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Director: Eduardo Lourenço Fundação Res Publica 73 A CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU “Quo Vadis”, Europa? Eduardo Lourenço Uma Nova Social-Democracia Moderna Guilherme d’Oliveira Martins As Regras de Oiro da Senhora Merkel Fernando Pereira Marques Crise do Euro e Modelo Social Europeu Glória Rebelo O Estado Social em Causa: Instituições Sociais, Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto Europeu Elísio Estanque Como a Reconstrução Ideológica É Indispensável ao Projecto Social Europeu José Nuno Lacerda da Fonseca Rousseau, Trezentos Anos Depois Joaquim Jorge Veiguinha Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e Crítico Fernando Pereira Marques Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de Labirintos Guilherme d’Oliveira Martins Eduardo Lourenço e João Martins Pereira: Conversa com Abril em Fundo Manuela Cruzeiro O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves Redol David Santos A Mentira que Causa Deleite João Soares Santos Para Uma Ética Republicana Fernando Pereira Marques Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011 Joaquim Jorge Veiguinha Preço: 15“Quo Vadis”, Europa? Eduardo Lourenço As Regras de Oiro da Senhora Merkel Fernando Pereira Marques Rousseau, Trezentos Anos Depois Joaquim Jorge Veiguinha Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de Labirintos Guilherme d’Oliveira Martins ISSN 0871-7982 Euro A Crise do E o Futuro do Modelo Social Europeu

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Director: Eduardo LourençoFundação Res Publica 73

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“Quo Vadis”, Europa?Eduardo Lourenço

Uma Nova Social-Democracia ModernaGuilherme d’Oliveira Martins

As Regras de Oiro da Senhora MerkelFernando Pereira Marques

Crise do Euro e Modelo Social EuropeuGlória Rebelo

O Estado Social em Causa: Instituições Sociais,Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto EuropeuElísio Estanque

Como a Reconstrução Ideológica É Indispensável ao Projecto Social EuropeuJosé Nuno Lacerda da Fonseca

Rousseau, Trezentos Anos DepoisJoaquim Jorge Veiguinha

Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e CríticoFernando Pereira Marques

Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de LabirintosGuilherme d’Oliveira Martins

Eduardo Lourenço e João Martins Pereira: Conversa com Abril em FundoManuela Cruzeiro

O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves RedolDavid Santos

A Mentira que Causa DeleiteJoão Soares Santos

Para Uma Ética RepublicanaFernando Pereira Marques

Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011Joaquim Jorge Veiguinha

Preço: 15€

“Quo Vadis”, Europa?Eduardo Lourenço

As Regras de Oiro da Senhora MerkelFernando Pereira Marques

Rousseau, Trezentos Anos DepoisJoaquim Jorge Veiguinha

Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de LabirintosGuilherme d’Oliveira Martins

ISSN 0871-7982

EuroA Crise do

E o Futuro do Modelo Social Europeu

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DIRECTOREduardo Lourenço

DIRECTORES-ADJUNTOSAntónio ReisFernando Pereira Marques

COORDENADORJoaquim Jorge Veiguinha

CONSELHO DE REDACÇÃOAlberto Martins, Diogo Moreira, Eduardo Geada, Elísio Estanque, Glória Rebelo, Guilherme D’Oliveira Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires

CONSELHO EDITORIALAndré Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis, Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha, Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas

Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 73 – Primavera/Verão 2012Design e Produção: Garra Publicidade, SAApoio à Redacção: Sofia NascimentoRegisto de Título nº 113 463Depósito Legal nº 43 418/91Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1400 Lisboa Telfs.: 21 301 39 09 | Fax: 21 301 59 56 E-mail: [email protected]

1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A4 de 25 linhas.

2. A revista não se compromete a devolver textos não solicitados.

3. Os artigos assinados são da responsabilidade dos seus autores.

4. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem.

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A CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU

“Quo Vadis”, Europa?Eduardo Lourenço

Uma Nova Social-Democracia Moderna Guilherme d’Oliveira Martins

As Regras de Oiro da Senhora MerkelFernando Pereira Marques

Crise do Euro e Modelo Social EuropeuGlória Rebelo

O Estado Social em Causa: Instituições Sociais, Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto Europeu

Elísio Estanque

Como a Reconstrução Ideológica É Indispensável ao Projecto Social Europeu

José Nuno Lacerda da Fonseca

IDEIAS

Rousseau, Trezentos Anos DepoisJoaquim Jorge Veiguinha

CULTURA

Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e CríticoFernando Pereira Marques

Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de LabirintosGuilherme d’Oliveira Martins

Eduardo Lourenço e João Martins Pereira: Conversa com Abril em FundoManuela Cruzeiro

O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves RedolDavid Santos

A Mentira que Causa DeleiteJoão Soares Santos

ÍNDICE

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LIVROS

Para Uma Ética RepublicanaFernando Pereira Marques

Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011.Joaquim Jorge Veiguinha

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COLABORAM NESTE NÚMERO

Eduardo Lourenço – Ensaísta

Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas

Fernando Pereira Marques –Professor Universitário

Glória Rebelo – Professora Universitária

Elísio Estanque – Professor Universitário

José Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo

Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta

Manuela Cruzeiro – Professora Universitária

David Santos – Director do Museu do Neo-realismo

João Soares Santos – Ensaísta

Carlos Brito – Cartoonista

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A CRISE DO EURO E O FUTURO DA EUROPA SOCIAL

“Quo Vadis”, Europa?Eduardo Lourenço

H á meio século que os vencidos da segunda guerra mundial tentam levar a cabo uma empresa política inédita que é fazer da Europa uma entidade económica, política e cultural análoga à ‘nação’ que nunca foi até aos dias de hoje. Foi em desespero

de causa, e após dois episódios suicidários do seu destino durante o século XX, que três dos seus actores e responsáveis sonharam com uma Europa nova. Esse ‘suicídio’ europeu já era como uma síntese de meio milénio de disputa hegemónica sem quartel entre a Espanha, a França, a Inglaterra, a Holanda, a que se associarão, tardiamente, a Áustria, a Prússia e a Rússia. Ocasionalmente, a Suécia, então um país marginal, e Portugal, partici-param como aliados de um desses actores hegemónicos. Não é caluniar o nosso passado europeu assimilando-o a uma intermitente ‘guerra civil’, se pensarmos que todas essas nações partilham uma certa cultura comum, herdada da Antiguidade e de referência cristã (católica, protestante, orto-doxa), desde a queda de Constantinopla, confrontada com outro tipo de cultura e referência religiosa.

Não espanta que com uma tão complexa herança, a chamada Europa ocidental, empenhando-se, pela primeira vez a sério e democraticamente, numa construção europeia de âmbito internacional, tenha encontrado tantas dificuldades em levar avante a sua utopia europeizante. Aliás, e mau grado a urgência do projecto europeu, as nações nele envolvidas só o puderam conceber e levar a cabo com algum sucesso no contexto de uma guerra fria cujos actores, Estados Unidos e União Soviética, pretendiam conquistar a hegemonia mundial e de que a Europa é (ainda nessa época) o espaço privi-legiado de dupla e oposta cobiça. Antes do fim dessa guerra fria, a Europa é, na verdade, uma Europa de dupla face. A queda do muro de Berlim altera radicalmente esta situação de uma Europa duplamente partilhada entre os Estados Unidos e a Rússia. À parte como potência organicamente ligada aos Estados Unidos (e quase vice-versa) fica a Inglaterra. Ambos geram e

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“QUO VADIS” EUROPA?

continuam a gerir, mais do que nunca, e mau grado a aparência hegemónica da Alemanha (de novo reunida) a nova Europa em construção, convicta de ter dado um passo de gigante nessa construção, outorgando-se (sempre sem a Inglaterra) uma moeda europeia de importância internacional.

Pode, hoje sobretudo, pensar-se que a criação do euro foi a gota de ouro que fez estremecer o santo dos santos, a moeda fetiche do dólar, a única moeda imperial do espaço da chamada globalização. Quer dizer, da ameri-canização política, económica, financeira, tecnológica e, mais do que se pensa, cultural do mundo. Talvez não seja apenas duvidosa ciência-ficção imaginar que a instituição do euro, a sua afirmação, o seu sucesso (exces-sivo?) nunca mais deixaram de preocupar o sistema monetário mundial, o que tem no dólar e na sua absoluta supremacia a sua arma absoluta aquela que permite comprar a não menos incontornável arma do petróleo e controlar o mercado mundial. Também não é necessário recorrer às muitas versões de um ‘complot’ ideológico-financeiro de complexas ramificações para explicar a quase universal crise instalada no coração mesmo do capitalismo da era informática para ter por mistério o desencadear de uma ofensiva para deses-tabilizar o euro e através dele todo o projecto de autonomização política da nova Europa de maneira a assegurar a sua domesticação histórica definitiva. O que a Nato é no campo estratégico tradicional, é, na ordem económica e financeira, a fragilização do euro, que simboliza e encarna a Europa pós--queda do muro de Berlim. E se possível a sua desaparição. Mas quem na Europa quer a Europa?

Paradoxalmente, a mais europeísta das grandes nações – apesar das suas limitações ético-políticas – é mesmo a Alemanha. A antiga ‘nação do marco’ é hoje o novo FMI do euro. Só ela dispõe ainda de um poder económico – apesar ou talvez por estar desarmada – para dar a uma “utopia” europeizante um rosto que possa levá-la a enterrar os fantasmas tenebrosos que um dia a arrastaram para o abismo. Só ela dispõe ainda de seduções históricas para-doxais para lhe assegurar a centralidade política que o destino lhe atribuiu ou ela construiu. Quem pode construtivamente, por mais fantasmas terríficos que a hipótese desenterre, trazer as “europeias” Ucrânia e a grande Rússia para o espaço europeu que a História lhe concedeu? E mesmo a Turquia, com que a Alemanha tem mais familiaridade que ninguém?

O que seria lógico e conforme a uma das tradições e estatutos europeus

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EDUARDO LOURENÇO

mais relevantes é que fosse da pátria de Voltaire e não de Lutero que esperás-semos ainda um empenhamento histórico a favor de uma Europa não menos exemplar, na medida em que o foi, outrora, em tantos domínios. Talvez por ser, sozinha e há tantos séculos, “Europa” no que ela era como ‘nação’ de referência para tantas outras, em rivalidade com a Inglaterra, ilha-mundo, a França recuou desde o início diante da sua própria transcensão e versão dinâmica europeias. Assim, filhas históricas da rivalidade incontornável das suas histórias e culturas, nem a Inglaterra nem a França sentem necessidade da Europa. Já o são de sobra.

Quem sonha com a Europa é a pequena ou a marginal – e marginali-zada – Europa do Sul e de Leste. A nórdica é como se pertencesse a um continente de sonhos gelados há muito. A bem considerar não há ninguém para quem a Europa – a antiga e a de hoje – seja uma espécie de América. A não ser aqueles que próximos no espaço fizeram dela em tempos – e agora por fascínio e vantagens de toda a ordem – a América que eles não são nem parecem poder sê-lo por enquanto.

Talvez tenha sido um sonho mal sonhado desejar uma Europa ‘unida’ tão outra daquilo que durante séculos foi e maravilhosamente o é ainda: uma coexistência de ‘nações’ vizinhas e inimigas umas das outras, mas ricas da sua diferença. Na verdade, no fim da segunda guerra mundial com a vitória absoluta dos Estados Unidos, os europeus, sobretudo os realmente vencidos, quiseram ser ou ver uns Estados Unidos da Europa, o ideal europeu por excelência. Era a ideia de Churchill com a Inglaterra de fora e de cima ou em toda a parte. Mas desde a origem, os históricos Estados Unidos foram, sabendo-o ou não, uma anti-Europa. Ou antes uma não Europa. E, neste momento, uma super Europa. Que olha agora para a única e impotente Europa como a Inglaterra olhava os ‘americanos’ antes de o serem.

Se calhar a Europa não precisava – nem precisa – de ir para lado nenhum, nem ter um outro estatuto histórico, político e ideológico e pleonasticamente cultural mais adequado do que o da sua multíplice realidade que foi sempre o seu. Aqui se forjou o mundo moderno. E a modernidade do mundo. Lembremo-nos disso. Não precisamos que ninguém nos salve. Precisamos de nos salvar nós mesmos. Já não é pouco. Não estamos à venda.

Vence, 10 de Junho de 2012

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Uma Nova Social-Democracia Moderna*Guilherme d’Oliveira Martins

* Texto redigido segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

A situação financeira, sobretudo depois do «crash» do Outono de 2008, tem posto na ordem do dia o tema das conceções fundamentais sobre as modernas políticas públicas e sobre a construção do Estado democrático. Estamos longe das preo-

cupações dos anos noventa, cientes de que o «compromisso puramente liberal» é insuficiente, pelo que se impõe o lançamento das bases de uma «Nova Social-Democracia Moderna», apta a incorporar as lições mais recentes dos acontecimentos, em especial quanto ao reforço da «equidade intergeracional» e da justiça distributiva horizontal e vertical, quanto à articulação entre Estado-providência e Sociedade-providência, segundo os princípios da subsidiariedade, da proximidade e da diferenciação positiva, e quanto à melhor ligação entre mercado e regulação independente, a partir de uma conceção do Estado social sustentável, justo, modesto e sóbrio.

A crise da dívida soberana gerou uma profunda alteração de circuns-tâncias na vida económica e financeira europeia. Depois de um período caracterizado pelo crédito barato e pelo crescimento do consumo e do endividamento e dos défices públicos, houve a tomada de consciência de que seria necessário tomar medidas no sentido da redução drástica das despesas públicas. A convergência entre as dificuldades de tesouraria das entidades públicas, a especulação dos mercados, a falta de confiança indu-zida pelos riscos inerentes aos Estados mais endividados e a ausência de uma política europeia coordenada relativamente à competitividade, ao investimento e ao emprego – tudo isso tem determinado a existência de uma situação dilemática na qual se confrontam, por um lado, a exigência de mais disciplina e rigor orçamentais (de modo a estancar o perigoso aumento das dívidas públicas) e, por outro, a necessidade de reencontrar

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UMA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA MODERNA

uma via de crescimento económico capaz de assegurar a criação de emprego e o reforço das condições que permitam a coesão económica e social. Acontece, porém, que os efeitos das duas orientações são contraditórios, o que obriga a procurar soluções capazes de compatibilizar os objetivos de sustentabilidade das Finanças Públicas e de desenvolvimento adequado das economias. Estamos, deste modo, perante a obrigação histórica de tirar as lições pertinentes do tempo em que vivemos.

Se nos lembrarmos da história económica dos anos trinta do século XX, e ressalvadas as distâncias de um tempo em que a regulação pública não tinha a dimensão e a eficácia dos nossos dias, finalmente percebemos que a “Grande Depressão” demorou a ser superada por diversas razões, entre as quais avultam: a fragmentação, o protecionismo, a prevalência de soluções com efeito depressivo que agravaram o desemprego e não promoveram o crescimento económico. A escola de Cambridge e J. M. Keynes perceberam bem, antes de outros, que a noção clássica de equi-líbrio económico estava posta em causa nas sociedades modernas e que a procura efetiva global é uma noção complexa que não pode ser analisada, como quis Jean-Baptiste Say, independentemente das diferentes situações referentes ao nível de emprego. E foi Franklin D. Roosevelt, no país da liberdade económica, que se viu na necessidade de pôr em prática, em primeiro lugar, uma estratégia baseada na ação sobre a procura global, visando a criação de emprego e a multiplicação do rendimento indu-zida pelo acréscimo do investimento. Hoje, se vivesse, Keynes chegaria à conclusão de que a sua obra é muito pouco lida ou é mal compreendida, uma vez que continua a pensar-se a noção de equilíbrio económico como se esta fosse unívoca e estática, de acordo com uma tendência única e fatal. Ora, se é verdade que a velha lei de Wagner – segundo a qual a tendência para o aumento da despesa pública é permanente e ilimitada –, está posta em causa, o certo é que os limites para a ação do Estado têm de ser aceites e alcançados – de modo a que as políticas públicas se vejam reduzidas em dimensão e influência, dando maior importância à iniciativa social, à responsabilidade comunitária e à solidariedade ativa dos cidadãos. A lição da “Grande Depressão” obriga-nos, assim, a considerar que, em vez da fragmentação e da adoção de políticas deflacionistas, importa usar a

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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

seletividade articulando instrumentos de rigor orçamental e de promoção do crescimento económico.

A verdade é que a situação em que nos encontramos é de uma difi-culdade extrema. Não há soluções encontráveis dentro das fronteiras de cada Estado. O protecionismo e a fragmentação só agravarão os problemas ligados à crise da dívida soberana, à falta de confiança e às dúvidas sobre os riscos ligados às expectativas de cumprimento das obrigações económicas e financeiras. O princípio da subsidiariedade ganhou, pois, uma atualidade hoje mais evidente do que nunca. Precisamos de mediações eficazes e de redes de proximidade que reforcem a legitimidade democrática e cívica (de origem e de exercício). As especulações sobre a incerteza do futuro do euro e sobre a evolução da União Europeia não contribuem para a procura e para o encontro de soluções eficazes. Regressamos, no fundo, à perniciosa fragmentação e ao perigoso protecionismo que tão trágicas consequências teve nos anos trinta – uma vez que não se prefiguram soluções de coorde-nação e de articulação de esforços e iniciativas.

Uma democracia supranacional europeia, se não se confundir com um superestado e se se basear numa legitimidade sentida e assumida pelos cidadãos, poderá ser a melhor aliada das “soberanias abertas” nacionais – superando os efeitos perniciosos do “salve-se quem puder”. Importa, porém, que haja uma consciência clara do significado dos interesses vitais comuns e dos interesses vitais nacionais. Isoladamente, não encontraremos soluções adequadas, do mesmo modo que precisamos de ligar, com inteli-gência, eficiência e equidade, instrumentos de políticas públicas capazes de responder às situações dilemáticas a que temos de responder.

E não esqueçamos que uma crise europeia agravada projetar-se-á no mundo global com consequências imprevisíveis em termos de paz, segu-rança e desenvolvimento.

Muito se tem dito e escrito sobre o momento trágico que a Europa atra-vessa. Impõe-se, porém, não iludir as questões nem pensar que tudo se irá solucionar de forma fácil e natural. Assim não será. Estamos diante de um desafio de sobrevivência para todas as economias europeias, mas, como se disse, para o equilíbrio mundial. Uma União Europeia irrelevante,

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economicamente estagnada e sem voz no mundo arrastará consigo uma grave recessão mundial com repercussões imprevisíveis, designadamente para a segurança e para a paz. Eis por que os discursos sobre o fim do Euro têm muito menos a ver com o tema monetário europeu do que com inson-dáveis propósitos de enfraquecimento dos Estados de direito, que exigem um sistema de mediação e equilíbrio, visando o desenvolvimento susten-tável e o fim da corrida suicida no sentido do progresso sem limites. Um sistema internacional de polaridades difusas, como aquele em que vivemos, obriga a que haja diversos meios de ação, com relevância, que sejam fatores de criatividade e de desenvolvimento. Não nos esqueçamos de que a crise da dívida soberana surgiu e instalou-se mercê de uma acumulação perigosa de sintomas: primeiro, crédito barato; depois, falta de liquidez bancária; especulação contra o euro e pretexto dado pelos Estados-membros da União Europeia pelo não cumprimento dos compromissos assumidos na União Económica e Monetária quanto a défice e à dívida pública. Todavia, a melhor maneira de encontrar antídotos eficazes obriga a que se pros-sigam a sério os objetivos estruturais, como Europa 2020 (que sucedeu à chamada Estratégia de Lisboa), ligando-os ao investimento coordenado de infraestruturas europeias e à competitividade global das economias da União. Não pode, pois, continuar o impasse atual em que os resultados das medidas de disciplina orçamental ficam aquém do desejável, uma vez que não há sinais de recuperação económica e de um crescimento saudável.

Em suma, urge darmos especial atenção a dez temas fundamen-tais: (i) A crise atual apenas será superada se o objetivo prioritário for a criação de emprego e a coesão social; (ii) O necessário rigor orçamental deve ser considerado como um instrumento ativo, visando a recuperação da economia europeia e das economias nacionais; (iii) Essa finalidade apenas poderá ser alcançada através de soluções cooperativas, daí que seja necessária mais Europa política, mais coordenação e governo económico e menos diretório; (iv) O problema da zona Euro é, assim, eminentemente político: precisamos de uma forte vontade, assente na especial atenção aos interesses vitais comuns da UE; (v) Complementarmente, se a questão é política, importa não esquecer que, no campo económico, estamos diante de um problema de crescimento, que é muito mais do que uma questão de

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mero desequilíbrio das finanças públicas; (vi) Uma União Fiscal obrigará a ligar a disciplina orçamental à recuperação económica – com definição de objetivos, de metas e de um sistema credível de avaliação, auditoria e responsabilidade; (vii) A austeridade tem de ser instrumental e não fina-lística – devendo envolver instrumentos capazes de impedir bloqueamentos da justiça e desenvolvimento; (viii) Mais importante do que uma definição formal constitucional sobre limites à dívida e ao défice, é indispensável que haja um instrumento legislativo estável, claro e inequívoco que funcione como um dissuasor efetivo relativamente ao incumprimento; (ix) Nestes termos, a consagração de uma regra de ouro das Finanças Públicas não deverá ser rígida nem confundir obrigações políticas e jurídicas com fórmulas meramente técnicas ou circunstanciais; e (x) A salvaguarda da democracia, da transparência e da participação dos cidadãos obriga, essa sim, a envolver mais os Parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu e as instituições de controlo financeiro, na realização dos objetivos de disciplina das finanças públicas, em nome do rigor, da verdade, da responsabilidade e da justiça.

Tudo visto e ponderado, se é certo que a solução encontrada por 25

Estados-membros da União Europeia, de celebração de um Tratado sobre a estabilidade, coordenação e governação da União Económica e Monetária, tem a fragilidade da mera natureza intergovernamental – o que põe em causa a eficiência da coordenação por ausência do método comunitário –, a verdade é que procura articular austeridade, sobriedade e crescimento ligando-os a um esforço efetivo de cooperação. Trata-se (ou pode tratar-se) de um passo importante, em nome da solidariedade económica e do desenvolvimento humano. No fundo, trata-se de reforçar o pilar económico da UEM através da adoção de normas que promovam a disciplina orçamental para reforço da coordenação das políticas econó-micas e melhoria no governo da Zona Euro, apoiando objetivos de crescimento sustentado, emprego, competitividade e coesão social. Como afirmou António de Sousa Franco, a moeda única europeia é um projeto político e social que exige o completamento da união monetária pela união económica, através de um governo económico europeu, que considere não apenas a estabilidade de preços, mas também a promoção do emprego, a coesão económica, social e territorial e a «convergência social».

GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

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O rigor é um instrumento, a disciplina é um caminho necessário, o desenvolvimento, a justiça e a coesão são objetivos inevitáveis. De facto, Portugal terá de cumprir os compromissos que assumiu com diligência e sentido de futuro, com respeito integral da legitimidade democrática. É indispensável que não haja dúvidas sobre a determinação no sentido da exigência, do rigor e da disciplina. Se é verdade que se torna neces-sário compatibilizar austeridade e crescimento económico, estabilidade de preços e defesa do emprego e da coesão, o certo é que se impõe que haja inteligência prática que permita garantir, a um tempo, credibi-lidade e confiança, por um lado, bem como criatividade e audácia, por outro, a fim de que possamos retomar o caminho da convergência e do desenvolvimento.

A credibilização de uma nova social-democracia moderna obriga, na linha do que foi feito nas últimas décadas nos países nórdicos, e pela social-democracia nesses Estados, a que haja uma atenção redobrada à legitimidade do exercício centrada na responsabilidade cívica, no papel acrescido dos parlamentos nacionais, na transparência financeira, na sustentabilidade dos sistemas de cobertura dos riscos sociais, na prioridade dada ao emprego, na subsidiariedade, na aposta na solidariedade voluntária nas redes de proximidade, na valorização da igualdade como contrapartida natural da liberdade e da diferença. A economia tem de se orientar para as pessoas, com base na confiança e na coesão. Como tem insistido Pierre Rosanvallon, o povo eleitoral, o povo social e o povo princípio coexistem e completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque afirmam a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão de cada um desses domínios, com a sua especificidade própria, evitando a todo o custo a “destruição partidária das instituições” e a erosão do imediatismo. À indiferença temos de contrapor a atenção (e o cuidado) e uma ideia de democracia assente na igualdade, na reciprocidade e no sentido comuni-tário. A autonomia, a liberdade e a dignidade das pessoas, a compreensão das situações particulares, a diferenciação positiva, a igualdade e a dife-rença, eis o que importa!

UMA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA MODERNA

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Os tempos que estamos a viver são bem a demonstração, se dúvidas ainda houvesse, de como a História é o produto não só das circunstâncias materiais – infra-estruturais, como diria Marx –, mas também das superestruturais e, sobretudo, da

acção dos seus protagonistas. E esta acção está intimamente ligada a opções ideológicas, interesses, conflitos por eles impulsionados, assim como à qualidade humana e intelectual, em especial dos que assumem papéis mais destacados.

A primeira metade do século XX foi determinada por, entre outras, as personalidades de Hitler, Mussolini, Estaline e, obviamente, pelas circunstâncias históricas concretas que permitiram que os seus projectos ideológicos, de diferente natureza, moldassem acontecimentos e polí-ticas. Mas, do mesmo modo, não fossem homens com a envergadura de De Gaulle, Churchill e Roosevelt, o desenlace da II Guerra Mundial teria possivelmente sido outro. Como já parece ter-se percebido, a História não tem um sentido nem uma coerência, nem sequer é função, de uma forma mecanicista, unicamente dos factores sociais ou económicos. Deste modo, não é despiciendo, para explicar o impasse dramático com que a Europa se depara, a mediocridade dos seus principais dirigentes – para só falarmos deste continente.

Constata-se tal facto quando, por exemplo, se ouvem as declarações do ministro das Finanças alemão Schäuble subvalorizando as consequências de uma eventual saída da Grécia da zona euro e até da UE, não só pelos efeitos de dominó que isso teria, sobretudo sobre países mais vulneráveis como a Irlanda, Portugal ou a Espanha, mas também por aquilo que esse país representa na perspectiva da situação geo-estratégica nos Balcãs e até pelo peso da componente militar nos seus poderes internos. Declarações e atitudes do amigo dilecto do ministro Vítor Gaspar que se inserem na visão das coisas da senhora Angela Merkel, a qual associa, na sua pessoa,

As Regras de Oiro da Senhora MerkelFernando Pereira Marques

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AS REGRAS DE OIRO DA SENHORA MERKEL

uma lamentável mistura de arrogância teutónica, boa consciência luterana e rigidez autoritária estalinista.

Não sei se ela – ou eles, os governantes alemães – leram a obra de Keynes As Consequências Económicas da Paz, onde este analisa e crítica as desastrosas medidas tomadas na Conferência de Versalhes em relação à Alemanha. As teses essenciais aí defendidas, repetidas em textos dos anos 30 após o crash da Bolsa nos EUA e suas repercussões, serviriam de base à doutrina a que ele deu o nome e insistiam no facto de que a humilhação dos povos e a prossecução de políticas que geram recessão e empobrecimento, conduzem as sociedades à desagregação e abrem o caminho ao desespero de multi-dões, caldo de cultura de todos os extremismos. Os factos viriam a dar-lhe razão e estiveram na origem do retorno à barbárie na Europa, e não só, durante um longo período, acompanhada pelo massacre de milhões de seres humanos.

A Alemanha de hoje foi o país que mais usufruiu da forma volunta-rista e calculista como foi gerida a criação do euro e o alargamento da UE baseados em meros critérios mercantis. Ou seja, prosseguiu-se, parti-cularmente após Delors, uma estratégia economicista, crescentemente ultraliberal, suportada pela maior parte dos governantes europeus de vistas curtas e pela cegueira dos burocratas de Bruxelas, agora encabeçados pelo antigo marxista-leninista Durão Barroso. Secundarizou-se a dimensão sociopolítica, a integração orçamental, a vertente cultural e a fundamental participação legitimadora e democrática dos povos. Por outras palavras, o projecto europeu reproduziu e espalhou a contra-revolução iniciada por Thachter e Reagan. Nos EUA, como na Europa, vieram a afirmar-se polí-ticas de desmantelamento de todos os elementos de regulação que desde o New Deal nos EUA1 e a II Guerra Mundial, disciplinavam e controlavam a cupidez da banca e da finança.

É neste contexto que, com repercussões no plano global, a euforia especulativa baseada na financeirização das economias promoveu o endi-vidamento público e privado, colocando os bancos e outras instituições semelhantes no centro das decisões e permitindo a emissão de dinheiro

1 Em 1999, com Clinton, foi revogado o Glass-Steagall Act que datava de 1933 e visava separar as actividades da banca de depósitos da banca de investimentos.

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FERNANDO PEREIRA MARQUES

virtual em escala nunca antes vista, nomeadamente através dos hedge funds e de outros produtos derivados. No caso norte-americano, tímidas tentativas reguladoras da Commodity Futures Trading Comission foram neutra-lizadas graças à intervenção activa de Alan Greenspan e à cobertura do próprio presidente Clinton. Em meados da administração clintoniana, o volume de derivados tinha crescido até 13 triliões de dólares (em 1998 o PIB dos EUA era de 8,7 triliões). Leia-se o que escreve a propósito um autor citado por Laurence Lessig, num livro fundamental intitulado Republic, Lost: “More than 30 years of deregulation and reliance on self-regulation by finantial institutions championed by former Federal Reserve chairman Alan Greenspan and others, suported by sucessive administrations and Congresses, and actively pushed by the powerful financial industry at every turn, had stripped away key safeguards, which could have helped avoid catastrophe.2” A situação agravou-se durante os mandatos de George W.Bush e mesmo Obama limitou-se, como explica Joseph E. Stiglitz3, a tentar gerir os estragos, mas sem enfrentar os poderosos interesses em jogo, apesar de, em 2008, ter implodido a Lehman Brothers, desencade-ando a espiral de crise em que hoje o sistema está mergulhado. E porque será? Nos EUA existe uma democracia limitada, é bom que de uma vez por todas se comece a afirmá-lo claramente, em bom rigor uma oligarquia, onde o Estado, os partidos da alternância – Democrata e Republicano –, as liberdades e a sociedade estão subordinados aos detentores do poder real: os lobbies que são os agentes organizados dos interesses dominantes. Leia-se, para ilustrar esta asserção, outra passagem, desta feita de um rela-tório recente da Finantial Crisis Inquiry Comission: “As [this] report will show, the finantial industry itself played a key role in weakening regulatory constraints on institutions, markets, and products. It did not surprise the Comission that an industry of such wealth and power would exert pressure on policy makers and regulators. From 1999 to 2008, the finantial sector expended $ 2.7 billion in reported federal lobbying expenses; individuals and political action committee in the sector made more than $1 billion in

2 Cf. LESSIG, Lawrence – Republic, Lost-How Money Corrupts Congress and a plan to stop it. New York: Twelve, 2011, p.79.

3 V. STIGLITZ, Joseph E. – Le triomphe de la cupidité. Arles : Actes Sud, p.210 : « Malheureusement l’administration Obama a maintenu le cap de l’administration Bush : elle a consacré l’essentiel de ses efforts à sauver les banques. »

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campaign contributions. What troubled us was the extent to which the nation was deprived of the necessary strength and independence of the oversight necessary to safeguard financial stabi-lity.4” Significa isto que, como aliás é quantificado na fonte utilizada, o lobby da “finantial industry” – onde se destaca a J.P. Morgan agora também em turbulência - ultrapassa em largos milhões de milhões todos os outros lobbies, o que ajuda a explicar a domesticação de eleitos, governos, presi-dentes e o desvirtuamento da ideia democrática. Na Europa, já são vários os empregados da Goldman Sachs presentes directamente em governos ou noutras instituições politicamente determinantes.

É esta a realidade que se expandiu e tem condicionado a economia e a finança internacionais. Inclusive na UE onde, após a senhora Thatcher, os Blair, Schröder, Cameron, Barroso, Sarkozy, Berlusconi, Merkel e tutti quanti se limitam a cumprir ordens emanadas dos “mercados”, essas entidades deus ex machina que são materiais e têm rostos. Gerou-se uma inter-dependência que não é a da positiva e necessária cooperação construtiva entre Estados e nações, mas sim o fruto do estádio supremo do capita-lismo financeiro ultraliberal, também designado por globalização, filtrado através das realidades específicas dos diversos países. Os verdadeiros conse-lhos de ministros deslocalizaram-se para as bolsas, as sedes dos principais grupos económico-financeiros ou para as agências pretensamente de rating.

O desastre era inevitável e – como já acontecera em 1929 – repercutiu--se em todos os azimutes, provocando a derrapagem das contas públicas nacionais, obviamente de forma particularmente violenta nos países mais vulneráveis e periféricos, forçados a pedir empréstimos a taxas usurárias para colmatar desvios que a riqueza produzida não sustentava ou a recorrer mesmo à intervenção de organizações exteriores, como a Irlanda, a Grécia e Portugal. As transferências de capitais e mais-valias para off-shores e paraísos fiscais, as derrapagens de orçamentos nas obras públicas, projectos inúteis e faraónicos a custos inflacionados (auto-estradas e estádios, p.ex.), BPNs, PPPs, Duartes Limas, Oliveiras Costas, etc., isto é, as jogadas ousadas dos senhores de indústria, os negócios de governantes levianos, de empresá-rios, gestores e afins corruptos, entre nós e noutros lados, ajudaram aos níveis insustentáveis da dívida nos respectivos âmbitos nacionais. Mas eles

1 Ibid. pp.82-83. Itálicos no original.

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não fizeram senão aderir ao espírito da época, integrar-se na lógica do sistema e, com a conivência do poder político, praticar à sua dimensão o que em termos globais se praticava.

Poder político e governantes que, e por consequência, uma vez desen-cadeada a crise, em vez de atacarem a raiz dos problemas – isto é a “finantial industry”, a ditadura da banca e dos mercados, o vale-tudo darwinista e despromovido de princípios –, a pretexto da contenção da despesa, adop-taram um programa, vincadamente ideológico, de desmantelamento do Estado-Providência e de destruição das conquistas sociais de gerações. Assim se percebe que a senhora Merkel e os seus atentos, veneradores e obrigados seguidores noutros executivos europeus, pretendam condicionar o prosseguimento pelos poderes públicos de políticas económicas tenden-cialmente dirigidas ao interesse geral e visando o bem comum, impondo instrumentos administrativo-legais como o da designada “regra de ouro”.

Esta “regra de ouro”, a que Jacques Delors chamou, em declarações ao Le Monde, “piège à cons”, a ser aplicada, inclusivamente entre nós, como impõe o recente tratado orçamental adoptado em final do ano passado e servilmente ratificado pela Assembleia da República, não significará outra coisa senão a subordinação da economia a uma lógica monetarista e, a outro nível, a destruição dos sectores produtivos e a transformação de países como o nosso, mais do que já acontece, em simples mercados para as exportações alemãs e das outras economias dominantes. Poder-se-á argu-mentar que o pacto de estabilidade e crescimento de 1997 já instituía tectos no défice público (3%) e na dívida (60% do PIB), todavia, como se sabe, sobretudo a partir de 2008, isso foi insuficiente para impedir o descon-trolo orçamental na generalidade da UE pelas razões gerais aduzidas atrás. Por outro lado, é verdade que a Alemanha introduziu, em 2009, regras semelhantes no seu ordenamento legal interno e mesmo constitucional. Outros países até as possuíam antes, mas integradas no ciclo económico ou na legislatura, como é o caso da Inglaterra e dos Países Baixos. A própria Espanha, desde o início dos anos 2000, definiu um pacto de estabili-dade para uso doméstico que foi alargado e integrado na Constituição no sentido de controlar o défice das administrações regionais. Porém, o que qualquer manual ensina, é que o equilíbrio das contas públicas depende, primordialmente, do exercício da autoridade do Estado e do controlo

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democrático pelos cidadãos sobre a demagogia de governos, a corrupção de governantes ou o oportunismo de especuladores e outra gente sem escrú-pulos nem pátria.

Acresce que, uma vez o mal feito – ou seja, o desequilíbrio das contas públicas devido a factores endógenos e exógenos – e quando o ciclo econó-mico é negativo, não são dispositivos contabilístico-orçamentais que reintroduzem a estabilidade e o crescimento, como nos ensinou Keynes e a História. Aliás, basta verificar o caso dos países nórdicos, onde sem artifícios desse tipo, essas mesmas contas estão equilibradas e geram exce-dentes. Tais “regras de oiro”, ou de outro metal, têm, inevitavelmente, como efeito, em especial nas economias mais frágeis, o facto dos execu-tivos cortarem nas despesas e nos investimentos, agravando as dinâmicas recessivas e, consequentemente, reduzindo as receitas5. Como diz o povo, não se morre da doença, mas da cura. Ou, dito por outras palavras, regras desse tipo, ainda por cima no contexto europeu e mundial a que aludimos onde reina a lei do mais forte e os Estados se encontram à mercê da chan-tagem dos chamados mercados e das suas mafias organizadas, introduzem um factor de rigidez na economia – agravada se já não se possui moeda própria – que, favorecendo a finança e a especulação, só aprofundarão o desmantelamento do que se pode designar por Estado social, herdado do pós-guerra. Em termos mais simples, aumenta o empobrecimento e o desemprego, pioram as desigualdades e as condições de vida e de trabalho daqueles que constituem a maioria das populações, estagnam os países menos desenvolvidos. Está-se, deste modo, a conduzir a UE à implosão e ao fracasso, pois se, na verdade, a construção europeia implica, inevita-velmente, perdas de soberania, tal não poderá ser feito à custa dos povos e contra a sua vontade, em proveito de potências hegemónicas e das oligar-quias internacionais.

A eleição de François Hollande à Presidência da França, que será decerto seguida – no momento em que escrevo ainda não se realizaram as legisla-tivas – pela formação de uma nova maioria, não transporta, obviamente,

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5 Escreveu Amartya Sen pensando especificamente na Grécia e em Portugal: “Ces réductions budgétaires pous-sées à leur maximum risquent de diminuer les dépenses publiques autant que les investissements privés. Si cela se traduit également par une réduction des stimulus de croissance, les recettes publiques pourraient, elles aussi, chuter douloureusement. » In « L’euro fait tomber l’Europe », Le Monde, dimanche 3-lundi 4 juillet 2011.

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uma solução milagrosa, mas abriu novas perspectivas. Pois, como diria La Palice, a questão central é política, ao contrário do que pretendem fazer crer Herr Schäuble, Frau Merkel e, entre nós, o contabilista Vítor Gaspar e o bem falante primeiro-ministro Passos Coelho que, depois de muito “alavancar”, “implementar” e enunciar inúmeros “ai”tens (ele pretende dizer o plural de item, o que pronunciado à inglesa é chique a valer), chegou recentemente mesmo à conclusão que o desemprego é uma oportunidade a não perder. Demonstra o actual primeiro-ministro imaturidade e enorme insensibilidade social, o anti-humanismo que predomina nas relações de trabalho e humanas, e na própria relação do Estado com os jovens, os idosos, os trabalhadores, os mais desamparados em geral que são tratados como cães.

Estão em confronto modelos de economia e de sociedade antagó-nicos, concepções ideológicas opostas, visões do mundo antinómicas. É a Política, estúpidos! Não a economia. A opção coloca-se entre prosse-guir uma política de subserviência e de gestão dos interesses da finança internacional, dos grandes grupos económico-financeiros que actuam num campo de vazio ético e de quase banditismo, uma política de contra--revolução ultraliberal, ou restaurar a Democracia, o primado da Lei e do bem comum, disciplinando, regulando, incentivando o investimento produtivo e multiplicador, taxando fluxos especulativos, reforçando a autoridade dos Estados sobre os senhores do mundo, de forma a colocar os cidadãos no centro da acção de quem governa. E se há decisões que têm de ser tomadas no quadro europeu e além dele, através de organismos como o BCE ou o FMI, elas devem ter em conta valores de justiça e de progresso, de igualdade e de fraternidade; a dignidade dos povos tem de ser respeitada, para serem mobilizadas as capacidades e as potencialidades de cada país; o trabalho deve ser dignificado, os jovens ajudados a construir o futuro e os idosos acarinhados. É necessário investir nas especificidades produtivas de cada país, potenciar o que o conhecimento e as tecnologias trazem à felicidade e ao desenvolvimento, apostar na educação e na qualificação, assim como no fomento cultural. Em resumo, agir no quadro nacional, no quadro europeu, e no quadro global, isoladamente sempre que possível e articuladamente sempre que necessário, para produzir riqueza e a repartir com equidade.

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Words, words, dirão os cínicos pragmáticos, os corrompidos pela ganância e os imbecis. Não, trata-se de tomar medidas concretas a serem defendidas pelas forças de uma esquerda que precisa de se reorganizar e reencon-trar, por novos movimentos sociais a dinamizar. A miséria e a pobreza que promovem a marginalidade e frequentemente a violência, a fome que obriga a recorrer à caridade das sopas dos pobres, coexistindo com o esbanjamento e a opulência de minorias no chamado mundo desenvolvido e industrializado – como se não bastasse o que se passa noutras regiões do planeta – negam os Direitos do Homem e constituem um insuportável retrocesso civilizacional. E aqueles que ainda não perceberam o que se está a passar, seria bom despertarem e terem em conta as lições do passado: se não se fizerem reformas, se não se reforçarem os valores democráticos assentes na justiça e na ética, se não se afirmar uma visão humanista do mundo e da vida na gestão das coisas, haverá revoluções. Apesar do espec-táculo, do panem et circenses com que se procura imbecilizar e adormecer as pessoas, o desespero e a revolta dos humilhados e ofendidos podem abrir horizontes de futuro, mas também fazer ressurgir velhos demónios.

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Crise do Euro e Modelo Social Europeu*Glória Rebelo

“A economia sujeita à lei moral, e organizada com vista ao bem de todos, é cláusula indispensável da liberdade autêntica de cada um”

(António Sérgio, Ensaios – tomo I, Clássicos Sá da Costa, 1974: 163)

1. Crise sistémica, austeridade e modelo social

A União Europeia (UE) vive hoje um momento de particular desafio e exigência: responder com eficácia a uma devastadora crise do capitalismo financeiro que, eclodindo entre 2007/2008, rapidamente originou uma gravíssima crise económica e social a nível internacional. A par das medidas de austeridade, entretanto adotadas pela maioria dos Estados-membros, o sector bancário vai restringindo acentuadamente o crédito às empresas e às famílias, circunstância que tende a agudizar os efeitos sociais e económicos na atual conjuntura.

Dados divulgados recentemente pela OCDE demonstram que no ano passado a Zona Euro registou uma forte deterioração da atividade econó-mica, estimando-se em 2012 um cenário de frágil recuperação e mesmo, para alguns países, designadamente Portugal, um cenário de recessão. Também os dados do Eurostat divulgados em Abril deste ano, e relativos à taxa de desemprego na UE em Fevereiro último, dão conta que a Zona Euro registava a taxa recorde de 10,8% e a UE27 uma taxa de 10,2%. E se os países menos afetados pelo desemprego – em situações mesmo próximas do pleno-emprego – são a Áustria (com 4,2%), a Holanda (com 4,9%), o Luxemburgo (com 5,2%) e a Alemanha (com 5,7%), os países mais fusti-gados são, sem dúvida, os países do sul da Europa: Espanha (com 23,6%), Grécia (com 21% em Dezembro de 2011) e Portugal (com 15%)1.

De facto, desde 2001, altura em que a China entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC), que se verifica um crescimento exponencial

* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

1 Refira-se ainda, no que concerne ao desemprego jovem, as taxas de desemprego de 22,4% na UE e 21,6% na Zona Euro, sendo as mais altas de 50,5% em Espanha e de 35,4% em Portugal e, ao invés, na Alemanha de 8,2%, na Áustria de 8,3% e na Holanda de 9,4% (Eurostat, European Commision, April, 2012).

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da sua produção ao nível dos sectores primário (sobretudo agrícola) e secundário (industrial). A produção chinesa não respeita apenas ao têxtil, mas a todo o sector industrial e às atividades próprias do sector primário. E quando a Comissão Europeia decidiu eliminar um conjunto de barreiras ao comércio internacional (veja-se o comercio têxtil decidida em 2005) foram emergindo fortes repercussões na economia europeia e nacional2.

Parecendo, assim, forçoso reconhecer que esta globalização finan-ceira desregulada falhou no contributo para melhorar o crescimento do emprego e os níveis de bem-estar social – uma vez que intensificou as desi-gualdades sociais e a pobreza3 – um pouco por todo o Mundo se procuram, agora, respostas a esta crise. A globalização é uma transformação gigantesca das economias e das sociedades mas a verdade é que a sua amplitude não foi estimada em termos de efeitos, em países e em pessoas. Sobretudo ao nível da distribuição da riqueza e do emprego ou, melhor, do aumento acentuado de desigualdades sociais, pobreza e desemprego.

Progresso social e eficácia económica caminham logicamente a par; estão diretamente associados. Como advogava Keynes, no contexto da crise dos anos 1930 (e com o propósito de elaborar uma teoria que respon-desse de forma eficaz a uma economia marcada por uma elevada taxa de desemprego), o importante seria descobrir os fatores que determinam o emprego4. E estes estavam diretamente ligados, em sua opinião, à procura efetiva pois o desemprego provém de uma insuficiência do consumo combinada com uma insuficiência do investimento. Assim, caberia ao Estado desempenhar um papel de estímulo a estas duas funções, dire-tamente (despesa pública) ou indiretamente (através, por exemplo, da

2 Neste aspeto convém referir que, por exemplo, nos EUA se mantiveram um conjunto de medidas restritivas, protetoras da indústria (e o índice que mede a produção industrial nos EUA tem vindo progressivamente a crescer).

3 Em 2010 um relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) alertava para o facto de a pobreza extrema ter aumentado exponencialmente na última década mesmo em situ-ação global de crescimento económico: o número de indivíduos em situação de extrema pobreza aumentou 3 milhões por ano entre 2002 e 2007 (anos de forte crescimento económico, com médias de 7%), tendo atingido em 2007, os 421 milhões de pessoas em todo o Mundo, ou seja, duas vezes mais do que em 1980. E fazendo um balanço a uma década da evolução dos países mais pobres do Mundo, constata que também os países europeus se viram, na última década, fortemente atingidos por este flagelo (UNCTAD (2010), “World Economic Situation and Prospects 2011”, United Nations, New York). De facto, excetuando muito poucos (nomeadamente Portugal, onde a taxa de risco de pobreza diminuiu de 21%, em 2000, para 18,1%, em 2007) os dados do Eurostat de 2010 mostram que, de 2000 a 2007, a taxa de risco de pobreza na UE aumentou de 16% para 16,2% e, na Zona Euro, de 15% para 16,5%, sendo a tendência de aumento transversal à generalidade dos países europeus.

4 Cfr. J.M. Keynes, A Grande Crise e Outros Textos, Relógio D’Água, 2009.

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5 Como referia Maria de Belém Roseira no discurso comemorativo do centenário da República, proferido a 5 de Outubro de 2010 na Assembleia da República “o mercado especulativo não regulado ataca os Estados soberanos e fragiliza-os ao dificultar o seu financiamento externo e ao pretender impor outras regras de jogo em que a economia subjuga as pessoas em vez de as dignificar. (...) Somos, pois, todos chamados, mais uma vez na nossa História, a um exercício de lucidez que reclama ações corajosas que passem pela preservação do essencial das nossas identidade e soberania, desistindo do acessório. Ações que sejam explícitas e claras, desenhadas com rigor e bom senso, com justiça social, com equidade, com coerência, e que se assumam como elemento estruturante na cons-trução de um futuro melhor.”

6 E considerando, desde logo, que esta crise da dívida não é sobretudo da dívida pública mas sim de dívida privada. É preciso prever o futuro e evitar réplicas, isto é, acautelar a responsabilização pelos desvios de gestão praticados pelas grandes instituições financeiras.

política fiscal), única forma também de assegurar uma repartição mais equitativa do rendimento, evitando arbitrariedades e desigualdades sociais.

Esta procura de estimular desenvolvimento económico mediante progresso social - na medida em que a organização das relações sociais é estruturante da dinâmica económica - é, também hoje, crucial. Mas o que aconteceu foi que ao longo da primeira década deste século XXI, os lucros da economia real foram arrebatados pelo sistema financeiro (e pela especu-lação) que exerceu uma atividade sem vigilante fiscalização. E os dirigentes políticos europeus não compreenderam (ou não quiseram compreender) a situação e, volvidos mais de cinco anos do início desta crise do capitalismo financeiro, as práticas financeiras da banca permanecem sem um reforço de regulação. Não foram, pois, retiradas ilações desta crise, nomeadamente no que concerne ao funcionamento da economia, e o mundo (sobretudo a Europa e os EUA) continuam a oscilar entre a especulação financeira e a procura de a limitar. Nesta medida, outras crises, porventura mais graves, podem vir a emergir.

Um dado parece certo: à crise atual não se responde mantendo inalteradas as práticas que estiveram na sua origem5. Aliás, a questão que deve perma-necer no centro do debate político é a de saber por que razão as práticas bancárias não foram suficientemente reformadas e o que será necessário para, então, corrigir as atividades especulativas da banca. O comportamento especulativo e imprudente de camuflar riscos exige outra regulação e uma permanente vigilância. É esta a principal lição a tirar da crise6.

Ora, num período em que se pede grandes sacrifícios aos cidadãos – que geram, naturalmente, descontentamento, sentimento propício ao apareci-mento de soluções messiânicas – urge robustecer uma conceção humanista de democracia, alicerçada em princípios éticos que visem, mormente, a

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defesa da dignidade pessoal e social. Tanto mais que o princípio essencial da Democracia é o respeito da dignidade da pessoa humana7.

E, ante um agravamento das incertezas no plano económico, o desafio de saber responder a esta crise financeira, com origem no subprime, leva a refletir sobre a necessidade – sentida hoje mais do nunca – de se considerar que os dirigentes políticos europeus não podem resignar-se à ideia de um empobrecimento generalizado da população (causado quer por perdas salariais quer pelo aumento do desemprego, em especial o desemprego de longa duração)8.

Além disso, porque o que está em causa neste momento é o nosso modelo de sociedade. Saber se queremos, ou não, salvaguardar - não obstante as adversidades financeiras - áreas sociais fundamentais como o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública ou o sistema público de Segurança Social. Ou seja, preservar o Estado social e os seus valores, asse-gurando igualmente confiança no crescimento económico, na capacidade de atrair ao território nacional investimento direto estrangeiro, e manter/criar emprego.

Tanto mais que a ordem económica e a ordem moral não são alheias entre si, importando que, na gestão política desta crise se atenda sobre-tudo ao interesse comum, em especial defendendo a coesão social. Muito à semelhança da crise mundial de 1929, a atual crise não poderá ser solu-cionada sem uma conveniente resposta que considere os princípios da justiça social9.

Numa Europa em rápida mudança, orientada pela “Estratégia Europa 2020” (estratégia de crescimento para uma década, assente na ideia central de um crescimento económico inteligente, sustentável e inclusivo), importa que ao nível da condução política europeia não se desista de pugnar por

7 Como enfatizava António Sérgio “Nunca devemos querer conduzir os homens sem que tais homens deem por isso. Esta atitude é o cúmulo do desprezo; é tratá-los como inconscientes, como coisas, e não como pessoas.” (António Sérgio, Ensaios – Tomo VIII, Livraria Clássicos Sá da Costa, 1974: 169).

8 Como argumentava António Sérgio “enquanto não desempobrecermos (…) não será a nação uma realidade humana mas a simples vacuidade de um palavrão retórico (António Sérgio, Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal, Livraria Clássicos Sá da Costa,1974).

9 Como refere Augusto Santos Silva “a ordem económica, social, política, legal, tem de justificar-se e demonstrar que é justa (Santos Silva, A., Os valores da esquerda democrática – Vinte teses oferecidas ao escrutínio público, Coleção Respública, Almedina, 2010: 30).

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10 Como referia António Vitorino em entrevista dada ao jornal Expresso: “Há uma componente para Portugal que tem a ver com a UE. Contrariamente ao que diz o ministro das Finanças alemão (um artigo no FT advogou ser preciso mais ‘austeridade, austeridade, austeridade’), a solução é cumprir a austeridade, pôr as contas públicas em dia e, ao mesmo tempo, criar condições para o crescimento económico. Essa perspetiva do crescimento económico falta no contexto europeu e é essa componente portuguesa que depende da componente europeia.” E, acrescenta ainda, “a Comissão propôs, e bem, antecipar fundos. Mas é preciso flexibilizar do ponto de vista burocrático e da componente nacional. Temos um problema sério de restrição do investimento público, falta de liquidez no sistema bancário e o vazio tem de ser preenchido por uma utilização mais intensiva e flexível dos fundos estruturais. Isto depende de Bruxelas. “ (Expresso, 28 de setembro de 2011).

11 Como frisava António Vitorino na entrevista ao Expresso “a tarefa fundamental de quem acredita na Europa, seja em que trincheira esteja, e do Governo português, é persuadir os países que têm reticências que se trata de uma estratégia de interesse geral europeu e não só focalizada na resolução dos problemas dos países sobre-endividados” (Expresso, 28 de setembro de 2011).

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estas três prioridades transversais ao conjunto dos Estados que integram a UE: reforçar os níveis de emprego, de produtividade e de coesão social e, mais concretamente, os objetivos identificados para as áreas do emprego, da inovação, da educação, da inclusão social e da energia.

De facto, a resposta a esta crise internacional – que se sente-se por todo o mundo – não pode ser a tentação para um forte retorno a polí-ticas estritamente nacionais e a um protecionismo; assim como também se sabe que não há um só caminho a seguir: o da austeridade conducente a um inevitável empobrecimento dos países europeus mais afetados, Grécia, Portugal, Espanha e Itália10. E a alternativa não poderá deixar de passar por um reforço da aposta na atração de investimento direto estrangeiro e numa visão estratégica de relançamento do crescimento económico e de criação de emprego no médio prazo. Isso só será possível mediante a implementação de um imprescindível conjunto de políticas económicas e sociais transversais a nível europeu (e nacionalmente sectoriais) desenvol-vidas em ambiente de diálogo social e de integração política que garanta, simultaneamente, a diversidade nacional de cada Estado11.

Em suma, a políticas que promovam crescimento económico e emprego. Recordo o ensaísta português António Sérgio: “A obra de fomento precedeu a obra financeira. É essa a verdadeira cronologia económica…É pavoroso o nosso défice financeiro, mas dêem-nos boa economia e logo teremos boas finanças. Enriquecer Portugal, eis todo o problema finan-ceiro” (António Sérgio, Ensaios – tomo IV, Clássicos Sá da Costa, 1974: 205).

Sobretudo atendendo à tendência que se desenha para o empobrecimento acentuado de alguns países- os mais afetados por esta crise, designadamente

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Portugal12 - e sabendo-se que a população mais rica tem uma fraca propensão para consumir, uma vez que os seus rendimentos excedem largamente as despesas, comprometendo o desenvolvimento da economia.

Neste particular merecerá atentar na evolução do denominado “modelo alemão”. A Alemanha vive hoje uma situação socioeconómica vincadamente distinta da vivida na maioria dos países da Zona Euro. Por várias razões mas, desde logo, porque é o país europeu que mais reduziu a taxa de desemprego desde o início desta crise, ou seja de 2007 até hoje. Por este facto, o “modelo alemão” vai surgindo como um exemplo a seguir em certos países europeus. Confrontada com uma forte perda de competitividade (devido, sobretudo, à quebra do investimento direto estrangeiro) e ante um movimento de desloca-lização empresarial para os países do leste da Europa, a Alemanha enfrentou, em meados da década passada, um duplo desafio: relançar a economia e travar a destruição de emprego. E defendendo uma política de “patriotismo econó-mico”, especialmente no que concerne à industria13, a par de uma robusta aposta nas exportações, desenvolveu-se então uma política de contenção salarial nas empresas, contrapartida temporal da manutenção de emprego e da fixação da produção (sobretudo industrial) em território nacional. Mas este esforço de limitação dos custos de produção teve como consequência um desenvol-vimento da pobreza e um aumento das desigualdades, traduzindo-se, além do mais, num enfraquecimento no investimento nas infraestruturas do país, nomeadamente ao nível da educação (o problema que agora emerge nalguns sectores industriais é mesmo o da penúria de mão-de-obra qualificada).

Ora, a propagação deste “modelo alemão” de austeridade a outros países da Zona Euro (em particular aqueles que foram mais atingidos socialmente pela crise e têm salários médios muito inferiores ao alemão) poderá ter para esses países consequências catastróficas, quer ao nível do emprego quer do crescimento económico. Desde logo, e considerando a disparidade da média salarial entre os

12 Como afirmava Teresa de Sousa “o que já não é possível é ficarmos limitados a uma visão que rejubila pelo facto de Portugal ou a Irlanda, a Grécia ou a Espanha encontrarem o caminho da salvação apenas pela desvalorização dos salários e pelo desemprego em massa. Não é socialmente aceitável. Não é moralmente aceitável. Não tem, sobre-tudo, qualquer futuro. Mas é, cada vez mais, o único discurso que é oferecido pelos que creem que, da austeridade, nascerá milagrosamente o crescimento. Nem que seja por isso, o facto de a campanha de Hollande poder abrir uma nova perspetiva europeia já vale a pena” (Teresa de Sousa, “Hollande a nova fase do debate europeu”, Público, 18 de Março de 2012).

13 Idêntica, diga-se, à seguida pelos EUA em matéria de atratividade territorial no que respeita à indústria e à aposta na consolidação deste sector.

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** Este artigo foi escrito antes da realização das eleições presidenciais francesas (Nota da direcção Finisterra).

14 Como, por exemplo, a Alemanha e a Itália. Como refere Francisco Assis “a esquerda democrática europeia debate-se com um problema de fundo que prejudica a sua intervenção política e dificulta a sua capacidade de agregação eleitoral – a ausência de um pensamento económico sólido e autónomo, que se possa opor com vigor aquilo que habitualmente se designa por “doutrina neoliberal” e se tem revelado hegemónica nas últimas décadas. Grande parte dos problemas dos partidos da área socialista e social-democrata derivam dessa insuficiência básica. Mas (…) em torno das questões europeias começa a emergir, ainda que lentamente, uma visão política e económica capaz de identificar autonomamente a esquerda democrática (Francisco Assis ,“Na política as palavras têm vida e muitas vezes têm o mérito de anunciar o futuro”; Público, 5 de Abril de 2012).

denominados países periféricos (por exemplo, Portugal, Espanha, Grécia) e os países do centro da Europa (por exemplo, Alemanha, Áustria ou Luxemburgo), receando-se pelo exponencial incremento do conjunto de população pobre e da expansão da designada “nova pobreza” (working poor) isto é, de trabalhadores pobres.

Diversos estudos sobre pobreza divulgados desde o início da crise de 2007/2008 revelam que, além do desemprego, a pobreza tem aumentado junto de muitos agregados familiares dos países europeus mais afetados. De fato, a par da denominada “pobreza geracional” (isto é, a pobreza que resulta de um ciclo de pessoas que nascem pobres, vivem pobres e morrem pobres, transmitindo geracionalmente esse ciclo de vida), verifica-se que muitas famílias, que antes desta crise não eram pobres, confrontadas ines-peradamente com o desemprego, resvalam para situações de pobreza. Ou seja, trabalhar e deter um vínculo laboral, por si só, já não é suficiente para afastar as famílias da pobreza ou do risco de pobreza, dado que muitas auferem rendimentos baixos que em situações de desemprego – em espe-cial de longa duração – agravam a vulnerabilidade social destes agregados.

2. François Hollande e a esperança da social-democracia europeia

E é neste ambiente de grande exigência ao nível da definição do futuro da construção europeia que decorrem as eleições presidenciais francesas, apontando as mais recentes sondagens publicadas para uma vantagem do candidato socialista François Hollande**.

Ora, estas eleições assumem especial importância no atual contexto político europeu, tanto que se entende que o resultado destas eleições pode vir a influenciar quer as eleições alemãs quer as italianas sendo clara a esperança para os sociais-demo-cratas europeus: se Hollande vencer em França, outros países da UE se seguirão14.

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Com a intenção de se demarcar de Nicolas Sarkozy, Hollande defende que o seu projeto é de esperança: por um lado, esperança na criação de emprego (nomeadamente junto da população jovem e dos desempregados de longa duração – mediante o que designa por “contrato geração” – e sugerindo uma clara aposta no “emprego verde” e no emprego de “serviços de proximidade”) e, por outro, esperança na luta contra as desigualdades sociais, designadamente no acesso à saúde e à educação.

Como declarou na sua campanha “a Europa atravessa a mais grave crise da sua história”, crise que força os europeus a desilusões e que afasta a construção europeia de um ideal prosseguido por varias gerações há mais de cinquenta anos”. E, reafirmando a necessidade de construção euro-peia que contrarie a ideia de uma Europa “impotente face às forças do mercado, obcecada com a desregulação e incapaz de resistir à globalização liberal15”, Hollande retoma a ideia – apresentada em Berlim a 5 Dezembro de 2011, no congresso do SPD – de propor uma alternativa ao tratado de disciplina orçamental (assinado por 25 dos 27 Estados-membros da UE), defendendo que este cria a “ilusão” de pretender terminar com a crise financeira através da estabilidade mas não responde a uma crise económica prolongada que, a prazo, poderá mesmo fazer ressurgir os desequilíbrios financeiros que fizeram nascer, justamente, a primeira.

Como advoga Hollande, é necessário propor “novos instrumentos” que favoreçam o crescimento e o emprego considerando que a situação na Zona Euro é ainda frágil e que urge restaurar a confiança16. Para Hollande, sem medidas para relançar o crescimento os governos não conseguirão nunca pagar a sua dívida e os povos envolver-se-ão cada vez mais numa construção europeia que os condenará ao empobrecimento, pois, como realçou na sua campanha, “se nada mudarmos, os povos europeus não suportarão muito tempo as consequências de um laissez-faire devastador; é um caminho trágico que o mundo não conhece desde a Grande Depressão dos anos 1930.”

15 Opondo-se aqui a Nicolas Sarkozy que quer, a todo o custo, recuperar a parte do eleitorado do Front National que nele votou em 2007 (face a Marine Le Pen).

16 A este propósito, refere Teresa de Sousa no Público “os socialistas e sociais-democratas europeus ainda estão muito longe de ter compreendido a natureza desta crise e as suas consequências para o futuro das sociedades euro-peias e do modelo social europeu. (…) a Europa está longe de ser salva. O “consenso” “Merkozy” já começava a cansar muita gente. A vitória de Hollande teria a vantagem de reequilibrar os termos do debate.” (Teresa de Sousa “Porquê tanta pressa?”, Público, 15 de Abril de 2012).

CRISE DO EURO E MODELO SOCIAL EUROPEU

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E lamentando que os líderes da Zona Euro se tenham voltado unica-mente para a implementação de políticas de austeridade, François Hollande reclama medidas para o crescimento económico afirmando que é preciso que os países europeus se previnam contra a instabilidade macroeconó-mica futura, tendo afirmado (quando foi recebido pelo líder do partido trabalhista Ed Miliband, em Londres), num discurso proferido no King's College) que “precisamos mais regulação (…) e desejamos que o cresci-mento na Europa possa ser estimulado e temos necessidade de uma Europa que tenha essa visão. Viemos também aqui a Londres para dizer que o sector financeiro deve estar ao serviço da economia, deve permitir criar a riqueza e não apenas enriquecer à custa da atividade económica.”

E, de facto, a acontecer, a vitória de Hollande teria a virtude de forçar um regresso ao debate político europeu sobre qual a melhor resposta a esta crise em termos de crescimento económico e emprego.

GLÓRIA REBELO

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Introdução*Num momento em que a Comunidade Europeia enfrenta a mais grave

crise desde a sua origem, o presente texto pretende revisitar algumas das (velhas e novas) discussões em torno do Estado e ao mesmo tempo contri-buir para a reflexão em torno do «Estado social» e dos seus desafios atuais. Em primeiro lugar, importa (re)pensar o Estado na sua relação com a sociedade, e questionar o seu papel, o seu potencial e os seus limites no atual contexto de austeridade. De facto, é tempo de se fazer o balanço e de se reinterpretar o legado “social” e histórico da Europa moderna, à luz da realidade presente e das perplexidades que hoje ameaçam o modelo social europeu. Na encruzilhada em que nos encontramos, perante medidas de austeridade que atingem em cheio as classes médias e os trabalhadores em geral, não pode esperar-se uma total passividade e conformismo dos cida-dãos, em especial em países como Portugal, em que a relativa estabilidade e coesão social se deveu sobretudo ao papel do Estado social. Daí que seja indispensável prestar atenção aos novos movimentos sociolaborais que se reconfiguram na fronteira entre um Estado fragilizado e um mercado de trabalho onde grassa a precariedade, o desemprego e onde os direitos labo-rais estão a “desfazer-se no ar”.

Concepções e contradições do Estado modernoO Estado e o seu significado sociológico permanece intimamente ligado

à história do Ocidente, onde, como é sabido, a Europa ocupa um lugar central. A génese do Estado remete para o poder, sendo que este reside, em última instância, na força, a começar pela força militar. Nessa medida, é

O Estado Social em Causa1:Instituições, Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto EuropeuElísio Estanque

* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

1 O presente texto está igualmente em publicação no livro: Silva, Filipe Carreira (org.) (2012), Os Portugueses e o Estado Providência. Lisboa: ICS.

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nos exércitos, nos dotes de chefia dos seus líderes e na sua capacidade estra-tégica que repousa o domínio dos grandes impérios ou das cidades-Estado mais influentes da era clássica. Faz sentido remeter para essas fórmulas originárias do exercício do poder para refletirmos sobre o Estado e a sociedade. Todavia, até hoje o conceito de «Estado» permanece discutível quanto à sua origem e ao seu significado. O termo foi usado pela primeira vez por Maquiavel (O Príncipe, 1532), mas o nascimento do Estado moderno é posterior, sendo em geral situado no tratado de Paz de Westfália (1648), com o reconhecimento de governos soberanos sobre uma dada área terri-torial. Com uma Europa central devastada por guerras religiosas que duraram várias décadas, a paz foi muito dificilmente conseguida, ocor-rendo num período de profunda viragem na correlação de forças entre as diversas potências europeias. O Estado-nação emerge das ruinas da cristandade medieval, resultado da desagregação dos grandes impérios: “A universalidade política medieval, na sua unicidade e pouca diferenciação, sob a autoridade suprema do papa e do imperador, deu lugar a um sistema de Estados nacionais de variadas unidades políticas, soberanas e nacionais, que tinham de enfrentar e resolver o problema das relações com a Igreja, que permanecia universal e transnacional” (Cruz, 1992: 829). A autori-dade dos Estados traduziu-se, então, num consenso alargado em torno da soberania de cada território e das funções imputadas ao Estado, isto é: a) uma forma de governo dotada de instituições e meios para impor a sua Lei; b) um povo que aceita submeter-se a esse governo e com ele partilha determinados valores; e c) um território com fronteiras bem delimitadas.

Na famosa obra de Thomas Hobbes, Leviatã, o “estado de natureza” terá sido aquele em que, dadas as diferenças de poder e de inteligência entre os homens, e dado que os recursos são sempre escassos, a ausência de um poder dissuasor tende a suscitar uma guerra de todos contra todos. Ora, sendo a guerra permanente uma situação insustentável, é urgente contê-la ou preveni--la. E é justamente pela necessidade de assegurar a paz que os homens tomam consciência da necessidade de promover um contrato, um compromisso, controlado por uma força centralizadora à qual a sociedade deve submeter-se. Embora, como este clássico reconheceu, o Estado seja em larga medida “uma ficção”, ele transporta uma “vontade própria”, mas que representa e incor-pora a vontade colectiva dos cidadãos, criando e manuseando os mecanismos

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ativos que preservam os direitos e deveres de cada um.Mas, à visão hobbesiana de uma autoridade centralizada imposta pelo

Estado, outros pensadores, como John Locke, contrapõem uma ideia de soberania, igualmente representada pelo Estado, mas consentida pelos indivíduos, por cujas liberdades e direitos de propriedade aquele deve velar, caso contrário o poder de Estado perde legitimidade e os cidadãos têm o direito de revoltar-se. A perspetiva lockiana pressupõe um processo de consolidação de uma racionalidade aliada ao sentido de tolerância, respeito pelas liberdades, e à ideia de governo pelo consentimento, o que propor-cionou e deu solidez ao conceito de contrato social como base fundamental de governação, de justiça e de progresso das sociedades. O estatismo de Hobbes e o liberalismo de Locke seriam ainda contrariados por um dos autores mais influentes do século das luzes: Jean-Jacques Rousseau.

Segundo Rousseau, a natureza e o ser humano induziram um direito natural que a sociedade perverteu. Antecipou a visão sociológica segundo a qual a origem das desigualdades entre os homens resulta da própria socie-dade, da divisão do trabalho e da propriedade privada, sem no entanto descurar o papel da racionalidade. Só através da razão pode ser criado um “pacto” capaz de permitir a passagem do estado natural ao estado “civil”, passagem essa que teve consequências nefastas como a guerra e o egoísmo. Compete, portanto, ao Estado promover o contrato, apoiando-se na inte-ligência dos indivíduos, no seu pensamento racional-moral e promovendo leis que sejam expressão dessa vontade geral, a fim de suprir a tendência à desordem instigada pelo sistema social emergente. Porém, só o povo pode conferir legitimidade ao governo, que pressupõe o respeito pela liberdade, justiça e igualdade, considerados os principais garantes do contrato social entre os súbditos e os soberanos, cujas relações são de reciprocidade.

Embora, as reflexões filosóficas em torno do Estado remontem ao berço da civilização ocidental, é sobretudo com a emergência do capitalismo moderno que se desenham as principais conceções a seu respeito, perante o triunfo da nova sociedade ocidental, e é a partir delas que importa entender – e se possível refor-mular – a natureza complexa e contraditória do aparelho de Estado na sua relação com a economia e a sociedade em geral. Autores clássicos das ciências sociais, como Max Weber e Émile Durkheim, pensaram o papel do Estado moderno enquanto instância fundamental de racionalidade política e de organização da

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ordem social e moral da sociedade. Já Karl Marx desenvolveu todo um edifício teórico em que o Estado capitalista é visto sobretudo como aparelho de dominação associado à ordem económica e ao poder do capital nas sociedades industriais. O que estes pensadores tiveram em comum e que nos pode ajudar a compreender os problemas atuais foi a sua perceção de que o Estado e a economia são dimen-sões inscritas na sociedade e na sua estrutura socioeconómica.

Na verdade, o mais importante é atentar na natureza contraditória, plural e complexa da sociedade moderna, cuja conflitualidade ganhou um carácter estrutural logo no seu processo de gestação. Desde finais do século XVIII que as guerras civis, os movimentos camponeses, a revolução burguesa e o movimento operário marcaram a Europa ocidental com sucessivas convulsões sociais e polí-ticas, a provar como a consolidação das nações modernas esteve longe de ser um processo harmonioso. Daí que as preocupações com a lei, a ordem e a moral tivessem acompanhado as grandes correntes teóricas e filosóficas do pensamento social, muito embora, paradoxalmente, o triunfo da racionalidade ocidental tenha caminhado lado a lado com a instabilidade, o conflito e a luta entre classes.

É neste ponto que importa realçar a sagacidade de Marx ao antever a natureza eminentemente contraditória do capitalismo moderno e a sua propensão para aprofundar essas contradições, que até agora tem oscilado entre a tentação autodestrutiva e a capacidade regeneradora. Nesta perspe-tiva, o Estado, ainda que se imponha como uma instância superior e acima da sociedade, nunca se despe das relações de classe e, nesse sentido, assume-se como o principal veículo de legitimação e reprodução das fortes desigualdades sociais e económicas por que se rege a sociedade capitalista. Do ponto de vista conceptual, as referências de Marx ao Estado são dispersas, pouco apro-fundadas e por vezes contraditórias, estando mais presentes nos seus escritos históricos. Marx vê o Estado como uma dimensão do sistema de dominação de classes, considerando-o uma instituição “parasita” que serve os interesses da burguesia e dos altos funcionários, um “epifenómeno” das relações de propriedade, sobressaindo ainda no seu pensamento uma noção de “Estado instrumento” (cf. Bobbio, 1979), noção esta que é particularmente realçada por Lenine2. As análises marxistas mais elaboradas sobre a complexidade e

2 Uma perspetiva que fica clara na sua obra O Estado e a Revolução: “Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da «ordem» que legaliza e consolida esta opressão, moderando o conflito de classes.” (Lenine, 1978 [1917]: 15).

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as tensões internas que atravessam o Estado capitalista surgiram mais tarde (Poulantzas, 1978; Wright, 1978; Evens et al., 1985; Jessop, 1990).

As conceções e controvérsias acerca do Estado são tantas e tão diversas que não cabem nesta breve reflexão. Desde os defensores do laissez-faire, do Estado mínimo, que apenas reconheciam o seu papel de “vigilante”, garante da paz, dos direitos de propriedade e pouco mais, às teorias do esta-tismo mais abrangente, o Estado-sujeito ou o hobbesiano Leviatã, passando pela referida conceção leninista do Estado-instrumento, as premissas e conceitos em torno do Estado são difíceis de elencar.

Um traço decisivo para a afirmação do Estado é o equilíbrio dinâmico entre a lei e a ordem, de um lado, e a ação política dos cidadãos “livres” num dado território, do outro. No que respeita ao papel político do Estado poder-se-á dizer, como Samuel Huntington, que “na ausência total de conflito social as instituições políticas são desnecessárias, na ausência total de harmonia são impossíveis”. Daí que, no quadro democrático, o Estado seja, por excelência, o terreno da política, o qual, aliás, só tem sentido enquanto espaço plural, de liberdade, de diálogo, de compromisso e de conflitualidade. Prende-se com isso a permanente tensão entre a ativi-dade “interna” do Estado e a sua atividade “externa”, sendo que o termo “interna” tanto pode referir-se à esfera das sua próprias instituições como ao território nacional, enquanto a dimensão “externa” pode remeter quer para a ação diplomática e da defesa perante os inimigos exteriores, quer para a esfera que fica de fora do sistema político-jurídico-administrativo do Estado, isto é, para a sociedade civil. Deste modo, faz sentido afirmar que a eficácia do Estado se mede não tanto pelo seu funcionamento interno mas mais pelo maior ou menor sucesso na relação que estabelece com o que lhe é exterior. Por isso, as alianças, os jogos de poder e a ação estratégica que definem os atores da arena política que operam no seio do Estado ou em relação direta com ele, os levam a lutar permanentemente por reforçar e reinventar as suas fontes de legitimidade política através da persuasão e do compromisso em torno de interesses (taticamente) comuns. Como afirmou o autor de O Contrato Social, “o forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, a menos que transforme a força em direito e a obediência em dever” (Rousseau, 2000 [1762]).

Para Weber, o Estado é, por definição, a esfera da política e das

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instituições da governação, que devem – através da lei – prevenir o risco de excessivo intervencionismo na economia e na sociedade. Sendo o detentor do monopólio da violência legítima, deve velar pela ordem social (legítima), promovendo os meios legais para regular os conflitos, revertendo-os em “lutas pacíficas”, isto é, criando uma saudável competição individual que leve a sociedade a premiar os mais aptos, dando lugar a um sistema estra-tificado que reflita a distribuição diferencial do poder. Assim, o Estado social emergente não deveria exceder os limites de um “Estado regulador”, ou seja, assumir-se como o principal garante do modelo liberal. Compete ao Estado e ao mercado desenvolver e aperfeiçoar a racionalidade, promo-vendo leis e formas administrativas assentes em sistemas impessoais e burocráticos capazes de consolidar essa mesma ordem, sendo esta apoiada em formas legítimas de consentimento – fundadas na tradição, na legali-dade ou no carisma do líder – e não na coerção. Na perspetiva weberiana assume particular importância o papel dos funcionários e técnicos, espe-cializados na gestão do direito formal que o Ocidente apropriou do legado do império romano e que influenciou a burocracia estatal moderna, sem a qual o capitalismo não poderia consolidar-se. O aumento da complexidade a isso obrigava, se bem que Weber reconhecesse os problemas daí advindos para o funcionamento da democracia. Entre outros, o autor de Economia e Sociedade assinala a crescente tensão entre soberania crescente (controlo dos governos pelos governados) e soberania decrescente (controlo dos governados pela burocracia), enquanto fatores favoráveis à emergência de um duplo perigo: a “gaiola de aço” da administração e as ações emotivo-passionais instigadoras de novos poderes carismáticos (Santos e Avritzer, 2003: 41).

Já Durkheim, preocupado com a ordem moral e a integração dos indivíduos numa sociedade caracterizada pela “solidariedade orgânica”, considerou o Estado como inerente ao caracter complexo e plural das sociedades “políticas”, ou seja, ele só existe em sistemas diferenciados cuja composição interna agrega distintos grupos secundários. Impõe-se enquanto autoridade, não pela força mas através da moralidade, insti-gando os indivíduos a participar, sobretudo através do associativismo corporativo, no exercício das profissões, na edificação de uma normati-vidade onde o coletivo tem a primazia sobre o individual, sem no entanto oprimir os indivíduos. O Estado é então “a sede de uma consciência mais

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elevada” que, sem se confundir com a coletividade mais geral, constitui o seu sistema nervoso central, “o órgão encarregado de elaborar certas repre-sentações que valem para toda a coletividade, que se distingue das outras representações coletivas pelo grau mais elevado de consciência e reflexão” (Durkheim, 1983).

Se o Estado veio a conquistar uma tão evidente centralidade no mundo ocidental – e em especial na Europa – foi não apenas por via do seu papel político, mas sobretudo porque a economia de mercado, que dominou as sociedades industriais a partir do século XIX, deu lugar a fortíssimas ruturas sociais e conduziu a um desmantelamento violento das velhas formas de organização económica e de coesão cultural das comunidades tradicionais. A economia das sociedades humanas está submersa em rela-ções sociais, como afirma Polanyi (1980), e a produção era nas sociedades tradicionais uma função direta da organização social, a qual desenvolveu as suas atividades e relações de troca na base dos princípios da recipro-cidade, da dádiva e da redistribuição, e onde a ideia de lucro ou mesmo de riqueza, do ponto de vista individual, estiveram ausentes. Todavia, foi justamente o domínio avassalador do princípio do mercado que fez despo-letar a necessidade social de mecanismos de regulação, a fim de minimizar ou prevenir os excessos do capitalismo selvagem que nessa época se instalou na Europa, em especial em Inglaterra. Daí o paradoxo do Estado, tendo em conta que – como ilustram as ideias de J.-J. Rousseau – o mesmo vive há vários séculos no dilema de lutar pela realização da comunidade política ao mesmo tempo que se debate com a crescente fragmentação das identi-dades coletivas de base local, dando lugar, não poucas vezes, ora a formas elitistas de democracia mitigada, com escassa participação popular, ora a regimes nacionalistas onde as massas se tornaram mera força instrumenta-lizada por chefes autoritários. O sonho de construção de uma comunidade política alargada para níveis que recuperassem o velho sentido (rousseau-niano) da comunidade natural foi uma utopia por cumprir, mesmo depois da experiência europeia do contrato social, apesar desta ter sido a fórmula que – na vigência do Estado-providência – mais se aproximou da referida utopia (Morris, 1996).

Se a atividade económica é sempre social, tal não invalida reconhecer-se a distinção analítica entre os dois domínios. Para além de que, apesar das

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implicações reciprocas entre economia e sociedade, trata-se de dimensões que encerram tensões e lógicas conflituantes, sobretudo se a esfera econó-mica é dominada pelo princípio do mercado. Na verdade, uma análise mais abrangente do papel do Estado que nos permita ensaiar uma abor-dagem integrada do seu significado social e político requer um esforço de reflexão em que tais princípios terão de estar presentes.

Embora os marxistas tenham olhado para o Estado capitalista sobre-tudo enquanto “superestrutura” – expressão de uma realidade económica fundada em relações de classe e formas de exploração – a visão estrutura-lista e dicotómica perdeu atualidade à medida que novos desenvolvimentos teóricos foram surgindo, inclusive no seio do campo marxista, por exemplo a partir dos contributos de Nikos Poulantzas. Nesta linha de reflexão, é consensual a ideia de que o Estado tem como principal função societal, no capitalismo, organizar as classes dominantes enquanto “bloco no poder”, conferindo coerência e aproximando os diferentes interesses entre frações específicas da burguesia, função essa que só pode ser cumprida na medida em que a “relativa autonomia” das instituições seja assegurada. Dito de outra forma, para que o Estado consiga cumprir um tal desígnio, isto é, para realizar a sua função reprodutiva e assegurar a coesão da ordem socio-económica vigente, terá de se afirmar “acima” de cada fração e sempre que necessário agir em benefício (real ou aparente) do povo e das classes trabalhadoras, por exemplo, legislando contra os interesses (imediatos) dos grupos privilegiados. É em larga medida devido à atividade redistri-butiva do Estado que a sua função ideológica e discursiva ganha eficácia no apaziguamento da conflitualidade social e consequente preservação do status quo. Efetivamente, o Estado só pode assegurar a sua força política enquanto controlar ou regular a riqueza económica produzida na socie-dade, em particular ao assegurar as condições de crescimento e acumulação de riqueza que sustente a política fiscal de que depende. Importa, por isso, recusar a noção de absoluta autonomia ou de mera instância normativa para o Estado moderno.

O Estado tem um fundamento económico, enquanto a economia tem um fundamento político (Burawoy, 1985 e 2010). Por um lado, o funda-mento económico refere-se à sua capacidade política para intervir na economia. Por outro lado, a economia tem um fundamento político no

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sentido em que o modo como cada um dos agentes económicos participa no sistema produtivo (e no mercado) obedece a relações de poder e domi-nação orientadas por critérios e formas de retribuição e de recompensa profundamente desiguais, mas suportadas por lógicas de consentimento que naturalizam as desigualdades e formas de exploração. Em suma, é na sua tripla função – económica, ideológica e política – que o Estado realiza o seu papel de produção e de revitalização permanente dos ingredientes que cimentam a sociedade no seu conjunto. Todavia, esse é um trabalho que está longe de ser isento de contradições.

Embora o Estado constitua a “ossatura” (Poulantzas, 1978) da sociedade e funcione como o “destilador” da luta de classes, não deixa de abrigar no seu seio as inevitáveis tensões e conflitos inscritos nos jogos de interesses e nas alianças que os seus agentes permanentemente promovem, seja de dentro para fora seja de fora para dentro. Trata-se de um sistema onde as componentes institucional, formal e jurídica podem esconder uma parte das relações e disputas concretas que circulam no seu seio, ou seja pode falar-se, em certos contextos, como já foi apontado no caso da sociedade portuguesa, de um Estado dual ou Estado paralelo (Santos, 1990 e 1994), que tanto atua por ação como por omissão na sua articulação tensa e complexa com a sociedade, na sua função simultaneamente reguladora, normativa e de dominação. A linguagem e os rituais do Estado são sempre adornados com as vestes mais coloridas, evidenciando desse modo a sua vocação ideológica, usando reite-radamente as formas cerimoniais e os meios discursivos de comunicação ao seu dispor para dissimular ou esconder perante os olhares públicos as tramas que operam paralelamente nos subterrâneos dessa teia densa e labiríntica de instâncias e de interesses que alimentam o Estado ou dele se alimentam (Poulantzas, 1971 e 1978; Burawoy, 1985; Ruivo, 1999).

Sociedade, mercado e Estado social A partir de formulações desenvolvidas por Boaventura de Sousa Santos

(1994), pode considerar-se que o Estado, o mercado e a comunidade constituem princípios centrais na organização das sociedades ao longo da modernidade, jogando a sua articulação um papel dinâmico na organização do sentido histórico que, em momentos diferentes, marcou as socie-dades europeias nos últimos duzentos anos. Tais dinâmicas são, portanto,

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expressão das contradições estruturais que em contextos particulares – e sob a forma de políticas governativas, movimentos sociais, lutas de classe ou outras forças organizadas – assumem orientações concretas, empurrando por assim dizer a sociedade ora numa direção progressista e emancipatória (melhorando os padrões de vida e bem-estar dos seus cidadãos), ora para a reprodução e reforço de opressões e injustiças sociais (prolongando os fatores de atraso ou regredindo nos seus padrões de desenvolvimento).

Como atrás referi, fazendo referência aos estudos de Karl Polanyi (1980), a chamada economia “de mercado” só se tornou dominante no pós-Revolução Industrial, tendo, na verdade a Europa do século XIX assistido a um domínio avassalador do mercantilismo, que, ao longo da fase mais “selvagem” do capitalismo moderno obrigou à construção de mecanismos de regulação, designadamente através do Estado. Quer isto dizer que – em contracorrente com o pensamento económico neoliberal que dominou o mundo desde os anos oitenta do século passado – o papel dos “mercados”, enquanto entidades ou “forças” capazes de se imporem às sociedades, foi sempre rejeitado pelos modelos tradicionais de organi-zação económica nas sociedades de economia agrária e nas culturas rurais, pelo que, como aconteceu no século XIX, o liberalismo desregulado gerou compreensíveis resistências sociais e políticas, pressionando os governos e as instituições públicas a criar meios para limitar e regular os excessos do mercantilismo.

É neste quadro que importa situar o problema a fim de compreen-dermos alguns dos fundamentos sociológicos do Estado social na Europa e as razões por que a sua eventual extinção ou falência significaria um golpe profundo nas expectativas dos cidadãos europeus (como adiante veremos), cujas consequências poderiam ser devastadoras. O Estado, enquanto relação de forças condensada, veste-se das roupagens do positivismo durkheimiano para produzir normatividade e ao mesmo tempo cria uma ficção de unidade, a “comunidade imaginada” (Anderson, 1991), usando os seus diferentes aparelhos e políticas para promover formas duradouras de consentimento, seja através da ação e do discurso, seja através de opaci-dades e silêncios seletivamente controlados. Os seus objetivos passam, portanto, por tentar conjugar três dimensões fundamentais: a) o patri-mónio histórico, cultural e linguístico do respetivo território onde é o

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garante da soberania; b) as experiências, identidades, interesses de classe, lutas e conflitos do passado e do presente; e c) a organização social e insti-tucional concreta, imprimindo-lhe uma estratégia racional e um projeto de futuro (Burawoy, 1985). Acresce que estas dimensões, nas suas dife-rentes conjugações, dão lugar em cada momento histórico a formas e regimes de regulação particulares que é necessário entender numa pers-petiva dinâmica.

Nos últimos duzentos anos é possível conceber a existência de diversos regimes de acumulação. Numa primeira fase, um regime despótico, de mercado, que vingou no período de capitalismo “selvagem”, suscitando respostas e movimentos sociais antissistémicos, com destaque para o movimento operário e para as convulsões e movimentos republicanos, anarquistas e socialistas que assumiram uma força decisiva na viragem do século XIX para o século XX. Entretanto, a consolidação de novas técnicas e racionali-dades burocráticas aplicadas à economia, conduziram ao aperfeiçoamento de um regime disciplinar na produção, caracterizado pela rápida acumulação e crescimento (modelo taylorista), o que, apesar disso, não evitou a grande instabilidade social e política que passou por intensos conflitos, guerras e revoluções – desde a I Guerra Mundial à revolução bolchevique e que três décadas depois culminou com a II Guerra Mundial – na primeira metade do século XX. Só posteriormente, já no período do pós-guerra se afirmou um regime hegemónico, coincidente com o advento do welfare state, no qual a integração e o consentimento foram objeto de uma negociação e compro-missos sociais realizados à sombra do fordismo e das políticas sociais promovidas pelo Estado. Finalmente, desde a década oitenta do século passado, assistimos a uma nova viragem, de sentido liberal mas agora na escala global, o que leva a que se fale da emergência de uma nova forma de despotismo, o despotismo global ou despotismo hegemónico, coincidente com as últimas décadas de hegemonia neoliberal, em que a regulação se realizou através das múltiplas conexões transnacionais dinamizadas pela globali-zação e pelo capitalismo financeiro, apoiados nas redes informáticas e nas novas tecnologias da comunicação (Burawoy 1985 e 2001; Castells, 1999).

Pode, pois, afirmar-se que ao longo dos últimos três séculos aqueles regimes operaram sobre os despojos da velha sociedade pré-industrial onde eram as estruturas sociais – ou mais corretamente, da comunidade – que

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comandavam a economia. Na linha de autores já referidos (Santos, 1994; Polanyi, 1980), pode dizer-se que o modo como se combinaram ao longo de todo este tempo dependeu sempre da forma como os princípios da comunidade, do mercado e do Estado se foram estruturando na geometria do território e na organização colectiva das sociedades e das nações. Com maior ou menor articulação entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade (Santos, 1994 e 2011)3 permaneceu uma constante tensão na qual se inscreveram os processos de sentido mais progressista e eman-cipatórios ou o seu contrário, as forças mais normalizadoras ou sistemas mais conservadores e autoritários. Até finais do século XIX, foi o princípio de mercado que se sobrepôs aos restantes mas o mesmo induziu – sobretudo devido ao papel da luta de classes – um esforço de reconstrução do princípio da comunidade. O movimento operário e as ideologias mais radicais que o penetraram (em especial o anarquismo e o marxismo) foram portadores de uma linguagem, de um projeto político que, de certo modo, transpor-taram um reforço do princípio da comunidade ou, dito de outra maneira, projetaram um discurso classista e comunitarista que, além da sua marca emancipatória, reinventaram a identidade colectiva dos oprimidos em torno da noção de classe. Ainda que em parte ficcionada, essa foi uma subjetivi-dade que, por um lado, resistiu ao princípio do mercado e, por outro lado, foi decisiva para a emergência do Estado social. Tal processo acabou por conduzir à primazia do princípio do Estado sobre os princípios do mercado e da comunidade, tornando-se hegemónico, em especial após a II Guerra Mundial, com o triunfo e consolidação do Estado-providência. Mas, como é sabido, a partir da década de setenta foi de novo o mercantilismo que se reergueu e, desde então, é novamente o princípio do mercado que ganha hegemonia e o Estado que recua – e os seus programas sociais, assistenciais e solidários – e se tem vindo a submeter cada vez mais à economia de mercado, agora numa escala mais ampla, sob a batuta da globalização neoliberal.

Em diversos momentos desde o nascimento das sociedades industriais modernas, mas em especial nas últimas quatro décadas, os mercados cres-ceram de uma forma avassaladora, mantendo a sua oposição ao protagonismo

3 Boaventura de Sousa Santos refere-se a estes três princípios na sua articulação com os pilares da regulação e da emancipação (Santos, 1994).

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estatal. Se, durante muitos séculos, os mercados foram apenas acessórios dos sistemas sociais, agora passou a ser a produção e distribuição que se viriam a submeter cada vez mais aos mercados e as transações monetárias e a motivação pelo lucro ganham primazia sobre as relações de troca e a reci-procidade. Até certo ponto, a sociedade no seu conjunto regressa à situação que já experimentara no século XIX, isto é, a uma sujeição generalizada às leis do mercado. Segundo Polanyi, o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo parte do sistema económico, são organizados através do mercado, mas não são mercadorias dado que nenhum deles foi criado para venda pelo que “a descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é intei-ramente fictícia” (Polanyi, 1980: 85). Sendo uma tendência antiga, que este autor remete aos finais do século XVIII, não há duvidas que o recru-descimento do princípio do mercado como ideologia dominante suscitou algum paralelismo com o que aconteceu na Europa desde há duzentos anos, levando a economia de mercado a ganhar ascendente sobre as atividades produtivas de base comunitária e solidarista (Laville e Roustang, 1999).

O campo laboral foi sem dúvida aquele em que os impactos desestru-turadores da globalização têm sido mais problemáticos. As consequências disso mostraram-se devastadoras para milhões de trabalhadores de diversos continentes. E a Europa é o continente onde as alterações em curso repre-sentam o mais flagrante retrocesso perante conquistas alcançadas, desde o século XIX. Com efeito, os impactos da globalização têm vindo a induzir novas formas de trabalho cada vez mais desreguladas, num quadro social marcado pela flexibilidade, subcontratação, desemprego, individualização e precariedade da força de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco, num processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o sindicalismo desde os finais do século XX (Castells, 1999; Beck, 2000; Antunes, 2006).

Embora se saiba que não existe um modelo europeu único, pode, genericamente, considerar-se que os traços que guiaram as principais economias europeias ao longo do chamado modelo fordista passaram por um equilíbrio entre o Estado e o mercado, conjugado com um contínuo crescimento económico com políticas económicas keynesianas de procura do pleno emprego e um equilíbrio entre a produção industrial e a

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redistribuição. Tal sistema estimulou o aumento do poder de compra e a sustentabilidade das políticas de segurança e proteção social, configuradas no Estado-providência, que se apresentou ao mundo como o principal modelo de sucesso económico e de bem-estar geral. O Estado-providência europeu tornou-se uma espécie de contraparte do modelo de “socialismo soviético”, um e outro com pretensões a servir de “farol” de progresso e emancipação dos trabalhadores e da humanidade, ao longo do período entre 1945 e 1975, por isso mesmo já batizado pelos “gloriosos trinta anos” de bem-estar social.

A Europa (particularmente os países da região Norte) reunia as vantagens dos EUA com todos os seus avanços tecnológicos e cultura democrática com políticas sociais protetoras dos mais desapossados. Efetivamente, a relação salarial fordista de produção, que se generalizou no pós-guerra – embora, evidentemente segundo dinâmicas nacionais muito distintas consoante as regiões e os regimes de cada país –, é indissociável do papel do Estado, pois ela traduziu a passagem de uma relação de trabalho concorrencial e pura-mente mercantil para um modelo juridicamente regulado, dando lugar à ideia de que: “a garantia de emprego e a noção de emprego – o contrato indeterminado – e a proteção social estão na origem da chamada cidadania social na Europa ocidental do pós-guerra” (Oliveira e Carvalho, 2010: 27).

O choque petrolífero de 1973-74 provocou receios sérios de uma doença súbita e preocupante para a Europa: a “euro-esclerose”, rela-cionada com a perda de confiança no modelo e seu futuro prospetivo (Cravinho, 2007), já então com as economias asiáticas em pano de fundo, mostrando os primeiros riscos de desmantelamento do modelo e dando lugar a um discurso que passou a secundarizar o papel das empresas e da indústria em beneficio da economia financeira e do monetarismo. Como assinalou João Cravinho, o olhar passou a centrar-se, na perceção comum, “quase exclusivamente no lado social do modelo, representado pelo Estado social, acompanhado pelas políticas de redistribuição finan-ciadas pela elevada taxação” (Cravinho, 2007: 14). Esta leitura assentava na ideia de que o desempenho económico da Europa era francamente defi-citário por referência aos EUA e, ao que se supunha, por maioria de razão o seriam perante as economias emergentes do continente asiático assentes nos baixos salários. A crescente pressão que se foi exercendo sobre as

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atribuições sociais do Estado – fortemente potenciadas pelo triunfo polí-tico do modelo neoliberal consubstanciado nas vitórias de Ronald Reagan e Margaret Thatcher – deu lugar a novas fórmulas e propostas para a redução da intervenção estatal na economia, suscitando novas linhas de argumen-tação em que o chamado “princípio da subsidiariedade”, isto é, a ideia de restringir ao mínimo indispensável a intervenção do Estado, quer na ativi-dade empresarial quer mesmo nos programas assistencialistas, apenas se justificava enquanto complemento da sociedade e dos agentes económicos, ou seja, apenas nos casos em que a iniciativa privada se revelasse incapaz de cumprir as funções consideradas fundamentais para o interesse público.

Como atrás foi apontado, os modelos “sociais” ou de regulação que marcaram a Europa passaram por ciclos muito distintos e revelaram tensões e conexões muito complexas, não obstante a presença dominante de uma dada fórmula em relação a outras. Nesse processo, sempre oscilaram tendências contrárias ou complementares entre a primazia dos mercados e a do Estado. É importante não esquecer que o que ocorreu no continente europeu e no Ocidente em geral não foi, de modo nenhum, um processo uniforme e simultâneo em todos os países. Muito embora a economia de mercado tenha começado a aumentar a sua força perante os Estados sobe-ranos (o desequilíbrio de poderes, a força política, militar, tecnológica etc., de cada Estado), bem como a solidez das suas instituições e o nível geral de qualificações e capacidade competitiva no xadrez internacional, daí resultaram dinâmicas muito discrepantes. Podem, por exemplo, fazer--se distinções muito claras entre o modelo das sociais-democracias vigente nos países nórdicos, a tradição corporativista de países como a Alemanha, a França e a Itália e o modelo mais liberal vigente no Reino Unido (e nos EUA), sendo no entanto de destacar que, já desde os anos noventa se vem colocando em causa a ideia de que o modelo neoliberal seja o desenlace inevitável da crise do Estado-providência (Jessop, 1993; Esping-Andersen, 1996; Santos e Ferreira, 2001). Não se trata, portanto, de pensarmos em termos de uma simples viabilidade ou inviabilidade do “Estado social”, mas antes no quadro das transformações socioeconómicas e políticas mais profundas que marcam a mudança histórica, em particular nos últimos dez anos. Sendo o capitalismo um sistema dotado de grande complexidade e dinamismo, o modo como a sua infraestrutura económica se combina

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com o sistema democrático (a democracia formal) tem obedecido sempre a contradições e compromissos mais ou menos instáveis, sendo hoje duvidoso até quando e em que condições a democracia e o capitalismo constituem um binómio compatível com o crescimento das forças produtivas ou se, pelo contrário, intensificam os seus antagonismos e nos conduzem a ruturas radicais e imprevisíveis (Santos, 2005 e 2011). Seja como for, a história mostra-nos que não há modelos monolíticos que se seguem uns aos outros, mas sim soluções sempre compósitas, transitórias e de duração indefinida.

Num período como o que temos vivido nos últimos anos no contexto europeu, de atrofiamento do Welfare State, vimos como o modelo keynesiano foi deixando espaço para, de novo, reemergir um conceito de “Estado regulador”, inspirado no princípio shumpeteriano segundo o qual os mercados são dotados de uma capacidade “natural” de autorregulação, cabendo ao Estado sobretudo assegurar as condições da boa concorrência. Essa passagem, apesar das suas particularidades em países diferentes, traduziu-se em três traços fundamentais: a descentralização da ação estatal para as escalas local ou transnacional; a maior focalização na esfera laboral, nomeadamente nas políticas de formação profissional e na flexibilização (lean production); a aposta na “governança”, em geral acompanhada por processos de privatização e subcontratação em diversos sectores e serviços públicos (Silva, 2009).

O que vem sucedendo na Europa nas últimas décadas prende-se igual-mente com um conjunto de processos e tendências extremamente diversas, apesar de no seu conjunto se tratar de transformações arrastadas pelas mesmas forças que têm vindo a fustigar as economias e os Estados desde os anos oitenta do século passado. O fraco crescimento e a recessão económica, o défice público, o endividamento externo e o envelhecimento demográfico são alguns dos aspectos que tornaram insustentável o modelo de Estado social na maioria dos países europeus e estão a empurrar alguns para a ruína.

Nestas condições, parece evidente a impossibilidade de um regresso à velha matriz do Estado-providência tal como existiu no passado. O que está em curso é uma mudança profunda e estrutural, tornando impossível o retorno à situação dos “gloriosos trinta anos”. As opções políticas a adotar terão de escolher entre a intensificação do mercantilismo “selvagem”, correndo o risco de fazer explodir as desigualdades, a miséria e as injustiças

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sociais, com a consequente generalização da conflitualidade, ou dar conti-nuidade à tradição humanista e solidária inscrita na história da Europa, reerguendo um modelo social adequado à nova realidade. Perante o agra-vamento da atual crise, o modelo neoliberal (ainda hegemónico) perdeu legitimidade em face dos resultados desastrosos do poder financeiro e do mercantilismo global, o que, associado às incongruências das políticas da UE, colocou perigosamente em causa o projecto europeu e conduziu alguns dos Estados mais antigos (como Portugal e a Grécia) em risco de falência e perda de soberania. Por isso aumentam a cada dia que passa as vozes a diagnosticar a crescente fragilidade da própria democracia liberal representativa, embora se trate de um risco que pode ser travado a tempo, como consequência de uma previsível repolitização da sociedade – cujos indícios já começam a surgir nomeadamente através do revigoramento dos movimentos sociais –, dinamizando novas modalidades de ação e abrindo novas perspetivas de exercício de cidadania. Filipe Carreira da Silva sugere um cenário de recriação da fórmula antiga, referindo-se a um “Estado neossocial”, cenário que, a confirmar-se, passará pela emergência de um novo paradigma que poderá inspirar-se, “quer em ideologias do passado entretanto reformuladas, quer híbridas mais ou menos consistentes, quer até em propostas realmente originais [que] poderão vir a ser esgrimidas no espaço público num futuro mais próximo do que muitos julgariam possível apenas há uns meses atrás” (Carreira da Silva, 2009: 38). Seja como for, o caso português oferece-se como um exemplo particular, um case study que merece ser pensado à luz das suas especificidades.

Portugal e o Estado social A valorização do Estado social por parte dos europeus e dos portu-

gueses é inquestionável, mas a sua importância reflete ao mesmo tempo as debilidades estruturais da sociedade portuguesa. Essa é uma realidade que pode ser observada quer no plano concreto, quer no plano das representa-ções subjetivas. Como é sabido, em Portugal o Estado-providência surgiu muito tardiamente e não chegou a atingir uma robustez que o situasse num padrão semelhante ao que vigorou nos países do norte da Europa. A industrialização tardia e a fragilidade de uma economia pequena e atra-sada, sob o controlo apertado de um regime repressivo e avesso a qualquer

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modernização, ou seja, a condição periférica em que nos encontrávamos, teria de constituir um quadro de dificuldades acrescidas para os projetos de desenvolvimento que o país pretendeu abraçar em 25 de Abril de 1974. Sem esquecer o entusiasmo coletivo e a importância das experiências de democracia participativa no período revolucionário – num contexto em que a fragilidade ou paralisação das instituições do Estado abriu espaço para projetos de mobilização, associativismo e cooperação entre traba-lhadores, moradores, sindicatos, etc. –, nomeadamente no próprio desenhar dos contornos do modelo de Estado social que posteriormente se procurou edificar, o certo é que as condições socioeconómicas do nosso país não foram as mais favoráveis. No início da década de oitenta, quando o nosso Estado-providência começou a ser construído, estávamos ainda a “digerir” a ressaca da utopia revolucionária, que ficcionámos tão rápida como ingenuamente. Então, uma parte dos atores políticos com maiores responsabilidades na governação presumiu que o crescimento económico seria imparável e que, portanto, as políticas públicas teriam uma sequência de natural consolidação rumo a um “socialismo democrático” onde as políticas redistributivas poderiam satisfazer os cidadãos, levando o país a recuperar em poucos anos o atraso ancestral que tinha. A outra parte, foi mais cética quanto às virtudes do Estado na economia e estimulou ao máximo a iniciativa individual e o papel do mercado, muito embora nunca deixasse de controlar os recursos públicos para satisfazer as suas clientelas e permanecer senão no governo, pelo menos na zona de influência (e de “alternância”) que permitisse manter algum poder e beneficiar dos recursos públicos em cada novo ciclo político. Em todo o caso, o que aqui importa destacar é que, dadas as circunstâncias históricas e sociopolíticas em que se iniciou o processo de construção do nosso Estado social, ele surgiu já em contraciclo com o que estava a ocorrer nos países europeus avançados. Com duas agravantes: não tínhamos nem uma cultura democrática conso-lidada nem um potencial económico e tecnológico que garantissem, de facto, um ciclo de crescimento que nos aproximasse desses países.

A adesão à Comunidade Económica Europeia (atual UE) consti-tuiu, na verdade, um impulso importante que, objetivamente estimulou os inegáveis avanços que em todas as áreas sociais alcançámos nas últimas três décadas. No entanto, e em contrapartida, a “promessa” da Europa e a

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ficção montada pelo discurso dominante levou os portugueses a crer que, com a entrada dos fundos estruturais, com a competência “técnica” que o primeiro-ministro de então, Cavaco Silva e a sua entourage e as condições internacionais favoráveis, iríamos, enfim, por um lado, corrigir os excessos e aplacar o sonho socialista e, por outro, meter nos carris uma economia que nos traria o sucesso e o bem-estar, desde que mostrássemos ser “bons alunos” perante a Europa. Apaziguar a contestação e apostar nas oportu-nidades e nas carreiras individuais, deixando-nos guiar por um professor de inquestionável competência seria pretensamente a condição infalível para atingir “o pelotão da frente”. Muito embora sejam inegáveis os resul-tados da primeira década após a adesão – tanto no plano do crescimento como nas infraestruturas e na melhoria de muitos indicadores “sociais” –, as contradições e injustiças sociais não terminaram, obviamente, assim como não terminaram as ilusões acerca do potencial do “Estado-de-recursos-ilimitados”, enquanto as “reformas estruturais” permaneceram eternamente adiadas até aos dias de hoje.

Seja como for, um aspeto que não pode ser ignorado é a especifici-dade da sociedade portuguesa nesta matéria, revelando muitas vezes formas próprias de conjugação e mistura entre lógicas institucionais e sociais, que noutros países desapareceram há muito. Por exemplo, o fenómeno da “economia solidária” – muitas vezes também designada por “terceiro sector”, “sector não lucrativo”, “economia comunitária”, “economia civil” ou “economia de comunhão” , tem desempenhado no nosso país um importante papel no plano das sociabilidades ou solidariedades “primá-rias”, conjugando o Estado, o mercado e a comunidade, onde o social e o económico se misturam, abrindo espaço a formas alternativas de organi-zação produtiva e deste modo escapando ao modelo económico imposto pela exclusiva racionalidade capitalista (Ramos, 2011:83). Mesmo admi-tindo que o Estado-providência português não chegou a passar de um “semi-Estado-providência”, a sua relativa eficácia reguladora e distributiva (pelo menos até aos anos 90) ficou a dever-se ao modo como as dinâmicas da sociedade minimizaram as lacunas e a fraqueza do Estado enquanto instância providencial. Assim, cito de novo Boaventura de Sousa Santos para retomar a sua ideia de que a capacidade de aceitação e a ausência de ruturas e conflitos fortes na nossa sociedade justifica em parte a ineficiência

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ou carências das prestações públicas – em especial nessa primeira fase – foi suprida por uma providência enraizada na própria sociedade, isto é, “em Portugal, um Estado-providência fraco coexiste com uma sociedade--providência forte” (Santos, 1994:46).

Ainda que este possa ser um tópico controverso, vem a propósito salientar a importância das subjetividades, no sentido em que, como refere o mesmo autor e eu próprio subscrevo, as condições em que esta promessa de uma “boa sociedade” foi assimilada pela consciência colectiva dos portugueses, a ideia de um processo em marcha segura rumo aos padrões de vida europeus mais avançados da época, reforçou significativamente os níveis de aceitação e de tolerância perante as dificuldades, tornando--as suportáveis na medida em que foram vividas como transitórias, o que ajudou a “despolitizar” parte dos problemas uma vez que sucessivas medidas menos populares podiam ser justificadas como inevitáveis, em nome das exigências da integração europeia. Deste modo a forma política do Estado poderia, assim, ser considerada um “Estado-como-imaginação-do-centro” (Santos, 1994: 51).

A relevância do Estado e das políticas sociaisOs traços que acabei de referir, apesar de contraditórios, não nos

impedem de assinalar, como já foi apontado, o efetivo crescimento do Estado e das políticas sociais em Portugal, quer no período do pós-25 de Abril de 1974, quer ainda durante o Estado-Novo. O emprego público, por exemplo, revelou, desde os anos sessenta, uma tendência de cresci-mento constante até ao início dos anos noventa, nomeadamente, como assinalou João Freire, no que se refere ao pessoal afecto às funções sociais do Estado, sobretudo nos sectores da educação e da saúde, um aumento que vem de antes da referida data histórica, o que não deixa de ser ilustrativo de como esse processo é antigo. Porém, o volume de funcionários nesses sectores era baixo até finais da década de setenta (situando-se nos 20% do total da administração pública), tendo crescido muito rapidamente nas décadas seguintes (cerca de 68% da administração pública) e mantendo-se estável até 2008 (Rosa e Chitas, 2010; Freire, 2011).

O número total de assalariados na administração pública rondava os 523.119 em 2009. Desde 2005 que esse valor tem vindo a diminuir, tendo

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o sector público perdido pessoal de forma muito significativa sobretudo entre 2005 e 2010, com uma redução de cerca de 80.000 funcionários. Consequentemente, e como mostram os dados mais recentes, as despesas com o pessoal da administração pública em Portugal decresceram muito significativamente. Por comparação com a média dos países da UE27, “o peso das remunerações da administração pública no PIB para Portugal traduz variações negativas de 10,1% em relação ao ano 2000 e de 11,8% em comparação com o ano 2005; enquanto o mesmo indicador para a média dos países da UE apresenta variações positivas de 4,8% relativamente a 2000 e de 2,4% em comparação com 2005” (BOEP, 2011: 1). É claro que o peso relativo da administração pública tem sido apontado, desde há pelo menos uma década, como a principal causa do agravamento da despesa pública e do respetivo défice, com isso justificando um vasto conjunto de medidas (adotadas pelos últimos governos) no sentido de reformar o Estado, tendência que, como é sobejamente conhecido, se tem vindo a agravar com o aproximar da crise e da austeridade que enfrentamos neste momento.

Para além do peso relativo do Estado social na economia, importa referir outros indicadores, nomeadamente os que se prendem com as atitudes subje-tivas dos cidadãos. Algumas das bases de dados recolhidas periodicamente nos países da UE e em Portugal permitem atestar a centralidade que o Estado social ocupa nas representações das pessoas, permitindo-nos daí induzir os impactos reais das políticas sociais. Por exemplo, olhando o último inqué-rito do European Social Survey (ESS) – que permite comparar dados de quatro inquéritos, de 2002 a 2008 (Vala, et al., 2010) –, fica desde logo clara a importância atribuída pelos inquiridos à responsabilidade social do Estado, visto que, na média dos países considerados4 (excepto Portugal) atribuem uma importância média de 7,7, na escala entre 0 (mínima) e 10 (máxima). No caso português a classificação é de 8,12 na mesma escala, posicionando--se assim o nosso país entre o grupo dos que atribuem maior importância ao papel do Estado social. Vale a pena ainda referir outros aspetos mais espe-cíficos e igualmente relacionados com o funcionamento das instituições

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4 Os países abrangidos pelos estudos do European Social Survey (ESS) foram 34, embora nalguns deles o inquérito não tenha sido aplicado em todos os anos em que decorreram os levantamentos: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslovénia, Eslováquia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Polónia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Roménia, Rússia, Suécia, Suíça, Turquia e Ucrânia.

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estatais. Por exemplo, os níveis de satisfação dos cidadãos perante a vida em geral e perante as políticas, as instituições e a democracia; ou as atitudes perante o estado da educação e dos serviços de saúde.

Assim, os resultados do ESS (medidos na escala de 0 = extremamente satis-feito e 10 = extremamente insatisfeito) revelam que ao longo da primeira década do presente século os portugueses se mostraram moderadamente satisfeitos com as suas condições de vida, mas com percentagens de satisfação claramente abaixo da média dos países da UE, resultados que se acentuam quando compa-rados com os países nórdicos (Vala et al., 2010). No caso da situação económica do país, os níveis de insatisfação são bem mais evidentes e com tendência para o agravamento à medida que foram sendo recolhidos os sucessivos resultados dos quatro inquéritos aplicados ao longo da década. Quanto ao grau de satisfação perante a forma como o governo está a actuar, os resultados oscilaram um pouco ao sabor dos ciclos políticos (com maiores índices de insatisfação nos anos de 2002 e 2008), mas de um modo geral evidenciaram avaliações negativas em valores mais acentuados do que a média da amostra, sendo que o somatório de percentagens negativas (entre 0 e 4) ou se aproximam ou superam os 50%, atingindo os 64,2% no ano de 2004 e os 66,6% em 2008. Esta desconfiança do governo só é superada quando se trata de avaliar o grau de confiança nos “políticos”. Neste caso, somando os valores negativos (entre 0 e 4 da escala), obtemos para 2004 uma percentagem de 76,6% e para 2008 de 81,2%, além de que os resultados negativos são bem mais acentuados em Portugal do que na média dos restantes países. Refira-se ainda, a propósito da fraca confiança na “classe política”, que o indicador “nenhuma confiança” obteve em 2002 uma percentagem de 17,2% de respostas (contra 11,8% da média dos outros países), evoluindo depois para 25,3%, 25,7% e 29,4% respetivamente nos anos 2004, 2006 e 2008, mantendo-se cerca de dez pontos acima da média. É de referir ainda que essa baixa confiança (no governo e nos políticos) se estende também à confiança social (interpessoal e no altruísmo dos outros) e institucional (Parlamento nacional). Conforme se refere num estudo compa-rativo de âmbito europeu, os países escandinavos (Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia) e a Suíça, revelam os mais elevados níveis de confiança nesses dois planos, enquanto que Portugal, Espanha e os países de Leste da Europa (em especial a Polónia, a Hungria e a Eslovénia) revelam resultados opostos, mostrando níveis de confiança muito baixos (Correia Silva, 2011: 51-57).

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Para concluir este tópico, vale a pena uma referência às representações dos portugueses quanto a dois sectores fundamentais: a saúde e a educação. De acordo com as mesmas bases de dados, a apreciação subjetiva dos portu-gueses no campo da saúde aponta para uma avaliação, em média, negativa ao longo da década, embora com tendência para uma crescente moderação, ou seja, se em 2002 as respostas entre 0 e 4 (na mesma escala de 0 a 10) somavam 70,1%, nos inquéritos de 2004 e 2006 revelaram um decrés-cimo para 66,1%, e 65,3% respetivamente, baixando ainda de forma mais vincada nos dados de 2008 para 51,9% de avaliação negativa dos serviços de saúde. Já no caso da educação, as respostas obtidas ilustram igualmente uma perceção pouco satisfatória, evoluindo as respostas – usando o mesmo critério – de 62,3% de opiniões negativas em 2002, para 59,1% em 2004, 53,6% em 2006 e 57,2% em 2008, revelando neste caso um agravamento no último período (Vala et al., 2010). Sendo as atitudes negativas bastante mais vincadas do que nos restantes países, isso quer dizer que, pelo menos do ponto de vista subjectivo, estes serviços não conseguiram responder às expectativas dos cidadãos, pelo que, apesar de denotarem um ligeiro abrandamento, se revelaram factores de preocupação e stress psicológico.

Procurando medir a felicidade dos cidadãos a partir de modelos da psicologia social (Easterlin, 2001 e 2005; Veernhoven & Hagerty, 2006; Veernhoven, 2011), um estudo recente conduzido por Rui Brites da Silva mostrou que, em termos do índice de bem-estar subjetivo, os portugueses ocupam uma posição sofrível na segunda metade da tabela. No ranking de Veernhoven para o período 2000-2009, Portugal ocupa a 79ª posição (com 5,7 pontos na escala de 0 a 10) entre 149 países, empatado com a Bielorrússia, Djibuti, Egipto, Mongólia, Nigéria e Roménia. Os primeiros lugares são ocupados pela Costa Rica (1º, com 8,5 pontos na mesma escala), Dinamarca (2º), Islândia (3º), Canadá (4º), Finlândia (5º). Para além disso, aquele estudo, que se apoiou não só nestes indicadores mas ainda no relatório da “Comissão Stiglitz,”5 apresenta

5 Na verdade esta comissão foi constituída, além de Joseph Stiglitz, por Amartya Sen e J.-P. Fitoussi e outros académicos e especialistas, um grupo promovido pelo Presidente francês Nicolas Sarkozy, tendo a equipa sugerido no seu primeiro relatório iniciativas e critérios novos para avaliar o desempenho económico, tais como: “- usar outros indicadores além do PIB nas contas nacionais; - verificar o desempenho de sectores básicos como saúde e educação; - considerar atividades domésticas e levar em conta o padrão de vida das pessoas; - acrescentar informações sobre distribuição de riqueza e rendimento; - incluir atividades fora do mercado. Uma inovação proposta pelo relatório é a avaliação líquida e não bruta das atividades económicas, de modo que as extrações de recursos naturais, os impactos ambientais gerados pela produção ou a utilização de stocks sejam levadas em conta”. In: site “Planeta Sustentável”, acedido em 7/09/2011:http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/comissao-stiglitz-sen-fitoussi-pib-489751.shtml

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resultados do índice de bem-estar subjetivo, tentando conjugar as dimen-sões subjetiva e objetiva da felicidade. Apesar das suas limitações, os critérios utilizados revelaram uma significativa consistência com a avaliação subjetiva dos inquiridos, espelhada nos dados do ESS acima referidos. Além disso, foi possível, com base nisso, concluir que o bem-estar subjetivo dos portugueses diminui de Norte para Sul do país, que os índices de felicidade são maiores nos homens do que nas mulheres, e ainda que, os mais baixos índices de bem-estar subjetivo se encontram entre as camadas etárias mais velhas, em particular as do sexo feminino (Silva, 2011: 200-205).

Estas indicações, nomeadamente no que respeita à condição femi-nina, têm sido assinaladas em vários outros estudos, e são de certo modo coerentes com os dados estatísticos reveladores de que as mulheres traba-lham mais em atividades não-remuneradas, trabalham mais horas no espaço doméstico e também continuam a ser vítimas de discriminação salarial e de segregação noutros domínios da vida social (Carmo, 2010; Ferreira, 2010) como adiante será mencionado. Por outro lado, o facto dos segmentos mais jovens evidenciarem resultados menos negativos no plano das subjetividades deverá prender-se com outras variáveis associadas ao critério geracional que não aquelas que dependem diretamente da situ-ação sociolaboral da juventude. O mundo do trabalho é, portanto, um dos temas que merece atenção, tanto por aquilo que representa do ponto de vista sociológico como pela sua implicação com a questão do Estado social.

Reforma do Estado, precariedade e desigualdades sociaisTem sido repetidamente sublinhado que o sector onde as grandes

mudanças do neoliberalismo global têm tido um alcance mais evidente e preocupante é o campo laboral. Por isso mesmo, diversas abordagens têm tentado destacar a importância da centralidade do trabalho e com isso procurando mostrar como a esfera económica não pode continuar a ser pensada separadamente da esfera social (Santos, 2003; Silva, 2007; Ferreira, 2009; Boavida e Naumann, 2007; Oliveira e Carvalho, 2010; Estanque e Costa 2011). A atual tendência de precarização das relações de trabalho, de dissociação entre condições profissionais e vínculos laborais, está de facto a pôr em causa os velhos critérios e formas de diálogo, os valores de solidariedade e no fundo o modelo de contrato social inspirado

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pela filosofia iluminista e consolidado desde o pós-guerra. Não é demais sublinhar que nos últimos vinte anos as transformações ocorridas no mercado de trabalho fustigaram de forma dramática os direitos e a quali-dade do emprego. O modelo produtivo que até aos anos oitenta do século passado pôde sustentar uma classe média que parecia em expansão sofreu entretanto convulsões profundas que abalaram abruptamente as suas expectativas mais risonhas. O aumento e diversificação da precariedade laboral passaram a constituir um dos principais traços de recomposição do mercado de trabalho tanto em Portugal como nos outros países da União Europeia. Vimos assistindo a uma “tendência que traduz o estilhaçar da homogeneização e estabilidade em que assentava o padrão modal do emprego, quanto à natureza do vínculo laboral, ao tempo de trabalho e ao estatuto social do trabalhador” (Gonçalves, 2010: 184).

Na última década, os postos de trabalho em regime de contratos perma-nentes diminuíram ao mesmo ritmo em que aumentaram os contratos a termo certo. Aliás, o crescimento das situações precárias – ou o que outrora se designava como situações “atípicas” no campo do emprego – têm evoluído para uma profunda alteração do velho padrão de estabilidade, obedecendo hoje a uma multiplicação de situações e de percursos profissio-nais, bem como no plano subjetivo e das vivências, quer do emprego quer do desemprego, numa reconfiguração permanente, que justifica novos questionamentos sobre essas novas formas de prestação de trabalho que podem designar-se de novas “patologias da democracia laboral” (Ferreira, 2009: 76). Os valores do emprego precário (se somarmos os contratos a termo, os recibos verdes, os trabalhadores temporários e o trabalho a tempo parcial) aproximam-se já dos 28 a 30% do emprego. Este tipo de contratos aumentou progressivamente e em todas as faixas etárias, sendo a referida geração (hoje popularizada pelo nome de Geração à Rasca”)6 a que mais sofre com isso, o que acontece, de resto, em muitos países europeus como por exemplo a Espanha, a Alemanha, a Suécia e a França onde, tal como em Portugal, mais de 50% dos trabalhadores desta geração já se

6 Que, diga-se, passou a ser conhecida desde o passado dia 12 de Março de 2011 como a “Geração à Rasca”, devido à enorme manifestação convocada por um grupo de jovens sem situação precária, através do Facebook, e que, segundo vários analistas, terá marcado um momento de viragem nas modalidades de ação colectiva e afirmado um novo fenó-meno no cenário político nacional (voltarei a este assunto na parte final).

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encontram em situação precária (Gonçalves, 2010). O desemprego de jovens licenciados tem vindo a agravar-se nos últimos anos, atingido os 55 mil casos (em 2010), embora se saiba – e convém realçá-lo – que os licenciados auferem salários mais elevados e permanecem menos tempo em situação de desemprego ou de trabalho precário. Em todo o caso, quer o desemprego quer os contratos não permanentes atingem especialmente o segmento mais jovem. E isso aconteceu de forma drástica, estando 37,6% dos trabalhadores com idades entre 15 a 34 em situação laboral de contratos a prazo, e considerando apenas o segmento etário dos 15 aos 24 anos, essa percentagem já se aproximava em 2010 dos 50% (INE, 2007, Inquérito ao Emprego; Carmo, 2010).

No caso das mulheres, apesar de possuírem um elevado peso no mercado de trabalho português (56,2% é a taxa de atividade feminina, uma das mais elevadas da Europa) e da sua presença ser maioritária entre a população empregada que completou o ensino secundário e superior, continuam a ser vítimas de segregação no campo profissional, o que se comprova pela sua menor presença nas categorias profissionais mais qualificadas. Considerando as percentagens segundo o sexo por referência ao respetivo peso entre os trabalhadores com níveis de educação mais elevados, verifica--se que enquanto 71,6% dos homens nessa condição pertencem àquelas categorias (quadros médios e superiores), apenas 54,6% das mulheres se encontravam em posições idênticas em 2005 (Rosa, 2008). Além disso, as diferenças salariais entre homens e mulheres permanecem acentuadas, sendo que a desigualdade salarial se agrava à medida que consideramos os segmentos profissionais com habilitações escolares mais elevadas.

Os fluxos de mobilidade social ascendente foram reais durante algum tempo, mas oscilaram sempre ao sabor de deslizes e variações em que os ganhos e perdas de meios materiais e status profissionais se anulavam mutu-amente. A classe média possui um peso escasso e uma duvidosa solidez, se comparada com as sociedades avançadas da Europa. O sistema de ensino superior, geralmente considerado um dos principais canais de promoção da mobilidade – apesar de ter crescido massivamente nas últimas três décadas e acolher hoje um volume significativo de estudantes provenientes dos estratos da classe média-baixa e trabalhadora –, debate-se com inde-finições diversas e muitos jovens que o frequentam vêem-se perante a

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impossibilidade de acederem a uma profissão que lhes garanta um estatuto social substancialmente superior ao das suas famílias de origem.

Impactos sobre a classe médiaO Estado e o mercado constituem desde sempre instâncias de eleição

enquanto fatores de racionalidade dos sistemas sociais, pelo que as políticas de regulação – da economia e da sociedade – se apoiam necessariamente na interligação entre essas duas esferas da vida social. A estruturação da ativi-dade produtiva pode obedecer a uma intervenção direta ou indireta do Estado e ocorre através de uma diversidade de canais, constituindo exemplos disso o investimento em novas tecnologias e em conhecimento científico, a capacidade de promover instituições de regulação dos conflitos laborais ou as políticas educativas, entre outros. Assim, as políticas sociais e labo-rais coordenadas pelo Estado refletem-se não só na estruturação do mercado de trabalho em geral, mas também, e desde logo, no maior ou menor peso da administração pública na oferta de emprego. Por exemplo, a regulação administrativa nos campos da saúde, da educação, da segurança social, etc., promoveu durante décadas o aumento de sectores profissionais qualificados, funcionários administrativos, técnicos e especialistas de diversos tipos.

O caso português parece, de facto, indicar não só o importante peso do Estado na estruturação da “classe média” como os efeitos do processo mais geral de recomposição e mudança estrutural (Estanque, 2012). No entanto, uma parte significativa dos funcionários e empregados do sector terciário (quer no privado, quer na administração pública) debate-se com problemas inerentes a uma condição de facto vulnerável, isto é, a construção da classe média portuguesa, além de incompleta, deu lugar a uma miragem que, hoje, vive perante a ameaça de a todo o momento se esfumar. Para aferirmos mais em concreto o risco de vulnerabilidade que em Portugal já toca várias franjas da classe média é conveniente ter presente o modo como a questão do endividamento se conjuga com a evolução das desigualdades. Para tal, é necessário ter presentes as estatísticas da pobreza e da distribuição da riqueza no país.

As instituições e programas de solidariedade existentes no país para dar assistência aos mais carenciados têm dado conta de um fenómeno, que parece estar em crescimento, de pobreza envergonhada, o qual se relaciona

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diretamente com o endividamento das famílias. Como é sabido, a percen-tagem de portugueses em risco de pobreza (considerado como critério o limiar dos 60% do salário mensal médio, ou seja, cerca de 414 euros) tem decaído ligeiramente nos últimos dez anos, mas mantém-se ainda nos 18% (em 2003 era de 20,4%, segundo o INE), isto após as transfe-rências sociais (antes delas o valor dispararia para mais de 40%). Entre 2006 e 2009 aumentou em 36% o número de pessoas abrangidas pelo rendimento social de inserção (RSI) que em finais do ano passado abrangia 804 mil indivíduos. Os valores do incumprimento no crédito à habitação situam-se, segundo os últimos dados, nos 1.957 milhões de euros, cerca de 2% do total da dívida, e no caso do crédito ao consumo esse montante é de 1.232 milhões de euros, o equivalente a 7% do total.

De acordo com a informação disponibilizada por instituições como o Banco Alimentar contra a Fome, a Amnistia Internacional (AMI), a Cáritas ou as Misericórdias, as situações de pobreza acentuam-se e cresce a pobreza envergonhada: “as pessoas pedem comida, ajuda para pagar os livros dos filhos, a mensalidade da casa, a conta da farmácia. Pedem sobretudo, que não lhes divulguem o nome, porque nunca se imaginaram na posição de quem faz o gesto de estender a mão a pedir ajuda; (…) são pessoas que comem [nas cantinas comunitárias] viradas para a parede, têm vergonha se ser vistas ali, se lhes perguntarem o nome fogem (…)” (Entrevista a Manuel de Lemos, Presidente da União das Misericórdias Portuguesas, citado no jornal Público, 7/11/2010).

Os processos de sobre-endividamento7 acompanhados pela DECO – Associação de Defesa do Consumidor aumentaram sistematicamente ao longo da última década, atingindo 2.837 processos em 2010, mas com um número de pedidos bem maior (17.372). A comparação entre os últimos quatro anos pode ser feita a partir dos processos entrados nos primeiros dois meses de cada ano, sendo que no primeiro trimestre de 2011 já haviam dado entrada 612 processos (mais 110 do que no mesmo período do ano anterior), e se considerarmos também os pedidos que não deram lugar a processos, em Janeiro e Fevereiro de 2011 foram 2.329 contactos, o que

7 Na linha de outros relatórios e trabalhos desenvolvidos no Centro de Estudos Sociais sobre os Direitos do Consumidor, conduzidos por Catarina Frade. Veja-se (Frade, 2009).

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corresponde a uma média de 40 por dia. Os motivos apontados são em primeiro lugar o desemprego (33,5%), seguido de motivos de doença (20,8%) e da deterioração das condições laborais (19,9%). Segundo uma responsável daquela organização, para além dos motivos apontados, começa já a notar-se o efeito dos cortes salariais da função pública para os salários acima dos 1.500 euros, referindo uma situação preocupante “com o atual contexto económico e com a subida das taxas de juro, a nossa perspetiva é que o número de famílias sobreendividadas aumente este ano, e aumente significativamente” (jornal Público, 20/03/2011).

A maior dificuldade indicada para combater com eficácia este problema prende-se com facto de o sobre-endividamento traduzir não só os impactos destrutivos do desemprego, da doença e da crise em geral, mas ainda o ciclo vicioso em que estas famílias se deixam enlear, somando vários créditos em simultâneo e muitas vezes contraindo novos empréstimos para fazer face aos antigos. Segundo os dados da DECO, 42,2% dos processos referem-se a um número de 1 a 3 créditos, mas 39,8% dizem respeito a um número de 4 a 7 créditos e cerca de 18% correspondem a um número de 8 ou mais créditos. Em suma, estes fenómenos deixam transparecer a angústia de famílias inteiras afogadas em dívidas, que, de acordo com as fontes citadas, entram em processo de descontrolo e falência, pois, tendem a procurar ajuda já numa fase de aceleração imparável de afundamento no redemoinho do endividamento. Na maioria das vezes os pedidos chegam quando já não é possível socorrerem-se da retaguarda familiar.

Estas indicações em torno da pobreza e do endividamento pretendem evidenciar alguns dos novos contornos que estes fenómenos têm vindo a adquirir entre nós e que já começaram a atingir alguns segmentos da classe média. Sem deixar de reconhecer a urgência em dar combate ao flagelo da pobreza, nomeadamente através dos programas de solidariedade, que desde os primórdios da era moderna foram mobilizados – quer por orga-nizações filantrópicas e caritativas da sociedade civil, quer pelos programas assistencialistas do Estado –, é inquestionável que tais problemas terão de ser entendidos no quadro estrutural de funcionamento do sistema econó-mico capitalista. Nessa medida, o enfoque aqui adotado pretende olhar as desigualdades económicas e a sua dinâmica, não como distorções ou anomalias transitórias, mas enquanto parte dos processos de recomposição

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social mais vastos, inerentes às próprias contradições estruturais do sistema. Nesse sentido, pode dizer-se que, tal como acontece na escala global, o

enriquecimento dos sectores e grupos sociais privilegiados tem como conse-quência o empobrecimento dos grupos sociais mais carenciados. Assim, o agravamento das desigualdades e da pobreza – na fase de crise aguda em que hoje estamos mergulhados – é, sem dúvida, indissociável do papel central do mercado e da economia financeira enquanto centros de poder nas sociedades ocidentais. É por isso mesmo, aliás, que a ação reguladora e redistributiva do Estado continuará a ser a pedra de toque de uma Europa que pretenda recu-perar a coesão e o equilíbrio perdidos, ainda que – é forçoso reconhecê-lo – esse papel só possa ser eficaz se for possível redefinir novas formas de racio-nalização que assegurem uma rigorosa gestão de custos e garantam a efetiva viabilidade financeira das políticas públicas.

A acentuada desigualdade na distribuição da riqueza em Portugal tem sido revelada por diversos estudos como um problema estrutural difícil de combater (Eurostat, 2006; Carmo, 2010). A diferença entre o rendimento médio dos 20% mais bem pagos e os 20% pior remunerados era 7,4 vezes a favor dos primeiros em 1995, tendo desde aí decaído lentamente para 6,8 vezes em 1998, valor que passou a 6,9 no ano 2005, para 6,5 em 2007, e no ano seguinte situou-se em 6,1 (dados do INE, 2008; Carmo, 2010). Note-se ainda que a disparidade das desigualdades de rendimento aumenta se restringirmos os segmentos em comparação: entre os 10% com salários mais elevados e os 10% que auferem salários mais baixos a diferença era, em 2006, de cerca de 12 vezes mais. Esta situação, como muitas outras, é bem mais grave em Portugal do que na média dos países da União Europeia (na UE15, o diferencial era no mesmo de 4,8 vezes) e é ainda mais contrastante se a compararmos com um país como a Dinamarca, onde essa discrepância era, no mesmo ano, de apenas de 3,5 vezes.

Os dados mais recentes comprovam que as desigualdades se acentuaram entre 1995 e 2005, diminuindo a partir daí, embora muito ligeiramente. Esta tendência tem sido confirmada por diversas escalas de medição como, por exemplo, o coeficiente de Gini8,que revelou um agravamento de 34,4 em

8 Este é o indicador atualmente utilizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) para medir a desigualdade. Varia numa escala entre 0 e 100, sendo o zero correspondente a uma situação com total igualdade de rendimentos entre os membros de uma comunidade e o valor cem correspondente à situação oposta, em que todo o rendimento fosse mono-polizado por um único indivíduo (INE: http://metaweb.ine.pt).

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1995, para 35,1 em 2005, tendo subido para 36 em 2008, ano em que Portugal se colocou entre os três países mais desiguais da UE27 (CLBRL, 2007: 42-43; INE, 2009). Os elevados valores da desigualdade na distri-buição do rendimento juntam-se ao facto de cerca de 18% da população viver ainda no limiar da pobreza; um risco que é ainda maior no caso dos reformados (20%), dos restantes inativos (28%) e dos desempregados (35%), sem esquecer que as desigualdades salariais e de género perma-necem muito vincadas. Os diagnósticos disponíveis têm vindo a reiterar a persistência de uma situação muito preocupante neste campo, sendo as melhorias verificadas nas últimas duas décadas quase insignificantes.

Em sectores específicos, como os jovens e as mulheres, as diferenças de oportunidades continuam a ser flagrantes, sendo portanto categorias sociais através das quais as novas desigualdades têm vindo a consolidar--se, o que é manifesto em indicadores como os índices de desemprego, de precariedade, as diferenças entre os níveis salariais e as oportunidades de emprego. Segundo os últimos relatórios do Observatório das Desigualdades do ISCTE/IUL, entre os trabalhadores com o ensino básico a discrepância salarial entre géneros é de 13,5% (em benefício dos homens), evoluindo para 26,5% nos que possuem o ensino secundário completo e subindo para 27,2% na camada da força de trabalho com frequência do ensino supe-rior (Carvalho, 2011). Isto evidencia bem como os processos de mudança, apesar das importantes conquistas que alguns deles trouxeram consigo (por exemplo, no plano das qualificações escolares e competências socioprofis-sionais), são em geral indutores de novas dinâmicas de desigualdade, que parecem obedecer a uma permanente readaptação mas ao mesmo tempo são dotadas de grande capacidade de resiliência.

Juventude e novos movimentos sociolaboraisO crescimento económico do pós-guerra permitiu sustentar um Estado

social que favoreceu importantes transformações e conquistas, mas ao mesmo tempo que procurou programar o futuro, contribuiu, parado-xalmente, para proporcionar uma viragem de paradigma que fez emergir diversas perversões e entropias no sistema, dando lugar a novos prota-gonistas e movimentos antissistémicos que, embora clamando por um “futuro agora”, acrescentavam novas incertezas que mais tarde culminaram

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na “crise do futuro” (Leccardi, 2005).Foi nesse quadro que a juventude se impôs como ator social, intima-

mente associada à expansão do sistema de ensino e do Estado de bem-estar. Mas, se o acesso à educação e o progressivo aumento da escolaridade levou a um alargamento cada vez maior do período de formação e, portanto, da fase de transição para a vida adulta, tal não implicou uma absoluta homo-geneidade entre os jovens. Paralelamente, o processo de massificação dos bens materiais compaginou-se com o poder cada vez mais uniformizador das indústrias da cultura e dos mass media, cujo impulso decisivo foi, em boa medida, suscitado a partir da invenção e democratização da radiodi-fusão, primeiro (anos trinta), e da televisão mais tarde (anos cinquenta) fabricando audiências intermináveis de públicos ávidos de entreteni-mento e de um consumismo desenfreado9. Esta tendência atingiria o seu auge nos finais dos anos sessenta, ajudando a despoletar as lutas contra o consumismo e a alienação do homem unidimensional (Marcuse, 1967). Muito embora “a juventude” jamais tenha sido um actor homogéneo, os seus segmentos mais escolarizados, com maior capital cultural e mais politi-zados – no contexto de uma perigosa corrida aos armamentos entre as duas superpotências da “Guerra Fria” e de uma Guerra do Vietname que colhia milhares de vidas aos jovens dessa geração – animados por essa nova torrente de valores e opções estéticas, culturais, musicais, etc., foram engrossando os movimentos estudantis que vinham crescendo e cantando a liberdade, principalmente nos campus das universidades da Europa e dos EUA, ao som dos Beatles, Rolling Stones, Beach Boys, Led Zepelin e tantos outros, aumentando o tom da crítica sistémica e ganhando uma crescente força política, cujo momento culminante terá sido o Maio de 68 em Paris. Mas o auge da irreverência dos estudantes parisienses deixou no ar algum sabor amargo, na medida em que saiu frustrada essa ingénua expectativa de união “revolucionária” com o movimento operário. Poderá a história ser reescrita a este respeito? Isto é, quatro décadas depois, fará sentido admitir que a componente culturalista e simbólica que em geral se inscreve nas culturas juvenis e universitárias possa voltar a reunir-se com a ação coletiva

9 Primeiro, de eletrodomésticos, de automóveis, televisores, etc., e mais tarde o acesso a uma infindável panóplia de bens materiais e simbólicos, uns e outros transfigurados em ícones e simulacros promotores de consentimento e alienação (Baudrillard, Chomsky).

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oriunda do mundo “social” e do campo laboral?O legado dos sixties revelou-se de grande significado, em particular no

terreno sociocultural, por ter conseguido evidenciar o esgotamento de uma moral convencional e de um modelo de democracia formal que estava a pôr em evidência os seus limites por via do ativismo radical dos filhos das classes médias ocidentais. É possível que os novos repertórios intro-duzidos pelos novos movimentos sociais na agenda política mundial, e as fissuras que eles ajudaram a revelar no sistema económico e nas democra-cias liberais, tenham contribuído para intensificar o abalo político que a crise petrolífera da década seguinte veio a provocar no status quo do capita-lismo ocidental. Curiosamente, os filhos do Estado social tornaram-se os principais críticos do sistema que o gerou e lhe deu viabilidade. Quanto mais a economia crescia, e com ela o poder de compra das classes traba-lhadoras, mais estas reforçavam as hordas de consumidores atraídos pela “sociedade da abundância” e formatando os seus padrões de gosto pelos da classe média. E entretanto, foram os filhos das elites que mais se mostraram entediados com a paz social, a previsibilidade de um “futuro” assegurado e a hipocrisia do discurso político. Aqueles que já estavam a caminho de engrossar a elite rejeitaram os seus padrões enquanto os que cresciam nos bairros operários aspiravam a entrar num sistema num ensino superior que lhes negava o acesso. Por outras palavras, as universidades públicas legitimavam a “meritocracia” dos filhos das elites enquanto as novas gera-ções da classe operária desistiam da revolução, preferindo frequentar os shoppings e sonhavam em comprar um automóvel.

Os movimentos de há quarenta anos introduziram ruturas que ainda hoje se repercutem em múltiplos domínios. Tiveram uma influência marcante quer no plano cultural quer no plano político, contaminando os modos de vida de sucessivas gerações e as formas de ação coletiva de velhos e de novos movimentos, abrindo espaço a novas conceções, linguagens e refe-rências ideológicas no plano social e institucional (Eagleton, 1991; Cohen e Arato, 1992; Eyerman e Jamison, 1991; Melucci, 1996; Eder, 1993; Touraine, 1985 e 2006). Pode dizer-se que os padrões de gosto desen-cadeados a partir dos movimentos juvenis dos anos 60 no ocidente – no plano estético, no vestuário, na música, nos interesses literários e intelec-tuais, na expressão da sexualidade, etc. – não só alteraram o quotidiano e os

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modos de vida das gerações seguintes como desenharam novos contornos na esfera pública e política em geral. A importância da chamada crítica artís-tica (Boltanski e Chiapello, 2001) inseriu-se no processo de desconstrução culturalista que esses movimentos imprimiram, alterando até certo ponto a própria natureza do capitalismo, apesar das respostas que se seguiram – ou por causa delas – sob a ação canibalizadora das instituições e do mercado, abrindo caminho a novos valores e novas modalidades de ação coletiva, não apenas no mundo desenvolvido mas na escala internacional (Holzmann e Padrós, 2003; Cardoso, 2005).

Entretanto, sobretudo após a queda do muro de Berlim e o consequente colapso do império soviético, esbateram-se largamente as ideologias que durante mais de um século inspiraram os principais movimentos sociais sob formas de ação colectiva inspiradas em modelos utópicos de cariz emancipatório. No quadro deste processo, as novas tendências do capita-lismo global estimuladas pelo neoliberalismo colocaram novos obstáculos e desafios à ação coletiva, em larga medida esgotando os “velhos” movi-mentos e ao mesmo tempo estimulando novas redes e formas mais fluidas de “alter-globalização” e de ativismos no “ciberespaço” onde impor-tantes segmentos juvenis intervêm permanentemente (Ribeiro, 2000; Waterman, 2002; Santos, 2004, 2005 e 2011; Estanque, 2006).

Mais recentemente, o mundo tem vindo a assistir a uma nova onda de protestos e movimentos, em diferentes contextos e de consequências socio-políticas ainda difíceis de aferir de modo contundente, mas que deixam antever que a rebelião das massas não desapareceu, embora hoje a forma como se manifestam – em especial nas camadas mais jovens – obedece a lógicas diferentes e é apoiada por recursos e meios essencialmente distintos dos que animaram os movimentos juvenis dos anos sessenta e setenta do século passado. Basta lembrar as convulsões do último ano em vários países do mundo árabe, nomeadamente na bacia mediterrânica, para se perceber como os movimentos de cidadãos podem resultar em autênticas revolu-ções políticas quando a mobilização se generaliza e ousa enfrentar regimes despóticos. Nos mais improváveis contextos culturais e religiosos – inclusive no mundo islâmico, que alguns, após o 11 de Setembro de 2001, apressa-damente consideraram ser um mundo em “choque” civilizacional com o Ocidente – as revoltas que emergiram no ano passado, na Tunísia, Egipto,

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Líbia, Argélia, Bahrein, Síria, Iémen, apesar das particularidades de cada uma delas, foram amplamente participadas pelas camadas mais jovens e mais escolarizadas das “classes médias” desses países. Ainda que o futuro seja uma incógnita e a “Primavera Árabe” não possa ainda confirmar que se tratou de um desfecho vitorioso da democracia (muito menos se ela for entendida como mero sinónimo do modelo ocidental), parece consensual que foram experiências eminentemente democráticas, participativas e de consequências emancipatórias para cada um desses povos. Os novos canais de comunicação ligados às novas tecnologias, à internet, telemóveis, face-book e outras redes sociais, foram elementos de novidade muito presentes, senão mesmo decisivos para o impacto dessas revoltas, tal como nos movi-mentos laborais e juvenis que têm atingido a Europa nos últimos anos.

Se optei por concluir com este tópico acerca dos movimentos sociola-borais é porque entendo que ele pode fornecer uma leitura diferente em torno da relação entre o Estado e a sociedade civil. Uma relação que sempre foi problemática e – sabemo-lo bem – denuncia uma divisão que é, ela própria, questionável desde a sua origem. Sendo eminentemente analítica, essa divisão pode ajudar a clarificar algumas das tensões e ambivalências da atuação do Estado, seja no plano político e institucional quando o Estado usa a sua legitimidade para regular a organização da sociedade, seja no plano das relações entre o Estado e os interesses privados que por vezes penetram no seu seio e o controlam, não raro condicionando e perver-tendo a própria legitimidade democrática. Ou seja, em Portugal “temos um Estado dócil entre os poderes fáticos e forte e arrogante ante as classes populares de quem se espera docilidade e obediência” (Santos, 2011: 109). Mas, por outro lado, também se pode considerar que temos uma sociedade civil organizada (sindicatos, partidos políticos, associações) que é fraca e uma sociedade civil desorganizada (redes primárias, família, relações de vizinhança) que se mostra forte e que, por isso, diversos estudos desen-volvidos no CES a denominaram de “sociedade providência” (Hespanha e Portugal, 2009; Portugal, 2011).

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ConclusãoPara concluir, vale a pena formular uma linha de reflexão que exprime

uma outra faceta do presente tema, a saber: até que ponto a centralidade que o Estado social continua, hoje, a ocupar no imaginário coletivo dos cidadãos europeus joga um papel fundamental no futuro da Europa?

Uma hipótese explicativa a explorar pode colocar-se nos seguintes termos: o ataque de que tem vindo a ser (e está a ser) alvo o Estado social europeu constitui um fator decisivo para a instabilidade e conflitualidade que pode generalizar-se na Europa nos próximos tempos. Boa parte das questões que estão na agenda perante a atual crise passa por resolver o dilema entre: uma Europa com mais cidadania, em que o vasto património construído ao longo do século XX pode continuar a inspirar estratégias de futuro sem deitar por terra os valores da justiça social, da igualdade e da solidariedade, continuando em busca de programas viáveis e eficazes de redistribuição; ou se, em vez disso, insiste num modelo que vá apenas no sentido do aprofundamento do anterior, isto é, que persista no reforço da hegemonia da economia neoliberal e no triunfo irreversível dos mercados em detrimento da sociedade e do Estado.

Ora, sabendo nós a importância que o Estado social assumiu nas polí-ticas redistributivas e ao mesmo tempo no imaginário dos cidadãos, como se viu atrás, e tendo presente a intensificação das desigualdades estruturais em sociedades onde o princípio liberal e o individualismo são incipientes (na Europa continental pelo menos) é de admitir que a solidez do sistema e a coesão social possam colapsar se o próprio Estado social vier a colapsar. A reforçar esta ideia está o facto de que, ao contrário dos países anglo-saxó-nicos, nas sociedades do Sul da Europa, como Portugal, de forte tradição católica, com laços comunitários e culturas paroquiais muito intensos, e que viveram longas ditaduras de matriz estatal, as novas classes médias (assalariadas) foram estruturadas muito tardiamente. No caso português, foi sobretudo no período democrático que tal processo teve lugar e muito à sombra do (frágil) Estado-providência entretanto criado, ou seja, são quase insignificantes os segmentos sociais da classe média (assalariada e mesmo empresarial) que se regem pelos princípios meritocráticos. Foi principal-mente a estabilidade e os horizontes de uma carreira segura e previsível, oferecida em primeira instância pela administração pública (em especial

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os sectores da educação, da saúde e da administração central e local), que serviu de suporte à classe média, pelo que, atingidos tão fortemente como estão a ser na atual situação de austeridade, tais sectores venham a inverter muito rapidamente a tendência anterior, enfrentado agora os buracos e vazios nessa rede protetora (o Estado) que até há poucos anos acalentou o sonho da classe média urbana.

Há cerca de dez anos fazia sentido falar-se de um “efeito classe média” (Estanque, 2003), resultante dessa aura de ilusões que induziu franjas significativas das nossas famílias trabalhadoras a julgar-se como membros da classe média. Mas, hoje, essa fantasia de quem se julgava à beira de um status respeitável e de uma condição económica desafogada – fortemente estimulada pela aparente facilidade de crédito – esbarra com uma realidade bem mais dura, que nos revela uma “classe média sitiada” (Santos, 2011), colocada no limiar de uma inesperada proletarização. Nestas condições é de esperar que a classe média e os seus descendentes, comecem de facto a revoltar-se contra um sistema que a sugou e agora a pretende descartar sem qualquer recompensa (Estanque, 2012).

De certo modo, é isso que exprimem alguns dos atuais movimentos sociolaborais. Ao contrário dos movimentos estudantis e culturais dos anos sessenta e setenta, os atuais protestos de jovens, organizados através das redes do ciberespaço e alheios a ideologias políticas, situam-se na fron-teira entre um Estado em vias de falência e um mercado de trabalho que se limita a prolongar a instabilidade e a defraudar todas as expectativas de se alcançar um emprego digno e qualificado. De um lado, uma juventude estudantil que se afastou da militância (política e associativa) sacrificando o seu tempo livre, primeiro, no lazer consumista (anos oitenta e noventa), depois, investindo na sua formação “técnica” com a mira nos objetivos profissionais; de outro lado, as diversas camadas etárias (que não apenas jovens) do campo profissional que vêm engrossando o sector dos precários ao longo da última década estão “em guarda”. Ambos os sectores parecem encontrar-se nesta encruzilhada de insatisfação, resultante de um balão em vias de esvaziamento: a promessa de uma classe média artificialmente insu-flada por um Estado social cuja sustentabilidade a prazo vinha há muito sendo questionada. Perante todas as dificuldades estruturais enunciadas anteriormente e dado o acentuar da crise económica que temos pela frente

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parece cada vez mais claro que as atuais elites europeias (e nacionais), bem como as instituições da União Europeia, se revelam incapazes de encon-trar as respostas adequadas a problemas tão prementes, pelo que, deve perguntar-se: restará à Europa, como último fôlego, uma resposta radical da sua juventude e dos cidadãos em geral que já sofrem intensamente na pele os efeitos da austeridade? Se os movimentos sociais não são em si mesmos (como nunca foram) “a solução”, eles constituem um barómetro fundamental que urge interpretar com humildade e inteligência. Quem o fizer – governos, instituições, sindicatos ou partidos políticos – e souber passar à ação poderá estar a abrir caminho às novas lideranças de que a Europa tanto carece.

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A atual crise financeira surge imputável à limitação da capa-cidade regulatória financeira dos governos, nomeadamente nas suas instâncias internacionais. O enquadramento da crise é, contudo, mais vasto. De facto, uma globalização, econó-

mica, acedendo a grandes reservas de mão-de-obra a valores muito baixos e praticamente sem custos de proteção social (sobretudo na Ásia) pressionou os governos de outros países (com mão-de-obra mais cara e maiores custos de proteção social) para diminuírem as cargas fiscais, o valor do trabalho e outras condições sociais, proliferando a figura dos paraísos fiscais. O equilíbrio entre oferta e procura de capital desequilibrou-se com a entrada, no mercado global, de grandes países tecnologicamente atrasados e com grandes necessidades de investimento. O capital deslocalizou-se na procura de lucros ainda maiores, deixando um rasto de desemprego e falta de liquidez nos países de onde saiu, sem que tal fosse compensado pela produção, no âmbito mundial, de bens a preços muito mais baixos que pudessem ajudar a equilibrar os orçamentos e os consumidores das nações que sofreram a fuga de capitais. A situação atual é de ausência de equilíbrio entre oferta e procura de capital, originando grandes lucros e baixos salá-rios, bem como recessão nos países mais atingidos por estes movimentos de deslocalização. Não só o capital se tornou escasso como também se tornou escassa a energia fóssil face a uma procura crescente, o que veio acentuar as dificuldades de crescimento económico. Acresce ainda que, devido ao envelhecimento da população e inversão das pirâmides etárias, os custos de proteção social sobem em flecha. A degradação ambiental e climática trouxe, também, custos acrescidos. Infelizmente, os governos e as suas instâncias internacionais não só falharam na regulação interna-cional financeira, como falharam numa regulação internacional fiscal,

Como a Reconstrução Ideológica É Indispensável ao Projeto Social Europeu*José Nuno Lacerda da Fonseca

* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

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COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU

bem como na regulação dos fluxos de capital e mercadorias no mercado global. Como se tal não bastasse, muitos governos tentaram responder a esta pressão para a degradação do valor do trabalho, fuga de investimento e dificuldades de cobrança fiscal mediante empréstimos que permitiram, durante algum tempo, manter o crescimento, proteger o valor do trabalho e manter a proteção social. Esse tempo de moratória acabou porque as dívidas assim contraídas assumiram montantes excessivos, ao ponto de se ter perdido a credibilidade face aos credores. Junte-se a este panorama o facto das tensões entre ricos e pobres, entre poderosos e os sem poder, ter deixado de se expressar fundamentalmente na luta política e ter, também, extravasado para o terrorismo internacional mais agressivo de sempre.

Embora o conjunto de causas que ocasionaram a atual crise seja muito complexo, podemos, talvez, considerar que a crise não teria existido, com a presente gravidade, se não fossem tão patentes as deficiências governativas na União Europeia e as limitações governativas e culturais (sobretudo no impacto que estas têm na organização e produtividade económica) exis-tentes nos países hoje mais enfraquecidos. Na mesma ordem de ideias, poderemos pensar que a solução passará por melhorar as capacidades governativas na União e as capacidades governativas e culturais nos países hoje mais enfraquecidos, não só por questões internas mas também na perspetiva de uma ação mais eficiente nas concertações internacionais sobre taxas, comércio internacional, regulação financeira e outras questões internacionais ponderosas.

No que concerne às capacidades governativas da União, parece razoável supor que o seu desenho institucional não favorece a produção de projetos políticos de bem comum europeu. Ao contrário do que se considerou essencial a nível das nações, não são sufragados projetos comuns para a Europa. Isto é, não existem eleições para as instâncias supremas de poder político (Parlamento Europeu e o inexistente Presidente Europeu) onde sejam debatidos e sufragados projetos europeus. O que temos são eleições de cariz essencialmente nacional (incluindo, na prática, as eleições para o Parlamento Europeu) que produzem fóruns (Conselho de Ministros, Parlamento, Comissão, etc.) onde se procuram equilíbrios entre o poder das várias nações, com tendência para valorizar as questões de curto prazo (os governos nacionais dependem de eleições em periódicos curtos prazos

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imbricados entre as diversas nações), gerir a forma como os eleitorados nacionais podem percecionar as medidas e o marketing mediático em torno delas e ceder, mesmo que parcialmente, aos interesses egoístas das nações economicamente mais fortes. Neste aspeto, do desenho processual demo-crático, ou são as nações (com as suas eleições onde são sufragados projetos nacionais de bem comum) que têm razão ou é a atual União com o seu desinteresse endémico pelo debate popular sobre projetos europeus de bem comum.

Claro que o empobrecimento das ideologias fere, também, o debate sobre projetos de bem comum, europeus ou outros, não fosse a ideologia, por definição, um projeto de bem comum, com uma visão de muitíssimo longo prazo.

A descaraterização e enfraquecimento da ideologia socialista começou com Eduard Bernstein, ao abrir as portas para se ceder completamente ao modelo parlamentar democrático sem deixar abertura para a procura de novas formas democráticas que melhor superassem o, equivocado e perigoso, centralismo democrático das vanguardas iluminadas. Refira-se, em abono de Bernstein que o seu modelo democrático apontava para um vetor crucial de descentralização que as necessidades da “política real” acabaram por fazer esquecer. Deve-se, também, a Bernstein, em grande parte, o abandono de qualquer teoria do valor (isto é, uma teoria que ajude a definir qual o rendimento justo de cada atividade profissional e classe social). Esta desconstrução, promovida por Bernstein, abriu as portas para a dominância das teorias do valor definido diretamente pelo mercado económico, culminando num segundo e fatal momento de descarateri-zação e enfraquecimento da ideologia socialista que, já no início do século XXI, surge com Anthony Giddens e a famosa terceira via (aliás, Bernstein também se reclamou de uma terceira via). A terceira via de Giddens vem decretar o abandono de qualquer modelo para o setor empresarial público. O abandono do setor empresarial público foi aceite (com apenas algumas resistências em torno de “setores estratégicos”) como panaceia para fugir aos malefícios da economia planificado pelos governos (considerados inaptos para orientar empresas, num mercado que ultrapassaria a sua inte-ligência), como se não existissem muitos outros modelos económicos a estudar e desenvolver.

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Algo jocosamente, pode dizer-se que, depois destas duas “terceiras vias”, o socialismo encontra-se já na “sexta via”, o que geometricamente parece constituir uma volta de 180 graus, desvirtuando-o excessivamente, ao ponto de já se duvidar de qualquer conceito, viável e pragmático, de Estado que não seja o Estado Mínimo e de se aceitar que os esforços para uma maior igualdade social dificilmente podem ser impostos aos mercados, sem que isso ocasione dramática perda de competitividade. Mesmo aqueles que continuam a insistir no Estado Social não podem deixar de ser assaltados por dúvidas deste tipo, pois a destruição ideológica não dá grandes meios de pensamento alternativo e só não gera estas dúvidas em quem se recusa a refletir nas realidades atuais.

Talvez por tudo isto, a incapacidade europeia, para equilibrar alguns graves efeitos desequilibrantes da globalização, seja muito baixa, não só na sua ausência de contributos decisivos em instâncias de governança e regu-lação mundial (comercial e financeira) mas, também, na incapacidade para controlar a galopada das cedências fiscais e dos défices financeiros dos Estados periféricos e, ainda, na incapacidade de criar mecanismos de intervenção interna, como um verdadeiro Banco Central Europeu com capacidade para emitir moeda. Sem o aumento da massa monetária (polí-tica há muito seguida nos E.U.A.), não se percebe como fugir de uma austeridade necessariamente recessiva. Claro que a emissão de moeda não pode servir como álibi para aumentar o défice público e desprezar a auste-ridade, infelizmente necessária no curto prazo. Talvez um meio-termo entre a política dos E.U.A. e a política Europeia, emitindo moeda mas não desprezando políticas de austeridade, seja a única resposta imediata contra a atual crise económica e financeira, já que a solidariedade euro-peia, veiculando maiores ajudas financeiras e económicas, dos países com saldo financeiro positivo aos que apresentam défices, não parece viável, de imediato, ao ponto se dar resposta à atual crise. Claro que a resposta imediata à crise atual só será bem sucedida mediante uma série adicional de condições. Muito se tem falado da repartição da austeridade por todos, liquidez num sistema bancário capaz de selecionar efetivamente os bons projetos empresariais, políticas dirigidas ao aumento da organização do trabalho e à produtividade, reformulação das relações entre empresas e investigação e desenvolvimento, cooperação acrescida entre pme´s no

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benchmarking, na investigação, no marketing e em vários outros aspetos, regu-lação anti-oligopolista, reforma da justiça, educação e saúde, planificação estratégica das redes de transporte de mercadorias, alteração das atitudes culturais nacionais que nos têm distanciado da produtividade de países com outras matrizes culturais, moratória na dívida pública ou sua reestru-turação, criação de duplas moedas em certos países para aumentar a massa monetária minimizando a exportação da inflação, protecionismos alfan-degários temporários, política de independência energética, renegociação de parcerias público privadas, etc.

Não se pode esperar que a austeridade que, de facto, é apenas uma diminuição relativa do valor social do trabalho, venha a resolver estas problemáticas mesmo se acompanhada de corretas medidas de promoção do crescimento económico. É que os países podem encetar uma compe-tição de austeridades. De facto, se a diminuição do valor do trabalho tornar mais competitivos alguns países, poderá haver a tendência de outros responderem implementando, também, desvalorizações do trabalho (isto é, diminuição de salários e de impostos para o Estado Social) de forma a não perderem competitividade. De tudo isto resultará a continuação da espiral da degradação do valor do trabalho e recrudescimento do valor esmagador das grandes concentrações financeiras internacionais. O que a teoria do mercado nos ensina é que a tendência será para que o valor do trabalho a nível mundial se aproxime do valor mais baixo da oferta do trabalho (hoje residente nos países asiáticos).

Provavelmente todas as medidas antes aqui referidas são necessárias e muito mais terá de ser feito, sendo muito duvidoso que políticas que não recorram a todas as possibilidades e coloquem excessivas expetativas num restrito número de medidas possam vir a ter sucesso.

Contudo, a perspetiva do presente texto não é apenas a procura de uma resposta imediatista à presente crise financeira mas sim de procura de uma resposta estrutural, de médio e longo prazo, à crise mais geral de produtividade, coesão, energia, ambiente, qualidade de vida estabilidade e a diversos outros problemas que, reconhecidamente, há muito afligem as sociedades europeias e as sociedades em geral.

Pode ser defendida a convição que só através da reconstrução da ideo-logia socialista será possível aumentar significativamente as capacidades da

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governação política e de mobilização dos povos, ao ponto de se inverter o atual rumo de depreciação, económica e ética, no qual se acentuam as desigualdades sociais e o aumento da criminalidade violenta e organizada, num quadro mundial de degradação energética, ambiental e climática que, em breve, poderá atingir pontos de rutura.

A reconstrução socialista implica recuperação da desconstrução promovida por Bernstein, aproveitando, contudo, as suas virtudes mas modernizando os modelos de exercício da democracia e refazendo uma nova teoria do valor. Implica, também, a reconstrução capaz de suplantar a desconstrução de Giddens expressa no desmantelamento da economia pública, encontrando novos modelos de economia pública em mercado concorrencial e com importante autonomia (recuperando e renovando a velha ideia de Oskar Lange sobre o “socialismo de mercado”).

Todavia, a reconstrução ideológica não se pode restringir a estas três facetas. O historicismo pretensamente científico que justificava a neces-sidade do socialismo (ideia também parcialmente desconstruída por Bernstein) já não pode ser hoje aceite e tem de ser reconstruído pela reflexão teleológica sobre modelos de sociedade a atingir no longo prazo, reequacionando o valor relativo da liberdade e da igualdade e repensando as suas relações (num campo teórico que remete para os contributos de John Rawls).

Por último, existem duas novas questões que obrigam a uma recons-trução socialista. A primeira é a questão da ecologia e de uma série de questões conexas, como o economicismo, os estilos de vida, os valores éticos e o consumismo que, aliás, encontraram um importante esforço de reconstrução na chamada teoria crítica de Herbert Marcuse, Guy Debord, Jurgen Habermas, Anselm Jappe e tantos outros. Estes esforços terão de continuar e terão de enlaçar a questão da ética que lhe está subjacente e que hoje se encontra em rota de destruição, não podendo restringir-se apenas à integração de políticas ambientais pois o movimento ecologista e a teoria crítica colocaram questões muito mais profundas sobre o mal-estar social.

A segunda das novas questões que tem de ser integrada na recons-trução ideológica é a questão da progressiva importância da informação e das assimetrias de informação que hoje são decisivas para os modelos de funcionamento social e suas disfunções.

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Por facilidade de exposição, será primeiro aqui abordada a questão da economia pública, passando-se, depois, à teorização de novas formas de democracia e responsabilidade cívica. Por último e já de forma muito mais resumida serão abordados os outros aspetos da reconstrução do socialismo democrático.

I. Economia pública e empresas de cidadania

Sem empresas públicas o poder económico torna-se monopólio de forças internacionais privadas que assim reduzem a quase nada o poder de intervenção do Estado, não só no campo económico mas, também, no campo político. De facto, sem poder negocial, face às grandes concentra-ções internacionais de capitais e sem capacidade para se financiar com os resultados das empresas públicas, o Estado é obrigado a aceitar a vontade das grandes concentrações internacionais de capitais ou ver fugir os capi-tais para “offshores”, para outros países e regiões do mundo, na pressão da competitividade fiscal e salarial. Uma globalização económica sem um equivalente político reduziu a política a pouco mais do que uma caixa de ressonância dos grandes poderes económicos que, aliás, se encontram cada vez mais permeáveis à degradação ética.

Esta fuga de capitais e a imposição de condições leoninas para o acesso a estes inviabiliza, financeiramente, o Estado Social e reduz a democracia a um sistema decisório secundário, sem poder face à virtual ditadura finan-cista e amoral que hoje governa o mundo.

A forma de dissipar esta condição de dependência dos Estados, perante a finança privada globalizada, seus plutocratas e aliados, passa pela consoli-dação de um sistema empresarial público, capaz de se reformular em função das novas exigências geofinanceiras, em alinhamento permanente com uma capacidade de inovação e empreendedorismo capazes de competir, em matéria de criação de riqueza, com o sistema empresarial privado.

Para desenvolver um sistema empresarial público eficiente é necessário que os rendimentos dos gestores públicos e dos trabalhadores em geral dependam, em diverso grau mas decisivamente, da melhoria dos resultados económicos das empresas públicas que devem gerir com autonomia e em

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plena concorrência no mercado.Contudo, tal pode não ser suficiente. Poderá ser fundamental que

estas empresas sejam claramente controladas pelos seus clientes, através de processos de democracia mais direta. Os processos de democracia mais direta que têm sido ensaiados, desde os anos 70, centram-se em grupos de cidadãos (que passaremos a chamar fóruns) nos quais os cidadãos deli-beram e decidem sobre questões que, tradicionalmente, eram decididas pelos seus representantes políticos (ou seja, pelos Governos). Existem talvez centenas destes fóruns, por todo o mundo, com diversos métodos de seleção dos seus participantes (alguns são totalmente abertos), incidindo sobre múltiplos temas e com processos de deliberação variados.

Neste contexto, devemos questionar se as referidas empresas públicas (e seus gestores) forem avaliadas e tiverem os seus gestores recrutados por fóruns independentes de cidadãos, em função de planos empresariais que os candidatos, à gestão, apresentem, ficará plenamente assegurada a independência e racionalidade da gestão das empresas públicas? Tal confi-guração será ir longe demais? Bastará, talvez numa primeira fase, que estes fóruns tenham uma função fiscalizadora, num quadro de transparência e publicitação dos exercícios orçamentais, devidamente simplificados e acompanhados da indispensável fundamentação que permita ao cidadão perceber com clareza as opções de gestão, o diligente recebimento de receitas e a circunscrição ponderada das despesas, nomeadamente nas empresas municipais?

Serão suficientes fóruns de cidadãos que tenham acesso a contínua e cuidada formação específica para esta tarefa, abertos a quaisquer cidadãos sem interesse corporativo nas empresas em causa? Fóruns acompanhados e aconselhados por entidades especializadas em gestão no setor respetivo, com possibilidade de, internamente, elegerem comissões temáticas para análises mais aprofundadas e de escolherem representantes para execu-tarem as deliberações tomadas, constituem uma devolução das empresas públicas aos cidadãos que serão o próximo passo que deve ser dado no setor público empresarial? Trata-se, afinal, de repensar os contributos dos modelos empresariais de Oskar Lange, Robin Hannel e Russel Ackoff?

A constituição destas “empresas de cidadania” deve constituir a alterna-tiva às privatizações e deve ser o caminho para o futuro de uma democracia

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não subjugada à ditadura financista internacional e capaz de financiar o Estado Social, bem como aliviar a, insuportável, carga fiscal sobre as empresas privadas de base nacional, sobretudo das mais pequenas, com a ajuda dos bons resultados financeiros do sistema empresarial público? Existirão outros modelos de autonomia, concorrência e recrutamento e avaliação de gestores públicos que assegurem a racionalidade económica e a eficiência das empresas públicas?

Claro que este modelo das empresas de cidadania é uma solução global de longo prazo. Contudo, talvez só o esclarecimento sobre as poten-cialidades das empresas de cidadania criará o ambiente ideológico que impulsionará novos acordos, internacionais, sobre os impostos sobre o capital e os mega salários da sua gestão. Sem estes novos acordos não haverá solução a curto e médio prazo contra o excessivo poder que a globalização conferiu às concentrações financeiras.

II. Governabilidade democrática e a democracia direta especializada

Embora seja indispensável que as democracias tenham um braço econó-mico é, também, indispensável que as democracias governem bem melhor do que têm feito, nomeadamente nas decorrências para instâncias inter-nacionais. Infelizmente, é virtualmente impossível que o cidadão consiga, efetivamente, avaliar a qualidade das governações, pois estas incidem sobre uma grande diversidade de assuntos complexos que, aliás, são influen-ciados por muitas variáveis que escapam ao controlo dos governos nacionais. Esta incapacidade de avaliação impede a realização da lógica democrática de controlo, pelos cidadãos, dos seus representantes, colocando em causa um dos pressupostos essenciais da democracia. Não é, pois, de estranhar a mediatização e o peso excessivo do marketing na orientação do voto do cidadão, estando este incapaz de avaliar, de forma racional e devidamente informada, a globalidade das políticas concretas e dos seus efeitos a longo prazo.

As críticas ao défice informativo da democracia não cessaram de aumentar desde Anthony Downs, logo em 1957, passando, depois, pelos trabalhos de Benjamin Barber, Paul Hirst e tantos outros, envolvendo, também, a escola da “Public Choice” e a teoria dos jogos, ao colocar a

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questão das assimetrias informativas entre representado e represen-tante. Os júris de cidadãos, de Ned Crosby, o orçamento participativo, as sondagens deliberativas de James Fishkin e a agenda local 21, são talvez as experiências mais conhecidas na tentativa de superação deste défice, surgindo, mais recentemente, muitos tipos de experiências de democracia eletrónica. Os conceitos e experiências de democracia participativa, preo-cupada com a devolução do poder aos cidadãos, bem como as reflexões e inovações no âmbito da democracia deliberativa, preocupada com o nível de informação e isenção que assiste à decisão, são dos conceitos hoje mais estudados da teoria política.

Para dar resposta a estes problemas será que, progressivamente, as deliberações políticas ou a escolha e avaliação de ministros, secretários de Estado e diretores gerais deverão, cada vez mais, ser efetuadas por fóruns, abertos a todos os cidadãos, suficientemente temáticos e especializados para poderem coligir e usar a informação relevante?

Deverá ser criada uma rede de fóruns temáticos (de democracia eletró-nica e por outros meios), cada um correspondendo ao tema de cada uma das atuais Secretarias de Estado ou algo idêntico? Posteriormente, deverão ser criados fóruns progressivamente mais especializados? Deverão, também, ser criados fóruns que, embora não correspondendo a esta estrutura, constituam temas agregadores, como fóruns vocacionados para questões de ideologia e desenvolvimento do pensamento estratégico social e económico, bem como fóruns vocacionados para o desenvolvimento e promoção da ética?

Deverá ser disponibilizado material pedagógico, formação e informação que permita a qualquer participante (destes fóruns) estudar e apreender, com a maior facilidade que as temáticas setoriais permitirem, as especi-ficidades das matérias próprias, evitando o elitismo e o fechamento dos fóruns? Estes materiais pedagógicos devem estar organizados em níveis, permitindo que cada participante possa ir, progressivamente, percor-rendo os diversos níveis de formação, tendo o seu voto ponderado em consequência?

Os fóruns, devem ser abertos a todos os cidadãos mas deve ser limitado o número de fóruns a que cada um pode pertencer, de forma a permitir reflexão e deliberação aprofundada? Será interessante a delegação do voto nos outros fóruns em que o cidadão não participa diretamente e em que

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moldes e com que peso relativo? De forma a evitar a captura corporativa dos fóruns temáticos, em cada

fórum ter-se-á de separar as votações em duas câmaras, uma representando a procura e o consumidor e outra os profissionais do setor respetivo? Que outras estruturas internas, nomeadamente a representatividade estatís-tica dos fóruns face à população em geral (como nos modelos de Crosby e Fishkin), assegurando a representatividade de todo o tipo de cidadãos envolvidos, deve ser assegurada?

A questão magna será a ideia de que o poder deliberativo deve ir passando, progressivamente, dos órgãos tradicionais da governação para estes novos fóruns ou para estruturas semelhantes de democracia mais direta?

Num sistema deste tipo, novos paradigmas de legitimidade democrática fazem a sua aparição em pleno, configurando uma democracia especializada e temática? Cada participante delega, na prática, nos outros participantes a legitimidade para assumir decisões em seu nome (decisões estas tomadas nos outros fóruns). Bem distantes estaremos do paradigma da representação tradicional, no qual um participante delega poderes, vastos e genéricos, nos representantes políticos que escolhe, através do seu voto.

A possibilidade dos cidadãos mudarem de uns fóruns para outros onde sentem que a governação não está a ser correta, poderá permitir um equi-líbrio que realize o interesse geral?

Será assim consubstanciada (com estes fóruns equilibrantes) uma divisão do trabalho de avaliação e controlo do sistema político, sendo que uns cidadãos se especializam em certas matérias e outros noutras matérias, para assim poderem controlar o sistema público com verdadeiro conheci-mento de causa?

Será que a reforma do atual sistema político, tentando caminhar para um sistema mais dependente dos reais interesses dos cidadãos e com mais elevado nível cognitivo nas suas decisões, exigirá o reformular de vários outros paradigmas democráticos?

Por exemplo, será que os pequenos partidos devem ter representação e peso decisório superior à sua votação (para promover a inovação e a dife-rença pluralista)? Será que os partidos derrotados devem gerir parte do orçamento global (para melhor mostrarem o seu valor, para responsabilizar

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as oposições, acentuar pluralismo e diversidade)? Serão necessários órgãos políticos específicos que assegurem a devida consideração dos problemas de longo prazo, constituídos por profissionais eleitos para ciclos vitalícios, remunerados em função da evolução de parâmetros sociais e ambientais quantificados, evitando a monopolização nas questões mais próximas dos curtos ciclos político-eleitorais? Serão necessárias Constituições Nacionais que definam quais as variáveis que devem avaliar os governos, expressando níveis de crescimento económico, coesão social, parâmetros ambientais, redução da criminalidade e vários outros dos quais possa resultar uma fórmula que quantifique a eficácia dos governos, sem prejuízo de vários outras propostas de governação não passíveis de quantificação? Que papel para a escolha por sorteio de representantes políticos e maiores restrições a repetição de mandatos, um pouco na linha da democracia grega clássica e na perspetiva de luta contra as redes clientelares e abertura de elites? Será que a abertura a novos meios de intervenção do cidadão constituirá o principal incentivo para que o cidadão se torne mais responsável, com maior espírito de equipa e mais empreendedor, em todos os domínios da sua vida, com importantes impactos não só na vida política mas também na produtividade económica e nas relações sociais? Será esta a chave do sucesso económico a longo prazo que tem diferenciado as nações, como sugerido pelos trabalhos de Max Weber, Almond e Verba, Francis Fukuyama, Geert Hofstede e Ronald Inglehart? Estas e várias outras questões devem contri-buir para um debate profundo e que repense paradigmas.

Obviamente que todo este vasto leque de perguntas aponta um modelo utópico de sistema económico e político, embora tente expressar, de forma sincrética, a diversidade de centenas de experiências de democracia mais direta e deliberativa que estão a brotar, em avalanche, de todos os pontos do mundo, acrescentando-lhe uma componente de economia pública. Em Portugal, será de ressaltar a agenda local 21, o orçamento participativo, o acesso a diversas plataformas de democracia eletrónica e os conselhos gerais escolares que, desde há alguns anos, recrutam os diretores das escolas secun-dárias, embora estas experiências sejam, ainda, frequentemente eivadas de vários equívocos e sobressaltos organizacionais. A existência de tecnologias eletrónicas, o aumento do nível educativo dos cidadãos e novos paradigmas de representatividade e delegação constituem uma oportunidade histórica,

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até agora nunca existente para a democracia mais direta, à qual os sistemas governamentalistas, excessivamente centralizados, resistem, arriscando-se a uma imagem de triste reacionarismo e obsolescência que devem tentar ultrapassar, com urgência.

Não é, obviamente, de esperar que um modelo de empresas de cidadania e de democracia especializada nem qualquer outro modelo refe-rencial se torne realidade absoluta e universal. O futuro pode pertencer a sistemas mistos, económicos e políticos, em permanente competição entre si, com democracia representativa co-habitando com diversas formas de democracia mais direta. Será razoável esperar que o debate sobre sistemas referenciais, sejam estes ou outros com algum paralelismo, enquadrados numa mais vasta reconstrução ideológica, apontados contra as limitações estruturais da democracia, do sistema económico dominante e de várias outras problemáticas decorrentes, será a única maneira de mobilizar os cidadãos e fazer surgir reformas verdadeiramente estruturais, abrangendo a grande variedade das problemáticas atuais, necessariamente da forma progressiva, tolerante e polimorfa que é exigida pela complexidade das sociedades atuais?

III. Teoria do valor, teleologia, liberdade negocial, economia da informação e promoção da ética

Relativamente à teoria do valor (isto é, a teoria sobre o rendimento que cada profissão e profissional deve auferir) a clássica teoria da exploração e das mais-valias caiu, por não explicar que rendimento deve ser auferido pelo trabalho de gestão do capital e por todas as outras profissões que não sejam profissões operárias (em cada vez maior número e com maior peso social). Uma outra fatal fragilidade foi não ter refletido sobre a recom-pensa ao risco do investidor. Em consequência, o socialismo ficou sem uma teoria do valor. A sua reconstrução passará por apurar qual o incen-tivo (remuneração) necessário para levar os indivíduos a desempenharem esta ou aquela atividade necessária. Este incentivo terá de compensar toda a desutilidade envolvida em cada profissão (esforço, riscos, degradação da saúde, etc.). Uma profissão com uma desutilidade que seja o dobro de

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outra merecerá o dobro do rendimento, e assim consequentemente para outros rácios entre desutilidades de outras profissões. O cálculo da desu-tilidade de referência para uma profissão (em torno da qual se situarão os vencimentos de cada profissional, em função da sua produtividade de mercado relativamente aos outros profissionais da mesma profissão) terá de passar pelo levantamento técnico de índices de desutilidade (esperança de vida, riscos e custos do insucesso, etc.), num sentido há algum tempo proposto por James Mirrlees. Este índices técnicos devem ser complemen-tados com o trabalho de observadores imparciais (tanto quanto possível) que conheçam o suficiente sobre a profissão em causa.

Claro que desta maneira poderá ser impossível a imparcialidade no julgamento de qual o justo rendimento do capital. Tal pode não ser razão para abandonar esta teoria do valor mas sim para restringir, progressiva-mente, o uso de capital privado em privilégio do capital público e dos bens comuns, através da prevalência de sistemas económicos polimorfos e com diversidade de tipos de capital.

Outra decorrência desta teoria do valor é que os proprietários de bens naturais não devem, talvez, ser remunerados fundamentalmente em função da escassez desse bem mas sim da desutilidade envolvida na gestão desse bem, o que implicará, por exemplo, nas rendas dos países produtores de petróleo.

A teleologia é outro dos campos que requer reconstrução ideológica. Quais os traços fundamentais da sociedade que queremos que exista a longo prazo? Uma sociedade sem classes ou uma sociedade com uma distribuição dos rendimentos compatível com os incentivos e as desutilidades? Uma sociedade que, além disto, ofereça educação e apoios mais fortes para o desenvolvimento dos seres mais frágeis ou oriundos de situações familiares e sociais mais fragilizadas, garantindo assim a igualdade de oportunidades intrínsecas (isto é, garantindo discriminação positiva na fase de desenvolvi-mento dos jovens ou no caso de acidentes e limitações pessoais impossíveis de evitar)? Desejamos uma sociedade com este tipo de distribuição mais homogénea do poder (seja económico ou outro tipo de poder), porque o poder corrompe e constitui um potencial de limitação da liberdade de quem não o tem, através de agressões e manipulações diversas? Nesta pers-petiva, os objetivos últimos do socialismo reconstruído deixam de ser a

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igualdade absoluta e passam a ser a liberdade, o incentivo ao contributo efetivo de cada indivíduo e a solidariedade com os atingidos por situações ou acidentes que não lhe são imputáveis. Fica assim afastado o competi-tivismo darwinista mas, também, um providencialismo, eleitoralista, que muito feriu o movimento socialista internacional.

Algures entre o debate sobre a teoria do valor e sobre a teleologia encontra-se a grave questão ideológica da liberdade negocial. O livre mercado não assegura liberdade negocial entre as diversas classes que disputam sobre a distribuição dos resultados de um projeto de trabalho em comum (tradicionalmente, como se sabe, de forma simplificada esta questão remete para as relações distributivas entre trabalho e capital). Tal liberdade não se verifica se uma das partes tiver meio de aguentar longas suspensões de cooperação entre classes (por exemplo, através do famoso conceito de “preferência pela liquidez”, de Keynes e que traduz a retirada do capital do circuito do investimento). Se uma das partes estiver, também, mais organizada na sua comunicação interna isso afetará a liberdade nego-cial. Por exemplo, as cem maiores multinacionais do mundo poderão ter maior facilidade de chegar a um acordo implementável na prática que os cem maiores sindicatos do mundo, se estes últimos se encontrarem em rota de esvaziamento e descredibilização. Existem muitas outras fontes de assi-metria negocial que se impõem, na prática, transfigurando os mecanismos de um mercado perfeito e impossibilitando o equilíbrio dos mercados e o exercício de uma liberdade entendida também como liberdade negocial.

Sendo necessária a reconstrução ideológica no que concerne a economia pública, democracia e teoria do valor e teleologia, existem também um conjunto de outros novos temas nos quais o mercado não regulado se tem demonstrado frágil (informação aos consumidores, especialmente nos mídia e outros produtos complexos e difíceis de avaliar pelo consumidor, economia da informação, estilos de vida e promoção da ética). Estas são também áreas fundamentais de reconstrução ideológica, como aqui já se referiu.

Estas fragilidades do mercado advêm, no todo ou em parte importante, do que, há já algumas dezenas de anos, se convencionou designar por assi-metrias de informação. Kenneth Arrrow, George Akerlof e Joseph Stiglitz são, talvez, os investigadores mais conhecidos nesta área, tendo mostrado que o mercado não tende necessariamente a disponibilizar toda a informação

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sobre os seus produtos, ocasionando assimetrias de informação (entre as diversas partes e classes envolvidas num negócio ou acordo social) que por sua vez geram ineficiência e assimetrias de rendimento que não seriam necessá-rias para obter os mesmos ou melhores resultados económicos.

É neste enquadramento teórico geral que se considera que a regulação da produção cultural e informativa é outra área fundamental em que é neces-sária a reconstrução ideológica. Esta reconstrução, como aqui já se referiu, é justificada pela constatação que os mercados não geram necessariamente informação suficiente sobre os seus produtos (qualidade, comparação de preços, efeitos de curto e longo prazo – por exemplo nos mídia recre-ativos, saúde e ambiente). Caberá, portanto, a instâncias extra mercado assegurarem essa informação. A melhor forma de o fazer parece consistir em assegurar informação pluralista sobre os produtos e as análises diversas que sobre eles se possam fazer, sendo que este pluralismo só pode ser asse-gurado pela participação do mais amplo leque pluripartidário, nas tarefas de informação ao consumidor. As associações de defesa do consumidor não garantem o pluralismo pois as associações em geral não são construídas para tal desiderato. Obviamente que estas associações devem ter um papel importante mas não suficiente.

Como exemplo de informação pluripartidária, pode-se tomar um caso no mercado, muito especial, da informação jornalística de cariz político. Considere-se a possibilidade de que as mais importantes peças jornalísticas informativas dos mídia, pretensamente isentas e imparciais, devem estar associadas a análises críticas de todos os partidos. Sendo que essas análises devem ser facilmente acessíveis aos consumidores dos mídia. Trata-se de um novo papel cultural para o qual os partidos e os mídia terão de se preparar e que constitui um conceito inovador de partidos, mídia e infor-mação ao consumidor.

Quanto à economia dos produtos informativos em geral, numa pers-petiva também crítica mas complementar aos autores atrás citados, desde Kenneth Arrow e Paul Romer que existe reflexão sobre as especificidades da informação enquanto mercadoria (por exemplo pode ser consumida sem que isso acarreta a sua destruição o que leva a um potencial consumo infinito). Será pois de esperar que os mercados de informação escapem a certas regras de funcionamento dos mercados. Por exemplo, é socialmente

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ineficiente a investigação privada protegida por secretismo e patentes se a mesma investigação puder ser pública e livremente acessível por todos os utilizadores. Na mesma linha de ideias, surge a necessidade de deteção de melhores práticas industriais e organizacionais e sua divulgação muito ampla. O novo paradigma será o de uma investigação pública ou ampla-mente cooperativa, orientada pelas empresas, com participação financeira do conjunto destas, com recompensa, das empresas aos investigadores e inovadores, em função das avaliações que as empresas farão aos resultados da investigação ou da divulgação de boas práticas e de outros serviços de cooperação e intercâmbio.

Passemos agora à última questão ideológica que aqui se propôs tratar e que é a da ética e dos estilos de vida, colocada no centro da reflexão socia-lista pelos movimentos dos anos sessenta e seus teóricos (sobretudo Marcuse mas também Theodor Adorno. Max Horkheimer e a “teoria crítica”, em geral, hoje reavivada por Jappe e Habermas).

O mesmo argumento, aqui usado, sobre as fragilidades do mercado da informação pode ser usado para evidenciar a necessidade desta recons-trução ideológica. Temos, contudo, de usar o conceito de mercado de forma muito mais vasta, entendendo-se “mercado” num sentido muito geral como Gary Becker entende, podendo-se falar de mercado de solu-ções ecológicas, mercado de ofertas de educação ética e religiosa, mercado de ofertas recreativas, etc. O mercado deste tipo de produtos está intima-mente ligado a opções sobre estilos de vida e de consumo o que por sua vez está intimamente ligado à ética e às morais.

Se o “mercado” não é suficiente garante, temos, mais uma vez de recorrer a meios extra mercado de promoção da ética e de morais das quais decorrem estilos de vida e consumo, objetivos de vida, atitudes e formas de relaciona-mento humano e social. Também neste desiderato a solução pluripartidária parece a única viável para um conjunto de políticas de promoção da ética que, aliás, não se terão de restringir à divulgação crítica de éticas e morais mas também a facilitar acesso a experiências que possam tornar o indivíduo mais propenso à ética (serviço cívico, contato com pessoas com outros valores, tutória, comissões de ética e prémios de valorização de comportamentos éticos, promoção do envolvimento em ações de solidariedade, promoção de redes familiares articuladas em ações de formação parental, etc.).

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A ética não cai, necessariamente, do nada nem resulta, necessaria-mente, do “mercado” das informações e culturas, competindo às instâncias públicas assegurar sua promoção, através de políticas diversificadas e plura-listas, com uma transversalidade e importância tão grande ou maior que as políticas ambientais que eclodiram desde os anos setenta. Chegou agora a vez das preocupações sistémicas com a ética, num novo campo de expressão ideológica e filosófica, no qual o socialismo muito terá de dizer.

IV. Conclusão

O mundo não pode continuar presa de uma democracia débil e clau-dicante face às grandes concentrações de poder que agridem, cada vez mais profundamente, a liberdade e a dignidade humana. Um novo projeto ideológico torna-se urgente. Neste contexto é de chamar a atenção para o grupo “Real Utopias”, em torno de Erik Olin Wright, Archon Fung, Herbert Gintis, Samuel Bowles e vários outros, nos E.U.A.. Talvez seja o momento de uma nova revolução democrática, cívica e humanista que coloque em causa a progressiva virtual ditadura da plutocracia (por vezes identificada como sendo o “capitalismo selvagem”) e o modelo de gover-namentalismo centralista que, na prática, abriu o caminho a crescente degradação económica, política, social, cultural e ética.

Uma mudança profunda, no sentido de uma democracia mais direta e informada e de um Estado com efetivo poder, devidamente descentrali-zado, facultado pelo seu braço económico e pela participação cívica, é uma necessária tarefa coletiva, de criatividade e responsabilidade. Só estas facul-dades podem elevar as sociedades para novos paradigmas, num patamar muito mais alto de civilização, envolvendo uma reconstrução ideológica em várias vertentes e mobilizando os cidadãos para responderem às várias e graves problemáticas que corroem as sociedades atuais.

A reconstrução socialista parece cada vez mais urgente. A crise econó-mica está a fazer surgir um quase cripto-nazismo económico que defende o desmantelamento da proteção do valor do trabalho e do Estado social, augurando que os mais fortes, libertos dessa carga de ajuda aos outros, possam livremente singrar, com a promessa mirífica que, mais tarde,

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depois da sua afirmação total, esses mais fortes vencedores se apiedam de quem nenhum poder já tem e os permitam partilhar dos rendimentos dos mais fortes. Muitos liberais sinceros podem ser levados a perfilhar este quase fascismo económico, sem consciência que o fazem nem dos riscos desse apoio. Não surgindo uma nova teoria socialista, a decadente “sexta via” socialista não terá hoje (devido aos erros do passado) credibilidade nem bases concetuais para criar uma alternativa ao competitivismo radical que, aliás, tenderá para se assumir cada vez mais completamente, num puro fascismo económico, darwinista e desumanizado, com a consequente destruição do projeto europeu do Estado Social e ameaçando a própria democracia e a paz na Europa e no mundo?

Não se trata de defender modelos únicos nem modelos teoricamente definidos à partida. Trata-se de propor sistemas mistos, económicos, sociais e políticos, em permanente competição entre si, envolvendo apren-dizagens mútuas e evolução. A democracia representativa pode co-habitar com diversas formas de democracia mais direta. O sistema empresarial público deve viver em competição com vários outros modelos económicos, desde a competição privada multinacional, até ao modelo das cooperativas, passando por modelos de equilíbrios entre competição e cooperação no mundo das pme´s, parcerias público-privadas em regimes diversificados e vários outros. Modelos diversos de ética e participação cívica, teleologias debatidas democraticamente, estilos de vida, modos e regulação da divul-gação e produção da informação e da ética podem e devem existir de forma diversificada, dialogante e tolerante.

Os melhores sistemas irão, progressivamente, tornando-se mais frequentes e os outros sofrerão mutações até se tornarem melhores e assim progressiva-mente, num modelo de meta-competição, tolerância e aprendizagem mútua constante. O movimento pós-moderno, de Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e tantos outros, veio para ficar mas não num relativismo apático perante o singrar dos desequilíbrios de poder. O trabalho de reconstrução ideológica, social, económica e política é complexo e exige um longo caminho mas parece o único meio para a esperança e para a reconstrução humanista.

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IDEIAS

Rousseau, Trezentos Anos DepoisJoaquim Jorge Veiguinha

Em 1751, Charles Bordes, membro da Académie de Sciences et Belle-Lettres de Lyon, contestava o Discurso sobre as ciências e as artes de Jean-Jacques Rousseau, distinguido, um ano antes, pela Academia de Dijon, com o primeiro prémio, nestes termos:

“Tendo-nos destinado a natureza a viver em sociedade era necessário que as nossas qualidades fossem desiguais relativamente à desigualdade das posições que devemos ocupar: uns devem nascer para as funções mais baixas da sociedade, para que as mais elevadas possam ser desempenhadas sem interrupção: porque se cada um tivesse cultivado o seu próprio campo, que tempo restaria para inventar as artes e as ciências, fazer as leis e mantê--las em vigor? A desigualdade natural é a base da desigualdade política e civil necessária em todas as sociedades.”1

Paradoxalmente, o ilustre desconhecido Charles Bordes, académico provinciano representante da burguesia comercial e manufactureira da próspera Lyon, adquire uma actualidade preocupante numa época em que se celebra o tricentenário do nascimento do seu famoso oponente, Jean-Jacques Rousseau, citoyen de Genève. E isto porque na primeira década do século XXI retornam as concepções regressivas que visam ‘naturalizar’ ou ‘eternizar’ as crescentes desigualdades sociais. Se no século XVIII a questão sobre a origem da desigualdade se situava no contexto da polémica da liber-dade dos antigos e da liberdade dos modernos, mais tarde retomada por Benjamin Constant num pequeno texto precisamente com este título, no nosso século o retorno de ideias que se julgavam, há muito, superadas pelas conquistas sociais e políticas do Estado de bem-estar e do modelo social europeu anuncia a emergência de um ressentimento oligárquico que se julga impune e acusa os seus críticos de estarem contaminados pelo vírus da ‘inveja igualitária’. Prova disso, é um artigo do actual primeiro-ministro

1 Citado por Guerci, Luciano – Liberta degli antichi e liberta dei moderni, Guida Editori, Nápoles, 1979, p. 64.

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espanhol, o conservador Mariano Rajoy, publicado no Faro de Vigo em 24 de Julho de 1984: “Demonstrado de forma indiscutível que a sociedade é hierárquica, gera todos os homens desiguais, não tratemos de explorar a inveja e o ressentimento para basear sobre pulsões tão negativas a ditadura igualitária. A experiência demonstrou de modo irrefutável que a gestão estatal é menos eficaz do que a gestão privada. Por que é que se insiste em aumentar a participação estatal na economia? Em grande parte, para despersonalizar a propriedade, ou seja, para satisfazer a inveja igualitária.”2

Poder-se-á dizer que Mariano Rajoy toma os seus axiomas por demons-trações ‘irrefutáveis’, o que, desde logo, transforma o seu juízo numa mera opinião sem fundamentos sólidos. É certo que o actual primeiro-ministro espanhol não defende, como Bordes, que os homens são naturalmente desi-guais. No entanto, não se distingue verdadeiramente do académico lionês, pois retoma o seu argumento sob uma nova forma: o que é ‘natural’ é o carácter hierárquico da sociedade – deliberadamente enunciada no singular, ou seja, como algo de a-histórico –, o qual, é a fonte da ‘inveja igualitária’. De facto, quem contesta a desigualdade social está a opor-se a uma espécie de facto natural irrefutável na sua evidência e, por conseguinte, apenas pode mover-se por um sentimento de ‘inveja’ quando compara a sua sorte com a dos ‘vencedores’, isto é, com a dos que ocupam uma posição ‘hierarqui-camente’ superior, seja esta fruto da riqueza, do poder ou do prestígio relativos. Na sua mais recente autobiografia, Rajoy reforça a sua postura intelectual dos anos 80 do século passado de uma forma mais requintada, pois inventa uma versão dinâmica da ‘hierarquização’ social que se trans-forma no principal estímulo do progresso social e do bem-estar individual: “Constitui uma demonstração matemática que o homem não se conforma com a sua realidade, que aspira a mais, procura um maior bem-estar e além disso um melhor ser, que, no fim de contas, luta para tornar-se desigual.”

Do homem natural ao homem socialAo escutarmos Rajoy, compreendemos que trezentos anos após o seu

nascimento Rousseau continua a ser um antídoto contra a espiral regres-siva do pensamento de direita actualmente imperante. Basta pensarmos

2 El País, Madrid, 7.01.12, p. 27.

ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS

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no seu Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado em 1755, também em concurso na Academia de Dijon, mas que não foi premiado como o anterior. Neste segundo discurso, dedicado à República de Genebra, onde Rousseau tinha nascido, o autor não faz conces-sões à retórica, ainda bem presente no primeiro, nem às regras formais da oratória académica que tinham em vista conquistar o favor do júri. E isto porque a questão proposta pela Academia – “Qual a origem da desi-gualdade e se ela é autorizada pela lei natural” – é bem mais complexa, já que a maior parte dos autores da época, de que Bordes é um exemplo, considera precisamente que a desigualdade natural é a fonte da desigual-dade civil e política e que, por conseguinte, já está inscrita na própria ‘lei natural’ que legitima a diferença das capacidades intelectuais dos homens. Para o filósofo britânico John Locke, expoente do jusnaturalismo laico, esta, apesar de “estar inscrita em todos” e de se revelar “ao intelecto como idêntica”, acaba apenas por ser ‘entendida’ por alguns – os ‘mais’ racionais –, pois “por mais de que as nossas faculdades intelectuais nos possam dar a conhecer esta lei, todavia não resulta necessariamente que os homens utilizem todos correctamente as suas faculdades: a natureza e as proprie-dades das figuras geométricas e dos números parecem evidentes e sem qualquer dúvida cognoscíveis através das luzes naturais, porém não se infere que quem esteja na posse das próprias faculdades supere os geómetras ou seja profundamente versado na arte da aritmética: pelo contrário, é neces-sária uma meditação atenta, reflexão e atenção da parte do entendimento, para que, a partir das coisas sensíveis e evidentes, na base de argumentações e raciocínios, se possa penetrar na natureza secreta das próprias coisas.”3

O que aproxima Locke de Bordes é que nem um nem outro se preo-cupam em investigar por que motivo alguns se tornam geómetras, enquanto a maioria permanece iletrada, ou seja, para ambos é considerada uma evidência que a função que cada um desempenha na sociedade tem uma origem natural, resulta exclusivamente das diferentes capacidades intelec-tuais dos homens. Bordes acrescenta ainda que as funções mais ‘elevadas’, isto é, as que exigem reflexão e meditação, não poderiam desenvolver-se se cada um se limitasse a cultivar o seu próprio campo, o que acaba por nos

3 Locke, John – Saggi sulla legge naturale, Laterza, Roma-Bari, 1973, p. 21.

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remeter para o axioma, partilhado também por Mariano Rajoy, da necessi-dade de existência de uma hierarquia em que as diferenças sociais não apenas coincidem com as diferenças intelectuais, mas são também necessárias para o desenvolvimento destas. É contra este axioma que Jean-Jacques Rousseau lança a sua ‘revolução copernicana’ do pensamento social e político não apenas da sua época, mas também da actual, quando afirma: “Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, uma vez que a resposta a encontraríamos enunciada na simples definição da palavra. Menos ainda se poderia procurar saber se haveria ligação essencial entre as duas desigual-dades; porque isso seria querer saber por outras palavras se aqueles que têm o mando valem necessariamente mais do que aqueles que obedecem e se a força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder e da riqueza.”4

O argumento de Jean-Jacques pressupõe desde logo uma crítica magistral à grande maioria dos intelectuais do seu tempo que naturalizam a desigual-dade política e socialmente instituída e, por conseguinte, através de uma generalização mecanicista, transformam num axioma de validade universal o que caracteriza apenas um determinado tipo de sociedade concebida dogma-ticamente como a única possível. Outro grande mérito de Rousseau é que a desigualdade não pode também ser explicada em termos ‘morais’, nada tem a ver com a ‘boa’ ou ‘má’ conduta do indivíduo, pois tal equivale a enunciar uma nova forma da sua naturalização, precisamente aquela em que os valores socialmente dominantes se transformam em factores de discriminação social. Não haverá mais vida para além destes valores? A resposta de Rousseau é positiva, percorre toda a sua obra, mas apenas se concretiza na fase da sua maturidade, particularmente no Contrato social e nas suas investigações sobre a Economia política, como demonstraremos mais à frente.

Entretanto, é necessário, por assim dizer, ‘separar o trigo do joio’, ou seja, distinguir desigualdade natural de desigualdade social. Não se trata, porém, de um exercício fácil, já que os contemporâneos do filó-sofo genebrino projectam na natureza as desigualdades sociais a ponto de, imagine-se, considerá-las não apenas inevitáveis, mas também necessárias e justas para o desenvolvimento da sociedade, como diriam hoje, no século

4 Rousseau, Jean-Jacques – Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, Europa-América, Lisboa, 1976, p. 23.

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5 Rousseau, Jean-Jacques, op.cit.,pp. 24.

XXI os herdeiros de Bordes. Para Rousseau é necessário um exercício de abstracção, um retorno às origens ‘pré-sociais’ do homem, já que todos os ‘factos’ que são apresentados para justificar ou legitimar a ‘natural’ desi-gualdade entre os homens são já factos sociais, ou seja, característicos de uma sociedade historicamente determinada em que impera uma hierarqui-zação de poderes, mas também de talentos, centrada na discriminação e na desigualdade e que, por conseguinte, não pode ser tomada como sistema de referência: “Comecemos pois por afastar todos os factos porque eles não tocam o problema. Não se devem tomar as investigações que se podem fazer sobre este assunto por verdades históricas, mas unicamente por raciocínios hipotéticos e condicionais, mais próprios para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar a sua verdadeira origem e semelhantes àqueles que todos os dias fazem os físicos acerca da formação do mundo.”5

A metodologia proposta por Rousseau põe desde logo em causa o argumento tradicional, retomado por Bordes, de que o homem é um ser naturalmente social. Partidário da ‘liberdade dos antigos’, o filósofo genebrino está, a este respeito, próximo dos ‘modernos’ que contestam a concepção, que remontava a Aristóteles, de que o homem é um ser ‘geneticamente’ predisposto para viver em sociedade. Rousseau retoma a suposição dos jusnaturalistas laicos do século XVII de um ‘estado de natu-reza’ que, no entanto, constitui apenas uma hipótese paradigmática com a qual se poderá confrontar o seu presente histórico para desvendar as causas sociais da desigualdade que surgem aos olhos da maioria dos seus contempo-râneos como ‘naturais’. Neste sentido, o estado natural de Rousseau não é, como em Hobbes, um estado onde a ausência de uma autoridade separada que estabelece as normas para a partilha dos bens escassos provoca uma guerra de todos contra todos, nem, como em Locke, um estado em que a fonte da propriedade privada é, primeiro, o trabalho individual e, depois, com a descoberta da moeda de ouro e prata, a acumulação ilimitada de um excedente sob a forma de dinheiro. Para ambos, o estado natural não é uma hipótese, mas uma mera projecção de uma concepção individualista de liberdade centrada na posse exclusiva de bens materiais. Rousseau rejeita radicalmente este ‘individualismo possessivo’, o que o conduz a recuar no

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tempo, em direcção a uma ‘idade mítica’, a um estado natural primitivo, a partir do qual se poderá medir a ‘distância’ relativamente ao presente histórico do homem social: um “grau zero” da evolução da humanidade, segundo a feliz expressão de Jean Starobinski6.

No estado natural primitivo os homens vivem dispersos pelas florestas, sem domicílio fixo e sem nenhum vínculo entre si. Estes alimentam-se do que a natureza lhes oferece espontaneamente: são sobretudo recolectores ou, extemporaneamente, caçadores. Sob o ponto vista material, o homem natural é auto-suficiente porque pode satisfazer as suas limitadas necessi-dades sem o concurso dos outros. Esta auto-suficiência abrange também o plano espiritual ou ‘moral’ que não pode ser separado do plano material, mas forma com ele uma unidade indissociável. Ao contrário do homem social, do homem produto da civilização, o homem primitivo não pode confrontar-se com os outros na procura de honras, prestígio e riquezas e, por conseguinte, não tem necessidade do seu reconhecimento, da sua estima ou da sua aprovação. Mal se diferenciando da natureza, que ainda não se tinha tornado um obstáculo à sua conservação, vive inteiramente em si próprio: é uma espécie de ‘inteiro absoluto’ sem existência ‘relativa’, a principal fonte do desenvolvimento das suas capacidades individuais, mas também do predomínio de alguns sobre os outros.

No entanto, contrariamente aos animais, a sua conduta não é exclu-sivamente determinada pelo instinto: o homem natural possui já, potencialmente, faculdades verdadeiramente humanas, como a capacidade de querer e de escolher, ou seja, a liberdade e a capacidade de auto-aper-feiçoamento. No entanto, ambas não podem desenvolver-se, pois as suas necessidades proporcionadas aos recursos que quase espontaneamente se lhe oferecem não superam ainda o horizonte do presente imediato e, por conseguinte, permanecem em letargo ou em hibernação. De facto, apenas a consciência de uma necessidade futura que o demarcasse da natureza em que participa ainda como organismo poderia levá-lo a projectar os meios solicitados para a sua satisfação e, deste modo, a superar a sua espontanei-dade ou instintividade naturais. Encontrando tudo o que necessita para viver sem esforço, não almeja competir com os outros para superá-los na

6 Starobinski, Jean – Jean-Jaques Rousseau: La transparence et l’obstacle, Gallimard, Paris, 1971, p. 344.

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repartição dos recursos escassos. Por isso, não poderia tornar-se previ-dente e a sua curiosidade ultrapassar a sua primordial ‘vontade de viver’ que se reduz ao sentimento da sua existência no ‘aqui e agora’ do evanes-cente momento presente.

Apesar da limitação das suas faculdades intelectuais e morais, o homem natural possui dois sentimentos primordiais: o amor de si e a piedade. O primeiro orienta-o para a sua própria conservação e afasta-o de tudo o que possa pô-la em causa. O segundo é o impulso espontâneo da simpatia natural que “ tempera o ardor que tem pelo próprio bem-estar por uma repugnância inata em ver sofrer o próprio semelhante.”7 Estes sentimentos estão completamente desprovidos de um sentido moral sobre o que se consi-dera ‘bom’ ou ‘mau’, ‘justo’ ou ‘injusto’ que apenas desponta no estado social. O primeiro é o sentimento que o leva a tomar consciência da sua realidade como ser existente, mas em que a vida surge não como uma luta, uma competição agónica, mas como um simples dado natural. O segundo é a bondade, sentimento desprovido de qualquer conotação moral e que, no fundo, é a fonte do que de mais humano existe no homem. Não sendo justo nem injusto, não tendo nem virtudes nem vícios, o homem natural não é, porém, um ser amoral, pois a sua bondade revela a sua humanidade. Este é, quanto muito, um ser pré-moral ou moralmente indiferente.

Esta situação de dispersão originária não poderia durar eternamente. Retomando a sua história conjectural do género humano, Rousseau atribui às adversidades naturais a origem das primeiras associações. A inclemência do clima e das estações do ano, tornam cada vez mais difícil a sobrevivência do indivíduo no estado recolector da primeira fase e, por conseguinte, começa a diferenciá-lo da natureza que se torna cada vez mais um obstáculo à satisfação das suas necessidades rudimentares. Por outro lado, a conjec-tura de Rousseau não é apenas fruto da sua imaginação romanesca, mas encontra alguns fundamentos científicos. Para a superação do estado de dispersão originária contribuem fenómenos geológicos que se perderam na poeira evanescente do tempo, mas que provavelmente exerceram uma influência determinante na formação do que poderemos chamar a segunda etapa do estado de natureza: “grandes inundações ou tremores de terra

7 Rousseau, Jean-Jaques, ibidem., p. 44-45.

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rodearam de água ou de precipícios zonas habitadas; revoluções do globo separaram regiões do globo e cortaram em ilhas porções do continente”8. Estes fenómenos suscitam a formação das primeiras hordas para enfrentar os primeiros obstáculos que a natureza começa a colocar à sobrevivência dos homens, embora estas permaneçam ainda dispersas, pois os fenó-menos geológicos que estiveram na origem da sua formação relegam-nos para regiões isoladas, sem contacto umas com as outras.

Mais tarde, numa terceira etapa, formam-se os primeiros domicí-lios sedentários que introduzem importantes inovações relativamente ao período precedente. A caça e a pesca substituem definitivamente o estado de remoção dos frutos da natureza. Esta evolução tecnológica, que cons-titui um passo mais significativo do que o precedente na ‘desnaturalização’ do homem primitivo, conduz à superação das hordas anárquicas fruto das contingências geofísicas. Surgem então os primeiros agregados humanos não circunstanciais que tendem a reagrupar-se e a diferenciar-se em ‘famílias’ que partilham um antepassado comum. Constroem-se as primeiras aldeias, mas a terra não se converte em propriedade privada. Porém, os homens não conhecem ainda tanto as técnicas da metalurgia, necessárias à construção dos primeiros arados que rompem a ‘terra virgem’, como as técnicas da agricultura extensiva. Apesar disso, começam a cultivar com instrumentos elementares pequenas hortas em redor das suas cabanas que constituem, no entanto, um mero complemento relativamente à sua actividade fundamental de caçadores e pescadores. Nestas ‘comunidades naturais’, inspiradas nos relatos que Rousseau conhecia sobre os índios norte-americanos, esses seres a quem foi atribuída uma designação equivocada pelos ‘descobridores’ euro-peus, emerge uma primeira diferenciação das funções laborativas que atribui aos homens a função de prover à subsistência comum e relega as mulheres para as tarefas domésticas e para cuidar das crianças.

Nesta terceira etapa do estado de natureza despontam as primeiras regras da aprovação e da estima e começa a debilitar-se o ‘amor de si’, enquanto surgem as primeiras manifestações do ‘amor próprio’. Para Rousseau este difere radicalmente do primeiro, já que é fruto do interesse pessoal, esti-mula a comparação dos talentos e das capacidades de cada um relativamente

8 Ibidem, p. 58

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9 Ibidem, p. 53

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aos outros e é a fonte subjectiva da competição agónica pelo predomínio em que o indivíduo visa superar o outro. No entanto, como não existe ainda propriedade privada, mas uma forma de repartição comum dos frutos do trabalho no seio da comunidade natural, este sentimento não encontra as condições necessárias para poder desenvolver-se. Os conflitos são esporá-dicos, não geram verdadeiramente um ‘estado de guerra’, pois opõem apenas uma comunidade natural a outras, centram-se exclusivamente na delimi-tação e apropriação do território de caça que, embora não seja inesgotável, pode sempre ser redescoberto noutras paragens quando uma delas é expulsa por outra do seu ‘habitat’ natural. Por sua vez, o sentimento primordial de piedade já não reveste a forma espontânea da simpatia pelo próximo, mas a do amor paterno e conjugal, sentimento mais estável porque se centra numa relação não circunstancial mas duradoura que, no entanto, já não abrange os membros que pertencem a outras comunidades.

A quarta etapa do estado de natureza é marcada pela formação da propriedade privada e, por conseguinte, constitui verdadeiramente o ponto de ruptura que estará na origem do estado civil, em que surgem as hierar-quias em que cada um compete e se compara com os outros para que seja reconhecido o seu ‘mérito’ e as desigualdades sociais não apenas se desen-volvem, mas acabam por ser ideologicamente legitimadas. A perspectiva de Rousseau é sombria, pois, relativamente ao selvagem do estado de dispersão originária, o indivíduo começa a dar mais importância às coisas que pode possuir relativamente aos outros. A propriedade privada é, no fundo, a fonte da desintegração das primeiras comunidades naturais de caçadores, a condição da deformação do homem arrastado para um processo histórico que destrói a simpatia espontânea, natural dos primórdios e gera o individu-alismo exclusivista: “O primeiro que, tendo murado um terreno se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples que acreditaram, foi o verda-deiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, quantas guerras, quantos assassínios, quantas misérias e horrores, não teria evitado ao género humano aquele que, arrancando as pedras ou tapando o fosso, gritasse para os seus semelhantes: «Tende cuidado não escuteis esse impostor; estais perdidos se esqueceis que os frutos são de todos e a terra não é de ninguém».”9

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Contrariamente a Locke e aos seus herdeiros fisiocráticos da escola de Quesnay, o cultivo extensivo da terra não tem, em Rousseau, uma priori-dade absoluta na ordem temporal, mas relativa. De facto, apenas um certo nível de desenvolvimento tecnológico que os povos selvagens da América ainda não conheciam poderia obrigar o indivíduo a abandonar o seu estado de ‘indolência’ primitiva, em que as necessidades estão propor-cionadas aos recursos que garantem a sua sobrevivência10, para dedicar-se exclusivamente a um trabalho que exige instrumentos tecnologicamente mais evoluídos e uma certa capacidade de previsão relativamente à satis-fação de necessidades que se desnaturalizam cada vez mais e se projectam no futuro. Uma nova divisão do trabalho acrescenta-se então à que se tinha estabelecido anteriormente entre o homem e a mulher: a divisão do trabalho entre cultivadores de trigo ou agricultores e os trabalha-dores do ferro. Os primeiros têm necessidade de ferro para a fabricação dos arados imprescindíveis para o cultivo extensivo da terra. Por sua vez, os segundos precisam do trigo para se alimentarem, enquanto extraem o ferro das vísceras da terra e o transformam num produto destinado ao consumo produtivo dos cultivadores. Instaura-se assim uma dependência recíproca entre o trabalho de uns e o trabalho dos outros que rompe a auto-suficiência tanto do homem primitivo no seu estádio de dispersão originária como das primeiras comunidades naturais de caçadores e pesca-dores. Esta divisão do trabalho é acompanhada por uma ‘revolução’ no plano espiritual e mental: para cultivar a terra em larga escala é necessário que os agricultores estejam dispostos a “perder primeiro alguma coisa para ganharem muito no futuro11.” Reciprocamente, o ‘metalúrgico’ devia ser dotado de “uma grande coragem e uma boa previsão para compreender um trabalho tão penoso vendo a tão grande distância as vantagens que se poderiam retirar.12” Eis como a capacidade de auto-aperfeiçoamento, que permanecia em letargo no estado de dispersão originária e que não tinha

10 “Não fazer nada, uma vez garantida a sua sobrevivência, é a mais antiga e a mais forte das paixões dos homens. Se olhássemos as coisas mais de perto veríamos que mesmo entre nós só trabalhamos para um dia vir a ter descanso: é a preguiça que, ao fim e ao cabo, nos torna trabalhadores” (Rousseau, Jean-Jacques, Ensaio sobre a origem das línguas, Estampa, Lisboa, 1981, nota à p. 80).

11 Rousseau, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, op.cit., p. 62.

12 Ibidem, p. 61.

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13 Ibidem, pp. 62-63.

14 Ibidem, p. 63.

ainda condições para se desenvolver no seio das primeiras comunidades de caçadores e pescadores, desperta através da capacidade de cálculo e de assunção de riscos gerada pelo facto de que os meios de subsistência se tornam mais difíceis de conseguir do que nos dois períodos anteriores.

O nascimento do cultivo extensivo teve como principal consequência a formação das primeiras “regras de justiça” com vista a uma primeira repar-tição da propriedade da terra, pois os homens começaram a “alargar as suas vistas para o futuro e dando-se conta de que todos tinham alguns bens a perder, cada um começou a temer para si a represália dos males que podia fazer a outrem.”13 Não eram ainda, no entanto, normas jurídicas, mas apenas consuetudinárias, pois o estado civil ainda não se tinha constituído. Tal como no Locke do Segundo tratado sobre o governo, Rousseau considera no seu Segundo Discurso que a propriedade privada se constitui ainda no estado de natureza e se baseia no trabalho do cultivador através do direito de usuca-pião: “É somente o trabalho que, ao dar direito ao trabalhador, sobre o produto da terra que trabalhou, lhe dá também como consequência direito sobre o campo, pelo menos até à colheita, e assim, de uma forma sucessiva, todos os anos, o que origina uma posse contínua, que facilmente se trans-forma em propriedade.”14

No entanto, as afinidades com Locke terminam precisamente neste ponto. Contrariamente ao filósofo britânico, Rousseau considera que os benefícios que a divisão do trabalho entre a agricultura e a metalurgia suscitaram na capacidade de auto-aperfeiçoamento dos indivíduos não compensaram os seus prejuízos sociais. A dependência recíproca entre a necessidade de ferro dos agricultores e a necessidade de trigo dos artesãos não conduz ao mesmo nível de satisfação. Pelo contrário, esta contribui para a intensificação das diferenças de produtividade e tem como principal consequência o aprofundamento das distinções entre os ‘cultivadores--proprietários’ que, no início do período, permaneciam praticamente iguais. Paralelamente, o aumento das trocas em consequência da intro-dução do dinheiro favorece o alargamento dos processos de cultivação extensiva da terra com o objectivo de obtenção de um excedente cada vez

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maior. A terra cobre-se de patrimónios fundiários confinantes que apenas podem aumentar uns à custa dos outros. Os cultivadores menos laboriosos e previdentes acabam por ser expropriados em proveito dos outros que perdem as suas terras. Por fim, confrontam-se ricos e pobres ou, mais espe-cificamente, possuidores e não possuidores. Os primeiros invocam o seu direito ao ‘supérfluo’, ou seja, ao excedente de produtos disponíveis para a troca com o argumento da sua maior capacidade ou iniciativa em contraste com a ‘indolência’ dos outros que, assim, são considerados responsáveis pela sua própria pobreza. Diferentemente de Locke, este argumento não tem, porém, nenhuma validade jurídica para Rousseau: “«Fui eu que construí este muro; ganhei este terreno com o meu trabalho»; «quem vos deu os alinhamentos», poder-se-lhe-ia responder, «e em virtude de quê pretendeis ser pagos à nossa custa por um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de irmãos vossos morre ou sofre necessidades naquilo que vós tendes em demasia e que vos seria necessário um consentimento expresso e unânime do género humano para apro-priardes da subsistência comum tudo o que vai para além da vossa?»”15

Para o genebrino o desenvolvimento tecnológico não foi governado por uma providencial ‘mão invisível’ em que cada um seguindo o seu inte-resse pessoal acaba por favorecer o interesse de todos. Para Locke, por exemplo, mas também para os seus discípulos da fisiocracia, o proprietário ‘previdente’, ou seja, capaz de avaliar os custos e os benefícios da sua acti-vidade segundo uma lógica de racionalidade instrumental é uma espécie de ‘benfeitor’ público, já que ‘cria’ valor através da produção de um exce-dente de subsistências ou de produtos manufacturados que, vendidos no mercado, contribuem para satisfazer as necessidades tanto de si próprio como dos outros. Rousseau contesta fortemente este argumento, pois ele naturaliza ou eterniza a desigualdade social a partir das diferenças entre as capacidades dos indivíduos que se objectivam através de uma competição agónica em que o ter e o possuir cada vez mais se transformam no hori-zonte da sua existência e acabam por constituir a condição necessária para a satisfação do desejo de mando e predomínio sobre os outros. Ao contrário da corrente iluminista dominante, de inspiração liberal, o aumento das

15 Ibidem, p. 66

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necessidades e dos meios para a sua satisfação resultante do progresso tecnológico, apesar de desnaturalizar o selvagem dos primórdios, não é de modo algum suficiente para socializar verdadeiramente o homem dito ‘civilizado’: “O homem selvagem, depois de jantado, está em paz com toda a natureza, é amigo de todos os semelhantes (…) mas com o homem em sociedade as coisas passam-se de maneira bastante diferente; trata-se, em primeiro lugar, de providenciar ao necessário e depois ao supérfluo; em seguida vêm as delícias e depois as imensas riquezas, e depois os súbditos e depois os escravos: não há um momento de descanso.”16

A emergência da divisão do trabalho e do valor de troca conduz à perda da primitiva auto-suficiência do selvagem dos primórdios e obriga o indivíduo a contribuir para a satisfação das necessidades dos outros para poder satis-fazer as suas. O interesse pessoal substitui o impulso natural da simpatia que caracteriza a conduta do homem primitivo e estimula o homem em vias de se tornar ‘civilizado’ a aumentar a sua própria fortuna relativamente à dos outros e mesmo à sua custa. No entanto, como este não pode prescindir dos outros tenta persuadi-los com a astúcia de que estariam a trabalhar para promover o seu próprio interesse e bem-estar se trabalhassem para a promoção do dele. O amor de si, predominante no selvagem e ainda entre os membros das comunidades naturais de caçadores e pescadores, transforma-se definitiva-mente em amor-próprio interessado em que cada um, comparando-se com os outros para realçar o ‘valor’ do que considera ser o seu próprio ‘mérito’, simula preocupar-se com o bem-estar daqueles quando, na realidade, tem apenas como objectivo promover o seu interesse pessoal.

No entanto, nesta etapa derradeira da evolução do estado de natureza a reprodução das relações de dependência recíproca e a legitimação ideo-lógica de que o interesse pessoal é a base da coexistência são cada vez mais postas em causa pelo aumento das diferenciações e desigualdades sociais. O confronto entre possuidores e não possuidores ameaça transformar-se numa guerra de todos contra todos que destruirá a propriedade privada que alguns acumularam e que já não pode ser respeitada pelos não possuidores com o argumento ‘meritocrático’ de que foi conquistada pelo engenho e sagacidade dos seus beneficiários. Eis então como um dos possuidores mais

16 Ibidem, nota 7, p. 105.

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astucioso do que os outros, consciente do interesse que o une aos restantes membros da sua classe, apresenta uma proposta para convencer os não proprietários a celebrar um pacto que assegurará a estabilidade entre-tanto ameaçada: “«Unamo-nos», disse-lhes, «para garantir os fracos da opressão, para conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e de paz a que todos sejam obrigados a conformar-se, que não façam acepção de pessoas e que de algum modo reparem os caprichos da sorte, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Numa palavra, em vez de voltarmos as nossas forças contra nós próprios reunamo-las num poder supremo que nos governe de acordo com leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, afaste os inimigos comuns e nos mantenha numa eterna concórdia».”17

Apesar de se inspirar nas correntes jusnaturalistas, o pacto ‘social’ de Rousseau que instituiu o estado civil é uma crítica aos defensores da tese liberal que reduz a liberdade a um mero corolário do direito de proprie-dade. Em primeiro lugar, a ‘racionalidade’ dos interesses das classes possuidoras é apenas capaz de formular uma concepção de ‘bem público’ que acaba por reduzir-se a um mero instrumento para a preservação da sua segurança privada. Em segundo lugar, a protecção das pessoas pela autori-dade ‘pública’ que será instituída, apesar de ter como objectivo neutralizar as diferenças naturais entre as forças dos indivíduos, submetendo os mais fortes e os mais fracos a regras comuns de coexistência, acabará por legi-timar juridicamente as diferenciações económicas e sociais que resultam do reconhecimento do direito de propriedade. Em terceiro lugar, o ‘arti-fício’ ideológico que está na origem do pacto ‘social’ subverte uma relação de forças que era anteriormente favorável aos não proprietários que não cessavam de aumentar relativamente ao número cada vez mais exíguo dos proprietários em que se concentrava o excedente social acumulado. Deste modo, a multidão dos ‘pobres’ torna-se mais débil, enquanto a elite dos ricos se torna definitivamente mais poderosa.

O ‘contrato promessa’ de obediência às leis não é, porém, suficiente para evitar as transgressões e punir os delitos contra a propriedade ou

17 Ibidem, p. 67

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18 Ibidem, p. 75.

19 Ibidem, p. 69

contra a integridade dos mais débeis fisicamente. Por conseguinte, é neces-sário um segundo pacto para vincular as partes a cumprir as obrigações a que se tinham formalmente comprometido: “Se não existia poder superior que pudesse ser garante da fidelidade dos contraentes, nem obrigá-los a cumprir as suas recíprocas obrigações, as partes permanecem únicos juízes da sua própria causa e cada uma delas teria sempre o direito de renunciar ao contrato, quer quando achasse que a outra infringira as condições ou que estas tinham deixado de lhe convir.”18

No Segundo discurso Rousseau retoma a tese jusnaturalista dominante sobre a existência de dois pactos: um ‘pacto de associação’ – pactum unionis – que estabelece consensualmente as normas jurídicas que regerão as rela-ções civis; e um ‘pacto de submissão’ – pactum subjectionis – que institui uma autoridade pública separada, isto é, um governo e uma magistratura que garantem a aplicação das leis. No entanto, o filósofo genebrino considera que o pacto de associação tem uma precedência histórica – e não apenas lógica – sobre o pacto de submissão, o que o demarca dos jusnaturalistas. De facto, antes que o segundo seja instituído – o povo escolhe os chefes a que se compromete a obedecer – a ‘sociedade’ subsistia já através de algumas “convenções gerais que todos os indivíduos se comprometiam a observar e de que a comunidade se tornava garante para cada um deles.”19

As comunidades de caçadores da segunda etapa do estado de natureza são exemplos marcantes desta espécie de direito consuetudinário, bem como a usucapião relativamente à posse da colheita baseada no trabalho reiterado do cultivador. Apenas quando estas convenções se revelam insuficientes para prevenirem as consequências socialmente desastrosas do conflito dos interesses antagónicos provocado pela crescente desigualdade entre proprietários e não proprietários, se torna necessário transferir para uma instituição que detenha o monopólio legítimo da força pública, que é também o monopólio legítimo da violência, o poder de coagir todos a obedecer às normas que garantem não propriamente a convivência civil, pois esta não pode verdadeiramente existir num contexto em que crescem as desigualdades e a luta pelo predomínio, mas, pelo menos, a coexistência

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social. Em suma, o que se forma verdadeiramente é o Estado político: uma parte da sociedade, o governo e o seu aparato administrativo e repressivo, destaca-se e ergue-se acima dela para evitar que o aprofundamento dos antagonismos e fracturas sociais conduzam à sua iminente dissolução.20

Instituído o governo, inicia-se a segunda etapa do estado civil. Ao contrário de Locke para quem este se limita a assegurar o direito de proprie-dade que se forma no estado de natureza, Rousseau considera que nenhum argumento pretensamente racional pode dissuadir o povo a renunciar à obediência estipulada, sempre que as condições de existência da maioria se tornem insustentáveis e que os governantes a quem foi confiado o depósito da força pública exerçam o poder que lhes foi delegado de modo arbitrário. Para evitar os inúmeros conflitos que resultariam do reconhecimento do direito de resistência à opressão, é necessária “uma base mais sólida do que exclusivamente a razão” para preservar a ordem pública. Esta base não é outra senão a religião, pois a “vontade divina” deveria intervir para “dar à auto-ridade soberana um carácter sagrado e inviolável que tirasse aos súbditos o direito de dela dispor.”21 Este novo artifício ideológico, para além de suscitar o conformismo da maioria perante a concentração da riqueza nas mãos de alguns, abre a porta à competição pelo prestígio, poder e predomínio que contribui para sufocar à nascença todas as possibilidades de formação de um verdadeiro espírito público. Os que têm algo a perder deixam-se então submeter a um só ou a poucos para que possam exercer o seu predomínio sobre os que se situam nos escalões imediatamente inferiores da hierarquia social e política: “Os cidadãos não se deixam oprimir senão na medida em que são arrastados por uma cega ambição, e, na medida em que olham mais para baixo do que para cima, a dominação torna-se-lhes mais querida do que a independência e consentem em arrastar as cadeias, para, por sua vez,

20 Friedrich Engels inspira-se no Segundo discurso de Rousseau para definir a sua concepção de Estado: “O Estado não é pois de modo algum um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tão pouco é a «realidade da ideia moral» ou «a imagem e realidade da razão», como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses económicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da «ordem». Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o Estado” (Engels, Friedrich – A origem da família, da propriedade e do Estado, Editorial Presença, s.d., p. 225).

21 Rousseau, Jean-Jacques, op. cit., p. 75.

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22 Ibidem, p. 77.

23 Ibidem, pp. 79-80.

24 “Uma Cidade, é preciso dizê-lo ainda, em que a paz é efeito da inércia dos súbditos conduzidos como um rebanho e formados unicamente na servidão, merece mais o nome de solidão do que o de Cidade” (Espinosa – Tratado político, Editorial Estampa, Lisboa, 1977, p. 48).

25 Rousseau, Jean-Jacques, op. cit., p. 80.

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as poderem lançar sobre os outros. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procurasse mandar e o melhor político não conseguiria sujeitar homens que não desejassem senão ser livres.”22

Esta concepção de liberdade como não dominação é uma das grandes conquistas do pensamento de Rousseau que caracterizaremos mais deta-lhadamente no final deste artigo. Entretanto, os detentores do poder político têm interesse em promover “tudo o que pode enfraquecer homens reunidos, desunindo-os; tudo o que pode dar um ar de concórdia aparente; tudo o que pode dar à sociedade um ar de concórdia aparente e semear nela um gérmen de divisão real; tudo o que inspirar às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio mútuo pela oposição dos seus direitos e, por conseguinte, fortalecer o poder que a todos contém.”23 Este novo artifício ideológico – a táctica de ‘dividir para reinar’ – inaugura a terceira etapa do estado civil em que surge o despotismo político. Os governantes, que anteriormente tinham sido eleitos ou consensualmente legitimados, transformam-se em tiranos, enquanto o povo se transforma numa massa amorfa de súbditos isolados24. Assim, a igualdade vigente no estado de dispersão originária e nas primeiras comunidades de caçadores e pesca-dores acabará por ser restabelecida na terceira e derradeira etapa do estado civil de uma forma totalmente invertida: querendo cada um contar mais do que os outros, acabam todos por nada contar perante aquele ou aqueles a quem alienaram a sua liberdade política. No seio do próprio estado civil formar-se-á então um novo estado de natureza radicalmente diferente do que constituiu o ponto de partida do desenvolvimento histórico, pois “um era o estado de natureza na sua pureza e este último é fruto de um excesso de corrupção.”25

Actualmente, o despotismo político a que se refere Rousseau foi substi-tuído pelo despotismo dos mercados financeiros que transforma os governos

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eleitos em meros executores de uma oligarquia de credores e especuladores que promovem a desintegração das sociedades. Mas o Segundo Discurso de Rousseau, apesar de não poder naturalmente prever esta regressão social e política, adquire uma actualidade extraordinária, pois é uma resposta crítica ao pensamento liberal dominante da época iluminista que prolonga as suas raízes no presente. Para esta forma de pensamento, que tem em Kant o seu máximo representante, são os obstáculos que a natureza opõe ao homem e a resistência dos outros à sua pretensão de tudo subordinar à sua vontade que o leva a ‘sair de si’ e a desenvolver as suas capacidades. Caso contrário, afirma o filósofo alemão, “todos os talentos permaneceriam sempre em germe no seio de uma existência de pastores da Arcádia, numa concórdia, numa satis-fação e num amor mútuos perfeitos; os homens, doces como os cordeiros que apascentam, não dariam à existência quase mais valor do que a que tem o seu rebanho doméstico.”26 A perspectiva do conservador Mariano Rajoy não é estruturalmente diferente: os homens existem para competirem uns com os outros, para se superarem uns aos outros, ou seja, no fim de contas, para se tornarem ‘desiguais’.

Rousseau põe em causa esta concepção. Para o genebrino a superação do obstáculo da natureza converte-se, a partir de um determinado grau de desenvolvimento tecnológico, em domínio do homem sobre o homem num contexto de uma organização e divisão do trabalho que, apesar de promover a produtividade económica, aprofunda as diferenciações sociais entre possui-dores e não possuidores e entre os que comandam e os que executam. Neste contexto, o homem não visa cooperar com os outros mas ultrapassá-los numa competição agonística em que, como revela Hobbes, a “emulação” consiste em “esforçar-se para superar quem está imediatamente à frente”27. Mas isto significa, segundo Rousseau, o debilitamento cada vez maior do sentimento de solidariedade e piedade do ‘homem natural’. Em contrapartida, reforça--se cada vez mais o desejo de distinção ou diferenciação relativamente aos outros não apenas através da ostentação dos bens materiais possuídos, mas também através dos talentos, capacidades, méritos e competências conside-rados socialmente ‘relevantes’. Todas estas distinções fictícias fornecem a

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26 Kant – La philosophie de l’histoire, Denoel/Gonthier, Paris, 1976, p. 32.

27 Hobbes, Thomas – Elementi di legge naturale e politica, La Nuova Italia Editrice, Florença, 1972, p. 75.

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quem as manifesta a estima e a aprovação dos outros porque são, de certo modo, o símbolo do seu sucesso, da sua reputação e do seu poder. Assim, o homem civil, para além de disfarçar as suas motivações egoístas sob a máscara da sociabilidade, vive sempre ‘fora de si próprio’, já que retira dos outros tanto a sua atomística ‘consciência de si’ como o sentimento da exclusividade da sua própria existência. Eis como o progresso tecnológico se associa, no plano ético, não a uma melhoria mas a uma deterioração e deformação da conduta humana. Se é verdade que o retorno ao estado natural primitivo é impossível, também é verdade que o reencontro da felicidade perdida, se tal for possível, deverá situar-se ‘noutro lugar’, para além da História.

A república social de RousseauNo prefácio de Narcise, obra literária e teatral publicada em 1752, Rousseau

defende que a maior parte dos filósofos e moralistas da sua época tendem a destacar nas suas obras esta pequena máxima ‘exotérica’: “Os homens têm em todo o lado as mesmas paixões; em todo o lado se deixam conduzir pelo amor-próprio e pelo interesse; portanto, são os mesmos em todo o lado.”28 Com esta máxima, lançam o argumento, não menos exotérico, de que cada um, perseguindo o seu interesse privado, contribui para satisfação do inte-resse privado dos outros muito mais eficazmente do que se manifestasse deliberadamente a intenção de promovê-lo: “Todos os nossos escritores consideram como a obra-prima do nosso século, as ciências e as artes, o luxo e o comércio, as leis e as outras relações que, instituindo entre os homens os vínculos da sociedade através do interesse pessoal, colocam-nos num estado de mútua dependência, dão-lhes necessidades recíprocas e obrigam cada um a contribuir para a felicidade dos outros para poder criar a própria.”29

Este tipo de argumentação ignora o facto de que os interesses pessoais tendem a transformar-se cada vez mais em interesses contrapostos e mesmo antagónicos quando deixam de se referir a uma dimensão pública. Estes não aproximam os homens através de uma partilha de valores e de um empe-nhamento recíproco na procura de um bem comum, mas, pelo contrário, encorajam cada um a converter os outros em meros instrumentos para a

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28 Rousseau, J.-J. – Opere, Florença, 1972, nota à p. 27.

29 Ibidem, p. 26.

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30 Rousseau, Jean-Jacques – “Fragments politiques” in Oeuvres Complètes, Gallimard, Paris, 1964, vol. III, p. 478.

31 “Deixai, pois de vos lamentar: apenas os tolos querem / Tornar honesta uma grande colmeia. / Desfrutar das como-didades do mundo, / Ter renome na guerra, mas viver no conforto/ Sem grandes vícios, é uma vã / Utopia, instalada no cérebro. / É necessário que existam a desonestidade, o luxo e o orgulho, / Se queremos gozar o fruto (…) Sim, se um povo quer ser grande, / O vício é tão necessário ao Estado / Como a fome o é para comer” (Mandeville, Bernard – La fable dês abeilles, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1974, p. 40).Eis como alguns ‘ideólogos’ contemporâneos de Wall Street se inspiram neste poema mandevilliano, que deveriam ter conhecido em milésima mão, para lançarem ao mundo a edificante máxima: ‘Greed is good’ (‘A ganância é boa’).

realização do seu bem-estar, riqueza e prosperidade exclusivas. Não é verdade que os valores mercantis do ‘ter’, promovendo a comparação de uns com os outros, convertem o indivíduo num obstáculo às pretensões dos outros e promovem uma competição agónica em que cada um não visa cooperar com o outro mas superá-lo para afirmar a sua ‘diferença’? : “Logo que um homem se compara aos outros torna-se necessariamente seu inimigo, pois cada um querendo no seu íntimo ser o mais poderoso, o mais feliz, o mais rico apenas pode considerar como um inimigo secreto quem tendo em si próprio o mesmo projecto se torna um obstáculo para a execução do dele.”30

A crítica de Rousseau aos valores mercantis do ‘ter’ assinala a transformação da sociedade num mercado competitivo – o que lhe confere uma extraordinária actualidade – caracterizado por um enorme vazio de valores ético-políticos. Por um lado, o indivíduo não olha a meios para satisfazer os seus fins egoístas e frequentemente encontra a sua própria satisfação no fracasso dos outros, a quem chama depreciativamente ‘loosers’, perdedores, para utilizar a termi-nologia anglo-saxónica actualmente em voga. Por outro lado, como numa ‘sociedade de mercado’ cada um é uma espécie de ‘livre cambista’ que tem sempre alguma mercadoria para vender aos outros, transforma-se num dissi-mulado, pois habitua-se a fingir que o interesse do outro, ou seja, do ‘cliente’ a quem ‘religiosamente serve’ é mais importante do que o seu próprio interesse. O relacionamento social transforma-se assim num jogo de aparências em que cada um, estranho a si próprio e aos outros, oculta perante eles o seu próprio ser e perde completamente de vista o bem público. Para alguns a prosperidade do ‘estado civil’ baseia-se mesmo nas ‘paixões’ egoístas dos privados, de modo que uma política que vise transformá-los em pessoas honestas e defensoras do bem comum apenas contribuirá para mergulhar a ‘colmeia humana’ na mais profunda das misérias31. Considerando o homem como é hoje, como o homem em geral, grande parte dos contemporâneos de Rousseau renunciam

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32 Rousseau, Jean-Jacques – Fragments politiques, op. cit., p. 479

33 Rousseau, Jean-Jacques –“Du contract social (1e version)” in Oeuvres Complètes, Vol. III, p. 284.

34 Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, Editorial Presença, 1973, p. 21.

cepticamente a “ver numa constituição melhor das coisas, o preço das boas acções, o castigo das más e o amável acordo da justiça e da felicidade.”32

Mais optimistas, outros vêem na lei natural, qual regra de conduta de um ser moral capaz de controlar as próprias paixões egoístas e de se auto-determinar de acordo com a razão, o vínculo que garante a coexistência do interesse de cada um com o dos outros. A este argumento Rousseau responde que num contexto social em que o bem público não constitui o objectivo do empenhamento de todos, a razão não é por si só suficiente para impedir o indivíduo de prejudicar os outros sempre que este sente o seu próprio interesse ameaçado ou apenas posto em causa. Nesta situação, o interesse particular não se ‘coliga’ nunca com o interesse geral. Pelo contrário, ambos se excluem mutuamente, porque “as leis sociais são um jugo que cada um quer impor aos outros, mas não quer ele próprio suportá-lo.”33

A alternativa proposta por Rousseau consiste em encontrar uma forma de associação em que o indivíduo renuncie conscientemente à sua existência atomística para se elevar a uma nova forma de liberdade – uma liberdade inclusiva – que não seja concebida como um mero meio para adquirir, bens, prestígio e predomínio sobre os outros, mas como um objectivo que o una aos outros numa verdadeira comunidade ético-política. Filho do seu século, o filósofo de Genebra considera que a formação da nova comunidade resulta de um acto voluntário, de um ‘contrato’ que, no entanto, difere substancialmente do contrato jusnaturalista típico, já que é fundamentalmente um contrato de associação, um ‘contrato social’, em que as partes rejeitam submeter-se a uma autoridade política separada como condição da preservação da sua coexistência no ‘estado civil’. A sua fórmula quimicamente pura é a seguinte: “ «Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja [com] toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e em que cada um, ao unir-se a todos, só si mesmo obedeça e continue tão livre como antes».“34

Como as condições estipuladas no ‘contrato social’ são iguais para todos ninguém tentará impor aos outros um vínculo que ele próprio não aceite

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simultaneamente. Com este acto de associação entre indivíduos que viviam precedentemente apenas para satisfazer os seus próprios interesses privados exclusivos e não se cansavam de excogitar expedientes para se superarem ou dominarem uns aos outros, forma-se um ‘eu comum’, uma vontade geral, que une cada um aos outros. Deste modo, as partes deste contrato ‘sui generis’ superam a sua personalidade abstracta, separada, transformando--se em membros de uma comunidade ético-política em que a convivência cívica substitui a mera coexistência de vontades.

A comunidade política instituída chama-se República (‘Republique’) e é designada pelos seus constituintes por Soberano (‘Souverain’) quando é activa e Estado (‘État’) quando é passiva. Os seus membros formam o Povo (‘Peuple’) e chamam-se Cidadãos (‘Citoyens’) na sua qualidade de participantes na assembleia povo que detém a soberania e súbditos enquanto se encontram submetidos às leis do Estado. Cada um será simultaneamente cidadão e súbdito, mas não segundo o mesmo tipo de relação: é cidadão quando se eleva à vontade geral – que não é o somatório das vontades particulares, ou ‘vontade de todos’, mas a vontade moral comum que garante a coesão social e o convívio civil – e participa na elaboração das leis que regem o destino da comunidade; é súbdito enquanto indivíduo que obedece às leis porque possui uma vontade particular distinta da vontade geral a que nunca poderá renunciar completamente.

O Soberano não constitui, como em Hobbes, uma autoridade separada, mas sim a vontade geral que resulta da união de cada um com todos e dirige a força pública do Estado. O primeiro não tem nenhuma obrigação perante os súbditos porque a segunda tem como objectivo a realização do interesse comum. Em contrapartida, aquele poderá obrigá-los a obedecer-lhe, já que a vontade particular frequentemente leva-os a desfrutar tranquila-mente dos direitos de cidadania sem assumirem os respectivos deveres. Esta obrigação é condição necessária para a conservação da liberdade comum, porque se o indivíduo se empenha com todos para constituir uma comu-nidade não depende de ninguém, mas apenas das leis a cuja elaboração participa enquanto membro da assembleia soberana do povo.

As leis caracterizam-se sempre por se referirem a um objecto geral. Sendo expressões da vontade geral, não podem nunca ter em conta questões especí-ficas, nem as acções deste ou daquele indivíduo em particular. Isto significa que o Soberano, apesar de ser o poder supremo do Estado, não pode impor a um

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35 Ibidem, p. 71.

36 “Para que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que seja unânime, mas é indispensável que todos os votos sejam contados” (Ibidem, nota à p. 34).Frase importantíssima porque defende que a cidadania é indivisível, ou seja, que todos os cidadãos têm direito a voto – princípio básico da democracia – e que, por conseguinte, não pode existir distinção entre cidadãos activos, que exercem o sufrágio por desfrutarem de uma autonomia e racionalidade que lhes é conferida pelo direito de proprie-dade, e cidadãos passivos, que, dependendo da vontade de outrem, estão apenas submetidos ao ‘império da lei’ sem direito ao sufrágio. Esta é a posição do liberalismo kantiano (Veja-se: Kant, Emmanuel – Métaphysique des moeurs: Doctrine du Droit, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1979, pp. 196-97).

súbdito uma obrigação que não tenha simultaneamente imposto aos outros, pois a sua actividade tem como horizonte as leis que vinculam todos de modo igual. Torna-se então necessária a formação de um órgão que disponha da força pública do Estado para agir sobre os súbditos em conformidade com as directivas gerais e as regras fundamentais da convivência cívica estabelecidas pela assembleia do povo soberano. Este órgão é o Governo (‘Gouvernement’).

A tarefa do Governo consiste em mediar a relação entre o Soberano e os súbditos com vista à execução das leis e à manutenção da liberdade comum. A sua formação não resulta, como no Segundo discurso, de um contrato entre o povo e o chefe ou os chefes a quem ele se compromete a obedecer. Este não é mais do que um mandato através do qual a assembleia do povo soberano cede em comissão a simples funcionários o depósito da força pública do Estado. Estes funcioná-rios poderão ser destituídos sempre que não executem fielmente as deliberações comuns. A legitimidade de uma forma de governo não resultará do maior ou menor número de magistrados que exercem o poder executivo, mas de que o poder legislativo pertence à assembleia do povo soberano. Por isso, a República é a forma legítima de Governo, enquanto a sua essência é a Democracia, ou seja, a inalienável e indivisível soberania do povo.

O poder executivo do Governo é fruto da relação que se estabelece entre o poder legislativo da universalidade dos cidadãos reunidos e o conjunto disperso dos súbditos que obedecem às leis. O aumento da população e a expansão territorial do Estado implica necessariamente que o poder de deli-beração do cidadão nas decisões comuns diminui em proporção, apesar da sua condição de súbdito permanecer inalterável: cada um “suporta da mesma maneira todo o império das leis”35, mas o seu sufrágio que é, por assim dizer, a “medida” da sua liberdade política indivisível36 – tem uma influência cada vez menor na formulação daquelas. Nesta situação, o vínculo que mantém a associação tende a debilitar-se. É necessário então que o poder de intervenção

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do Governo aumente para manter a coesão social e evitar a desintegração da comunidade. Por outro lado, maior deverá ser também o poder do povo para evitar que o corpo dos magistrados a quem comissionou o depósito da força pública usurpe o exercício da sua autoridade soberana. Para evitá-lo é necessário que este esteja frequentemente reunido. A duração das suas assembleias periódicas provém de uma lei a que o Governo se deve subor-dinar porque o seu poder executivo é “suspenso” sempre que “o povo está legitimamente reunido como soberano”37. O aumento da extensão territo-rial do Estado faz com que ele se deva federar, ou seja, reunir-se por grupos e mudar frequentemente os depositários do poder executivo. Paralelamente, a soberania não pode nunca ser delegada, pois os deputados do povo não são os seus representantes, mas apenas os seus comissários38. Estes estarão submetidos ao controlo popular através do vínculo do mandato imperativo e, por conseguinte, poderão ser destituídos se contrariarem as decisões polí-ticas periodicamente “referendadas” ou “plebiscitadas” pelo povo soberano.

Rousseau apercebe-se, porém que o alargamento do vínculo social conduz ao debilitamento do corpo político, pelo que “um Estado pequeno é proporcionalmente mais forte do que um maior.”39 Isto significa que o indivíduo tende cada vez mais a ocupar-se dos seus negócios privados e, em consequência, a tornar-se cada vez menos empenhado no exercício activo da sua cidadania. Recusando a democracia representativa, Rousseau defende, no entanto, que a única forma democrática de governo é aquela em que o povo exerce directamente o poder legislativo. Mas esta forma de governo adapta-se apenas aos Estados pequenos e em que as diferen-ciações sociais e económicas sejam mínimas: “Quantas coisas difíceis não supõe este governo! Primeiro, um Estado muito pequeno, em que o povo seja fácil de convocar e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que afaste a multiplicidade de problemas e as discussões espinhosas; depois muita uniformidade nas classes e nas fortunas, pois sem ela, a igualdade

37 Ibidem, p. 108.

38 “O povo inglês julga ser livre, mas está muito enganado; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; logo que são eleitos, passa a ser escravo e nada é. Nos breves momentos em que goza de liberdade, faz tão mau uso dela, que bem merece perdê-la” (Ibidem, p. 111).

39 Ibidem, p. 55.

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40 Ibidem, p. 81.

41 Ibidem, p. 82

42 Rousseau, Jean-Jacques – “Fragments politiques” in Oeuvres Complètes, p. 485.

não poderia subsistir por muito tempo nos direitos e na autoridade; final-mente, pouco ou nenhum luxo, porque ou o luxo é efeito das riquezas ou torna-as necessárias; corrompe simultaneamente o rico e o pobre, um pela posse, e o outro pela cobiça; vende a pátria à indolência, à vaidade; rouba ao Estado todos os seus cidadãos, para os fazer escravos e todos da opinião.”40

Apesar de Rousseau considerar que “se existisse um povo de deuses, governar--se-ia democraticamente” e que “um governo tão perfeito não convém aos homens”41, a democracia pode ser interpretada como o ideal que deve orientar a actividade da única forma de governo legítimo. Democracia pressupõe antes de tudo um certo nível de igualdade social. Em segundo lugar, a Democracia associa-se a uma forma de liberdade como não dominação, ou seja, uma liber-dade que rejeita o mando e o predomínio de alguns sobre a maioria que nasce nas sociedades em que impera a desigualdade. Em terceiro lugar, a Democracia pressupõe o controlo dos governantes pelos governados. Neste sentido, se o Governo tem como objectivo “o cumprimento da vontade geral”, os meios para o realizar são fundamentalmente quatro: “1. fazer respeitar as leis, 2 defender a liberdade 3 manter os costumes 4 prover às necessidades públicas.”42

Entre as funções do Governo enunciadas pelo genebrino interessa-nos destacar as duas últimas. A manutenção dos costumes está associada à promoção da educação pública dos cidadãos. Sob o ponto de vista ético-político, esta deve disciplinar o ‘amor próprio’ que é, no fundo, a fonte subjectiva da competição agonística em que cada um visa superar o seu semelhante. Apesar de ser objectiva-mente impossível aboli-lo não porque o homem seja naturalmente egoísta, nem porque, como afirma Mariano Rajoy, seja determinado pela ‘inveja igualitária’ dos mais desfavorecidos relativamente aos que se encontram nos lugares de topo da ‘hierarquia social e política’, o amor próprio’ pode ser orientado para objec-tivos diferentes. Estes não serão a acumulação ilimitada de riquezas, nem a vaidade pueril da ostentação de bens de luxo, nem a vontade de poder e privilégios, mas os serviços que os indivíduos prestam ao Estado enquanto cidadãos civicamente empe-nhados. Mas isto significa que não será o mérito pessoal – conceito muito em voga actualmente, mas que acaba frequentemente por legitimar diferenciações entre os

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indivíduos que resultam de causas sociais objectivas, por exemplo, a desigualdade dos pontos de partida, que excluem muitos da oportunidade de manifestar os seus próprios méritos –, mas a estima pública o critério da avaliação dos talentos e das capacidades na República de Rousseau: ”Pertence à estima pública fazer a dife-rença entre os maus e as pessoas de bem; o magistrado não julga senão sobre o direito rigoroso; mas o povo é verdadeiramente juiz dos costumes; julga de uma maneira íntegra e esclarecida acerca deste ponto e, embora por vezes se abuse desse juízo, nunca se corrompe. Os lugares dos cidadãos devem ser portanto regulados não pelo mérito pessoal, o que redundaria em deixar ao magistrado uma aplicação quase arbitrária da lei, mas pelos serviços que prestam ao Estado e que são suscep-tíveis duma estimativa mais exacta.”43

Relativamente à satisfação das necessidades públicas, é necessário antes de tudo que se defina o direito de propriedade porque os bens dos particu-lares são a garantia mais segura dos seus compromissos futuros. Por outro lado, sempre que estes aceitam associar-se deverão suportar as despesas públicas da comunidade que formaram. Caso contrário, cada um desejará apenas desfrutar dos benefícios da associação sem empenhar os seus bens para mantê-la: “Se os bens não respondessem pelas pessoas nada seria tão fácil como iludir os próprios deveres e ludibriar as leis.”44

Como vimos anteriormente, Rousseau admite que a origem da proprie-dade da terra remonta ao direito do primeiro ocupante baseado no trabalho. No entanto considera, ao contrário de Locke e dos liberais da sua época, que nenhuma espécie de ‘engenhosidade’ e ‘espírito de iniciativa’ poderá tornar politicamente legítima a extensão de um direito de propriedade que atribuindo a alguns o ‘supérfluo’ despoja os restantes do socialmente indispensável para poderem ter uma existência condigna. Isto significa que a necessidade de segu-rança dos proprietários nunca poderá converter-se num critério que exclui os não proprietários da comunidade política. Com o contrato social o indivíduo renuncia à extensão ilimitada do seu direito de propriedade para transferi-lo para a comunidade, pois recebe uma parte do que, enquanto privado, renun-ciou em benefício de todos, condição necessária para a sua própria segurança.

43 Rousseau, Jean-Jacques – Sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, nota 17, p. 120. Veja-se também – Rousseau, Jean-Jacques – “Considerations sur le gouvernement de la Pologne” in Oeuvres Completes, pp. 1020-29.

44 Rousseau, Jean-Jacques – “Economia” in Enciclopedia o dizionario ragionato delle scienze, delle arti e dei mestieri 1751-1772, Feltrinelli, Milão, 1966, p. 269.

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Caberá ao poder soberano a tarefa de instituir as regras gerais para a redistri-buição dos bens fundiários, porque “o direito que cada particular tem sobre a sua terra, está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos”45. No entanto, esta não pode expropriar um particular, apesar de deter a propriedade eminente de todas as terras. Caberá então ao Governo a tarefa de conservar a igualdade relativa das fortunas privadas através de uma política económica e social que tenha como objectivo fundamental não a expropriação do excedente dos proprietários privados, mas a acumulação de imensos patri-mónios por parte de alguns destes à custa da prosperidade pública.

A primeira medida da política económica e social proposta por Rousseau consiste em estabelecer uma propriedade pública (‘domaine public’). Esta será constituída por terras, uma parte das quais será arrendada por um determinado número de anos a camponeses, enquanto a restante será desbravada através de prestações laborativas em benefício da comunidade. Consciente das inúmeras crises de carestia que avassalavam a sua época e provocavam inúmeras mortes por fome, Rousseau defende que devem ser instituídos celeiros públicos ou, pelo menos, registos públicos onde seja referido com exactidão a quantidade de víveres indispensável para satisfazer as necessidades comuns em todo o território do Estado. Com estes registos a administração pública poderá dirigir o seu fluxo das zonas onde existam excedentes para aquelas em que vigore a carestia. Apenas com este controlo público se poderá neutralizar que intermediários sem escrúpulos possam explorar as assimetrias na produção das diversas regiões do território, açambarcando a baixo preço os víveres nas que possuem excedentes para vendê--los a preços exorbitantes nas mais carenciadas, pois o “princípio fundamental da prosperidade da nação” é que “toda a gente viva e ninguém se enriqueça.”46

45 Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op. cit., p.29.

46 Rousseau, Jean-Jacques – “Project de constitution pour la Corse” in Oeuvres completes, p.994. Veja-se também “Economia”in Enciclopedia 1751-1772, pp. 271-72.A questão do abastecimento dos meios de subsistência coloca-se actualmente a nível mundial, e não apenas a nível local ou numa pequena ilha como a Córsega, pelo que as propostas de Rousseau sobre a regulamentação do fornecimento de víveres não perderam actualidade, mas devem ser contextualizadas. Assim, segundo a FAO, os preços reais dos alimentos dispararam entre 2000 e 2012. Este aumento foi alimentado pela especulação sobre as matérias-primas que atingiram o seu pico em 2010, com o aumento do preço do trigo em consequência da seca na Rússia, incitando este país a decretar um embargo das exportações deste cereal. Por conseguinte, é necessário regulamentar o comércio de víveres a nível global. Um dos primeiros passos desta regulamentação seria a criação de uma base de dados comum que registaria informações sobre as reservas alimen-tares a nível mundial. Poder-se-ia, depois, na base de um planeamento rigoroso redistribuir as subsistências de modo a satisfazer as necessidades das regiões mais carenciadas a partir das que possuíssem reservas. Uma coisa é certa: o comércio de produtos alimentares não pode estar subordinado à especulação e ao despotismo cego das leis do chamado ‘mercado livre’.É neste sentido que as propostas de Rousseau são actuais (Ver: Courrier International, 23.02.12, Paris, pp. 42-44).

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Assegurado o abastecimento dos meios de subsistência deve-se promover, em seguida, o desenvolvimento das indústrias mais indispensáveis. Para além das que transformam as matérias-primas agrícolas, é necessário proteger o património florestal fonte de madeira para a construção e o aquecimento doméstico, explorar, se existirem, as minas dos metais mais úteis, sobretudo o ferro, e implantar serrações e fundições perto dos rios e dos bosques, localidades mais favoráveis para a transformação das matérias--primas e para o transporte dos produtos manufacturados. Estas indústrias devem, porém, ser implantadas nas regiões menos férteis e menos povoadas do território. Caso contrário, apesar do abastecimento dos operários e dos artesãos se tornar mais fácil, a população laboriosa tenderá a concentrar--se em determinados pontos do território, enquanto outros se despovoam e desertificam. Com esta política industrial a necessidade de importar será reduzida a “algumas bagatelas” para cuja aquisição a administração pública autorizará uma exportação proporcionada dos produtos do território.47

Para além das medidas de política agrária e industrial, o Governo deve estabelecer um sistema de tributação dos rendimentos dos particulares. As contribuições fiscais suscitam, porém, um importante problema jurí-dico: se são voluntárias a sua receita é nula; se são arbitrárias põem em causa o legítimo direito de propriedade reconhecido pelo contrato social. Para resolver este dilema, Rousseau defende que todos os impostos sobre as pessoas devem ser instituídos apenas com o consenso expresso do povo. Este consenso não pode, porém, ser fruto da vontade de todos, ou seja, da mera soma aritmética das vontades particulares. Neste caso cada um tentará transferir para os outros a carga fiscal e, por conseguinte, a subtrair-se o mais possível ao pagamento dos impostos necessários para satisfazer as necessidades públicas. Este pagamento deve, pelo contrário basear-se, numa “vontade geral, manifestada através de uma pluralidade de votos, e de um acordo sobre uma tarifa proporcional que não deixe nada de arbi-trário ao imposto.” 48

Um outro princípio fundamental da tributação dos rendimentos é a equidade. Para Rousseau, os impostos directos devem ser repartidos não

47 Rousseau, Jean-Jacques – “Project de constitution pour la Corse” in Oeuvres Complètes, pp. 928-29.

48 Rousseau, Jean-Jacques – Discorso sull l’economia politica, op.cit., p. 274.

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apenas proporcionalmente aos bens possuídos pelos contribuintes, mas também relativamente às diferenças dos seus patrimónios e da sua posição social. Relativamente aos impostos indirectos, devem incidir não sobre os bens de primeira necessidade mas sobre os produtos de luxo, já que “enquanto existirem ricos, tentarão distinguir-se dos pobres, e para o Estado não poderá existir uma fonte de receitas menos onerosa e mais segura do que esta distinção.”49 O objectivo desta grande progressivi-dade do sistema tributário é evitar a formação de grandes disparidades na repartição dos rendimentos. Em caso contrário, o contrato social não poderá manter-se porque os benefícios que cada um recolheria da asso-ciação seriam extremamente desiguais. O rico poderá então subverter o contrato social e impor aos nãos possuidores um contrato privado que seria formulado deste modo: “«Vocês têm necessidade de mim, porque sou rico enquanto vocês são pobres: façamos pois um acordo entre nós: eu conceder-vos-ei a honra de servir-me na condição de que me dêem o pouco que vos resta pelo sacrifício que assumirei para comandar-vos».”50

O objectivo geral da política económica e social de Rousseau não é o de “destruir absolutamente a propriedade privada porque é impossível, mas de enquadrá-la nos limites mais restritos, de atribuir-lhe [uma] medida, uma regra, um freio que a contenha, que a dirija e que a mantenha subor-dinada ao bem público.”51 A política agrária e industrial visa restabelecer sob novas formas o ideal de autarcia vigente na segunda fase do estado de natureza em que vigoravam as comunidades de caçadores e pescadores, pois “quem depende dos outros e não encontre em si mesmo os próprios recursos está condenado a não ser livre”52. A política fiscal visa, por sua vez, redistribuir a riqueza social para evitar que “nenhum cidadão seja dema-siado opulento para poder comprar um outro, e nenhum demasiado pobre para ser obrigado a vender-se.”53 Ambas estão indissociavelmente ligadas à

49 Ibidem, p. 279.

50 Ibidem, p. 276.

51 Rousseau, Jean-Jacques – Project de constitution sur la Corse, op.cit., p. 931.

52 Ibidem, p. 903.

53 Rousseau, Jean-Jacques – Du contrat social (1eversion), op. cit., p. 332.

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política educativa cujo objectivo fundamental é promover o civismo dos cidadãos. Autarcia económica, igualdade, espírito público encontram a sua unidade e razão de ser no princípio em que se baseia o contrato social: que ninguém dependa de outro, mas apenas das leis que dá a si próprio enquanto membro activo do povo soberano.

Rousseau, nosso contemporâneoTrezentos anos depois da data do seu nascimento, Jean-Jacques Rousseau

é uma figura que não perdeu actualidade. Alguém disse que ‘os clássicos são eternos’. No caso de Jean-Jacques, ‘citoyen de Genéve’, mas também ‘citoyen du monde’, designação que não seria provavelmente do seu agrado, a sua actualidade começa, paradoxalmente, com as aporias e contradições ‘fecundas’ do seu pensamento político. Para Rousseau, autor do século XVIII, a socialização do homem é apenas política, mas não social. Neste sentido, é o primeiro autor a aperceber-se da contradição entre o ‘homem’, ou seja, o membro da sociedade civil que apenas tem em vista a realização do seu interesse privado, e o ‘citoyen’, membro emancipado de uma comu-nidade política que, no entanto, permanece ainda demasiado abstracta, tal como Marx demonstrou na sua Crítica da questão judaica. Se é verdade que os indivíduos acedem mediante o contrato social à sua ‘existência genérica’, para utilizar uma expressão cara ao Marx dos ‘escritos da juventude’, de cidadãos participantes nas deliberações públicas, também é verdade que enquanto indivíduos sociais, membros da ‘sociedade civil’ permanecem na condição de súbditos isolados, ou seja, de ‘burgueses’, que se limitam a obedecer às leis para poderem perseguir os seus interesses particulares.

Na comunidade ético-política de Rousseau falta um consenso que possa mediar a relação entre interesse geral e interesse particular, já que o Governo é uma comissão do poder soberano, não constituindo, em termos lógicos, um verdadeiro elemento mediador. Esta ‘ausência’ associa-se à tese de que o indivíduo privado, ou seja, o ‘bourgeois’, consegue elevar-se apenas à vontade geral através de um esforço ético de autoconsciência e virtude cívica que o leva a abstrair-se, mas não a superar verdadeiramente, o seu interesse particular ‘exclusivista’, completamente dependente das motivações de um amor-próprio centrado no ‘ter’, ou seja, na propriedade privada. No entanto, a ética não pode necessariamente ter a força vinculante necessária para obrigar cada

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54 A este propósito veja-se: Talmon, Jacob L. – Le origini della democrazia totalitária, Il Mulino, Bologna, 1967, pp. 57-72.

55 Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op.cit, p. 37.

56 “Nenhuma sociedade pode existir sem troca, nenhuma troca sem uma medida comum e nenhuma medida comum sem igualdade. Deste modo, todas as sociedades têm como primeira lei uma certa igualdade convencional, tanto dos homens como das coisas” (Rousseau, Jean-Jacques – Émile ou de l’éducation, Garnier-Flammarion, Paris, 1966, p. 245).

membro da associação a conformar a sua vontade particular à vontade geral. É necessário então limitar ou controlar o desenvolvimento de todas as ‘asso-ciações parciais’ que, separando cada vez mais a primeira da segunda, põe em causa a centralidade da liberdade política participativa em que se deve basear o predomínio da esfera pública sobre a esfera privada. Isto não significa, porém, que Rousseau, como defendem alguns, seja o precursor de uma ‘democracia totaltitária’54, pois, apesar de considerar que a pluralidade das “facções e asso-ciações parciais” enfraquece a vontade geral, acaba por concluir que “quando uma destas associações é tão grande que domina todas as outras, como resultado já não se obtém uma soma de pequenas diferenças, mas uma pequena dife-rença; nesse momento já não existe uma vontade geral, e a corrente dominante é uma opinião particular”55. A tese de Rousseau sobre as ‘associações parciais’ teve outro destino, pois inspirou a lei de Le Chapelier de 17 de Junho de 1791 que proibiu a formação dos sindicatos em França com o argumento de que eram os sucedâneos das ‘corporações’ do ‘Ancien Régime’. Estes apenas seriam legalizados no Segundo Império pela lei de 25 de Maio de 1864.

A razão para a ausência da mediação entre vontade geral e vontade parti-cular encontra-se não na esfera política, mas na esfera social. Filho da sua época, Rousseau considera que a ‘justiça comutativa’ baseada na troca dos produtos do trabalho dos particulares é a única relação que os membros da sociedade civil estabelecem entre si56, o que significa que lhe escapa totalmente a compreensão da natureza do trabalho assalariado moderno. A sua originalidade relativamente aos seus contemporâneos consiste em demonstrar que o desenvolvimento espontâneo do mercado e das trocas não pode conduzir à constituição de uma verdadeira comunidade polí-tica, mas apenas de uma mera sociedade jurídica de proprietários privados, como, de resto, defende Kant na sua “Doutrina do direito”, expoente do liberalismo do século XVIII com grandes repercussões na actualidade. Para evitar que estas diferenças ponham em causa a centralidade política da vontade geral, apenas lhe resta basear a sua república numa sociedade

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idealizada de pequenos produtores camponeses e artesãos, como defende no seu Projet de constitution pour la Corse, praticamente sem comércio externo e em que a maior parte das trocas e das contribuições fiscais se realiza in natura ou em trabalho sob o controlo da administração pública. Além disso, quando o interesse particular se começa a distanciar do interesse geral em consequência do desenvolvimento das trocas e da divisão do trabalho resta--lhe apenas a alternativa de apelar a uma recorrente lógica plebiscitária ou referendária e a um Legislador dotado da capacidade ‘sobre-humana’ de transformar indivíduos isolados e passivos politicamente em membros activos de uma comunidade ético-política plenamente integrada, bem como aos costumes como pressupostos pré-políticos da coesão social e da dedicação ao bem público57. Por fim, acaba por cair numa espécie de ‘utopia retrospectiva’ quando defende a instituição de uma ‘religião civil’ que possa suscitar aqueles “sentimentos de sociabilidade sem os quais não é possível ser-se bom cidadão nem súbdito fiel.”58

A contemporaneidade de Rousseau não é, porém, posta em causa com as aporias e contradições que acabámos de analisar. Paradoxalmente, ou talvez não, o seu alegado ‘pré-capitalismo’ pode servir de sistema de referência para uma crítica não retrospectiva do próprio capitalismo. Actualmente crescem como cogumelos os falsos apóstolos da ‘emancipação da socie-dade civil’ e do esplendor da globalização. Relativamente aos primeiros esta passagem do seu romance pedagógico, Émile, constitui ainda hoje uma boa resposta crítica: “Existe no estado civil uma igualdade de direito quimérica e vã, porque os meios destinados a conservá-la servem eles próprios para a destruir, e a força pública acrescentada ao mais forte para oprimir o mais débil rompe aquela espécie de equilíbrio que a natureza tinha estabelecido entre eles. Desta primeira contradição resultam todas as que se observam na ordem civil entre a aparência e a realidade. A multidão será sempre sacri-ficada a poucos e o interesse público ao interesse particular; estes nomes

57 “Aquele que ousa empreender a instituição de um povo, deve sentir-se capaz de modificar, por assim dizer, a natu-reza humana, de transformar cada indivíduo que, por si mesmo, é um todo perfeito e isolado, numa parte de um todo maior, do qual este indivíduo receba, de algum modo, a sua vida e o seu ser; de substituir por uma existência parcial e moral a existência física e independente que recebemos da natureza. É preciso, numa palavra, que retire do homem as forças que lhe são próprias, para lhe dar outras, que lhe são estranhas e que não possa usar sem o auxílio de outrem” (Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op. cit., p. 49.

58 Ibidem, p. 161.

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59 Rousseau, Jean-Jacques – Émile ou de l’éducation, op.cit., p. 307.

enganosos de justiça e de subordinação servirão sempre de instrumentos para a violência e de armas para a iniquidade; por conseguinte, as ordens distintas que se julgam úteis umas às outras são com efeito apenas úteis a elas próprias à custa das outras; pelo que se deve ajuizar que consideração lhes é devida segundo a justiça e a razão.”59

A ‘igualdade de direito quimérica e vã’ que vigora na sociedade civil ‘emancipada’ reduz-se a uma competição social de interesses pelo predo-mínio, poder e riqueza que favorece sempre os mais fortes a quem alguns atribuem ainda o ´mérito’ das suas ‘conquistas’ ou da sua ‘ascensão social’ que de nenhum modo seriam possíveis numa sociedade onde existisse uma verdadeira igualdade de oportunidades. O aprofundamento da desigualdade social, tema caro ao Rousseau do Segundo discurso, é típico de uma ‘sociedade de mercado’ protótipo da ‘sociedade civil emancipada’ dos ideólogos do conservadorismo neoliberal em que cresce cada vez mais a desigualdade das condições sociais ou dos pontos de partida que põe também em causa a versão ‘soft’ de alguns que vêem apenas no mérito pessoal a fonte da dife-renciação das capacidades intelectuais. É por demais evidente que as novas formas de darwinismo social, que Rousseau entrevia, devem ser combatidas com políticas públicas que visem ressuscitar o espírito cívico, promover a igualdade e premiar o mérito pessoal de modo justo e equitativo.

Rousseau é também precursor de uma crítica à tese de que o aumento das necessidades, dos desejos e dos meios para satisfazê-los é a fonte do progresso e prosperidade económicas. A interdependência que se estabelece entre a neces-sidade de cada um e a necessidade dos outros através da divisão do trabalho que contribui necessariamente para aumentar a produtividade e o crescimento económicos, suscita, por outro lado, uma competição de interesses em que cada um tenta distinguir-se do outro na esfera do ‘ter mais’, ‘possuir mais’, acumular ou ‘ostentar’ a sua ‘diferença’. Nunca como hoje vivemos num mundo caracte-rizado pela interdependência das necessidades, modos e meios de as satisfazer à escala global em consequência do aprofundamento da divisão internacional do trabalho e do alargamento de um mercado global em que participam países ‘emergentes’, como a China, a Índia e o Brasil. No entanto, também nunca como hoje nos encontramos como fazendo parte de um mundo cada vez mais desigual

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em que se aconselha os países emergentes a consumir freneticamente para alimentar o crescimento económico global que a Europa Ocidental e, em parte, os Estados Unidos já não conseguem garantir. Este modelo é completamente insustentável tanto em termos sociais como em termos ambientais. Em termos sociais, porque se alimenta das desigualdades crescentes a nível mundial que esti-mula os cidadãos dos países emergentes a trabalharem cada vez mais e a ritmos cada vez mais desenfreados para poderem sustentar o consumismo global e com a ascensão de um estrato de consumidores com poder de compra relativamente elevado a participarem, por via de uma emulação estimulada pela publicidade e o marketing globalizados, nesta corrida ao ‘binge shopping’, ou seja, numa espécie de ‘orgia aquisitiva’60. Em termos ambientais, a irracionalidade, o desperdício de recursos, as diversas formas de poluição que não param de crescer põem em causa a existência da ‘nossa casa comum’ que é o planeta terra. Com isto não se defende um retorno à autarcia económica, tal como Rousseau não defende um retorno ao estado de natureza, mas, como Dani Rodrik, uma “globalização inteligente, não uma globalização máxima”, ou seja, uma globalização mais regulamentada com o objectivo de preservar a democracia da ditadura dos mercados financeiros e de conjurar o cada vez mais o iminente desastre ambiental61.

O maior legado de Rousseau à posteridade é, sem dúvida, a formulação dos princípios e fundamentos da democracia. Apesar de recusar o mandato represen-tativo e defender a democracia directa e o mandato imperativo que, historicamente, não tiveram sucesso e acabaram por conduzir a regimes ditatoriais centrados nos autodesignados ‘comissários do povo’ ou numa autoproclamada ‘vanguarda revolu-cionária’62, o filósofo de Genebra enuncia os dois grandes princípios da democracia: uma concepção de liberdade como não dominação e a igualdade. O primeiro prin-cípio, analisado por um autor contemporâneo, o filósofo australiano Philip Pettit63, rejeita a tese liberal lockiana, mas também hobbesiana, assumida pelos neoliberistas

60 Veja-se a este propósito: Matthews Owen; Seno A. – “How Asia binge shoppers will help the West”, Newsweek, Dezembro 2010-Janeiro 2011, pp.54-57.

61 Ver Ortega, Andrés – “El trilema de la globalización”, El Pais: Babelia, Madrid, 25.02.12, p. 16. O artigo é uma recensão da tradução espanhola do livro de Dani Rodrik, La paradoja de la globalización. Democracia e el futuro de la economia mundial, Antoni Bosch Editor, Barcelona 2012. Rodrik é professor de Economia Política Internacional na Escola Kennedy de Governo da Universidade de Harvard.

62 Ver: Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, pp. 100-104.

63 Ver: Petitt, Philip – Repubblicanism, Oxford University Press, Oxford, 1997, pp. 51-89.

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contemporâneos de que a liberdade é um corolário do direito de propriedade e, em consequência, uma liberdade que exclui o outro e que se concretiza, na prática, através de uma competição agónica em que cada um tenta superar os demais. Pelo contrário, a liberdade entendida como não dominação centra-se na cooperação e rejeita a luta pelo predomínio que é a consequência necessária da outra forma de liberdade. Liberdade como não dominação significa que a minha liberdade não é um obstáculo à liberdade do outro, mas a condição da sua liberdade, já que só através da cooperação num processo ininterrupto de dar e receber, em que a experiência da minha liberdade se enriquece com a experiência da liberdade dos outros que, como eu, não visam o mando, o poder e a ascensão nas hierarquias estabelecidas poderei construir uma verdadeira comunidade de seres livres.

A nova forma de liberdade não é incompatível com a igualdade, mas, pelo contrário, tem nesta o seu complemento necessário. De facto, a democracia não é possível ou torna-se numa democracia mutilada, meramente formal ou conven-cional, quando a desigualdade social supera determinados limites. Neste contexto, renasce a competição pelo prestígio, poder, mando e acumulação de riquezas que destrói não apenas o convívio civil, mas também põe em causa a mera coexis-tência. É precisamente por isso que são plenamente actuais numa época obscura como a nossa em que vigora um ‘capitalismo de casino’ as medidas de política económica e social propostas por Rousseau: progressividade fiscal dos impostos directos em vez de competitividade fiscal, impostos indirectos sobre os bens de luxo, formação de uma propriedade pública de alguns meios de produção em vez da obsessão privatizadora que abrange hoje até recursos fundamentais como a água, ordenamento do território e formação de um espírito cívico através da promoção de uma educação pública acessível a todos. Dirão alguns que a ‘emanci-pação da sociedade civil’ da ‘tutela’ estatal e a globalização tornaram a necessidade de igualdade uma quimera. Agora, dizem estes, é necessário promover e reco-nhecer o mérito dos mais ‘capazes’, ou seja, precisamente dos que detêm mais poder e riqueza e que, portanto, coitados, são frequentemente acossados pela ‘inveja igualitária’ dos que pouco ou nada têm. No entanto, olhando para o actual estado de coisas poderá concluir-se que o predomínio destas teses está a conduzir o mundo para o desastre. A catástrofe iminente paira num horizonte cada vez mais sombrio. Faltam, porém, ainda os meios para a conjurá-la. A leitura critica e atenta de Rousseau, nosso contemporâneo, poderá ser uma pista para encontrar estes meios e construir uma ordem social e política mais livre, justa e humana.

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CULTURA

Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e CríticoFernando Pereira Marques

Entre 17 de Abril e 31 de Maio esteve aberta ao público na Biblioteca Nacional de Portugal uma exposição sobre a vida e a obra de Alfredo Margarido (“Um Pensador Livre e Crítico”), membro do corpo redactorial da “Finisterra” desde o primeiro número.

A exposição, comissariada pela Profª Isabel Castro Henriques, reunia manuscritos e correspondência que integram o espólio depositado no Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea dessa Biblioteca, exem-plares da vasta obra impressa – ficção, poesia, ensaio e muitas dezenas de traduções –, peças iconográficas, pinturas e aguarelas, entre outros materiais evocativos da vida rica e multifacetada de um intelectual que foi também destacado antifascista e anticolonialista.

Acompanhou esta exposição um catálogo bio-bibliográfico ricamente ilustrado, contendo um importante levantamento de manuscritos, de correspondência com nomes relevantes da nossa vida cultural, de artigos saídos em várias publicações periódicas, além de nele também se reunirem testemunhos sobre o homem e a obra de personalidades como Adelino Torres, António Branquinho Pequeno, Arnaldo Saraiva, Cruzeiro Seixas, Diogo Ramada Curto, Eugénio Lisboa, Inocência Mata, Daniel Lacerda, Vasco de Castro, Marc Ferro, Perfecto E. Cuadrado, Trinh Van Thao, entre outros.

Alfredo Augusto Margarido, como assinalámos nestas páginas em devido tempo, nasceu em Moimenta (Vinhais) em 5 de Fevereiro de 1928 e faleceu em Lisboa em Outubro de 2010. Após primeiros estudos direc-cionados para as artes viria, já no estrangeiro, a centrar a sua formação nas ciências sociais. Desde a sua juventude desenvolveu várias actividades – nomeadamente a de jornalista no “Diário Ilustrado” –, mas dedicaria o essencial da sua vida ao ensaísmo, à investigação – na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, antigo departamento da École Pratique – e à docência em várias universidades francesas e nacionais. Com

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uma breve passagem pelas então colónias portuguesas – seria expulso de Angola –, o seu envolvimento cívico anticolonialista – foi membro da Casa dos Estudantes do Império – esteve associado ao estudo das questões afri-canas, quer interessando-se pelas literaturas de expressão portuguesa, quer dedicando-se às problemáticas políticas, históricas, sociológicas e antro-pológicas desse continente.

Do mesmo modo desenvolveu uma activa militância contra o Estado Novo, numa primeira fase como membro do PCP, mais tarde, no exílio, próximo de outras correntes político-ideológicas. Além de, e como se disse, legar à cultura portuguesa uma obra poética, de ficcionista e tradutor, ensaística e até plástica, diversificada mas sempre marcada por uma inesgotável curiosidade, uma enorme criatividade e por uma atitude vincadamente livre e crítica. Consequentemente não enfeudada a grupos, correntes, ortodoxias e desbravadora de novos caminhos que interessa hoje ainda redescobrir e potenciar. As dezenas de artigos publicados nas páginas de praticamente todos os números da “Finisterra” são disto a ilustração.

ALFREDO MARGARIDO, UM PENSADOR LIVRE E CRÍTICO

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Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa:O Interrogador de Labirintos...*Guilherme d’Oliveira Martins

A atribuição do Prémio Pessoa a Eduardo Lourenço constitui um ato de elementar justiça. Estamos perante o pensador contemporâneo português de maior relevância. É o grande ensaísta da reflexão sobre a identidade portuguesa e a sua

projeção universal. É um homem da modernidade e um ensaísta de dimensão europeia e mundial, sobretudo por quanto escreveu sobre Fernando Pessoa (o rei da nossa Baviera), a revista Orpheu e sobre o lugar do modernismo português, visto no longo prazo da nossa cultura, desde Camões à Geração de Setenta, passando pelos românticos, Herculano e Garrett. Seguidor de Antero de Quental e dos seus amigos, representa hoje a síntese fecunda entre a crítica e a procura de fatores de mobilização da sociedade contra o torpor da indiferença. Num momento de crise, é importante reconhecer o papel de um cidadão e de um pensador que faz das ideias, da crítica e da interrogação dos mitos um sinal de esperança contra o fatalismo do atraso ou a tentação da desistência. Grande interrogador da Europa de hoje, Eduardo Lourenço apela à congregação de vontades e à argúcia da crítica exigente – contra a indiferença e pela criação cultural.

A constante presença de Eduardo Lourenço na reflexão sobre os acon-tecimentos, a literatura e a vida, sobre Portugal e a Europa tem constituído uma oportunidade para ultrapassarmos um atávico conformismo, uma tendência para nos ficarmos pela superfície das coisas e uma sistemática ilusão sobre os nossos males irremediáveis e sobre a fatalidade da história. Ainda que muitos se mantenham distraídos, o certo é que o ensaísta continua a interrogar-nos, com avanço sobre os acontecimentos e sobre o modo como poderemos responder aos misteriosos e exigentes estímulos perante os quais estamos confrontados. Em lugar de uma visão do País imaginário, encruzilhada de sonhos e de má-língua, Lourenço procura

* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

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EDUARDO LOURENÇO – PRÉMIO PESSOA: O INTERROGADOR DE LABIRINTOS

ser o camponês do Danúbio (ou melhor, de S. Pedro de Rio Seco), com os pés assentes na terra – a dizer que tudo depende do que somos e do que queremos ser. Trata-se de alertar (na senda de Unamuno) contra a loucura de D. Quixote, uma das causas da decadência dos povos peninsulares, e do seu pequeno émulo D. Sebastião. Quando muitos julgariam que havia razões para otimismo, com a Europa a dar a sensação de uma caminhada irreversível e imparável, Eduardo Lourenço surpreendeu-nos ao falar de uma Europa desencantada. A Europa era, de algum modo, vítima do seu próprio sucesso. Acabara a guerra fria, o império soviético desmoronara--se e havia novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A fragilidade europeia estava à vista, provindo quer da dificuldade interna de superar contradições antigas, quer de uma campanha externa persistente no sentido de não deixar o velho continente ser aquilo que desejaria ser.

Hoje percebemos por que motivo Eduardo Lourenço nos mostrou esse incómodo mas indispensável cartão amarelo. Afinal, não poderíamos esquecer que haveria um momento em que os egoísmos regressariam contra os ideais e contra os que consideram não haver vacinas contra a barbárie, salvo estarmos humanamente de sobreaviso. Por excesso de memória, a Europa é uma realidade indefinida e indefinível, difícil de se encontrar. “Só se podem sentir desencantados aqueles que sabendo a Europa a que pertencem frágil na cena do mundo, por incapacidade de se constituir com um mínimo de coerência política, constatam que quarenta anos de sonho europeu não fizeram da Europa um mito para a consciência do cidadão comum da Comunidade Europeia”, escreveu o Mestre em 1993. Agora, se uns pensam que estamos condenados coletivamente a uma existência medíocre, há razões para desejarmos uma autonomia, diremos estratégica, centrada na defesa dos valores e interesses comuns e na compreensão de que será mau para o mundo uma Europa dividida ou entretida com as vaidades nacionais, tendo do outro lado do Atlântico os Estados Unidos embalados na ilusão pueril de que poderão contrariar um movimento inexorável e imperial de decadência cultivando a cizânia e o método da sobranceria, contra a velha ideia de Kennedy e de Monnet da “parceria entre iguais”.

Com o fim do antigo mundo bipolar, tornámo-nos nómadas de uma história difícil de decifrar, em que os instrumentos se confundem perma-nentemente com os fins. Vem à memória a Cacânia de Robert Musil ou

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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

a recordação dos sonâmbulos de Hermann Broch. Viveremos um novo “apocalipse alegre”? Só a releitura dos mitos levar-nos-á à mobilização das vontades! A globalização, os meios de comunicação de massa e as sociedades em rede tornam essa sombra inquietante, porque se projeta globalmente. Os aprendizes de feiticeiro atiçam os fundamentalismos e o terror, sob pretexto de os combater…As nações fecham-se, em lugar de buscar novos modos de partilhar vontades e destinos… Como diria o ensaísta (“Portugal como Destino”,1999): “povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado ao modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição”.

Eduardo Lourenço é um pensador tantas vezes inesperado, uma vez que, a cada passo, usou a crítica para pôr em causa as tendências do momento. Assim foi quando escreveu a sua primeira «Heterodoxia» (1949), que se demarcou das principais correntes dominantes, dando, no entanto, sinais de compreensão relativamente às diferentes perspetivas em presença. Isso mesmo tem alimentado alguns equívocos (apenas para os menos atentos e incautos), estando mais do que demonstrada a impossibilidade de encerrar o pensamento do ensaísta em qualquer sistema ou em qualquer lógica defi-nível a priori. Heterodoxia era, para o nosso autor, «o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles é, na realidade, o melhor dos cami-nhos». Refletiu, desse modo, sobre autores que estavam à partida rotulados como suspeitos, tendo Lourenço feito a sua apreciação sob o viso crítico, sem qualquer preconceito e sempre com uma argúcia e uma inteligência que ultrapassavam a superfície e as aparências relativamente aos autores e obras analisados. Afinal, um heterodoxo deveria, para sê-lo, empenhar--se em ler o que estava escrito, procurando descobrir os significados, para além das ilusões. E o tempo veio a dar-lhe razão sobre os valores duráveis e sobre as manifestações sem espessura. Por isso, o forte sentido crítico permitiu-lhe ser um interrogador exigente dos mitos (a começar no sebas-tianismo), recusando a crença num qualquer destino independente da

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vontade e das circunstâncias do tempo.Homem generoso e disponível pôde, com essas qualidades, tornar-

-se um dos melhores intérpretes da identidade nacional. E Vasco Graça Moura tem razão ao dizer que o seu exemplo e a sua qualidade não são circunstanciais e reportam-se ao largo prazo, o que é tanto mais de realçar quanto é certo que a cultura portuguesa tem muitos séculos e a referência de Lourenço projeta-se muito para além dos horizontes próximos. E se devemos referir essa capacidade singularíssima relativamente à procura da identidade portuguesa, temos de acrescentar que procurou sempre vê-la com projeção universal. Tendo-se negado a ser «estrangeirado» e tendendo a ver de fora com olhos de dentro, a verdade é que, para ele, a nossa identidade apenas faz sentido desde de que aberta e complexa. No fundo, para o português uma identidade confinada não faz sentido. Ganhamos sempre que recebemos e dessa hospitalidade resultam pereni-dade e riqueza. Por isso mesmo, Eduardo Lourenço compreendeu melhor do que ninguém que em 1578-80 a figura central não foi D. Sebastião, mas Camões (com toda a sua riqueza épica e lírica), e que, ao modo de Vieira, o Desejado nunca poderia ser um morto ou um vencido, mas teria de ser alguém vivo – e, mais do que D. João IV, deveria ser o povo heterogéneo e difícil de conhecer e interpretar, que deseja viver livre, com apego à viagem pelas Sete Partidas (talvez uma nova diáspora), à imagem e semelhança do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra (exemplo europeu e universalista), com uma alma pelo mundo repartida. Assim, a heterodoxia inconformista do escritor (discípulo à sua maneira, mas indiscutível, de Montaigne) considera a saudade fora da clausura do saudosismo, partindo das raízes antigas (D. Duarte, Nunes do Leão, Francisco Manuel e os românticos) e de Pascoaes (cujo talento enaltece) e chegando à fulgurante heteronomia de Fernando Pessoa. Não por acaso, o ensaísta afirmou, ao saber que o Prémio Pessoa lhe tinha sido atribuído, que aquele que estaria satisfeito (porventura mais do que ele próprio), seria Alberto Caeiro. A ironia é significativa, já que é um fantasma puro que vem à memória. E quando, há dias, se confessou convertido ao fado, através do talento de Amália (num mano-a-mano no Museu do dito Fado) percebeu-se muito bem que ali estava o incansável perscrutador de mitos e de destinos, interrogador de labirintos, personalidade fascinante atenta a tudo (de Clint Eastwood a

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Cristiano Ronaldo e de Cláudia Cardinale a Cristina Branco), para quem a sua filomitia obriga, antes de tudo, à compreensão das pessoas comuns, do vulgo, na busca da sublimidade, de forma a dar à vida um tom colo-rido que valha realmente a pena. Enquanto Garrett falou da saudade como «gosto amargo dos infelizes», Lourenço preferiu a fórmula «gosto de mel e lágrimas», que resume bem como os mitos não são coisas abstratas, mas têm a ver com a compreensão de dois Países que sempre somos e seremos, o profundo e conservador, e o de horizontes abertos, amante do desco-nhecido e diferente. E não falou o ensaísta das duas razões europeias em «Nós e a Europa»? De facto, encontramos em si a costela de Miguel de Unamuno e o seu sentimento trágico da vida (Salamanca, ali tão perto de S. Pedro de Rio Seco), mas também a indelével atração pelo cosmopolitismo de Ortega y Gasset, com um europeísmo de liberdade e emancipação.

Eduardo Lourenço é um ensaísta profundamente português. Foi-o nos anos sessenta ao compreender que a liberdade teria de ser aberta e heterodoxa – e ao entender que Fernando Pessoa era muito mais do que uma leitura situada da «Mensagem». Logo em 1974, esteve ciente das ilusões que se alimentavam ou das cristalizações simétricas, procurando compreender os vários lados do problema, na longa duração, como o fez magistralmente na «Raiz e Utopia» (de Helena Vaz da Silva) no ensaio «Psicanálise Mítica do Destino Português». E se compreendeu muito cedo a importância da opção europeia, foi também o primeiro a chamar a atenção (com autoridade e conhecimento de causa) para os erros e para os perigos da «Europa Desencantada» (obra com duas edições, em 1993, aumentada em 2000) – sem esquecer que a Europa é uma saída, desde que não exclusiva nem acrítica e desde que não se encerre na ilusão burocrá-tica do sistema perfeito. Afinal, a reflexão sobre as próprias causas antigas das decadências peninsulares (a partir da análise emblemática de Antero de Quental) tem de ser lembrada no debate europeu, para que a Europa não se torne periférica e irrelevante. «Sob a aparência de drama (diz E. Lourenço), as peripécias da construção europeia não relevam desse género literário, mas da tragédia. Tragédia quando se foi uma outra Europa, centro do mundo, e já não se é. A Europa não está ainda definitivamente fora da história – quer dizer, da vontade e do projeto que a conduz – mas está-lo-á se não tiver configuração política e entidade económica, administrativa, a

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EDUARDO LOURENÇO – PRÉMIO PESSOA: O INTERROGADOR DE LABIRINTOS

que chamamos União Europeia. Para não ficar, de todo à margem dela se travou e trava a batalha pela Europa que possivelmente é mais do que isso. Começou em Roma, como era simbolicamente óbvio. Esperemos que não se desintegre, sob modo festivo, na Cidade das Flores»… O texto é de 1999 e mutatis mutandis poderia ter sido escrito agora.

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Eduardo Lourenço e João Martins Pereira:Conversa com Abril em FundoManuela Cruzeiro

T alvez uma conversa improvável, dadas as óbvias diferenças entre os dois, a começar pelo grau de notoriedade de cada um deles e a acabar na aparente distância que separa os territórios das suas reflexões. Mas sem dúvida um diálogo riquíssimo que

instaura um novo e compósito campo de indagação, cuja exploração revela insuspeitadas zonas de confluência que, basicamente, se caracterizam por um hibridismo metodológico antidogmático e criativo, ao serviço de uma comum e genuína exigência em questionar o imaginário cultural português, as imagens contrastantes que vem produzindo e a consequente necessidade da produção de outras mais adequadas a um autoconhecimento mobili-zador e futurante.

Instalado há quase setenta anos na nossa paisagem cultural, Eduardo Lourenço é, sem dúvida, o nosso mais consagrado pensador vivo, de tal forma se sucedem as distinções e prémios nacionais e estrangeiros de que tem sido alvo. Contudo, esta justa consagração nem sempre se dá pelas melhores razões. Consagra-se o autor, mas nem sempre se consagra com igual vigor e entusiasmo a obra. Paradoxalmente, a enorme visibilidade de EL tem convivido com uma quase invisibilidade da sua obra, para o que contribui a incompreensível discrição com que a crítica recebe cada título que dá à estampa, numa média de um por ano. Nasce assim a ilusão de que se conhece um pensamento porque se conhece o autor, quer através das inúmeras entrevistas, artigos de opinião, aparições televisivas, quer através de excertos das suas obras, citações conjunturais ou de conveniência. Não faltam exemplos desta versão instrumental nos mais variados campos do saber, o que ajuda a fixar versões vulgarizadas e pobres, quando não total-mente erróneas do pensamento do nosso filósofo. Devemos ainda a EL a distinção mais desejada e certamente a mais eficaz e perene: a da leitura em extensão e profundidade da sua obra, a descoberta do carácter original e até subversivo de muitas das suas teses, o diálogo criativo e interpelante

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em vez do silêncio reverente, ou da paráfrase acrítica. Devemos-lho em duplicado, a ele que tem sido o mais apaixonado e generoso leitor das pala-vras dos outros, descobrindo-se e descobrindo-nos sempre e tão somente através dessas palavras, que são afinal a única actividade humana criadora de sentido.

Há certamente excepções, gratas e surpreendentes excepções, de autores que, desafiados a pensar com ele ou contra ele a realidade portuguesa, lançam nova luz sobre essa temática fascinante e inesgotável. É o caso de João Martins Pereira, engenheiro de formação, economista, jornalista, intelectual injustamente obscuro, em parte por culpa própria (dada a sua radical aversão ao estrelato) mas também por culpa alheia (exemplo típico do silenciamento das alternativas ao pensamento único), autor de um livro cujo título enigmático No Reino dos Falsos Avestruzes (1983) adensa o mistério e afasta os leitores mais apressados. E mesmo o subtítulo, Um olhar sobre a política, parecendo clarificador, acaba por não ser fiel à revelação que nos espera desde as primeiras páginas: um riquíssimo campo de abordagens temáticas e disciplinares, todas elas confluindo nesse imenso filão que genericamente designamos por imaginário nacional, seus mitos, símbolos e imagens, ciclicamente revisitados em períodos críticos da nossa história. O cenário e horizonte das suas reflexões é o Portugal pós-revolucionário, a obra é uma lúcida e implacável auto-reflexão geracional e pessoal. Mas é também um amargo e desencantado retrato do país, um misto de panfleto, artigo de jornal e ensaio, breve mas rigoroso, directo mas reflexivo, conciso mas profundo, satírico e cáustico mas muito sério.

O diagnóstico que nove anos passados sobre o 25 de Abril o autor nos oferece é, nas suas linhas essenciais, muito próximo daquele que, decor-ridos apenas quatro anos sobre essa data charneira da nossa história, já tinha feito EL nesse não menos fascinante Labirinto da Saudade (1978).

Partindo ambos da ideia central de que o 25 de Abril, para além das grandes transformações políticas sociais e económicas, foi a última grande oportunidade de produção de um novo discurso identitário, de uma nova auto-imagem nacional, ambos concluem que, mais uma vez, falhámos. É que uma revolução parte, é movida e reflecte sempre uma leitura imagi-nária da sociedade, e o seu êxito ou fracasso está seguramente ligado à capacidade de impor esse imaginário e, mais do que isso, de o prolongar e

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enraizar na nova colectividade dela emergente. Ora o acentuado empobre-cimento simbólico e mitológico que afecta hoje a sociedade portuguesa, e que se manifestou logo após os breves meses do episódio revolucionário, é o mais inequívoco sinal das dificuldades em impor um novo projecto e imagem colectivos e, consequentemente, de uma profunda crise de iden-tidade. Assim, num momento de viragem, de busca e de convulsão, num momento em que a revolução encerrava um determinado espaço simbó-lico (Estado Novo, Fascismo, Salazarismo, Colonialismo) e abria outro tendencialmente novo (Revolução, Liberdade, Socialismo, Democracia), isto é, em que a revolução destruíra as bases da mitologia cultural que sustentava o Estado Novo, necessário se tornava o aparecimento de uma contra-mitologia que contestasse com igual vigor e convicção o sistema de valores que davam corpo à eficaz mitologia do nacional-catolicismo. Porém, essa contra-mitologia que devia prolongar e aprofundar a já forte mitologia de oposição desenvolvida sobretudo a partir dos anos 50 do século passado, não teve nos anos subsequentes ao 25 de Abril a expressão que seria de prever e desejar.

A revolução não foi, portanto, capaz de criar, ou melhor, de recuperar e revitalizar um vínculo congregador e mobilizador através de um verdadeiro imaginário revolucionário, afinal de uma re-semantização do próprio conceito de portugalidade e de todo o leque de outros dele derivados. Tratava-se pois de questionar um imaginário nacionalista construído ao longo de quase meio século pelo regime da ditadura e que vivia exclusiva-mente das sua dimensão ultramarina. Ou seja, de encarar a realidade de um país que desde o século XV vivera ausente de si mesmo, embalado nas velhas glórias dos descobrimentos e das conquistas, mas que de tudo isso não soube nunca tirar a inevitável lição histórica.

EL não tem dúvidas: ‘Desde o início, a revolução contém uma falha que, esperamo-lo, não lhe seja fatal. Hipnotizada pelo puro combate ideo-lógico, descurou em excesso o sentimento nacional (...) A ideia de Nação e o ‘nacionalismo’ no seu sentido de radicação e consubstanciação com o interesse nacional, não só não são antagónicos do interesse revolucionário, como lhe comunicam a sua força afectiva’ (Lourenço, 1978:63).

Falhámos, pois. Não rompemos com velhas construções imaginárias as quais, em vez de autoconhecimento são antes formas de perpetuação

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de imagens distorcidas e por vezes falsas sobre a realidade nacional, o seu passado e o seu lugar no mundo de hoje. Sucumbimos ao peso de velhas e poderosas imagens, mais bloqueadoras do que libertadoras. O país com excesso de passado não soube construir o futuro, ou pelo menos um futuro que não fosse uma reciclagem narcísica e devoradora da velha nação imperial e conquistadora. É a tão falada ‘imagologia nacional’ de que EL faz o mais brilhante e certeiro diagnóstico, arriscando com a sua finíssima ironia (as mais das vezes tão mal compreendida) a terapêutica da psicanálise colectiva.

João Martins Pereira foi, parece-me, um dos muitos que leu com indis-farçável admiração e fascínio esse tão aclamado Labirinto da Saudade, título por demais sugestivo (qual o português que não gosta de ouvir falar de saudade?) e que ostentava o intrigante subtítulo Psicanálise Mítica do Destino Português, mas foi dos poucos que com ele dialogou num confronto corpo a corpo com aquele que considera ‘o mais brilhante livro sobre a sociedade portuguesa publicado nos últimos anos’ (Pereira, 1983:16).

Incomodou-o visivelmente (e creio que um tanto precipitadamente, se atendermos à tal ironia lourenceana…) a sugestão de regressarmos todos ao divã de Freud.... Para ele, e de forma muito abreviada, entre a psicaná-lise e a sociologia, antes a sociologia, e entre a sociologia e a história, antes a história. Mas incomodou-o sobretudo a ideia, repetida até à exaustão por lourenceanos de última hora, da nossa ‘originalização’ como país de forte mitologia nacional, senhor de uma hiper-identidade, trincheira inexpug-nável contra todos os acidentes da história, receita segura e quase milagrosa contra todos os traiçoeiros golpes do destino. Diremos então que JMP partilha da perplexidade de muitos outros autores que tomaram demasiada à letra esse desafio para uma experiência de psicanálise colectiva. E, apesar do indiscutível prazer intelectual que ela pode proporcionar, chama sobre-tudo a atenção para os riscos de um permanente oscilar entre patológico e exaltante (a famosa esquizofrenia lourenceana) que a leitura da história através dessa grelha de análise acaba por consagrar. O perigo está, justa-mente, na atitude profundamente pessimista veiculada pela ideia-mestra de que ‘a pátria está doente’.

Estamos portanto numa primeira confrontação entre os dois, atenu-ável contudo, se recordarmos aqui que todo o esforço de Lourenço vai no

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sentido de apontar a necessidade de fugir a qualquer fatalidade biológica ou psicológica, mesmo se o levantamento de longo alcance que vem fazendo da nossa realidade cultural ao longo dos séculos, pareça em grande medida autorizar uma leitura de pendor decadentista, na senda aliás de uma corrente dominante, sobretudo a partir do sec. XIX, que olha a cultura portuguesa numa perspectiva de forte acento de frustração, melancolia e até de tragédia. Mas, como não estamos no reino da necessidade cultural, antes da criação cultural, a invenção pode sempre substituir a repetição, a motivação a causa-lidade linear. O 25 de Abril de 1974 foi um desses momentos em que o ciclo bipolar da exaltação/depressão poderia ser invertido.

Acresce ainda, e sobretudo, que a perspectiva de EL está muito longe de ser a do pensador desencantado e céptico, sem lugar para a esperança, o sonho ou a utopia, sugerido por uma leitura apressada desse quadro patoló-gico da esquizofrenia diagnosticado no Labirinto da Saudade. Como afirma M. Manuel Baptista: ‘se a teoria freudiana da ilusão como patologia do imagi-nário comanda toda a primeira parte do ensaio lourenceano, numa segunda parte do que se trata é de uma específica fenomenologia do imaginário, como capacidade de fecundar e ultrapassar um racionalismo ressequido que Lourenço considera fortemente enraizado na cultura portuguesa (Baptista, 2003:325). Nesse sentido, ele tem sido, e foi-o também no cenário específico do Portugal pós-Abril, o nosso verdadeiro (porventura único) mitólogo, se por tal entendermos, na esteira de Gilbert Durand, aquele que não se ficando pela mera exegese mítica (miticiano) submete em permanência os relatos míticos a uma crítica do seu sentido e significação. Aquele cuja função consiste em desmistificar o símbolo e simultaneamente remitificá-lo, isto é, extrair das contingências da biografia e da história a intenção simbolista de transcender a história. De forma solitária e até incompreendida, Lourenço vem, assim, fazendo o que chama uma revisi-tação permanente da nossa mitologia, não em sentido celebratório, mas em sentido da crítica e da denúncia dos constantes processos de alienação do simbólico, com vista à sua reconversão em força de libertação e de futuro. O que afinal o mobiliza é justamente o desafio de novos sentidos, na convicção de que nenhuma narrativa mitológica esgota a riqueza semântica que permite renovações constantes, em contextos sociais variáveis.

Portanto, a debilidade do 25 de Abril está para o autor relacionada com

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a falta de imaginário, ou melhor com uma certa patologia do imaginário que, para Lourenço não é a simples capacidade de recordar ou lembrar, e nem sequer a transfiguração ou reconfiguração do real. É muito mais do que isso. Tem uma consistência ontológica, instaura uma realidade dotada de um poder de significação e uma energia de transformação. Por isso ele fala de um ‘incómodo silêncio’ que se instalou na sociedade portuguesa. ‘Ao contrário do que se passou no começo do século XIX, na queda da monarquia em 1910 ou até no advento do regime de Salazar em 1933, o 25 de Abril, chegado de surpresa, não conseguiu ainda inspirar uma verda-deira imagem de marca politica, ideológica e cultural. A invenção de tal imagem era justamente a tarefa mais urgente da intelligentzia libertada pela revolução. Só ela teria permitido articular a vontade de mudança e de ruptura institucional expressa pelo 25 de Abril com a experiência média do cidadão português, a sua herança moral, os seus mitos, as suas mais legítimas esperanças’ (Lourenço, 1985:31-R).

De outra forma de silêncio nos fala JMP. A falta de uma mitologia revolucionária forte converte-se segundo ele, numa desesperada (e deses-perante) sucessão de pequenos mitos, numa multiplicação desgarrada, desconexa e frágil, sem o potencial de consenso e mobilização dos grandes desígnios nacionais. Procedendo com uma ‘quase heróica perseverança’ ao mapeamento exaustivo dos principais núcleos mitológicos da sociedade pós--revolução – iniciativa privada, libertação da sociedade civil, constituição, ou melhor revisão constitucional, CEE – o autor conclui que um grande desígnio é um sonho impossível para uma burguesia sem verdadeiro poder económico, com fraca organicidade social, com partidos que funcionam como agências de colocação e, sobretudo, incapazes de ultrapassar o trauma mais recente e violento do seu próprio nascimento revolucionário.

De duas impotências, interna e externa, se faz, na opinião do autor, a impotência maior da democracia pós-Abril e dos seus pequenos mitos conjunturais: internamente perdem no confronto com os meteóricos mas intensos mitos revolucionários, responsáveis por imprevisíveis ‘reca-ídas’. Externamente, perdem no confronto com o modelo das tradicionais burguesias europeias, das quais são pouco mais do que baratas imita-ções. Acontece que, mais do que sobrepostas, estas duas impotências se

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entrelaçam numa complexa relação de reciprocidade: ‘As mitologias tradi-cionais das burguesias europeias vêem-se aqui sobredeterminadas por fantasmas, traumas, complexos vários que as impedem de sedimentar’ (Pereira, 1983:26).

Estas duas ordens de factores originam um discurso legitimador comple-xado e ressentido, construído muito mais pela negativa do que pela positiva. Na ausência de uma grande causa mobilizadora nacional que seria, por exemplo, o combate pela liberdade contra a ditadura fascista, a nova demo-cracia parece preencher esse vazio com um outro combate que é ao mesmo tempo a sua certidão de nascimento e o seu manual de sobrevivência: o combate contra a memória de 1974-75, obsessão e trauma da nova classe politica. Ou seja: a democracia, que na Europa nasceu como resposta a uma necessidade orgânica de desenvolvimento económico capitalista, aparece entre nós apenas como necessidade de afirmação de uma classe política que, historicamente inconsistente e incapaz de um projecto próprio, construiu a sua própria mitologia à medida do fantasma que queria exorcizar: o fantasma de revolução: ‘A política portuguesa tem sido um mero exorcismo desti-nado a libertar-nos dos demónios e maldições que nos possuíram nesses anos descabelados e os sacrifícios que regularmente nos são pedidos, tomam o ar de expiação das terríveis culpas que nos são imputadas por termos posto este país no caos e na anarquia’ (Pereira, 1983:49).

Esta marca genética retira potencial simbólico e conteúdo substancial ao grande mito estrutural da democracia, o único com potencialidades de servir de símbolo indiscutível da nova sociedade. Mas a sua fragilidade obriga a que constantemente se adjective aquilo que deveria ser em si um valor abso-luto. Por isso, nota com ironia JMP, não temos em Portugal democracia, mas antes ordem democrática, instituições democráticas, partidos democráticos, soluções demo-cráticas, defesa da democracia, democraticidade das decisões. Uma sequência retórica que invade o discurso político, numa esforçada e tardia descoberta daquilo que outros países já haviam conquistado há muito e que viviam a um nível de evidência e organicidade que dispensava a necessidade de adjectivar aquilo que era a substância da sua prática social e que chamavam tão simplesmente sistema democrático. Sem substância, a política fica confinada à sua versão mínima, a proclamada ‘normalidade democrática’ reduzida à autoprocla-mação das virtudes mais formais do que substanciais do jogo partidário. O

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que não chega, contudo, para alimentar e mobilizar energias colectivas como demonstram as sucessivas crises que a nossa democracia tem atravessado e sobretudo os elevados défices democráticos que persistem (e tragicamente se aprofundam) na nossa sociedade actual.

Assiste-se, então, ao recurso a um segundo grupo de mitos, os mitos de salvação: figuras ou ideias que ultrapassam o formalismo abstracto e se corporizam em algo mais concreto e próximo. O maior potencial mobi-lizador é, no entanto, mais aparente do que real e o seu aparecimento é, já por si, um sinal da ‘autodescrença dos dirigentes das famosas insti-tuições democráticas na sua capacidade de gerar nesse quadro fórmulas capazes de se imporem pelo jogo simultâneo da autoridade e do consenso’ (Pereira,1983:51/52). De que falam, então, os mitos de salvação? Mais do que da possibilidade real de resolver a crise estrutural de uma sociedade, falam ainda e sempre da imaturidade das suas forças políticas e traduzem a falsa solução de uma fuga para a frente, através de uma figura carismá-tica, investida de excepcionais poderes de mobilização e unificação. Figuras como Ramalho Eanes ou Cavaco Silva são dois exemplos analisados por JMP como típicas construções que representam exactamente o regresso do país à ordem e à disciplina, fortemente abaladas com o episódio revolucionário. Descontadas as diferenças, pessoais e de época, ambos encarnam o retrato--robot do salvador ou do regenerador a que ciclicamente recorremos numa reciclagem ocasional e preguiçosa, directamente proporcional à ancestral impossibilidade de contrapor a esse resignado demissionismo (que outros chamarão destino ou desígnio...) uma ideia para Portugal.

Um único mito parece aos dois suficientemente forte e consistente para substituir quer as poderosas velhas mitologias de Lourenço, quer os pequenos núcleos de um débil imaginário democrático de Martins Pereira: o mito da Europa.

Ambos concordam que a Europa foi, pelo menos até a presente crise, o único mito da democracia pós-Abril que poderia encerrar possibilidades de mobilizar a vontade nacional e sacudir a indolente apatia e distracção em que a sociedade portuguesa caiu após o exaltante episódio revolucio-nário de 1974. É, aliás, assim que os agentes políticos com responsabilidade desde o ano de 1976 até à providencial data de 1986 o apresentavam:

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como verdadeiro desígnio nacional capaz de preencher finalmente o vazio deixado pelo fim do chamado ciclo do império, substituindo-o pelo ciclo europeu. Num primeiro momento de euforia o projecto não deixou de mobilizar energias, face ao desafio europeu e multiplicaram-se os estudos, seminários, conferências e até embaixadas culturais com vista a convencer os portugueses, por um lado, e a Comunidade Europeia, por outro, das vantagens mútuas da nossa integração no velho continente. Sobretudo Mário Soares, seu paladino desde a primeira hora, sempre viu nele, com assinalável antecedência em relação aos seus pares, o verdadeiro seguro de vida da democracia portuguesa.

Não cabe aqui o balanço de séculos de uma relação complexa de Portugal com a Europa, frequentemente revisitada por estudiosos, comentadores e políticos nem sempre coincidentes, é certo, conforme se acentua a impor-tância dos factores económicos, políticos ou culturais, na construção dessa nebulosa que continua a ser para o português médio a Europa. Nebulosa que dificulta a análise sectorial de cada um desses factores e da sua contri-buição para a vitalidade do mito com mais duração, porventura o único que mereça esse nome, do pós 25 de Abril. EL foi de novo (tem sido) um exímio decifrador dessa complexa teia de sinais contrários. Resgatando a ideia de Europa, quer do excessivo rigor teórico da reflexão filosófica, quer da pragmática aridez das análises económicas, o autor reintegra-a na corrente de reflexão ancestral sobre a nossa identidade, confrontando-a com a vasta galeria de imagens idealizadas que, ao longo da história ilus-traram exemplarmente uma estranha relação conflituosa e ambígua, de atracção e repulsa, ou de ressentimento e fascínio. Partindo da ideia de que perguntar pela Europa é perguntar pelo modo como em cada país se viveu e se vive essa complexa realidade cultural, Lourenço fala no nosso caso concreto de duas razões: ‘Em geral, em termos quase físicos, essa curiosa maneira de nos separarmos da Europa, ou de considerar que a autêntica Europa está separada de nós, traduz-se pela consabida distinção entre Europa para lá dos Pirinéus e Europa aquém dos Pirinéus’ (Lourenço, 1988:51). Parece então que a original (excêntrica em todos os sentidos) maneira de nos relacionarmos com a Europa, tem sido a de uma sepa-ração. Só assim, aliás, faz sentido a retórica proclamação da nossa entrada na Europa. Como muito bem sublinha o autor, se entrámos é porque não

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estávamos lá, ou então, estávamos como se não estivéssemos, numa posição que sugere dependência, marginalidade, exílio, distanciamento, inferio-ridade. Porém, um original jogo de luz e sombras transforma cada uma destas formas de estar no seu reverso. Tudo somado, o mórbido complexo de inferioridade a que este quadro depressivo nos conduziria, reconverte--se constantemente num contrário complexo de superioridade.

Em nenhum momento deste diálogo improvável os dois autores esti-veram mais próximos. Apresentado por JMP como verdadeiro mito de salvação, o mito da Europa ganhou a todos em consistência e longevidade. Assistimos agora à sua trágica agonia, cumprindo aliás os piores prognós-ticos do autor que, sem poder prever a dimensão da crise em que mergulha o velho continente, antevia, contudo, um prazo de validade para a forma como a democracia pós/Abril o viveu: mais feito de miríficas promessas do que de efectivo investimento. Com o nosso proverbial irrealismo, envolvemos o objectivo mais prosaico da ajuda económica, de que preci-sávamos como de pão para a boca (já assim era nos longínquos anos 80...) em solenes proclamações da nossa identidade europeia, em nome de um passado comum, e mesmo de uma dívida histórica da Europa para com este pequeno/grande país. Sobrou-nos em retórica o que faltou em trabalho efectivo, e tudo começou a piorar quando se percebeu que ‘a Comunidade Europeia não era uma instituição de caridade, nem o Eldorado. Que era preciso estudar e preparar dossiês, e que a grande ignorância em que se mantinha não apenas o povo em geral, mas até os empresários e gover-nantes sobre tão áridas matérias, operaria mais uma vez a fatalidade de nos converter de mensageiros do futuro, em suas vítimas’ (Pereira, 1983:56).

Em conclusão: também em relação à Europa cumprimos com uma cons-tância desesperante o ciclo labiríntico das ‘polarizações esquizofrénicas’ em que parece enredar-se desde sempre o nosso comportamento colectivo. Oscilando entre o papel de parente pobre e o de parente rico, hesitando entre o sentimento de passiva submissão por nos sabermos frágeis econó-mica, técnica e cientificamente, e o de altiva superioridade por um passado único não comparável com o de qualquer outro parceiro europeu, fomos incapazes de olhar com realismo o presente e de investir nele a energia e ambição necessária. Uma vez mais, procurámos o caminho mais curto e de resultados mais rápidos, que é a salvação exterior. Ora esta salvação vinda

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de fora, mexeu pouco com a estrutura arcaizante da sociedade portuguesa, sem autonomia, sem hábitos de intervenção, sem densidade e vivências autenticamente democráticas.

‘Mitos, traumas, e complexos são o pão nosso de cada dia do pequeno mundo político-cultural português’ (Pereira, 1983:23). Ao contrário do que seria de esperar, as palavras não são de EL, mas de JMP, numa aparente inversão de papéis e de argumentos. Será então que após tanta resistência inicial, o autor se converteu às virtudes da psicanálise? Nada será assim tão linear. Tal como acontece com EL também o método psicanalítico é aqui apenas um expediente hermenêutico, para melhor compreender e descrever a realidade portuguesa. E, para que não restem dúvidas quanto à instrumentação teórica que orienta em última instância as suas pesquisas, ele mesmo a indica com toda a clareza, ao esclarecer o sentido do conceito nuclear de mito: ‘certas ideias-chave que adquirem um estatuto mítico, na medida em que induzem tendencialmente leituras do domínio do natural, escondendo as suas origens e função ideológica’ (Pereira,1983:28). Esta definição bebida directamente em Barthes, denota igual influência de Gramsci, através do conceito de ideologia e do seu papel social de cimento da sociedade. É ainda de clara influência gramsciana a noção de hege-monia: ‘O que são as nossas classes dirigentes? De onde vêm? De onde lhes vêm os ideais democráticos? Como procuram articular o poder politico com o poder económico? De que condições dispõem para conseguir uma efectiva hegemonia?’ (Pereira,1983:30).

Ao fazer a genealogia ( e até a arqueologia) das forças que emergem no cenário pós revolucionário, JMP trabalha exclusivamente o mito politico que, para ele é sempre instrumento de obscurecimento da realidade social e politica e das suas verdadeiras dinâmicas. O seu objecto é, pois, o campo mais especí-fico e para ele mais real do ser social e do conflito de forças que o atravessam, ‘sem que por aí se esgote o problema’ como prudentemente ele adverte.

Esta é talvez a mais pura lição de independência, de rigor consigo próprio e com os outros, de lucidez e de inteligência: a lição de que nunca se esgota o problema, quando se aceita que a realidade é plural e só na pluralidade de olhares e perspectivas ela nos pode ficar mais próxima. Isso nos vem ensinando EL, desafiando a rigidez metodológico de psicólogos,

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sociólogos, historiadores que confundem apressadamente a prodigiosa diversidade e variedade de processos e de temas, afinal a sua perturbante heterodoxia, com ausência de rigor metodológico, indefinição, conta-minação conceptual, tentação dispersiva e eclética. Concluindo, pois, Lourenço não faz psicologia, não faz sociologia, não faz história, embora nada o impeça de aplicar a cada um destes discursos a critica mitoló-gica que, sublinhe-se, não tem como finalidade a realidade objectiva da história (individual ou colectiva) mas antes as imagens que a partir dela os portugueses foram forjando de si próprios, ‘imagens que constituem uma espécie de seu precipitado, e que se solidificam na memória dos indivíduos e das colectividades, na forma de mitos, constituindo propriamente o seu imaginário’ (Baptista, 2003: 321).

Trata-se, portanto de uma inesgotável, incansável (e também inal-cançável) busca do sentido dos mitos e de símbolos, cuja dinâmica ele tenta surpreender nessa tensão de onde eles surgem entre imaginação e mundo. Para ele, portanto, o mito não é, ao contrário de JMP, obscu-recimento, alienação ou mesmo mentira. Essa noção de nítida influência marxista chegou a ser utilizada por EL sobretudo nos textos mais antigos. Em contrapartida, nos mais recentes a noção é fortemente valorizada, tem um sentido prospectivo com capacidade para reunir um povo em torno de uma ideia de si. Estamos, pois, face a uma concepção dinâmica de mito, entendido como algo que pode e por vezes deve mudar. Isto é, uma leitura apropriadora de sentido, e nunca uma concepção de mito como totalidade que se alimenta de uma auto-referencialidade permanente. A nossa identidade como povo nunca está construída e só tem sentido como um constante e renovado processo de auto-descoberta marcado sempre pelo presente dos questionantes. Esta possibilidade de um sentido futu-rante para o colectivo, através de um imaginário adequado ao nosso rosto verdadeiro e não forjado por velhas máscaras de uma galeria anacrónica de heróis, santos e mártires, é amplamente desenvolvido nas obras poste-riores, o que nos autoriza a falar de dimensão utópica do seu pensamento. É o caso de Portugal como Destino (1999), espécie de continuação e reactuali-zação do Labirinto da Saudade.

Invocando Foucault: da atopia ou heterotopia à utopia pode ser o sentido do movimento quase labiríntico do seu pensamento: do não

EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO

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MANUELA CRUZEIRO

lugar, ou de um lugar inclassificável, original, imprevisível, ou então da justaposição num só lugar de vários espaços, vários posicionamentos, em si próprios incompatíveis, à utopia, não no sentido clássico de espaço mágico, confortável, linear, mas à utopia trágica, porque é “crítica, dila-cerada, vigilante, que acolhe a contradição, mas que não deixa de se guiar por um princípio de esperança ou ‘paixão positiva’’’ (Baptista, 2003:375)

Mas esses seriam tópicos para outros diálogos com outros interlocu-tores, dos quais, imagino, JMP se teria serena e discretamente retirado, ele que em questões filosóficas permaneceu fiel a Sartre: A ele dedica o último breve capítulo do seu livro, sintomaticamente intitulado ‘Sartre, a minha jangada’. E sobre ele faz a mais desconcertante e solene confissão: ‘Sartre poupou-me o psicanalista e a militância partidária’.

George Steiner fala de livros que são presenças reais e, com idêntico sentido, EL de livros-acto. Para mim O Labirinto da Saudade e No Reino dos Falsos Avestruzes são dois desses casos. M. Yourcenar disse algures, e não exacta-mente desta forma, que há autores que lemos, e gostamos. Outros que lemos e com quem aprendemos. E há finalmente aqueles que lemos e cuja leitura nos transforma. São esses os nossos autores. EL e JMP são, sem dúvida dois dos meus autores.

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EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO

Referências Bibliográficas

Baptista, Maria Manuel. Eduardo Lourenço – A Paixão de Compreender, Porto/Lisboa, Asa Editores, 2003.

Lourenço, Eduardo. O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1978.

Lourenço, Eduardo. Nós e a Europa ou as Duas Razões, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988.

Pereira, João Martins. No Reino dos Falsos Avestruzes – Um olhar sobre a Política. Lisboa, A Regra do Jogo, 1983.

Silva, Vicente Jorge. Eduardo Lourenço: um heterodoxo confessa-se. Expresso/Revista, 1988.

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O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves Redol*David Santos

Determinado pelo compromisso social da arte, Alves Redol iniciou no final dos anos 30 um trajeto literário ímpar, que abriu ao Ribatejo uma voz de esperança e intervenção ao docu-mentar com espírito etnográfico, na promessa de uma prosa

atenta ao vernáculo, a dignidade das gentes mais esquecidas desta região eminentemente rural, identificada então com o trabalho e o sustento oferecidos pela Lezíria, o rio e as margens do Tejo.

Dos Gaibéus, que sazonalmente realizavam a ceifa ribatejana, aos Avieiros, “nómadas do rio”, que viviam da pesca ribeirinha, ou da vida rural dos Glorianos aos sacrifícios dos Fangueiros da Golegã, passando ainda pelo árduo labor dos “mouros forros”, os Valadores que abriam ou limpavam as valas e os esteiros, em todos Redol encontrou e caracterizou literariamente a singularidade da vida dura e quase escrava, do trabalho “de sol a sol”, bem como a expressão cultural espontânea dessas comunidades isoladas. Por todos se interessou desinteressadamente, de bloco em punho, empenhado sobretudo em dar a conhecer ao país, através da literatura, uma realidade social quase desconhecida. Por isso, a criatividade literária redoliana apresenta na sua génese um intenso espírito de missão, de apelo cívico e cariz humanista, inspirado por uma visão marxista de transfor-mação da sociedade, que significava à época a grande referência ideológica alternativa ao regime ditatorial do Estado Novo.

Se tudo começara em 1938 com o “ensaio etnográfico” Glória – uma Aldeia do Ribatejo, resultado de uma curiosidade crescente sobre a vida real do Ribatejo profundo, e no incentivo e influência de Rodrigues Lapa e da leitura de José Leite de Vasconcelos, a verdade é que, em Gaibéus (1939), Alves Redol assume a sua ambição literária, ainda que expressa timida-mente na famosa epígrafe que abre o livro1, promovendo com esse título

* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.

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(então bastante enigmático, por desconhecimento generalizado desse grupo social) um cruzamento particular e original “entre” o exercício da narrativa ficcional e a recolha documental de teor etnográfico. Ora, será porventura este “entre” o elemento diferenciador que tornará Redol numa das novas vozes da literatura portuguesa. Por outro lado, o acento na recolha e assunção literária das expressões originais dos Gaibéus, ou mais tarde de Avieiros e Fangueiros, aparece com a força de um volunta-rismo imprevisto, pois se na obra de Aquilino Ribeiro ou mesmo Ferreira de Castro podemos encontrar uma consciência profunda sobre o jargão popular e regional, Redol introduz na sua narrativa uma espécie de nova matriz realista, mais atenta à luta de classes e que salienta a expressão quase direta dos sociolectos, o tom coloquial dos modos particulares de dizer e agir dessas comunidades que observa, dando conta das suas difíceis relações com a hierarquização tradicional do trabalho. Mas é curioso que, à época, esse fator não terá sido suficiente para o reconhecimento desses primeiros títulos, aparentemente por não se fazerem acompanhar da necessária elaboração formal. A crítica que Mário Dionísio lhe dirige desde a famosa “Ficha 5”2 e ao longo dos anos, ao apontar alguns “equívocos” formais e uma “tendência infeliz” para “escrever difícil”3, que revelava sobretudo, no entender do crítico, uma certa insegurança ao nível da linguagem e da construção narrativa, levará o próprio Redol a reconhecer desde cedo, não sem angústia, mas com humildade, as razões de algumas das suas “fragili-dades”, fixando muitos anos mais tarde, no prefácio à 6ª edição de Gaibéus, um mea culpa sobre essa estreia literária marcada pela “impetuosidade desre-grada, o arrebatamento impulsivo de um jovem que anseia[va] por libertar

1 Alves Redol, Gaibéus, edição do autor, 1939. Recordemos a epígrafe que tanta polémica tem causado: “Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”. Apesar dos equívocos e das múltiplas interpretações, inclu-sive ampliados pelos diversos esclarecimentos prestados pelo próprio escritor ao longo dos anos, esta epígrafe que introduz Alves Redol na literatura de ficção reflecte, na verdade, não apenas o implícito desejo literário do autor, como o espírito de um tempo em que o levantamento documental se impunha ao exercício narrativo e romanesco. Recorde-se, a propósito, a epígrafe em tudo semelhante, na forma e no conteúdo, que abre a obra Banditi (1946), do escritor neorrealista italiano Pietro Chiodi: “Este livro não é um romance, nem uma história romanceada. É um documento histórico, no sentido em que as personagens, os factos e as emoções aconteceram realmente”. (cf. Bruno Falcetto, “Neorrealismos escritos”, in AAVV, NeoRealismo. La Nueva Imagen en Italia (1932-1960), Coord. Enrica Viganò, Madrid, La Fabrica Editorial, 2007, p. 59).

2 Mário Dionísio, “Ficha 5”, in Seara Nova, 11 de Abril de 1942, p. 131-134.

3 Ibidem. Ainda sobre esta questão cf. Mário Dionísio, “Para o perfil de um camarada”, in AAVV, Alves Redol. Testemunhos dos Seus Contemporâneos, (Org. Maria José Marinho e António Mota Redol), Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp. 66-80.

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o homem de tais grilhetas, desejando que a sua pena se torne[asse] ferra-menta de progresso”4. Desde as primeiras críticas, e manifestando desse modo a sua enorme estima e consideração intelectual por Mário Dionísio, Redol empenhar-se-á igualmente, apesar das dúvidas instaladas quanto ao seu futuro como escritor, em aprofundar o labor oficinal da sua litera-tura, o que significava perseguir, como diria Dionísio, essa “simplicidade limpa […] demoradamente adquirida, assimilada, construída”5, como forma de evitar os “efeitos fáceis e vistosos que qualquer aprendiz rapida-mente obtém”6. Estamos em crer, porém, que um dos valores maiores da prática literária redoliana corre em paralelo ao Olimpo do enredo lite-rário, à caracterização maior das personagens, ou desses “efeitos” formais e linguísticos mais conformes às expectativas da intelectualidade infor-mada, condição essencial para o aval da crítica. Se há característica que distingue e ilumina a obra de Alves Redol, sobretudo entre os anos 40 e o final da década seguinte, é a capacidade de pôr a falar, no âmbito da literatura e no universo da recetividade crítica, um conjunto significativo de grupos étnicos que até aí tinham sido evitados como tema narrativo. O próprio Mário Dionísio reconhecerá mais tarde, quando do prefácio de Barranco de Cegos7, com sentido igualmente crítico e indagando diretamente o leitor, que Alves Redol apresentava particularidades que o haviam deter-minado, para o bem e para o mal, desde o início do seu percurso, e que redundariam nos muitos ataques que viria a sofrer ao longo dos tempos, em sentidos opostos, de trincheiras rivais: “Que presa fácil! Não trouxe ele para o nosso romance (e para nosso remorso) personagens, situações, problemas nunca antes trabalhados, até então tranquilamente ignorados pela literatura, com uma clareza e um espírito de luta que teriam de entu-siasmar aqueles que da arte curam pouco, mas apenas de ideologias e

4 Alves Redol, “Breve memória para os que têm menos de 40 anos ou para quantos já esqueceram o que aconteceu em 1939”, in Gaibéus, (1939), (6ª edição), Lisboa, Publicações Europa-América, 1965, p. 21.

5 Mário Dionísio, “Prefácio”, in Alves Redol, Barranco de Cegos, Lisboa, Portugália Editora, 1961, p. 12.

6 Ibidem.

7 Prefácio onde Mário Dionísio defende de modo convicto Alves Redol, apontando o dedo a quem não percebera ainda que Barranco de Cegos era não só a obra-prima do escritor vila-franquense, como “sem dúvida também um dos grandes romances de toda a nossa história literária”. (cf. Alves Redol, Barranco de Cegos, Lisboa, Portugália Editora, 1961, p. 13).

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incentivos de ação que nela possam ver? Não mostravam os seus primeiros livros esquematismos de conceção e de análise, tibiezas de linguagem e de construção, ingenuidades, que permitiram aos defensores da arte (e só da arte…) uma reprovação sistemática, facilmente estribada em declarações do próprio autor, segundo as quais só o documentário lhe interessaria?”8. Na verdade, foi esta a teia onde se enredou não só a obra de Alves Redol, como também a sua receção crítica, marcando assim o ritmo da sua sobrevivência e significado, pelos menos no meio literário, pois junto do público leitor a aceitação crescente convertê-lo-ia num dos escritores de maior sucesso editorial até ao final da década de 50. Porém, a discussão parece, pelo menos, aos olhos de hoje, algo deslocada ou indiferente a algumas das suas características mais decisivas. Com efeito, mais do que fomentar parcial-mente uma leitura ideológica ou o “incentivo” de uma ação política – o que para muitos, por si só, condicionava desde logo e em grande parte a liber-dade criativa do escritor –, e mais do que apresentar dilemas de conceção, limitações formais ou de estética literária, a obra inicial de Redol traduz precisamente o maior investimento até aí realizado entre nós em torno de uma literatura mais próxima da energia realista do documentarismo.

Apesar de algumas impetuosidades estilísticas ou ânsias de intervenção facilmente identificáveis, podemos dizer que o arranque romanesco de Alves Redol inaugura e aprofunda, antes de mais, uma ligação invulgar e talvez demasiado ousada para a época, situada entre o carácter analítico associado às marcas sociais e políticas dos grupos com quem viveu e parti-lhou experiências reais e o desejo criativo de as expor ao imaginário e à trama narrativa. Os seus primeiros títulos dependem em grande parte, na verdade, desse impulso experimental e sobretudo da capacidade de trans-formação literária dos elementos recolhidos por um particularíssimo “trabalho de campo”, inspirado nos métodos de pesquisa da etnografia e da antropologia, mas adaptado às condições possíveis da sua formação amadora. Estratégia, aliás, assumida com clara honestidade desde logo no “preâmbulo” de Glória, quando afirma: “[…] a etnografia captou-me por um misto de interesse cultural e simpatia pelo seu abandono, levando-me a folhear alguns volumes da obra fecunda do ilustre fundador do Museu de

8 Ibidem, p. 11.

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9 Alves Redol, Glória – uma Aldeia do Ribatejo, Edição do Autor, 1938, p. 10.

Belém [Redol refere-se ao Museu Nacional de Arqueologia, fundado por Leite de Vasconcelos com a designação de Museu Etnográfico Português]. Então, constatei melhor quanto de valor linguístico e social encerravam esses estudos, a viverem do heroísmo de meia dúzia, e embora reconhe-cendo-me incapaz de produzir obra científica com semelhanças de mérito, entendi poder colaborar na etnografia portuguesa, recolhendo com amor e desvelo aquilo que, no contacto vivificador buscado sempre com alegria junto do meu povo, me parecesse merecer retenção”9.

Nessa medida, o informal documentarismo das primeiras obras pode ser entendido ao mesmo tempo como a sua grande bandeira de criati-vidade, ao manifestar-se como ligação híbrida e interdisciplinar, quase pós-moderna, diríamos, “entre” o “puramente” objetivo das ciências e o “puramente” artístico da literatura, abraçando assim as potencialidades de um lirismo romanesco que se mantém quase sempre, contudo, vinculado ao real, ao fazer depender a narrativa de uma colagem à natureza dos tipos sociais em que se inspira. Em nossa opinião, é precisamente essa fusão ou “impureza”, espécie de marca maior de uma particular interdisciplinari-dade, que melhor caracteriza a voz original de Alves Redol. Se observarmos inclusive a sua obra sob a perspetiva aqui proposta, talvez as exigências formais e artísticas levantadas pela autoridade crítica – nomeadamente a necessidade de uma contenção estilística e a fuga ao conteudismo poli-tizado – possam reduzir-se a uma de entre muitas perspetivas de leitura sobra a sua natureza e complexidade.

Apesar dos avisos iniciais da crítica, a publicação de Marés (1941), Avieiros (1942) e Fanga (1943), viria a confirmar o projeto literário de Alves Redol como uma nova forma de realismo literário, trabalhado para transmitir emoções ao leitor, mas também valores e preocupações de teor político--social. O Neorrealismo afirmava-se, assim, enquanto expressão alternativa à literatura portuguesa presencista ou dela derivada, por meio de uma obra de expressão épica, que nascera da necessidade de estudo e compreensão sobre as características e especificidades regionalistas da sociedade portu-guesa, das suas idiossincrasias aos vestígios humanos universais.

Já no contexto geográfico duriense, e depois de Porto Manso (1946), a

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trilogia do ciclo Port Wine, constituída pelos títulos Horizonte Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953), assegurava a Alves Redol um protagonismo crescente, convertendo-o num dos escritores portugueses mais atentos à realidade social, cuja obra integra uma visão cada vez mais crítica e abrangente sobre o drama da exploração humana em que se baseavam as relações de trabalho no nosso país. Se esta carac-terística resultara primeiro da observação da vida ribatejana, traduzia-se agora na denúncia das condições desumanas de grande parte da vindima do Douro. Em todos estes casos, tal como em Uma Fenda na Muralha (1959), na atenção prestada à faina dos pescadores da Nazaré já no final dos anos 50, Redol munia-se ainda – para além da sensibilidade lírica que carac-teriza um escritor ou do já referido empenho cívico, ético e político – de um apurado sentido de observação objetiva, apoiado não só nas técnicas do registo etnográfico, mas sobretudo numa disponibilidade imensa para captar a genuinidade do “outro” social, procurando no diálogo e na huma-nidade do gesto solidário um modo mais profundo de acesso à experiência quotidiana desses grupos.

Por isso, se Barranco de Cegos (1961) significou para muitos o apogeu literário de Alves Redol, a sua definitiva consagração como escritor, terá constituído ainda um sinal mais de distanciamento ou dissolução do “propósito entno-grafista” que esteve na génese do Neorrealismo, essa “idade de inocência épico-lírica”10 que se perdeu a favor do cânone literário, “no quadro de um amadurecimento da técnica romanesca e da fecundidade semântica germi-nada a partir de um cruzamento de vozes sociais”11. Por outras palavras, se parece não haver dúvidas sobre a diferença de valor literário entre a simpli-cidade esquemática e até maniqueísta12 de Gaibéus e a elaborada densidade narrativa e psicológica de Barranco de Cegos, ela poderá significar, igualmente, ainda que sob diferente perspetiva de análise, um empobrecimento da riqueza semântica que se manifestara desde o início nesse “propósito etno-grafista”, mesmo que a sua surpreendente originalidade nem sempre tenha

10 Cf. Vítor Viçoso, “A ficção narrativa no movimento neo-realista: as vozes sociais e os universos da ficção”, in AAVV, Batalha pelo Conteúdo – movimento neo-realista português, Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo/CMVFX, 2007, p. 73.

11 Ibidem, p. 84.

12 Ibidem.

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sido trabalhada em prol da grande obra literária. É neste sentido reveladora a análise feita em 1965 pelo próprio escritor acerca da sua primeira obra de ficção: “Gaibéus seria um compromisso da reportagem com o romance, em favor dos homens olvidados e também da literatura aviltada. Não conseguiu voar tão alto nem tão longe. Mas, perante a ameaça que depois tão tragi-camente todos provaram na consciência, ou na própria carne, Gaibéus quis ser, e foi, um dos gritos exatos de um drama coletivo e privado”13. Ao reco-nhecer as limitações da sua obra de estreia, Redol refletia também sobre um tempo que passara e as suas ilusões de transformação imediata. Esse título, escrevia, “trazia com ele todas as virtudes e os fatais defeitos de um embrião. É livro típico de uma atitude, mais outra voz na velha querela da função da arte. Uma voz apaixonada, como é salutar quando se rompe combate”14. Da experiência da etnografia ao combate politizado diluído pela escrita de ficção, Alves Redol realizou um trajeto que o levou do real mais cru e trans-parente a um real aprofundado pela intensidade literária, na maturação de uma simplicidade segura e voluntária, só ao alcance dos mestres.

Na verdade, com o aperfeiçoamento formal de Barranco de Cegos, após mais de 25 anos desde a publicação de Gaibéus, Alves Redol recebeu finalmente os elogios que lhe faltavam, oriundos, para mais, dessa crítica que desde o início dos anos 40 exigira ao realismo social uma inequívoca e genuína elevação artística, isto é, sustentara que depois da conquista de alguns temas mais ou menos incómodos ao regime do Estado Novo, deveria converter-se numa “arte maior” e abandonar a pretensão primeira de se afirmar sobre-tudo como “arte útil”, secundarizando desse modo o sentido de despertar social que havia estado na sua origem, espécie de “pecado” diminuidor, como se as características politizadas e documentaristas iniciais ferissem de morte as suas hipóteses artísticas. No fundo, é como se o Neorrealismo esti-vesse destinado, desde o início, a fugir da sua essência original, apagando aos poucos qualquer vestígio de expressão inovadora ou distintiva, para se converter numa das muitas faces do cânone que define essa entidade incon-tornável, mas algo abstrata, que é “a grande literatura”15.

13 Prefácio de Alves Redol à 6ª edição de Gaibéus…, p. 21.

14 Ibidem, p. 23.

15 Cf. Harold Bloom, O Cânone Ocidental, (1994), (trad. port. Manuel Frias Martins), Lisboa, Temas e Debates, 2011.

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Porém, o interesse documental que formou a sensibilidade literária de Alves Redol não se manifestou apenas na experiência ficcional, obtendo resultados concretos na pesquisa etnográfica que determinou a publi-cação dos Cancioneiros, nomeadamente o Cancioneiro do Ribatejo (1950) e o Romanceiro Geral do Povo Português (1964) – este último contando com a cola-boração de Fernando Lopes Graça (música) e Maria Keil (ilustrações). Não podemos esquecer, como nos lembra Vítor Viçoso, que “a represen-tação ficcional do povo, por parte dos neorrealistas, complementava-se dialeticamente com a publicação e o estudo das fontes originais da cultura popular”16. Por isso, podemos afirmar que a evolução ficcional de Redol não diminuiu integralmente o seu propósito etnográfico, auscultando em paralelo à ação literária a voz do povo e as manifestações culturais identifi-cadas com a tradição oral. Pelo menos neste aspeto, o escritor manterá ativa a sua intenção inicial de ouvir os grupos socioculturais do nosso país, com o objetivo de recolher e registar a sua expressão mais genuína, constituindo assim uma espécie de arquivo, entendido como tesouro ativo de uma certa portugalidade ou nacionalismo17, diferente todavia da visão nacionalista do Estado Novo. De facto, se Redol pretendia registar a cultura identitária do país era porque nessa tarefa reconhecia, tal como Rodrigues Lapa definira a filologia e o etnografismo, “um instrumento inapreciável de autên-tica democracia”18, resultado do estudo e da compreensão desses grupos, admitindo nas manifestações da cultura popular uma via de dignificação emancipatória, reivindicativa do seu estatuto e lugar social, enquanto o regime de Salazar procurava preservar nessa mesma identidade a razão de um imobilismo de cariz conservador e corporativista.

Por outro lado, não será difícil reconhecer que entre o impulso docu-mental, mais politizado inicialmente na sua dimensão utópica, e a expressão literária amadurecida pela carreira de escritor, Alves Redol conduziu o seu percurso visando a aceitação do meio literário, o que o terá reali-zado, finalmente, enquanto criador, sobretudo depois da publicação de

16 Vítor Viçoso, op. cit., p. 66.

17 Sobre esta questão cf. José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX, Lisboa, Ed. Tinta da China, 2008.

18 Cf. Alves Redol, Glória…, p. 9.

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19 Vitor Viçoso, op. cit, p. 67.

20 Ibidem.

Barranco de Cegos. Mas nesse trajeto, em parte sacrificial, o escritor ter-se-á afastado, pelo menos em parte, não só do ímpeto político como do espí-rito etnográfico original que, mesmo assim, ficará para sempre associado à fundação do movimento neorrealista e, nessa medida, à sua afirmação distintiva. De outro modo, não significará a incursão pelo etnografismo o expoente máximo desse compromisso de Redol com os mais desfavore-cidos, seus problemas e anseios, e com as tensões resultantes das relações sociais do trabalho, desde cedo entendido como património inalienável ou último reduto da dignidade humana? Haverá, na verdade, contributo maior de Alves Redol à literatura portuguesa do século XX? Ainda recen-temente, e apesar de apontar a Gaibéus, de modo crítico, “o compromisso equívoco entre documentário e ficção”19, Vítor Viçoso defendeu também, como nós, que “a modernidade de Redol está, apesar dos condicionalismos epocais, nesta hibridez entre o etnografismo documental e uma poetização que radica na relação simpática entre o autor e a paisagem, entre aquele e as comunidades rurais que a habitam ou nela transitam”20.

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A Mentira que Causa DeleiteJoão Soares Santos

“Il y a dans la nature des couleurs et des sons, mais pas de mots” Gottfried Benn

1. No diálogo «Filopseudes», Luciano de Samosata (c. 120-190) coloca Tixíades e Filócles a conversar sobre a mentira. Admitem que, em determinadas circunstâncias, a narração de falsidades pode ser útil para quem as emite ou para beneficiar uma comunidade. Ulisses serviu-se da impostura para salvar a sua vida e a dos seus companheiros. Porém, sem desculpa válida, proferida por homens de superior inteligência, a mentira é causa de análise e censura. Tixíades aponta Heródoto, Ctésias de Cnido e Homero como exemplos de indivíduos intelectualmente dotados que usaram a escrita para veicular informações contrárias à verdade, preser-vadas através das gerações «na mais selecta dicção e ritmo.» 1 «Por causa deles costumo várias vezes corar quando referem a castração de Urano, os grilhões de Prometeu, a revolta dos gigantes, toda a desolação do Hades, como Zeus por motivos amorosos se transformou em touro ou cisne, como alguma mulher passou a ser uma ave ou urso; sim, e ainda Pégasos, Quimeras, Górgonas, Ciclopes e tantos outros – estranhas e maravilhosas fábulas apropriadas para encantar as almas das crianças que ainda receiam Mormo e Lâmia.» 2

Tixíades manifesta a sua perplexidade ante os testemunhos de credibili-dade relativos à existência de figuras mitológicas. Não entende como poetas e povos aceitam sem relutância que Triptólemo se movia pelo ar atrás de serpentes com asas, que Pã veio da Arcádia para Maratona para auxiliar na batalha contra os Persas ou que Oreitia, uma das filhas de Ericteu, fosse transportada por Bóreas. Quem tiver dúvidas sobre a genuinidade destes eventos e factos é considerado um tolo sacrílego. Filócles absolve os poetas versados nestes temas e aqueles que os apreciam, pois, apropriando-se do poder sedutor destas histórias, os primeiros exercitam a sua arte para deleitar os segundos.

Os dialogantes criticam relatos e crenças relacionadas com ideias herdadas de épocas pretéritas. Sugerem que certas narrativas são mentiras

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A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE

que causam prazer e convicção. Eles mesmos, na condição de perso-nagens ou vozes inventadas por Luciano evocam por via linguística uma realidade paralela, transferem para uma construção artificiosa (a escrita) acontecimentos e argumentações. Não parecendo ter uma intenção deso-nesta, Luciano usa a falsidade do discurso para persuadir os destinatários com a sua maneira de opinar sobre o assunto. A mentira das histórias é o mote para a sua ficção, para os seus enunciados verbais, para as suas simulações vocabulares de ocorrências e de deliberações. As palavras e os códigos aplicáveis à sua elocução ou ao seu registo escrito (ortografia e estilo de redacção) têm níveis ou qualidades diferenciadoras nos quais estão presentes elementos ontológicos, corporais e culturais. Ao ser comu-nicada pela fala ou por sinais gráficos, a língua tem uma expressão colectiva e individual. A voz desenhada num suporte está desprovida de intonação, não tem timbre, altura de som, as tonalidades sensíveis ou psicofisiológicas próprias da vocalidade do elocutor.

Mentira («mensonge», «menterie», em francês) implica um engano, alguém finge que uma coisa é outra, uma mensagem dolosa não suscita dúvidas, passa a ser entendida como autêntica, como merecedora de assenti-mento. Aristóteles disse que o falso é a negação do que é pela afirmação do que não é. O termo parece ter como antecedente etimológico o latim «mens» (raiz «men») que significa «mente», «modo de pensar», «opinião», «carácter», «razão», «intelecto» ou «julgamento». A correspondência Grega será «mnáo» indicativo de «cerrar os lábios» («mno»=«fechar a boca») ou «mémno» («resoluto»). O verbo Alemão «meinen» signi-fica «pensar», «opinar», «julgar» e «Meineid» denota um «juramento falso», um «perjúrio». Em sânscrito «Mithya» (contracção de «Mithuya») exprime algo incorrecto, errado, impróprio, inexacto, enganador, não verdadeiro, falar de um modo falso, emitir uma mentira. «Mito» é um vocábulo proveniente de «Mythos» que em Homero designava a «expli-cação de um pensamento por palavras», «discurso», antes de adquirir a acepção de relato fabuloso ou heróico. A cultura tece papéis e desempenhos, limites e transgressões. Os poetas, os actores, os bailarinos mentem através das histórias que relatam ou interpretam, obedecendo a uma tradição, a um comportamento regulado por deveres e obrigações. Pelo que é dito e pelo modo de dizer, o maravilhoso torna-se verosímil.

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Numa certa noite, Li Bo ou Li Taibo (701-762), o eminente poeta Chinês, ébrio sobre uma embarcação vogando pelo rio, observou fascinado a lua espelhada nas águas. Debruçou-se sobre ela mas, ao tentar apanhá--la caiu e afogou-se. Alguns biógrafos confirmam este desfecho. Será verdade? Não terá ele morrido enfermo devido aos excessos de bebida? Apetece acreditar na hipótese mais imaginativa ou na mais realista?

Nas artes orais de narrar, o intérprete funciona como uma causa eficiente, uma pujança que introduz no mundo comum algo que não pode ser experimentado num contexto de trivialidade. Como nos sonhos ou nas deslocações xamânicas, amiúde se supõe o movimento da alma do narrador por lugares distantes ou próximos e a sua comunicação incen-tivada por forças transcendentes. As palavras supostamente dimanam ou são colocadas na sua boca por iniciativa de outras entidades, ele passa a ser o agente emissor de uma autoridade cujos testemunhos verbais não permitem suspeitas.

No Wayang Kulit de Java, género narrativo com manipulação de mario-netas de couro sobre um ecrã, o recitador e marionetista (Dalang) adequa (Pantes) às personagens vários tipos de voz, de articulação sonora e ritmo. Há um tom ou altura (Laras) e uma natureza da enunciação variável consoante a aparência e as características temperamentais e estatutárias das mesmas. A exposição verbal pode conjugar atributos como força, fraqueza, calma, ferocidade, desembaraço, acanhamento, firmeza, peso, suavidade, aspereza, finura, requinte, habilidade, rudeza, bazófia, vulgaridade, estupidez, profundidade, rapidez, lentidão, flutuação, ira, doçura, etc. Pequenas dissemelhanças vigoram entre figuras de idêntica tipologia. O Dalang imprime ânimo e recebe alento da marioneta. A sua alma ou espírito (Suksma) estabelece uma conexão osmótica com o material talhado para o fazer «tremer» ou seja, para lhe dar vida. Como se a coisa inanimada entrasse em transe para incorporar o Dalang e os poderes que este acolhe em si ou como se o Dalang entrasse em transe para receber ou passar a ser a personagem representada. A voz que relata e se desdobra em conversação define, com as cambiantes próprias, as relações firmadas entre os intervenientes dramáticos. É modelada tendo em consideração a anatomia destes, particularmente o rosto, a posição e a configuração dos olhos e a forma da boca.

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Tendo como substância o artifício e o talento elocutório, as histórias e os bardos encantaram os povos. Os temas e motivos específicos deam-bularam por via oral e adaptaram-se a novos enquadramentos étnicos e culturais. Traços de concordância nas matérias, nas técnicas e afinidade linguística persistem através de amplas áreas geográficas.

2. Os Cabiros (Kábeiroi, Kábiroi) eram divindades ctónicas veneradas nas ilhas do mar Egeu (Eubeia, Lemnos, Imbros, etc.) até ao Helesponto, na Macedónia, na Beócia, na Samotrácia, nas zonas costeiras e insulares da Europa e Ásia Menor, no Egipto e Etrúria. Nome que provavelmente significa «Mãe Terra» ou «Mãe da Cevada», Deméter, protectora da agricultura, das dádivas concedidas pela terra, tinha como epíteto Kabeiría. Prole de Hefaísto, o deus artesão disforme, os Cabiros, «grandes deuses», são entidades conectadas com a vegetação, com o labor metalúrgico e mineiro, com a navegação e identificados com outras potestades como Zeus, Dióniso, Deméter, Perséfone, Hades ou Hermes. Observando um grande secretismo nas suas cerimónias, o seu culto estava associado ao impedimento de perigos (naufrágios, enfermidades, pobreza, guerra, homicídio, perjúrio, etc.). Kábeiroi recorda foneticamente Kubera (no sânscrito mais tardio Kuvera) que, segundo os Vedas, era um ser sobrena-tural habitante das profundidades telúricas, um espírito da obscuridade, o chefe dos Yakshas (entidades fantasmáticas benevolentes ou malignas que podem causar possessão), Guhyakas (categoria de génios que habitam as cavernas, de «Guhya = «escondido», «coberto», «mantido secreto») e Rakshasas (espíritos perniciosos que erram pela noite, de «Raksha» = «acto de proteger» ou de «guardar»). Estas entidades misteriosas conectadas com lugares ocultos ou dissimulados podem ter o dom da metamorfose. Embora o nome Kubera seja difícil de esclarecer (talvez «deformado» ou «monstruoso»), «Ku» é um prefixo sânscrito que expressa «defi-ciência», «deterioração», «desprezo», «estranheza», «depreciação» («Kubja» = «corcunda», «com o corpo arqueado») ou um termo que significa «terra». Mais tarde Kubera passou a ser na Índia o deus da opulência (Dhanapati = «senhor das riquezas») e, juntamente com Indra, Varuna e Yama, um dos guardiões dos quatro pontos cardeais. É represen-tado como um anão, com três pernas, oito dentes, um olho, uma barriga proeminente, segurando um bastão, uma romã, um recipiente de água,

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um saco de dinheiro ou um mangusto que expele moedas ou jóias. Numa gravitação vocabular encontramos sonoridades análogas no Hitita Kubaba e no Lídio Kubebe ou Kubele referentes ao nome de uma deusa mãe da Síria e da Anatólia assimilada pelos Hititas vindo ulteriormente talvez a ser a Cibele (Kybéle = «gruta») da Frígia, a senhora das grutas e das monta-nhas na Ásia Menor, para a qual se realizavam «Mistérios», cerimónias em que o êxtase dos adeptos (curetes, coribantes ou galos) surgia com frequência. Um relevo de Karkemish (séc. XII a.C.), a capital de um reino Sírio e parte do domínio de Mitanni, depois absorvida no império Hitita, mostra Kubaba com um gorro e segurando uma romã.

Segundo as fontes Purânicas, durante o Krita Yuga (o primeiro ciclo cosmológico com a duração de 1 728 000 anos), Kubera recebeu a incum-bência de regente dos oceanos, rios e correntes aquáticas. Durante dez mil anos ficou em penitência, mantendo a cabeça submersa para agradar a Brahma. Praticou depois a austeridade de ficar de pé apenas com uma perna assente no chão. Sensibilizado, Brahma concedeu-lhe o desem-penho de protector das oito regiões (Ashtadikpalakas). Posteriormente foi rei de Lanka, cidade situada no mar do sul, edificada no topo da montanha Trikuta. Ravana, seu meio-irmão (o pai era Vishravas), expulsou-o da urbe e usurpou o trono, obrigando-o ao exílio no Norte. Quando Ravana raptou Sita, participou na guerra como aliado das tropas de Rama.

No Tibete, Kubera é designado por Lus Ngan Po ou Rnan Thos Sras, na Mongólia por Bishman Tengri, na China por Bishamen Caishen, no Japão por Bishamon Ten, Kubira ou Kompira, na Tailândia por Kuperan. No arquipélago nipónico, na ilha piscatória de Shikoku, a sua influência centrava-se no evitamento de riscos para os marinheiros. Iconograficamente aparece como um velho escuro, sentado de pernas cruzadas, com um gorro na cabeça e empunhando uma pena de pavão.

Vamana («anão») corresponde a um dos Avataras de Vishnu, a morfologia que tomou perante Bali, o monarca dos Daityas, filho de Hiranyakashipu, após este se apossar e afirmar a supremacia nos três mundos. Vishnu instalou-se no útero de Aditi e depois de ela ser fecundada por Kashyapa, surgiu com a aparência de Vamana. Quando Bali e os seus assumiram o poder e ameaçaram as potestades celestes, Vamana dirigiu-se ao soberano e solicitou que este lhe concedesse uma porção de terra capaz de ser percorrida

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em três passadas. Bali, desconcertado, acedeu ao pedido e, então, o anão inchou, aumentando gigantescamente as suas proporções. Num primeiro passo abarcou todo o céu, num segundo toda a terra e quando se prepa-rava num terceiro para abranger as extensões subterrâneas, Bali prestou homenagem à divindade, oferecendo a sua cabeça para ela apoiar o pé. Este gesto de subordinação fez com que Vishnu lhe atribuísse a governação dos domínios inferiores (Sutala ou Patala), instalando-se em Mahabaliputra.

No Antigo Egipto Bes era um deus acondroplásico, barbudo, deformado, com as pernas arqueadas, pénis e testículos protuberantes, com uma pele de felino nas costas, cuja cauda pendia entre as pernas. Confundível por vezes com Hity (um anão músico e dançarino) e com Aha (seu provável prede-cessor), o seu nome abrangia outros espíritos ou divindades anãs e tinha a função principal de defender os indivíduos de conjunturas ou circunstâncias que ameaçassem a sua segurança ou os seus bens (no casamento, nos partos, no sono, etc.). Um encanto dirigido a Bes refere-o como «grande macaco com cabeça grande e coxas curtas» e como «macaco velho». Recebeu os títulos de «Senhor de Punt» e de «Senhor da Núbia». Costuma aparecer associado à música (toca harpa ou instrumentos de percussão) e à dança. Anões que aparecem representados em cenas oficinais nas mastabas de Sakara durante o Império Antigo ou em amuletos terão afinidades com Ptah, o deus criador do mundo pelo pensamento e pela palavra, o «Supremo Dirigente dos Artífices». Excepcionalmente o mesmo Ptah pode ter sido patenteado com uma anatomia nanista e barriga eminente.

As crenças relacionadas com criaturas de estatura atrofiada abundam nas tradições Germânicas. Nos mitos nórdicos estas (Dvergr, sugerindo defici-ência) residiam no subsolo pois surgiram das larvas que comiam o cadáver putrefacto de Ymir, o antepassado de todos os gigantes, cujas partes do corpo flutuando no oceano de sangue vertido da sua aniquilação serviu para originar a terra. «Sábios das Montanhas», habitam as galerias das minas, grutas, cavidades, possuem riquezas, são exímios ourives e ferreiros (foram eles que esculpiram as jóias e as armas dos deuses) e apreciam os jogos e a dança.

A récita Bretã da princesa Dahut (Dahud, Ahés, Ahé ou Keben) reporta que esta foi ajudada na edificação da cidade de Ys (ou Ker-is) pelas Korrigans (ou Ozeganned), seres femininos de reduzidas proporções físicas, habitantes

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do mar, dos cursos fluviais, das cavernas com águia corrente, vigilantes de tesouros, com gosto pela dança e por ludibriar humanos. As paredes dessa magnífica urbe foram pintadas a dourado por anões.

Na concepção folclórica Irlandesa o duende ou trasgo (leprechaun) é um anão sapateiro com aptidão para cantar e dançar, conhecedor do lugar onde se encontra um pote de ouro no fim do arco-íris. Segundo a cosmologia Celta, o além (otherworld ou fairyland) era um território insular submerso, um sítio «de mel» para o qual havia passagem pelas cavernas, pântanos e costas cobertas de canaviais. Esta dimensão paralela inacessível era povoada pelos defuntos, pelas divindades e por criaturas liminares como as que estivemos a descrever. As convicções Germânicas e Celtas sobre anões de diferentes tipos preservaram-se após a cristianização. A qualidade apotro-paica dos Cabiros, de Kubera, de Bes e de figuras aparentadas, a associação ao elemento líquido, aos espaços subterrâneos, a corporalidade anómala (atrofia e disformidade), as suas práticas artesanais, o gosto pela música e pelos movimentos cadenciados, parecem ter, com compreensíveis variantes, uma ressonância ampla nas tradições. A reverência e o teor por vezes auspi-cioso das mesmas talvez se tenha prolongado para as personagens cómicas das cortes (os bobos) e do teatro (veja-se o exemplo do Vidushaka indiano).

3. Outro dos apoiantes de Rama na expedição militar com o escopo de resgatar Sita (relatada nas versões do «Ramayana») foi Hanumat ou Hanuman, o comandante dos Vanaras («macacos», «habitantes da floresta»), um povo com atributos simiescos. Cognominado «Senhor dos Macacos» (Kapipati), ele obedece com as suas hostes a Rama por seu turno chamado «Chefe dos Macacos» (Kapiprabhu ou Kapiratha). O sábio (Rishi) Narada, um dos descendentes de Kashyapa, um patriarca de eras muito remotas (ou de Brahma) e de uma das filhas de Daksha (ou de Sarasvati), amigo de Krishna, era designado por «cara de macaco» (Kapivaktra). De Sugriva, o soberano dos Vanaras (Kapindra) dizia-se ser «venerado por macacos» (Kapijya). Uma hipótese de antecedência deste herói primata e da sua tribo é o guerreiro ou chefe Vrishakapi, mencionado no «Rig Veda». O termo agrega «Vrisha» («macho de animal», «homem») e «Kapi» («macaco», em Grego «pithékos»). Vocábulos com a compo-nente «Kapi» estão conectados com a história mais antiga da Índia tal como o nome Kapila («com cor de macaco», «castanho», «amarelo

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acastanhado», «avermelhado»), um homem douto pertencente à estirpe de Manu e de Kardama («lama», «barro», «lodo»), dois predecessores distantes e associado à fundação dos sistema filosófico Samkhya. Kapila é também uma das filhas de Daksha que se veio a unir com Kashyapa («que tem dentes negros» ou «tartaruga») , figura igualmente de épocas muito recuadas. Arjuna tinha como emblema este animal, donde a denominação honorífica «que tem como símbolo um macaco» (Kapiketana), identifi-cado com Hanuman. No «Mahabharata» ele é meio-irmão de Bhima, pois ambos foram gerados por Vayu (o deus Vento, em Grego «Aiolos») e encontram-se na floresta (Livro III, «Vana Parva»). Nesta secção Hanuman resumidamente relata o Ramayana e descreve os quatro ciclos cósmicos. Promete ainda ajudar os Pandavas entrando no estandarte de Arjuna. As peças de teatro «Saugandhika Harana» de Vishvanatha, um autor patrocinado por Prataparudra, governante de Warangal, em Andhra Pradesh e «Kalyana Saugandhika» de Nilakantha incidem sobre este entrecho em que Bhima, enquanto procurava as flores Saugandhika para Draupadi, num lago pertencente a Kubera, se confronta com Hanuman.

Nos textos Jainistas os Vanaras não são apontados como símios mas sim como espíritos aéreos «detentores de conhecimento» (Vidyadharas) possuindo morfologias híbridas ou humanas ou como um povo que usava nas coroas e bandeiras a insígnia de um primata. Hanuman não é um macaco mas membro da linhagem Khechar, sendo cunhado de Ravana, por casamento com Chandranakhi, a irmã do rei de Lanka. O seu exército tinha como emblema o aludido animal.

Muito venerado como deidade na Índia rural, Hanuman garante o afastamento de influências nefastas, tutelando com a sua pujança factores perniciosos para as vulnerabilidades humanas. Muitas tribos indígenas prestam culto a macacos, mantendo uma tradição de narrativas sobre Hanuman, levando a conjecturar a possibilidade dele ter sido uma figura não ariana absorvida pelo bramanismo. Talvez um Yaksha ou um destacado guerreiro autóctone que, como sucede noutros casos, depois de morto passou a ser motivo de preito e de protagonismo em histórias. Entre outras alternativas, atribui-se a sua paternidade a Vayu (Maruta ou Pavana, o Vento) e a Anjana, uma Apsara amaldiçoada que nasceu como Vanari e desposou Kesari. Podendo ela por natureza assumir à sua vontade qualquer

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morfologia, certa vez transformou-se numa bela mulher que, num monte, ao ser contemplada por Vayu, não o deixou indiferente. Após uma irrepri-mível união, nela germinou Hanuman. Segundo «A História de Padma» («Paumachariya», referindo-se a Rama) obra redigida em Maharashtri por Vimalasuri, um autor Jainista (entre 200 e 400), Hanuman descende de Anjana e do príncipe Pavanajaya de Aditypura. Após vinte e dois anos de abstinência sexual com a mulher, regressando de um combate como facção de Ravana contra Varuna, consumou o acto com ela mas a consequente gravidez foi considerada fruto de uma infidelidade. Em degredo, Anjana deu à luz numa gruta. Deslocando-se com Pratisurya, o seu tio maternal, para Hunuruhapura, a dada altura a criança deu um formidável salto do seu regaço e aterrou sobre uma rocha. Devido à força assombrosa do menino esta ficou despedaçada com o impacto. Segundo o «Bhavishya Purana», Shiva renasceu com a morfologia de Rudra, entrou na boca de Kesari e, servindo-se do seu corpo, fez amor com Anjana. Vayu procedeu do mesmo modo. Alojou-se no marido para fecundar a esposa. Da prenhez subse-quente, doze anos volvidos, nasceu um menino com face de Vanara. A Apsara Punjikasthala, com o nome terreno de Anjana ou Anjali, desagradada com o aspecto da criança em si gerada, renunciou a mantê-la consigo e deixou--a na floresta. O jovem Hanuman, com um apetite voraz, procurando alimento, viu o sol e, julgando que o astro era um fruto, pulou até ao céu e tentou engoli-lo. O sol aterrado com as investidas pediu socorro. Ouvindo os gritos, Ravana acudiu e enfrentou o faminto rapaz. 3 Um outro relato conta que Hanuman perseguiu o sol no espaço celeste com a intenção de o devorar e este refugiou-se no firmamento de Indra. Este deus arremessou--lhe então o seu raio (Vajra), atingindo com a arma o queixo do menino, projectando-o para a terra. Vendo o ferimento do filho, Maruti reagiu irado provocando a Indra e aos seus companheiros divinos um sofrimento causado por cólicas. Indra acabou por pedir desculpa e como prova do seu arrependimento conferiu a imortalidade a Hanuman. De acordo com o «Shiva Maha Purana», Vishnu um dia transformou-se numa formosa rapariga e Shiva, incitado pela sua beleza, ejaculou. Os sete sábios (Rishis) conservaram o sémen numa folha e verteram-no nos ouvidos de Anjana.

Progénie ou manifestação de Shiva, de Vayu, de Kesari, de Pavanajaya ou outros (no Sudeste Asiático aparece até referenciado como filho de

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Rama ou de Sita), semanticamente Hanuman indica «que tem um maxilar saliente» ou «que tem um queixo poderoso» («Hanu»=«queixo» + «Mah»=«grande», «forte», «poderoso») estando iconograficamente patenteado com a fisionomia de um primata, corpo de homem, uma cauda comprida e segurando uma clava na mão direita e uma montanha na esquerda.

Certas famílias ou clãs no Sul da China reputam-se de pertencer a uma genealogia retrocedente a macacos que, após sequestrarem mulheres, com elas se reproduziram. Segundo as «Cem Mil Palavras da Jóia» («Mani Bka’ ‘Bum»), Avalokiteshvara ou Lokeshvara (em Tibetano Spyan Ras Gzigs Dbang Phyung, o «Senhor que Olha para Baixo») surgiu no Tibete com a aparência de um símio. Seis machos sem cauda, as seis tribos ou clãs do «País das Neves», nasceram da sua ligação amorosa com um demónio fêmea autóctone. «A História de Bu Jiang Zong, o Macaco Branco», conto de autor desconhecido divulgado no início do período Tang (618-907), relata que durante a dinastia dos Liang (502-556, fundada por Xiao Yan) o general Ouyang He numa expedição a Chang Le abrigou-se numa caverna e nela a cônjuge deste foi raptada por um primata branco. Quando por fim a conseguiu recuperar, ela apresentava-se grávida e a criança que veio a nascer revelou semelhanças paternas, ficando com uma compleição simiesca. Ouyang He foi executado por ordem do governante Chen (557-588) e o jovem confiado a Jiang Zong, um amigo da família. 4

Certos mitos genésicos da Amazónia Peruana relatam que os seres humanos são macacos sem apêndice posterior. Para os Ocaina, numa primeira etapa, os humanos macacos alimentavam-se de terra e residiam num mundo sem sol nem lua. Numa segunda fase, após um dilúvio e um incêndio global, surgiram os símios sem cauda ao mesmo tempo que as plantas comestíveis. Os Hitoto acreditam que os seus mais avitos antepas-sados foram macacos convertidos em humanos. Para os Bora os símios passaram a ser humanos depois de uma chuva torrencial e um fogo que lavrou por toda a parte. De um modo similar os Huambisa concebem ter começado por ser macacos Maquisapa. Os mesmos animais são os prede-cessores étnicos dos Cashibo, protegendo-os em vida e auxiliando-os no percurso a realizar depois do falecimento. O defunto tem de transpor um rio, encontrando dois caminhos do outro lado e um homem macaco que revela qual o trajecto a seguir. Os Cuna e os Chama pensam que os

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primatas foram no passado homens. 5 Na mitologia Azteca, a época actual foi antecedida por quatro períodos cujos respectivos termos foram desas-trosos. No primeiro, gigantes colectores acabaram devorados por jaguares. No segundo, furacões transformaram os homens em símios. Os macacos da era moderna (a quinta) são reminiscências de um processo gradual de melhoramento da humanidade. Nas civilizações do México os animais serviam de disfarce ou resultavam da incorporação dos deuses, usufruindo por isso o seu estado de existência um esplendor sagrado. Um ano do calen-dário Azteca antigo era composto por dezoito meses com vinte dias. Cada mês e unidades temporais que o constituíam recebiam um nome e símbolo próprio, permitindo vaticinar o destino daqueles que neles nasciam. O décimo primeiro mês (Ozomatli) era emblematizado pelo macaco. «Aqueles que nasceram sob este signo eram considerados divertidos, como os actores, marotos, atraentes, engenhosos, ganhando a sua vida devido a estas quali-dades. Teriam muitos amigos; entre os reis e nobres estavam pessoas deste tipo. No caso de ser uma menina, viria a ser uma cantora alegre, graciosa, não demasiado modesta ou casta, agradável, capaz de persuadir com facili-dade em qualquer assunto.» 6

Hun Bats e Hun Chen, entidades distintas ou uma entidade dúplice, com cabeça de mono e corpo humano são deuses Maias das artes e surgem amiúde em cenas com os gémeos divinos ou com os regentes do mundo inferior. Os tutelares sobrenaturais da chuva e das águas correntes eram concebidos no México como tendo dimensões hipotrofiadas como os anões e gnomos. Tlatoc era o nome Azteca para englobar divindades pluviais, por extensão da fertilidade e regeneração dos solos. A sua morada situava-se no cimo das grandes elevações de terra e rocha ou no fundo das nascentes. Os Tepictoton, seres com uma corpulência diminuta, responsabilizavam-se por velar pelas montanhas.

4. Explorado e modelado de diferentes maneiras, o «Ramayana» disseminou-se pelo Tibete, Mongólia, China, Japão, Coreia, Vietname, Birmânia, Laos, Camboja, Tailândia, Malásia e Indonésia. Hanuman, personagem de realce no elenco, acompanhou a deslocação desta epopeia quer por intermédio da pregação religiosa e das traduções de textos concer-nentes às doutrinas, quer por via de mercadores, imigrantes, soldados, marinheiros e artistas itinerantes. A versão mais antiga da récita de Rama

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na China está incluída numa conversão do «Satparamitasamgraha Sutra» (em Chinês «Liudu Jijing») feita a partir do sânscrito por um monge Sogdiano chamado Kang Senghui (séc. III). Como sucede no Budismo, a narrativa é alterada para Jataka (relato das existências anteriores do Buda) intitulando-se «Jataka de um Rei Desconhecido». Aqui, Rama não é um Avatara de Vishnu mas o próprio Siddhartha Gautama num nascimento prévio e Sita a princesa Yashodhara, a sua mulher. Ravana é um dragão visível na forma de brâmane que a captura na floresta e a transporta para o seu reino insular. Hanuman, juntamente com as tropas que comanda, arremessando pedras no mar, constrói uma passagem para Lanka. 7 O mesmo tema, filtrado pelo olhar budista, está evidenciado na «Anamaka Jataka», traduzida para Chinês no século III e na «Dasharatha Jataka» trasladada por Ji Jia Ye em 472 e no capítulo 46 da obra «Jnanaprasthana» de Katyayaniputra, talvez transferida para a língua local por Xuangzang (séc. VII). As Jatakas são histórias com traços de parábola e de sermão com o desígnio de divulgar a doutrina Budista. Recorrem ao acervo de narra-ções tradicionais mudando-lhes o tom e acentuando uma interpretação consonante com os valores a transmitir, promover ou reforçar. Incidem sobre actos dignos de louvor protagonizados por Siddhartha antes de ele nascer como Buda e atingir o Nirvana. A «Grinalda dos Nascimentos» («Jatakamala Shastra») de Aryashura, obra do cânone budista do Norte, vertida para Chinês («Pusabeen Sheng Manlun») no século X ou XI, contém a «História do Grande Macaco» (capítulo 24) na qual menciona que o Bodhisattva foi noutros tempos um macaco de grandes dimensões subsistindo nos Himalaias (Himavat) como um asceta. Um dia salvou um homem perdido na floresta, vítima de um acidente. Esse mesmo indivíduo tentou depois matá-lo para ter carne para comer. Enquanto o primata dormia, exausto pelo esforço de o ter carregado às costas do fundo de um precipício, lançou-lhe uma pedra à cabeça. A sua intenção não foi recom-pensada. Embora ferido, o macaco não retaliou e acompanhou o agressor até à orla daquela região selvagem. Os remorsos torturantes do homem originaram-lhe lepra. Uma outra «História do Grande Macaco» (capí-tulo 27) aborda o Bodhisattva como chefe de uma tribo de símios numa área florestal dos Himalaias. Na trama, o soberano pitecantropo usa o seu corpo retesado como ponte para os companheiros poderem escapar de

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uma árvore Banyan sob o ataque de um monarca local. No fim dá uma lição de conduta virtuosa ao seu adversário. 8

Na cidade costeira de Quanzhou, na província de Fujian, onde existiu uma comunidade de mercadores indianos, nos despojos de um templo Hindu, há uma imagem que parece representar Hanuman. 9 Em Xinjiang, alguns textos Budistas referem a epopeia de Rama. Em Yunnan, entre a população Bai, Budistas que se exprimem num idioma do ramo Tibetano-Birmano, situados junto à fronteira com a Birmânia e entre a minoria Jingpo, da mesma família linguística, existem versões da mesma intriga. 10

Condensado em Jataka, o enredo do «Ramayana» foi transposto para o Japão. Os testemunhos datam desde o século X. No arquipélago nipó-nico chamava-se «Ramaenna» ou «Ramaensho» e o desempenho de Hanuman era mais discreto. Uma questão susceptível de controvérsia é admitir Hanuman como matriz de Sun Wukong, o rei macaco do ciclo de histórias intitulado «Viagem para Ocidente» («Xiyou Ji»), figura famosa da literatura e do teatro Chinês. Da autoria de Wu Cheng’en (c. 1500-1582) este texto baseia-se em relatos populares e em edições prévias.

Entre as referências pioneiras desta mais consolidada obra (publicada em 1592) e personagem encontramos na China o culto aos gibões, particular-mente os brancos, no reino Chu (700-223 a. C.), na zona da bacia central do rio Yangzi. Nesta região vigorava um repertório de narrativas em que intervinham estes animais. O Taoísmo enalteceu os poderes dos mesmos, considerando-os detentores de um conhecimento singular na retenção do Qi. Eram percepcionados como portadores de faculdades mágicas como a de se reconfigurarem e de saber prolongar a vida. Noutras partes deste país, o símio tem, entre outras propriedades, a de manter desviados entes malignos sobrenaturais causadores de doenças ou de fracassos no estudo e no comércio.

O tema em que um macaco demoníaco arrebata mulheres foi transmi-tido nalgumas composições literárias. Outro foco de legado será a viagem empreendida pelo monge Xuanzang (c. 602-664) pela Ásia com o propó-sito de chegar à Índia e adquirir instrução e escrituras Budistas. A descrição deste feito, documentada por um discípulo com o título «Memórias sobre os Países Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang Xiyu Ji», 646) terá impulsionado a eloquência e a imaginação dos contadores e uma

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tradição narrativa dela provinda pode ter germinado no período Tang (618-907). Na época Song (960-1279) existem duas obras similares: a «Narrativa Poética da Obtenção das Escrituras por Xuanzang do Grande Tang» («Datang Xuanzang Qujing Shihua») e o «Registo da Obtenção das Escrituras por Xuanzang do Grande Tang» («Datang Xuanzang Fashi Qujing Ji») nas quais o macaco aparece ao peregrino sob o disfarce de um erudito e afirma ser o soberano de 84 mil ousadas e destemidas criaturas da sua espécie, provenientes de uma caverna situada na Montanha das Flores e Frutos. Aqui, Sun Wukong («o macaco iluminado acerca da vacuidade») é chamado «macaco aprendiz de monge» (Hou Xingzhe). Na «Representação Miscelânica sobre a Peregrinação para Ocidente» («Xiyou Ji Zaju») do dramaturgo Yang Jingxian (século XIV), o rei símio juntamente com o porco Zhu Bajie e o frade Sha Wujing estão presentes. O mesmo sucede com «Sanzang dos Tang Procura os Sutras na Índia» ou «Viagem para Ocidente» de Wu Changling datada da época Yuan (1260-1368). Nela se elucida que Sun Wukong foi um primata de pedra que, depois de encon-trar uma fonte sagrada se tornou chefe dos macacos. Abandonou a sua montanha e partiu em busca da Verdadeira Via. No período Ming (1368-1644) na «Relação de uma Viagem para Ocidente», redigida por Yang Zhihe e corrigida por Zhao Jingzhen, Sun Wukong tem preponderância na trama. Parece, neste caso, como noutras récitas populares de trans-missão oral, ter existido um substrato ou enquadramento inicial que foi acomodando novos episódios e personagens de modo a satisfazer o apetite do público. Uma intersecção de histórias edificantes de teor Budista com outras de cariz mais mundano e ainda lendas, mitos e relatos fantasiosos. Wu Cheng’en reuniu uma série de fontes orais e bibliográficas para criar uma obra que sincretiza dados de um imaginário de abrangência Taoista, Budista e Confucionista. Precisando de versatilidade, de evitar a repe-tição, os profissionais do relato experimentaram novas situações, enredos e intervenientes para assim serem solicitados mais vezes para deliciarem com a sua arte. A introdução de Sun Wukong e a secundarização de Xuanzang foi fundamental para garantir a simpatia das audiências. O ajuste da personagem do «Ramayana» divulgada por via Budista ou a partir das comunidades indianas na China na ousada jornada de Xuanzang para a Índia foi determinante para o êxito e proliferação de episódios. «Viagem

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para Ocidente foi por um lado uma criação colectiva de artistas profissio-nais que ao longo de muitas centenas de anos desenvolveu as suas histórias e personagens como resposta a uma exigência do público e, por outro, o trabalho de um escritor de invulgar qualidade que usou o excelente mate-rial herdado para fazer algo melhor.» 11

Na civilização do Vale do Indo os arqueólogos descobriram entalhes retratando macacos. No Egipto pré dinástico estes mamíferos eram embal-samados e sepultados. A devoção a um babuíno cinocéfalo chamado Hedjuer («Grande Branco») está testificada na primeira dinastia em Hieracômpolis (Nekhen) e Abido por esculturas de babuínos sentados. Os «Textos das Pirâmides» conectam o cinocéfalo branco a Tot (helenização de Djehuti), potestade dos escribas, criadora dos hieróglifos. O nome Narmer, gover-nante proto dinástico, aparece gravado numa estátua de babuíno pertencente ao acervo do Museu de Berlim. 12 Babi ou Bebon era uma divindade pite-ciana com a morfologia de um babuíno. Para garantir a destreza sexual depois da morte, o pénis do defunto era identificado com Babi.

Portador de uma virilidade pródiga, Hanuman é também um ser íntegro e com uma estupenda erudição. Ensinado por Surya, aprendeu sânscrito, gramática, estudou as artes, os tratados indianos, as formas de Yoga e adquiriu faculdades psíquicas (Ashtasiddhi). Possui um discurso fluente e persuasor, uma força impressionante, pode dar saltos magníficos e alterar o seu tamanho e anatomia. É um melómano com dotes mágicos e mentais, irrepreensível no seu acatamento a Rama e Sita.

5. As proezas de deuses ou de heróis de uma cultura ficam preservados na memória dos poetas, narradores e ouvintes. Edificações grandiosas foram erguidas com vocábulos estendendo o passado pelas incertezas da transitoriedade cronológica presente.

No «Exame dos Quadros» («Chitradarshana»), primeiro acto da peça «A Última Façanha de Rama» («Uttararamacharita») de Bhavabhuti (séc. VIII), Lakshmana mostra a Rama e a Sita um conjunto de pinturas que patenteiam cenas das suas vidas. Recordam e comentam episódios preté-ritos, sendo Lakshmana o narrador e intérprete das mesmas. Uma delas representa Hanuman e Rama ao vê-la exclama: «Oh alegria! É o valente que tem um formidável braço, a felicidade de Anjana, aquele cujo hero-ísmo causou satisfação a nós próprios e a todo o universo». 13

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O relato de histórias com acompanhamento de imagens, bonecos ou marionetas foi uma tradição cuja prática tem origens antigas na Índia. Segundo as fontes Jainistas, os Ajivikas, seus rivais, na época do Buda (séc. VI a.C.) têm como figura mais eminente um homem chamado Goshala Mankhaliputra ou Maskarin Goshaliputra que, para doutrinar os seus discí-pulos, usava imagens. Este era descendente de um asceta (Mankhal) que subsistia de um idêntico ofício, transportando na sua itinerância uma vara ou bordão (Maskara). O «Bhagavati Sutra» (séc. III) refere que, relatando histórias, este homem percorria as aldeias com a sua mulher, tendo ela um dia engravidado de Goshala (o nome significa «que nasceu num estábulo de vacas»).

De modo a reforçar a concentração da assistência, os narradores serviram-se de técnicas histriónicas e vocais para acentuar ónus dramá-tico ao texto proferido e ainda pinturas, marionetas recortadas em pele de animal ou estatuetas. O emprego de suportes com composições pictóricas acompanhou a instrução Budista, Bramânica e outras. O âmbito geográfico deste recurso expandiu-se pela Ásia Central, China, Coreia, Japão, Sudeste Asiático, Irão, Arábia, Turquia e Europa. Os conteúdos variavam consoante a mensagem a transmitir mas os meios mantinham algumas similitudes.

Tanto no «Mahabhashya» de Patanjali (séc. II a.C.), um comentário em sânscrito aos textos do gramático Panini (séc. IV a. C.) e de Katyayana (séc. III-II a.C., autor que completou a gramática do anterior), como no «Mahavastu», obra que no mesmo idioma compila récitas Budistas (entre os séc. I e IV) aparece um termo para designar um certo tipo de profissional da narração: Shaubhika ou Shobhika (em língua Pali Sobhiya). O étimo poderá ser Shub («aparecer», «parecer», «brilhar», «saltar», «adornar», correspondente ao Arménio Surb). A segunda das obras mencionadas enumera um conjunto de artistas ou de animadores que vêm ver Gautama a Kapilavastu, entre os quais está o Shaubhika. Este seria uma espécie de actor, manipulando talvez figuras de sombras ou exibindo e descrevendo imagens. Outro vocábulo, Yamapata («Yama» é o gover-nante e juiz dos mortos) surge associado a récitas entoadas por alguém que mostrava representações dos submundos de castigo e tortura («Naraka», geralmente traduzido por «infernos»), destino no qual os seres têm de permanecer por um período diferenciado após o falecimento e antes de renascerem. Narak Chitra («Naraka» + «Chitra»= «imagem», «pintura»)

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corresponde a outro género, aparentemente uma herança do anterior. O «Harshacharita» de Banabhatta (séc. VII) regista o trabalho daquele que apresenta o Yamapata (Yamapatika) da seguinte maneira: «entrando na rua do bazar vi um Yamapatika rodeado por um grupo de rapazes impacientes e entusiasmados. Ele explicava-lhes os frutos do outro mundo a partir de um rolo pintado. Yama aparecia sentado num terrível búfalo. Segurando o rolo na mão esquerda ele, com uma cana na mão direita apontava as cenas pintadas». 14

No primeiro acto da peça «Rakshasa e o Selo» («Mudrarakshasa») de Vishakhadatta ou Vishakadeva (séc. IX?), Nipunaka, um espião ao serviço de Chanakya, o ministro de Chandragupta, serve-se deste ofício para vigiar os súbditos e obter informações sobre o que se passa entre eles. 15

A difusão deste acessório terá ocorrido com a deslocação dos seus intérpretes. As linhas de irradiação poderão ter uma origem indiana. Conhecemos no Tibete os narradores Ma Ni Pa que nas suas jornadas por feiras, centros de peregrinação e mercados apoiavam a elocução verbal da história com representações pictóricas (Thanka). Um tipo de cantor da epopeia de Gesar de Ling (Sgrung Pa) aparece provido com o mesmo recurso auxiliar e com uma flecha aponta as sequências da intriga nele registadas.

No Irão encontramos categorias parecidas de profissionais: o Shurat Khwan ou Shurat Khon (no teatro popular Shurat designava «marioneta» e Khwan ou Khon «narrador»), o Parda Dar, o demonstrador de Parda Dari (aquele que tem o Parda), Parda Zan e Shamayel Gardan («o circulador de imagens», nome alternativo para Parda Dar). «Parda» poderá equivaler ao indiano «Pata», «Pad», «Paj» ou «Par», indicador de «tecido», «pano», «lençol», «ecrã», utilizado nestes relatos («Pata» em sânscrito). Com uma sonori-dade e grafia aproximada de «Pata», o sânscrito tem igualmente o termo «Pata» («queda», «voo», «voar», «modo de voar», «que desce»), «Pa ta» («extensão», «série», «sucessão») e «Patha» («recitação», «leitura» ou «estudo de um texto»). Em dravídico a raiz verbal «Pad» indica «cantar» («Paddanas» são narrativas cantadas). Em Andhra Pradesh, por exemplo, estes rolos denominam-se por Kaki Padagalu e Patam Kathalu. Lendas acerca das castas e subcastas bem como tramas versando sobre heróis locais são expostas verbalmente recorrendo a este artefacto. Com ele o Gowda Chettie relata o «Gowda Puranam» à comunidade Gowda,

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o Machaiah encadeia a trama do «Madelu Puranam» à cumunidade Rajaka, o Kakipadagalavaru enuncia o «Mahabharata» à população Mudiraj, o Kunapulivaru o «Padma Puranam» à casta Padmasale, o Addapuvaru narra a lenda da casta Mangali (barbeiros) aos seus membros, o Gurrapuvaru a dos Malas à casta Mala e o Dakkalivaru a da Madiga à comunidade homónima. 16

A proferição de uma sequência de eventos numa lógica temporal implica o uso dos atributos vocálicos para criar uma experiência estética. A voz conduz o tema e a fórmula de emissão, sendo de algum modo a pessoa que narra um ilusionista que torna plausíveis e credíveis as ocorrências do seu discurso.

Na China o termo Bianwen (textos ou narrativas de mutação) surgiu conectado com uma tendência literária popular mais religiosa ou mais profana do período Tang (618-906). Bianxiangtu aplicava-se para especi-ficar as pinturas de teor fantasioso geralmente Budistas que descreviam os Narakas. O interesse pelo extraordinário e pelo exótico nas artes da palavra tem um legado precedente à época Tang mas é nela que a imaginação dos autores se emancipa de elos óbvios com o acervo tradicional. Os contos Chuanqi («transmitir o estranho») na lista dos quais podemos incluir a «História de Bu Jiang Zong, o Macaco Branco», são um testemunho vigo-rante em paralelo com o Bianwen. Este último supostamente derivou de um estilo de récita oral com imagens chamado Zhuanbian («interpretar transfor-mações» ou «virar [rolos com imagens] de transformações»). O narrador tinha junto a si «quadros» ou «cenas de transformação» (Bianxiang) que ia descrevendo e comentando. 17 Bian era o logograma Chinês para designar aquilo que nas línguas Indianas reportava ao poder mágico ou miraculoso da mutação a que os seres estavam sujeitos. A antecedência do Zhuanbian estará radicada na Índia e na disseminação do Budismo, tendo depois os chineses reajustado o género a histórias e a necessidades autóctones e particulares. «Pensamos que a recitação [de Bianwen] era acompanhada pelo desdobrar de rolos mostrando a representação pictórica das cenas evocadas, um pouco como o Wayang Beber da Indonésia». 18 Estas imagens poderão ter sido substituídas ou alternadas no período Song (960-1279) por marionetas de sombra.

Na era Yuan (1279-1368) e Ming (1368-1644) o género Pinghua sucedeu aos «Textos de Mutação» bem como os Baujuan («rolos preciosos») igualmente com incidências seculares e religiosas. A récita de Mulian,

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de procedência Indiana (o nome chinês de Maudgalyayana, discípulo de Buda, Mokuren em Japonês), afirma-se transversalmente quer nos Bianwen, Baojuan e outras expressões de literatura popular, mormente no teatro. No «Ullambana Sutra» («Sutra dos Espíritos Esfaimados» ou, de um modo mais literal, «Sutra dos que pendem de cabeça para baixo [nos infernos]», «Yulanpen Jing» em Chinês), o monge Maudgalyayana percorre os submundos de Yama (Yanlo em Chinês) e encontra a sua fale-cida mãe transformada num fantasma faminto (Preta). Oferece-lhe uma tigela de arroz e quando ela tenta ingerir os grãos estes transformam-se em pedaços incandescentes de carvão. Esta trama está associada à festa dos defuntos, realizada na China na dinastia Tang e que, desde então, ganhou progressivamente um estatuto mais popular. No Japão este período ceri-monial denominava-se por Festa das Almas (Urabon-e).

No início do século XIX era possível encontrar no arquipélago nipó-nico pedintes elucidando com veemência sobre estes espaços subterrâneos de sofrimento, evidenciando a iconografia relacionada. Estes mendicantes prolongaram um estilo de relatar com suporte pictórico adicional que remonta pelo menos ao período Heian (794-1185). Estas representações sobre os domínios infernais (Yemma Yezu) percorreram a China e entraram provavelmente no Japão pela Coreia. O nome Etoki («explicação de uma pintura» ou «explicação usando uma pintura») abarcava esta actividade. Em alternância ou como complemento podiam estar presentes pequenas figuras esculpidas associadas ao assunto ou urdidura. No século XVII os homens com esta ocupação designavam-se por Etoki Hoshi («propaga-dores da lei que explicam com imagens») e as mulheres por Kumano Bikuni («monjas de Kumano», do sânscrito Bhikhuni). Na região de Kumano, a sul de Osaka, existiam santuários Shintô e Budistas bem como eremitas (Yamabushi = «aqueles que dormem nas montanhas») que, por vezes, se uniam a mulheres com conhecimento de técnicas xamânicas (Bikuni) e com elas deambulavam pelas povoações pregando com o auxílio de imagens e obtendo esmolas com esta tarefa. Embora fosse um território sagrado, não há garantias que estas pessoas tivessem uma ordenação oficial para disse-minar valores de qualquer doutrina ou fossem de Kumano.

Instrumento educativo, recreativo e de satisfação estética, as histórias e modos de as relatar depreendem um usufruto do engenho e da perícia

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comunicativa humana. A narração exprime o indivíduo na sua articulação particular e colectiva, plasma convenções, sincretiza memórias, depura emoções e sentimentos. As tradições orais têm uma orgânica propensa à cissiparição, desdobram-se em variantes individuais e gregárias, podem ser recombinadas e reajustadas às experiências e vontades dos receptores. Com a farinha amassada o padeiro não faz exactamente pães iguais. Numerosos são os casos de interculturalidade nas diferentes categorias de récitas. Quando atravessam regiões, continentes e oceanos, significa que houve uma deslocação e ou contacto entre populações. O mesmo acontece com as cópias e traduções de manuscritos.

O brâmane Vishnusharma foi aconselhado a Amarashakti, o douto rei de Mihilaropya, para instruir os seus três filhos pouco interessados na aqui-sição de saberes. Para incentivar o idoso brâmane, o soberano ofereceu-lhe cem concessões de terra. Mas ele respondeu que aos oitenta anos os bens materiais não o entusiasmavam. O conhecimento não se vende por qual-quer preço. Transmite-se para o aperfeiçoamento humano. Disponibiliza os seus serviços apenas para que os descendentes do monarca tenham uma erudição ímpar capaz de os ajudar nas opções do discernimento polí-tico. Compila então para eles o «Panchatantra» («Os Cinco Livros»), conjunto de histórias provenientes da tradição oral, contendo aponta-mentos morais em verso de modo a facilitar a sua recordação. 19

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Referências:

1 – Lucian «The Lover of Lies or The Doubter», incluído em «The Works of Lucian» (Tradução de A. M. Harmon), Vol. III, Harvard University press, Cambridge, Massachusetts, 2004

2 – Idem3 – Ver Joginder Narula, «Hanuman, God and Epic Hero», Manohar Publishers,

New Delhi, 2005 e K. C. Aryan e Subhashini Aryan, «Hanuman: Art, Mythology & Folklore», Rekha Prakashan, New Delhi, 1994

4 – Mencionado por Lu Xun «Brève Histoire du Roman Chinois» (Traduzido por Charles Bisotto), Gallimard, Paris, 1993

5 – Raphaël Girard, «Les Indiens de l’Amazonie Péruvienne», Payot, Paris, 19636 – Diego Durán, «Book of the Gods and Rites and the Ancient Calendar» (Traduzido

por Fernando Horcasitas e Doris Heyden), University of Oklahoma press, Norman, 19717 – Zhang Xing, «The Advent and Study of Ramayana in China», incluído na obra

«Ramayana in Focus: Visual and Performing Arts of Asia» (Editado por Gauri Parimoo Krishnan), Asian Civilisations Museum, Singapore, 2010

8 – «The Jatakamala or Garland of Birth-Stories of Aryasura» (Traduzido por J. S. Speyer), Motilal Banarsidass, Delhi, 1982 [1895]

9 – Zhang Xing, idem10 – Ibidem11 – W. J. F. Jenner (Tradução), «Journey to the West», Vol. IV, Foreign Languages

press, Beijing, 199012 – Jean-Pierre Corteggiani, «L’Egipte Ancienne et ses Dieux», Fayard, Paris, 200713 – Bhavabhuti, «La Fin de la Geste de Rama», incluído no volume «Théâtre

de l’Inde Ancienne» (Direcção de Lyne Bansat-Boudon), Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 2006

14 – Mencionado por M. L. Varadpande, «History of Indian Theatre», Abhinav Publications, New Delhi, 1992

15 – Vishakadatta, «The Signet Ring of Rakshasa», incluído na obra «Great Sanskrit Plays in Modern Translation» (por P. Pal), New Directions, New York, 1964

16 – Bittu Venkateswarlu, «Scroll Narratives of Andhra Pradesh», incluído na obra «Chanted Narratives: The Living ‘Katha-Vanchana’ Tradition» (editado por Molly Kaushal), Indira Gandhi National Centre for the Arts, D. K. Printworld, New Delhi, 2001

17 – Ver Victor H. Mair, «Painting and Performance: Chinese Picture Recitation and its Indian Genesis», University of Hawaii press, Honolulu, 1988

18 – Jacques Pimpaneau, «Chine: Littérature Populaire – Chanteurs, Conteurs, Bateleurs», Éditions Philippe Picquier, Paris, 1991

19 – «Panchatantra ou Les Cinq Livres» (Tradução de Édouard Lancereau), L’Imprimerie Nationale, Paris, 1871.

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U ma das mais dramá-ticas consequências do longo período de autoritarismo que

Portugal viveu no século XX foi, além da paralisia das dinâmicas de modernização, a quase total atrofia da sociedade civil no que concerne à afirmação da individualidade cidadã e à gestão da coisa pública. Por isso não admira que, passado o período fundador da democracia com o inevitável afastamento das elites que o sustentaram – até por razões geracionais –, hoje tenhamos no poder e na oposição da alter-nância uma classe política que se caracteriza por agir em função de um pragmatismo gestor e de curto prazo, sem valores nem referências ideológico-histórico-culturais.

Os actuais governantes que, imitando o estilo norte-americano de exibicionismo pseudo-patriótico, ostentam na sua lapela a bandeira verde-rubra, fazem-no com preo-cupações de imagem e decerto por recomendação de conselheiros de marketing. Mas se lhes forem perguntar

Para Uma Ética RepublicanaFernando Pereira Marques

o que simbolizam essas cores e a sua origem não o saberão explicar, ou pelo menos são incapazes de se aper-ceber do seu significado, associado ao regime implantado (“implemen-tado” dirão eles ou pelo menos a maioria) em 5 de Outubro de 1910. Data entretanto banalizada no calen-dário, pois aparentemente vai deixar de ser feriado na sequência de um negócio feito com a Santa Sé e em nome dos “superiores” objectivos da produtividade e da competitividade – argumento ridículo que não inte-ressa aqui desmontar.

Claro que esses governantes são o produto da complexa cons-trução de uma democracia sobre a terra queimada pós-autoritária – como dissemos atrás –, assim como também do fracasso dos que os precederam após o 25 de Abril, no que concerne à criação e trans-missão de uma cultura democrática e republicana que emanasse das escolas, dos partidos e da vida cívica. Por isso, para eles, como para a maioria dos portugueses, a ideia de República esgota-se no facto do

LIVROS

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PARA UMA ÉTICA REPUBLICANA

Chefe do Estado ser legitimado, no nosso caso, por sufrágio directo e universal.

Ora a República e o republica-nismo são muito mais, como nos explica, de uma maneira sistemática e clara, Paulo Ferreira da Cunha no seu ensaio, saído há tempos, Para uma Ética Republicana (Lisboa: Coisas de Ler, 2010). A República, enquanto modo de gestão dos poderes e de relação entre governantes e gover-nados, começou a ganhar substância e sentido com a teorização da polis enquanto “comunidade de cida-dãos” e a distinção entre regimes que visam o bem comum e regimes ao serviço do “bem particular” dos governantes feita por Aristóteles; ou com a res publica de Cícero, baseada no “consentimento” – elemento fundamental retomado depois pelo pensamento liberal –, na “comunidade de interesses” e na “sociabilidade natural”.

A ideia republicana viria a ressurgir no Renascimento, em particular com Maquiavel que – sobretudo no Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio – defende a supe-rioridade da forma republicana de regime, sublinha a importância dos conflitos como condição de liberdade e afirma que só pode haver “bem comum” no “vivere

libero”, no qual coincide o inte-resse da cidade e dos seus membros. Depois, como é sabido, reencon-tramos essa ideia no contratualismo de Rousseau, já à luz da revolução americana em Thomas Paine e, sob os auspícios da revolução francesa, em Condorcet – só para citar estes nomes. Durante o século XIX, o desenvolvimento do capitalismo e a emergência de novas classes e problemáticas sociais, tornaram a ideia republicana nacionalista e patriótica com Mazzini, “asso-ciacionista” com Pierre Leroux, “solidarista” com León Bourgeois, mais tarde socialista com Jean Jaurès. Pode dizer-se que, entre-tanto, em consequência das derivas totalitárias e autoritárias do século XX, se assiste a uma renovação da ideia democrática através da ideia republicana em Arendt, com o seu primado da “vita activa”, em Habermas, em Rawls, em Pettit ou – e longe de ser exaustivo - num autor menos conhecido como Maurizio Viroli.

Paulo Ferreira da Cunha ajuda--nos a fazer todo o percurso – que eu sumariei – mas, como o próprio título enuncia, sistematizando e analisando sobretudo a questão dos valores e das virtudes que consti-tuem o património ético da ideia

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1 Op.cit. pp. 187-192.

2 Ibid. p.213.

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republicana e lhe dão hoje, mais do que nunca, uma enorme actu-alidade. Porque – como faz o autor – basta partir da consagrada tríade programática Liberdade, Igualdade e Fraternidade – a que se deverá acrescentar a indispensável Laicidade –, para se deduzir um projecto de construção do Estado e da sociedade onde se compatibi-lize a democracia, na sua dimensão formal, com a justiça social, a afir-mação da individualidade cidadã com a responsabilidade cívica, assente no que se poderá designar por virtudes privadas. Isto graças, precisamente, ao exercício do poder e da autoridade norteado por virtudes públicas como a “convicção e coerência política”, o “serviço e dedicação públicas”, o “desapego aos lugares públicos”, a “parcimónia pública e liberalidade privada”, o “despojamento, frugalidade e comedimentos pessoais”, a “cons-tância, adaptabilidade inteligente e coerente”, o “legalismo inteligente e crítico”, mais o “respeito pelas leis como garantes de liberdade”.1

Numa situação onde um Presidente da República faz tropeçar a dignidade do cargo em histórias

de pensões e acções, onde o enri-quecimento ilícito, a corrupção, os “negócios”, no contexto mais geral de crise do ultracapitalismo, empurraram o país para o empo-brecimento, o agravamento das desigualdades e do atraso, para o descrédito das instituições demo-cráticas, é, mais do que nunca, necessário lembrar, nomeada-mente, que a I República pode ter fracassado em muita coisa, mas não na dimensão ética daqueles que esti-veram na sua génese e nela tiveram papel mais relevante. Deste modo, além das virtualidades da ideia repu-blicana, entendida em toda sua riqueza consolidada no decurso da história, interessa cultivar a apren-dizagem da sua dimensão ética e acentuar a importância em a trans-mitir às novas gerações. Pois, como escreve Paulo Ferreira da Cunha: “O republicanismo não será, assim, uma ideologia radicalmente exclusora de outras, mas um vector ideológico sobretudo assente numa ética de serviço da comunidade e no anelo da fraternidade, capaz de potenciar e melhorar a qualidade e a coerência das várias ideologias democráticas, e de as levar mais além.2”

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Para Fernando Catroga quando falamos em ‘Estado’ estamos a referir-nos à dimensão institucionali-

zada de um poder centralizado que se exprime através do monopólio legí-timo da força e do direito exercido sobre um determinado território e que pressupõe a distinção entre governantes e governados. O aspecto central desta concepção é porven-tura o último, já que remete para a dimensão coactiva do poder estatal, que, no caso do Estado de direito, se exerce através do ‘império da lei’ e da polícia que garante a sua apli-cação e os direitos individuais, mas esquece duas dimensões essenciais da cidadania: a participação política dos cidadãos e a procura do bem comum.

A ausência destas duas dimen-sões desperta a necessidade de uma reflexão sobre a “respublica”, etimo-logicamente ‘coisa do povo’. Este termo significa a ideia de uma comu-nidade política organizada em que a procura do bem comum se coloca acima dos interesses particulares

Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011Joaquim Jorge Veiguinha

exclusivos. Outra dimensão da ‘respublica’ é a dimensão da parti-cipação política: para os gregos a ‘polis’, ou seja, a comunidade polí-tica, contrapunha-se à ‘oikos’, a esfera ’privada’ da família, consti-tuindo a vida cívica a forma de vida mais elevada. No mesmo sentido, os romanos e, em particular, Cícero, consideravam que “a indiferença e acção exclusivamente centrada no interesse de quem age não cons-tituíam virtudes” (p. 43) e, por conseguinte, que “um homem virtuoso por excelência nunca seria o que se mantém “à margem de toda a atividade pública” (p. 44).

É certo que a ‘liberdade dos antigos’, como referia no século XIX o liberal Benjamin Constant, pressupunha a existência de escravos que trabalhavam para os cidadãos ‘livres’. No entanto, ao contrário do que este pretendia demonstrar, a emergência da modernidade não pode ser entendida como a morte da dimensão cívico-política e do triunfo de um Estado separado da sociedade civil que se limita a

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CATROGA, FERNANDO – ENSAIO RESPUBLICANO, FFMS, LISBOA, 2011

garantir, através do império da lei, a coexistência das esferas privadas e as liberdades individuais.

Será em Maquiavel que podemos encontrar as duas dimensões conflituantes da modernidade polí-tica: a primeira concebe a política como uma técnica de conquista e gestão do poder e, por conseguinte, apela desde logo para a separação dos governantes dos governados; a segunda desenvolve a dimensão da respublica, entendida como um “vivere libero e civile” que se opõe ao fatalismo cego da fortuna e é alimentada pela ‘virtù’, entendida como o conjunto dos “comporta-mentos primordiais que visam criar o novo” (p. 66). Esta dimensão não é, porém, uma reprodução da ‘liberdade dos antigos’, já que o moderníssimo Maquiavel considera que a ‘virtù’ não consiste no unani-mismo, mas resulta do equilíbrio das tensões e conflitos que existem no seio de uma república em que os cidadãos resistem à instauração de um poder suportado pela resig-nação e pelo fatalismo.

Outra questão importante anali-sada por Fernando Catroga, é a relação entre poder e liberdade. O primeiro sufoca a tendência do homem para se libertar das impo-sições e constrangimentos que

pretendem confiná-lo num ‘eterno presente’ sem futuro e sem espe-rança. Não é difícil de compreender então que a liberdade é a antítese do poder, pois rompe com a ‘ilusão’ de que os que o servem “poderiam dominar os que estavam mais abaixo na hierarquia das dependências pessoais” (p. 71). Mas isto signi-fica que, perante a ‘banalização’ da palavra ‘liberdade’ – até os membros ultraconservadores do ‘Tea Party’ norte-americano se arvoram em arautos da ‘liberdade’ –, é neces-sário redefinir o conceito. Muito justamente, Fernando Catroga recusa o concepção neoliberal em que a liberdade é entendida como ausência de impedimentos à afir-mação do individuo – o que acaba por transformar-se no direito dos mais fortes à liberdade – defen-dendo que esta se centra na “recusa do arbítrio e da tirania”, ou seja, na “não dominação” (p. 80): a minha liberdade não pode ser conseguida à custa da liberdade do outro, mas só é possível quando pressupõe neces-sariamente um processo contínuo de auto-aperfeiçoamento, coope-ração e entreajuda.

Segue-se a análise da relação entre liberdade e igualdade, questão que tem suscitado muitas discus-sões estéreis e conclusões tão falsas

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JOAQUIM JORGE VEIGUINHA

quanto sumárias. Para sair do círculo fechado destes debates inconse-quentes, o autor tem de regressar, por assim dizer, às origens. A teoria do mandato imperativo – que foi defendida por Robespierre e pela ‘ala esquerda’ dos jacobinos durante a Revolução Francesa e retomada pelo bolchevismo leninista –, apesar de pôr em causa a ‘irresponsabili-dade’ que o mandato representativo confere, de certo modo, aos ‘manda-tários’ eleitos, baseia-se numa “certa ideia mística do povo” que acaba por “defini-lo como uma entidade una e indivisível, detentora, por natureza, de uma soberania pouco aberta a mandatos que plurali-zassem a sua unidade substancial, ou que pudessem trazer o regresso dos corpos (sociais e políticos)” (p. 94).

A ausência de pluralismo polí-tico tem como contraponto a génese da concepção de ‘vanguarda polí-tica’ que, em nome da igualdade e da prática virtuosa, se autopro-clama representante exclusiva do povo e, em consequência, acaba inevitavelmente por inviabilizar “um conceito de vontade geral que respeitasse as minorias e incentivasse a formação de associações políticas que pugnassem pela formação deli-berativa do interesse comum” (p. 102). Eis como, os ‘comissários do

povo’ substituem os mandatários do povo e instauram uma espécie de “ditadura comissarial” em que o próprio princípio legitimador do mandato imperativo – a revoga-bilidade a qualquer momento dos representantes se não cumprissem o programa político para que foram eleitos – é posto em causa, pois as diferenças políticas consideradas como fracturantes são erradicadas do horizonte em nome da ‘superio-ridade’ moral dos que se encontram conotados com a ‘vanguarda polí-tica’ relativamente aos outros, “o povo realmente existente”. Este nunca se enquadrava verdadeira-mente nesta, em consequência da sua consciência ingénua ou da sua passividade, na versão idealizada de ‘povo virtuoso’ ou dos elementos ‘revolucionários’ do povo. Tal como Marx dizia que Hegel subs-tituía a “lógica da coisa” pela “coisa da lógica”, os comissários do povo, com a sua pretensa superioridade moral e política, convertem o ‘povo realmente existente’, cuja represen-tação monopolizam, no ‘povo dos comissários’.

Tanto a ‘ditadura comissarial’ como a concepção exclusivista de liberdade criaram imensos desas-tres sociais e políticos. É, portanto, necessário encontrar uma alternativa

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que reconheça a conflitualidade social e o pluralismo político que ela necessariamente implica e recuse o autoritarismo e o direito dos mais poderosos a privarem os outros da sua liberdade e auto-nomia para imporem o seu arbítrio. Parafraseando Jürgen Habermas, Fernando Catroga considera que esta alternativa passa necessaria-mente por um novo conceito de cidadania democrática baseado não numa identidade nacional fixa, mas num processo intersubjectivo de conhecimento construído por deli-beração pública que contribua para garantir a autonomia dos indivíduos e a procura do bem comum e tenha como objectivo subordinar o ethnos ao demos (p. 133).

Este livro de Fernando Catroga reveste uma enorme importância na actualidade do país. Quando alguns começam a contrapor o ‘interesse do Estado’ à vida cívica numa espécie de saudoso retorno a uma ordem salazarista sob novas formas e apelam à resignação dos cidadãos para se autoperpetuarem no poder, é tempo de reinvocar a ‘virtù’ maquiavélica, já que a ‘fortuna’ representa aquilo que “só será vencido quando esta consegue através da irrupção do novo, dar forma criativa à matéria-prima que aquela lhe oferece” (p. 67).

CATROGA, FERNANDO – ENSAIO RESPUBLICANO, FFMS, LISBOA, 2011

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REVISTAS RECEBIDAS

Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2ºTrimestre 2011.Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3ºTrimestre 2011.Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4ºTrimestre 2011.Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1ºTrimestre 2012.The Flemish Left amidst a Nationalist Surge, Gerrit Kreveld Foundation, Ghent, 2011.Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Porto, Julho 2011.Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Porto, Dezembro 2011.ParoleChiave, Carocci Editore, nº44, Roma 2010ParoleChiave, Carocci Editore, nº45, Roma 2011Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, nº93, Coimbra, Março 2011.Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, nº93, Coimbra, Junho 2011.Tempo Exterior, IGADI, nº23, Baiona (Pontevedra), Julho-Dezembro 2011.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº155, Lisboa, Novembro-Dezembro 2010.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº156, Lisboa, Janeiro-Feveriro, 2011.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº157, Lisboa, Março-Abril, 2011.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº159, Lisboa, Julho-Agosto, 2011.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº160, Lisboa, Março-Abril, 2011.Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº161, Lisboa, Novembro-Dezembro, 2011.

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TEMA PRINCIPAL

O SOCIALISMO DO FUTURO*DOSSIER EUROPAA IDEIA DE REVOLUÇÃOREVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZO INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIAA EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONALDAS PRESIDENCIAIS AO GOLFODEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?O REGRESSO DOS NACIONALISMOSA EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?O FIM DA POLÍTICA?AMÉRICA! AMÉRICA!A ALEMANHA E A EUROPAA EUROPA, NÓS E OS OUTROSA ESPANHA E NÓSO FIM DE UM CICLOA EUROPA E NÓSVÁRIOS TEMASPOR UMA EUROPA À ESQUERDAO ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃOREGIONALIZAÇÃO E O PAÍSO REGRESSO DO POLÍTICODECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOISA GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULOO ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSAESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?JUSTIÇA FISCALA GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃOA EUROPA DEPOIS DE NICEA DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIOO MUNDO EM CRISESER MINORIA, HOJEA ESQUERDA NA ENCRUZILHADAA CRISE MUNDIALUMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPAO ISLÃO E A MODERNIDADEEDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESAESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇASLIBERALISMO E DEMOCRACIAPODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVILA EUROPA DEPOIS DE LISBOAQUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIAO SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMOAS REBELIÕES ÁRABESA CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU

*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10 anos antes, publicados no nº 1)

NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de 25% de desconto na aquisição de cada exemplar.Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto.

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