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o BOATO: COMUNICAÇAO PATOLOGICA SIEGFRIED HOYLER "... e un venticeIlo, un'auretta assai gentile, che insetl6ibile, sottile, leUermente, do1cemenle, inco- mineis, incomincia a susurrar ..." - Da ária La Ca- lunnia de 11 Barbiere di Siviglia de ROSSINI. Do vasto capítulo das comunicações, convém têrmos em mente, a fim de diagnosticá-las e, mais do que isso, a fim de evitá-las, as comunicações malsãs ou patológicas. Dentre elas pontificam pela freqüência - e não raro pela gravidade das conseqüências - os boatos. Entendemos como boato a notícia que, embora não corres- ponda à realidade, se apresenta de difícil comprovação e, além disso, de grande interêsse, o que determina sua intensa circulação eritre as pessoas. GoRDONW. ALLPoRT, professor de Psicologia da Universidade de Harvard, inicia seu livro "The Psychology of Rumor" - do qual ex- traímos a maioria dos conceitos expostos neste artigo - afirmando: "Grande parte da conversação da sociedade é constituída de intercâmbio de boatos". Em nossa conversa cotidiana recebemos e transmitimos vasta lista de boatos, nem sempre inofensivos. Chamare- mos de boato ocioso aquêle que preenche nossos diálogos e cujo objeto não é outro senão trocar gentilezas com nossos amigos. Ao passar um boato ao amigo, não pre- SIEGFRIED HOYLER - Gerente de Relações Industriais e Públicas da Alumí- nio do Brasil S.A. e Presidente da ABAPe - Associação Brasileira de Admi- nistradores de Pessoal.

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o BOATO:COMUNICAÇAO PATOLOGICA

SIEGFRIED HOYLER

" ... e un venticeIlo, un'auretta assai gentile, cheinsetl6ibile, sottile, leUermente, do1cemenle, inco-mineis, incomincia a susurrar ..." - Da ária La Ca-lunnia de 11 Barbiere di Siviglia de ROSSINI.

Do vasto capítulo das comunicações, convém têrmos emmente, a fim de diagnosticá-las e, mais do que isso, a fimde evitá-las, as comunicações malsãs ou patológicas.

Dentre elas pontificam pela freqüência - e não raro pelagravidade das conseqüências - os boatos.

Entendemos como boato a notícia que, embora não corres-ponda à realidade, se apresenta de difícil comprovação e,além disso, de grande interêsse, o que determina suaintensa circulação eritre as pessoas. GoRDONW. ALLPoRT,professor de Psicologia da Universidade de Harvard, iniciaseu livro "The Psychology of Rumor" - do qual ex-traímos a maioria dos conceitos expostos neste artigo -afirmando: "Grande parte da conversação da sociedadeé constituída de intercâmbio de boatos".

Em nossa conversa cotidiana recebemos e transmitimosvasta lista de boatos, nem sempre inofensivos. Chamare-mos de boato ocioso aquêle que preenche nossos diálogose cujo objeto não é outro senão trocar gentilezas comnossos amigos. Ao passar um boato ao amigo, não pre-

SIEGFRIED HOYLER - Gerente de Relações Industriais e Públicas da Alumí-nio do Brasil S.A. e Presidente da ABAPe - Associação Brasileira de Admi-nistradores de Pessoal.

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tendemos fazer mais do que aquilo que fazemos numinocente "bom dia, que bela manhã não é verdade?"

Contudo, a prática social que nada expressa em particularsalvo vagos sentimentos de amizade com o nosso inter-locutor, que susbtitui um incômodo e embaraçoso silêncio,é tão somente uma das formas em que se processa a trocade boatos. Há muitos boatos que estão longe de serociosos: são até profundamente intencionais. Apontamfins determinados e servem a importantes objetivosemocionais. A natureza exata dêsses fins não o saberiadizer nem o transmissor nem o receptor do boato. Sabemtão somente que o boato lhes é interessante, lhes convémde alguma maneira. De forma até certo ponto misteriosa,parece acalmar-lhes uma incerteza intelectual e umaansiedade pessoal.

Os boatos, portanto, variam muito entre si. Às vêzes,vemo-Ios preencherem com um pouco de tempêro umaconversa ociosa, outras desencadear torrentes de violência.Às vêzes seu âmbito é restrito, outras vêzes são milhõesque ouvem e transmitem os boatos. Algumas vêzes o boatosurge e fàcilmente se desgasta, outras desafia o tempo,cristalizando-se em lendas imorredouras. Quer seja, porém,fugaz ou duradouro, limitado OU muito extenso, o fato éque o boato, como fenômeno bàsicamente social, existe naintimidade de qualquer cultura.

Os imperadores da antiga Roma reconheciam a impor-tância dos boatos a ponto de nomear "delatores" cujamissão era misturar-se com a "gente da rua" e levar aopalácio imperial a voz do povo. As histórias do dia eramtidas como excelente barômetro dos sentimentos popu-lares. A qualquer momento, os "delatores" podiam -sendo necessário - lançar uma contra-ofensiva de boatospara atender aos objetivos dos imperadores. Logo se vêque a guerra psicológica não é tão moderna assim!

O episódio do incêndio de Roma, no ano 64 de nossa era,proporciona-nos exemplo interessante. Segundo a análiseque CHADWICKefetuou das provas históricas, a plebe

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admitiu e difundiu o boato de que NERO - soberano cer-tamente não muito popular - se não havia iniciado oincêndio de Roma, havia pelo menos cometido a aberraçãobárbara de se deleitar com êle, compondo uma ode àschamas devoradoras. De nada valia a NERO o fato de queo boato fôsse infundado. Em defesa própria, êle lançoumão do recurso do contraboato, fazendo circular a notíciade que os cristãos, talvez ainda mais aborrecidos do queêle, haviam ateado fogo à cidade. Essa versão se mostrou,na realidade, ainda mais sintonizada com os preconceitose temores correntes. Bem poderia ter sido dos aborrecidoscristãos um ato dessa natureza e, assim, voltou-se imedia-tamente contra essas vítimas expiatórias a fúria da plebeque esqueceu por um momento sua hostilidade em relaçãoa NERO.

As situações de guerra apresentam condições ótimas paraa disseminação de boatos. A natural reserva das autori-dades em revelar planos táticos e estratégicos, a dúvidageneralizada de que os números e fatos apresentados pelaimprensa correspondam à realidade, o natural estado deexcitação de tôda a população, a maior integração da po-pulação em vista de perigo iminente, a infiltração inimigae muitos outros fatôres, fazem das situações de guerraocasiões propícias para a origem e o desenvolvimento deboatos.

Esquecidas as diferenças na arte bélica, as duas grandesguerras têm extrema semelhança do ponto de vista dosboatos. Os tipos de boatos que circularam na Guerra de14 a 18 parecem ter permanecido apenas submersos, atéque a situação de pânico e ansiedade do período de 39 a 45voltou a trazê-los à superfície. Tomemos, por exemplo,o boato da língua e do sêlo postal, cujo conteúdo era maisou menos o seguinte: um prisioneiro norte-americano -em campo de concentração alemão na Primeira Guerra,e em campo japonês na Segunda - enviou uma carta àfamília, que não continha nenhuma informação particulara não ser a de que fôsse guardado o sêlo do envelope.Como o soldado jamais havia mostrado interêsse por fila-

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telia, surpreendeu à família o estranho pedido, levando-aa investigar o assunto. Ao retirar cuidadosamente o sêlo,estava escrito no envelope, debaixo da estampilha, queo inimigo havia cortado a língua ao pobre homem. Êsseboato absurdo circulou em ambas as guerras, desconsi-derando os fatos fortemente contraditórios de que as cartasdos prisioneiros de guerra não levavam sêlo e de que aextirpação da língua teria causado; quase certamente, amorte ao soldado. Os boatos de que as tropas inimigasenvenenavam os poços de água em suas.retiradas ressurgeem cada guerra, assim como as histórias de atrocidadescometidas sempre pelos inimigos,pois é claro que bárbarossão sempre os do outro lado, cruéis são sempre os inimigosque amputam braços às crianças e seios às mulheres.

Outra história típica de boato de guerra é a do cego daRua Knesebeckstresee. Certa noite, nessa rua residencial,com adjacências levemente bombardeadas, um cego tro-peçou numa jovem que acabava de sair de seu escritórioe permanecia detida pelos sinais de trânsito. Era homemde meia idade, bem trajado e de óculos escuros. Vestiaum casaco e ia tateando o caminho com seu bastão. Tinhana outra mão uma carta. Num braço levava o braceleteamarelo marcado com a pirâmide de bolas negras quetodo cego ou surdo deve levar nas ruas da Alemanha.O homem se desculpou com a mulher por ter esbarradonela. Ela não deu importância ao fato e perguntou-lhe sepodia ser-lhe útil de alguma forma. Respondeu êle que,de fato, podia, e lhe entregou uma carta pedindo que lheindicasse como fazer para chegar ao enderêço escrito noenvelope. Como a carta estava dirigida a pessoa residentea várias quadras de distância, na mesma rua, e· a mulherlho dissesse, suspirou o cego: "Ah, Deus! Tanto que andeihoje!" E concluiu: "Não poderia a senhora entregar acarta .por mim?" Ela lhe respondeu que sim, que o fariacom muito prazer, principalmente porque iria passar dequalquer forma por êsseenderêço. O cego lhe agradeceumuito, os dois se despediram e êle se afastou, tateandocom o seu bastão, em direção oposta. A jovem havia

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andado cêrca de vinte metros, quando lhe ocorreu verificarse o cego seguia seu caminho sem dificuldades. Sim, se-guia, e bem. Bem demais, pois êle caminhava a largospassos, com o bastão debaixo do braço. Sim, era êlemesmo, não podia ser outro. Em vez de entregar a carta,a mulher levou-a ao quartel de polícia e contou comohavia chegado a seu poder. A polícia foi ao enderêço indi-cado na carta e encontrou ali dois homens e uma mulher,e também uma quantidade de carne que, inspecionadapor peritos, verificou-se, posteriormente, ser humana ..A carta dizia simplesmente: "Esta é a última que temando hoje".

Essa história, como muitas outras, é pura fábula. AfirmaALLPORT que, todos os alemães de Berlim que êteconheceu tinham-na ouvido, e que 9570 dentre êles acre-ditaram nela. Freqüentemente, ainda, indivíduos que dis-cutiram o caso com ALLPORTderam-lhe a entender, comextrema segurança, que conheciam pessoalmente a mulherque estêve a ponto de ser vendida a alguns marcos porquilo. Gordinha, porém, muito bonita, assim a descreviamalguns.Durante algum tempo, prossegue ALLPORT,não haviaberlinenses que não cressem na história do cego, por duasrazões: em primeiro lugar, seria difícil imaginar-se algoinverossímil nos dias finais da Segunda Grande Guerrae naqueles que os sucederam imediatamente; e, segundo,muitos berlinenses de mais idade recordavam um prece-dente histórico: em 1925, FRITZHAARMAN,de Hannover,segundo foi sobejamente conhecido em tôda Europa, foiexecutado por haver assassinado várias dezenas de rapazese por haver vendido seus pernis ao público, confessandomesmo haver esquartejado e vendido muitas dezenas maisdo que as mencionadas na instrução do processo, não es-tando certo se trinta ou quarenta. Dizem que quase tôdaa população de Hannaver se tornou vegetariana por váriosanos .após êsse fato. Essa história reviveu duas décadasmais tarde, na imaginação popular, na forma de intensoboato.

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AS CAUSAS DOS BOATOS

Não são, porém, somente as situações de guerra as quefecundam o solo para a germinação de boatos. Êsses nãorespeitam nem mesmo o campo dos eruditos e cultos:mesmo a fria ciência paga tributo às suas deforma-ções e falsificações, segundo procurou comprovar oDr. G. SIMPSON,do Museu Norte-Americano de HistóriaNatural, em artigo intitulado "História de uma NotíciaCientífica", aparecido na revista "Science" em 1940: "Em21 de agôsto de 1937, o Museu Nacional dos EstadosUnidos publicou um boletim de minha autoria, sob otítulo de "Fort Union de Crazy Mountain Field, Montana,e sua fauna mamífera", de caráter sumamente técnico.Essa publicação, de 287 páginas, descrevia a geologia e apaleontologia dos extratos médio e superior paleocenos dazona de Montana. Segundo antiga prática, a Administra-ção do Museu entregou à imprensa um boletim sinóptico,para fins de divulgação científica. Era um compêndiocorreto e, ao mesmo tempo, de texto fàcilmente compreen-sível. A quarta parte dessa versão tratava dos mais antigosprimatas conhecidos, incluídos nas faunas descritas no bo-letim. Como no boletim original, destacava-se que êsses nãose achavam em linha direta de ascendência nem com osmodernos primatas, nem com o homem, presumindo-seque fôssem, porém, representantes muito antigos domesmo e vasto grupo de mamíferos. As publicações ressal-tavam que não era eu o descobridor dêsses antigosprimatas.

"Algum tempo depois, o Museu colecionou as versões doboletim publicadas por 93 diferentes periódicos. Verifi-

. cou-se, então, que até aquêles que reimprimiram o boletimsem cortes nem condensações, cometeram deslizes e erros,dentre os quais a informação de que os fósseis em questãoeram de 70 milhões de anos, o que era claramente umdisparate. A "Associated Press" utilizou o boletim doMuseu como base para um artigo que, substancialmentealterado, foi publicado em cadeia por 34 periódicos. Sua

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tônica consistia na seguinte mensagem: 'O homem nãodescende do macaco; descende talvez de um animal deaproximadamente dez centímetros de comprimento, quehabitava as copas das árvores e que se constituiu emremoto tataravô de todos os mamíferos que habitam hojeo globo terrestre'. Prosseguia o artigo insinuando que euafirmara que o primeiro homem viveu talvez nos EstadosUnidos, e não na Asia. Os títulos eram curiosos e ate es-candalosos."

A notícia original de SIMPSON, como aliás tôda a longasérie de hipóteses evolucionistas, tinha de ser consideradanaturalmente com muita reserva. Mas o sensacionalismoda imprensa popular criou nesse caso boatos de ampladivulgação para satisfação provável dos que fizeram doevolucionismo o seu credo e têm firmada no macaco asua fé.

Os boatos são freqüentemente usados também como estra-tégia, nos muitos ramos da política, desde a interna deuma emprêsa, até a internacional: são boatos que reduzemo valor e o prestígio de outro grupo ou nação; são boatosque criam ameaças e propõem vinditas; são boatos queridicularizam ou hostilizam, segundo o sabor malsão deseus urdidores.

Ainda recentemente, ouvíamos brilhante conferencistaque citava, com pequena modificação, a tradicional histó-ria das "Indústrias Michelin" francesas, segundo a qualuma operária da emprêsa, traindo o baixo grau de moraldo grupo de empregados teria dito: "Nasci na materni-dade da Michelin; fui criada numa creche da Michelin;depois fui para o jardim de infância e para as escolas daMichelin. Conheci meu noivo num cinema da Michelin,casei-me na igreja da Micbelin, e moro numa casa daMichelin. Hoje luto intensamente para não ser enterradanum cemitério da Michelin".

A pequena modificação dessa história, apresentada pelaconferencista, era que, segundo a versão francesa, um

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operário americanodas fábricas Pullmerui reproduzia exa-tamente o mesmo monólogo, acrescentando apenas, deacôrdo com o sabor picante francês, que um dia, depoisda morte, o americano "temia ir parar num infernoPullmann" .

Muitos boatos surgem como conseqüência de frustrações.Determinada emprêsa possuía uma prática de administra-ção de salários segundo a qual deveria haver aumentogeral cada vez que o custo de vida se elevasse em x%.Êsse nível de x% havia já sido ultrapassado. A emprêsanão se julgava em condições de dar continuidade à suaprática. O grupo se sentia frustrado. Surge, então, umboato intensamente difundido de que os gerentes haviamaumentado seus próprios salários em prejuízo dos traba-lhadores.

Outros boatos são causados pelo mêdo. Uma emprêsaestava empenhada num processo de racionalização. A pro-dutividade, com o auxílio de algumas máquinas já adqui-ridas, seria elevada em 20% e, portanto, a mesma pro-dução seria alcançada com menos 20% de mão-de-obra.Todos se sentiam inseguros e a tensão aumentava. O boatoapareceu para definir a situação: haveria dispensa emmassa. A companhia se apressou a fazer o que deveria terfeito há muito tempo. Comunicou que estava prevista umagrande expansão, que daria lugar não só aos 20% exce-dentes da mão-de-obra, mas a mais 30% adicionais aserem recrutados.

Outros boatos são causados por profissionais do boato. Nãodesconhecemos, por certo, a atuação dos profissionais ou

. práticos, criadores de mal-estar do operário. Existe umaminoria que se compraz, com rara mestria, em apro-veitar-se de situações de emergência, criando boatos, frus-trando o grupo, cultivando animosidades, urdindo grevese aproveitando-se teatralmente da liberdade que a demo-cracia lhes outorga, com finalidades e interêsses própriose inconfessáveis.

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A. INTENSIDADE DOS BOATOS

Voltando mais uma vez a ALLPORT,encontramos em seulivro exposição sôbre as condições básicas necessárias paraque o boato prenda a atenção das pessoas, ou, para usara expressão corrente, "para que o boato corra": em pri-meiro lugar, o assunto deverá revestir-se de certa impor-tância, tanto para aquêle que transmite o boato, comopara aquêle que o escuta; e, segundo, os fatos reais deverãoestar revestidos de certa ambigüidade. Essa ambigüidadepoderá ser criada pela natureza contraditória dos fatos,pela desconfiança em relação às notícias, por tensõesemocionais que tornem o indivíduo capaz de aceitar osfatos apresentados no noticiário oficial, mas, acima detudo, pela ausência ou precariedade de notícias exatas.Daí afirmarmos que a circulação de boatos é um atestadode deficiência nas comunicações, um sintoma da má qua-lidade das comunicações.

ALLPORTe POSTMANna obra citada chegaram a estabe-lecer uma lei que presidiria à intensidade de um boato.Assentaram assim a seguinte fórmula para medir a inten-sidade do boato:

i = a X b,

onde "i" representa a intensidade do boato, "a" representaa ambigüidade da notícia, que multiplica "b", a impor-tância da notícia. A relação entre importância e ambi-güidade não é, portanto, aditiva, mas multiplicativa, vistoque com importância ou ambigüidade = 0, não haveráboato.Segundo essa lei, por exemplo, não poderia esperar êxitoem sua tarefa o cidadão brasileiro que se propusesse atransmitir boatos relativos aos preços dos camelos noAfeganistão, uma vez que o assunto careceria completa-mente de interêsse para êle, assim como para outros bra-sileiros, embora fôsse verdadeiramente ambiguo para nós,pela falta de notícias que temos a seu respeito. A ambi-güidade, por si só, não é suficiente para lançar à circulaçãoum boato e mantê-lo em atividade. O mesmo é válido

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para a importância: se alguém recebe uma herança e temconhecimento de quanto monta, não dará crédito aosboatos que a exagerem.

Na guerra, os militares de alta patente são, em geral,menos sensíveis aos boatos do que os simples recrutas, nãoporque os acontecimentos: esperados lhes sejam menosimportantes, mas porque, em geral, estão mais a par dosplanos e estratégias do que êstes.

A luz dessa lei, voltemos ao incidente de Roma. Aceitandocomo certa a análise de CHADWICK, vamos encontrar emação a dinâmica típica do boato: a origem do fogo seignorava, donde a ambigüidade em tôrno do fato; o incên-dio na vida da população citadina era de importância ca-tastrófica. Alto grau de ambigüidade e alto grau de im-portância deram ao boato intensidade irresistível. O povoclamava tanto por uma explicação como pelo alívio depoder descarregar a culpa sôbre alguém. A insatisfaçãopré-existente contra o tirânico governante sugeria a fór-mula. Não obstante, logo o mêdo de seu poder e o hábitode prolongada obediência tornaram-no mais disposto avoltar sua vingança sôbre vítima mais débil e certamentemenos ofensiva, que era a jovem e desconhecida seita doscristãos. Lançou-se, assim, sôbre êles - como de restosôbre tôda a minoria indefesa, nos cambiantes períodosda história - o pêso da vingança da população frustradae enfurecida.

O assunto nos parece de extrema atualidade, porque, numacivilização em mudança - e em mudança nada pacífica_ a humanidade parece novamente vagar em busca dealguma minoria à qual possa atribuir todos os seus fra-cassos e vingar-se de tôdas as suas frustrações.

O episódio sugere outro ponto de interêsse. Embora tenhao boato relacionado com a culpa de NEROficado rechaçadode momento, êle reapareceu posteriormente. A composi-ção de uma ode musical às chamas de Roma se converteuem lenda histórica e mais tarde adquiriu fôrça de provér-bio. Se êle o fêz ou não, em nada aumenta ou diminui

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o boato. Incisivo e metaforicamente certo, êle permane-cerá ligado para sempre ao seu nome.

O boato mandou SÓCRATESà morte, acusado de perverteros jovens de Atenas e incitá-los à rebelião. Durante aIdade Média, as guerras religiosas, as cruzadas, eramsustentadas recorrendo-se a relatos exagerados, a milagres,feitiçarias e pilhagens.

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E OS BOATOS

A esta altura perguntaríamos preocupados: que porçãoda História deverá ser atribuída a reações de importantesgrupos sociais a boatos correntes? Cremos que grandeparte, visto que, até muito recentemente, a humanidadenão possuía meios de comunicação muito mais avançadosdo que aquêles que chegavam pelas vias normais do boato.

CABRALou COLOMBOnão possuíam meios de comunica-ção muito mais eficazes que os governantes da Trácia ouda Fenícia. Os diários, o telégrafo, o rádio e a televisãosão invenções recentes. Antes de seu advento, o povo sevia obrigado a depender das notícias de algum MARCOPOLO que voltava da Ásia, ou das notícias transpiradasda côrte, de algum VAZ DE CAMINHAque escrevia deterras distantes. Somente alguns estadistas e monarcasrecebiam despachos escritos e selados, e mesmo as fontesdêsses despachos não estavam, necessàriamente, imunesaos boatos.

Em nossos dias, existem modernas fontes de informação,como o correio, a imprensa, o telégrafo, o rádio, a televisãoetc., que têm diminuído muito as distâncias e supostamen-te também nossa submissão ao boato. Já não é necessárioque alguém viva ignorando o que acontece no mundo epoderíamos aventurar-nos a esperar que o curso da Histó-ria se fundasse hoje mais em questões de fato, e menosem crenças, crendices e boatos. Contudo, essa conclusãoseria precipitada. .Os fatos objetivos, relativos a guerras,catástrofes, experiências, explorações etc., tornaram-se doconhecimento geral muito mais ràpidamente do que em

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qualquer época pretérita; porém, se nossos horizontesse alargaram, as áreas de ambigüidade igualmente seestenderam.Pensar que fatos como a renúncia de JÂNlO QUADROS,ainvasão de Cuba, a Revolução da Hungria, o suicídio deGETÚLIOVARGAS,sem falar na vida privada dos atorese atrizes e em outros fatos políticos e sociais, sejam tra-zidos ao nosso conhecimento com perfeição, seria pecarpor otimismo ingênuo, porque, se foi dilatado o teatrodos acontecimentos, e com êle o nosso interêsse, continuasendo a nossa comunicação inadequada e ambígua. Vale-mo-nos ainda do boato para estruturar o nosso - agoraapenas muito mais vasto - ambiente. Ainda mais, apesardas modernas invenções, nossas necessidades emocionaise de conhecimento não se diferenciam das de nossos ante-passados no sentido de lograr explicação coerente paraos ainda insondáveis mistérios de nossa vida pessoal e,como êles, deixamo-nos guiar freqüentemente por lendase boatos.Na vida moral e religiosa acontece muitas vêzes o mesmo.O homem, afastado de convicções sérias e firmes quantoà sua História, seus objetivos de vida, seu passado e seufuturo, alijando-se de alicerce espiritual objetivo e exter-no, encontra em hipóteses mais OU menos espiritualistas,numa credulidade existencial mais ou menos sensaciona-lista, as distrações que lhe permitem apenas suportar ofardo de sua vida.

o BOATO NA EMPR:tl:SA

A vida empresária, pela intensidade dos contatos, pelaproximidade dos fins que se propõem, pela igualdade decondições e dependência de planos e objetivos das pessoas,oferece igualmente campo fértil à proliferação de boatos.que, se em primeiro momento ocupa as mentes e pareceuni-las em tôrno de um nôvo interêsse, logo em seguidacobra quase sempre o seu preço, o seu elevado preço, emdesgaste do moral do grupo, indiscutivelmente o maiorpatrimônio da emprêsa.

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Assim, também o campo empresarial paga o seu tributo -e não raro pouco leve - às conseqüências dos boatos.Não faz muito tempo, em São Paulo, numa emprêsacomercial e industrial teve lugar uma greve branca gerarde seu pessoal de escritório, após o almôço. Algumashoras de greve e tudo voltou ao normal. Mas era umprecedente grave que merecia análise cuidadosa. A razãoencontrada foi simples: a companhia havia admitido umnôvo controlador no mês de outubro. Muito bem inten-cionado, êle redigiu uma circular a tôda a companhia, soli-citando gentilmente a colaboração de todos os empregadospara uma campanha de redução dos custos de operação,que lhe pareciam muito altos. A situação da emprêsaera sólida, mas não brilhante, e todos deveriam colaborarem proveito geral, a fim de vencerem as dificuldades quese apresentavam. Chegava-se ao final do ano e o 13.0salário ainda não havia sido instituído por lei. Os empre-gados inferiram dessa circular ingênua uma segunda inten-ção da companhia, "maquiavêlicarnente engendrada con-tra seus empregados": não lhes pagar o abono de Natal.Assim, antes que qualquer segunda iniciativa viesse, êlesdeveriam defender os seus direitos, conquistados por tra-dição, ainda que. através de greve. Surgiu o boato, entãose fêz uma greve e assim aquela emprêsa perdeu algunsmilhões de cruzeiros.

Em outra emprêsa, pagou-se a primeira parcela do 13.0salário a seus empregados em 1965, muito antes do prazoexigido por lei. . Tal medida altruísta foi mal recebidapelos empregados porque, apesar do critério e cuidado naelaboração do comunicado, entendiam os empregados quetal medida visava a prejudicá-los, por não fazer essa pri-meira parcela parte de qualquer aumento salarial posterior.

os MEIOS DE COMBATE AOS BOATOS

Cremos ter ilustrado de sobejo a freqüência e os perigosdos boatos na comunidade. Qual a relação, porém, dosboatos com um plano de comunicações', ou, em outras pa-lavras, como comunicações eficientes poderão, se não.

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evitar o aparecimento de boatos, reduzir ou rmrurmzarsua intensidade? Essa é pergunta que nos propomos aresponder em seguida.

ALLPORT, cuja experiência na Segunda Grande Guerracom os boatos foi realmente muito grande, sugeriu queuma campanha de publicidade contra o boato poderiaempregar as seguintes linhas de ataque:

1.0) O boato não merece fé; é quase sempre falso;nenhuma pessoa sensata confiaria nêle;

2.0) O boato pode ser instrumento de propagandainimiga;

3.0) O boato destrói a moral do povo; é antipático e ver-gonhoso difundi-lo;

4.0) A pessoa que espalha boatos é insensata, má e pe-rigosa;

5.0) Difundir boatos é uma forma de descarregar empessoas inocentes as próprias fraquezas.

Numa ernprêsa os boatos podem ser reduzidos em fre-qüência e intensidade melhorando o moral do grupo.A melhora do moral não se compra com salários elevados,nem se mantém pela fôrça do comando autoritário.O moral elevado de grupo representa uma conquista dogrupo pelo respeito recebido e oferecido por todos os seusparticipantes aos demais membros do grupo. Isso nãoexclui o problema salarial e não elimina nem reduz a ne-cessidade de disciplina, a hierarquia e a ordem. Mas umbaixo moral de grupo pode coexistir mesmo com salárioselevados e com autoridade hierárquica forte.

Dentre as medidas que podem ser sugeridas para a eleva-ção do moral do grupo destacam-se as que combatem osboatos em suas raízes e não em suas conseqüências: tantoquanto possível, deve a administração evitar as frustra-ções individuais e coletivas; deve evitar as situações deinsegurança e temor, por meio de plano adequado decomunicações, pois muitos boatos são causados pelo mêdo;

Page 15: BOATO: COMUNICAÇAO PATOLOGICA · Certa noite, nessa rua residencial, com adjacências levemente bombardeadas, um cego tro-peçou numa jovem que acabava de sair de seu escritório

R.A.E.j21 o BOATO: COMUNICAÇAO PATOLóGICA

e deve, finalmente, manter-se atenta aos focos de "profis-sionais do boato" para até mesmo eliminá-lo da emprêsa.

Somente assim poderá a emprêsa ver-se a salvo de con-vulsões que abalem as relações das pessoas no seuambiente. Somente assim poderá o grupo trabalhar comtranqüilidade para cumprir os objetivos da organização.