Ética sexual apontamentos 2

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    Parte III

    O AMOR E A SEXUALIDADE

    A sexualidade é, entre as realidades humanas, uma das que está mais adjacente à pessoa. Merece assim uma atenção muito especial dentro deste curso de moral da pessoa. Entre as temáticas que mereceram um acolhimento mais desenvolvido nahistória da teologia moral, a sexualidade e o amor têm também um lugar muito

     particular. Devendo discorrer sobre a sexualidade humana desde vários pontos de vista,começamos pelo ponto de vista antropológico1.

    1. Antropologia da sexualidade

     Nesta compreensão antropológica da sexualidade, seremos guiados por uma pretensãosistemática, colhendo elementos nas várias dimensões de que a sexualidade humana éfeita enquanto realidade complexa que transcende e supera cada uma dessas dimensões.

    1.1. Começamos pela dimensão biológica da sexualidade. Mesmo aqui, não nosinteressa descrever o sexo a nível cromossómico, nem gonádico, nem hormonal, nemanatómico. Interessa-nos colher o significado da dimensão biológica para umacompreensão global da sexualidade. Em ordem a isso, fazemos algumas observações.Em primeiro lugar, é de evitar a redução da sexualidade ao seu aspecto biológico (ou"genital"), como é de evitar o contrário, isto é, tentar compreender o sexo somentedesde "cima", sem o alicerce biológico.

    A consideração da sexualidade a partir da biologia dá-lhe, antes de mais, umsignificado procriativo o qual, mesmo assim, não está automaticamente regulado, ouseja, é objecto de responsabilidade. Acrescente-se também que este significado não

    esgota a sexualidade: esta, na espécie humana, está também relacionada com a quechamamos dimensão unitiva.

    Em segundo lugar, a sexualidade aparece aos olhos do biólogo como "um luxo" daespécie. Um luxo, pois a reprodução seria possível de uma forma muito menoscomplicada e dispendiosa para a espécie; e um luxo pelo desperdício de elementos (de

    1 Neste capítulo seguiremos fundamentalmente: M, VIDAL,  Moral de la Persona, 441 - 808. Sobre ateologia e a moral da sexualidade existem alguns bons estudos que são pressupostos nesta exposição. Porexemplo: A. VALSECCHI,  Nuevos camiños de la ética sexual , Salamanca 21976. J.M. POHIER,  Lechétien, le plaisir et la sexualité, Paris 1974. M. ORAISON,  Le mystère humain de la sexualité, Paris

    1966. E. FUCHS,  Desiderio e tenerezza. Fonti e storia di un'etica cristiana della sessualità e delmatrimonio, Torino 1984.

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    espermatozóides, por exemplo) com vista à fecundação. Isto mostra que a sexualidadenão é "uma necessidade" da natureza e que a regulação da fecundidade não há-de servista moralmente apenas enquanto interrupção da potencialidade criadora.

    A terceira observação prende-se com o facto de à sexualidade estar ligado prazer. Istodeve ser admitido como "um facto", sem o absolutizar e sem o desprezar: desligando-o, para já, da questão do pecado, ou precavendo-nos também de ver o prazer como "umengodo" da natureza com vista a garantir a procriação.

    Vejamos agora algumas repercussões para a dimensão moral que decorrem dasexualidade vista a partir da biologia. Em primeiro lugar a verificação de que asexualidade não é exclusiva da espécie humana, embora, no homem, tenha a

     particularidade de chegar à consciência. Daqui decorre que a sexualidade não éregulada simplesmente pela força hormonal mas é um impulso humano, quer dizer,dotado de plasticidade e moldabilidade (não se pode pois regular a sexualidade só em

     base à biologia).Em segundo lugar, verifica-se uma indiferenciação ou bipotencialidade originária dofeto, no que se refere ao sexo masculino ou feminino, a qual se orienta

     progressivamente para uma especificidade, embora a parte preterida permaneça noindivíduo e reapareça, quanto aos caracteres externos, em outras alturas da vida. Daquidecorre que a diferenciação para ser masculino ou feminino é também uma tarefa daconsciência.

    Em terceiro lugar, vemos que, a partir da biologia, o comportamento sexual humano,não sendo determinado pelo bio-psiquismo, exige ascese para se tornar comunicante eoblativo.

     Neste âmbito, pode perguntar-se: o exercício genital da sexualidade é uma necessidadeorgânica? Respondemos verificando que, no varão, o desejo e a actividade sexualdependem de um processo psicogenético, o mesmo acontecendo na mulher, embora deforma diversa. Nem no homem o desejo sexual vem da acumulação de esperma, nemna mulher vem da ovulação. Por isso, concluímos com três afirmações: não se podemaplicar ao comportamento humano, indiscriminadamente, as leis etológicas sobre odesencadear do instinto sexual; a fisiologia não pode ser decisiva para a regulaçãohumana do comportamento sexual; a prática da sexualidade a nível genital não é umanecessidade fisiológica imperativa.

    1.2. Referimos, em segundo lugar, a dimensão psicológica da sexualidade. Sementrarmos em grandes pormenores, a psicologia diz-nos que a sexualidade é umarealidade vivida ou seja que a sexualidade. No ser humano, se faz conduta humana.Mais importante para nós é dizer algo sobre a dimensão psicológica para acompreensão global da sexualidade.

    Quanto a isto, afirmamos, em primeiro lugar, que a sexualidade se apresenta como umaforça construtora do "eu" da pessoa. Isto em dois aspectos: primeiro em chave deamadurecimento do sujeito que a vive e, em segundo, enquanto força que deve serintegrada totalmente no âmbito pessoal.

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    Como segundo aspecto, a sexualidade apresenta-se-nos como uma função hermenêuticada própria pessoa, quer dizer, esta exprime-se de forma privilegiada pela suasexualidade. E quanto a este último ponto, é importante anotarmos alguns aspectosnegativos desta expressão, uma vez que estes nos aparecem com frequência na tarefa

    educativa e pastoral: a fixação (o sujeito fica preso a um período da sua evolução quedevia ter superado, sobretudo devido a experiências negativas); a regressão (depois dehaver alcançado um período posterior, o sujeito regressa a um estádio anterior e fixa-senele fortemente); a progressão lenta; a repressão (um automatismo psíquico pelo qual oego se defende de uma realidade desagradável ou desejo insatisfeito reduzindo-a aoesquecimento, esquecimento este que se manifesta de outro modo, normalmente pelaagressividade); substituição-compensação (as fantasmagorias do mundo irrealsubstituem o mundo real da sexualidade).

    1.3. Em terceiro lugar, referimos a dimensão dialógica da sexualidade. Esta dimensãoestá em estrita concomitância com a anterior, ou seja, é enquanto integrativa da pessoa

    (dimensão psicológica) que a sexualidade tem a ver com a dimensão inter-pessoal(dimensão dialógica). Uma e outra das dimensões se referem ao mesmo dinamismo: faz parte da integração da pessoa a sua imprescindível abertura e oblação ao outro.

    É certo que também este processo de integração da sexualidade enquanto abertura àalteridade passa por uma evolução complexa em que os momentos mais importantessão a adolescência, na qual cada pessoa descobre "o outro" heterosexual no planoemocional e afectivo. Descobre-o, primeiro, de forma desajeitada e medrosa e, depois,de forma integrada e pessoal, numa juventude mais amadurecida. Normal é que esteencontro leve ao enamoramento, ao noivado e ao matrimónio ou então à virgindadeconsagrada ou ao celibato assumido.

    Esta fase não está isenta de perigos (a descoberta do "outro" sexo). Os maisimportantes são conhecidos por "solução anti-edípica" (escolha do par como

     prolongamento de uma situação doentia na relação com o pai ou a mãe) ou "soluçãohiper-edípica" (o par é escolhido como continuação da relação com o pai ou a mãe). Asolução normal pode ser expressa, na terminologia de Jung como o encontro entre"animus" e "anima".

    Esta consideração da sexualidade enquanto realidade que manifesta o carácter dialógicodo ser humano é um aspecto imprescindível para a compreensão global da sexualidade.Diz-nos, antes de mais, que a verdadeira identidade sexual amadurece somente com aabertura ao "outro", à "outra" sexualidade. O impulso sexual vivido sem esta abertura

    conhece certamente formas aberrantes, desumanas ou infra-humanas. De forma que,dizemos, em segundo lugar, que a chave para compreender humanamente a sexualidadeé, precisamente, este aspecto dialógico. Sem ser dialógica, a sexualidade do homemnão é humana.

    1.4. A sexualidade requer ser vista também no seu aspecto sócio-cultural, ou seja,enquanto hermenêutica e enquanto configuração da realidade social. É um dadoevidente que a sexualidade tem implicações a nível social e vice-versa. O ponto deencontro entre a sexualidade e a dimensão sócio-cultural é definido pelos sociólogosem termos de "a formação de um excedente impulsivo sexual", constituído pelo aspectonão-regulado, pelo excesso, pelo não-simplesmente-natural da sexualidade humana.

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    Ora com isto pode fazer-se um pansexualismo humano (a sexualidade directa menteligada a todos os aspectos da vida) ou então orientá-lo dentro da superestrutura social,organizadora desse excedente sexual em instituições não directamente ligadas com oexercício da sexualidade.

    Mas os sociólogos falam de outro aspecto. É sabido que na sexualidade humana oinstintivo-biológico tem reduzido o seu poder orientador de tal forma que ocomportamento humano se torna em grande parte "imprevisível", não excluída ahipótese de cair na perversão. De forma que é necessária a institucionalização social

     para garantir a correcta finalização da sexualidade.

    Um terceiro aspecto tem a ver com quanto já foi dito. É sabido como na sexualidadehumana se pode separar o prazer da finalidade biológica. Ora não está excluída ahipótese de isolar o aspecto "prazer" e operar uma fixação nele por parte das pessoas.Ainda aqui, a sociedade se apropria da sexualidade em ordem a canalizar o prazer para

    uma harmonização intersubjetiva e não para o sensualismo puro e simples.O comportamento sexual humano tem pois uma clara configuração social que faz parteintegrante dessa sexualidade (não é apenas um elemento ajuntado). De forma que

     podemos fazer duas observações. Primeiro dizemos que existe uma inter-relação entre aconfiguração de uma sociedade e a compreensão da sexualidade vigente nessasociedade: as duas coexistem de uma forma dialéctica. Outra observação: asconfigurações sociais da sexualidade são históricas e mutáveis. Sendo assim, não

     podemos tomar como válidas do ponto de vista ético, necessariamente, todas as formassociológicas da sexualidade. A moral julga e crítica as diversas formas de configuraçãosociológica da sexualidade e não o inverso.

    1.5. Intentamos ainda dizer uma palavra propriamente filosófica sobre a sexualidade. Éuma palavra árdua de dizer uma vez que o tema da sexualidade não teve fortuna, deuma forma geral, no pensamento filosófico. Este panorama tem-se vindo a alterar no

     período mais recente com a publicação de importantes estudos, assinados por grandesnomes. Escreve P. Lain Entralgo (Teoria y realidad del otro, II, 179): "DesdeFeuerbach (Grundsatze der Philosophie der Zukunft, 1843) e Otto Weininger(Geschlecht und Character, 1903), e com intenção mais biológica (Steinach, Marañon)ou mais filosófica (Ortega, Merleau-Ponty, Guitton, Marías), diversas vezes sesublinhou que o sexo - a condição viril ou feminina da pessoa - impregna e qualificatodas as actividades do ser humano" (cit. in MP, 478).

    Esta afirmação de que o homem é um ser sexuado, e que não apenas tem um sexo eexerce uma função sexual, quer dizer que a sexualidade humana, para além de estarligada à conservação da espécie, é um princípio de configuração do sujeito, umaestrutura configuradora da existência humana: "o homem percebe, sente, pensa e quercomo varão e como mulher" (LAIN). Mesmo ao nível da linguagem, os autores tentamdar conta destas duas dimensões da sexualidade. J. GUITTON propõe que se fale de"sexismo" (uma sexualidade de conjunção ordenada à reprodução) e de sexualidade (asexualidade de alteridade). Por sua vez, J. MARÍAS diz que o homem em concreto nãoé um ser sexual mas sexuado, para, com esta distinção, chamar a atenção para adistância existencial que o homem tem de percorrer para "se instalar" (Marías) comosujeito na sua sexualidade e de a não viver apenas como um facto não assumido.

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    Por sua vez, P. RICOEUR (Finitude e culpabilidade) fala da sexualidade comoencontro do vital e do humano, para notar como a sexualidade é o lugar privilegiadoonde aflora a desproporção entre o vital e o humano: "Daqui se deduz que a satisfaçãosexual não pode reduzir-se ao simples prazer físico: através do prazer, o ser humano

     procura satisfazer outras exigências que vêm recarregar o 'instinto'; assim entra nele oindefinido e assim se vai humanizando simultaneamente: o instinto vai perdendo o seucarácter cíclico e abrindo-se sem fim" (cit. in MP, 480).

    Outros autores como LAIN ENTRALGO (Teoria v realidad del otro) e M. BUBER (Eue Tu) chamam a atenção para outros aspectos importantes. O primeiro, chama a atenção

     para a sexualidade como expressiva do carácter simultaneamente "indigente" e"oblativo" da pessoa humana. Buber, por sua vez, vê a pessoa constituir-se como "eu" a

     partir da abertura ao "tu" e vê o amor, não como algo ligado ao "eu" do qual o "tu" éobjecto, mas como algo que está entre os dois e os constitui simultaneamente comosujeitos que dizem "nós".

    De muito interesse seria determo-nos na particular concepção de M.MERLEAU-PONTY (Fenomenologia da percepção) que coloca o corpo do homemcomo eixo do conhecimento ou, mais em concreto, como manifestação da existência(tanto autêntica como existência anónima). Ora, a sexualidade (entre outras formas deintencionalidade como a motricidade e a inteligência) é um signo privilegiado daexistência assim concebida, pois nela aparece de modo especial o corpo. Ainda aqui oAutor se dá conta da não-coincidência da sexualidade: diz que há um nível

     pré-consciente em que se dá uma identificação entre sujeito e objecto e depois um nívelconsciente que é feito de "desejo". O desejo está no centro da percepção, pois é o sinaldo corpo tornado transparência e lugar de encontro inter-subjectivo. Esta visão tem avantagem de mostrar a sexualidade como uma dimensão de toda a existência, evita odualismo antropológico e não restringe sexualidade a genitalidade.

    Concluimos esta breve incursão no significado existencial da sexualidade dizendo queela é o lugar da vivência da vida e da morte. Nisto consiste o seu mistério e o seuaspecto "tremendum et fascinosum". Na sexualidade se mostra o triunfo da vida, aexuberância, a festa, a alegria. Porém, a sexualidade é, ao mesmo tempo, expressão damorte e vivência antecipada da morte. Através dela, o individuo está na origem da vida(de resto, num processo que lhe escapa), mas ele próprio não controla a perenidade desi mesmo. M. ORAISON, num livro famoso (Le mystère humain de la sexualité)afirma: "Estranha sexualidade que é a encruzilhada da consciência de si mesmo emrelação com os outros, do ser e do tempo, da vida e da morte"2.

    1.6. Fazemos ainda referência à dimensão mistérica da sexualidade, ou seja, àsexualidade como abertura para o mistério. A primeira forma que pode revestir estaabertura para o mistério inerente à sexualidade é representada pela regulamentação dasexualidade sob a forma de "tabú" (esta forma caracteriza-se por ser um ordenamentode tipo "sagrado", cuja transgressão origina uma sanção pesada, imediata e irracional).Pode ser um tabú religioso (se referido a uma transcendência) ou tabú mágico (se é

    2  Entre os estudos filosóficos recentes sobre a sexualidade e o significado do erótico, citamos um de particular importância: J.-L. MARION. Le phénomène érotique. Six méditations, Paris, Grasset, 2003.De

    género mais sociológico, mas também sugestivo : A. VAN SEVENANT, Sexual Outercourse. Philosophy of Lovemaking , Leuven –  Paris  –  Dudley MA, 2005.

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    apenas intramundano). Os "lugares" tabu são sobretudo o adultério, o que se podechamar sexualidade anárquica, o incesto, a virgindade antes do casamento.

    Outra forma em que se vê a abertura da sexualidade para o mistério é o mito e o rito.

    Sabemos como, principalmente nas civilizações da antiguidade, estes mitos e ritosabundavam, sobretudo em relação com a fecundidade, com a paixão amorosa e com o próprio matrimónio. Estas formas de cultura reflectem uma particular mundividência e,sobretudo, localizam na sexualidade uma grande abertura para a dimensãomistérico-religiosa do mundo.

    Estas formas de cultura são certamente pouco humanizantes em muitos dos seusaspectos. Isso não tira, porém, que a sexualidade seja uma abertura do humano para oabsoluto. Primeiro, porque a sexualidade tem uma infinita potencialidade parasimbolizar o religioso. Basta lembrar como a Bíblia se serve da sexualidade paraexprimir a Aliança de Deus com o povo, de Cristo com a Igreja, ou lembrar a

    experiência de fé expressa por um grande número de autores místicos. Outro aspecto éa capacidade celebrativa do comportamento sexual, o qual facilmente faz a ponte para avida plena de alegria plena e gozo imperecível. Enfim, a análise antropológica dasexualidade mostra-a como abertura para a transcendência. Citemos um textosignificativo:

     Na nossa cultura, com um acento muito mais típico do que em outras, aactividade sexual apresenta-se sob a forma de uma experiência conflitual. Isto querdizer, por exemplo, que quanto mais forte é a sua tendência para o objecto em que

     pode encontrar repouso, tanto mais operantes são as forças de rivalidade agressiva quese põem em movimento; quanto mais alto é o impulso para o gozo que se crê possívelno encontro sexual, tanto mais intimamente se sentem as limitações; quanto mais

    vislumbrada é a expressão pessoal e comunitária que pode ser actuada pelasexualidade, tanto mais intenso é o sentimento de solidão, mesmo de estranheza, que

     pode derivar dela; quanto mais ampla é a exigência de se sentir presente entre oshomens e no mundo, de uma forma tão robusta e profunda como é a sexual, tanto maisdolorosa resulta a percepção, continuamente palpitante, de que a morte pode emqualquer momento assinalar-lhe o fim. Não se abre precisamente nesta situaçãoconflitiva de viver a sexualidade uma brecha onde assoma a indizível necessidade detranscendência? Se a sexualidade é, tal como se nos apresenta, uma realidade tão

     paradoxal e enigmática, não esconderá também em si mesma o valor de uma referênciavital a uma comunhão finalmente resolutiva e beatificante, a comunhão com Deus? (A.VALSECCHI,, cit. in MP, 495 s.). 

    À busca deste sentido último da sexualidade como abertura à transcendência se movem

    certamente as modernas utopias de uma sexualidade libertada e libertadora, nãodizemos já de W. Reich, mas pelo menos de H. Marcuse com a sua utopia de uma"erotização integral da sociedade". Como quer que seja, vemos que existe, ao lado dasdiversas hermenêuticas que temos vindo a analisar, uma hermenêutica religiosa dofenómeno sexual, como bem assinala M. Vidal.

    2. A Sexualidade na cultura actual

    Dizemos uma palavra final sobre a sexualidade na sociedade actual. Tentando umadescrição do fenómeno sexual na sociedade actual, podemos empregar a palavra

    "erotização", entendendo por ela a concentração da nossa cultura sobre o aspecto

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    não-biológico da sexualidade, sobre aquele excedente de impulso que é exclusivo dohomem em confronto com os animais. Esta situação tem raízes no desenvolvimento dasciências psicológicas, na libertação literária do erotismo (literária que também inclui ocinema e o vídeo), no feminismo em geral. Este estado de coisas reflecte uma

    emancipação social, uma concentração urbana da população, uma massificação semprecrescente da cultura. E reflecte-se num enorme e bem explorado "consumismo erótico".

    Outro aspecto a assinalar é o facto de que a extensão crescente do fenómeno erótico ofaz baixar de intensidade, de qualidade e de valor pessoal e personalizante. Mas maisgrave que isto é que a sexualidade massificada é indicador seguro de fenómenos deregressão (hipergenitalização infantil) e de patologias (hiper-exibicionismo). Emmuitos casos, o sexo funciona como um narcótico da ansiedade, uma alienação.

    Como compreender este estado de coisas? Devemos antes de mais evitar cair num pessimismo exagerado. Este estado de coisas corresponde, sem dúvida, a uma maior

    liberdade individual, em confronto com formas de comportamento exageradamenteinstitucionalizadas e ritualizadas socialmente. A este propósito é conveniente lembrarum critério de A. GEHLEN (cf MP, 501 s.) segundo o qual o nascimento e a descobertada alma (psique) procedem da decadência das formas ou instituições sociais. Quer dizerque um exagerado peso da instituição não favorece a comunicação nem a

     personalização dos indivíduos. Apesar da verdade deste facto, não podemos deixar deassinalar o exagero deste regredir do peso da instituição. De facto, na sociedade

     pós-moderna, a função estabilizadora que desempenhava a instituição transferiu-se, emgrande parte, para um sem número de práticas de terapia psicológica.

    Esta situação tem várias consequências ao nível da vivência da sexualidade.Primeiramente, observa-se como o homem actual se vê a si mesmo como alguém que

     busca o prazer e está autorizado a procurá-lo por todos os meios: exercendoindiscriminadamente o sexo, colocando o sucesso no amor como critério de vida (igualao económico). Daqui deriva a angústia e o medo de não poder aguentar um nívelelevado de prestação nesse campo; deriva ainda a redução da sexualidade ao genital e aconsequente exclusão da fecundidade. A mentalidade reduz a conduta ao instinto e crêfervorosamente no mito da normalidade estatística. Isto equivale a uma perda dosentido do amor que P. Ricoeur caracteriza pelos aspectos: (1) insignificância (perda

     progressiva do valor do sexo e despersonalização até ao anonimato); (2) exacerbaçãodo erotismo por todos os meios até à total dependência; (3) finalmente, a queda noabsurdo. O absurdo vem da total dependência do exercício sexual, seguindo o esquemaconsumista geral vigente na sociedade.

    A situação que vimos de analisar e ajuizar brevemente tem valores e contra-valores.Diante deste facto, existem várias propostas de libertação da sexualidade como forma

     privilegiada de contribuir para a libertação do homem. Neste contexto, a fé cristã tem asua palavra profética a dizer. Primeiro, para desmascarar uma situação em que asexualidade funciona como meio de "distração" ou "alienação" em relação aosverdadeiros problemas sociais, económicos e políticos de que as pessoas e associedades padecem. Em segundo lugar, denunciar a sexualidade vista como"consumo" e o erotismo ao serviço do consumo. Em terceiro lugar, denunciar asexualidade colocada ao serviço da repressão social e inventar novos modos de colocaro excedente de impulso sexual ao serviço de verdadeiros valores, sobretudo na

    civilização do ócio e do tempo livre que, segundo tudo leva a crer, se aproxima.

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    Finalmente, livrar a sexualidade das falsas sacralizações de que padece no nossomundo secularizado. Neste sentido escreve H. COX (A cidade secular): "Nenhumaspecto da vida humana ferve com tantos demónios por exorcizar como o sexo.

     Nenhuma actividade está tão abrumada pela superstição, tão assediada pelo saber

    residual da tribo, tão acossada pelo temor socialmente induzido. Numa visão profundamente teológica há que declarar-se contra as 'sacralizações' actuais dasexualidade. A 'mulher', tal como a fabricam os meios de comunicação social, é umídolo. Ora como todo o ídolo, ela é, no fim de contas, uma criação das nossas própriasmãos e não pode salvar-nos".

    É no interior desta suprema ambiguidade em que move a sexualidade humana que devefazer-se ouvir a palavra profética da teologia. Uma palavra ao serviço do homem e dasua libertação de uma teoria e de práticas alienantes em que ele constantemente cai aoquerer-se emancipar.

    3. O Cristianismo e a sexualidade

    Fazemos uma alusão às complexas relações entre o cristianismo e a sexualidade,considerando a grande actualidade do tema, sobretudo devido aos constantesmal-entendidos que afloram ao quotidiano, sobretudo através da comunicação social.

    Começamos por aludir a alguns tópicos de conflito entre o cristianismo e a sexualidadee por analisar-lhes a origem. Sem falar de um "síndrome de sexofobia dentro da Igreja"(Pfürtner), verificamos que, historicamente, a atitude do cristianismo para com asexualidade apresenta aspectos de medo e de desvalorização. Na actualidade, podem-se

    contar entre os campos que continuam problemáticos dentro da Igreja: o celibatoobrigatório dos padres seculares, a valorização moral dos métodos de regulação dosnascimentos, o tratamento pastoral dos divorciados que voltaram a casar, o lugar damulher na Igreja (enquanto está relacionado com preconceitos de ordem sexual). Ocampo da sexualidade é dos que mais conflito cria entre teologia e magistério, entre

     pastoral e magistério. Qual a origem de uma tal conflitualidade no terreno dasexualidade?

    Esta conflitualidade não provém da genuína tradição bíblico-teológica. Entre as causasremotas deste conflito, podemos encontrar várias. Em primeiro lugar, a influênciaestóica no cristianismo nascente. Esta influência manifesta-se na visão unilateral dasexualidade ordenada para a procriação e a consequente justificação do acto conjugalcom esta exclusiva finalidade. Esta ideia, naquilo que tem de negativo, mantém uminfluxo visível ainda nos nossos dias.

    Em segundo lugar, a influência do dualismo helénico e do neo-platonismo na moral dosPadres da Igreja e na história que se seguiu. Este influxo mostra-se no desprezo damatéria (portanto, do corpo do homem), na classificação da sexualidade como algo"baixo" e que deve ser restringido ao mínimo, no desprezo do prazer ligado ao corpo eao sexo ( em favor do prazer do sábio, intelectual).

     Nesta sequência de influências não genuinamente cristãs na mentalidade cristã, podemos ainda enumerar uma visão da sexualidade baseada em pressupostos não

    suficientemente esclarecidos do ponto de vista científico (como o papel da mulher na

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    geração das crianças desconhecido até ao séc. XIX e outras "fantasmas" como anocividade da masturbação, etc.), na influência de movimentos moralmenteextremistas, tanto históricos como actuais.

    Para pormos em evidência os pontos de contraste da tradição desfocada, perguntemo-nos quais os pontos em que assenta uma visão genuinamente cristã dasexualidade?

    Assenta, antes de mais, num princípio de dessacralização operado pela tradição bíblicaem relação à sexualidade. Deus é visto como "único" (Dt 6, 4), como um Deus que fala(Ex 3, 15) e existe em solicitude pelo povo (Ex 20, 1-3). É um Deus criador etranscendente. Coisa única no ambiente oriental é o facto de que Deus não apareceligado a mitos de ordem sexual. O atributo de Deus como Pai (Ex 4, 22 s.; Os 11, 1 s.)não tem a ver com a fecundidade de Deus mas com uma particular relação com o povo.Ao ver Deus como transcendente e criador pela palavra, o homem toma consciência da

    sua "separação" e distância em relação a Deus. A visão neo-testamentária deDeus-amor (trindade) enriquece enormemente a compreensão de Deus, masmantém-lhe a carácter de transcendência. De forma análoga, no ambiente bíblico sãoextirpados todos os tipos de ritos sexuais (Dt 23, 18 s).

    Outro pilar é o princípio de humanização. Quer dizer que, livrando a sexualidade detoda a mitologia e mistificação, o cristianismo a transfere para o âmbito humano, darealização humana, isto é, para o âmbito ético. Este aspecto está bem patente nosrelatos bíblicos das origens que colocam a sexualidade no âmbito da relaçãointerpessoal (Gn 2, 18), pressupondo a rigorosa igualdade dos sexos (Gn 2, 19-23) e oseu comum destino ao amor conjugal (Gn 2, 24 s.). Outra série de textos chamam aatenção para o homem como "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1, 27), estando asexualidade incluída nesta "imagem e semelhança", para a mesma igualdade dos sexos(Gn 1, 28 s.) e para a fecundidade (Gn 1, 28). Nestas narrativas inultrapassáveis que aBíblia coloca no seu princípio, encontramos uma profunda visão da sexualidade e doamor, visão esta que é o protótipo da compreensão distintamente cristã destasrealidades. Vemos que os elementos integrantes da sexualidade não se encontramseparados mas integrados na perspectiva do encontro de amor inter-pessoal, na base daigualdade das pessoas e da abertura à fecundidade. As formas aberrantes dasexualidade como a bestialidade e a homossexualidade estão excluídas à partida. Oencontro de amor sexual inter-pessoal é uma realidade do mundo criado por Deus,colocada sob a responsabilidade moral do homem, a qual Deus criador "viu que eramuito boa" (Gn 1, 31).

     Não quer isto dizer que a Bíblia não seja realista e não se refira à ambiguidade querodeia a sexualidade. O texto conhece o drama do pecado e vê a sexualidade como umarealidade ameaçada por causa de um acto responsável da liberdade humana. Adiferença entre o "antes" e o "depois" deste pecado do homem e da mulher é ligada aotema do pudor. Antes "estavam ambos nus e não se envergonhavam" (Gn 2, 25) edepois "abriram-se-lhes os olhos e viram que estavam nus" (Gn 3, 7). A sexualidade éum mistério de luz e sombra, uma realidade necessitada de redenção.

    Uma visão tipicamente cristã da sexualidade conhece ainda o que se pode chamar princípio de integração do amor humano no mistério da salvação. É sabido como os

     profetas se servem da metáfora do amor humano para falar da relação de Deus com o

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    seu povo (cf. Os 1-3; Jr 2, 20-25; 3, 1-5; Ez 16; Is 54, 60-62). Não se trata de umasimples comparação mas da abertura do amor humano para uma nova meta: este deverealizar a nível humano a realidade do amor de Deus para com o povo (fidelidade,entrega total, exclusividade).

    Esta intuição da revelação vetero-testamentária abre sobre um novo princípio: arevelação plena do amor, em Cristo. A sexualidade encontra no acontecimento e namensagem de Jesus a sua revelação plena de um modo original. Primeiro comosexualidade ligada ao amor conjugal reconduzido "ao princípio" (Mt 19, 3-12; Mc 10,1-12), princípio que na realidade é o verdadeiro paradigma do amor: a aliança de Cristocom a Igreja. Mas o NT tem algo de original relativamente a vivência da sexualidade.Esta originalidade consiste na revelação do amor virginal. Sobre isto façamos algumasobservações. 0 aspecto de originalidade aparece tanto mais que o AT não teve apreço

     positivo pela virgindade; muito pelo contrário. Em contraste com isso, Cristo viveu asua doação total aos outros numa virgindade total. A Igreja das origens fala desta nova

    dimensão de vivência do amor na moral do Reino em Mt 19, 10-12; 22, 30; Lc 14, 26;1 Co 7. Mas há ainda algo importante a dizer: estes dois modos de viver a condiçãohumana não são independentes sem relação um com o outro: antes se revelammutuamente no seu valor humano e salvífico e têm sentido de existir ambos. Nenhumdeles pode reivindicar o exclusivo da vida em Cristo. A virgindade revela o verdadeirosentido da fecundidade e a conjugalidade ensina à virgindade a não ser egoísta nemangelical.

    O mal-entendido histórico e actual entre cristianismo e sexualidade não é poisirredutível nem essencial. A teologia pode e deve desenvolver-se de uma formaantropologicamente pertinente para os nossos contemporâneos. Na sua missão proféticasobre a sexualidade, o apostolado encontrará sempre a incompreensão mas e necessárioque essa incompreensão não provenha da assimilação pelo cristianismo de elementosque lhe são estranhos historicamente.

    4. A Moral sexual na Bíblia e na história

    Passamos a um novo ponto constituída pela abordagem histórica da moral dasexualidade.

    4.1. Começamos por fazer referência à Escritura para colher o modo normativo deconsiderar a vida sexual, uma vez que já vimos o sentido da sexualidade e do amor naEscritura no ponto anterior.

    Quanto ao AT, vemos que a poligamia era tolerada, embora parece que por uma pequena parte do povo, e não era considera da a forma ideal de vida que era amonogamia que vinha do princípio (Gn 2, 21-24; 7, 7) e foi adoptada pela descendênciade Cain (Gn 4, 19). Aparece também regulado o levirato (Gn 38; Dt 25, 5-10) e orepúdio (Dt 24, 1) que as mulheres não podiam pedir. A fidelidade conjugal é protegida

     por lei: o adultério é pecado contra Deus, infidelidade ao consorte e atentado à propriedade alheia (Ex 20, 14-17). Era punido com a pena de morte (Lv 20, 10; Dt 22,22), mas apenas para a mulher vigorava em todo o rigor. Não se fala directamente derelações pré-matrimoniais: em caso de sedução, o homem devia desposar a vítima e não

    tinha direito de repudiá-la posteriormente (Ex 22, 16; Dt 22, 28 s.). Existem também

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    normas de moral individual: conselhos sobre a mulher "perigosa" (Pr 2, 16-19; 5,2-14); reprovação da homossexualidade (Lv 18, 22; 20, 13; do travestismo (Dt 32, 5); a

     bestialidade (Lv 18, 23, etc); a prostituição (Dt 23, 18; a fornicação (Pr 29, 3; 31, 3 -era uma forma de dissipar a fortuna e o vigor, embora não punida por lei). Havia um

    grande número de normas relacionadas com a sexualidade que tinham carácter predominantemente tabuístico (sobre a menstruação, o parto, a polução, o acto conjugalque eram regulados na base do puro-impuro). A literatura sapiencial desenvolveu areflexão moral na esteira da mensagem profética. Lembramos as belas reflexões sobre afidelidade conjugal (Pr 5, 15-19); o retrato da mulher ideal (Pr 31, 10-31) e também damulher má (Eclo 25, 24-35); a belíssima narrativa do matrimónio de Tobias e de Saraonde transparece amor personalista, fecundidade, temor religioso; ou então o hino aoamor humano erótico que é o Cântico dos Cânticos.

    O NT não contém uma ordem normativa desenvolvida sobre a sexualidade. Reevoca amensagem genesíaca (Gn 1-2) sobre a igualdade, atracção e sentido da diferença dos

    sexos (cf. pelo contrário: Gl 3, 28 e 1 Co 11, 3-16 cujo sentido é outro em ambos oscasos). A indissolubilidade do matrimónio é guardada respeitando a palavra do Senhor(Mt 19, 3-12; Mc 10, 1-12), embora haja casos problemáticos (Mt 19, 9; 5, 32; 1 Co 7,15 s.). Em caso de conversão, é permitida a separação (1 co 7, 10 s.). Mas existemoutras normas: proíbe-se o matrimónio em certos casos (Rm 7, 3; 1 Co 5, 15);admitem-se os matrimónios mistos (1 Co7, 2-17). Existe um sentido salvífico para asexualidade que origina normas práticas (Ef 5, 22-33). A sexualidade aparece como umdireito e um dever recíprocos entre os esposos (1 Co 7, 3-6), vistos com igualdignidade, coisa notável no mundo judaico onde a mulher era um "meio" para ohomem procriar. Não se alude à contracepção. Esta moral sexual é aplicada aosministros da Igreja (1 Tm 3, 1-12) e às viúvas (1 Tm 5, 3-16), cujo novo matrimónionão era bem visto na Igreja primitiva. Não se alude aos celibatários pela força dascircunstâncias sociológicas.

    Fala-se de pecados de sexualidade, em termos que não contêm normalmente pormenores e vêm integrados em catálogos de virtudes e vícios (Rm 13, 13; 1 Co 5,9-11; Gl 5, 19; etc). Vejamos os principais pecados.

    A fornicação (porneia). Esta palavra aparece com significados variados no NT. Paranós, interessa no sentido geral de luxúria, ou seja, relação sexual homem-mulher forado matrimónio, que tanto pode ser fornicação estrita (1 Co 6, 12-20), como adultério (1Co 7, 2), como incesto (1 Co 5, 1). A fornicação recebe uma qualificação fortementenegativa ("exclui do Reino"), por razões teológicas importantes (cf. 1 Co 6, 16-20):

    separa do corpo de Cristo a quem o cristão pertence; introduz a desordem numa pessoaque é templo do Espírito Santo, isto é, que não pertence a si mesmo.

    Depois, temos o adultério que é grave tanto para a mulher como para o homem (1 Co 6,9; Hb 13, 4), porque atenta contra a indissolubilidade do matrimónio, sacramento daunião de Cristo com a Igreja.

    A homossexualidade é sintoma, para Paulo, da "in-justificação" dos gentios (Rm 1, 26s.) e consiste em "mudar a ordem da natureza (pará physim) estabelecida por Deus".Exclui também do Reino de Deus.

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    A quanto parece, o NT não alude ao autoerotismo nem à bestialidade, esta últimareferida no AT. Pelo contrário, o NT alude aos pecados do desejo (Mt 6, 28), ou seja,um "pathos" tendente para a acção nesta linha de sexualidade, pecado que é grave naradicalidade da moral do NT. Neste género se inclui também "a concupiscência dos

    olhos" de que fala 1 Jo 2, 15-17.4.2. Como viveram moralmente a sua sexualidade os cristãos dos primeiros tempos daIgreja? Desde os Padres Apostólicos que encontramos alguns elementos sobre isso. Na"Didaqué", aparece o modelo dos "dois caminhos" (de vida moral, o caminho do bem eo caminho do mal) onde se diz: "não matarás, não cometerás adultério, nãocorromperás os jovens, não fornicarás, não praticarás a magia nem a feitiçaria, nãomatarás o filho no seio da mãe nem o recém-nascido" (2, 2); "Não sejas cobiçoso(epithumia), pois essa concupiscência conduz à fornicação, nem desonesto nas tuas

     palavras, nem altivo nos teus olhos, pois essas coisas geram o adultério" (3, 3). O temados "dois caminhos" também aparece na Carta de Barnabé. As coisas mais reprovadas

    são: a fornicação, o adultério, a pederastia, o aborto.Podemos já ver uma teologia larvar das virtudes na "Carta de Clemente" Romano aosCoríntios (30, 1). Por sua vez, Inácio de Antioquia é muito interessante quando motivaa moral no mistério de Cristo: os esposos amem-se como Cristo ama a Igreja (Ad Pol.5, 1).

    Os Apologistas do séc. II fazem o elogio da moral cristã. Justino afirma: "Os que antesnos comprazíamos na dissolução, agora abraçámos a castidade..." (Apol. I, 19). E aCarta a Diogneto: " (Os cristãos) casam-se como todos; como todos geram filhos masnão abandonam os recém-nascidos. Têm em comum a mesa mas não o leito" (5, 6). 0Cristianismo representou uma revolução da sexualidade no contexto do ImpérioRomano.

    Quanto aos Padres propriamente ditos, salta aos olhos, nesta teologia da sexualidade, ovalor que outorgam à virgindade. Muitos deles escreveram tratados sobre a virgindadecomo realidade típica do cristianismo. No contexto do Império Romano, esta "boanotícia" da vida virginal apareceu como um bálsamo refrescante, tal era o estado deaviltamento a que tinha chegado a sexualidade, em vastos sectores da população. Istolevou, em alguns casos, a uma acentuação unilateral, a desvalorizar o matrimónio e,

     portanto, a sexualidade exercida. Para avaliar a moral dos Padres não podemos também perder de vista o contexto polémico sobre esta questão (as ideias de seitas como osencratistas, o gnosticismo, o montanismo, o priscilianismo), e também que foram

    elaboradas em confronto ou sob a influência da filosofia popular de então, sobretudo oestoicismo e o neo-platonismo.

    Sobre a moral matrimonial propriamente dita, podemos dizer que consideram o actoconjugal como um acto lícito, mas que é sempre acompanhado de alguma falta. S.Agostinho 3   estabelece as seguintes regras: abster-se do acto conjugal é prova devirtude superior; servir-se dele para a procriação é lícito; se na sua realização prevalecea intenção voluptuosa, então é pecado. Como esta última é difícil se controlar, segue-seque o acto conjugal muito dificilmente está isento de pecado. Quer dizer então que aúnica justificação para o uso da sexualidade no matrimónio é a procriação. E mesmo

    3 S. AGOSTINHO, De bono coniugali , PL 40.

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    aqui, referem-se a diversas circunstâncias em que os casais se deviam abster. Entreessas: durante a menstruação da esposa, durante a juventude, na velhice, em vista de ecomo modo de preparação para a comunhão eucarística; antes das festas 1itúrgicas,durante a quaresma e todos os domingos.

    Em alguns Padres, pode-se já encontrar um esboço de espiritualidade matrimonial.

    Como é de esperar, falam também de pecados ligados com a sexualidade matrimonial:adultério, fornicação, incesto, aborto, homossexualidade, bestialidade.

    Um assunto que merece a nossa atenção: falaram os Padres de contracepção? Alguns,sim. Santo Agostinho condena explicitamente e menciona os processos usados: drogas,relações incompletas ou sodomíticas. Acha que são procedimentos contranatura.Condena também a continência periódica com o fim de evitar filhos, raciocinando na

     base da finalidade do acto conjugal. Outros Padres que se referem à contracepção são

    Cirilo de Alexandria e Cesário de Arles.4.3. Sobre a história da vida moral na Idade Média temos de fazer algumas observaçõesdistintivas de diversos períodos. Na Alta Idade Média (séc. VII-XII) temos umareflexão medíocre e uma casuística da sexualidade extremamente rigorista a ponto denão verem o sexo nem como um valor humano, quanto mais cristão.

    A partir do séc. XII temos dois elementos a considerar: primeiro o aparecimento doamor cortês e o desenvolvimento de uma literatura que o celebrava, sobretudo na figurada mulher, um tanto idealizada; depois o aparecimento de seitas heréticas, como oscátaros, que propagaram um conceito totalmente pessimista sobre a sexualidade e omatrimónio.

    A reflexão teológica conhece algo de novo com S. Alberto Magno e S. Tomás deAquino. A novidade consistiu em realçar, na esteira de Aristóteles, o carácter "natural"e por isso honesto por si mesmo do sexo, da relação conjugal e do prazer queacompanha toda a função natural. Esta ideia simples levou a dizer que o acto conjugal é

     bom e necessário, deixando-se de recorrer ao esquema das "desculpas". S. Tomáscoloca a ética sexual no âmbito da virtude da temperança, com as vantagens e defeitosdessa colocação. Diga-se, em abono da verdade, que esta direcção indicada pelo DoutorAngélico no sentido de "naturalizar" a sexualidade não entrou de uma vez na reflexãoteológica. 0 que vingou nos séculos XIV e XV foi predominantemente o ockamismoque é individualista, extrinsecista, voluntarista e legalista. Continuou-se a reflexão

    sobre as motivações ou justificações para o uso do matrimónio, embora um poucomenos rigoristas agora (o prazer ou a saúde tendem a ser razões válidas). A moral destetempo vem nas "Summa confessorum" que dão um lugar exagerado à casuística sexual.

    4.4. A Idade Moderna é muito complexa quanto ao nosso assunto. A viragemantropológica do Renascimento, o contacto com os povos não-europeus, o movimentoemancipatório (nomeadamente da mulher), a revolução industrial, a concentraçãourbana da população trouxeram muitos elementos novos à compreensão do amor. Se aisto ajuntarmos a perda de influência da coesão social própria do Antigo Regime, odesenvolvimento das ciências humanas que "naturalizaram" o sexo, o leis como odivórcio, encontramos um conjunto de elementos que configuram muito diversamente a

    vivência da sexualidade.

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    M. Vidal propõe uma norma dita do seguinte modo: é moralmente bom o que personaliza o homem (e é moralmente mau se o despersonaliza). Esta norma é paraentender com muita sabedoria, e é muito mais exigente do que uma casística

     pretensamente completa mas que não está ao serviço do crescimento da pessoa. Sobreesta personalização de que a sexualidade moralmente boa está ao serviço, dizemos queela tem em conta uma visão cristã da pessoa: quer dizer da pessoa existindo em Cristo esendo destinada a viver plenamente por participação plena na páscoa de Cristo feita demorte, ressurreição e de parusia. Do ponto de vista teológico, personalizar é desinstalaro "homem velho" (ou "carnal"), e viver como "nova criatura". Quer dizer que o homemtem origem a partir do outro e consuma na comunhão e que, por conseguinte, a suasexualidade consiste em ser integrada na comunhão com Cristo e com os outros.Trata-se, então, de uma sexualidade receptiva e oblativa, integrada rigorosamente noâmbito pessoal (que não quer dizer individual ou privado).

    Falar de sexualidade integrada no âmbito pessoal significa também que a tarefa moralconsiste em integrar a sexualidade nesse âmbito. E aqui precisamos de uma teoria psicológica que nos dê conta da totalidade da personalidade humana. Por personalidadeentende-se geralmente "o conjunto ordenado, equilibrado e disciplinado de reservasdinâmicas, conscientes e livremente integradas pelo ser humano no seu 'EU' interior"(MP, 599). A personalidade é pois um ponto de chegada de muitos factores ambientais,educacionais, mas sobretudo livres e que portanto dependem de uma ascese bementendida, os quais, todos em conjunto, estruturam a personalidade.

    Dentro destas orientações, as normas de ética sexual devem ter em conta dois princípios. Primeiro que existe uma diferenciação de pessoa para pessoa a qual não éum dado pré-constituído em série, reagindo do mesmo modo. Depois, o princípio da

     progressão, ou seja, que cada pessoa vive um processo de amadurecimento em quechega progressivamente à possessão de todas as áreas da sua personalidade.

    Vemos assim que a sexualidade não é um âmbito da pessoa que possamos facilmente"objectivar", isolando cada um dos seus aspectos, uma vez que está estritamenteaderente à pessoa como tal. Educar a pessoa moralmente bem coincide com orientarmoralmente bem a sua sexualidade.

    Vejamos agora as coisas pela negativa: em que consiste, seguindo esta perspectiva, afalha moral sexual (o pecado)? Os manuais tradicionais tiveram tendência a reduziresse conceito de pecado a uma actuação deslocada dos órgãos sexuais genitais, à perda

    do sémen, à busca indevida do prazer. Era um esquema impessoal.

    De tudo quanto dissemos antes sobre a pessoa como comunhão e da sexualidadeintegrada nessa comunhão, resulta que o pecado consiste na individualização dasexualidade. Individualizar significa não integrar na totalidade aberta da pessoa oumesmo permitir que a sexualidade arruíne o edifício da pessoa fechando-a em simesma, num auto-amor desordenado, numa fixação doentia no prazer. Podemos dizerque todo este comportamento pecaminoso da sexualidade consiste no narcisismo.Albert Plé diz que "ser casto" consiste em "desnarcisar" a sexualidade ou seja integrar asexualidade numa relação pessoal autêntica.

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    A tradição diz que nos pecados de sexualidade não existe parvidade de matéria. Nósnão queremos aqui entrar nessa complicada questão. Dizemos apenas que é medida

     prudente não baratear uma realidade que os nossos antepassados, com a sua melhor boavontade, não conseguiram resolver. E por isso continuamos a dizer que os pecados

    contra a sexualidade têm uma gravidade grande, em geral. Esta atitude é aliásconsonante com a grande importância que damos à sexualidade como expressão da pessoa e como realização dela. De forma que toda a falta no que à sexualidade se refereafecta a pessoa de muito perto.

    5.2. Quanto à formulação de normas concretas no domínio da sexualidade, dizemos queelas devem ter muito em conta a sua significância, isto é, ser expressão efectiva de umvalor significante para as pessoas a quem é dirigida a mensagem. Por isso fizemos todoo discurso do início deste capítulo. Se integrarmos estas normas na visão positiva dasexualidade que tentámos elaborar, elas serão certamente mais aceites pelas pessoas.

    Segundo M. Vidal (MP, 614), as normas de ética sexual hão-de formular-se eentender-se segundo os seguintes critérios: não como normas deontológicas, ou seja, deuma moralidade absoluta, mas sim com "uma validade geral"; terão uma funçãodinâmica e pedagógica, quer dizer, como expressões generalizadas do modelo moralque é apropriado para cada pessoa na realização concreta da sua vocaçãoresponsabilizadora. Nem abstracionismo; nem relativismo. Ambos desprezam a pessoa.

    6. Moral sexual especial

    Depois de vermos esta normativa geral para uma ética da sexualidade, vejamos agora a

    sua aplicação a alguns campos de moral sexual especial.5.1. Começamos por algumas observações sobre a relação heterossexual. Mais

     precisamente, esta relação heterossexual entende-se como um diálogo cujas exigências podemos exprimir como segue: ser, primeiro, um diálogo de amor e de um amoroblativo, como é próprio do universo pessoal. Não pode ser uma sexualidade dosimples prazer nem da posse egoísta do outro. Certamente este diálogo respeita adiferença do outro, a diferença sexual a todos os níveis. Este diálogo sexual assumeformas diversas segundo a evolução da personalidade e da pessoa ao longo da sua vida.

    A abertura ao "tu" interlocutor de diálogo heterossexual é da ordem do conhecimento eda intercomunicação de sujeitos. Quanto ao conhecimento do sexo contrário, é muitonecessário evitar que os adolescentes tenham de o procurar através da pornografia oude uma imaginação doentia. Quanto à intercomunicação heterossexual esta é

     progressiva, situando-se o nível psíquico e moral, numa fase posterior á puberdade, edeve crescer para eliminar o egoísmo e exploração mútua que sempre está presente.

    Do ponto de vista moral, a teologia tradicional tratou das manifestações heterossexuaissob a forma de "actos venéreos" ou de "actos impúdicos", dentro dos pressupostos aque já largamente fizemos alusão. A verdadeira colocação será dentro dos actos

     pessoais de diálogo heterossexual ou de pudor sexual

    Entre alguns destes actos, aludimos ao olhar. O olhar, enquanto forma de encontra entre

    duas pessoas, pode ser: (1) quanto à intenção: inquisitivo, objectivizante, olhar aberto e

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    receptivo, petitivo, efusivo ou auto-doante (Lain Entralgo); (2) quanto à profundidade:olhar dos olhos, olhar da alma, olhar do fundo da alma. Como forma de diálogoheterossexual, o olhar não pode ser objectivizante ou coisificante, superficial,

     provocador. Neste caso, revela uma sexualidade adolescente e imatura, de sentido ético

    distorcido. Lembremos que a Bíblia dá uma grande importância ao olhar (cf. Mt 5, 28).Além do olhar, podíamos aludir à carícia ( o mesmo se pode dizer do tacto e da dança).A carícia pode ser hedonista (egoísta) ou benéfica. Esta é também uma forma delinguagem que vai desde a carícia e o beijo da mãe ao seu filho até à carícia

     propriamente erótica. Nos seus vários níveis, importa que seja uma autêntica linguagemde amizade ou amor.

    6.2. Passamos agora a algumas observações sobre o autoerotismo. Este fenómeno étambém conhecido com o nome de masturbação, ipsação ou, mais incorrectamente,como onanismo, etc.

    Para estudar convenientemente o autoerotismo do ponto de vista moral, temos de fazeralgumas observações de ordem antropológica, uma vez que este comportamento é umsintoma que nos fala da pessoa em sentido mais amplo do que a sexualidade

     propriamente dita.

    É irrecusável que este fenómeno assume grande relevo do ponto de vista estatístico,tanto nos homens como nas mulheres, embora nestas seja menos frequente. Isto é umdado a ter em conta, mesmo em alguns dos seus pormenores, como seja que, de ummodo geral, a frequência do fenómeno se intensifica entre os treze e os dezassete anos.Mas a estatística não decide da normalidade moral ou não do fenómeno. Do ponto devista médico, dizem os entendidos que o autoerotismo electivo dos adolescentes ou"substitutivo" dos adultos não tem consequências danosas para a saúde (a não ser queassuma uma frequência muito exagerada, doentia, portanto). Por isso, também não se

     pode avaliar moralmente a partir deste ponto de vista.

    Do ponto de vista psíquico, o fenómeno merece especial atenção. Primeiro para lhedetectar as causas. Parece que factores de índole hereditária podem ser despertados porcondições ambientais e provocar o autoerotismo. Mais importante são os factorestemperamentais: parece que as pessoas introvertidas têm mais tendência do que asextrovertidas para o fenómeno. Além destes, existem factores como o ambientefamiliar que não dê segurança à criança e ao adolescente, a resolução deficiente docomplexo de Édipo, o ambiente escolar adverso, enfim, a sedução (por outra pessoa)

    estão na origem do fenómeno masturbatório. Os mecanismos psíquicos, mediante osquais se realiza o fenómeno auto-erótico, podem ser: a repressão, a fixação, o trauma(uma iniciação brutal), a regressão.

    O fenómeno autoerótico pode apresentar-se segundos tipos muito diversos. Osignificado varia segundo a evolução psicossexual do indivíduo: é diferente noadolescente e no adulto. Pode ter um significado predominantemente "moral"(significado egoísta) ou de anormalidade psíquica (masturbação neurótica). Quanto àfrequência, pode ser acidental ou habitual. Outra distinção conhecida é entre: actomasturbatório (a masturbação do adolescente ou o autoerotismo "substitutivo" doadulto); comportamento masturbatório (quando o acto passa a repetido e de livre passa

    a compulsivo e obsessivo); estrutura caracterial masturbatória (indica uma grave

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    falência psicológica no domínio sexual e noutros). Ao avaliar moralmente oautoerotismo é necessário ter em conta estas (ou outras) distinções e dar a cada uma umtratamento adequado.

    Sabemos como a avaliação moral do autoerotismo tem uma história trabalhada.Certamente a Bíblia não se refere a este facto, nem mesmo os Padres da Igreja dos primeiros cinco séculos da Igreja. O fenómeno começou a ser longamente tratado noslivros penitenciais da Alta Idade Média, com um grande rigorismo. Igualmente, duranteséculos, a avaliação moral do fenómeno masturbatório foi feita com base numconhecimento científico deficiente (perda do sémen era igual a debilitação da saúde e

     perda da vida). Nos últimos cinco séculos, os autores falam de uma verdadeiraobsessão com o fenómeno masturbatório. A avaliação moral que resulta destes

     pressupostos é nitidamente rigorista. Resulta de uma exagerada consideração biologistada sexualidade e de uma visão desta exclusivamente ordenada à procriação. Na base deque princípios havemos de avaliar moralmente o autoerotismo?

    Vejamos o que diz B. HARING (Livres e fiéis em Cristo, vol. II, p. 544): ''A síndromeda masturbação é particularmente sério quando demonstra narcisismo, umaprisionamento ao eu egoísta". "Uma avaliação aproximada da situação dos jovens queainda não se sentem aptos a dominar o problema só é possível quando existe a

     preocupação de verificar se o quadro global apresenta características de crescimento oude estagnação. A masturbação pode ser um sintoma sério de estagnação ou até dedecadência ou ainda um sintoma de ambiente perturbado ou de relacionamentosdesajustados". "A autoexcitação habitual por parte de adultos pode representar umsintoma sério que denote uma gama variada de dificuldades, de falhas e de fracassos.Mas, se for o caso de pessoas generosas, que se esforcem sinceramente para combater omal, a suposição é a de que, subjectivamente, não se trata de um grande pecado, masque, ao contrário, o problema pode explicar-se como uma mistura de sofrimento e deegoísmo ainda não superado. Então, o imperativo moral consiste em aceitar

     pacientemente o que não pode ser curado e, simultaneamente, lutar com maiorgenerosidade para conquistar a maturidade e a magnanimidade em todos os sectores davida".

    6.3. Outro problema sério é o da homossexualidade.

    Segundo M. Vidal (MP, 655), entende-se por homossexualidade "a condição humanade um ser pessoal que, no nível da sexualidade se caracteriza pela peculiaridade desentir-se constitutivamente instalado na forma de expressão exclusiva em que o partner

    é do mesmo sexo".

     Numa breve consideração antropológica sobre este fenómeno, fazemos duasafirmações: a homossexualidade nem se integra bem no âmbito da enfermidade nem noda "variante" da sexualidade; e seguidamente: o melhor modo de entender ahomossexualidade é enquanto condição sexual de uma pessoa que se deteve no

     processo de diferenciação que leva a viver a sexualidade desde a diferençavarão-mulher.

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    A doutrina católica 4   usa uma distinção conhecida no tratamento do fenómeno: adistinção entre estrutura ("constituição patológica - vitiata constitutio ") ecomportamento homossexual ("actos privados da sua necessária e essencialordenação"), que nunca podem ser aprovados moralmente. No que toca ao tratamento

     pastoral das pessoas homossexuais, por outro lado, recomenda uma grande benignidadee um anúncio cheio de esperança de superar tal condição e comportamento.

    Esta doutrina católica segue na esteira da valoração fortemente negativa que a Escriturafaz da homossexualidade, acentuada pela postura judaica violentamente anti-grega,onde esta prática era comum. Esta posição está condicionada por alguns pressuspostosmenos aceitáveis sobre a sexualidade, como sejam, uma visão procriativista, atendência para a negação do prazer sexual, o reducionismo naturalista, uma culturaandrocêntrica (que não podia admitir o homossexual, sobretudo masculino).

    Existem actualmente algumas tendências teológicas que tendem a rever esta posição

    excessivamente rigorista. Citamos apenas, com M. Vidal, este passo de M. Oraison: "O prazer compartilhado pode ser uma expressão de amor, na media em que se o vivanuma relação inter-subjectiva conseguida... O prazer erótico não forçosamenteexpressão do amor, ou seja, de uma relação verdadeiramente inter-subjectiva. Pode ser"solitário", pode buscar-se também com um companheiro, colocado no lugar deobjecto, como instrumento da excitação... Mas pode ser verdadeiramente relacional .Um sujeito homossexual não  pode sentir-se atraído por este prazer que não seja comum sujeito do mesmo sexo. Isto representa, como se viu, um inacabamento da evoluçãoafectiva, uma imperfeição no que respeita ao acesso à diferença. Porém, o homossexualnão pode mudar nada em semelhante situação que sofre contra a vontade. Não é,

     portanto, impossível que nesta situação que é a sua, chegue a viver uma relação eróticacom um companheiro (a) igualmente homossexual que seja, no nível em que lhe éacessível , a expressão de uma verdadeira relação inter-subjectiva. Pode falar-se, em talcaso de um 'pecado'?"5.

    Uma reflexão teológico-moral sobre o fenómeno homossexual deve manter-se abertauma vez que os dados antropológicos não são convincentes e a aportação

     bíblico-histórica sobre o fenómeno é influenciada por pesados pressupostos culturais. Ateologia moral tem de estar atenta a isto e desenvolver a sua avaliação do fenómeno emsentido positivo e libertador da pessoa e da sua sexualidade. Neste sentido tem de relercom atenção sempre crescente as fontes bíblicas e a tradição muito complexa nestecampo. A teologia moral tem de ser muito criadora sobretudo para inventar modosredimidos de vida para as pessoas (que são em percentagem reduzida) cuja

    homossexualidade é irreversível e às quais é quase inútil apresentar os caminhos daheterossexualidade ou da abstinência total sem mais.

    6.4. Neste curso entendemos como um dado adquirido que a autêntica forma devivência da sexualidade em sentido estrito é a forma conjugal ou matrimonial. E sobreeste ponto, neste momento, não nos demoramos mais. Temos, porém, de dizer algosobre dois pontos importantes: as relações sexuais pré-matrimoniais e as relaçõessexuais extra-conjugais.

    4  CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Persona Humana , 1976 e Carta aos

     Bispos da Igreja Católica sobre a cura pastoral das pessoas homossexuais, 1986.5 M. ORAISON, El problema homosexual , Madrid 1976, 130 s. Cit. in MP, 7 ªed, 273 s.

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    cultura e numa história e numa sociedade. As tentativas de fundamentar a unidade eindissolubilidade do matrimónio no amor das "duas" pessoas é puro romantismo: ahistória e a sociedade fazem parte do conceito de "pessoa". Finalmente, dizemos que éem nome destas ideias (integradas num contexto de criação e redenção) que a fé cristã

    entende a institucionalização da sexualidade que chamamos "matrimónio" e não a partir de inúmeros elementos que as diversas ciências nos fornecem sobre as formas dematrimónio tanto no tempo como no espaço. A partir destes princípios, vemos como asrelações sexuais esporádicas, seja qual for a condição das pessoas que as pratiquem, serevelam inautênticas, interesseiras e alienantes, quer dizer, para nós, imorais.

    Damos assim por percorrido este capítulo sobre a sexualidade humana, o seu valormoral, o seu significado salvífico. Se muitas vezes a nossa exposição moral mostrou"portas fechadas" neste domínio da vivência da sexualidade é certamente para preveniras pessoas sobre caminhos alienantes e despersonalizadores "que não conduzem anenhuma parte". É na base do seu Evangelho sobre o Homem Novo em Cristo que a

    Igreja e a teologia evangelizam a sexualidade. Isso deveria ser sempre mais evidente para que a mensagem cristã aparecesse como "boa noticia" também no referente àsexualidade.