diÁlogos das novas grandezas - literatura digital · os convivas de ordinário fór-çam-no a...

139
COSME VELHO DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS DO BRAZIL 1. SERIE I Ruy Barbosa: fínteu ou Briareu?II R. B. Briareu. -III R. B. Pro- íeu. — lV R. B. Prometheu-Sonho chinez. — V Moscas e aranhas. VI Utopia. — V I I De autornouel- RIO DE JANEIRO Typ. da " Jornal do Comraercio 1909

Upload: dangkhue

Post on 12-Feb-2019

233 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

COSME VELHO

DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS D O

B R A Z I L

1. S E R I E

I Ruy Barbosa: fínteu ou Briareu?—

I I R. B. Briareu. - I I I R. B. Pro-íeu. — lV R. B. Prometheu-Sonho chinez. — V Moscas e aranhas. V I Utopia. — V I I De autornouel-

RIO DE JANEIRO

Typ. da " Jornal do Comraercio

1909

Page 2: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

Ie ne fay rien sans

Gayeté (Montaigne, Des livres)

Ex Libris José Mindlin

Page 3: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

COSME VELHO

OAZEAU

PRAÇA DA „-K, 40

m

DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS D O

B R A Z I L

SERIE

I Ruv Barbosa: fínteu ou Briareu?— I I R. B. Briareu.—Ul R. B. Pro-teu. — IV R. B. Prometheu- Sonho chinez.—V 'Moscas e aranhas.— VI Utopia. — V I I De automooel.

RIO DE JANEIRO

Typ. do " Jornal do Commercio

1909

Page 4: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa
Page 5: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

Dialogo ias novas grandezas do Brazil

RUY BARBOSA: ANTEU OU BRIAREU?

Ainda se conservam vivas, como de hontem, as im­pressões da festa literária que no seu dia natalicio Brazi-lino Dias, o fino diletante conhecido de toda a sociedade fluminense, ofereceu aos amigos nos salões do seu encan­tado palacete das Laranjeiras.

A reunião, embora intima, foi sumptuoza; já se vê que o luxo não devia ferir o gosto do anfitrião, o qual, como se sabe, reúne ás qualidades de um espirito educado á moderna, índole comparável ao -daquelle celebre ro­mano que se chamou Attico. Seu enorme poder de assi­milação não lhe permite ser estranho a nada que se refira á vida das sociedades antigas e modernas. Para que se compreenda quanto é exata a semelhança da sua fizio-nomia com a do intimo de Cicero, basta dizer que elle, rastejando pelo seus sessenta anos de idade, atravessou a revolução e todos os motins políticos, sem quebra da amizade de indivíduos pertencentes ás coteries literárias -e aos credos politicos mais opostos.

Brazilino Dias é o que se pôde chamar rigoroza-mente um intelectual, mas um intelectual pratico, cuja

Page 6: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

força, rezide em singulares e estraordinarias faculdades de previzão. Os seus conhecimentos são universaes.

Uma fortuna bem aplicada deu-lhe ensejo de viajar, Hoje, a par de uma cultura cientifica e literária invejá­vel, de um gosto artístico apurado, pois é muzico, pintor e até escultor, possue observações próprias no campo da economia política e da finança e, si quizesse, poderia exer­cer o cargo de ministro da fazenda, dando lições aos mais pintados. O seu horror á política o tem, todavia, afastado de imiscuir-se nos negócios públicos. Isto, porém, não o impede de dar conselhos a muita gente; e mais de um amigo deve ao seu tino a reconstrução de seus negócios particulares. Emfim, Brazilino Dias é uma dessas natu­rezas privilejiadas a cuja serenidade todo mundo acha prazer em acolher-se, e cujo bom senso e bondade nativa saram, só pelo contato, os desgostozos da vida e os ajitados pelas torturas do ideal. E digam que a cultura nacional não produziu até agora senão bananas !

Não se descreve o luxo com que estava ornamentado o palacete em que se celebrava a festa aniversaria, porque não é a primeira vez que o nosso anfitrião abre os seus salões. O do banquete achava-se preparado sobriamente. Um quer que seja de simplicidade grega nos adornos; algum excesso de panejamento na pintura muito branca, apenas tonificada por azul e tênues douraduras. Moveis de laça branca, um dos tics de Brazilino, e serviço de cris­tal. Poucos acepipes; abundância de frutas do paiz e passas do Oriente; vinhos italianos e húngaros; Samos, Chypre, deliciosos.

Não tendo família, e vivendo no meio desse luxo modulado e um tanto arcaico, Brazilino Dias fazia, elle mesmo, as honras da caza. No seu trato, sem perda do

Page 7: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

verniz moderno, ha alguma couza que lembra uma hos-pedajem de beneditino dos bons tempos. A sua conversa não se impõe; flutua no aconchego dos amigos, e o agrado, não sendo obsedante, monopoliza as atenções dos mais indiferentes. Todavia, Brazilino Dias não se antecipa; sempre recatado no seu principio de ampla liberdade, nunca solicita essa atenção. Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar.

Não é propozito dar aqui a discrição dessa festa que deixou Cosme Velho para toda a vida cativo da candura de tão facinante espirito.

Incumbam-se outros de contar o que houve de mais notável na parte artística e na culinária; digam elles o que fizeram os amadores e profissionaes que lá estiveram e a execução das obras dos mestres Bach, Beethoven, Wa­gner e Saint-Saens. Cosme reproduz o que ouviu na meza, depois de saudado o anfitrião, relativamente alguns ho­mens do Brazil, logo que se entornou o Champagne, e, ao signal do dono da caza, pôde a conversa generalizar-se.

Coubera a Cosme Velho assentar-se entre o folhe-tinista J . Guerra e o muito querido Luciano de Medina. Perto estavam Arthur Aguinaldo, o comediografo da moda, Raulino Palma, João Rivas, Souza Allemão, Ro­drigues Barbalho e Valerio Guimarães. Mais lonje junto ao anfitrião fora colocado, em lugar de honra, o chefe da literatura nacional, o impecável prozador Calado Mo-niz.

Os demais convivas eram portadores dos nomes de quazi todos os artistas e poetas que a imprensa diária ocupa ou festeja: Olintho Bergerac, Aurélio Nabor, José Vereza, Coelho Nova, V. de Tambaqui, o escultor Ra-faeli, o pintor Rodolfo Amado, Leopoldo Sanchez, e

Page 8: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

outros distintos cavalheiros, que não sendo artistas, or­namentam, comtudo, os banquetes nacionaes.

Foi justamente no grupo, cujos centros eram Cosme e Palma, que se acendeu primeiro o facho da palestra. Rompeu a marcha o trefego Raulino.

Arthur Aguinaldo, cujo espirito nunca deixa passar ocazião de associar as grandes imposturas desta terra, dizia que Martins Penna era o maior poeta do Brazil, porquanto ninguém até hoje entrara tão fundo na alma do povo brazileiro.

— Não temos povo, retorquiu Raulino Palma. Es­cravos até 1888 ! Mascates, nas cidades, senhores de en­genho, no norte; fazendeiros e monarcas de cochilhas, no sul; o povo somente em 1894 começou a ser forjado. Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa alma que não existia ?

Arthur Aguinaldo sorriu maliciozamente e disse: — Eu te compreendo, meu fulano. . . De filozofias,

de certo, não entendo; mas quer me parecer que vocês á força de sistemas acabam por adiar tudo para a liqui­dação do vale de Josaphat. Ah! bem sei que nesse esperado dia de juizo haverá muito filozofo de hoje atrapalhado em restituir a Spinosa o que lhe surripiou sem cerimonias.

— Spinosa era judeu. E' mais provável que seja elle quem haja de fazer restituições. Que tem, entretanto,. Spinosa com o comediografo Penna e com a alma do povo brazileiro ?

— E' que eu penso que alguém julga as minhas re­vistas inspiradas no Penna.

— Va sans dire! Mas fiquem certos de que nunca é tarde para corrijir enganos que afetam a estrutura social do Brazil. A alma do povo brazileiro está neste momento

Page 9: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

escondida em meia dúzia de homens corajosos, muitos delles sem nomenclatura, pelo menos conhecida...

As idéas estremadas de Raulino Palma puzeram um colorido rubro nos primeiros apartes, que partiram do V. de Tambaqui, o mais eloqüente contador de anedotas que existe no Rio de Janeiro.

— O Raulino Palma com as suas doutrinas estrava-gantes o que pretende é dar a todos nós o colar vermelho de Maria Antonietta. Esta sua alma brazileira é o germen da anarquia.

Brazilino interveiu logo com um sinal; e a socio-lojia rubra retirou-se da conversa um tanto espivitada.

Houve, então, quem se lembrasse de perguntar qual era, na atual situação do paiz, sob o ponto de vista jurídico e social, a cabeça reprezentativa do Brazil. Esta impru­dente interrogação foi posta por Coelho Nova, que é fértil em problemas desta natureza.

— Qual o homem reprezentativo do Brazil sob o ponto de vista do direito e dos estudos políticos ?

J. Guerra deu um aparte ferino: — Isto importa o mesmo que inquirir quem é mais

valente, se Silva-Cesar ou Souza-Napoleão! Rizadas: mas nem por isso a proposta deixou de ser

tomada em consideração. O V. de Tambaqui disse que tínhamos um homem

•capaz de suportar esse pezado encargo sem toscanejar. Esse homem era Ruy Barboza.

Seguiu-se o bruáá carateristico das discussões entre brazileiros.

— E o Lafayette ?!! — Assis Brazil ! — Clovis Beviláqua ! •

Page 10: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

8

E outros nomes, tanto do antigo como do novo re-jimen, se fizeram ouvir disparatadamente.

— Quem pronunciou o nome de Lafayette, pergun­tou o anfitrião, pondo ordem no ataque.

— Eu, disse Luciano de Medina, incontestavelmente de todos os prezentes o mais competente para fazer a se­leção na parte jurídica. Sustento que o Lafayette sobre-leva a Ruy Barbosa.

— Não sobreleva, não, senhor, retorquiu o V. de Tambaqui. Ruy Barbosa é muito homem para triunfar do impossível, do Estado-Maior do Exercito Francez, por exemplo, taes e tão formidáveis são os seus recursos dia­léticos. Estou certo que, si lhe dessem o Jornal por seis mezes para mover a campanha da restauração, elle conse­guiria tornal-a uma realidade no fim desse periodo, a me­nos que a abobada celeste não dezabasse sobre nós.

Luciano de Medina sorriu dessa injenuidade sociolo-jica e acrecentou:

— Homem, isto faz-me lembrar uma anedota que li algures, si não me engano nas notas de Naigeon, edição das obras completas de Diderot, relativamente a um gran­de ator francez, que fazia realçar de modo estrabrdinario ínfimos papeis das peças de Cailhava: "Com a breca! esse ator seria capaz de reprezentar o Padre Nosso com êxito igual ao de qualquer trajedia de Voltaire." Hoje no tom de Figaro, amanhã no de Tartufo.

O V de Tambaqui não se deu por vencido. — Ora ahi vem você com Cailhavas. Pois saiba que

o Ruy seria muito homem para compor uma missa de Reguiem igual á do Padre José Maurício.

Gargalhadas geraes.

Page 11: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

9

A opinião de Brazilino foi solicitada insistentemente. O anfitrião, silenciozo, sorria de vez em quando, sem soltar palavra, nem gesto de aprovação ou reprovação. Continuou calado.

— Quanto a mim, proseguiu Luciano de Medina, o> cérebro mais forte que existe no Brazil é o do Lafayette. Não me refiro só ao jurista emérito, claro, concizo, de doutrina incontestável, que todos reconhecem, mas tam­bém ao homem de espirito, ao homem que em qualquer parte do mundo oonsiderar-se-ia um astro de primeira grandeza. Quem já conversou melhor do que esse homem r mais variadamente, com menos pedantismo, apezar do co-piozidade dos seus conhecimentos? Quem como elle já sou­be emitir ironias e ditos agudos sobre a nossa vida social?' Rival de Figaro na untuozidade pratica, reúne a essa qua­lidade o florentinismo de Rivarol. Lafayette é o brazileiro* que mais tem cunhado e emitido medalhas-epigramas para condecorar os vulgares desta terra, ou os seus adversários. Não ha quem tenha se esquecido do que elle fez no Par­lamento quando dirijia os destinos do paiz. Facinava o Imperador, ao mesmo tempo que paralizava o seu par­tido e enchia de ridículo os que o atacavam. Não vejo-espirito mais forte, nem mais enjenhoso. Si o caricatu­rasse, dezenharia Machiavel com as roupas-e a cabeleira de Moliêre, narrando uma gracioza fábula de Lafontaine Retirem, pois, as suas candidaturas. Ainda direi que o

*autor dos Direitos da família, sobre ser um grande cetico-do feitio de Renan, é um profundo sabedor das couzas divinas e humanas. Elle tira horóscopos e fala alta noite com os sobrenaturaes. Não sei, por ultimo, se afirme que, si Lafayette, nascido na Allemanha, teria escrito a obra? de Nietzsche, sem ficar louco.

Page 12: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

10

O V. de Tambaqui protestou em termos sinuozos. Era estranhavel toda aquella apolojia do homem, do po­lítico do segundo império, que mais concorrera para a de-compozição da monarquia. Na sua opinião o Lafayette não passava de um cartajinez mal acabado, ora cobrindo o rosto com a mascara de Sganarello, ora mostrando a lanterna majica do macaco da fábula de Lafontaine. Dar contas de si e da ética que professa, é que elle nunca faz.

Luciano de Medina retorquiu que as circumstansias tinham marcado o lugar que na política cabia áquelle homem superior. A sua missão não fora outra sinão en­treter Lear e desfazer as finanças de Shylock. Enganam-se todos os que pensam que elle seja incapaz de utilizar os processos inventados desde o Ministério Olinda, transfi­gurados depois pelos conservadores e liberaes que viviam

• dentro do queijo do Senado. — Mascara ! Falam na mascara de que uzam os

homens de estatura ? Nietzsche dizia que "é .uip dever da humanidade seleta respeitar as mascaras, e, ainda mais, parece de elementar prudência não fazer psicolojias, nem exercer curiozidade sobre couzas tão respeitáveis." O eminente jurisconsulto recolheu-se ao silencio, onde ru-mina a sua grande obra sobre o direito da guerra e da paz. Respeitemos este silencio augusto e aguardemos o crepúsculo dessa alta intelijencia.

As ultimas palavras de Luciano de Medina foram recebidas por um ruido ensurdecedor, no meio do qual pude apenas colher retalhos de frazes hostis ao ex-con­selheiro da monarquia. Alguns moços, prezentes, em nome, uns, de Comte e Spencer, outros de Kant, Schopenhauer, Hoeckel, Hermann Post, outros, de Garofalo, Ferri, Tarde, Cogliolo, Impalomeni, repeliram, revoltados a

Page 13: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

11

qualificação de superior conferida á Lafayette, no seu parecer, um atrazado, um romântico, muito anterior ao próprio naturalismo.

— Como se iludem a respeito do meu gigante ! Elle tem recursos para ser o que bem quizer. Lafayette não encontraria dificuldade em ser místico, no atual momento, •si o ser mistico pudesse dar-lhe um prazer inteletual.

Cosme Velho conseguiu emfim falar. Era apolojista de Assis Brazil. Felizmente o autor da Republica Federa­tiva não sofreu grande opugnação e foi aceito pelo cir­culo que ali estava a diplomar os gênios brazileiros. Elle não comparou o diplomata que ultimamente foi as delicias do Rei dos Portuguezes com o ex-conselheiro do Império, mas poz-se a cotejar o perfil filozofico do jovem publicista com o de Ruy Barbosa.

Com efeito, no terraço das escolas, quanto ao cri­tico, Ruy Barbosa não faria senão uma péssima figura. O que Assis Brazil era todos sabiam: — um evolucionista, educado primorozamente nas paginas de Spencer, só es­crevendo depois de largas meditações, sóbrio nas propor­ções dos livros que publica, procurando a clareza como meio de convencer, orgulhozo da sua força, mas tendo -como objetivo fazer vingar a idéa antes de ser admirado. Os seus livros Democracia reprezentativa e Rejimen pre-zidencicl dão a impressão justa de um espirito que marcha sem malícia, certo do ponto onde chegará; tranqüilo, dezanuviado, satisfeito do próprio esforço.

Outro tanto, não se encontra na alma, nem no mo-dus fackndi do autor das Cartas de Inglaterra.

Houvera no principio da sua vida, propriamente de publicista, isto por volta de 1878, um movimento de fi-lazofia voltaireana, infestada dos processos de eloqüência

Page 14: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

12

dessa tribuna franceza que tinha um olho em Proudhon e outro em Macaulay, ou, para melhor dizer, no parla­mentarismo inglez. Esse movimento se traduzira no vo-lumozo livro O Papa e o Concilio, em que o autor mos­trou, pela primeira vez, de modo solene, a sua repu­gnância á concizão, á sobriedade e a todas essas virtudes que o grande Quintiliano recomendava. Este livro é uma pororoca amazônica que nos embrulha, durante a leitura, em um novelo de citações, opiniões inúmeras, de envolta com um vago critério regalista. No rujir do período bom­bástico, no espumar da onda do estylo encapelado, uma vez por outra, vê-se surjirem, torturados pela revolta da fraze, membros de algum filozofo do século XVI I I .

O tom herético, que tinha feito a fortuna de tal obrar

graças á incandecencia deixada pela questão dos maçons e os bispos, dissipou-se com o tempo, mesmo porque era impossível a um homem de talento conserval-o depois da propaganda, realizada por Tobias Barreto e outros, e que deu entrada no Brazil ao pozitivismo, ao evolucio-nismo e aos dialetos da filizofia experimental. Que orien­tação, porém, depois de tal defecção, deu Ruy Barbosa á essa alma entuziasta? Eis o mistério! Anteu é o nome com que o batizam agora; Briareu, porém, parece que mais lhe assenta; e se já houve quem discortinasse o eixo das suas idéas, que este feliz se aprezente e diga: aqui tem a chave do talento de Ruy Barbosa. Calculadamente ou por força de temperamento, o que é certo é que esse gi­gante, embora de volume considerável, torna-se impalpa-vel, e nunca deixa por onde se lhe pegue, não por escor­regadio, mas porque não ha mão que o abarque.

Esse discurso cauzou um grande escândalo no espirito dos que julgam Ruy Barbosa um verdadeiro Anteu.

Page 15: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

13

Os seus protestos, porém, assanharam o espirito epigra-matico de Cosme Velho.

— Meus amigos, tornou este, não recuzo provar tudo quanto disse. Só ha para mim uma dificuldade, que é conciliar esse briareismo do orador baiano com a força de vontade que todos reconhecemos em Ruy Barbosa. Em Briareu havia certa inconciencia grandioza, na qual a mitica dos gregos puzera uma interpretação e buscara um símbolo unificador da variedade dos instintos da hu­manidade.

Ruy Barbosa acha-se a mil estádios dessa concreção. Seu espirito é outro; e a sua alma poderia considerar-se uma revivecencia da de Carneades. Elle é o maior so­fista que tem insuflado a voz nas terras do Brazil. E nisso está a razão do deperecimento dessa mesma filozofia he­rética com que o vimos aparelhado ha 20 anos passados.

Neste ponto Cosme Velho emitiu uma propozição que ainda mais escandalizou os apolojistas de Ruy — Anteu.

Ruy Barbosa seria um homem morto no dia em que adotasse uma filozofia ou creasse um sistema seu, ou fizesse uma profissão de fé. Nesse dia elle, com os ca­belos, perderia a força de Sansão; perderia a liberdade de mentir contra as leis orgânicas da vida individual e social; e a lojica, instrumento que lhe tem sido órgão tão preciozo de prazeres, volver-se-ia contra elle, torturar-lhe-ia as carnes como tenazes em fogo, manejadas pelas mãos de seus adversários implacáveis e cruéis. Em suma, Ruy Barbosa seria um sofista emasculado. Eis porque o autor do Estado de sitio vela com tamanho pudor e cuidado o fundo filozofico do seu espirito. E já que es­tamos em veia de comparações, permitam-me lembrar

Page 16: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

14

o contraste que aprezenta o moço que atualmente en­canta no Recife seus discípulos pela candura de uma alma entregue inteiramente aos estudos propedêuticos do di­reito.

Referia-se Cosme Velho ao cearense Clovis Bevi­láqua, um joven professor, que em obras amadurecidas, promete ser em breve o pontífice do direito civil bra­zileiro, sinão também do constitucionalismo nacional.

Caláram-se todos, porque ao piano preludiava alguém um trecho de Bach.

Os ouvidos pertubados até aquelle momento pelo gra-zinar da discussão, deixaram-se de súbito banhar pelas harmonias triunfaes do inspirado que sentára-se ao piano.

O concerto continuou crecente de emoção. A's 2 horas da madrugada retiravam-se os primeiros

convivas. Ao levar até á porta o velho Cosme, o anfitrião da-

quella noite conseguiu que este se comprometesse a fazer no próximo domingo uma conferência, cujo assunto seria ainda Ruy Barbosa, estudado sob o ponto de vista da elo­qüência.

1898, Setembro.

II

RUY BARBOSA: BRIAREU

O domingo resplandecia. O aspeto da cidade, que de ordinário é tristonho, como mais de um viajante tem notado, dír-se-ia quazi festivo, tal o movimento das se­nhoras pelas ruas e pelos bondes.

Page 17: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

15

Cosme Velho não tinha esquecido a promessa feita a. Brazilino Dias. Uma conferência, embora em sessão li­terária intima, tratando-se de Ruy Barbosa, não dei­xava de cauzar certo receio. As idéas estavam assentadas; mas a sua coordenação podia falhar no momento psico-lojico. Acrecia que a reputação desse brazileiro achava-se por tal forma firmada na opinião publica, que qualquer restrição seria recebida como sinal de desrespeito.

Cosme necessitava, pois, antes de tudo, de ser claro para que os ignaros não fossem supor a existência de uma intenção maligna de deprimir.

Já alguém sussurarva aos seus ouvidos que os mo-nolitos sofrem impassíveis as injurias das tempestades, ao mesmo tempo que os montões de mariscos se depozitam em holocausto á grandeza, de envolta com as arêas, for­mando a sua baze.

Lembrava-se, todavia, de que também os granitos são insensíveis, não têm alma, não têm sangue e na sua imobilidade valem o que vale o raio que os fustiga.

Durante a viajem, de çaza até ao largo da Carioca, poz-se a dividir os parágrafos da conferência. Ao tomar o elétrico, foi interrompido nesse trabalho pelo Rodrigues Barbalho, que se dirigia para as Laranjeiras.

Acomodaram-se no banco da frente. No imediato iam. três meninas garrulas, cuja frescura, beleza e alegria davam ao veículo uma tonalidade de comboio das flores vivas.

— E dizem que somos uma raça feia, refletiu Ro­drigues Barbalho. Ora, estas morenitas são perfeitamente brazileiras; e não se me dá de apostar que em qualquer parte do mundo, si não tirassem o prêmio da beleza, pelo* menos obteriam o da graça petulante.

Page 18: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

16

— Cosme ficou subitamente sombrio. Aquella ob­servação, feita justamente quando passavam pelo cáes da Lapa, lembrara-lhe o malogrado Raul Pompeia.

Naquelle mesmo sitio, em um dos dias mais melan­cólicos da revolta, conversavam sobre o gênio das nações, quando viram apontar á janela da próxima caza de pensão o rosto juvenil de uma menina, que logo depois re­colheu-se assustada por cauza de uma granada que es­tourava por cima de Villegagnon. Entardecia. Na forma de um costume, que chegou a durar cinco mezes, as for­talezas da barra faziam o seu exercício de fogo. O apa­recer e súbito desaparecer daquella cabecinha puzera n'alma um sentimento de angustia que se não descreve. Raul Pompeia observou, então, que a guerra civil não era tão abominável pelas mortes que cauzava, como pelo emurchecimento do sorriso no semblante das donzelas. Quantas almas de crianças, que precizavam crecer ao •sol da alegria não estariam, por traz daquelld-i paredes, sossobradas de pavor, paralizadas na evolução para a puberdade, e algumas, quem sabe, si não eternamente privadas da felicidade por uma histeria incipiente ? O au­tor do Atheneu tinha dessas filozofias; e quando o seu espirito peregrino começava a vagnerizar em matéria de psicolojia social, quem o ouvia acabava por ficar hipno­tizado, — caindo no mundo harmônico da sua fantazia.

Felizmente naquelle instante não se tratava de ima menina detraquée, porquanto não tardou, ao que parece, passar-lhe o susto; e logo ouviram-se os sons de um piano, cuj?s notas sonoras, fortes, redomoinharam na amplidão. Os dedos ajeis da pequena executavam, com brio, um tre­cho desconhecido.

Page 19: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

17

— Não sabe ? perguntou Rodrigues Barbalho. E' uma valsa inédita de Chopin.

A valsa eterizava-os. O bonde corria, e aquellas flu­tuações harmônicas perdiam-se pouco a pouco, como se começasse a produzir-se em Cosme a ação do cloroformio. Nisto, o ruido dos carros, que se cruzavam com os bondes na rua do Cattete, despertaram-o daquella espécie de le-tarjia; e só então foi que elle, refletindo, pôde verificar uma coincidência estranha. R. Barbalho respondera-lhe pelo morto; a mesma muzica a que se referia, falando de uma tarde de ha quatro annos passados, se introduzira na sua narração, e, interrompendo-a, burlara o objetivo da conversa.

— Que diabo! Dir-se-ia que estou sonhando! R. Barbalho riu-se, e, como Cosme aludira á muzica,

e esta arte é o seu forte, perguntou o que é que ia dizer sobre a valsa.

— A valsa, o ritmo da valsa tem sobre mim uma influencia que não sei claramente explicar. As compozi-ções de Strauss, Metra, Waldteufel produzem-me na alma efeitos como de uma festa chineza. As compozições, neste gênero, de Beethoven e o Convite a valsa, de Weber, jugulam-me a tristeza, por mais intensa que ella seja. Como não hei de adorar a valsa, si ella me desperta as sensações mais agradáveis ?

— E tem você toda a razão, porque si não me engano a valsa foi inventada pelos Gnomos, ou pelos Elfos, por esses seres estranhos, de que se ocupam as lendas do norte da Europa. Esse ritmo majico deceu das rejiões nebulozas, em que viviam os deuzes dos Niebelungen. Chegando á terra os meinsingers o receberam como um prezente ete-reo, e, por elle, afinando as suas teorbas, cantaram as

2

Page 20: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

18

baladas e esses adoráveis liéderj que Gcethe e Heine per­petuaram em versos admiráveis. Depois o Héd foi dan-sado. E pela dansa, universalizando-se, elle chegou até •á ronda infernal, ao sabbath das noites de Walpurgis. Parece incrível, mas é a verdade; e não será senão por isso que esse ritmo desperta no seu espirito tão delicioza impressão da vida e pelo que ella tem de indefinido. A val­sa orquestrada por Wagner conteria o mundo inteiro.

Cosme Velho olhou para o seu interlocutor um tanto intrigado, e lembrou-se de um fato carateristico que se dera uma vez comsigo, jantando no terraço do restaurante do Passeio Publico.

A banda alemã executava uma valsa de Waldteufel. Os seus ouvidos banhavam-se nas ondulações e voltas desse espiral de sons, que levantam a alma ás alturas do invi-zivel.

Os muzicos, entretanto, cessaram de tocar, e neile se despertou a necessidade de tornar a ouvir o mavioso da valsa. Por intermédio do criado, que servia, pedio-lhes que a repetissem. Voltaram, com efeito, aos seus lugares, mas, em vez de Waldteufel, deram-lhe um trecho de Offenback.

Imajine-se a sua raiva. Quasi não pôde terminar a janta, e mentalmente fez um voto de que se algum dia exercesse poder discricionário sobre a terra, faria esses muzicos executarem a predita peça até morrerem inanidos.

No jardim do palacete das Laranjeiras encontra­ram J. Guerra, Luciano de Medina, Raulino Palma e Carolino de Louvet.

Quando transpunham o portão, francas rizadas se levantavam do grupo formado por estes quatro cama-

Page 21: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

19

radas, que olhavam para alguma couza oculta entre os arbustos.

Todos sabem que é em matéria de espirito esse en-diabrado Carolino de Louvet. Pois bem, naquelle dia de­ra-lhe a telha para ensinar botânica. Querem saber qual o objeto da preleção? Era uma dessas flores roxas fre­qüentes em nossas campinas, e que aprezentam uma forma equivoca, quazi obcena. Carolino de Louvet, então, afirmava que essa flor era o reverso da flor de maracujá; e como na natureza tudo se define, conforme Aristóteles, pelos contrários, elle preferia os martírios daquella aos da outra chamada da paixão.

Era ao tempo que Brazilino Dias, com a familia-ridade que se lhe tornara habitual, aparecia no vestibulo e obrigava-os a entrar.

— Já é tarde, disse, e eu dezejo que antes da con­ferência, vocês vejam dous trabalhos interessantes, um do Amoedo e outro do Bernardelli.

A galeria artística de Brazilino Dias é o que se pôde chamar um tezouro de raridades. Grande parte de sua fortuna, tem-na elle consumido na aquizição de objetos de arte, com um critério adorável, si não de mestre, de fino diletante.

O quadro de Amoedo, recentemente pintado na nova maneira do autor, reprezentava, numa tela de dimensões regulares, o triunfo de Baccho no Brazil. Não se vá pen­sar que esta tela contém algum reclamo á cerveja Brha-ma ou á Bavária. Nada disto. A compozição encerra algo de simbólico. Com ella o Amoedo quiz apenas celebrar o advento da força nas terras do Brazil. A entrada da relijião do futuro; o entuziasmo de uma nova raça; e a conquista da nova índia pelo espirito civilizador..

Page 22: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

20

A estatueta do Bernardelli pertence a outra corrente de idéas. Reprezenta uma cabocla desfalecida ao osculo de um raio tropical. Si já houve alguém que no mármore pudesse fazer falar a languidez do sexo enamorado pela luz, esse alguém não tem nome diverso do autor dessa admirável compozição.

A conferência devia realizar-se na biblioteca, que ocupa um lindo pavilhão anexo ao corpo principal do palacete.

— Como é agradável ! ponderou J . ,Guerra , ao pe­netrar no sancta sanctorum de Brazilino Dias. Dêm-me uma ferramenta como esta e lazeres, e eu lhes direi se não serro de cima o Pão de Assucar.

O proprietário sorriu e acrecentou: — A biblioteca do Ruy é muito superior. O que

elle. não tem é a coleção de livros brazileiros que eu possuo. Com efeito, toda a face oriental.da livraria é ocupada

com as obras mais raras que se tem escrito sobre o Brazil e com os livros de todos os autores nacionaes.

Lá, vimos, em encadernação de luxo, as obras com­pletas de José de Alencar, Machado de Assis, Nabuco, Taunay, Ruy Barbosa, Sylvio Romero, Arthur Azevedo, Aloizio, V. Magalhães, Affonso Celso, José Veríssimo, Coelho Netto e outros.

A maior parte dos habitues já se tinham acomodado em cadeiras dispostas no centro da biblioteca para uns vinte amigos. Brazilino Dias mandara colocar em um estrado uma meza com o clássico copo destinado a molhar a palavra do orador. Mal notou Cosme esse aparato, per­deu o bom humor. Fez logo ver ao dono da caza que, si aquelle escândalo de tribuna não fosse eliminado, a conferência não se realizaria. Conferência seria um modo de dizer, porquanto elle só se propunha conversar. Desde

Page 23: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

21

que o circulo de bons camaradas se transformasse em publico, era uma vez a carateristica da palestra.

Brazilino accedeu. A meza foi retirada. Ficaram to­dos em liberdade.

Carolino de Louvet continuava a glozar couzas es-cabrozas, porque o seu grupo não deixava de gargalhar.

— Basta, disse J . Guerra; vamos ouvir o velho Cosme. Quero vêr como elle se tira desse novo Cocorobó.

Cosme Velho enrubeceu. — Não suponham que vou fazer uma conferência

acadêmica. Permitam que eu apenas procure formular aqui alguns pensamentos despertados pela figura que nestes últimos tempos mais tem impressionado o' publico fluminene. Si, porém, existe neste lugar algum amigo que pense que eu nutro outro sentimento, além de uma justa curiozidade literária e do dezejo de compreender o meca­nismo psíquico de um dos nossos mais fortes oradores, que esse amigo declare-o, porque estou disposto a não con­tinuar. '

O V de Tambaqui ponderou, então, que tal couza nenhum dos prezentes suporia; mas que, em todo cazo, quando um homem de letras se propõe ser imparcial, ocupando-se de outro, é sempre de bom conselho lembrar-se quem o ouve do irritabile genus.

Cosme Velho deixou passar a restrição. — Acompanho o dezenvolvimento do talento do Ruy

desde os tempos acadêmicos, no Recife. Recordo-me de que o vi pela primeira vez em 1869. Tinha-se incendiado parte do edifício da rua do Hospício em que funcionava a Fa­culdade. Por falta de salas, as aulas do 40 e 50 anos pas­saram a dar-se á tarde. Um dia, os quinto-anístas, dei­tados em um taboleiro de relva, que havia ao lado do

Page 24: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

2'2

edifício, troteavam os matutos que vinham de Iguarassu pela estrada de Olinda. Passou um conego; e a selva-jeria escolastica achou que derogava deixando-o atraves­sar incólume. O reverendo foi solenemente vaiado. Não protestou: retorquiu apenas com um muito obrigado, e a surriada emudeceu. Logo depois aproximou-se um grupo de estudantes retardatarios. Entre elles estava um rapaz franzino, moreno, de cabeça muito grande. Olhava baixo e tinha um traço de penseroso. Perguntei quem era; dis-seram jme: o Ruy Barbosa. Já neste tempo o ilustre orador se fazia preceder de um determinativo de admiração. Não esqueci mais a compostura daquelle semblante. E' a mesma de hoje: a de um preocupado de grandeza. Ruy Barbosa tem subido de esfera em esfera; mas o que é certo é que essa preocupação não se modificou; tem-se tão so­mente complicado. Ser atleta, sempre vencedor nos jogos olímpicos, atirar o disco aonde ninguém conseguiu chegar, eis o pensamento fixo e o seu maior prazer. Póde-se, pois, afirmar, estudando sua obra inteira, que o autor do Es­tado de sitio, dominado por esse intuito, dezenvolveu es-traordinariamente a sua musculatura inteletual, permita-se a espressão, com deperecimento do que se pôde cha­mar a enervação do espirito. Ninguém procure em Ruy Barbosa deliicadeza, descortinamento dos aspetos sutis da natureza humana, nada que se aproxime desse gênio jonio que civilizou a baia do Mediterrâneo; só ha de achar força, força e mais força.

Nos seus trabalhos descobre-se uma colosal unidade de volição, na conquista da erudição, na armazenajem da memória, na constância indefeza do labor. A sua ca­pacidade para desbastar pedreiras (digam-se bibliotecas), não tem rival. Infelizmente falta-lhe a unidade de in-

Page 25: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

23

telecção. O seu espirito não é claro, nem iluminado; ho­rizontes vastíssimos, mas ocultos por uma espécie de am­biente caótico, onde se penetra e de onde não se volta. O seu aparelho mental pôde ser comparado aos grandes propulsores dos encoujaçados; movem a maquina de guer­ra, a principio lentamente; uma vez, porém, dezenvolvida a carreira, é difícil, si não perigozo paral-o.

Com taes dispozições compreende-se que Ruy Barboza tenha assinalado, por instinto, o seu campo de operações. O orador apareceu; não o orador de escaramuças parla­mentares; mas o orador dos grandes momentos, para as cauzas perigozas, encandecentes, aparentemente inso-luveis. E esse orador saiu do temperamento literário, já descrito, como do biceps sae o fort de Ia Halle ou o Hercules dos circos. Levantar pezos descomunaes, assom­brar o auditório com um discurso em que se mostre um saber famoso, são couzas equivalentes. Essa preocupação, o autor do Estado de sitio tem-na em larga escala. Por fe­licidade nossa esse forte não se encasquetou de profe-tismo. Puzessem-lhe na cabeça a mania da rejeneração da humanidade, e teríamos com que nos haver por muito tempo e dezesperadamente.

Obtidos os primeiros triunfos, Ruy Barbosa, exibi-cionista, teve sentimento igual ao de Sansão depois da matança dos filisteus, — o sentimento da devastação. O orgulho social invadiu-o; surjiu como fenômeno a am­bição política, junta á necessidade de ligar seu nome a uma obra, a uma defeza de efeito.

Hercules executara doze trabalhos, havidos no seu tempo por impossíveis. Entre outros, matara o leão de Neméa, sufocara a hidra de Lerna, combatera Gerionte, limpara as estrebarias d'Augias, retirara Thezeu do in-

Page 26: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

24

ferno. Por que não faria elle couzas semelhantes? A obra O Papa e o Concilio foi o seu primeiro trabalho hercúleo. Pela enormidade do livro, cujos capítulos de I a VI , con­stando a publicação de sete, encerram a historia das rela­ções da Igreja com o Estado, justifica-se o conceito de um esforço empregado em pura perda. Não só esses seis ca­pítulos podiam ser condensados em dez paginas, e não faltam por abi Lavisses, Seignobos e Corréards que o te­nham feito com dezesperadora e fartíssima concizão; mas também o golpe do livro falhou, porque veiu depois de Ganganelli, quando os Bispos D. Vidal e D . Macedo Costa já estavam soltos. Ruy Barbosa sentia, entretanto, necessidade de mostrar que havia lido sobre o assunto mais do que nenhum outro brazileiro, e não rezistiu ao dezejo de fazer sair essa obra, acompanhando o texto de um constante bombardeio de notas, cada qual mais folhuda e rica de referencias, aliás facilimas quando se está no centro de uma boa livraria. Desta vez, portanto, Her­cules não chegou a tempo para decepar as mil cabeças da hidra do clericalismo. Quando veiu a Republica, e Deo-doro, Benjamin Çonstant e Aristides Lobo garrotearam a relijião de Estado, foi então que Ruy Barbosa pôde cevar-se no sangue dos padres, cortando tranqüilamente aquellas cabeças com uma faca de. . . cozinha, como á ave depenada e disposta para banquete de divinos. Assim, pois, na referida época o autor à'0 Papa e o Concilio perdeu, o seu latim, e não houve quem lhe oferecesse o tronco para a ingente e apetecida luta romana.

A eloqüência emudeceu. Logo, porém, surjiu o ga­binete Ouro Preto e a Ruy Barbosa se aprezentou ensejo para debelar soberbos. Deu, pois, combate a Gerionter irias quem não estiver esquecido dessa luta. ha de confessar

Page 27: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

25

que, si Gerionte sofreu profundamente, não menos mal ferido ficou o atleta pelas setas certeiras de modesto atir-rador, um medico que se chama Gama Rosa, o qual, por­que tinha á farta um grande preparo em sociolojia, pôde desvendar a inanidade de certos argumentos. O colosso vacilava. A Republica o amparou.

Nas democracias as perspectivas são mais amplas; e necessariamente, pelos instintos de grandeza generali­zados, os homens do povo olham de perto para os seus guias e os supõem maiores, muito maiores do que em rea­lidade são. Ruy Barbosa com o advento do governo re­publicano, em que foi magna pars, ficou tamanho qua-manha é a sua ambição e irredutível o seu orgulho. Desde esse momento tudo lhe era licito dezejar. Em seu espirito penetrou um sentimento novo, — o de exercer uma espécie de satrapia literária. Creceram-lhe no coração os anceios dos antigos déspotas da Pérsia. Entenda-se, porém, que Ruy Barbosa, não possuindo temperamento marcial, deixar-se-ia permanecer no exercício incondicional da eloqüência. E assim foi; elle, então, poz a maquina a trabalhar na mais alta pressão, e afivelou todos os ba­camartes de erudição que estavam ao seu alcance.

Neste ponto da conferência Cosme Velho deteve-se e passou a queixar-se de que as circunstancias não lhe permitiam documentar por extenso as propozições que acabava de emitir.

— Ah ! se eu estivesse, disse, no meu gabinete de estudo, mostrar-'lhes-ia as pajinas dos livros, dos folhetos, dos discursos, das espozições de motivo do Governo Pro-vizorio, que justificam tudo isto á saciedade.

— Não ha necessidade, ponderou Raulino Palma, a impressão desse trabalho do Ruy foi muito forte, e nós-

Page 28: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

26

sentimos a sua repercussão em todas as junturas do nosso organismo.

— Você quer dizer com isto, refletiu o V. de Tam­baqui, que o gigante onverteu-se em Asmodeu ?

— Não digo tal. Mas tenho como certo que o espirito difuzo desse mestre entrou em conflito, por forte, com a nitidez do rejimen prezidencial que abria seu caminho.

— Apoiado ! — Quem apoia ? — O Medina. — Ora, o Ruy ainda ha de impor-lhes o divino par­

lamentarismo, sem o qual na America do Sul não ha Go­verno que se salve. Está no sangue. A raça lat ina. . .

— Qual sangue, nem raça latina ! Ninguém tem medo desse tutu dos povos. Os sociolojistas de meia pa-taca, agora inventaram isto para engodar os tolos, como outr'ora se os engodava com o terror das penas eternas. O recurso não colhe. A democracia é um estado, uma compleição social; não é propriamente uma forma de go­verno. Para ella atualmente tende o mundo. Lutar contra ella é tão absurdo como lutar contra o ambiente. Subordi-nal-a é que é a couza. Ora, eu não vejo rejimen, por em-quanto, que proporcione essa diciplina, tão eficazmente, como o prezidencial. O parlamentarismo seria sistematizar o rolo das ruas dentro dos palácios. . .

Brazilino Dias interveiu. Voltou-se á conferência. Cosme velho continuou: — Si não fosse o receio de abuzar da paciência dos

amigos, eu leria, para fazer-me compreender melhor, uma pajina do livro de Ruy Barbosa, já citado, O Papa e o Concilio, o único que tinha á mão no momento de partir.

Page 29: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

27

O auditório insistiu. — A pajina que vou reproduzir é do prefacio da obra.

O u ç a m .

"O brazileiro que atravessar a faze atual do segundo rei­nado, terii que testemunhar á dec-endencia, com as cf*s enver­gonhadas, uma longa pajina de aoniargura e vilipendio, ond.» os olhos de nossos filhos buscarão debalde um ponto de re-frijerAo em que esipaireçam; u-in paiz opulínto. -m-exaurível «orno a natureza mesma. e. todavia, fizica e moralmente esta­gnado, na imensa amplidão, como um vasto pântano; os municipos, sombras da mais cordial e utilmente popular das instituiçõe.«. sem raízes no solo, sem autonomia, pedintes abis­mados em uma existência vejetativa, estéril. p;rpetuamente subalterna; as províncias sugadas pela centralização até á medula, famintas, esfarrapadas, umas arrastando as bragas de empenhos crecentes e incabiveis, outras em estado real de bancarrota; um governo lição viva de todas as curruções, a caza dos padres conscritos feita a grande escola publica da cortezania imperialista; a Câmara dos Deputados aviltada, graças ás suas próprias obras, até ás vaias das galerias; os ga.binetes, serventuários servis de el-rei, sem solMariedad-e •nenhuma, nem a da honra; as assembléas provinciaes decaí­das, mediocrizadas, nulificadas; a majúistratura, atiradai fora a toga da justiça, a ostentar deslavadamente o escândalo das mais delirantes e indecentes paixões de partido; o Executivo dissipando, tranzijindo, contraindo encargos públicos, sem au­torização orçamentaria: os Ministros da Fazenda acumulando montanhas de dividas; a vorajem do déficit a escancarar, dia a dia. um sorvedouro capaz de tragar dentro em pouco a nossa receita total; a quebra da fé nacional aconselhada nos relató­rios das Secretarias de Estado como inocente recurso de fi­nanças; a falência do Estado prevista, talvez iminente como um traço terrivelmente negro no horizonte; a lavoura em pro­funda e mortal caxexia; o comercio p a industria, sob a pres­são de impostos irracionaes, condenados ao mais lastimoso ra­quitismo ; a irresponsabilidade absoluta do Poder em todos os grács de hierarquia; a mentira nas urnas, nas depurações par­lamentares, nessas lisonjarias mutuas da pragmática anual entre o trono e a lejislatura, nos melhoramentos ofilcia-es, no orçamento: a instrução publica uma oouza ainda por crear, uma ridícula mesquinharia negaceada ás classes carecentes, alei-

Page 30: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

28

jada, impura, envenenada pelo patronato, inacessível á maioria dos contribuintes; do sistema reprezentativo ludibriado até o ultimo simulacro no ato soberanamente ditatorial da coroa, que aferrolhou por dezesete mezes as portais da Assetnbléa G-eral. e não se sabe por que não afixou logo os escritos de aluiguer; de quando em quando um caráter de estadista enla­meado e perdido, um nome lustrozo para cada baixeza; as con­vicções l?vadas a r:zo, o ceticismo cinico aplaudido; a descon­fiança, a inveja, a gana. as reputações sãs, todos os instintos ma­lévolos da s?rvidão cortida subservientemente; tudo funcio­nários ou pretendentes, servilismo e venalidade, indijencia e luxo, medo ã liberdade e anarquia, afilhadajem e delapidação, desprezo imperterrito da lei e farizaica idolatria das conveniên­cias pessoaes, docilidade ao arbítrio oficial e insubordinação ao dever, um aparato de jatancioza dignidade ie umia puzila-•nime abdicação do direito, falsificação sistemtiaa das in-stàtu.i' ções e culto misteriozamente respeitozo á impertinencia da pa­pelada administrativa; covardia universal perante a verdade e contubernio familiair com a hipocrizia sob todas as fónmas; afinal um rei indiferente ao dilúvio nos seus dias ou nos de sua mais vizinha projenie, déspota como Carlos X e Napo-leão III , e, ante a Europa, vaidozamente disfarçado no incó­gnito de chefe constitucional, de humor cosmopolita, homem de todos os climas, frenetcamente viajador, insaciavelmente sô­frego de curiozidades, poliglota apaixonado, especialista em todas os especialidades, em todas as ciências de especulação e* em todas as ciências de indução, em todas as artes do ideal puro e em todas as artes do progresso material, em todas as profissões liberaies e em todas as profissões indxnstriaes, nos-segredos mais mimozos da literatura e nos mais ásperos segre­dos da critica histórica, nas maravilhas mais colossaes e nas miudezas mais microscópicas da observação humana, arguidor de todos os sábios, decifrador de monumentos preistoricos, ^. por uma veia carateristica, eserevedor de versos, — .de qu-?m, acazo, por aí. quando não restar delle mais do que a noticia, alguma idade futura, como daquelle outro, menos douto, mas não menos caprichoso e também coroado artista, descuidada-mente dirá: "Poetou, sinal de que as boas letras não lhe eram de todo estranhas."'

Sabem o que pretendo deduzir do exemplo contido neste colosal período ?

Page 31: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

29

E' que toda a eloqüência e força de Ruy Barbosa rezulta de um processo muito rudimentar, mas excelente para, dada a sua vitalidade locomotora, produzir aparên­cias de facundia ou iluzòria variedade. O período que aca­bam de vêr é uma conjerie. O livro poderia ir ao infinito como uma conjerie de conjeries. Idéas fragmentárias, justa­postas, mas que não formam um todo orgânico. Ruy Bar­bosa não é propriamente um pensador-filozofo. O seu es­tilo, que é espetaculozo, mesmo imajinozo, fragmenta-se a cada instante, porque as suas imajens não se filiam a uma concepção indivizivel e integrada.

Todavia, devo reconhecer que nem sempre elle pro­cessa a sua proza pela conjerie ou acumulação. H a mo­mentos em que o seu período assume verdadeiras propor­ções ciceroneanas. Nestas circumstancias póde-se afirmar que elles são perfeitos, intensos, luminozos, tanto quanto tem conseguido os maiores escritores da língua portu-gueza. Infelizmente, porém, essa luz não se propaga, nem se combina no conjunto da obra. O conjunto é torvo, obscuro, apezar dos pontos fulgurantes.

De ordinário a chave de seus efeitos está na ampli-•.icação, e nessa hipoteze encontraríamos muito de seme­lhante em Ruy Barbosa com o rei da amplificação, que foi Victor Hugo. E quem quizer dar-se ao tralho de aplicar o processo indicado por Hennequin na sua Critica cien­tifica, capitulo sobre a esto-psicolojia, verá que a maior parte dos efeitos obtidos pelo orador baiano é devida a hipertrofia da palavra, — ao dezenvolvimento da facul­dade da verbalização. Mecânica de sintaxe; e disse.

Cosme Velho terminou assim o seu discurso. As opiniões diverjiram entre os circunstantes. Como, porém, não é propozito reproduzir tudo quan-

Page 32: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

to então se disse, pró e contra as opiniões emitidas na con­ferência, cinja-se tudo a notação da fraze com que Cosme Velho encerrou a discussão.

— Ruy-Briareu ! Cincoenta cabeças e cem braços ao serviço de uma formidável força propulsiva. Si querem agora que mostre em como esse orador é também Proteu, tenham a bondade marcar-me dia e hora para o estudo do sofista.

Brazilino Dias lembrou um piquenique no Corco-vado; e ficou assentado que no primeiro dia feriado esta­riam todos juntos para a palestra planejada.

Corridos os reposteiros da biblioteca, passaram á sala de jantar. E ' lamentável que pela hora não seja per­mitido referir aqui um romance que á meza narrou gen-timente o V. de Tambaqui, recordando cenas das suas viajens pelo alto Paraguai.

1898, Setembro.

I I I

RUY BARBOSA; PROTEU

— Que caiporismo ! — Com esta chuva ninguém virá. — Mas quem se lembrou de piquenique no Corco-

vado neste tempo ? — Com efeito ! — Ahi vem o V de Tambaqui. Um coupé parará á porta do edifício. Apeiaram-se

dous cavalheiros: eram o aludido romancista e Brazilino Dias.

Page 33: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

31

— Meus amigos, disse o V de Tambaqui, só o sr. Dias seria capaz de dar comigo hoje nas Paineiras. Digo Paineiras, porque quem quizer que suba ao pavilhão. J á estou fatigado. E Deus sabe o que me tem custado impor a vocês, tupinambás, a grandeza e o gênio do Padre José Maurício, hoje felizmente reconhecido até pelos sábios da choucroute.

Brazilino tinha posto á dispozição dos escursionistas um trem especial para as nove horas da manhã. Falta­vam dez minutos para a partida; apenas estavam prezentes, afora os dous companheiros mencionados, Raulino Palma, João Rivas, Olintho Bergerac, R. Barbalho e Cosme Velho.

— Sabem vocês de uma tradição do primeiro Im­pério relativamente ao pico do Corcovado ?

— Não. — A ponte que une as duas verrugas de granito foi

construída por capricho da Domitila. A passajem primi­tiva era arriscadissima. A marqueza pretendeu, porém, uma vez tomar um regabofe ao relento na ponta do nariz do gigante de pedra, e a ponte surjiu como por encanto. Sr. João Rivas, é indispensável que na segunda edição da sua historia do Oriente figure esse dado mitolojico, que vem ainda uma vez esclarecer a lejenda do sol da índia.

João Rivas que, depois do seu regresso da Alemanha, entregou-se inteiramente aos estudos da propedêutica po­lítica, sorriu maliciozamente e acrecentou que não daria mais aos prelos livros de mentiras, pois a historia, segundo o conceito do professor Jungfrau, não passava de uma coordenação arbitraria de fatos, izoladamente verdadeiros,, dispostos sobre a tela da imaj inação, na conformidade do capricho de quem a escrevia.

Page 34: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

32

— Olhem: quanto a mim, não escreverei, nem que o diabo estoure, compêndios de historia e muito menos gramáticas. Reputo, além do mais, um erro gravíssimo ensinar taes couzas á massa dos homens, que foram con­denados pela natureza — e mui judiciozamente — a estu­pidez eterna. Sem isso, o que seria o mundo ?

— Portanto, diabo leve a democracia. — Que duvida ! Si é verdade que em pedagojia a

bifurcação constitue um erro, não sucede o mesmo em política; neste cazo ella é uma necessidade imperioza. O mal do mundo atualmente rezulta do fato de quere­rem transformal-o em um bonde de carga do Saco do Al-feres. Não basta a obstrução da via publica; ainda por cima o passajeiro limpo vê-se na continjencia de suportar o contato de pretos trezandando a cambambá e de aturar carcamanos com cestos de hortaliças; muitas vezes tem de ceder o lugar ao saco de carvão,—e tudo isso em nome do progresso. Nada ! Ta l promiscuidade não pôde sinão prejudicar a civilização, que deve ser a seleção dos mais aptos para a beleza e não dos mais aptos para o sujo.

— De acordo quanto ao principio, disse o V de Tambaqui, mas contra as concluzões. S. Francisco Xa­vier foi um grande sujo; até sujou-se, nos hospitaes, de pús e de cascas de feridas; mas, ao que suponho, nin­guém negará a esse sujo a maior limpeza moral possível e, portanto, o grande surto do belo e da grandeza.

— Ora, eu não conto na minha teoria com santidades. Chegavam Coelho Nova e o mestre Calado Moniz. O joven romancista surjia com o seu eterno olhar de

assombrado. O semblante trazia a fadiga do ideal. Natu­ralmente aquella noite fora consumida na compozição •de algum capitulo de literatura macabra.

Page 35: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

33

O autor do Braz Jocundo, ao contrario disso, mos­trava a placidez dos filozofos que conseguiram de uma vez atrelar ao seu carro o tigre do pessimismo e o ele­fante da vida quotidiana, e que, puxados por tal parelha estravagante, atravessam, em relativa tranqüilidade, os dezertos da existência.

— Vamos subir á sagrada montanha de Kioto, disse Coelho Nova arregalando os olhos. Agora o que eu es­pero é que se não nos depare por lá alguma Madame de Chrisantême.

1 — Nada de susto, refletio o V de Tambaqui. O nosso Mecenas providenciou para que hoje o Corcovado fosse escluzivamente nosso. Estado de sitio estético, meu caro! Nas Paineiras não haverá nem um quadrúpede. Artistas por desfastio: Titire, tu patulce recubans...

Isto é plajio. Ouvi ao falecido Tautphceus. — Mas não é plajio o Encilhamento. Entretanto

o V. de Taunay copiou muitas e estraordinarissimas cenas de orjias mentaes passadas não só aqui nesta mon­tanha de granito, mas também nas sarjetas das ruas da cidade.

— Salvo seja, proferiu Calado Moniz. Qs nossos espíritos não cojitam, nem por sombra, em um piquenique de Trimalcião; mesmo porque, si Trimalciões existem hoje, de Petronio Arbiter não era conhecido ainda esse gênero de refocilação.

— Muito bem ! O trem apitou. Partiram. O som crebro da cremalheira e a trepidação da ma­

quina tiraram o dezejo de falar. Na curva do Silvestre lembrei-me do acidente do

dr. Agrippino, havido ali por volta de 1894.

3

Page 36: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

34

Brazilino Dias, que rezide nas Laranjeiras, ignora-rava-o.

Em poucas palavras, Cosme Velho poz os compa­nheiros ao par do fato. Tratava-se de um cazo de horror a curva. O dr. Agrippino não.podia atravessar o viaduto sem esperimentar graves perturbações de espirito. Acrecia que, após estas perturbações, esse nefelibata começava a ver a lua pelo lado oposto, o que sucedia durar-lhe dias e noites. Em uma destas crizes, subia o pobre doutor ao Cor-covado acompanhado de inglezes e inglezas. Ao passar pelo Silvestre, elle, que estava defronte de uma miss cheia de caracóes e cabelos louros e com muitos beau-tiful na boca, foi forçado, para não engulhar, a pôr-se de quatro pés no estrado do carro. O pai ou irmão da gentil turista aplicou-lhe aos lombos um formidável soco que quazi o fez passar de um lado da taboa para o outro.

Não o matou simplesmente porque o dr. Agrippino tinha defumado as carnes em Heidelberg, quando por lá andara a estudar filozofia.

— Isto é mentira, seu Cosme, obtemperou o V de Tambaqui.

Riu-se á conta da cordialidade que entre elle e o ilustre romancista existe desde que ouviu as suas admi­ráveis anedotas.

A chuvinha impertinente não permitia descortinar as belas e divinaes paizajens que essa acensão proporciona em dia claro. Dir-se-ia que transmontavam, em fantás­tico veículo, as florestas aéreas de Ariosto, em demanda do Reino do Inverno. As arvores choramingavam a sua liquida lamúria e farrapos de neblina traziam os bosques e os rochedos em ásperos intermitentes de vizualidades teatraes. O tempo resfriava. Nem todos os companheiros

Page 37: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

35

tinham-se premunido de capotes. Alguns já se impacien­tavam, lamentando que não tivessem preferido o concerto do Centro Artístico.

— Realmente, ponderou Calado Moniz, deveria haver grande vantajem em aquecer-nos hoje, dia ne-bulozo e germânico, no capote espesso, quente e recon-fortante do autor de Siegfried.

— Mas nesse concerto vai haver Grieg — o fogo plutonico saindo dos fjords da Noruega; e também Liszt e Leopoldo Miguez.

— Fogos frios e gelos que queimam! Perfeitamente. Nas Paineiras, cujo recinto, segundo afirmação do V

de Tambaqui, estaria vedado ao profano vulgo até a hora da nossa retirada, encontramos dous convidados, a quem se oferecera ensejo de mostrar o nenhum cazo que faziam da chuva. Estes amigos tinham realizado a acensão, des­de o Silvestre, a pé. Eram Carolino de Louvet, o perverso e espirituozo Louvet, e o não menos endiabrado Aguinaldo.

O dia não estava de feição. Havia pouca comunica-bilidade.

Brazilino Dias mandara preparar a sala que se nos rezervara no hotel, a rabelaízeana. Falou-se que no menu entraria um esplendido vatapá, o que poz in extremis o J . Guerra, que é baiano.

Tomou-se vermouth de acordo com o Concilio Tr i -dentino, sess. 7a cap. 2o, can. 14, e cada um foi para onde quiz.

Como Cosme ficasse a tremer de frio a um canto da sala, o J . Guerra aproximou-se e disse, envolvendo-o em um gesto de piedade:

— Você vai mesmo fazer conferência no Corcovado ? Isto já parece medo.

Page 38: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

36

— Rabia, respondeu-lhe, batendo o queixo. Tenho disto quando me ataca a humidade. O nervoso assanha-se. O prejuízo hoje é só do Ruy.

— Fale-me com franqueza. Tudo quanto você es-pendeu domingo passado na caza do Dias reprezenta o fundo real das suas opiniões ?

— Homem, sabes que eu sou um relativista. Parodio, todavia, o menino de pedra do Passeio Publico. A minha diviza é: verdadeiro, sincero, i-n-da brincando. O que proferi, dadas as refrações do momento, do tom em que me esprimi, do lugar' em que estava, é a copia exata da vizão — deixa uzar da fraze da m o d a — d a silhouete que a leitura dos trabalhos do dr. Ruy Barbosa deixou-me no espirito.

— Neste cazo, o seu estilo não é a própria per­feição ?

— O seu estilo, ás vezes, me parece a Rainha Eli-zabeth de Inglaterra, decendo ereta de seu trono para falar aos seus vasalos e dar bofetadas, alguma vez, em lord Ce-cil. Acho, porém, que a cauda do vestido é tão comprida e cheia de circunstancias que se fazem precizos vinte pajens para dezembaraçal-a. Outras vezes imajino uma cavalgata medieval a atravessar intermina, levantando nuvens de poeira. A principio entretem. Logo, depois vê-se que os penachos e as armaduras são iguaes. Vem a fadiga. Por ultimo só se tem a impressão de uma burrada que passa, passa e não se acaba. Ruy Barbosa não tem a noção do ritmo. Desconhece a lei que Spencer tão bela­mente definiu, esplicando a economia do esforço na obra de arte. Olhe, na Estetetica de Poe, de Araripe Júnior, en­contrará você tudo isto regularmente dezenvolvido. As

Page 39: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

37

verdadeiras obras de arte não toleram conjeries: o Ruy é o oposto, em estilo, a tudo isto.

O Carolino de Louvet, que passava por acazo, inter-veiu e aconselhou a J . Guerra que não caisse em ler a estopada.

— Ha três anos que esse trabalho se publica na Revista Brazileira e ainda continua. E' o novo Rocam-bole. Leia si é capaz.

Següiu-se o almoço, durante o qual falou-se em assuntos brilhantíssimos.

Arthur Aguinaldo leu um trecho de um novo drama sobre Christo, e Olintho Bergerac recitou uns versos, em que pela vez primeira a poezia se prestou a ilustrar a questão da decendencia simia.

Carolino de Louvet referiu vários cazos curiozos e cunhou um epigrama que fará sucesso quando o publi­carem. O segredo profissional impõe a obrigação de não o fazer sinão depois da permissão do autor.

Coelho Nova prometeu dar um compte rendu da ses­são; descrever a viajem e fazer um ditirambo ao Cor-covado.

— Vamos á conferência, disse Raulino Palma. Quan­to ao poema do Corcovado, fa-lo-ei eu. Este assunto me pertence.

Cosme Velho tomou a cabeceira da meza e começou:

— No ano de 163, antes de Christo, vieram á Roma dous filozofos encarregados pelos Athenienses de defen-del-os perante o Senado numa cauza quantioza. Tra ­tava-se de releval-os de uma multa de 500 talentos a que tinham sido condenados pelo saque da cidade de Orope. Um destes embaixadores era Carneades.

Page 40: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

38

— Ora, seja tudo pelo amor de Deus! Pois então, amigo Cosme, pretende você impinjir-nos essa pajina do Larousse ? Basta de Carneades. . .

Perdão. Não vou fazer a biografia do filozofo de Cyrene: quero tão somente estabelecer aproximações filòzoficas é literárias, que julgo úteis.

— Mas que ha de comum estre Carneades e Ruy Barbosa ?

— Que ha de comum entre os dous sofistas ? Alguma couza; mas não tudo. O filozofo de Cyrene, em todo cazo, era um filozofo. Platonizava, e, nos limites do idealismo da Academia, atacou o sensualismo dos sofistas, agrediu com força o epicurismo. Nesta parte difere pro­fundamente do orador baiano, que flutua no incondicio-nalidade de um naufrajio psíquico. Ha, porém, em Car­neades uma feição que se caza perfeitamente com a do autor das Cartas de Inglaterra. Carneades vitoriozo em Roma, obtido o triunfo de uma cauza perdida na opinião publica, tendo atrapalhado o Senado com a sua infernal dialética, até fazel-o dizer que os Athenienses não haviam enviado advogados para justifical-os, mas oradores para obrigar os senadores a fazerem o contrario do que queriam, Carneades encheu-se do delírio das grandezas; e de filo­zofo que era transformou-se, graças á vastidão do palco romano, em um verdadeiro funambulo da palavra. A mo-cidade cercou-o logo, como acontecera a Rocius Amerino e a Celio e a tantos mais, histriões, uns, outros, elo­qüentes; e Carneades teve o seu triunfo.

Todo o mundo sabe o poder que exercem sobre as massas a ginástica da palavra e a simulação de uma força oculta. Carneades era grego, o que Ruy Barbosa

Page 41: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

39

não é; por isso dispunha de todas as traças do gênio de Ulysses, o celebre mandingueiro dos tempos homericos. Os Romanos, um tanto grossos e inesperientes, cairam como uns patinhos. O filozofo de Cyrene eletrizava a todos; era Carneades por toda parte, nas termas, nos pór­ticos, no fórum, nas escolas, nos palácios dos proceres. O delírio chegou a tal ponto que Catão, que devia ter sido um temperamento pouco mais ou menos como o do dr. Coelho Rodrigues, não se pôde mais conter e, a pretesto de nativismo, de um lado, e de corrução da filo­zofia grega, de outro, abriu uma assinatura contra o vi-toriozo orador, nos termos mais ferozes. Podemos ima-jinar as palavras e os discursos do Censor indignado diante da eloqüência desse filozofo pachola, que tinha o dezaforo de roubar á Roma os rapazes e as multidões. Cochichou-se nos corredores do Senado. " O melhor é despachar este homem e dar-lhe logo o que elle pede". E Carneades não foi posto para fora de Roma, mas avizado do que melhor seria evitar complicações. . .

— Não ha duvida, interrompeu o V. de Tambaqui; a historia está bem arranjada.

— Isto é o que se chama colorir os fatos. Recorreram ao Mom-msen, ao Michelet, ao Duruy, ao Gaston Bois-•sier, ao Reinach: si da leitura de todos elles não rezultar a verdade desse colorido, eu farei o sacrifício de concor­dar com João Rivas, o qual pretende provar que Car­neades é uma invenção de Cícero, um tipo creado por este vaidozissimo orador para pintar a si mesmo, dizendo que esse homem estraordinario podia transformar o auditório em crianças de cinco anos, dentro da mesma hora provar que a justiça era um mal e um bem, fazer do branco preto, do preto branco, emfim oaralizar a vontade do

Page 42: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

40

maior numero, e tudo isto com o auxilio de combinações prozodicas e sintáticas.

O V. de Tambaqui abalou a cabeça rizonho. — Maganajem; só maganajem, disse. Si o Ruy Bar­

bosa é esse funambulo da palavra, então posso afirmar que nunca se lhe fez no Brazil elojio mais completo.

— Perdão ainda uma vez, retrucou Cosme Velho. Distingo. Carneades era um funambulo grego, de raça. jonia, sutil, produto de decadência helenica, adorável pelas nuanças e que tirava sua força do espirito esguio, perfurante, arguto, ardilozo, do platonismo de então. Não foi o primeiro nem o ultimo a praticar essa ciên­cia dos jongleurs da tribuna. Tempos depois houve outro,, que se chamou Apuleu e que em Carthago chegou a fazer discursos em três e quatro línguas, a capricho do auditório. Esse Apuleu deu grandes trabalhos a Santo Agostinho; os tribunaes também viram-se abarbados com elle; andou ameaçado de cadêa e não poucas vezes esca­pou das mãos dos inimigos pelos seus cantos de sereia. Sabia tudo, até majia; e com a majia embrulhou a todos os que pretenderam suplantar o seu talento e roubar a sua fortuna.

Apuleu, porém, pertencia a essa mesma raça de espíritos universaes que atravessaram a decadência romana, a idade média e vieram reproduzir-se nos tipos de Rénan, Carlyle, Emerson, Nietzsche. Sibaritas das altas rejiões do pensamento, divertem-se em jogar com as idéas como, nos circos, os Japonezes se exibem nos equilibrios e jogos malabares. O paradoxo para elles é um instrumento de analize, de investigação, o qual, uma vez por outra, é tra--Stdo a publico ijara assombrar os incautC6\ede que os seus

Page 43: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

41

inventores acabam abuzando, esquecidos dos males que dahi rezultam.

Ora, Ruy Barbosa é funambulo da palavra tam­bém, todavia de maromba; uza trucs de caixas e alçapões; faz exibições de força, em que dous terços dos efeitos são devidos aos aparelhos.

— Fatos! fatos! venham fatos! reclamou o V. de Tambaqui.

— Fatos? Mas, meus amigos, eu suponho que todos aqui conhecem os livros, os discursos, os trabalhos jurí­dicos do publicista baiano. Não posso documentar por extenso as propozições que emiti. Ficará isto para a parte analítica de um estudo que ainda hei de publicar. Nesta palestra cinjir-me-ei a dar as sensações que todos podem

vverificar si correspondem á realidade. Estou conyencido de que o Ruy Barbosa não é um

psicólogo; e ahi têm a razão por que a sua vasta ilus­tração não o transformou nesse tipo tranqüilo de ceti­cismo inócuo e ao mesmo tempo brilhante, que constitue a grandeza dos escritores já indicados. Para que elle chegasse a esse estado de serenidade seria necessário que fosse um grande observador, dotado de imajinação superior. Ora, o talento de Ruy Barbosa é a negação destes dous predicados; não que lhe falte a observação de detalhes e imajinação tópica ou vocabular; mas no seu aparelho oratório não ha nem a grande faculdade da sinteze espontânea, nem a imajinação trajica dos intuitivos, a imajinação, emfim, que, como a luz elé­trica, penetra na matéria e a torna transparente.

Isto posto, a que fica reduzido o talento sofistico de Ruy Barbosa ?.-

Page 44: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

42

Ao hipertrofismo da lojica, como já vimos que o era da palavra. Homens do pró e do contra têm havido em todos os tempos e a espécie continua a propagar-se. Retóricos chamavam-os os Romanos e o período alexan­drino encheu o mundo dos produtos da escola. A com­pleição, entretanto, nesses indivíduos é tudo. Essa complei­ção, tirando da biolojia um termo espressivo, pode-se dizer que se carateriza por movimentos amiboides. Os re­tóricos, conforme as épocas, ou são ministros ou ensinam nas academias. Quando ministros, descobrem soluções para todas as dificuldades; quando professores, ensinam a pro­var tezes opostas; tudo, porém, sem vida, sem calor au-tonomico, como se desnecessária fosse a transformação dos estados de conciencia.

Não faço a injustiça de considerar o orador baiano um retórico ou um sofista desta espécie propriamente dita. A sua compleição inteletual é idêntica á dos preditos sofistas; sucede, porém, que estes predicados, como disse na reunião passada, estão a serviço de uma vontade e um poder de trabalho fora do comum. Lembrem-se de que eu acentuei a sua unidade de volição. Um egoísmo redundante, planejado por coleras soturnas que se rezol-vem em discursos interminos, em séries de artigos que assombram: conjerie de fatos, conjerie de argumentos, con­jerie de opiniões: unidade de pensamento — nicles!

Si eu não fosse inimigo da escola lombroziana, acharia no capitulo de Max Nordau, sobre o egotismo, um ótimo lugar para acomodal-o. Essas classificações patolojicas exajeradas, porém, não calham nos moldes do meu espírito. Ruy Barbosa é um perfeito responsável e nos tempos da inquizição elle não escaparia das mãos

Page 45: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

43

«os Torquemadas. Os gregos não o deixariam quieto; e, quando menos fosse, condenal-o-iam ao ostracismo.

Felizmente para nós o autor do Estado de sitio não dispõe de meios para incorporar-nos á sua personalidade. Não o dotou a natureza de um temperamento marcial, nem da sagacidade dos grandes psicólogos; falta-lhe al­guma couza para que seja um Napoleão ou um Santo Ignacio de Loyola.

O que elle é, sei eu perfeitamente: o PRAXISTA DA IN­

COERÊNCIA. Por fidelidade devo declarar que a formula não me pertence: encontrei-a, se não me engano, nas Car­tas de Inglaterra.

— Fatos, amigo Cosme! tornou o V. de Tambaqui. Venham fatos!

— Que fatos querem mais ? Leiam o Ruy. — A critica por alturas, por triangulações é ilu-

zoria. Você sabe que o elemento subjetivo crêa ver­dadeiros fantasmas. Esse Ruy que ahi está a pintar, nunca existiu: é um parto monstruozo da sua fantazia. Os crí­ticos modernos, os historiadores que se prezam não ge­neralizam. Fazem a autópsia, quando muito agrupam alguns fatos, segundo os métodos de classificação menos discutíveis, e depois rotulam e espõem as peças nas vi­trinas dos muzeus históricos, que aqui são os manuaes científicos.

— Ah! querem que eu faça um manual, á moda alemã, sobre o Ruy? Esta cá me fica!

João Rivas moveu-se e declarou que o V de Tam­baqui tinha carradas de razão. No seu entender o que o orador estava dizendo não passava de um romance mal contado.

Page 46: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

44

— Romance mal contado ! obtemperou Cosme Ve­lho. Pois então ouçam. Creio que nesta caza não haverá quem não tenha lido as Cartas de Inglaterra de Ruy Barbosa.

— Todos conhecemos esse monumento da lingua portugueza.

— Não direi o contrario; todavia, não encontro, entre os livros desse incontestado mestre da lingua na­cional, documento que prove mais exuberantemente o-í seus direitos á qualificação de praxista da incoerência. Tomemos duas destas cartas e mais os discursos pronun­ciados na Bahia depois do exilio: não ha duvida que taes escritos e orações obedecem a um intuito particular; têm uma unidade colossal: são elles a espansão de um movi­mento de orgulho; e vizam demolir alguira couza atra­indo para ella ódios fulgurantes. Neste sentido a marcha dos períodos de Ruy Barbosa parecem-se com batalhões que entram em uma cidade vencida para saquear e .Tceber o triunfo. Não percamos de vista os acontecimentos que esplicam esses trabalhos. Determinemos agira os p intos essenciaes. Escolherei as cartas sobre os Fundamentos da fé de Balfour, as sobre Francia e a obra de Carlyle e o ul­timo discurso sobre o jacobinismo. Cada um destes tra­balhos foi produzido em situação de espirito diferente,, em que o ódio, ou melhor, a vaidade ofendida do mestre exaltava-se ou exultava no paroxismo da raiva e do des­peito. A primeira carta é datada de Londres, quando o autor logo ahi chegou espatriado; a segunda refere-se á época em que elle já devia ter outra calma, prezo na con­templação da machinery anglo-saxonia; a ultima é um alalt de emérito caçador em estampas clássicas de salas de jantar, o qual se dá o prazer de assistir ao garrote de um

Page 47: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

45

solitário javali e a uma aclamação triunfal. Pois bem, ve­remos em taes produções, grosso modo, as qualidades pro-teicas de Ruy Barbosa. Elle necessitava, ao chegar ma­goado e inquieto na Inglaterra, comover amigos e ini­migos na sua qualidade de forajido. Que recurso empre­garia ? Ofereceu-se-lhe o livro de Balfour. Necessaria­mente luziram-lhe os olhos e a lagrima do retórico des­lizou-lhe pela face. A obra de Balfour é esforço de um quazi místico anglo-saxonio, tipo heriditario de famílias dedicadas ao sacerdócio; já se sabe, da classe dos espíritos da il'ha convertida á fé cristã e profundamente votados á gloria da english speaking race. Místico, mas pratico. Como já disse uma vez, os místicos dessa natureza uzam do espirito relijioso como os industriaes utilizam, na mesma ilha, o vapor e a eletricidade, ou como os do tipo de Cecil Rhodes se servem da patifaria combinada com a re-lijião, isto é , — d o mercantilismo ou da bribery consor-ciada ao Evanjelho. Seja, porém, como fôr, o livro de Balfour assenta inteiriço no idealismo e na influencia de um Deus independente da matéria, na ação direta da Pro­videncia e, portanto, na missão de homens e de povos. Ruy Barbosa, pois, escolheu esse instrumento eloqüente de piedade para atacar a democracia na America do Sul, que tanto importa não perdoar-lhe os escessos, nem buscar esplical-os. Rezumiu a obra e incorporou-se a ella, che­gando, no seu tripudio de idealismo e unção relijioza, a fazer-se quazi espirita. Ora, ahi tem Ruy Barbosa bal-fourista, repelindo o agnosticismo e o sensualismo como cauzas da anarquia americana.

Não tarda, porém, a mudar de idéas aprezentando o reverso da medalha. O orador pôde, emfim, regressar aos pátrios lares. A mocidade da Bahia suspende-o á brilhante

Page 48: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

46

tribuna das conferências. Ruy Barbosa enche-se de ale­grias cruéis e pensa em demolir o jacobinismo, couza aliás impossível de existir, na fôrma clássica, entre os povos da America. Nesse empenho esquece-se de Balfour. E a quem procura para desfechar golpes sobre o inimigo ? A um agnóstico determinista, a Taine, que esplica a Revolução como um cazo de patolojia social e o jacobi­nismo como a crize ou o momento agudo da terríbilis-sima enfermidade. Realmente, não sei como se possa acomodar em uma mesma cabeça o providencialismo de Balfour e o desbragado determinismo de Taine.

Que querem ? O senador da Bahia precizava de uma arma pronta para ferir adversários; pouco se deu de man­ter a sua coerência, e fez-se taineano como quem mais o podia ser.

Já as cartas cobre o Francia de Carlyle obedecem a sentimento e orientação diversos. Carlyle foi o mais genial dos idealistas, do paradoxo. O próprio Ruy Barbosa preveniu a mocidade das ciladas que esse espirito estraor-dinario arma aos incautos leitores de suas obras. Pois bem, Ruy Barbosa ou foi vitima de uma destas ciladas ou então confirma o titulo de praxista conciente da incoerência.

Como pode ser isto ? perguntou Raulino Palma, nervozo, quazi irritado.

— Como pôde ser ? Eu lhes esplico. Carlyle é um dos muitos agnósticos ou ceticos de meia partida que têm soluções de pura imajinação para todas as questões. Mais panteistas do que deistas, os dessa espécie votam horror ás massas sistematicamente. Não ha espíritos mais rebeldes ao gênio cristão, na sua humildade, mansidão e democra-tismo, do que os dessa natureza. A' sua linhajem pertenceu Schopenhauer e agora surje Nietzsche, que, como todos

Page 49: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

47

sabem, sustenta que o cristianismo é a sistematização do sujo e da vileza e a espansão da alma escrava, a vitoria democrática das faculdades animaes* sobre as estéticas, de onde unicamente pôde sair a civilização, está visto, pela seleção dos grandes homens, pro-homens ou gênios derivados desses grandes carnívoros louros, oriundos do norte do continente europeu. Ora, ahi está a viela em que se meteu Ruy Barbosa. E tudo porque? Porque a sua questão é o triunfo retórico do momento. Elle ne­cessitava provar que no Brazil a tirania não tinha siquer obtido um grande reprezentante; então foi buscar nos arsenaes de Carlyle esse Francia, terrivelmente casto e friamente feroz, na sua missão de professor réjio do Paraguai, para reprezentar, na lanterna majica da sua oratória, uma cena de tutu ou de inapreciavel Arranca en­tranhas

E por hoje, meus amigos, creio que disse o suficiente. O tempo e as preocupações não me permitem ser mais prolixo. O proteismo, grosso modo, de Ruy Barbosa tor­na-se mais vizivel nos seus trabalhos como constituciona-lista. Nesse terreno ainda hei de aprecial-o em rija pa-' lestra. Desta vez não é possível, porquanto seria neces­sário desparafuzar muitos dos seus aparelhos, que são pezados de mais para trazerem-se a uma conferência. Qui vivra, vera.

Cosme Velho não foi aplaudido. Na sala do hotel havia um piano forte. Fumou-se,

tomou-se licor. O R» Barbalho passou ao piano. No fim de alguns compassos, o V. de Tambaqui aproximou-se in-trigadissimo pela muzica.

— Que é isto ? Não conheço. E' orijinal ? Será Grieg ?

4

Page 50: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

48

— Isto é muito nacional: um trecho da Iracema, poema sinfônico que o Nepomuceno está compondo. Ouça esta parte e diga si já houve quem esprimisse melhor o marulho das ondas dos verdes mares de minha terra natal. E esta fuga da jangada, impelida pelo terral; e a barca-rola do pescador; e o vento, e a tempestade ! ? Um primor! Perdidos em alto mar: sublime! A parte lírica: a taba, o encontro de Iracema, o perfil de Poty, o pajé e a ca­verna, o segredo da Jurema: estes trechos todos não estão completos. Acredite, porém, que esta obra, logo que esteja pronta, fará uma revolução no nosso meio artístico.

1898, Setembro.

IV

SONHO CHINEZ—RUY BARBOSA : PROMETHEU

.Grande movimento na estação central da Estrada de Ferro. Oito horas da noite, os globos elétricos inundam as plataformas de uma luz branca e muito intensa. Ha tonalidades nessa luz, sincopada por eclipses rápidos, que parecem soluços na claridade; e nas sombras, projetadas sobre o pavimento e sobre as paredes, julga-se sentir o efeito do luar das praias, em noites serenas, ou o alvo­recer em dias límpidos de maio.

Quando Cosme Velho penetrou na gare, lembrou-se dos enjenheiros a que se devem a vida e o movimento hoje observados nesse próprio nacional.

Conversando, então, com um que partia para São Paulo, ouviu-lhe estas palavras:

Page 51: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

49

— Que magnífico prefeito daria o dr. Passos ! Em um ano elle teria encetado obras de asseio, de como­didade publica e de embelezamento da cidade, com ta­manha precizão, que os seus sucessores não encontrariam geito de deixar de concluil-as. O prefeito do Distrito Federal deve ser um homem dotado de trez requizitos: enerjia, calculo e gosto artístico; na enerjia incluem-se a capacidade administrativa e o conhecimento dos segredos com que se quebram rezistencias; no calculo, a previzão dos recursos orçamentários; no gosto, a cultura geral, a imajinação pratica e a esperiencia obtida na elegância das grandes capitães, onde existem obras de utilidade publica e monumentos arquitetônicos. Ora, esse enjenheiro possue tudo isto. Não faz de Moizés, nem empreende mudar o curso natural dos líquidos, violando as leis da natureza; mas, em compensação, sabe onde piza, e quando piza, fir­ma o que conduz.

Comprou a passajem, despediu-se dos seus, e, desinfe­tado, tomando o vagão-leito, não demorou em acomo­dar-se para dormir. ;

Dormir, sonhar, em quanto se transpõem distancias colossaes; que delicia e que fantástica realidade!

O leito estava fofo; a temperatura, boa; a alvura do linho e o asseio dos acessórios convidavam-no ao re-pouzo.

Cosme é um grande dorminhoco; e dá-se por bem pago do que sofre, porque essa boa qualidade constitue uma bela válvula de segurança. Não sabe o que é in-sonia. Na idade média pintavam-na, como também ao pezadelo, com a fôrma de incubos tremebundos. As mon­jas, os frades moços e os poetas infernaes eram vitimas dessas entidades fantásticas; e muita lagrima derramou-sc

Page 52: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

50

por cauza de pezadelos. Hoje tudo isto corre por conta das nevrozes e das dispepsias.

Quando o trem moveu-se, já Cosme Velho sonhava com a China de sorte que não teve tempo de observar o Rio de Janeiro, de estrada de ferro, em noite de luar, sob as boas promessas de um feriado, livre de trabalho.

O sonho que o dominou foi um tanto esquizito. So­nhava que rezidia em Pekin, e era feito mandarim de primeira classe. As unhas, que tinha sido obrigado, pela dignidade do cargo, a deixar crecer, eram tão compridas e retorcidas que não lhe permitiam cocar as costas, couza que para elle, constituía ura gozo superno. Digo superno, porque, no Brazil, um homem, nas suas condições, não tem tempo para se mover, quanto mais para se cocar. E sempre em sonho,—elle, na qualidade de mandarim, fora chamado a dar a sua opinião sobre a invazão que as nações tentavam contra o Celeste Império. A imperatriz Sy-Pay-Hen, apezar da idade, aparecia-lhe fulgurante de beleza, dessa beleza mandchú, que se não confunde com a amarelidão pergaminoza do tipo mongól feminino. A sua tez tinha a alvura do marfim trancendental, de que os artistas geniaes do Império do Meio tiram as estatuas de Buddha para o culto secreto da família imperial. Dos seus olhos, lijeiramente oblíquos, defluia uma luz tão intensa, que cegava; os lábios, rubros como a laça da ponte sagrada de Kiang-Fu, riçavam um sorrizo quazi diabólico como o poeta do Ocidente não soube pôr igual na comissura do Satanaz do Paraizo Perdido. Na fizio-nomia divina ondulavam prazeres inestinguiveis; delia resumbrava essa vontade potente, invejável, que a marcha do espirito, orientado para o Nirvana, exalça em fulgura-ções capazes de subverter o mundo. Diante dessa figura

Page 53: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

51

estraordinaria que lhe impunha ordens com o simples movimento do sobrolho, sentiu-se tão mesquinho, tão vil, tão ridículo, apezar do tamanho das unhas tradicionaes, que se ajoelhou para beijar-lhe as plantas divinaes.

— Levanta-te, disse-lhe: os tempos são chegados. Desta vez os filhos do sol irão a Kamakura, e então Bud-dha nos dará a vara com que se ha de medir o mundo, pondo na terra os tribunaes que terão de julgar os piratas do Mar Amarelo e esses peiores varredores de nações, chegados de todas as partes do universo.

Embora mandarim, pôde lembrar-se do que signifi­cavam estas palavras da imperatriz. Kamakura é um povoado e um templo do Japão, e nesse sitio existe uma estatua colossal de Çakya Muni, que é uma maravilha. Os filhos do sol não perdoam a Nipon o possuil-a, por­quanto esse idolo foi outróra arrebatado ao solo chinez, e as suas virtudes são tamanhas, que quando a terra treme, a estatua move-se e inflama-se de modo a ser vista de lon-jes terras. Para os budistas chinezes a conquista de Ka­makura importa o mesmo que para o cristão a conquista do Santo Sepulcro.

Elle estava em adoração diante da bela Sy-Pay-Hen. O jardim para onde ella o atrairá palpitava de uma vida singular, estranha, oriental. Era noite; fazia luar. Os crizantemos suspiravam ao pezo do orvalho e despren­diam aromas embriagadores; das sombras, que sob a relva lançavam os tufos de arbustos floridos, saiam ge­midos de aves noturnas, ás vezes crebros, outras, solu-çantes.

Os seus cabelos eriçaram^se; pela espinha dorsal Cosme Velho sentiu correr como um aljido caroço de mercúrio. A imperatriz olhou para elle, cheia de ternura

Page 54: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

52

e piedade; e suspendeu-lhe a alma num raio celestial do seu olhar heróico.

Transformou-se, erijindo-se altivo, seguro do que diria si ella exijisse delle qualquer conselho. Sy-Pay-Hen fez, então, com o olhar um sinal de aquiecencia.

— Excelsa imperatriz, disse-lhe Cosme, depois de uma lijeira pauza, a minha opinião é talvez indigna de subir até aos vossos ouvidos, habituados a escutar so­mente a poezia das alturas e a ciência do invizivel.

— Fala, respondeu a divina creatura; fala, porque a minha serenidade é ampla, e pôde acolher, sem indignações, o que por teus lábios vai dizer Confucio. A sua doutrina cruel, materialista, é talvez mais pecaminoza do que a destes homens de cabelos dourados que nos surjem do Ocidente. Eu te escuto. Abre a boca e pensa.

— Senhora, quando o mandarim, que vos fala, vivia no corpo de um homem simples, e, perdido nas ruas de uma cidade do continente sul-americano, filozofava sobre as couzas deste vasto paiz, de si para si, teve mais de uma vez ocazião de dizer que os filhos do Celeste Império não haviam ainda entrado na historia do que então chamá­vamos civilização; mas que, quando isto se desse, o ruido seria tão grandiozo e terrível, que as águas do oceano iriam subverter o pólo. Este momento, senhora, parece-me haver chegado: e aos vossos olhos não terá passado des­percebido que as nações européas, em sua tradicional cegueira, apezar do que os seus mandarins têm escrito sobre a subversão dos grandes impérios e sobre as leis que rejem as deslocações da hejemonia humana, não vêem que são arrastadas pela política internacional do espansio-nismo industrial para um verdadeiro Maelstroon, onde

Page 55: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

53

os seus máos governos — não os povos — se afundarão aniquilados. Não é precizo ser sábio para vêr que os diretores dessas nações estão a aplicar erradamente as leis históricas descritas por Montesquieu, autor que co-nheceis perfeitamente. Elles, coitados ! — desgraçada­mente para os que vão na guerra ser sacrificados, — elles estão a supor que o cazo emerjente singulariza-se numa simples reprodução do desmembramento do Im­pério Romano, quando o mais inabil estudante de filo­zofia da historia sabe que a situação atual do mundo se oferece com uma feição inteiramente contraria á que teve a Europa nos séculos que se seguiram á primeira invazão dos bárbaros.

O Império do Meio não vive como vivia Roma, e nem as nações européas estão para a China na propor­ção moral e militar que os bárbaros guardavam para com o império decadente dos Cezares. Basta este simples confronto para que se sinta logo a estupidez dos diplo­matas ocidentaes.

Elles começam por tomar a pozição dos bárbaros. Ora, não ha beocio, que, raciocinando dois minutos, não reconheça a pozição falsa desses bárbaros civilizados, que serão obrigados a recuar em suas pretensões espoliatorias, desde o instante em que sejam por sua vez coajidos, para manter a guerra, a pôr em pratica a lojka dos bárbaros. Haverá ahi quem suponha que os europeus sejam ca­pazes de marchar para o desconhecido com obstinação igual á dos selvajens que deceram sobre a Europa du­rante a Idade Média ? Por certo que não. Isto seria simplesmente incompativel com os interesses econômicos do mundo civilizado e com o estado cerebral dessa gente que se dirije ao Oriente. E' impossível ao europeu re-

Page 56: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

54

gressar ao estado da lojica animal: e para vencer, des-mandibular o Império do Meio, seria necessário que, sem discrepância, as nações ocidentaes adotassem essa lojica de demônios, essa lojica de que tereis ouvido falar longamente a propozito dos poemas Mahabarata e Ra-mayana, dos nossos vizinhos bramines, onde cinocefalos, conduzidos pelos deuzes infernaes, devastavam rejiões inteiras, arrazando florestas, incendiando cidades e fa­zendo o Ganjes refluir até as suas orijens, pelo acumulo de cadáveres lançados ás suas águas. Não ! divina Sy-Pay-Hen; não ! mil vezes não ! A China não pôde ser vencida; e o único perigo que a deve preocupar é a ambição dos nossos primos, os habitantes de Nipon. Elles estão de posse de dous segredos: são brancos e são amarelos. Evoluíram, como se diz nas universidades eu-ropéas; evoluíram da sua civilização, sem delia perderem nada, até chegar á civilização dos brancos de olhos azues e cabelos de oiro. Mas . . . porque não querem que nós façamos o mesmo? porque esses orgulhozos nos espu-zeram a tantas humilhações, surpreendendo-nos na paz divina dos nossos jardins? Corromperam-se talvez! Be-beram demais na taça cheia de filtros e venenos que ob­tiveram dos ocidentaes. Os japonezes, pois, são os nossos únicos inimigos. E' precizo vencel-os e então incorporados, os aziaticos, veremos como entrar no convívio universal.

De súbito, Cosme interrompeu-se. A imperatriz, por um desses fenômenos de levitação tão comuns no Oriente, tinha-se erguido do chão e pouzára na corola dê um gi­gantesco girasol. Os seus olhos despediam uma luz bran­ca e eclitica como a do luar; doiam docemente na sua alma; e a sua boca abria-se como o lotus num sorriso de divindade braminica.

Page 57: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

55

Cosme tremeu. O sangue morno, que lhe percorria as veias, dulcificou-se, como se injetassem nellas o per-fumozo eloendro uzado pelas princezas de Kiank-Loh nos seus banhos deliciozos, ao pôr do sol, nas marjens do rio Azul.

Sy-Pay-Hen, então, dirijiu-lhe a palavra num sorrizo que faria, lançado ás flores, dezabrocharem todas instan­taneamente, perfumando o ambiente de aromas loucos.

— Ministro da minha vontade, disse, tu adivinhaste; e tua alma penetrou, por certo, no meu cérebro, para que pudesses enxergar tantas couzas sutis e admiráveis. Nós precizamos avançar para Kamakura. Buddha nos aguarda para dar-nos a senha e o santo do futuro. Vou ajir sobre os Sudras, e desde este momento o incêndio se ateará nas almas dos patriotas da China. Olha; vê: sabes o que significa aquillo ? E' o incêndio de Pekin ! Não fizeram igual os Tartaros de MoscOw !? E os exércitos do Ocidente tinham á sua frente um general igual a Rama ! Cairam. Cairão novamente. O Christo não vale Buddha; e Buddha transformará o Ocidente, fazendo que a corrução se infiltre, pela terra, através do granito e vá em busca do fogo purificador. Então a China, sendo o primeiro povo do mundo, fará a atmos­fera humana tão diafana, que os máos pensamentos, ofus­cados, darão á vida a sua verdadeira significação.

Cosme quiz beijar os pés microscópicos da impera­triz. Um raio de cólera fuzilou-lhe no olhar: uma im­pressão doloroza atinjiu-lhe a ponta do nariz.

Despertou, olhando através dos vidros do carro; o trem tinha parado. Vultos ajitavam-se do lado de fora na penumbra de uma luz mortiça. Uma voz gritava: Pindamonhagaba ! Dau um salto e poz-se fora do be-

Page 58: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

56

liche. Clareava o dia; os passajeiros, matinaes, começavam a preparar-se para a baldeação em Taubaté.

Defronte estremeceu a cortina adamascada, que en­cobria duas camas; Cosme ouviu estas palavras:

— Panchita, vamos decer ? Era voz de homem. Panchita, nesse tom dolente

de quem não quer sair do aconchego do leito morno, e com o qual o corpo já se acostumou; respondeu logo:

— Que horas são ? — Seis. E' precizo prepararmo-nos. O trem rodou; e daí a minutos as camas estavam

desfeitas e transformadas em confortáveis assentos.

Panchita surjira, então, para mostrar, no seu rou­pão de viajem, que a sua voz doce e engraçada não des­dizia de sua beleza de andaluza. Os olhos eram claros; tinham a espressão quebrada de uma languidez rizonha. Ao oval do rosto cinjiam uns cabelos negros crespos, flu­tuantes, coroados por um chapéuzinho de lontra que ia-lhe a morrer. O véu côr de roza desmaiada mal en­cobria a penujem do buço, sob o qual, de vez em quando, apareciam, no cacoete da garridice feminina, uns dentes alvos e petulantes que mordiam os lábios para dar-lhes mais vermelhidão.

A voz mavioza e cheia de ciciados entreteve a curio-zidade dos passajeiros, tanto que o trem corria.

Algumas senhoras, receiozas e acanhadas pela falta de habito de viajar nos trens noturnos, disfarçavam a timidez, olhando para a paizagem, que se dezenrolava de um e outro lado da via férrea. Todavia, logo que a an­daluza trocava palavras de galanteio com algum cava­lheiro menos puritano, ellas davam, entre si, sinaes de in-

Page 59: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

57

telijencia, e num olhar de revés fulminavam-na com a mais soberana reprovação.

Nisto, topei com o enjenheiro que me falara sobre o Passos, na estação Central. Saía do toilette, pronto para saltar.

— Já sei, disse-lhe, que vai vêr os trabalhos da Light and Power.

— Quero vêr para crer. A maquina apitou. Chegavam. O dia foi distribuído em Taubaté entre vizitas e

passeios pelos arredores. A' tarde, Cosme tomou o troli de um amigo e des-

penhou-se pela estrada de Ubatuba. Tarde tropical, lím­pida, serena; nem uma nuvem no céu azul de esmeralda; riem uma nuvem de poeira no caminho. Depois de uma hora de viajem começou o troli a subir a Serra do Mar, através de uma encosta muito acidentada, fendida aqui, ali, acolá, por fortes correntes de água, que davam á rejião um aspeto abrupto, quazi selvajem. Os animaes suavam; e, apezar da perícia do cocheiro, uma vez por outra, o veículo tombava, pondo Cosme e o seu com­panheiro de viajem fora dos assentos.

— Que bela paizajem, disse, lobrigando um pano de floresta alpestre que se dezenrolava ao longo da gar­ganta por onde iam correndo.

A vejetação caía justamente a pique sobre a entalha, que o enjenheiro fizera em terras marnozas, para dar passajem ao traçado da estrada. Para baixo abria-se um abismo verde-escuro, no qual a vista perdia-se, flu­tuando entre ver ti j em e admiração. Havia um rumor surdo e misteriozo de águas que se precipitavam, rom­pendo pedras e obstáculos; e um efluvio fresco de aromas,

Page 60: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

58

desprendidos das flores do manacá e do cedro, balsami-zava o ar, completando o prazer que aos viajantes cau-zavam tão belos aspetos da natureza.

Ofereceu-se-lhe, então, fazer uma observação. — Eis um terreno que nos esplica como os boers

puderam produzir tamanhas complicações na guerra do Transvaal. Ora, imajine você que nós somos aqui a arti­lharia ingleza e que os amigos de Krujer acham-se es­condidos por aquelles flancos de montanha, orientados em varias direções. Acredita você que nós com toda essa artilharia pudéssemos escapar á pontaria dos hábeis ati­radores ? E as carretas, os reparos e os caminhões ? Onde iriam parar, atravessando uma senda pedregoza e tão estreita como esta, si os animaes disparassem assombrados nestas tortuozas veredas por uma artilharia sempre oculta ?

Mal terminadas estas palavras, o troli adornou sobre um grande buraco, onde ainda havia vestijios de lama das ultimas chuvas. Apearam-se, e, emquanto o cocheiro aliviava o veículo, seguiram a pé, em busca de terreno menos acidentado.

A fazenda para onde se dirijiam, fica a três léguas de Taubaté. Escurecia. Transpuzeram a porteira que dá ingresso para a espécie de parque, em que estão assentes a caza de vivenda e as maquinas de beneficiar café. A' por­ta central da caza senhoril achava-se o proprietário, homem carinhozo e distinto, o qual recebeu os hospedes com um abraço muito afetuozo.

Reduplicaram os requintes de acolhimento desse bom amigo. Conversaram, todavia, lijeiramente e, com sua permissão, recolheram-se ao confortável apozento que lhes era destinado. Cosme estava um tanto fatigado do

Page 61: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

59

corpo e do espirito. Não tardou em ferrar o sono. Desta vez o dormir foi tão calmo e profundo que não sonhou; mas, por volta de cinco horas da madrugada, despertou e não conseguiu mais reconciliar o sono. Então poz-se a matutar; e daí a pouco o pensamento, dissoluto, in-sobrio, como um cavalo em liberdade, depois de larga recluzão, começou a galopar em todas as direções, ni-trindo, lançando a crina ao espaço, escouceando.

Levantou-se, acendeu a vela que estava sobre . o criado-mudo, e numa tira de papel, poz-se a tomar notas a lápis.

Sobre que havia de ser? Um projeto de artigo para o Jornal do Comercio. Depois, no Rio de Janeiro, completaria as suas idéas, lendo Boutmy, Freeman, Taine, Gneist e Jusserand, sobre a Inglaterra.

Escreveu: "Comentário a um telegrama de lord Sa-lisbury."— Diz o lord que não ha duvida de que uma acirrada anglofobia percorre o mundo. — De quem a culpa ? De onde vem o mal ? Será infundado esse senti­mento? Será inveja? Estupidez das nações chamadas infe­riores?—Nada disto...—Cauzas de impopularidade do

atual organismo político inglez: I. A Inglaterra divorciou-se do espirito dos seus melhores f ilozof os. I I . As suas ten­dências espansionistas estão de acordo com o Leviathan de Hobbes (homo hominis lúpus), mas nada tem de comum com a moral de Bacon, de Hamilton, de Adam Smith, de Stuart Mill, de Spencer. I I I . A nobreza, asso­ciada á gentry e aos industriaes, perdeu o seu prestijio histórico; degradou-se no mercantilismo; as bulas que espede não são mais do quilate da Carta de João-sem-terra. Ella dissolve-se gradualmente e torna-se imprestá­vel como o saco de aveia em que ainda hoje senta-se o

Page 62: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

60

speaker da câmara dos Lords. IV. A moral ingleza per­deu o perfume bíblico. O não matarás transformou-se no make m.iney, by God. John Buli, Armstrong, Cecil Rhodes & Company... V Incomportabilidade da ilha. Necessidade de alimento. Insuficiência da própria caza. Quem não produz para comer, aparelha-se para matar. . . et le reste. VI. Judaismo bancário. A cambial, não como instrumento de credito e de permuta, mas como ficha de jogo e . . .

Ia Cosme escrevendo estas palavras quando reparou que o dia principiava a clarear. Ergueü-se e abriu a janela, que dava para o jardim. Um jato de luz matinal penetrou no apozento; e do jardim, ao lado, soprou uma arajem fresca e aromatizada pelos efluvios das rozas e dos jasmins que dezabrochavam. Vestiu-se lijeiramente e saiu.

Os primeiros raios do sol iluminavam as montanhas circunjacentes com uma luz sangüínea, entremeiada de laivos de ouro. Num pano de floresta, ao lonje, o céu recortava-se em tela de azul intenso como bastidor de teatro. A eira animava-se com o movimento dos colonos. A maquina silvava, desprendendo a primeira carga de vapor; e um ruido surdo, como de gigantes que viessem decendo alguma grande escada de madeira, enchia a am­plidão; eram a roda d'agua que trabalhava e os apare­lhos de beneficiar café que se moviam lentamente.

Tudo isto, Cosme observava de uma varanda co­berta de parreiras. Deceu para o jardim, fechado por quatro estensissimos renques de bambus; e, ao som festivo da passaralhada, que esvoaçava sobre os pecegueiros e la-ranjaes, passou a discorrer pelas aléas floridas, aspirando o aroma das rozas e dos araçás que maturavam.

Page 63: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

61

Delicioza manhã ! A imajinação calma, sorridente, cheia de frescor, poz-se logo a crear mil situações agra­dáveis ao seu amor próprio e as suas nunca satisfeitas aspirações de esprimir as couzas com vigor.

Ao contornar um renque de jaboticabeiras, deu de face com um monjolo, essa curioza armadilha inventada para economizar o esforço do homem, a qual, segundo reza a crônica, fora introduzida em S. Vicente por Braz Cubas. O monjolo estava coberto de lodo e liquens; tinha sido abandonado. Pareceu-lhe o cadáver de um velho, que outr'ora despendera grande soma de atividade e que por isso agora encontrava-se decrépito e desprezado. Nisto, ouviu uma voz que lhe falava; voltou-se: era o proprietário, que empreendia a primeira inspeção do ser­viço das maquinas.

Um moleque o acompanhava, trazendo uma bandeja com duas chicaras de café e biscoitos. Injerido o saborozo netar, como o chamam os poetas, sairam do jardim e se­guiram para a caza das maquinas. Em caminho viram passar uma matilha de cães atrelados, que o guardador dos cavalos levava para o pasto da fazenda.

— Vão ser curados, disse o fazendeiro. Precizo fazer por estes dias uma batida de catetos; e, si quizer acom­panhar-me, venha do Rio, o que será um imenso prazer para mim.

Cosme não poude aceitar o convite. Por algum tempo esteve a observar a faina do serviço; e, logo que se sentiu cançado, voltou ao quarto pensando em continuar as notas.

— Não, disse consigo mesmo. Vamos afinar os ner­vos num banho de cachoeira; e assim fez. Estava, porém, escrito que elle, naquella manhã não escreveria mais; e

Page 64: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

62

de feito, apenas se dispunha a pegar de novo no lápis, chegaram jornaes de S. Paulo, cuja leitura o absorveu até á hora do almoço, que foi por volta das onze.

Fome negra; apetite devorador; acepipes paulistas, muito adequados ao paladar de um neurastenico. Comeu como um alarve; e mais teria comido, si á meza não hou­vesse encontrado, além do amigo que tão gentilmente o hospedava, um frade austríaco que viera dezobrigar os colonos italianos da fazenda, e o administrador da fa­zenda, pessoa viajada e de conversação fácil, que, em-quanto injeria os alimentos muito vagarozamente, ia pro­pondo cazos intermeiados de gostozas anedotas.

Falou-se depois em política, passou-se á lavoura, ao cambio, aos preços correntes do café.

Terminado o almoço, foram todos para a varanda fumar e fazer o quilo. O relijiozo meteu as mãos nas mangas do burel, inclinou-se humildemente e foi tratar das suas confessadas.

Uma vez repoltreados em boas cadeiras de molas, recomeçaram a palestra. Cosme narrou as suas impressões do Rio da Prata. Descançando o almoço, sairam, então, a cavalo, a percorrer os vastos cafezaes.

A' tarde, Cosme Velho voltou de troli para Tau-baté. Durante a viajem preocupou-o um pensamento de Jonh Morley, colhido no seu ensaio sobre Machiavel: "A concepção moderna do Estado tem gradualmente transformado este, numa pessoa moral capaz de direitos e de erros, exatamente como os indivíduos que o com­põem". Não será possível restrinjir a ação maléfica dessa pessoa jurídica de direito publico chamada Estado, de modo que os seus vícios deixem de ser os dos estadistas

Page 65: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

63

que ocazionalmente com ella se identificam ? A solução dessa pergunta seria dezenvolvida no n. VII do artigo projetado.

A's 10 horas da noite tomou o trem noturno. As cojitações, a que se entregou, antes de adormecer, não dezembrulharam o problema que a si mesmo havia pro­posto.

Na estação central, ao dezembarcar, topou com Bra­zilino Dias. Vinha de uma escursão á Minas.

De bondinho, seguiram para o centro da cidade, juntos.

— Tinha que te falar. — Estou muito f atigado.. . — Jantaremos hoje nas Laranjeiras. — Aceito; contanto que não trates de negócios. — Podes ficar descançado. — Conheço-te. A conversa enveredou, todavia, pelo caminho da po­

lítica e caiu na alta do cambio. Brazilino tem a respeito de finanças teorias estraordinarias. Do cambio declinaram as suas considerações para a critica das idéas de um per-sonajem celebre nesse assunto.

— E' verdade ? Quando temos a conferência sobre Prometheu.

— Apenas estejam concluídas as obras do teu cas­telo.

— Porque não a fazes hoje? Adia para a inaugu­ração do chateau a conferência sobre o Brazil-Imperio.

— Estás me saindo um refinado inteletual. — Pois então até á noite. E separaram-se no largo de S. Francisco de Paula. Durante o dia, Cosme Velho vagou pelas repu-

5

Page 66: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

64

blicas de alguns deputados do norte, seus amigos. A's sete da tarde tomou o bonde das Laranjeiras.

Brazilino recebeu-o na biblioteca. Aquella hora estava, examinando um Barloeus que lhe custara a insignificante quantia de um conto de réis. Faziam-lhe companhia Car­los de Louvet, João Rivas, Raulino Palma e mais alguns Íntimos.

Brazilino deu, em poucas palavras, o plano de um discurso.

Na sua opinião, Ruy Barbosa era uma das forças da natureza. Ha, porém, forças benéficas e maléficas. Ruy Barbosa é uma divindade saturnina. Creado nas sombras do Averno, parece ser o irmão mais moço das Eumenides. O Brazil, na sua imajinação é torvo, tetrico, pavorozo.

Cosme Velho riu da idéa estravagante de Brazi­lino. Não era exato que o nosso primeiro orador, o nosso primeiro constitucionalista, fosse uma divindade subter­rânea. O Ruy que todos conhecem é apenas um Titan. Nada, porém, de humano lhe é estranho.

— Farei a conferência, disse Cosme Velho, estu­dando esse homem nas suas deliquecencias de político e no titanismo do jurista. Falarei do Prometheu indijena com toda a franqueza de que sou capaz.

— Esgota a mitoloj ia, si te parece. Não esqueças, todavia, que esse Titan suspeita ser a encarnação da Re­publica.

— Talvez. O seu pecado, porém, orijina-se do mesmo erro de que foi vitima Luiz X I V . O publicista brazileiro supõe que a Republica tem segredos de es­trutura só acessíveis á sua privilejiada intelijencia.

— Não te esqueças do arrebatamento do fogo sa­grado. O nosso Prometheu abuzou desse triunfo. Lembro

Page 67: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

65

oportunamente que o marechal Deodoro tomou-lhe o facho e apagou-o.

— E também, surjindo a revolução, o eminente ora­dor, versado em historia como é, pensou na conspiração de Catilina; mas o olhar de Cezar era vesgo nesta oca-zião para a maré montante. Estava escrito, todavia, que as ocilações desse espirito fariam delle um Catão.

Quem era, emfim Prometheu ? Eschylo nos descreve um Titan, que, tendo auxiliado a Júpiter a desbaratar os gigantes, desgostozo, em razão dos ciúmes que a sua intrepidez despertara no Olimpo roubara o fogo celeste para com elle prezentear os homens. O rei dos deuzes, não suportando o crime horrendo, encarregou a Força e a Violência de acorrentarem o precito ao Caucazo, onde um abutre roêr-lhe-ia o figado por toda a eterni­dade. Mas Prometheu, um obstinado, desvia as lamen­tações das Oceanides, que o consolam, e as objurgatorias do Oceano que conspira contra Júpiter. A cólera do Titan recrudece. Vomita ameaças terríveis contra o so­berano dos céus e sublinha que o seu suplício não tardará em converter-se na subversão da tirania. Júpiter, então, preocupado com o mistério daquella fraze, envia Mercúrio para que perscrute toda a verdade. Autoriza-o a libertar a vitima, desde que esta revele de onde vai sair a conspi­ração. Prometheu, porém, recuza; e, num cataclisma, subverte-se com o rochedo, onde jazia acorrentado.

Por esta lijeira espozição da trajedia de Eschylo vê-se a parodia do Prometheu da Republica brazileira. Ruy Barbosa copia aquelle orgulho icoercivel. As la­mentações da imprensa são tão bem parodiadas. O Cau­cazo é que não parece o mesmo, na mitolojia e na le-jenda. Júpiter é a Republica. Mas o fogo sagrado ?!

Page 68: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

66

Esse facho fulgurante que faz todo o seu orgulho ? Acazo elle o foi buscar na America do Norte. . .

Prometheu-mirim, compenetrou-se um dia de que só elle tinha o segredo do mistério encerrado no art. 72 da nossa Constituição.

— E' isto o que se chama lojica triunfante, lojica infernal, com apoteoze no ultimo ato ! disse J. Rivas.

— Recordemos como os feitos do marechal Floriano foram pulverizados pelos argumentos plutonicos de Mer­cúrio.

— Não leram O estado de sitio f — Este livro tão aplaudido, é o monumento mais

completo de de sofisticaria humana. — Caro amigo Cosme, ponderou Carlos de Louvet,

você não tem topete para proval-o. — Não me proponho provar couza alguma. Aponto

com o dedo os fatos, que são do domínio da psicolojia; e depois cada um faça o juizo que entender. Uma ques­tão de método. Ha métodos para tudo, até para provar que não se tem razão. E' precizo muito talento para em­pregar o raciocínio no intuito formado de não chegar a nada, isto é, de não se deixar cair numa concluzão po-zitiva. E' a isto que os sertanejos matreiros de minha terra chamam guardar o salto do camarão.

Tenho alguma pratica da vida e por isso posso hoje comparar alguns aspectos da existência humana e especial­mente da atividade psíquica. Ora, como creio que as fa­culdades do jurista procedem da mesma força genitriz de que provêm as do medico, as do padre, as do artista, as do comerciante, as do navegador, as do inventor, penso que os processos empregados por essas atividades são idênticos ; portanto para criticar as manifestações daquella atividade

Page 69: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

67

jurídica basta conhecer um pouco a natureza da enerjia mental do homem.

Examinando os trabalhos jurídicos de Ruy Bar­bosa, vario apenas de matéria, isto é, passo dos processos de critica literária para o campo da lejislação e analizo os instrumentos com que o jurista a aplica ou a interpreta.

Si bem me lembro, Kant, na introdução da sua Critica da razão pura, proferiu uma sentença atarra-chante, proclamando que as corporações universitárias, em regra, só cuidam de dificultar a ciência, com uma técnica obscura; para não perderem o prestijio com a divulgação das verdades cientificas, acrecenta elle. Não ha ciência trancendental. Tudo é acessível ao vulgo. A questão rezide em simplifical-a identificando-a com o senso comum. Mas a que ficariam reduzidos os advoga­dos, por exemplo, no dia em que um Lycurgo se dispu-zesse a promulgar um código do processo, em que os agravos e outros recursos obstrutores fossem reduzidos a espressão mais simples, de modo que todo mundo po-desse requerer em juizo e defender por si as próprias cauzas ?

Ruy Barbosa, apezar do seu talento, ainda pertence a raça daquelles juristas e advogados, que pretendem con­servar á rabulajem os seus foros de ciência, e que ainda sonham, engolfados na metafizica do direito, com as ce­bolas de um Egypto juridico-criptogamico.

Nesse grande orador ha o fenômeno de uma duali­dade natural: elle não tem, primeiro, conciencia de que alguma coiza aje como divindade no seu organismo, e o dirije, mal gré lui, impelindo-o para rejiões que elle mesmo não sabe difinir ; em segundo lugar, perfei-

Page 70: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

68

tamente conciente, devorado e muitas vezes escruciado, como homem social, elle esplora o talento, procurando tirar de sua espansão os maiores proveitos pessoaes, muita vez contra a própria sociedade, dominado, neste cazo, pelo mais feroz dos egoismos. Refiro-me aos seus instin­tos filozoficos, de um lado; e de outro, á sua ambição de poder, fundada nos seus incontestáveis talentos oratórios.

Quanto aos instintos filozoficos, devo dizer que Ruy Barbosa, pelo que sei de sua obra, não pensa atualmente, sem que o seu pensamento tome a forma leibnitzeana. Isto significa que elle, quer queira, quer não queira, ha de ser sempre o homem da harmonia prestabelecida, das idéas inatas e do individualismo idealista; portanto, o eterno defensor ou o D. Quixote dessa liberdade abstrata, que, tomada ao serio por um fanático, dá, quando nada, nas estravagancias de um Robespierre, que aliás o orador profliga, á custa de Taine, no seu celebre discurso pro­nunciado na Bahia.

Agora, no que entende com a sua ambição de cau-zidico, vou, em traços rápidos, e para não mais me ocupar com este assunto, descrever o que é Ruy Barbosa como jurista e advogado.

A sua obra, neste capitulo, não é uma obra sincera; e não é sincera, porque esse homem, quando pega na pena para escrever as suas alegações, só tem um fim, espantar, cauzar admiração aos ilustrados, e vencer a cauza que se propõe defender, custe o que custar. Quanto mais absurda fôr a téze, tanto melhor para os efeitos finaes. Ora, dado como verdade esse fato, que julgo muito difícil con­testar, não ha quem desconheça que a obra juridica de Ruy Barbosa traz em si mesma ó corrozivo que se encar­regará de destruil-a.

Page 71: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

69

Comprometo-me a não escrever outros diálogos so­bre as novas grandezas do Brazil, si me convencerem de que não estou com a verdade.

Falou-se ha pouco ríO Estado de sitio, livro que foi publicado por alguns amigos do autor como homenajem ao seu enormissimo talento. Concordo na lejitimidade da oferta, quanto ao talento; nunca, porém, quanto a since­ridade jurídica.

Sinão, vejamos. E para simplificar a minha de­monstração, reduzirei estas observações excluzivamente ao tópico principal do celebre petição de kabeas-corpus, requerido ao Supremo Tribunal Federal a favor das vitimas dos decretos de 10 e 12 de Abril de 1892. Nesse tópico o emérito advogado propõe-se provar a inconsti-tucionalidade do estado de sitio, decretado pelo marechal Floriano, naquella época, e a conseqüente competência do referido Tribunal para cassar os seus efeitos pelo pro­vimento do recurso.

Ruy Barbosa sabia que o primeiro sandeu, ao qual se fizesse ler o art. 80 da Constituição da Republica e os que lhe são referentes, zurraria imediatamente, escoi-ceando quem ouzasse transferir a competência de que trata esse artigo para o poder judiciário, a titulo de cen­sura ou de restauração de direitos individuaes desrespei­tados. Pois bem: o advogado, ao penetrar no pórtico do Tribunal, disse comsigo mesmo : — E' clara como água a matéria de competência; aqui está, entretanto, quem vai fazer com que se veja tudo escuro. Lançarei a duvida nos espíritos, cindindo as opiniões, perturbando a conciencia do maior numero, e, como satanaz, obri­garei a Justiça a me adorar no alto da montanha.

Eis o grande majico ! A sua obra é uma bruxaria.

Page 72: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

70

Infelizmente assim acontece. Esse homem é o que se pode chamar um rábula trancendental, capaz de fazer passar um camelo pelo fundo de uma agulha. A sua as-tucia é tenebroza; a facinação retórica é igual á de As-modeu.

Procedamos metodicamente. Que é estado de sitio, segundo a nossa e as Consti­

tuições de que ella foi copiada ? Estado de sitio é a fa­culdade, conferida pela nação ao Congresso, e, na au-zencia deste, ao Executivo, sob referenda do primeiro, de empregar a coerção social, discricionariamente, afim de evitar que um grupo de homens em ato de guerra esterna, ou nacional, combinados entre si em rebelião^ tentem decompor a ordem publica, atacando direta ou indiretamente a organização política estabelecida pelas leis fundamentaes. Dessa difinição rezulta que o estado de sitio traduz-se num aparelho único, o qual, jazendo em repouzo, no seio da nação, só passa ás mãos do Poder Central para ser utilizado, quando necessário, por de­liberação dos imediatos reprezentantes da mesma Nação, o Congresso, isto é, pelo poder rigorozamente chamado político, ou pelo seu delegado, no exercício dessa função-estraordinaria, o Prezidente da Republica. Esse aparelho, portanto, de sua natureza, é integro, incontrastavel, e reprezenta a soberania na sua plenitude.

E não se pode conceber em exercício, senão pleno,, desde que tal funcção tem por fim produzir a inhibição pronta dos movimentos do inimigo da ordem interna e a instantânea paralização dos elementos congregados para dar vida a esse mesmo movimento. Nestas condições, pois, a jurisdição do Prezidente da Republica, no que en­tende com a declaração do estado de sitio, proroga-se

Page 73: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

71

até a reunião do Congresso, que o tem de julgar, — inte­gra, intacta, inatacável; e toda e qualquer interferência no sentido de limital-a, é revolucionaria e atentatória do dispozitivo constitucional.

Uma vez decretado o sitio, e consequentemente de­clarado que o cazo é de guerra esterna ou de rebelião, essa declaração pro veritate habetur. Pôde não haver razão para que assim se pratique; mas o que é certo é que, pronunciado o fato, como existente, pela autoridade competente, cessa toda e qualquer outra jurisdição; e, no cazo de erro, emquanto o Congresso não se houver pronunciado, e contra a injusta pronuncia deste si por sua vez também errar, na questão de fato, só se conhece uma força contraproducente,—a revolução popular.

Pergunta-se: um poder da natureza do judiciário, capaz de errar como qualquer outro, — poder que não é político ou de governo, no sentido restrito da palavra, nem delegação imediata da Nação, tem competência, durante a vijencia desse estado de sitio, e dos seus efeitos lojicos, para, a titulo de ilegalidade, inconstitucionalidade, declarar terminado o ato de inhibição dos revoltozos ou considerados taes, isto é, para conceder habeas corpus a taes indivíduos, porque pelo mesmo poder foi verificado que não havia rebelião e que aquillo a que se dava esse nome não passaria de um motim apenas merecedor da coerção policial ?

Creio que o menos versado em matéria constitu­cional não ouzará dizer que sim. A noção é tão clara que espanta pensar-se numa solução contraria.

Ruy Barbosa, contudo, não se embaraçou en enfren-tal-a; e com admirável impavidez tratou de obscurecel-a ,-pensou em induzir o Supremo Tribunal em erro; e surra-

Page 74: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

72

teiramente poz a sua eloqüência em movimento para pro­var que existe uma segunda instância, quando se trata do •exercício da faculdade do citado art. 8o da Constituição.

Agora, vejamos qual o processo de que uza esse ter­rível advogado, esse Carneades brazileiro para chegar á demonstração de que aquelle tribunal tem jurisdição sobre esses atos de Governo, portanto, está superior a -nação, como aquelle imperador da decadência romana, que, declarando-se iminente a todas as gramatices, fez a palavra chrisma passar ao gênero feminino.

I. Desvio de atenção. — Processo de La Rochefou-cauld.

Ruy Barbosa dilue a noção central dos seus es­critos em noções lateraes e minúsculas. O leitor ou ou­vinte esquece-se daquillo que constitue ou deve constituir a essência da argumentação; e, arrastado habilmente por

-considerações secundarias, aliás evidentes, só no fim do discurso vem a tomar conhecimento da matéria prin­cipal, quando já está fatigado, para não dizer embrulha­do, e acaba capitulando. O argumento é, então, forçado, do mesmo modo que a carta de baralho, que o prestidiji-tador insinua nas mãos do espectador.

I I . Acumulo de citações, de fatos, ou de tópicos. — Processo de Taine.

O orador conta com o dezanimo do leitor ou do ou­vinte. O argumento principal já foi desviado. Restam os particulares. Que faz o majico ? Começa a desfiar me-todicamente e sobre cada propozição parcial uma verda­

deira políantéa jurídica. 'Compreende-se que no fim de vinte pajinas de brilhantes citações de autores, em parte pouco conhecidos, que dizem o mesmo que o orador, não ha iquem tenha corajem de levantar o cartel de erudição,

Page 75: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

73

principalmente porque seria precizo que o objetante rea­lizasse trabalho idêntico. E quem é que hoje se abalança a isto ? No fim, o leitor só tem um recurso: é fujir como os inglezes diante da multidão dos Boxers, na China.

III. Ocultação do conjunto das idéas do autor citado. — Processo das antigas sabatinas.

Ruy Barbosa cita o útil somente; despreza as restri­ções do autor citado, quando muitas vezes essas restri­ções acabam tirando toda a força ás próprias concluzões.

Não é raro que isso se verifique e incontestavelmen-te se dá, quando o trabalho é feito ás pressas. O espozi-tor não teve tempo de lêr o autor inteiro, e de tomar-lhe a substancia. Adivinha-o. Encontrando o tópico que lhe serve, citado sem verificar os antecedentes; e -então sucede algumas vezes que esse tópico não é do autor consultado*, mas de outro a quem o próprio vai na obra refutando.

Nem todo o mundo é Michelet. IV. Refração do pensamento.— Processo antiquissi-

mo da Escolastica. Consiste em fazer passar princípios verdadeiros

através de idéas falsas. Ruy Barbosa é mestre nestas artes. Chama-se a isso abuzo de dialética. A intelijencia mergulha como o olhar através de vidros diversamente facetados; e o objeto de que se trata surje no pensamento com fôrmas as mais estravagantes, sem que se possa negar a realidade do objeto.

Si quizesse utilizar aqui o sistema do orador baiano, eu citaria para ilustrar a minha teze uma recua de psi­cólogos. Basta, entretanto, para verificar como se pôde cair nessa enfermidade, basta lêr a Intelijencia, de Taine e As iluzões dos sentidos e do espirito, de James Sully.

Page 76: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

74

V Hipocrizias do estilo. — Processo de Cícero. Este processo de nada vale, quando o orador não

tem talento/ Mas, quando o tem, é perigozissimo, ma-ximé, empregado diante das multidões, propensas sempre á loucura coletiva. Ruy Barbosa é grande no patético. Reprezentar uma trajedia, quando se trata apenas de provar uma verdade- jurídica, não se pode dizer que é um ato de má fé. Mas, é um artificio que Dante puniria, no seu Inferno, com penas atrocíssimas.

São'estes os principaes recursos,— porque ha ou­tros, —de que o nosso Davenport judiciário se serve para conseguir os efeitos oratórios que tão profundamente têm impressionado o publico fluminense.

Qual o meio pratico de desmontar o truc ? Esse meio é muito simples, e está ao alcance de qualquer ama-'nuense de literatura. Faz-se o rezumo, esqueleto ou, o que é melhor, o paradigma do artigo, discurso, arrazoado, calcando-o sobre as propozições e sobre as clauzulas conti­das substancialmente nessas propozições; depois ajustam-se estas ás concluzões. Isto feito, procede-se, então, como em demonstração geométrica, por superpozição. Pega-se no trabalho em questão e sobrepõe-se o mesmo ao paradigma aludido. O que fôr supérfluo e o que fôr estranho á ma­téria discutida ficará necessariamente fora do paradigma; aquillo, porém, que restar incluzo, o reziduo da operação, constituirá a substancia do discurso,— a sua realidade.

Nada mais fácil do que essa operação. Operemos sobre o tópico do Estado de sitio, que es­

colhi para experiência. Esse trecho da celebre petição, redijida pelo ad­

vogado Ruy Barbosa, ocupa no livro aludido treze longas pajinas (de 28 a 40) . Pensam os meus bons amigos que

Page 77: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

75

estas treze pajinas tratam da função do Supremo Tr i ­bunal, como segunda instância em matéria de estado de sitio? E' um engano: nessas pajinas o advogado, pro-pondo-se demonstrar a realidade dessa jurisdição, chove apenas no molhado; define, com as constituições federaes de outros povos e com a opinião dos autores, o que seja estado de sitio; confronta as defiüições com o fato arguido de ilegal, (o que se não põe em duvida) ; e quando sente que o leitor está bem saturado do que se aprezenta em fileiras cerradas como argumentos a favor da sua téze, sae, no fim, como uma verdadeira escapatória.

Parece incrível; mas é a verdade. Durante doze pajinas Ruy Barbosa cita: Elizalde, V Alsina, Rawson, Irigoyen, Alvear, Alcorta, as constituições do Chile, da Arjentina, do Uruguai, de Venezuela, da Bolívia, dos • Estados Unidos, Quintana, Tejedor, Clitarcho, Lon-jino e até os javalis de Erimantho; para que ? para pro­var que o sol nace ás seis horas e recolhe-se a igual hora, isto é, para fazer-nos cientes de que a medida do estado de sitio só DEVE ser tomada, quando se verificam as con­dições legaes. Mas isto, quem é que põe em duvida ? Ou estou dormindo, ou então o advogado me hipnotizou; porque o que eu esperava era que elle provasse em como o poder político não PODE declarar o fundamento da sua rezolução fora de qualquer estranha interferência, com­petente para o empeachment ou para a censura jurídica de efeitos equivalentes.

Sabem os amigos como Ruy Barbosa liquidou essa horrida quesiio ? Liquidou-a com este argumento catas­trófico :

"As prizões políticas, que já fizeram no Congresso

Page 78: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

76

onze prezos, porque não farão amanhã, neste Tribunal os que convier ?

"Si recuardes ante este absurdo, haveis de aceitar a concluzão de que, quando o estado de sitio se estabe­lece em condições, que não satisfaçam á lei constitucional, o habeas-corpus é o paládio da sociedade ameaçada pela tirania."

— Bravo ! Aperte estes ossos, sr. advogado. . . Isto é que se chama, além de tudo, saber historia,

e também conhecer a psicolojia dos tiranos. Leia Alfieri e La Boetie.

Neste ponto, da palestra Carlos de Louvet ponderou: — Amigo Cosme Velho, não haverá também neste

seu modo de vêr alguma refração psicolojica ? -— Não o ponho em duvida, disse o outro; emquanto,

porém, não m'o fizeram ver, vou mantendo a convicção de que o Ruy é um rábula genial. Si elle se dedicasse a escrever obras no gênero do Paradoxo, de Lolié, ou do Manuel do demagogo, de Raul Frary, não nos faria tanto ma l . . Olhe: Ruy Barbosa tem um sestro que é precizo que lhe tirem—o da Justiça. Esse grande brazileiro dei­xou-se dominar pela idéa de que a Justiça de hoje ainda é aquella Themis de olhos vendados, que nos deram como emblema dos estudos jurídicos na Faculdade de Direito do Recife. E' a tal concepção da justiça mitolojica de Leibnitz, de que o jurista baiano ainda não se libertou. Dai todos os seus raptos de eloqüência relijíoza e exor-tatoria sobre o direito e sobre a violação da virjindade da Constituição dessa Republica que elle já vai confun­dindo com a Monarquia liberal.

E ' talvez o seu Caucazo, e não sei si será, um dia. o seu Ocazo.

Page 79: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

77

Terminou a palestra ás duas horas da tarde. Cosme Velho foi dormir á sésta. No dia seguinte, Brazilino Dias, disse-lhe que não faria mais a conferência prome­tida, e que todos estavam á espera da sua sobre a Utopia.

1900, Julho.

MOSCAS E ARANHAS

Havia grande ajuntamento á porta do Teatro Lí­rico.

Do lado da rua da Guarda Velha trilavam apitos r e o povo inquieto, por grupos de turbulentos, ora concen­trava-se junto ás entradas do edifício, ora espalhava-se-levantando o alarido das multidões insofregas.

Seriam oito e meia da noite. Estava anunciada a exibição por amadores de uma peça do dr. Agrippino Si­mões. O tumulto, de certo, não tinha relação com o es­petáculo que se ia dar; todavia, era estranho que a policia, até aquelle instante, não houvesse consentido que o pu­blico penetrasse no saguão do teatro.

— Mataram um homem, disse alguém que ficava perto do recanto para onde tinham-se abrigado, Cosme Velho e João Rivas.

— Ahi vem cavalaria ! gritou um popular. — Não estamos bem neste lugar, ponderou Cosme-

ao companheiro. — Quer saber você qual o meu sistema quando o*

povo se revolta ? Não me movo. E' inútil procurar a

Page 80: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

78

gente dirijir-se no meio de movimentos incertos e cuja orijem desconhece. Nestes cazos é que se aplica bem o lema dos fiziocratas -Jaissez faire, laissez passer. Quem pôde rezistir á ação molecular ? J'y suis, j'y reste. Espe­remos.

Com efeito, de onde se achavam viram um reboliço estranho na multidão: gritos, berros, corridas dezencon-tradas e, por ultimo, fazendo um grande vazio em torno, passaram duas praças a cavalo, em disparada, brandindo espadas.

Que houve ? Ainda se está por saber verdadeira­mente. Os jornaes do dia seguinte relataram o cazo de um repto de duelistas feito á porta do teatro.

— Ora, ahi tem você, disse João Rivas, como se evita o couce da multidão.

Penetraram no edifício e foram logo tomar va­randas.

O salão começou subitamente a encher-se. Dez mi­nutos depois estava repleto. Caza esplendida.

No semblante de algumas senhoras notavam-se ain­da vestijios do susto por que haviam passado.

João Rivas corria com o binóculo os camarotes. Como se demorasse o levantar do pano, passaram a com-mentar os acidentes personalíssimos dos espectadores; em termos uzuaes — exerciam a função inocente da tezoura.

A elite fluminense ali estava, com raras exceções de seus reprezentantes, para ser submetida á exejeze do nosso privat-docente, cujo pessimismo, depois do seu

regresso da Europa, já fez dizer álguem que não consen­tiria que seus filhos lá puzessem os pés.

— Como tudo isto é pequenino e ècazurantl — Pois, meu caro, sinto declarar-lhe que estou des-

Page 81: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

79

lumbrado. Não deixo, entretanto, de confessar que ha muito tempo não assisto a espetáculos; talvez por isto é que o de hoje parece tão capitozo. Que quer ? Ma­tuto na praça fica todo aparvalhado.

— Olhe quem aparece naquelle camarote da direita. Um, dous, três imortaes. . . Já temos imortaes, sem que o Brazil tivesse creado a sua imortalidade como nação. Isto chama-se o carro adiante dos bois: a função antes do órgão; o filho gerando o pai.

— Proles sine matre creata! Diga que não me oponho.

Com efeito, no camarote indicado apareciam Ma­chado de Assis, o Visconde de Taunay -e Lúcio de Men­donça, que vinham reprezentar aquelle Instituto na festa artística com que Brazilino Dias brindava o povo da Capital.

No da imprensa notavam-se os jornalistas do dia em amistoza confabulação. Seguiam-se: o Centro Artístico, diversas associações e academias, brilhantemente reprezen-tadas, a quem Brazilino oferecera lugares de distinção. Os demais camarotes, que tinham sido distribuídos com fim humanitário, eram ocupados pelo dinheiro e pela beleza.

Cosme, á proporção que ia vendo e analizando as toi-lettes das senhoras, soltava uns gritozinhos de admiração, que, de mais em mais, contrariavam o pessimismo de João Rivas.

De fato, ou elle estava nessa noite sofrendo de dal-tonismo inverso, ou força era confesar que o Rio de Ja­neiro progredia em graça e em beleza.

Num camarote perto de cena entrara uma fa­mília desconhecida. Matrona respeitável, de cabelos de

6

Page 82: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

80

prata e pena de marabú, em tope, trajando severo ves­tido . de veludo, entregara a capa ao groom e sentara-se em uma das cadeiras do fundo. Precedera-a, tomando assento mais á frente, senhorita de prováveis 19 anos, morena, dessa côr morena do jambo, que os poetas nacio-naes tanto hão celebrado. Lijeira ajitação adelgaçava-lhe as narinas, dando-lhe o aspecto de uma veadiriha assusta­da. O seio arfava; as flores do carré, que o cinjia, tre­miam como si a arajem dos jardins suspirasse desfolhai-as. Súbito ergueu-se e veiu encostar-se á balaustrada car-mezim. Era um soberbo especimen da fauna nacional. Uns lonjinquos laivos de sangue africano carregavam essa feição de tonalidades acres, porventura de uma obtuza sensualidade, que se traduzia nas flechas despedidas por olhos lijeiramente oblíquos e orlados de grandes e negros cilios. A estatura não era alevantada; mas o porte tinha alguma couza do impeto que os pintores figuram em Cleopatra. Lábios rubros e grossos; talho da boca irri-tantemente circumflexo; cabelos retintos, amplos, ondu­lados. A curva e a flexão do dorso acentuavam a sobe­rania, a que, segundo parece, essa menina não era indi­ferente, pois em seu gesto havia um tic de atrevimento alegre e espontâneo. Ao pôr as mãos, abrigadas por umas luvas gris-perle, cujos canhões perdiam-se em lijeiras ru­gas na curva do antebraço, houve na sala um movimento de curiosidade. Percebendo que era objeto desse indiscreto sussurro, a moça velou o olhar, instantaneamente decli­nou-lhe a projeção e foi perdét-o, com brejeirice, nos olhos da matrona, que continuava sentada no fundo do 'camarote.

Chamou Cosme a atenção de João Rivas, que hoje se dedica á pintura com frenezi, e disse-lhe que naquelle

Page 83: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

81

tipo rezidia talvez o pendant do quadro de Sergent, o eximio pintor norte americano.

— O ídolo yankee, quer você dizer. — Sim. O tipo da mulher tal como ella exerce a

soberania na alma daquella gente do setentrião; da mu­lher que eletriza os corações dos pães milionários e funde em arrojo descomunal os dos jovens pretendentes. Não foi esse ídolo que agora prezidiu ás inenarráveis vitorias de Uncle Sam sobre D. Quixote ?

— ídolo creado por corações feitos de dolars... Cosme averbou João Rivas de suspeito. Todas as

palavras que esse amigo despendia, obedeciam ao lema, de gregos e troianos conhecido.

— O meu rancor tranqüilo contra a democracia ! Si o ídolo norte americano não passava de estra-

vagancia própria das épocas em que»se erijem colossos á entrada dos portos, como em Rhodes, em Alexandria e agora em Nova-York, o que diria elle do idolo dos mes­tiços da America do Sul, fabricado de pedaços de tu-pinambás, de cabindas e de judeus de Portugal ?!

Era o cazo de seringar a saliva por entre dentes cor­tados em ponta a navalhadas, tomar o cachimbo e cair no fundo da rede, dizendo: — Somos o maior povo do mun­do, com o devido respeito á Abyssinia.

Taes conceitos de João Rivas quazi tiraram a Cos­me Velho o gosto de continuar a assirtír ao divertimento.

A orquestra começava a desferir os primeiros acordes. Brazilino Dias quizera que aquella noite fosse uma

noite brazileira e por isso dera á festa caráter inteira­mente nacional.

Seguiu-se a execução do majestozo poema de Leo­poldo Miguez, o Prometheu. O publico escutou-o, como

Page 84: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

82

sempre, elevado pelo tropel de efeitos de harmonia, que constitue a alma dessa enerjica sinfonia.

— Quando Eschylo imajinou que a sua trajedia tivesse um éco muzical, em terras que então nem haviam sido sonhadas por Platão ?

João Rivas sorriu. O seu rancor anti-nativista, não obstante, rujia por baixo desse sorrizo implacável, tran­qüilo, segundo a própria declaração desse gramatico-poeta.

Disse-lhe Cosme, então, que, si o seu cacoete, por um lado, cauzava assombro, por outro provocava em seu espirito irritação igual á que produz nos nervos o roçar de um canivete cego em uma palha de coqueiro.

E' conhecido do publico o aplauzo desse amigo ás idéas manifestadas por João Ribeiro em diversos artigos publicados na Revista Brazileira. João Rivas como que anciava naquelle momento atirar sobre o seu otimismo um pessimismo incoercivel, já se sabe somente no que toca á democracia americana e especialmente á brazileira.

O lugar não era o mais apropriado para discussões de tal natureza. Em se tocando nesse assunto, porém, é inevitável entre os dois, o tiroteio e a luta de guerrilhas. O menos que faz Cosme nestes momentos é duvidar do seu real talento para a pintura e dizer-lhe, repetindo as palavras de Novicow, que o Guilherme II , com o seu darwinisrao místico, chegaria a constituir-se o chefe dos flibusteiros da Europa.

Voltou á mofina. — Onde leu você este dispauterio ? — Onde li ? Li na obra Consciência e vontade so-

ciaes. — Ora, os Russos chegaram agora á filozofia...

Isto é obra de cossaco.

Page 85: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

83

— Ha de convir, todavia, que este cossaco tem pa­rentesco com outros cossacos que andam a espantar o mundo com os seus livros estraordinarios, penetrantes e cheios de suj estão.

— Bárbaros ! pouco diferentes ainda do que eram quando Pedro, o grande, pretendeu envenenal-os com o ocidentalismo. Uns Ivans Terríveis mal descascados.. .

—Seja como fôr, o russo disse alto o que o bom senso já formulara sotto você. O Im perador da Alemanha "está convencido de que a flibusteria internacional é a mais glorioza e a mais útil das emprezas". E é devido á impe-tuozidade genial desse homem audaciozo, acrecenta No­vicow, que a Europa não tem conseguido acelerar a sua marcha para a federação do continente.

Entretanto, você exulta diante dessa grandeza e não sei por que caminhos andou para chegar á concluzão de que a Alemanha, com sua enorme cultura e a sua teo­ria das raças, com a sua política escapulida do direito in­ternacional predatório, apezar das lições de Bluntschli, está destinada a solenizar o principio do século X X com a inauguração do seu império cientifico e colonial. Mas neste ponto é que caberia badalar o celebre verso de Virgílio -.Maximum ab integro seculorum nascitur ordo. A loucura da espansão achou por fim um salutar avizo na força nova que acaba de esplodir nas, Antilhas e nas Filipinas.

A conversa interrompeu-se. O pano subia. Fez-se silencio na sala. Começou a reprezentação.

O cenário simulava uma floresta. Do lado direito havia uma clareira, no fundo via-se uma teia de aranha de proporções arquicolossaes.

Page 86: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

84

— Ao que parece temos uma majica-bailado, disse João Rivas. O programa menciona Bailado simbólico da Irrizão Eterna.

— Desconfio que ha parodia de nefelibatas. Um ho­mem de tão apurado gosto como o dr. Agrippino não se deixaria levar por escolas efêmeras.

— Vejamos em que consiste a irrizão eterna dansada e gesticulada.

Relâmpagos, trovões, ruidos subterrâneos. O palco escurece. Um golpe de luz elétrica, cuspido de súbito sobre a teia, ilumina a cena; surje uma aranha com o rosto formozo de uma atriz. Não é, porém, uma aranha vulgar. Luminoza, com antenas de ouro, traz ao pescoço um colar de dolars e nos anéis do ventre as cores azul e encarnada; o dorso é constelado de estrelas. O inter­essante personajem, vindo até a boca de cena, profere mais ou menos este discurso:

— Eu sou a aranha mais poderoza e bela desta vetus-tissima floresta. As minhas irmãs ainda são pequenas. Fa­zemos guerra a uns bezouros dourados que vivem em uma floresta negra, situada, muito lonje deste reino. Ambiciozos, estes bezouros malditos atravessam os mares conduzidos pelos ventos e vêm fazer incursões nestas parajens, roubando-nos as melhores flores. Destruimol-os quando podemos. Vede aquella teia: é construída da mi­nha própria substancia; é uma teia adamantina. O des­tino que reina em toda esta rejião fez-me a fada deste bosque. Meus olhos luzem mais do que os dos outros; as minhas antenas multiplicam-se; a minha força chega a atrair o raio e subordinar todas as forças que rezidem neste solo, nos regatos, nas arvores e nos animaes. Houve um bezouro que um dia pretendeu estabelecer-se como

Page 87: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

85

rei na vizinhança; ajudei as aranhas minhas amigas a batalhal-o, e o bezouro foi devorado. Os instintos de taes insetos são incompatíveis com a grande e saudável flo­resta de Longfellow.

Segue-se uma valsa pela orquestra, de efeitos ma-jicos, uma sorpreendente onomatopéia. Ha na peça ruidos de locomotivas, silvos agudos de vapores, rumores surdos de multidões que aclamam. A aranha-fada executa um solo carateristico, no qual a ginástica toma o feitio coreo­grafia). A atriz projeta-se em saltos mortaes de trapezíos ocultos pela folhajem, e, por fim, voltando á teia, ema­ranha-se nella, envolvendo-se nos fios em pozições gracis e de prodijioza ajilidade. De repente a acrobata de-zaparece; os fios da teia convertem-se em fios telegraficos e íluminam-se de fogos cambiantes. A orquestra rompe, então, num galope infernal. A floresta povôa-se de bufalos negros, perseguidos por indios apaches e dela-wares. Grande e fantasmagórica quadrilha.

Escurece. Rolam ao lonje descargas de canhões. Os caçadores limpam a floresta. Amanhece. Res­tabelecido o primitivo cenário, a fada retoma a sua teia. As aves gorjeiam. Uma orquestra de grilos e mosquitos começa uma sinfonia orijinal, que de repente se inter­rompe. Os pássaros, atentos, dos galhos dos arvoredos espiam: uns gemem de curiozidade, outros pipilam ame­drontados. Um zumbido, acompanhado pelos violinos, ergue-se, crece, crece ainda, aproxima-se, invade o am­biente e chega, por ultimo, como um ciclone em fúria. Os contra-baixos vibram na orquestra; os metaes esta­lam; os timbales e os bombos ecoam com estrepito.

E' o exercito de bezouros que entra em cena. Di-rije-o um ccruscante general de azas azul-dóuradas, cavai-

Page 88: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

86

gando um inseto hipogrifo de cores metálicas; traz ca­pacete, uza armadura e aprezenta-se á frente de escudo e de lança em riste. Investe contra a teia. Ária marcial; marcha; depois passo de carga.

A anciedade torna-se geral. As aves emudecem A arajem cessa de mover as folhas do bosque. Como que ha uma paralizia universal. O exercito de bezouros cáe fulmiando; alastram o chão corpos inertes. A orquestra ajita-se em surdina. Só dous personajens se movem: o ca-valeiro-bezouro e a fada-aranha. Enfrentam-se; o bezouro hezita, finalmente avança e emaranha-se na teia; a ara­nha, então, em golpes, decizivos, com olhos coruscantes, em urna beleza irradiada de fuljidos resplendores, enerjica, soberana, finca sete vezes o farpão dourado na cabeça do inimigo, que,x instantaneamente morto, é logo envolvido em uma rede inextricavel. Hozana! nos metaes da or­questra ! Segue-se o hino triunfal. A floresta acorda e. . principia o engrossamento da fauna e da flora circun-dante. O compozitor procura simbolizar esse movimento na polca carateristica das flores, dos insetos e dós lagartos, e termina pelo coro dos sapos e das minhocas.

— Aos vencedores, as batatas ! diz João Rivas, rindo a bandeiras despregadas. Agora vamos ao maxixe.

A' sua intenção agressiva não correspondeu ne­nhuma cena posterior.

O pano baixou sobre o quazi silencio da platéa. Durante o intervalo procuramos descobrir no sem­

blante dos espectadores os variados sentimentos produ­zidos pela peça, pela muzica. Havia a mais completa re-zerva quanto ao êxito da idéa. Apenas ouvi de um es­pectador, que se achava na minha frente, que aquilo* quando muito seria excelente para crianças.

Page 89: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

87

— E a muzica ? Mas a muzica é esplendida ! — O Alfredo Neoptolemo veiu ainda uma vez pro­

var o seu talento no gênero sinfônico. Os motivos ame­ricanos mergulhados na ornamentação complexa do va-gnerismo, excelente ! que técnica !

João Rivas calou-se. Passamos a contemplar a fauna dos camarotes. O idolo brazileiro, a morena de olhos espressivos,.

lá estava encostada ao balaustre em uma languidez tro­pical de estenuação artística. Os olhos, todavia, lançavam chispas perigozas. A narina, adelgaçada pela emoção, tra­duzia o movimento revulsivo de quem busca subtrair-se a si mesma, repouzando em uma indiferença factícia.

Aurélio Nabor, no camarote do Instituto Histórico,, de pé, correto como um anglo-saxonio, percorria com os olhos serenos a confuza multidão. No seu semblante pouzara, entretanto, um gesto de franca reprovação á peça. Dir-se-ia que elle perscrutava nessa platéa varie-gada e de aptidões estéticas dissonantes algum pensa­mento oculto. A platéa era um cameleão: iludia-o. Só no quarto de dormir de cada espectador seria possível sorpreender o verdadeiro sentido dos rumores que então* se ouviam.

João Rivas saiu. Durante o resto do intervalo Cosme entreteve-se em ler o libreto.

Levantando, entretanto, os olhos notou uma cir­cunstancia que lhe passara despercebida. Na primeira fila da platéa estavam sentados, juntos, Carolino de Louvet, Cosme Peixoto e Cosme de Moraes.

— Que estarão aquelles três amigos ruminando, tãó* quietos e calados ?

Page 90: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

88

Lembrou-se do que ouvira uma vez a Cosme Pei­xoto, relativamente a uma peça de Bizet, executada nos concertos clássicos do teatro de S. Pedro. Dissera-lhe elle que Bizet nas Erinnyes conseguira provar que os gregos já conheciam o Zé Pereira, pois tal era a impressão que lhe deixara a cena da orjia.

— Naturalmente os três, pensei eu, estão cortando o Neoptolemo em fatias para sanduíches.

'Continuou a lêr, tão distraído, que o João Rivas retomou o seu assento 9em que o percebesse.

A orquestra encetou o segundo ato; o pano levan-tourse.

Uma floresta na Amazônia. Mar de água doce no fundo. Paizajem fluvial monótona, grandioza, intermina, cheia de tons quentes que lembram febres palustres, ín­dios bravos e o dezanimo de uma rejião inesplorada.

João Rivas não quiz concordar em que o cenógrafo tinha conseguido estes efeitos. Além disto, a paizajem tropical não prestava; não tinha seduções para o pintor;

-devia ser banida até da arte, acabando-se essa mania que o máu gosto de Chateaubriand plantara no espirito do século.

Fechando ouvidos ás suas observações paradoxaes, Cosme procurou prestar atenção ao espetáculo.

Na parte do palco, que reprezentava o litoral do grande rio, via-se um pano de floresta colossal. As ar­vores, em razão das nervuras nellas postas pelo pincel

•do artista, dir-se-iam gigantes de Miguel Anjo. O diabo do cenógrafo dera-lhes vida estraordinaria. Os troncos traziam á imajinação confuzos aspectos de peças de carne viva; de sorte que a vejetação parecia humana, mas de

Page 91: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

89

uma humanidade antediluviana, plutonica, obsedante, ameaçadora, satânica.

Como no primeiro ato, entre troncos emaranhados por cipós, havia também uma grande teia, em cujo centro repouzava, embalançando-se, uma aranha auri-verde, ador­nada esquizitamente de um pequeno cocar de penas. Em torno esvoaçavam colibris e borboletas multicores.

A orchestra começa então um bailado aéreo, cara-teristico. Os coqueiros e as palmeiras, á marjem do rio, ajitam-se. Araras grasnam, sagüis e macacos assoviam; ouve-se ao lonje o ronco do guariba, que salmodia, no meio da mata, a sua reza lugubre, acompanhado do coro dos capelistas. De vez em vez repercute o estrondo da su-curijuba, que no meio das águas espera o bicho-homem.

Passam e repassam bandos de periquitos, alegrando a amplidão da paizajem com a nota lijeira e indiscreta da espécie. Essa alegria, que se caza com a limpidez do céu e o fulgor da luz e das cores tropicaes, é, porém, interrompida por um som soturno, que os contrabaixos e tambores na orquestra acuzam como vindo subterranea-mente de distancia icomensuravel. E ' a pororoca ama­zônica, que sobe misterioza, terrifica, do abismo dos mares. A natureza inteira sente o perigo. Invadem-na movimen­tos precipites de sistole e diastole; depois a rejião cáe em angustioza sincope. A arajem emudece. Nem um vivente ouza respirar. Os rumores lonjinquos crecem, avi­zinham-se. Ha como a curiozidade da morte. A vida em todas as suas fôrmas sofre destas crizes. A pororoca, po­rém, não é a morte; antes parece a epilepsia rejional re-zultante de um regorjitamento de forças ainda não di-ciplinadas.

Page 92: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

90

Um morcego tonto atravessa a amplidão; vibra as azas em tremulo, zigzagueia e some-se na escuridão da mata. Os rumores aumentam, colijindo todos os brados da floresta; já não são mais subterrâneos; esplodem fora, no ar, por cima das arvores, como trovões em uma louca tempestade.

O espectador esperimenta nas combinações orques-traes sensação igual á que teria si a catadupa de Nia-gara se movesse através do Amazonas.

O procenio escurece. No fundo vê-se passar uma onda enorme, refervente, espumante, alva como um rolo de garças, no dorso da qual se ajitam, em turbilhão, ga­lhos de arvores, troncos enormes, arrancados ás florestas marjinaes como juncos manejados por mãos infantis.

Súbito a orquestra estaca e a cena se transforma. Os violinos principiam, em quintas, um tremulo quazi imperceptível, imitativo do despertar de insetos. Clareia o dia. Ha efeitos de luz na cena. Os raios do sol, que se levanta vermelho sobre a face tranqüila do rio, corpori-zam-se, por assim dizer, em feixes de setas, que o sel-vajem agarraria para preacar o tapir erradio e parvo.

A aranha dourada, que é também a fada daquelles rios, treme na teia e canta a lenda do irapurú, que é um pássaro estraordinario, dotado da faculdade de atrair pelo canto todas as aves da floresta. Ella canta e de toda a parte voam bandos de araras, de anuns, de garças e gainumbis. A ornitolojia amazônica inteira vem cor­tejar a soberana. Segue-se o coro das aves, que termina por um bailado em que tomam parte as feras do bosque. O coro dos jaguares faz tremer o ambiente.

Num momento dado, tudo cede. Ouve-se um silvo. E ' o indio que se aproxima. Não vem só. Acompanha-o

Page 93: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

91

o homem branco, que traz embaixada ás riquezas da-quellas terras. Os jaguares urram, os guaribas coçam-se e assoviam. O reino inteiro dos pássaros solta um ruido festivo e sonoro. A fada recebe a embaixada. Rompe um terceto, em que se harmonizam as vozes desta e do ho­mem vermelho e do homem branco. A aranha estende a antena para o Amazonas e ordena que os monstros das febres recolham-se aos seus antros.

Torna a mudar-se a cena. O teatro reprezenta o copiar de uma caza de vivenda, á marjem do Guajará. E' a hora da sésta. Em uma rede de tucum embala-se gentilissima menina na primaveira dos 15 anos; ful-gura-lhe nos olhos o amor vago de grandezas desconhe­cidas, junto á precoce fadiga do ideal. E' morena e nas veias circula-lhe o sangue misturado do branco e da filha do mundurucú. O compozitor neste ponto introduz na Sua obr_a a primeira parte da Suite Brésilienne, de Al­berto Nepomuceno. A menina sonha; e no sonho acor­dado como que se lhe insinua na memória a recordação do tempo obscuro em que ella, na pessoa de antepassados, reinava absoluta nas rejiões da Amazônia. A teia ancestral, que a defendia, aparece-lhe como vizão fugaz. Hoje a conquista dá-lhe aquella rede, aquelle tejupar e as roupas de linho com que se adorna. Tinem os pinj entes de ouro em suas orelhas. Não lonje silva a lancha a vapor, sin­grando as águas do Tocantins. Desperta. As companheiras tardam.

Um bando de porcos bravios invade o jardinzito e, num momento, fossando, levantada a terra com a belfa, arrancam tuberculos, destróem flores e dezaparecem com ruido. Um bando de periquitos hostis e gritadores aba-

Page 94: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

92

te-se, ao mesmo tempo, sobre o vizinho milharal e n'um segundo suspendem a colheita mal guardada.

A morena ergue-se de susto; contempla o estrago; não vê seus projenitores e, f-atigada, sacóde-se de novo para o fundo da rede soluçando. Balança-se.

Uma aluvião de moscas-varejas invade o apozento e por fora corveja um bando de morcegos, em que a ima­jinação torturada da rapariga chega a pôr fantásticos chapéus de lazaristas.

Estas moscas e estes morcegos, pensa, não são da terra ! que me querem ? Deus meu ! Que me querem, estes monstros ?

Um grito lancinante de horror constrinje-lhe a gar­ganta. . .

— Fora ! fora ! Abaixo a peça ! grita Carolino de Louvet.

— Conspuez Vauteur ! bradam os dous Cosmes, Pei­xoto e de Moraes.

E houve uma vociferação sem nome num grupo, que imediatamente se formou e torno dos três amigos inseparáveis,— que também podiam se chamar os três ini­migos da alma. Baldados foram os esforços dos diretores do espetáculo em fazel-o voltar á ordem. A pateada tri­unfou, baixando o pano, com grande pezar de Brazilino Dias, a quem os pateadores chegaram até a desrespeitar.

João Rivas estava nas suas sete quintas. — Ora, o nefelibata ! Para que havia de dar ?! — Que supõe você ? — Está claro. Isto é uma dezaforada aluzão ao cazo

do Amazonas. — Está enganado. Se assim fosse, o Carolino de

Louvet aplaudiria.

Page 95: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

93

— Então que é ? — Moscas e morcegos.... — Mas que têm o Carolino e os Cosmes com os

insetos e os vespertilios ? — Lembre-se do que dizia a mestiça que se embalava

na rede. "Estes bichos não são da terra." —-Sim., da terra amazônica; podiam ser, entre­

tanto, do Piauhy, do Ceará, do Rio Grande do Sul.. — Não. Carolino de Louvet neste cazo não se ofen­

deria, já lhe disse. As moscas e os morcegos de chapéus de lazaritas aludem a fatos mais geraes. O dr. Agrippino não andou bem. Elle com o seu simbolismo foi tocar nos partidos sociaes e como vdcê sabe ha sempre perigo em dezinquietar as couzas que acabam em ismo. As moscas e os morcegos são de fora do paiz, não pertencem ao Bra­zil. Inde ires !

Algumas famílias tinham-se retirado. Saímos e fomos ceiar no Stadt Munchen.

João Rivas ficara pensativo. Sorpreendi-lhe o pensamento entre um bocado de

carne defumada e um chopp de cerveja Teutonia. — Não temos ainda a aristocracia dos intelectuaes.

Aquella cena !. . . — Que tem aquella cena ? Acazo na Europa não

se passam couzas muito mais lamentáveis ? —Qual ! E' indispensável que o inglez e o alemão-

tomem conta desta terra. — Ahi vem você com as idéas do João Ribeiro. — E tem elle carradas de razão. Quem uma vez

viu o que é a civilização nos grandes centros, não pode mais suportar Brazis. A minha opinião é que nós, quanto antes, devemos entregar o solo a quem o possa transfor-

Page 96: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

94

mar. O negroide nunca sairá da industria de caixas de fósforos, fabricados com palitos vindos da Suécia, nem da política do rolo, do batuque e do engrossamento. Ve­nham os intelectuaes, e que a aristocracia das raças su­periores nos governe.

— Então, neste cazo, abra-se o coração nacional a hejemonia americana.

— Aquillo não é nação: é acampamento de be-duinos do dólar.

— O que você quer, sei eu: a repetição da Rena-cença, da vida incomparavel dos Borgias, dos Medicis, dos Colonas, dos Orsinis. Mas de taes intelectuaes libera nos Domine ! Onde iria parar o' Brazil entregue a um pa­ganismo sem contraste ? Não é de inglezes nem de ale­mães que precizamos, seu João Vivas: é de equilíbrio nos nossos apetites e de maior subordinação dos instintos e da fantazia ao sentimento. E nem se diga que as raças de que saimos não têm ética. Ao contrario disto, obser­varei que o portuguez nunca deixou de ser agarrado ao solo e á família; que o indio sempre foi altivo e sofredor; e que o negro raramente desprezou a paz ou se afastou dos seus afetos. A fuzão de taes elementos étnicos não devia produzir senão o aperfeiçoamento das respetivas qualidades. Não dezesperemos, pois, do surto que a raça brazileira tomará procurando os seus destinos.

— Mas nunca na educação dos democratas e com essa hedionda igualdade, negação do progresso e vilipen­dio da nobreza humana.

— Ora, esqueça-se disto. Não me esteja a repetir as opiniões de que o João Ribeiro fez praça na Revista Brazileira. Não o compreendo quando declara que não é patriota e não se sente liberal, simplesmente porque o

Page 97: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

95

grande Goethe disse que a civilização era tranqüila. Digo que não o entendo porque, posta de parte a pose desse gênio quando se jupeterizava no Olympo grego para im-pôr-se ás massas, ninguém foi mais chauvinista do que o autor do Fausto, que só não fez o papel de Wagner por­que não sofreu os desprezos de Pariz e teve um rei que o aproveitasse como seu fac-totum. Si é verdade que a ci­vilização se produz na paz, isto é, se elabora nos cérebros dos gênios e na serenidade da meditação, não menos certo parece que essa elaboração nunca se traduz sem vencer opozições, sem crizes, sem revoluções. Está provado que quanto mais intensa é a idéa, .mais profundo se faz o movimento que a tem de transportar á vida, restaurando a organização da sociedade.. E com certeza o grande Gcethe não pensou diversamente. O horror, portanto, de João Ribeiro aos movimentos ou revela um encalhe de idéas geraes, ou é uma fumisterie.

— Na America pelo menos, como bem diz elle, o patriotismo é um sentimento mortal. "Ou a America será cosmopolita e humana, ou não será."

— Também não compreendo este postulado ,nem tão pouco a razão por que o aborijine, provizorio ame­ricano, deve ser neutro entre os progressos continentaes e a civilização do planeta ou da humanidade.

Não compreendo; tanto importa aconselhar ás na­ções sul americanas que se suicidem ! Quando o mundo dá o espetáculo da individualização crecente dos povos, das sociedades, não sei o que possa significar esa preconi­zada neutraildade. Não serei eu, pois, que sujira ao Ínfimo povo da terra que dezarme-se do seu nativismo, simples­mente por amor a uma organização universal, que ainda não passou de proposta e que faz sorrir os homens pra-

7

Page 98: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

96

ticos, ainda mesmo quando essa proposta parte do Czar da Rússia. O cosmopolitismo é um sentimento individual; ainda é cedo para que elle ouze transformar-se em social. Logo que esse sentimento aje, ou toma a forma da lou­cura anárquica ou se ajeita a sindicatos parazitarios de gozo ou de luxuria. Emquanto, porém, a proposta de paz universal não passa em 3.a discussão, comamos estes camarões que bem podem estar maquinando alguma revolta para derruir nossos estômagos.

1898, Outubro.

VI

UTOPIA

Cosme Velho recebeu ha dias um convite nestes-

termos: " O abaixo assinado pede a C. V para assistir á festa intima que oferece aos amigos em sua nova rezi-dencia, Filia Excelsior, no Andarahy Grande, a qual será inaugurada no domingo próximo ás 9 horas da ma*-nhã. — B. Dias."

Afastado, por espaço de um ano.y do Rio de Janeiro, já lhe cauzavam saudades as magníficas reuniões do Atico fluminense. Póde-se, portanto, imajinar o prazer que lhe cauzou este chamado. Iria abraçar um ótimo amigo, e reatar as antigas palestras com os excelentes companheiros do pique-nique ao Corcovado, e os ouvintes da confe­rência ahi feita em 1898, que tanto deu que falar aos maldizentes.

Que surpreza rezervaria esse famoso artista da vida, cujo gozo se traduz diariamente em deliciozos atos de beneficência ?

Page 99: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

97

Nesse mesmo dia encontrou João Rivas na rua do Ouvidor. O que tem elle dito de mal e de bem sobre este seu velho camarada, é escuzado repetir. Como é de prever, trocadas as primeiras palavras a respeito de mo-

' lestias passadas, e eliminada a fatal referencia da bubô­nica, engaUfinharam-se na eterna querela, não da coloca­ção dos pronomes, mas do nunca assaz esgotado pessi­mismo. Naturalmente falou-se em China. Ah ! neste ponto respirou e abriu a válvula. Não ha exagero em dizer que estava cheio até o gorgomilho; e então foi um dilúvio de impropérios contra os inglezes. Pois, si ha um ano não achava com quem conversar a respeito e dizer o que pensava da guerra do Transvaal ! Sim: a China !

— Mas que tem a China ? — Que tem a China ?! Ainda pergunta ? Diga

Finis Europx! João Rivas sorriu. — Olhe que eu sou professor de historia da civiliza­

ção. Isto que você está a dizer é o que os inglezes chamam um nonsense.

-— Pouco importa. Não receio passar por insen­sato, comtanto que saia de meus lábios a verdade.

— Qual verdade. A única verdade é a que todo o mundo sente. As potências vão retalhar o Celeste Im­pério; e ai de quem não aplaudir esse ato de vandalismo cientifico.

— Ah ! compreendo.. . Vandalismo cientifico. Per­feitamente . . . Estamos de acordo. Esse vandalismo é uma espécie de maometismo, aplicado á Azía "muda já e já a tua civilização, ou morre!" Conheço este direito publico internacional desde 1893.

— Distinguo...

Page 100: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

98

— Não ha distinguo, nem meio distinguo. Os tele­gramas aí estão. Os Boxers vão obrigar a Europa a ter juizo; e se não o tiver, então veremos talvez realizada, mais cedo do que seria de esperar, aquella propozição sustentada paradoxalmente na Semana, em 1894, de *-lue

se aproximava a queda ruidoza do direito publico inter­nacional europeu e a dissolução do celebre grupo jurídico, fora do qual não haveria salvação, conforme pregava um sociolojista italiano; e que tudo isto se verificaria graças ao concurso do quarto estado e da coalição do mundo tranzatlantico, ameaçado pela voracidade e delirio espansionista das chamadas potências históricas. Os azia-ticos entram hoje em cena, como já entraram os Afri-kanders.

— Fantazias ! Words 1 words ! — Pois sim. Lembra-se você do jubileu da rainha

Victoria ? — Que tem isto com o cazo ? — E' uma simples aproximação histórica. Sabe você

quanto esta festa de decadência, á ia romaine, impressionou os anglomaniacos. Houve quem nella enxergasse uma glorificação da humanidade, então reprezentada pelos englishmen of God, o povo sagrado, na fraze de Cecil Rhodes. Não eu; que ao ler a descrição do iprestito, quan­do atravessava as ruas de Londres, á frente os Rulers das colônias e piquetes vestidos com as libres das nações americanas, aziaticas, africanas e australianas, senti uma impressão igual á que teria diante de uma procissão car­navalesca, logo transformada em cortejo fúnebre; e tal foi a minha indignação que não rezisti ao dezejo de lançar no papel estas sensações; e o fiz, na verdade, man­dando para a Revista do Brazil, de S. Paulo, um artigo

Page 101: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

99

com o titulo O fetiche, no qual pintava a Rainha Victo-ria, rejina-imperatrix-bretualda-vitrix, como um idolo, a cujo rosto os seus adoradores haviam imposto a mascara de Durga, divindade aziatica que prezide ás carnifi­cinas neste mundo sublunar. Devo acrecentar que o que mais me irritou foi a ironia acerba, junto á mentira das estatísticas, com que os autores desse engrossamento zom­bavam do mundo, procurando induzil-o em erros de fato deploráveis. Por exemplo: em um diagrama, publicado aliás em jornal da maior respeitabilidade, se reprezentava a potência naval da Inglaterra como um elefante e os Es­tados Unidos como um mosquito, isto, póde-se dizer, nas vésperas de serem esfaceladas duas esquadras hespanholas por Dewey e Sampson; e assim o resto.

Nunca D. Quixote se mostrou tão ridiculo, si é que Butler, no seu famozo Hudibras, descrevendo esse majistrado presbiteriano, cuja mania era julgar-se com vocação de correjedor dos defeitos dos outros pelo ensino e exercício do trabalho e da paciência, não quiz ver anteci­padamente a Inglaterra de hoje dominada da preocupação de rejenerar a espécie humana, rasgando-lhe as crenças, amputando-lhe a enerjia, humilhando-a até ao suicídio;— roubando-a.

— Isto é jingoismo de fora para dentro. — Diga o que quizer. A verdade se fará vêr, mais

cedo ou mais tarde. Os Boxers estão defendendo a Ame­rica do Sul. Atenda você a uma coiza. A Inglaterra, que é a única cauzadora do que se está passando no mundo, pois não foi outra nação a mestra da política predatória internacional; a Inglaterra vivia se espandindo caladinha. E, emquanto assim se comportou, o mundo a aplaudiu e nella acreditou. Mas nada mais certo do que o ditado

Page 102: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

100

"quando Deus quer perder o homem, tira-lhe o juizo" O orgulho entonteceu os- seus homens políticos, bem contra o conselho dos seus filozofos sinceros e dos seus pensadores dezinteressados; e esse delírio, propagando-se pela classe nobre, naturalmente distraída dos estudos sociolojicos, acabou por entregal-os de pés e mãos amar­rados aos sindicos do mal, isto é, aos emprezarios do fenicismo moderno, aos mercadores-piratas, cuja moral tem decido nestes últimos tempos até á animalidade dou­rada e feroz da decadência romana. E infelizmente ha por ahi uns intelectuaes incoerentes, anti-dreifuzista na França, dreifuzistas em qualquer outro lugar, cosmo­politas sem consistência por toda parte, os quaes, impres­sionados com o darvinismo aplicado á política e á civili­zação pelo espirito paradoxal de alguns modernos alemães de gênio, gloriam-se de pertencer aquelle grupo de se­letos, que pretendem resurjir os paraizos da Renacença italiana. Bem sabe você que eu vou direito ao recente impulsionador do espirito frondeur cientifico-diterario.

Quero falar de Nietzsche e da sua teoria do pro-homem. Mais do que ninguém, você conhece o brilho, o fulgor com que este grande poeta, ostentando um luxo de eru­dição e cultura clássicas, procurou esmagar o prozelitismo cristão e a democracia oriunda do movimento plebeu de 1793, e demonstrar que a humanidade busca, não aper­feiçoar-se, o que é uma utopia, mas produzir pela seleção das raças, e na raça pela da classe aristocrática, e na classe pelo apuro de alguns tipos, pelos grandes homens destinados a glorificar a vida no seu supremo ideal ter­restre. E' bonito, não é ? Pois bem: Nero não pensaria melhor; e se vivesse hoje, rejendo o industrialismo cruel dos anglo-saxonios, em quem os apetites creados pelo

Page 103: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

101

luxo de uma arte desvairada que lhe propinam Rudyard Kipling e outros artistas ejusdem furfuris, estão a pe­dir mizericordia, elle talvez, já houvesse transformado •o mundo num Colizeu universal. Então veríamos a rea­lidade da politica das potências históricas. Um vasto circo contendo todas as nações; mercadores gananciozos a arras­tarem para o centro delle Krups e Armstrongs enormes e tão arrojados como os tigres da Hircania e os leões da Numidia, — as feras do fim do século X I X ; os reis prezidindo a festa; os anarquistas rujindo nos ergastulos, até que chegue a sua hora; e os chinezes, os boers, e, quem sabe, quaes outros Cristãos Novos, atirados á arena, onde se baterão com os monstros da guerra para diver­timento dos espectadores imperiaes e seleção da espécie, sem prejuízo dos grandes homens, que descobriram o segredo dos trusts.

João Rivas tornou a sorrir, e buscou convencer o amigo de que estava sonhando acordado.

Teria sonhado ? A realidade hão seria o sonho de Protagoras ?

Passaram a outro assunto. — Recebeu você um convite do Brazilino ? — Recebi. — Que festa é a que elle anuncia ? — Ah ! meu amigo o nosso anfitrião está, ao que

parece, atacado de megalomania. Pois não sabe ? Elle quer transformar o Rio de Janeiro. Comprou uns ter­renos na falda da Serra da Tijuca, em Andarahy Grande; e não imajina o que um arquiteto celebre já fez nesse trecho de montanha, para satisfazer os seus caprichos -— um pedaço dos jardins de Semiramis, creia.

— Então é isso que se inaugura ?

Page 104: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

102

— Parece que sim. Cosme passou o resto da semana inquieto. Não tendo

que fazer, poz-se e recordar 4eituras velhas. Abriu o Thucidides e começou a saborear o quadro

è-i peste de Athenas, pedaço de literatura que, segundo se diz, o sr. D. Pedro II muito apreciava e exijia que todo o mundo conhecesse. A analojia da bubônica afas­tou-o do livro. Procurou outra distração. Que havia de ser ? Ah ! lembrou-se da Viajem dantesca de J . J . Ampère, livro deliciozo, que já havia muito tempo não folheava. Porque hoje, não fazia-se critica por esse mé­todo tão interessante ? Que belas pajinas não escreveria* por exemplo, Coelho' Netto, si se dispuzesse a dar-nos-uma Viajem alencarina.

Chegara, afinal o domingo almejado. A's 5 horas ergueu-se do leito; ás 6 horas, depois do café, envolveu-se no seu mac-farlane e dirijiu-se para a rua de S. Francisco Xavier, onde passa o bonde de Andarahy Grande. Seriam seis e um quarto, quando apontou o veiculo. Vinha quazí vazio aquella hora; no ultimo banco estava sentado um preto velho estremunbado de sono, que, de vez em quando, falava com o condutor.

— Pai velho, não te agüentas; vê que não vás cair. Quem tem essa idade não sáe de caza. Olha que a cabeça já parece de algodão.

— Uê ! replicou o ancião; sinhô moço tá rindo dí veio. Pois sim: veio ainda regula. T á vendo, yoyô: foia tá branca ni cabeça, mai raiz tá verde,— não se perde.

Cosme Velho riu-se da comparação do africano e poz-se a matutar.

Havia nevoeiro e as perspectivas do vale recuza-vam-se á contemplação. Na altura da rua do Eduardo

Page 105: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

103

entraram no bonde dous passajeiros: eram Carolino d e Louvet e Bazilio Cortes. Seguiam com o mesmo destino. Não viram Cosme que, por cavilação, puchou o chapéu para cima dos olhos, envolvendo-se no cache-nez.

Carolino de Louvet falava animado; como sempre mordaz.

— Paiz perdido, este Brazil ! Bem diz Sylvio Ro-mero que nesta terra tudo é grande, só o homem nada vale. Dominados pela vaidade de que é nosso o maior rio do-mundo; de que^são nossas as florestas mais profuzas em vejetação; de que nenhum paiz tem um Pão de Assu-car; de que o Corcovado é superior ao Righ; finalmente de que não ha na terra estadista superior ao sr. Malheiro Ribas, deixamos tudo á gaita e nos deitámos todos os dias certos de que o cambio, por influencia do hipnotismo,. chegará a 28 ou 29, quando menos esperarmos.

— Você é um maldizente, meu Louvet. — Não sou maldizente. Vejo: eis o que é. Olhe.

Só existe um meio de salvar esta pátria apodrecida: é deixar que os frades façam a sua obra de pregação.

— Compreendo: um México do tempo do general Sant'Anna. Mas se vier um Porfirio Dias ?

— Não virá, aposto eu. O povo está profundamente convencido de que foi a auzencia da relijião que. .

— Que irritou. . . diga; que irritou o catolicismo da libra esterlina, e a fez fujir para a City apezar de ser ella hebréa até á medula. Não é assim ?

Carolino de Louvet sorriu com o sorrizo amarelo-e cáustico que todos lhe conhecem.

Nisto os dous voltaram-se. Cessou o dialogo. O bonde tinha chegado ao ponto estremo da linha. Apearam-se. Num telheiro próximo estavam cavalos aparelhados para:

Page 106: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

104

a subida da encosta. Cosme esfriou. Havia vinte anos que nãò montava; e, lembrado da ultima queda que sofrerá numa escursão pelo seu estado natal, teve um arrepio na espinha dorsal. Todavia, cobrou animo, e, imitando os dous companheiros, empoleirou-se no bucefalo que lhe pareceu mais dócil, e começou a acenção, guiado por um moço de eavalariça que ali se achava guardando os animaes.

Carolino de Louvet e o outro fizeram o mesmo, sem proferir palavra.

— Nella chiesa co santi, nella taberna co latroni, murmurou Cosme.

O palácio de Brazilino Dias está situado a um ter­ço de altura da montanha. Ahi o arquiteto habilmente aproveitara um contra-forte que se ampara num largo trecho da floresta, e trepara, por assim dizer, o edifício a cavaleiro do vale, por onde atravessam as ruas do Ba­rão de Mesquita e Conde de Bomfim. Sobe-se para a esplanada por um zig-zag artisticamente projetado, apro­veitando os acidentes da escarpa. H a nesse zig-zag dez passos para descanço dos peões, os quaes passos acham-se ainda em via de construção; figuram ali como especi-mens de varia arquitetura, e se destinam a viveiros de pássaros, gaiolas para animaes ferozes, estufas, grutas, aquários, e t c , etc. Em cima, o edifício pompêa alterozo, lembrando um castelo feudal, modificado pela imajinação dos Árabes. A' primeira vista pareceu-me, enevoado como estava o tempo, uma estampa dos Contes Fantásticos de Laboulaye e ilustrados por Ivan d'Argent.

Não darei a impressão que essa fantazia de Brazilino me cauzou. Foi uma sorpreza. O leitor imajine o resto, se tem imajinação.

Page 107: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

105

Ao chegar á esplanada viraram-se instintivamente para o vale. Eram sete horas: o espetáculo tropical, que então descortinavam, nã*> se pôde descrever em detalhe. O sol, mal erguido do horizonte, derramava, não luz, mas tintas orjiaticamente combinadas na palheta de um pintor alucinado. Essas tintas invadiam a planície de modo caprichozo, combatendo o tênue nevoeiro, que baixara sobre ella como uma inundação de espuma. Aqui, ali, mais adiante, erijiam-se grupos de palmeiras; os tetos das cazas, atufadas nos jardins das chácaras, em muitos lu­gares apareciam cortados sinão separados do solo, quaes mirajens do dezerto. O rochedo da Babilônia boiava sobre esse mar alvadio como um grande bloco de carvão escondendo a fabrica de cerveja Rio-Brau, cujas chaminés começavam a lançar os primeiros rolos de fumaça.

Estiveram a olhar para tudo isto estaziados, quando interrompeu a voz de Brazilino, que decera a escadaria de mármore do primeiro plano, afim de receber os com­panheiros.

— Não contava que viesses, disse a Cosme. E fel-o subir até uma esquizita e pequena construção em fôrma de pagode chinez, onde foi servido café. Dahi passaram por uma escada sinuoza, praticada entre acidentes de rochedos, ao plano superior, em que está o novo castelo de arquitetura gotico-arabe, um castelo mignon, feito •como para fadas, e que naquelle momento dir-se-ia in­cendiado pela luz vermelha com que o sol, havia uma hora nado, o osculava para encanto dos olhos.

Abriu-se o portão de entrada, e por uma ponte le-vadiça, que se desdobrou de súbito, passaram para o pór­tico do edificio.

Page 108: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

106

A í Brazilino Dias sorriu maliciozamente e disse: — Vou fazer uma molecajem. Não se assustem.

Isto é para ladrões, á noite. E pizou numa chapa de ferro fosco que guarnecia o

batente da porta. Imediatamente os sons estridulos de uma sereia encheram a amplidão e em seguida ouviram^se os acordes de um piano mecânico, em que a eletricidade fazia as vezes de manivela, dando-nos a sinfonia do Guarany.

Carolino de Louvet empalideceu; e, logo que lhe voltaram as cores naturaes, acrescentou:

— Snobismo de chinez ! Não aprecio estas estra-vagancias.

Não se fará a descrição do castelo, bem como dos ser­viços executados por eletricidade nessa vivenda, em que Brazilino Dias acaba de despender perto de réis 800:oooo$ooo, nada deixando a dezejar ao mais exijente enfastiado da vida.

A's 10 horas em ponto foi servido o almoço, na sala de inverno. Estavam a postos todos os convidados, que tinham chegado sucessivamente.

Ao champanhe Brazilino, que durante a primeira parte do banquete, apezar da galhofa reinante em torno da meza, se conservara serio e triste, empunhou a taça e fez o toast ao Rio de Janeiro, isto é, aos habitantes que preferem a sua terra ás maravilhas de todo o mundo. Esse toast de nova espécie foi recebido por uns, alegre­mente, e, por outros, com vizivel repugnância.

— Uma cidade suja e impossível ! disse um dos con­vivas.

Brazilino Dias sorriu; mas seu sorrizo traduzia co-leras azues: depois falou com volubilidade quazi infantil.

Page 109: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

107

Os olhos delle, sempre tão calmo, tinham alguma coiza de estraordinario.

— Não posso ouvir estas palavras ! E' precizo que tiremos por uma vez a mascara. Hoje é o dia da seleção dos meus verdadeiros amigos.

Pelos convivas percorreu um frêmito de impaciência. Que havia ? Porque Brazilino proferia semelhante dis­parate ?

João Rivas ponderou que era cazo do anfitrião in­terromper o seu propozito e dar habeas-corpus, por aquella vez, a toda a companhia, e esperar os acontecimentos, se é que não estava caçoando.

— E' serio ! Não brinco ! proferiu Brazilino Dias, indignado.

— Neste cazo, comamos e. passemos á ordem do dia.

— Sim, Brazilino; deixemos isto para outra ocazião. — Sim. . . murmuraram todos. O anfitrião caiu em si; e sentou-se. Estava nervozo.

Riu-se; e Arthur Aguinaldo contou a historia de um cura que se cazara nos Estados Unidos com duas criadas gentis que o serviam; isto é, o cura fizera primeiro o ca-zamento das duas raparigas, das quaes uma andava com roupas masculinas e passava por homem no logar, e depois de realizada essa moralização da domesticidade, se colocara no meio do cazal para estabelecer o laço su­plementar e espiritual.

Francas gargalhadas receberam esta anedota, que se tomou por invenção, mas que é verdadeira e foi motivo para um processo escandalozo em Quebec, no Canadá, de que dá minucioza noticia o Padre Chiniquy na sua obra O Padre, a mulher e o confissionario.

Page 110: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

108

Carolino de Louvet, como era de esperar, protestou em frazes muito dezaforadas; mas Aguinaldo abafou-lhe os epigramas com um latinorio de Molfère.

— Louvet, disse João Rivas, Louvet está per­dendo a calma; sátira sem serenidade é sátira perdida; o mesmo que florete embolado. Coitado de Louvet!

Nisto levantaram-se todos e subiram, a convite de Brazilino, para o mirante do castelo. Lá, foram ser­vidos licores e charutos. A vista que daí se goza, ao meio-dia, nesta época, quando a atmosfera se tem dezanuviado e o sol dardeja, furibundo de calor, através de um céu profundamente azul, é incomodativa; esse espetáculo de insobriedade tropical oprime a retina e estafa o contemplador como diante de um vale incendiado.

O nosso amável amigo aproveitou o ensejo e poz-se a discorrer sobre os planos estravagantes a que João Rivas se referira no encontro da rua do Ouvidor.

—Olhem bem para os pontos por onde deve passar a avenida-t;rraço que eu projeto.

E indicava uma linha que, saindo do Alto da Boa Vista, na Tijuca, serpenteando, sempre pela falda da serra, iria unir-se aos Dous Irmãos e Silvestre, guardando o mesmo nivel, através das encostas dos vales do Tra -picheiro, Fabrica das Chitas, Rio Comprido e Catumby, mas sem nunca embaraçar a vista para o lado da baia. Na sua opinião esta obra seria tão exeqüível como a ala­meda projetada pelo dr. Vieira Souto, da Fortaleza de S. João á Ponta do Caju; e quando ambas estivessem re­duzidas a fato, poder-se-ia dizer que nenhuma cidade do mundo seria tão bela como o Rio de Janeiro.

Brazilino falou depois com alacridade e espansão delicioza no que elle costuma chamar a sua Utopia, a

Page 111: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

109

qual nada tem de comum com a enjenhoza construção-de Thomaz Morus, nem no que entende com o estinguir a propriedade, nem com a idéa de reprimir a liberdade. Do. grande sonhador inglez elle apenas tomaria a preocupa­ção de reconstruir, para felicidade do povo, esta cidade federal.

— Eis o grande ponto negro do Rio de Janeiro. Façam-me prefeito, com poderes amplos, e eu garanto-lhes que em cinco anos terei transformado o moral desta po­pulação, os seus costumes e os seus hábitos mentaes em uma couza estranha, com o auxilio unicamente da p i ­careta, da trena, do granito, da argamassa e com os con­selhos do arquiteto que me preparou este pequenino-paraizo.

— Mas é pasmozo, bradou Urbino Daltro, piscando os olhos humorísticos. O Brazilino neste andar será capaz de converter a Cabeça de Porco, que deus haja,, num grande hotel igual ao de Astor, em Nova York.

— E porque não ? ponderou Brazilino Dias, abra­çando o nosso engraçadissimo Urbino Daltro.

A palestra terminou com a saida súbita de alguns companheiros menos pacientes; e os poucos restantes se foram retirando de vagar.

Ao despedir, o dono da caza disse particular­mente que não se tinha esquecido da promessa que Cosme Velho lhe fizera, de continuar as conferências sobre o Ruy.

Isto só se realizaria quando elle tivesse concluido-as obras do chateau; mas seria de sua parte uma fineza a todos dar-lhe também o complemento das suas-idéas sobre a Utopia, numa palestra semelhante ás an­teriores.

Page 112: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

110

Brazilino Dias prometeu: e não tardará que o pu-Hico conheça em detalhe o que é essa Utopia.

1900, Julho.

VII

DE AUTOMÓVEL

I§ i .a

U M A ANEDOTA

,— O dr. *** é vizivel? — Pôde subir. Não tenha ceremonia. Era a própria voz do dono da caza, que recebia o

vizitante no topo da escada. O doutor apareceu jovial, com o sorrizo nos lábios.

Sete horas da manhã. O sol difundia-se nas cores caprichosas do arco iris, esparramando uma claridade intensa de glorious day. A luz asfixiava a retina: — é o termo. Asfixiava a vista, conjestionando a vizão como num dilúvio de coloridos antiteticos e paradoxaes.

,Na rua, o automóvel berrava. Uma descarga de gazolina; depois um recuo violento; e a manobra con­cluída.

— Não gosto deste veículo. Animal feroz e da peior espécie. Dá gargalhadas de caracará; bufa como hipopotamo; escouceia como o onagro da lejenda; investe como o tigre; cospe como lhama. Tem guinchos de ciri-coia; carrega sobre a gente como o rinoceronte; esbarra á maneira de elefante. Porque havia você de convidar-ms

Page 113: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

111

para um passeio á Tijuca em semelhante besta apoca­líptica ?

— E' apocaliptica; também é relijioza. Não se iluda; os quatro olhos de polvo monstro só intimidam durante á noite. O meu reverendissimo cavalo dinâmico é tão manso como um cordeiro. Grita, mas não morde. O chauffeur, admirável! Garanto-lhe que, sob o seu go­verno, chegaremos ao alto da Bôa-Vista emquanto o diabo esfrega o olho, sem destroço, sem mortandade.

Ao tempo que o homem se paramentava, Cosme Velho chegou á varanda do sobrado. Olhou. Lá estavam, ameaçando, sob a sombra facinante da montanha, os pa­vilhões da Expozição, o Pão de Assucar, a Urca, a Ba-bylonia. Douravam-se os penedos com as primeiras pul­verizações brilhantes que o sul soprava naquelle belo dia tropical.

Veiu o café. Acenderam os charutos e deceram. Junto ao meio fio o monstro sussurrava como u;-1

animal asmatico. O automedonte lançou para a maquina o olhar inteligente e tranqüilo dos que exercem o seu oficio soberanamente; e tocou-a.

Partiram.

A curva da praia de Botafogo foi devorada em me­nos de minuto. O auto deixava atraz de si nuvens de pó, de envolta com essa catinga de cabrito montez, que o povo batizou com um nome pouco airozo, ainda mesmo na boca de um smart do Saco do Alferes; o rasto su­focava os tranzeuntes.

Em meio tiro do Flamengo, o chauffeur ralentou a marcha, até a volta do Monrôe.

Ambos silenciavam. 8

Page 114: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

112

No trajecto da Avenida Central o silencio tornou-se funerário.

O dr. *** estava taciturno; um jaburu dos campos, de Santa Cruz.

— Que o preocupa? perguntou-lhe Cosme. — N a d a . . . — Não é possível. — Quando saíamos de caza estava na ponta da cal­

çada um caboclo ébrio a resmungar como um cevado. Você não viu?

— Vi; por sinal que, ao passarmos, o pobre diabo» cuspiu e fez um gesto de pouco cazo, zombando do auto­móvel.

— Pois essa figura lembrou-me uma historia curioza. Vinha ruminando fatos passados, em falta de couzas fu­turas, conforme diria o saudozo Machado de Assis. Ha­via na Villa Velha do Espirito Santo um antigo oficial do exercito reformado, que pelos anos de 1858 a 1859 ahi dera com os ossos para descansar o corpo e o espi­rito, já bastante fatigados. Tipo de bondade e mansidão,, embora enerj ético, a esse bom velho aprazia viver naquella aldeia entre a contemplação da pedra de í re f Palácios, em baixo da montanha, e a igreja da Penha., posta nos alcandores do rochedo, como um castello encan­tado de Ariosto, e os zumbidos dos pescadores, que dia­riamente evadiam-se da praia pitoresca nas suas canoas de pesca em busca dos robalos.

O seu maior divertimento consistia em conversar com essa gente e também com os preguiçosos plan­tadores de milho e de feijão, que vejetavam em roda do pequeno povoado. Era a providencia da pobreza e o con­selho dos aflitos. A caridade, exercia-a elle lá a seu*

Page 115: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

113

modo, ensinando, repreendendo, ás vezes descompondo, mas tudo com brandura.

O que é certo é que a pobre gente obedecia aos seus pedidos e o adorava como a um santo. O major Ca­zuza era um homem milagrozo, e só não fazia milagres, de verdade, na opinião dos simplórios, porque o frade da Penha não o deixava pizar na sacristia.

Um dia estava o Cazuza á porta de sua cazinha, a cachimbar. De súbito, abaixando os olhos, que se­guiam antes uns alcatrazes que voavam para a ilha do Boi, deu com um caboclo, seu conhecido, homem entrado em anos, trabalhador, de gênio socegado, quando não se intoxica.va com cachaça para esquecer a vida. Naquelle dia, porém, esse ilustre personajem bebera além da marca, e a embriaguez, como de costume, o puzera numa las­tima deplorável. Aos trancos, cai aqui, cai acolá, o ca­boclo avançou para o reformado, sinistro, ameaçador. Os olhos estrábicos denunciavam que a embriaguei en­trara no período das coleras rubras. Atirou o chapéo ao chão; quiz perfilar-se; não poude. Salivou e nada. . . A baba grossa, pastoza, aglutinante, desfilou pelos lábios sem fluir. Eram como gotas de sernambí. Esticavam, distendiam-se e voltavam ao gorgomiilho resecado. O desgraçado recuspia embalde. Dezesperado, poz-se a grunhir.

Blasfemou, então, numa voz tropega; guincho es­tranho como do demônio que o agitava. E quem pagou as despezas desse espirito impuro, segundo a formula dos espiritas, foi a falecida mãi do ébrio enfurecido.

— O diabo carregue para as profundias dos in­fernos essa diaba que me botou no mundo.

Page 116: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

114

Não era propriamente diaba o termo que empre­gava. O nome era tão feio que nem por círcunloquios me atreveria a proferil-o. Depois foi como um barril a despejar escrementos moraes de toda espécie. O caboclo escabujava numa satisfação de esconjurado.

E porque tanta celeuma ? Porque ? E' fácil dizel-o. No dia anterior agredira uma praça do destacamento. Deram-lhe uma tunda e em seguida o fizeram passar a noite no xadrez.

Saindo da prizão, nova bebedeira; e af estava elle a desrespeitar com o olhar sinistro ao major Cazuza, que nunca lhe fizera mal; ao contrario disso, o livrara de muitas penas e vexames, socorrendo-o com algumas moedas, palavras mansas e conselhos convidativos.

— Vosmincê está enganado comigo, seu major de bobagem!. . . berrou o caboclo, trapeando a fala. Hoje é hoje! . . .

— Que duvida, Manoel! respondeu sereno o re­formado, sorrindo adoravelmente. Como é que hoje ha de ser hontem ou amanhã? Você perdeu a lojica e vem mais engraçado do que o guardião da Penha depois de ganhar ao jogo a cera de Nossa Senhora.

O Manoel bambeou as pernas. Fincou os olhos no solo e poz-se a matutar. O dedo girou no espaço por muitas vezes, acompanhando o gesto interno que perse­guia alguma idéa. Nisto o corpo torceu-se para cair de vez; mas o braço tateou o muro, onde escorava os hom-bros; e o Manoel, rodando sobre os pés, aprumou-se. A baba tornou a apontar aos cantos da boca e recolheu-se. Por fim, o pobre ébrio, erguendo-se, num supremo es­forço, poude dominar a revolta do álcool que o sacudia-,

Page 117: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

115

e olhou suspeitozo para o major, medindo-o de alto a baixo. E com o indicador apontou a areia.

— E' isso mesmo! Vosmincê sabe tanto como o cabo da guarda, que é um pastrano. O guardião guardou a cera, mas vosmincê espivitou a vela; e surripiou-lhe a comadre, que é bem boa.

O reformado, apezar da calma que lhe era habitual, corou; súbito, conteve-se, repreendendo a herezia com um lampejo de benignidade.

Todavia a irritação do ébrio avolumava. — Não se atreva! Quem marcha para cima de mim

marcha para cima da desgraça. Não tenho medo de ca­retas! Esfolo homem; pizo em tripa de gente!

O major Cazuza não lhe disse mais palavra. Apenas fixou-o com oLhos vibrantes e eletrizados.

A repreensão era tremenda. O caboclo sentiu-se, então, subjugado como a fera pelo domador possuído dos se­gredos do seu oficio. Aquelle gesto fora suficiente para injetar-lhe nos nervos a mais completa inhibição da ati­vidade alcoólica e factícia.

O Manoel abaixou a vista. As pernas lhe tremiam; dir-se-ia que o assaltara um acesso de maleitas. Tentou levantar os olhos de mergulho. Dando, porém, com o gesto inflexível e austero do velho reformado, começou a chorar, aos guinchos, aos soluços. Depois, arrojou-se ao chão para abraçar as pernas de quem assim o do­minava.

— Não me mate, seu manjor; eu me ajoelho. — Levanta-te, Manoel! Não bebas mais! E durante mezes o pobre indígena não se embriagou. Toda vez que passava pela cazita do major e o en­

xergava, renovava a confissão e prometia não beber ve-

Page 118: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

116

neno. E o Cazuza, passando a mão pela cabeça do Ma­noel, humilhado, mas prazenteiro, acrecentava:

— Lembra-te de que um homem, quando diz de sua mãi o que disseste, é porque tem n'alma lacraias, cascavéis, surucucus.

O Manoel estaria curado? Soube-se depois que aquillo fora apenas uma estia-

jem. A força do remédio era provizoria. O caboclo, no fim de seis mezes, estando numa enjenhoca de cana em Itapemirim, sentiu a tentação do álcool.

A cena foi pavoroza. Passava elle pelo depozito da enjenhoca. Quiz a

fatalidade que fosse obrigado a atravessar o galpão do alambique. Ao lado viam-se dornas do liquido sedutor. Um aroma capitoso invadia o ambiente.

O Manoel parou aturdido. Começava a facinação. Olhou para a primeira dorna e ficou como se estivesse louco. Viu alguma couza de estraordinario. Um rosto formozo emerjia da parte superior do depozito de ca­chaça, sorria e acenava com a mão.

O pobre volveu-se sobre os pés. Correu para a porta por onde tinha entrado e num galope doudo foi se es­conder atraz de uma moita do pomar. Deitou-se e pro­curou dormir. A viajem o tinha dezalentado. As palpe-bras capiscaram um instante; não tardou que o assaltasse um pavor imenso. De repente deu um salto e disparou a correr por entre as arvores. Zuniam-lhe os ouvidos; per­seguiam-no brados terriveis, ameaçadores.

Era a voz do major Cazuza. i— Bebe, Manoel; bebe, diabo! E quando passou a obsessão daquelle alarido, èstav-i

outra vez á porta do alambique.

Page 119: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

117

Entrou. O galpão das dornas silenciava. Ninguém aparecia. Os efluvios deliciozos da cachaça o enchiam de entuziasmo feroz, ao mesmo tempo espantadiço.

Então deu-se um fato singular. O rosto formozo que lhe sorria de cima da primeira dorna tornou a emer-jir, mas agora com o resplendor divino de Nossa Se­nhora da Penha, que o espiava compassiva.

Ouvio cantos de ladainha. Ajoelhou-se junto ao bojo da grande pipa e abraçou-a angustiado. Ali estava a tor­neira, á destra, e um canjirão de folha de Flandres, á sinistra, sujestivos, eloqüentes, diabólicos. ,

O Manoel tocou em um, ensaiou abrir a outra; e durante esse movimento estinguio-se-lhe a memória, Já sonhava, antes de beber. E o sonho era um sonho estrava-gante. Afigurava-se-lhe que esse canjirão não passava de uma grande banheira cheia de aguardente, em que caía, e, bebendo o conteúdo, se afogava.

Quando mais tarde a gente da enjenhoca voltou ao galpão encontrou a torneira aberta e o chão inundado de cachaça.

E o Manoel? Mor to . . . de profundis! Assim ter­minava a historia, contada por Cosme Velho.

O automóvel parou. Tinham chegado ao antigo ponto dos bondes da Ti jucá.

O chauffeur foi refrescar no botequim. Cosme per­guntou, então, ao seu interlocutor que moralidade se podia tirar daquellé conto. Que o induzira a impinjil-o ?

— Ah, meu caro Cosme, qui a bu, boira...

— E depois? — Esse Manoel é a imajem perfeita de alguns po­

líticos da minha terra. O perfume capitozo da política-

Page 120: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

118

jem atordoa-os, promete-lhes couzas inauditas, toma até a feição de couza santa; mas a realidade é que no fim o que se encontra é o tanque, a morte, sinão o delirium tremens das sensações inéditas provocadas por ambições ilícitas,

§ 2.0

NA SUBIDA DA SERRA

Um apregoador de jornaes trepou no degrau do automóvel.

Compraram o Paiz e o Jornal do Commercio. A maquina possante, fonfonando, começou a galgar a

rampa. j

. •, O dr. *** lia os telegramas. — Que couza singular! Tinham-se-lhe deparado as estranhas noticias rela­

tivas ao Congresso Eucaristico de Londres. Os católicos pretendiam levar avante uma procissão de dezagravor

pondo em foco, intencionalmente, com a maior ostenta­ção, na grande metrópole ingleza, o problema de Hen­rique V I I I e as intrigas de Anna Bolena. A população protestante irritava-se; e Lord Asquith, para desviar s> golpe, maquiavelicamente desferido, sob color das li­berdades inglezas, dirijira uma nota ao sr. Buorne, ar­cebispo de Westminster, mostrando a inconveniência dessa manifestação, que podia comprometer a ordem publicar e acrecentava que o governo só consentiria que se des­envolvesse o prestito em torno do templo, porque era le­vado a considerar discutível a mesma legalidade da pro­cissão.

Page 121: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

119

Ajitou-se, então, o tema sobre saber em que con­sistem os direitos da relijião nacional; e aqui entre nós. pensou-se logo em aplical-o com prejuízo das instituições republicanas, como si fosse possível tratar a relijião de Estado com a mesma lojica que ampara a relijião do> maior numero, em todo cazo idéa muito vaga e por isso mesmo sujeita aos assaltos da propaganda realizada por outros credos.

— Não lhe parece, porém, objetou Cosme, que Lord Asquith prevaricou, invadindo a esfera de um culto que tem tanto direito á espansão como qualquer outro, dentro das regras com que a constituição ingleza proteje os não conformistas ?

— Distinguo. Em primeiro logar os não-conformis-tas ou dissenters são dialetos da igreja oficial, ao passo quç os católicos reprezentam o grande perigo, e ameaçam fundamentalmente o prezidio das liberdades inglezas, que tem - um temperamento incompatível com clericalismo la­tino. Demais, quanto a mim, o que os inglezes cultos sen­tiram, segundo parece, não foi tanto a tentativa de assalto á sua fé relijioza, como a sistematização do egoísmo pelo dogma. A Inglaterra tem sido um paiz essencialmente in­dividualista, e, sob a fôrma da self-dignity, esses insulares têm praticado muitos atos de orgulho revoltantes. O ego­ísmo e o orgulho, porém, ali guardam certa independên­cia, que é uma limitação aos efeitos dezastrosos rezultan-tes desses vicios.

O egoismo, entretanto, sistematizado pelo dogma, ê couza infernal, que por mais de uma vez tem inundado & terra de sangue.

Póde-se calcular o que seja um dogma triunfante pelo cinismo com que um papa fez um soberano, um im-

Page 122: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

120

perador, curvar-se aos seus pés, finjindo arrependimento e protestando a mais completa obediência... a Deus? não,—a um homem, vingativo, possuído da persuazão sa­tânica, neroniana ou napoleonica (tudo importa no mes­mo sentimento) de ter o mundo nas mãos e poder re­duzir todas as forças da terra á sua única vontade.

E' disso que os Inglezes se arreceiam: porque o ego­ísmo de cada interessado, o egoísmo que se esconde da mesma lei cristã, onde se proclama a caridade e o amor do próximo, a ternura e a simpatia; esse egoísmo quadru-pedante, quando não ofidico, crotalico, rejubila-se, ape­nas sente o dogma; e então vê-se como os mais baixos sentimentos humanos se acrizolam, tomando a fôrma do interesse coletivo e da santidade, para esmagar, vencer, aniquilar, sob os infinitos aspectos de dedicação ao culto ou aos princípios sagrados da comunidade, que os inscreve na qualidade de adeptos, os seus adversários particulares, exorcizando nestes o espirito de Satanaz. O dogma não é humano, nem os próprios sodalicios o são, quando a elle subservientes. As mesmas associações comuns participam desse vicio dantesco, -no momento em que fazem meta-teze, substituindo o dogma por Moloch. E' a mesma dezumanidade em toda a linha. Instrumento forjado para *o exercício irresponsável da maldade! E, si não, diga-me •o amigo Cosme: qual a razão por que a moral, tirada da experiência diuturna dos povos, nunca fez derramar uma só gota de sangue? E' que as normas esperimentaes -do bom senso aplicadas á vida comum fabricaram-se na historia, não na lejenda. Fizeram-se sob o prezidio do sentimento junto ás utilidades limitadas pela harmonia d a vida neste mundo: ao passo que aquelle instrumento de ferocidade ou saiu do cérebro de algum profeta alucinado

Page 123: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

121

• elo egoismo e pelo orgulho do divino, ou se combinou nas forjas dos Vulcanos da Economia Política, de baixa ou alta estirpe, ou dos teólogos da soberania das nações, para inutilizarem as inclinações bemfazejas dos homens e tudo quanto não seja mandar, ditar, dispor da força dis-cricionariamente e distribuir a seu talante o produto do trabalho coletivo. *

Quem ha que, refletindo um pouco, não reconheça que a Igreja Católica, perdidas as esperanças de restabe­lecer o dogma antigo em sua pureza, tratou nos últimos anos de Leão X I I I de passar do dogma de Jesus para o de Mammon ? Quem não a tem visto operar, como um trust econômico colossal, que ameaça a terra, ajindo pela industria e concentrando capitães, sem livros, nem es­crituração, zombando dos Estados, a quem nunca paga impostos, antes pelo contrario consegue por toda aparte, até entre infiéis, o tranzito das mercadorias com a mais completa izenção do fisco aduaneiro ?

Em muito boa hora Pio X condenou o modernismo. Mas esse ato, si por um lado lançou a confuzão no meio dos institutos, por outro está provocando reações e trans­formações de hábitos no trust ecleziastico, cujos rezulta-dos não se pôde ainda prever com segurança.

§ 3-°

NO ALTO DA BOA VISTA

A palestra, com a leitura dos jornaes, estragou esta parte do passeio. Subiram a serra sem olhar um só ins­tante para os, encantos desse belíssimo trecho, um dos mais deliciozos do Rio de Janeiro.

Page 124: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

122

No alto da Tijuca descansaram ou antes deram folga ao imperterrito chauffeur que os transportara de Bota­fogo até ali numa hora.

Batiam justamente oito quando galgaram a esca-dinha do restaurante do hotel White.

Fizeram uma pequena refeição e depois seguiram a pé em direção ás Três Vendas. '

Era conveniente dezengurgitar o figado e dezentor-pecer as pernas.

O automóvel iria tomal-os adiante. Agora sucitou-se uma duvida gravíssima sobre o

itinerário.

Propoz Cosme ao doutor uma digressão á Floresta: Excelsior, Gruta de Paulo e Virgínia, etc.

— Não me fale nisto. Esse passeio já o fiz a pé, de carro, a cavalo, ipor inteiro, secionado, de todo modo. Por mais encantadores que repute os aspectos da Floresta, ser-me-iam hoje muito enfadonhos. Nunca fui ás Furnas. Parece incrível. Vamos ás Furnas. As impressões serão, porventura, novas.

— Prepare, pois o apetite. Só almoçaremos ás doze horas.

— Tanto melhor. Estávamos junto a uma formozissima toiceira àa

bambus de Ceylão, enormes canas, de cujos gomos se pre­param bocetas e vazos cilíndricos de fatura enjenhozis-sima.

Havia em alguns desses gomos nomes próprios in­scritos e acompanhados de dizeres lapidares.

Triste mania a dos turistas, que não perderam ainda o espirito dos cemitérios, onde foram criados. Entre tais

Page 125: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

123

nomes lobrigou Cosme os de pessoas conhecidas, justa­mente as mais pedantes.

Ora, vejam esta inscrição:

" F . L. A. T . O.—Penso que sou predestinado a descobrir o balão voador. As minhas iniciaes dão o ana-grama "Flato". No latim "Flatus" quer dizer vento. Logo tenho forçozamente de voar."

Essa tolissima criatura não cuidaria melhor em es-punjir seu nome de uma dessas letras para não compro-metel-o com um flatus voeis?

Cosme soltou uma rizada; e o doutor que, entre­tanto, sentara num banco e lia o Jornal, ergueu-se de repente, inquirindo o motivo da sua hilaridade.

Disse-lhe o que era. Acrecentou: — Fcenum habet in cornu! Saiamos daqui antes que o espirito desse fu-riozo nos ataque de improvizo.

O doutor levantou o Jornal até junto aos olhos e releu o trecho que o atraía:

"Uns segundos de espera pareceram-1'he uma eter­nidade; vibrou de novo, dezaforadamente a campainha elétrica, no acesso da raiva que lhe entumecia as arté­rias e queimava as pupilas. Veiu por fim o criado dizer-lhe, por uma frincha da porta mal aberta, que as se­nhoras não estavam em caza. . . E, bem instruído, mal acabou essas palavras, fechou a porta e voltou-lhe as costas.

"Um frio de neve envolveu Adda da cabeça aos pés, paralizando-lhe momentaneamente a ação. Diante delia pareciam multiplicar-se as portas e os hombros chatos de criados dezatenciozos. . Segurou-se ao corrimão de ferro, compreendeu que precizava fujir, deceu a escada, cam-baleante e tremulo. Ao. sair para a rua levantou ainda

Page 126: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

124

os olhos para as janelas da sala, na esperança de vêr as­somar a uma dellas o Eduardinho; mas em vez delle foi a cara escarninha do Coronel que ella viu inclinar-se lá de cima sobre a sua mizeria... Elle ria-se. Adda fujia.. . A sua conciencia confundia a realidade com um pezadelo. A figura odiada do pai de Ruy acabara de a dezorien-tar. Tinha-lhe ódio e medo. Um medo de criança por papão negro de telhado, que lhe haveria de comer a carne e ainda chupar os ossos.

"Que fazia o malvado naquella caza, onde antes nunca ia? fazia in t r iga . . . urdia a sua desgraça.. Não tendo azas para voar, Adda queria correr, mas os seus passos tornavam-se cada vez mais pezados, recuando na areia, quando pretendiam avançar. Receiava encontrar al­gum conhecido pelo caminho, supunha levar estampada no rosto a sua vergonha.. a confuzão aumentava ao sentir que alguém vinha apressadamente no seu encalço. Esperou a punhalada nas costas, vibrada pela mão seca do pai de Ruy. . . mas não era elle, — era o Eduardinho í

" O moço vinha indignado, pedia perdão por todos, e com os olhos fuzilando lumes, propoz-lhe a fuga nessa mesma noite. Elle esperaria de automóvel na esquina da rua da Nossa Senhora, ás nove horas: só saltando por sobre o escândalo ella seria um dia sua mulher. . . E ella seria sua mulher!"

— Mas este trecho revela uma romancista con­sumada. Eis uma pajina que tem vida e verte sangue. E ' o paroxismo de um amor ludibriado na sua angustia, em um meio aristocrático, por um smartismo picaresco, e despedaçado nos dedos inconcientes de meia dúzia de almas de lacaios, trajados no Rabello pelo dinheiro do Ensilhamento.

Page 127: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

125

— De onde vem-lhe tamanho entuziasmo? disse Cosme.

— Aqui está; é um deliciozo romance, escrito por modesta brazileira. Leia o Cruel Amor, de Julia Lopes, e encontrará cenas de costumes, pintadas com um colorido .encantador. Paixões violentas e carateres tortuozos são ai r

observados e descritos com um vigor admirável. O automóvel chegava. Interrompeu-se a critica.

Deceram com destino ás Furnas numa velocidade pa-voroza. O chauffeur entrava gradualmente na vertijem da carreira. E elles contajiados por aquella febre de lou­cura já não pensavam em atenuar-lhe com palavras o delírio da maquina. Curvaram-se para a frente e en­tregaram a alma ao deus dos automóveis, que deve ser al­guma couza de parecido com Apollo ou com Mercúrio.. De cabeça emborcada e olhos fechados não viram mais nada. Era a sensação de correr pelo espaço, aos trancos,, esfuziando, contornando, fazendo curvas instantâneas,, zig-zags danados, deslizes impossíveis, ora para cima, ora para baixo, não guardando da passajem pela estrada se­não .o perfume fujitivo das hervas machucadas, a angustia* do pó, o fétido da gazolina, os sons inebriantes do vento-que passava, os ecos silvestres e o fragor atordoante da encosta da montanha repercutindo o estrupido da maquina, furíoza.

Fatigaram-se, todavia; a rapidez e a irregularidade do movimento torturavam, apezar do gozo da velocidade,, as viceras, principalmente o coração. Devido á força cen­trifuga pareciam querer evadir-se, ora pelo tórax, ora. pelas costelas, pela garganta, pelo ventre, como arreba­tadas pela mão invizivel desse deus dos automóveis.

Page 128: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

126

Grande anciedade. Fulgurações deslumbravam a vista semi-apagada. Momentos havia em que pensavam morrer no éter.

Por fim o chauffeur, que parecia um demônio ou um gorila, a fazer trejeitos de precito na proa da barca de Charonte, esse chauffeur doudo, dezalmado, ralentou a marcha. Ranjeram os freios; e num minuto estavam os viajantes perto dr.s Furnas.

>

§ 4-"

FURNAS

Saltaram. Transpiravam. Dezalteráram-se na pri­meira fonte encontrada.

Não se lhes diz nada. Era tal a fadiga; as pal-pebras pezavam por tal modo sobre os olhos, que foi precizo toscanejar e dormir alguns minutos sobre os bancos rústicos.

Percorridas as grutas, que o dr. Passos tornou mais acessíveis, voltaram aos bancos para descansar.

A impressão deixada no doutor por aquelle delubro, por aquella vejetação misterioza, levou-o ao paradoxo.

— Meu caro amigo Cosme, quanto mais examino este nosso Rio de Janeiro, menos me atrevo a proferir certas herezias.

— Hereje é você até á ponta das unhas. D i g a . . . — Lembra-se de uma passajem da Caza de Bo­

neca, em que Nora manifesta o dezejo obsedante de pro­ferir uma palavra que a sua delicadeza repele como inr «decente ?

— Caramba ! Era caramba . . .

Page 129: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

127

•— Pois experimento agora essa mesma obsessão, não por uma, mas por duas, por três, por dez palavras.

— Vamos adiante. — Era aqui que devia ter-se reunido a Conferência

de Haya.

— Mas porque, filho de Deus? — Porque, sendo os delegados que ali se reuniram

verdadeiros megaterios ou mastodontes da diplomacia, era muito mais acertado que as sessões fossem celebradas ás portas de uma grande e bela cidade, numa caverna de formação antidiluviana.

— Já percebo. — Ancestral.. . — Ora, ahi tem a herezia ! — Talvez lacustre.. — E a nossa águia o que então iria fazer nessa

escuridão?

— A nossa águia? — Sim! Tivemos uma águia em H a y a . . . — A nossa águia teria sido transformada em rino­

ceronte. Cosme deu um pulo para trás e caiu no banco esta­

telado. O doutor endoudecera. A nossa fauna possue o queixada, o caititu, a anta,

o peixe boi . . . O que pretendia o amigo com semelhante despauterio ?

— Rinoceronte, doutor? O senhor falou mesmo em rinoceronte?

— Por que não? — O Brazil não podia entrar sinão com o elemento

indijena. Nós não temos este mamífero.

Page 130: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

128

•— Esqueceu-se da águia ? Onde ha águias no Brazil?

— Condor!

— Condor? Isto é nos Andes. Aqui é urubú-rei! Águia, condor, rinoceronte: tudo é a mesma couza.

A questão rezide em força, fôlego, arrojo, animo, cora-jem. Foi um caçador francez, comissionado em África pelo Ministério do Interior de França, chamado Foá, juem me revelou os verdadeiras costumes do rinoceronte, brazileiro ou estranjeiro. O rinoceronte é animal so­litário, pezado, dotado de força descomunal, corpo mas-siço, pele rugoza, espessa, focinho armado de um estrepe, violento e o único capaz de fazer frente ao elefante. Di­zem que os indios atribuem aquelle estrepe propriedades maravilhozas; mas us naturalistas garantem que esse apên­dice é apenas uma inútil curiozidade.

O caçador francez, todavia, afirma, de experiência própria, que esse mamífero não sabe se defender, porque não apreende o que se passa em torno de si. Logo, po­rém, que pelo faro iprezent-^ a prezeríça do homem, e ainda assim estando a barla-vento, começa a descrever traje­tórias formidáveis, de um lado para outro, destruindo tudo quanto se opõe á sua passajem violenta. Si acon­tece, numa dessas trajetórias, encontrar quem o persegue, ai do desgraçado ! não ha arma que valha, porque o seu couro é impenetrável. Ao caçador, porém, é faci-limo matal-o de emboscada, ferindo-o nos olhos.

Si consegue escapar, posto de sobreavizo, o rinoce­ronte uza para resguardar-se de um espediente curiozis-•;imo. Com as patas procura espalhar os reziduos e se-creções que porventura tenha deixado pelo caminho. Julga que o homem é tão estúpido que, desprezando o

Page 131: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

129

rasto, quando o persegue, só se deixa guiar por tão sór­didos objetos. E' o conceito que alguns políticos fazem dos seus adversários.

Ora, o condor não copiará a política do mamífero nesta parte, mas cuido que os seus processos de ataque e de defeza são bem parecidos com os daquelle in­teressante habitante das matas africanas. Nas questões constitucionaes, pelo menos, com toda a sua intelijencia e todo o seu saber, irritado e paquidermícamente enfure­cido, projeta-se em zig-zags. E coitado de quem se atre­ve a contestal-o ! E ' um ruir de estantes, uma borrasca de livros, um dezabar de autores, um troar de bibliotecas, um tumulto de citações, um bradar de textos, que dir-se-ia não um erudito discutindo árduas questões de di­reito, mas um ciclone que arraza, subverte e lança sobre a rejião por elle percorrida o -pavor dos cataclismas irre­paráveis. Desta vez o ciclone político pôde mais do que o rinoceronte constitucional. Conversando hontem com um amigo, que dispõe de vista de alcance para descortinar os segredos mais recônditos da vida social, disse-me esse amigo que o condor, transformado, se embalsamára em vida.

— Como ? perguntei-lhe, quazi adivinhando-lhe o pensamento.

— Pois quem não vê, respondeu-me, quem não per-«ebe que elle engole-se a si mesmo; como um fakir, dei­tado sobre estrepes, passa seis mezes em baixo da terra, para resurgir cada vez mais reitoral? A operação não é muito fácil, mas está bem aparelhada.

— Para codificar? — Um código que será a Phcenix Renacida. — Crê, então, você que era peta essa historia de

descarte ?

Page 132: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

130

— Chi Io sa? O plano do grande jurista ha muito tempo que se encharca. Empaliar... empaliar, até que um dia lhe seja possível provocar um cataclisma de livraria; e então os seus pareceres sobre a redação gramatical do projeto, e mais as poligrafias que naturalmente já reuniu sob o Titulo Geral do Código e que serão verdadeiros tratados sobre os vários sistemas de codificação; os car-tapacios aprezentados no Senado, quando o interpelaram sobre a demora do trabalho, ficarão no seu arquivo para que a todo tempo se diga que a nossa impaciência privou o Brazil de um monumento jurídico, que faria inveja á própria Allemanha, sinão á ciência que de hoje a cem anos existirá na Republica da Austrália, ou em Saturno.

Cosme não quiz acompanhar aquelle amigo na diatribe contra o nosso grande codificador. O seu in­terlocutor, porém, andava tão cheio de indignações que não se conteve.

— O condor, acrecentou elle, é um condor mís­tico. Mas essa ave jurispatetica tem, por infelicidade das nossas letras, uma alminha tão liliputiana que não se enxergaria, si não trepasse na sua grande erudição. Dirão os seus admiradores que o grande Bacon era também uma alminha destas; que o gênio não é incompa­tível com deliquecencias feminis. Acazo o autor do Novum Organum não baixou de sua trancendencia para imiscuir-se numa luta de comadres e de camareiras na corte de Elisabeth? Não é certo também que a sua formidável obra de lojica não impedio que elle exercesse vingancinhas de mosquito? Si é verdade o que dizem os mexeriqueiros da historia, é igualmente exato que o seu monumento ético não presta para nada. A Bacon atribuem uma fraze que, a ser verdadeira, pinta-o a vulto inteiro.

Page 133: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

131

— Estou -Cansado, com semelhante talento, de su­portar estorvos ao meu orgulho.

E cunhou opiniões como quem solta morteiros japo-nezes, que embasbacam o povo e são-lhe muito úteis. Bacon, todavia, guardou respeito á sua filozofia. A sua* probidade politica pôde ser atacada. Mas o que elle escreveu sobre o método esperimental é uma obra que ha de viver, como a de Aristóteles, através dos séculos.

— Em todo o cazo o nosso Bacon possue grandes qualidades de analista.

— Distingamos. H a analistas e ha analistas. Dar-win foi um analista. Mas as analizes, as autópsias que fez deram-lhe ensejo a formular a lei da orijem das espécies. Elle não cuidou jamais em recolher opiniões. Analizou para depois generalizar. Não atrapalhou, não confundiu ninguém. Dizer que o brazileiro é pen­sador, é ainda um despropozito. Um moralista, muito mais!

A sua ética é teatral. No tempo dos escolasticos, talvez que elle pudesse ser um Duns Scot, e na companhia de Jesus, um Suarez, mas de fôrma atenuada. A sua ope­ração como constitucionalista tem consistido unicamente em truncar as noções claras do direito. De certo tempo a esta parte apostatou. Fez-se filosofo segundo a dogmá­tica do catolicismo. E' fácil compreender a dezerção. Não é impunemente que se enche a cabeça de têstos, de opiniões. Desde que se não pôde regular esse caos com uma forte sinteze social, a cabeça inflama e o cérebro cambaleia. O nosso great old man, sentindo a sua impo­tência filosófica e uma enorme preguiça mental para a sinteze e para a meditação, agarrou-se, por instinto de conservação, á autoridade da Igreja, que é um ótimo

Page 134: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

132

travesseiro. Não seria para admirar, dadas certas cir­cunstancias, que voltasse ás fogueiras da Santa Inqui­sição e á guilhotina purificadora de mestre Robespierrfc. E, no emtanto, esse homem escreveu a introdução do Papa e o Concilio.

Almoçaram no White prazerozamente. O regresso á cidade deu-se, graças á alegria da tarde,

sem acidente e com prudência. Não morreu ninguém. A' noite encontraram Brazilino Dias na Espozição.

Foi uma sorpreza e um aparecimento misteriozo. Por algumas palavras que trocaram, depois de sete anos de auzencia, ficaram inteirados de que esse grande homem vem do Velho Mundo cheio de idéas novas e de planos estupendos.

1908, Novembro.

Page 135: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa
Page 136: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa
Page 137: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa
Page 138: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa
Page 139: DIÁLOGOS DAS NOVAS GRANDEZAS - Literatura Digital · Os convivas de ordinário fór-çam-no a falar. ... Como, pois, em 1856 podia o autor do Judas em sábado de aleluia entrar nessa

BRASILIANA DIGITAL ORIENTAÇÕES PARA O USO Esta é uma cópia digital de um documento (ou parte dele) que pertence a um dos acervos que participam do projeto BRASILIANA USP. Trata‐se de uma referência, a mais fiel possível, a um documento original. Neste sentido, procuramos manter a integridade e a autenticidade da fonte, não realizando alterações no ambiente digital – com exceção de ajustes de cor, contraste e definição. 1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais. Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial das nossas imagens. 2. Atribuição. Quando utilizar este documento em outro contexto, você deve dar crédito ao autor (ou autores), à Brasiliana Digital e ao acervo original, da forma como aparece na ficha catalográfica (metadados) do repositório digital. Pedimos que você não republique este conteúdo na rede mundial de computadores (internet) sem a nossa expressa autorização. 3. Direitos do autor. No Brasil, os direitos do autor são regulados pela Lei n.º 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Os direitos do autor estão também respaldados na Convenção de Berna, de 1971. Sabemos das dificuldades existentes para a verificação se um obra realmente encontra‐se em domínio público. Neste sentido, se você acreditar que algum documento publicado na Brasiliana Digital esteja violando direitos autorais de tradução, versão, exibição, reprodução ou quaisquer outros, solicitamos que nos informe imediatamente ([email protected]).