intencionalidade, causalidade e as vicissitudes do funcionalismo

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  • 7/29/2019 Intencionalidade, Causalidade e as Vicissitudes Do Funcionalismo

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    Sociedade Brasileira de SociologiaIV Congresso Nacional de SociologiaRio de Janeiro, 1 e 2 de junho de 1989Mesa redonda sobre TEORIA SOCIAL: NOVOS DESAFIOS (2-6-89)

    Intencionalidade, causalidade e as vicissitudesdo funcionalismo

    Interveno de Fbio Wanderley Reis

    Sempre que escuto o Bernardo Sorj ou converso com ele a respeitodas perspectivas e dos problemas abertos pela Biotecnologia, fico comcerto sentimento de urgncia, que por sua vez acarreta o aguamento de um

    sentido de precariedade e talvez irrelevncia do trabalho dedicado a muitosdos temas de que normalmente nos ocupamos nas cincias sociais. Mastenho a impresso de que justamente isso pode, de uma forma algo oblqua,tornar interessantes algumas idias que pensei trazer para a nossadiscusso, pois o que pretendo discutir tem a ver com uma questo que certamente central para os desafios prticos que os problemas apontados

    pelo Bernardo suscitam: a questo de intencionalidade e causalidade noplano do social e a discusso metodolgica relacionada com ela. O foco

    que escolhi para abordar esse tema permitiria tomar como uma espcie desubttulo para esta apresentao algo como "as vicissitudes dofuncionalismo".

    Um ponto de partida seria a oscilao perversa entre dois modeloscontrastantes de explicao dos fenmenos sociais, a qual assinalada porRobert Nozick em livro de alguns anos atrs (Anarchy, State and Utopia).De um lado, todas as vezes que o nvel aparente dos fenmenos sugere a

    ocorrncia de mecanismos do tipo "mo invisvel" (ou seja, de mecanismoscausais, na medida em que no envolvem ou no resultam na realizao dosdesgnios explcitos de quem quer que seja), a explicao aparece comoconsistindo em apontar a atuao, "na verdade", dos interesses ou objetivosde algum ator ou conjunto de atores -- portanto, em substituir osmecanismos de mo invisvel por algum mecanismo do tipo "mo oculta",o desgnio de algum ou de algum grupo, tipicamente um desgnio sinistroou conspiratrio, que maneja as coisas e as faz daquela forma. De outrolado, todas as vezes que o nvel aparente sugere a operao bem sucedidade agentes que buscam desgnios explcitos, e em que os processos se

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    ajustam por esse aspecto de intencionalidade a um modelo do tipo "mooculta", a explicao aparece, ao contrrio, como consistindo em mostrarque "na verdade" o ator irrelevante (Napoleo irrelevante, se nohouvesse Napoleo surgiria algum mais...) e que os mecanismos causais,

    objetivos, os mecanismos de causalidade social objetiva, fornecem a"verdadeira" explicao.

    A dificuldade que a se revela est posta de maneira muito viva coma discusso atual a respeito do enfoque da "escolha racional" -- ou, paratomar outros de seus muitos nomes, a teoria dos jogos, apublic choice nocampo da Cincia Poltica, o "marxismo analtico" de que ontem se falounesta reunio. Esse enfoque tornou-se uma indstria prspera nos ltimos

    anos, dando origem a crescente literatura, e as indagaes suscitadas nodebate em torno dele tm ramificaes de grande interesse prtico. Afinalde contas, uma questo crucial a de saber se possvel ou no agirintencionalmente no plano da sociedade e efetivamente controlar os

    processos sociais, realizando com eficcia desgnios ou objetivos de algummodo compartilhados, ou que correspondam de alguma forma a interesses

    propriamente coletivos -- um dos desdobramentos importantes de talquesto sendo a da maneira em que tais objetivos compartilhados ou

    coletivos se articulam com interesses particulares ou, no limite,estritamente individuais.

    Os temas de que o Bernardo tratou ilustram a importncia doproblema geral de maneira especialmente dramtica. Mas, num nvel maismodesto (ou pelo menos mais provinciano, de certa forma), problemasanlogos se colocam em torno da indagao, por exemplo, de comoconstruir uma democracia neste pas -- ou do que que cabe fazer paraeventualmente consolidar, se possvel em futuro no muito remoto, ademocracia que a est diante de ns como proposta. E uma vertenteinteressante do problema geral surge em conexo com a questo dofuncionalismo, com o que chamei "as vicissitudes do funcionalismo".Certamente, como abordagem, o tema do funcionalismo abarca os doislados da questo metodolgica de intencionalidade versus causalidade. Hno funcionalismo um patente elemento de teleologia, portanto deintencionalidade -- e h, por outro lado, um elemento relacionado com aidia de "sistema" que aponta na direo de uma "causalidade objetiva" em

    operao. Temos, assim, uma espcie de "teleologia objetiva", uma fuso

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    entre os dois aspectos, que me parece fornecer parte importante daexplicao para o reiterado interesse pelo funcionalismo. Vemosrepetidamente algum decretar que o funcionalismo morreu, est enterrado-- mas l vem ele sempre de novo. E nesse morrer e ressuscitar h mesmo

    matizes altamente irnicos.

    Assim, se se ponderam as circunstncias do debate sobre ofuncionalismo no momento atual com a perspectiva de 15 ou 20 anos atrs,h aspectos que se mostram inteiramente surpreendentes, redundando natotal inverso das posies de alguns dos principais contendores. H 15 ou20 anos, a Sociologia ou a cincia social mais "acadmica" erafuncionalista. J a Sociologia marxista atacava sistematicamente o

    funcionalismo e denunciava com insistncia o carter funcionalista dacincia social dominante ou estabelecida. Ora, o que temos presentemente que a cincia social que mereceria ser chamada "acadmica" (estabelecidaem torno da abordagem da escolha racional com suas vrias ramificaes esua crescente penetrao) ataca de maneira inclemente o funcionalismo --enquanto os marxistas, ou pelo menos certos setores que caberia

    provavelmente ver como mais "convencionalmente" marxistas, valem-sedefensivamente do funcionalismo contra o assalto da escolha racional e o

    reivindicam de maneira afirmativa e estridente, como o caso de GeraldCohen na Gr-Bretanha. Isso sugere que h coisas importantes e intrigantesem jogo no debate, e creio que elas tm a ver basicamente com aarticulao entre as duas dimenses destacadas.

    Vale a pena mencionar tambm rapidamente, neste contexto, otrabalho corrente de Jrgen Habermas. Se se toma, por exemplo, a Teoriada Ao Comunicativa, certamente o opus magnum de Habermas, l seencontra a contraposio entre o "mundo da vida" e o "sistema". O mundoda vida teria a ver com as orientaes da ao, vale dizer, com umadimenso que intencional (ainda que este aspecto do pensamento deHabermas obviamente comporte matizes importantes se confrontado maneira usual de entender a intencionalidade na abordagem da escolharacional, pois em Habermas o intencional do mundo da vida vai incluir deforma destacada a observncia de normas, e no o que se poderia descrevercomo a "mera" busca instrumental de fins -- aqui poderamos enveredar portoda uma complicada discusso). J na dimenso correspondente ao

    "sistema" se trataria, por contraste com o mundo da vida, das

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    consequncias da ao, ou daquele aspecto em que vem a operar umacausalidade objetiva supostamente mais adequada a um tratamentometodolgico de tipo emprico-analtico -- e de tipofuncional. Com efeito,Habermas se prope, explcita e reiteradamente, recuperar uma anlise em

    termos funcionais de acordo com essa lgica "objetiva" prpria do"sistema", ainda que afirmando os seus limites e o espao irredutvel dosaspectos comunicativos da ao, a exigirem abordagem distinta.

    Bem, para formular a partir da um par de idias que pretendosubmeter a vocs conveniente tomar como referncia um texto recente deAdam Przeworski ("Micro-foundations of Pacts in Latin America", umtexto indito, que teve at agora circulao restrita), onde ele trata, em

    ltima anlise, as mesmas questes metodolgicas bsicas em conexo como tema do estabelecimento de pactos constitucionais nos pases da AmricaLatina. Esta , naturalmente, uma forma de colocar o problema que nomomento estamos vivendo nos pases onde supostamente ocorre, como noBrasil, uma transio para a democracia: o problema de como estabelecer

    pactos que venham a ter vigncia efetiva e a representar a viabilizao deformas democrticas estveis. Do ponto de vista da nossa discusso, umaspecto a ressaltar o de que um pacto constitucional representa, em

    princpio, o exemplo por excelncia de procedimentos que envolveriam aoperao de intencionalidade no plano coletivo. As deliberaesrelacionadas com a implantao de uma nova constituio ou de um novo

    pacto constitucional representam claramente um caso ou circunstncia emque, em tese, a sociedade como tal reflete sobre si mesma, decide como vaiorganizar-se, como vo ser regulados os diversos aspectos da interaoentre os seus membros no futuro etc. Trata-se supostamente, assim, de ummomento de reflexo ou, numa formulao meio redundante, de auto-reflexo. No entanto, o interesse principal que o texto de Przeworski me

    parece ter do ponto de vista desta discusso consiste no fato de que, emrazo do apego a certa maneira caracterstica de considerar o problema daintencionalidade na forma mais convencional da abordagem da escolharacional, Przeworski levado at mesmo a definiro pacto constitucionalem termos da operao de mecanismos que no so outros seno osmecanismos do mercado. Tais mecanismos, que ele designa comoself-enforcing, correspondem idia de um ajustamento recproco entre atoresdispersos, ajustamento este que se faria espontaneamente, sem a

    interferncia de um agente de coordenao tal como o estado e sem que

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    fosse necessrio o estabelecimento de uma barganha explcita. Na verdade,a proposta de busca de um "consenso democrtico" explcito mesmo vistacomo expresso de um "legado intelectual no-democrtico" que seria emalguma medida prprio da Amrica Latina, contrapondo-se a isso a idia de

    que "a quintessncia da democracia que no h ningum para respald-lapela fora" (to enforce it). Assim, combinam-se de maneira curiosa umaconcepo radical de democracia com a pretenso de fundar a eventualimplantao constitucional da democracia num elemento de realismo, oqual diz respeito ao ajustamento entre os interesses mais ou menos mopesou imediatistas e busca instrumental deles que a perspectiva ortodoxa daabordagem da escolha racional tende a destacar.

    Do ponto de vista que mais nos interessa, porm, note-se que aproposta redunda numa ainda mais curiosa pirueta, na qual se tem umailustrao dramtica e mesmo caricatural da oscilao entre "mo oculta" e"mo invisvel": partindo-se da colocao de um problema que envolveinevitvel e centralmente a idia de intencionalidade -- da mo intencional,quer oculta ou ostensiva --, chega-se a tal formulao do problema que aoperao dessa intencionalidade e a manipulao deliberada em que elanecessariamente se traduziria surgem como s tendo condies de xito se

    se reduzirem operao de mecanismos de mo invisvel e de causalidadeobjetiva -- e isso, ademais, em nome de uma abordagem (a da escolharacional) que pretende justamente privilegiar o agente intencional eracional por contraposio aos mecanismos causais na Sociologia e nascincias sociais em geral!

    Mas h outro aspecto nesse mesmo texto de Przeworski que degrande interesse para o que pretendo propor. Refiro-me a que, nacaracterizao que faz ele de diversas situaes por referncia idia daoperao de mecanismosself-enforcing, observamos que tais mecanismos

    podem ser, digamos, tanto de natureza "boa" quanto "m". Assim, oconflito aberto visto como correspondendo ao jogo de mecanismosself-enforcing, pois os ajustamentos recprocos levariam a que o conflito

    prosperasse ou tendesse a manter-se e a durar; mas tambm uma dinmicaque leve ao "compromisso institucional" pode apresentar essa mesmacaractersticaself-enforcing, e acabamos de ver que isso correspondemesmo, para Przeworski, ao caso do pacto constitucional autntico, ou

    autenticamente democrtico. Um terceiro caso ou possibilidade que

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    apresentaria igualmente a mesma caracterstica a do jogo de cabo-de-guerra ou das oscilaes "pretorianas" entre populismo e militarismo quedistinguem o quadro geral de instabilidade poltica de muitos pases latino-americanos. Apesar de que Przeworski no formule a questo nesses

    termos, o que temos aqui , naturalmente, a idia subjacente distinoentre o "crculo virtuoso" (caso da dinmica que leva ao compromissoinstitucional) e o "crculo vicioso" (caso da instabilidade pretoriana e doconflito que se autoalimenta), os quais so ambos caracterizados pelaocorrncia de um mecanismo defeedbackpositivo no qual determinadatendncia se refora a si mesma.

    Tendo isso em mente, vamos tomar por um momento a feroz crtica

    ao funcionalismo que tem sido formulada recentemente por Jon Elster, umdos mais importantes paladinos da abordagem da escolha racional. Emdiversos textos (por exemplo, em Ulysses and the Sirens), Elster temcaracterizado o modelo da explicao funcional em termos que envolvem aocorrncia de dois elementos. (a) Em primeiro lugar, o modelo teria umtrao essencial no fato de apontar a produo de efeitos que so a umtempo no-intencionais e benficos. Assim, a verdadeira explicaofuncional recorreria idia mertoniana da funo "latente" (se no, isto ,

    se se tratasse de funo "manifesta", estaramos no plano daintencionalidade e da prpria escolha racional, no no do funcionalismo),funo latente esta que vista, ademais, como produzindo efeitos

    benficos. (b) Em segundo lugar, supe-se a operao de umfeedback looppelo qual a funo mantm a instituio (ou a estrutura, o padro decomportamento etc.) que a produz em determinada coletividade. aexistncia ou operao de um mecanismo desse tipo, em que umainstituio ou um item qualquer produzido por seu efeito benfico, queintroduz o elemento de teleologia pelo qual a explicao funcional sediferenciaria da mera explicao causal -- enquanto o carter "latente" eno "manifesto" da funo permitiria diferenciar a explicao funcional daexplicao intencional como tal. Um ponto importante das crticas dirigidas

    por Elster ao funcionalismo reside em que a operao desse mecanismo defeedback, que seria essencial para a explicao funcional, o mais dasvezes meramente suposta, com o padro tpico de recurso ao modelofuncional de explicao dispensando-se de fornecer as provascorrespondentes.

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    Surge uma indagao: como se ligaria essa concepo da explicaofuncional proposta por Elster com a idia de Przeworski da situaocaracterizada por mecanismosself-enforcing? Lembre-se que, no caso dePrzeworski, as condies em que temos tanto a tendncia correspondente

    ao crculo virtuoso quanto a tendncia correspondente ao crculo viciosoenvolvem igualmente a ocorrncia de um mecanismo defeedbackpositivo,ou seja, de um mecanismo tal que a informao sobre a produo dedeterminado efeito reverte sobre os agentes de maneira a intensificar sua

    propenso a agir na direo em que o efeito produzido. Ora, do maiorinteresse no contexto de nossa discusso contrapor o caso dofeedback

    positivo ao dofeedbacknegativo, o qual envolve a idia de algo que age nadireo contrria de um movimento inicial e que neutraliza ou compensa

    este movimento. Por outras palavras, a idia do feedbacknegativo sobretudo a de que, uma vez introduzida certa perturbao no estado deequilbrio de um sistema dado, entram em ao mecanismos corretivos queneutralizam aquela perturbao e mantm ou reconstituem o equilbrio dosistema.

    D-se aqui, claramente, um fator de confuso no fato de que h doisplanos em que se acha em jogo certa idia de "positivo" versus "negativo",

    o plano dofeedbackpositivo ou negativo e o plano dos efeitos "positivos"("benficos") ou "negativos" ("malficos") prprios da contraposio entreo crculo virtuoso e o crculo vicioso -- tais efeitos benficos ou malficossendo, em ambos os casos, exemplos defeedbackpositivo. Evitada aconfuso, uma observao importante a de que a literatura dedicada aofuncionalismo tende, sem a menor dvida, a destacar a idia dofeedbacknegativo, quer dizer, a operao de mecanismos que concorrem paramanter um sistema dado. A relao entre estado e capitalismo, ou aconcepo do estado como "funcional" para a dominao capitalista, umexemplo apropriado, at mesmo do ponto de vista das referncias polticasque nossa discusso contm. A idia bsica a de que o estado operaria demaneira a manter o sistema capitalista, o que significa que qualquer

    perturbao ou ameaa que o sistema sofra e que tenda a transform-lonum sistema de outra natureza ser neutralizada ou corrigida pelo estado:haveria mecanismos defeedbacknegativo cuja atuao corresponderia essncia mesma da natureza do estado na sociedade capitalista, de acordocom certas concepes. De toda maneira, a tica mais difundida no que se

    refere ao recurso ao modelo de explicao funcional nas cincias sociais

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    certamente a de que o carter "positivo" ou benfico da funo de algumaforma produz ou acarreta ofeedback"apropriado" manuteno dainstituio responsvel por ela -- e tende-se a presumir que este ser um

    feedbackde tipo negativo, que anula as perturbaes.

    Quando se examina um pouco melhor o problema, porm, verifica-seque a lgica bsica envolvida na explicao funcional perfeitamentecompatvel com a idia do mecanismo defeedbackpositivo ou de reforo,quer se considere essa lgica nos termos da clssica discusso que dela fezCarl Hempel ou nos termos da caracterizao de Elster anteriormentemencionada. No caso da discusso feita por Hempel da lgica da anlisefuncional, a indagao o que que faz com que a explicao funcional

    seja explicao, ou possa pretender o status de explicao autntica; nocaso de Elster, a indagao antes o que que faz com que a explicaofuncional seja funcional, o que que lhe d sua particularidade como tiposupostamente especial de explicao. Seja l como for, inegvel que omodelo de explicao funcional se ajusta tambm idia do mecanismo de

    feedbackpositivo do tipo "crculo virtuoso": se legtimo admitir que oefeito benfico de uma instituio concorre para mant-la, oueventualmente para fazer com que ela venha a existir, patentemente

    legtimo admitir que esse efeito benfico concorrer para manter umconjunto qualquer de elementos inter-relacionados que se articulemfavoravelmente com a existncia daquela instituio, de acordo com o

    padro do crculo virtuoso. Se se admite que a suposta funcionalidade doestado no sistema capitalista pode ser tomada como explicao daexistncia ou do funcionamento do estado nesse sistema, obviamentetambm possvel pretender explicar em termos funcionais tudo aquilo queconcorre para que o estado exista com as caractersticas que o distinguem, eeventualmente para que se reforcem de maneira automtica taiscaractersticas. Alis, h mesmo um claro elemento de redundncia outautologia nisso.

    Mas se se chega at aqui, imperioso dar um passo adiante eperguntar: que dizer do crculo vicioso? Se cabe admitir que a lgica daanlise funcional compatvel no s com a idia dofeedbacknegativo,mas tambm com a dofeedbackpositivo de tipo "virtuoso", ou com o"crculo virtuoso", por que no ser ela compatvel tambm com o "crculo

    vicioso"? A lgica envolvida na dinmica dos processos caracterizados

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    pelos dois tipos defeedbackpositivo evidentemente a mesma. Umaponderao decisiva aqui a de que, naturalmente, o carter "virtuoso" ou"vicioso" deste ou daquele item, padro de comportamento, instituio, ouo que quer que seja, sem dvida depende do ponto de vista que se adote.

    Tome-se, por exemplo, a caracterstica de jogo de cabo-de-guerra ou deoscilao perversa entre militarismo e populismo instvel que marcaria o

    pretorianismo brasileiro e latino-americano e que o prprio AdamPrzeworski, como vimos, aponta como exemplo de condioself-enforcing. bastante claro que, se essa caracterstica pode ser vista como disfuncional

    por referncia a um objetivo democrtico que certos atores possam ter (ouque certas partes do "sistema" na sua complexidade possam ter), elacertamente pode ser vista como funcional do ponto de vista de outros

    atores, outros interesses, outros objetivos.

    Qual a consequncia geral a extrair da? Ela me parece consistir, emprimeiro lugar, na corroborao, em alguns aspectos importantes, daposio metodolgica sustentada por Elster -- apesar de acarretar tambmimportante correo a ela, que surgir adiante. O que me parececorroborado a idia de que, no mbito das cincias sociais, o problema daexplicao se reduz contraposio (e eventual articulao) entre o plano

    intencional e o causal, cabendo destacar a intuio de que, em sentidosociologicamente relevante, o prprio causal a consequncia, em grandemedida, de um processo complexo de interao estratgica (e portantointencional) entre atores diversos, de escalas variadas, no processo mesmode se constituirem como atores e buscarem afirmar seus interesses,objetivos etc. Teramos, assim, uma concepo geral em que a sociedadeem sua feio "durkheimiana", objetiva, coisificada e opaca se veria ligadade forma terica e metodologicamente mais aguda e proveitosa com o

    plano das aes intencionais. Nos termos de algumas categorias utilizadaspor autores como Elster, Boudon e outros, seria possvel falar do plano deuma causalidade "supra-intencional" no qual se dariam regularidades ou"leis sociolgicas" em correspondncia com a composio ou agregao dedecises e aes ocorridas no nvel "micro" (no limite, o nvel

    propriamente individual), plano supra-intencional este ao qual secontraporia o da causalidade "subintencional" que seria, de certa forma,

    pr-sociolgico ou associolgico. Os aspectos especficos discutidos emconexo com o modelo funcional de explicao podem ser postos em

    correspondncia com isso: o fato de o carter "benfico" ou "malfico" de

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    certo padro de comportamento ou instituio terminar por ser indiferentedo ponto de vista da lgica geral em jogo teria a ver com esse carter deagregao ou composio que se acha referido a aes intencionaismltiplas e descoordenadas. As percepes "positivas" ou "negativas" (de

    benefcios ou de malefcios) por parte dos atores dispersos levariam a aesajustadas a essas percepes, aes que, no nvel agregado, produziriamcrculos viciosos (processos "desfavorveis"), crculos virtuosos (processos"favorveis") ou, eventualmente, situaes de equilbrio passveis de seremtratadas por referncia idia da operao de "meros"feedbacksnegativos...

    Com isso se articulam certos desdobramentos, que, para no me

    alongar mais, formulo em termos de uma lista de itens enunciadossucintamente e algo rombudamente.

    1. A lgica envolvida sempre a lgica da ao coletiva, o dilema daao coletiva, da agregao ou composio de intencionalidades dispersasou mltiplas. Da resulta a produo de "supra-intencionalidade", que podeocasionalmente assumir a forma especfica de "contradies" ou de"contrafinalidade" (Sartre, Elster), assim como pode assumir a forma do

    "crculo virtuoso" ou da "simples" funcionalidade dofeedbacknegativo"corretivo".

    2. , portanto, inevitvel e indispensvel o recurso intencionalidade: apreender a lgica em jogo em qualquer situao dadaenvolve sempre lidar com intencionalidade. Numa ramificao queconsidero muito importante mas em que aqui apenas toco de passagem, istonos remete a Piaget e idia do carter operatrio ou operacional dalgica...

    3. O problema com o funcionalismo no est no recurso intencionalidade (na suposio da busca do efeito benfico-- ou do empenho por evitar o efeito malfico, o que d no mesmo), masantes na forma misteriosa que a utilizao dos procedimentoscorrespondentes tipicamente adquire, com as "intenes sem sujeito" eespecialmente com a suposio de uma intencionalidade coletiva globalsem sujeito. O desafio encarar com lucidez e adequada sofisticao o

    problema da constituio dos sujeitos aos quais imputar intencionalidade.

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    4. A abordagem da escolha racional que prospera atualmente tem ummrito importante a esse respeito, que o de dar nfase ao que h de

    problemtico na constituio de sujeitos coletivos. Ela apresenta, porm,

    em sua forma mais ortodoxa, uma dupla deficincia: (a) a inadequadasensibilidade para o aspecto "sociolgico" e "institucionalizado" dasociedade, que se associa com a pretenso de deduzir a sociedade a partirda suposio de uma espcie de "estado de natureza" onde existiriam merosindivduos calculadores, correspondendo ao puro reino da estratgia; e (b) atendncia, que a pirueta de Przeworski acima destacada ilustra com clareza,a desconsiderar a possibilidade de uma intencionalidade reflexiva (e deuma forma superior de racionalidade, portanto) em proveito do destaque

    dado busca algo mope e imediatista de interesses e objetivos que seajusta idia do funcionamento de um mercado -- tendncia esta que serevela incongruente, na verdade, com a prpria nfase na racionalidade quese supe ser o trao bsico do enfoque da escolha racional.

    5. Especificamente quanto ao funcionalismo e a atraoaparentemente irresistvel exercida por alguns de seus supostosfundamentais (que se ilustra de novo presentemente com sua reivindicao

    por respeitveis estudiosos marxistas), preciso reconhecer a legitimidadedo empenho de apreender a lgica que preside de forma mais global dinmica de determinada coletividade, ou seja, de falar em termos desistema social. Em outras palavras, a denncia das mistificaes quefrequentemente ocorrem em conexo com a questo de sujeitos coletivos(ou da perspectiva correspondente ao "coletivismo metodolgico") no

    pode redundar em proibir pura e simplesmente o recurso a suposiesorientadoras relacionadas com a idia da tendncia "auto-regulao" no

    plano do social. O emprego da ptica do sistema e das suposiescorrelatas pode certamente fazer-se de maneira adequada se uma

    perspectiva atenta para o carter intencional das aes no nvel "micro" epara a interao estratgica se combina com a ateno para o nvelsociolgico como um nvel que est sempre "dado" (ou com uma ontologiaque sociolgica desde o comeo): tratar-se-ia aqui do estudo das maneiras

    pelas quais a complexa interao de "sujeitos" de escala variada noprocesso de se constituirem como tal e de se confrontarem uns com osoutros leva a que certas "intencionalidades" (projetos, objetivos,

    interesses...) prevaleam na conformao (mais ou menos precria ou bem

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    sucedida, mais ou menos beligerante ou normativamente convergente) desujeitos coletivos abrangentes -- e da lgica "sistmica" que os regular.Uma ilustrao importante fornecida por um tema que tem recebidotratamento sofisticado e convincente de autores como Claus Offe e o

    prprio Adam Przeworski: a idia da dependncia estrutural da sociedade edo estado perante o capital no sistema capitalista, na qual se articulam

    plausivelmente -- em termos da lgica do sistema -- o nvel da interaoestratgica entre determinados focos de interesse, de um lado, e, de outro, onvel da funcionalidade revelada por variadas instituies, polticas e

    padres de comportamento do ponto de vista da preservao outransformao do sistema como tal.

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