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GEL GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO ESTUDOS LINGÜÍSTICOS LINGÜÍSTICA: INTERFACES ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008

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GEL GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS

DO ESTADO DE SÃO PAULO

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS

LINGÜÍSTICA: INTERFACES

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008

Page 2: GEL GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO … · 2019. 1. 7. · Apresentação do volume 37 (2008) Com a edição do volume 37 (2008) da Revista Estudos Lingüísticos,

REVISTA ESTUDOS LINGÜÍSTICOS GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO - GEL

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Depto de Estudos Lingüísticos e Literários - Sala 21

Rua Cristóvão Colombo, 2265- Jd. Nazareth CEP 15054-000 - São José do Rio Preto - SP - Brasil

[email protected]

Comissão Editorial Claudia Zavaglia

Gladis Massini-Cagliari Juanito Ornelas de Avelar

Manoel Mourivaldo Santiago Almeida Marco Antônio Domingues Sant´Anna

Maximina M. Freire Olga Ferreira Coelho Oto Araujo Vale

Vandersí Sant'Ana Castro Vanice Maria Oliveira Sargentini

Editora responsável Luciani Ester Tenani

Capa

Wilker Ferreira Cação

Conselho Editorial (Pareceristas ”ad hoc”) Ademar da Silva (UFSCAR), Alessandra Del Re (UNESP), Alexandre de Oliveira Martins (UNIP), Alvaro Luiz Hattnher (UNESP), Ana Cristina Carmelino (UNIFRAN), Ana Lúcia de Paula Müller (USP), Ana Mariza Benedetti (UNESP), Ana Paula Scher (USP), Angelica Karim Garcia Simão (UNESP), Anna Christina Bentes da Silva (UNICAMP), Anna Flora Brunelli (UNESP), Arnaldo Cortina (UNESP), Arnaldo Franco Junior (UNESP), Beatriz Nunes de Oliveira Longo (UNESP), Bento Carlos Dias da Silva (UNESP), Carolina María Rodríguez Zuccolillo (UNICAMP), Cássia Regina Coutinho Sossolote (UNESP), Cássio Florêncio Rubio (UNESP), Claudia Maria Xatara (UNESP), Claudia Regina Castellanos Pfeiffer (UNICAMP), Claudia Zavaglia (UNESP), Cláudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP), Cristiane Carneiro Capristano (CEJA), Cristina Martins Fargetti (CEJA), Dilson Ferreira da Cruz Júnior (USP), Diva Cardoso de Camargo (UNESP), Edna Fernandes Nascimento (UNIFRAN), Edvania Gomes da Silva (UESB), Eli Nazareth Bechara (UNESP), Emerson de Pietri (USP), Erica Iliovitz (UFRPE), Erotilde Goreti Pezatti (UNESP), Evani Viotti (USP), Fabiana Cristina Komesu (UNESP), Fábio César Montanheiro (UFSCAR), Fernanda Correa Silveira Galli (UNICAMP), Fernanda Mussalim (UFU), Flávia Bezerra de Menezes Hirata Vale (UFSCAR), Gabriel Antunes de Araujo (UFSCAR), Geraldo Cintra (USP), Gisele Cássia de Sousa (UNESP), Gladis Maria de Barcellos Almeida (UFSCAR), Ieda Maria Alves (USP), Ivã Carlos Lopes (USP), João Azenha (USP), João Bôsco Cabral dos Santos (UFU), Larissa Cristina Berti (UNESP), Lauro José Siqueira Baldini (UNIVAS), Lenita Maria Rimoli Esteves (USP), Leticia Marcondes Rezende (UNESP), Lígia Negri (UFPR), Luciano Novaes Vidon (UFES), Luiz Carlos Cagliari (UNESP), Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP), Mara Lucia Faury (PUC - SP), Maria Célia Lima-Hernandes (USP), Maria Cristina Parreira da Silva (UNESP), Maria da Conceição Fonseca Silva (UESB), Maria do Rosario Gregolin (UNESP), Maria Flávia de Figueiredo Pereira Bollela (UNIFRAN), Marilei Amadeu Sabino (UNESP), Marisa Corrêa Silva (UEM), Marize Mattos Dall Aglio Hattnher (UNESP), Marymarcia Guedes (UNESP), Mauricio Mendonça Cardozo (UFPR), Nelson Luís Ramos (UNESP), Olga Ferreira Coelho (USP), Paulo Chagas de Souza (USP), Pedro Luis Navarro Barbosa (UEM), Roberto Gomes Camacho (UNESP), Ronald Beline Mendes (USP), Rosa Maria da Silva (UNESP), Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi (UNESP), Sandra Denise Gasparini-Bastos (UNESP), Sandra Madureira (PUC - SP), Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP), Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP), Solange Aranha (UNESP), Sônia Piteri (UNESP), Sueli Salles Fidalgo (PUC - SP), Sumiko Nishitani Lkeda (PUC - SP), Susanna Busato (UNESP), Thomas Bonnici (UEM), Valdemir Miotello (UFSCAR), Vanice Maria Oliveira Sargentini (UFSCAR), Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS).

Publicação quadrimestral

Estudos Lingüísticos / Organizado pelo Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo - v. 1 (1978). - Campinas, SP : [s.n.], 1978- Publicada em meio eletrônico (CD-ROM) a partir de 2001. Publicada em meio eletrônico (http://www.gel.org.br/) a partir de 2005. Anual ISSN 14130939 1. Lingüística. 2. Lingüística Aplicada 3. Literatura I. Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo.

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SUMÁRIO

AQUISIÇÃO DE L2/LE A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos dos primeiros períodos de ensino Cristina Casadei Pietraróia......................................................................

7

Uso de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia Maria Inez Mateus Dota..........................................................................

17

AQUISIÇÃO DE PRIMEIRA LÍNGUA Estudo experimental sobre o formato prosódico inicial na aquisição do português brasileiro Maria de Fátima de Almeida Baia.............................................................

27

LINGÜÍSTICA APLICADA AO ENSINO DE LÍNGUAS Concepções de linguagem e ensino da escrita em materiais didáticos Émerson de Pietri..................................................................................

37

Gêneros textuais no processo de ensinoaprendizagem Rosa Maria Nechi Verceze......................................................................

47

Teorias da linguagem e ação pedagógica: um olhar sobre as atividades de produção/recepção de gêneros orais Rozana Aparecida Lopes Messias..............................................................

55

Interação pela linguagem na avaliação de produções escritas: ordem ou diálogo? Silvia Augusta de Barros Albert................................................................

65

NEUROLINGÜÍSTICA Centro de Convivência de Afásicos: Uma abordagem etnográfica da afasia Nirvana Ferraz Santos Sampaio...............................................................

75

PSICOLINGÜÍSTICA Algumas considerações em torno da identificação dos estados internos em situações de narrativa oral por criança Lélia Erbolato Melo.................................................................................

85

Narrativas orais produzidas por crianças: a explicação em foco Priscila Peixinho Fiorindo.........................................................................

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SOCIOLINGÜÍSTICA E DIALETOLOGIA Crenças e atitudes lingüísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras Vanderci de Andrade Aguilera..................................................................

105

A redução de proparoxítonas no português popular do Brasil: estudo com base em dados do Atlas lingüístico do Paraná (ALPR). Vandersí Sant’Ana Castro......................................................................

113

TRADUÇÃO Uso de corpora customizados para aperfeiçoar o texto traduzido Ana Julia Perrotti-Garcia.........................................................................

123

Tradutor: Personagem de ficção Dircilene Fernandes Gonçalves.................................................................

129

Diferenças estilísticas entre o autor e o auto-tradutor em Viva o Povo Brasileiro e An Invincible Memory Diva Cardoso de Camargo.......................................................................

135

O impacto das novas tecnologias no tempo e na qualidade da produção tradutória Érika Nogueira de Andrade Stupiello.........................................................

145

Olhares sobre a violência no Brasil: as leituras do The New York Times e de sua tradução Fernanda Cristina Lima...........................................................................

155

Relações discurso-história em “Curtamão”, de Guimarães Rosa, e sua versão alemã Gilca Machado Seidinger.........................................................................

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Apresentação do volume 37 (2008) Com a edição do volume 37 (2008) da Revista Estudos Lingüísticos, o Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo – GEL – comemora 30 anos de publicação de pesquisas apresentadas em seminários realizados em diferentes cidades paulistas. Nas páginas dessas publicações, há várias histórias a serem contadas sobre, por exemplo, as reflexões lingüísticas debatidas no âmbito dos Seminários do GEL, ou ainda sobre as mudanças pelas quais passaram as publicações, chegando atualmente à publicação on-line. Mais do que comemorar, a Comissão Editorial deseja tornar a revista eletrônica um excelente canal de divulgação das pesquisas e reflexões feitas pela comunidade de pesquisadores da linguagem. Neste volume 37 (2008), são publicados 83, sendo 75 selecionados dos 123 artigos submetidos à avaliação, todos apresentados durante o 55º Seminário do GEL (2007), e também oito artigos provenientes de apresentações em mesas-redondas. Os textos encontram-se reunidos em três números, organizados por temas. O número 1, com o tema “Descrição e Análise Lingüística”, reúne 26 artigos das seguintes áreas, organizadas por ordem alfabética: Fonologia, Lexicologia e Lexicografia, Línguas Indígenas e Africanas, Morfologia, Pragmática, Semântica, Sintaxe. Não houve artigos submetidos na área de Fonética. O número 2, com o tema “Lingüística: Interfaces”, reúne 18 artigos das seguintes áreas, organizadas por ordem alfabética: Aquisição de L2/LE, Aquisição de Primeira Língua, Historiografia Lingüística, Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, Neurolingüística, Psicolingüística, Sociolingüística e Dialetologia e Tradução. Não houve artigos submetidos nas áreas de Filologia, Lingüística Computacional e Lingüística Histórica. O número 3, com o tema “Análise do Texto e do Discurso”, reúne 39 artigos das seguintes áreas, organizadas por ordem alfabética: Análise da Conversação, Análise do Discurso, Lingüística Textual, Literatura Brasileira, Literatura Estrangeira, Retórica e Estilística, Semiótica e Teoria e Crítica Literária. Não houve artigos submetidos na área de Literatura Infanto-Juvenil. A Comissão Editorial agradece a todos os autores que submeteram artigos para avaliação e todos os pareceristas que contribuíram para esta publicação, emitindo pareceres de forma criteriosa. Tem-se como produto, neste volume, o resultado de pesquisas em estudos da linguagem, representativo não só de universidades do Estado de São Paulo, mas de todo o território brasileiro. Luciani Tenani Presidente da Comissão Editorial

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A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos dos primeiros períodos de ensino

Cristina Casadei Pietraróia1

1Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo –

[email protected]

Abstract: The study of school subjects allows us to understand not only the background and the transformation of contents vehiculated by them, but also their important role in the overall formation of students as school culture is a complex mechanism connected to political, religious and cultural contexts of each epoch that promotes both the instruction and the moral education of the students. Taking this importance into consideration, we are interested in the teaching of one the school subjects that contributed greatly to the cultural formation of several generations of Brazilian students during most part of the twentieth century: the French language. We present in this article some important landmarks of its teaching from 1837 to 1942. Key words: School subjects; school books; French; teaching Resumo: O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender não apenas a trajetória e a transformação dos conteúdos por elas veiculados, como também seu importante papel na formação geral dos alunos, pois a cultura escolar é um complexo mecanismo ligado aos contextos político, religioso e cultural de cada época, promovendo tanto a instrução quanto a educação moral dos aprendizes. Considerando essa importância, interessamos-nos pelo ensino de uma de suas disciplinas que muito contribuiu para a formação cultural de várias gerações de aprendizes brasileiros durante grande parte do século XX: a língua francesa. Nesse artigo serão apresentados alguns marcos importantes de seu ensino de 1837 a 1942. Palavras-chave. Disciplinas escolares; manuais; francês; ensino.

1. Introdução O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender, segundo autores

como Chervel (1990) e Julia (2001)1, não apenas a trajetória e a transformação dos conteúdos por elas veiculados, como também seu importante papel na formação geral dos alunos, pois a cultura escolar é um complexo mecanismo ligado aos contextos político, religioso e cultural de cada época, promovendo tanto a instrução (transmissão de conteúdos programáticos) quanto a educação moral dos aprendizes. Segundo Bourdieu (1967), a cultura escolar dota os indivíduos de um corpo comum de categorias de pensamento e cumpre por isso uma função de integração lógica, moral e social.

Nesse importante sistema de formação que é a escola, as disciplinas e os manuais utilizados adquirem um papel fundamental. E é esse papel que nos interessa

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aqui observar e analisar a respeito de uma disciplina que muito contribuiu para a formação cultural de muitos aprendizes brasileiros durante grande parte do século XX: a língua francesa. Nosso estudo faz parte do Projeto Temático FAPESP “Livros e Memória”, coordenado pela Profa. Dra. Circe Bittencourt (FE-USP), e a pesquisa dos manuais aqui citados foi realizada junto ao acervo didático da APFESP (Associação dos Professores de Francês do Estado de SP), na Biblioteca do Livro Didático e nas bibliotecas Paulo Bourroul e Macedo Soares, essas três últimas localizadas na Faculdade de Educação da USP. Contamos também com os dados coletados em pesquisa de iniciação científica realizada por Sahsha Kiyoko Watanabe Dellatorre (bolsa FAPESP IC) sob nossa orientação.

2. A língua francesa como instrumento

Em um texto de grande relevância para a história dos estudos brasileiros – “O francês instrumento de desenvolvimento” –, Antônio Cândido de Mello e Souza (1977) distingue alguns traços que definem a grande influência da cultura francesa nos países da América Latina a partir de suas independências. Segundo o autor, esta cultura e sua língua tiveram, primeiramente, um papel de mediação entre as jovens nações e as demais culturas vigentes. Foi por intermédio das traduções francesas, por exemplo, que os brasileiros do século XIX leram autores clássicos da literatura mundial, como Goethe, Byron, Schiller, absorvendo tanto as interpretações feitas quanto as lacunas deixadas. Tal mediação trouxe, como conseqüência, a paulatina substituição do estudo das culturas e línguas clássicas pelo estudo do francês, língua considerada “universal” no início do século XIX, em que a França atingira seu apogeu de prestígio e de função civilizadora. Foi, portanto, por meio do francês – cujo ensino era obrigatório — que aprendemos a “ver o mundo, que adquirimos o senso da História, que lemos os clássicos de todos os países, inclusive gregos e romanos” (Cândido, 1977:12). O contato com a língua e a cultura francesa também nos permitiu adquirir uma maior humanidade nas questões sociais, uma vez que não apenas a elite dominadora delas se alimentava, mas também as classes dominadas buscavam sua inspiração nos ideais revolucionários franceses. Socialistas e anarquistas liam e se inspiravam na literatura francesa, “trocavam entre eles livros de Balzac e principalmente de Zola, considerado como um grande escritor humanitário; gostavam de evocar os “filósofos” do século XVIII (...), chegavam mesmo a dar aos filhos nomes como Germinal”. (Cândido, 1977:14). O hino nacional francês, no início do século XX, era executado em manifestações políticas, em comícios, em reuniões operárias. E, finalmente, graças à flexibilidade e à universalidade da cultura francesa, esta respondeu, mais do que qualquer outra, a inúmeras necessidades da constituição de nosso país.

O ensino obrigatório da língua francesa na escola secundária brasileira teve início no século XIX, em 1837, com a criação do Colégio Pedro II, instituição imperial destinada à formação secundária e cujos currículos, enciclopédicos, apresentavam-se com uma feição dominantemente literária. Em um de seus primeiros programas de ensino (1856, in Vechia, 1998:28), o francês consta como uma das principais disciplinas, a ser ensinada já no primeiro dos sete anos do curso:

No primeiro anno, o alumno, depois de algumas prelecções de Grammatica geral, aperfeiçoa-se na Grammatica e Língua Portugueza, e começa a estudar latim, francez, e arithmetica. (Vechia, 1998:28)

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Percebe-se, nessa citação, a importância da língua francesa na formação básica

do aluno e isso em dois eixos. Primeiramente em relação a sua proficiência lingüística, uma vez que, já a partir do segundo ano, os manuais de algumas disciplinas, como zoologia, botânica, física e química, eram franceses (p.ex.: Guerin-Varry: Eléments de chimie, précédés de notions de physique). No livro Belle Époque Tropical, Jeffrey Needell afirma sobre o ensino ministrado no Colégio Imperial:

O ensino ministrado sob olhares tão severos baseava-se em obras de clérigos (...) bem como em textos franceses, tais como o Atlas de Delamarche, a Grammatica Franceza de Sévene, as Nouvelles narrations françaises de Filon, a História romana de De Rosoir e Dumont, o Cours de Littérature française de Charles André, o Cours élémentaire de philosophie de Barbe e o Manuel d’études pour la préparation du baccalauréat em lettres: Histoire de temps modernes. (Needell, 1993:78) A proficiência lingüística capaz de dar conta de tantas leituras em diferentes

disciplinas era buscada por meio do ensino tradicional da língua, metodologia também conhecida como “gramática-tradução”, vigente até o início do século XX e que consistia no estudo do vocabulário, da gramática e da prática da tradução-versão. Herdeira do ensino ministrado para o estudo do grego e do latim, tendo de um lado um livro de gramática normativa e de outro um dicionário bilíngüe ou listas temáticas de palavras com os termos equivalentes na língua materna, o aluno exercitava-se traduzindo textos — de preferência e sempre que possível literários — da língua estrangeira para a língua materna e vice-versa. (Coste, 1978).

Christian Puren, em seu livro Histoire des méthodologies de l’enseignement des langues (1988), comenta um aspecto bastante interessante dessa metodologia. Para esse autor, a metodologia tradicional implantada na escola, ao herdar os pressupostos do ensino do latim, herdou também uma coerência fornecida do exterior pelo sistema educativo que permitiu uma economia em termos metodológicos. Na realidade, sua principal característica técnica não é a articulação entre a aprendizagem das regras e sua aplicação em exercícios, mas sim seu fraquíssimo nível de integração didática. Isso explica a justaposição de diferentes atividades, propostas em uma ordem aleatória, durante uma mesma aula: os alunos podiam recitar uma lista de palavras e algumas regras de gramática, como também fazer o ditado de um poema, corrigir uma tradução ou ainda começar uma versão oral sem que houvesse, entre os diversos materiais apresentados, uma coesão temática ou gramatical. E Puren conclui:

Este fraco nível de integração didática explica porque na MT [metodologia tradicional] escolar não se sente a necessidade do manual [grifo do autor] como o generalizará a metodologia direta (...) Até os anos 1870, em efeito, as grandes editoras escolares só propõem dicionários, gramáticas (“simplificadas”, sem exercícios, ou “cursos”, com exercícios), obras e trechos escolhidos de autores clássicos. (Puren, 1988 :60)

Efetivamente, entre os livros indicados pelo Colégio Pedro II para o primeiro

ano (programa de 1856), consta, no que diz respeito ao ensino do francês, a Grammatica franceza, de Emilio Sevène. A edição por nós localizada, tomo 1 –

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Theoria, sem data, indica tratar-se de um “novíssima edição, corrigida e augmentada por um habilíssimo professor de lingua franceza”2 e estrutura-se em torno de tópicos gramaticais a partir do “nome” até “as quatro figuras da syntaxe”.

Ao lado dessa gramática, o programa indicava ainda duas outras obras — Télémaque e Fables choisies, de Fénelon — que, a nosso ver, indicam o segundo eixo de formação: o eixo moral. Les aventures de Télémaque, romance didático de Fénelon, publicado em 1699 e dedicado à educação do Duque de Borgonha, herdeiro presumido de Luis XIV. Dessa forma, essa obra faz parte do gênero literário “Espelhos dos príncipes”, que compreende as obras destinadas à educação principesca na Europa dos séculos XVII e XVIII, mas que se tornaram exemplares da educação como um todo e serviam de modelo e de referência para o público culto da época. Nesse livro, Fénelon retrata as peregrinações de Telêmaco em busca de seu pai Ulisses, durante as quais é amparado por Mentor, responsável por sua educação na ausência paterna.

Nas atas do colóquio “Les Aventures de Télémaque: trois siècles d’enseignement du français”, organizado em Bolonha em 2003 pela Sociedade Internacional para a História do Francês Língua Estrangeira ou Segunda (SIHFLES), os autores dos diversos artigos são unânimes em afirmar a importância não apenas moral e política da obra, mas também seu interesse educacional, uma vez que entre as figuras de Telêmaco e Mentor estabelece-se uma verdadeira relação pedagógica e, nesta relação, Fénelon muda o centro de interesse do projeto pedagógico do “objeto” a ser ensinado para o sujeito, o “eu” do aluno.

Era grande a preocupação com a formação dos jovens da época, pois a escola formava a elite brasileira. É Sévene que nos fala de seu público no “Aviso aos Editores da gramática já citada:

Indispensavel a muitos, a lingua franceza é de summa utilidade para todos. A consideração de que ella goza no Brazil, onde occupa distincto lugar a par da educação, é prova bastante da utilidade da obra cuja nova edição, hoje apresentamos ao Publico, e offerecemos em particular á mocidade que frequenta os collegios, e aos mancebos que se preparão para depois nas Academias e nas Faculdades, entregarem-se a estudos mais elevados. (Sévene, s/d)

Efetivamente, no Segundo Reinado (1840-1889) e na República Velha (1889-

1930), como afirma Needell (1993: 74, 75) apenas as famílias abastadas tinham acesso à educação secundária. Na infância, essa elite, composta pelos filhos de fazendeiros ricos, grandes comerciantes e homens de negócios, bem como filhos de altos burocratas e de profissionais bem-sucedidos, era educada por preceptores e tutores para depois continuar seus estudos nos colégios, em geral nas capitais dos estados e das províncias, onde tinham acesso a uma formação humanista, conservadora e católica, voltada para futuros líderes. Estes, além de aprender a conjugar verbos, também aprendiam nas aulas de francês orientações de boa conduta, de honestidade, de civismo, como aquelas que compõem os 180 exercícios do segundo volume de uma outra famosa gramática, Grammatica Theorica e Pratica da Língua Franceza, de Francisco Halbout (Livraria Francisco Alves, 1921 para a 33ª edição):

L’homme instruit parle peu et bien; l’ignorant parle beaucoup et mal. L’homme ami du bien public est estimable. La crainte de Dieu est le commencement de la sagesse.

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Assim, entre lições de civismo e moral, os alunos eram conduzidos aos textos literários franceses, uma vez que ter acesso a esses textos era essencial num mundo em que a França era um referencial literário e cultural. E isso não poderia ser diferente. Iniciando um de seus artigos com a frase “Tantos caminhos levam a Paris”, Gilberto Pinheiro Passos (2006:61) coloca de imediato a pergunta “até que ponto uma literatura nova, como a nossa, em pleno século XIX, escaparia à força da circulação artística, cujo centro emissor seria a velha Europa?”.

O objetivo, portanto, do ensino da língua francesa era levar o aluno a ter, sobretudo, uma proficiência de compreensão escrita nessa língua, e também – como já foi dito - ler os grandes autores franceses, como indica o programa dos exames do Colégio Pedro II em 1850:

1º ano : Gramática (formação do plural dos substantivos e dos adjetivos, formação do feminino dos adjetivos, adjetivos e pronomes possessivos, verbos) 2º ano : Buffon, Morceaux Choisis 3º ano: Fénelon, Morceaux Choisis 4º ano: Massillon, Petit Garême 5º ano: Montesquieu: Selecta de Blair 6º ano: Racine, Athalia 7º ano: Bossuet, orações fúnebres A ênfase em um ensino centrado nos textos literários, de caráter moralizante,

cristão e educador manteve-se até o início do século XX, quando então o francês já era ensinado em muitas outras instituições de todo o país e um número maior de manuais entra em cena. Além dos manuais importados da França, como Le livre unique de français, de L. Dumas (Paris, Hachette, 1928), também eram utilizados manuais franceses impressos no Brasil em edições fac-similadas, como a Grammaire Cours Moyen de Claude Auge (s/d, Paris, Larousse, Porto Alegre, Livraria do Globo) ou ainda totalmente editados e impressos no Brasil, como Nouvelle Anthologie d’Auteurs Français, de Henri de Lanteuil (Biblioteca Didática Brasileira, nº1, Rio de Janeiro, 1934), publicada conforme os programas oficiais. Henri de Lanteuil, aliás, fez parte de toda uma geração de professores catedráticos de francês no Brasil que eram também escritores.

Nessas obras, a exploração dos textos era ainda feita pelo método gramática-tradução, e grande era a função educadora das mesmas, como se pode observar na capa do livro de Claude Auge e também na primeira lição do Le livre unique de français: lecture, grammaire, vocabulaire, orthographe, composition française , de L. Dumas, publicado pela Hachette em 1928 para os cours moyen e supérieur – “ouvrage adopté pour les Écoles primaires de la Ville de Paris. Partindo do mundo do aluno, o manual trazia pouco a pouco outras aberturas e novos textos, cada vez mais literários. Assim, textos de autores como Balzac, Daudet, Anatole France, Pierre Loti, Guy de Maupassant eram lidos, estudados, repetidos, decorados.

Aline Gohard-Radenkovi (1999) lembra bem que os tipos de discurso encontrados nesses manuais, assim como a escolha do nível de língua utilizado, são representativos de uma concepção do ensino da língua e da civilização francesas característica do século XIX e vigente até metade do século XX. Essa concepção humanista, baseada no ensino das línguas clássicas e com ênfase aos textos literários ou moralizadores, coincidia, na verdade, com o papel da própria língua francesa no império

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colonial francês nascente. Valorizar as qualidades morais, a família, a casa, o país, levava o aprendiz a sair de um círculo mais imediato para alcançar um espaço mais vasto, indo do concreto e do conhecido para o abstrato e o desconhecido, E, em um sistema de “inclusões encadeadas”, eram-lhe inculcados valores moralizadores e patrióticos que, aos poucos, podiam ser transpostos do solo natal para o novo país e a nova cultura que se descortinava. 3. A metodologia direta

Em 1931, a República impõe, com a reforma Francisco de Campos, uma nova metodologia de ensino de línguas, destinada a “fazer falar” os alunos que, até então, só praticavam a compreensão e a expressão escrita, a tradução e a versão. Segundo Chagas:

No que tange à orientação propriamente didática, o regime de 1931 constituiu a primeira tentativa realmente séria já empreendida entre nós para atualizar o estudo dos idiomas modernos. Outros fins foram visados e novos processos de ensino se recomendaram para adoção do que se chamou o “método direto intuitivo” (Chagas, 1957:110).

A metodologia direta já havia sido implantada na França em 1901 e — rompendo completamente com a metodologia tradicional, à qual criticava o fraco desempenho de comunicação dos aprendizes — tinha como principais orientações 1. o ensino das palavras estrangeiras sem passar pelo intermediário de seus equivalentes na língua materna do aluno; 2. o ensino da língua oral sem passar pelo intermediário de sua forma escrita; 3. o ensino da gramática sem passar pelo intermédio de sua regra explícita (Puren, 1988).

A implantação de uma metodologia que privilegiava o oral era resultante também de uma demanda social de maior praticidade no aprendizado de uma língua estrangeira e da necessidade francesa de conquista de novos espaços. Pode-se ler nas Instruções Oficiais francesas de 1901 (apud Puren, 1988:99) : “O conhecimento prático das línguas vivas tornou-se uma necessidade tanto para o comerciante e o industrial quanto para o sábio e o letrado”.

As aulas se baseavam em situações concretas do próprio ambiente escolar, sendo o professor o responsável pela descrição das mesmas e pela introdução de todos os elementos necessários à sua compreensão: o professor nomeava objetos, descrevia gestos, atitudes e movimentos rotineiros de sua prática, tais como abrir a porta, fechar a janela, apontar algo ou alguém. Depois de realizadas, essas situações suscitavam diálogos de tipo pedagógico, em sentido único e na forma interrogativa (pergunta do professor, resposta do aluno). Essa prática da denominação e da descrição do real, seguida das constantes repetições orais, obrigava assim o aluno a se «impregnar» do sentido e a ele aceder diretamente, uma vez que a tradução interlingual estava completamente banida do curso.

Se no método gramática-tradução o ponto de partida eram os textos, no método direto este era o léxico e as estruturas básicas da língua (interrogação, negação, afirmação). Assim, por exemplo, no método de Marc Valette, La méthode directe

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(Londres: Hachette & Cia, 1914), a primeira lição se inicia pela aprendizagem de uma série de palavras e construções consideradas básicas para o desenrolar de uma aula:

Le bras, le doigt, le pied. Est-ce le bras? Est-ce le doigt? Est-ce le pied? Oui, c’est le bras. Non, ce n’est pas le bras, c’est le doigt (Valette, 1914:3)

Procurando oferecer ao aluno uma língua mais cotidiana, que pudesse ser

utilizada em seu dia-a-dia, a metodologia direta abusava de textos fabricados, artificiais e destinados sobretudo à aquisição lexical, prioridade da que se traduzia na memorização, por parte do aluno, de listas inteiras de palavras. Um exemplo desse tipo de texto e do trabalho lexical proposto pode ser visto na décima-quarta lição do método Le Français par la méthode directe II (Robin, Bergeaud, Paris: Librairie Hachette 1951):

Le cerveau se trouve dans le crâne. La circulation du sang se fait par le coeur, les artères (une artère) et les veines (une veine). (...) Le géant est un homme très grand qui a souvent plus de deux mètres de hauteur (*la hauteur). Un nain (une naine) est un homme qui reste tout petit. (p.33)

Mais uma vez, além dos processos ditos “intuitivos”, tais como gestos e

mímicas, e dos recursos como a demonstração de objetos, de imagens e exemplos, não se sabe bem ao certo como o aluno construía o sentido das palavras e do próprio texto, que nada mais era do que um conjunto de frases sem qualquer coesão ou característica realmente textual.

Na medida em que vão se esgotando as situações passíveis de uma demonstração na própria sala de aula, recorre-se a imagens que ilustram, por exemplo, um dia de inverno, uma casa, a fazenda. Aos poucos também a leitura, a escrita e o estudo da gramática vão sendo integrados ao método, mas percebe-se que a questão do trabalho com textos mais longos e a compreensão da escrita é um problema de difícil solução.

No manual Lecture expliquée – Le Français par plaisir - Dois últimos anos do curso ginasial, de J. de Matos Ibiapina (Porto Alegre – Edição da Livraria do Globo,1941), o autor aponta no prefácio as dificuldades de trabalho com a metodologia direta:

(...) O método direto exige que o professor argua todos os alunos, todos os dias de aula, fazendo a cada um tantas perguntas quantas forem necessárias à assimilação perfeita do vocabulário de cada lição. Isso não é possível em turmas de mais de quinze alunos. Nos ginásios e escolas normais do Brasil, as turmas são, na sua generalidade, de mais de trinta alunos, o que torna dificílima a aplicação eficiente do método direto. Para dar conta dessa situação, Ibiapina propõe o fim do uso das seletas e

coletâneas e apresenta em seu método leituras agradáveis e de temas apropriados “que divirtam o aluno e arrastem-no a compreensão do texto, levado menos pela obrigação da tarefa a executar do que pelo prazer de chegar ao fim da história, da anedota, do ‘’calembour’’ etc.”.

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As dificuldades metodológicas encontradas geram novas publicações menos radicais, como o Cours de français – méthode semidirecte à l’usage des écoles supérieures, lycées et collèges. 1ère année, de Suzanne Burtin-Vinholes (Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo - Barcellos, Bertaso & Cia,1934). Neste método, a autora – francesa — afirma que não é possível trabalhar com o método direto na escola, tal como ela o faz em suas aulas particulares:

Após alguns meses de ensino na Escola Normal desta cidade onde o número de alunos é muito elevado chegamos à conclusão que era necessário empregar o meio têrmo, isto é, das lições práticas e teóricas (...).

Sendo assim, embora o método direto se mostrasse eficaz em suas aulas

particulares, a autora admite que este encontrava problemas quando se tratava de uma classe numerosa, propondo então um método “semidireto”, com exercícios de gramática, fonética e conversação. O manual traz ainda lições de dificuldade gradativa, propondo a leitura e o comentário de trechos escolhidos de grandes autores. Além da descrição do próprio manual, a autora também sublinha que seguiu “escrupulosamente” os programas do Colégio Pedro II e o programa da Escola Normal do Rio de Janeiro.

Outro aspecto bastante importante desse prefácio refere-se à importância atribuída aos laços que ligam a França ao Brasil como um meio de facilitar a aprendizagem da língua:

Procurando facilitar aos jovens brasileiros o estudo de nossa língua, pensamos estreitar os laços de solidariedade e simpatia que ligam a nossa pátria à risonha terra brasileira.

Isso pode ser percebido principalmente no final do livro, onde é apresentada

uma série de textos sobre o Brasil, suas cidades e belezas naturais. Trazer para o aluno brasileiro elementos de seu ambiente é também um dos

recursos utilizados por Edgard Liger Belair, no método Francez pelo methodo direto (Rio de Janeiro: Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1932), adotado no Colegio Pedro II. Professor catedrático de Francês não apenas desta instituição (para a qual escreveu uma tese de ingresso na cátedra de francês – Prêmio Faguet, 1953 – “Comment La Fontaine est devenu fabuliste”), mas também do Externato Frei de Guadalupe, da Faculdade de Humanidades Pedro II e da Faculdade de Filosofia Souza Marques do Rio de Janeiro, Belair faz parte do grupo dos grandes mestres de francês de nossa história: escreveu prosa, poesia, livros infantis, fábulas, canções, teatro, filmes educativos, fez traduções e versões. Em suas Fables de mon Brésil (Rio de Janeiro: Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1938),, encontramos histórias com várias animais brasileiros como “L’once et le chat”, “Le caracara et le busard”, “Le tamanoir et le tatou”, “L’ara et le jaboti”, “Le jeune singe et les combucas”, “Le coati, le maître et le valet”.

Percebe-se, dessa forma, que o valor moral dos textos presentes nos métodos permanece, mas com temas mais próximos ao aluno, no caso, brasileiro. Isso condiz com a própria gradação dos temas no método direto, que parte dos universos e referências mais próximos do jovem aprendiz para, aos poucos, levá-lo à literatura francesa que continuava a fazer parte do programa nos níveis mais avançados (3º e 4º anos do Ginásio) e trabalhados segundo a metodologia gramática-tradução, uma vez que

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não se descobriu um modo de fazer o aluno compreender diretamente um texto escrito em língua estrangeira....

4. Conclusão

O que podemos observar no espaço de tempo aqui analisado — que vai da implantação do francês na escola secundária até as vésperas da Reforma Capanema, em 1942 — é a grande preocupação em, pelo ensino do idioma francês, trazer uma formação literária e humanística ao aluno brasileiro, focalizando, é claro, a importância cultural francesa na época, mas buscando um diálogo com esse aluno, tanto por meio dos conteúdos veiculados quanto por meio da metodologia utilizada.

O manual de francês contribuiu, dessa forma, para a construção da cultura que imperava no início e meados do século XX, cultura que, segundo Jérôme Bruner (1986), é um fenômeno simbólico, produzido pelo homem, que legitima a realidade de certos produtos do espírito em detrimento de outros e, o mais importante a nosso ver, é construída:

A cultura é construída.(…) E embora seja transmitida de geração em geração, ela deve ser, a cada vez, reatualizada e relegitimada pela nova geração. O que dá a uma cultura sua continuidade « intergeracional » são as obras que ela cria e que transmite de uma geração à próxima: sua ciência, suas artes, suas leis, seus dispositivos institucionais, sua mitologia (Bruner, 1986:7)

Os manuais aqui apresentados são as obras que nos permitem, hoje, melhor compreender a escola e a educação brasileira no contato que estabeleceram com outras culturas. Notas:

1 Manual escolar: “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização)” (JULIA, 2001:10).

2 São Paulo, Casa Garraux, Fischer Fernandes & Cia, Successores. 40, rua da Imperatriz, 40. Paris, 15, rua d’Hauteville, 15. Typografia A. Parent, 52, Rua Madame et rua Corneille, 3. A edição que nos serve de referência, sabe-se pelo “Aviso aos editores”, data de 40 anos após a primeira edição e é dedicada, em particular, “á mocidade que frequenta os collegios, e aos mancebos que se preparão para depois nas Academias e nas Faculdades, entregarem-se a estudos mais elevados”

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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008 15

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16 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008

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Uso de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia

Maria Inez Mateus Dota

Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Av. Luiz Edmundo Coube, s/n – 17033-360 – Bauru – SP - Brasil

Abstract. This paper presents a didactic proposal concerning the use of

morphological aspects in English media texts reading, aiming at favoring the

comprehension activities. Based on reading interactive models and on the

English for Specific Purposes approach, it tries to relate the student´s

previous knowledge and the text linguistic aspects – prefixes and suffixes.

Keywords. Reading; English language; media texts.

Resumo. Este artigo apresenta uma proposta didática que diz respeito ao uso

de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia em língua inglesa,

visando a facilitar a atividade de compreensão. Fundamentando-se nos

modelos interativos de leitura e na abordagem instrumental do ensino de

inglês, procura relacionar o conhecimento prévio do aluno com aspectos

lingüísticos do texto – prefixos e sufixos.

Palavras-chave. Leitura; língua inglesa; textos da mídia.

1. Introdução

A leitura de textos em língua inglesa é uma necessidade que se apresenta para alunos

das diversas áreas do conhecimento, entre elas a Comunicação. A expansão da Internet

oferece aos acadêmicos uma enorme quantidade de material produzido e/ou publicado

em inglês (80%, de acordo com a Wikipedia, 2007), ao mesmo tempo em que permite ao

cidadão do mundo divulgar o conhecimento para os quatro cantos do globo. Nesse

contexto, o domínio da leitura em língua inglesa favorece o acesso à informação e a

troca do saber entre os povos.

A proposta didática que aqui apresentamos – uso de aspectos morfológicos na leitura

de textos da mídia – insere-se num programa mais amplo do ensino de leitura em língua

inglesa, dentro da abordagem instrumental do ensino de línguas, em que se enfatiza o

uso de estratégias de leitura tais como skimming, scanning, uso de informação não-

linear e pistas tipográficas, inferência contextual, reconhecimento de grupos nominais,

funções retóricas e elementos coesivos do texto (DOTA, 2006, p. 1368).

Nessa direção e ancorando-se nos modelos interativos de leitura (CARRELL, 1988,

p. 101), propomos atividades em que os alunos, levando em conta o conhecimento de

mundo e o conhecimento do assunto que já possuem, interagem com aspectos

lingüísticos do texto em foco, especificamente com os aspectos morfológicos – prefixos

e sufixos.

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008 17

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2. Uso de aspectos morfológicos

Ao iniciarmos a proposta didática, desenvolvemos uma atividade de warm-up em

que solicitamos aos alunos que observem algumas palavras em inglês e que apontem

suas correspondentes em português. Trata-se de palavras cognatas que possuem a

mesma raiz em ambas as línguas em questão. Após acolher as respostas dos alunos,

apresentamos o quadro abaixo com as palavras nas duas línguas e com a respectiva

comparação dos prefixos e sufixos que ocorrem nesses termos:

IMPOSSIBLE = impossível; “im-” = “im-”; “-ible” = “-ível”

COMMUNISM = comunismo; “-ism” = “-ismo”

INTERNATIONAL = internacional; “-al” = “-al”

DISCOVER = descobrir; “dis-” = “des-”

Com esse quadro permite-se verificar que existem afixos (prefixos e sufixos) que são

cognatos entre o português e o inglês e que podem ser identificados porque têm uma

origem comum – o latim ou o grego.

Na seqüência, lançamos uma atividade de pré-leitura com relação ao primeiro texto a

ser trabalhado – Newsweek Special Issues (anexo 1). Introduzimos um quadro (abaixo)

com três colunas e pedimos aos alunos que prestem atenção às palavras da segunda

coluna, as quais encontrarão no texto objeto da próxima leitura. Solicitamos que

preencham a primeira coluna com as palavras primitivas correspondentes e que usem os

prefixos/sufixos dados, se necessário:

tradução

order extraordinary (linhas 1-2)________________

labor collaboration (l. 2) ________________

____________ leaders (l. 14) ________________

____________ globalization (l. 16) ________________

____________ meeting (l. 19) ________________

____________ arrangement (l. 31) ________________

____________ highly (l. 32) ________________

____________ successful (l. 32) ________________

____________ relationship (l. 33) ________________

____________ founder (l. 34) ________________

____________ readers (l. 39) ________________

Prefixos:

extra- = além de - extraordinary

co- (col-, con-) = junto de – collaboration

Suffixos:

18 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008

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-ary = que tem a qualidade de (adjectivo) - extraordinary

-er (-or) = uma pessoa que; uma coisa que (subs.) – reader

-ment = estado, ação (subs.) - arrangement

-ship = condição, estado (subs.) – relationship

-tion, ation = o ato de (subs.) - collaboration

-ful = caracterizado por (adjectivo) - successful

-ly = de mameira (advérbio) - highly

Observamos que a terminação –ing pode ser usada como um substantivo, como um

adjetivo ou como um verbo. Exemplos:

a) substantivo – This issue marks the beginning of an extraordinary collaboration…

b) adjetivo – The opposing forces are criticizing the president.

c) verbo – You´re smoking too much these days.

Em seguida, observamos que CEOs (l. 25) são “chief executive officers” e

solicitamos aos alunos as seguintes atividades:

a. Agora leiam o texto. Prestem atenção aos aspectos morfológicos, à ilustração, às dicas

tipográficas e às cognatas.

b. Tentem identificar os pontos principais do texto.

c. Vocês podem traduzir as palavras listadas no quadro acima?

d. “Policymakers” e “network” são palavras compostas:

policy+maker (l. 25)

net+work (l. 25)

Vocês podem inferir o significado delas?

e. Voltem para o texto. Procurem uma informação específica. Qual o papel do “World

Economic Forum”? O que ele faz?

f. Os aspectos morfológicos o ajudaram a entender o texto?

g. Vocês já ouviram falar de um outro fórum que se opõe ao “World Economic Forum”?

A seguir, introduzimos o texto Globalization Activists Draw up Battle Lines (anexo

2), solicitamos que façam um “skimming” do texto e, posteriormente, que observem as

palavras do quadro abaixo e encontrem suas derivadas no texto, usando, se necessário,

os afixos dados:

active activists

global ______________________

solidary ______________________

move ______________________

determine ______________________

concentrate ______________________

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proliferate ______________________

equal ______________________

destroy ______________________

Prefixos:

anti- = oposto – anti-globalisation

in- (im-, ir-, il-) = negação– inequalities

Suffixos:

-ist (yst) – uma pessoa que (subs.) – activist

-ity – estado, qualidade (subs.) – inequality

Apontamos que, como se pode ver, existem muitas palavras (e afixos) nesse texto

que os alunos provavelmente conheciam. Então, pedimos que, usando as palavras que já

conheciam (incluindo as cognatas) e os aspectos morfológicos, leiam o texto

novamente, definam o que é o “World Social Forum” e externem sua opinião sobre os

objetivos desse fórum.

Dando seqüência à utilização dos aspectos morfológicos na compreensão de textos,

apresentamos um trecho da matéria Walk, Don´t Run (anexo 3), para que os alunos

desenvolvam as seguintes atividades:

a. Analisem a ilustração. Usem seu conhecimento prévio da situação.

b. O que as pessoas estão fazendo na ilustração?

c. O que vocês esperam de um texto com essa ilustração?

d. Analisem as pistas tipográficas (título, subtítulo, números, abreviações, etc.). Prestem

atenção às palavras cognatas.

e. Vocês podem prever a idéia geral do texto?

f. Façam um “skimming” do texto. As palavras cognatas ajudá-los-ão.

g. De que trata o texto? A previsão que vocês fizeram estava correta?

h. Vamos analisar alguns aspectos morfológicos do texto:

-reasonably (l. 2) tem dois sufixos – -able e –ly (reason + -able + -ly); -able é um

sufixo formador de adjetivos; -ly é um sufixo formador de advérbios. O que reasonably

significa?

-outros sufixos formadores de adjetivos:

-ous = cheio de – vigorous (l. 2);

-ar = que tem a qualidade de – regular (l. 7);

-ive = que tem a qualidade de - preventive (l. 8);

-ic = que tem a qualidade de – chronic (l. 25).

Observamos que esses sufixos formadores de adjetivos nos ajudam a identificar os

modificadores de um substantivo e a entender melhor o significado de um grupo

nominal, como por exemplo em chronic disease (l. 25).

- o prefixo un- = negação – untoward (l. 17). Vocês podem inferior o significado dessa

palavra?

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-comparação:

- a terminação –er + than são marcas de comparativo – easier…than (l. 15);

- the … + a terminação -est são marcas de superlativo – the safest (l. 13).

Enfatizamos que esses aspectos morfológicos nos ajudam a identificar as idéias

apresentadas pelo texto e damos seqüência às atividades de compreensão:

i. Leiam o texto novamente. Ele tem dois parágrafos. Quais são os pontos principais em

cada um deles? Discutam essa questão com o seu colega.

j. Vocês concordam com o ponto de vista do texto? Vocês fazem caminhadas?

l. Vocês praticam alguma outra atividade física?

3. Conclusão

Para concluir, apontamos aos alunos que os prefixos geralmente mudam o

significado de uma palavra. Ex.: globalization – anti-globalization. Os sufixos mudam a

classe de uma palavra. Ex.: high (adjetivo) – highly (advérbio). Enfatizamos que os

aspectos morfológicos podem ajudá-los a usar as palavras conhecidas que ocorrem com

afixos (prefixos e sufixos), para entenderem a idéia geral e os pontos principais de um

texto. Especificamente, os aspectos morfológicos podem ajudá-los a inferir o significado

de palavras desconhecidas, uma vez que os prefixos carregam um significado e os

sufixos marcam uma classe gramatical.

4.Referências

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54, 8/15 abr. 2002.

5. Anexos

22 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008

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Anexo 1

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008 23

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Anexo 2

24 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008

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Anexo 3

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008 25

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ESTUDO EXPERIMENTAL SOBRE O FORMATO PROSÓDICO INICIAL NA AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Maria de Fátima de Almeida Baia Departamento de Lingüística – Universidade de São Paulo (USP)

Departamento de Lingüística Universidade de São Pauloav. Luciano Gualberto, 403cep: 05508-900 São Paulo

[email protected]

ABSTRACT: This experimental study claims at analyzing the prosodic template in Brazilian Portuguese acquisition. Special attention is given to two hypothesis on initial prosodic template: 1) Trochaic Bias (Allen & Hawkins 1980); 2) Neutral Start (Hochberg 1988). Also, this article investigates the discrepancy between the results of longitudinal and experimental studies on Brazilian Portuguese acquisition: an iambic bias is found by longitudinal studies (Santos & Fikkert 2005, Baia 2006), whereas experimental studies claim that there is a trochaic bias (Rapp 1994). The results of this article do not show a trochaic or iambic bias. Both prosodic templates are used by Brazilian children as well. There is a difference between longitudinal and experimental results because of the particular lexicon in spontaneous data.

Keywords: language acquisition, prosody, trochaic bias.

RESUMO: Este estudo experimental visa analisar o formato prosódico na aquisição do português brasileiro. Uma atenção especial é dada para duas hipóteses sobre o formato prosódico inicial: 1) Tendência Trocaica (Allen & Hawkins 1980), 2) Início Neutro (Hochberg 1988). Este artigo investiga também a discrepância entre os resultados dos estudos longitudinais e experimentais: uma tendência iâmbica é encontrada pelos estudos longitudinais (Santos & Fikkert 2005, Baia 2006) enquanto que os estudos experimentais apontam uma tendência trocaica (Rapp 1994). Os resultados deste artigo não mostram uma tendência trocaica ou iâmbica.Ambos modelos prosódicos são usados pelas crianças. Há uma diferença entre os resultados longitudinais e experimentais devido ao léxico particular nos dados espontâneos.

Palavras-chave: aquisição de linguagem, prosódia, tendência trocaica.

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1. Sobre o formato prosódico inicial

A investigação acerca do formato prosódico inicial na aquisição da linguagem não é recente. Allen & Kawkins (1980), estudando a elisão de sílabas fracas no inglês, lançaram na comunidade lingüística a hipótese da tendência trocaica. Segundo os autores, os primeiros enunciados teriam o formato SW¹. Gerken (1994) retoma o estudo de Allen & Hawkins (1980), analisa novos dados da aquisição do inglês e confirma a hipótese de que o pé trocaico é o pé default.

A maior parte dos estudos realizados concentra-se no estudo da aquisição do inglês e a maioria corrobora o que já foi afirmado por Allen & Hawkins (1980) (cf. Gerken 1994, Archibald 1995). Há outros estudos que questionam o fato do pé trocaico ser predominantemente inicial no inglês (cf. Stoel Gammon & Kehoe 1997) e para validar tal questionamento, exemplos de erros direcionados para o pé iâmbico são levantados e analisados. No holandês, temos estudos que apontam uma tendência trocaica inicial (cf. Demuth 1995, Wijnem et al. 1994) e estudos que questionam a sua universalidade levantando truncamento de palavras trissílabas favorecendo o pé iâmbico (cf. Taelman 2004). No alemão, o único estudo encontrado (cf. Grimm 2004) afirma a predominância de troqueus nos enunciados iniciais.

Pensando na possibilidade da tendência trocaica apontada na literatura ser apenas um reflexo do pé predominante na forma alvo das línguas germânicas – o pé trocaico - procurou-se estudos sobre o modelo métrico inicial em outras línguas não germânicas. Nas românicas, foram encontrados estudos sobre o espanhol que não confirmam a hipótese da universalidade do troqueu (cf. Hochberg 1988). No francês, há o estudo de Allen (1983) que, estudando o contorno supra-segmental de crianças francesas adquirindo a primeira língua, nota a existência de uma restrição prosódica trocaica; um outro estudo (cf. Demuth & Johnson 2003) observa a predominância de iambos (o pé predominante na forma alvo do francês), e um dos pesquisadores (cd. Demuth, 2003) vai mais adiante dizer que o que predomina nos primeiros enunciados da aquisição do francês são os monossílabos, sílabas fortes finais, resultado de truncamento. No catalão (cf. Prieto 2005) os dados parecem indicar uma tendência trocaica, pois SW é produzido como SW enquanto que WS é produzido como S e WSW como SW. No português europeu (doravante PE), Correia (2006) encontra uma tendência iâmbica nos enunciados iniciais.

Em línguas de outras famílias os seguintes estudos puderam ser encontrados: na língua bantu sesoto (ou soto sul) (cf. Demuth 1996), que marca o acento com o alongamento da penúltima sílaba, os troqueus são predominantes no primeiro estágio de aquisição; em quiché (cf. Demuth 1996), um dos 21 dialetos maias falados na Guatemala, língua na qual a sílaba proeminente sempre é a final, as primeiras palavras sempre são monossílabas; em hebraico (cf. Berman 1997), língua iâmbica, a criança começa produzindo monossílabos retirados de dissílabos com proeminência final; em japonês é difícil afirmar a tendência prosódica inicial, pois, segundo Ota (2001, 2002), trata-se de uma língua que não possui um sistema de acento, no entanto, nota-se no início uma predominância de enunciados monossílabos.

Dos estudos acima mencionados, cabe destacar o de Hochberg (1988) que não confirma a tendência trocaica na aquisição do espanhol. A conclusão da autora é de que

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não há uma tendência prosódica inicial, mas sim um início neutro. Devido a esse início neutro a criança começaria produzindo erros de acento até adquirir as regras de acentuação, pois, segundo a autora, a criança adquire as regras de acordo com a exposição que ela tem da língua.

Assim, dos trabalhos acima, duas hipóteses sobre aquisição puderam ser encontradas:

(i) Há uma tendência trocaica no início;(ii) Não há uma tendência trocaica no início (início neutro)².

2. Sobre o formato prosódico inicial do PB

Na literatura aquisicionista brasileira são poucos os trabalhos que abordam a tendência prosódica inicial. A maioria dos trabalhos utiliza a metodologia do estudo naturalístico (Santos 2001, Bonilha 2004, Santos & Fikkert 2005, Baia 2006); apenas dois investigam por meio da metodologia experimental, o de Rapp (1994) e este presente trabalho.

É importante citar o que a literatura diz a respeito da forma prosódica predominante na língua adulta. Cintra (1997) investiga a distribuição dos padrões acentuais no vocábulo em português em textos literários e conclui que a maioria dos vocábulos é composta por paroxítonos (63%); Albano (2001) investiga as entradas do mini-dicionário Aurélio e conclui a predominância de paroxítonos (53,5%).

A maior parte dos estudos que propõem um algoritmo de acentuação do PB indicam o pé trocaico como pé do PB: Massini-Cagliari (1995) e Bisol (1992) afirmam que o pé básico do PB é o troqueu . Lee (1995), no âmbito da fonologia lexical, argumenta que o PB comporta tanto pés trocaicos como iâmbicos.

O único estudo de percepção de acento lexical feito com adultos que há na literatura brasileira é o de Consoni (2006). A autora diz que a escolha dos falantes brasileiros é norteada pelo padrão acentual do português, o paroxítono.

Depois do exposto acima, é de se esperar que as crianças produzam mais troqueus se estiverem produzindo o acento lexical de acordo com o que é apresentado pela forma alvo.

Apresento um quadro que resume os achados pela literatura brasileira até agora:

Estudo Experimental – tendência

Estudo Longitudinal – tendência

RAPP (1994) – trocaica (++) SANTOS (2001) – iâmbica (++)BONILHA (2004) – iâmbica (+)SANTOS & FIKKERT (2005) – iâmbica (++)BAIA (2006) – iâmbica [++]

(++) = indícios fortes (+) = indícios não tão fortes

Quadro 1: tendência prosódica no PB.

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Estudos longitudinais: Bonilha (2004), por meio de um estudo que toma como base a Teoria da Otimalidade, afirma que no primeiro estágio de aquisição há a emergência tanto de pés troqueus como também de iambos, mas observa que na faixa inicial há uma emergência maior de iambos. Santos & Fikkert (2005) notam que os iambos são realizados corretamente antes de troqueus, palavras monossilábicas são transformadas em iambos (S>WS), palavras WSW são truncadas em WS, e os erros de acento transformam troqueus em iambos e não vice-versa. Baia (2006), investigando o modelo prosódico predominante no léxico particular na aquisição (LEPAC³), as criações lexicais e os erros de acento; nota, em seus resultados percentuais, a falta de evidências para uma tendência trocaica e levanta a existência de indícios de tendência iâmbica no léxico inicial do PB.

Estudos Experimentais: O primeiro estudo sobre a forma prosódica nos enunciados infantis na literatura brasileira é o de Rapp (1994) que, em um estudo na linha da fonologia natural, analisa o processo de elisão de sílabas fracas na aquisição do PB como língua materna de 1;6 – 2;0. Por meio da análise de sílabas omitidas, a pesquisadora busca observar uma preferência prosódica-lexical inicial. A amostra de dados é composta de 393 enunciados produzidos por 8 crianças (1;6 – 2;0) e após análise é concluído o seguinte:

Em síntese, o padrão lexical preferencial, na faixa etária investigada (1;6 – 2;0), é o dissílabo paroxítono, impulsionando, desta forma, nesta direção, as simplificações de ordem prosódico-lexical encontradas nos enunciados infantis investigados (...) (Rapp, 1994:162)

O fato de haver uma tendência apontada nos estudos naturalísticos (iâmbica) e outra no estudo experimental (trocaica) é uma evidência de que precisa haver outro estudo experimental para dialogar com o de Rapp (1994), por isso o presente estudo é feito. A análise e resultados serão discutidos a seguir.

3. Metodologia

Os dados deste estudo são dados experimentais de produção. Participaram do experimento 14 crianças de 1;5 – 3;0, que adquirem o PB como língua materna. As 14 crianças pertencem à uma mesma creche – Creche Maria de Nazaré (SP).

Técnica utilizada: A técnica utilizada no experimento é a tarefa de elicitação. Como a criança na faixa etária estudada (1;5 – 3;0) não é capaz de reconhecer todas as figuras que lhe são mostradas, e o léxico precisa ser testado, utilizei a estratégia da imitação quando necessária

Crain & Thorton (2000) afirmam que na imitação as crianças não falam como o adulto, e que na verdade as mudanças (ou erros) que elas produzem podem indicar como que a gramática subjacente está se diferenciando da do adulto. A imitação não é um meio

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experimental duvidoso para testar a forma prosódica inicial investigada neste estudo, pois ela não é uma cópia passiva, mas a reconstrução do estímulo. Nos dados produzidos por meio da imitação, encontram-se casos de epêntese e truncamento, por exemplo. Cabe ressaltar que essa “saída” só foi utilizada quando necessária e que prevaleceu na faixa etária de 1;5 – 1;11.

A formulação dos dados testados: O léxico a ser testado foi formulado de acordo com o objetivo desta pesquisa. Selecionei número de iambos equivalente ao de troqueus. Utilizei o mesmo número de troqueus e iambos no experimento para que não houvesse predominância de um padrão prosódico. Por exemplo, Rapp (1994), estudando o processo de elisão das sílabas fracas na aquisição do PB, utiliza 49 itens lexicais no seu experimento (43% troqueus; 36,7% iambos & 20,3% dátilos) e verifica a predominância de troqueus. Porém, se analisarmos o léxico utilizado pela pesquisadora, verificamos que houve um maior número de troqueus (43%) e talvez isso tenha contribuído para a predominância trocaica na produção infantil.

Desconsidero aqui o fato da criança, na faixa etária investigada, ainda não ter adquirido alguns fones, e coloco palavras que contêm esse tipo de som (como as palavras com tepe alveolar, por exemplo, ‘varal’). Isso porque o que interessa neste estudo é o modelo prosódico presente na produção da criança. Assumo neste trabalho que a comutação de algum segmento não interfere na produção prosódica. Essa assunção será alvo de pesquisas futuras.

O experimento – nomeação de figuras: O experimento foi realizado em situações que evocavam o lúdico. Para que o interesse das crianças fosse motivado, utilizei fantoches e figuras em papel ; tudo bem colorido. Antes de começar o experimento, interagi com elas para que ficassem à vontade e participassem. Foram utilizados: um gravador de áudio, fantoches, desenhos em papel e alguns brinquedos.

A criança tinha que ajudar o boneco a falar o nome de cada desenho. Na atividade o boneco dizia para a criança que estava aprendendo a falar o nome de alguns desenhos e pedia para ela o ajudar.

4. Resultados e discussão

Dissílabos trocaicos: Foram recolhidos 140 dados de troqueus (tokens) produzidos a partir da nomeação de 10 figuras (types). As palavras eram: carro, lápis, bola, copo, prato, ovo, chave, calça, uva e gato.

Os troqueus dissílabos não são truncados freqüentemente. Do total de dados (140) houve truncamento em 9 dados (6,4%). Alguns exemplos abaixo:

(1) [ka] = ‘carro’ (L.G 1;5)(2) [pa] = ‘prato’ (L.G 1;5)(3) [b] = ‘bola’ (J.P 1;8)

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(4) [o] = ‘ovo’ (G.V 2;0)(5) [va] = ‘uva‘ (C.M 2;1)

Nos dados de dissílabos trocaicos, houve deslocamento de acento em 9 dados (6,4%), ou seja, dissílabo trocaico produzido como dissílabo iâmbico. Apenas em um caso houve a inserção de um segmento na sílaba que recebeu o acento: [ka.’kaw] – ‘carro’. Outros exemplos estão logo abaixo:

(6) [u.’ va] = ‘uva’ (J.P 1;8)(7) [ga.’ku] = ‘gato’ (J.P 1;8)(8) [o.’ta] = ‘bola’ (G.V 2;0)(9) [a.’bo] = ‘bola’ (C. M 2;1)

Dissílabos iâmbicos: Foram recolhidos 140 dados de iambos (tokens) produzidos a partir da nomeação de 10 figuras (types). As palavras eram: fogão, boné, café, sofá, maçã, anel, bombom, balão, sabão e varal.

Os iambos dissílabos são truncados mais do que os troqueus dissílabos. Do total de dados (140) houve truncamento em 30 dados (21,4%). Dos 30 dados de monossílabos (100%), resultado de truncamento, a sílaba tônica foi predominantemente mantida. Houve um caso que não foi possível categorizar como truncamento de sílaba átona ou tônica, por isso ele foi deixado no que chamo de ‘outros casos’:

(10) [ba] = ‘fogão’ (J.P 1;8)

Outros exemplos de truncamento em dissílabos iâmbicos encontram-se logo abaixo:

(11) [n] = ‘anel’ (L.G 1;5)(12) [n] = ‘boné’ (J.P 1;8)(13) [gãw] = ‘fogão’ (J.C 2;3)

Não houve nenhum erro de acento direcionado para o troqueu.

Dados WSW: Foram recolhidos 82 dados (tokens) produzidos a partir da nomeação de 6 figuras (types). As palavras eram: estrela, boneca, girafa, cachorro, dinheiro e sapato.

Houve produção de 3 monossílabos (3,6%), 2 eram a sílaba tônica e 1 a átona:

(14) [] = ‘boneca’ (L.G 1;5)(15) [di] = ‘dinheiro’ (L.G 1;5)

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(16) [pa] = ‘sapato’ (J.P 1;8)

Houve o total de 21 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 20 foram produções SW (95,2%):

(17) [‘te.j ] = ‘estrela’ɐ (J.P 1;8)(18) [‘n.k ] = ‘boneca’ɐ (J.H 1;11)(19) [‘a.k ] = ‘girafa’ɐ (G.F 2;6)

Das 21 produções com truncamento, houve apenas 1 dado (4,8%) de truncamento em WS, e é um caso de reduplicação:

(20) [pa.’pa] = ‘sapato’ (L.G 1;5)

Dados WWS: Foram recolhidos 81dados (tokens) produzidos a partir da nomeação de 6 figuras (types). As palavras eram: violão, jacaré, bambolê, caminhão, avião, macarrão.

Houve uma maior produção de monossílabos neste caso: 10 monossílabos (12,3%), 9 eram a sílaba tônica e 1 átona:

(21) [e] = ‘bambolê’ (L.G 1;5)(22) [ãw] = ‘avião’ (J.P 1;8)(23) [va] = ‘violão’ (C.M 2;1)

Houve o total de 30 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 1 foi produção SW (3,4%) e 29 WS (96,6%).Como o contexto é WWS, para haver truncamento em SW precisa ocorrer mudança de acento, ocasionando assim erro de acento:

(24) [‘ka. ] = ‘caminhão’ (J.O 1;8)

As crianças não produziram erros de acento para encaixar a sua produção em um modelo SW, ao contrário do que Gerken (1994) observou no inglês. As crianças recortam o enunciado e produzem as duas sílabas finais do contexto WWS, ou seja, WS. Houve predominância de WS, 29 exemplos (96,6%).

(25) [ka.’ka] = ‘macarrão’ (L.G 1;5)(26) [bã.’le] = ‘bambolê’ (J.H 1;11)(27) [o.’lãw] = ‘violão’ (G.V 2;0)

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Dados SWW: Foram recolhidos 78 dados (tokens) produzidos a partir da nomeação de 6 figuras (types). As palavras eram: mágico, fósforo, ônibus, lâmpada, árvore e óculos. Houve o total de 44 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 43 foram produções SW (97,8%):

(28) [‘ã.pɐ] = ‘lâmpada’ (J.P 1;8)(29) [‘.k] = ‘óculos’ (G.V 2;0)(30) [‘fs.f] = ‘fósforo’ (A. I 2;2)

Houve apenas 1 dado com truncamento resultando em um dissílabo iâmbico:

(31) [o.’ni] = ‘ônibus’ (J.C 2;3)

5. Considerações finais

No estudo experimental, não foi encontrada nenhuma tendência prosódica predominante, as crianças produziram iambos como iambos e troqueus como troqueus. Os dados não corroboram o que foi observado por Rapp (1994) em seu estudo.

Considerando os resultados em geral, nota-se que eles não apontam uma tendência ou existência de um modelo prosódico default . A tendência observada é a de recorte dissilábico com a permanência da sílaba tônica, essa parece ser a exigência no recorte; se a fraca é posterior, ela permanece SW, se antecede também WS. WSW é truncado e resulta em produção SW na maioria dos casos (95,2%), SWW resulta em SW após truncamento (97,9%) e WWS resulta em WS (96,6%).

Portanto, não se confirma, assim como os estudos naturalísticos já fizeram, a hipótese trocaica, pois não houve estratégias favorecendo a produção de troqueus predominantemente; também não se confirma a hipótese de Hochberg (1988) do início neutro, pois a produção do acento não foi aleatória, ou seja, os dados de erros foram muito poucos. Além do mais, as produções não foram neutras em relação a nenhum modelo, houve produções de troqueus e de iambos.Os dados apontam que nessa faixa etária as crianças percebem e produzem o ‘local’ do acento tônico, mesmo que por causa disso tenham que produzir tantos iambos como troqueus.

A diferença nos resultados do estudo naturalístico e experimental pode estar na metodologia e, especificamente, no tipo de dados. No estudo experimental, os dados foram controlados e no naturalístico foram espontâneos. Em relação ao estudo de Rapp (1994), este estudo não confirma a tendência encontrada pela autora, pois não houve uma maior produção de troqueus nos dados aqui controlados. A tendência iâmbica presente nos dados naturalísticos pode ocorrer devido à presença do léxico particular, que em PB tem predominância à direita (cf. Baia 2006). Isso é algo a ser verificado futuramente.

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6. Notas

1. S – strong / W – weak.2. Voltarei para cada uma das hipóteses nas considerações finais deste artigo.3. No primeiro momento, no estudo de 2006, Baia utiliza o termo ‘produções

familiares’ para o LEPAC (léxico específico produzido entre adultos e crianças).

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Concepções de linguagem e ensino da escrita em materiais didáticos

Émerson de Pietri1

1Faculdade de Educação – Universidade de São Paulo (USP) [email protected]

Abstract. This work presents some results of an investigation about appropriation of linguistic knowledge in writing teaching proposals. The analysis of textbooks is intended to reveal the effects of academic and official mediation in the elaboration of didactic materials.

Keywords. Applied linguistics; writing teaching; knowledge production and divulgation.

Resumo. O presente trabalho apresenta resultados de investigação sobre os modos de apropriação de conhecimentos lingüísticos em propostas de ensino de escrita presentes em livros didáticos. A pesquisa tem o objetivo de conhecer os efeitos das mediações acadêmicas e oficiais no processo de didatização dos conhecimentos sobre linguagem.

Palavras-chave. Lingüística aplicada; ensino da escrita; produção e circulação de saberes.

1. Apresentação Este trabalho se insere num percurso de pesquisa em que se observa a constituição da língua portuguesa em objeto de estudo e de ensino, no país, em função das condições históricas que se desenvolveram a partir da década de 70 do século passado. São apresentados, nesse momento, resultados obtidos num processo de investigação sobre os modos de apropriação de saberes sobre escrita escolar, por instâncias que realizam a mediação entre o conhecimento produzido em pesquisas acadêmicas e o trabalho do professor em sala de aula. O material de análise, nesta etapa da pesquisa, se constituiu de livros didáticos publicados nas décadas de 70 a 90 do século XX. O objetivo é compreender a influência, na elaboração do referido material, das concepções de linguagem presentes em diretrizes oficiais ou em textos acadêmicos publicados ao longo do período mencionado. O período observado neste trabalho apresenta algumas características que fazem dele um momento interessante para se considerar as relações entre instituições e a função de determinados agentes que se ocupam de questões referentes ao ensino de língua portuguesa, em geral, e ao ensino de sua modalidade escrita, em específico. Nesse período houve, no Brasil, um estreitamento das relações entre políticas de Educação do Estado, produção de conhecimentos lingüísticos em pesquisas acadêmicas, e a presença cada vez mais constante do livro didático na organização dos saberes e das práticas de sala de aula.

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2. Características do período observado Com a denominada democratização do ensino, realizada pelo regime militar nas décadas de 60 e 70 do século passado, camadas da população que até então não tinham tido acesso às práticas escolares ou às variedades lingüísticas de maior prestígio social passaram a freqüentar os bancos escolares. Sob a ditadura militar e seu projeto de “desenvolvimento”, a disciplina que tradicionalmente se denominou português passou a ser denominada, nas séries fundamentais do ensino, comunicação e expressão (séries iniciais 1º grau), e comunicação em língua portuguesa (séries finais do 1º grau). Apenas no 2º grau ela continuou sendo denominada língua portuguesa e literatura brasileira. Essa alteração se fundamentou na teoria da comunicação. O objetivo do ensino assumiu então um caráter pragmático e utilitarista: o desenvolvimento do uso da língua. O aluno passou a ser visto como um emissor-receptor de códigos os mais diversos, e não mais apenas do verbal. Houve também a valorização da oralidade para a comunicação cotidiana e a ampliação do conceito de leitura (não mais apenas voltada para a recepção do texto verbal, mas também do não verbal — a escolha dos textos para uso no ensino não se faz mais exclusivamente segundo critérios literários, mas segundo a intensidade de sua presença nas práticas sociais). A elaboração de guias e propostas curriculares A necessidade de formação de professores de língua portuguesa, com o objetivo de alterar as práticas de ensino então em vigência, ou de garantir ao professor maior autonomia em relação a seu trabalho, produziu um grande movimento institucional no sentido de promover o acesso a conhecimentos lingüísticos produzidos na academia. As Secretarias Estaduais de Educação, nos anos finais da década de 70, iniciaram um processo de estabelecimento de convênios com Universidades para o aperfeiçoamento de professores da rede pública do Estado de São Paulo e para a produção de propostas curriculares e subsídios a essas propostas. As ações promovidas tinham o objetivo de proporcionar o intercâmbio de experiências entre professores de 1º e 2º graus e professores e pesquisadores universitários que tinham como interesse a mediação entre teorias da linguagem e o ensino e aprendizagem da produção e interpretação de textos. Entre essas ações estavam, além da publicação de guias e propostas curriculares, e de subsídios a eles, também a organização de cursos em convênio com universidades, ou a formação de monitorias com o objetivo de se organizarem encontros e cursos regionais. Trata-se de um período de intenso trabalho no sentido de promover melhorias no ensino com base na apropriação, com objetivos didáticos, de saberes acadêmicos, e na formação do professor a fim de promover alterações em sua prática pedagógica (c.f.: Geraldi, Silva & Fiad, 1996). Promovidas a partir das novas perspectivas que a Lingüística veio oferecer para se repensar a educação e seu espaço institucional, as propostas de ensino que começavam a ser elaboradas tinham a finalidade de substituir as orientações que anteriormente predominavam no ensino de língua portuguesa na escola, ou mesmo de fornecer ao professor conhecimentos que não lhe foram proporcionados em sua formação inicial. A constituição da escrita escolar em objeto dos estudos lingüísticos

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Nos anos finais da década de 70, a escrita escolar se constituiu em objeto de estudos lingüísticos. Ou seja: a escrita se constituiu em objeto de investigação acadêmica num momento em que o valor tradicionalmente atribuído à escrita na escola era relativizado, e em que se atribuía à oralidade um valor que esta não possuía na perspectiva tradicional de linguagem. Inversamente, os estudos lingüísticos modernos, que possuem na relação língua X fala a constituição de seu objeto de análise, redimensionaram seu domínio ao considerar a escrita como um objeto válido. A redação escolar se constituiu em objeto de estudo em pesquisas acadêmicas, no Brasil, quando passou a integrar o exame vestibular do CESCEM (Centro de Seleção de Candidatos às Escolas Médicas e Biológicas), em São Paulo. Não havia no país, até então, pesquisas que tivessem como objeto de estudo o texto escrito produzido em contexto escolar. Em 1976, a primeira pesquisa que tratou da redação produzida em prova de vestibular recorreu a trabalhos estrangeiros para fundamentar a análise sobre a eficácia dessa produção escrita enquanto recurso de avaliação. O número 16 dos Cadernos de Pesquisa apresenta um estudo realizado Vianna (1976) a respeito da eficácia do uso da redação como instrumento de avaliação e “medição da expressão escrita”. O autor aponta a então pouca produção sobre vestibular e a inexistência de estudos sobre redação. A constituição desse objeto para os estudos lingüísticos tornou possível a ampliação do conjunto de materiais a serem explorados cientificamente pela Lingüística. A ampliação, nesse caso, não se fez apenas em relação ao interesse por outros tipos de estruturas semióticas, interesse existente nos estudos lingüísticos daquele período (c.f.: Altman (1998)). Ao constituir a escrita escolar em material de análise, os estudos lingüísticos redimensionaram seu campo de pesquisa ao considerar a modalidade escrita um objeto válido. A apresentação, acima realizada, das características do período em questão, teve o objetivo de mostrar a complexidade das condições em que foram produzidos os documentos analisados no presente estudo. A seguir, trata-se da fundamentação teórica e do processo de constituição do corpus para análise.

3. Fundamentação teórica e metodológica e constituição do corpus Uma vez que as principais questões abordadas neste trabalho dizem respeito a relações discursivas, e que essas relações são situadas historicamente, a Análise do Discurso de linha francesa constituiu a fundamentação teórica para o trabalho de análise realizado. Partindo da hipótese de que a determinados discursos correspondem estruturações textuais específicas, isto é, que os gêneros textuais estão em concordância com a semântica de uma dada formação discursiva (c.f.: Maingueneau, 2005), a observação de determinados elementos constituintes de determinada estruturação textual, do intradiscurso, do modo como um discurso se desenvolve na materialidade, sua formulação, se constitui um meio de observação das características do(s) discurso(s) em que o(s) texto(s) se inscreve(m). Maingueneau (2005), ao considerar como unidade de análise não o discurso (entendido como “dispersão de textos cujo modo de inscrição

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histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”), mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos, estabelece a precedência do interdiscurso sobre o discurso. Nesse sentido, a identidade discursiva se estrutura a partir de relações interdiscursivas, caracterizadas por se fazer como uma interação semântica entre discursos. Essa interação se constitui como um processo de tradução, de interincompreensão regrada: um sistema de regras define a especificidade de uma enunciação com base numa coerência global. Segundo Maingueneau (2005: 22), “o caráter “global” dessa semântica se manifesta pelo fato de que ela restringe simultaneamente o conjunto dos “planos” discursivos: tanto o vocabulário quanto os temas tratados, a intertextualidade ou as instâncias de enunciação...”. Associada ao processo de constituição dos discursos como o concebe Maingueneau (2005), a noção de apropriação tal como compreendida por Chartier (1990: 136) — que considera as diferenças na divisão, a invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção, nos empregos diferenciados, nos usos contrastantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias — possibilita considerar as diferenças existentes nos processos de recepção em função das regras que definem o estabelecimento das relações interdiscursivas. Essa perspectiva parece interessante para se observar os modos de apropriação de concepções de linguagem, para o ensino de sua modalidade escrita, realizados no processo de elaboração de livros didáticos. O corpus de análise do presente trabalho é formado por quatro coleções de livros didáticos para o nível que atualmente se denomina ensino fundamental II (de 5ª a 8ª séries), publicadas nas décadas de 70, 80 e 90. A escolha do material se fez em função do momento de sua publicação e sua representatividade para o período, e da disponibilidade para consulta (os documentos analisados compõem o acervo de livros didáticos, existente na Biblioteca da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, referente ao Projeto Livres). Foram consideradas as atividades referentes a ensino de escrita presentes nos volumes de cada uma das coleções: Comunicação e expressão em língua portuguesa (Azavedo Filho et al., 1973); Estudos de linguagem: área de comunicação e expressão (Lídia Bechara et al., 1983); Descoberta & Construção (Bisognin, 1991); e Interação e transformação: língua portuguesa (Bourgogne & Silva, 1996). Com o objetivo de conhecer as propostas dos livros analisados, em função das concepções de ensino de língua que as fundamentariam, foram observados os textos de apresentação encontrados no início dos volumes. As referências a determinadas concepções teóricas e metodológicas possibilitaram reconhecer as relações estabelecidas entre as propostas de ensino de escrita e as concepções de ensino e de linguagem que circulavam, no momento histórico em questão, em documentos oficiais ou acadêmicos. Uma observação necessária se refere à relação entre data de publicação e o período em que o material didático em análise fora elaborado: as considerações sobre os aspectos sociais e políticos devem se referir ao momento da elaboração do material, e não de sua publicação, quando, muitas vezes, a situação social e política já apresentava características muito diferentes daquelas que possibilitaram a produção dos livros publicados.

4. Análise dos dados

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A seguir se apresenta a análise dos documentos que compõem o corpus do presente trabalho. Uma vez que se pretende observar as relações estabelecidas entre um momento histórico e o(s) posterior(es), a ordem de apresentação das considerações sobre os dados se faz segundo a cronologia de publicação das coleções analisadas. As seções recebem a denominação referente ao material observado.

4.1. Comunicação e expressão em língua portuguesa, de 1973 A observação do texto de apresentação encontrado em Azavedo Filho et al. (1973) possibilita conhecer os modos como foram apropriadas as diretrizes para o ensino estabelecidas pelas reformas educacionais operadas durante o regime militar. Lê-se, na apresentação: “Como se sabe, além do código verbal, que tem evidente prioridade no processo de comunicação e expressão, a linguagem de nossa época freqüentemente recorre a outros códigos, pois vivemos na era planetária da imagem”. Em consonância com as diretrizes oficiais, o objetivo é levar ao estabelecimento da “comunicação moderna”, que se faria “não apenas através da palavra, mas também através do desenho, do símbolo e dos gestos”. A coleção se propõe a “aplicar a nova Lei de Ensino”, que entendia ser o objetivo central do ensino de Língua Portuguesa o de “levar o aluno a comunicar-se melhor, a fim de que possa emitir e receber mensagens, falando ou escrevendo, lendo ou ouvindo”. Em relação ao ensino da escrita, parece haver uma tentativa de conciliação entre os objetivos até então existentes para formar o bom escritor e os novos objetivos que aproximavam, da escrita, “outros códigos”: “Quanto ao ensino da redação, procura motivá-lo [o aluno] em função dos textos lidos, conforme a boa norma, mas com recursos de visualidade, numa experiência até certo ponto inédita”. Nesse sentido, as propostas para produção textual (encontradas na seção intitulada “Atividades de Comunicação e Expressão”) apresentam uma situação inicial, a partir da qual determinadas tarefas deveriam ser cumpridas, para, a seguir, ser realizado o trabalho de produção escrita. As situações iniciais consistem, em geral, na apresentação de um título, um fragmento de texto, ou um texto curto, com base nos quais se propõe alguma atividade que recorra ao trabalho com a oralidade (dramatização; elaboração de jornal falado; composição musical), com a plasticidade (expressar idéias com palavras e cores; elaboração de colagem a partir de materiais impressos), ou com a expressão corporal. Dentre os elementos que compõem a situação inicial e sua relação com a posterior produção escrita, evidencia-se a preocupação em oferecer ao aluno a caracterização de um modelo que, muitas vezes, fundamenta a solicitação para que se produza um texto pertencente a um gênero determinado: desde a apresentação dos textos ou solicitação para sua produção, há referência a poemas, peças de teatro, letras de hinos, ou ainda a preleção, telegrama etc. O que parece caracterizar as atividades propostas é a preocupação em oferecer parâmetros para a elaboração dos textos, que vão desde a continuação de um trecho de narrativa, à apresentação de roteiro para produção de texto argumentativo, ou mesmo à reprodução de modelos de textos pertencentes a gêneros discursivos bastante estabilizados.

4.2. Estudos de linguagem: área de comunicação e expressão, de 1983

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Nesta coleção, as propostas para produção textual são encontradas nas seções intituladas “Criando com palavras” e “Criando não só com palavras”, nos volumes referentes às 5ª e 6ª séries, e “Produção de textos” para as 7ª e 8ª séries. São recorrentes, neste material didático, as propostas de produção textual em que se faz apelo a que o aluno seja criativo. Evidencia-se concepção de produção escrita que considera a liberdade, a ausência de restrições ao processo de elaboração textual, como um elemento importante para o desenvolvimento da expressão do aluno. Assim, as propostas de atividades se fazem comumente fundadas em instruções para que o aluno crie e/ou utilize a imaginação, ainda que a situação inicial da proposta muitas vezes solicite trabalho de pesquisa a respeito de determinado tema. Mesmo nesses casos, as informações obtidas com a pesquisa são desconsideradas no momento da produção escrita, quando a imaginação é requisitada para o cumprimento da tarefa proposta. A liberdade é outro termo bastante recorrente nos enunciados das atividades. Solicita-se ao aluno que produza seu texto “usando livremente” as palavras e, quando o tema possibilita, a produção é associada a algo relacionado à realidade do próprio aluno (sua infância; o lugar onde mora; sua família). Percebe-se, nesta publicação, uma forte relação com as diretrizes estabelecidas para o ensino de língua portuguesa, durante o regime militar, quanto à ênfase naquilo que se concebera, no período, sobre o que fosse comunicação e expressão, e, nesta perspectiva, sobre o trabalho com códigos outros que não apenas o verbal, principalmente em sua modalidade escrita. Porém, é também visível, nesta coleção, a predominância de propostas de atividades que se pautam fortemente sobre a idéia de critatividade, mas de modo a associar esta idéia a aspectos relacionados a imaginação e liberdade. Esta característica pode ajudar a compreender os modos como a apropriação de concepções de linguagem foi realizada, no material didático analisado, em função dos saberes acadêmicos então em evidência, dos usos desses saberes na elaboração de documentos oficiais para o ensino de língua portuguesa, e do próprio contexto social e político em que esse processo se realizou. Nesse sentido, se, por exemplo, os guias curriculares para o ensino de língua portuguesa (São Paulo, 1975), publicadas no Estado de São Paulo na década de 70, se fundamentavam em concepção gerativista de linguagem, e se houve, na elaboração desses documentos, a apropriação da noção de criatividade presente nesta concepção, é possível perceber que a apropriação dessa noção nos documentos oficiais, em função das condições em que estes foram produzidos, ensejam leitura já em desacordo com a compreensão do conceito de criatividade na elaboração teórica chomskyana. Some-se a esse distanciamento, outro, promovido pela apropriação realizada, no livro didático analisado, a partir das diretrizes oficiais e, provavelmente, em função das condições sociais e políticas em que fora elaborado esse material, isto é, em pleno processo de abertura política, iniciado a partir de 1979, somado aos movimentos que começaram a se intensificar, no período, pela redemocratização. A apropriação desse conceito, portanto, foi mediada por fatores que modalizaram sua recepção em função das regras próprias às condições discursivas que direcionavam essa apropriação em diversas instâncias e momentos (a produção acadêmica; a produção oficial; a produção do material didático), e suas relações com as condições sociais e políticas mais amplas.

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4.3. Descoberta & Construção, de 1991 Na apresentação da coleção, a seção intitulada “Para começo de conversa” informa os objetivos do material didático: desenvolver a comunicação, considerada “fundamental para viver, compreender, interpretar, criticar e até mesmo transformar a sociedade”, o que seria feito de forma “atraente”, tornando o estudo mais prazeroso, de modo a que o aluno pudesse fazer “a sua história, construindo seu próprio conhecimento”. É característica desse material a manutenção de alguns elementos encontrados nas coleções observadas anteriormente, porém de modo a conciliá-los com concepção de linguagem que, a partir de seu próprio título, ou das palavras lidas em seu texto de apresentação, pode ser relacionada à tentativa de levar o aluno a construir-se autonomamente, em função de suas próprias experiências: sua expressão seria ao mesmo tempo possibilidade de atuação no mundo, de construção de seu conhecimento e de consciência de si mesmo. Talvez possa ser observada aí influência de concepção construtivista de linguagem. Há outros elementos encontrados nesse material que permitem reconhecer a idéia de autonomia, de construção do próprio conhecimento, nos fundamentos das propostas: as atividades de produção de textos escritos são acompanhadas de seções em que são feitas sugestões para a realização das tarefas. Em mais de uma delas, sugere-se ao aluno que não se preocupe, a princípio, com questões de caráter formal, mas que escreva como se fala, sem se preocupar com a escrita; depois de “despejar as idéias no papel”, produzindo-se o rascunho, conserta-se, trocam-se palavras, cortam-se frases, confirma-se se o que se escreveu é aquilo que se pretendia. Diz-se, por exemplo, para o aluno não apagar, mas riscar as palavras no rascunho, pois elas podem ser reaproveitadas, “ressucitadas”. Aconselha-se ao aluno que se expresse, em primeiro lugar, pois o mais importante é o conteúdo. Ainda que apresente informações sobre a necessidade de considerar a elaboração do rascunho como um ponto de partida, ou de chamar a atenção do aluno para as relações entre texto e suporte, o que poderia revelar preocupação com as condições de produção do texto, o objetivo de fato é que a elaboração de textos funcione como instrumento de organização e de expressão do pensamento. Afirma-se, nesse sentido, que “uma redação com boa fluência tem as idéias bem encadeadas, os pensamentos escoando, passando espontaneamente pelos nossos olhos”. Do mesmo modo que as frases, também os pensamentos devem ser “bem emendados”. Dessa maneira, fatores relacionados às condições de produção do texto são colocados em função desse objetivo primeiro que possui na linguagem instrumento para o pensamento, mediadora das relações do sujeito com a realidade e possibilitadora, para ele, sujeito, da construção de seus conhecimentos. Encontram-se, por exemplo, instruções em que se afirma não ser preciso “fazer uma redação muito grande”, pois “escrevendo um pouco mais de dez linhas já está bom”; ou, em relação ao gênero do texto a ser produzido, encontram-se passagens em que, após instruir para que se faça um rascunho, “jogando as palavras todas no papel”, sugere-se que, caso se considere mais fácil, o texto seja escrito “em forma de poesia”. Mesmo quando um determinado gênero é focalizado, não se estabelecem parâmetros para a elaboração do texto, mas propõe-se que a atenção se volte para a avaliação do resultado final, como pode ser percebido na seguinte proposta de atividade: “você não

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precisa colocar ritmo nem rima no poema que vai escrever. Depois de escrito é que você verá se tem ritmo. O importante é o conteúdo”. Outro elemento que se evidencia neste material é a preocupação em levar o aluno à constituição de sua identidade. As propostas de produção de textos para que o aluno trate de si mesmo são recorrentes e associadas ao uso da imaginação. Encontramos, então, nesse material, a co-ocorrência de concepções de linguagem e de ensino de escrita de forma a, ao que parece, tentar solidarizar propostas já existentes com novas perspectivas de linguagem e de ensino de língua. O uso da língua para a comunicação se associa, neste momento, à possibilidade de compreensão, interpretação e crítica, sendo considerada, inclusive, um instrumento para transformar a sociedade. Essas possibilidades todas, porém, se encontram subordinadas à concepção de linguagem como instrumento para a construção individualizada do conhecimento e da identidade. A coleção observada é publicada no momento mesmo em que a democracia começava a ser reconstruída no país; porém, dado o tempo necessariamente dispendido para a elaboração do material didático, as condições em que foi produzido são aquelas encontradas nos momentos finais do processo de abertura política. Nessas condições, a análise mostra que os modos de apropriação de saberes sobre escrita, para a elaboração de propostas de ensino, se caracterizaram pela tensão entre o individual e o social.

4.4. Interação e transformação: língua portuguesa, de 1996. Em sua apresentação, denominada Mensagem ao professor, afirma-se que os livros componentes da coleção que então se publicava haviam surgido na sala de aula, da experiência dos autores como docentes e de suas relações com o grupo de professores e de alunos com quem trabalharam, além de “todos aqueles que estão ou estiveram, um dia, engajados num processo de reconstrução social”. O objetivo da coleção é que “o aluno observe, apreenda e interfira de forma criativa no sistema lingüístico de que se utiliza (a aprendizagem com função social)”. Conhecimento lingüístico e sociedade estão fortemente relacionados nesse material. Nesse sentido, a consciência do funcionamento da língua está associada à formação do cidadão ou cidadã capaz de refletir sobre seu papel e suas intencionalidades. Nos procedimentos propostos para as aulas, a fundamentação na noção de texto e de contexto é acompanhada das noções de grupo, de comunidade, que perpassam as propostas de atividades. Em sua relação com propostas de ensino anteriores, é possível perceber que parte dos objetivos é compartilhada — por exemplo, em relação ao desenvolvimento da “capacidade de comunicação (emissão e recepção) através de diferentes linguagens”; a esses objetivos comuns somam-se outros próprios à concepção sócio-interacionista de linguagem, que fundamenta a elaboração do material: a adequação da linguagem e a noção de texto, por exemplo, são dois elementos valorizados pela referida concepção e estão entre os objetivos principais do material didático observado. O que se evidencia nas atividades propostas, entretanto, é a ênfase na expressão do aluno quanto ao tratamento de questões sociais e políticas, não havendo atividades que focalizem a elaboração do texto em relação a sua composição e a aspectos lingüísticos. Assim, há propostas de atividades de pesquisa sobre temas como a ditadura, ou os Direitos Humanos, em seção denominada “Fazendo valer o contexto”, mas essas atividades não subsidiam o trabalho de produção escrita. Este trabalho, proposto em

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seção intitulada “De leitor a escritor”, enfatiza temas de caráter social, histórico e político, em geral de modo a relacioná-los a aspectos culturais próprios à comunidade do aluno. Os gêneros a serem produzidos, ou não são definidos — pede-se ao aluno que elabore “um pequeno texto” —, ou são gêneros escolares; por vezes, a escolha do gênero é de responsabilidade do aluno: “O tema para seu texto é “fome”, mas o estilo do texto você é quem vai decidir: pode ser um artigo, uma notícia, uma narrativa ficcional, um poema, uma dissertação... A opção é sua”. Quando há proposta de elaboração de um determinado gênero, como o artigo, por exemplo, não são oferecidos elementos que evidenciem para o aluno características do texto a ser produzido ou aspectos das condições de produção do gênero indicado. O principal objetivo, nesse material, é o de formar o cidadão capaz de tratar de temas de caráter social, histórico ou político. Aspectos relacionados a conhecimentos lingüísticos se encontram em segundo plano, ou não se aproximam das atividades de produção escrita.

5. Algumas considerações A análise das quatro coleções que compõem o corpus definido para esta etapa da pesquisa possibilitou evidenciar alguns elementos sobre os modos como as propostas de produção de textos escritos respondem às perspectivas teóricas e políticas existentes nos momentos históricos em que os livros didáticos foram elaborados. Os dados obtidos até esse momento permitem afirmar que a apropriação de conhecimentos lingüísticos em materiais didáticos é determinada por fatores políticos, seja em relação ao estabelecimento, oficial ou acadêmico, da concepção de linguagem que fundamentará as atuações sobre o ensino, seja em relação aos modos como a concepção estabelecida fundamentará a elaboração das atividades a serem realizadas pelos alunos. A análise evidencia que as propostas de produção escrita, produzidas durante o período do regime militar, enfatizam a composição dos textos e o aprendizado dos recursos lingüísticos, apresentando ao aluno, inclusive, modelos que o auxiliassem na realização das tarefas. Em consonância com o projeto econômico estabelecido pelos militares, as propostas de ensino de língua portuguesa em sua modalidade escrita privilegiam o desenvolvimento de determinadas competências, colocando ênfase nos objetos e objetivos do aprendizado. Após esse momento histórico, quando os movimentos pela redemocratização se iniciam, as propostas de ensino da produção escrita são mais fortemente influenciadas pela imagem do sujeito escritor e pelos papéis sociais a ele atribuídos, do que pelos conhecimentos sobre linguagem e sua relações com a estruturação do texto quanto à composição e à escolha dos recursos lingüísticos. Essas características se mostram na ausência de restrições ou parâmetros formais para a elaboração do texto escrito; na ausência de determinação quanto aos gêneros propostos para a produção escrita; no tratamento conferido aos temas propostos para a elaboração do texto, direcionado por noções como as de liberdade, criatividade ou criticidade. Nesse sentido, percebe-se que a produção dos materiais didáticos, em sua relação com instâncias oficiais ou acadêmicas, se fundamenta em perspectivas teóricas que assumem relevância política no período: há, nesses casos, sempre tensão entre o político e o acadêmico, com as propostas didáticas ora se contrapondo, ora se aproximando, ou

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das diretrizes oficiais, ou das produções acadêmicas, em função de questões sócio-históricas mais amplas.

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GÊNEROS TEXTUAIS NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Rosa Maria Nechi Verceze

Universidade Federal de Rondônia - UNIR

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Abstrat:This paper examines the knowledge of secondary level students about discursive genres’ foundations and presents a diagnosis on the use in textual productions on the basis of theoretical reflections able to help teachers in their reading and writing activities in the classroom. It is based on authors who treat texts’ heterogeneity, emphasize interaction and recognize different text types and different textualization types: Bakhtin, Gumperz e Koch. Key Words: construction of the write do text; discursive genres; processes of the inference; teaching; textual processing. Resumo: Este artigo examina o conhecimento de alunos do ensino médio sobre os fundamentos dos gêneros discursivos, apresentando um diagnóstico do uso em produções textuais com base em reflexões teóricas passíveis de subsidiar o professor em seu trabalho de leitura e produção textual. Fundamenta-se em autores que abordam a heterogeneidade dos textos, privilegiam a interação, reconhecendo tipos diferentes de textos e diferentes formas de textualização: Bakhtin, Gumperz, Koch.

Palavras chaves: Construção do texto escrito; ensino; gêneros discursivos; processos de Inferência; processamento textual.

1. Introdução

Várias pesquisas recentes sobre o ensino-aprendizagem de produção escrita mostram a importância de atividades de produção de textos na escola em situações concretas, reais e precisas. Esta abordagem permite colocar em prática os conhecimentos advindos das últimas décadas de pesquisa de campo da lingüística textual, da sociolingüística interacional e da pragmática que, em síntese, procuram dar ao texto uma dimensão textual-discursiva, centrada na interlocução (Brandão, 2000). Para o desenvolvimento deste estudo, a pesquisa focalizou o ensino/aprendizagem em escolas da rede pública de Guajará-Mirim, em Rondônia, visando à verificação dos conhecimentos adquiridos por alunos do ensino médio sobre os fundamentos que regem os gêneros discursivos e ao diagnóstico do uso em produções textuais. Esta pesquisa faz parte de um projeto intitulado "Lingüística Aplicada no Ensino de Língua Materna" que vem sendo desenvolvido com o objetivo de investigar como o professor administra os processos de interação professor/aluno na sala de aula. Sob

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minha orientação, alunos PIBIC do Curso de Graduação em Letras da Universidade Federal de Rondônia-UNIR - Campus de Guajará-Mirim desenvolvem pesquisas várias para subsidiar o professor da rede pública. Os alunos PIBIC ministraram algumas aulas a fim de verificar com vem sendo realizado o trabalho de leitura e produção de textos. Para isso, introduziram conceitos para a elaboração dos gêneros discursivos nessas aulas e trabalharam com algumas modalidades de gêneros – propaganda, notícia, entrevista, etc. –, coletando várias produções de alunos, duas das quais selecionadas para análise neste artigo.

2. Gêneros discursivos, interação, texto

Os gêneros discursivos são unidades de sentido com propósitos comunicativos, pois manifestam diferentes intenções do autor: informar, convencer, seduzir, entreter, sugerir etc. Em função dessas intenções, pode-se categorizar os gêneros discursivos considerando a função comunicativa que neles predomina. O texto jornalístico, por exemplo, caracterizado como opinativo, informativo, interpretativo e diversional, obedece às funções comunicativas da atividade jornalística: persuadir, informar, orientar e divertir. Mas as funções comunicativas não são os únicos elementos que configuram um gênero discursivo; seus propósitos enunciativos dependem das condições de sua produção e circulação. É preciso assim levar em conta as situações enunciativas. O editorial, por exemplo, se comparado a outro gênero opinativo, certamente vai revelar mais diferenças que semelhanças, uma vez que orienta o público para a opinião do próprio jornal sobre um determinado assunto, enquanto os demais casos cumprem a função de apresentar a opinião do jornalista ou do colaborador. Sua estrutura argumentativa clássica e o seu conteúdo temático, por serem bem definidos, comprometem a liberdade de estilo: sujeito implícito, sentido denotativo, argumentos lógicos, adjetivação controlada, voz passiva, objeto destacado e sujeito que se oculta em função da busca da conquista de credibilidade do leitor.

Para Bakhtin (1992) o gênero se define como "tipos relativamente estáveis de enunciados" elaborados pelas diferentes esferas de utilização da língua. Considera três elementos "básicos" que configuram um gênero discursivo: conteúdo temático, estilo e forma composicional. Nas condições de produção dos enunciados e dos gêneros discursivos inserem-se as intenções comunicativas e as necessidades sócio- interativas dos sujeitos nas esferas de atividade, em que o papel e o lugar de cada sujeito são determinados socialmente. Em cada esfera de uso da linguagem há uma concepção padrão de destinatário a que se dirige o locutor; esse destinatário sempre adota uma atitude responsiva ativa adiante da totalidade acabada do gênero. O discurso estabelece intercâmbios sócio-culturais, fruto de processos cognitivos e conhecimentos acumulados historicamente que atendem a essa atitude responsiva ativa. Bakhtin (1992) enfatiza que quando fala/escreve ou lê/ouve, o indivíduo ativa seu conhecimento prévio do paradigma dos gêneros a que ele teve acesso nas suas relações com a linguagem. Em conseqüência, há de se considerar na prática pedagógica, ao orientar os alunos para a produção textual ou para a leitura, essa dimensão que constitui o que Bakhtin chamou de relação entre forças centrípetas (concentração) e forças centrífugas (expansão). Nos textos, as forças de concentração atuam ao lado das forças de expansão. É a concentração que garante a economia nas relações de comunicação e a intercompreensão entre os falantes pela estabilidade do sistema, e é a expansão que

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permite a variabilidade: a criação, a inovação, a escolha do idioleto e do estilo etc. (Brandão 2000).

Para Gumperz (2002), a diversidade lingüística advém das necessidades das diferentes maneiras de expressão com que o falante depara ao se comunicar. Para dar conta disso, ele se baseia em conhecimentos e estereótipos utilizados para categorizar eventos, inferir intenções e apreender expectativas como recurso comunicativo nas interações verbais, nas mais variadas situações sociais. O conjunto de informações internalizadas é crucial para a manutenção do envolvimento do falante num discurso e para o uso eficaz de estratégias persuasivas. O autor procura evitar o dilema inerente às abordagens tradicionais da Sociolingüística, que explicam os fenômenos sociais como generalizações sobre grupos isolados mediante critérios não- lingüísticos como classe, sexo, idade, profissão, etnia, etc. para justificar os comportamentos individuais. Para ele, os fenômenos sociolingüísticos se baseiam em evidências empíricas de cooperação social e são a priori independentes de categorias sociais.

São pistas de contextualização todos os traços lingüísticos que contribuem para a sinalização de pressuposições contextuais. Isso implica dizer que os falantes utilizam as constelações de traços presentes na estrutura de superfície das mensagens para sinalizar, e os ouvintes para interpretar, qual é a atividade que está ocorrendo, como o conteúdo semântico deve ser entendido e como cada frase se relaciona ao que precede ou sucede. Na maioria dos casos, estas não são percebidas conscientemente pelos falantes, constituindo mudanças de código, dialeto, estilo, fenômenos prosódicos, escolhas lexicais e sintáticas, expressões pré-formuladas e estratégias de seqüenciamento que têm funções semelhantes de contextualização. Os fenômenos de contextualização subjacentes aos julgamentos que os participantes de uma conversa tecem uns sobre os outros durante as trocas interacionais são as inferências. Para Gumperz (2002), "o processo inferencial é de na tureza sugestiva, nunca assertiva, baseado em pressuposições: são pressuposições hipotéticas sobre os propósitos comunicativos." Quanto mais compartilhado for o conhecimento social na interlocução, tanto mais esta tende à normalidade – o diálogo bem-sucedido, em que as inferências são compreendidas sem problemas.

O estudo de Gumperz sobre as pistas de contextualização e as inferências sustenta-se na modalidade falada da língua, nos processos de interpretação quando da negociação de significados numa conversa. Como esta análise refere-se à modalidade escrita, tentar-se-á realizar um estudo das produções textuais de alunos adaptando-se a teoria de Gumperz ao discurso escrito. Pode-se legitimamente pensar que as pistas de contextualização e as inferências são aplicáveis também à escrita, pois o que está em jogo é a construção do sentido do discurso. Na escrita, não há o interlocutor em presença, e disso vem a necessidade de se resgatar por meio de signos convencionais todas as informações relevantes para dotar de coerência o discurso/texto, o que na fala envolve sinais paralingüísticos e não-verbais, dado que o interlocutor se acha em presença no ato de interação.

Além disso, o texto falado ou escrito é parte de um gênero, assim como toda tipologia de gênero é sustentada por um texto, falado ou escrito. Afirma Koch (2003) que "O conhecimento superestrutural (...) permite reconhecer textos como exemplares

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de determinado gênero ou tipo; envolve (...) conhecimentos sobre as macrocategorias ou unidades globais que distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou seqüenciação...”, definindo texto como a “manifestação verbal, constituída de elementos lingüísticos de diversas ordens, selecionados e dispostos de acordo com as virtualidades que cada língua põe à disposição dos falantes no curso de uma atividade verbal, de modo a facultar aos interactantes não apenas a produção de sentidos, como a fundar a própria interação como prática sociocultural."

Marchuschi (2005), por sua vez, afirma que “... ao escolher um gênero, já se escolhe aproximadamente uma forma textual, mas a recíproca não é verdadeira. Não há relação de biunivocidade entre texto e gênero...” Ao perguntar “quais as relações entre a forma textual e os propósitos do gênero?”, introduz elementos de cunho discursivo que vão além da textualidade em si. Nesse sentido, Sobral (2005), partindo de Bakhtin, alega: “... os textos são “o plano material de realização dos discursos e gêneros ... O que [os] mobiliza são as estratégias discursivas,... que lhes impõem inflexões e formas de realização/estruturação a partir de um dado projeto enunciativo, de uma dada arquitetônica, [unindo elementos] estáveis e instáveis, objetivos e subjetivos, cognitivos e práticos, textuais e discursivos/genéricos.

Por outro lado, as estratégias cognitivas presentes aos textos são estratégias de uso do conhecimento partilhado. E esse uso depende, em cada situação de fala, dos objetivos, da quantidade de conhecimento disponível, das crenças, opiniões e atitudes. As inferências a elas ligadas geram informações novas subjacentes ao texto na estrutura de superfície; a intertexualidade torna necessário explicitar no texto o conhecimento mais relevante. O professor pode usar as pistas de contextualização, representadas na escrita pelos conectivos de coesão, por operadores argumentativos e por seleção léxica, identificando por meio delas as inadequações semânticas, lexicais, fragmentos de orações, ausência de conectivos coesivos, etc., o que compromete a compreensão na interlocução discursiva.

3. Análise dos gêneros notícia e editorial em produções textuais de alunos

Exemplo 1 - Análise de uma “notícia de jornal” de um aluno do 1º ano do ensino médio

Palestra de Conscientização Neste sábado, dia 24 de julho de 2005, o Sebrae Ideal em parceria com a Associação de Guajará-Mirim promoverá uma palestra de prevenção, quanto ao uso da camisinha, envolvendo toda a população. É com a participação da Associação de Moradores do Município será possível contar com um grande número de participantes neste evento, onde haverá orientações e conscientização no uso da camisinha no ato da relação sexual, prevenindo assim, um maior índice de contágil de doenças sexualmente transmissíveis na hora da prática de relações sexual.

A “notícia” apresenta problemas devido à falta de domínio de elementos lingüísticos pelos quais o texto se atualiza no momento da enunciação, o que torna a estrutura lingüística confusa e incompleta. Essa incompletude causa uma compreensão parcial do objeto em relação ao leitor, que com sua atitude responsiva ativa, não consegue detectar na totalidade, o que está sendo dito. Uma notícia deve apresentar a concentração de

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elementos constitutivos: quem, o quê, o como, o por quê, o quando e o onde e uma determinada regularidade e estabilidade. Aqui, esses elementos aparecem parcialmente. Logo no início temos o quando "dia 24 de julho de 2005", em seguida um quem Sebrae Ideal e Associação de Guajará-Mirim e um o quê uma palestra. Os demais elementos que sustentam a base do corpo da notícia : o como e o por quê não são apresentados de forma explícita ao leitor, pode pressupor-se que o como seja entendido no enunciado "haverá orientações e conscientização no uso da camisinha no ato da relação sexual" que na verdade seria trocado por um para quê neste caso e, o por quê , também aparece, numa estrutura lingüística confusa, pressupondo ser o enunciado "prevenindo ... sexual". Na verdade esse por quê é estendido como a conseqüência favorável da palestra - o ato de prevenir. Deduzindo, assim, o como e o por quê ficam comprometidos na estrutura lingüística, pois o interlocutor tanto pode entender que orientar, conscientizar e prevenir respondem o para que , como o por quê , causando um mal-entendimento na notícia. Do ponto de vista semântico, não existe o como, que responderiam as perguntas de que forma? ou como acontecerá? Isso deveria ser contextualizado em outro enunciado explícito. Por exemplo: "se a palestra será composta por mesa redonda com várias palestras, apenas um palestrante, por um debate com o público, etc". Observa-se, também, a falta dos outros elementos como: quando, demarcando o dia e a hora do evento, como também o onde - o local de sua realização. (veja negrito no texto).

Faltam assim informações que deveriam ser explicitadas nesta notícia para tornar o texto coerente. Nessa notícia, por exemplo, o autor, ao informar seu interlocutor sobre quem realizará a palestra, deixa inferida uma ambigüidade: O evento será no Sebrae ou na Associação de Guajará? Isso precisaria estar na superfície. Outro exemplo, refere-se à passagem onde ... sexual, que de certa forma é interpretada pelo leitor como a conscientização da população para prevenir-se contra Aids. Essa inferência do leitor deveria estar explícita no texto, uma vez que o objetivo pressupõe o controle da Aids. Neste caso, a generalização” “doenças sexualmente transmissíveis” não destaca o que seria primordial na informação. Neste sentido, deve-se chamar a atenção do aluno para questionamentos como qual o objetivo central da Palestra? Como posso dizer isso? Como organizar meu texto, destacando a Aids como o chamariz para persuadir minha platéia a participar do evento? para ajudá- lo a separar as informações pertinentes para tal propósito e dispensando outras menos necessárias. As pistas de contextualização poderiam ser marcadas pelos elementos lingüísticos-"chave" (seleção léxica) necessários para a objetividade: dia (sábado 24 de julho), (local Sebrae e Associação de Guajará), palestra, prevenção, orientação, conscientização, doenças sexuais, Aids, relação sexual, que certamente auxiliariam o aluno numa melhor concentração das informações.

Exemplo 2 - Redação de um aluno do 2º ano do ensino médio. Os deputados sem máscaras Atualmente no estado de Rondônia e nos municípios e também no Brasil todo o povo cada dia se decepciona com os parlamentares que sobem no palanque prometendo mudar a região e o mundo para melhor. Os deputados parecem conduzir o acordo e negociações que interessem a eles, só pensam em si próprio. Nas campanhas eleitorais contratam cantores famosos, carros de propaganda dos

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mais bonitos, sobrem em palanque com os alto-falantes, falando dos outros candidatos, pedindo apoio de voto. Aqui, os Deputados depois que são eleitos esquecem das pessoas que os elegeram, mostrando emendas para as negociações e para aprovação, somente para o interesse deles, onde vão adotar a política econômica deles e convencer a população por 4 anos. As pessoas pelo que entendo tudo isso, acreditam que estas autoridades têm que se interessar pelo povo, tem que achar um novo caminho. Sou uma eleitora que acredito que a construção de uma política digna tem que ser feita com os trabalhadores.

A análise aqui se restringe a identificar os problemas de argumentação que possam auxiliar o professor a instruir o aluno. Como a argumentação se baseia em opiniões pessoais ou coletivas que expressam apreciações, pontos de vista, julgamentos, aprovação ou desaprovação, a fundamentação dos fatos em provas concretas é de extrema importância, donde a necessidade de exemplos concretos para extrair uma conclusão. A redação contém afirmações generalizantes: Atualmente ... melhor. Nessa passagem faltam informações – dados ou fatos que sirvam de suporte para a pré-formulação o povo cada dia se decepciona. Ou seja, é preciso encontrar dados consistentes de apoio para justificar o por quê o povo cada dia se decepciona. Isso por ser feito por exemplos concretos de um fato particular da vida política do nosso país.

Na passagem "Nas campanhas eleitorais...” “a política econômica deles" , a fundamentação para essas informações poderia ser sustentada com o acréscimo de dados histórico, por exemplo; pois todos sabemos que em toda história do Brasil, o povo, por falta de informação é sempre persuadido a votar naqueles que usam máscaras como sugere o título. O povo "embarca" em promessas e conseqüentemente vota errado. O ponto para a argumentação é utilizar-se de acontecimentos históricos concretos de autoridades eleitas durante todo o percurso da política no Brasil que foram corruptos, agiram em benefício próprio e não de uma coletividade, etc ou mesmo de argumentos recentes que estão na mídia.

De forma clara, este fragmento "As pessoas ... os trabalhadores." Representa o discurso popular, fragmentado da mídia, "revela um autor acrítico, preso a lugares-comuns imerso num universo conceitual muito pobre" (Platão & Fiorim 1997). O acréscimo para fundamentar os argumentos neste fragmento seria o questionamento, também com provas concretas da política brasileira. Por que não há uma política digna que beneficie o povo? Quais os interesses que impedem isso? Qual o papel do trabalho diante da política atual? Qual o papel dos sindicatos? Etc. Contudo, sempre é preciso delimitar e selecionar os argumentos que são mais importantes para o texto e, sem dúvida, é o professor que deve despertar no aluno estas reflexões. As generalizações não têm aqui o apoio de dados consistentes (Platão e Fiorin, 1997). Como a inferência só pode partir da interpretação que o ouvinte faz do que o falante deseja ou pretende comunicar, é na fundamentação em provas concretas e fatos comprobatórios, exemplos específicos, que este poderá negociar sentidos e compartilhar informações. Na escrita, é preciso explicitar partes das inferências no nível de superfície, transformando-as em constituintes lingüísticos e contribuindo para fornecer informações e argumentos que ficam implícitos no discurso.

4. Considerações finais

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O conhecimento das teorias lingüísticas, sobretudo da pragmática, da lingüística textual e da sociolingüística interacional, é crucial para mediar o processo de leitura e produção de texto em sala de aula. O professor precisa ainda atualizar-se sempre, e fornecer aos alunos leituras que também possam ampliar seu conhecimento para além do senso comum, pois só assim o aluno terá condições de iniciar bem a produção escrita, e paulatinamente sanar as deficiências lingüísticas e argumentativas. A partir dessa etapa, a obtenção de informações necessárias para a construção do texto pode ser realizada com mais propriedade. Por isso, o questionamento aqui proposto pode tem bons resultados se o professor tiver conhecimentos necessários para auxiliar o aluno na ampliação do que fica inferido no texto escrito, principalmente por causa da falta de leitura. Trazer as inferências necessárias para a estrutura de superfície ajuda na completude do texto, na coerência que o texto deve ter e é um trabalho que o professor pode realizar através de correção participativa das produções no processo de reescrita. Isso lhe permitirá intervir no domínio da microestrutural textual, propiciando assim o acesso ao domínio da argumentação e da escrita. 1Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes BRANDÃO, H. N. (2000). Texto, Gênero do Discurso e Ensino. In: Gêneros do

discurso na Escola. BRANDÃO, H. N. (Org.), São Paulo: Editora Cortez BRASIL. (1999) Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e

Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC GUMPERZ, J.J. (2002). Convenções de Contextualização. In Sociolingüística

Interacional. RIBEIRO, B. T. & GARCEZ, P. M. (Orgs.), São Paulo: Edições Loyola

KOCH, I. V. (2003). O Texto e a Construção dos Sentidos. São Paulo: Contexto MARCUSCHI, L. A. (2005). Novas perspectivas para o ensino da linguagem. Plenária

2, III SIGET, 17 a 19 de agosto de 2005, UFSM, RS. PÉCORA, A. (1989). Problemas de Redação: São Paulo: Martins Fontes PLATÃO, F. S. & FIORIN, J.L. (1997). Lições de Texto: leitura e redação. São Paulo:

Ática SOBRAL, A.U. (2005). Gêneros textuais ou tipos de textualização? Comunicação

apresentada ao III SIGET, 17 a 19 de agosto de 2005, UFSM, RS.

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TEORIAS DA LINGUAGEM E AÇÃO PEDAGÓGICA: UM OLHAR SOBRE AS ATIVIDADES DE

PRODUÇÃO/RECEPÇÃO DE GÊNEROS ORAIS

Rozana Aparecida Lopes Messias

Rua: Santos Dumont, 1193 – CEP. 19806-062 – Assis/SP e-mail: [email protected]

Pós-graduação em Educação – UNESP/ Marília

Abstract. The unsatisfactory levels of writing and reading in formal situations of communication presented by the students that finish the elementary and secondary education got relevance in the last decades. This context has permitted a variety of studies focused on oral genres at school, besides the researches centered on the theoretical and methodological aspects that guide this practice. Thus, we discuss the attitude of a teacher of Portuguese concerning the work with the production/reception of oral texts in a 5th grade classroom. As a way of illustrating the educative actions, we compared the teaching plan of Portuguese to the activities concretely performed. Keywords. Language theories; PCNs; Pedagogical practice; Production/reception of oral texts. Resumo. A preocupação com os níveis insatisfatórios de expressão oral, em situações formais de comunicação, apresentados pelos egressos do ensino Fundamental e Médio ganhou relevância na última década. Tal panorama tem gerado inúmeros estudos focados na produção/recepção de gêneros orais na escola, assim como nos aspectos teóricos e metodológicos que norteiam essa prática. Discutiremos, então, neste espaço, o posicionamento de um professor de língua portuguesa da Rede Oficial de Ensino no que tange ao trabalho com a produção/recepção de textos orais em sala de aula, a partir da observação de suas aulas e de seu plano de ensino. Palavras-Chave. Teorias da linguagem; PCNs; Prática pedagógica; Produção/recepção de textos orais.

1. O contexto O trabalho que ora apresentamos possui como foco norteador a observação de como são entendidas e efetuadas as atividades de produção/recepção de textos orais na sala de aula. Assim sendo, inserimo-nos em uma escola de Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo e acompanhamos o trabalho de um professor de língua portuguesa, em uma classe de 5ª série, durante um ano letivo. Antes de adentrarmos à realidade encontrada na sala de aula observada faremos algumas considerações acerca do ambiente e dos participantes da pesquisa empreendida. O Plano de Gestão – documento que retrata a realidade da escola e o seu projeto político pedagógico – a que tivemos acesso descreve a escola como emergente. È ressaltado o

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fato de que criada em 1986, caracterizava-se, assim como a vila em que se situava, por sua simplicidade refletida não só nas instalações, mas também na clientela, em sua maior parte constituída por crianças humildes do bairro. Esse quadro, porém, aos poucos foi alterado devido ao crescimento e melhoria das condições de vida do bairro, que passou a abrigar “residências e casas de comércio de características melhores” (Plano de Gestão, p.1). Assim, melhorias foram executadas no ambiente escolar do ponto de vista estrutural, ressaltando-se que isso foi possível devido a “uma equipe administrativa e docente unida, compromissada e muito bem vista pela comunidade” (Plano de Gestão, p.1). Sobre este aspecto, a coordenadora pedagógica, com quem tivemos um longo contato, esclareceu-nos que a diminuição na rotatividade de professores foi o que permitiu a construção e execução de projetos direcionados à recuperação da auto-estima das crianças. Propiciando, dessa maneira, condições para que estas mostrassem sua capacidade criativa para a comunidade, através de exposições, feiras científicas etc. A escola passou, então, a ser procurada por outro contingente da sociedade e, segundo relato da coordenadora, isso constituiu um fator positivo, pois auxiliou na formação de uma clientela mais heterogênea; possibilitando aos alunos de classes sociais menos favorecidas serem vistos pela sociedade pelo seu desempenho positivo e não por seus problemas e dificuldades. Ademais, o perfil dos estudantes, projetado pelo Plano de Gestão da escola, ratificava nossa impressão de que os alunos da 5ª série, foco de nossa observação, enquadravam-se entre aqueles de poder aquisitivo menor. Além disso, a classe em questão fazia parte do período vespertino, retratado como sendo freqüentado por alunos do próprio bairro ou adjacências, cujos pais trabalham na zona rural, ausentado-se quase o dia todo. Assim, muitas dessas crianças “alimentam-se na escola e por diversas vezes a escola faz o papel da família, orientando-os para a vida” (PLANO DE GESTÃO, p. 8). No que tange à faixa etária, dos trinta educandos da classe observada, a maioria tinha entre 11 e 12 anos, apenas quatro tinham 13 anos, e dois, 14 anos. Neste sentido, não havia choque entre os interesses comuns, pois mesmo os mais velhos, pelo que pudemos perceber, não apresentavam atitudes diferentes dos demais. Além disso, a classe pareceu-nos ter um desempenho mediano. Quanto à professora, constatamos que se formara por uma universidade pública estadual em 1988, e, desde o início da carreira havia se dedicado ao ensino de língua estrangeira e à educação infantil (pré-escola), assumindo o cargo de professora de Língua Portuguesa 12 anos depois. Assim, em nossas conversas, sempre procurou deixar claro que não tinha muita experiência no ensino de língua materna para o nível Fundamental (5ª a 8ª séries), mas que estava aberta às novas propostas e que procurava sempre fazer o melhor possível. Mostrava, também, preocupação com as “deficiências de alfabetização” com que algumas crianças chegavam à 5ª série. Tal apreensão estava sempre presente em seu discurso, quando conversávamos e, até mesmo, em comentários durante as aulas, nos momentos em que estimulava os alunos com dificuldades a não faltarem às aulas de reforço1. Essas afirmações podem ser constatadas nos protocolos de observação: “(...) a professora explica, novamente, a importância das aulas de reforço e que as faltas em demasia prejudicam o aprendizado”, “(...) apesar de os livros estarem na classe resolve passar os exercícios na lousa por causa de um aluno que não consegue copiar do livro para o caderno. (Não consegue passar de letra de forma para letra cursiva, explica para mim)” (Prot. nº 2).

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A propósito de seu entendimento sobre nossa real intenção em observar suas aulas, notamos que, apesar da explicação do conteúdo de nosso projeto, a professora acreditava que observaríamos se era permitida aos alunos a utilização da fala durante as aulas. Esse fator fez com que demorássemos um pouco para perceber como as atividades orais eram encaminhadas, uma vez que havia, por parte da mesma, certa insistência em interagir oralmente com os alunos. Porém, isto não constituiu um obstáculo para nossos apontamentos, pois, no decorrer do tempo, a superficialidade de suas ações foi substituída por uma postura de naturalidade diante de nossa presença. Portanto, as explicitações até aqui postas representam o panorama em que concentramos nossos estudos; os interlocutores representados pela coordenadora, pelos alunos, bem como da professora que nos permitiu partilhar de suas aulas e utilizar seu trabalho como fonte para análise de uma situação tão complexa como é o ensino de língua na escola. E, inseridos neste contexto, partilhando dos momentos vividos nas aulas de língua portuguesa por estes parceiros, foi que desenvolvemos nosso trabalho. 2. Práticas de oralidade: plano de ensino e ação pedagógica Durante o processo de pesquisa, observamos diferentes fontes de dados. Porém, para explicitar um pouco do que notamos a respeito das práticas de produção de textos orais na sala de aula, analisaremos, neste espaço, algumas ações dos interlocutores (professora e alunos); tendo em vista as proposições acerca da produção oral expressas no plano de ensino de língua portuguesa, da classe acompanhada. Antes de adentrar a esta questão, discorreremos, brevemente, acerca do documento observado. De maneira geral, o Plano de Ensino é um documento cuja elaboração, pelo menos em tese, é iniciada com o ano letivo, no período de planejamento que antecede o início das aulas e tem continuidade durante o primeiro bimestre, quando os professores conhecem melhor os grupos em cujas classes serão aplicados os planos. Participam de sua elaboração os professores das séries equivalentes, com o intuito de trabalhar conteúdos afins, além de tentar seguir o mesmo cronograma de execução destes. Assim, o plano de ensino da 5ª série C foi elaborado conjuntamente pela professora da classe e pelos professores das outras quintas séries da escola. Com relação ao que é proposto no respectivo plano, iniciando pelos objetivos gerais da disciplina naquela série, temos uma preocupação explícita voltada para a questão da linguagem oral: “desenvolver no aluno o hábito da leitura, despertando seu senso crítico, assim como a habilidade para utilizar a linguagem oral e escrita para estruturar sua experiência, entender, analisar e explicar a realidade” (grifo nosso). Esta preocupação pode ser ratificada nos objetivos específicos da disciplina na série, com afirmações do tipo: “Fazer com que o aluno consiga reconhecer as intenções do enunciador de um texto oral“ ou ainda “(...) além disso, espera-se que o aluno seja capaz de planejar o uso da linguagem oral e redigir diferentes tipos de textos, utilizando com desenvoltura os padrões da escrita” (grifo nosso). Uma análise prévia destas afirmações nos leva a acreditar que há, por parte dos professores, um conhecimento, mesmo que superficial, do que propõem os PCNs para o ensino de língua portuguesa, no que diz respeito ao trabalho com a linguagem oral e sua importância para a vida do aluno:

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(...) cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações públicas: realização de entrevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado como mais apropriado para todas as situações. A aprendizagem de procedimentos apropriados de fala e escuta, em contextos públicos, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la (PCNs, 1998, p. 25).

Contudo, quando comparamos os objetivos com os conteúdos propostos para serem trabalhados no decorrer do ano, notamos que, apesar de os objetivos estarem em consonância com a ênfase no ensino do oral, os conteúdos se dividem em leitura e interpretação de textos escritos, produção de textos escritos (redação) e aspectos gramaticais da língua, não havendo nenhuma explicitação sobre escuta e produção de textos orais. Desta forma, voltando nossa atenção para a divisão das atividades durante os quatro bimestres temos:

1º bimestre: Leitura, interpretação, reescrita e elaboração de textos diversificados: jornalísticos, histórias em quadrinhos; processo de coesão e coerência nos textos estudados; significado das palavras: sinônimo e antônimo; fonemas e letras; encontros vocálicos e consonantais. 2º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados: jornalísticos, histórias em quadrinhos; processos de coesão e coerência nos textos estudados; ortografia, acentuação e sinais de pontuação; classes gramaticais (substantivos, adjetivos e verbos); tipos de frases. 3º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados (propaganda); processo de coesão e coerência dos textos estudados; ortografia; procedimento e organização do discurso direto e indireto; classes gramaticais (pronomes, artigos); formação de palavras, prefixo e sufixo. 4º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados (texto literário); processo de coesão e coerência nos textos estudados; ortografia; tipos de texto: narração e descrição; sujeito e predicado; revisão dos conteúdos estudados nos bimestres anteriores.

Percebemos, na divisão dos conteúdos a serem estudados durante os quatro bimestres, que a preocupação com atividades voltadas para a ênfase do oral, ou que tenham neste um ponto de partida, inexiste. Esse fato mostra uma dissonância entre os objetivos e os conteúdos contemplados. Além disso, retirando os pontos relacionados à produção de textos escritos e leitura, a divisão dos conteúdos centra-se em pontos direcionados à nomenclatura gramatical, mais especificamente à tradicional. Não há referência a atividades que enfatizem a reflexão lingüística. Assim, da maneira como está organizado o plano, a metalíngua é o ponto de partida, caracterizando o quadro, apontado pelos PCNs, de um ensino de gramática desarticulado das práticas de linguagem2. Além disso, no que diz respeito à produção textual, nota-se um direcionamento para atividades de produção escrita, dividida em produção de textos jornalísticos e quadrinhos (1º e 2º bimestres), propaganda (3º bimestre) e literários (4º bimestres). Esta proposta, por sua vez, distancia-se do continuum de gêneros textuais proposto por Marcuschi (2001, p.42):

O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das

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características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num continuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos.

Por exemplo, na indicação de produção de textos jornalísticos não há referência a quais gêneros textuais serão enfocados, se notícia, artigo, carta do leitor ou entrevista, considerando que estes são sugeridos como possibilidades de textos a serem trabalhados na categoria “gêneros de imprensa”. O mesmo ocorre com a proposta de produção de textos literários, para os quais os PCNs sugerem crônicas, contos e poemas, que, da mesma forma, não estão especificados. Esta atitude faz emergir o desconhecimento, por parte dos elaboradores do plano, do conceito de gênero textual e da diversidade de textos que podem ser trabalhados dentro de cada gênero proposto. Isto, além de acarretar a falta de direcionamento adequado nas atividades de produção escrita, distancia os alunos de uma visão mais ampla da relação entre a escrita enquanto uma atividade vinculada às situações reais de uso da língua. Assim sendo, não há nenhuma referência à produção de textos orais, o mesmo acontecendo com as atividades de escuta de textos orais, que, por sua vez, constituem-se em algo essencial no contexto do plano em questão, pois somente através de exercícios de escuta de textos orais seria possível alcançar o que é proposto no objetivo específico da disciplina: “fazer com que o aluno consiga reconhecer as intenções do enunciador de um texto oral”. Por outro lado, no item destinado aos procedimentos metodológicos, local em que os professores expõem a forma como pretendem trabalhar os conteúdos planejados, há ênfase na utilização de “aulas expositivas, leituras silenciosa e em voz alta pelos alunos. Leitura de pequenas histórias pelo professor, atividades que propiciem a produção de textos orais e escritos” (Grifo nosso). Novamente, encontramos expressa a preocupação com as atividades voltadas para a produção de textos orais, porém, não em conformidade com as concepções que norteiam a aplicação de tais atividades. Este fator é facilmente detectado se verificarmos que as atividades em que há utilização da linguagem oral estão direcionadas para a leitura. Neste caso, apesar de utilizada, a linguagem oral serve de representação ao texto escrito, ou seja, o aluno não cria um texto oral, pois a base discursiva é a modalidade escrita da língua. Os conteúdos do plano estão, portanto, divididos em leitura e produção de textos escritos. Em conseqüência, a proposta de escuta e produção de textos orais não é contemplada. É importante salientar, então, que, ao mencionarem a questão da escuta de textos orais, os PCNs antevêem que esta atividade deve objetivar o desenvolvimento do domínio dos gêneros que apóiam a aprendizagem escolar de Língua Portuguesa, bem como de outras áreas. Nesse contexto, sugerem gêneros como a exposição oral, o relatório de experiência, a entrevista, o debate, a palestra, o teatro, entre outros, como forma de exercitar gêneros da vida pública. Sendo, esta, considerada uma das funções da escola no tocante ao trabalho com os gêneros orais. Por este prisma, a desconsideração das atividades de escuta de gêneros orais, que serviriam como suporte para levar os alunos a “construir, progressivamente, modelos apropriados ao uso do oral nas circunstâncias previstas” (PCNs, p.68) representa um entrave ao desenvolvimento da habilidade de produção de textos orais mais formalizados, representativos das exigências do dia a dia em sociedade. Ao retomarmos o plano de ensino produzido pelos professores encontramos na proposição de trabalho com os textos jornalísticos uma possibilidade de exercitar

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gêneros orais relacionados aos usos públicos da linguagem3. Porém, não há, como vimos, definição dos tipos de textos jornalísticos que serão enfatizados, o que dificulta a observação da divisão dos textos em gêneros, bem como sua relação a situações concretas de comunicação oral ou mesmo escrita. Neste caso, a produção textual está, apesar de vaga, veiculada à produção escrita, não havendo nenhuma relação com a elaboração de textos orais. Consequentemente, o fato de vincular a afirmação “atividades que propiciem a produção de textos orais e escritos” (grifo nosso) à metodologia, nos leva a acreditar que os professores pensam em atividade oral como meio de trabalhar os demais conteúdos (leitura ou mesmo respostas em voz alta) e não como um conteúdo que pode ser trabalhado em si (produção e escuta de textos orais). Ou, como ponto de partida para a reflexão de elementos formais da língua.

3. O professor, os alunos e as formas não-padrão de expressão oral na sala de aula Não há como examinar o desenvolvimento das atividades orais em sala de aula sem tropeçar no problema do preconceito frente ao conjunto de variedades de uso não-padrão. Desta forma, durante a observação da sala de aula, algumas questões relacionadas a este tema nos saltaram aos olhos. Nesse caso, percebemos que, com relação às manifestações orais que fugiam do padrão, muitas vezes a professora corrigia as colocações dos alunos. Estas ocorrências podem ser verificadas em algumas passagens dos protocolos de registro, como por exemplo:

“um aluno diz: Professora eu ponhei manso, os colegas dizem ponhei não, coloquei, a professora reforça: coloquei ou pus.” (prot. Nº 3)

“em meio às perguntas alguém diz: é só ponhá, a professora corrige ‘ponhá não, pôr” (Prot. Nº 12)

“alguém diz que logo ‘vorta’, a professora corrige ‘vorta não, pelo amor de Deus’, simultaneamente os colegas também corrigem ‘volta” (Prot. Nº 12)

“A professora inicia a chamada. Um aluno responde: fartô! Os outros corrigem e ele diz: É qui nóis fala errado! A professora não comenta” (prot. Nº 3).

“Alguns alunos conversam em voz baixa, percebo que estão falando de paqueras, um diz para o outro: ‘aí nós foi na casa dela’, uma menina que ouve a conversa diz: ‘nós fomos, seu besta.” (Prot. Nº 4)

“o aluno diz e se não cabê? Prontamente um colega corrige cabê não, couber” (prot. Nº12).

Os excertos das observações transcritos anteriormente mostram uma postura corretiva da professora diante da manifestação oral não-padrão. O que comprova, mais uma vez, o desconhecimento por parte da mesma do que dizem os PCNs a respeito da variação lingüística e da importância da adequação da fala em determinadas situações enunciativas. Em conseqüência disto, os alunos, apesar de falarem uma variedade distanciada da considerada padrão pela escola, posicionavam-se da mesma forma corretiva entre si.

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Sobre esta questão, Ramos (1997, p.11) ressalta que as formas estigmatizadas “devem ser tratadas na escola com naturalidade e ‘traduzidas’ por formas do dialeto padrão. E é exatamente por seu peso social que seria importante o professor estar atento a elas, de modo a evitar que sua atitude de rejeição se manifeste”. Neste caso, o que verificamos é justamente o contrário. Isto acarreta um posicionamento preconceituoso também por parte dos alunos, que não têm consciência de que seu dialeto não-padrão é igualmente uma maneira válida de comunicação, e agem como se a única forma de expressão “correta” fosse representada pelo padrão ensinado pela escola.

Este quadro vai de encontro a tudo que a lingüística moderna prega com relação ao ensino de língua materna, primeiramente porque esta forma de agir auxilia o apagamento da variedade falada pelos alunos e, conseqüentemente, pela comunidade em que vivem. O fato incute-lhes a concepção de que sua forma de falar é “errada”, o que é altamente prejudicial para sua auto-estima, além de não oportunizar a aquisição de outras formas de expressão, fazendo com que tenham uma visão dicotômica da língua, dividida entre o que é certo (português aprendido na escola) e errado (português falado por eles).

Castilho (1988, p.54), ao expor a questão da visão que os professores possuem da norma, ressalta que a postura acima relatada é infundada, pois não há português certo e errado e, sim, “modalidades de prestígio e desprestigiadas, cada qual correspondendo ao meio em que se encontra o falante”.

Assim, devido à miscigenação social ocorrida nas escolas, nas últimas décadas, esta visão calcada no preconceito frente ao português não-padrão é incoerente com a realidade escolar. Isto porque na rede pública de ensino a maioria absoluta dos alunos não provém de um meio em que a modalidade padrão seja a adotada. Neste sentido, o autor, entre outras idéias, defende “o estudo da variação lingüística entre nossas práticas costumeiras de ensino de língua materna”, além de reforçar o fato de que:

do ponto de vista do ensino da norma, uma das finalidades da escola, conquanto não a única, a maior dificuldade a considerar pelos professores está na imposição brusca do padrão lingüístico de uma classe sobre outra, com o que continuaremos a promover nas classes mais baixas o ‘complexo de incompetência lingüística (CASTILHO, 1988, p. 57).

Considerando os apontamentos de Castilho, verificamos que a professora desconhece (ou conhece e não pratica) o conceito da variação lingüística. Assim, sua ação faz com que se perpetue a idéia infundada de que a língua portuguesa é complicada, difícil de ser aprendida. Ainda sobre este aspecto, Bagno (2002, p.70) coerentemente afirma que cabe ao professor de língua portuguesa o papel de auxiliar na extinção do preconceito lingüístico. Para tal, deveria apresentar “os valores sociais atribuídos a cada variedade lingüística”, extirpando a noção de erro, pois já está mais do que comprovado cientificamente que “não existe erro em língua; o que existe é variação e mudança”, característica esta comum a todas as línguas vivas. Diante disto, a escola deveria, concernente ao ensino de língua,

discutir os valores sociais atribuídos a cada variante lingüística, enfatizando a carga de discriminação que pesa sobre determinados usos da língua, de modo a conscientizar o

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aluno de que sua produção lingüística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação social, positiva ou negativa (Bagno, 2002, p. 75).

Igualmente, Bagno (p.79) relaciona esta forma de encarar o ensino de língua com a questão da formação do professor, que precisa ser revista. Segundo ele, é preciso distinguir o que os universitários dos cursos de Letras estudarão na Faculdade e o que aplicarão na sala de aula. Para isso, é necessário que tenham uma formação científica sólida, como a de qualquer outro profissional, o que não significa “que ele vá transmitir aos seus alunos exatamente aquilo que aprendeu na universidade”. Significa que é necessário que ele possua conhecimentos científicos suficientes para que saiba lidar com os “fenômenos lingüísticos e pedagógicos que vai encontrar em sua atuação profissional”.

As afirmações de Bagno encaixam-se perfeitamente no quadro que vislumbramos na sala de aula observada, tendo em vista nossa constatação de que a falta de suporte teórico, por parte da professora, dificulta o apagamento do preconceito lingüístico, reforçando, assim, a atitude preconceituosa nos alunos e fazendo com que tenham uma visão deturpada da Língua Portuguesa, afastada da variedade falada por eles e próxima à ensinada pela escola como padrão.

O autor formula, também, reflexões contundentes sobre a necessidade de mudança pedagógica frente aos objetivos do ensino de língua, pela escola. Primeiramente, sustenta que as escolas de Ensino Fundamental e Médio pareciam ter como objetivo formar professores de português ou escritores e poetas. E esta atitude é, no mínimo, irracional, pois professores se formam na Faculdade e escritores e poetas, por sua vez, não se formam na escola. Estes, na maioria das vezes, são autodidatas.

Portanto, os professores precisam ter em mente que o objetivo da escola, no que diz respeito à língua, é:

formar cidadãos capazes de se exprimir de modo adequado e competente, oralmente e por escrito, para que possam se inserir de pleno direito na sociedade e ajudar na construção e na transformação dessa sociedade – é oferecer a eles uma verdadeira educação lingüística (Bagno, 2002, p. 80).

4. Considerações para finalizar

Durante todo o processo de confecção de nosso trabalho, cujo fragmento ora apresentamos, procuramos seguir o percurso dos pressupostos orientadores de um trabalho de valorização do oral, atrelados ao ensino de Língua Portuguesa. Assim, optamos por desvendar as teorias cujo enfoque incidisse na oralidade, bem como as propostas das teorias lingüísticas do texto acerca da inclusão da fala no ensino de língua materna. Destarte, procuramos desvelar pontos intrínsecos ao oral, quais sejam: os gêneros textuais e o preconceito lingüístico. Além disso, buscamos nos PCNs para o ensino de língua portuguesa o direcionamento que as atividades voltadas para o trabalho com a linguagem oral deveriam tomar, na escola.

Para a verificação de como a oralidade efetuava-se no processo ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, voltamos nosso olhar para uma realidade específica. Assim, durante a observação, nossos interlocutores, ou seja, a professora e os

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alunos, representantes diretos do processo de ensino de Língua Portuguesa naquela realidade, foram os responsáveis por nossas inquietações acerca do que vivenciávamos. Isto deveu-se tanto pelo hábito de olharmos a prática do professor da posição de quem ensina, quanto pelas reflexões a que fomos remetidos, acerca de situações, antes vivenciadas, e, não entendidas.

E foi assim, partilhando o processo ensino-aprendizagem de língua, como pesquisadora, que vislumbramos nuances antes obscurecidas pela posição de quem protagoniza a cena. Descobrimos que, por trás do trabalho real efetuado pela professora e da maneira como esta encarava as atividades com a linguagem oral, existiam pontos importantes a serem refletidos. Vimo-nos, então, diante de questões como teoria/prática, formação do professor, deficiência de cursos que auxiliem a formação do professor em serviço, carga de trabalho excessiva acarretando cansaço e desânimo, por parte do professor, frente ao estudo de novos materiais direcionados à melhoria das aulas. Entre estas dificuldades externas à prática da sala de aula vimos, ainda, a sobrecarga de atividades atribuídas à coordenação, dificultando um trabalho que, realmente, pudesse auxiliar o professor a repensar as novas propostas e a direcioná-las a sua prática. Todos estes fatores mostraram-se, para nós, como obstáculos representativos da falta de um trabalho direcionado para a produção e escuta de textos orais, da forma como os PCNs postulam.

Constatamos que estas questões estão imbricadas e não há como não enxergá-las por trás das ações do professor. Um exemplo é o posicionamento preconceituoso, frente às variedades não-padrão, por parte da professora e dos alunos. Esta postura comprova o quanto a falta de embasamento acerca da variação lingüística pode dificultar o entendimento da língua como atividade produzida em situações concretas de enunciação, que varia de acordo com o grau de formalidade exigido pela situação. Ao posicionar-se de forma corretiva frente às manifestações orais que fogem do padrão, o professor perpetua uma visão sistemática da língua, em que a dicotomia certo e errado dita as regras. E, mais ainda, este posicionamento leva a um distanciamento ainda maior do contínuo de gêneros textuais, proposto por Marcuschi e enfatizados pelos PCNs, fazendo do ideal de um trabalho voltado para a produção e escuta de textos orais algo difícil de ser concretizado.

Deste modo, toda riqueza dialogal presente na sala de aula, a esperteza e inquietação das crianças, em participar das atividades propostas pela professora, perdiam-se em atividades em que o oral era apenas um pretexto para a explanação sobre conteúdos estudados, concretizando a ação criticada pelos PCNs:

acreditando que a aprendizagem da língua oral, por se dar no espaço doméstico, não é tarefa da escola, as situações de ensino vêm utilizando a modalidade oral da linguagem unicamente como instrumento para permitir o tratamento dos diversos conteúdos (PCNs, p. 24).

Finalmente, esperamos que nossos interlocutores tenham encontrado neste resumido trabalho uma orientação que lhes permita refletir sobre suas próprias ações, ou, ainda, um direcionamento para outros estudos mais aprofundados, tanto em relação ao tema tratado, como aos que não foram analisados, pois a realidade da sala de aula é

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complexa, composta por fatores que ultrapassam o mero ensinar e aprender. E esta complexidade é o que a torna interessante, fascinante. 1 Os alunos que apresentavam problemas de alfabetização assistiam às aulas de reforço, ao final das aulas programadas para o dia. 2 Sobre o ensino de aspectos gramaticais na escola observamos, além dos PCNs para o ensino de língua portuguesa, POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola; GERALDI, J. W. Portos de passagem, entre outros. 3 Segundo os PCNs, (1998, p. 24), “por usos públicos da linguagem entendem-se aqueles que implicam interlocutores desconhecidos que nem sempre compartilheam sistemas de referênsia (... exigem por parte do enunciador um maior controle para dominar as convenções que regulam e definem seu sentido institucional” Referências bibliográficas: BAGNO, M.; STUBBS, M.; GAGNÉ, G. Língua materna: letramento, variação &

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Interação pela linguagem na avaliação de produções escritas: ordem ou diálogo?

Silvia Augusta de Barros Albert1

1Mestranda em Língua Portuguesa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua

Portuguesa da PUC-SP, CEP:05014-901, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

Abstract. This text is the result of a broad research work which theme is the

interaction through language in the teacher´s evaluative feedbacks about the

student´s written production, concerning the teaching and learning of writing.

Based on the Theory of Enunciation (Kerbrat-Orecchioni) and on the Theory of

Speech Acts (Searle), the aim of this study is to carry out a study of linguistics

strategies of interaction showing that, although the teacher intends to propose a

dialogue, it overlaps to this intention an attitude in terms of order and judgment.

Key words. interaction; evaluation; student’s writing.

Resumo. Esse texto resulta de um trabalho mais amplo de pesquisa cujo tema é a

interação pela linguagem nas devolutivas de avaliação do professor sobre a

produção escrita do aluno, tendo em vista o ensino e a aprendizagem da escrita.

Com base na Teoria da Enunciação (Kerbrat-Orecchioni) e na Teoria dos Atos de

Fala (Searle), analisam-se, nessas devolutivas, as estratégias lingüísticas de

interação, evidenciando-se que, embora o professor tenha a intenção de propor um

diálogo, sobrepõe-se a essa intenção uma atitude mais em termos de ordem e

de julgamento.

Palavras-chave. interação; avaliação; produção escrita.

Introdução

O presente artigo tem como tema a interação pela linguagem na avaliação de

produções escritas no Ensino Fundamental II (EFII) sob o enfoque do ensino e da

aprendizagem da escrita. A escolha desse tema partiu de nossas inquietações cotidianas.

Percebemos, em nossa prática, que a avaliação de produções escritas constitui um dos

grandes problemas do trabalho do professor de língua materna. A maioria dos professores

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freqüentemente se queixa de que a avaliação não serve senão para atribuir nota, pouco

contribuindo para o incremento das habilidades de escrita dos alunos.

Partimos do pressuposto que a avaliação de produções escritas dos alunos do EF II,

hoje, está mais próxima da noção de julgamento e sanção do que de aprendizagem. Em

geral, não se leva em conta a complexidade do processo de escrita nem o caráter

interacional da linguagem. Sendo assim, a avaliação que se realiza não conduz os alunos a

refletirem sobre o que escrevem, não permitindo nem mesmo que eles atribuam sentido à

correção. Trata-se, por conseguinte, de uma avaliação que não promove aprendizagem,

tornando os alunos arquivistas de erros, e o professor, o juiz que sanciona, e também é

julgado.

Entretanto, temos claro que toda avaliação encontra-se necessariamente ligada a

uma determinada prática educativa, da qual é uma etapa que, no caso da produção escrita,

deveria remeter a uma reflexão sobre a linguagem, sobre o processo de escrever e sobre o

próprio produto, o texto escrito. Com base nessa constatação apresentamos uma análise de

devolutivas de avaliação de produções escritas, procurando verificar em que medida elas

confirmam nosso pressuposto acima explicitado.

Por uma pedagogia da escrita: diálogo e interação

Em seus postulados teóricos, Plane (1994) afirma que, além da atividade de escrever

ser considerada como um processo, a escrita constitui um conjunto complexo de operações,

é o resultado de uma rede de escolhas interativas e inscritas no tempo. Por isso, a autora

assevera que o importante é identificar as competências que estão em jogo na produção da

escrita e determinar as situações de aprendizagem. Entre essas operações complexas e

imbricadas está a capacidade de refletir sobre o próprio texto e retomá-lo aprimorando-o.

Embora muitos esforços tenham sido feitos para transformar a função da avaliação

no ensino e aprendizagem da escrita, no EF II, em uma etapa que contribui para o

aprendizado, a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o que se mantém na

prática é uma avaliação meramente classificatória: o professor solicita um texto escrito (não

entraremos em detalhes em que situação), o aluno produz e entrega a tarefa. O professor

corrige, avalia e devolve ao aluno o trabalho, que o guarda muitas vezes sem sequer ter lido

as anotações que o professor levou horas para escrever.

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Entendemos que a atividade de escrita assim realizada, quase não permite interação

no processo de avaliação, e instala, outrossim, atitudes desestimuladoras de julgamento e

sanção. Instaura-se um processo de ensino e aprendizagem que não leva o aluno a refletir

nem a transformar sua competência escritora. Para que se incorpore realmente uma

pedagogia da escrita, é necessário modificar essa prática. E tomá-la na perspectiva da

avaliação é uma, entre outras formas, de procurar transformar o que está incorporado ao

cotidiano de sala de aula. Entre as diversas etapas de aprendizagem, a avaliação pode

exercer a função de levar o aluno a refletir sobre o ato de escrever.

A nosso ver, urge estabelecer no processo de produção escrita etapas bem

delimitadas que prevejam interação e diálogo entre professor e alunos. Precisamos

necessariamente conceber a avaliação como interna (quando critério e forma são definidos

no interior do grupo considerado, no caso o professor e seus alunos); e formativa (interna e

centrada sobre o aluno, com a finalidade de guiar o aluno no seu trabalho escolar, situar

suas dificuldades e ajudar a descobrir os processos que lhe permitem progredir na

aprendizagem), como postula Pierre Bach (1998).

Cabral (1994) postula que os novos programas preconizam novos contratos

pedagógicos, em que os alunos estão mais implicados e responsabilizados pelas tarefas que

realizam. Dessa forma, a regulação da aprendizagem é também interior ao sujeito que

aprende, e estamos aqui no campo da pedagogia de interação formativa, em que a avaliação

está integrada ao processo de aprender.

Para nós, a grande contribuição de uma pedagogia da escrita assim pensada e

sistematizada é, por um lado, conferir à escrita seu caráter de atividade de comunicação

verbal estabelecida sócio-cognitiva e interacionalmente; por outro, instituir o ensino e

aprendizagem da escrita como um processo de interação em que é possível intervir com o

objetivo de regulação e reformulação, sempre.

Para Plane (1994), a avaliação assim considerada permite ao aluno apropriar-se não

só das características específicas de um dado texto, mas também analisar previamente a

tarefa de escrever e seus desafios. A autora propõe a convocação dos alunos para

participarem da definição de critérios de avaliação a fim de orientar objetivos e estabelecer

uma progressão durante um período mais longo de trabalho.

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Esse tipo de avaliação transforma-se num momento privilegiado de aprendizagem,

em que os alunos fazem parte de um processo autêntico de produção escrita e vivenciam a

oportunidade de desenvolver sua competência escritora.

Teoria da Enunciação e Teoria dos Atos de Fala: perspectiva pragmática e

interacional da linguagem

A Teoria da Enunciação, concebida extensivamente, segundo Kerbrat-Orecchioni

(1997), procura descrever as relações que ocorrem entre o enunciado e os diferentes

elementos do quadro enunciativo, ou seja, os protagonistas do discurso e a situação de

comunicação (circunstâncias espaços-temporais e condições gerais de produção). Ao

considerar a interlocução num dado contexto, essa teoria evidencia em suas análises a

importância do enfoque pragmático por ter como objeto de pesquisa a ação humana

realizada pela linguagem, indicando suas condições e seu alcance. (Cabral, 2000, p.19).

Kerbrat-Orecchioni (2001, p.1) ressalta que as falas são ações: dire, c’est sans

doute transmettre à autrui certaines informations sur l’objet dont on parle, mais c’est aussi

faire, c’est-à-dire tenter d’agir sur son interlocuteur, voire sur le monde environnant.

A linguagem foi primeiramente concebida como forma de ação pelos filósofos da

Escola Analítica de Oxford, entre os quais se destaca John L. Austin (1911-1960), para

quem dizer é um fazer. Esse autor postula a noção de enunciados performativos, que

servem para agir, opondo-os aos constativos, que se prestam a atualizar proposições do tipo

verdadeiro ou falso.

Kerbrat-Orecchini (2001) incorpora a seus estudos alguns princípios fundadores

dessa teoria e defende a noção de performativo por ser ele um valor inerente à linguagem.

A autora atribui a Austin a responsabilidade de lançar as bases da Teoria dos Atos de Fala,

por ele ter estabelecido os principais componentes que serão desenvolvidos por seus

sucessores: o primeiro deles é o fato de todo enunciado ser dotado de uma força

ilocucional, isto é, carregar um valor de ato; e o outro é a distinção de três tipos de atos de

fala: locutórios, ilocutórios e perlocutórios. Nesse sentido, Kerbrat-Orecchioni (2001)

ratifica que todo enunciado é dotado de uma carga pragmática, de maior ou menor força, ou

seja, o conteúdo proposicional não se realiza jamais sozinho, ele sempre é carregado de um

valor ilocucional de natureza variável.

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Searle (1981), filósofo americano, e um dos principais seguidores e defensores das

idéias de Austin, postula que todo enunciado lingüístico funciona como um ato particular

(ordem, questão, promessa etc.) cujo objetivo é produzir certo efeito e causar determinada

mudança na situação de interlocução.

Ao incorporar a noção de atos de fala a seus estudos, Kerbrat-Orecchioni (2001)

observa que eles funcionam em contexto, no interior de uma seqüência de atos e seu

funcionamento depende de dois interlocutores que possuem características próprias. A

lingüista considera que esses são aspectos essenciais para uma abordagem interacional.

A interação transforma, pois, tanto o contexto, quanto o enunciado ou os próprios

interlocutores. Para a autora, considerar os enunciados como atos implica admitir que eles

não são produzidos só para agir sobre outrem, mas também para levá-los a reagir. Na troca

comunicativa, os interactantes sofrem e exercem influências entre si e do próprio contexto,

podendo sofrê-las ou exercê-las. Assim, para construir cooperativamente um discurso

coerente, eles estabelecem entre si um tipo de relação de distância ou de proximidade, de

hierarquia ou de igualdade etc.

Tomar a linguagem em uso significa também considerar as condições de emprego e

de êxito, propriedades essenciais para o tratamento dos atos de fala. As condições de uso

são as necessárias, aquelas que fazem parte da própria definição do ato; aquelas de que

depende o êxito do ato são a condição preliminar (de ordenar, prometer etc) e a de

sinceridade (ordenar para se fazer cumprir etc).

No entanto, nem sempre dizemos claramente o que desejamos de nossos

interlocutores; ao mesmo tempo, nem tudo o que dizemos é percebido conforme nossas

intenções. Essa constatação conduz a uma outra distinção importante: a atualização de atos

de fala direto e indireto.

Para Kerbrat-Orecchioni (2001), o valor ilocucional nem sempre corresponde ao

que é esperado para tal enunciado ou está expresso por ele, no sentido de uma

correspondência biunívoca significante/significado, ou seja, nem toda forma interrogativa

corresponde a uma pergunta, nem todo enunciado negativo tem intenção de negar uma

asserção apenas. É o que define atos de fala indireto: expression elliptique pour acte de

langage formulé indirectement, sous le couvert d’un autre acte de langage.. Et l’on dirá

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littérale (ou primitive) la valeur apparente de question, et derivée la valeur réelle de

requête. (Kerbrat-Orecchioni, 2001, p. 35).

Segundo a autora, há várias maneiras de se realizarem atos de fala indireto: um

mesmo valor ilocucional pode realizar-se de diferentes maneiras (1); uma mesma realização

(uma estrutura, uma frase) pode receber valores ilocucionais diversos (2). No primeiro caso

(1), para inquerir –se o nome de alguém, por exemplo, é possível dizer Qual é o seu nome?

Eu gostaria muito de saber seu nome. No segundo caso (2), um enunciado como Pode me

passar o sal, por favor? tem a aparência de uma pergunta, mas pode ser uma reclamação.

Segundo Benveniste (1976), quando um locutor usa a linguagem para exercer

influência sobre o comportamento do alocutário, ele dispõe de um aparato de funções,

como interrogar, afirmar e intimar. Com base em Benveniste, Kerbrat-Orecchioni (1991)

afirma que tais funções, correspondem a três grandes categorias de atos primitivos, dos

quais derivam todos os outros: asserção (falar sobre o mundo); interrogação (interrogar

sobre o mundo); ordem (agir sobre o mundo). (Kerbrat-Orecchioni, 1991, p.5).

A asserção pode ser expressa por uma frase declarativa afirmativa ou negativa. Ela

fornece informação, formula julgamentos; explicita atitude do locutor frente a seu

enunciado. Dependendo do contexto, pode atualizar atos de fala indireto. A negação indica

muitas vezes que o locutor tem mais suposições sobre o conhecimento do alocutário.

A ordem pertence à modalidade deôntica que diz respeito à obrigação e à permissão.

A modalidade é a gramaticalização de atitudes e opiniões dos falantes. Realiza-se a

modalidade deôntica no português principalmente por meio do imperativo. Podemos

afirmar ainda que o uso do imperativo é um elemento revelador da presença do alocutário

no enunciado.

A pergunta como valor ilocucional pode ser veiculada por frase interrogativa. É um

ato de fala e se inclui nos atos diretivos, ou seja, é um meio de tentar fazer o alocutário

realizar uma ação. O conceito de pergunta, segundo Rodrigues (1998), releva-se do âmbito

pragmático: verbal ou não verbal. É um ato de fala intrinsecamente interativo. A autora

refere-se também ao que denomina perguntas orientadas: aquelas em que o locutor não

quer informação, ao contrário, está transmitindo-a e quer uma confirmação. São perguntas

que desejam orientar a resposta do alocutário num certo sentido.

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A interação pela linguagem na avaliação de produções escritas

Ao tratar da avaliação da produção escrita promotora de aprendizagem, observamos

na linguagem seu caráter de atividade de comunicação verbal estabelecida sócio-cognitiva e

interacionalmente.

Encontramos, nos bilhetes que os professores escrevem aos alunos como devolutiva

de sua avaliação, o espaço de interação verbal possível e pertinente entre professor e aluno

na etapa da avaliação. Os bilhetes configuram-se, pois, como um importante espaço de

interação pela linguagem, de interlocução, e, por conseguinte, de relação interpessoal,

constituindo uma das formas privilegiadas, às vezes única, de encaminhar a devolutiva da

avaliação do professor para o aluno, para sua reflexão sobre o que escreveu, orientando-o

para os procedimentos de revisão e de reescrita, essenciais para o seu aprendizado.

Para nosso trabalho, solicitamos a 15 professores de 5 escolas particulares do

município de São Paulo redações corrigidas por eles. Ao todo, obtivemos 30 bilhetes que

constituem nosso corpus de pesquisa. Verificamos neles as estratégias lingüísticas de

interação atualizadas pelos atos de fala da asserção, da ordem e da pergunta. Apresentamos

no presente artigo trechos dos bilhetes e parte da análise realizada no corpus.

a) Da asserção

A asserção se realiza por meio de uma frase declarativa afirmativa ou negativa. Ela

não apenas informa, mas também pode apresentar julgamentos, positivos ou negativos.

Seus argumentos também são muito bons. (B2 R10) Você tem ótimas idéias. (E2 R2) Camila, esta ficou bem melhor! (B2 R7)

Nos exemplos acima, o professor julga positivamente a linguagem, o tom do texto

ou as idéias e os argumentos usados, aprovando a produção escrita do aluno. A afirmação

direta do professor, empregando o verbo no presente do indicativo atribui um valor de

verdade a seu julgamento. A asserção pode também ser enunciada na negação, como no

exemplo a seguir:

Não é adequado você narrar uma resenha como se estivesse contando para alguém, usando repetidamente os verbos “diz” e “fala”. (A1 R3)

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A negação, nesse caso, não apenas indica um julgamento negativo, mas também, e,

sobretudo, marca a ausência de um fato esperado, supostamente do conhecimento do

alocutário. Um outro exemplo:

Vocês não corrigiram de acordo com as anotações anteriores. (E3 R2)

Nesse exemplo, o enunciado do professor explicita a cobrança em relação a um

contrato estabelecido anteriormente, ou na própria proposta de produção escrita, ou em

situação anterior de correção e avaliação do texto. A cobrança do que foi acordado assume,

por sua vez, valor de ordem para que a ação de corrigir seja executada. Temos aí um ato de

fala de ordem duplamente indireto, ou seja, há uma asserção negativa que expressa uma

cobrança; a cobrança, por sua vez, tem valor de ordem: asserção � cobrança � ordem.

b) Da ordem

A ordem, em português, se expressa fundamentalmente pelo modo imperativo,

forma verbal essencial de expressão da modalidade deôntica. O imperativo mostra-se assim

como a forma mais intensa de ordem, como podemos observar nos exemplos a seguir:

Reescreva seu texto observando minhas anotações. (B2 R1) Marque claramente os parágrafos. (D2 R1) Observe o encadeamento de idéias! (E4 R2)

Entretanto, é preciso esclarecer que existe uma gradação na intensidade do valor

ilocucional de ordem, marcado lingüisticamente. A ordem manifesta-se nos bilhetes,

claramente, de outras maneiras menos intensas do que com o uso do verbo no imperativo.

Entre essas formas, destacamos o infinitivo ou ainda a forma mais atenuada do verbo

auxiliar modal poder:

Reescrever! (B2 R7) Rever pontuação, ortografia, acentuação. (D1 R1) Você pode melhorar essa história que parece um desenho animado. (E2 R1)

O emprego do infinitivo realiza o valor ilocucional da ordem, atenuando a

intensidade do valor deôntico contido nela. O uso do verbo poder indica que o locutor

conhece o potencial do alocutário, revelando mais uma vez a existência de um contrato que

deve ser cumprido. O estatuto do professor outorga a ele a autoridade para ordenar, por isso

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ele pode utilizar uma forma atenuada já que o aluno compreenderá o valor de

obrigatoriedade: poder assume o valor de dever, nesse caso.

c) Da pergunta

Segundo Kerbrat-Orecchioni (1991), a pergunta constitui o ato de fala mais

intrinsecamente interativo, pois pressupõe uma resposta. É exatamente por demandar uma

ação futura do alocutário, por expressar também o desejo/vontade/querer do locutor de que

o alocutário faça algo, que acreditamos funcionarem as perguntas nos bilhetes como ordens

atenuadas.

Isabel, e a organização no papel? (B2 R3) Que tal mudar esses pronomes por outras palavras? (E2 R2)

Ao utilizar a pergunta, o professor exige do aluno um desempenho ativo na própria

avaliação, pressupondo que esse conheça os critérios pelos quais está sendo avaliado e

saiba elaborar as mudanças necessárias para atender a eles. A nosso ver, a pergunta

posiciona-se no grau menos intenso em relação ao valor de ordem. Seu uso nos bilhetes

evidencia a intenção por parte do professor de estabelecer uma interação em que o aluno

participe efetivamente.

Cabe-nos ressaltar que as perguntas, mesmo as carregadas de valor de ordem, não

aparecem com freqüência nos bilhetes. Sua incidência é menor do que a de asserções e a de

ordens expressas por meio do imperativo e do verbo no infinitivo, o que evidencia nas

devolutivas analisadas a maior tendência para julgar e ordenar do que para dialogar.

A análise revela, pois, que a despeito da intenção de orientar o aluno e convocá-lo a

refletir sobre sua produção estabelecendo o diálogo, o professor imprime um tom de

julgamento e ordem, assumindo o seu estatuto de superioridade, expresso por suas

estratégias lingüísticas de interação.

Conclusão

As análises evidenciam o tom de julgamento nas devolutivas de avaliação, o que

mantém o aluno distante, não comprometido com o processo avaliativo. Sendo assim, ele

não é instado a compartilhar problemas e soluções do texto nem a refletir sobre a

linguagem, criando-se uma situação pouco propícia à revisão e à reescrita, etapas

importantes para a aprendizagem da escrita. A nosso ver, a instauração de diálogo efetivo

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entre professor e aluno nas devolutivas de avaliação constitui uma forma de mudar essa

situação e implicar o aluno, cada vez mais, em seu aprendizado da escrita.

Para nós, o professor que ensina a escrever precisa dar a palavra ao aluno, não a

palavra já pré-estabelecida, prevista, que depois será julgada, mas a palavra inesperada, que

será tomada, no sentido mesmo de tomar a palavra como numa conversa, em turnos. É

nesse diálogo entre professor e aluno, autor e leitor, reescritas e revisões que é possível

transformar arquivistas de erros em produtores de textos.

Referências :

BACH,P. (1998). O Prazer na Escrita. Rio Tinto/Portugal: Edições ASA. BENVENISTE, E. (1976). Problemas de Língüística Geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo. CABRAL, A. L. T. (2000). Modalização e Interação na Linguagem: A Subjetividade em Processos Civis. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.

CABRAL, M. (1994). Avaliação e Escrita: Um Processo Integrado. In: FONSECA,F.I.(org). (1994). Pedagogia da Escrita.Perspectivas.Porto: Porto Editora. KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1991). Introduction e L’acte de question et l’acte d’assertion: opposition discrète ou continuum? In: (2001). KERBRAT- ORECCHIONI, C. (dir.).La Question. Lyon: Presses Universitaires de Lyon. ____________. (1997). L’énonciation. Paris: Armand Colin. ____________.(2001). Les Actes de langages dans le discours. Paris: Éditions Nathan/VUEF .

PLANE, S. (1994). Didactique et Pratiques d’Écriture Écrire au Collège. Paris: Édition Nathan. RODRIGUES, M.C.C. (1998). A seqüência discursiva pergunta e resposta, in: (1998). FONSECA, J (Org.). A Organização e o Funcionamento dos Discursos: Estudos sobre o Português. Tomo II. Porto: Porto Editora SEARLE, J. R. (1981). Os actos de Fala. Coordenação de trad. VOGT,C. Coimbra: Livraria Almedina.

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Centro de Convivência de Afásicos: Uma abordagem etnográfica da afasia

Nirvana Ferraz Santos Sampaio1

1Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Estrada do Bem-querer km 04, s/n,

CEP: 45 083 - 900 – Vitória da Conquista – Bahia – Brasil

[email protected]

Abstract. In this paper we examine the Centro de Convivência de Afásicos (CCA). Based upon theoretical concepts and postulates of the Ethnography of Communication’s theoretical framework and concepts and postulates of Discursive Neurolinguistics, we have analyzed the research corpus which is constituted of recording transcriptions from communicative situations and communicative events realized from 2002 to 2004 at CCA’s Group II. The results suggests that as the non-aphasics-subjects at CCA, the aphasic ones who are part of this speech community face aphasia by acting with and about the language, using linguistic and non-linguistic resources in different discursive/communicative situations and discursive/communicative events.

Keywords. Ethnography of Communication; speech community; Neurolinguistics; aphasia

Resumo. Neste trabalho, investigamos o Centro de Convivência de Afásicos (CCA). Baseado nos conceitos e postulados teóricos da Etnografia da Comunicação, aliados a conceitos e postulados da Neurolingüística Discursiva, analisamos transcrições de gravações de situações comunicativas e eventos comunicativos vivenciados entre 2002 e 2004, no Grupo II do CCA. Os resultados indicam que, ao lado dos sujeitos não afásicos do CCA, os sujeitos afásicos, inseridos nessa comunidade de fala, são levados a enfrentar a afasia, agindo com e sobre a linguagem, a partir de repertório comunicativo variado que inclui recursos lingüísticos e não lingüísticos, em diferentes situações discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos.

Palavras-chave. Etnografia da Comunicação; comunidade de fala; Neuroligüística; afasia

1. Introdução

A avaliação de linguagem em contextos patológicos (afasia), em sua grande maioria, não se insere no exercício de práticas relacionadas a situações de uso social da linguagem. No geral, as abordagens tradicionais incidem em tarefas metalingüísticas, descontextualizadas e baseadas em uma concepção normativa e culta da língua.

Partindo da perspectiva de Coudry (1986, 1993, 1995; 1999; 2002a, 2002b, 2006), a avaliação da linguagem em contextos patológicos não pode ser dissociada das situações de uso social e, neste trabalho, a partir da prática clínica com a linguagem

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desenvolvida no Laboratório de Neurolingüística (LABONE/IEL) e no Centro de Convivência de Afásicos (CCA), ligado ao Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e ao Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), da UNICAMP, observamos as situações de interação comunicativa com todos os membros que compõem o CCA, a partir da Etnografia da Comunicação.

2. Opção teórica

Em maio de 1964, em um congresso na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), por iniciativa de Bright, o termo sociolingüística é estabelecido para nomear esse campo de estudos. Os trabalhos apresentados nesse congresso foram publicados em 1966, na obra de referência da área, com o título Sociolinguistics.

Nesse período a Sociolingüística define o seu objeto de estudo, a diversidade lingüística, tendo como tarefa descrever a covariação sistemática entre estrutura lingüística e a estrutura social. A partir do final dos anos 60 do século XX, paralelos ao avanço dos estudos gerativistas, estudos e pesquisas com a temática voltada para os aspectos sociais e culturais da linguagem, oriundos da Antropologia, da Sociologia e da Lingüística, começam a ter um maior impulso nos Estados Unidos. É nesse período que se solidificam o nome de pesquisadores como William Labov, John Gumperz, Dell Hymes, Joshua Fishman, William Bright, entre outros.

A partir do momento em que se conjuga a análise do fenômeno lingüístico com a consideração da realidade sócio-cultural, segundo Alkmim (2003), essa área privilegia o trato com dados empíricos, ou seja, a coleta de dados lingüísticos no contato direto com a realidade que se pretende estudar. Nos dizeres de Alkmim (2003), essa teoria ainda está por se fazer: a autora afirma que tendo surgido da preocupação com questões empíricas, a Sociolingüística não tem sido capaz de contribuir decisivamente para a formulação de uma teoria que responda às suas necessidades. Essa área tem acumulado um conjunto de “estudos de casos” e, não obstante, apontado questões pertinentes.

Com o surgimento do interesse sociolingüístico, passaram a existir, contemporaneamente, três das disciplinas: a Etnografia da Comunicação, a Sociolingüística Variacionista e a Sociologia da Linguagem que, apesar de pertencerem ao âmbito geral da investigação sociolingüística e terem o estudo da língua em relação com a cultura e a sociedade, como interesse comum, diferem-se quanto ao enfoque de análise.

Com relação aos postulados teóricos da Etnografia da Comunicação, opção deste trabalho, lembramos que com os precedentes Boas, Sapir e Malinowski, a Etnografia da Comunicação, proposta por Dell Hymes na década de 60 do século XX, foi a primeira formulação teórica que estabeleceu o princípio de que uma interação comunicativa entre indivíduos está ligada e determinada por constituintes lingüísticos e por circunstâncias sociais, culturais e psicológicas.

Em 1962, Hymes publica o artigo “The Ethnography of Speaking”. Nesse texto, o autor apresenta o que seria a primeira versão de um novo domínio de investigação dedicado ao estudo da fala concebida como fenômeno sociocultural. Dessa forma, inaugura-se, naquele momento, em nível teórico, a etnografía da fala (ethnography of speaking). Em 1964, Hymes publica, junto com Gumperz, um suplemento da revista American Anthropologist intitulado “The Ethnography of

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Communication” (Gumperz e Hymes, 1964). Essa obra apresenta, de maneira oficial e real, o nascimento da Etnografia da Comunicação (Ethnography of Communication), dando continuidade com Gumperz e Hymes, 1972.

Desde o momento de seu surgimento, a Etnografia da Comunicação supôs, para a antropologia lingüística e outras disciplinas encarregadas do estudo da linguagem, uma troca de enfoque importante. A língua, entendida como objeto social, passa a ser estudada, também, no contexto de uso.

As propostas de Hymes iniciam um método de trabalho de caráter pluridisciplinar. Com esse método que leva em consideração os modelos formais de lingüística e dos elementos comunicativos de natureza estrutural, combinados com elementos de caráter funcional, o autor pretendia interpretar o comportamento comunicativo em contextos culturais. Para investigar esse comportamento comunicativo, Hymes propôs uma série de conceitos que denominou unidades sociais, tais como: competência comunicativa (communicative competence), repertório comunicativo e comunidade de fala (speech community), de um lado; e de outro, situação comunicativa (speech situation), evento comunicativo (speech event) e ato de fala (speech act). Consideramos essas unidades como ferramentas teóricas úteis para o nosso trabalho.

3. A Prática clínica com a linguagem do CCA

Assim, ao observar a Prática clínica com a linguagem do CCA, sustentamos o conceito de comunidade de fala a partir dos estudos de Neurolingüística de orientação discursiva que combate a medicalização que se pratica quando a língua(gem) é tomada como determinada, padrão para todos os falantes, o que condiciona o que é certo e o que é errado, além de estigmatizar as variedades que fogem à norma padrão. São preocupações fundantes dessa prática (clínica) com a linguagem: o não isolamento social dos afásicos, o enfrentamento da afasia e a construção de possibilidades de o afásico estar no mundo e o exercício com e sobre a linguagem, nas diferentes situações discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos. Na comunidade de fala do CCA, são vivenciadas, verbal e não verbalmente, situações discursivas ou de comunicação articuladas teórico-metodologicamente.

Fazem parte das atividades lingüístico-cognitivas desenvolvidas no CCA: dramatizar cenas da vida cotidiana, cozinhar, fazer festas, pintar e desenhar, dançar, cantar, assistir a filmes, ler e comentar o noticiário escrito e falado, bem como as anotações dos participantes em sua agenda.

As sessões do CCA, que denominamos de situações comunicativas, ocorrem, semanalmente, com duas horas de duração. Nas situações comunicativas, os sujeitos afásicos, junto com os sujeitos não afásicos, participam de eventos comunicativos que possibilitam a vivência de situações de uso sociocultural da linguagem, em contextos verbais e não verbais, na construção de sentidos. Os sujeitos afásicos são motivados, em grupo, a exercer a linguagem em diversos eventos comunicativos (diálogos, narrativas, comentários) em que há alternância de interlocutores, diferentes posições enunciativas e configurações textuais.

Em geral, as situações comunicativas são organizadas da seguinte forma: a sessão tem início com comentários sobre os acontecimentos da cidade, do Brasil e do

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mundo, baseados no noticiário impresso e/ou falado, ou no registro, nas agendas, de fatos da vida pessoal (anotações que valem a pena ser compartilhadas com o grupo são postos em cena); podendo haver na sessão a teatralização e as atividades práxicas (cozinhar, cantar, narrar, discutir, entre outros) que, também, funcionam como evento comunicativo. Em seguida, há um evento comunicativo denominado “hora do café”, que possibilita os participantes socializarem os lanches, descontraírem e conversarem.

Detalhamos os eventos comunicativos que têm sistematicamente relação com atividades lingüístico-cognitivas: leitura da agenda de cada um dos participantes - contém todas as atividades ligadas aos participantes como: trabalho, passeios, idas a médicos, etc.; leitura e discussão de recortes de jornais e de revistas levados pelos participantes; conversa sobre fotos (familiares, passeio, festas ou do próprio participante). Ocorre também o inverso, ou seja, inicia-se com o evento comunicativo da leitura da agenda, leitura e discussão de recorte de jornais, conversas para depois realizar o evento da expressão teatral pela dramatização. Os eventos comunicativos são coordenados por um pesquisador, a quem cabe o papel de organizar os recortes trazidos pelos integrantes e auxiliar, se necessário, na introdução de temas para conversação.

Com o uso da agenda como instrumento metodológico, toma-se parte de dados e fatos sobre a vida do afásico que, no grupo, tornam-se tópicos de eventos comunicativos em que predominam dialógos e narrativas. De acordo com Coudry (1997), são fatos que merecem ser contados, indicando a presença e a ação do sujeito na linguagem. A agenda é preenchida, a depender da história do sujeito (escolaridade, uso pré-morbido da escrita, sinais de hemiparesia, etc.), por ele, por um membro da família ou por um investigador. Trabalha-se com a linguagem a partir das chamadas “práticas sociais da memória”: as estórias de vida/doença, os álbuns de família, etc.

Esses eventos comunicativos objetivam fazer com que os participantes compartilhem com todos a memória e a vida de cada um fora do CCA. Nesses eventos, os sujeitos afásicos (re)tomam e trabalham os usos da linguagem, exercitam sua capacidade pragmática de reconhecer seus interlocutores e suas propostas discursivas e trabalham as possibilidades de inserção em diferentes situações e eventos comunicativos, ou seja, são motivados a mobilizar diferentes movimentos de sentido: cognitivos (mnêmicos, perceptivos e atencionais), enunciativos, pragmáticos, discursivos, semióticos (gestuais, corporais, situacionais).

Outras situações comunicativas, também, são desenvolvidas no Centro, como as que objetivam a inclusão digital dos afásicos: aulas com noções básicas para a utilização de computador e navegação na rede Internet. Além disso, há oficinas de arranjo de flores, de fabricação de velas, de pintura em tela, de culinária.

São comuns, ainda, as seguintes situações comunicativas: palestras (com convidados); passeios (museu, exposição); festas comemorativas (encerramento de período letivo, aniversários, carnaval, junina, natal, etc.), em que os eventos comunicativos giram em torno do cardápio e músicas que serão tocadas visando à dança; almoços comunitários, cuja organização (cardápio, ingredientes) fica por conta de todo o grupo e é anotada nas agendas. Esses eventos proporcionam momentos em que os integrantes do grupo exercem vários papéis como sujeitos da linguagem, visam à reinserção ocupacional, à partilha de um espaço simbólico de experiências, à restituição de papéis sociais e ao fortalecimento de quadros interativos.

Na perspectiva teórico-metodológica-assistencial da prática (clínica) com a

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linguagem exercida no CCA, os sujeitos afásicos tem um acompanhamento longitudinal em grupo, que possibilita que as alterações apresentadas, as tentativas de superação dessas alterações e a motivação para identificar dificuldades e eleger processos alternativos de significação possam ser viabilizadas. Além da sessão coletiva, todos os afásicos são acompanhados individualmente por um(a) cuidador(a): aluno de graduação (iniciação, estudos monográficos e estágio) em Lingüística, Letras e Fonoaudiologia; aluno de mestrado e doutorado (incluindo o Programa de Estágio Docente) em Lingüística, sob orientação do pesquisador líder do grupo de pesquisa.

Assim, no CCA, o corpo patológico (que se diferencia do corpo social pelo que escapa à maior parte dos sujeitos) é inserido num contexto em que há regras, normas e espaço para a heterogeneidade, para as diferenças entre os sujeitos, seus modos de agir e de se colocar no mundo.

A Etnografia da Comunicação não chegou a oferecer formulações teóricas gerais sobre o processo comunicativo, mas, conforme Bachmann et al., (1981), apresentou dados interessantes relacionados aos padrões da fala de diferentes comunidades nas sociedades. Esses dados demonstram que cada sociedade estabelece padrões comunicativos distintos, que cada sociedade interpreta de maneira diferente o funcionamento de uma língua, ou seja, os fatores que relacionam a língua com a cultura e a sociedade.

Consideramos que tanto os princípios metodológicos quanto os conceituais da Etnografia da Comunicação têm grande utilidade descritiva e analítica para o estudo do mecanismo geral da interação e das interações produzidas em contextos específicos. Os conceitos propostos, por Hymes, denominados de unidades sociais, tais como: competência comunicativa, repertório comunicativo, comunidade de fala, situação comunicativa, evento comunicativo e ato de fala, constituem ferramentas importantes para pensarmos o campo de análise das interações no contexto do CCA e da prática clínica com a linguagem que nele se desenvolve.

Podemos reafirmar que, no sentido de Hymes, o CCA se caracteriza como um todo organizado por normas compartilhadas que regulam as diferentes situações e eventos comunicativos (no entrecruzamento do verbal e do não verbal), que tem a mesma concepção social e cultural do mundo. Mas defendemos que não é só isso que o define como uma comunidade de fala, mas, também, a prática (clínica) com a linguagem e a construção do saber dessa prática na relação entre língua(gem), cultura e sociedade.

3.1 Competência Comunicativa e Repertório Comunicativo do grupo II CCA um exemplo

Na prática clínica com a linguagem exercida no CCA, vimos que os sujeitos afásicos participam de situações comunicativas e, dentro dessas, de eventos comunicativos demonstrando o conhecimento e habilidade de contextualização apropriada e uso/interpretação da linguagem em comunidade, que se refere ao conhecimento comunicativo e habilidades partilhadas pelo grupo. Abaixo, apresentamos um exemplo de situação comunicativa (sessão do dia 28/10/02). No trecho, o evento comunicativo parte da conversa em torno da apresentação de MM, um novo integrante do grupo, a partir do tópico “o que se faz no grupo”, o que é usual fazer todas as vezes

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em que há apresentação de um novo participante.

Situação comunicativa 1 – sessão do dia 28/10/02 Sigla do

interlocutor Transcrição

Observação sobre as condições de produção

de processos de significação verbais

Observação sobre as condições de produção de processos de significação

não-verbais Imc Gente, vamos contar pro seu MM o que a gente faz nesse

grupo? Como é que esse grupo funciona?

RL A gente //segmento ininteligível// seu SL//segmento ininteligível// só isso

Tom de brincadeira

RL Zoa com SL. Tom de brincadeira

Todos Dão risadas

Imc Ela é das antigas. O que que a gente faz aqui? Perguntando para CF

CF Eh ... ah...

Imc CF

A gente vem aqui pra quê? Pra se conhecer. [ Cer

Imc CF

Pra falar. [ falar

Imc CF

Pra trocar idéias. [ déias

CF Putado::

Imc Computador... a gente também uma coisa que a gente vai retomar agora que tem bastante pessoas nesse grupo //pausa// dramatizar situações da vida cotidiana por exemplo, sei lá ...CF vai na receita federal pegar um papel //segmento ininteligível//

CF Ai Bate palma

Imc Então, a gente vai dramatizar//segmento ininteligível// porque é uma coisa que todo mundo passa, por exemplo, agora nesses últimos tempos eu fui ao DETRAN com a GR. A GR, ela participou do grupo de quinta feira, mas ela foi avaliada comigo, ficou um ano e tanto comigo, então, ... uma relação bastante próxima e me pediu pra ir com ele no DETRAN fazer um exame de perícia pra ela voltar a dirigir, né?

Gesto de dirigir

CF Ai [e’saw][e’saw] eh::

Imc Então ai tem uma serie de dificuldade tem que ir tem que pegar papel te que fazer a perícia tem uma serie de coisas pra fazer e a gente acompanha o que mais a gente faz nesse grupo?a gente vê fotos um do outro? Vê

CF Vê

Imc CF

Por que que a gente vê foto um do outro? Pra conhecer [ Conhecer

Imc É um modo de conhecer pessoas as pessoas que fazem parte da vida nossa e aqueles momentos que foram fotografados //segmento ininteligível// o que mais a gente faz aqui, dona IC?

Gesto de comer

SL Eh:: a gente fazemo:: começa ...

Imc A gente come aqui? IC Cf

Eh [ eh

Imc De vez em quando, a gente faz uma comidinha.

SL Bom, pra, de vez em quando, o bo bo hesitação

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RL Bolo?

SL Eh

Imc Essa aqui... ele faz um bolo bom também. Aponta para dona IC falando de SL

Todos Dão risadas CF Pintar

Imc Pintar, a gente pinta aqui? Não, você trás as suas pinturas pra gente ver, né?

CF [e’saw] SL Eu tinha, eu sei //segmento ininteligível// e eu tinha ...

RL Ce tira foto de planta, né? Imc Ele é fotografo, então traz as fotos //segmento ininteligível//

né? Então, na semana que vem, o senhor pode trazer algumas fotos da sua família, da sua esposa, os seus filhos, né? pra gente conhecer. O que mais que a gente faz? A gente passeia

CF Oh e[‘saw][e’saw] ...

Imc A gente ta programando um passeio no museu do Ipiranga em São Paulo

CF Olha [e’saw][e’saw]

SL Eu vou lá, eu vou lá .

Imc Cê vai lá //segmento ininteligível// pra vender, a gente vai no museu do Ipiranga ou no memorial da América latina, né? Passear.

Na situação comunicativa 1, podemos observar um evento comunicativo cuja circunstância de ocorrência está relacionada ao primeiro momento da inserção de um novo membro na prática (clínica) com a linguagem no CCA. Os interlocutores (sujeitos afásicos e não afásicos) vivenciam uma situação de uso sociocultural da linguagem, em contexto verbal e não verbal, com o propósito de informar o ingressante MM sobre as atividades desenvolvidas pelo grupo.

Os sujeitos envolvidos lançam mão da competência comunicativa. Consideramos que o conceito de competência comunicativa está encaixado na noção de competência cultural, ou totalmente fixada no conhecimento e habilidades que falantes trazem para uma situação comunicativa. Isso nos proporciona uma visão harmônica da definição de cultura como significado, direcionando-nos ao trabalho com símbolos.

Os sistemas de culturas são normas de símbolos, e língua é somente um dos sistemas simbólicos da rede social. Interpretar o significado de comportamento lingüístico requer (re)conhecer o significado em que ele está inserido. Dessa forma, todos aspectos da cultura são relevantes para a comunicação nas situações comunicativas do CCA, mas aqueles aspectos que têm a maior parte de procedimentos dirigidos em formas e processos comunicativos são: estrutura social, valores e atitudes tomadas pela língua e modos de falar. Categorias conceituais de redes que resultam de experiências partilhadas e meios de conhecimento e habilidades (incluindo língua) são transmitidos de geração para geração e para novos membros do grupo. Na situação comunicativa 1, observamos a atividade lingüístico-discursiva voltada para as instruções sobre as práticas que convergem em linguagem.

O conceito de competência comunicativa – ou seja, o conhecimento que

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combina o saber gramatical com saber social – está relacionado à idéia de um repertório comunicativo. Esse repertório se refere à totalidade de recursos lingüísticos disponíveis aos membros de uma comunidade. Cada indivíduo seleciona os recursos mais apropriados para determinados contextos, podendo transitar de um para outro em um mesmo ato de fala. Reiteramos que a linguagem deve ser vista como um fenômeno dinâmico e interativo entre os interlocutores do processo comunicativo tanto na realização oral ou escrita quanto na interação não-verbal, o que possibilita uma seleção mais ampla de recursos (estendendo-se a outros sistemas semióticos) do que o repertório lingüístico. Dessa forma, o sujeito afásico pode ter dificuldade de linguagem, mas pode usar outros elementos para fazer sentido.

No episódio acima, o verbal, o não verbal, as pausas e as hesitações que aparecem fazem parte do repertório comunicativo do grupo, mas não são exclusivos dele, porque são fenômenos estruturadores e organizadores do fluxo discursivo nos eventos comunicativos em geral, que são interligados e determinados por constituintes lingüísticos e por circunstâncias sociais, bem como culturais. Esse saber acumulado que faz parte do repertório comunicativo é de natureza individual, ou seja, cada falante desenvolve o seu próprio conhecimento de maneira particular conforme sua experiência. Mas, ao mesmo tempo, esse saber, que se acumula no repertório comunicativo, é compartilhado, é comum ao grupo social no qual o indivíduo está inserido, ou seja, é comum à comunidade de fala.

Uma comunidade de fala é definida como uma comunidade que compartilha as regras de interpretação dos atos de fala, participação de atitudes e valores considerando forma e uso da língua, e participação da compreensão sócio-cultural e pressuposições a respeito da fala. Os lingüistas estão, na sua maioria, de acordo com o fato de que uma comunidade de fala não pode ser exatamente igual a um grupo de pessoas que falam a mesma língua, o conceito de comunidade de fala, postulado por Hymes, é uma unidade importante de análise etnográfica. Com esse critério de agrupamento, de base sociocultural, podemos identificar as comunidades de fala e não as comunidades lingüísticas e analisar os grupos socioculturais e não as pessoas que falam uma mesma língua.

4. Considerações finais

Os sujeitos afásicos nesta comunidade são atuantes no curso de suas vidas, através do exercício - reflexivo e intersubjetivo - com a linguagem, a memória, a percepção, o corpo, tal como que se estabelece na sociedade em que se inserem.

Assim, os resultados indicam que, ao lado dos sujeitos não afásicos do CCA, os sujeitos afásicos, inseridos nessa comunidade de fala, são levados a enfrentar a afasia, agindo com e sobre a linguagem, a partir de repertório comunicativo variado que inclui recursos lingüísticos e não lingüísticos, em diferentes situações discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos.

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Algumas considerações em torno da identificação dos estados internos em situações de narrativa oral por criança

Lélia Erbolato Melo Departamento de Lingüística-FFLCH/USP

[email protected]

Abstract. The chief aim of this paper is to examine 5, 8 and 10-year-old

children’s ability to refer to physical, emotional, intentional and

episthemic internal states in narratives taken into consideration a

sequence of five images without text (Furnari, 1988), wich were

transformed into a computer programme. These images “tell” the story

a misunderstanding between two characters. The date analysis and

interpretion will be based on the literature (Linguistics,

Psycholinguistics and Pragmatics) and the results will be presented and

discussed taken examples from the research undertook. Keywords. internal states; belief and false belief; explanation; child’s

narrative.

Resumo. O objetivo principal deste trabalho é examinar a capacidade

das crianças de 5, 8 e 10 anos para se referir aos estados internos de

tipo físico, emocional, intencional e epistêmico, em narrativas

construídas a partir de uma seqüência de cinco imagens sem texto

(Furnari, 1988), transformadas em programa informatizado/Unicsul,

que “contam” a história de um mal-estendido entre dois personagens. A

análise e interpretação dos dados se basearão na literatura

(Lingüística, Psicolingüística e Pragmática). Os resultados obtidos

serão apresentados e comentados, tendo como referência exemplos

representativos do material coletado em pesquisa realizada.

Palavras-chave. estados internos; crença e falsa crença; explicação;

narrativa infantil.

O presente trabalho tem como objetivo, inicialmente, identificar em situações de narrativa oral, produzidas por crianças de 5, 8 e 10 anos, de ambos os sexos, a menção de quatro tipos diferentes de estados internos (físico, emocional, intencional e

epistêmico), conforme Veneziano & Hudelot (2006). As narrativas, construídas a partir de uma seqüência de cinco imagens (Furnari, 1988), transformadas em programa informatizado pela Unicsul (2005), dentro de um Projeto de pesquisa conjunta Brasil/ USP (CAPES) e França/ Paris V(COFECUB), “contam” a história de um mal-entendido entre dois personagens, na medida em que os dois personagens da história têm uma apreciação diferente de um acontecimento-chave, e permitem a expressão precoce de estados internos. Aqui, a intenção é determinar se os estados internos são ou não utilizados no interior de uma relação explicativa, bem como mostrar também que essas narrativas implicam da parte do narrador um trabalho interpretativo importante em diferentes níveis: da situação e do contexto, da identificação dos objetos, dos

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personagens e das ações que se ocultam por trás das imagens estáticas e, talvez, no nível dos liames causais e motivacionais, indicando os acontecimentos e os comportamentos inferidos dos personagens. Como veremos mais adiante, esta história pode ser simplesmente contada, permanecendo em um nível descritivo, mas pode ser contada também em um nível elaborado que implica a atribuição de intenções e crenças aos personagens, para assinalar que eles têm visões diferentes da mesma realidade, sendo uma de falsa crença. Assim, a partir de 4-5 anos, as crianças produzem em geral narrativas de tipo descritivo, em que os acontecimentos se encadeiam de maneira temporal e, somente mais tarde, entre 6-7 anos, começam a tecer liames causais, uma capacidade que melhora progressivamente até 9 –10 anos, culminando com a presença importante e coerente de uma atitude avaliativa (François, 2004, entre outros). A coleta de dados se desenvolveu em quatro tempos. No primeiro tempo – visualização das

cinco imagens da história, elas foram apresentadas uma após a outra na tela do computador e, finalmente, em conjunto, durante cerca de dois minutos. O segundo tempo – narrativa inicial ou narrativa antes da tutela, quando a criança contava a história sem ter as imagens diante dos olhos. O terceiro tempo – narrativa com tutela, quando a pesquisadora questionava a criança sobre as razões dos acontecimentos. Enfim, o quarto tempo – narrativa após a tutela, quando a pesquisadora pedia à criança para contar a história, mais uma vez, dizendo tudo o que havia compreendido. A transcrição dos dados foi feita segundo as normas do Projeto NURC/ SP. Como dissemos anteriormente, este trabalho propõe-se a observar o desenvolvimento das capacidades das crianças para contar uma história coerente a propósito de uma série de imagens. Dentro deste contexto, interessa-nos observar a capacidade da criança em tomar a perspectiva de um personagem, o que ela pensa a propósito da perspectiva do outro, e também sua capacidade para exprimir a existência de dois pontos de vista diferentes sobre uma mesma realidade. Além disso, temos interesse também pelo componente avaliativo da narrativa (Labov, 1978), que vai além do factual descritivo dos acontecimentos eventualmente colocados em sua dimensão temporal e espacial, para dar conta de sua própria ocorrência, a fim de explicá-los como resultantes de causas físicas ou razões psicológicas, estados de alma, de motivações, ou de crenças dos personagens (Veneziano & Hudelot, op. cit.). Retomando Bruner (1986), “o mundo da ação é colocado na perspectiva do mundo da consciência”, enquanto o narrador toma a perspectiva dos personagens e fala dos acontecimentos, tendo como referência suas emoções, intenções e crenças a propósito do mundo físico. Para Olson (1997: 251), ”o fato de que as crianças pequenas entendem que podem existir falsas crenças, assim como o engano, indica que compreendem até certo ponto o papel desempenhado por certos estados mentais, como as crenças e as intenções, na ação e na comunicação”. A expressão da falsa crença acontece porque a criança não somente atribui a um personagem uma crença sobre as intenções do outro (P1), o que já foi percebido pela análise dos estados internos (“ele pensa que fez de propósito”), mas exprime também a causa física e, portanto, acidental, do primeiro empurrão (ele tropeça em uma pedra ele

empurra a outra criança /depois a outra criança/... ele pensava que ele tinha feito de

propósito). Considerando que a criança apresenta o acontecimento como produzido “objetivamente”, não atribui somente uma crença ao personagem P2, mas exprime claramente que esta crença é falsa, uma vez que ele diz que o outro personagem (P1) empurrou P2 de maneira acidental, caindo em uma pedra e não de maneira intencional. O narrador exprime, portanto, duas versões da mesma realidade.

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O que não captamos necessariamente nesta codificação é a expressão explícita dos dois pontos de vista diferentes no interior da história, isto é, dos pontos de vista dos dois personagens, um que vê o acontecimento como sendo causado acidentalmente (P1) e o outro (P2) que o vê como sendo intencional. Este duplo ponto de vista “interno” à história e sua expressão explícita se encontram na codificação que compreende a “retificação” da falsa crença e a supressão do mal-entendido inerente correspondente. A referida retificação foi codificada nos casos em que, após sua manifestação em relação ao personagem (P2), a criança exprime o ponto de vista alternativo do personagem (P1), seja em discurso direto, seja em discurso indireto, e os personagens desfazem o mal-entendido criado anteriormente. Por exemplo, quando a criança faz P1 dizer - “eu não empurrei”, e P2 -“desculpa, eu pensei que foi de propósito”.

A criança que narra (o narrador) exprime, ao mesmo tempo, o ponto de vista dos dois personagens sobre o mesmo acontecimento, um como sendo acidental e outro intencional, tem-se um nível superior de conceitualização da teoria da mente, o nível “interpretativo”, segundo o qual o conhecimento é relativo e depende da interpretação e, portanto, das construções mentais das pessoas. Daí, a denominação “teoria relativista

da mente”, conforme Veneziano & Hudelot. A seguir, introduzimos brevemente as considerações teóricas de Perner e Wimmer (1985) sobre os estados epistêmicos atribuídos às pessoas, com base em experimentos por eles realizados. Para estes autores, embora descrever o que as pessoas pensam sobre eventos reais (crenças de primeira ordem) represente um papel crucial na explicação de sua interação física com objetos e com outras pessoas, esta descrição não pode apreender integralmente a interação social. A interação entre as pessoas baseia-se em grande parte na interação de mentes, as quais só podem ser devidamente compreendidas, quando se leva em conta o que as pessoas pensam sobre os pensamentos de outras pessoas (crenças de segunda ordem) e até o que as pessoas pensam que as outras pessoas sobre seus pensamentos (crenças de ordem mais elevada). A propósito, a importância das crenças de segunda ordem e de ordem mais elevada para nossa compreensão da sociedade humana foi enfatizada por teóricos em diversos campos. Em síntese, estamos diante de dois fatos importantes, conforme Perner (1991): a) da meta-representação de “primeira ordem”(= entendimento do entendimento); b) da meta-representação de “segunda ordem” (= compreensão da interpretação). Para enfrentar a questão da intenção comunicativa, as crianças precisam adquirir uma determinada noção de subjetividade. Na seqüência da análise, preservamos as exigências da memória, na medida em que as crianças contam suas histórias, quando as imagens não são visualizadas, e de produção monologal da narrativa introduzindo duas características suscetíveis de facilitar a consideração dos estados internos e mentais e de seu papel na explicação dos acontecimentos por ocasião da narração. Por um lado, contar o mal-entendido deveria solicitar a referência às intenções e crenças. Por outro lado, a utilização de um procedimento de tutela tipo “reflexivo” (Hudelot & Vasseur, 1997: 13) permitiria centrar a atenção das crianças nas causas ou razões de alguns acontecimentos sem, todavia, fazer referência explícita aos estados internos dos personagens. Paralelamente, após identificarmos a menção de diferentes tipos de estados internos pelas crianças, verificaremos o lugar que eles ocupam na tessitura explicativa (Veneziano & Hudelot, 2002; 2005).

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No que diz respeito aos critérios utilizados para a análise geral das explicações, o propósito é verificar (a) até que ponto os componentes da relação explicativa e da relação semântica estão interligados; (b) se a relação explicativa é apresentada de maneira retroativa, isto é, do que é para explicar – o explanandum – ao que explica, o explanans; (c) se o movimento da relação é proativo, isto é, se vai do antecedente ao conseqüente. Antes de apresentar os resultados referentes à expressão de estados internos e sua implicação nas relações explicativas, citamos exemplos representativos que ilustram a variedade das narrativas coletadas. Assim, embora a maioria dessas narrativas partilhe traços comuns, algumas crianças narram a história interpretando as imagens de maneira diferente, como no segmento a seguir. Exemplo 1 – JR (10 a.) quando ... na primeira imagem um amigo encontrô/ o outro ... um fala pro outro ... aí

(meu) quanto tempo ... como é que você vai? ... aí um chega/ LÁ ... vai (tipo assim) dá um abraço ... tropeça na pedra ... AÍ:::... aí o outro falô/ ... ooh:::... que história é essa de já vim me empurrando? ... e o outro (fala) ah me desculpe é que eu caí naquela pedra ... aí o outro na última imagem ... ah:::... desculpa eu não sabia

* Na seqüência, selecionamos exemplos que mostram o enriquecimento crescente do componente explicativo/avaliativo da narrativa na criança. Exemplo 2 – May (5 a.; e 4 m.) uma menina e um menino... eles estavam no jardim... mas só ... que o menino ... ele

foi lá e falou pra ela fechá / os olhos né ... aí.. ela fechô/ os olhos .. e quando ela fechô / os olhos... ele saiu de perto ... e aí quando ele saiu de perto... e ela tava com os olhos fechAdu... ele empurrô/ ela ... aí ...ela caiu...aí ela ele ficô/ com dó também... aí né.. ele pediu desculpa e tal... aí na outra ela empurrô / ele... daí ele ... ele... quer dizer... ela pediu desculpa pa/ ele e eles ficaram amigos

Exemplo 3 – MAR (8 a.) é:::...o Paulo e o André chegaram na escola ... se cumprimentaram... aí o André

tropeçô/ na pedra e sem querê/ ... empurrô/o o Paulo... aí o Paulo se sentiu ofendido e empurrô/ o André... aí ... o Paulo ... se explicô/ porque ele tinha:::: empurrado o André sem querê/ ... aí eles voltaram a ser amigos e foram para a escola

Exemplo 4 – GAL (10 a.) um menino tava falando oi pro outro... quando eles tavam passando... e daí... um

menino sem querer tropeçou numa pedra... e daí ele esbarrou no outro... e daí ele começou a chorar... não...(( movimento de negação com a cabeça)) o outro bateu nele de volta... e ele começou a chorar... e falando... aí foi sem querer... eu tropecei nessa pedra e sem querer te esbarrei... e você caiu...aí o outro levantou o outro... e o outro... eles dois pediram desculpa um pro outro... eles começaram a brincá/ ... e daí mais tarde... eles foram para casa... no outro dia começaram a brincá/ tudo de novo

* Prosseguindo, na referência aos estados internos dos personagens constatamos que, até 8 anos, as crianças verbalizam pouco os estados internos dos personagens em suas narrativas iniciais ( ou antes da tutela) um resultado que está de acordo com vários

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estudos anteriores registrados pela literatura (apud Veneziano & Hudelot, 2006). Preferem referir-se, geralmente, aos estados internos de tipo físico ou emocional. Exemplo 5 – BEA (5 a.)

era uma vez ... um menino e uma menina que eles... eles... estavam se encontrando dando tchau... aí... é::: o::: o menino atropeçou no outro ... e empurrou o outro... o outro ficou bravo... aí o outro começou a chorar pra ele não contá/ pro pai ... aí no fim... eles ficaram amigo

Exemplo 6 – GAC (8 a.) era uma vez dois meninos ... eles se encontraram num dia ... e::.. o::.. e um falô / assim pro outro....você qué / brincá / ...o outro falô / ...sim ....aí eles começou a brincá/...aí...aí um atropeçô numa pedra... e::... caiu em cima du::: colega...aí o amigo que ficô/ embaixo...caiu numa pedra...começô/ a chorá / ....depois....depois.... o outro amigo DEli...deu a mão pra ele... levantô/ o outro né... aí eles se entenderam e ficô/ ... certo...

* Todavia, nas narrativas após a tutela, as referências aos estados internos (físico, emocional e intencional) tendem a aumentar significativamente no conjunto das crianças.

Exemplo 7 – BEA ( 5 a.) que o menino... tava dando tchau... e ele tropeçou na pedra e caiu em cima do outro... aí... NÉ::: ( ) o outro levantou e começou a chorá/ porque tinha caído em cima da pedra... é na pedra né... aí... aí depois ele... ele caiu na pedra... aí depois ele ajudô/( o outro levantou) e foram brincá/

Exemplo 8 - DOR (8 a.; 3 m.) Joãozinho estava passeando...então...encontrou o André... quando Joãozinho foi falá/ co/ o André... ele atropeçô/ numa pedra...empurrô o André no chão...então André ficô/ furioso...nervoso...e empurrô / Joãozinho no chão...Joãozinho começô/ a chorá/...((silêncio)) pediu desculpa... desculpa... ((muda bem pouco o tom de voz)) desculpa é que eu atropecei numa pedra por isso ... eu empurrei você no chão... depois... ((retoma seu tom de voz)) André deu a mão a Joãozinho... levantô / ele e eles ficaram felizes para sempre

Exemplo 9 – GAC (8 a.) era uma vez dois amigos eles tavam passeando...aí... eles se encontram... e um falô / assim pro outro... você qué/ brincá/ de pega-pega?... aí...aí ele... aí eles começaram a brincá / ...aí um tava olhando prum/ lado e outro tava olhando pro/ outro lado... aí eles bateram frente a frente... trombaram aí... aí::::... aí ... aí um ficô/ bravo com o outro... o outro empurrô / com tanta força que .. ele caiu na pedra... começô/ a chorá/ .. aí o outro pediu desculpa... levantô / ele e ... tudo certo

Exemplo 10 – IGO (8 a.; 9 m.) oi .... tudo bem?... tudo... é AÍ:::... por que você me empurrô/? ... ah não ... é porque eu escorreguei numa pedra ... aí ele...OPA desculpa é que... aí escorregô/ numa pedra ... depois ele pensô/ que ele empurrô/ de propósito ... depois ele ... ele percebeu...

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aí:::... ele empurrô/ o outro de novo ... ele ele ... respondeu que ele ele tinha caído caído numa pedra pá/ se segurá/ nele ... aí ele num cai ... aí depois ele (disse) por favor deixa eu te ajudá/ a levantá/

* Em compensação, as crianças de 10 anos, antes e depois da tutela, referem-se com freqüência ao estado epistêmico, que se baseia em crenças, conhecimentos, ou não, dos personagens.

Exemplo 11 – DAN ( 10 a.; 2m.) (a) antes da tutela tinha o Luís e o Otávio ... os dois eram amigos ... o Luís tropeçô/ na pedra e caiu em cima do Otávio ... o Otávio pensô/ que foi de propósito e empurrô/ o Luís ... o Luís caiu se machucô/ e pediu desculpa para o Otávio ... o Otávio pediu desculpa para o Luís e voltaram a ser amigos

(b) depois da tutela

tinha o Luís e o Otávio eles eram amigos ... o Luís foi na direção do Otávio ... tropeçô/ na pedra e caiu em cima do Otávio ... o Otávio pensô/ que foi de propósito e empurrô/ o Luís ... o Luís caiu se machucou e mostrô/ que tropeçô/ na pedra ... pediu desculpa pro Otávio ... o Otávio pediu desculpa pro Luís ... então eles voltaram a ser amigos

Exemplo 12 – BER (10; 6m.) (a) antes da tutela

os dois estava andando ... e falô/ oi...oi... ((mudou um pouco o tom da voz)) e ... aí... um caiu aí e empurrou o outro e ele pensô/ que era assim .....de propósito ...e aí o menino falou ... ah cê vai ver ... porque ele não gostô/ né ... aí ele pegô/ e empurrô/ a aí o menino começô/ a chorá/ e aí o menino falô / que não era ...que ele tinha atropeçado na pedra e tudo ... e aí eles fizeram as pazes

(b) depois da tutela

tá (( sim com a cabeça))...os dois tavam andando né assim por acaso eles se encontraram...aí tinha uma pedrinha ali ... aí ele pegô / e não deu nada.... foi andando e atropeçô / ... a aí caiu em cima do outro ... e o .. ele pensô / que era briga mesmo... pra brigá / e aí o outro empurrô/ ... ele de novo e falô / ... aí ele pegô/ e começô/ a chorá / .... ele falô / que tinha ... caído da pedra e tudo ... e ele contô / a história assim... e ele pegô / falô/ vamu/ (briga não)... aí eles ficaram de bem

Exemplo 13 – TAY (10 a.; 4 m.) (a) antes da tutela

era uma vez um menino que:::... um menino que se chamava Ricardo... aí::: ele tava andando... assim... na rua ... aí ele encontrô/ o outro menino que se chama ... Anderson... aí eles tavam andando... aí sem querê/ o Anderson ... ele levou um tombo na pedra... aí o Ricardo pensô/ que o Anderson fez de propósito... aí o Anderson começô/ a brigá/... aí o Ricardo deixô/ o Anderson caí né... aí o Ricardo fez as pazes de novo com ele

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(b) depois da tutela

era uma vez dois meninos... um se chamava Ricardo... e o e outro se chama Anderson... eles tavam dando oi um pra cada um... aí sem querer o Anderson... ele foi muito para frente e levô/ um tombo... e caiu em cima do Ricardo... aí o Ricardo foi e pensou que o Anderson... é:::... fez isso de propósito... ele empurrou ele... aí o Anderson... ele bateu na pedra... começou a chorar... aí o Ricardo... ele foi levantá/ ele e pediu desculpas... e disse que nunca mais ia fazê/ isso

Exemplo 14 – CAR (10 a.; 3 m.) (a) antes da tutela

era uma vez... dois meninos chamado João e Miguel..um dia no parque... eles...se encontraram... quando eles foram se cumprimentar....os dois... é:::: João caiu e sem querer....empurrô / Miguel...Miguel pensando que:::. era de propósito empurrô / o João.... daí .... quando João caiu..... João explicô/ que tinha caído por causa da pedra.... então Miguel foi lá e ajudô/ e depois eles brincaram

(b) depois da tutela

era uma vez dois meninos chamado João e Miguel.... um dia eles se encontraram no parque... eles se encontraram no parque... quando eles foram se cumprimentar ... João atropeçô/ na pedra...e sem querê/ empurrô / o Miguel... Miguel pensando que foi de propósito... foi lá e empurrô/ o João ... daí o João caiu ... e quando ele caiu... depois que ele caiu ele explicô/ que ... empurrô/ porque tinha atropeçado na pedra ... depois Miguel ajudô/ ele a levantar e eles brincaram... começou a brincar

* A partir destes exemplos, podemos pensar na ocorrência do contexto no sentido extenso de Stalnaker (1972, apud Armengaud, 2006: 65), ou seja, ampliado ao que é presumido pelos interlocutores. É um contexto de informações e de crenças partilhadas. Não se trata [conforme a autora] de um contexto “mental”, mas de um contexto traduzido em termos de mundos possíveis (exemplos de 11 a 14). Esta reflexão nos leva a ver as narrativas sobre a “história da pedra”, que acabamos de relatar, na perspectiva de uma pragmática de segundo grau , na medida em que se propõe a distinguir entre sentido literal e sentido comunicado ou expresso (Hansson, 1974; Armengaud, op. cit.: 64-65; 84-91).

Considerações finais

Os resultados obtidos sugerem que a “leitura” de uma série de imagens mobiliza pelo menos três tipos de operações cognitivas que condicionam as produções linguageiras (a) identificação dos elementos representativos, animados e não-animados; (b) inferência dos acontecimentos identificados; (c) seqüenciação dos acontecimentos isolados. Mostram também que nem os estados internos dos personagens, nem a dupla perspectiva dos pontos de vista sobre os eventos constituem objeto de tutela. Somente indagando as razões por trás das ações, obtemos uma colocação linguageira centrada nos aspectos mentalistas dos comportamentos. Retomando François (1993: 130), a tutela vai então bem além de um simples “programador” que pode ajudar a criança a realizar o que ela não conseguiu cumprir sozinha, ou como uma relação entre signos, meios e fins (Bruner & Hickmann, 1983: 289). Conforme Veneziano & Hudelot (2006:

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13), [a tutela] “parece funcionar como um catalisador de competências obstruídas em sua manifestação por pressões variadas de funcionamento”. Neste sentido, em suas primeiras narrativas, as crianças antes dos 10 anos raramente mencionam os estados epistêmicos baseados na crença, conhecimento ou não dos personagens. No entanto, uma tutela que atraia a atenção da criança de 8 anos, em relação às causas dos acontecimentos, por um lado, faz com que ela aumente consideravelmente suas referências aos estados internos dos personagens, incluindo os de tipo epistêmico. Por outro lado, uma criança desta idade mostra-se capaz de explicitar que a crença de um dos personagens é falsa e encontra meios narrativos para retificá-la, confirmando uma teoria relativista da mente. Neste sentido, podemos afirmar também que, de um modo geral, a maioria dos estados internos estão implicados em relações explicativas, antes e depois da tutela. Finalmente, constatamos a necessidade de uma avaliação mais detalhada para tirar conclusões sobre as capacidades efetivas das crianças, em termos de seu desenvolvimento cognitivo, a partir de intervenções externas. Referências bibliográficas ARMENGAUD, F. A pragmática. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola, 2006. BRUNER, J. & HICKMANN, M. (éds.). Le développement de l’enfant: savoir faire,

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NARRATIVAS ORAIS PRODUZIDAS POR CRIANÇAS: A EXPLI CAÇÃO EM FOCO

Priscila Peixinho FIORINDO (Universidade de São Paulo)

Av. Drº Guilherme Dumont Vilares, nº 3052 apto 63 - CEP: 05640-004 - Morumbi - São Paulo - SP - Brasil

[email protected]

Abstract: This study intends to show how the explanation and the narration can be involved in oral stories invented by children in two different situations: situation (a) - children invented narratives from a pictorial representation (drawing made by the subjects); situation (b) - children invented stories from the two narratives read by the researcher.

Keywords: oral language; narrative; explanation; child.

Resumo: Este estudo pretende mostrar como a explicação e a narração se articulam nas histórias orais produzidas pelas crianças em duas situações diferentes: situação (a) - as crianças inventaram narrativas a partir de uma representação pictográfica (desenho feito pelos próprios sujeitos); situação (b) - as crianças contaram histórias a partir de duas narrativas lidas pela pesquisadora.

Palavras-chave: linguagem oral; narrativa; explicação; criança.

1. Introdução

O presente trabalho tem a intenção de mostrar a articulação dos aspectos explicativo e narrativo, com o objetivo de esclarecer o lugar que a “explicação” ocupa no interior das produções de narrativas infantis.

A opção foi pelo estudo da produção de histórias orais com apoio da representação pictográfica, desenho feito pelo sujeito, e também a partir de histórias lidas pela pesquisadora, a fim de verificarmos as diferentes características semântico-sintáticas presentes em quatro situações.

De acordo com Bitar (2002), a leitura da imagem é parte da leitura de mundo e ao mesmo tempo é influenciada pelas experiências e conhecimentos prévios do sujeito-leitor. Portanto, a imagem não é apenas reflexo do mundo, mas ela remete também a história individual e social de cada leitor. Dessa forma é possível verificarmos a produção narrativa a partir do desenho feito pela própria criança.

Para a observação das histórias, nos apoiamos no modelo geral de organização da narrativa proposto por Labov (1972), que se divide em: 1) resumo dos fatos da

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narrativa; 2) indicações – indica o lugar, o tempo, as pessoas e a situação da fala; 3) ação complicadora – desenvolvimento da história; 4) avaliação – o narrador informa a carga dramática ou clima emocional; 5) resultado – causalidades entre os acontecimentos; e 6) coda – a finalização/ moral da história.

Com base no modelo laboviano da avaliação (Labov, 1972), partimos do pressuposto de que não há oposição fundamental entre explicação e narração, pois ao contar uma história, explicamos, e ao explicar, legitimamos o caráter memorável daquilo que contamos. De acordo com o autor, a avaliação é um dos elementos estruturais da narrativa, que tem por finalidade comunicar ao ouvinte o ponto de vista do narrador em relação à história por ele narrada. Sob esta ótica, considera a narrativa como uma técnica de construção de unidades, que recapitulam a experiência na mesma ordem dos eventos originais e mostram que a seqüência temporal é sua prioridade definidora. Ele também ressalta que, para existir a narrativa, é indispensável o acontecimento singular e inédito, digno de ser narrado.

Nesta perspectiva, analisamos o papel da avaliação na narrativa de acordo com o modelo referido. No artigo “Le rôle de l’évaluation dans le récit”, Melo (2000) considera a avaliação um dos elementos estruturais da narrativa que informa ao ouvinte o ponto de vista do narrador em relação à história por ele narrada; e ela pode tomar formas muito variadas, manifestando-se após o desenvolvimento ou em todo o momento da narrativa.

Labov distingue quatro tipos de avaliação: avaliação externa; avaliação encaixada; ação avaliativa; e avaliação por suspensão da ação. Neste estudo levaremos em conta os três primeiros tipos, observando que, segundo Labov, quase todos os procedimentos de avaliação têm como fim suspender a ação do narrar. Dessa forma, exemplificamos, a seguir, apenas os três tipos de avaliação proposto pelo autor:

a) avaliação externa: o narrador interrompe a narrativa, vira-se para o ouvinte e

lhe comunica qual é o seu ponto de vista sobre o fato narrado, ocorre a suspensão da ação (ato de narrar). Vejamos o exemplo:

M: (...) e aí os três meninos ... que eram espertos ... saíram

b) avaliação encaixada: o narrador não interrompe a história, ele indica seu ponto de vista durante o desenvolvimento da narrativa através de elementos sintáticos que podem ser considerados elementos avaliativos:

● os intensificadores – as repetições: ele ele ele ... saiu; - a fonologia expressiva – GRITOOU

● os comparadores : (...) ... é um era bem alto tinha um que era MAIS alto ...

● os correlativos – aposto ... BEATRIZ ...

● os explicativos – (...) a mãe não viu porque estava nas compras

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Como vemos, o narrador por meio dos elementos avaliativos, informa a carga dramática sem interromper a ação de narrar.

c) ação avaliativa: o narrador descreve o que os personagens fizeram, em vez de

relatar o que disseram. Do mesmo modo, neste caso, o locutor se revela capaz de encaixar seu comentário inesperado:

V: o golfinho foi lá na água ... ele viu uma baleia ENORME ... aí:::... ele foi lá na onde tinha os peixe ... aí ele comeu o peixe porque ele tava com fome aí aí ele ... viu o TUBARÃO que comeu um MONTE DE PEIXE aí ... ele comeu aí ele ( ) aí comeu o peixe ... aí veio o gigante ... comeu o peixe dele aí:::... o gigante deu um soco bem na baRRIGA dele ... ele caiu e ele morreu para sempre ... aí viveu de novo Até aqui constatamos os procedimentos de avaliação, segundo Labov, através

dos quais o locutor pode marcar o interesse em relação ao que narra. Visando o nosso objetivo de estabelecer uma relação entre o narrar e o explicar

com base no procedimento da avaliação (Labov), abordamos a seguir alguns aspectos relativos à explicação.

Segundo Hudelot et al. (2003), o termo explicação remete a um universo de sentidos pois para explicar o significado de uma palavra ou de uma ação é necessário levar em conta o contexto e o sentido da mesma, de modo que seja possível torná-la inteligível para o interlocutor.

De acordo com Leclaire–Halté (1990), a argumentação e a explicação, em textos de ficção, fazem parte das estratégias discursivas. A explicação surge quando há um problema de ordem cognitiva a resolver, e a fase de problematização sucede a fase de resolução do problema. Assim, notamos que a ação de explicar se faz necessária na narrativa a fim de esclarecer ou enfatizar a mensagem que o narrador transmite ao ouvinte. 2. Metodologia

Para este estudo foram escolhidas quatro crianças, dois meninos (F e V) e duas

meninas (B e J), ambas de 5 anos, de uma pré-escola. A escolha das crianças foi decidida em comum acordo com a orientadora da pré-escola, por elas não apresentarem patologias, como problemas auditivos, visuais, fonológicos e psicomotores, que comprometessem a pesquisa. A proposta apresentada foi de produção de narrativas orais em duas situações: na situação (a), elaboração de histórias a partir de uma representação pictográfica (desenho feito pelos próprios sujeitos); na situação (b), elaboração de histórias a partir de duas histórias (Fita Verde no cabelo – Rosa; e Menina bonita do laço de fita – Machado) lidas pela pesquisadora.

Os dados foram coletados em sala de leitura, durante duas sessões semanais de aproximadamente trinta minutos cada, e transcritos com base nas normas do Projeto NURC/USP – Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo, proposto por Preti e Urbano (1990).

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3. Uma proposta de análise Como nosso interesse não se restringe apenas à organização do texto, nesta etapa, nos interessa também o que o texto organiza em sua discursividade. Assim, em torno da dupla de eixos (o da estrutura sintática e o da organização semântica), exploram-se procedimentos lingüísticos e discursivos. Consideramos P para pesquisadora, F, V, B e J para as crianças.

Situação (a) – produção de histórias com apoio do desenho

Nos exemplos que seguem (1 e 2) as duas crianças, estavam nos esperando na sala de leitura, então quando chegamos, conversamos um pouco sobre o que elas mais gostavam de fazer na escola, e ambas responderam que gostavam muito de desenhar. A partir daí, os materiais (folhas de sulfite, canetinhas e lápis de cor) foram distribuídos para que desenhassem e depois contassem uma história sobre o desenho. Exemplo 1

A baleia

1.VH: o golfinho foi lá na água ... ele viu uma baleia ENORME ... aí:::... ele foi lá na onde tinha os peixe ... aí ele comeu o peixe porque ele tava com fome aí aí ele ... viu o TUBARÃO que comeu um MONTE DE PEIXE aí ... ele comeu aí ele ( ) aí comeu o peixe ... aí veio o gigante ... comeu o peixe dele aí:::... o gigante deu um soco bem na baRRIGA dele ... ele caiu e ele morreu para sempre ... aí viveu de novo ((a criança faz gestos de soco no ar))

(Victor Hugo 5; 0) Logo na primeira linha, de acordo com Labov (1972), temos a avaliação

encaixada, o narrador informa seu ponto de vista – “baleia ENORME”, sem interromper a ação de narrar. Na segunda linha, verificamos o elemento avaliativo – explicativo (Labov) “porque” funcionando como um conectivo lógico para ligar duas proposições interdependentes, além de indicar, segundo o autor, o resultado – causa (ele estava com fome) / conseqüência (comeu o peixe). Como vemos, a explicação se fez necessária para completar e justificar a ação do personagem. E de acordo com Leclaire- Halté (1990), este recurso que a criança usa faz parte das estratégias discursivas a fim de chamar a atenção do ouvinte, tornando o relato mais interessante. Na linha 4, observamos a presença do inesperado ou mistura de mundos, de acordo com François (1996), a criança inicia sua narrativa com personagens que vivem no mar, e de repente insere o “gigante” que embora se assemelhe pelo tamanho à baleia e ao tubarão, não faz parte desse universo marítimo. Ao relatar o soco do gigante, VH gesticula murros no ar complementando sua fala. De acordo com Rector e Trinta (1993), quando a criança realiza tais ações corporais temos os gestos ilustradores, que servem para enfatizar a atividade verbal. E segundo Perroni (1992), temos um tipo de caso - denominado apoio no presente - que são exemplos de combinações livres em nível de discurso, onde não há compromisso com o enredo fixo, nem com a verdade, em que a criança insere experiências pessoais

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vividas na situação imediata de interação lingüística - “o gigante deu um soco bem na barriga dele...”. Na última linha “ele caiu e ele morreu para sempre ... aí viveu de novo”, temos a coda (Labov), a finalização da história. Exemplo 2

O golfinho 1. F: um golfinho ... o golfinho ... ele achô/ um ... e aí o golfinho ele tirô/ ... depois caiu na pescaria aí ele falô/ ... que qué/ isso? e aí apareceu um boné ... aí eles mergulharam ... o boné tava numa cabeça deles e ele foi nadando nadando e mergulhô/ porque lá tinha um CARANGUEJÃO e apareceu um TUBARÃO e comeu tudo ... ele ficô/ pequenininho ... 2. P: quem o caranguejo? 3. F: a baleia comeu TUDO ... aí a baleia morreu aí ... acabô/

(Fernando 5; 0) No turno 1, identificamos a ação avaliativa (Labov), o narrador descreve as ações dos personagens em vez de relatar o que disseram. Notamos também freqüentes pausas, indicando mudanças das ações do personagem (achô/; tirô/; caiu; falô/). A criança aqui parece não saber ainda como conduzir sua história, por isso apresenta essa miscelânea de ações. De acordo com François (1996), na segunda linha ocorre o inesperado ou mistura de mundos, pois F inicia sua narrativa com “um golfinho” e depois acrescenta um objeto pertencente aos humanos -“um boné”.

Segundo Mac-kay (2000), a presença do boné mostra a inferência que a criança faz da realidade – sua vida cotidiana tornando autêntico seu posicionamento como autora. Ainda nesta linha, verificamos o resultado (Labov) – causa (apareceu um boné) / conseqüência (aí eles mergulharam). Na quanrta linha, o “porque”, estabelece relação do domínio do conteúdo, em que é apresentada a causa (tinha um caranguejão) para o fato (mergulhar). Como vemos, a explicação é um elo de causalidade e o “porque” funciona como um conectivo lógico, ligando duas proposições interdependentes. Em 3, fica claro que F realmente não queria continuar a atividade proposta, encerrando sua história – “a baleia comeu TUDO ... aí a baleia morreu aí ... acabô/ . Também aqui, de acordo com Labov, temos o resultado – causa (a baleia comeu tudo) / conseqüência (aí a baleia morreu); e nesta relação, identificarmos, implicitamente, a explicação da criança, quando justifica a morte da baleia; seguido da coda, finalização e moral da história, por meio dos verbos morreu e acabou.

Situação (b) - produção de narrativas a partir de histórias lidas pela pesquisadora

Nos próximos exemplos - 3 e 4 -, as crianças ouviram duas narrativas (Fita Verde no cabelo – Rosa; e Menina bonita do laço de fita – Machado). E posteriormente contaram suas histórias, na interação criança-criança e criança-adulto.

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Exemplo 3 Lala e Paulinho

1. J: era uma vez ... uma menininha chamada Lala ... ela tinha um amigo chamado Paulinho e um dia eles dois se encontraram ... e foram pela floresta sozinho ... mas só que um dia eles tava cum medo de se perdê/ eles foram pro caminho ERRADO ... porque eles foram do lado de lá ... aí eles se perderam ... num sabia onde era .. mais a casa ... 2. J: aí eles tinha medo de ficá/ sozinho pela floresta ... eles pensaram que tinha lobo mas NÃO TINHA ... tinha só animais que eram bonzinho ... e:::... apareceu um monte de animal que quando acendeu a luz apareceu um monte de animal (bum) 3. P: animal o que? 4. J: BOOM ... eles fazia careta pros dois ... aí:::... os dois achava medo aí eles tinha MEDO aí eles queria ir pra casa ( ) não sabia onde era ... mas a fada APARECEU e:::... a fada apareceu ... e deixô/ os animais lá embaixo e ficaram felizes para sempre

(Jeniffer 5; 0)

No turno 1, encontramos a característica da estrutura narrativa - “era uma vez

.....; seguido das indicações (Labov) – apresentação dos personagens (Lala e Paulinho); do lugar (floresta) e do tempo (um dia). Pelo fato da criança ter ouvido a narrativa de Fita Verde no Cabelo (Rosa, 1992), que é uma estilização da história de Perrault - Chapeuzinho Vermelho - a narradora tenta reproduzir os eventos daquela narrativa, e ao fazer isso temos o desenvolvimento de histórias (Perroni, 1992), que são narrativas típicas de nossa cultura com enredo fixo. As histórias assumem um papel significativo na aquisição da estrutura do discurso narrativo.

Na continuidade narrativa, “... e foram pela floresta sozinho ... mas só que um dia eles tava cum medo de se perdê/ eles foram pro caminho ERRADO ... porque eles foram do lado de lá ... aí eles se perderam”, ainda de acordo Labov (1972), identificamos a avaliação encaixada, em que o narrador apresenta seu ponto de vista, sem interromper o ato narrativo quando relata os sentimentos dos personagens – estar com medo; também, notamos, a ação avaliativa (Labov) – descrição das ações dos personagens.

Sobre o segmento citado, a criança quando utiliza o “porque”, introduz uma evidência (uma prova) que justifica sua conclusão: o fato dos personagens terem ido pelo lado de lá, mais longe, a leva a crer que era o lado errado. Como percebemos, através das escolhas dos personagens que quiseram e puderam escolher o caminho que lhe convinham. Aqui, a criança faz inferência a uma das histórias lidas - Fita Verde no Cabelo, cujo personagem também preferiu ir pelo caminho mais longo. Paralelamente, observamos o resultado (Labov) – causa (ir pelo caminho errado) / conseqüência (se perderam). No turno 2, verificamos no início da unidade comunicativa o marcador conversacional – “aí” que, segundo Marcuschi (2003), serve para orientar o ouvinte, além do conectivo - “e” , indicando uma progressão semântica no discurso. Esses recursos, de acordo com Labov (1972), contribuem para a ação complicadora – ou seja, para o desenvolvimento da história.

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Em 4, ocorre a ampliação do discurso: “BOOM ... eles fazia careta pros dois ... aí:::... os dois achava medo aí eles tinha MEDO aí eles queria ir pra casa ( ) não sabia onde era ... mas a fada APARECEU e:::... a fada apareceu ... e deixô/ o os animais lá embaixo e ficaram felizes para sempre”. Neste último fragmento (grifo nosso), notamos os sentimentos dos personagens – ficar feliz, juntamente com a coda (Labov), que tem a função de finalizar a narrativa. Também observamos a ocorrência da fórmula típica de encerramento dos contos de fada (felizes para sempre), em que o bem sempre vence o mal. Exemplo 4

A menina e o coelho 1. J: era uma vez ... uma menina era ADULTA ... que o nome dela era ... era:::... calma aí o coelhinho apareceu e todos adulto apareceu ... todos animais ... eles tava todo no cio ... mais a vovó ( ) animais ficava preso ... (...) que o moço do circo vendeu eles ... o moço do circo era um moço também era ... um moço ... o nome dele era Danilo 2. B: só porque tem o Danilo do pré né Jeniffer? 3. J: mas só que o ... era o Danilo o Danilo ... 4. P: é seu namorado? 5. J: Não 6. P: seu amigo? 7. ((a criança balança a cabeça dizendo que sim)) 8. J: mas só que ele era do circo do ... do .. que mais do TREM mais todos tava no trem e ... uma corrente ia atrás porque tinha um MONTE DE TREM ... mas só ... todos passearam no trem ... o Danilo era MUITO BRAVO ... mas só que explodiu o trem e todo mundo morreu menos o dono do trem 9. P: e quem era o dono o Danilo? 10. J: é ... e foram lá pro céu ... e o amigo do Danilo eles era má também ... 11. P: e foram pro céu? 12. J: e eles foram lá pro outro trem e o outro trem também EXPLODIU e foram pro céu ... e só os animais ficaram triste ... acabô/

(Jeniffer 5; 0 e Beatriz 5; 0)

No turno 1, assim como no exemplo anterior (3), temos o estilo narrativo “era uma vez”, seguido da avaliação externa (Labov) “calma aí”, em que o narrador interrompe a ação de narrar para se posicionar diante do fato narrado. Ao fazer a pausa para organizar seu pensamento, o narrador insere em sua história novos personagens (coelho, adulto, animais, vovó e Danilo), que segundo Labov (1972) são as indicações. De acordo com Perroni (1992), temos o relato - narrativas que contam experiências pessoais vividas em momentos anteriores ao da enunciação que podem ser considerados não ordinários ou não habituais. Pois, no dia anterior as crianças tinham ido ao circo, e o compromisso do relato não é com o enredo fixo, mas com a verdade. No turno 2, “só porque tem o Danilo do pré né Jeniffer?”, verificamos a avaliação externa (Labov), em que a outra criança na interação se posiciona em relação ao que a colega está contando. Aqui a criança explica o desenvolvimento da história da colega/narradora, por meio do explicativo “porque”, que segundo Leclaire- Halté (1990) trata-se de uma estratégia inerente ao discurso narrativo da criança.

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No turno 3, percebemos que J tem dificuldade de prosseguir com sua narrativa, assim, no turno 4, P faz uma pergunta para estimular a criança na narração, mas ela oferece resposta mínima – “não”, temos, então, uma situação de tutela insistente (François,1996). Entre os turnos 6 P: seu amigo?; e 7 ((a criança balança a cabeça dizendo que sim)), observamos uma situação tutela paralela estrita em que o adulto faz o que a criança deveria fazer, pois ele fornece a reposta. Mesmo no turno 7, ocorrem os gestos ilustradores, que segundo Rector e Trinta (1993) servem para acompanhar e enfatizar a comunicação verbal. No turno 8, verificamos a ação complicadora (Labov) – o desenvolvimento da história; o elemento avaliativo – explicativo “porque” funcionando como um conectivo lógico para ligar duas proposições interdependentes, além de indicar, segundo o autor, o resultado – causa ( um monte de trem) / conseqüência (uma corrente ia atrás). Em “o Danilo era MUITO BRAVO”, ocorre à avaliação externa (Labov), em que o narrador, por meio do intensificador (muito) e do adjetivo (bravo), interrompe a narração para expor seu ponto de vista sobre o fato narrado. Como esse dado foi coletado em março (2004), época em que aconteceu o atentado ao trem em Madri – Espanha e todos os passageiros morreram, percebemos a inferência da realidade cotidiana, na narrativa de J. De acordo com Mac-kay (2000): este deslocamento revela uma realidade próxima da criança, evidenciando sua posição de autora. No turno 12, quando J diz “acabô/”, verificamos a coda (Labov), indicando a finalização do processo narrativo. Considerando que a narrativa é um gênero de texto que possui uma unidade e significado delimitado por princípios de constituição bastante precisos, é possível especificar seu início, desenvolvimento e fim, através de características peculiares como: organização lingüística e componentes estruturais.

Neste sentido, as histórias produzidas nesta situação (b): sem o apoio do desenho, mas a partir de histórias lidas pela pesquisadora, apresentam construção típica do estilo narrativo “era uma vez...” , e independência contextual, ao contrário das histórias produzidas na situação(a). Além disso, devido ao apoio contextual das histórias lidas, as crianças frequentemente, recorrem à coesão recorrencial parafrástica (Fávero, 1999) reformulando parte da narrativa ouvida, e o que Perroni (1992) denomina de história.

Diferentemente das ocorrências na situação (a), aqui, a manutenção do tópico discursivo, a continuidade das relações coesivas, por meio de conjunções (aditivas, continuativas, temporais, causais, adversativas), indicam uma progressão semântica no discurso em desenvolvimento (Fiorin e Saviolli, 2002). 4. Considerações finais

Com base nos dados analisados, as narrativas produzidas a partir do desenho feito pelo sujeito – narrativas na situação (a), apresentam características típicas da linguagem oral, com elementos próprios do estilo conversacional, enunciados fragmentados, freqüentes pausas, elipses, e, portanto, dependentes da representação pictográfica, na medida em que as crianças olhavam e apontavam para o desenho

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durante o desenvolvimento da história, ou seja, elas buscaram no desenho o apoio contextual necessário para veicular às informações. As narrativas produzidas a partir de histórias lidas pela pesquisadora – narrativas na situação (b), apresentam características da linguagem escrita, independência contextual e construções próprias do estilo narrativo: era uma vez... . Aqui, a coesão se dá através de recursos lexicais e estruturas sintáticas com a utilização de conectivos lógicos. Na ausência da representação pictográfica, as crianças tentaram fazer do texto da história uma reflexão mais precisa de suas intenções comunicativas. Embora as histórias elaboradas nas duas situações propostas, apresentem características distintas da linguagem oral e da escrita, notamos que ambas mantêm em comum a articulação do explicar e do narrar que, segundo Labov (1972), não se diferenciam na narrativa. Quanto ao elemento da avaliação, verificamos que em todas as situações apresentadas (com ou sem o apoio do desenho), as crianças se posicionam diante da narrativa, mostrando seus pontos de vista em relação ao fato narrado; ora suspendendo a ação de narrar, ora inserindo opiniões sem interromper o ato narrativo.

Assim como ocorre a explicação nas narrativas de ficção, devido a um problema de ordem cognitiva a ser resolvido, de acordo com Halté (1990), é possível também notarmos a presença desse fenômeno nas narrativas produzidas pelas crianças, pois a explicação juntamente com a avaliação (Labov) parecem ser o cerne da produção de histórias e a razão principal para que se tornem significativas. BIBLIOGRAFIA BITAR, M. A. Produção oral de crianças a partir da leitura de imagens. São Paulo: Humanitas, 2002. FÁVERO, L. L.Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1999. FIORIN, J. L. e SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 16º ed. São Paulo: Ática, 2002. FIORINDO, P. P. Em torno da narrativa/narração: a proposta revisitada do modelo

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Crenças e atitudes lingüísticas: o que dizem os falantes das

capitais brasileiras

Vanderci de Andrade Aguilera

Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Universidade Estadual de Londrina

[email protected]

Abstract. This article discusses the beliefs and the linguistic attitudes both expressed and identified in speech by urban informants from twenty-five Brazilian capital cities. The analysis is based on the components of sociolinguistic attitudes, according to Lambert (1967) and Gómez Molina (1987). The corpus consists of answers given in the Metalinguistic Questions section of the questionnaires used in the Linguistic Atlas of Brasil – ALiB (Comitê Nacional: 2001) project.

Keywords. Portuguese language; linguistic attitudes; urban informants.

Resumo. Este artigo discute as crenças e as atitudes lingüísticas assumidas e realizadas na fala de informantes urbanos de vinte e cinco capitais brasileiras. A análise faz-se com base nos componentes que integram as atitudes sociolingüísticas, segundo Lambert (1967) e Gómez Molina (1987). O corpus constitui-se das respostas dadas na seção de Questões Metalingüísticas dos Questionários do Atlas Lingüístico do Brasil – ALiB (Comitê Nacional: 2001).

Palavras-chave. Língua portuguesa, atitudes lingüísticas, falantes urbanos.

1. Introdução

Os estudos sociolingüísticos no Brasil vêm explorando uma ampla gama de temas nos últimos vinte e cinco anos, concentrando-se sobretudo nos níveis fonético-fonológico e morfossintático. Um campo pouco explorado, entretanto, é o das crenças e atitudes lingüísticas, embora a sociolingüística insista na importância do estudo desse campo, apontando que a atitude lingüística: atua de forma muito ativa nas mudanças de código ou alternância de línguas; é um fator decisivo, junto à consciência lingüística, na explicação da competência dos falantes; permite ao pesquisador aproximar-se do conhecimento das reações subjetivas diante da língua e/ou línguas que usam os falantes; e influi na aquisição de segundas línguas (GÓMEZ MOLINA, 1987, p. 25).

Relembramos, inicialmente, que já na década de 1960, mais precisamente em 1967, Lambert chamava a atenção para a manifestação de preferências e convenções sociais acerca do status e prestígio de seus usuários que ele chamou de atitude, observando que os grupos sociais de mais prestígio social, ou os mais altos na escala sócio-econômica, ditam a pauta das atitudes lingüísticas das comunidades de fala.

A atitude lingüística assumida pelo falante implica a noção de identidade, que se pode definir como a característica ou o conjunto de características que permitem

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diferenciar um grupo de outro, uma etnia de outra, um povo de outro. A identidade pode ser definida sob duas formas: (i) objetiva, ou seja, caracterizando-a pelas instituições (educacionais, artísticas, políticas, culturais, sociais, religiosas) que a compõem e pelas pautas culturais (usos, costumes, tradições) que lhe dão personalidade; ou (ii) subjetiva, antepondo o sentimento de comunidade partilhado por todos os seus membros e a idéia de diferenciação com respeito aos demais (Moreno Fernández: 1998, p. 180). Na maioria das vezes, ao caracterizar um grupo ao qual não pertence, a tendência é o usuário fazê-lo de forma subjetiva, procurando preservar o sentimento de comunidade partilhado e classificando o outro como diferente.

Um traço definidor da identidade do grupo (etnia, povo) é a variedade lingüística assumida e, desse modo, qualquer atitude em relação aos grupos com determinada identidade pode, na realidade, ser uma reação às variedades usadas por esse grupo ou aos indivíduos usuários dessa variedade, uma vez que normas e marcas culturais dos falantes se transmitem ou se sedimentam por meio da língua, atualizada na fala de cada indivíduo.

2. Componentes da atitude lingüística

Sobre os elementos que compõem a atitude, Lambert, citado por Moreno Fernandez (1998: 182), registra que a atitude se constitui de três componentes colocados no mesmo nível: o saber ou crença (componente cognoscitivo); a valoração (componente afetivo); e a conduta (componente conativo), o que significa dizer que a atitude lingüística de um indivíduo é o resultado da soma de suas crenças, conhecimentos, afetos e tendências a comportar-se de uma forma determinada diante de uma língua ou de uma situação sociolingüística.

Gómez Molina (1998: 31), no estudo sobre as atitudes lingüísticas na região metropolitana de Valença - Espanha, discute o papel que cada um desses componentes representa na manifestação da atitude lingüística do falante diante da fala do outro. Para o autor, o componente cognoscitivo teria o maior peso sobre os demais por conformar, em larga escala, a consciência sociolingüística, uma vez que nele intervêm os conhecimentos e pré-julgamentos dos falantes: consciência lingüística, crenças, estereótipos, expectativas sociais (prestígio, ascensão), grau de bilingüismo, características da personalidade, etc.. O componente afetivo, por sua vez, está alicerçado em juízos de valor (estima-ódio) acerca das características da fala: variedade dialetal, acento; da associação com traços de identidade; etnicidade, lealdade, valor simbólico, orgulho; e do sentimento de solidariedade com o grupo a que pertence. O componente conativo, por sua vez, reflete a intenção de conduta, o plano de ação sob determinados contextos e circunstâncias. Mostra a tendência a atuar e a reagir com seus interlocutores em diferentes âmbitos ou domínios: rua, casa, escola, loja, trabalho.

3. O falante das capitais brasileiras diante da própria variedade lingüística e da

variedade do outro

Analisamos as atitudes sociolingüísticas de 200 falantes de vinte e cinco capitais brasileiras a partir das respostas dadas às Questões Metalingüísticas, que integram os Questionários do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil – ALiB (Comitê Nacional: 2001).

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Os grupos de informantes são formados por dois níveis de escolaridade: 100 deles têm apenas o nível fundamental de escolaridade, sendo 25 homens jovens e 25 mulheres jovens (entre 18 e 30 anos); os outros 50 estão na faixa dos 50 aos 65 anos, sendo 25 homens e 25 mulheres. A mesma distribuição se dá em relação aos 100 informantes de nível superior, isto é, 50 jovens e 50 na segunda faixa etária, distribuídos equitativamente por ambos os sexos.

A primeira questão indaga sobre a língua que o informante acredita falar e das respostas dadas pelos 200 informantes, ou seja, oito informantes em cada uma das 25 capitais, a grande maioria afirma falar o português ou a língua portuguesa. No entanto, 8% deles inicialmente assumiram como a denominação mais apropriada para a língua que falam ou o brasileiro/a língua brasileira; ou o cuiabanês; ou a língua nativa. Verificamos, da mesma forma, que quase todos, ao serem questionados pela segunda vez, prontamente retificaram a resposta anterior, retomando a denominação oficial – português/língua portuguesa.

Ao analisar, nesses depoimentos sobre crença e atitudes lingüísticas, os componentes acima mencionados, verificamos alguns casos que merecem destaque. O primeiro deles diz respeito à prevalência do componente cognoscitivo. Isto fica muito claro na declaração veemente do informante 7 (homem, de nível superior, na faixa etária dos 50 aos 65 anos) do ponto 006 (Manaus), ao ser indagado sobre a língua que fala:

1. A língua portuguesa, aliás eu acho errado isso, devia ser língua brasileira, né. Aliás já tem movimento aí pra ... é língua brasileira.

Por ser um defensor do purismo lingüístico de sua comunidade de fala – ao assegurar que a nossa língua é a brasileira –, invoca seus conhecimentos sobre as episódicas manifestações nacionalistas, alertando que já existe um movimento para a mudança do nome oficial da língua falada no Brasil.

O mesmo informante, durante toda a entrevista, manifestou a segurança lingüística de que trata Moreno Fernández (1998, p. 182), mantendo todas as características fonéticas tipicamente nortistas, as quais representam para o informante a fala normal, correta, sem sotaque. Sobre as perguntas 2 e 3, das Questões Metalingüísticas, indagado se na localidade havia grupos que falavam diferente, e se poderia identificá-los, é taxativo:

2. Não, não, não, ih, não, eu abomino esse negócio de sotaque... o mineiro adora isso, o paulista fala com aquele... não. Aqui o amazonense... todos falamos iguais, não tem esse negócio. Quando a senhora vê alguém hãhãhãhãhã, o cara não é daqui ou passou uma temporada fora e absorveu aquilo. Não, nós falamos aqui télévisão e não têlêvisão, Roráima e não Rorãima, nós falamos... as nossas palavras são bem explicadas, letra por letra.

O componente cognoscitivo, presente na atitude lingüística manifestada no depoimento 1, cede lugar ao afetivo, reforçando o mito do não sotaque na fala dos naturais da localidade, que falam igual, portanto sem o abominável sotaque que caracteriza os brasileiros mineiros e paulistas. Além disso, acredita ser o Amazonas o único estado em que todos falam bem explicado. A ênfase dada pela reiteração da negativa mostra o alto grau de rejeição às outras modalidades de fala e, conseqüentemente, aos outros grupos de falantes. Essa postura de rejeição ao que é

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diferente ou regional leva, com certeza, à inclusão do componente conativo. Moreno Fernandez (1998, p. 189), ao tratar do comportamento do falante em relação à própria variedade, admite a ocorrência de duas atitudes: a de valorização e a de rejeição. A valorização remete à noção de prestígio lingüístico, ou seja, o processo de concessão de estima e respeito para indivíduos ou grupos que reúnem certas características e que leva à imitação das condutas e crenças desses indivíduos ou grupos. No caso em análise, o informante nega qualquer valor positivo à fala do outro, atribuindo prestígio apenas à própria fala e à de seus conterrâneos.

Sem a veemência do depoimento anterior, temos a resposta do informante 108/7, natural de Cuiabá, informante masculino, de nível superior de escolaridade e da segunda faixa etária, alicerçada no componente cognoscitivo, associado ao afetivo :

3. No centro de Cuiabá mesmo, existe (sic) alguns que, com estilo intelectual, se julgam mais sabidos, né. (...) Quando você analisa a questão do cuiabano saindo para ir pro Rio de Janeiro pra estudar, (...) você via que a maioria deles se deixavam (sic) adulterar pela fala, vinham de lá, como eu digo no meu livrinho lá, 'com ti ti ti na boca' (refere-se ao s africado em sílaba travada), um horror, do carioca, entendeu? E perdia aquela identidade filológica, ou lingüística, entendeu? Perdia lá... E ainda encontramos esse tipo, que hoje em dia tem até vergonha de falar como cuiabano. (108/7)

O informante do exemplo 3 chama a atenção para os efeitos negativos do contato lingüístico do cuiabano com outros dialetos, como o carioca. O cuiabano pseudo-intelectual correria o risco de se deixar contaminar ou adulterar pela fala do grande centro, modelo de prestígio lingüístico para o viajante, mas um horror, um desencadeador da perda da identidade filológica ou lingüística, para o historiador e jornalista cuiabano. O contato com outros falantes, segundo o informante, pode levar à insegurança lingüística decorrente da alternância ou mudança de código, mas, pior ainda, à deslealdade lingüística expressa na vergonha de falar como cuiabano.

Essa mesma perda de identidade é manifestada pelo informante jovem, de baixa escolaridade, descendente de índios wapichana de Roraima:

4. Não. Esse “wapichana”.... esse negócio aí não é pra mim, não (003/1).

A questão da ‘morte’ de línguas nativas no Brasil é assunto de centenas de teses, cada qual assumindo posturas teóricas e ideológicas distintas que não cabe aqui discutir. O exemplo acima foi tomado para ilustrar um caso de deslealdade lingüística, em que a língua dos antepassados, grupo minoritário frente à língua portuguesa, é sentida não como um marcador de identidade do falante, mas um negócio, algo confuso com o qual ele não tem, nem pretende ter, qualquer afinidade.

Outro depoimento significativo diz respeito ao contato lingüístico de falantes nativos devido à chegada de agricultores do sul do Brasil às terras do Mato Grosso e à reação negativa dos autóctones em relação ao diferente:

5. (...) Já mais pra cima, o nortão, se você pegar, por exemplo, Sinop, Vera Cruz, Colider, então já são barriga verde, é pessoal do Paraná, já é gaúcho já... lá tem o Rio Grande do Sul, você imagina.(...) Eu na campanha política fui lá. Todos loirinhos de olhos azuis, cabelo de milho, né, um linguajar totalmente diferente, um costume totalmente diferente, usando a cuia do gaúcho, o chimarrão, né?(...) tudo é ô tchê, né,

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tchê, dançando o vanerão, te cuida, guaíba!, aquele linguajar todo cantarolado, totalmente diferente do nosso. (108/7)

O depoimento 5 do informante masculino, de alta escolaridade e na faixa etária de 50 a 65 anos, natural de Cuiabá, refere-se aos efeitos do encontro de duas culturas diametralmente opostas: a matogrossense que vê chegar ao Estado numeroso contingente de agricultores sulistas formado por gaúchos, catarinenses (barriga-verde) e paranaenses. Até o início da década de 1950, a população do Mato Grosso era constituída basicamente de indígenas não miscigenados e outros brasileiros setecentistas e oitocentistas, descendentes de portugueses, indígenas e africanos. Em menos de meio século, porém, o estado vê mudar substancialmente o perfil do estado, desde a composição étnica da população – a chegada e estabelecimento dos loirinhos de olhos azuis, cabelo de milho – ao contrário da gente autóctone de pele morena e cabelos negros; passando pela introdução de culturas e de hábitos diferentes, usando a cuia do gaúcho, o chimarrão, dançando o vanerão; atingindo a linguagem com a presença de um linguajar todo cantarolado, marcado pelo ô tchê! né, tchê! e pelas frases interjectivas, como te cuida, guaíba!

A rejeição, o choque diante daquilo que destoa da paisagem anterior, começa pelo aspecto físico, passa para os elementos da cultura e se concentra na linguagem.

O informante 7, do ponto 21 (Rio Branco), da segunda faixa etária e de nível superior, por sua vez, partilha as mesmas atitudes dos informantes anteriores, ao analisar a presença do outro, de pessoas diferentes no espaço que habita, e que lhe parecia, até então, relativamente homogêneo:

6. Ah todos, todos (falam diferente)... sobe esse interior aí, tem pessoal do Sul, Sudeste, Centro-Oeste (...) uma mistura, um mosaico assim. É nego andando de bombacha e com bota, botina no sol quente, chapéu, uma maluquice... (021/7).

4. Rumo a conclusões

Analisados os depoimentos de 200 informantes, moradores de 25 capitais brasileiras, relativos às Questões Metalingüísticas constantes dos Questionários do Atlas Lingüístico do Brasil e, particularmente, que dizem respeito à língua que cada um fala; e sobre a existência ou não de grupos que falam diferente na localidade, verificamos que a grande maioria (92%) acredita falar o português ou língua portuguesa. Outras manifestações minoritárias (o falar brasileiro, o cuiabano, o nativo) eram corrigidas na reformulação da pergunta em favor da crença majoritária.

As questões 2 e 3 – Você sabe se aqui nesta cidade há pessoas que falam diferente e se poderia dar exemplo desses prováveis falares diferentes – ensejaram as mais diversas manifestações que foram analisadas à luz de variáveis extralingüísticas, como faixa etária, nível de escolaridade, sexo e região de origem.

Sobre a Questão 1, verificamos que a faixa etária é definidora da incerteza e da vacilação no momento de o informante expor sua crença sobre a língua que fala: os mais idosos demonstraram essa oscilação com muito mais ênfase que os da faixa I. No entanto, pode-se concluir que a faixa etária não atua sozinha, ela está associada ao nível de escolarização. O pouco tempo de permanência na escola, ou o fato de ter se distanciado dela por muitos anos, pode ter colaborado para essa vacilação na hora de

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denominar a língua que fala. As mulheres, por sua vez, demonstraram menos oscilação que os homens, independentemente do nível de escolaridade. Relativamente à origem do informante, os naturais das regiões Norte e Nordeste demonstraram uma tendência maior à incerteza sobre a crença de falar o português. Essa tendência pode, também, estar associada à variável nível de escolaridade.

Quanto às respostas dadas às questões 2 e 3, conforme expusemos de início, o AliB, ao, pela primeira vez na história da geolingüística do Brasil, no instrumento de recolha de dados, Questões Metalingüísticas, que levam a respostas sobre crenças e atitudes lingüísticas, dá um passo à frente nessa área do conhecimento e abre perspectivas de aprofundamento de estudos a partir da base que ora oferece aos interessados no assunto. Por outro lado, esperamos que a inserção de questões dessa natureza possa motivar futuros autores de projetos geo-sociolingüísticos a contemplar, em suas investigações, um tema cujos resultados podem indicar a direção da mudança lingüística que se processa em dada comunidade, bem como esclarecer em que medida os fatos lingüísticos valorizados ou estigmatizados podem interferir nessa mudança.

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A redução de proparoxítonas no português popular do Brasil: estudo com base em dados do Atlas lingüístico do Paraná

(ALPR).

Vandersí Sant’Ana Castro

Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

[email protected]

Résumée: Il s’agit d’une étude à propos d’un phénomène du portugais

populaire brésilien, à savoir, la réduction de mots proparoxytons. À partir des

données de l’Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera 1994), nous analysons

l’occurrence du phénomène en ce qui concerne sa fréquence, sa distribution

géographique et les procedés employés pour sa réalisation dans cet État

brésilien.

Mots-clés: portugais populaire brésilien; proparoxytons; atlas linguistique

Resumo: Trata-se de um estudo sobre a redução de proparoxítonas no

português popular do Brasil, com base em dados do Atlas lingüístico do

Paraná (Aguilera 1994). Analisa-se a ocorrência do fenômeno, na área em

questão, no que diz respeito a sua freqüência, seu alcance diatópico e os

processos utilizados em sua realização.

Palavras-chave: português popular brasileiro; proparoxítonas; atlas

lingüístico.

Introdução O processo de redução de proparoxítonas a paroxítonas foi historicamente atestado na passagem do latim para o português – cf. calidu > caldo; littera > letra; viride >

verde; apicula > abelha (Coutinho 1974; Câmara Jr. 1976). Essa foi a evolução natural das formas proparoxítonas, observada já no latim vulgar – cf. oculus > oclus; altera > altra; socerus > socrus (Coutinho 1974). Tanto assim que, como enfatiza Câmara Jr. (1976: 35), “os vocábulos portugueses de acentuação na antepenúltima sílaba raramente provêm da evolução no latim vulgar”. A presença de proparoxítonas em nosso léxico, continua o autor, “decorre do empréstimo em massa de palavras do latim clássico, que se processou em português, especialmente a partir do séc. XVI; entre elas vieram palavras gregas que o latim clássico tinha adotado e adaptado à sua estrutura. Mais tarde houve empréstimos diretos do português ao grego clássico com a tendência a acentuá-los com o princípio geral da prosódia latina. Também aumentaram o número de esdrúxulos os empréstimos ao italiano pela língua literária portuguesa, a partir do séc. XVI, pois em italiano não houve a supressão românica da penúltima sílaba átona dos esdrúxulos latinos”. As proparoxítonas que temos hoje vieram, portanto, sobretudo por via erudita, e são, em nossa língua, “um tanto marginais”, na expressão de Câmara Jr. (1976: 35).

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Ora, o processo de redução de proparoxítonas verificado na história do português (e que foi a deriva natural da língua) continua, todavia, ativo na nossa linguagem popular, agindo sobre as proparoxítonas que entraram tardiamente em nosso léxico, como atestam diversos autores que se dedicaram ao estudo de variedades regionais do português popular (Amaral 1920; Nascentes 1923; Marroquim 1934) ou fizeram apresentações gerais sobre nossa língua popular (Elia 1975; Câmara Jr. 1970, 1976; Castilho 1992). Um material propício para verificar a ocorrência do processo no português popular de hoje pode ser encontrado nos atlas lingüísticos regionais brasileiros (Rossi 1963; Ribeiro et alii 1977; Aragão & Menezes 1984; Ferreira et alii 1987; Aguilera 1994; Cardoso 2005), que documentam a linguagem usada por falantes com pouca ou nenhuma escolaridade. Nesta apresentação, justamente, focalizarei algumas cartas do Atlas lingüístico do

Paraná - ALPR (Aguilera 1994), que reúnem dados pertinentes ao tema. Com base na análise desse material, procurarei: a) mostrar a freqüência do uso e o alcance geográfico da redução de proparoxítonas a paroxítonas no Paraná; b) descrever os variados processos de redução utilizados pelos informantes paranaenses; c) verificar em que medida os processos atestados nos dados correspondem às descrições propostas na literatura pertinente ou permitem complementá-las. A redução de proparoxítonas a paroxítonas no Paraná O ALPR traz oito cartas relevantes para o estudo da redução da proparoxítona a paroxítona: árvore (carta 104), amígdalas (105), estômago (106), relâmpago (107), útero (108), eucalipto (125), eclipse (152) e glândula (155). Inicialmente cabe justificar a inclusão de eclipse e eucalipto nesse conjunto de dados. Aparentemente paroxítonas, como sugere sua grafia, essas palavras apresentam, em posição postônica, uma seqüência de consoantes (oclusiva + oclusiva - p t - , no caso de eucalipto; e oclusiva + fricativa – p s -, no caso de eclipse), seqüência que, efetivamente, costuma se desfazer pela ocorrência de um /i/ epentético, que se torna núcleo de uma nova sílaba. Dessa forma, essas palavras, na verdade, tornam-se proparoxítonas – eclípise, eucalípito. Câmara Jr. já chamou a atenção para esse fato. Sobre os vocábulos de origem erudita que apresentam, na escrita, seqüências consonantais como as que ocorrem nos dois casos em questão, o autor observa que “na realidade há entre uma e outra consoante a intercalação de uma vogal, que não parece poder ser fonemicamente desprezada, apesar da tendência a reduzir a sua emissão no registro formal da língua culta.” (Câmara Jr. 1970: 47). Justifica-se, assim, a consideração de eclipse e eucalipto ao lado das autênticas proparoxítonas examinadas (árvore, amígdalas, estômago, relâmpago, útero, glândula). Analisando essas oito cartas do ALPR, pude constatar a presença de realizações paroxítonas e proparoxítonas conforme os índices que figuram no quadro apresentado a seguir.

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Nº de LOCALIDADES CARTA total com paroxítonas com proparoxítonas

104 - árvore 65 61 (93%) 28 (43%) 108 - útero 57 54 (94%) 9 (15%) 125 - eucalipto 64 59 (92%) 18 (28%) 152 - eclipse 64 63 (98%) 5 (7%) 105 - amígdalas 25 16 (64%) 12 (48%) 107 - relâmpago 55 47 (85%) 26 (47%) 155 - glândula 51 34 (66%) 32 (62%) 106 - estômago 64 28 (43%) 58 (90%)

QUADRO I - ALPR : redução de proparoxítonas

O quadro acima indica o nº da carta, a palavra em questão, e, para cada palavra, o nº

total de localidades em que a palavra foi registrada; o nº de localidades em que houve registro de realização paroxítona (e a porcentagem correspondente); o nº de localidades em que se atestou realização proparoxítona (e a porcentagem correspondente).

Assim, árvore ocorreu em 65 localidades (ou seja, todas as localidades estudadas no atlas). Em 61 delas (93%) foram atestadas realizações paroxítonas (ex.: arve, arvre,

auve). Em 28 das localidades (43%), foram registradas realizações proparoxítonas (ex.: árvore, áuvore). (Como em várias localidades ocorrem os dois tipos de realização – paroxítona e proparoxítona -, a soma das porcentagens (paroxítona + proparoxítona) é superior a 100%, bem como a soma das localidades correspondentes é superior ao número total das localidades em que a palavra ocorre. Essa observação se aplica aos índices de todas as palavras estudadas.) O que se constata, portanto, é que a redução de proparoxítonas a paroxítonas tem presença notória e importante nos dados, como mostram os índices do quadro apresentado: a realização paroxítona, de um modo geral, é sempre mais ampla (isto é, é registrada em um maior número de localidades) que a ocorrência da realização proparoxítona, mostrando-se nitidamente predominante no caso de árvore, útero,

eucalipto e eclipse. Há três casos em que não se registra a presença predominante das paroxítonas e eles merecem uma explicação. Trata-se de amígdalas, glândula e estômago. Na realização de amígdalas e glândula, variantes proparoxítonas e paroxítonas ocorrem de forma mais equilibrada. Sobre essas palavras pode-se observar que: amígdalas é pouco registrada – só ocorre em 25 das 65 localidades do ALPR. Pode-se deduzir que se trata de uma palavra pouco familiar aos informantes. A pouca familiaridade da palavra poderia explicar também a ocorrência de variantes mais inesperadas, atestadas no desempenho dos informantes, como: [az»midula], [a»migola], [»miglas], [a»miwda], [a»mi)gwa].

Na realização de glândula também se registra a ocorrência equilibrada de variantes paroxítonas e proparoxítonas. Embora de distribuição mais ampla que amígdalas, glândula também não é uma palavra de uso cotidiano, o que poderia explicar a presença mais significativa de variantes que preservam a realização proparoxítona, atestada em 62% das localidades.

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Com relação a estômago, predominam as realizações proparoxítonas – é a única palavra do corpus em que isso ocorre. A explicação poderia ser uma atuação contrária do mesmo fator apresentado em referência a amígdalas e glândula. É justamente a familiaridade da palavra (observe-se que foi atestada em 64 das 65 localidades do ALPR) que contribuiria para sua fixação na forma proparoxítona.

Um outro aspecto a ser considerado nos dados é o alcance geográfico ou diatópico das ocorrências paroxítonas. Os índices do quadro já comentado evidenciam que a redução da proparoxítona é atestada em grande extensão do Paraná, o que pode ser inferido pelo número de localidades em que o processo é registrado: em relação a eclipse, ocorrem realizações paroxítonas em 63 localidades (quase a totalidade das 65 localidades estudadas no atlas); quanto a árvore, as realizações paroxítonas ocorrem em 61 localidades; para eucalipto, o registro é feito em 59 localidades; e quanto a útero, as paroxítonas são atestadas em 54 localidades.

Constata-se que as realizações paroxítonas são observadas em todo o território paranaense, como se pode verificar na carta apresentada em anexo (de Castro 2006), em que os dados das oito cartas analisadas são considerados em conjunto. Estão indicadas nessa carta todas as localidades em que houve registro de uma ou mais de uma realização paroxítona. Como se pode ver, a redução da proparoxítona foi atestada em todas as 65 localidades estudadas no ALPR. A carta também registra as realizações proparoxítonas atestadas entre os informantes paranaenses. Como se pode verificar, a distribuição das proparoxítonas também é ampla – só na localidade 40 (Guaraniaçu) não se registrou nenhuma realização proparoxítona para nenhuma das palavras do corpus. Em vista disso, pode-se concluir que o fator geográfico não parece ser definitivo na alternância, o que já era de se esperar, dado que a redução de proparoxítona tem sido reconhecido como um traço geral (e não regional) do português popular brasileiro.

Considerando carta a carta os dados referentes às diferentes palavras estudadas, constatou-se que, de um modo geral, predominam as formas paroxítonas (só na realização de estômago a situação se inverte, e em amígdala e eclipse há equilíbrio na alternância paroxítona/proparoxítona), o que parece apontar a expansão do processo de redução da proparoxítona no Paraná, ou, no mínimo, o vigor com que o processo se apresenta. As diferenças observadas entre as cartas, no que se refere à ocorrência maior ou menor de um ou outro tipo de realização poderiam ser associadas ao item lexical em questão – assim, estômago favoreceria a manutenção da proparoxítona, como procurei explicar anteriormente. Outras variáveis poderiam ser relevantes na alternância paroxítona/proparoxítona, como o grau de escolaridade e o gênero do informante. O exame da primeira variável fica de certa forma prejudicado nos dados do ALPR por duas razões: a) não há grandes diferenças entre os informantes quanto ao grau de escolaridade, que varia entre analfabetismo / Mobral / primário incompleto / primário completo; b) não há uma distribuição equilibrada dos informantes entre os diferentes

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graus de escolaridade – 77 informantes (mais da metade, portanto) são analfabetos; 13 cursaram o Mobral; 39 têm o primário incompleto; e 1 tem o primário completo. Mesmo com essas ressalvas, em caráter exploratório, procurei verificar, em referência a útero (carta 108), quais informantes teriam realizado as poucas ocorrências proparoxítonas, e quais teriam realizado as formas paroxítonas. Foram encontrados os seguintes índices:

PAROXÍTONAS PROPAROXÍTONAS ESCOLARIDADE nº de informantes nº de informantes

analfabetos 48 3 Mobral 7 1 primário incompleto 24 6 primário completo _ 1

QUADRO II – ALPR: redução de proparoxítonas e escolaridade (carta 108: útero)

O que se pode observar nesse quadro é que tanto analfabetos como falantes com Mobral ou primário incompleto realizam útero como paroxítona ou como proparoxítona. É fato que, entre os que usam realizações paroxítonas, são mais numerosos os analfabetos, mas deve-se lembrar que os informantes com essa característica constituem mais da metade do total de informantes. Por outro lado, entre os que usam realizações proparoxítonas, inclui-se o único informante que tem primário completo, e os que têm primário incompleto são mais numerosos que os analfabetos. Os dados não permitem, porém, conclusões seguras, tendo em vista o desequilíbrio no número de representantes de cada grau de escolaridade – são, todavia, sugestivos e apontam para uma direção de pesquisa que parece promissora. Considerando o gênero do informante, procurei analisar a mesma carta (108 – útero), observando quais falantes teriam realizado a palavra como paroxítona ou como proparoxítona. Foi possível constatar os seguintes índices:

GÊNERO PAROXÍTONAS nº de informantes

PROPAROXÍTONAS nº de informantes

feminino 38 6 masculino 41 5

QUADRO III – ALPR: redução de proparoxítonas e gênero (carta 108: útero)

Os números não mostram grandes diferenças entre os dois gêneros e não permitem conclusões precisas. Observa-se uma mínima superioridade das mulheres no uso das formas de prestígio (proparoxítonas), e um número ligeiramente menor no uso das formas estigmatizadas (paroxítonas), o que se harmoniza com constatações de pesquisas anteriores que apontam maior adesão de falantes do sexo feminino às formas de prestígio. A consideração do conjunto dos dados a partir dessa variável talvez leve a resultados mais consistentes, tarefa a ser feita na continuidade deste estudo. Os processos de redução utilizados

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Nos dados analisados, a redução das proparoxítonas se realiza através de processos variados, a seguir identificados e exemplificados: a) síncope da penúltima vogal da palavra: [»a”vRe, »utRu, a»midla]; b) síncope da penúltima vogal e da consoante seguinte: [»a”vi, »awvi, e»kRipe, »utu, re»lA)po, »gRA)da, is»to)mo, is»tA)mu]; c) síncope da consoante da última sílaba: [»utiw, ka»lipiw]; d) queda da última sílaba: [»ute, ka»lipi]; e) apócope da vogal átona final: [»uteR, »utRe, »kRipis]; f) síncope da penúltima vogal e da consoante precedente: [is»to)go, is»tA)go]; g) queda da penúltima sílaba: [ka»lito, »gRA)na].

Nem todos os processos acima arrolados têm sido mencionados nas descrições da redução da proparoxítona no português popular brasileiro. Em geral, enfatiza-se a síncope da penúltima vogal ou se fazem menções mais genéricas à perda de segmentos postônicos. Amaral (1982: 49), por exemplo, em sua descrição do dialeto caipira, constata, em referência às proparoxítonas, “a tendência (...) a suprimir a vogal da penúltima sílaba ou mesmo toda esta, fazendo grave o vocábulo”. Cita como exemplos: ridico = ridículo, cosca = cócega, legite = legítimo, musga = música. Deve-se observar que entre os próprios exemplos dados pelo autor, ridico e legite ilustram um processo diferente dos que são descritos (no caso dos dois vocábulos, com a vogal da penúltima sílaba cai também a consoante seguinte). Elia (1975) também só menciona a queda da vogal postônica. Câmara Jr. (1970: 55) faz uma referência genérica à “supressão de um segmento postônico”. Castilho (1992: 248) menciona a “queda da vogal átona postônica, acompanhada ou não de outros elementos fonéticos”. Neste sentido, a identificação dos processos ilustrados nos dados do ALPR pode contribuir para tornar mais precisa a descrição da redução da proparoxítona no português popular brasileiro. Considerações finais O exame dos dados pertinentes do Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera 1994) mostrou a ampla ocorrência do processo de redução da proparoxítona no português popular falado nessa área do território brasileiro, tanto em termos diatópicos (o processo é atestado em todas as localidades estudadas no ALPR), como em termos da freqüência do uso (em relação a cada palavra, a ocorrência das formas paroxítonas é, em geral, predominante). As realizações proparoxítonas são também atestadas em praticamente toda a extensão do Estado (só não ocorrem em uma localidade), mas, tipicamente, sempre em desvantagem em relação às realizações reduzidas. O fator geográfico, como se pode concluir, não se mostra definitivo nessa alternância. Em caráter exploratório, foram consideradas, em relação à carta 108 – útero, as variáveis grau de escolaridade e sexo dos informantes em correlação com o tipo de

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realização atestado – proparoxítona ou paroxítona. Quanto à primeira variável, não havendo uma distribuição equilibrada dos informantes entre os diferentes níveis de instrução contemplados, não foi possível chegar a conclusões seguras, sugerindo, todavia, os índices encontrados que se trata de direção relevante para pesquisa. Em referência ao sexo do informante, os índices encontrados não assinalam diferenças nítidas no desempenho de falantes de sexo diferente, apontando apenas uma leve superioridade das mulheres na adesão a formas de prestígio (proparoxítonas), mas um adensamento dos dados com o exame de todas as cartas poderá levar a resultados mais consistentes. A consideração dos dados tendo em vista a maneira como os informantes levam a cabo a redução da proparoxítona mostrou o uso de uma grande variedade de processos, alguns dos quais têm escapado à descrição da literatura pertinente. Quero com isso, e para finalizar, acentuar a importância de se buscar nos dados dos nossos atlas lingüísticos regionais elementos para a descrição do português brasileiro. A riqueza desses materiais nem sempre tem sido devidamente explorada pelos estudiosos da língua. Referências bibliográficas AGUILERA, V. de A. Atlas lingüístico do Paraná Curitiba: Imprensa Oficial do

Estado, 1994.

AMARAL, A. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4ª ed., São Paulo: Hucitec/INL, 1982 (1ª ed. de 1920).

ARAGÃO, M. do S. S. de & MENEZES, C. P.B. de . Atlas lingüístico da Paraíba. Brasília: UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 2v., 1984.

CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.

_____. História e estrutura da língua portuguesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

CARDOSO, S. A. M. Atlas lingüístico de Sergipe – II. Salvador: EDUFBA, 2005.

CASTILHO, A. T. de. O português do Brasil. In: ILARI, R. Lingüística românica.

São Paulo: Ática, 1992, p. 237-269.

CASTRO, V. S. A resistência de traços do dialeto caipira: estudo com base em atlas lingüísticos regionais brasileiros. Tese (Doutorado em Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2006.

COUTINHO, I. de L. Pontos de gramática histórica. 6ª ed. rev., Rio de Janeiro: 1974.

ELIA, S. Ensaios de filologia e lingüística. 2ª ed., Rio de Janeiro: Grifo/MEC, 1975.

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FERREIRA, C. et alii . Atlas lingüístico de Sergipe. Salvador: EDUFBA/FUNDESC,

1987.

MARROQUIM, M. A língua do nordeste. 2ª ed., São Paulo: Edit. Nacional, 1945. (1ª ed. 1934).

NASCENTES, A. O linguajar carioca. 2ª ed. ref., Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953 (1ª ed. 1923).

RIBEIRO, J. et alii. Esboço d e um atlas lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro:

MEC/ Casa de Rui Barbosa/UFJF, 1977.

ROSSI, N. Atlas prévio dos falares baianos. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.

Anexo

Carta XXV (Castro 2006)

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realizações paroxítonas realizações proparoxítonas

PARANÁ

CARTA XXV

árvore, amígdalas, estômago, relâmpago, útero, eucalipto, eclipse, glândula

REDUÇÃO DE PROPAROXÍTONA

(cf. cartas 104 – 108, 125, 152, 155 do

ALPR)

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Uso de corpora customizados para aperfeiçoar o texto traduzido

Ana Julia Perrotti-Garcia

Faculdades Montessori de Ibiúna – (FMI); Unibero/ Faculdades Anhanguera; Universidade de Franca (UniFran); Mestranda LAEL PUC-SP

Caixa Postal 11746 CEP 05049-970 São Paulo SP [email protected]

Abstract. To translate is to make choices. The precision of these choices is directly related to the quality of search sources used by the translator. Using the Internet as a source of information is a simple and affordable method, but the results can lack precision accuracy. Ready corpora seem to be more reliable, although the majority of them are not composed by texts of specialty language. The author proposes the establishment of customized corpora – attending to specific research needs (register, linguistic variants, types of documents, target public, among others). Customized corpora, together with WordSmith tools set, will help translators make the final text more natural and precise, in a quick and cheap way. Customized corpora may be modified, enriched or altered whenever necessary, in order to be used in a new translation project, or even to continue a current project.

Keywords. Customized corpora; corpus linguistics; translation; WordSmith tools.

Resumo. Traduzir é fazer opções. A precisão dessas opções está diretamente relacionada com a qualidade das fontes de pesquisa utilizadas pelo tradutor. Usar a rede mundial de computadores (Internet) como fonte de pesquisa, embora seja um método simples e de baixo custo (que vem se difundindo entre a comunidade de tradutores), nem sempre é uma forma segura e garantida de resultados precisos e naturais. A pesquisa em corpora prontos tem mostrado ser uma alternativa mais confiável. Contudo, para textos científicos, praticamente não existem corpora prontos que respondam às principais dúvidas lexicais dos tradutores. Sendo assim, a autora propõe que sejam coletados corpora customizados – adaptados ao público-alvo do texto meta; levando em consideração, durante a coleta, outros aspectos como: registro; campo semântico (e suas subáreas); variações regionais, diafásicas, diacrônicas e dialógicas; entre outros. Assim, de posse de um corpus customizado, lançando mão de um programa computadorizado apropriado (WordSmith tools, mesmo na versão gratuita, para demonstração), o tradutor irá conseguir produzir textos mais naturais, precisos e adequados, sem aumentar muito o tempo de pesquisa, com um custo baixo e acessível.

Palavras-chave. Corpora customizados; lingüística de corpus; tradução; WordSmith tools.

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1. Introdução

Traduzir é fazer opções. A precisão dessas opções está diretamente relacionada com a qualidade das fontes de pesquisa utilizadas pelo tradutor. O avanço qualitativo representado pelo advento dos computadores e da Internet é inegável. E o trabalho do tradutor certamente foi influenciado positivamente pela introdução dos motores de busca, pela pesquisa na rede mundial de computadores e pela facilidade de acesso a um conteúdo vasto e constantemente atualizado. Entretanto, muitas vezes o tradutor precisa de muito mais do que velocidade e variedade de informações. O processo tradutório envolve pesquisas em assuntos técnicos, científicos e, muitas vezes, é preciso pesquisar assuntos quase inéditos, ou apenas abordados em sites muito específicos.

A fim de comparar as opções oferecidas ao tradutor ao pesquisar na Internet e aquelas fornecidas pelos corpora customizados1, faremos a seguir uma análise empírica dos resultados obtidos com cada uma dessas fontes.

2. Internet e motores de busca

Usar a rede mundial de computadores (Internet) como fonte de pesquisa, embora seja um método simples e de baixo custo (que vem se difundindo entre a comunidade de tradutores), nem sempre é uma forma segura e garantida de resultados precisos e naturais. A variedade e a quantidade crescente de textos disponibilizados pela rede mundial de computadores são dois aspectos que certamente devem ser levados em consideração, ao escolher a Internet como fonte para pesquisas, ao realizar trabalhos de tradução. A rapidez com que os resultados são apresentados é extremamente interessante, promovendo uma maior agilidade ao processo de tradução.

Por outro lado, o tradutor precisa ponderar muito bem, para não ser seduzido por essa grande quantidade de textos disponíveis que, algumas vezes, em sentido inverso, acaba comprometendo a qualidade dos resultados das pesquisas – pois oferece opções heterogêneas, com mistura de registros, variantes lingüísticas, público alvo. Além disso, sem menções claras ao autor, local e data da redação e da publicação implicando na ausência de comprometimento com a qualidade e a precisão de alguns textos.

Partiremos da seguinte situação verídica e muito freqüente no dia-a-dia do profissional que atua com textos da área de saúde: um tradutor precisa fazer uma tradução português – inglês de um resumo (abstract) de um artigo médico para ser publicado em uma revista científica que tem, entre outras exigências, como requisito o uso de inglês britânico. Para simplificar nossa explanação, faremos a análise de um termo, entre os muitos que foram pesquisados durante o processo de tradução. Como o artigo referia-se a enxertos ósseos, faremos a análise de um termo composto extremamente representativo do tema: sobrevivência do enxerto. Para a tradução, o termo sugerido seria graft survival, e este foi então pesquisado pelo motor Google. Ao usar esse sistema de busca, a avaliação dos resultados obtidos deve sempre ser feita com bom-senso e com rigor científico, pois da escolha feita irá depender diretamente a

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qualidade do texto traduzido. Assim, foi feita a pesquisa do termo graft survival na Internet, pelo buscador Google, e de posse dos resultados obtidos (figura 1), passaremos à análise dos resultados.

Figura 1. Primeiros resultados obtidos para o termo graft survival

(Internet, buscador Google).

A análise da Figura 1 revela que a pesquisa pelo termo graft survival, feita em 23 de junho de 2007, produziu 644 mil resultados (hits). O número parece bastante convincente, para servir de fiador de uso, se fizermos um julgamento estritamente quantitativo. Entretanto, convém lembrar que os textos apresentados ao pesquisar na Internet, seja qual for o motor de busca ou sistema de pesquisa utilizado, podem ser extremamente valiosos, mas também podem ser inúteis, enganosos e mal redigidos, uma vez que não há qualquer tipo de seleção ou pré-requisito para a publicação de textos na web.

Passemos, então, à análise dos resultados da busca. Por questões de restrição de espaço e de tempo (e até porque, há uma crença, anedótica e empírica, mas que alguns tradutores costumam considerar com fundamentada, que afirma que “os primeiros resultados de uma pesquisa na Internet são os de melhor qualidade”), analisaremos os primeiros quatro resultados obtidos:

U.S Transplant: Website redigido em inglês americano, e textos dirigidos a pacientes (os textos são apresentados em linguagem leiga e os termos mais técnicos, quando citados, são explicados ou facilitados).

2003 OPTN/SRTR Annual Report Reprodução do relatório anual de um órgão estadunidense responsável pela localização de doadores e pela rede de transplantes naquele país (OPTN/SRTR). Aqui podemos notar a heterogeneidade dos textos

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apresentados na Internet, pois este resultado e o anterior são procedentes do mesmo website, no entanto têm público-alvo diverso, são gêneros textuais diferentes e, a menos que o tradutor faça uma leitura mais aprofundada (indo além das poucas linhas apresentadas pelo buscador), muitas dessas informações podem passar despercebidas.

NEJM: A revista médica New England Journal of Medicine, uma das mais tradicionais publicações da área da saúde, certamente é uma fonte de textos bem redigidos, confiáveis e que podem ser aproveitados como base de pesquisa para tradutores. Entretanto, é conveniente lembrar que neste texto temos um vocabulário dirigido aos médicos, o que não pode ser esquecido, principalmente se o texto a ser traduzido tiver como destino leitores não médicos. Além disso, por exigência da própria revista, a variante adotada nos textos é o inglês americano.

Hindu on Net: este hit traz uma entrevista concedida por um médico japonês a um repórter indiano. Sendo assim, temos no mínimo, influências regionais bem marcantes. Mesmo partindo do pressuposto que o médico entrevistado seja (o que deve realmente ser) fluente em inglês, é importante ponderar quanto à conveniência de usar este material como guia para a produção de um texto em inglês, uma vez que muito já se falou sobre a influência do falante não nativo sobre a qualidade e a naturalidade do texto produzido.

Assim, podemos observar, em uma primeira análise rápida, que os quatro primeiros resultados da pesquisa não apontam para um horizonte muito animador: textos em inglês americano, lado a lado com textos produzidos por não nativos, variedade de público alvo, de registro e de tipo textual. Seria conveniente que cada tradutor, antes de eleger a web como sua fonte única ou principal de informações lingüísticas, refletisse um pouco mais sobre a qualidade e a adequação dos textos que circulam nesse oceano imenso de opções quase intangíveis.

3. Corpus customizado

A pesquisa em corpora prontos2 (por exemplo, apenas para citar alguns dos mais relevantes, BNC e Collins Cobuild, para pesquisas de inglês, e Banco de Português e LacioWeb, para pesquisas de português) tem mostrado ser uma alternativa muito mais confiável. Os textos são pré-selecionados, vindo em sua maioria de fontes fidedignas e que cuja origem e data de produção e coleta costumam ser explicitadas para o pesquisador. Contudo, para textos científicos, praticamente não existem corpora prontos que respondam às principais dúvidas lexicais dos tradutores. Sendo assim, para esta análise comparativa, coletamos um corpus customizado – adaptado ao público-alvo do texto meta (especialistas em gastroenterologia, neste caso) – levando em consideração, outros aspectos como: registro; campo semântico (e suas subáreas); variações regionais (apenas foram coletados textos em inglês britânico), diafásicas (coletamos textos de artigos médicos, publicados em revistas especializadas e conceituadas), diacrônicas (somente foram coletados textos produzidos na última década) e dialógicas; entre outros (Perrotti-Garcia, 2007). Assim, de posse de um corpus customizado, lançando mão de um programa computadorizado apropriado (WordSmith tools, na versão 4.0, para demonstração), repetimos a busca, desta vez usando apenas o termo survival (um procedimento que, como sabemos, se fosse feito pelo buscador Google produziria um resultado tão heterogêneo, numeroso e impreciso que seria impossível de ser

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aproveitado da maneira que fizemos aqui). Os resultados da pesquisa feita pela ferramenta Concordance do programa WordSmith são apresentados na Figura 2.

Figura 2. Primeiros resultados obtidos para o termo survival

(Programa WordSmith, ferramenta Concordance, a partir de corpus customizado).

Mesmo para o observador que avalia a figura 2 pela primeira vez, já é possível notar algumas diferenças marcantes entre os resultados obtidos com a ferramenta Concordance: a palavra de busca (aqui chamada de nódulo) aparece centralizada, grafada de cor diferente, e com um número fixo de palavras a esquerda e à direita. A esse conjunto, chamamos “linhas de concordância”. A ferramenta Concordance mostra as linhas de concordância existentes com a palavra de busca selecionada. Além disso, é possível aumentar ou diminuir o número de palavras à direita e à esquerda do nódulo, bastando para isso um simples ajuste no programa ou um clique em um botão determinado.

Além das diferenças estruturais nos resultados obtidos, podemos notar diferenças qualitativas importantíssimas: como os textos pesquisados foram pré-selecionados pelo próprio tradutor, seguindo critérios rígidos, não há termos suspeitos, todos os artigos foram redigidos em inglês britânico e o público alvo é sempre o médico especialista. Deste modo, notamos que as diversas linhas de concordância fornecem muito mais do que uma mera confirmação do uso de um termo pesquisado. Podemos depreender o uso de preposições, padrões colocacionais, termos compostos e, obviamente, vários exemplos autênticos de uso do termo pesquisado graft survival, além de termos como patient survival, retransplantation e liver transplant, que certamente serão úteis durante o processo de tradução.

4. Internet X corpus customizado - o que concluímos?

Ao fazermos a comparação entre os resultados obtidos pelos motores de busca, na Internet, e pelo programa WordSmith, em corpora customizados, percebemos que há diferenças marcantes, não apenas do ponto de vista estrutural (formatação, apresentação

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do resultados, organização das linhas de concordância), mas também diferenças na qualidade dos resultados obtidos. Como o corpus customizado é composto exclusivamente por textos coletados em fontes consideradas fidedignas, seguindo parâmetros relacionados aos aspectos textuais, que estarão em harmonia com o texto de chegada, os resultados são absolutamente precisos e adequados para ir ao encontro das necessidades de pesquisa do tradutor. Ainda muito precisa ser analisado sobre este tema tão fascinante: os corpora customizados como fonte de pesquisa para tradutores e o assunto certamente ainda será explorado futuramente. Assim, o tradutor irá conseguir produzir textos mais naturais, precisos e adequados, sem aumentar muito o tempo de pesquisa, com um custo baixo e acessível.

Notas 1 Para obter maiores informações sobre a coleta e a montagem de corpora customizados, recomendamos a leitura de Perrotti-Garcia (2005) 2 Para obter os endereços de acesso aos corpora citados, consulte o item 6. Anexo(s).

Referências

2006 Annual Report of the U.S. Organ Procurement and Transplantation Network and the Scientific Registry of Transplant Recipients: Transplant Data 1996-2005. Health Resources and Services Administration, Healthcare Systems Bureau, Division of Transplantation, Rockville, MD.

BERBER SARDINHA, Tony. Lingüística de Corpus. Manole, São Paulo, 2004.

PERROTTI-GARCIA, Ana Julia. O Uso de Corpus Customizado como Fonte de Pesquisa para Tradutores. Confluências Revista de Tradução Científica e Técnica, Lisboa, v. 3 p. 62-79. 2005. Disponível em: <http://www.confluencias.net/> Acesso em 28 set. 2007

_____ Customised corpora – a source of information for translators, In: Institute of Translation and Interpreting Conference. 2007. Anais eletrônicos. Disponível em: <http://www.iti-conference.org.uk/conference_programme.html> Acesso em 28 set. 2007

6. Anexo

Endereços eletrônicos dos corpora e programas citados no artigo:

Banco de Português: <http://www2.lael.pucsp.br/corpora/bp/conc/index.html>

British National Corpus (BNC): <http://www.natcorp.ox.ac.uk/>

Collins Cobuild: <http://www.collins.co.uk/Corpus/CorpusSearch.aspx>

Lacio Web <http://www.nilc.icmc.usp.br/lacioweb/>

WordSmith tools: <http://www.lexically.net/wordsmith/>

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Tradutor: Personagem de ficção

Dircilene Fernandes Gonçalves

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo (USP) São Paulo – SP – Brasil – [email protected]

Resumo. A pseudotradução é uma técnica na qual um texto original é

apresentado como sendo uma tradução. Conhecida desde a Idade Média, ela é

utilizada pelas mais diversas razões: literárias, estilísticas, editoriais,

políticas, entre outras. Diferentemente do comportamento em geral observado

em casos de pseudotradução, em O Senhor dos Anéis, de J R. R. Tolkien –

como na maior parte de sua obra ficcional – o "tradutor" não aparece como

um indivíduo exterior à obra. O "tradutor-narrador" de Tolkien é personagem

da tradução fictícia que serve de moldura aos eventos narrados; e é somente

por meio de seu trabalho que a narrativa da saga pode existir.

Palavras-chave. pseudotradução; O Senhor dos Anéis; tradutor; personagem;

tradução fictícia.

Abstract. Pseudotranslation is a technique in which an original text is

presented as being a translation. It has been used since Middle Ages for

diverse reasons: literary, stylistic, editorial and political, among others.

Unlike what is generally observed in cases of pseudotranslation, in J. R. R.

Tolkien's The Lord of the Rings – as well as in most of his fictional work – the

"translator" is not an individual outside the work. Tolkien's "translator-

narrator" is the character of the fictitious translation that works as a frame for

the account of the events; and it is only through his work that the saga can be

told.

Keywords. pseudotranslation; The Lord of the Rings; translator; character;

fictitious translation.

O Senhor dos Anéis: quando traduzir é criar Em seu ensaio "Cuando la ficción vive en la ficción", Jorge Luis Borges fala

sobre como, tal qual pintores inserem quadros dentro de quadros, escritores inserem narrativas dentro de narrativas, criando perspectivas que se desdobram umas a partir das outras.

Não se sabe se durante a observação desse fenômeno a idéia de tradução tenha passado pelo menos de leve pelo pensamento de Borges. No entanto, sem sequer resvalar o assunto, ele oferece uma definição perfeita para a pseudotradução: uma ficção interpolada em outra ficção; por isso mesmo, o outro nome pelo qual ela é conhecida é "tradução fictícia".

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008 129

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Tecnicamente, a pseudotradução ocorre quando um texto original é apresentado como sendo uma tradução, e ela é uma prática utilizada desde a Idade Média por diversas razões, com objetivos variados.

As motivações mais comuns observadas pelos estudiosos1 para a concepção de um texto como pseudotradução são: 1) inserir um novo elemento numa cultura; 2) aventurar-se (um autor) num estilo diferente; 3) driblar a censura; 4) responder a interesses editoriais e comerciais; 5) conferir autoridade política ou religiosa a fim de convencer o público e conquistar simpatizantes e/ou adeptos para uma determinada causa ou doutrina.

Obras conhecidas, como Orlando Inammorato, de Mateo Maria Boiardo (1453), Dom Quixote, de Cervantes (1595/1605), Cartas Chilenas, de Tomáz Antônio Gonzaga (século XVIII) e O nome da rosa, de Umberto Eco (1980), são exemplos de pseudotradução, embora esse fato geralmente passe despercebido. Outros exemplos dignos de nota são canções e poemas em apoio ao regime stalinista quando de sua implantação na extinta União Soviética, parte da produção de ficção científica na Hungria entre 1989 e 1995 e o Livro de Mórmon, "revelado" por Joseph Smith em 1830, que levou à fundação da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien – assim como grande parte de sua obra ficcional – também foi concebido como uma pseudotradução. No entanto, observando-o em relação a cada uma das motivações apontadas acima, é possível concluir que nenhuma delas pode ser indicada como justificativa para o autor ter feito essa opção.

Motivo número um: Tolkien certamente não pretendia inserir um elemento novo na cultura de seu país, visto que, quando começou a escrever O Senhor dos Anéis, no final de 1937, a literatura de fantasia já estava praticamente consolidada como gênero e tinha entre seus maiores representantes vários escritores de língua inglesa.

Motivo número dois: Tolkien era um admirador e um paladino da literatura de fantasia e já havia publicado vários trabalhos no gênero, entre poemas e contos; além de O Hobbit, cujo grande sucesso editorial gerou a solicitação de uma seqüência, a qual se transformou em O Senhor dos Anéis.

Motivo número três: Tolkien não tinha necessidade de driblar a censura; seus escritos, acadêmicos ou ficcionais, não eram considerados perigosos em nenhum sentido. Talvez depois da publicação de O Senhor dos Anéis, alguns críticos e acadêmicos possam tê-lo considerado perigoso para o conceito vigente de literatura, e até mesmo tenham tido vontade de censurá-lo.

Motivo número quatro: Tolkien não escrevia para responder a nenhum tipo de exigência do mercado editorial. Embora, como ocorre em qualquer publicação, tenha existido a necessidade do estabelecimento de compromissos comerciais, tais compromissos eram meras relações de trabalho, não premissas que determinavam as escolhas do autor. O próprio Tolkien sempre afirmou que escrevia em primeiro lugar para sua satisfação pessoal2.

Motivo número cinco. Talvez este se aproxime um pouco de alguma motivação de Tolkien além de sua satisfação pessoal. No entanto, não do mesmo modo que nos casos das canções de apoio ao regime stalinista ou do Livro de Mórmon, que visavam respectivamente conquistar o apoio a uma nova ordem política e seguidores para uma nova religião. Defensor apaixonado da fantasia, Tolkien deve ter sido motivado pela

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idéia de provar seu ponto de vista e conquistar leitores para o gênero, porém sempre assinou suas criações como autor.

Quiçá a explicação que mais se aproxime de pelo menos uma parte da motivação de Tolkien seja a observada por Julio Cesar Santoyo em um artigo sobre pseudotradução (SANTOYO, 1984): uma escolha puramente estética. Além de defensor da fantasia, Tolkien era amante da literatura antiga, especialmente da poesia que remetia ao mito; paixão que embalava seu trabalho como professor, filólogo e tradutor e que inspirava sua produção ficcional.

Sentindo falta, em seu tempo, de uma literatura que produzisse nele a mesma emoção que aquelas obras, instigado pelo fascínio da pesquisa filológica e movido pelo desejo de criar uma mitologia genuinamente inglesa, travestiu-se de tradutor para criar uma narrativa no limiar da realidade e da fantasia.

Ao escrever O Senhor dos Anéis como se estivesse reunindo e traduzindo documentos antigos reveladores de uma época distante, Tolkien se comporta como mais que um tradutor; ele é um pesquisador: filólogo, arqueólogo, historiador, cujo papel é trazer à luz uma parte da história apagada da memória dos homens. Ao mesmo tempo em que constrói seu mito fictício, aproxima-o da realidade, fazendo uma ponte entre ele e o tempo Histórico da humanidade3. Sua narrativa, sempre construída de modo a autenticar a "veracidade" dos eventos, cria no leitor a sensação de estar realmente diante do relato de um passado possível da humanidade. Nessa mistura de estilos, ficcional e acadêmico, Tolkien é, ao mesmo tempo, artista, pesquisador e tradutor. Do lado de fora, aquele que cria e, dentro de sua criação, aquele que reúne, interpreta, traduz e relata.

O material utilizado pelo tradutor não é uma narrativa única, mas é composto de várias narrativas, dado que os personagens vivem situações diferentes paralelamente. É o encontro dos personagens durante o desenrolar e após a conclusão dos eventos que permite a unificação dos fatos numa narrativa comum. Surgem daí os "registros históricos" escritos pelos diversos participantes da saga, aos quais o tradutor teve acesso para sua composição.

O papel do tradutor, por conseguinte, vai além de verter textos de uma língua para outra. Ele reorganiza os fatos dentro de uma ordem lógica e cronológica, amarrando os detalhes individuais vividos pelos personagens a fim de proporcionar um panorama completo dos aspectos históricos, geográficos, sociais, culturais e emocionais. Nenhum acontecimento surge do nada e deixa de ser esclarecido; para tudo há uma explicação, um fundamento, uma fonte.

O trabalho do tradutor atinge verdadeiro status de pesquisa acadêmica, criando um tipo de ficção que confunde o leitor, não quanto à compreensão da obra, mas quanto a que tipo de obra ele está lendo: "ficção ou história?". Logicamente, sabe-se desde o princípio que se trata de ficção – não consta que a intenção do autor tenha sido criar tal ilusão. Porém, uma ficção engendrada de maneira a deixar um rastro de dúvida em relação a sua virtualidade.

O tradutor se configura como um personagem que não participa da trama, mas sabe cada um de seus detalhes. Note-se que, apesar de ser uma "tradução" de narrativas feitas em registros de participantes ativos na saga, em nenhum momento narra-se em primeira pessoa. Como reorganizador de documentos antigos, o tradutor conta a história de outros, eliminando o "eu" da narrativa.

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O foco narrativo é invariavelmente em terceira pessoa, sem que, no entanto, o narrador-tradutor se comporte como um Deus onisciente que conhece passado, presente e futuro e até os sentimentos e pensamentos mais profundos de cada personagem ativo da trama; ou, numa atitude contrária, se limite a contar os fatos sem passar pelo subjetivo. Como tradutor, o limite do que ele narra é o que foi dado a conhecer por esses personagens em seus registros, e seus comentários e intrusões na narrativa atêm-se também a esse conhecimento documental.

No texto "Da Tradução", parte II do Apêndice F de O Senhor dos Anéis, Tolkien incorpora declaradamente o papel de tradutor e, com rigor acadêmico, descreve sua metodologia de tradução, comenta e justifica suas escolhas. Esse texto funciona como uma "nota do tradutor" e é parte da ficção. Nele, o tradutor fictício emerge como personagem principal e Tolkien compõe uma história para sua "tradução". Como Velázques, que se retrata no quadro As Meninas, revelando o pintor em ação, ele se insere na obra revelando o autor-tradutor em pleno processo criativo.

Nessa tradução fictícia, na qual "tradução e criação são operações gêmeas"4, é somente pelo trabalho desse tradutor imaginário que podemos tomar conhecimento dos eventos. Para chegarmos ao espaço dos fatos narrados, precisamos passar pela antecâmara da tradução: uma ficção que dá acesso a outra ficção. Sem essa passagem a narrativa de O Senhor dos Anéis não seria possível, ou melhor, seria outra narrativa.

O tradutor de Tolkien não existe, mas tudo funciona como se ele de fato existisse e executasse todo um trabalho minucioso para revelar ao homem moderno parte de sua história perdida na distância do tempo.

Em O Senhor dos Anéis, a tradução não é pseudo, é ficção: criação e criadora. E o tradutor não é farsante, é personagem: criatura e criador.

Notas:

1. Os estudos mais aprofundados da pseudotradução são os de Gideon Toury; seus trabalhos são sempre citados por outros estudiosos do assunto.

2. CARPENTER, 1995a (cartas 163, p. 211 e 328, p. 412).

3. Os eventos narrados em O Senhor dos Anéis marcam o final da Terceira Era e o início da Quarta Era, ou Era dos Homens, que aponta para o Tempo Histórico conhecido. Para uma linha do tempo aproximada, ver KYRMSE, 2003.

4. Octavio Paz, citado por José Paulo Paes (PAES, 1990, p. 9).

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Diferenças estilísticas entre o autor e o auto-tradutor em Viva o Povo Brasileiro e An Invincible Memory*

Diva Cardoso de Camargo

Universidade Estadual Paulista (UNESP – IBILCE) [email protected]

Resumo. O estudo tem por objetivo identificar o estilo de João Ubaldo Ribeiro enquanto autor e enquanto tradutor de si mesmo no par de obras Viva o Povo Brasileiro e An Invincible Memory. A fundamentação teórica apóia-se nos estudos da tradução baseados em corpus (Baker, 1993, 1995, 1996, 2000, 2004; Camargo, 2005) e na lingüística de corpus (Berber Sardinha, 2004). O cálculo estatístico gerado para a razão forma/item padronizada mostra que o auto-tradutor Ubaldo Ribeiro (44,34) apresenta um resultado menor em relação ao autor Ubaldo Ribeiro (49,07), indicando menos diversidade vocabular na obra traduzida.

Palavras-chave. Tradução literária; estilo do tradutor; estudos da tradução baseados em corpus; lingüística de corpus; literatura brasileira traduzida.

Abstract. This paper aims at observing a particular case of an author’s and self-translator’s style in the pair of works Viva o Povo Brasileiro and An Invincible Memory. Our investigation has its theoretical starting point based on Corpus-Based Translation Studies (Baker, 1993, 1995, 1996, 2000, 2004; Camargo, 2005), and Corpus Linguistics (Berber Sardinha, 2004). By comparing the standardized type/token ratio of the translation and its respective original, the result shown by the self-translator Ubaldo Ribeiro (44.34) indicates a lower difference in relation to the result presented by the author Ubaldo Ribeiro (49.07).

Keywords. Literary translation; translator’s style; Corpus-Based Translation Studies; Corpus Linguistics; translated contemporary Brazilian Literature.

1. Introdução Nos últimos anos, alguns teóricos da tradução têm enfatizado a presença do

tradutor; no entanto, não apresentam nenhuma demonstração dos traços efetivamente deixados nos textos traduzidos (TTs). Venuti (1995, 1998) recrimina a transparência como efeito ilusionístico da presença do autor que seria [supostamente] alcançada pelas estratégias da tradução “domesticadora” e advoga a visibilidade do tradutor por meio de estratégias de resistência da tradução “estrangeirizadora”, mas sem explicitar quais seriam as marcas de uma “fidelidade abusiva”. De modo análogo, Hermans (1996) claramente reconhece a voz do tradutor; porém, focaliza principalmente a “voz do outro” no que tange ao emprego auto-referencial de primeira pessoa nas notas do tradutor.

No que concerne à sua presença e à noção de estilo, poderíamos incluir a escolha da parte de cada tradutor de material a ser traduzido, a utilização consistente de

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estratégias tradutórias e, sobretudo, o modo de expressão que é típico de um dado tradutor (mais do que simplesmente instâncias de intervenção aberta de material extratextual).

Por seu turno, mesmo com as disciplinas da crítica literária, da estilística e dos estudos da tradução não tendo chegado a um consenso geral sobre a concepção de estilo, Munday (1997: 117) explica que a estilística computacional (embora sendo ainda uma disciplina relativamente nova, e não existindo um arcabouço consolidado para estudos na área) parece já ter mais estabelecido o conceito básico de perfil estilístico apoiado em medidas estatísticas. No campo geral da estilística computacional, o conceito de estilo é visto como um fenômeno quantitativo, destacando-se as linhas de investigação desenvolvidas por Leech e Short (1981) sobre freqüência e estilo, e por Biber (1986) sobre análise de características múltiplas. Butler (1990), outro pesquisador importante nesse campo, descreve estudos que usam a estatística para observar aspectos estilísticos de determinados textos, autores e gêneros, e para examinar grandes quantidades de características lingüísticas de textos individuais (incluindo a freqüência e a extração de palavras mais comuns) numa tentativa de isolar o perfil estilístico ou “marca digital”, útil em casos de atribuição de autoria ou de determinação da cronologia dos textos. Contudo, Munday (ibidem) é de opinião que “deveria ser possível desenvolver um perfil estilístico amplo, além de sistemático, dos corpora sem ter de recorrer a estatísticas demasiadamente complexas de freqüência de palavras”1 .

Nesse sentido, os estudos da tradução baseados em corpus têm trazido importantes contribuições para a teoria e prática tradutórias ao procurar descrever o que o tradutor realmente faz com a língua de chegada (LC).

2. Perspectiva teórica Dado que o conceito de estilo tem-se mostrado ainda de difícil definição, esta

investigação sobre o estudo do estilo do auto-tradutor representado no corpus de estudo optou por fundamentar-se na noção fornecida por Baker, que entende:

estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa [no TT] por uma variedade de características lingüísticas [...] as quais estão provavelmente mais no domínio do que algumas vezes é chamado de “estilística forense” que no da estilística literária (Leech & Short, 1981: 14). Tradicionalmente, a estilística literária focaliza o que se assume serem escolhas lingüísticas conscientes da parte do autor, porque os estilistas literários estão principalmente interessados na relação entre as características lingüísticas e a função artística, em como um dado autor obtém certos efeitos artísticos. Por outro lado, a estilística forense tende a focalizar hábitos lingüísticos razoavelmente sutis e moderados que estão bem acima do controle consciente do autor e que nós, como receptores, registramos, na maioria das vezes, de forma subliminar. Todavia, como ambos os ramos da estilística, estou interessada em padrões de escolha (quer essas escolhas sejam conscientes ou subconscientes) mais do que em escolhas individuais isoladas2. (BAKER, 2000: 245-6).

Com o propósito de observar padrões de escolha estilística do auto-tradutor selecionado para análise, o termo “estilo” é definido no âmbito deste estudo como o perfil de seus hábitos lingüísticos individuais, recorrentes, preferenciais e distintivos, referentes à variação e diversidade de vocabulário, a qual pode ser medida em termos da razão forma/item (type/token ratio). Dentre as diferentes concepções de estilo

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oferecidas pela literatura e pela lingüística, proponho, com base em Baker (2000), esta noção de estilo focalizada em padrões de variação vocabular empregados pelo tradutor por mostrar-se a mais adequada às necessidades da presente investigação.

Com referência à linguagem do TT, a utilização de corpora eletrônicos paralelos ou comparáveis possibilita maior amplitude e funcionalidade para estudos da natureza da tradução e do uso do léxico. Investigações realizadas no Centre for Translation and Intercultural Studies − CTIS têm detectado certas características recorrentes (Baker, 1996: 180-184) que se apresentam tipicamente na tradução.

Dentre os traços recorrentes, um dos que mais especificamente se relacionam com este trabalho é a simplificação (Baker, ibidem), que pode ser identificada como uma tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem empregada na tradução, como, por exemplo, a utilização de uma quantidade maior de repetições em relação à obra original. Uma medida possível de traços de simplificação é fornecida pela razão forma/item (FI), por permitir o exame da variação e diversidade de vocabulário empregadas pelo tradutor e pelo escritor num dado corpus ou corpora. São contadas todas as palavras corridas (running words ou tokens) nos textos, e cada forma ou vocábulo (type) é contado apenas uma vez a fim de identificar padrões de repetição nos TTs e nos texto originais (TOs). Por exemplo, o fragmento: “I shall answer you. I shall answer that question with another question, even though, ha-ha, l am not a Jesuit” contém 20 itens (tokens), mas somente 15 formas (types), porquanto há 3 itens para a forma: I e 2 itens para as formas: shall, answer e question.

Na maneira tradicional, a razão é obtida dividindo-se o total de formas pelo total de itens. Já na função WordList Statistics, disponibilizada pelo programa computacional WordSmith Tools, transforma-se esse valor em porcentagem: divide-se o total de formas pelo total de itens dividido por cem (Berber Sardinha, 2004). Desse modo, o cálculo gerado para esta pesquisa é o fornecido pelo WordList Statistics para a razão forma/item padronizada (standardised type/token ratio), apropriada para observação em textos de tamanhos diferentes. Ao contrário da razão FI, a forma FI padronizada calcula FI em intervalos regulares, ou seja, faz este mesmo cálculo por partes do texto e, depois, tira a média dos valores FI entre os vários trechos.

No tocante a outra característica apontada por Baker (1996: 180-184), destaca-se a explicitação, que consiste na tendência geral de explicar e expandir dados do TO, por meio de uma linguagem mais explícita, mais clara para o leitor do TT. Manifestações dessa tendência podem ser expressas sintática e lexicalmente, e podem ser observadas habitualmente, em relação aos TOs, como a maior extensão dos TTs, o emprego exagerado de vocabulário e de conjunções coordenativas explicativas.

Com referência ao material, a compilação dos subcorpora de TO e TT teve por objetivo a observação de padrões estilísticos de um caso particular de um escritor e também tradutor de si mesmo. Com esse propósito, o critério de seleção favoreceu uma obra da literatura brasileira, escrita por um autor contemporâneo de renome internacional, com vários livros traduzidos em diferentes idiomas. Em Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro faz uma experimentação de estilos e vozes narrativas que marca todo o desenvolvimento do tempo e da ação ficcional em um tipo de “mock-heroic epic”. A obra aborda o problema da decantada procura de uma identidade nacional, e revisita o Brasil em três épocas: o século XVII com a colonização, o século XIX com o mito das narrativas de fundação, e o século XX com as ditaduras. No

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romance, destaca-se a forte presença da cultura popular, com manifestações das religiões afro-brasileiras, festas, costumes, lendas, bem como expressões variadas e fragmentos de “língua de preto” (conforme notados por Pasta Júnior, 2002). Já na tradução, Ubaldo Ribeiro recria a própria ficção sobre a história moral do sofrido povo brasileiro, traduzindo para uma língua estrangeira e para leitores com sensibilidades e vivência cultural distintas.

Para uma observação do seu perfil estilístico, procurei identificar usos lingüísticos característicos e individuais, ou seja, traços de seu comportamento lingüístico relacionados à variação vocabular, efetuando comparações internacorpus − na obra traduzida (variação intratextual), − na obra traduzida em relação à respectiva obra original (variação intersubcorpora da pesquisa); e ainda estabelecendo comparações externacorpora − na obra traduzida com os corpora de referência Translational English Corpus − TEC, e British National Corpus − BNC; bem como − na obra original com o corpus de referência Banco de Português − BP (variações interna e externacorpora).

3. Resultados e discussão A razão de formas em relação aos itens (ocorrências) indica a variedade de

vocábulos (formas) em um determinado texto ou corpus de tradução. De acordo com o programa WordSmith Tools, se for empregado um grande número de repetições, pode-se esperar uma razão FI mais baixa; em decorrência, havendo maior diversidade de vocabulário a razão FI tenderia a ser mais alta.

Contudo, é preciso ter cuidado no uso da razão forma/item. Esse cálculo estatístico é extremamente sensível ao comprimento do texto, uma vez que as palavras têm maior probabilidade de se repetirem em textos mais extensos, conseqüentemente levando a uma razão FI mais baixa. Por esse motivo, costuma-se utilizar a razão FI padronizada.

3.1. Alguns padrões distintivos de vocabulário entre o TT e o TO (comparações internacorpus)

A fim de observar a distribuição de itens e formas no corpus de TT e de TO, foram extraídas as Tabelas 1-2:

Tabela 1. Estatística do TT pelo auto-tradutor João Ubaldo em relação ao TO do autor

Subcorpus de TT Subcorpus de TO An Invincible Memory Viva o Povo Brasileiro

Itens (tokens) 256.951 236.300Formas (types) 18.075 25.113Razão FI pdr (Stnd tt ratio) 44,34 49,07

Tabela 2. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o TO

Resultado do TT pelo auto-tradutor

Razão FI pdr 44,34

Diferença da razão FI padronizada

Resultado do TO do autor Razão FI pdr 49,07 4,73

Procedi, separadamente, a comparações dos textos, a fim de examinar se o uso de vocabulário na obra traduzida para o inglês é mais ou menos variado do que o da respectiva obra originalmente escrita em português. Algumas evidências puderam ser encontradas nas variações intratextuais.

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Para as comparações do par de obras consideradas individualmente, a distribuição dos itens e das formas (Tabela 1) aponta, em termos absolutos, que esse TT registra, como esperado com base no princípio de explicitação, um número mais alto de itens (256.951) e um menor número de formas (18.075) em relação ao respectivo TO (236.300 itens e 25.113 formas).

Por sua vez, uma indicação de que haveria um uso menos ou mais variado de vocabulário no TT é fornecida pelo exame da razão FI padronizada ou densidade lexical simples e em intervalos regulares. Para An Invincible Memory tomada conjuntamente em relação a Viva o Povo Brasileiro, a forma padronizada gerada no TT (44,34) é menor em relação ao respectivo TO (49,07). A diferença de 4,73 (cf. Tabela 2) indica que existe, na verdade, menos palavras ‘diferentes’ na obra traduzida, o que mostra que há mais repetições nas escolhas efetuadas pelo tradutor de si mesmo. O comportamento lingüístico observado parece evidenciar uma maneira de tornar a tradução mais fácil de ser processada pelo leitor de língua inglesa, confirmando o princípio da simplificação.

Contudo, é necessário ter em mente, de um lado, que as listas de palavras e as estatísticas disponíveis para este tipo de estudo, geradas pelo WordSmith Tools, versão 4, são ainda incipientes, porque o programa permite somente a identificação de repetições exatas de palavras, não sendo sensível a tipos de palavras resultantes das variantes morfológicas. Por outro lado, esse programa computacional possibilita a busca de padrões lexicais na totalidade dos textos que compõem o corpus, o que, provavelmente, não seria exeqüível de ser obtido na mesma extensão apenas pela análise manual.

3.2. Alguns padrões distintivos de vocabulário do TT em relação ao TEC e ao BNC (comparações externacorpora)

A fim de distinguir entre a variação de vocabulário empregada pelo auto-tradutor e a encontrada no inglês traduzido, foi examinado um corpus de referência: o Translational English Corpus − TEC. Nesse corpus, os textos estão compilados na íntegra, englobando quatro tipologias textuais: ficção, revistas de bordo, biografia e artigos de jornais. O tipo de texto predominante é o ficcional, que abarca 82% do total do corpus e 84 arquivos por ocasião da coleta de dados efetuada para este trabalho; como os outros tipos de texto constituem apenas uma pequena porção do TEC, somente o subcorpus de textos de ficção foi aqui considerado para fins estatísticos. As traduções armazenadas no TEC são realizadas por tradutores falantes nativos de língua inglesa, e a maior parte desses TTs foi feita a partir de 1983. Os dados extraídos do TEC constam da tabela abaixo:

Tabela 3. Estatística do corpus de referência TEC

TEC Subcorpus de ficção Itens 5.848.203Formas 70.700Razão FI padronizada 44,53

Tabela 4. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o TEC

Resultado do TT pelo auto-tradutor

Razão FI pdr 44,34

Diferença da razão FI padronizada

Resultado do TEC Razão FI pdr 44,53 0,19

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No TEC, há 5.848.203 itens e 70.700 formas, e uma razão FI padronizada de 44,53 (Tabela 3). Já o cálculo efetuado para o TT An Invincible Memory, ao gerar um resultado de 44,34, mostra um valor ligeiramente menor do que a forma padronizadada apresentada pelo TEC. Conforme a Tabela 4, os dados revelam uma diferença muito pequena para o auto-tradutor João Ubaldo (0,19), indicando uma variação próxima do empate quanto ao padrão vocabular do seu TT em comparação ao uso de padrões lexicais registrados por parte dos tradutores representados no TEC.

Por sua vez, com o propósito de observar a linguagem empregada pelo tradutor de si mesmo em relação à linguagem normalmente usada em textos originalmente escritos em inglês, utilizei o corpus de referência British National Corpus − BNC. É considerado um marco histórico por ter sido o primeiro corpus eletrônico a conter cem milhões de palavras no inglês britânico, escrito e falado; ainda é, dentre os mega-corpora, o único disponível para compra. De modo análogo ao TEC, os TOs compilados para o BNC são produzidos por autores falantes nativos de língua inglesa. Diferentemente do TEC, porém, os tipos de texto predominantes são os de língua geral; o subcorpus de textos de ficção do BNC contava, no momento da coleta para este estudo, com 485 arquivos e alguns dos textos são fragmentos − ainda que com a extensão de 40.000 a 50.000 palavras. Por essa razão, tanto o BNC como o subcorpus de textos de ficção do BNC foram tomados em consideração na tabela abaixo:

Tabela 5. Estatística do corpus de referência BNC

BNC BNC Ficção Itens 90.748.880 19.444.150Formas 377.784 101.577Razão FI padronizada 44,04 41,54

Tabela 6. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o BNC

Resultado do TT pelo auto-tradutor

Razão FI pdr 44,34

Diferença da razão FI padronizada

Resultado do BNC Razão FI pdr 44,04 0,30Resultado do BNC ficção Razão FI pdr 41,54 2,80

De acordo com a Tabela 5, no BNC há 90.748.880 itens e 377.784 formas, o que corresponde a uma razão FI padronizada de 44,04. No subcorpus de ficção do BNC, os dados levantados mostram 19.444.150 itens e 101.577 formas, gerando uma razão FI padronizada de 41,54.

No que concerne ao cálculo estatístico gerado para o tradutor de si mesmo (Tabela 6), a forma padronizada de 44,34 é só um pouco maior, com uma diferença de apenas 0,30 do que a gerada para o BNC (44,04); já em relação à forma padronizada extraída do subcorpus de ficção do BNC (41,54), passa a ser mais alta com uma diferença de 2,80. Esses dados indicam que João Ubaldo emprega, no seu TT em inglês, uma variação vocabular similar à encontrada nos TOs do BNC e maior do que a presente no BNC ficção.

3.3. Alguns padrões distintivos de vocabulário entre o TO e o BP (comparação externacorpora)

Com a intenção de obter um parâmetro similar a respeito da linguagem utilizada pelo autor em relação à linguagem habitualmente empregada em textos originalmente escritos em português, foram efetuados os mesmos procedimentos entre o TO e o corpus

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de referência Banco de Português − BP, sediado na Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP − LAEL). A versão 2.0 do Banco de Português possui 660 milhões de palavras, de português contemporâneo do Brasil. A preponderância é de textos acadêmicos (52%), jornalísticos (34%) e debates do congresso nacional (12%). Como o conjunto de textos literários constitui apenas uma pequena parte do BP, foram utilizados os dados totais para o levantamento estatístico, os quais podem ser observados na tabela abaixo:

Tabela 7. Estatística do corpus de referência BP

BP Itens 230.460.560Formas 607.392Razão FI padronizada 46,08

Tabela 8. Diferença da razão FI padronizada entre o TO e o BP

Resultado do TO pelo autor

Razão FI pdr 49,07

Diferença da razão FI padronizada

Resultado do BP Razão FI pdr 46,08 2,99

No BP, de acordo com os resultados obtidos por ocasião da coleta (Tabela 7), há 230.460.560 itens e 607.392 formas, e uma razão FI padronizada de 46,08.

A respeito do autor João Ubaldo (Tabela 8), a forma padronizada de 49,07 é maior do que a extraída para o BP (46,08), com uma diferença de 2,99. Tais resultados mostram que, enquanto autor, João Ubaldo utiliza, no seu TO em português, uma variação vocabular mais alta do que a encontrada nos TOs do BP. A diferença acentua-se mais se comparada na relação autor/tradutor que, conforme a Tabela 2, atinge a ordem de 4,73 diante do respectivo TT em inglês.

A diversidade de vocabulário já era esperada para o escritor João Ubaldo, uma vez que a crítica literária enfatiza a sua habilidade na exploração do verbo brasileiro, e que o seu TO apresenta uma predominância de termos culturalmente marcados.

4. À guisa de conclusão Como já comentado acima a respeito das deficiências nas listas de palavras e de

estatísticas do programa WordSmith Tools, não é possível fazer conclusões definitivas para as comparações automáticas geradas pelo software para esta investigação. No entanto, os resultados da razão forma/item padronizada sugerem diferenças acentuadas tanto entre a obra traduzida e a obra original como também entre, respectivamente, o subcorpus de ficção do BNC e o corpus de referência BP, que parecem validar o exame proposto.

O acesso ao corpus paralelo tornou possível a identificação de uma freqüência acentuadamente mais baixa nos padrões estilísticos do TT em relação aos do TO, o que significa que, embora o auto-tradutor João Ubaldo Ribeiro registre uma forma padronizada alta (44,34), o seu comportamento lingüístico apresenta uma diversidade lexical menor do que o autor João Ubaldo Ribeiro (49,07).

Em contraste, levando em conta o processo de simplificação, seria esperada uma freqüência mais baixa de formas (types) para um dado tradutor em relação ao BNC. Mesmo com a restrição de apenas um par de obras para este estudo de pequena escala, o uso do corpus paralelo em formato eletrônico permitiu observar que o auto-tradutor

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João Ubaldo também apresenta maior diversidade de usos de padrões lingüísticos e menor repetição vocabular do que os padrões registrados nos textos ficcionais escritos originalmente em inglês armazenados no subcorpus de ficção do BNC (41,54).

Desta feita, se considerarmos a razão FI padronizada como uma indicação do emprego que os tradutores fazem da linguagem, pode-se destacar, apesar da influência de possíveis variáveis, que é significativa a diferença apresentada por João Ubaldo, enquanto auto-tradutor, em relação a João Ubaldo, enquanto autor. Os resultados observados revelam marcas próprias, individuais e recorrentes da utilização de padrões estilísticos preferenciais e distintivos desse tradutor de si mesmo, as quais evidenciam o impacto da extensão dessa diferença, respectivamente na obra traduzida para o inglês An Invincible Memory em comparação com a obra originalmente escrita em português Viva o Povo Brasileiro.

Nota * Parte deste estudo baseia-se em trabalho preliminar apresentado na “ACLA 2007 Conference”, patrocinada pela American Comparative Literature Association, em Puebla, México, de 19 a 22/04/2007 (Auxílio FAPESP, proc. 2007/00516-5). A autora também agradece o apoio da FAPESP (04/13154-7) e CNPq (303029/05-6).

1 [...] it should be possible to carry out a broad, yet systematic, stylistic profiling of corpora

without resorting to overcomplex word statistics. [A tradução das citações é de minha responsabilidade.] 2 style as a kind of thumb-print that is expressed in a range of linguistic features [...] which are probably more in the domain of what is sometimes called “forensic stylistics” than literary stylistic (Leech & Short, 1981, p. 14). Traditionally, literary stylistics has focused on what are assumed to be conscious linguistic choices on the part of the writer, because literary stylisticians are ultimately interested in the relationship between linguistic features and artistic function, in how a given writer achieves certain artistic effects. Forensic stylistics, on the other hand, tends to focus on quite subtle, unobtrusive linguistic habits which are largely beyond the conscious control of the writer and which we, as receivers, register mostly subliminally. But like both branches of stylistics, I am interested in patterns of choice (whether these choices are conscious or subconscious) rather than individual choices in isolation.

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O impacto das novas tecnologias no tempo e na qualidade da produção tradutória

Érika Nogueira de Andrade Stupiello

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Universidade Estadual Paulista (Unesp) [email protected]

Abstract. The technological advances reached in the so-called digital era have fostered deep and definite changes in the practice of translation and the expectations sustained for the translator s work. On the one hand, machine translation and translation memory programs are currently deemed as helpful tools to keep the translator's performance competitive. On the other, these tools may be nurturing the illusion of instantaneity, or that texts may be translated at almost the same speed as that of their receipt and transmission. This paper aims to contemplate how the new technologies have been reshaping the conception of time and quality in translation, mainly with regard to the relationship between translators and clients.

Keywords. translation memories; machine translation; technology; translation; translator

Resumo. Os avanços tecnológicos alcançados na chamada era digital têm promovido profundas e definitivas mudanças na prática de tradução e nas expectativas sustentadas para o trabalho do tradutor. Por um lado, programas de tradução automática e memórias de tradução são atualmente considerados ferramentas úteis para manter a competitividade do desempenho do tradutor. Por outro, tais ferramentas podem estar promovendo a ilusão da instantaneidade, ou seja, de que textos traduzidos podem ser produzidos quase na mesma velocidade em que são recebidos e transmitidos. Este trabalho busca refletir sobre como as novas tecnologias têm redefinido a concepção de tempo e de qualidade de produção tradutória, principalmente, a relação entre tradutores e clientes.

Palavras-chave. memórias de tradução; tradução automática; tecnologia; tradução; tradutor

Introdução

O desenvolvimento de ferramentas eletrônicas de auxílio à tradução em muito tem

transformado o trabalho do tradutor contemporâneo. Traduzir nos dias de hoje envolve,

principalmente, estar munido de dicionários eletrônicos, glossários e bancos de dados na

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internet, e, na maioria das vezes, abrange também utilizar programas de tradução

automática e de memórias de tradução. A velocidade com que a informação é produzida e

necessita ser utilizada em diferentes partes do mundo requer o emprego de meios que

confiram agilidade à produção tradutória. De acordo com Biau Gil e Pym (2006), o uso de

ferramentas eletrônicas afeta a comunicação (entre clientes e tradutores e tradutores entre

si), os textos (que se tornam combinações temporárias de conteúdo) e a memória (quanta

informação é possível recuperar e com que velocidade).

A primeira mudança a qual os autores se referem envolve a comunicação

cliente/tradutor. Se já é notório que a internet derrubou as barreiras da distância física à

comunicação, é possível afirmar que ela também conferiu aos tradutores uma mobilidade

extraterritorial, abrindo-lhes portas a clientes nos mais remotos locais. Todavia, o acesso a

esse mercado potencial e a expectativa de que as práticas de tradução se tornem também

globalizadas parecem ainda encontrar certa resistência, uma vez que, conforme

argumentam Biau Gil e Pym, a tradução ainda é um serviço que depende de um alto grau

de confiança entre o tradutor e o cliente (2006:7). Por esse motivo, a busca por tradutores

para projetos de grande porte muitas vezes ainda depende de um contato direto entre cliente

e tradutor, geralmente possibilitado por indicação. Por outro lado, a indicação de um

tradutor hoje já não é mais restrita à distância física. Outro fator que influencia a busca é a

lei da oferta, a qual a internet também se encarregou de tornar abundante. Conforme aponta

Esselink (2001, apud CRONIN, 2006:46), a qualidade de um texto, traduzido no país da

língua de chegada, é em geral mais alta e o preço muitas vezes bem mais baixo .

A concepção de texto também é influenciada pelas mudanças de nossa era. É cada

vez mais incomum se pensar em um texto linear, como tradicionalmente se conhecia, mas

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em um texto eletrônico que se comunica com outros textos por um simples clique do mouse

em um link específico. Para Biau Gil e Pym, os links mostram como os textos são

produzidos em uma grande rede de comunicação virtual, sem início e fim demarcados,

como reconhecidos pela tradição. Essa configuração atual dos textos apresentados ao

tradutor modifica enormemente sua maneira de trabalhar. Se, anteriormente, o tradutor

tinha como ferramentas básicas seus diversos dicionários impressos, hoje eles estão cada

vez mais em formato eletrônico e são compartilhados e, muitas vezes aumentados, por

diversos tradutores em um mesmo projeto. Uma outra inovação na prática tradutória,

relacionada à adoção de programas de tradução automática e de memórias de tradução, está

no fato de que, freqüentemente, os tradutores já recebem o texto, com o qual trabalharão,

parcialmente traduzido de modo automático ou semi-automático. Também é comum o

trabalho de atualização de conteúdos já traduzidos e que requeiram somente tradução de

novos trechos inseridos ao original.

A tradução preliminar de textos é, em algumas situações, realizada por programas

de tradução automática, atualmente considerados eficazes em meios bastante restritos,

como na tradução do jargão técnico e repetitivo de manuais. O emprego desses programas,

por outro lado, exige um aparente engessamento do texto original, o qual seria atingido

pela elaboração de textos com língua de partida supostamente controlada, envolvendo

construções lingüísticas padronizadas que permitiriam o reconhecimento, ainda que parcial,

por programas automáticos desenvolvidos para esses fins.

Outro recurso usado visando a acelerar a produção tradutória é a recuperação

eletrônica de traduções anteriores, possibilitada pelo uso de programas de memórias de

tradução. Esses programas são desenvolvidos para possibilitar o pareamento de trechos de

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texto original e de sua respectiva tradução para reaproveitamento em traduções posteriores.

Como explicam Biau Gil e Pym (2006:8), em alguns setores, o uso de ferramentas de

memórias de tradução acelerou o processo tradutório e diminuiu seus custos, e isso levou a

um aumento na demanda por serviços de tradução . Um dos argumentos mais fortes em

favor da adoção dos programas de memórias estaria no fato de eles não representarem uma

ameaça à substituição do trabalho do tradutor como pareciam ser os primeiros projetos de

tradução automática , mas de serem um adjunto importante na realização de tarefas

repetitivas, como traduções de termos, expressões e trechos recorrentes.

Se os programas de memória não ameaçam tomar o espaço do tradutor, certamente

têm demonstrado o poder de mudar a maneira como este traduz. A utilização desses

programas, seja por escolha do tradutor, por critérios impostos pelo cliente ou por ambas as

situações, só é eficaz se forem respeitadas as opções terminológicas ou fraseológicas

armazenadas na memória, deixando muito pouco ou quase nenhum espaço para as escolhas

pessoais do tradutor. Além disso, pressupõe-se que o uso dos recursos disponibilizados

pelos programas de memórias possibilite que a tradução seja necessariamente melhor

elaborada e mais consistente, por dispensar a atenção do tradutor das tarefas repetitivas e

por permitir que ele se concentre no que a memória não recuperou.

Atendo-se à questão do impacto do emprego das memórias de tradução no trabalho

do tradutor contemporâneo, busca-se, a partir de agora, analisar como as concepções de

tempo e de qualidade da produção tradutória se redefinem quando se associa a qualidade de

uma tradução à crença de que seria possível recuperar significados de trabalhos anteriores.

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A qualidade da produção tradutória redefinida pelas noções contemporâneas de tempo e espaço

As noções de tempo e espaço são diretamente afetadas pela revolução da

comunicação promovida pela internet. Transmitir e receber informações eletronicamente

dispensou por definitivo a exigência de movimentos de corpos físicos, que podem se limitar

hoje a inserir comandos em teclados para permutar mensagens a tempo real. Bauman

(1999) vislumbra essa realidade como responsável pela independência que os objetos

ganharam dos meios sobre os quais informam. Conforme explica,

a separação dos movimentos da informação em relação aos movimentos dos seus portadores e objetos permitiu por sua vez a diferenciação de suas velocidades; o movimento da informação ganhava velocidade num ritmo muito mais rápido que a viagem dos corpos ou a mudança da situação sobre a qual informava. (BAUMAN, 1999: 21-2)

A instantaneidade com que mensagens, textos e documentos de naturezas diversas

viajam e são disponibilizados em diversas partes do planeta exige que todo conhecimento

produzido possa ser entendido e processado com a mesma velocidade, requerendo, para

isso, que o trabalho de tradução disponibilize essas informações em outras línguas também

de maneira instantânea.

Além disso, o caráter efêmero das informações produzidas impõe um ritmo

acelerado à atividade tradutória, ritmo esse que parece não constituir um problema, uma

vez que é bastante disseminada a idéia de que traduzir envolveria basicamente transmitir

um significado já constituído em uma língua para outra, portanto, sendo de possível

recuperação com o uso de programas de memórias, por exemplo.

No momento em que se associa o dinamismo da produção tradutória à capacidade

de recuperação de significados já prontos e, de certa forma, válidos em contextos diversos,

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passa-se a considerar a figura do tradutor muito mais como a de um transmissor de

significados de uma língua para outra, ignorando-se o trabalho de mediação inerente a

qualquer ato de tradução. A abordagem da tradução, isolada de suas condições sociais de

produção e recepção, parece ser favorecida pelo crescente aumento do uso de ferramentas

que, idealmente, permitiriam uma recuperação rápida da informação e seu envio quase

instantâneo.

Por outro lado, o conhecimento profundo e histórico de línguas e culturas, que

exige tempo e esforço, não é sempre valorizado em uma cultura em que a informação é

onipresente (CRONIN, 2003:21). Ao mesmo tempo em que se constata a imensa

quantidade de informação disponibilizada e, muitas vezes, à espera de uma desejada

transmissão para outras línguas, percebe-se que grande parte do que se produz atualmente

tem caráter efêmero e, por esse motivo, requer uma tradução que atenda, acima de tudo, aos

prazos exíguos impostos pelo mercado. Com o foco no produto final, considerar a

mediação do tradutor como parte do processo parecer ir contra o fluxo urgente de

transmissão de informações e de comunicação, em que são valorizadas trocas rápidas e

presumidamente diretas. Conforme explica Cronin:

de fato, a tendência em um mundo de compressão tempo-espaço é favorecer intercâmbios de primeira ordem em detrimento daqueles de segunda ordem, isto é, transações rápidas limitadas em tempo e envolvendo contato limitado em detrimento de compromissos mais longos, multidimensionais e complexos. (CRONIN, 2003:49)

Para Cronin, a pressão exagerada que a tecnologia da informação exerce sobre o

modo como nos comunicamos faz com que a atenção seja deslocada do processo para o

produto, ignorando-se a dificuldade e o tempo exigido para que o tradutor construa a

comunicação entre línguas diferentes. Em um mundo que valoriza o imediato, a tradução

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parece ser um incômodo justamente por ser uma lembrança viva das diferenças entre

línguas e culturas que, embora pareçam mais próximas com os avanços promovidos na

comunicação, ainda mantêm suas particularidades, afinal, a proximidade técnica não

elimina a distância cultural (CRONIN, 2003:49).

Com base na afirmação de Cronin, é possível indagar se os recursos tecnológicos

desenvolvidos e disponibilizados nas últimas décadas aos tradutores, especialmente os

programas de memórias de tradução, não estariam gerando a impressão de serem capazes

aliviar os desafios das particularidades e das variações das línguas, ao oferecerem a

possibilidade de recuperação de trechos de traduções anteriores, as quais são

ordenadamente armazenadas na memória ao lado dos respectivos trechos do texto original.

A idéia de reciclagem constitui a base dos programas de memórias e, por esse motivo,

um texto a ser traduzido é tratado como um conjunto de segmentos , que são armazenados

na memória para uso posterior (BOWKER, 2002:92-3).

A expectativa criada pela aplicação de programas de memória de tradução seria a de

que, com a possibilidade de reaproveitamento de traduções anteriores, o tradutor

necessariamente ganhará tempo no trabalho, o que pode ser um atrativo importante para um

mercado que demanda traduções com prazos cada vez menores. Segundo Bowker

(2002:115), a idéia de economia de tempo pode ser um mito, principalmente quando se

considera o tempo que o tradutor deve investir para dominar os programas disponíveis,

sendo que, nem sempre o programa de preferência do tradutor é aquele também escolhido

por quem contrata um projeto de tradução. Além disso, considera-se essencial que o

tradutor desenvolva uma sensibilidade que lhe permita estabelecer o grau de semelhança,

entre segmentos do original e da tradução, que pretende utilizar em um trabalho. Como

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explica Bowker, se o grau de equivalência ajustado no programa for muito alto, as

chamadas equivalências difusas [fuzzy matches], correspondência parciais entre original e

tradução, poderão não ser recuperadas. Por outro lado, se o limite for baixo demais, o

programa pode apresentar opções de tradução consideradas inúteis. Por esse motivo,

Bowker relata que alguns tradutores sentem que editar uma equivalência difusa pode levar

mais tempo do que traduzir um segmento a partir do nada (BOWKER, 2002:116).

Uma outra questão que parece ser ignorada, quando se estabelece como prioridade

uma redução substancial de tempo para execução de uma tradução, estaria na variação

semântica que as opções armazenadas na memória podem sofrer ao longo do tempo. Não

há como garantir que segmentos traduzidos e armazenados na memória manterão o mesmo

significado em tempos e contextos diferentes. Embora tradutores e clientes possam

declarar-se cientes que tais variações acontecem, Bowker sugere que existe o receio de que

alguns tradutores que trabalham com prazos curtos demais possam recorrer rápido demais

às opções oferecidas pela memória, substituindo cegamente as traduções propostas sem

verificar sua exatidão (2002:117).

A possibilidade de ganho de tempo mediante substituição rápida de segmentos

originais por aqueles traduzidos teria influência já na maneira como o tradutor lida com o

texto a ser traduzido, um fato com conseqüências diretas na qualidade do texto final. Se a

eficiência das memórias atrela-se à rapidez de recuperação de opções armazenadas, e se a

utilização desses programas envolve a segmentação do texto original, o trabalho de

tradução passa a restringir-se ao nível da frase, ou do segmento delimitado entre pontos

finais pelo programa. O ganho de eficiência da memória pode estar sendo alcançado à custa

de um texto traduzido fragmentado, tratado como um conjunto de segmentos, e a rigidez

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da manutenção da mesma ordem e do número de frases no texto de chegada, como

encontrado no texto de origem, pode afetar a naturalidade e a qualidade da tradução

(BOWKER, 2002:117).

A adoção de programas de memórias de tradução não está necessariamente

associada a ganhos na qualidade da produção tradutória, mas, sim, em tempo. Em uma era

de constantes mudanças e avanços tecnológicos e com um crescente volume de

documentação a ser traduzida, os valores temporais podem estar passando a ser controlados

pela máquina, especialmente quando a contratação de um trabalho depende do domínio dos

programas disponíveis para fazê-lo. Entretanto, como bem lembra Cronin (2003:109), o

tempo da tradução não é o tempo da transmissão e textos e línguas resistem em suas

particularidades e desafios, os quais não se abrandam com a automação parcial do trabalho

do tradutor.

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Olhares sobre a violência no Brasil: as leituras do The New York Times e de sua tradução

Fernanda Cristina LimaPrograma de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos – Universidade Estadual Paulista

(UNESP) Campus de São José do Rio Preto – Bolsista FAPESP Proc. 05/[email protected]

Abstract. On the one hand, this paper aims to analyze the way The New York Times represents the violence associated with Brazil and the Brazilians. On the other hand, the paper examines how the translation of the issues into Portuguese deals with the cultural representation shaped by the newspaper. In this case, translation denies the representation of Brazil as a violent country with savage people and, as a result, is able to influence the way the Brazilians view the violence subject in Brazil.

Keywords. Translation; journalistic translation; cultural representation; violence; Brazil.

Resumo. Este trabalho analisa como o jornal norte-americano The New York Times realiza a representação da violência relacionada ao Brasil e aos brasileiros e a forma pela qual a tradução das notícias para o portuguêsreconstrói essa representação cultural. Neste caso, a tradução rejeita a representação do Brasil como um país violento e cujo povo é selvagem, o que pode influenciar no modo como os brasileiros vêem a violência em seu país.

Palavras-chave. Tradução; tradução jornalística; representação cultural; violência; Brasil.

Os estudos a respeito do discurso jornalístico têm reconhecido que, longe de simbolizar uma prática totalmente imparcial e neutra, o ato de noticiar implica, em algum nível, a veiculação de avaliações e interpretações a respeito daquilo que é noticiado (MARIANI, 1998). Nos casos em que as notícias tratam de determinados países, culturas e povos estrangeiros, é possível afirmar que os textos jornalísticos constroem representações culturais que são veiculadas para o público leitor do jornal e assumem assim também um papel ideológico, já que passam a orientar maneiras de olhar o Outro. De forma semelhante, a tradução, como o discurso dos jornais, é capaz de construir representações culturais e formar identidades nacionais, principalmentequando o texto a ser traduzido trata de nações e culturas (VENUTI, 2002).

Num caso em que essas duas práticas se juntam, ou seja, em que textosjornalísticos e veiculadores de representações culturais são traduzidos e, além disso,essa tradução tem como público aquele mesmo leitor retratado pelas notícias, estabelece-se uma situação em que se amplia o poder da escrita tradutória de construir,

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ratificar ou suavizar sentidos e representações culturais que moldam as formas de se olhar um país e seu povo (CARBONELL, 1996).

O presente estudo investiga o processo em que o jornal norte-americano The New York Times publica artigos a respeito da violência no Brasil. Percebe-se que, ao serem noticiados, esse país e seu povo são apresentados para o público estrangeiro por meio de representações culturais construídas pelo jornal, e que essas representações, por sua vez, influenciam na forma pela qual o Brasil e sua população são vistos pelo Outro.

Este trabalho examina ainda como a tradução dessas notícias para o português do Brasil veicula tais representações aos brasileiros, povo interpretado por elas. Neste caso a tradução possibilita, por um lado, que esse povo tenha contato com a maneira pela qual o estrangeiro o vê. Por outro lado, as notícias traduzidas podem evidenciartambém o olhar dos brasileiros sobre si mesmos, olhar que inevitavelmente é expressopela tradução devido ao seu poder de produzir sentidos, conforme lembra Arrojo (1992).

São diversas as representações culturais do Brasil e de seu povo perceptíveis nos textos publicados pelo New York Times. No presente trabalho, a representação estudada é a da violência como aspecto afim aos brasileiros e ao seu país. O foco deste trabalho é qual a leitura que o jornal estrangeiro realiza da questão da violência no Brasil e como a tradução das notícias, além de trabalhar com o olhar do Outro, permite que se perceba a forma como os próprios brasileiros vêem a violência em seu país.

O acesso às notícias foi realizado por meio do site do The New York Times, doravante NYT (disponível em www.nytimes.com). As traduções foram fornecidas pelo site do jornal Último Segundo, doravante US (www.ultimosegundo.ig.com.br/new_york_times) e do provedor UOL (www. uol.com.br/jornais), sendo que apenas essa última fonte informa o nome do tradutor das notícias.

A violência foi escolhida como representação cultural a ser estudada pelo fato de ser um aspecto freqüentemente associado ao caráter dos brasileiros. Sobre isso, o antropólogo norte-americano Joseph Page (1995, p. 11) declara que

a proclamada meiguice dos brasileiros freqüentemente oculta o lado obscuro de sua natureza – uma capacidade de violência extrema que passa como uma corrente suja por sob a história do país, do período colonial até os dias atuais.¹

De forma similar, Ginzburg (2003), refletindo sobre a melancolia na cultura brasileira, afirma que esta se deveria “à forte presença da violência em nossa história política e social” (p. 58). Para o autor, essa violência teria sido particularmente intensa e sistemática em períodos como a ditadura militar, mas não se restringiria a essa época, “perpassando a história do país” (p. 58). Em raciocínio semelhante, Schollhammer (2000) afirma que a violência tem um papel constitutivo na cultura brasileira.

De um modo geral, o NYT veiculou, no período de outubro de 2005 a maio de 2006, uma visão negativa a respeito da situação da violência no Brasil, e que se configura na representação de um país extremamente violento. Os três principais sub-temas das notícias sobre a violência foram: a abertura dos arquivos da ditadura militar, acampanha pelo desarmamento promovida pelo governo federal brasileiro em 2005 e a

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onda de assassinatos provocada pelo crime organizado no estado de São Paulo no ano de 2006. Nos cinco exemplos analisados a seguir são apontados os principais elementos que levam à caracterização de um Brasil violento.

O exemplo (1), que trata da abertura dos arquivos ditatoriais, é o título de umanotícia escrita por Larry Rohter, publicada em 25 de dezembro de 2006 e traduzida pelos dois sites, sendo a tradução do UOL de George Andolfato.

(1) Brazil Opens Former Dictatorship’s Files, a Bit (NYT, acesso em: 25 dez. 2005)

Brasil abre arquivos dos antigos governos militares (US, acesso em: 25 dez. 2005)

Brasil abre arquivos da antiga ditadura, um pouco (UOL, acesso em: 25 dez. 2005)

Neste caso, o NYT informa sobre a abertura dos arquivos da ditadura mas faz uma ressalva em relação à sua abrangência (“a bit”), indicando que tal abertura era apenas parcial. Essa ressalva é omitida pela tradução do US e mantida apenas pelo UOL (“um pouco”). A expressão “ditadura militar” é evitada pela tradução do US, algo que, assim como a demora na abertura dos arquivos desse período, enfatizada em outros trechos da notícia, pode ser associado a uma dificuldade de lidar com a memória proveniente dessa fase da história do país. A possível dificuldade de rever períodos conturbados da história do Brasil é associada por Ribeiro (1999) a uma espécie de trauma coletivo, causado pelos diversos períodos de violência extrema na história dopaís que teriam ficado marcados na memória dos brasileiros. Para o autor, a impossibilidade de superar o horror acumulado em séculos de violência seria influenciada pela falta de autoconsciência e articulação interna por parte da sociedade brasileira.

O exemplo (2) foi retirado de uma notícia sobre a campanha do desarmamento,escrita por Larry Rohter, publicada em 20 de outubro de 2005 e traduzida apenas pelo US. Assim como no exemplo (1), o título da notícia é o objeto de análise.

(2) Gun-Happy Brazil Hotly Debates a Nationwide Ban (NYT, acesso em: 20 out. 2005)

Brasil discute desarmamento (US, acesso em: 20 out. 2005)

Aqui nota-se que a representação do Brasil realizada pelo NYT é construída por meio de predicações atribuídas ao país (“gun-happy”) e também à forma como se dá o debate sobre o desarmamento (“hotly”). Tem-se aí uma leitura do estrangeiro que coloca

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o Brasil como um país que teria afeição pelas armas e que, talvez por isso, discute um assunto relacionado à sua possível proibição com calor e entusiasmo. A tradução do USomite todos esses elementos, de forma que o leitor brasileiro fica apenas com o núcleo da informação e não vê a forma como seu país está sendo lido pelo Outro, principalmente com relação a um suposto gosto por armas de fogo.

No exemplo (3), retirado da mesma notícia, a tradução atua de forma semelhante, no que se refere à omissão de uma representação controversa.

(3) Brazilians have a startling propensity to shoot one another (NYT, acesso em: 20 out. 2005)

Rohter realiza uma afirmação bastante negativa a respeito dos brasileiros, uma representação na qual esse povo é visto pelos norte-americanos como tão violento que teria até a propensão de atirar em seus compatriotas. Além disso, essa violência que lhes é associada não é colocada como algo momentâneo ou passageiro, mas já seria uma espécie de tendência.

Essa representação é totalmente omitida pela tradução, devido provavelmente ao seu caráter controverso. Os casos (1), (2) e (3), dentre outros em que também se notou uma tendência semelhante por parte da tradução, levam a concluir que a realização de suavizações ou omissões é, em alguns casos, influenciada pelo grau depreciativo da representação, na qual imagens fortemente negativas tendem a ser amenizadas ou omitidas, o que pode indicar que não seriam aceitas pelo público leitor brasileiro.

O trecho seguinte diz respeito à onda de assassinatos em série promovidos pelo crime organizado no estado de São Paulo em 2006. A notícia “Police Are Criticized in Wave of Gang Violence in Brazil”, novamente escrita por Rohter, é de 30 de maio de 2006 e foi traduzida pelo US como “Polícia de São Paulo é criticada por onda de violência” e pelo UOL (por George Andolfato) como “Polícia criticada em onda de violência de gangue no Brasil”.

(4) Police Are Criticized in Wave of Gang Violence in BrazilThe street combat between the police and criminal gangs that left at least 186 people dead and brought this metropolis of nearly 20 million people to a halt two weeks ago has ceased, at least for now” (NYT, acesso em: 30 maio 2006)

Polícia de São Paulo é criticada por onda de violênciaOs combates de rua entre a polícia e gangues criminosas que deixaram pelo menos 186 mortos e fizeram essa metrópole de 20 milhões de pessoas parar há duas semanas terminaram, pelo menos por enquanto(US, acesso em: 30 maio 2006)

Polícia criticada em onda de violência de gangue no BrasilOs confrontos de rua entre a polícia e gangues de criminosos que

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deixaram ao menos 186 mortos e levaram esta metrópole de quase 20 milhões de habitantes a parar duas semanas atrás cessou, ao menos por enquanto (UOL, acesso em: 30 maio 2006)

Rohter, ao fim da passagem, sugere ao seu leitor que a qualquer momento a onda de violência poderia voltar e ambas as traduções reconstroem a atmosfera de perigo iminente para o leitor brasileiro. Além disso, cabe destacar as traduções do termo “gang” e das expressões nas quais esse nome aparece. Na quase totalidade das ocorrências esse substantivo é traduzido por “gangue”.

A tradução de “gang” por “gangue”, que se mostra recorrente, pode ser considerada uma estratégia de suavização, já que leva o leitor brasileiro a realizar associações distintas e menos negativas em relação àquelas desencadeadas pelo termo “quadrilha” e pelas expressões “facção criminosa” e “crime organizado”, mais comumente utilizadas pela mídia brasileira. A esse respeito, Arrojo (1992) afirma que as convenções contextuais estabelecidas pela comunidade cultural receptora da tradução muitas vezes são parâmetros adequados na orientação de escolhas tradutórias, o que significa que o tradutor pode dar preferência a termos ou expressões já construídos e consagrados pelo uso dessa comunidade.

O substantivo “gang” volta a aparecer numa expressão no trecho (5), em que há, pela única vez, uma tradução que se aproxima da maneira como a mídia brasileira se refere aos grupos criminosos do Brasil. Essa exceção refere-se à segunda ocorrência do termo, na tradução do US. A notícia foi escrita por Paulo Prada e intitulada “5 Days of Violence by Gangs in São Paulo Leaves 115 Dead Before Subsiding”. O texto foi publicado em 17 de maio de 2006, traduzido pelo US como “Violência se acalma em São Paulo” e pelo UOL como “Violência diminui em São Paulo” (tradução de George Andolfato).

(5) Government officials also dismissed local news reports that the police had used the crisis to kill suspects they had previously singled out as gang members. A police crackdown during the battles led to the arrest of more than 100 suspected gang members and the killing of 71 (NYT, acesso em: 17 maio 2006)

Funcionários do governo também negaram a jornalistas da mídia local que a polícia havia usado a crise para matar suspeitos que haviam, anteriormente, classificado como membros da gangue. Uma invasão policial durante os combates levou à detenção de mais de 100 supostamente membros da facção criminal e à morte de 71 pessoas (US, acesso em: 17 maio 2006)

As autoridades do governo também negaram os relatos da imprensa local de que a polícia usou a crise para matar suspeitos que já tinham sido identificados como membros da gangue. A reação policial durante os

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confrontos levaram à prisão de mais de 100 suspeitos e à morte de 71 (UOL, acesso em: 17 maio 2006)

Deve-se destacar também a escassa tradução das notícias publicadas pelo NYTsobre os ataques da quadrilha PCC (Primeiro comando da capital) no estado de São Paulo em 2006. Sobre esse período, o jornal norte-americano publicou 15 notícias, quase diariamente e, às vezes, até duas notícias no mesmo dia. Porém, apenas duas delas foram traduzidas: a que noticiava a diminuição da onda de violência e a que criticava a atuação da polícia paulista durante os ataques. Com tamanha cobertura do NYT, bem como de outros jornais estrangeiros, o público norte-americano tinha um amplo conhecimento do que ocorria no Brasil naqueles dias, inclusive com relação ao crescente número de mortos. O público brasileiro, por sua vez, também atingido por uma avalanche de notícias produzidas por jornais brasileiros sobre a escalada da violência, não tinha acesso à leitura que os estrangeiros faziam da situação. Assim, os brasileiros que consultavam as traduções do NYT e não encontravam lá artigos sobre os ataques, podiam ter a impressão de que um caso tão singular na história social recente do país não chamava a atenção da imprensa estrangeira, já que aparentemente não estava sendo noticiado por um jornal importante e reconhecido como o NYT.

Considerações finaisA representação da violência no Brasil construída pelo NYT permite a leitura de

que a violência é um elemento inerente ao caráter brasileiro. Neste estudo, a tradução restringe relativamente a possibilidade de que o leitor brasileiro perceba como o estrangeiro vê a questão da violência no Brasil e, ao mesmo tempo, os textos traduzidos questionam a representação que os próprios brasileiros realizam de si mesmos como um povo violento.

Assim, pode-se afirmar que a construção que o NYT realiza da violência como um aspecto bastante afim aos brasileiros é uma leitura até possibilitada pela tradução, embora de maneira bem menos enfática que aquela autorizada pelo texto em inglês, o que se deve às suavizações e cortes realizados no texto em português. É possível dizer que, neste caso, a rejeição da imagem de um Brasil e de brasileiros violentos, por parte das notícias traduzidas, deve-se à omissão ou suavização da maioria das imagens consideradas demasiadamente fortes.

Além disso, o fato de grande parte das notícias a respeito dos ataques do PCC em São Paulo publicadas pelo NYT não ter sido traduzida, assim como a realização das suavizações e dos cortes demonstrados na análise dos exemplos, pode indicar uma estratégia tradutória que ameniza a construção da imagem, constantemente retomada pelo estrangeiro, da violência no Brasil. Esse apagamento da representação da violência nas traduções pode desfavorecer a iniciativa dos leitores brasileiros de refletirem, discutirem e se posicionarem sobre o tema, auxiliando sua aceitação e conseqüente banalização.

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Nota“[…] the celebrated sweetness of Brazilians often obscures the dark side of their natures – a capacity for extreme violence that runs like a murky undercurrent throughout the history of the land, from the colonial period up to the present day”.

Referências bibliográficasARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 2.ed. São Paulo: Ática,

1992.

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MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. O PCB e a Imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Campinas: Pontes, 1998.

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Relações discurso-história em “Curtamão”, de Guimarães Rosa, e sua versão alemã

Gilca Machado Seidinger

Universidade Estadual Paulista (UNESP – CAr) [email protected]

Abstract. A version can be either the literal translation of a text or a translation, and also “any interpretation of a given issue”. The polysemy of such a word is the starting point of our work, which focuses on the João Guimarães Rosa’s short story entitled “Curtamão”, extracted from the book Tutaméia, and its German version signed by Curt Meyer-Clason in collaboration with Horst Nitschack. We suppose that the close relationship between narration, focus and story, typical of a piece like this (essentially poetic even though it is a narrative), has suffered changes which we try to map with the aid of Gerárd Genette’s narratology. Keywords. Guimarães Rosa; Tutaméia; translation; narratology.

Resumo. Uma versão pode ser a tradução literal de um texto, ou simplesmente tradução, mas também “cada uma das interpretações do mesmo ponto”. A polissemia desse vocábulo é o ponto de arranque do presente trabalho, que se volta para a narrativa de João Guimarães Rosa em tradução – “Curtamão”, de Tutaméia, e sua versão alemã, assinada por Curt Meyer-Clason, com a colaboração de Horst Nitschack. A hipótese que motiva a análise é a de que a estreita relação da expressão com o conteúdo – característica de uma obra como essa, essencialmente poética, posto que narrativa – sofreu alterações, que tentamos mapear, com o apoio da narratologia genettiana. Palavras-chave. Guimarães Rosa; Tutaméia; tradução; narratologia.

O presente trabalho volta-se para a narrativa de João Guimarães Rosa em tradução: “Curtamão”, de Tutaméia, e sua versão alemã, realizada por Curt Meyer-Clason, em colaboração com Horst Nitschack.1 O objetivo é verificar, com base na narratologia genettiana, em que medida relações entre narração, focalização e história identificáveis no discurso narrativo original se alteram com a tradução. Cremos que os pares discurso-história, nos dois idiomas, dificilmente podem estabelecer relações de mesma ordem. A estreita relação da expressão com o conteúdo, característica dessa obra – essencialmente poética, posto que narrativa –, pode ter se alterado.

As alterações na relação discurso-história desencadeadas pela tradução podem, a nosso ver, ser de duas ordens distintas: aquelas inevitáveis, fruto das incontornáveis diferenças lingüístico-culturais entre dois contextos enunciativos distintos; outras, vinculadas mais ao partido adotado na tradução, a partir das escolhas lexicais e sintáticas envolvidas nesse processo, as quais conformam, pela via do discurso narrativo, as demais instâncias da narrativa, escolhas essas que, pelo menos em hipótese, poderiam ter se dado de outra forma.

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Vale registrar ainda outra consideração de ordem mais geral e teórica, antes de passarmos à análise. Trata-se do fato de que a tradução cria um novo nível enunciativo, que engloba o da narrativa do texto-fonte, como se pode verificar no quadro abaixo, extraído do artigo “Narratology meets translations studies, or, The voice of the translator in children’s literature”, de Emer O’Sullivan (2003):

Não discutiremos, neste momento, esse modelo em profundidade; lembremos,

entretanto, que o conceito de autor implicado, empregado por ele, é visto como problemático por estudiosos da teoria da narrativa, entre eles Gerárd Genette. Não obstante, considerar, em termos teóricos, a existência desse novo nível no esquema da comunicação narrativa, no caso do discurso literário em tradução, pode auxiliar a ver com outros olhos o que nos habituamos a considerar simplesmente erros de tradução. Levar em conta a presença do tradutor significa conferir-lhe visibilidade, dar-lhe voz, autorizando-o, por assim dizer, em seu ato enunciativo, permitindo-nos também equacionar melhor as alterações na relação discurso-história promovidas pela “enunciação tradutória”.2

Partimos do pressuposto de que, grosso modo, não tenha havido supressões ou omissões e de que a tradução tenha sido “fiel” ao discurso narrativo de origem, transpondo “integralmente” o conteúdo narrativo por ele veiculado. Assim, por exemplo, o fazer do protagonista como construtor e o resultado desse fazer – a casa construída – são correlatos nos dois textos, uma vez que em ambos uma casa se ergue, a mais moderna – Das modernste – comportando traços semanticamente equivalentes, feita de pedra e cal, “tijolaria areias cimento”, ou Stein und Kalk, Backsteine, Sand, Zement.

Na transposição da narrativa ao idioma-alvo, em princípio, mantém-se o ponto de vista, pois a perspectiva permanece inalterada, a focalização é a mesma. Mantém-se também, de modo geral, a quantidade da informação narrativa, uma vez que a proximidade do narrador em relação aos fatos narrados, que a determina, é idêntica nos dois casos: aquele que constrói a casa é o mesmo que conta a história da casa, em

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“Curtamão” e em “Stellmaß”, e a quantidade de informação de que esse narrador dispõe sobre os fatos que narra é, nos dois casos, em teoria, exatamente a mesma. Poderíamos supor, então, que essa dimensão, a da informação narrativa, não seria afetada com a tradução. Resta saber, entretanto, se a informação que chega ao leitor é exatamente a mesma nos dois casos, e aqui já somos obrigados a pensar a questão com mais vagar.

Relata esse narrador, ao contar a história da casa: “A obra abria” (ROSA, 1976, p. 36). Conforme indica a precisa análise de Leonel (2003, passim), “obra” aqui significa mais que a casa, apenas: é também a obra de arte, é também a literatura, é a própria narrativa que se erige. Para nós, hoje é impossível, por exemplo, a partir desse enunciado, não pensar no título da conhecida obra de Umberto Eco – cuja primeira edição, aliás, data de 1962, cinco anos antes da primeira edição de Tutaméia –, e tudo que ele implica. Para o leitor da narrativa em alemão, essa associação já não seria tão direta, senão impossível, pois o enunciado: “Das Werk gedieh” (ROSA, 1994, p. 52), embora permita pensar em “obra” e seus múltiplos sentidos, ao empregar o verbo gedeihen – prosperar; medrar, crescer; atingir grande porte; dar bons resultados (LANGENSCHEIDT, 1982, p. 833) – evoca outras associações, conduz a interpretação distinta. É de se crer que desta estaria excluída aquela sugerida a nós pelo enunciado em português, provocada pela co-ocorrência de “obra” e do sema abrir.

Por outro lado, essa escolha da tradução abre-se para o campo semântico da biologia, da botânica, campo que ocuparia, para o leitor da narrativa original, um plano, no mínimo, secundário; além disso, a opção da tradução por esse vocábulo parece trazer em si um valor mais eufórico que o do enunciado em português, valor que se pode notar na idéia de crescimento e de “bons resultados”. Ressalte-se que não estamos querendo dizer que Guimarães Rosa tenha tido necessariamente algum contato com o livro de Eco, que o enunciado seja uma referência direta à obra do semioticista italiano, ainda que isso tivesse sido cronologicamente possível, mas, sim, queremos ressaltar que, com a tradução, a informação narrativa veiculada sofre transformações que alteram os efeitos de sentido possíveis, conferindo caráter um pouco distinto aos dois textos e estabelecendo, conforme nossa hipótese inicial, novas relações entre o conteúdo narrativo e o enunciado que o configura.

O tradutor é, em última instância, um leitor e, como todo leitor, está sujeito à deriva do sentido. Ademais, ao verter a obra em questão, este tem que se haver com a polissemia, com a abertura do sintagma, com a “dificuldade de atribuição de sentido a uma palavra ou a um conjunto de palavras graças a uma estratégia de distaxia – isto é, afastamento dos termos, desvio de sua ordem e organização convencional” (SPERBER, 1982, p. 7), que, segundo a autora, é característica do discurso narrativo em Tutaméia.

Tomemos um pequeno exemplo: o protagonista-narrador de “Curtamão”, a certa altura, refere-se a suas ambições como construtor-arquiteto; com isso, descreve também o edifício verbal que erige ao relatar a história da casa, o qual, com efeito, nada tem de ordinário: “Só me valendo o extraordinário” (ROSA, 1976, p. 37). Esse enunciado, a rigor, contraria as normas da língua, ao trazer como única forma verbal o gerúndio; a ele, corresponde, em alemão, uma oração com verbo conjugado, na terceira pessoa do imperfeito: “Für mich zählte nur das Außergewöhnliche” (ROSA, 1994, p. 53; grifo nosso).3

De acordo com Genette ([1984], p. 164-5), a quantidade de informação relaciona-se também a determinações de ordem temporal, tanto quanto ao grau de

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presença da instância narrativa, remetendo-nos assim, respectivamente, às duas outras grandes categorias em que se divide a teoria genettiana, além do modo, a saber: a do tempo e a da voz. Quanto a esta última, levanta-se uma questão ligada às funções que o narrador pode exercer, segundo os aspectos da narrativa que sejam privilegiados: função narrativa (destaque para a história em si), de regência (ênfase na organização interna do texto narrativo), de comunicação (destaque para a situação narrativa e seus protagonistas), testemunhal ou de atestação (privilégio da relação afetiva, moral e/ou intelectual do narrador com a história) e função ideológica (presença de intervenções didáticas, comentários explicativos e justificativos) (GENETTE, [1984], p. 254-5).

Parece ser possível afirmar que a função narrativa ganharia destaque maior no texto-alvo do que tem no texto-fonte. De acordo com Leonel: “Tão importante quanto a diegese, formando com ela uma unidade, é o relato da história da casa, a enunciação” (LEONEL, 2003, p. 115). Essa dimensão discursiva, que no texto em português tem posição de destaque, sofre, natural e automaticamente, o maior impacto ao passar pelo processo tradutório; daí decorre que o outro pólo, o da história, se destaque mais em relação ao do discurso, uma vez vertido o texto a outro idioma.

A função de regência, por exemplo, embora não seja assim classificada por Leonel, tem sua presença constatada pela autora ao comentar a prolepse, “prerrogativa do sujeito narrador” (LEONEL, 2003, p. 116), que antecipa o desenlace do conto, ao referir-se à casa construída já no segundo parágrafo do texto, e é preservada pelo processo tradutório: “das Haus mit seinem Ruf und der Vorstellung von ihm” (ROSA, 1994, p. 49) correspondendo a “a casa, esta, em fama e idéia” (ROSA, 1976, p. 34). Tanto a função de comunicação, ligada à situação narrativa, ao fazer do narrador, quanto a testemunhal ou de atestação, que privilegia a relação do narrador com a história, são também relevantes nessa narrativa. Como estamos aqui no domínio da voz, no caso da tradução importa reconhecer que a voz que narra é a mesma, pois se trata da mesma figura, do protagonista-narrador, mas também não é, se atentarmos para o fato de que essa voz é retransmitida pelo tradutor. E o narrador, em “Stellmaß”, fala alemão.

A situação narrativa, encenada no conto por meio da instalação do narrador e do narratário, em princípio também se mantém a mesma, já que tais figuras estão presentes também no texto-alvo, embora haja diferenças que modificam a imagem do protagonista que pode ser construída pelo leitor dos diferentes textos. Isso se pode notar no seguinte exemplo: “Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem superior” (ROSA, 1976, p. 34), em que tomamos o adjetivo “forro” por “livre”, “autônomo”. O enunciado narrativo da tradução traz, por sua vez, “Ich war als Maurer angestellt, Verschaler, weder gewöhnlich noch hochrangig” (ROSA, 1994, p. 49), a partir do qual se constrói a imagem de um empregado contratado, com base no significado de “angestellt”, e no qual há, além disso, a presença do substantivo “Verschaler”; ora, “verschalen” é “cofrar”, “forrar”, relacionando-se ao substantivo “forro”. Com isso, o protagonista-narrador ganha traços que não tinha na narrativa-fonte, entre eles uma especialização – o que, supõe-se, teria efeitos, entre outros, em sua relação com a obra que constrói e com a história que narra.

A chamada função testemunhal diz respeito à relação afetiva e intelectual do narrador com a história (GENETTE, [1984], p. 254) e tem destacada importância na narrativa em questão, conforme a análise de Leonel já citada. Na medida em que se crê que a tradução nada poderia ou deveria alterar quanto aos fatos, nem quanto às paixões

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do sujeito protagonista, a casa que ele constrói continua (ou supõe-se que deveria continuar) tendo para o protagonista em “Stellmaß” a mesma importância que tem para aquele de “Curtamão”. Afirma Leonel (2003, p. 120): “Nessa narrativa metaficcional, a arte e a vida, identificadas, devem pautar-se pelo ‘desconforme a reles usos’, pelo propor e aceitar desafios, pela busca do incomum”.

Ao enunciado “desconforme a reles usos” corresponde, em alemão, “entgegen gewöhnlichem Brauch” (ROSA, 1994, p. 51). Dessa expressão, destaquemos, neste momento, apenas “reles”, que segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (1986, p. 1479), remete a “muito ordinário, baixo, desprezível”, ou ainda “sem valor, insignificante, pífio”, enquanto o correspondente “gewöhnlich”, embora também dicionarizado como “ordinário” ou “vulgar”, traz em primeiro plano a idéia de algo corrente, habitual, banal, remetendo predominantemente à noção de “costumeiro” (LANGENSCHEIDT, 1982, p. 850). Assim, a partir da diferença entre o valor de “reles” e o de “gewöhnlich”, aquilo que se ergue de acordo com moldes habituais tem um traço mais fortemente disfórico no texto em português do que aquele que tem em alemão, e isso vale tanto para a casa quanto para a obra de arte, ou ainda para o discurso narrativo, tendo em vista a dimensão metalingüística a que a narrativa nos conduz.

Vejamos, finalmente, a chamada função ideológica, que Genette ([1984], p. 255) relaciona à presença de intervenções didáticas, comentários explicativos e justificativos. De forma geral, podemos supor, mais uma vez acreditando que a tradução não omitiu enunciados, que todos os comentários dessa ordem tenham sido, de uma forma ou de outra, transpostos ao alemão, como parece realmente ter sido o caso aqui.

Entretanto, neste caso, afirmar que com isso a dimensão ideológica da narrativa foi preservada não parece ser assim tão simples. Talvez devamos entender a função ideológica, que Genette relaciona à presença de intervenções didáticas e comentários explicativos (GENETTE, [1984], p. 255), no trato com a obra em questão, de forma ampliada, ou seja, não necessariamente vinculada à presença de “enxertos” explicativos, de comentários marginais, mas sim, antes, como capturável ao rés do discurso, em sua base, no léxico e na sintaxe que o conformam.4

A distaxia parece estar na base dessa função, assim como aqui a entendemos. Na narrativa em português, isso se faz mais visível, ou audível; porém, no discurso narrativo em alemão, não nos parece ocorrer o mesmo, e o o que se disse acima acerca do enunciado “Só me valendo o extraordinário” (ROSA, 1976, p. 37) pode ser tomado como paradigmático. Muitos outros exemplos poderiam ser localizados ao longo dessa narrativa, como nas outras trinta e nove que compõem a obra, ou nos quatro prefácios que a integram, estes também vazados em um discurso que aciona procedimentos muito semelhantes aos que as narrativas em si também empregam.

É possível considerarmos que há uma perda dessa função ideológica “ampliada”, e isso altera em sua base aquilo que entendemos ser uma característica fundamental da obra; as conseqüências dessa alteração, localizadas numa dimensão em que noções como “erro de tradução” são de pouca utilidade, não devem ser desprezadas. Tentar verificar, porém, se trata aqui de uma ou de outra, dentre as duas ordens de alterações que acreditamos ocorrer na tradução, é matéria para uma próxima discussão.

Notas

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1 No contexto em que este trabalho se desenvolve, torna-se fundamental reconhecer a voz do(s) tradutor(es) e seu papel no esquema da comunicação narrativa; assim, lembramos aqui, desde já, essa presença fundamental, naturalmente mencionada nas Referências Bibliográficas, mas frisamos que, ao longo do trabalho, a indicação “ROSA, 1994” supõe também a enunciação da tradução. 2 Essa expressão, apesar de não ser encontradiça na bibliografia sobre tradução, não nos parece de todo impossível ou inadequada, e tem aqui o valor de uma sugestão. 3 Guimarães Rosa, em carta a Harriet de Onís, tradutora de parte de sua obra para o inglês, comenta a versão de “Minha gente” e, referindo-se também a “Sarapalha”, avisa: “Importante: nunca mudar os tempos dos verbos. (Retocar, neste particular, o ‘THE STRAW SPINNERS)” (carta de 04.nov.1964, disponível no Instituto de Estudos Brasileiros/USP, Arquivo João Guimarães Rosa, Série Correspondência com Tradutores, pasta CT2C). Se havia até mesmo certa liberalidade quanto a outros aspectos da tradução, este, na opinião do autor, merecia grande cuidado. 4 Cf. “A ‘vastidão da amplidão’, ou Estória e História em Guimarães Rosa” (SEIDINGER, 2007), em que se enfoca a presença estrutural do elemento histórico em Tutaméia, consubstanciado no e pelo discurso.

Referências bibliográficas GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, [1984].

LANGENSCHEIDTS Taschenwörterbuch. Berlim/Munique/Viena/Zurique: Langenscheidt, 1982.

LEONEL, M. C. M. De alvenel a arquiteto: o espaço em “Curtamão” de Guimarães Rosa. Rev. ANPOLL, n. 14, p. 105-123, jan./jun. 2003.

O’SULLIVAN, E. “Narratology meets translations studies, or, The voice of the translator in children’s literature”. (2003). Disponível em: http://www.erudit.org/revue/meta/2003/v48/n1/006967ar.pdf. Acesso em: 10.jul.2007.

ROSA, J. G. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. _____. Tutaméia. Trad. Curt Meyer-Clason, colab. Horst Nitschak. Colônia:

Kiepenheuer & Witsch, 1994. SEIDINGER, G. M. A “vastidão da amplidão”, ou Estória e História em Guimarães

Rosa. Estudos Lingüísticos, Araraquara, GEL, v. XXXVI, n. 3, set./dez.2007. Disponível em: http://gel.org.br/4publica-estudos-2007/revista20064_3.htm. Acesso em: 28.set.2007.

SPERBER, S. F. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982.

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