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ISSN 1806-7328 CADERNOS DA ESTEF Revista Semestral N° 44 2010/1 EM BUSCA DA FONTE ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana Porto Alegre (RS) Brasil

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ISSN 1806-7328

CADERNOS DA ESTEFRevista Semestral

N° 44 � 2010/1

EM BUSCA DA FONTE

ESTEF

Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana

Porto Alegre (RS) � Brasil

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SUMÁRIO Em busca da fonte! ...............................................................................3 No princípio era a comunicação Valores franciscanos fundamentais

Os religiosos leigos na Igreja: uma aproximação teológica

Um Deus frágil e desnudo

A práxis do sensus Þ delium (I)

Deus ou Mamon: quando o dinheiro se torna divino

Ética ambiental: uma introdução à ecologia profunda Teologia e hermenêutica: aproximações críticas

.......................................................95 O silêncio dialético de Maria

Crônicas Homilia de Corpus Christi - D. Ângelo Salvador ..........................120 Recensões P. Maranesi. Facere misericordiam: la conversione di Francesco di Assisi (A. Crocoli) ......................................................125

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INTRODUÇÃO Pensei escolher como tema deste

encontro a comunicação. Por diversos motivos: em primeiro lugar, pela impor-tância que a comunicação assumiu no mundo moderno e pelo desaÞ o que ela apresenta ao anúncio da fé da Igreja; em segundo lugar, porque Þ z, recentemente uma experiência pessoal, em seguida à minha última pregação da Sexta-feira Santa na Basílica de São Pedro, dos me-canismos que regem o mundo da comu-nicação de massa e sinto a necessidade

de dissipar um equívoco que deu a volta ao mundo, inclusive o Brasil.

Estamos no dia seguinte à festa de Pentecostes e o Espírito Santo é quem, no Pentecostes, transformou a Babel das línguas naquilo que Santo Irineu chama de �a nova sinfonia das vozes�. Ele, diz o autor do hino �Veni creator�, põe nos lá-bios a palavra (sermone ditans guttura), isto é, inspira os profetas, os doutores, os orantes, todos aqueles cujo carisma se exprime através da linguagem.

NO PRINCÍPIO ERA A COMUNICAÇÃOEncontro com estudantes e professores de Teologia

Porto Alegre, 24 de maio de 2010

Raniero CantalamessaTeólogo capuchinho italiano, Pregador da Casa Pontifícia

_________________ _________________

Resumo: Em palestra a estudantes e professores de Teologia, em Porto Alegre, o autor trata teologicamente o tema da comunicação, que tem seu fundamento na Trindade, podendo ser caminho para o paraíso ou do inferno, segundo o uso que se faça da comunicação. Distin-gue entre comunicação de notícias (objetiva) e comunicação de existência (subjetiva), sendo esta própria do anúncio evangélico. Partindo de McLuhan, discute a relação entre meio e mensagem, concordando com ele nesta aÞ rmação fundamental: em Cristo, o meio e a men-sagem se identiÞ cam. O autor também esclarece um incidente mediático havido com relação a sua pregação na última Sexta-feira Santa.

Palavras-chaves: Comunicação, comunicação de notícias, comunicação de existência, relação, diálogo, meio e mensagem.

Cadernos da ESTEF 43 (2009-2) 5-30

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1. O MONÓLOGO DE FAUSTO Gostaria de começar colocando em

evidência qual é, na perspectiva bíblica e cristã, o fundamento último, ou - o que dá no mesmo - o paradigma originário de toda comunicação e a luz que esse para-digma pode projetar sobre alguns proble-mas cruciais da comunicação humana, tanto leiga como religiosa.

É conhecido o monólogo de Faus-to, de Goethe, a propósito do início do Quarto Evangelho: �No princípio era a Palavra�. Não posso, diz Fausto, dar à �palavra� (das wort) um valor tão alto; talvez deva entender �o sentido� (der Sinn); mas pode o sentido ser isso que tudo opera e cria? Então se deverá dizer: �No princípio era a força� (die Kraft)? Mas não, uma improvisa iluminação me sugere a resposta: �No princípio era a ação� (die Tat)1 .

Falta, em todas estas interpreta-ções goethnianas, o elemento essencial do Logos joanino. Nem o sentido, nem a força, nem a ação, dizem, por si mes-mas, relação a outro; não implicam ne-nhum elemento dialógico, enquanto é exatamente este o signiÞ cado do termo Logos: palavra voltada para alguém, ra-zão e sentido das coisas, mas enquanto manifestado comunicado. Os primeiros tradutores latinos, por exemplo, Tertulia-no, traduziam o termo Logos do Prólogo com uma circunlocução: ratio et sermo, razão e palavra. Se, pois, se quiser fazer uma paráfrase à frase joanina, essa não é �No princípio era a força�, mas �No

princípio era a comunicação�.Isto se realiza no âmbito trinitário,

portanto, à luz última do ser e do real. A segunda pessoa da Trindade é chamada Logos, Verbo, Palavra porque é a comu-nicação que o Pai faz de si mesmo ao Fi-lho, no Amor que é o Espírito Santo, e, em resposta, a comunicação que o Filho faz de si mesmo ao Pai no Amor que é o Espírito Santo.

A partir de santo Agostinho em diante as três pessoas divinas são deÞ -nidas como �relações subsistentes�. Nós criaturas humanas temos relações, Deus não tem relações: é relação. Um pai não se esgota na relação que tem com o Þ -lho, um professor na relação com o alu-no; ambos existem mesmo fora e antes dessas relações. Não assim Deus: o Pai não é outra coisa senão Pai, o Filho não é outra coisa senão Filho. Isto signiÞ ca relação subsistente.

Não se termina nunca de explorar a profundidade desta deÞ nição e a sua relevância no contexto atual das ciên-cias da comunicação. Ela signiÞ ca que a comunicação não é uma prerrogativa ou uma atividade acidental e secundá-ria, mas é intrínseca ao ser humano. O homem é criado à imagem de um Deus que e comunicação! Em toda autêntica comunicação pode-se vislumbrar um re-ß exo da Trindade porque nela há um que comunica, um a quem se comunica e a comunicação mesma, como em Deus há o Pai que ama, o Filho que é amado e o Espírito Santo que é o amor.

A deÞ nição moderna de pessoa, des-de Hegel, aproxima-se deste signiÞ cado bíblico, insistindo no caráter relacional,

1 Leia-se a encíclica de Bento XVI, Deus caritas est, de 25 de dezembro de 2005.

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no reportar-se ao outro, da pessoa, o seu ser um eu diante de um tu, com toda im-portância que disso decorre para o tema do diálogo desenvolvido por Martin Bu-ber em seu �O princípio dialógico�. �Ser a gente mesma, mas através do dom ao outro no qual a gente se encontra, é hoje o conceito corrente de pessoa2.

A língua alemã permite perceber no título Logos uma componente essencial, do ponto de vista da comunicação. Trata-se da proximidade de som e sentido en-tre Wort, palavra, e Ant-wort, resposta. A verdadeira comunicação nunca tem mão única, é sempre um dar e um receber, um falar e um escutar. Assim é a comunica-ção na Trindade. O Filho é palavra de amor do Pai e resposta de amor ao Pai. Poderíamos parafrasear igualmente bem a frase de João dizendo que �No princí-pio era o diálogo�.

Essa visão tão alta da comunicação só é possível quando Deus não é con-cebido como potência absoluta, ou lei cósmica absoluta, como em outras reli-giões antigas e modernas, mas é enten-dido como amor absoluto. A potência e a lei podem ser exercidas por um sozinho, não assim o amor. O amor tem necessi-dade de um eu que ama e de um tu que é amado. O Deus cristão é comunicação porque é amor.

O que acontece na vida íntima de Deus encontra um primeiro reß exo na história da salvação. A revelação bíblica é também uma comunicação e um diálo-go. Deus fala ao homem, mas também o homem fala a Deus na Bíblia. O sentido

da aliança está todo aqui. Basta reler o livro de Jó ou dos Salmos para perceber quanto esse diálogo é intenso e por vezes tempestuoso.

2. A COMUNICAÇÃO, CAMI-NHO PARA O INFERNO OU PARA O PARAÍSO?

Que considerações nos sugere o

modelo divino em relação à comunica-ção humana? A primeira diz respeito ao motivo: �por que� comunicar-se em vez de se calar? Em Deus, o motivo único da comunicação, seja ad intra como ad extra, isto é, na Trindade como na histó-ria, é o amor. Deus se comunica porque é o bem e o bem, diziam os escolásticos, é, por natureza, �diffusivum sui�, isto é, comunicativo, tende a difundir-se. De outro modo, não seria mais �bem�, isto é, amor, mas egoísmo.

Na era da comunicação de massa que, por bem ou por mal, ampliou qua-se ao inÞ nito o uso da palavra, devemos nos colocar a pergunta: nós seres huma-nos nos servimos da palavra, escrita ou falada, para comunicar vida e verdade, ou, ao contrário, para difundir a morte e falsiÞ car a verdade?

Em seu drama Entre quatro pa-redes, Sartre nos deixou uma imagem cruel daquilo em que pode se tornar a comunicação humana quando lhe faltar amor. Três pessoas - um homem e duas mulheres - são introduzidas, com breves intervalos, em um quarto fechado. Nele não há janelas, a luz é intensa ao máximo e não há como apagá-la, faz um calor su-

2 E.Schillebeeckx, Gesu. La storia de um vivente. Bres-cia: Queriniana, 1974, p. 705.

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focante e não há mais nada ali senão um banco para cada um. Quem são eles? São três mortos e o lugar onde se encontram é o inferno. O homem é um desertor que torturou sua pobre mulher a vida inteira, as mulheres são uma infanticida e outra lésbica.

Não há espelhos e cada um pode ver-se unicamente através das palavras e da alma do outro que lhe joga na cara a pior imagem de si mesmo, sem qualquer misericórdia, mas aumentando volun-tariamente o horror com o próprio sar-casmo. Quando, pouco depois, as almas tornaram-se nuas uma para a outra e as culpas de que mais se envergonham são postas à luz uma a uma e exploradas sem piedade pelos outros, um dos persona-gens diz aos outros dois: �Lembrem-se: o enxofre, as chamas, a grelha. Tudo bo-bagem. Não há necessidade alguma de grelhas: o inferno são os outros�3.

Quando a palavra provém do ódio em vez do amor, pode transformar a vida num inferno. Existem muros domésticos que se assemelham ao quarto descrito por Sartre; o teatro aqui espelha de perto o que acontece na vida.

A comunicação pode tornar-se, por-tanto, uma estrada que conduz ao infer-no, mas, por si mesma, se usada bem, é a estrada que permite reentrar no paraíso perdido. Tento explicar em que sentido.

Todos queremos a unidade. Depois da palavra felicidade, talvez não exista outra que responda a uma necessidade tão impelente do coração humano como a palavra unidade. Nós somos �seres

Þ nitos, capazes de inÞ nito� e isto quer dizer que somos criaturas limitadas que aspiramos superar o nosso limite, para sermos �de algum modo tudo�. Não nos resignamos em ser somente o que somos. É algo que faz parte da estrutura mesma de nosso ser.

Sob esta luz, que não é somente moral, mas metafísica, pode-se reler a aÞ rmação de Sartre �o inferno são os ou-tros�. Os outros, os diferentes de mim, são aquilo que eu não sou. E não tanto por terem alguma coisa que eu não te-nho, mas por serem alguma coisa que eu não sou. Simplesmente porque são. Com o seu simples existir eles me recordam o meu limite, que eu não sou tudo. Ser um indivíduo particular, distinto e diverso de todos, signiÞ ca, de fato, ser o que sou e não ser tudo o resto que me circunda.

Ser eu mesmo comporta a terrível consequência de não ser outra coisa se-não eu mesmo, isto é, um pequeníssimo istmo de um continente, ou deÞ nitiva-mente uma minúscula ilhazinha, cerca-da de todos os lados pelo grande mar do meu não-ser. Os outros então são vora-gens de não-ser que se abrem ameaça-doramente para mim tudo ao meu redor. Daqui a dizer que os outros são o meu inferno, numa visão puramente Þ losóÞ -ca e por acréscimo atéia, não há mais do que um passo.

Daí a importância da comunicação. Quando nasce do amor, ela é o único meio possível para preencher essas �vo-ragens� que se abrem ao nosso redor, é um lançar pontes para as outras ilhas até alcançar enÞ m, de ilha em ilha, a �terra Þ rme� que é Deus.

3 J.-P. Sartre, Porte chiuse,sc. 5 (Gallimard, Paris 1947, p. 93.

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O modelo trinitário, porém, não jul-ga apenas a comunicação profana, mas igualmente, e em primeiro lugar, a sagra-da. Não basta anunciar Cristo, é neces-sário ponderar �por que� se o anuncia. A experiência me fez descobrir que é possível anunciar Jesus Cristo por moti-vos que pouco ou nada têm a ver com o amor. Pode-se anunciá-lo por dever ou por ofício, ou para encontrar, no au-mento numérico dos adeptos, uma legi-timação para a própria pequena igreja ou seita, especialmente se for de fundação própria ou recente; pode-se anunciar o evangelho pela convicção de que quando ele tiver chegado aos conÞ ns da terra e o número dos eleitos estiver completo, o Senhor voltará para concluir a história, segundo sua promessa (cf. Mc 13,10).

Alguns desses motivos não são de se reprovar, mas sozinhos não bastam. Falta aquele genuíno amor e compaixão pelos homens que é a alma do Evange-lho. O Evangelho não se transmite senão pela onda do amor. Se não amamos as pessoas que temos à frente, as palavras se transformam facilmente em pedradas que ferem. Jonas tinha ido pregar a Ní-nive, mas não amava os ninivitas. Ele mostra-se visivelmente mais satisfeito quando pode gritar: �Ainda quarenta dias e Nínive será destruída!�, do que quando deve anunciar o perdão de Deus e a salvação de Nínive. �Tu tens pena - diz Deus a Jonas - daquele pé de ma-moneira... e eu não deveria ter pena de Nínive, a grande cidade, na qual vivem mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem distinguir entre a mão direita e a mão esquerda?� (Jn 4,10). Deus teve

mais trabalho em converter o pregador do que todos os demais ouvintes

3. COMUNICAÇÃO DE NOTÍ-CIAS E COMUNICAÇÃO DE EXISTÊNCIA

Até agora falei do motivo da comu-nicação. Não menos importante é o que o modelo trinitário nos diz a respeito do conteúdo e do estilo da comunicação. Existem dois tipos fundamentais de co-municação: uma comunicação de ideias e uma comunicação de vida. Em Deus, o conceito de relação é inseparável da-quele de geração, e o título de Logos é inseparável daquele de Filho. O Pai não comunica ao Filho somente o seu pensa-mento, mas todo o seu ser e a sua natu-reza divina.

Também no âmbito humano existe uma comunicação de ideias e de pensa-mento, que se dá pela comunicação ver-bal, e uma comunicação de existência que se realiza, Þ sicamente, na geração carnal e, espiritualmente, na criação ar-tística e no anúncio do Evangelho. Na esfera humana os dois tipos de comuni-cação são distintos, ou pelo menos não contemporâneos. Em Deus são unidos e simultâneos. A comunicação de idéias se dirige principalmente à mente, a de existência ao coração. A mente represen-ta para nós a objetividade, o coração a subjetividade.

Existem âmbitos da comunicação, como a crônica, os noticiários, a que genericamente chamamos de �informa-

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ção�, que devem primar pela objetivi-dade. Não é o caso de entrar aqui numa crítica à frequente ausência desta preo-cupação na mídia moderna, mas alguma coisa é preciso dizer. Na situação atual, condicionada pela corrida para chegar primeiro e vencer a concorrência, o que os meios de informação buscam com afã, salva alguma louvável exceção facil-mente reconhecível, é o furo jornalístico. À mídia não interessa tanto a verdade, quanto a novidade.

Eu Þ z, como dizia, uma experiência pessoal desse estado de coisas, em se-guida à minha pregação na Basílica de São Pedro, na última Sexta-feira Santa, e vale a pena falar disso, não para me jus-tiÞ car (com vocês creio não ser necessá-rio), mas porque o incidente mostra, de modo quase exemplar, como funcionam os meios de comunicação de massa e o preço que estamos pagando para nos be-neciciar de uma informação global e em tempo real.

Aproveitando do fato que, neste ano, a Páscoa hebraica caía na mesma semana da Páscoa cristã, tinha decidido fazer chegar aos judeus uma saudação da parte dos cristãos, justamente no con-texto da Sexta-feira Santa que, para eles, sempre foi ocasião de compreensível so-frimento.

Poucos dias antes da Sexta-feira Santa, recebi uma carta de um amigo judeu italiano (a carta existe de fato, não é uma Þ cção literária minha!); ele comparava com certos aspectos do anti-semitismo os contínuos ataques à Igreja e ao papa, em particular o uso do este-reótipo e a transposição da responsabili-

dade individual para a coletiva, no caso da pedoÞ lia do clero. Decidi então, com o consentimento do interessado, citar a carta na pregação, porque me parecia um gesto de grande nobreza da parte de um judeu, exprimir, num momento como este, sua solidariedade com o líder da Igreja católica, um gesto que, eu supu-nha, encorajaria os cristãos a fazerem o mesmo, em circunstâncias parecidas, com o povo judeu.

Nem eu nem o amigo judeu pensá-vamos minimamente no antisemitismo da Shoa [holocausto], mas no antisemi-tismo como atitude cultural, bem mais antigo e mais difundido que a Shoa. O antisemitismo, por exemplo, da questão Dreyfus, ou aquele que consiste em fazer recair sobre todo o povo judeu, inclusi-ve o atual, a responsabilidade pela morte de Cristo. (Caso típico, justamente, de transposição da responsabilidade indivi-dual para a coletiva!).

Assim entendida, a comparação não me parecia tão absurda como se procu-rou fazer crer. Poucas semanas antes, um jornalista leigo, Ernesto Galli della Loggia, na primeira página do �Corrie-re della sera�, tinha denunciado estar se difundindo, na cultura moderna, um verdadeiro e próprio �anticristianismo�. Aliás, são muitos a pensar que a campa-nha da mídia, mais do que por amor e piedade com as vítimas da pedoÞ lia, es-teja sendo movida pela vontade de pôr a Igreja de joelhos. Algo que faz lembrar o �Ecrasez l�infame� [esmagai o infame] de Voltaire. O ex-prefeito de Nova York, Ed Koch, num artigo do �The Jerusalém Post�, escreveu: �Creio que os contínuos

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ataques da parte da mídia à Igreja Cató-lica e ao Papa Bento XVI tenham-se tor-nado manifestações de anti-catolicismo. A sequência de artigos sobre os mesmos eventos não tem mais, a meu ver, a Þ na-lidade de informar, mas simplesmente de punir�.

Isto não signiÞ ca minimamente si-lenciar ou subestimar a gravidade dos casos de pedoÞ lia do clero. Na mesma homilia, embora não fosse o tema princi-pal do discurso, referia-me à �violência contra as crianças, em que se mancharam seguramente não poucos membros do clero�. Numa pregação à Casa Pontifícia no Advento de 2006 havia até proposto de convocar para um dia de jejum e pe-nitência em solidariedade às vítimas da pedoÞ lia, proposta que teria ampla res-sonância na imprensa.

Como foi possível que, a partir des-tas premissas bem intencionadas, se de-sencadeasse uma tempestade midiática das proporções que conhecemos? A ex-plicação foi dada por um rabino judeu uma semana depois do incidente, no di-ário mais difundido em Israel, �The Je-rusalém Post� (11.04.2010), num artigo intitulado �Somos maus ouvintes�. Vale a pena citar literalmente as passagens principais, pois mostram que, entendida corretamente, minha pregação não cons-titui um passo atrás no diálogo entre ju-deus e cristãos, mas um passo à frente.

Devo pensar, escreve o rabino Alon Goshen Gottstein, que nenhum porta-voz judeu que criticou a aÞ rmação do prega-dor, leu jamais a sua homilia. Muito pro-vavelmente reagiram a um jornalista que pedia explicação de certa frase, e deram

uma resposta sobre o mérito daquela fra-se. Extrapolando a citação de um texto mais extenso, os jornalistas estabelecem os termos do problema, os porta-vozes judeus respondem, nasce uma história, cria-se um escândalo...

A homilia de Sexta-feira Santa foi por séculos o momento mais temido dos judeus. Depois de escutar essa homilia, a multidão saía pelas estradas e os judeus temiam por suas vidas. As representa-ções teatrais da Paixão da Sexta-feira Santa eram fonte constante de violência contra os judeus...

Com esse retrospecto, surpreende constatar o que Padre Cantalamessa fez dessa ocasião. Ele se vale desse momen-to, na basílica de São Pedro, em presen-ça do papa, para augurar �Boas festas de Páscoa� aos judeus! Mas o pregador não para aí: saúda a nós judeus com palavras tiradas da Mishna, citadas no Hagadda, o mais popular dos textos judaicos. Pensar nos judeus como irmãos de fé, durante a liturgia papal da Sexta-feira Santa, é fruto de décadas de trabalho no campo das relações judeu-cristãs. Que tenha sido podido dizer isso tão naturalmente e quase por acaso, essa é a verdadeira notícia...

Não percebemos tudo isto porque Þ camos somente na comparação entre os violentos ataques contra a Igreja e os per-petrados contra os judeus. E mesmo nes-te caso deixamos de escutar por inteiro a voz do judeu citado pelo Padre Cantala-messa. �Só há uma resposta apropriada a tudo isto: reconhecimento do signiÞ cado sereno e profundo de quanto aconteceu e dizer: Obrigado, P. Cantalamessa!�.

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P. Cantalamessa pediu as devidas escusas, mas nós também devemos apre-sentar nossas escusas por não termos escutado a mensagem como foi pronun-ciada, por termos permitido à mídia criar uma falsa história, ignorando a verdadei-ra. A batalha contra as apresentações se-letivas e superÞ ciais de nossa mensagem religiosa é uma batalha comum, em que as vozes das pessoas pensativas de todas as religiões devem colaborar. �O tema da homilia do pregador era contra a violên-cia. Estes últimos fatos nos mostram que também a má escuta pode ser fonte de violência�.

4. A COMUNICAÇÃO SUBJETIVA Encerro este parêntesis necessário

sobre a comunicação de notícias e entro na que mais me interessa aqui, ou seja, a comunicação em que prevalece a sub-jetividade, a comunicação de existência. Tal é a arte em todas as suas manifesta-ções, visivas e auditivas. A arte abstrata também não pode prescindir da subjeti-vidade, da comoção; esta, aliás, se torna a arte mais subjetiva que exista, mas em sentido negativo, quando o artista fala somente para si mesmo.

Comunicação subjetiva é, por ex-celência, a pregação cristã em todas as suas formas, não excluído o catecismo. �A pregação cristã, disse Kierkegaard, é comunicação de existência, não de dou-trina�4. Talvez, dizendo melhor: é comu-nicação de existência, mesmo quando

é comunicação de doutrina. São Paulo estava convencido disto a tal ponto de comparar o anúncio do Evangelho com a geração carnal, mediante a qual alguém se torna pai: �Ainda que tenhais dez mil pedagogos em Cristo, escreve aos corín-tios, não teríeis muitos pais, pois fui eu que vos gerei em Cristo pelo Evangelho� (1Cor 4,15).

Daí a importância que a comunica-ção religiosa fale ao coração, não apenas à mente. Deus, se diz na Bíblia, �escreve no coração� (Jr 31,33) e �fala ao cora-ção� (Os 2,16); a seus profetas recomen-da que �falem ao coração de Jerusalém� (Is 40,2). A crítica que mais tenho ou-vido de pessoas que acabavam de ouvir um discurso, uma prédica, uma homilia é: �Não toca o coração, fala só à mente�.

Kierkegaard critica o costume de aproximar-se da palavra de Deus, estu-dar-lhe o texto, o contexto, as passagens paralelas, as fontes, as variantes críticas e tudo o resto, sem nunca deixar-se in-terpelar pessoalmente por ela. Isto, diz, equivale a estudar a moldura, a forma, o material de que é feito um espelho, sem nunca olhar-se no espelho. Priva-se o es-pelho de sua verdadeira função!

Quereria acenar para outro fator que impede chegar ao coração dos ouvintes, além da atitude impessoal e distante em relação à palavra de Deus: o ser abstrato. A linguagem abstrata, feita só de concei-tos, fala à mente, mas não ao coração. Isto pode justiÞ car-se e ser necessário numa aula universitária ou numa confe-rência, não na pregação ao povo, sobre-tudo quando é feita através dos meios de comunicação social. É o que aprendi em 4 S. Kierkegaard, Diário IX A,207.

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anos de convivência com a televisão. Na pregação também os conceitos

abstratos precisam ser revestidos de ima-gens, símbolos, metáforas, parábolas, histórias vividas, referências concretas à vida e aos interesses do público. A pa-lavra precisa, sempre de novo, �fazer-se carne�. É o que caracteriza a linguagem da Bíblia e brilha ao máximo no falar de Jesus por parábolas. Se, em seu tempo, existisse a televisão, Jesus teria sido um pregador televisivo ideal! A experiência demonstra que o que o ouvinte recorda de uma pregação não é, no mais das ve-zes, uma idéia, mas um exemplo, uma imagem, uma história, e é graças a elas que recorda também a idéia.

Santo Agostinho explicou magis-tralmente em que consiste a força da imagem e da metáfora. �Tudo aquilo - escreve - que é sugerido por símbolos impressiona e inß ama o coração muito mais vivamente do que poderia fazê-lo a mesma verdade, se nos fosse apresenta-da sem os misteriosos revestimentos das imagens... A nossa sensibilidade demo-ra a inß amar-se enquanto Þ car ligada a realidades puramente concretas, mas se for orientada para símbolos tirados do mundo corpóreo e dali transportada para o plano das realidades espirituais signiÞ -cadas em tais símbolos, ela adquire viva-cidade, já pelo simples fato dessa passa-gem, e se inß ama tanto mais como uma tocha em movimento�5.

Não posso eximir-me num discurso sobre a comunicação de confrontar-me com a idéia daquele que desenvolveu a

reß exão mais original e mais aprofun-dada sobre a mídia, autor de alguns dos slogans mais repetidos no mundo atual, como �a vila global� e �o meio é a men-sagem�6. ReÞ ro-me naturalmente ao ca-nadense Marshall McLuhan. O encontro é facilitado pelo fato que McLuhan, con-vertido ao catolicismo e homem profun-damente religioso, cultivou ele mesmo um grande interesse pela comunicação sacra e se expressou em diversas ocasi-ões sobre os problemas a ela conexos.

Começo acenando para alguns pon-tos em que teria reservas ao seu pensa-mento, para depois então ocupar-me com uma aÞ rmação fundamental com a qual ele chega, de vertente diversa, a uma verdade fundamental para a teologia e a Igreja.

São conhecidas algumas aÞ rmações paradoxais de McLuhan, como aquele que do ponto de vista da mensagem não faz diferença que se publiquem livros bons ou maus, que se transmitam Þ lmes e espetáculos bons, ou espetáculos maus e violentos. Para ele, de fato, a �mensa-gem� não indica o resultado imediato provocado pelo meio, mas o tipo de co-municação na qual se insere, o sentido que interessa (se o ouvido, a vista, ou ambos), logo a parte do cérebro que ati-va. Numa palavra, a causa formal, não a causa eÞ ciente.

Desse modo ele considera somente os efeitos a longo prazo, em onda longa, de um fenômeno; descuida completa-mente os efeitos a curto prazo; considera

5 S. Agostino, Ep. 55, 11, 21.

6 O slogan se encontra em McLuhan, Understanding Media. The Extensions of Man, Mc Graw Hill, N. Y. 1964.

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o efeito da mídia mais sobre uma cultura e uma época do que sobre a pessoa, sem levar suÞ cientemente em conta que são os efeitos sobre as pessoas que determi-nam uma cultura e uma época. McLuhan é o homem dos �megatrends�.

Essa mesma impressão se tem ao ler suas numerosas intervenções sobre os problemas da comunicação religiosa. Todas as entrevistas que deixou sobre estes temas, e reunidos agora num volu-me indispensável também em italiano7, parecem um diálogo entre surdos. O in-terlocutor formula problemas especíÞ cos e atuais sobre a transmissão da fé, a li-turgia do pós-Concílio, o uso da mídia por parte da Igreja, McLuhan dá sempre respostas �epocais�.

Também o famoso slogan �o meio é a mensagem�, a meu entender, deve ser tomado por aquilo que é: uma aproxima-ção à verdade, não a sua deÞ nição. É um pouco como certos quadros panorâmicos que precisam ser vistos à distância; se alguém se aproxima e os olha de perto, já não lhes percebe bem o signiÞ cado. Traz à mente um outro slogan famo-so, o de Buffon, �o estilo é o homem�. Pergunto-me se, de fato, não se pode ver uma relação entre as duas deÞ nições e se McLuhan não teria podido dizer com igual eÞ caz ambiguidade: �o homem é a mensagem�.

Deixo aqui estas observações crí-ticas que outros podem formular com bem mais competência e chego à aÞ rma-ção que, como teólogo, não posso senão partilhar e abraçar de todo o coração.

McLuhan aÞ rma que em Jesus Cristo �não houve diferença entre o meio e a mensagem: de fato é o único caso em que se possa dizer que o meio e a mensa-gem se identiÞ cam perfeitamente�8.

Desse modo o autor chega, por um caminho diverso, a uma conclusão de fundamental importância para a cristolo-gia. Equivale à deÞ nição clássica de que �em Cristo o revelador é a revelação�; em linguagem joanina, �o caminho� é, ao mesmo tempo, �a verdade e a vida� (Jo 14,6). Nisto está a diferença entre Cristo e qualquer outro revelador. O pro-feta é o meio, mas não a mensagem; seus discursos são introduzidos com a fórmu-la: �Assim fala o Senhor�, ou �oráculo do Senhor�, nunca pela fórmula �eu vos digo� que, ao invés, é a constante de Je-sus.

Espero que estas minhas reß exões sobre a comunicação, no dia após a festa de Pentecostes, ajudem a orientar-se no grande mar da comunicação de massa atual e, sobretudo, sirvam para orientar-nos sobre o melhor modo de fazer che-gar aos homens de hoje a grande, eterna mensagem do Evangelho de Cristo.

Trad. Adelino G. Pilonetto

7 Cf. M. McLuhan, La luce e il mezzo. Riß essioni sula religiosne, Armando Editore, Roma 2002. 8 McLuhan, op. cit. p. 117.