#ficaminc: algumas considerações sobre políticas ... · unidas para educação, a ciência e a...
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#FicaMinC: algumas considerações sobre políticas públicas de cultura e
participação social
Documento para su presentación en el VIII Congreso Internacional en Gobierno,
Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 25 al 28 de
septiembre de 2017.
Autora: Vilela, Cleide
Email: [email protected]
Twitter: @vilelacleide
Resumen:
Este paper trata de levantar y discutir los usos de la política cultural empleada por el
movimiento #FicaMinC durante el período de su emergencia, entre mayo y julio de 2016.
Para ello, describiese el escenario que el movimiento surgió y examinase el termo política
cultural en los textos divulgados en las páginas relacionadas al movimiento en el
Facebook. Por fin, reflexiona sobre una configuración que permitió una centralidad de la
reivindicación de un ministerio específico para el área cultural a partir de las ideas de
diversidad y pluralismo.
Palabras clave: #FicaMinC. Políticas Culturales. Ministerio de la Cultura. Diversidad.
Pluralismo.
Resumo:
Este artigo pretende levantar e discutir os usos do termo política cultural empregados
pelo movimento #FicaMinC durante o período de sua emergência, entre maio e julho de
2016. Para isso, descreve-se o cenário em que o movimento surgiu e analisa-se o termo
política cultural em textos divulgados nas páginas relacionadas ao movimento no
Facebook. Por fim, reflete-se sobre a configuração que permitiu a centralidade da
reivindicação de um ministério específico para a área cultural a partir das ideias de
diversidade e pluralismo.
Palavras-chave: #FicaMinC. Políticas Culturais. Ministério da Cultura. Diversidade.
Pluralismo.
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Introdução
Este artigo busca compreender quais propostas de políticas culturais estavam em
disputa pelo movimento #FicaMinC, surgido a partir da ação de diversos grupos que
reivindicaram a manutenção do Ministério da Cultura (MinC), extinto por meio da
Medida Provisória n° 726, de 12 de maio de 2016, pelo governo interino de Michel
Temer, após o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff. O movimento é formado
por artistas, ativistas e servidores do Ministério da Cultura, e sua estratégia de ação
política consistiu em ocupações de prédios de órgãos ligados ao Ministério em todo o país
e em ativismo político nas redes sociais Twitter e Facebook.
O movimento de reivindicação pela permanência do MinC revela uma
configuração em que a institucionalidade de políticas culturais exerce papel fundamental
nas sociedades contemporâneas. Portanto, faz-se necessário discutir a centralidade da
cultura, principalmente, a partir do pós-guerra e o papel da Organização das Nações
Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) “na coordenação específica de um
trânsito simbólico e discursivo, envolvendo governos, organizações da sociedade civil
global e organismos transacionais” (Alves, 2010: 539).
O resultado desse trânsito simbólico pode ser percebido na ideia de diversidade
cultural mobilizada pelos documentos publicados nas páginas relacionadas ao movimento
#FicaMinC e em sua aproximação com a ideia de pluralismo numa luta política. Dessa
maneira, tentamos nos aproximar das possíveis convergências entre a diversidade e o
pluralismo para entender quais são os pressupostos que estes conceitos carregam, tendo
em vista sua polissemia, para permitir tal aproximação.
A institucionalização das políticas culturais
Mesmo havendo divergência sobre a institucionalização das políticas culturais no
Ocidente, o período do pós-guerra é um marco importante para seu desenvolvimento. É
neste cenário que se ocorre a criação do Ministério de Assuntos Culturais na França, em
1959. O objeto de suas políticas, naquele momento, pressupunha a ideia de ampliação do
acesso a bens culturais, o que se convencionou a chamar de democratização da cultura.
Concomitantemente, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura (Unesco) desponta como um órgão propositor de iniciativas favoráveis ao debate
sobre políticas culturais, e o fazia por meio de publicações e conferências. Destacam-se
a Conferência Intergovernamental sobre Aspectos Institucionais, Administrativos e
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Financeiros da Política Cultural em 1970; as Conferências Regionais (Europa, Ásia,
África, América Latina e Caribe); a Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais
(Mondiacult) na Cidade do México em 1982; e a Década Mundial do Desenvolvimento
Cultural (1988-1997), importante momento para definir os rumos da Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Portanto, esse
organismo buscar influenciar na institucionalização das política culturais nos Estados-
nação, exercendo a coordenação do trânsito simbólico e discursivo que envolve governos,
organizações da sociedade civil global e outros organismos transnacionais (Alves, 2010:
539).
Para Rubim (2009), as temáticas discutidas pelo órgão repercutem tanto nas ações
da própria Unesco quanto nas ações das políticas de cultura nacionais. A Conferência
Intergovernamental sobre Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros da
Política Cultural, por exemplo, buscou impulsionar a atuação dos Estados na atividade
cultural e a participação ativa da população na cultura. Esse modelo de institucionalização
de políticas públicas combinou com Reformas Administrativas realizadas na década de
1960, cuja inspiração se deu pela aplicação de novos modelos econômicos de
desenvolvimento (Mejía, 2004).
Portanto, ao mesmo tempo que há um movimento pela institucionalização das
políticas culturais, baseado no modelo proposto pela Unesco, os governos latino-
americanos estão engajados em implementar seus projetos de desenvolvimento. Essa
articulação envolve conectar a cultura à política, ou seja, ao domínio do racional (Ortiz,
2008), implicando o agrupamento de todas as organizações culturais em um só órgão –
Ministérios ou Secretarias de Cultura – seguindo o modelo francês de institucionalidade,
que como observado anteriormente, tinha o objetivo de democratizar o acesso às obras de
arte ao maior número de franceses:
Todos esses organismos seguiram o modelo francês do Ministério da Cultura
e Assuntos Culturais de 1959 e da Unesco, estruturados ao redor de três áreas
básicas de ação: conservação do patrimônio cultural, fomento das artes e da
chamada difusão cultural. Seu interlocutor era uma suposta nação cultural
homogênea, branca, cristã e com uma língua única. (Mejía, 2004, tradução
nossa)1.
O modelo da democratização cultural inscrito no debate das políticas culturais
recebeu críticas no que tange a escolher o que seria legítimo a ser democratizado. As
1 Texto original: “Todos estos organismos siguieron el modelo francés del Ministerio de Cultura y Asuntos
Culturales de 1959 y el de la unesco, estructurados alrededor de tres áreas básicas de acción: la
conservación del patrimonio cultural, el fomento de las artes y la llamada difusión cultural. Su
interlocutor era una supuesta nación culturalmente homogénea, blanca, cristiana y con una sola lengua”.
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discussões levaram a um modelo alternativo que convencionou-se a ser chamado de
democracia cultural, cujas ações atribuiria igual “valor a todas as práticas culturais e o
reconhecimento de que as diferentes formas de vida, saberes e linguagens artísticas
podem encontrar nos espaços públicos seu lugar de expressão e diálogo” (Barbosa; Freitas
Filho, 2015: 7). A democracia cultural implicaria, portanto, “políticas mais globais do
que as culturais, pois exige mudanças estruturais e abrandamento das desigualdades –
impeditivas do reconhecimento e da construção de bases adequadas de autoestima
elevada dos grupos” (Barbosa et al., 2009: 261).
No Brasil, as políticas culturais começaram a se desenvolver de forma mais
sistemática a partir dos anos 1930, pela gestão de Gustavo Capanema no Ministério de
Educação e Saúde, entre 1934 e 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Essa gestão
“encontra-se associada à expansão da rede das instituições culturais (criação do Serviço
Nacional de Teatro), à criação de cursos de ensino superior e, também, à elaboração de
uma ideologia da cultura brasileira” (Ortiz, 1985: 80). A área cultural é organizada em
instituições responsáveis de gerir a política pública, entre elas o Instituto Nacional de
Cinema Educativo (1936), o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937)
e o Instituto Nacional do Livro (1937). As políticas culturais estariam preocupadas com
a formação de uma identidade nacional.
Entre 1964 a 1984, período que abrange o mais recente regime militar brasileiro,
há uma reorganização administrativa do Estado seguindo o modelo de toda a América
Latina, no qual são criadas as “principais instituições estatais que organizam e
administram a cultura nas suas diferentes expressões” (Ortiz, 1985: 85), sustentadas pelo
“pensamento autoritário do estímulo controlado da cultura” (Ibid.).
Renato Ortiz (1985) defende que essa conjuntura favoreceu o desenvolvimento de
um mercado de bens simbólicos de dimensão nacional, a exemplo do mercado dos meios
de comunicação: as empresas privadas seriam as responsáveis por administrar os meios
de comunicação; porém, o Estado implantaria toda a infraestrutura do sistema de
telecomunicações, reservando para si o último controle dos serviços de comunicação, ao
se responsabilizar pelas concessões.
Neste momento, há também um esforço por organizar as ações governamentais
por meio de um caráter sistêmico em torno do poder central, surgindo aí a busca pela
implementação de um Sistema Nacional de Cultura, ideia retomada no período
democrático na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura durante a primeira década
dos anos 2000. Edson Farias (2017: 69), ao apresentar o argumento de Gabriel Cohn
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segundo o qual a política cultural é sistematizada “com a finalidade de codificar e
controlar o processo cultural” a partir dos anos 1970, afirma que a “fase derradeira da
ditadura pavimentou o caminho institucional que culminou com a criação do Ministério
da Cultura (MinC), em 1985, já no início do processo de redemocratização” (Ibid.).
Em 1988, os direitos culturais são inseridos na Constituição, estes direitos
preveem o acesso às fontes da cultura nacional e o apoio e incentivo à valorização e à
difusão das manifestações culturais, no entanto, podem ser interpretados como
“dispositivo entre os mecanismos de regulação populacional e coordenação social, ao
fomentar a valoração dos elementos psíquicos (proposições identitárias) e as habilidades
(saberes e fazeres) como recursos” (Ibid., 2017).
Concomitantemente, a primeira lei de financiamento à cultura, baseada no
incentivo fiscal, é criada no âmbito federal, a Lei Sarney no ano de 1986, durante a gestão
de Celso Furtado no Ministério da Cultura, entre 1986 e 1988. A criação dessa lei
encontrou respaldo na sociedade, pois a possibilidade de os recursos saírem do Estado e
passarem “por uma negociação mais direta entre artistas e empresários aparece […] como
instrumento de fortalecimento da governança” (Barbalho, 2011: 121). Críticas ao modelo
do incentivo fiscal respaldadas na ideia de que o Estado deixaria de se responsabilizar
pela decisão de onde investir recursos e passaria essa responsabilidade para empresas
privadas, ainda que esses recursos sejam produto de impostos federais, e, portanto,
recurso público, vão surgir depois da reforma dessa lei, no governo Fernando Henrique
Cardoso, com a chamada Lei Rouanet nos anos 1990.
Esse cenário demonstra a confluência perversa de dois projetos (Dagnino, 2004):
o primeiro processo tem como marco a criação da Constituição de 1988 e, portanto, dos
direitos culturais na área cultural enquanto que o segundo está relacionado com a
“possibilidade de ação conjunta” entre Estado e organismos da sociedade civil organizada
como ONGs. No caso das políticas culturais, essa parceria pode ser estabelecida também
por meio de projetos financiados pela lei Rouanet e editais que serão enfatizados nos anos
2000. Para Evelina Dagnino, os dois projetos prescindem de uma sociedade atuante,
apesar de serem opostos e até antagônicos. Por meio de referências comuns esses dois
projetos disputam projetos políticos 2 distintos, assumindo, então, “o caráter de uma
2 Evelina Dagnino (2004, P. 98) entende os projetos políticos próximo da visão gramsciana, usados “para
designar os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida
em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos.” Essa categoria vincularia, para a
autora, política e cultura, pois os projetos políticos “não se reduzem a estratégias de atuação política no
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disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade
civil, cidadania, democracia” (Ibid.: 97).
A partir de 2003, Gilberto Gil (2003-2008) será o responsável por gerir as políticas
culturais, tornando-se uma unanimidade na literatura sobre as políticas culturais no que
tange ao caráter excepcional de sua gestão. O MinC, seguindo as recomendações da
Unesco, amplia o conceito de cultura em seus programas e políticas e estimula o debate
sobre a formulação e a implementação de políticas públicas, mesmo que por intermédio
de instâncias de participação controlada como o Conselho Nacional de Política Cultural
(CNPC) e conferências. Portanto, as pessoas que fazem parte dessas instâncias são
legitimadas para definir um problema público e “fornecer aos cidadãos os meios de
satisfazer o que lhes é dado como um direito” (Bourdieu, 2014 [2012]: 59), são nesses
locais que são gestadas políticas como o Plano e do Sistema Nacional de Cultura.
Pode-se dizer que as políticas implementadas pelo Ministério ampliaram a
participação tanto nesses fóruns de debate quanto no que compete a seus financiamentos.
Além disso, ao promover dois concursos públicos, no período da gestão do Partido dos
Trabalhadores (PT), de 2003 a 2016, permitiu que se ampliasse um corpo de se servidores
próprios inscritos numa instituição que deve zelar pelos direitos culturais. Assim, a
“conquista social” dos direitos sociais, inscrita numa instituição de Estado, permitiu que
um corpo técnico fosse criado para perpetuação dessa instituição, o que favorece a defesa
dessa “conquista” pelo corpo de Estado, “ainda que os beneficiários desapareçam e não
estejam mais lá para protestar.” (Ibid.: 50).
As políticas culturais brasileiras se desenvolvem de maneira a institucionalizar-
se, seguindo uma tendência mundial, e, também, a seguir recomendações da Unesco na
formulação e implementação de suas políticas culturais. Esses dois fatores são essenciais
para compreender o motivo pelo qual artistas, servidores e ativistas se uniram a favor do
Ministério da Cultura e mobilizaram discursos em defesa das políticas culturais que
estavam sendo implementadas, em consonância com a Unesco como veremos mais
adiante. Antes, porém, faz-se necessário discutir os conceitos de diversidade e pluralismo
mobilizados pelo movimento #FicaMinC.
sentido estrito, mas expressam e veiculam e produzem significados que integram matrizes culturais mais
amplas”.
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Diversidade e Pluralismo: um debate preliminar sobre suas confluências
Os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), na área das políticas
culturais, são responsáveis por levar adiante a associação entre cultura e desenvolvimento
conforme as formulações da Unesco. Da aproximação desses dois conceitos, é possível
entender a cultura como um recurso, o que pressupõe seu gerenciamento para a “melhoria
sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar a participação nessa era de
desenvolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania (...) e do surgimento
(...) do capitalismo cultural” (Yúdice, 2004: 25-26). Assim, a cidadania cultural,
conquistada no Brasil por meio da Constituição de 1988, que institui os direitos culturais,
pode ser interpretada à luz da categoria de recurso, abordada por Yúdice.
Neste caso, a cidadania não seria aplicada de maneira universal, mas “implicaria
que grupos unidos por certos aspectos sociais, culturais e/ou físicos não deveriam ser
excluídos da participação nas esferas públicas de determinada constituição política com
base naqueles aspectos ou características” (Ibid.: 42). A democracia, portanto, deveria ser
promovida de maneira que suas esferas públicas sejam permeadas às diferentes culturas
(Ibid.:43), o que diminuiria a importância do conteúdo da cultura, pois a utilidade da
reivindicação da diferença é uma garantia para a legitimidade. A cultura se torna aqui um
recurso para a política.
Percebe-se que tanto as categorias de diversidade e pluralismo são mobilizadas
pelos grupos que integram o movimento #FicaMinC, associando assim, a cultura e a
política por meio dessas duas ideias como veremos adiante. No entanto, essas duas
categorias são polissêmicas, o que dificulta compreender o que cada um entende por essas
ideias.
Diversidade é utilizada de diferentes maneiras nas ciências sociais. Na
antropologia, diversidade é vinculada ao Outro, à valorização da unicidade de cada
cultura, portanto, o conceito se traduz “pela presença de sociedades justapostas no
espaço” (Ortiz, 2015: 22). A multiplicidade de povos que se interpenetram e se sucedem
ao longo do tempo é o modo como a diversidade é percebida pela história, encerrando,
portanto, “uma mentalidade coletiva específica, uma maneira de pensar e de sentir o
mundo” (Ibid.: 22) por parte de cada povo. Enquanto que na sociologia, a chave de
explicação é marcada pela diferenciação das sociedades modernas. O conceito de
diversidade, para Renato Ortiz (2015: 31), não deve ser pensado de maneira
essencializada, as diferenças são diferentes entre si, portanto, “toda diferença é produzida
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socialmente, sendo portadora de sentido histórico”, pressupondo a ideia de que as
sociedades são relacionais e não relativas.
O pluralismo, na linguagem política, propõe um modelo de sociedade “composta
de vários grupos ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si” (BOBBIO, 1983:
928), estes grupos limitam, controlam e podem até “eliminar o centro de poder dominante,
historicamente identificado como Estado” (Ibid.). Para Bobbio (1982), há três
pressupostos na ideia de pluralismo, o primeiro é o de que nossas sociedades são
complexas e possibilita a formação de esferas autônomas (sindicatos, partidos, grupos
organizados e não organizados), o segundo é o de que “o melhor modo de organizar essas
sociedades é fazer com que o sistema político permita aos vários grupos ou camadas
sociais que se expressem politicamente, participem, direta ou indiretamente, na formação
da vontade coletiva” (Ibid.) e, por fim, a sociedade constituída dessa forma é a antítese
de toda forma de despotismo, em particular, do totalitarismo.
Uma crítica levantada à noção de sociedade plural se aplicaria ao fato de que as
diferenças não estão integradas à totalidade do Estado-nação, neste caso, a pluralidade
separa, “isola cada um dos segmentos de dentro de sua lógica identitária” (Ortiz, 2015:
32), dessa forma, “a impossibilidade da integração repousa na afirmação autônoma das
partes, o que exigiria uma centralização do poder” (Ibid.), a pluralidade seria restritiva.
Portanto, a questão do poder se esvai ao pressupor que “toda diferença pode e deve ser
harmonizada dentro de um continuum” (Ibid.) em que múltiplos aspectos possuem a
mesma validade social.
Neste mesmo sentido, Chantal Mouffe (1999 [1993]) afirma que para haver um
maior alargamento da democracia – que pode e deve ser pensada para além da democracia
liberal – o que se coloca em jogo é como compatibilizar nossas identidades ao
pertencimento a uma comunidade política comum com regras únicas para todos e,
portanto, como esse comum respeite a diversidade e permita as diferentes formas de
individualidade. Ao propor o modelo agonístico da política, pressupondo que questões
políticas “envolvem decisões que exigem que se escolham alternativas conflitantes”
(Mouffe, 2015 [2005]: 9), entende, portanto, que o pluralismo é possível se houver esse
“espaço simbólico comum” (Ibid.: 121). Para a autora, nem todas as reivindicações seriam
legitimas, principalmente, as que questionam suas instituições básicas, portanto, a
democracia exige um “consenso conflituoso” que permite “consenso sobre valores ético-
políticos de liberdade e igualdade para todos, e dissenso a respeito da interpretação desses
valores” (Ibid.) e que “o traçado da fronteira entre o legítimo e o ilegítimo é sempre uma
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decisão política” (Ibid.) e não apresenta a democracia liberal como o único modelo
possível de democracia.
Desse modo, a autora traz a importância de se distinguir num contexto
multicultural, aquelas reivindicações que se referem ao reconhecimento de grupos
tradicionais e aquelas de natureza claramente política, no entanto, a autora reconhece que
o limite entre essas duas dimensões é frágil. O cerne do argumento para esta diferenciação
está nos pressupostos de que a democracia deve ser defendida para excluir as propostas
que podem levar a sua destruição, sendo necessário um princípio ético-político comuns.
O pluralismo num mundo multipolar deve pressupor “a existência de outras
formas de modernidade além daquela que o Ocidente está tentando impor no mundo, sem
respeitar outras tradições” (Mouffe, 2015: 124-125). Esse argumento se encontra no
manifesto proposto pelo Encontro das Ocupações, no qual o movimento se afirma um
“Quilombo Cultural Urbano, que se isola deste sistema exploratório para enegrecer nossa
história, romper fronteiras, diluir territórios e descolonizar geral” (Encontro das
Ocupações, 2016).
Chantal Mouffe (2015) também discute as consequências do “pluralismo de
modernidades” para o conceito de “direitos humanos” – tão importante no modelo de
democracia liberal. Para a autora, as democracias liberais teriam como dogma a
universalização dos direitos humanos que exige “que outras sociedades adotem as
instituições ocidentais” (Ibid.: 125). Apesar de reconhecer a importância de tais direitos,
a autora afirma ser necessário discutir a universalidade deles a partir da leitura de
Boaventura de Sousa Santos. Para ela, o conceito de direitos humanos precisa ser
pluralizado para impedir “que eles se tornem instrumento de imposição da hegemonia
ocidental” (Ibid.: 127), assim, “reconhecer a pluralidade de formulações da ideia de
direitos humanos é pôr em destaque seu caráter político” (Ibid.: 127), em que há relações
de poder que lutam pela hegemonia. Nesse sentido, sua posição se aproxima daquela
proposta por Renato Ortiz (2015) que afirma o conflito manifesto das situações históricas
concretas, o que implica afirmar que “as diversidades não são arbitrárias” (Ibid.: 33), elas
podem esconder relações de poder e ocultar as desigualdades entre os diversos.
O movimento #FicaMinC
A Medida Provisória n° 726, de 12 de maio de 2016, do então presidente interino
Michel Temer, publicada horas após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff,
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extinguiu uma série de ministérios, tais como o da cultura, das comunicações, do
desenvolvimento agrário, das mulheres, da igualdade racial, da juventude e dos direitos
humanos, aglutinando estas áreas a outras pastas. O Ministério da Cultura (MinC) voltaria
a integrar o da Educação depois de 31 anos ocupando uma pasta específica3.
Horas após a publicação dessa Medida, um grupo de artistas e produtores culturais
do estado de São Paulo reativou um evento no Facebook denominado Petição:
#FicaMinC, criado em 8 de setembro de 2015. Seu propósito principal seria o de levantar
assinaturas em favor da institucionalidade do Ministério por meio de um abaixo-assinado
online hospedado na página change.org (Figura 1). Tal evento demonstra que a
possibilidade de extinção do MinC já havia sido levantada no segundo governo de Dilma
Rousseff, pelo então ministro do planejamento Nelson Barbosa, após anúncio de corte de
gastos, realizado em setembro de 2015. Naquele momento, porém, a presidenta Dilma
Rousseff optou por reduzir o número de cargos comissionados, evitando possíveis
conflitos com alas do Partido dos Trabalhadores (PT) e da sociedade que militavam em
favor dessas causas e apoiavam seu governo.
FIGURA 1 – EVENTO PETIÇÃO: #FICAMINC
3 O Ministério da Cultura foi extinto no governo do presidente Fernando Collor de Mello em abril de 1990
e recriado no governo Itamar Franco, em 1992. Nesses dois anos, as políticas culturais ficaram sob
responsabilidade da Secretária de cultura vinculada à Presidência.
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A página da petição conta com 53.175 assinaturas, não alcançando a meta prevista
de 75.000. O texto do documento inicia-se com uma série de menções identitárias
(caiçaras, índios, negros, mulheres, LGBTs, quilombolas), mobilizando assim, o discurso
das identidades para a luta política em favor da cultura e, também, faz referências a
profissões relacionadas ao campo cultural (trabalhadores, músicos, atores, circenses,
cineastas, produtores, promotores, pesquisadores, administradores, professores, poetas
e gestores). Além disso, tenta ampliar os possíveis interessados pela institucionalização
do MinC, convocando eleitores, cidadãos, público e pagadores de impostos para a luta
política em favor da permanência de um ministério no novo governo:
Nós, artistas, eleitores, cidadãos, trabalhadores, músicos, atores, circenses,
cineastas, produtores, coletivos, promotores, caiçaras, índios, negros,
mulheres, lgbts, quilombolas, pesquisadores, administradores,
patrocinadores, entusiastas, profissionais e amadores, público, pagadores
de impostos, professores, poetas e gestores, não nos resignaremos a esta
manobra política que carrega o Ministério da Cultura para a vala de uma
gestão obscura, de caráter provisório ou emergencial. A cultura se faz ouvir
em luta e união que o Ministério da Cultura fica!
(https://www.change.org/p/o-minist%C3%A9rio-da-cultura-fica-ficaminc).
Paralela à mobilização pela assinatura da Petição: #FicaMinC, foi criada a página
#FicaMinC | Pela Cultura e Pela Volta da Democracia no Facebook, também no mesmo
dia da Medida Provisória que extinguia o Ministério. Nesse primeiro dia, foram realizadas
sete postagens: 1) Imagem da frase: “Temos direito à cultura. Artistas brasileiros em prol
da permanência do MinC”; 2) Divulgação da petição no site secure.avaaz.org intitulada
Todos que amam a cultura: por um ministério da cultura independente que recebeu 3350
assinaturas, abaixo da meta de 10.000; 3) Foto com a frase “Em um lugar onde não há
atividades culturais, a violência vira espetáculo”; 4) Imagem com a frase do post 1
seguido do texto “Emergencial porque conservávamos esperança, mas estamos em franca
articulação. O primeiro passo é mostrar a todos a extensão desse retrocesso. Por isso,
espalhem a página, a imagem, usem a hashtag #ficaMinC. Precisamos de pessoas.”; 5)
Imagem da Medida Provisória seguida do texto “Será revogada. Ô se será! Articulemo-
nos.”; 6) Compartilhamento do post do ministro Juca Ferreira (Figura 2); 7) Imagem com
a frase do post 1 seguido do texto “Em 3 horas de divulgação chegamos a 1000 curtidas.
Continuemos a espalhar a ideia #ficaMinC! Estamos SIM interessadxs na Cultura!”.
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O post (Figura 2) de Juca Ferreira, então Ministro da Cultura, publicado ainda no
dia 12 de maio, com a foto da equipe do MinC, foi compartilhado por 26.319 perfis,
recebeu 2.100 comentários e 49 mil reações no Facebook. A redação do post reafirma a
centralidade da cultura e seu papel no desenvolvimento brasileiro e, também, coloca a
diversidade cultural juntamente com o par “singularidade brasileira”, por fim, ressalta as
ideias de cidadania, democracia e “construção de um Brasil justo e generoso”.
No dia seguinte, a página #FicaMinC | Pela Cultura e Pela Volta da Democracia
compartilha diversos posts de artistas apoiando o movimento, assim como notícias de
jornais. Ocupações de prédios – ligados à estrutura do MinC – são iniciadas em Curitiba
(PR) e São Luiz (MA). Caetano Veloso publica o artigo Sem festa no jornal O Globo no
dia 16 de maio, afirma que “a extinção do MinC é um ato retrógrado”, pois o Ministério
mostrou-se “necessário”. Destaca, por fim, a importância de quatro políticas
desenvolvidas pela pasta: a) projetos que tratam dos direitos autorais em ambientes
digital, b) política do audiovisual, c) Pontos de Cultura e d) atenção ao patrimônio
histórico. No final da matéria, há a opinião de 19 artistas sobre o fim do Ministério, a
maior parte reclama pela especificidade da cultura em relação à educação e consideram a
extinção do MinC um ato retrógado.
O Edifício Gustavo Capanema, que abriga a Representação Regional do MinC no
Rio de Janeiro, foi ocupado no mesmo dia da publicação do artigo de Caetano Veloso.
No dia seguinte (17/05), o Complexo Cultural Funarte de São Paulo (SP) e de Brasília
(DF), os institutos do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Aracaju (SE),
Fortaleza (CE), Natal (RN), Recife (PE) e Salvador (BA) são ocupados. Ainda nesse dia,
FIGURA 2 POST DO ENTÃO MINISTRO JUCA FERREIRA
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o movimento ganha visibilidade internacional com o protesto da equipe do filme Aquarius
no Festival de Cannes, denunciando o golpe de Estado no Brasil. A pressão gerou efeito:
no dia 21 de maio, o governo interino anunciou a recriação do Ministério. No entanto, as
ocupações de prédios persistiram em diversas cidades até o fim de julho de 2016.
Percebe-se, portanto, uma série de mobilizações realizadas por parte de artistas,
empresários, produtores, gestores culturais, ativistas e servidores do MinC tanto em redes
sociais como Twitter e Facebook quanto em ocupações de diversos prédios ligados à área
cultural em todo o país. Por outro lado, estes protestos se inserem num contexto de
instabilidade política e de uma sociedade polarizada e, ainda, dialogam (a favor ou contra)
com manifestações massivas que estão ocorrendo no país desde 2013.
Um debate emblemático é entre os que eram a favor e contra a recriação do
Ministério da Cultura. Membros do movimento Revoltados Online e Movimento Brasil
Livre, apoiadores do impeachment de Dilma Rousseff, foram vozes contra o movimento
#FicaMinC. Para esta posição, o Ministério e as leis de incentivo seriam uma fonte de
recursos para manter a classe artística. Sua proposta era de que os recursos investidos
“nos artistas”, fossem destinados à saúde e à educação. Essa posição reflete-se em
comentários dos posts da página #FicaMinC | Pela Cultura e Pela Volta da Democracia:
muitos perfis questionam a existência de um ministério específico para a cultura, pois ele
serviria apenas para manter artistas e que políticas culturais não são importantes. Em
resposta a esse argumento, a página faz um post com a imagem “Para você, o que é
cultura?”, com o seguinte texto:
Desde quinta-feira, quando lançamos a página, temos visto muitas
informações equivocadas sobre o que, de fato, é cultura, suas atuações
e sua importância. Então, resolvemos fazer essa ação para entender e,
em seguida, esclarecer os equívocos. Aguardamos as respostas de vocês
nos comentários! (Página #FicaMinC | Pela Cultura e Pela Volta da
Democracia, 2016)
Paralelamente, Em seu artigo, Caetano Veloso afirma que o MinC valorizou a
produção cultural brasileira, apesar das poucos verbas e que os artistas não são
dependentes de governo, em resposta à posição de grupos como Revoltados On-Line e
Movimento Brasil Livre:
Sem altas verbas (muito ao contrário), o MinC tem mostrado que o país
passou a dar à produção cultural o valor que ela merece. Sei que os
maluquinhos habituais vão repetir que os artistas famosos brasileiros
vivem do dinheiro do Estado, que querem mais, que são dependentes
do governo. Repetirão todas as bobagens que têm dito sobre a Lei
Rouanet e demonstrarão todo o ressentimento pelo que filmes, peças,
canções, escritos, desenhos, edifícios, estátuas, performances,
14
instalações, criações artísticas em geral representam quando atingem
multidões ou íntimas sensibilidades. Não. Eu digo NÃO. Os artistas que
se sentem atraídos pelo histórico do PT, o mais duradouro e estruturado
partido de esquerda do mundo contemporâneo, não são dependentes de
governo. Eu não sou dependente de governo. Tenho minhas opiniões
próprias e exibo as contradições de minhas buscas (Veloso, 2016).
O desdobramento da posição contrária ao movimento #FicaMinC, foi a criação da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar irregularidades na concessão de
benefícios fiscais previstos na Lei Rouanet presidida por Alberto Fraga (DEM-DF). A
CPI foi finalizada em abril de 2017 sem nenhuma denúncia.
Já no interior do movimento, pelo menos duas posições marcaram o #FicaMinC,
embora existam nuances entre elas: todas duas defendiam a recriação do Ministério, ainda
que uma não reconhecesse o novo governo. Havia, portanto, um consenso em favor da
reivindicação de uma pasta específica para a cultura, apesar do movimento ser
representado por diversos grupos que, a princípio, poderiam ter posições antagônicas:
servidores, ativistas e mercado cultural. Um exemplo desta tensão é descrita por Ariel
Nunes ao acompanhar uma assembleia de servidores do MinC durante a ocupação do
Edifício Gustavo Capanema no Rio de Janeiro:
A assembleia começou e eu percebia uma divisão nítida entre aqueles que
negociariam e os que não negociariam com o governo interino. Uma parte
dos servidores propunham criar uma “comissão de servidores contra o
golpe”, e outra parte dos servidores insistia no discurso sobre “o que é
possível se fazer nessa atual gestão”. As opiniões eram acaloradas. (Nunes,
2016: 7).
Os servidores do MinC foram fundamentais neste movimento por se aliar à luta
de grupos da sociedade que têm interesse na manutenção do ministério e,
consequentemente, na manutenção de políticas que garantam direitos inscritos na
Constituição brasileira. Eles se pronunciaram, por meio da associação de servidores, que
"a referida MP não contempla as especificidades da gestão cultural e coloca as conquistas
históricas do campo das políticas públicas da cultura em risco", reafirmando a
importância da cultura como "eixo estratégico para o desenvolvimento do Brasil nas suas
dimensões simbólica, cidadã e econômica".
Para demarcar posição, a página #FicaMinC acrescenta a frase Pela Cultura e
Pela Volta da Democracia no dia 19 de maio e afirma em um dos posts desse mesmo dia
(Figura 3), a impossibilidade de se fazer uma luta pelo Ministério num governo
considerado ilegítimo, demonstrando, assim, as diferenças de posições entre os
apoiadores do movimento #FicaMinC.
15
FIGURA 3 POST 19 DE MAIO 2016 DA PÁGINA #FICAMINC
Material e método
Para levantarmos os significados do termo políticas culturais pelo movimento
#FicaMinC, utilizamos as ferramentas Gephi e Netvizz de análise de redes para buscarmos
e analisarmos os dados do Facebook. Primeiro, buscou-se páginas por meio das palavras-
chave “Ocupa MinC” e “Fica MinC” no aplicativo Netvizz. Encontramos uma página com
o termo #FicaMinC e 18 páginas com o termo “OcupaMinC” que se referiam as
ocupações dos mais diversos estados listadas na Tabela 1.
TABELA 1 - PÁGINAS DOS MOVIMENTOS #FICAMINC E #OCUPAMINC
Nome da fanpage N°
Curtidas Link
#FicaMinC | Pela Cultura e Pela Volta da Democracia 40.609 https://www.facebook.com/ficaMinC/
Ocupa MinC RJ 55.433 https://www.facebook.com/OcupaMincRJ/
Ocupa MinC SC 7754 https://www.facebook.com/ocupamincsc/
Ocupa MinC BA 5074 https://www.facebook.com/Ocupa-MinC-BA-535590696620897/
Ocupa MinC DF 5727 https://www.facebook.com/ocupamincdf/
Ocupa MinC PB 2282 https://www.facebook.com/ocupamincpb/
Ocupa MinC RN 3045 https://www.facebook.com/ocupamincrn/
Ocupa MinC Belém 4360 https://www.facebook.com/ocupamincbelem/
Ocupa Minc PE 4796 https://www.facebook.com/ocupamincpe/
Ocupa MinC CE 5359 https://www.facebook.com/ocupamincce/
Ocupa MinC Porto Alegre 3081 https://www.facebook.com/ocupamincportoalegre/
Ocupa MinC TO 190 https://www.facebook.com/ocupamincto/
Ocupa MinC MT 862 https://www.facebook.com/ocupamincmt/
Ocupa MinC PI 1488 https://www.facebook.com/OcupaMinCPi/
Ocupa Minc MA | Espaço Comum de Cultura Ana Duarte 2251 https://www.facebook.com/ocupamincma/
Ocupa MinC AP 753 https://www.facebook.com/resistenciaculturalamapa/
Ocupa MinC Manaus 1672 https://www.facebook.com/Ocupa-MinC-Manaus-1623430094647211/
Ocupa MinC AL 172 https://www.facebook.com/Ocupa-MINC-AL-1898547540357563/
Ocupa MinC São Raimundo Nonato 375 https://www.facebook.com/ocupasrn/
16
Depois, aglutinou-se os dados dessas 19 páginas no Gephi, o que resultou 9318
nós (posts compartilhados entre elas) e 14430 laços entre estes nós. Para esta análise,
utilizamos os posts publicados nestas páginas durante o período de 12 de maio (data da
publicação da Medida Provisória que extingue o MinC) e 26 de agosto de 2016 (um mês
após a reintegração de posse da ocupação do edifício Gustavo Capanema no Rio de
Janeiro)4.
As postagens que mais receberam engajamento (curtida, comentário e
compartilhamentos) na rede das páginas que formamos foram: a) texto publicado na
página #OcupaMinC DF denunciando violência policial sofrida em um bar de Brasília no
dia 19 de julho após um ato de “beijaço LGBTTT’s”, b) vídeo da visita do ator Chico
Díaz a Ocupa MinC do estado do Ceará; c) chamada para doar aulas às ocupações de
escolas do estado de Mato Grosso; d) foto com momento da desocupação do estado do
Ceará; e) foto com a chamada “Funarte Brasília Ocupada”. Nos compartilhamentos,
apareceram dois posts novos em relação aos de maior engajamento: a) O manifesto Ocupa
MinC Brasil, produto do Encontro Nacional das Ocupas ocorrido em Brasília e b) o
evento Sexta Negra realizado pelo Ocupa MinC da Paraíba no dia 17 de junho, 29° dia
da ocupação.
Quanto aos usos do termo políticas culturais, buscou-se analisar os manifestos
das ocupações por sintetizarem suas ideias. Em todos os textos coletados, havia
referências ao não reconhecimento do governo interino de Michel Temer, pois “qualquer
tipo de negociação com o Palácio do Planalto é uma forma de legitimação do golpe”
(Ocupa MinC RJ, 2016). O documento Ocupa tudo: manifesto por uma desobediência
civil faz uma crítica ao Ministério da Cultura colocando em questão a maneira como seus
prédios produzem um modo de relacionamento elitista com os indivíduos. A ocupação
dos prédios do MinC seria uma atitude que possibilitaria trazer para esse aparato estatal
os corpos que se sentem repelidos por sua infraestrutura:
O Ministério da Cultura é um órgão elitista que não olha para os
movimentos sociais e nega os direitos das periferias. Os seus prédios se
tornaram quase míticos, ícones de um poder inacessível para quem não
conhece os códigos e não obedece a uma certa maneira de se vestir, de
falar e de se ver. Mas a cultura é do povo! Ela é das comunidades e dos
artistas populares que criam e compartilham. Ocupando, tomamos de
volta o que nos pertence. (Ocupa Tudo, 2016).
4Esta foi a última desocupação de prédios ligados à estrutura administrativa do MinC. Parte dos ocupantes
do Palácio Capanema ocuparam o prédio do Canecão no dia 01 de agosto de 2016.
17
Discussão
A maior parte dos textos apresenta definições de diversas identidades inseridas no
“nós” (artistas, mulheres, LGBTs, estudantes negros, quilombolas, indígenas, etc.)
mesmo que seja para se definir como “inclassificáveis”. Além disso, trazem menções ao
fazer artístico (artistas, trabalhadores da cultura, músicos, etc.) e a perspectiva de que são
cidadãos. A discurso da diversidade está inscrito nessas apresentações e, também, na
oposição ao governo de Michel Temer5, pois em seu primeiro escalão não havia nenhum
represente das identidades levantadas, assim, o manifesto do encontro das ocupações
aponta que é por meio “da presença, do convívio e do encontro com a diversidade” ser
possível “reexistir”.
Um dos usos da cultura identificados nestes documentos, foi o de cultura como
modo de vida que pode ser resumido no trecho abaixo, que também defende a cultura
como liberdade:
(...) entendemos a cultura como a própria forma como se organiza uma
sociedade em suas dimensões simbólica, social e econômica. E hoje é esta
forma que está ameaçada: a nossa livre expressão, o nosso direito de ser (Ocupa
MinC Porto Alegre, 2016).
A ideia de cidadania cultural também está presente nos manifestos, alguns
explicitam a Constituição de 1988 para afirmar que as ocupações são lutas por direitos
que estão ameaçados pelo novo governo, assim, a narrativa da resistência é quase
onipresente. O manifesto da Ocupa MinC SC (2016), por exemplo, propõe “instaurar um
ambiente de luta pela ampliação de acesso e desenvolvimento cultural e artístico da
sociedade”, trazendo a ideia de cultura como acesso, o que implica desigualdade. Nesse
mesmo sentido, o documento Ocupa Tudo afirma a importância de oferecer acesso à
população:
Estamos aqui debatendo uma nova maneira, mais popular e democrática, de
promover a cultura, no intuito de gerar políticas públicas e fazer as coisas
acontecer. Ocupar não é só denunciar, mas também mostrar. A programação
diária de eventos cariados e gratuitos, reunindo diversos públicos nesses
espaços historicamente silenciados, é uma prova prática da gestão errada do
nosso dinheiro pelo governo. Ocupar é um dever quando os espaços
disponíveis não tem funcionamento.
Além disso, o manifesto produzido pelo Encontro Nacional das Ocupações, faz
uma crítica aos processos de colonização vividos no Brasil, o que gerou e gera ainda que
contingencialmente uma crise de representação:
5 No mesmo dia que o Ministério da Cultura foi extinto, o presidente interino Michel Temer nomeou novos
ministros para todos os ministérios. Dentre os ministros nomeados, não havia nenhuma representação de
mulheres, de negros e da juventude.
18
(...) devemos desconstruir 500 anos de golpes contra nossa diversidade
cultural. Não engolimos mais um poder fundamentado no nepotismo e
na hereditariedade branca elitista. Esta opressão social nos impôs
subjetividades cartesianas, binárias, tiranas, que em nada tem a ver com
os “Brasis”. Crise de representação! Como parte deste processo de
colonização, o poder permanece concentrado nas mãos de
latifundiários, industriais, banqueiros, instituições religiosas e
monopólios das telecomunicações, que estão organizados para aniquilar
direitos fundamentais garantidos, como a Previdência, a Saúde
Universal, as Leis Trabalhistas e as demarcações de terra.
#Nenhumdireitoamenos! (Encontro das Ocupações, 2016).
Os documentos também explicitam a autogestão, a horizontalidade e a
desobediência civil como as formas em que as ocupações se organizam. Nesse sentido,
possuem propostas para o desenvolvimento da democracia:
Para assegurar uma democracia como merece nossa grandeza, o país deve se
abrir para a pluralidade de Modelos de Governabilidade, assim como
incentivar associações, cooperativas e outras organizações sociais. As
comunidades reconhecidas como Quilombolas, Aldeias Indígenas,
Assentamentos e Eco Vilas devem ser preservados no seu direito de
desenvolver micro-economias e autogestão, o que não significa que o Estado
não tenha a obrigação de garantir os diretos básicos de tais povos. (Ocupa
MinC BA, 2016)
O retrocesso de conquistas no âmbito das políticas culturais ensejou este ato
de desobediência civil. Em torno do tema da cultura, aglutinamos outros
setores da sociedade que também tiveram seus direitos subtraídos.
Construímos redes que fortalecem a luta por uma democracia radical, assim
decidimos continuar ocupando e resistindo. (Ocupa MinC MA, 2016)
Portanto, as ocupações se colocam como espaço do exercício de um novo tipo de
democracia por meio do ato de ocupar, o espaço público é o local desse tipo de fazer
político: “faremos a governança real e simbólica na luta pelos nossos direitos, ocupando
- de forma pacífica, mas contundente - o Palácio Gustavo Capanema sede do Ministério
da Cultura do Rio de Janeiro” (Ocupa MinC RJ). É por meio das ocupações que se
estabelecem ações e produções de novas maneiras de fazer políticas para desconstrução
das práticas do “machismo, da homofobia, do racismo, da família tradicional, do ego e da
propriedade” (Ocupa Tudo, 2016).
Alguns modelos de democracia que estão nas reivindicações dos movimentos são
àquelas que rompem com o colonialismo e traz uma perspectiva decolonial:
Somos o sonho do Quilombo Cultural Urbano, que se isola deste sistema
exploratório para enegrecer nossa história, romper fronteiras, diluir territórios
e descolonizar geral. Através da arte, dos “rolês” culturais e da “auto-trans-
formação”, desejamos recriar narrativas que provoquem o empoderamento em
massa e espaços novos de experiência democrática. (Encontro das Ocupações,
2016)
19
E, também, como uma forma de convivência entre as diferentes culturas de modo
a construir um modelo mais plural de divisão de poder:
A ocupação é (...) uma revolução pacífica e cultural contra o sistema,
uma desconstrução de paradigmas, um laboratório onde se
experimentam outras formas de viver, trocando uma versão
individualista por uma versão coletiva.
Ela é a convivência num único espaço de várias ideologias, culturas,
peles, experiências, idades, pensamentos, origens, classes, forças
políticas e movimentos sociais. Ela reúne pessoas que, às vezes, nem se
conheciam antes de ocupar junto. Dessa pluralidade de falas, acaba
nascendo uma comunidade que inventa novas formas de se relacionar.
(Ocupa Tudo, 2016)
O debate estabelecido na Unesco sobre a importância da cultura para o
desenvolvimento brasileiro encontra eco em algumas falas dos ocupantes dos prédios do
Ministério e no post do Ministro Juca Ferreira no Facebook (Figura 2) ao deixar o
ministério após o afastamento de Dilma Rousseff, percebe-se a filiação com os
documentos da Unesco ao afirmar “a centralidade da cultura no desenvolvimento do
Brasil”, sendo ela um recurso. Os servidores cumprem o papel de lutar pelos direitos
conquistados na Constituição de 1988 como apontado por Bourdieu. São eles também
que se manifestam atualmente contra o “desmonte” do MinC enquanto a sociedade está
desmobilizada.
Os movimentos culturais, ao ocupar os espaços do Ministério da Cultura,
operaram simbolicamente para reclamar a institucionalidade e a centralidade da cultura,
propondo novas formas de fazer políticas que agreguem a diversidade. Percebe-se que ao
reivindicar a diversidade, os movimentos acabam por se aproximar de debates sobre a
democracia próximos do pluralismo. Todo o artigo tentou demonstrar esse movimento.
Ainda que diversidade e pluralismo não sejam sinônimos, aprofundar o debate teórico
pode possibilitar uma compreensão de quais são as configurações que estes conceitos
polissêmicos se aproximam ou se separam e, também, definir melhor os pressupostos que
estão embutidos na aproximação semântica destes conceitos.
Entender o que grupos como do movimento #FicaMinC estão compreendendo
como políticas culturais, implica fazer a discussão das desigualdades de poder. Para o
grupo, o qual o cantor Caetano Veloso estava representando ao escrever seu artigo sobre
a necessidade de um ministério, estão embutidas as relações de poder que eles
representam. Assim, a primeira política que Caetano afirma ser importante é a de
regularização do mercado musical no ambiente digital, implicando aqui uma das funções
do Estado, levantada por Bourdieu (2014: 52) “é uma das funções do Estado construir
20
mercados”. Outros grupos, ao colocar a necessidade de um Ministério da Cultura, coloca
também como necessidade sua reformulação e, como consequência, a construção de um
modelo que abarque o diverso em sua estrutura, afirmando o modelo proposto por Chantal
Mouffe.
Considerações Finais
Este artigo buscou compreender quais foram os usos do termo políticas culturais
disputados pelo movimento #FicaMinC, surgido a partir da ação de diversos grupos que
reivindicaram a manutenção do Ministério da Cultura (MinC), extinto por meio da
Medida Provisória. Para isso, tentou-se demonstrar a importância da centralidade da
cultura para mobilização deste movimento que reuniu interesses diversos que partiam do
mercado, de servidores do MinC e de grupos ativistas.
Entende-se que este artigo demonstrou, ainda que preliminarmente, a
possibilidade de trabalhar com dados das redes socais. A metodologia de análise de redes
sociais pode ser aprofundada em um estudo posterior. Embora as hashtags #FicaMinC e
#OcupaMinC aglutinam os discursos daqueles que faziam parte ou simpatizavam com as
reivindicações destes movimentos, elas não são as melhores escolhas para acompanhar o
debate de grupos contra a recriação do Ministério da Cultura. A densidade dos dados das
páginas do Facebook com os termos “FicaMinC” e “Ocupa MinC” foram bem próximas
a zero, demonstrando que os atores estão pouco conectados com a rede total do Facebook,
o que prejudica o fluxo de informações com os demais grupos. É necessário empregar
ferramentas para averiguação da existência de perfis que são, em realidade, “robôs”
(contas automatizadas que permitem a massificação das mensagens).
Além disso, a discussão sobre pluralismo e diversidade pode ser aprofundada em
um futuro estudo, buscando encontrar as conexões entre os dois termos em documentos
da Unesco de forma a identificar quais significados dessas categorias o órgão mobiliza e
a interlocução com os discursos apresentados pelo movimento #FicaMinC.
Sugere-se, ainda, em um futuro estudo a ampliação do escopo de análise para
termos como “Lei Rouanet”, presente na principal crítica realizada pelos grupos que se
colocavam a favor da opção do governo interino e contra o movimento #FicaMinC para
entender quais usos da cultura essa posição mobiliza.
21
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