencialmente conservador e revelava uma forte

sujeição à função social, ou socializadora, da poesia. Digo social, não

política, nem muito menos partidária – isso foi só com a geração

seguinte, a da Luz e crença. Socializadora porque a composição e circulação de poemas inscrevia-se nos processos de socialização

quotidiana com funções precisas de elogio, captação de amizade, apoio

a pedidos de favores (incluindo amorosos). Uma tal poesia tinha que

manter-se ao nível médio e medíocre dos cânones mais populares, para

ser bem sentida, quando não percebida e sentida, pelo seu público imediato. Julgo vir daí a timidez nas inovações, principalmente ao nível

dos conteúdos. Por consequência, as novidades literárias eram muito

moderadamente integradas na formulação poética e daí terá resultado a

impressão de que seria por ignorância, desconhecimento da evolução da

poesia europeia e americana, que os nossos escritores se mantiveram apegados ao chamado ultrarromantismo – como vimos popular até

muito tarde, mesmo em Portugal e no Brasil.

O interesse dos poemas e das raras inovações residia na organização

formal dos versos e das estrofes. O facto é concordante com a própria

organização social da época. Vivemos nesse tempo em comunidades marcadamente formais e a poesia dava conta disso pela sua parte. O

que se conjuga bem à forte socialização no âmbito da qual surgia e se

divulgava. O casamento da redundância de conteúdo com as agudezas, inovações e habilidades formais permitia manter o nível médio de

perceção para a maioria do público-alvo, satisfazendo ao mesmo tempo

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os mais perspicazes – pelo que lhes era transmitido a partir da forma,

das siglas, enfim, da codificação técnica.

Mesmo a diferença mais vincada, constituída por Pedro Félix Machado,

não deixava de todo essa marca de formalidade, nem o atrativo do

segredo partilhado. Repare-se na secção mais intrigante do título do seu

romance: Scenas d’África / ? / romance íntimo. Também no interior dessa ficção narrativa em prosa se nota a marca de sociabilidade e

formalidade sob a qual caminhavam os segredos íntimos que muitas

vezes resultavam em sucessos aparentemente inexplicáveis. Ou melhor:

inexplicáveis para quem não conhecia os mujimbos circundantes.

Quero lembrar com isto que a leitura dos nossos poetas novecentistas

deve-se fazer com muita cautela. Há também que levar em conta o que

foi esse tempo e como, nele, viviam os pequenos núcleos urbanos

angolenses. Mas não só.

No que diz respeito à literatura, à poesia lírica em verso mais

precisamente, o estudo técnico ou formal da produção local nos assegura, melhor do que análises de contexto e conteúdo, as filiações e

o começo de uma organização textual interna, as afinidades e

influências dentro do nascente sistema literário angolano. Por aí vemos,

por exemplo, que é mais funda do que pensavam alguns estudiosos a

ligação entre a lírica de Maia Ferreira e a dos poetas angolenses da segunda metade do século XIX. A sua habilidade e versatilidade técnica

depara com um excelente paralelo, naturalmente situado umas décadas

depois, que é a lírica de Cordeiro da Matta: a mesma vivacidade

estrófica, métrica, rímica e rítmica; o mesmo dinamismo e habilidade formais; o mesmo vocabulário requentado para no entanto veicular

conteúdos nem sempre corriqueiros ou de cliché – conteúdos que exigem uma leitura mais cuidada dos versos, dos artifícios, desde os

enunciativos e da versificação até aos tipográficos. Até a mesma

sugestão de factos biográficos descritos no vago, ou na penumbra – que

protegem a privacidade (se não a liberdade) do autor.

Em segundo lugar deve-se levar em conta que as contribuições das

tradições orais africanas, conviventes e circundantes, eram feitas – por força dos paradigmas da poesia culta da época, onde não se previa a

inserção de uma sabedoria poética africana – geralmente feitas por uma via subterrânea, que nem por isso deixará de ser estruturante ou

coincidir com as opções principais que regularam o fazer poético de

então. Daí, em parte, o formalismo, o apego à codificação reconhecida, o conservadorismo estético, as analogias geométricas construídas como

desenhos na areia sobre aspetos técnicos do verso, o sentido do oculto

Page 234: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

que levava a construir uma representação explícita e outra mais subtil,

escondida, que o leitor próximo conhecia por mujimbos e o leitor arguto

havia de supor habilmente pela descodificação de mensagens cifradas,

de que esteve sempre cheio o quotidiano.

Para identificarmos as leituras ocultas torna-se necessário, mais uma

vez, procedermos a análises estruturais e formais estritas, em que o próprio texto nos dita os sentidos que vamos explorar. A necessidade de

dar atenção ao contexto não elimina a maior necessidade ainda de dar

atenção ao texto. Ou seja: precisamos sensibilizar-nos o mais possível

com a organização interna do texto para, só num momento posterior,

retomarmos as ligações aos dias de ontem e de hoje que nos

completarão, desmentirão ou confirmarão as análises. Esse é, de resto,

o garante da ‘eternidade’ dos versos, pois é a partir desse tipo de análise

que o texto continuará a funcionar fora do seu tempo e do seu local de

origem. Fora dele, mas não contra ele ou ignorando-o, ou forçando-o a

ser o que não podia mesmo ser.

É preciso também lermos estes poemas com os dicionários da época, levando em conta que eles dialogam, numa linguagem contemporânea,

com os preconceitos e os limites sociais do seu tempo. Não podemos,

portanto, esperar dos nossos versejadores grandes arrojos

vanguardistas, nem de outro tipo (ao nível mesmo dos conteúdos). Temos de nos compenetrar sempre do facto de eles estarem a escrever

dentro de um âmbito cultural mediano, quando não medíocre e no

interior de um sistema colonial que limitava, mesmo com o liberalismo,

uma expressão plenamente livre. Para lhes descobrirmos a beleza ou o

interesse precisamos retirar (o que implica capacidade para identificar)

a ganga da época e interpretar as subtilezas, os recessos, as não-aparências e as aparentes redundâncias que redundam, por vezes, em

meios para velar o conteúdo. Havemos de ouvir também alguns poetastros de bairro que, quando querem impressionar as suas damas

hoje, ou impressionar os outros ‘trovadores’, usam ainda uma

linguagem poética requentada que lembra alguns dos poemas estudados. Havemos de ouvir a recuperação do termo ‘dama’, por

exemplo, na Angola de hoje – que substituiu o localismo ‘garina’. E

mesmo os que se entusiasmam se lhes pusermos nas mãos alguns dos mais conseguidos destes versos lamechas e sentimentalões. Portanto

veremos que algo ficou desses tempos a latejar no fundo obscuro do que

um discípulo de Jung chamaria o inconsciente coletivo angolano, ou a circular quase impercetivelmente na semiosfera do novo país. Por algum

motivo que um dia vamos descobrir. Entretanto, não trairemos nossa

herança estética.

Page 235: Kicola: estudos sobre a literatura angolana no século XIX - I

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