biblioteca digital de teses e dissertações da usp - Índice · 2005. 11. 18. · kantismo” como...

606
Índice Preâmbulo ........................................................................................................................................... 1 Introdução ........................................................................................................................................... 13 PRIMEIRA PARTE: O duplo sentido da alienação ou os Caminhos da Liberdade em L'Être et le Néant .............. 23 Introdução ............................................................................................................................ 25 Capítulo 1: No princípio era a pura Negação (O Ser-fora-de-si) ......... 27 Capítulo 2: A Liberdade entra em cena ............................................................ 71 Capítulo 3: Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo.......... 123 SEGUNDA PARTE: Uma descoberta filosófica dos Tempos Modernos ....... 187 Introdução ......................................................................................................................... 189 Capítulo 1: Uma moral em tempos sombrios .............................................. 197 Capítulo 2: Razão e Resistência ....................................................................... 275 Capítulo 3: O Domingo da Vida ...................................................................... 461 Breve nota comparativa ........................................................................................................... 589 Bibliografia ................................................................................................................................... 599

Upload: others

Post on 25-Feb-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Índice

Preâmbulo ........................................................................................................................................... 1 Introdução ........................................................................................................................................... 13 PRIMEIRA PARTE: O duplo sentido da alienação ou os Caminhos da Liberdade em L'Être et le Néant .............. 23 Introdução ............................................................................................................................ 25 Capítulo 1: No princípio era a pura Negação (O Ser-fora-de-si)......... 27 Capítulo 2: A Liberdade entra em cena ............................................................ 71 Capítulo 3: Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo.......... 123 SEGUNDA PARTE: Uma descoberta filosófica dos Tempos Modernos....... 187 Introdução ......................................................................................................................... 189 Capítulo 1: Uma moral em tempos sombrios .............................................. 197 Capítulo 2: Razão e Resistência ....................................................................... 275 Capítulo 3: O Domingo da Vida ...................................................................... 461 Breve nota comparativa ........................................................................................................... 589 Bibliografia ................................................................................................................................... 599

Preâmbulo

“Ce que les gens désirent tous, c’est d’être témoins de leur temps” (Sartre, Sit.IX, p.39)

“Suis-je philosophe? Ou suis-je littéraire? Je pense que ce que j’ai apporté

depuis mes premières œuvres, c’est une réalité qui soit les deux: tout ce que j’ai écrit

est à la fois philosophie et littérature, non pas juxtaposées, mais chaque élément donné

est à la fois littéraire et philosophique” assim Sartre diagnostica, no final dos anos

70, o resultado de sua vastíssima obra (“Entretiens avec Sartre”, in M. Sicard, Essais

sur Sartre, p.380). Mas esse ponto de chegada do autor não é senão ponto de partida:

longe de fechar a discussão acerca da natureza de sua obra, tal diagnóstico só faz

reabri-la. Filosofia e literatura ao mesmo tempo? Os romances como forma literária e

filosófica? As obras consideradas de “filosofia pura” como forma filosófico-literária?

Esse híbrido sartriano é antes um enigma a ser decifrado.

Um olhar sobre o conjunto da obra de Sartre, detendo-se em alguns de seus

momentos mais expressivos, há de constatar a peculiar transformação dos gêneros ao

O MITO DA RESISTÊNCIA

2

longo do itinerário do pensamento do autor: do romance La Nausée a L’Être et le

Néant, um “ensaio de ontologia fenomenológica”; de L’Être et le Néant (concebido

como “filosofia pura”) a L’Idiot de la famille (um “romance” que, segundo o autor, é e

não é um romance).1 Mas por que L’Idiot de la famille (uma “monografia histórica

concreta”, no entender de Sartre) no lugar da moral prometida no final de L’Être et le

Néant? Por que Sartre abandona esse projeto filosófico?2 Limitemo-nos por ora a

sugerir que nesse abandono está em jogo o problema do estatuto da filosofia em nossa

época, ou a forma problemática de sobrevivência da filosofia depois da

“decomposição do Espírito Absoluto”. E mais: o próprio itinerário do pensamento

sartriano —da “filosofia pura” à “monografia histórica concreta”— é a expressão

desse problema da sobrevivência da filosofia (e também da literatura) nas condições

sociais do mundo contemporâneo, sinalizando a busca (nem sempre deliberada) de

uma nova forma (filosófico-literária?) que possa dar conta do tempo presente. (Aqui

aliás o núcleo duro do Marxismo Ocidental, seja dito de passagem.)

“Hegel représente un sommet de la philosophie. A partir de lui, régression.

Marx apporte ce qu’il n’avait pas donné entièrement (...). Dégénérescence marxiste

ensuite. Dégénérescence allemande post-hégélienne. Heidegger et Husserl petits

philosophes. Philosophie française nulle”. O desdobramento dessas palavras, escritas

por Sartre na segunda metade dos anos 40 (Cahiers pour une morale, p.67), será esta

afirmação bombástica do autor, quase duas décadas depois: “no momento presente não

pode haver filósofos” (A Conferência de Araraquara, p.37). Mas, assim como a

filosofia, a literatura (na sua acepção tradicional) também se tornou impossível “no

momento presente”: “il n’y en a plus, de littérature”, arremata Sartre numa entrevista

concedida a M. Contat e a M. Rybalka em 1971 (“Entretiens sur moi-même”, Sit.X,

p.114). Pouco antes, em 1970, interrogado sobre as razões que o teriam levado a

abandonar o romance para escrever biografias —teria o romance se tornado “une

forme littéraire impossible”?—, Sartre responde: “Il n’y a plus d’univers naturel du

Preâmbulo

3

roman et il ne peut plus exister qu’un certain type de roman: le roman ‘spontané’,

‘naïf’“ (“Sartre par Sartre”, Sit.IX, p.122). E numa entrevista posterior, nosso autor

diz que mesmo sendo “fascinado” pelo estilo de Madame Bovary ele sabe muito bem

que não se pode mais escrever como Flaubert: esse tipo de romance pertence “à un

monde qui est un peu passé” (“Entretiens avec Sartre”, Essais sur Sartre, p.154).

Se foi a experiência da Primeira Guerra que levou Walter Benjamin a formular

o problema do fim da narração,3 é a experiência da Segunda Guerra que, como

veremos, leva Sartre a buscar uma nova forma “narrativa”, sucedâneo do romance e da

filosofia tradicionais. No imediato pós-guerra, fazendo um balanço das transformações

que a história impôs à forma literária, o autor escreve: “Il n’est plus le temps de

décrire ni de narrer” (“Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, p. 311).4 Já na

correspondência (inédita) com Jean Paulhan (1937-1940),5 vemos Sartre em busca de

uma nova forma literária que, pensando em Malraux, ele chama de “roman reportage”.

Mais tarde, o privilégio que outorga a Jean Genet vem da idéia de que sua obra é

essencialmente documento, fato real — um “documento” que, ao expor cruamente

aspectos da realidade social, faz ao mesmo tempo a sua crítica. Essa é, aliás, a função

que Sartre atribui ao ensaio, cuja forma ele se põe à procura logo depois do final da

redação de L’Être et le Néant, como atesta esta passagem escrita em 1943: “Le roman

contemporain, avec les auteurs américains, avec Kafka, chez nous avec Camus, a

trouvé son style. Reste à trouver celui de l’essai. Et je dirai aussi: celui de la critique”

(“Un nouveau mystique”, Sit.I, p.133). Mas já não estamos aqui a anos-luz de

distância da idéia, expressa no final de L’Être et le Néant, de que só no terreno da

“reflexão pura” os verdadeiros problemas podem encontrar uma verdadeira solução?

Onde afinal situar o híbrido que Sartre afirma definir o conjunto de sua obra?

Nem “filosofia pura” nem “literatura pura” (leia-se “romance tradicional”), mas antes

um movimento de passagem entre ambas que desfaz suas formas tradicionais? Se

assim for, a obra sartriana poderia ser pensada como um momento do processo de

O MITO DA RESISTÊNCIA

4

transformação histórica da forma filosófica e literária (ou da decomposição das formas

filosófica e literária tradicionais).6 Qual a particularidade das determinações que

constituem esse momento?

*

“Foi a guerra que fez explodir os quadros envelhecidos de nosso pensamento.

A guerra, a Ocupação, a Resistência, os anos que se seguiram” (Sartre, Questão de

Método, Pensadores, p.126). Mas essa “explosão”, isto é, a ruptura com a tradição

“espiritualista” acadêmica francesa, mais precisamente a “filosofia alimentar”,

“digestiva”, da Terceira República, vinha sendo preparada desde meados dos anos 30

— período de turbulência política em meio ao qual se delineia o projeto literário e

filosófico de Sartre. É justamente no embate com o “velho idealismo tradicional dos

universitários franceses” (nas palavras de Simone de Beauvoir, cf. Privilèges, p.269)

que o pensamento sartriano começa a tomar forma. Não por acaso, nas primeiras obras

mais significativas do autor, o inimigo número um é esse “idealismo oficial” da

Terceira República (os termos agora são da Questão de Método, p.125) — basta

lembrarmos o romance La Nausée (cf. a ironia do personagem Roquentin a respeito do

“philosophe humaniste”, uma figura odiada... até a Naúsea), o primeiro livro de

filosofia, escrito em 1934, La Transcendance de l’Ego (onde Sartre, visando

principalmente Lachelier e Brunschvicg, além de Victor Brochard, denuncia o “neo-

kantismo” como “uma tendência perigosa da filosofia contemporânea”, p.14) e o

famoso ensaio sobre Husserl (escrito em 1933-1934 e publicado em 1939).7 Algum

tempo mais tarde, nos Carnets de la Drôle de Guerre —momento em que o vendaval

da guerra arrasta consigo os valores dominantes (“idées, valeurs, tout fut bousculé”,

afirma Simone de Beauvoir, referindo-se àquela “guerre qui avait tout remis en

question”8)—, Sartre dá finalmente por encerrada a idade da hegemonia da tradição

Preâmbulo

5

“espiritualista”: “Pour nous, Nizan, Aron, moi-même (...) ces pauvres gens [Baruzi,

Brunschvicg, etc.] (...) c’étaient les représentants les plus haïssables de la lâche pensée

et du verbalisme. (...) Rien ne nous déplaisait tant que cette pensée grise...” (p.111).

Referindo-se pois àquela “pensée grise” como coisa do passado (o uso do verbo no

passado é sugestivo), os Carnets de Guerre de Sartre pretendem jogar a derradeira pá

de cal nessa ideologia que morre junto com o mundo que tentara eternizar. Mas ao

mesmo tempo que os Carnets (de onde sai L’Être et le Néant) anunciam o fim de um

dos ciclos da cultura burguesa na França, anunciam também o começo de uma nova

época (que despontará em breve) — os “Tempos Modernos”.

Com efeito, o outro aspecto da ruptura com a “cultura defunta”9 —que

mandava rezar pela cartilha da “Primauté du Spirituel”10— é a “descoberta” (causa e

efeito dessa ruptura) da “modernidade”, cuja palavra de ordem fora lançada por Jean

Wahl em 1932: “Vers le concret”.11 Se outrora, como denunciou Sartre em 1936, “le

succès croissant du kantisme, dont Lachelier se fait en France le champion”, foi

sintoma da “forte réaction conservatrice en France” (L’imagination, p.28-29), agora,

no limiar de uma nova época, a ruptura com aquela tradição é prenúncio de um

período de efervescência revolucionária que coloca na ordem do dia, para toda uma

“geração intelectual”, a questão da “modernidade” — e com ela a necessidade de um

pensamento crítico, negativo: avesso ao conservadorismo, radical, não acadêmico.12

Em que termos se dá essa “descoberta” da “modernidade” naquela França

convulsionada pela radicalização dos conflitos sociais? Do ponto de vista literário, ela

se tornou possível com a “descoberta” de Kafka e, sobretudo, dos clássicos do

modernismo americano; do ponto de vista filosófico, deve-se a uma tripla

“descoberta”: Husserl, Heidegger13 (ambos virados pelo avesso e convertidos em

filósofos de vanguarda) e Hegel (lido pela ótica da filosofia da Ação de Kojève).14

Com tais “descobertas”, completam-se os anos de aprendizagem da “génération des 3

H”, como ficou conhecida no pós-guerra a geração de Sartre e de Merleau-Ponty — os

O MITO DA RESISTÊNCIA

6

“3 H”, no caso, interpretados como filósofos “realistas”, ponto de partida para uma

“filosofia concreta” (denominação do Existencialismo em sua face ascendente). Está

aberto o caminho para a fulgurante entrada em cena do Existencialismo (sem dúvida, o

capítulo mais rico e interessante da filosofia francesa contemporânea).

A expressão teórica maior desse movimento de renovação cultural na França,

que resulta da ruptura com a tradição espiritualista e da descoberta da “modernidade”,

é L’Être et le Néant (EN) — ao mesmo tempo culminância do processo de liquidação

de um gênero de educação (pulverizado juntamente com o mundo do qual é

inseparável) e resposta aos “Tempos Modernos” então em marcha. Na encruzilhada

portanto de dois mundos, o “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre, já escrito

sob o signo da “modernidade”, está também, como veremos, no cruzamento principal

dos caminhos tomados pelos gêneros ao longo do pensamento do autor — o que nos

reconduz ao problema do início deste Preâmbulo. Se nossa leitura procede, na

“estrutura” de EN está a chave para compreender o sentido do itinerário da obra

sartriana (sua gênese e seu desfecho). Nesse momento particular do pensamento do

autor —um momento único e irredutível— se reproduz, junto com o movimento geral

da época, a totalidade das determinações do curso de sua obra. Fechemos pois o

ângulo de nossa lente e centremos o foco neste ponto nevrálgico da evolução das

formas em Sartre: L’Être et le Néant.

Preâmbulo

7

Notas - Preâmbulo

1)Eis o que Sartre diz sobre L’Idiot de la famille (IF): “...mon travail sur Flaubert,

qu’on peut d’ailleurs considérer comme un roman. Je souhaite même que les gens

disent que c’est un vrai roman” (Sit.IX, p.123). Algum tempo depois essa idéia de

“vrai roman” para designar L’Idiot de la famille será relativizada: “D’abord il faut en

venir à l’idée de roman. J’ai peut-être exagéré un peu quand j’ai dit que c’était un

roman (...). Ce roman n’est pas en fait un roman” (“Entretiens avec Sartre”, Essais sur

Sartre, p.148). 2)Recorde-se as palavras finais de L’Être et le Néant, anunciando esse projeto: “Toutes

ces questions, qui nous renvoient à la réflexion pure et non complice, ne peuvent

trouver leur réponse que sur le terrain moral. Nous y consacrerons un prochain

ouvrage” (p.692). Não só essa obra nunca veio à luz do dia como o autor, no

mencionado balanço feito no final de sua vida, afirma que a “philosophie pure (...)

c’est un peu en dehors de ce que j’aime faire” (“Entretiens avec Sartre”, in Essais sur

Sartre, p.380). 3) “A arte de narrar está em vias de extinção. (...) Uma das causas desse fenômeno é

óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo

até que seu valor desapareça de todo. (...) Com a guerra mundial tornou-se manifesto

um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os

combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres

em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de

livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca

em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais

O MITO DA RESISTÊNCIA

8

radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a

experiência econômica pela inflação , a experiência do corpo pela guerra de material e

a experiência ética pelos governantes” (W. Benjamin, “O Narrador”, in Obras

Escolhidas, vol.I, p.197-198). Sobre esse problema do fim da narração em Benjamin,

cf. em particular o Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin para as Obras Escolhidas do

autor, onde se lê por exemplo o seguinte: “A arte de contar torna-se cada vez mais rara

porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido

pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna”

(p.10). Tendo em vista que “o fracasso da Erfahrung” implicou o fim da “narrativa

tradicional”, afirma ainda Gagnebin, coloca-se para Benjamin o problema de “uma

nova forma de narratividade” (pp.9 e 11). Embora o problema de “uma nova forma de

narratividade” esteja também no horizonte de Sartre, seu quadro de referência é, inútil

ressalvar, completamente diverso do de Benjamin (não obstante a tentativa de F.

Jameson de aproximar, em certos aspectos, as análises dos dois autores sobre a

narração — cf. por exemplo Marxismo e Forma, p.66-67). 4)Quase uma década depois, e por caminhos inteiramente diversos, Adorno formula o

mesmo problema: “on ne peut plus narrer, alors que la forme du roman exige la

narration” — o que torna doravante impossível o “romance tradicional” (“La situation

du narrateur dans le roman contemporain”, Notes sur la Littérature, p.37). 5)Graças à gentileza e à generosidade de Michel Contat, pudemos consultar o

manuscrito inédito dessa valiosa correspondência entre Sartre e Paulhan (além de

outros manuscritos inéditos de Sartre). Referindo-se aos textos sartrianos daquele

período, Michel Contat afirma que o autor está à procura de uma “théorie nouvelle du

roman”: “Ses articles pour la NRF avant la guerre, ceux qui sont repris dans Situations

I, se proposaient, comme le montre explicitement sa correspondance inédite avec Jean

Paulhan, de fonder une théorie nouvelle du roman. Abandon de la position du

Preâmbulo

9

narrateur omniscient, adoption résolue du réalisme subjectif, technique romanesque

relevant d’une métaphysique de la liberté” (Michel Contat, “Le Roman Existentiel”,

Magazine Littéraire, nº 282, novembro de 1990, número especial sobre Sartre).

6)Utilizamos o termo “tradicional” na acepção de Horkheimer e de Adorno. Se Marx e

Engels falaram em “decomposição do Espírito Absoluto” (um processo histórico cujo

desenvolvimento levará Horkheimer a contrapor “Teoria Tradicional” e “Teoria

Crítica”), Adorno, considerando as condições sociais do mundo contemporâneo, fala

em “decomposição da forma romanesca”, isto é, do “romance tradicional” (cuja

expressão “mais autêntica” seria o romance de Flaubert, conforme lemos em “La

situation du narrateur dans le roman contemporain”, Notes sur la Littérature, pp.38 e

41). 7)Esse ensaio sobre Husserl abre-se com um vivo ataque à “filosofia alimentar”:

“Nous avons tous lu Brunschvicg, Lalande et Meyerson nous avons tous cru que

l’Esprit-Araignée attirait les choses dans sa toile, les couvrait d’une bave blanche et

lentement les déglutissait, les réduisait à sa propre substance. Qu’est-ce qu’une table,

un rocher, une maison? Un certain assemblage de “contenus de conscience”, un ordre

de ces contenus. O philosophie alimentaire! (...) En vain, les plus simples et les plus

rudes parmi nous cherchaient-ils quelque chose de solide, quelque chose, enfin qui ne

fût pas l’esprit; ils ne rencontraient partout qu’un brouillard mou et si distingué: eux-

mêmes” (“Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: l’intentionnalité”,

Sit.I, p.29). 8)Cf. La force de l’âge, p. 445 e La force des choses, vol.I, p.100. 9)Expressão cunhada por Paulo Eduardo Arantes ao se referir justamente àquela

cultura “de que se alimentava a caquética burguesia francesa de entre-guerras” (“Um

Hegel errado, mas vivo”, IDE, nº 21, dezembro de 1991, p.73-74).

O MITO DA RESISTÊNCIA

10

10)Título de Maritain, ironizado por Simone de Beauvoir no livro Quand prime le

spirituel — “un livre dont j’indiquai le thème par un titre ironiquement emprunté à

Maritain: Primauté du Spirituel”, diz a própria autora, em La force de l’âge (p.255),

sobre esse seu primeiro ajuste de contas com a tradição “espiritualista”. 11)”Cet élan de curiosité dont j’étais complice responsable et qui produisit d’abord des

livres comme Vers le Concret de Jean Wahl, avait sa source dans un vieillissement de

la philosophie française et un besoin que nous éprouvions tous de la rajeunir” (Sartre,

Les Carnets de la Drôle de Guerre, p.228). Sobre a importância desse livro de Jean

Wahl para a geração de Sartre, cf. também Questions de Méthode, in Critique de la

raison dialectique, vol. I, p.29, nova edição. 12)O sentido —e a necessidade— dessa “descoberta” da “modernidade” é um problema

a ser enfrentado ao longo deste trabalho (assim como o problema das relações entre

modernidade e revolução nos “Tempos Modernos”). 13)Se posteriormente, mais de uma década depois dessa “descoberta” da

fenomenologia alemã, Sartre afirma (cf. a já citada passagem dos Cahiers pour une

morale) que Heidegger e Husserl são “petits philosophes” é no sentido (explicitado só

na Questão de Método) de que aquilo que fizeram não foi radical o suficiente para

caracterizar uma nova época de “criação filosófica” (mesmo porque isso já não seria

mais possível, por razões de ordem histórica). Contudo, numa França dominada pelo

“espiritualismo” da Universidade da Terceira República (um misto de positivismo e

neo-kantismo), Husserl e Heidegger significaram a própria modernidade filosófica

para a geração de Sartre. Foi sobretudo a desmontagem do objetivismo kantiano, a

destranscendentalização da filosofia e o consequente cancelamento do programa

transcendental das filosofias pós-kantianas, operados por Heidegger em Sein und Zeit

—esse “pensamento destranscendentalizante e crítico da metafísica”, como diz

Habermas (Martin Heidegger — L’oeuvre et l’engagement, p.13) —, que permitiram a

Preâmbulo

11

Sartre romper com a “nauseante” “filosofia alimentar” (o que afinal tornou possível

L’Être et le Néant). 14)Foram os célebres cursos ministrados por Alexandre Kojève na “Ecole Pratique des

Hautes Etudes”, de 1933 a 1939, que introduziram Hegel, “sempre proscrito da

universidade”, como lembra E. Roudinesco, para a geração de Sartre: “Durante seis

anos, a fala desse homem torna-se a própria linguagem da modernidade, a

quintessência do espírito novo” (E. Roudinesco, História da Psicanálise na França,

vol.2, pp.72, 151,152). Sobre a pré-história desse movimento de renovação cultural na

França, cf. ainda Roudinesco, a partir da p.72: a “renovação da espiritualidade que

vem à luz na França entre 1925 e 1935” (p.74). Cf. também V. Descombes, Le Même

et l’Autre, para quem “s’il est un signe du changement des esprits — révolte contre le

néo-kantisme, éclipse du bergsonisme —, c’est bien le retour en force de Hegel”, até

então “banni par les néo-kantiens” (p.21). A respeito desse renascimento do

hegelianismo na cultura francesa dos anos 30, cf. em particular dois artigos de Paulo

Eduardo Arantes: “Um Hegel errado, mas vivo — Notícia sobre o Seminário de

Kojève” (IDE, nº 21, dezembro de 1991) e “Hegel no espelho do Dr. Lacan” (IDE, nº

22, outubro de 1992), sobre a importância da interpretação kojeviana da

Fenomenologia do Espírito na formação do pensamento de Lacan.

Introdução

“Nous écrivons pour nos contemporains” (Sartre, Sit.II, p.14)

Decorridos mais de 50 anos do lançamento de L’Être et le Néant, ressoa ainda

hoje, nos diferentes tipos de interpretação da obra, o eco do mesmo refrão entoado

desde os comentadores da primeira hora: trata-se de um livro de “pura reflexão

filosófica”, com portas e janelas fechadas para o mundo, escrito no entanto,

“curiosamente”, numa época de virada histórica radical, durante a Segunda Guerra

Mundial — é justamente naquele momento que o autor, distanciando-se do vendaval

que então soprava sobre o mundo, busca refúgio no território neutro da filosofia

“pura”...

Se nos for permitido arrolar rapidamente alguns exemplos significativos dessa

interpretação tradicional de EN, comecemos por Marcuse, num dos primeiros e mais

O MITO DA RESISTÊNCIA

14

importantes ensaios sobre o livro: “L’analyse existentielle de Sartre est strictement

philosophique, en ce sens qu’elle fait abstraction des facteurs qui constituent sa réalité

empirique concrète: celle-ci ne fait qu’illustrer les conceptions métaphysiques et

métahistoriques de Sartre” (“L’Existentialisme — A propos de L’Être et le Néant de

Jean-Paul Sartre”, 1948, in Culture et Société, p.218). Nessa medida, acrescenta

Marcuse, há uma distância intransponível entre o “ensaio de ontologia

fenomenológica” de Sartre e a “realidade histórica”, o que faz da obra “uma doutrina

idealista” (pp.218 e 231).1 Um outro exemplo, bem mais recente: Anna Boschetti, em

Sartre et Les Temps Modernes, define EN como “la recherche, strictement

individuelle, d’une vérité ‘pure’, comme possibilité de se faire regard sans corps

(théoria), sans passé et sans point de vue, mettant le monde entre parenthèses...”

(p.103; grifo nosso). Referindo-se ainda ao que considera uma “répulsion inspirée à

Sartre par le social” (“l’horreur pour le social”, próprio de uma tradição filosófica que

termina por “expulser l’histoire, transformer les notions philosophiques en idées

absolues, indépendantes des conditions historiques de production...”, pp.103 e 110),

Boschetti, indo até onde Marcuse não iria, inscreve EN na linhagem da filosofia

“pura” no sentido kantiano: “On reconnaît, reconstituée à partir d’exigences

communes, l’attitude des philosophies ‘pures’ par excellence: Kant par exemple, ou

Maine de Biran” (p.104).

É também como uma obra de filosofia “pura” que Gerd Bornheim (para nos

lembrarmos de um importante exemplo mais próximo de nós) caracteriza EN — só

que agora o “ensaio de ontologia” de Sartre será lido totalmente à luz da tradição da

metafísica ocidental (da filosofia grega à “Metafísica moderna”): “trata-se de elucidar

os mesmos problemas que acompanham o núcleo de toda a tradição da Metafísica

ocidental”, escreve Bornheim sobre o assunto de EN (Gerd Bornheim, Sartre,

Metafísica e Existencialismo, p.26). O grande esforço do autor, vê-se logo, é no

sentido de situar EN como um capítulo da metafísica ocidental: “Sabe-se que a

Introdução

15

questão do nada envolve toda a evolução do pensamento ocidental, ainda que de tal

modo que ela nunca chega de fato a ser ventilada: realmente, como pensar o nada? Já

em Parmênides o problema está presente; e se sua presença permanece tíbia na Grécia,

irrompe com uma força deveras impressionante na filosofia cristã” — segue-se o

exemplo de Santo Agostinho (Gerd Bornheim, Sartre, p.192). Dessa forma, ao colocar

o problema do nada, Sartre estaria apenas sendo fiel a um problema clássico — afinal,

o Ser e o Nada são “pressupostos fundamentais da Metafísica ocidental” (Idem,

p.193). Já no início de seu livro, Bornheim escreve: “Em si mesmo o fenômeno é ser.

Como? Sartre demonstra seu ponto de vista recorrendo a um raciocínio análogo ao

argumento ontológico de Santo Anselmo e de Descartes” (p.29). Donde a conclusão de

sua análise: EN não ultrapassa “os limites da Metafísica” — e “torna-se ininteligível

se despido de seu contexto metafísico” (p.185 e 193). Portanto, estaríamos diante de

uma filosofia na sua acepção mais tradicional — a filosofia dogmática propriamente

dita. Aliás, diga-se de passagem, é justamente nesse terreno da filosofia dogmática

que Bento Prado Jr. (entendendo por dogmatismo “a aposta fundamental do

racionalismo do século XVII, mas também da filosofia platônica-aristotélica”) finca as

raízes do “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre (O Estado de S. Paulo,

11/08/1993). Não é muito diferente o ponto de vista de Luiz Roberto Salinas Fortes,

para quem a filosofia da liberdade desenvolvida em EN faz de Sartre

“incontestavelmente o herdeiro legítimo de uma respeitável tradição que remonta até

Descartes” (“A Liberdade como Apocalipse”, in Revista de Cultura e Política, nº 2,

agosto/outubro de 1980. p.63).2

Finalmente, é preciso não esquecer que o próprio autor, em plena consonância

com seus comentadores, considera EN uma constelação de idéias brilhando no céu da

“filosofia pura”, muito longe do mundo terreno: “Em EN eu quis, apreendendo-me no

nível mesmo da consciência, isto é, no nível ao mesmo tempo o mais certo e o mais

abstrato, o mais formal, aquele em que se encontram verdades inegáveis, mas quase

O MITO DA RESISTÊNCIA

16

nulas, com as quais não se pode fazer quase nada, eu quis portanto fazer uma

descrição do que é a realidade humana como projeto, compreensão” (A Conferência

de Araraquara, p.93). E numa outra ocasião, Sartre afirma: “L’Être et le Néant retrace

une expérience intérieure sans aucun rapport avec l’expérience extérieure —devenue,

à un certain moment, historiquement catastrophique— de l’intellectuel petit-bourgeois

que j’étais. Car j’ai écrit EN, ne l’oublions pas, après la défaite de la France” (Sit.IX,

p.102; sobre a definição de EN como uma obra de “filosofia pura”, cf. ainda a

entrevista de Sartre a Sicard, in Essais sur Sartre, p.380).

Uma filosofia de sobrevôo, deveríamos então concluir, sem os pés no chão e

sem território definido, semeando pensamentos de “pura ausência” histórica? Castelos

de idéias que, sem raízes sociais, formam-se e se desmancham no ar? Numa palavra:

uma filosofia “livre” do mundo (como queria por exemplo Schopenhauer3)? Tal

caráter à primeira vista paradoxal de uma obra de “filosofia pura” que se distancia da

“realidade” num momento em que, como se lê nos Diários de Guerra do próprio

Sartre, “a realidade histórica impunha sua presença” aos contemporâneos, torna-se

tanto mais surpreendente quando se pensa que a primeira elaboração de EN se

encontra justamente nesses Diários de Guerra4 (cujo propósito deliberado era

apreender a experiência histórica em curso) e que, além disso, intelectuais que

participavam do movimento político de Resistência contra o nazismo declaram que o

livro “tornou nosso universo transparente”. Um “ensaio de ontologia fenomenológica”

que torna visível o conteúdo de uma experiência política? Com efeito, um nó a ser

desatado — o que implica uma genealogia da obra, um estudo de sua forma particular

e de suas relações com a totalidade das manifestações do momento histórico em que

ela emerge.

*

Introdução

17

Ao leitor atento de EN certamente não passará despercebida a arquitetura

peculiar da obra, assentada em dois planos: o das “demonstrações” ontológicas, isto é,

descrição filosófica no sentido da fenomenologia alemã (e é neste plano que os

comentadores se detêm), e o plano da exemplificação — aqui, as ilustrações, os

exemplos, são construídos com matéria histórica local, são figuras com conteúdo

histórico definido. É assim que ao longo da leitura de EN vemos passar sob nossos

olhos, como se fossem meros exemplos casuais (não constitutivos portanto do “ensaio

de ontologia fenomenológica”), as figuras de “prisioneiros de guerra” (a guerra é

justamente o exemplo privilegiado do livro), de líderes políticos da época, do

ocupante alemão, do judeu perseguido, do torturador e do torturado, do Resistente, de

uma cidade em estado de exceção, sob toque de recolher. Simples registro da hora

histórica, exterior ao fio ontológico que está sendo urdido? Ocorre que em EN temos

um movimento ininterrupto de passagem de um plano a outro (e nesse movimento de

passagem está o lado mais vivo e interessante da obra), de tal maneira que a própria

reflexão filosófica é tecida com materiais históricos da época. Todavia o problema

permanece em aberto. Concedamos, dir-se-á, que EN, pretendendo apenas descrever

estruturas ontológicas intemporais (pois não é outro o seu propósito), o faça com

figuras do mundo real. Mas em que medida esse registro da hora histórica, movendo-

se assim num nível tão conjunturalmente rente aos fatos, articula-se internamente com

as “demonstrações” ontológicas? Em que termos se daria a reapropriação filosófica

desses exemplos? Esse o ponto delicado.

Examinemos pois esse clássico da filosofia contemporânea, tentando

compreender como foi possível sua construção em dois níveis aparentemente distintos

— para isso, é preciso palmear a distância que à primeira vista separa esses dois níveis

que constituem a obra (as demonstrações ontológicas “abstratas” e as “situações”

concretas do mundo). Fixemos como ponto de partida (tarefa da Primeira Parte da

Tese) a exposição do processo de engendramento das duas figuras centrais de EN:

O MITO DA RESISTÊNCIA

18

Liberdade e Tempo (entrada principal do pensamento sartriano, a nosso ver). Essa

exposição, desentranhando o movimento do livro, examinando seus conceitos

fundamentais e explicitando sua filosofia da Ação, pretende trazer à luz do dia a

“estrutura” de EN — uma forma dramática, como veremos, expressão do próprio

material que ela recria.

Introdução

19

Notas - Introdução

1)Todavia, numa entrevista de 1977 —ocasião em que revela um grande interesse por

Sartre: “I love Sartre and love him more and more” (p.37)—, Marcuse inverte

totalmente seu ponto de vista sobre EN, e faz esta afirmação espantosa: “In my first

article (“Contribution to a Phenomenology of Historical Materialism”, 1928), I myself

tried to combine existentialism and Marxism. Sartre’s Being and Nothingness is such

an attempt on a much larger scale” (“Heidegger’s politics: an interview with Herbert

Marcuse by Frederick Olafson”, Graduate Faculty Philosophy Journal, Vol. 6, n° 1

Winter, 1977, p. 30). Mas aqui trata-se evidentemente de um lapso de Marcuse (ditado

talvez pela pressa em aproximar o pensamento sartriano do marxismo) pois o

propósito de juntar existencialismo e marxismo é próprio do Sartre posterior, nunca de

EN. Nessa mesma entrevista, o autor tenta precisar o sentido da “concretude” que

agora vê em EN: “Even L’Être et le Néant is already much more concrete than

Heidegger ever was. Erotic relationships, love, hatred, all this — the body, not simply

as abstract phenomenological object but the body as it is sensuously experienced,

plays a considerable role in Sartre — all this is miles away from Heidegger’s own

analysis, and, as Sartre developed his philosophy, he surpassed the elements that still

linked him to existentialism and worked out a Marxist philosophy and analysis”

(p.36). Essa idéia de EN como uma “ontologia realmente concreta e não só pseudo-

concreta” é reafirmada por Marcuse, ainda naquele ano de 1977, por ocasião de seu

“Diálogo” com Habermas — “concreto” aqui, contraposto a Ser e Tempo, significa

mais uma vez o seguinte: “Em Heidegger, o “ser-aí” é neutro, isto é, um conceito

abstrato. Em Sartre, o “Ser-aí”, por exemplo, está partido em dois sexos — todo um

O MITO DA RESISTÊNCIA

20

domínio que não aparece em Heidegger. Em O Ser e o Nada se faz, por exemplo, uma

fenomenologia do traseiro, que é realmente encantadora. (...) Em Sartre, existe

realmente uma filosofia concreta. E isso foi comprovado também mais tarde, pois o

caminho de O Ser e o Nada ao Sartre ‘político’ é realmente muito curto” (Habermas,

“Diálogo com Herbert Marcuse”, in Perfis Filosófico-Políticos, p.248). As análises de

Marcuse sobre EN serão examinadas ao longo deste trabalho. 2)Nesse sentido, cf. também Annie Cohen-Solal: “L’Être et le Néant est une œuvre

profondément cartésienne. D’ailleurs, jusqu’en 1943, l’œuvre de Sartre n’a-t-elle pas été

clairement l’odyssée d’une conscience solitaire?” (Sartre, p.254). 3) “Já que o mundo todo e tudo nele é pleno interesse e, na maioria das vezes, interesse

mesquinho, ordinário e ruim, só um cantinho deve decididamente ficar livre dele e

estar aberto tão-só ao conhecimento das relações mais importantes e urgentes de todas

— isso é a filosofia” (Arthur Schopenhauer, “Sobre a Filosofia Universitária”,

tradução de Márcio Suzuki e Maria Lúcia Cacciola). 4) “Le projet de L’Être et le Néant paraît avoir été conçu en 1939, pendant la ‘drôle de

guerre’, alors que Sartre, mobilisé, et cantonné en Alsace, occupait ses longs loisirs à

remplir des carnets(...). Libéré, il commença par achever L’âge de raison et ce n’est

qu’à l’automne 1941 qu’il entreprit la rédaction de L’Être et le Néant” (Contat, M. e

Rybalka, M., Les Ecrits de Sartre, p.85-86). É assim que, como afirma o próprio

Sartre, “les carnets de guerre deviennent des carnets de pensées, où s’esquisse, jour à

jour, un grand livre: L’Être et le Néant” (Entrevista concedida a Mondes Nouveaux, nº

2, dezembro de 1944, p.3). Três décadas mais tarde, o autor volta a sublinhar essa

relação íntima entre seus Carnets de Guerre e EN: “mes carnets (...) étaient pleins

d’observations qui sont passées dans L’Être et le Néant ensuite” (Sartre par lui-même:

Un Film, p.69). Nesse sentido, recorde-se ainda o que diz Michel Contat: “Les Carnets

sont aussi un atelier philosophique. Sartre y forge des concepts, il travaille sur la

Introdução

21

volition, la morale, la notion de situation, sur différents thèmes qui se retrouveront

dans L’Être et le Néant dont ils sont, par moments, comme un brouillon” (Entrevista,

Magazine Littéraire, número especial sobre Sartre, novembro de 1990, p.23).

Primeira Parte

O duplo sentido da alienação ou os Caminhos da Liberdade em L’Être et le Néant

“Sob a pele das palavras há cifras e códigos”. (Carlos Drummond de Andrade).

25

Introdução

No interior do movimento de vai-e-vem entre os dois planos de EN, ao longo

do qual se misturam materiais heteróclitos Husserl, Heidegger, o Hegel de Kojève,

sem falar de Malraux, dos clássicos do modernismo americano e de Kafka, tudo isso

amalgamado a assuntos da vida cotidiana, se dá um outro movimento: as figuras que

compõem a trama do livro vão sendo transformadas, como numa intriga teatral

(dramática, no caso), e tal transformação vai permitindo a passagem de um momento

de pura negatividade, o momento negativo da alienação (que resulta essencialmente do

olhar do Outro e da própria estrutura da consciência que tem seu ser fora de si

mesma), ao momento positivo da alienação, outro aspecto da “descoberta” da figura de

uma liberdade que é libertação. Nesse duplo sentido da alienação (que permitiria duas

direções de leitura do livro) está o nervo por onde passam todos os problemas de EN.

Capítulo 1

No princípio era a pura Negação (O Ser-fora-de-si)

“On reproche à L’Être et le Néant de ne point parler de l’affirmation. Il ne s’agit pas de la nier mais de la mettre à sa place. De même que Hegel a enseigné à la philosophie après Spinoza que toute détermination est négation, (...) de même toute affirmation est sur un autre plan conditionnée par une néantisation”. (Sartre, Cahiers pour une morale, p.155-156)

Em EN, “a busca do ser” (título da Introdução que define o propósito da obra)1

começa com “o problema do nada”, da negação (donde o primeiro capítulo: “L’origine

de la négation”): “Nous étions partis à la recherche de l’être(...). Or, voilà qu’un coup

d’oeil jeté sur l’interrogation elle-même, au moment où nous pensions toucher au but,

nous révèle tout à coup que nous sommes environnés de néant. C’est la possibilité

O MITO DA RESISTÊNCIA

28

permanente du non-être, hors de nous et en nous, qui conditionne nos questions sur

l’être. Et c’est encore le non-être qui va circonscrire la réponse: ce que l’être sera

s’enlèvera nécessairement sur le fond de ce qu’il n’est pas” (EN, p.40). E ainda: “Le

néant hante l’être. (...) Le néant est la condition première de la conduite interrogative

et, plus généralement, de toute enquête philosophique ou scientifique” (EN, p.46).2

Esse ponto de partida é heideggeriano: para Heidegger, como escreve o próprio

Sartre em EN, “le néant se donne comme ce par quoi le monde reçoit ses contours de

monde” — “cette solution peut-elle nous satisfaire?” (EN, p.53). É a partir desse

horizonte heideggeriano que se delineiam os problemas filosóficos de EN — do

horizonte heideggeriano e o de Hegel (ou de um certo Hegel), cabe acrescentar: se por

um lado “Heidegger a raison d’insister sur le fait que la négation tire son fondement

du néant” (daí “le progrès que sa théorie du Néant représente par rapport à celle de

Hegel”), por outro, “c’est Hegel qui a raison contre Heidegger, lorsqu’il déclare que

l’Esprit est le négatif” (EN, p. 51 e 53) — “dans les deux cas on nous montre une

activité négatrice et l’on ne se préoccupe pas de fonder cette activité sur un être

négatif” (EN, p.54). No interior desse diálogo crítico com Heidegger e Hegel, vai se

constituindo a estrutura ontológica de EN — ela é resultado de um propósito

deliberado de assimilar, reelaborando, a armação conceitual dessa “modernidade”

filosófica.

Tal propósito está estampado na frase de abertura do livro: “La pensée moderne

a réalisé un progrès considérable en réduisant l’existant à la série des apparitions qui

le manifestent. On visait par là à supprimer un certain nombre de dualismes qui

embarrassaient la philosophie et à les remplacer par le monisme du phénomène. Y a-t-

on réussi?” (EN, p.11). Se o “pensamento moderno” responde aqui pelo nome triplo “3

H” (dos quais Hegel e Heidegger, um tanto quanto amalgamados,3 prevalecem sobre

Husserl), é preciso entender o imperativo dessa abertura de EN: “modernidade”

filosófica significa, no caso, ruptura com a filosofia “moderna” no sentido kantiano,

No princípio era a pura Negação ...

29

isto é, teoria do conhecimento.4 Trocando em miúdos: doravante a filosofia não pode

mais, sob pena de retrocesso, ser identificada à teoria do conhecimento. (O assunto da

filosofia não é mais uma teoria do conhecimento — já na Transcendance de l’Ego,

Sartre impusera a seguinte condição para o desenvolvimento de um projeto filosófico

“realista”: “Il suffit que le Moi soit contemporain du Monde et que la dualité sujet-

objet, qui est purement logique, disparaisse définitivement des préoccupations

philosophiques”, p.86-87.) O primado da negação em EN, isto é, a negação como

ponto de partida da investigação filosófica, pressupõe a desmontagem (possível, por

sua vez, com a “modernidade” filosófica)5 do “primado do conhecimento”, próprio da

teoria epistemológica tradicional — por isso as primeiras páginas de EN dedicam-se

justamente a desfazer “l’illusion du primat de la connaissance”: “Il convient

d’abandonner le primat de la connaissance, si nous voulons fonder cette connaissance

même. (...) La réduction de la conscience à la connaissance, en effet, implique qu’on

introduit dans la conscience la dualité sujet-objet, qui est typique de la connaissance”

(EN, p.17, 18 e 19). E Sartre acrescenta: “Nous sommes ici sur le plan de l’être, non

de la connaissance” (EN, p.28).6 Daí a inovação formal de EN, o famoso “de” entre

parênteses, para se diferenciar radicalmente da idéia de conhecimento: “Ces nécessités

de la syntaxe nous ont obligé jusqu’ici à parler de la ‘conscience non positionnelle de

soi’. Mais nous ne pouvons user plus longtemps de cette expression où le ‘de soi’

éveille encore l’idée de connaissance. (Nous mettrons désormais le ‘de’ entre

parenthèses, pour indiquer qu’il ne répond qu’à une contrainte grammaticale.)” (p.20).

Sob este prisma, compreende-se que o fato de Husserl entender a

Fenomenologia como uma teoria fundacionista do conhecimento7 seja inaceitável aos

olhos do Sartre de EN (encharcados de Heidegger e do Hegel de Kojève, conforme

temos sublinhado). Embora alguns anos antes, no ensaio sobre Husserl, nosso autor

julgara encontrar neste último os instrumentos necessários para a ruptura com a

epistemologia dominante na filosofia francesa (“La philosophie française, qui nous a

O MITO DA RESISTÊNCIA

30

formés, ne connaît plus guère que l’épistémologie. Mais pour Husserl et les

phénoménologues, la conscience que nous prenons des choses ne se limite point à leur

connaissance”, Sit.I, p.31), em EN o ponto de vista husserliano é descartado: “Ainsi,

pour avoir réduit l’être à une série de significations, la seule liaison que Husserl a pu

établir entre mon être et celui d’autrui est celle de la connaissance; il ne saurait donc,

pas plus que Kant, échapper au solipsisme” (EN, p.280). Se na origem do projeto

filosófico sartriano está a “descoberta” de Husserl (“Husserl m’avait pris, je voyais

tout à travers les perspectives de sa philosophie qui m’était d’ailleurs plus accessible,

par son apparence de cartésianisme. J’étais ‘husserlien’ et devais le rester longtemps”,

nos termos com que os Carnets de la drôle de guerre rememoram o momento da

“descoberta” da fenomenologia, p.225), seu acabamento, na forma do “ensaio de

ontologia fenomenológica”, deve-se mais a Heidegger8 do que à filosofia husserliana

(cujo “idealismo” Sartre, já nos Carnets de la drôle guerre, cf. p.226, julga superado

por Heidegger). Em EN, o “idealismo” de Husserl é considerado um retrocesso com

relação a Hegel — por isso, desrespeitando a cronologia, Sartre examina os problemas

filosóficos em questão a partir das soluções encontradas por Husserl, Hegel e

Heidegger (nesta ordem). É o próprio autor quem explica a razão desse desrespeito à

cronologia: “Si, sans observer les règles de la succession chronologique, nous nous

conformons à celles d’une sorte de dialectique intemporelle, la solution que Hegel

donne au problème[de l’existence d’autrui], dans le premier volume de la

Phénoménologie de l’Esprit, nous paraîtra réaliser un progrès important sur celle que

propose Husserl” (p.280). Comparado com Husserl, no que diz respeito ainda ao

problema do Outro, foi Hegel quem “a su placer le débat à son véritable niveau”

(“bien que sa vision soit obscurcie par le postulat de l’idéalisme absolu”, EN, p. 290).

A grande crítica de EN a Husserl é que ele não teria ultrapassado verdadeiramente o

idealismo kantiano: “Il n’a jamais dépassé la pure description de l’apparence en tant

que telle, il s’est enfermé dans le cogito, il mérite d’être appelé, malgré ses

No princípio era a pura Negação ...

31

dénégations, phénoméniste plutôt que phénoménologue; et son phénoménisme côtoie à

chaque instant l’idéalisme kantien” (EN, p.111). Logo no Primeiro Capítulo do livro,

Sartre afirma que Husserl, tanto quanto Kant, começa “deliberadamente pelo abstrato”

— “Mais on ne parviendra pas plus à restituer le concret par la sommation ou

l’organisation des éléments qu’on en a abstraits” (EN, p.38). O que levará à seguinte

conclusão sobre o kantismo de Husserl: “Husserl a conservé le sujet transcendantal

(...) qui ressemble fort au sujet kantien” (EN, p.279) e, nessa medida, está aquém de

Hegel (pp.280 e 283) — “En passant de Husserl à Hegel, nous avons accompli un

progrès immense” (EN, p.283). Todavia, Hegel também não teria resolvido o

problema: “Que nous a apporté cette longue critique? [a Hegel] Ceci simplement: c’est

que mon rapport à autrui est d’abord et fondamentalement une relation d’être à être,

non de connaissance à connaissance, si le solipsisme doit pouvoir être réfuté. Nous

avons vu, en effet, l’échec de Husserl qui, sur ce plan particulier, mesure l’être par la

connaissance et celui de Hegel qui identifie connaissance et être” (EN, p.289-290).

Neste particular, é Heidegger quem abre o caminho ao mostrar que “le rapport originel

de l’autre avec ma conscience n’est pas (...) la connaissance” (EN, p.292). Em EN, é a

ação que prevalece sobre o conhecimento (veremos mais adiante que nesse “ensaio de

ontologia fenomenológica” o primado da negação é ao mesmo tempo o primado da

Ação, como em Kojève): “Avoir, faire et être sont les catégories cardinales de la

réalité humaine. Elles subsument sous elles toutes les conduites de l’homme. Le

connaître par exemple est une modalité de l’avoir” (EN, p.485).

Mas se a questão da verdade não pode mais ser pensada nos termos do

antagonismo epistemológico kantiano (daí o “fracasso” de Husserl), o propósito da

filosofia não é tampouco um “absoluto de conhecimento”, como na filosofia

dogmática do século XVII: “En renonçant au primat de la connaissance, nous avons

découvert l’être du connaissant et rencontré l’absolu, cet absolu même que les

rationalistes du XVIIe siècle avaient défini et constitué logiquement comme un objet

O MITO DA RESISTÊNCIA

32

de connaissance. Mais, précisément parce qu’il s’agit d’un absolu d’existence et non

de connaissance, il échappe à cette fameuse objection selon laquelle un absolu connu

n’est plus un absolu, parce qu’il devient relatif à la connaissance qu’on en prend. En

fait, l’absolu est ici non pas le résultat d’une construction logique sur le terrain de la

connaissance, mais le sujet de la plus concrète des expériences” (EN, p.23). Ao

“absoluto de conhecimento”, construído logicamente pelo “grande racionalismo” do

século XVII (para usar a expressão de Merleau-Ponty), EN contrapõe portanto um

“absoluto de existência” (definido como “le sujet de la plus concrète des expériences”

— ele é a própria experiência).9 Não mais podendo ser enquadrada nos moldes da

tradição gnosiológica anterior, a questão da verdade situa-se agora noutro registro: o

da experiência vivida. (O que aliás Malraux —importante fonte de EN, como

veremos— enunciara em termos literários: “Ce n’était ni vrai, ni faux, mais vécu”, La

Condition Humaine, Pléiade, p.693.) Isso significa que, assim como outrora, à época

da consolidação do mundo moderno, a filosofia, após uma longa travessia por

“turbulentos mares”, pisou em terra firme, separando-se da teologia, agora (com Ser e

Tempo sobretudo) a filosofia se separa da teoria do conhecimento (e do sujeito

transcendental),10 tentando alcançar o solo da “experiência concreta”. No lugar de uma

teoria do conhecimento, e do sujeito transcendental kantiano, um “pensamento da

historicidade”11 (cujo caminho foi indicado pela história ontológica heideggeriana); no

lugar do “absoluto do conhecimento”, próprio da filosofia dogmática do século XVII,

um “absoluto de existência” (que Merleau-Ponty chamará “le métaphysique dans

l’homme”, ou “métaphysique en acte”12) — numa palavra: uma “filosofia concreta”,

isto é, capaz de mostrar “la nécessité d’une existence concrète et contingente au

milieu du monde” (EN, p.409).

Mas o que vem a ser uma “filosofia concreta” (que vai dar no “materialismo

subjetivo” posterior) a partir da Fenomenologia? Se nos reportarmos a alguns

momentos anteriores da surpreendente tentativa sartriana de converter a austera

No princípio era a pura Negação ...

33

fenomenologia num ativismo filosófico “vers le concret” (algo já muito mais

radicalizado do que na matriz), procurando reconstituir seus primeiros passos, o ponto

de partida de EN se tornará bem menos enigmático. Tentemos, pois, expor a gênese do

projeto “realista” do jovem Sartre.

*

A busca de uma “filosofia concreta”, contra o que a Questão de Método

chamará de “idealismo oficial” dos universitários franceses, já pode ser surpreendida

no jovem Sartre de entre-guerras. Antes de sua estada em Berlim (1933-1934), quando

finalmente “descobre” a fenomenologia alemã, Sartre estudou alguns teóricos

franceses do direito internacional (particularmente Hauriou, Davy e Léon Duguit).

Num artigo de 1927, “La Théorie de l’Etat dans la pensée moderne française”, nosso

autor põe em dúvida certas “notions métaphysiques” consideradas muito abstratas.

Após descartar a perspectiva “idealista”, representada principalmente por Esmein —

”de nos jours, l’idéalisme classique (...) ne peut s’adapter aux faits nouveaux des

années d’après guerre”—, Sartre parece salvar alguns aspectos do que ele chama de

“realismo” de Duguit (por exemplo, a idéia de Estado como “fonction sociale”). A

tarefa que vislumbra então para o filósofo (seu próprio projeto filosófico) é, segundo

suas palavras, “reconstruire les concepts [de “Droit naturel” e de “souveraineté de

l’Etat”, no caso] sur une base de faits”. O artigo indica ainda que apenas a partir de

uma perspectiva “realista” torna-se possível compreender, por exemplo, que “ce sont

les révolutionnaires d’Amérique et de France qui ont donné au Droit naturel une

existence réelle et à la souveraineté de l’Etat une sanction idéale”.

Mas é sobretudo num importante ensaio escrito dois anos depois, “Légende de

la Vérité” (ponto de partida do pensamento político sartriano — e a primeira tentativa

do autor de vincular filosofia e literatura: “La Légende de la Vérité est une espèce

O MITO DA RESISTÊNCIA

34

d’essai de trouver un rapport entre littérature et philosophie”, Sartre-Un Film, p.41),

que encontramos elementos que nos permitem falar, curiosamente, num certo

“materialismo” do jovem Sartre. Como diz Simone de Beauvoir, esse ensaio de 1929

“rattachait les divers modes de la pensée aux structures des groupes humains” (La

Force de l’âge, p.49). A partir de referências históricas precisas, o jovem Sartre

procura determinar a necessidade (histórica) da emergência (filosófica) do problema

da verdade. Desta perspectiva, nosso autor pode afirmar que a questão da verdade não

existiu sempre — sua origem é datada historicamente: “La vérité procède du

commerce: elle accompagna au marché les premiers objets manufacturés: elle avait

attendu leur naissance pour sortir, tout armée, du front des hommes”. A “verdade” e

“os primeiros objetos manufaturados” têm portanto a mesma idade. O propósito do

ensaio, vê-se logo, é dar conta da gênese material (por assim dizer) do problema da

verdade, ou melhor, desentranhar essa gênese a partir das condições do mercado, dos

“objetos manufaturados”, e não a partir de uma história interna da filosofia, ou das

idéias. É a própria natureza da mercadoria que engendra determinadas reflexões,

sugere o autor. (Análise curiosa, sem dúvida, tanto mais quando se pensa que àquela

época Sartre ignorava completamente Marx — é apenas quase dez anos depois, num

texto de 1938, “La Conspiration par Paul Nizan”, que nosso autor vai se referir às

“admirables analyses du fétichisme de la marchandise” em Marx. Em EN, as

referências a Marx serão determinadas sobretudo pela leitura da Fenomenologia do

Espírito: “la fameuse relation “Maître-esclave” qui devait si profondément influencer

Marx”, p.282.) A relação do pensamento com as coisas, ou a “estreita união do

espírito e das coisas”, nas palavras do próprio Sartre: eis o tema do ensaio.

Enfatizando a determinação fundamental da economia, da esfera do mercado (as

relações de troca, as relações materiais entre os homens), o autor escreve: “La

puissance du marché libéra les hommes de leurs grandes forces intérieures”. Daí a

idéia de um “irrésistible mouvement” das mercadorias.13

No princípio era a pura Negação ...

35

Entre esses primeiros ensaios de Sartre e EN, dá-se a “descoberta” de Husserl.

Sem poder encontrar em sua própria casa os instrumentos teóricos necessários para o

desenvolvimento de seu projeto “realista”, Sartre (assim como outros de sua geração)

é forçado a cruzar o Reno (literalmente, como atesta sua passagem, depois de Aron,

por Berlim). O problema é: como conciliar esse projeto “realista” com a “descoberta”

da filosofia husserliana (uma “conception idéaliste de l’existence”, conforme EN a

define, p.148)? La Transcendance de l’Ego (primeira elaboração dessa “descoberta”,

pois escrito no exato momento em que Sartre estudava Husserl em Berlim), desfaz o

problema enquanto tal porque, vendo na filosofia husserliana uma libertação da

“philosophie alimentaire”, a qual “dissolve as coisas na consciência”, julga ver aí

também um solo fértil para o desenvolvimento de uma filosofia “realista”. Na

conclusão dessa sua primeira obra filosófica, Sartre procura justamente refutar as

acusações, feitas por “teóricos de extrema esquerda”, de que a fenomenologia é um

“idealismo”. Contra essa acusação “injusta”, nosso autor define a fenomenologia

como uma “corrente realista”, na medida em que situa “o homem no mundo”:14 “Les

théoriciens d’extrême-gauche ont parfois reproché à la phénoménologie d’être un

idéalisme et de noyer la réalité dans le flot des idées. Mais si l’idéalisme c’est la

philosophie sans mal de M. Brunschvicg, si c’est une philosophie où l’effort

d’assimilation spirituelle ne rencontre jamais de résistances extérieures, où la

souffrance, la faim, la guerre se diluent dans un lent processus d’unification des idées,

rien n’est plus injuste que d’appeler les phénoménologues des idéalistes. Il y a des

siècles, au contraire, qu’on n’avait senti dans la philosophie un courant aussi réaliste.

Ils ont replongé l’homme dans le monde, ils ont rendu tout leur poids à ses angoisses

et à ses souffrances, à ces révoltes aussi. Malheureusement, tant que le Je restera une

structure de la conscience absolue, on pourra encore reprocher à la phénoménologie

d’être une “doctrine-refuge”, de tirer encore une parcelle de l’homme hors du monde

et de détourner par là l’attention des véritables problèmes. Il nous paraît que ce

O MITO DA RESISTÊNCIA

36

reproche n’a plus de raisons d’être si l’on fait du Moi un existant rigoureusement

contemporain du monde et dont l’existence a les mêmes caractéristiques essentielles

que le monde. Il m’a toujours semblé qu’une hypothèse de travail aussi féconde que le

matérialisme historique n’exigeait nullement pour fondement l’absurdité qu’est le

matérialisme métaphysique. Il n’est pas nécessaire, en effet, que l’objet précède le

sujet pour que les pseudo-valeurs spirituelles s’évanouissent et pour que la morale

retrouve ses bases dans la réalité. (...) Le Moi (indirectement et par l’intermédiaire des

états) tire du Monde tout son contenu. Il n’en faut pas plus pour fonder

philosophiquement une morale et une politique absolument positives” (p.85, 86, 87).

É exatamente esse projeto filosófico “realista” que sustenta as reflexões de

Sartre em L’imagination, onde o autor impõe como condição para um estudo

verdadeiramente “concreto” do problema da imagem a ruptura com os pressupostos da

metafísica: “La théorie métaphysique de l’image échoue définitivement dans sa

tentative pour retrouver la conscience spontanée d’image et la première démarche

d’une psychologie concrète doit être pour se débarrasser de tous les postulats

métaphysiques” (p.109-110). A pista para essa ruptura com os postulados tradicionais

da metafísica (capaz de levar a uma “psicologia concreta”), Sartre entrevê, naquele

momento, ainda em Husserl (a quem dedica o último capítulo de L’imagination):

“Husserl ouvre le chemin” (p.158).15 Mas é no ensaio sobre Husserl que encontramos

mais claramente formulada essa virada sartriana (que converte a Fenomenologia numa

filosofia “concreta”): “Contre la philosophie digestive de l’empiro-criticisme, du néo-

kantisme, contre tout “psychologisme”, Husserl ne se lasse pas d’affirmer qu’on ne

peut pas dissoudre les choses dans la conscience”(Sit.I, p.29-30). Na fenomenologia

husserliana, Sartre vê a chave para o desenvolvimento de seu projeto iluminista,

explicitado posteriormente, de um “spirituel dans la rue”,“au marché”, “désincarné”16:

“Husserl a réinstallé l’horreur et le charme dans les choses. (...) Nous voilà délivrés de

Proust. Délivrés en même temps de la “vie intérieure”(...). Ce n’est pas dans je ne sais

No princípio era a pura Negação ...

37

quelle retraite que nous nous découvrirons: c’est sur la route, dans la ville, au milieu

de la foule, chose parmi les choses, hommes parmi les hommes” (Sit.I, p.31-32).

Mais tarde, nos Carnets de la Drôle de Guerre, afirmando ter enfim descoberto

que a filosofia de Husserl “évoluait au fond vers l’idéalisme” (“ce que je ne pouvais

admettre”), nosso autor vai buscar sua “solution réaliste” via Heidegger: “Je revins à

chercher une solution réaliste. (...) Certainement c’est pour m’évader de cette impasse

husserlienne que je me tournai vers Heidegger” (Les Carnets de la Drôle de Guerre,

p.226-227). “Realismo” aqui, no caso da “modernidade” heideggeriana, significa

sobretudo uma filosofia que não é mais “contemplativa”, como explicará Sartre alguns

anos mais tarde, em 1943: “L’erreur de M. Bataille est de croire que la philosophie

moderne est demeurée contemplative. Il n’a visiblement pas compris Heidegger”

(Sit.I, p.145).17 Se nos lembrarmos, além disso, que Kojève definira a filosofia

hegeliana justamente como um “realismo”, atingiremos afinal o nervo do “realismo”

do jovem Sartre: “On a souvent affirmé que le Système de Hegel est ‘idéaliste’. Or en

fait, l’Idéalisme absolu hégélien n’a rien à voir avec ce qu’on appelle ordinairement

‘Idéalisme’. Et si on emploie les termes dans leur sens usuel, il faut dire que le

système de Hegel est ‘réaliste’” (Kojève, Introduction à la Lecture de Hegel, p.427).18

E mais adiante Kojève precisa o sentido desse “realismo”: “Il faut dire que ‘Réalisme’

en philosophie ne signifie, en fin de compte, rien d’autre qu’’Historisme’. (...) On

introduit dans la philosophie la notion de l’Histoire(...). Dire que la philosophie doit

être ‘réaliste’, c’est donc dire en dernière analyse qu’elle doit tenir et rendre compte

du fait de l’Histoire.(...) Il n’y a vraiment de ‘Réalisme’ philosophique que là ou la

philosophie tient et rend compte de l’Action, c’est-à-dire du Temps” (Introduction à

la Lecture de Hegel, p.432-433). História, Ação, Tempo: eis aqui os ingredientes do

Hegel de Kojève, os quais, mesclados ao “pensamento da historicidade”

heideggeriano, comporão o esqueleto filosófico de EN.

O MITO DA RESISTÊNCIA

38

É assim que quando lermos em EN — “on doit partir d’un certain réalisme”

(p.362), já poderemos identificar os termos desse “realismo”: uma filosofia não

contemplativa (a partir da Fenomenologia, sobretudo do Heidegger de Ser e Tempo);

uma filosofia que, em vez de mero encadeamento de conceitos, seja capaz de

apreender a experiência viva (para recorrer ao vocabulário com o qual Merleau-Ponty

reativa a interpretação kojeviana da Fenomenologia do Espírito19). Se Sartre restringe

a acepção de seu “realismo” (“un certain réalisme”) é porque faz ao mesmo tempo a

crítica radical do “réalisme naïf” (EN, p.284), mais diretamente identificado ao

positivismo do século XIX (p.268), com forte influência na tradição acadêmica

francesa.20 Contra esse “réalisme naïf”, EN busca “le concret” enquanto “totalité

synthétique” (p.37-38) — o que significa compreender “l’homme, le monde et le

rapport qui les unit, à la condition que nous envisagions ces conduites comme des

réalités objectivement saisissables et non comme des affections subjectives qui ne se

découvriraient qu’au regard de la réflexion” (p.38). Outro momento dessa tentativa

sartriana de expor seu “realismo”: “A quel être le pour-soi est-il présence? Notons tout

de suite que la question est mal posée: (...) La question n’a de sens que si elle est

posée dans un monde” (EN, p.220) — um mundo que “se dévoile concrètement”

(p.221). Essa forma tomada pelo “realismo” em EN é a viga central de sustentação da

estrutura do livro, cuja pedra fundamental é o problema da negação. Estamos agora em

condições de compreender melhor esse ponto de partida do “ensaio de ontologia

fenomenológica” de Sartre.

*

O problema da negação se constitui em EN a partir do primeiro traçado da

figura do pour-soi. Mas o inverso é também verdadeiro: é a busca do fundamento da

negação que permite ao autor delinear a figura do pour-soi: “La négation vient du

pour-soi lui-même” (EN, p.214); “le pour-soi est fondement de toute négativité et de

toute relation, il est la relation” (EN, p.411). A própria negação pressupõe a

No princípio era a pura Negação ...

39

consciência: “rien sinon la négation (...) ne peut venir à l’en-soi par le Pour-soi”

(p.225); é pela “réalité-humaine” que “la négation par dépassement vient au monde”,

p.236-237 (decorre daí a “humanização” do “néant”, como veremos adiante). É a

negação o primeiro divisor de águas entre o pour-soi e o en-soi — é ela que torna

possível distinguir a figura do pour-soi do fundo amorfo e indiferenciado do en-soi

(regido pelo “princípio de identidade”21): “Mais il faut préciser ce que nous entendons

par cette négation originelle. Il convient de distinguer deux types de négation: la

négation externe et la négation interne. (...) Il est clair que ce type de négation

[interne] ne saurait s’appliquer à l’être-en-soi. Il appartient par nature au pour-soi.

Seul le pour-soi peut être déterminé dans son être par un être qu’il n’est pas. Et si la

négation interne peut apparaître dans le monde (...) c’est par le pour-soi qu’elle vient

au monde, comme toute négation en général” (EN, p.215-216). E mais: “Seule une

conscience peut se constituer comme négation interne” (EN, p.682).22

A negação interna —definida como “liaison synthétique et active des deux

termes dont chacun se constitue en se niant de l’autre” (EN, p.298)23— pressupõe, por

sua vez, a idéia de “négation de la négation” (p.222-223), “seconde négation” (p.334),

“double négation interne” (p.415), numa palavra, “négation concrète” (p.223 e 230):

“la négation interne est un lien ontologique concret” (p.216). Mas veremos que a

“négation de la négation” —essa “négation-fondement”: “le fondement de la négation

est négation de négation (...); cette négation-fondement...” (p.239)— só aparece em

EN por ocasião da primeira entrada em cena da liberdade no livro (assunto do nosso

próximo capítulo). Limitemo-nos por ora a salientar que a negação interna (própria do

pour-soi, como foi dito) implica a existência de relações internas entre os termos em

questão — na linguagem de Sartre, implica “l’unité de relations internes” (p.622): “La

liaison de l’être et du non-être ne peut être qu’interne” (EN, p.155-156).24

O primeiro momento da constituição do problema da negação (que permite

lançar as bases da estrutura do pour-soi e do en-soi, e onde impera a idéia,

O MITO DA RESISTÊNCIA

40

heideggeriana, do “néant” como “fundamento da negação”25) é um momento de pura

negatividade — o momento negativo da “alienação” que descreve o ser-fora-de-si ou

uma subjetividade impotente diante da força das coisas. Mas de que alienação se trata?

Se desmontarmos a “engrenagem existencial” da alienação, veremos sobressair, em

primeiro lugar, uma das peças essenciais que a compõem: o olhar do outro. Com

efeito, trata-se de uma alienação que resulta fundamentalmente do olhar do outro, isto

é, estamos diante de um processo de coisificação por intersubjetividade: “L’autre en

surgissant confère au pour-soi un être-en-soi-au-milieu-du-monde comme chose parmi

les choses” (EN. p.481); “tout ce qui est aliéné n’existe que pour l’autre” (p.584).26

Ressaltemos alguns outros aspectos dessa descrição filosófica da alienação que resulta

da existência de Autrui: “Et ce moi que je suis, je le suis dans un monde qu’autrui m’a

aliéné” (p. 307); “avec le regard d’autrui, la ‘situation’ m’échappe ou, pour user d’une

expression banale, mais qui rend bien notre pensée: je ne suis plus maître de la

situation” (p. 311); “Autrui est au milieu de mon monde” (p. 316); “Autrui est d’abord

pour moi l’être pour qui je suis objet” (p.317); “la présence d’autrui” “démondanise”

mon monde (p. 318); “Mon être pour-autrui est une chute à travers le vide absolu vers

l’objectivité. Et comme cette chute est aliénation(...)” (p. 321); “Autrui m’est présent

partout comme ce par quoi je deviens objet” (p.327); “mon être-pour-autrui, cet être

écartelé” (p.334); “je me sens atteint par autrui dans mon existence de fait” (p. 401);

“les bornes de ma liberté”: “du fait de l’existence d’autre, j’existe dans une situation

qui a un dehors et qui, de ce fait même, a une dimension d’aliénation...” (p. 582);

“l’existence de l’Autre apporte une limite de fait à ma liberté” (p. 581); “vivre dans un

monde hanté par mon prochain...” (p. 567); “l’aliénation permanente de mon être-

possibilité qui n’est plus ma possibilité, mais celle de l’autre” (p. 605).

Mas a alienação em EN resulta também da própria estrutura da consciência,

que tem seu ser fora de si mesma — uma consciência cujo ser foi jogado no mundo

das coisas: “se métamorphoser en chose” (EN, p.672), “je suis dehors” (p.468).27 Essa

No princípio era a pura Negação ...

41

idéia de que meu ser está fora de mim é constitutiva de EN: “Je suis toujours hors de

moi, ailleurs” (p. 652); “Nous courons vers nous-mêmes et nous sommes, de ce fait,

l’être qui ne peut pas se rejoindre. En un sens, la course est dépourvue de

signification, puisque le terme n’est jamais donné, mais inventé et projeté à mesure

que nous courons vers lui” (EN, p.244); “Cette objectivité de ma fuite, je l’éprouve

comme une aliénation que je ne puis ni transcender ni connaître” (EN, p.411-412).

Outros exemplos, dentre os inúmeros que atravessam a obra: “Ce Moi aliéné (...) c’est

mon être-dehors” (p.332-333); “Ainsi trouvons-nous dans les choses” (p. 516); “la

réalité humaine (...) vient recevoir sa place parmi les choses, sans en être aucunement

maîtresse” (p.547); “il n’y a jamais rien de plus que les choses” (p.607); “j’éprouve

corrélativement mon aliénation et mon objectivité”(p.468); “l’appartenance au Nous-

objet est sentie comme une aliénation plus radicale encore du Pour-soi” (p. 470); “et

qui vise à englober mon appartenance comme objet à la totalité humaine (...) saisie

également comme objet” (p. 470); “c’est à travers cette souffrance subie que

j’éprouve mon être- regardé-comme-chose-engagée-dans-une-totalité-des-choses (...);

je nous éprouve comme saisis à partir des choses et comme choses vaincues par le

monde” (p.472); “il n’y a jamais rien de plus que les choses(...); c’est les choses

renvoyant au sujet son image” (p.607); “ce que j’éprouve c’est un être dehors” (p.

469); “j’ai à être moi-même hors de moi” (p.492); “ la réalité humaine (...) est

perpétuellement arrachée à elle-même” (p.495); “ainsi je rencontre ici tout à coup

l’aliénation totale de ma personne: je suis quelque chose que je n’ai pas choisi d’être”

(p.582); “être aliénée, c’est-à-dire d’exister comme forme en soi pour l’autre; nous ne

pouvons échapper à cette aliénation...” (p. 583); “je suis (...) en-soi par rapport à moi”

(p.653); “c’est moi hors de moi, hors de toute subjectivité, comme un en-soi qui

m’échappe” (p. 652); “ma conscience (...) est dehors comme une chose” (p.504).28

Essa idéia de que a consciência tem seu ser fora de si mesma, cuja importância

estrutural em EN fica evidenciada na lista exaustiva dos exemplos acima citados, vem

O MITO DA RESISTÊNCIA

42

inicialmente da leitura sartriana de Husserl: “La philosophie de la transcendance nous

jette sur la grand-route, au milieu des menaces, sous une aveuglante lumière. (...) Que

la conscience essaye de se reprendre, de coïncider enfin avec elle-même, tout au

chaud, volets clos, elle s’anéantit. Cette nécessité pour la conscience d’exister comme

conscience d’autre chose que soi, Husserl la nomme ‘intentionnalité’” (Sit.I, p.31).29

Lembremos também La Transcendance de l’Ego, onde Sartre, numa “perspectiva

husserliana” (cf. Simone de Beauvoir, La force de l’âge, p.210), procura demonstrar a

seguinte tese: “Nous voudrions montrer ici que l’Ego n’est ni formellement ni

matériellement dans la conscience: il est dehors, dans le monde; c’est un être du

monde, comme l’Ego d’autrui” (La Transcendance de l’Ego, p.13). Todavia, ao

desenvolver em EN a idéia do ser-fora-de-si, nosso autor já navega em águas

heideggerianas: “le Dasein est ‘hors de soi, dans le monde’, il est ‘un être des

lointains’”, lemos no próprio EN (p.53).30 Mas já sabemos que no “ensaio de

ontologia” de Sartre as águas heideggerianas correm no mesmo sentido das do Hegel

de Kojève — a descrição do ser-fora-de-si em EN tem muito também da leitura

kojeviana da Fenomenologia do Espírito. O que Sartre descreve é um processo de

desintegração do sujeito: “L’aliénation de moi qu’est l’être-regardé implique

l’aliénation du monde que j’organise” (EN, p.309); “le monde se désintègre”; “cette

désintégration ne m’est pas donnée, je ne puis ni la connaître ni même seulement la

penser”(EN, p.319). E ainda: “le monde s’écoule hors du monde et je m’écoule hors

de moi” (p.307). O autor chama de “hémorragie interne”(p.307) esse processo de

“écoulement de mon monde vers autrui-objet”, ou de “l’effondrement du monde en

tant que tel” (p.389) — “une destruction aliénante et un effondrement concret de mon

monde qui s’écoule vers autrui”(p.402). É no desdobramento desse processo (e aqui

podemos reconhecer mais claramente os ecos da Fenomenologia do Espírito) que se

dá o esfacelamento do sujeito —daí a idéia, recorrente como vimos, de ter seu ser fora

de si mesmo.31 Se quiséssemos resumir o resultado dessa primeira desmontagem da

No princípio era a pura Negação ...

43

“engrenagem existencial” da alienação em EN, diríamos que o momento negativo da

alienação descreve um estado de “néantisation” (no sentido de Kojève, interpretando

Hegel: “néantisation” é “cessation de l’action”)32, isto é, trata-se de uma descrição (no

interior da qual Heidegger e Hegel aparecem quase que indiferenciados, ou em alguns

momentos um prevalece sobre o outro) da impotência de uma subjetividade cujo ser

está fora de si mesmo, prostrado diante da força das coisas.33

Mas já no primeiro capítulo do livro há uma tendência à inversão (e este é um

momento em que Hegel prevalece sobre Heidegger), ou seja, à superação do

“quietismo”, do estado de paralisia e “angústia” próprios do Dasein heideggeriano (a

solidão de uma subjetividade abandonada num mundo inteiramente desencantado),

através de uma luta heróica de consciências (no melhor estilo da Fenomenologia do

Espírito, interpretada por Kojève). Se Heidegger pára aqui, na descrição do momento

de dissolução do sujeito, as análises de EN procuram subverter esse estado de coisas

— subversão que levará à superação do momento negativo da alienação e à afirmação,

feita no final do livro, da “primauté de l’être sur le néant”, p.683 (o que implica a

afirmação da Ação):34 “Ainsi, en renversant la formule de Spinoza, nous pourrions

dire que toute négation est détermination.35 Cela signifie que l’être est antérieur au

néant et le fonde. Par quoi il faut entendre non seulement que l’être a sur le néant une

préséance logique mais encore que c’est de l’être que le néant tire concrètement son

efficace” (p.51). O resultado desse mecanismo de inversão, ao longo do qual passamos

da idéia do “néant” como “condition première de toute enquête philosophique ou

scientifique” à “préséance logique” do ser, é, como veremos a seguir, a afirmação da

liberdade: o capítulo sobre a negação termina com a afirmação da liberdade humana.

A liberdade sai da negação (assim como na Fenomenologia do Espírito, conforme

enfatiza Kojève, a consciência de si brota da negação), ou melhor, para usar os termos

de Jean Wahl, “la négation suppose la liberté” (“Essai sur le néant d’un problème”, in

Deucalion, nº 1, 1946, p.62). Noutras palavras: a passagem de um momento de pura

O MITO DA RESISTÊNCIA

44

negatividade ao momento “positivo” da alienação é resultado da “descoberta” da

figura de uma liberdade que é libertação (no mesmo sentido que na Fenomenologia do

Espírito, segundo Hyppolite, “la liberté absolue suppose la libération”, La

Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.166, nota 35).

No princípio era a pura Negação ...

45

Notas - Capítulo 1

1)”Mon projet ultime et initial —car il est les deux à la fois— est, nous le verrons,

toujours l’esquisse d’une solution du problème de l’être” (EN, p.518).

2)Esse privilégio da negação é justificado por Sartre alguns anos depois, nos Cahiers

pour une morale, na passagem que figura como epígrafe deste capítulo. É justamente

tal privilégio que levará Jean Wahl, em sua análise das páginas iniciais da primeira

parte de EN, a indagar: “Ne pourrait-on reprocher à Sartre la tendance qu’il a à

présenter certaines choses positives (comme le futur) sous forme négative?” (Jean

Wahl, “Essai sur le néant d’un problème — sur les pages 37-84 de L’Être et le Néant

de J. P. Sartre”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.65-66). Ainda sobre o primado da negação

em EN, Jean Wahl escreve: “Sartre ici va maintenir la réalité de la négation (...). En

fait il va aller bien plus loin que “la réalité de la négation” puisqu’il va tenter de

prouver l’idée de l’existence objective du non-être” (Idem, p.42). Também Merleau-

Ponty, em seus comentários a respeito de EN, define o “ensaio de ontologia

fenomenológica” de Sartre como “une philosophie de la négativité, ou “une

philosophie du négatif” (Le visible et l’invisible, p.90): “le néant n’est pas, ce qui est

précisément pour lui la seule manière d’être” (Le visible et l’invisible, p.79). Nessa

perspectiva, “une philosophie qui pense vraiment la négation, c’est-à-dire qui la pense

comme ce qui de part en part n’est pas, est aussi une philosophie de l’Être. Nous

sommes par-delà le monisme et le dualisme, parce que le dualisme a été poussé si loin

que les opposés n’étant plus en compétition sont en repos l’un contre l’autre,

coextensifs l’un à l’autre. (...) Du point de vue d’une philosophie de la négativité

absolue, — qui est du même coup philosophie de la positivité absolue, — tous les

problèmes de la philosophie classique se volatilisent, car ils étaient des problèmes de

O MITO DA RESISTÊNCIA

46

“mélange” ou d’”union”, et mélange et union sont impossibles entre ce qui est et ce

qui n’est pas, mais, par la même raison qui rend le mélange impossible, l’un ne saurait

être pensé sans l’autre. Ainsi disparaît l’antinomie de l’idéalisme et du réalisme”

(Idem, p.80, 81 e 82). Isso posto, Merleau-Ponty tratará no entanto de criticar EN,

tomado como representante de uma tradição de pensamento negativo que remonta a

Hegel — essa “filosofia da negatividade”, fundamental para o primeiro Merleau-

Ponty, não só o dos escritos políticos mas também o da Fenomenologia da Percepção,

já se tornara inaceitável aos olhos do autor de Le visible et l’invisible.

3)Com efeito, em EN estamos diante de um Hegel “existencialista” (que vem do Hegel

“pré-existencialista” de Kojève, por cujo trilho correrão também as análises de

Hyppolite e do primeiro Merleau-Ponty): “Le véritable concret, pour Hegel, c’est

l’Existant” (EN, p.47). Nesse sentido, cf. Kojève: “La PhG est une description

phénoménologique de l’existence humaine. C’est dire que l’existence humaine y est

décrite telle qu’elle “apparaît”(erscheint) ou se “manifeste” à celui-là même qui la vit.

En d’autres termes, Hegel décrit le contenu de la conscience de soi de l’homme qui est

dominé dans son existence soit par l’une des attitudes existentielles types qui se

retrouvent partout et toujours (Ire Partie), soit par l’attitude qui caractérise une époque

historique marquante (IIe Partie). L’homme étant appelé dans la PhG — “Conscience”

(Bewusstsein), Hegel indique qu’il s’agit d’une description phénoménologique, en

disant qu’il décrit l’attitude en question telle qu’elle existe “pour la Conscience elle-

même (für das Bewusstsein selbst). Mais Hegel lui-même écrit la PhG après l’avoir

pensé, c’est-à-dire après avoir intégré dans son esprit toutes les attitudes existentielles

possibles. Il connaît donc la totalité de l’existence humaine, il la voit, par conséquent,

telle qu’elle est en réalité ou en vérité” (Introduction à la lecture de Hegel, p.576). As

ressonâncias dessa leitura kojeviana ainda se fazem sentir nos comentários de

Hyppolite sobre a dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia do Espírito:

No princípio era a pura Negação ...

47

“C’est cette expérience existentielle qui fait que la conscience esclave possède l’être-

pour-soi. Dans l’angoisse, le tout de son essence s’est en effet rassemblé en elle,

comme un tout” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.164, nota 26; Hyppolite

enfatiza esse momento da dialética ao qual se atém o Dasein heideggeriano). Merleau-

Ponty, por sua vez, apoiando-se também em Kojève (de cujos cursos fora assíduo

frequentador), e mais explicitamente em Hyppolite, exalta a Fenomenologia do

Espírito como uma obra “existencialista” e acusa o último Hegel de ter posto de lado a

existência, subordinando o indivíduo aos desígnios da história. Se em 1807 Hegel

privilegiou a experiência individual, afirma Merleau-Ponty no ensaio

“L’Existentialisme chez Hegel”, em suas últimas obras ele subjugou o particular ao

universal. Embora no final do seu percurso a filosofia hegeliana passe a considerar a

história como o desenvolvimento de uma lógica, o jovem Hegel, à maneira

“existencialista”, queria “descrever a situação fundamental do homem no mundo”

(“L’Existentialisme chez Hegel”, Les Temps Modernes, nº 7, abril de 1946;

reproduzido em Sens et Non-Sens, p.113). Merleau-Ponty estabelece portanto um

corte entre o primeiro Hegel (“existencialista”) e o Hegel da maturidade (logicista,

“idealista”): “Si le Hegel de 1827 est sujet au reproche d’idéalisme, on n’en peut dire

autant de Hegel de 1807” (Idem, p.111). Em que consiste o “existencialismo” do

jovem Hegel? “On peut parler d’un existentialisme de Hegel en ce sens d’abord qu’il

ne se propose pas d’enchaîner des concepts, mais de révéler la logique immanente de

l’expérience humaine dans tous ses secteurs” (Idem, p.113). A experiência em Hegel,

diferentemente de Kant, teria o estatuto de algo vivido e não simplesmente

contemplado. De acordo com essa leitura merleau-pontyana (calcada, convém insistir,

em Kojève e Hyppolite), todos os temas caros ao existencialismo —por exemplo, a

liberdade, as relações entre o “eu” e o “outro”, a consciência da morte— encontram

ressonância na filosofia do jovem Hegel. Nessa medida, diz Merleau-Ponty, mesmo

O MITO DA RESISTÊNCIA

48

que Kierkegaard —”o primeiro a empregar a palavra existência no seu sentido

moderno”— tenha se contraposto a Hegel, não há uma incompatibilidade entre as duas

filosofias. O Hegel ao qual ele se opõe é aquele que, no final, encerrou-se num

“palácio de idéias”. Quanto ao primeiro Hegel da Fenomenologia, cabe à filosofia da

existência recuperá-lo. Privilegiando, pois, a obra que tratou da “experiência humana”

e recusando as obras consideradas simples “encadeamento de conceitos”, a

interpretação “existencialista” da filosofia hegeliana poderia ser sintetizada nesta frase

de Merleau-Ponty em “La Querelle de l’Existentialisme” (Les Temps Modernes , n° 2,

novembro de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens, p. 141): “On peut interpréter

autrement Hegel (…), on peut le faire (et selon nous il faut le faire) beaucoup plus

marxiste, on peut fonder sa logique sur la phénoménologie et non pas sa

phénoménologie sur sa logique”. (É essa particular leitura de Hegel que permite

responder a questões como esta formulada por Vincent Descombes: “Celui qui verrait

dans l’oeuvre hégélienne un monument rationaliste s’étonnera sans doute du respect

affiché par les futurs ‘existentialistes’ français à l’endroit de Hegel: si l’existence est

foncièrement absurde, injustifiable, comment s’accommoder d’une pensé qui soutient

que ‘tout ce qui est réel est rationnel’”?, Le Même et l’Autre, p. 24-25.) Ainda sobre

essa tentativa de reabilitar Hegel para o campo “existencialista”, cf. a Phénoménologie

de la Perception: “La synthèse de l’En soi et Pour soi qui accomplit la liberté

hégélienne a cependant sa vérité. En un sens, c’est la définition même de l’existence,

elle se fait à chaque moment sous nos yeux dans le phénomène de présence,

simplement elle est bientôt à recommencer et ne supprime pas notre finitude” (p.519).

O propósito de Merleau-Ponty, conforme lemos em “Partout et nulle part”, é buscar a

“face subjetiva da dialética”. Para isso, o autor pretende mostrar que há mais coisas

em comum entre Hegel, Husserl, Heidegger e Bergson (Merleau-Ponty é muito mais

condescendente com Bergson do que Sartre, como veremos logo adiante) do que à

No princípio era a pura Negação ...

49

primeira vista se poderia imaginar: “o século, rumando para a existência, também

rumava para a dialética. (...) A dialética reencontrada pelos contemporâneos é(...) uma

dialética do real. O Hegel que reabilitaram não é aquele de quem o século XIX se

afastara, detentor de um segredo maravilhoso para falar de todas as coisas sem pensar

nelas, aplicando-lhes mecanicamente a ordem e a conexão dialéticas; mas aquele que

não quer escolher entre a lógica e a antropologia, que fazia a dialética emergir da

experiência humana, mas definia o homem como portador empírico do Lógos, punha

no centro da filosofia essas duas perspectivas e a inversão que transforma uma na

outra. Essa dialética e a intuição não são apenas compatíveis: há um momento em que

confluem” (“Em toda e em nenhuma parte”, Pensadores, p. 424-425). E nas Aventures

de la Dialectique (p.50), o filósofo refere-se à dialética como uma “intuition

continuée”. (Nesse sentido, é interessante esta observação de Jean Hyppolite: “Si nous

en croyons Merleau-Ponty les deux grandes découvertes philosophiques de notre

époque sont précisément cette existence et cette dialectique en tant qu’elles se réfèrent

l’une à l’autre. (...) La dialectique n’est pas ce jeu artificiel de notions qu’on a souvent

reproché à Hegel, mais elle est une dialectique du réel, celle même que nous

redécouvrons aujourd’hui dans la Phénoménologie de l’esprit. Ainsi existence et

dialectique ne s’opposent pas comme une donnée immédiate et une médiation

intellectuelle. Cette jonction temporelle de l’immédiat et de la médiation c’est la

dialectique de l’existence telle qu’elle se dévoile à nous dans l’oeuvre de Merleau-

Ponty”, “Existence et Dialectique dans la Philosophie de Merleau-Ponty”, Les Temps

Modernes, nº 184-185, número especial, 1961, p. 231.) Esse propósito de unir as duas

diferentes (se não opostas) linhagens da fenomenologia (no sentido husserliano e no

sentido hegeliano) é reafirmado por Merleau-Ponty em seus cursos na Sorbonne, onde

ensina que o fundamento da filosofia “está no que Husserl denomina ‘história

intencional’ e que outros chamam dialética” (La Fenomenologia y las Ciencias del

O MITO DA RESISTÊNCIA

50

Hombre, p.96). E acrescenta: “A Fenomenologia, no sentido husserliano, une-se neste

momento à Fenomenologia no sentido hegeliano, que consistia em seguir o homem em

suas experiências, sem substituir-se a ele, deslizando-se nelas de maneira a fazer

aparecer seu sentido” (p.101-102). É exatamente essa aproximação entre

fenomenologia, filosofia da existência e dialética hegeliana que servirá de suporte para

o primeiro Merleau-Ponty aproximar-se do marxismo, mas isto já é uma outra história.

4)O que já evidencia o equívoco de Anna Boschetti ao inscrever EN, como observamos

na Introdução, na linhagem da filosofia kantiana. (E nisto Boschetti não está sozinha,

diga-se de passagem — cf. por exemplo Alain Renaut, para quem “la philosophie

morale”, esboçada no final de EN, “retrouve une thématique formellement proche de

celle qu’avait mise en place Kant dès le début de la Critique de la raison pratique”,

Sartre, le dernier philosophe, pp.196, 197 e 198.) Veremos ao longo deste trabalho

que nada mais distante do “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre do que essa

tradição da filosofia de Kant. EN se tornou possível, como já indicamos, justamente a

partir da desmontagem, feita por Heidegger, da filosofia no sentido kantiano — nisto

reside a “modernidade” filosófica para Sartre. Nessa medida, Jean Wahl tem razão ao

demarcar nos seguintes termos o referencial filosófico de EN: “Bien plutôt qu’à des

philosophies abstraites, comme celles de Kant et de Husserl, il faut donc se rattacher à

Heidegger et à son être-dans-le monde; c’est cet être-dans-le-monde qu’il va chercher

à déterminer” (“Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.42).

5) Vale lembrar que a desmontagem do “primado do conhecimento” é o eixo da leitura

heideggeriana de Kant: “A contribuição positiva da Crítica da Razão Pura, de Kant,

por exemplo, reside no impulso que deu à elaboração do que pertence propriamente à

natureza e não em uma ‘teoria do conhecimento’”, lemos em Ser e Tempo (vol.1,

p.37). (É esse tipo de leitura que levará Lukács a afirmar o seguinte a respeito de

Heidegger: “É característico que trate de ressaltar a fundamental tendência

No princípio era a pura Negação ...

51

antropológica da ‘lógica transcendental’ de Kant, para fazer deste filósofo um

precursor do existencialismo, da mesma forma que Simmel tratava de fazer dele um

precursor da filosofia da vida”, O assalto à razão, p.404.) Mais adiante, Heidegger

acrescenta: “É que logo que ‘o fenômeno de conhecimento do mundo’ se apreende em

si mesmo, sempre recai numa interpretação formal e ‘externa’. Um índice disso é a

suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como uma ‘relação de sujeito e objeto’,

tão ‘verdadeira’ quanto vã. Sujeito e objeto, porém, não coincidem com pre-sença

[Dasein] e mundo” (Ser e Tempo, p.98). Ainda sobre a desmontagem do objetivismo

kantiano em Ser e Tempo (ST), cf. vol.1, p.270-271. A verdade, na ótica de Ser e

Tempo, não é adequação entre o sujeito e o objeto: “A verdade não possui, portanto, a

estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, no sentido de uma

adequação entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto)” (ST, vol. 1, p.286-287). E

mais: “Kant não viu o fenômeno do mundo (...). Com isso, o eu foi forçado,

novamente, a ser um sujeito isolado” (ST, vol.II, p.115). Todavia, se a crítica de EN à

teoria epistemológica tradicional pressupõe, sobretudo, esse ponto de vista de ST,

pressupõe também a Fenomenologia do Espírito de Hegel que, como sabemos, começa

justamente com uma crítica da teoria do conhecimento de Kant e onde, conforme

escreve Paulo Arantes, “quando entramos na esfera da consciência-de-si, a verdade

deixa de ser pensada em termos de adequação, a certeza não é mais a do Cogito e só se

torna verdadeira no movimento da socialização de um Selbst recém entrado em cena”

— “de resto, é preciso ver que na Fenomenologia o regime da verdade já não é mais o

da tradição epistemológica anterior (...) pois se trata de uma Bildung, de um processo

de formação, e não de uma simples coleção de conhecimentos da parte de um sujeito

cognitivo” (“Hegel no espelho do Dr. Lacan”, IDE, nº 22, p.76). Mas como o Hegel de

Sartre é passado pelo filtro de Kojève, convém não esquecer o que este último

ensinava a seus alunos: “Il faut voir dans l’Homme autre chose encore qu’un Sujet

O MITO DA RESISTÊNCIA

52

connaissant” (Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, p.433). Um ensinamento

que Kojève, desde o início de seus seminários, atribui à Fenomenologia do Espírito:

“La Phénoménologie est plus qu’une théorie de la connaissance. C’est l’homme

intégral qu’étudie et décrit la Philosophie, et l’anthropologie de Hegel n’est nullement

intellectualiste. (...) La philosophie hégélienne est dirigée contre le dualisme

gnoséologique (d’origine cartésienne). Il s’agit de restituer l’Unité contre tout

dualisme — quel qu’il soit. Et il commence par réduire l’opposition traditionnelle

entre le sujet connaissant et l’objet connu” (Introduction à la lecture de Hegel, p.43-

44). V. Descombes, num capítulo sobre Merleau-Ponty, refere-se a “un conflit, très

caractéristique de la philosophie française, entre le camp de la phénoménologie et le

camp de l’épistémologie” (Le Même et l’Autre, p.76).

6)E o “plano do ser” significa aqui, como veremos, o plano da existência — cf. a esse

respeito o comentário feito por Sartre mais tarde, em Vérité et Existence (obra

póstuma, manuscrito de 1948): “la conscience n’est-elle pas connaissance mais

existence (cf. L’Être et le Néant )” (Vérité et Existence, p.17). Cf. também a análise de

Merleau-Ponty sobre EN: “Le rapport du sujet et de l’objet n’est plus ce rapport de

connaissance dont parlait l’idéalisme classique et dans lequel l’objet apparaît

toujours comme construit par le sujet, mais un rapport d’être selon lequel

paradoxalement le sujet est son corps, son monde et sa situation, et, en quelque sorte,

s’échange “ (“La Querelle de l’Existentialisme, Les Temps Modernes, nº 2, novembro

de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens, p.125; grifos do autor).

7) Lembremos que Husserl define a Fenomenologia como “uma ciência dos fenômenos

puros” — que opera no “campo do conhecimento puro” (A Idéia da Fenomenologia,

p.73). Nessa perspectiva, acrescenta Husserl, o propósito da Fenomenologia é

“elucidar a essência do conhecimento” (A Idéia da Fenomenologia, p.83). Cf. nesse

sentido o seguinte comentário de Carlos Alberto Ribeiro de Moura sobre Husserl: “A

No princípio era a pura Negação ...

53

fenomenologia, tal como ela se constitui originalmente enquanto projeto e sistema

filosófico, se destina muito mais a responder a uma questão clássica de filosofia. Ela

se preocupa em analisar, fundamentalmente, quais são as condições de possibilidade

do conhecimento” (Debate com Luiz Roberto Salinas, “Questão de Método”, in

Epistemologia, Metodologia — Ciências Humanas em Debate, p. 78).

8) “L’Être et le Néant (...) c’était le résultat de la lecture de Heidegger que j’ai faite

dans le camp, d’abord avant et puis surtout dans le camp” (Sartre par lui-même: Un

Film, p.68). Nesse sentido, note-se esta passagem de uma carta que Sartre endereça a

Simone de Beauvoir em janeiro de 1940: “Ce matin j’ai relu la conférence de

Heidegger ‘Qu’est-ce que la métaphysique?’ et je me suis occupé dans la journée à

‘prendre position’ par rapport à lui sur la question du Néant” (Pléiade, p.1904).

9) O “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre está assim a anos-luz de distância

da filosofia dogmática do século XVII. Veremos que as demonstrações ontológicas do

livro, embora “tradicionais” (na acepção de Horkheimer), não o são no sentido da

metafísica clássica — algo mudou na filosofia com Ser e Tempo (voltaremos ao

assunto adiante) e essa mudança abriu a porta para Sartre. O ponto de partida de EN,

conforme temos ressaltado, é a fenomenologia alemã e não a metafísica clássica, como

deixa claro a já citada frase de abertura do livro. Basta pensar que o Descartes de

Sartre já está longe da filosofia dogmática tal qual floresceu no século XVII: vira uma

outra coisa, um Descartes “existencialista” por assim dizer. Nesse sentido, além do

artigo “La liberté cartésienne” (Sit.I), ver Les Carnets de la Drôle de Guerre, onde

lemos: contra a filosofia acadêmica francesa, “ nous[“Nizan, Aron, moi-même”] nous

étions placés sous le signe de Descartes parce que Descartes est un penseur à

explosions. (...) Nous avions l’impression de penser à grands coups d’épée. C’était ce

que nous appelions une pensée révolutionnaire. Et en effet Descartes, en refusant des

intermédiaires entre la pensée et l’étendue, fait preuve d’un tour d’esprit

O MITO DA RESISTÊNCIA

54

catastrophique et révolutionnaire” (p.111). É essa idéia do pensamento cartesiano

como um “esprit catastrophique et révolutionnaire”que permite compreender a

surpreendente (para dizer o menos) identificação, estabelecida por Sartre (durante um

encontro com o grupo da Partisan Review — Hannah Arendt e outros), entre o estilo

de Jean Genet e o de Descartes: “nous avons en ce moment un véritable génie

littéraire en France: il s’appelle Jean Genet, et son style, c’est celui de Descartes”

(citado por Annie Cohen-Solal, in Sartre, p.363). Nessa medida, tentar enfeixar os

problemas de EN no prisma da filosofia do século XVII é tarefa tão inócua quanto fora

do foco central do livro.(Vale para Sartre o que Lebrun escreveu sobre Fichte: “Fichte,

o mais pré-sartreano dos clássicos, dizia que uma certa cegueira à liberdade tornava

ininteligível seu discurso e que um ‘dogmático’ não podia entender nada”, Passeios ao

léu, p.130.) Já em L’imagination, líamos o seguinte: “On ne peut pas se tenir au

dualisme cartésien, il faut abandonner toutes les explications par les traces, les

contiguïtés nerveuses, etc” (p.118). Em EN, a volta ao cogito é com a condição de

“alargá-lo” (o que significa arquivá-lo enquanto tal): “il faut partir du cogito (...) à

condition d’en sortir” (EN, p.112; cf. também p.124); “le cogito cartésien doit être

étendu” (p.518) — numa palavra, é preciso “élargir le cogito” (p.123-124) para poder

incorporar a existência do Outro, a intersubjetividade (sem o que não seria possível

passar da Segunda Parte de EN, “L’Être-Pour-Soi”, à Terceira Parte,“Le Pour-Autrui”,

isto é, mostrar que o “pour-soi” se expõe como “pour-autrui”):“Le cogito cartésien ne

fait qu’affirmer la vérité absolue d’un fait: celui de mon existence; de même, le cogito

un peu élargi dont nous usons ici nous révèle comme un fait l’existence d’autrui et

mon existence pour autrui” (EN, p.329).(Cf. a retomada dessa idéia por Merleau-

Ponty:“Nous devons revenir au cogito pour y chercher un Logos plus fondamental que

celui de la pensée objective”, Phénoménologie de la Perception, p.419.) Após lembrar

que Hegel já superara “la relation univoque qui va de moi (appréhendé par le cogito) à

No princípio era a pura Negação ...

55

l’autre”, substituindo-a por uma “relation réciproque”, Sartre resume nos seguintes

termos o resultado dessa superação: “Ainsi le cogito lui-même ne saurait être un point

de départ pour la philosophie (...). Loin que le problème de l’autre se pose à partir du

cogito, c’est, au contraire, l’existence de l’autre qui rend le cogito possible comme le

moment abstrait où le moi se saisit comme objet” (EN, p.281). Nesse contexto, é no

mínimo estranho (embora não surpreendente, por se tratar de um tipo de leitura

tradicional) que Gerd Bornheim (cujo propósito é, conforme já indicamos na

Introdução, situar EN como um capítulo da metafísica clássica), possa chegar à

seguinte conclusão sobre o “ensaio de ontologia fenomenológica” de Sartre: “O

pressuposto metafísico dessa doutrina encontra-se na dicotomia sujeito-objeto

claramente vigente na Metafísica ocidental a partir de Descartes. (...) E nosso autor

apresenta a sua tese como se dotada de um valor absoluto, supra-histórico” (G.

Bornheim, Sartre, p.114). Colocando o problema apenas nesses termos, corre-se o

risco de esquecer que já na principal fonte filosófica de EN, Ser e Tempo (sem falar de

Hegel, pois o próprio Sartre se encarregou de fazê-lo na passagem acima citada), a

dicotomia sujeito-objeto, ou a relação unívoca própria do Cogito cartesiano, tornara-se

insustentável. Não por acaso, Heidegger fala na necessidade de “reverter” o Cogito

(ST, vol.I, p.278). Tal necessidade se impõe porque o cogito cartesiano é incapaz de

captar “o fenômeno do mundo”: “Como Descartes poderia identificar com o mundo

um determinado ente intramundano e seu ser, se desconhece inteiramente o fenômeno

do mundo e, com isso, também qualquer intramundanidade? (...) Mas será que neste

caminho, que faz abstração do problema específico do mundo, ainda se poderá

alcançar ontologicamente o ser do que nos vem imediatamente ao encontro dentro do

mundo?” (Ser e Tempo, vol.1, p.144-145). É esse ponto de vista heideggeriano que

está no horizonte de EN — e não o Cogito na sua acepção clássica, como pretende

também Alain Renaut que chega a ver, nesse particular, um verdadeiro “point de

O MITO DA RESISTÊNCIA

56

clivage” entre Heidegger e o Sartre de EN pois este último permaneceria “no quadro

de uma filosofia do sujeito ou da consciência”, no sentido cartesiano: “A cet égard,

nulle ambiguïté chez Sartre: ‘Il faut partir du cogito’ (p.112), même si c’est pour

réaménager la figure la plus classique de ce cogito “ (Alain Renaut, Sartre, le dernier

philosophe, p.176-177). Um “réaménagement” que não teria alterado substancialmente

seu ponto de partida — “scindant profondément, de fait (malgré les intentions

proclamées à travers la redéfinition du cogito), subjectivité et intersubjectivité”, EN

não poderia encontrar “les moyens de concevoir autrement la liberté que sur le mode

d’une affirmation solitaire”, e, nessa medida, seria incapaz de superar o solipsismo

cartesiano: “on peut sérieusement craindre que le réaménagement sartrien de la

philosophie du sujet ne soit pas parvenu à porter toutes ses promesses en matière de

philosophie pratique” (Sartre, le dernier philosophe, p.200-201). Daí a ênfase de

Alain Renaut na proximidade, e por vezes quase identidade, entre “cogito cartésien,

cogito sartrien”, p.178 (e aqui o autor leva em conta, além de EN, a leitura de

Descartes feita em Vérité et Existence e em “La liberté cartésienne”): “A réinterpréter

à ce point le cogito cartésien comme étant déjà, dans le doute, néantisation, Sartre

s’exposait toutefois à ne plus pouvoir indiquer en quoi son propre travail renouvelait

véritablement la philosophie de la conscience” (p.182). Mas a “renovação” está

justamente nessa “reinterpretação” sartriana de Descartes...

10)Em EN, escreve Jean Wahl, Sartre quer “trouver l’immanence sans transcendance”

(“Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.69). Daí a recusa do

“sujet transcendantal” husserliano (EN, p.279).

11)Expressão com a qual Habermas designa Ser e Tempo (Martin Heidegger —

L’oeuvre et l’engagement, p.12).

12)”Ainsi comprise, la métaphysique est le contraire du système”, explica Merleau-

Ponty (“Le métaphysique dans l’homme”, Sens et Non-Sens, p.146 e 166) — o que

No princípio era a pura Negação ...

57

evidencia ainda mais quão oceânica é a distância entre essa “métaphysique en acte” e

a filosofia essencialmente sistemática do século XVII. Referindo-se à “invenção

vanguardista do concreto” pela geração de Sartre e de Merleau-Ponty, isto é, à

“redescoberta da vida em estado bruto sob o nome de experiência direta do

metafísico”, Paulo Arantes esclarece: “É preciso lembrar que por metafísica já não se

entendia mais a mesma coisa patrocinada pela ‘filosofia digestiva’ (teoria do

conhecimento) praticada pelo neo-kantismo dominante na universidade francesa: nem

um sistema terminal de conhecimentos, muito menos um conjunto de idéias últimas e

indecidíveis, desativadas pela índole positivista daquela mesma filosofia universitária.

Deixando de ser doutrina, também mudava de gênero: o que se reabilitava era o

metafísico no qual se exprimia a conexão viva com o mundo” (Paulo Eduardo Arantes,

Um Departamento Francês de Ultramar, p.185-186).

13)Segundo F. Jameson, “mesmo o Sartre da obra anterior [à Crítica da Razão

Dialética] liga imediatamente a experiência do nós-sujeito àquela dos objetos

manufaturados. (...) Mesmo em O Ser e o Nada a mercadoria é o suporte disfarçado do

relacionamento interpessoal [sic, problema da tradução brasileira], da luta

interpessoal” (Marxismo e Forma, p.195). Com efeito, considere-se esta passagem de

EN sobre “le nous-sujet”: “C’est le monde qui nous annonce notre appartenance à une

communauté-sujet, en particulier l’existence dans le monde d’objets manufacturés.

Ces objets ont été oeuvrés par des hommes pour des eux-sujets, c’est-à-dire pour une

transcendance non individualisée et non dénombrée qui coïncide avec le regard

indifférencié que nous appelions plus haut le “on”, car le travailleur —servile ou

non— travaille en présence d’une transcendance indifférenciée et absente, dont il se

borne à esquisser en creux sur l’objet travaillé les libres possibilités. En ce sens, le

travailleur, quel qu’il soit, éprouve dans le travail son être-instrument pour l’autre; le

travail, quand il n’est pas strictement destiné aux fins propres du travailleur, est un

O MITO DA RESISTÊNCIA

58

mode d’aliénation. (...) Ainsi est-il vrai que l’objet manufacturé m’annonce comme

“on” à moi-même, c’est-à-dire me renvoie l’image de ma transcendance comme celle

d’une transcendance quelconque” (EN, p.474-475). Mas, como revela a leitura de

“Légende de la Vérité”, mesmo no Sartre anterior a EN a mercadoria é o suporte do

relacionamento intersubjetivo — a experiência do nós-sujeito está ligada à dos objetos

manufaturados já naquele ensaio de 1929 (em que pese a distância entre o “utensílio”

e a forma-mercadoria).

14)Mais de uma década depois, em 1945, esse mesmo ponto de vista será defendido por

Merleau-Ponty: “Loin d’être, comme on l’a cru, la formule d’une philosophie

idéaliste, la réduction phénoménologique est celle d’une philosophie existentielle (...).

Il ne faut donc pas dire avec J. Wahl que “Husserl sépare les essences de l’existence”.

(...) Chercher l’essence de la conscience, ce ne sera donc pas (...) fuir de l’existence”

(“Avant-Propos” da Phénoménologie de la Perception, p.IX-X). E acrescenta: “La

plus importante acquisition de la phénoménologie est sans doute d’avoir joint

l’extrême subjectivisme et l’extrême objectivisme dans sa notion du monde ou de la

rationalité” (p. XV). Nessa perspectiva, torna-se possível apresentar a fenomenologia

como “révélation du monde”: “la phénoménologie a pour tâche de révéler le mystère

du monde et le mystère de la raison. Si la phénoménologie a été un mouvement avant

d’être une doctrine ou un système, ce n’est ni hasard, ni imposture. Elle est laborieuse

comme l’oeuvre de Balzac, celle de Proust, celle de Valéry ou celle de Cézanne, —

par le même genre d’attention et d’étonnement, par la même exigence de conscience,

par la même volonté de saisir le sens du monde ou de l’histoire à l’état naissant. Elle

se confond sous ce rapport avec l’effort de la pensée moderne” (p. XVI). E em

“Marxismo e Filosofia” (1946), Merleau-Ponty faz o seguinte elogio do último

Husserl: “Foi assim que, tendo partido de uma “fenomenologia estática”, chegou a

uma “fenomenologia da gênese” e a uma teoria da história intencional, em outros

No princípio era a pura Negação ...

59

termos, a uma lógica da história. É assim que contribuiu, mais do que ninguém, para

descrever a consciência encarnada num meio de objetos humanos”(Pensadores,

p.271). Mais tarde, nas Aventuras da dialética, o autor afirma que o pensamento de

Husserl chegou “au seuil de la dialectique”:“De là cette“théologie”(entre guillemets)

de la conscience qui reconduit Husserl au seuil de la philosophie dialectique”(p.202).

É que Husserl, conforme Merleau-Ponty ensinava em seus cursos na Sorbonne,

pretendeu fazer uma filosofia que fosse ao mesmo tempo uma filosofia da eternidade”

e do presente, ou melhor,uma filosofia que, por ser “perennis”,fosse também “filosofia

do presente”(La Fenomenologia y las Ciencias del Hombre,p.93-94). 15)É em nome desse “concreto”, vislumbrado em Husserl, que Sartre critica Bergson:

“Bergson (...) veut séparer l’esprit de la matière” (L’imagination, p.51). Referindo-se

ainda à filosofia bergsoniana, nosso autor indaga: “Est-ce un progrès vers le concret?

Nous ne le croyons pas” (L’imagination, p.67). Merleau-Ponty, em sua resenha de

L’imagination, é muito menos severo com relação a Bergson do que Sartre:

considerando excessiva a crítica sartriana a Bergson, afirma que há neste último “un

pressentiment” da investigação de Husserl — e nesse “pressentiment” estaria o “sens

plus profond” do pensamento bergsoniano, que teria escapado a Sartre (Merleau-

Ponty, “Sartre — L’Imagination”, in Journal de Psychologie normale et pathologique,

vol.33, nº 9-10, novembre-décembre 1936, p.761). Nessa mesma linha, Jean Wahl

também acusa Sartre de ter feito, mas agora em EN, uma “critique parfaitement injuste

du bergsonisme” (Jean Wahl, “Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1,

1946, p.68). Se a crítica de Sartre a Bergson é radical, é porque o considera um

legítimo representante (junto com os neo-kantianos, como Brunschvicg) da tradição

espiritualista francesa (da qual Bergson nunca teria conseguido se diferenciar) —

criticá-lo significa pois atacar pela raiz o modelo imposto pela tradição acadêmica

dominante.

O MITO DA RESISTÊNCIA

60

16) Sit.II, p.154. Sobre esse projeto iluminista, ver também L’Existentialisme est un

humanisme: “Maintenant on fait descendre la philosophie sur la place publique”

(p.103).

17)Trata-se portanto de buscar uma filosofia “realista” seguindo, inicialmente, a via de

Husserl e, depois, a de Heidegger. Um equívoco colossal? Em termos, quando se

pensa, por exemplo, no que Adorno chama de impulso original da Fenomenologia

rumo ao concreto: a fenomenologia “recebeu seu impulso da aspiração ao concreto” (o

que não impediu Husserl, ressalva Adorno, de se refugiar na “metafísica tradicional”,

Dialética Negativa, p.16). É sobretudo com Ser e Tempo de Heidegger (até porque

Husserl é a expressão autêntica da “Teoria Tradicional”, ainda no sentido de

Horkheimer: um pensamento que sucumbe à “ilusão da teoria pura”) que algo muda

efetivamente na filosofia: com o primeiro Heidegger, como já indicamos no

Preâmbulo (nota 13), a filosofia foi destranscendentalizada — cancelou-se o programa

transcendental das filosofias pós-kantianas. Daí o desnorteamento inicial de Sartre

diante do que ele chamou de “philosophie barbare” de Heidegger: “Mais l’essentiel

était certainement la répugnance que j’avais à m’assimiler cette philosophie barbare et

si peu savante après la géniale synthèse universitaire de Husserl. Il semblait que, avec

Heidegger, la philosophie fût retombée en enfance, je n’y reconnaissais plus les

problèmes traditionnels, la conscience, la connaissance, la vérité et l’erreur, la

perception, le corps, le réalisme et l’idéalisme, etc.” (Les Carnets de la Drôle de

Guerre, p.226; grifo do autor). Recorde-se o que Habermas diz sobre a mudança

substancial representada por Ser e Tempo: “Heidegger a refondu d’une manière

originale les courants de l’herméneutique diltheyenne et de la phénoménologie

husserlienne, alors concurrents, de telle manière qu’il lui était possible d’y intégrer les

thèmes pragmatistes d’un Max Scheler et de proposer une pensée de l’historicité qui

dépassait la philosophie du sujet. (...) Aujourd’hui encore, ce nouveau point de départ

No princípio era a pura Negação ...

61

nous apparaît comme la césure la plus profonde dans la philosophie allemande depuis

Hegel. (...) La détranscendantalisation du moi constitutif du monde, telle qu’elle est

mise en oeuvre dans Être et temps, était sans précédent...” (Martin Heidegger —

L’oeuvre et l’engagement, p.12-13). E Habermas acrescenta algumas páginas depois:

“Ce par quoi Être et temps a fait époque, c’est le fait que Heidegger accomplit ici un

pas décisif sur le chemin de l’argumentation qui permettra de dépasser la philosophie

de la conscience. (...) Il va de soi que cette oeuvre centrale reflète déjà l’esprit du

temps dont l’auteur était prisonnier. La critique de la civilisation de masses, telle

qu’elle fut menée par la bourgeoisie cultivée, s’exprime en particulier dans l’analyse

du ‘On’, qui a toutes les caractéristiques d’un diagnostic de l’époque” (p.21-22).

Ainda sobre o impacto provocado por Ser e Tempo, note-se o que diz Marcuse, numa

entrevista concedida a Habermas: “...a cena acadêmica estava dominada pelo

neokantismo, o neohegelianismo e, de repente, apareceu Ser e Tempo como uma

filosofia realmente concreta. Neste livro se falava do Dasein, da existência, do

impessoal [Man], da morte, da cura. Isto parecia dizer-nos alguma coisa. (...) Depois

fomos nos dando conta de que essa concreção era bastante fictícia” (Habermas,

Perfiles filosófico-políticos, p.239). Mas antes de se dar conta de que “essa concreção

era bastante fictícia”, Marcuse —o “primeiro marxista heideggeriano”, como diz

Habermas (Théorie et Pratique, vol.II, p.63)— tentou também, como os

existencialistas franceses farão mais tarde, buscar uma “filosofia concreta” a partir de

Ser e Tempo (ver nesse sentido, por exemplo, o ensaio “Sur la philosophie concrète”,

de 1929, onde Marcuse define seu propósito nos seguintes termos: “La présente étude

tente de dégager, à partir de la position que le livre de Heidegger L’Être et le Temps a

élaborée pour la philosophie phénoménologique, la possibilité d’une philosophie

concrète et sa nécessité dans la situation actuelle”, in Philosophie et Révolution,

p.121). Da mesma forma que Sartre, o jovem Marcuse vê em Heidegger o que também

O MITO DA RESISTÊNCIA

62

chegara a ver antes em Husserl — eis o balanço do próprio autor, numa outra

entrevista: “Heidegger at that time was not a personal problem, not even

philosophically, but a problem of a large part of the generation that studied in

Germany after the first World War. We saw in Heidegger what we had first seen in

Husserl, a new beginning, the first radical attempt to put philosophy on really concrete

foundations —philosophy concerned with the human existence, the human condition,

and not with merely abstract ideas and principles” (“Heidegger’s politics: an interview

with Herbert Marcuse by Frederick Olafson”, Graduate Faculty Philosophy Journal,

Vol. 6, n° 1 Winter, 1977, p. 28). Sobre a aspiração “vers le concret” do primeiro

Heidegger, recorde-se a palavra de ordem que norteia Ser e Tempo: “A palavra

‘fenomenologia’ exprime uma máxima que se pode formular na expressão: ‘às coisas

em si mesmas!’ — por oposição às construções soltas no ar...” (ST, vol.1, p.57; cf.

também a p.65: “para as coisas elas mesmas!”). “Aux choses mêmes” —”An die Sache

selbst”—, lembra Sartre, é “l’axiome qui est à l’origine de toute la Phénoménologie”

(“L’homme et les choses”, Sit.I, p.242). Voltemos a Ser e Tempo: “...as vias de acesso

para o ser ‘objetivo’ já ‘pressupõem’, e de muitas maneiras, o ‘mundo’” (p.104). Daí a

própria definição do Dasein como “ser-no-mundo” (vol.II, p.88) e a crítica de

Heidegger à “disposição idealista que sobrevoa a existência e suas possibilidades”

(vol.II, p.102). Sobre o “pensamento da historicidade” em Ser e Tempo: “a pre-sença

[Dasein], no fundo de seu ser, é e pode ser histórica e, enquanto histórica, se vê capaz

de construir uma historiografia” (ST, vol.II, p.13). Donde o vínculo indissolúvel entre

Dasein, História e temporalidade: “A pre-sença [Dasein] é histórica” (ST, vol.II,

p.127); “Histórica, a pre-sença apenas é possível com base na temporalidade” (ST,

vol.II, p.204). O ser do Dasein é temporalidade: “Deve-se interpretar todo

comportamento da pre-sença a partir de seu ser, isto é, a partir da temporalidade” (ST,

vol.II, p.214). A partir das reflexões de Dilthey sobre a História, Heidegger traça “uma

No princípio era a pura Negação ...

63

meta”: “trazer a “vida” para uma compreensão filosófica” (ST, vol.II, p.206) — está

aberta a porta para a filosofia sartriana das situações concretas. Sem falar que

Heidegger, contrapondo à “ontologia tradicional” o que ele considera “uma

investigação ontológica concreta” (cf. ST, em particular o vol.1, p.47), prepara o

terreno que tornou possível o florescimento de EN (assim como da “filosofia

concreta” do jovem Marcuse — mas com uma diferença fundamental: se a tentativa do

jovem Marcuse de elaborar uma filosofia concreta a partir da fenomenologia se deu,

segundo o próprio autor, depois do “fracasso da revolução alemã”, cf. entrevista a

Habermas, Perfis filosófico-políticos, p.238-239, no caso dos existencialistas

franceses ocorre justamente o contrário, isto é, tal tentativa se dá, como veremos na

segunda parte deste trabalho, num momento de entusiasmo revolucionário). 18)Seguindo os passos de Kojève, Jean Hyppolite afirma que a Fenomenologia do

Espírito “est une conquête du concret, que notre temps, comme tous les temps sans

doute, cherche à retrouver en philosophie” (“Avertissement du Traducteur”, La

Phénoménologie de L’Esprit, p.VII). Já Jean Wahl (primeira inspiração para o “vers

le concret” sartriano, como mencionamos no Preâmbulo) dera a fórmula: “Vers le réel

lui-même on ne peut aller qu’au travers de la dialectique”(Jean Wahl, Vers le Concret,

p.24).Talvez não seja demais lembrar que o próprio Heidegger, em sua crítica a Hegel

no final de Ser e Tempo,reconhece que “a “construção” hegeliana recebeu seu impulso

do esforço e da luta por conceber a“concreção”do espírito” (ST, vol.II, p.249). 19)Cf. Merleau-Ponty, “L’Existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens, p.113. 20)Esse “réalisme naïf” criticado em EN é aquele que, nas palavras do próprio Sartre,

“se définit comme une doctrine qui fait du sujet et de l’objet deux substances

indépendantes” — o que pressupõe “des rapports externes unissant (...) le sujet à

l’objet” (EN, p.649). 21)”Le principe d’identité, comme loi d’être de l’en-soi...” (EN, p.248).

O MITO DA RESISTÊNCIA

64

22)O que levará Jean Wahl a acusar EN de “idealismo”: “un idéalisme que nous ne

pouvons certes approuver et qui réserve la négation à la conscience” (Jean Wahl,

“Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.49). Esse vínculo

indissolúvel, construído em EN, entre negação e consciência resultará na idéia —de

inspiração hegeliana— de uma “história subjetiva” (pois na ótica sartriana não há

história sem negação).

23)Sobre a negação interna em EN, cf. ainda as pp. 225-226, 298, 330, 331, 379, 497,

535, 540, 549 e 682.

24)Também aqui não é difícil identificar a herança de Heidegger, por um lado, para

quem “uma ligação exterior entre os fenômenos já está de per si vetada” (Ser e Tempo,

vol.II, p.93), e de Hegel, por outro lado, cuja crítica a todo tipo de pensamento que

opera com relações externas é por demais conhecida — contentemo-nos em lembrar

esta passagem do Prefácio da Fenomenologia do Espírito: “les deux termes sont pris

comme l’huile et l’eau, qui sans se mélanger sont assemblées seulement

extérieurement l’une avec l’autre” (La Phénoménologie de l’Esprit, p.35). Jean Wahl,

em sua glosa de EN, refere-se à filosofia hegeliana como “une philosophie pour

laquelle tout lien externe est toujours superficiel, et qui ne peut donc en aucun cas

définir le dépassement qui lui est essentiel, par un mouvement externe” (Jean Wahl,

“Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.52-53).

25) “Le néant (...) est fondement de la négation parce qu’il la recèle en lui, parce qu’il

est la négation comme être” (EN, p.63). Nesse sentido, cf. o seguinte comentário de

Jean Wahl: “Pour lui [Sartre], comme pour Heidegger, ce n’est pas la négation qui est

à l’origine du néant, mais le néant qui est à l’origine de la négation” (“Essai sur le

néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.44).

26)”Então, meu ser está fora de mim, inextricavelmente envolvido com aquele de meu

parceiro e o seu com o meu, no que dividimos uma situação comum em face de um

No princípio era a pura Negação ...

65

inimigo comum e nos submetemos a uma alienação ou reificação mútua”, escreve

Jameson, referindo-se às análises de Sartre em EN (Marxismo e Forma, p.194). Essa

alienação que resulta da experiência da intersubjetividade é ainda o problema de

Sartre nos Cahiers pour une morale: “Toute l’Histoire doit se comprendre en fonction

de cette aliénation primitive d’où l’homme ne peut sortir. L’aliénation n’est pas en

effet l’oppression. Elle est la prédominance de l’Autre dans le couple de l’Autre et du

Même, la priorité de l’objectif et par conséquent la nécessité pour toute conduite et

toute idéologie de se projeter dans l’élément de l’Autre et de revenir aliénées et

aliénantes sur leurs promoteurs” (Cahiers pour une morale, p.429). E ainda: “Le

monde de l’aliénation c’est celui où on pense le Soi-même à partir de l’Autre” (Idem,

p.485).

27)O olhar do outro e a própria estrutura da consciência são com efeito as duas

determinações essenciais da alienação em EN. Todavia, trata-se de uma alienação que

resulta também do trabalho “dans une société de type économique défini” (EN, p.481):

“le travail, quand il n’est pas strictement destiné aux fins propres du travailleur, est un

mode d’aliénation” (EN, p.475). Uma alienação que resulta do trabalho e da relação

com as coisas: “La possession est un rapport magique; je suis ces objets que je

possède, mais dehors, face à moi; je les crée comme indépendants de moi; ce que je

possède, c’est moi hors de moi, hors de toute subjectivité, comme un en-soi qui

m’échappe à chaque instant et dont je perpétue à chaque instant la création. Mais

précisément parce que je suis toujours hors de moi ailleurs (...), lorsque je possède, je

m’aliène au profit de l’objet possédé. Dans le rapport de possession, le terme fort c’est

la chose possédée, je ne suis rien en dehors d’elle qu’un néant qui possède, rien

d’autre que pure et simple possession, un incomplet, un insuffisant, dont la suffisance

et la complétude sont dans cet objet là-bas” (EN, p.652-653). Essa análise da

coisificação no modo capitalista de produção será desenvolvida por Sartre algum

O MITO DA RESISTÊNCIA

66

tempo depois, em “Matérialisme et Révolution” (cf. o comentário de Habermas a

respeito desse ensaio de Sartre, in Théorie et Pratique, II, p.227 a 229).

28) A retomada da fórmula de Rimbaud —“Je est un Autre”— é recorrente na reflexão

sartriana: ver por exemplo La Transcendance de l’Ego, p.78; Baudelaire, p.146, o

ensaio sobre Tintoreto (Sit. IV, p. 308) e Saint Genet (capítulo intitulado justamente

“Je est un Autre”, p. 159). Em Les Mouches, Sartre escreve: “Etranger à moi-même”;

“étranger aux autres et à moi-même” (p.176 e 241). Ver ainda os ecos desse problema

da alienação nos Cahiers pour une morale: “Ainsi l’autre me transforme en objectivité

en m’opprimant...” (p. 16); “son [de l’esclave] Je est un autre; il est en fait aliéné”

(p.276); “Je est un Autre” (pp.424 e 485); “Je me définis en me donnant à autrui

comme objet que je crée pour qu’il me rende cette objectivité” (p.487). E na Critique

de la raison dialectique: “La nécessité pour l’homme est de se saisir originellement

comme Autre qu’il n’est et dans la dimension de l’altérité” — o que pressupõe a idéia

do “Pour-Soi” e “son être aliéné comme Être en soi” (Critique de la raison

dialectique, nota de rodapé, p.286, edição de 1960; p.336-337 da edição de 1985,

revista e comentada por Arlette Elkaïm Sartre).

29)Recorde-se nesse sentido o que diz Simone de Beauvoir: “Sartre m’exposa dans ses

grandes lignes le système d’Husserl et l’idée d’intentionnalité; cette notion lui

apportait exactement ce qu’il en avait espéré: la possibilité de surmonter les

contradictions qui le divisaient à cette époque-là (...); il avait toujours eu en horreur

“la vie intérieure”: elle se trouvait radicalement supprimée du moment que la

conscience se faisait exister par un perpétuel dépassement d’elle-même vers un objet;

tout se situait dehors, les choses, les vérités, les sentiments, les significations, et le

moi lui-même; aucun facteur subjectif n’altérait donc la vérité du monde telle qu’elle

se donne à nous” (S. de Beauvoir, La force de l’âge, p.215). Essa idéia, vislumbrada

inicialmente em Husserl, de uma consciência cujo ser está fora de si mesmo tem,

No princípio era a pura Negação ...

67

portanto, nesse primeiro momento de “descoberta”, um sentido “positivo” (sobretudo

porque significa a libertação da “filosofia alimentar”, como vimos) — mas veremos

que em EN a mesma idéia já aparece no entanto imbuída de um duplo sentido.

30) Nesse sentido, recorde-se a análise de Lukács sobre Heidegger: “O que existe, a

rigor, de interessante no modo de filosofar de Heidegger é, com efeito, essa descrição

extraordinariamente pormenorizada de como ‘o homem’, o sujeito portador da

existência, se desintegra e se perde a si mesmo, ‘imediata e regularmente’, nessa

cotidianidade” (Lukács, O assalto à razão, p.405). Sobre essa idéia heideggeriana do

ser fora de si, cf. Ser e Tempo, em particular o vol. I, p.239-240. Cf. também em

Heidegger o vínculo entre o “fora de si” e a temporalidade: “Temporalidade é o ‘fora

de si’ em si e para si mesmo originário” (ST, vol.II, p.123).

31)Cf. na Fenomenologia do Espírito a idéia de “avoir son essence dans un autre”

(vol.I, p.104). E mais adiante: “Le processus nécessaire des figures de la conscience

exposées jusqu’ici, telles que leur vrai était une chose, un autre qu’elles-mêmes...”

(Idem, vol.I, p.140). Ou então: “...son essence [de l’individu] se présente à lui comme

un Autre, il est à l’extérieur de soi, et il doit supprimer son être-à-l’extérieur-de-soi”

(Idem, vol.I, p.159-160). É ainda nas páginas da Fenomenologia do Espírito que

encontramos a célebre descrição hegeliana do momento negativo da alienação — a

consciência “dans la forme de la choséité”: “une conscience qui n’est pas purement

pour soi, mais qui est pour une autre conscience, c’est-à-dire une conscience dans

l’élément de l’être ou dans la forme de la choséité “, vol.I, p.161 (cf. o comentário de

Hyppolite: “la conscience dans la forme de la choséité, donnera la conscience de

l’esclave, conscience qui est seulement pour un autre”, Phénoménologie de l’Esprit,

p.161, nota 18). Lembremos ainda esta passagem da Introdução da Fenomenologia: “Il

y a en elle [la conscience] un pour un autre” (p.73). E na parte sobre a consciência de

si, Hegel descreve a “conscience malheureuse” como uma consciência “scindée à

O MITO DA RESISTÊNCIA

68

l’intérieur de soi” (vol.I, p.176). Em sua tradução comentada da Fenomenologia do

Espírito, Hyppolite enfatiza a idéia de que “son objet [de la conscience] est toujours

au delà d’elle” (vol.II, p.123, nota 167). A ênfase nesse momento da dialética é

também a tônica de seus Etudes sur Marx et Hegel, onde Hyppolite (cujo Hegel, como

já sublinhamos, está ainda muito colado ao de Kojève — cf. nesse sentido Paulo

Arantes, “Um Hegel errado, mas vivo”, IDE, nº 21, p.76) ressalta a idéia de “l’homme

posé comme en dehors de lui-même, comme une chose” (p.141).

32)Em sua leitura da Fenomenologia do Espírito, Kojève define o fim do tempo

histórico, ou seja, “l’anéantissement” do sujeito livre, como “cessation de l’Action”:

“En fait, la fin du Temps humain ou de l’Histoire, c’est-à-dire l’anéantissement

définitif de l’Homme proprement dit ou de l’Individu libre et historique, signifie tout

simplement la cessation de l’Action au sens fort du terme” (Introduction à la lecture

de Hegel, p.435). (A idéia da França Ocupada —problema da Segunda Parte do

trabalho— como um estado de “néantisation” vai justamente nesse sentido de

“cessation de l’Action”, paralisia do tempo histórico: um estado de coisas que, virado

pelo avesso, terá o mesmo significado apoteótico de Kojève, como veremos.) Jean

Wahl sublinha em EN a oposição entre “néant” e “activité”: “Sartre ôte toute activité

au néant: il n’est pas, il est été; il ne se néantise pas: il est néantisé” (Jean Wahl,

“Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.59).

33)Na Segunda Parte do trabalho, veremos que no momento em que EN parece entrever

o processo de fragmentação do indivíduo ao longo do curso do mundo moderno,

converte a perda em ganho (através de um ativismo heróico).

34)A conversão do “quietismo” heideggeriano em ativismo, através de uma luta

dramática de consciências, será examinada mais adiante. Contentemo-nos por

enquanto em observar que Sartre compreende finalmente agora, em EN, que não

estaria em Heidegger (embora sem ele EN não teria sido possível, é sempre bom

No princípio era a pura Negação ...

69

insistir) a saída para a superação definitiva do “idealismo” (hegeliano e husserliano)

— mesmo porque, como lemos em EN, Heidegger também (como Husserl) não chega

a superar verdadeiramente o ponto de vista da filosofia kantiana (ao contrário do que

nosso autor acreditara antes, mais precisamente até os Carnets de Guerre, como já

mencionamos): “le point de vue ontologique rejoint ici le point de vue abstrait du sujet

kantien”, afirma Sartre sobre Heidegger (EN, p.293) — “Il serait vain, en

conséquence, de chercher dans Sein und Zeit le dépassement simultané de tout

idéalisme et de tout réalisme” (EN, p.295). Nessa medida, “Heidegger n’échappe pas à

l’idéalisme” — trata-se de “une forme bâtarde de l’idéalisme” (EN, p.295).

(Desnecessário dizer que, não obstante suas críticas a Heidegger, Sartre nunca superou

radicalmente o ponto de vista heideggeriano — que permanecerá sempre seu mais

importante referencial filosófico.) Sobre o equilíbrio (frágil: porque ora se rompe de

um lado, ora do outro) entre Hegel e Heidegger no interior das análises de EN,

considere-se o seguinte comentário de Jean Wahl: “Sartre semble être pour Heidegger

contre Hegel, c’est-à-dire admettre la négation néant, contre la négation négativité.

Mais peut-être comme nous en avons dès maintenant le pressentiment n’en est-il rien”

(p.54). Com efeito, esse “pressentimento” é confirmado poucas páginas depois: “Ce

que Sartre ne veut pas accepter, c’est l’essentiel de la théorie heideggerienne: la

priorité du néant sur le non. Il admet bien que la négation tire son fondement du néant,

mais il soutient qu’au fondement du néant, il y a le non. C’est ce qui va le faire

retourner de Heidegger à Hegel. (...) Le néant est négation, dit Sartre. Etait-ce la peine

de nous dire que le néant est l’origine de la négation, et non vice versa, si tous les

deux sont identiques?” (Jean Wahl, “Essai sur le néant d’un problème”, in Deucalion,

nº 1, 1946, p.56). Daí, ainda segundo Jean Wahl, o resultado da “double critique faite

par Sartre à Hegel et à Heidegger”: tal crítica “va le faire se retourner de Heidegger

vers Hegel” (p.58).

O MITO DA RESISTÊNCIA

70

35)Na segunda parte do livro, no tópico “La détermination comme négation”, Sartre

escreve: “Nous devons modifier la célèbre formule de Spinoza: ‘Omnis determinatio

est negatio’, dont Hegel disait que sa richesse est infinie, et déclarer plutôt que toute

détermination qui n’appartient pas à l’être qui a à être ses propres déterminations est

négation ideale” (EN, p.225-226). Sobre a utilização hegeliana da fórmula de

Espinosa, cf. em particular La Phénoménologie de l’ Esprit, vol.I, p.96.

Capítulo 2

A Liberdade entra em cena

“Si la condition fondamentale de l’acte est la liberté, il nous faut tenter de décrire plus précisément la liberté” (EN, p.492). “L’Être et le Néant est un ouvrage sur la liberté” (Sartre, in La cérémonie des adieux, p.505).

A primeira entrada em cena da figura da liberdade em EN é precedida de uma

dupla negação, ou um “double mouvement de néantisation” (p.58),1 cujo resultado é

“l’humanisation du néant” (para usar o título de um capítulo de V. Descombes sobre

Kojève2): “Il faut donc revenir à l’interrogation. (...) Ainsi, avec la question, une

certaine dose de négatité est introduite dans le monde; nous voyons le néant iriser le

monde, chatoyer sur les choses. Mais, en même temps, la question émane d’un

O MITO DA RESISTÊNCIA

72

questionneur qui se motive lui-même dans son être comme questionnant, en décollant

de l’être. Elle est donc, par définition, un processus humain. L’homme se présente

donc (...) comme un être qui fait éclore le Néant dans le monde(...). Il faut que la

négation surgisse, non comme une chose parmi d’autres choses (...): l’homme est l’être

par qui le néant vient au monde. (...) Cette possibilité pour la réalité humaine de

sécréter un néant qui l’isole, Descartes, après les Stoïciens, lui a donné un nom: c’est la

liberté” (p.58-59). Essa primeira entrada em cena da liberdade é intempestiva, pois

Sartre acrescenta imediatamente: “la liberté n’est ici qu’un mot” (p.59)3 — seu

verdadeiro conteúdo ainda não foi determinado, para isso será preciso esperar a parte

final do livro. Mas mesmo com uma fisionomia ainda indefinida a presença fulgurante

da liberdade imprime doravante sua marca no curso do livro, impondo-se como sua

personagem principal. O que fora resultado do capítulo sobre a negação —a

“humanização” do “néant” que implica a liberdade—, torna-se assim ponto de partida

da investigação ontológica sartriana: “Si nous voulons pénétrer plus avant dans la

question, nous ne devons pas nous contenter de cette réponse [de Descartes] et nous

devons nous demander à présent: Que doit être la liberté humaine si le néant doit venir

par elle au monde?” (EN, p.59-60). Se a humanização do “néant” engendra a liberdade,

a liberdade por sua vez é condição dessa humanização (que pressupõe um sujeito livre)

— eis o que explica essa entrada em cena intempestiva da liberdade logo no primeiro

capítulo sobre “L’origine de la négation” (ela é necessária para que se complete o

primeiro esboço do problema da negação): “Il ne s’agit donc pas ici d’aborder de front

une question qui ne pourra se traiter exhaustivement qu’à la lumière d’une élucidation

rigoureuse de l’être humain; mais nous avons à traiter de la liberté en liaison avec le

problème du néant et dans la stricte mesure où elle conditionne son apparition” (p.60).

Aqui uma subversão especulativa já foi portanto operada: é a liberdade que

“condiciona” o surgimento do “néant”4 — só pode fazê-lo, contudo, porque “l’être de

l’homme” é liberdade: “En effet les démarches que nous avons accomplies jusqu’ici

A Liberdade entra em cena

73

montrent clairement que la liberté n’est pas une faculté de l’âme humaine qui pourrait

être envisagée et décrite isolément. Ce que nous cherchions à définir, c’est l’être de

l’homme en tant qu’il conditionne l’apparition du néant et cet être nous est apparu

comme liberté. Ainsi la liberté comme condition requise à la néantisation du néant

n’est pas une propriété qui appartiendrait, entre autres, à l’essence de l’être humain.

Nous avons déjà marqué d’ailleurs que le rapport de l’existence à l’essence n’est pas

chez l’homme semblable à ce qu’il est pour les choses du monde. La liberté humaine

précède l’essence de l’homme et la rend possible, l’essence de l’être humain est en

suspens dans sa liberté. Ce que nous appelons liberté est donc impossible à distinguer

de l’être de la ‘réalité humaine’. L’homme n’est point d’abord pour être libre ensuite,

mais il n’y a pas de différence entre l’être de l’homme et son ‘être-libre’” (EN, p.60).

O que permite delinear a “estrutura” do ser humano: “la liberté vient d’être définie

comme une structure permanente de l’être humain” (EN, p.71).5 Com a liberdade já em

cena, tem início o próximo ato, desdobramento da afirmação de que “l’être est

antérieur au néant et le fonde” e de que é “de l’être que le néant tire concrètement son

efficace” (p.51): esse ser, humanizado, torna-se ele próprio possível pela Liberdade. A

sequência das cenas foi portanto embaralhada: do tudo começa com o Nada passamos

ao tudo começa com o Ser e, finalmente, ao tudo começa com a Liberdade. Ou melhor:

o tudo começa com o Nada significa (sem paradoxo) tudo começa com o Ser,6 isto é,

com a Liberdade (que é essencialmente negação do dado, como veremos).

Dissemos no capítulo anterior que, em EN, no princípio era a negação. Vê-se

agora que a negação, metamorfoseada em afirmação da liberdade humana, inverte os

termos do problema e nos permite afirmar que em EN o verdadeiro ponto de partida é a

Liberdade (tomada numa acepção positiva). Daí a conclusão do último parágrafo do

capítulo sobre a negação: “la négation n’engage directement que la liberté”(p.81). Uma

conclusão que exprime o seguinte resultado dessa primeira abordagem do problema da

negação: “Seulement l’examen de l’interrogation et de la négation a donné tout ce qu’il

O MITO DA RESISTÊNCIA

74

pouvait. Nous avons été renvoyés de là à la liberté empirique comme néantisation de

l’homme au sein de la temporalité et comme condition nécessaire de l’appréhension

transcendante des négatités. Reste à fonder cette liberté empirique elle-même” (p.80).

Atingimos aqui o propósito central de EN: “fonder cette liberté empirique elle-même”,

ou, como o autor dirá mais adiante, “atteindre la liberté en son coeur” (p.493) — numa

palavra, trata-se de “descrever” (no sentido heideggeriano) a liberdade: “il nous faut

tenter de décrire plus précisément la liberté” (p.492).7 Mas se essa fulgurante entrada

em cena da liberdade eclipsou o problema da negação, ele continua no entanto presente

nos capítulos seguintes (sendo o tema por excelência do capítulo III da segunda parte

do livro) pois a figura radiante e luminosa da Liberdade só se torna visível

contrastando com o fundo escuro e sombrio da não-liberdade, ou da negação da

liberdade.

Vejamos mais de perto como, ao longo das análises de EN, um movimento à primeira

vista paradoxal faz com que a descrição de um estado de não-liberdade, ou de alienação,

aponte ao mesmo tempo para a sua superação. Ou melhor: é do fundo desse estado —

viscoso8— de não-liberdade (capaz de engendrar a “Nausée”, como veremos) que vai sendo

secretada a figura da liberdade. Uma vez delineado, o perfil luzente da liberdade é projetado

na tela escura da não-liberdade.9 Aparecendo de início como resultado inelutável de um

processo de alienação, mais precisamente, da condenação à alienação pelo olhar do Outro, a

não-liberdade vai se tornando condição de possibilidade do surgimento da liberdade. Se o

olhar do Outro nos despoja de nosso ser (isto é, já o sabemos, de nossa liberdade), esse ser,

alienado, clama pelo reencontro consigo mesmo. É como se o ponto extremo da alienação

coincidisse com o ponto de nascimento da não-alienação, ou seja, levada a seu grau máximo

a alienação torna possível sua própria superação. Nessa medida, poder-se-ia dizer que em

EN a alienação tem, na linha direta da filosofia hegeliana, um “sentido positivo” — assim

como na Fenomenologia do Espírito, conforme Kojève e Hyppolite enfatizam, somente

quando o ser do homem se perdeu é que pode voltar a si mesmo, recuperar a si próprio.10 No

A Liberdade entra em cena

75

interior das análises de EN, o mesmo processo que leva à desintegração do indivíduo (“je

suis dehors”) cria as condições para a superação dessa alienação. Tendo florescido à sombra

da não-liberdade, a liberdade (que implica a consciência de si, como veremos) desencadeia

todavia a passagem do momento negativo ao momento positivo da alienação (= não-

alienação).

À medida que a figura da liberdade vai tomando forma, ela começa a se impor e,

ao fazê-lo, vai quebrando por dentro o estado anterior de não-liberdade. E de dentro

mesmo daquele estado de alienação, de não-liberdade, impotência e resignação, nasce a

liberdade como nova figura da fatalidade: é da idéia de condenação pelo olhar do outro

(que nos converte em objetos), do “condamnés” à alienação por “Autrui” (“nous ne

pouvons échapper à cette aliénation...”, EN, p. 583), que vemos surgir o famoso

“condamnés à être libres” (expressão recorrente em EN, ver por exemplo as pp. 168,

494, 541, 566, 583, 613, e que atravessará também a obra posterior, terminando por se

tornar uma espécie de marca registrada do “existencialismo” sartriano).11

Metamorfoseando pois a condenação à alienação em condenação à liberdade (“nous ne

sommes pas libres de cesser d’être libres”, p.494), estabelecendo um vínculo íntimo

entre liberdade e fatalidade, as análises de EN fazem assim o fatalismo engendrar a

liberdade12 (daí um outro aparente paradoxo, que veremos mais tarde: o voluntarismo

que brota do fatalismo).

Quais as determinações essenciais da liberdade? No instante mesmo em que sai

de dentro da negação, a liberdade já expõe a primeira de suas determinações essenciais

— a consciência de si: “La liberté (...) surgit de la négation des appels du monde, elle

apparaît dès que je me dégage du monde où je m’étais engagé, pour m’appréhender

moi-même comme conscience” (EN, p.75). (Logo na Introdução do livro o autor

esclarecera: “Cette conscience (de) soi, nous ne devons pas la considérer comme une

nouvelle conscience, mais comme le seul mode d’existence qui soit possible pour une

conscience de quelque chose”, EN, p.20.)13 Mas se a liberdade já surge como

O MITO DA RESISTÊNCIA

76

consciência de si é porque o próprio processo que a constitui passa necessariamente

pela tomada de consciência da não-liberdade, pela tomada de consciência da existência

de um “Autrui” que condena à alienação, à perda de si mesmo.14 É a luz da consciência

de si (“je prends conscience (de) moi-même”, EN, p.334) que permite finalmente ver a

figura da liberdade que até então parecia eclipsada (“masquée”, na linguagem de EN,

p.334) pela sombra da não-liberdade. O advento da liberdade, a estruturação de sua

figura, pressupõe assim a desestruturação de um estado de não-liberdade (logo, de não-

consciência da liberdade, de alienação).15 Essa tomada de consciência é negação de um

estado que nega a liberdade; tal negação da negação repõe a própria liberdade.

Esquematizando: a (dupla) negação remete à liberdade (“la négation nous a renvoyé à

la liberté”, EN, p.111) que, por sua vez, exprime a consciência de si (impensável fora

da esfera da intersubjetividade): “Dans la saisie même de cette négation surgit la

conscience (de) moi comme moi-même, c’est-à-dire que je puis prendre une conscience

explicite (de) moi en tant que je suis aussi responsable d’une négation d’autrui qui est

ma propre possibilité. C’est l’explicitation de la seconde négation, celle qui va de moi

à autrui. A vrai dire, elle était déjà là, mais masquée par l’autre, puisqu’elle se perdait

pour faire apparaître l’autre. Mais précisement l’autre est motif pour que la nouvelle

négation paraisse(...). En tant que je prends conscience (de) moi-même comme d’une

de mes libres possibilités et que je me projette vers moi-même pour réaliser cette

ipséité, me voilà responsable de l’existence d’Autrui: c’est moi qui fais, par

l’affirmation même de ma libre spontanéité, qu’il y ait un Autrui et non pas simplement

un renvoi infini de la conscience à elle-même” (p.334). O leitor de EN pode

compreender agora que a análise da alienação não é de mão única: se por um lado

“Autrui” me reduz à condição de objeto, se é responsável por minha alienação, por

outro lado, eu sou responsável pela própria existência d’“Autrui”, ou seja, no limite,

responsável pelo estado de alienação vigente. E se o surgimento da figura da liberdade

remete, como se vê, à idéia de “responsabilidade”(“me voilà responsable de l’existence

A Liberdade entra em cena

77

d’Autrui”)16 é porque a liberdade implica sempre liberdade de escolha (e aqui se expõe

a viga mestra do capítulo sobre a liberdade): “la liberté est liberté de choisir” (EN,

p.537).17 O que pressupõe a idéia de que a existência do Dasein precede (e determina)

sua essência: “De ce point de vue — et si l’on entend bien que l’existence du Dasein

précède et commande son essence — la réalité humaine, dans et par son surgissement

même, décide de définir son être propre par ses fins” (EN, p.498).

Nessa perspectiva, “condamnés à être libres” significa “condamnés au choix” —

“je ne peux pas ne pas choisir” (EN, p.614).18 Há portanto em EN uma identificação

entre liberdade e “choix”: “la liberté est choix” (p.552); “il n’y a pas de liberté sans

choix” (p.377); “l’acte fondamental de liberté est trouvé; (...) il est choix de moi-même

dans le monde” (p.517); “Le concept technique et philosophique de liberté, le seul que

nous considérions ici, signifie seulement: autonomie du choix” (p.540); “la liberté (...)

n’existe que par le choix qu’elle fait d’une fin” (p.542); “être libre est se choisir dans

le monde, quel qu’il soit” (p.579); “la loi de ma liberté, qui fait que je ne puis être sans

me choisir” (p.586); “Tout pour-soi est libre choix; chacun de ces actes, le plus

insignifiant comme le plus considérable, traduit ce choix et en émane; c’est ce que

nous avons nommé notre liberté” (p.660); “la liberté n’est rien d’autre qu’un choix qui

se crée ses propres possibilités” (p.626); “la liberté (...) ne se distingue pas de son

choix” (p.627).19 Dada essa identificação, está aberta a possibilidade de, através de um

ato decisório20 (que é absoluto, assim como a tomada de consciência: “notre choix est

absolu”, EN, p.520), superar o estado de coisas vigente (superando assim a impotência

da subjetividade): “le Pour-soi est choix, cela n’est possible que si je me projette vers

une possibilité neuve” (EN, p.445). Nas palavras de Sartre, está aberta a possibilidade

de “renverser la vapeur”: “Ainsi, sommes-nous perpétuellement engagés dans notre

choix et perpétuellement conscients de ce que nous-mêmes pouvons brusquement

inverser ce choix et renverser la vapeur, car nous projetons l’avenir par notre être-

même et nous le rongeons perpétuellement par notre liberté existentielle: nous

O MITO DA RESISTÊNCIA

78

annonçant à nous-mêmes ce que nous sommes par l’avenir...” (EN, p.520).21 Se a

liberdade pode ser vislumbrada no horizonte futuro (ela “ronge” o futuro, na direção

do qual a consciência é projetada, sendo assim arrebatada de seu estado de paralisia) é

porque ela implica necessariamente em mudança (“changement”). Encontramos aqui,

portanto, além da tomada de consciência, da responsabilidade e do “choix”, uma outra

determinação essencial da liberdade (que decorre das anteriores) — “le changement”:

“la liberté étant choix est changement” (EN, p.553); “tout choix est choix d’un

changement concret à apporter à un donné concret” (p.566).

Com o “changement”, já se expõe finalmente a liga de liberdade e ação que

sustenta a estrutura do livro — a filosofia da liberdade em EN é uma filosofia da ação (e

aqui podemos distinguir mais vivamente os traços dos passos de Kojève): “La condition

première de l’action, c’est la liberté” (EN, p.487); “la condition fondamentale de l’acte

est la liberté” (p.492). Nessa medida, uma obra que pretenda “descrever a liberdade”,

deve “tenter, au préalable, d’expliciter les structures contenues dans l’idée même

d’action”, EN, p.487 (a última parte do livro é dedicada a um “estudo da ação”, mas

isso veremos melhor adiante). Tendo nascido da negação, a liberdade se desenvolve

como ação rumo ao futuro: “L’ action se présente (...) comme une certaine efficacité du

futur” (EN, p.370).22 À luz desse vínculo entre negação, liberdade e ação, encontramos

mais uma peça de nosso quebra-cabeça: no princípio era a negação significa no

princípio era a Ação — “Au commencement était l’Acte”, como escreverá Sartre

alguns anos mais tarde, referindo-se a Descartes: “Ce rationaliste dogmatique pourrait

dire, comme Goethe, non pas: ‘Au commencement était le Verbe’, mais: ‘Au

commencement était l’Acte’“ (“La Liberté Cartésienne”, Sit.I, p.306-307). Daí o

“ativismo” de EN, onde o próprio ser do homem é definido pela ação:23 “Nous pouvons

définir (...) l’action comme notre être-dans-le-monde” (p.374); “Un premier regard sur

la réalité humaine nous apprend que, pour elle, être se réduit à faire” (EN, p.532);

“Ainsi la réalité-humaine n’est pas d’abord pour agir, mais être pour elle, c’est agir et

A Liberdade entra em cena

79

cesser d’agir, c’est cesser d’être” (EN, p.533); “Mais si la réalité-humaine est action

cela signifie évidemment que sa détermination à l’action est elle-même action” (p.533).

A estrutura do pour-soi está calcada na ação: “Cette possibilité perpétuelle d’agir c’est-

à-dire de modifier l’en-soi dans sa matérialité ontique, dans sa ‘chair’ doit, évidemment,

être considérée comme une caractéristique essentielle du pour-soi” (EN, p.482); “ Le

pour-soi est l’être qui se définit par l’action” (EN, p.485). Sob este prisma, caberia

elaborar uma “phénoménologie de l’action” (p.376),24 capaz de dar conta da “totalité

synthétique de la vie et de l’action” (p.396). Mesmo porque, em EN, “vida” e ação são

identificadas: “la vie conçue comme totalité et l’action” (EN, p.394). (Se nessa noção de

“vida” ressoam ainda, além do eco da assimilação heideggeriana de Dilthey, algumas

cordas fundamentais da Fenomenologia do Espírito, onde vida e consciência de si têm a

mesma estrutura, o acorde final ouvido em EN já é muito mais acelerado pelo ritmo de

uma filosofia da Ação.) Uma ação que, como vimos, pressupõe mudança

(“changement”): Le pour-soi (...) change le monde à chaque instant” (p.482); “Agir,

c’est modifier la figure du monde(...). Une action est par principe intentionnelle”

(p.487). Visto que a ação é “intencional”, a liberdade pode ser concebida como

“pouvoir inconditionné de modifier les situations” (EN, p.400). E ainda: “Être libre,

c’est être-libre-pour changer. La liberté implique donc l’existence des entours à

changer: obstacles à franchir, outils à utiliser” (EN, p.563). Ora, se a liberdade implica

necessariamente “l’existence des entours à changer, obstacles à franchir, outils à

utiliser”, chegamos aqui finalmente ao seu verdadeiro substrato: o trabalho de

resistência.

Vê-se assim que todos os atributos da liberdade —tomada de consciência,

responsabilidade, “choix”, “changement” (outros nomes para a Ação)— remetem à

idéia de resistência, que se delineia, no interior das análises de EN, como o verdadeiro

fundamento da liberdade. Com efeito, há no livro uma cumplicidade, ou, mais do que

isso, um vínculo imanente entre liberdade e resistência: “En sorte que les résistances

O MITO DA RESISTÊNCIA

80

que la liberté dévoile dans l’existant, loin d’être un danger pour la liberté, ne font que

lui permettre de surgir comme liberté. Il ne peut y avoir de pour-soi libre que comme

engagé dans un monde résistant” (EN, p.540). Logo adiante, Sartre acrescenta:

“Montrer que le coefficient d’adversité de la chose et son caractère d’obstacle (joint à

son caractère d’ustensile) est indispensable à l’existence d’une liberté (...). Ne serait-on

pas fondé à dire, comme certains philosophes contemporains: sans obstacle, pas de

liberté?” (EN, p.541). E mais: “Le donné en soi comme résistance ou comme aide ne

se révèle qu’à la lumière de la liberté pro-jetante” (p.545). Isso significa que “le

coefficient d’adversité des choses, en particulier, ne saurait être un argument contre

notre liberté, car c’est par nous, c’est-à-dire par la position préalable d’une fin, que

surgit ce coefficient d’adversité” (EN, p.538).25

Relembremos os termos da primeira elaboração sartriana da idéia de

“resistência”, em La Transcendance de l’Ego: “Si l’idéalisme c’est la philosophie sans

mal de M. Brunschvicg, si c’est une philosophie où l’effort d’assimilation spirituelle ne

rencontre jamais de résistances extérieures, où la souffrance, la faim, la guerre se

diluent dans un lent processus d’unification des idées, rien n’est plus injuste que

d’appeler les phénoménologues des idéalistes” (p.85-86). A idéia de resistência surge

pois aqui no embate com a “philosophie alimentaire” que “assimila” (“deglute”, como

lemos no artigo sobre Husserl) espiritualmente o mundo — é a resposta à filosofia

“digestiva” para a qual o mundo se deixa assimilar, ou “digerir”, pela consciência

(passivamente, sem oferecer resistência). O desenvolvimento dessa idéia em EN já

obedece todavia a uma trama mais complexa de determinações. Se desmancharmos o

novelo que constitui a idéia de resistência em EN, procurando mapear seu campo de

referência implícito, deparamos com um de seus fios principais — o Hegel de Kojève,

mais uma vez: “Le Réel, c’est ce qui résiste”, afirma Kojève, interpretando a

Fenomenologia do Espírito (Introduction à la lecture de Hegel, p.432). (Cf. também a

interpretação hyppoliteana da dialética do senhor e do escravo: “Pour le maître, le

A Liberdade entra em cena

81

monde objectif est sans résistance, il est l’objet de sa jouissance (de son affirmation de

soi); pour l’esclave, ce monde est un monde dur qu’il peut seulement élaborer”, La

Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.162, nota 24. E Hyppolite acrescenta: “Cette dure

formation de l’homme par la peur, le service, le travail, est un moment essentiel de la

formation de toute conscience de soi”, p.163, nota 25.) Mas além do Hegel de Kojève

um outro fio se destaca nesse novelo que vamos desmanchando: Ser e Tempo, onde

Heidegger resume nos seguintes termos a tese de Dilthey (retomada por Scheler)26 de

que “realidade é resistência”: em sua obra, Dilthey “faz a experiência do real no

impulso e na vontade. Realidade é resistência ou, mais precisamente, o conjunto das

resistências. A elaboração analítica do fenômeno de resistência constitui o ponto

positivo do referido tratado(...). Contudo, devido à problematização epistemológica da

realidade, o efeito adequado da análise do fenômeno de resistência não logrou

inteiramente. (...) Scheler retomou recentemente a interpretação da realidade de

Dilthey. Ele defende uma ‘teoria voluntativa da pre-sença’ [voluntative

Daseinstheorie]. (...) O mesmo que foi dito acerca da indeterminação ontológica dos

fundamentos em Dilthey vale fundamentalmente para essa teoria. A análise ontológica

dos fundamentos da ‘vida’ não pode ser acrescentada posteriormente como uma infra-

estrutura. É ela que carrega e condiciona a análise da realidade, bem como toda

explicação do conjunto das resistências e de suas pressuposições fenomenais.

Resistência vem ao encontro como não deixar passar..., como impedimento da vontade

de passar... Com isso, no entanto, abre-se algo pelo que impulso e vontade se

empenham. (...) Do ponto de vista ontológico, a experiência de resistência, ou seja, a

descoberta daquilo que resiste a um esforço, só é possível com base na abertura de

mundo. O conjunto das resistências caracteriza o ser dos entes intramundanos. As

experiências de resistência apenas determinam de fato o alcance e a direção da

descoberta dos entes intramundanos que vêm ao encontro. (...) Se a realidade é

determinada pelo conjunto das resistências... (...) Resistência caracteriza o ‘mundo

O MITO DA RESISTÊNCIA

82

externo’...” (Ser e Tempo, vol.I, pp.276-278). Entrelaçado no entanto com esses fios

filosóficos encontramos ainda em EN um fio literário, que imprime cores novas aos

anteriores. Expliquemo-nos: com um fio literário que vem sobretudo de Malraux (e é

reforçado pelo ativismo kojeviano), Sartre altera o perfil da idéia de resistência

presente em suas fontes filosóficas. É assim que a idéia sartriana de resistência surge

em EN de tal forma impregnada de uma dimensão de luta e conflito (inexistente em

Heidegger, como se sabe, mas nos ocuparemos logo adiante desse Heidegger com sinal

trocado) que o “não deixar passar” descrito acima em Ser e Tempo (“Resistência vem

ao encontro como não deixar passar..., como impedimento da vontade de passar”)

reaparece agora com características muito próximas do voluntarismo, celebrado

literariamente por Malraux, dos heróis do “não passarão” da Guerra Civil Espanhola.

(Com isso se dá ao mesmo tempo a inversão do sentido original do teorema do

Idealismo Alemão —resumido por Kojève na passagem acima citada: “Le Réel, c’est

ce qui résiste”—, para o qual o mundo resistente é pura inércia.) É desse amálgama de

materiais heteróclitos —Idealismo Alemão, Kojève, Dilthey (via Heidegger) e

Malraux— que surge a idéia de resistência em EN. Mas o segredo que induz essa

costura feita com fios tão diversos, dando-lhes uma fisionomia própria, só se revela à

luz de uma certa experiência que será examinada na Segunda Parte deste trabalho.

Retenhamos por ora apenas o seguinte: a estrutura da idéia de resistência em EN (uma

liga de liberdade, ação e “choix”) é a mesma que encontramos em Malraux — “la

résistance de fait, cette résistance est un acte: elle vous engage, comme tout acte,

comme tout choix”, lemos em L’Espoir (p.338-339; grifo do autor). (Não por acaso,

Malraux é a principal referência literária de EN, embora Sartre critique aspectos de sua

idéia de destino, aproximando-a por vezes de Heidegger, cf. em particular EN, p.604

— voltaremos ao assunto mais adiante.)

Resumamos o resultado do processo de gestação da liberdade em EN: a

liberdade nasce do ato de resistir a um estado de não-liberdade — “nous ne pouvons

A Liberdade entra em cena

83

être libres que par rapport à un état de choses et malgré cet état de choses”(EN, p.542).

E ainda: “Le pour-soi (...) découvre l’état de choses qui l’entoure comme motif pour

une réaction de défense ou d’attaque” (EN, p.544); “ainsi, le projet même d’une liberté

en général est un choix qui implique la prévision et l’acceptation de résistances par

ailleurs quelconques; (...) son projet même est projet de faire dans un monde résistant,

par victoire sur ces résistances” (p.564). Tal “vitória”, decorrente do ato de resistir aos

“obstáculos” à liberdade, é “un refus de l’individu qui ne veut pas s’anéantir” (p.670)

—trocando em miúdos, é a resposta voluntarista do sujeito ao estado de coisas vigente:

“Nous réservons l’épithète de ‘volontaire’ à l’homme qui résiste. (...) La liberté n’est

rien autre que l’existence de notre volonté” (p.498-499). Ainda sobre “les rapports de

la liberté avec ce qu’on nomme la ‘volonté’“ (EN, p.495), Sartre escreve: “Si ces fins

sont déjà posées, ce qui reste à décider à tout instant c’est la façon dont je me conduirai

vis-à-vis d’elles, autrement dit l’attitude que je prendrai. Serai-je volontaire ou

passionné? Qui peut le décider sinon moi?” (EN, p.499). Outro exemplo dessa resposta

voluntarista do sujeito sartriano: “L’esclave dans les chaînes est libre pour les briser

(...). S’il choisit, par exemple, la révolte, l’esclavage, loin d’être d’abord un obstacle à

cette révolte, ne prend son sens et son coefficient d’adversité que par elle” (EN, p.608).

(É próprio da “condição humana” alargar as fronteiras do possível: “L’homme par sa

négativité qui brise toutes les formes où il s’enferme, porte toujours plus loin les

limites de ce qui est de l’homme”, anota o autor em seus Cahiers pour une morale,

p.75.)Havíamos dito que a liberdade nasce das entranhas da não-liberdade. Apressemo-

nos em acrescentar: só pode fazê-lo, por um ato de resistência contra o estado de não-

liberdade. Transformando o negativo em positivo (o que implica a idéia de “negação

concreta”27), as análises de EN subvertem os termos do problema: o mesmo estado que

parecia condenar à não-liberdade, à alienação, torna-se condição do surgimento da

liberdade (“condena” à liberdade) — mas esse movimento que leva a impossibilidade

(ou a ausência) da liberdade a colocar a possibilidade de sua emergência, ou melhor,

O MITO DA RESISTÊNCIA

84

leva a não-liberdade a suscitar sua própria recusa,28 é realizado por um trabalho interno

de resistência. O doloroso parto dessa liberdade que nasce “dans l’angoisse” (EN,

p.615) é feito através da resistência àquilo que a cerceia (e não a despeito dela). Numa

palavra: a resistência é a parteira do nascimento da liberdade.

Estamos agora em condições de compreender que a superação da impotência da

subjetividade exige a heroicização da consciência (marca registrada do voluntarismo

sartriano — o heroísmo como Ersatz da impotência da subjetividade). Ou melhor,

exige uma liberdade heróica, contraposta ao “determinismo” que todavia a gerou (e que

caracteriza a subjetividade impotente): “L’argument décisif utilisé par le bon sens

contre la liberté consiste à nous rappeler notre impuissance. (...) L’histoire d’une vie,

quelle qu’elle soit, est l’histoire d’un échec. (...) Bien plus qu’il ne paraît “se faire”,

l’homme semble “être fait” par le climat et la terre, la race et la classe, la langue,

l’histoire de la collectivité dont il fait partie, l’hérédité, les circonstances individuelles

de son enfance, les habitudes acquises, les grands et les petits événements de sa vie.

Cet argument n’a jamais profondément troublé les partisans de la liberté humaine.

Descartes, le premier, reconnaissait à la fois que la volonté est infinie et qu’il faut

‘tâcher à nous vaincre plutôt que la fortune’“ (EN, p.538).29 A liberdade é conquistada

na luta — uma luta dramática de resistência contra o estado de coisas vigente (estado

de não-liberdade, de alienação):“il y a ‘quelque chose’ à détruire pour me libérer” (EN,

p.462).É o próprio Sartre quem sublinha (no capítulo que prepara o da liberdade):“Les

descriptions qui vont suivre doivent donc être envisagées dans la perspectivedu conflit.

Le conflit est le sens originel de l’être-pour-autrui”(EN, p.413, grifo do autor).Em

nome dessa idéia de luta—e aqui EN encarna o espírito do“ativismo belicoso”30 de

Kojève—Sartre escreve, contra Heidegger:“L’essence des rapports entre consciences

n’est pas le Mitsein, c’est le conflit” (EN, p.481). Daí um Heidegger de ponta cabeça,

isto é, a conversão sartriana do “quietismo” heideggeriano em ativismo (não é pois de

A Liberdade entra em cena

85

se espantar que Heidegger não se reconheça no “existencialismo” francês, recusando

sua paternidade31).

Acompanhemos mais alguns passos da crítica de EN ao “quietismo”32 da

filosofia heideggeriana: “L’image empirique qui symboliserait le mieux l’intuition

heideggerienne n’est pas celle de la lutte, c’est celle de l’équipe” (p.292). É justamente

no que diz respeito ao problema da “ação” que nosso autor denuncia em Heidegger

“l’insuffisance de ses descriptions herméneutiques” (EN, p.482). O “Sein-zum-Tode”

heideggeriano —”la mort (...) devenue la possibilité propre du Dasein”, nas palavras

de Sartre (EN, p.590)33— é inaceitável aos olhos do ativismo de EN: “Ainsi, nous

devons conclure, contre Heidegger, que loin que la mort soit ma possibilité propre, elle

est un fait contingent qui, en tant que tel, m’échappe par principe et ressortit

originellement à ma facticité. (...) En renonçant à l’être-pour-mourir de Heidegger...”

(p.603-604).34 Essa “renúncia” decorre da radicalização da própria idéia heideggeriana

de “escolha”: “Être fini, c’est se choisir, c’est-à-dire se faire annoncer ce qu’on est en

se projetant vers un possible, à l’exclusion des autres. L’acte même de liberté est donc

assomption et création de la finitude. Si je me fais, je me fais fini et, de ce fait, ma vie

est unique”(EN, p.604). Sendo “choix”, a liberdade é “assomption et création de la

finitude”; mesmo que a finitude, por um lado,“détermine la liberté”, por outro, ela

“n’existe que dans et par le libre projet de la fin qui m’annonce mon être” (EN, p.604)

—“Autrement dit, la réalité humaine demeurerait finie, même si elle était immortelle,

parce qu’elle se fait finie en se choisissant humaine”(EN, p.604).35 É portanto por levar

às últimas consequências a idéia heideggeriana de“escolha”que Sartre pode inverter

seu resultado, fazendo da morte domínio da contingência, e não mais, como pretendia

Ser e Tempo,“estrutura ontológica do ser”:“La mort est un fait contingent qui ressortit

à la facticité(...).La mort n’est aucunement structure ontologique de mon être(...).

Qu’est-elle donc?Rien d’autre qu’un certain aspect de la facticité et de l’être pour

autrui,c’est-à-dire rien d’autre que du donné.(...)Ainsi, la mort n’est pas ma possibilité

O MITO DA RESISTÊNCIA

86

(...); elle est situation-limite, comme envers choisi et fuyant de mon choix. Elle n’est

pas mon possible, au sens où elle serait ma fin propre qui m’annoncerai mon être (...).

J’échappe moi-même à la mort dans mon projet même. Etant ce qui est toujours au delà

de ma subjectivité, il n’y a aucune place pour elle dans ma subjectivité. Et cette

subjectivité ne s’affirme pas contre elle, mais indépendamment d’elle (...) Nous ne

saurions donc ni penser la mort, ni l’attendre, ni nous armer contre elle; mais aussi nos

projets sont-ils, en tant que projets —non par suite de notre aveuglement, comme dit le

chrétien, mais par principe— indépendants d’elle” (EN, pp.604, 605 e 606). Isso

significa que a morte não é um “obstáculo” que paralisa minha subjetividade, tornando-

a impotente (“elle ne saurait être un pur arrêt de ma subjectivité”, EN, p.603): “La

liberté qui est ma liberté demeure totale et infinie; non que la mort ne la limite pas,

mais parce que la liberté ne rencontre jamais cette limite, la mort n’est aucunement un

obstacle à mes projets; elle est seulement un destin ailleurs de ces projets. Je ne suis

pas ‘libre pour mourir’, mais je suis un libre mortel” (p.606).36 No interior das análises

de EN o “ser-para-a-morte” heideggeriano, o Dasein que caminha impotente e solitário

para a morte, é metamorfoseado em luta heróica pela vida (ou melhor, mas esse assunto

só será desenvolvido na Segunda Parte do trabalho, o herói sartriano, como o de

Malraux, faz da morte a redenção). O sujeito heróico que está sendo engendrado em

EN não é “fascinado” pela morte, mas pela vida (para usar os termos com que

Merleau-Ponty, referindo-se a Hemingway, Malraux e Saint-Exupéry, caracterizou o

“herói dos contemporâneos”) — e aqui já estamos diante de um Heidegger às avessas,

ou seja, já é a completa inversão do ponto de vista de Ser e Tempo que vemos

consumada: “la mort n’est jamais ce qui donne son sens à la vie: c’est au contraire ce

qui lui ôte par principe toute signification” (EN, p.597). Essa “significação” é apanágio

de um sujeito que decide “livremente” sobre seu destino — daí a “responsabilidade”

dessa “escolha”, como vimos. Esquematizando: se o vínculo liberdade-”choix” remonta

ao “decisionismo” heideggeriano, o binômio responsabilidade-“choix” (atributos da

A Liberdade entra em cena

87

liberdade) já é um Heidegger radicalizado, virado pelo avesso por um sujeito movido

por uma vontade heróica (que mescla o ativismo de Kojève a uma coragem própria do

herói revolucionário de Malraux37): “Mais comment soutenir, d’autre part, qu’une

volonté qui n’existe pas encore peut décider soudain de briser l’enchaînement des

passions et de surgir soudain sur les débris de cet enchaînement? (...) En opposition à

ces conduites [magiques], la conduite volontaire et rationnelle envisagera

techniquement la situation, refusera le magique et s’appliquera à saisir les séries

déterminées et les complexes instrumentaux qui permettent de résoudre les problèmes.

(...) Mais qui me décidera à choisir l’aspect magique ou l’aspect technique du monde?

Ce ne saurait être le monde lui-même — qui, pour se manifester, attend d’être

découvert. Il faut donc que le pour-soi, dans son projet, choisisse d’être celui par qui le

monde se dévoile comme magique ou rationnel, c’est-à-dire qu’il doit, comme libre

projet de soi, se donner l’existence magique ou l’existence rationnelle.De l’une comme

de l’autre il est responsable; car il ne peut être que s’il est choisi.(...) Je me suis choisi

peureux en telle ou telle circonstance; en telle autre j’existerai comme volontaire et

courageux et j’aurai mis toute ma liberté dans mon courage” (EN, p.500).38

Essa radicalização de Heidegger não teria sido possível sem uma outra

radicalização, a da idéia de luta, absolutizada no momento mesmo em que é extraída de

sua principal fonte filosófica: a teoria da intersubjetividade exposta na Fenomenologia

do Espírito. Em que termos se dá tal extração? Reescrevendo aspectos da dialética do

Senhor e do Escravo (“la lutte ardente et périlleuse du maître et de l’esclave”, EN,

p.284), e enfatizando justamente a visão heroicizante, presente em Hegel, do confronto

de consciências —”la lutte contre l’autre” (EN, p.282) descrita na Fenomenologia do

Espírito39—, Sartre afirma: “La conscience de soi est identique avec elle-même par

l’exclusion de tout Autre. Ainsi le fait premier c’est la pluralité des conciences et cette

pluralité est réalisée sous forme d’une double et réciproque relation d’exclusion. (...)

Aucun néant externe et en soi ne sépare ma conscience de la conscience d’autrui, mais

O MITO DA RESISTÊNCIA

88

c’est par le fait même d’être moi que j’exclus l’autre: l’autre est ce qui m’exclut en

étant soi, ce que j’exclus en étant moi. Les consciences sont directement portées les

unes sur les autres dans une imbrication réciproque de leur être. (...) Hegel se place ici

sur le terrain non de la relation univoque qui va de moi (appréhendé par le cogito) à

l’autre, mais de la relation réciproque qu’il définit: ‘le saisissement de soi de l’un dans

l’autre’. En effet, c’est seulement en tant qu’il s’oppose à l’autre que chacun est

absolument pour soi; il affirme contre l’autre et vis-à-vis de l’autre son droit d’être

individualité” (EN, p.281). E acrescenta: “Pour me faire reconnaître par l’autre, je dois

risquer ma propre vie. (...) Mais en même temps je poursuis la mort de l’autre. (...) Je

risquerai ma vie car j’ai fait, dans la lutte contre l’autre, abstraction de mon être

sensible en le risquant” (p.282; grifos do autor). A consciência se define por esse

movimento “assassino” — um movimento onde prova a sua liberdade como ser para

si:40 “Ces deux tentatives que je suis sont opposées. Chacune d’elles est la mort de

l’autre. (...) Mieux, chacune d’elles est en l’autre et engendre la mort de l’autre” (EN,

p.412-413). Esse movimento assassino, que “engendra a morte do Outro”, é tanto mais

dramático quando se pensa —e essa teria sido a “intuição genial de Hegel”— que sem

o Outro não existo (“Il lui fallait les yeux des autres pour se voir”, como diria Malraux,

La Condition Humaine, p.682): “La conscience de soi générale (...) se reconnaît dans

d’autres consciences de soi (...). Le médiateur, c’est l’autre. (...) Les conciences sont

directement portées les unes sur les autres dans une imbrication réciproque de leur être.

(...) Mon apparition pour moi comme individualité (...) est conditionnée par la

reconnaissance de l’autre. (...) Mon être dépend de l’autre (...); je ne suis moi-même

qu’un autre. (...) L’intuition géniale de Hegel est ici de me faire dépendre de l’autre en

mon être. Je suis, dit-il, un être pour soi qui n’est pour soi que par un autre. C’est donc

en mon coeur que l’autre me pénètre. Il ne saurait être mis en doute sans que je doute

de moi-même (...) C’est dans mon être essentiel que je dépends de l’être essentiel

d’autrui et loin que l’on doive opposer mon être pour moi-même à mon être pour

A Liberdade entra em cena

89

autrui, l’être-pour-autrui apparaît comme une condition nécessaire de mon être pour

moi-même” (EN, pp. 281, 282 e 283). (Essa “intuição genial” pára por assim dizer na

metade do caminho, sugere Sartre, pois “la conscience de soi universelle” de Hegel não

é senão “une pure forme vide”, EN, p.283.) E mais adiante: “Je suis esclave dans la

mesure où je suis dépendant dans mon être au sein d’une liberté qui n’est pas la mienne

et qui est la condition même de mon être” (EN, p.314).41

Essa teoria da intersubjetividade —presente na Fenomenologia do Espírito e

reescrita sob o signo da rivalidade42 (o que implica a ênfase numa consciência de si

heroicizada)— é o suporte da análise sartriana da liberdade. Esforço, conflito, luta

dramática, heroísmo, resistência: eis a matéria prima com a qual a liberdade é tecida

em EN.43 Através da luta de resistência —“’nous’ résistons, ‘nous’ montons à l’assaut,

‘nous’ condamnons le coupable” (EN, p.464)— torna-se possível “récupérer mon être”

(p.415):44 “par là je dépasse mes possibilités présentes”(p.335), “je puis réagir”(p.582),

“je puis chercher à récupérer cette liberté et à m’en emparer” (p.412), compreender que

“il n’y a pas d’obstacle absolu” (p.545), ver como contingente (e portanto passível de

mudança) a situação em que “Autrui” me aliena (p.412), ou seja, lutar contra “Autrui”

que “me met hors de jeu”, que limita minhas possibilidades, que “me dépouille”

(p.334) — “je suis engagé dans un conflit avec l’Autre” (p.468). Donde o “projet de

supprimer autrui (...), c’est-à-dire de reconquérir ma liberté” (p.462): “je m’arrache à

Autrui (...) en tant que je prends conscience (...) de mes libres possibilités” (p.334); “je

tente de me libérer de l’emprise d’autrui” (p.413). Mas “mon projet de récupérer mon

être ne peut se réaliser que si je m’empare de cette liberté [d’Autrui] et que je la réduis

à être liberté soumise à ma liberté” (p.415). O resultado dessa luta dramática —

”arrachement de consciences” (EN, p.334)45— é uma subversão das relações de força

(“changements de point de vue”, para usar a linguagem de EN, p.335): é Autrui que

“devient maintenant ce que je limite” (p.335) e que pode assim, por sua vez, tornar-se

“hors de jeu” — “je jette l’Autre hors de jeu”, p.334 (decorre daí outro resultado dessa

O MITO DA RESISTÊNCIA

90

luta: o surgimento da figura de um “Autrui qui ne me met hors jeu”, p.334, mas nos

ocuparemos dessa figura posteriormente). E se “Autrui” pode tornar-se “hors de jeu” é

também possível, pelo mesmo mecanismo de inversão, transmudar a “impuissance”

decorrente da condenação do olhar do outro em “puissance” do olhar do oprimido:

“Personne n’a mieux rendu la puissance du regard de la victime sur ses bourreaux que

Faulkner dans les dernières pages de Lumière d’août” (EN, p.456).46 Essa subversão

das relações de força permite passar, por exemplo, da idéia de impotência do torturado

—“C’est pourquoi le moment du plaisir est, pour le bourreau, celui où la victime renie

ou s’humilie. (...) Et c’est justement à ce corps-là qu’une liberté choisit de s’identifier

par le reniement; ce corps défiguré et haletant est l’image même de la liberté brisée et

asservie” (EN, p.454)— à idéia de “fracasso” total do projeto da tortura: “Le sadique

découvre son erreur lorsque sa victime le regarde, c’est-à-dire lorsqu’il éprouve

l’aliénation absolue de son être dans la liberté de l’Autre(...). Il découvre alors qu’il ne

saurait agir sur la liberté de l’Autre, même en contraignant l’Autre à s’humilier et à

demander grâce, car c’est précisément dans et par la liberté absolue de l’Autre qu’un

monde vient à exister, où il y a un sadique et des instruments de torture et cent

prétextes à s’humilier et à se renier. (...) Ainsi cette explosion du regard d’Autrui dans

le monde du sadique fait s’effondrer le sens et le but du sadisme. En même temps le

sadisme découvre que c’était cette liberté-là qu’il voulait asservir et, en même temps,

il se rend compte de la vanité de ses efforts” (EN, p.456-457).

Tais “changements de point de vue” (p.335) permitem por conseguinte lutar

contra “la peur” (própria da solidão de uma subjetividade abandonada no mundo das

coisas) —”la peur n’est rien autre qu’une conduite magique” (p.342)— e, nessa

medida, superar a “honte” (definida como estado de resignação).47 Embora no interior

de EN duas perspectivas pareçam coexistir —“la honte” (resultado da objetivação, ou

da impotência da subjetividade) e “l’orgueil” (heroísmo da consciência)— o próprio

movimento das análises especulativas do livro faz com que o heroísmo termine

A Liberdade entra em cena

91

prevalecendo sobre a “honte”: “En un mot il y a deux attitudes authentiques: celle par

laquelle je reconnais Autrui comme le sujet par qui je viens à l’objectivité — c’est la

honte; celle par laquelle je me saisis comme le projet libre par qui Autrui vient à l’être-

autrui — c’est l’orgueil ou affirmation de ma liberté en face d’Autrui-objet” (EN,

p.337). É no coração da “honte” que “l’orgueil” (enquanto projeto de afirmação da

liberdade) começa a se constituir. (É essa preponderância do heroísmo que levará

Sartre a vislumbrar a superação da “angústia” existencial — retomaremos o assunto no

próximo capítulo.)

Nessa perspectiva, a superação da impotência da subjetividade (outro aspecto do

aparecimento da figura da liberdade) pressupõe, vê-se logo, a negação do estabelecido

(“négation du donné”, p.535; “rupture avec le donné”, p.534):48 “la liberté est

dépassement de ce donné-ci (...): sa fin est justement de changer ce donné-ci” (EN,

p.565).49 Se a liberdade é negação do estabelecido (cf. também p.493-494), “l’homme

ne saurait être tantôt libre et tantôt esclave: il est tout entier et toujours libre ou il n’est

pas” (p.495). É assim que a própria noção de consciência pode ser definida em EN a

partir dessa idéia de “négation du donné” (nunca é demais lembrar que é nestas

condições que a consciência entra em cena na Fenomenologia do Espírito50): “la

conscience(...) est pure et simple négation du donné, elle existe comme dégagement

d’un certain donné existant et comme engagement vers une certaine fin encore non

existante” (EN, p.535). E ainda: “La conscience (...) doit surgir dans le monde comme

un Non” (p.82); “son [du Pour-soi] premier rapport avec l’être en soi est-il négation”

(p.162); “Toute conscience se définit par sa négativité” (p.346); “...lors qu’on attribue

à la conscience ce pouvoir négatif vis-à-vis du monde et d’elle-même...” (p.490).51

Toda atividade provém da consciência (como fonte da negação) — é ela que sustenta a

“théorie de l’action” (EN, p.369) elaborada no livro: “Le pour-soi, comme fondement

de soi, est le surgissement de la négation” (EN, p.127); “Ainsi le monde, dès le

surgissement de mon Pour-soi, se dévoile comme indication d’actes à faire, ces actes

O MITO DA RESISTÊNCIA

92

renvoient à d’autres actes, ceux-là à d’autres et ainsi de suite. (...) Ainsi le monde,

comme corrélatif des possibilités que je suis, apparaît, dès mon surgissement, comme

l’esquisse énorme de toutes mes actions possibles” (p.370). Outros momentos da

descrição do “poder negativo” da consciência que leva à transformação do existente:

“Le pour-soi (...) étant lui-même le tout de la négation est négation du tout” (EN,

p.221); “Le pour-soi en [du ceci] est négation radicale et syncrétique. (...) Le

dévoilement du ceci suppose que (...) le pour-soi ne puisse exister que comme une

négation qui se constitue sur le recul en totalité de la négativité radicale” (p.223) — daí

“sa structure de négativité” (p.220).52 Uma vez estabelecida essa identificação entre

consciência, “négation du donné” e “engagement vers une certaine fin encore non

existante” (resultado do movimento transformador que caracteriza a liberdade),53 e

visto que “la conscience peut toujours dépasser l’existant”, como alertava o autor já no

início do livro (EN, p.30), torna-se possível “envisager pour l’avenir une organisation

collective plus juste” (EN, p.647), numa palavra, vislumbrar a possibilidade de

“suppression de cet asservissement réel” (EN, p.462): “c’est à partir du jour où l’on

peut concevoir un autre état de choses qu’une lumière neuve tombe sur nos peines et

sur nos souffrances et que nous décidons qu’elles sont insupportables” (EN, p.489).

Tomada essa “decisão”, e se “nous nous pro-jetons vers une modification de cette

situation” (EN, p.492), está aberto o caminho para “reconquérir la liberté” (p.462) —

nesse momento, podemos nos sentir de novo em casa:54 “je prends conscience”, “j’ai

reconquis mon être-pour-soi par ma conscience (de) moi comme foyer perpétuel

d’infinies possibilités et j’ai transformé les possibilités d’Autrui en mortes-

possibilités” (EN, p.334-335). Nesse resultado da trajetória dos “chemins de la liberté”

(a metamorfose da alienação em libertação), reencontramos, fortemente entrelaçadas,

suas determinações essenciais: “condamnés à être libres” é, vemos melhor agora, não

apenas “condamnés au choix” mas também (e sobretudo) “condamnés à changer” —

heroicamente— o existente, ou, para usar a linguagem de Malraux, “condamnés à

A Liberdade entra em cena

93

changer ou à mourir” (L’Espoir, p.183). Em vez de resignar-se complacentemente à

força da alienação, ao estado de coisas vigente, à impotência da subjetividade, em vez

de eternizar tal estado de coisas, as análises desenvolvidas em EN, como procuramos

mostrar, invertem os termos do problema e, heroicizando a consciência (ou

transformando-a em vontade heróica), apelam à luta, à emancipação.

Esse movimento de conversão da impotência da subjetividade em consciência

heroicizada, ou de transformação da não-liberdade em liberdade, é feito pela mediação

do Tempo, mais precisamente, de uma temporalidade que é redenção: “Temps qui

guérit”. Dissemos no início que o problema da negação resulta na afirmação da

liberdade. Seria preciso acrescentar: da liberdade e da temporalidade pois em EN uma

não se separa da outra — a primeira entrada em cena da liberdade desencadeia uma

“opération temporelle”, ou melhor, ela se dá “au cours d’un processus temporel”, EN,

p.60-61 (“C’est la liberté même, en effet, qui se temporalise suivant les directions de

l’avant et de l’après”, EN, p.551). Com isso já se expõe a passagem ao tempo. É o fio

das horas que tece a figura da liberdade em EN — os “caminhos da liberdade” ao longo

do livro são desbravados pelo Tempo.

Vemos assim finalmente delineada a última determinação essencial da

liberdade (mas que é condição de todas as outras) — o Tempo (indissociável da

categoria de “changement” e, nessa medida, concebido justamente como negação da

repetição, conforme veremos): “ainsi liberté, choix, néantisation, temporalisation, ne

font qu’une seule et même chose” (EN, p.521); “le caractère propre d’une liberté qui se

temporalise” (p.604). Nas análises de EN, a liberdade e o tempo histórico têm a mesma

idade. Se é possível dizer que para Sartre é a liberdade a instância capaz de suscitar o

advento do tempo histórico (assim como para Hegel é a prosa55), o inverso é também

verdadeiro: é o Tempo (entendido como mediação) que, permeando a passagem da

fatalidade à liberdade, permite o nascimento da própria liberdade — ele é, a nosso ver,

O MITO DA RESISTÊNCIA

94

o fio que entrelaça as diferentes instâncias da obra e, nessa perspectiva, exige

tratamento à parte.

A Liberdade entra em cena

95

Notas - Capítulo 2

1) A afirmação da liberdade é resultado desse movimento de negação da negação

(sobre a identificação em EN entre “néantisation” e “négation”, cf. por exemplo a p.61,

além do que já foi mencionado no capítulo anterior). A idéia de uma “double négation”

(p.61; cf. também a p.332) aparece em EN justamente por ocasião dessa primeira

entrada em cena da liberdade no livro. É que a “dupla negação”, como já observamos,

pressupõe a “negação interna” a qual, por sua vez, é indissociável da liberdade (EN,

p.330). Tal vínculo indissolúvel entre liberdade e “negação interna” se explica porque

esta última é definida como “dépassement” (p.379), que é justamente a marca

registrada da liberdade, conforme veremos. Mas se explica também porque só com a

negação da negação pode tomar forma a idéia de totalidade, outro atributo da

liberdade. Nos Cahiers pour une morale, referindo-se à leitura que “le communisant

Kojève” e Hyppolite fazem da Fenomenologia do Espírito, Sartre afirma que a negação

da negação pressupõe a idéia de totalidade: “la négation de la négation ne peut être

positivité que par la présence en elle du tout” (p.172); “comme Hyppolite l’a montré, il

faut que le tout soit présent en quelque manière dans la partie pour que la négation de

la négation soit constructive” (p.176). Daí o vínculo imanente entre “dupla negação”,

liberdade e totalidade. Mas atenção: em EN “la double négation demeurait

évanescente” (EN, p.688), visto que se trata de uma “synthèse manquée” (p.690), como

mostraremos no final deste trabalho. 2)”L’humanisation du néant implique qu’il n’y ait rien de négatif dans le monde hors

de l’action humaine”, escreve V. Descombes a respeito de Kojève(Le Même et L’Autre,

p.47). Ou então: “Kojève, dans le but de donner figure humaine au négatif...” (Idem,

O MITO DA RESISTÊNCIA

96

p.51). E num capítulo sobre EN, comentando a afirmação de que “l’homme est l’être

par qui le néant vient au monde”, Descombes atribui a Sartre justamente a mesma idéia

de “humanisation du néant” com a qual definira o propósito kojeviano: “Si le néant

suppose la négation, la négation, à son tour, suppose le négateur. L’humanisation du

néant est complète” (Le Même et L’Autre, p.65). 3) E ainda: “Il ne nous est pas encore possible de traiter dans toute son ampleur le

problème de la liberté. (...) Mais ce n’est pas encore comme intrastructure de la

conscience que nous envisagerons la liberté: nous manquons pour l’instant des

instruments et de la technique qui nous permettraient de mener à bien cette entreprise”

(EN, p.60). 4)Cf. a primeira elaboração dessa idéia nos Carnets de la Drôle de Guerre, onde Sartre

afirma que é a liberdade que introduz a negação no mundo (p.166). Procurando

ressaltar “les liens entre négation et liberté” em EN, Jean Walh escreve: “Sartre affirme

que la négation est comme une invention libre” (“Essai sur le néant d’un problème”, in

Deucalion, nº 1, 1946, p.49). Também V. Descombes sublinha, em EN, a “définition

négative de la liberté”: “la liberté a pour essence la négativité ou, comme dit Sartre, le

pouvoir de néantiser” (Le Même et L’Autre, p.65). 5)Isso não significa, como Sartre nunca deixará de frisar (cf. em particular

L’Existentialisme est un humanisme, pp.19 a 22, “Un nouveau mystique”, Sit.I, p.139 e

Réflexions sur la question juive, p.72), conceber uma natureza humana (nos moldes da

filosofia dogmática), mas sim uma condição humana. Uma “condição humana” que não

se distingue da liberdade — essa idéia, esboçada já no início de EN, norteará o

capítulo sobre a liberdade (“L’homme est libre”, EN, p.494) e o resto da obra

sartriana: “Il est visible que tout homme est liberté”, afirma o autor num ensaio de

1945 (“La Liberté Cartésienne”, Sit.I, p.293).

A Liberdade entra em cena

97

6)Refletindo sobre “la pensée du négatif”, e tendo EN no horizonte, Merleau-Ponty

escreve: “Elle commence par opposer absolument l’être et le néant, et elle finit par

montrer que le néant est en quelque sorte intérieur à l’être, qui est l’unique univers.

(...) Les deux mouvements, celui par lequel le néant appelle l’être et celui par lequel

l’être appelle le néant, ne se confondent pas: ils se croisent” (Le visible et l’invisible,

p.95). E acrescenta: “L’appel de l’Être au néant est en vérité appel du néant à l’Être,

autonégation” (Idem, p.98). 7)”Les sciences phénoménologiques sont descriptives”, sublinha Sartre em

L’Imagination (p.143). (Cf. a esse respeito o que diz Lukács em História e Consciência

de Classe: “O próprio Husserl chama seu método de puramente descritivo”, p.163. E

também V. Descombes: “D’où la définition de la phénoménologie comme description.

Elle n’a pas à expliquer, mais à expliciter, c’est-à-dire à reproduire, dans le discours,

l’énoncé d’avant le discours qu’est le phénomène”, Le Même et L’Autre, p.76-77.) Mas

essa “descrição” não tem exatamente o mesmo sentido em Husserl e em Heidegger —

“Ce qu’il [Husserl] va tenter de décrire et de fixer par des concepts, ce sont

précisément les essences qui président au déroulement du champ transcendantal”,

esclarece Sartre em Esquisse d’une théorie des émotions (p.13). Ora, com a

destranscendentalização da filosofia operada por Heidegger, a “descrição”

fenomenológica ganha agora uma nova dimensão — é o que Sartre procura indicar

quando distingue, em EN, seu próprio método de investigação do método da

fenomenologia (no sentido husserliano): “Décrire, à l’ordinaire, est une activité

d’explicitation visant les structures d’une essence singulière. Or, la liberté n’a pas

d’essence” (EN, p. 492). Uma obra que pretenda “descrever” a liberdade deve então

buscar “des descriptions qui ne visent pas l’essence mais l’existant lui-même, dans sa

singularité” (EN, p.492-493). O que evidencia a passagem de Husserl a Heidegger: da

descrição de essências à descrição da existência. (Recorde-se a definição heideggeriana

O MITO DA RESISTÊNCIA

98

da “descrição” fenomenológica: “Descrever o ‘mundo’ fenomenologicamente significa:

mostrar e fixar numa categoria conceitual o ser dos entes que simplesmente se dão

dentro de mundo”, Ser e Tempo, vol.1, p.103.) Ou melhor, trata-se de descrever “as

estruturas essenciais” do existente: “A ce niveau de notre recherche, une fois élucidées

les structures essentielles de l’être-pour-autrui, nous sommes tentés, évidemment, de

poser la question métaphysique: ‘Pourquoi y a-t-il des autres?’ (...) En ce sens,

l’ontologie nous paraît pouvoir se définir comme l’explicitation des structures d’être de

l’existant pris comme totalité et nous définirons plutôt la métaphysique comme la mise

en question de l’existence de l’existant” (EN, p.344-345). 8)Sobre o “visqueux”, recorde-se esta passagem de EN: “Il y a comme une fascination

tactile du visqueux. Je ne suis plus le maître d’arrêter le processus d’appropriation.(...)

Le visqueux apparaît comme un liquide vu dans un cauchemar et dont toutes les

propriétés s’animeraient d’une sorte de vie et se retourneraient contre moi. Le

visqueux, c’est la revanche de l’En-soi.(...) Mais, en même temps, le visqueux c’est

moi (...). Il y a, dans l’appréhension même du visqueux, substance collante,

compromettante et sans équilibre, comme la hantise d’une métamorphose. Toucher du

visqueux, c’est risquer de se diluer en viscosité. Or, cette dilution, par elle-même est

déjà effrayante, parce qu’elle est absorption du Pour-soi par l’En-soi comme de l’encre

par un buvard. Mais, en outre, il est effrayant, à tant faire que de se métamorphoser en

chose, que ce soit précisément une métamorphose en visqueux. (...) Le visqueux offre

une image horrible” (EN, p.671-672). Mas é de dentro dessa “image horrible” que

vemos se delinear a imagem da “bela” liberdade.

9)Referindo-se ao “point de vue de Hegel (...) dans la Logique”, Sartre afirma que se

poderia “considérer l’être et le non-être comme deux composantes complémentaires du

réel, à la façon de l’ombre et de la lumière.(...) L’être pur et le non-être pur seraient

deux abstractions dont la réunion seule serait à la base de réalités concrètes” (EN,

A Liberdade entra em cena

99

p.47). E acrescenta: “Le néant porte l’être en son coeur” (EN, p.53). É o que poderia

ser dito a respeito das relações entre a não-liberdade e a liberdade em EN. (Veremos

na Segunda Parte do trabalho que o mesmo recurso a metáforas de iluminação, usado

em EN para designar a liberdade, será usado também para designar a Revolução.) 10) “Ainsi dois-je me perdre pour me trouver”, escreve Sartre nos Cahiers pour une

morale (p.136). E em L’Existentialisme est un Humanisme, lemos que o verdadeiro

humanismo vem da alienação: “L’homme est constamment hors de lui-même, c’est en

se projetant et en se perdant hors de lui qu’il fait exister l’homme” (p.92). No ensaio de

1945 sobre Descartes, Sartre afirma que a alienação supõe a liberdade: “Même le

désarroi, (...), même l’aliénation supposent la liberté” (“La Liberté Cartésienne”, Sit.I,

p.308). Mais tarde, na Conferência de Araraquara, o autor procura mostrar que

“alienação e liberdade não são, em absoluto, conceitos contraditórios”: a liberdade

supõe a não-liberdade, uma nasce da outra (pp. 39, 41 e 93). E mais: “Somos objetos,

mas sempre ultrapassamos o objeto” (Idem, p. 81) — esse ultrapassamento se faz pela

via da liberdade que, como veremos, leva à superação do presente. Cf. ainda a idéia de

“experiência” no Merleau-Ponty da Phénoménologie de la Perception: “Et on nomme

justement expérience ce mouvement au cours duquel l’immédiat, le non-expérimenté,

c’est-à-dire l’abstrait, appartenant soit à l’être sensible, soit au simple seulement pensé,

s’aliène et de cet état d’aliénation retourne à soi-même” (p.32). Recorde-se de

passagem que o “sentido positivo” da alienação em Hegel tem também importância

crucial nas análises do jovem Marcuse — cf. em particular “Novas fontes para a

fundamentação do materialismo histórico”, de 1932 (mas aqui o problema da alienação

em Hegel já é examinado à luz dos Manuscritos de Marx, o que não ocorre com o

primeiro Sartre). 11)”Nous sommes condamnés à être libres”: eis a fórmula que constitui “la base de ma

morale”, afirma Sartre nos Cahiers pour une morale (p.447).

O MITO DA RESISTÊNCIA

100

12)Nesse contexto, compreende-se que não é possível pensar as relações entre liberdade

e determinismo em EN em termos de simples oposição, como pretende por exemplo

Vincent Descombes: “Sartre s’en est tenu à la question classique: libre arbitre ou

déterminisme” (“Tradition française oblige”, Libération, 23-24 juin 1990, número

especial sobre Sartre). Ou então Gerd Bornheim: “A alternativa não poderia ser mais

radical: ou o determinismo absoluto ou liberdade absoluta” (Sartre, p.112). Nessa

mesma linha, F. Jameson, contrapondo EN à Crítica da Razão Dialética, escreve:

“Vale lembrar que o oposto da liberdade em O Ser e o Nada não era nem a necessidade

nem a coação mas sim o determinismo” (Marxismo e Forma, p.221). Ora, em EN,

como procuramos indicar, as relações entre liberdade e determinismo (ou fatalismo)

não só não se explicam em termos de mera oposição como é justamente a partir do

fatalismo que a liberdade pode surgir no interior das análises do livro — ela é a outra

face do fatalismo, como já dizia Sartre em L’Imaginaire: “Le fatalisme (...) est l’envers

de la liberté” (L’imaginaire, p.99). Algum tempo depois, em “Matérialisme et

Révolution”, Sartre, numa análise que, como observa Habermas, “parte da dialética

hegeliana do senhor e do escravo” (Habermas, Théorie et Pratique, II, p.227), afirma

que a “liberté concrète” nasce no seio do “determinismo da matéria” (visto que as

mesmas condições sociais que engendraram a alienação podem levar à libertação):

“L’ouvrier (...) n’est plus qu’un objet. (...) Mais dans le même temps, le travail offre

une amorce de libération concrète. (...) C’est le déterminisme de la matière qui lui offre

la première image de sa liberté. (...) L’idée de libération s’est jointe, pour lui, à celle de

déterminisme. (...). L’ébauche de sa liberté concrète lui apparaît dans les maillons du

déterminisme” (“Matérialisme et Révolution”, Sit.III, pp.198-200). Mais tarde, em

Saint Genet, reencontraremos essa mesma idéia de que a liberdade nasce do

“determinismo”, ou da “fatalidade”: “faire voir cette liberté aux prises avec le destin,

d’abord écrasée par ses fatalités puis se retournant sur elles pour les digérer peu à peu”

A Liberdade entra em cena

101

(p.645). Na Nausée (parte inédita), já está presente essa identificação entre liberdade e

fatalidade: “Étrange liberté, dont je sais qu’elle aura des conséquences fatales: chacun

de mes gestes, d’une façon que je ne peux même pas soupçonner, prépare tout ce qui

arrivera par la suite; à chaque moment, ma liberté m’offre l’aspect d’une responsabilité

infinie: elle s’identifie avec le poids écrasant de la fatalité” (Pléiade, p.1760). Esse

vínculo íntimo entre liberdade e fatalidade tornar-se-á constitutivo de toda a obra

sartriana. “La fatalité que l’on croit constater dans les drames antiques n’est que

l’envers de la liberté”, lemos por exemplo em “Pour un théâtre de situations” (1947).

Recorde-se ainda esta passagem de Saint Genet: “cette étrange liberté qui se confond

avec la fatalité” (p.117). Essa liberdade que não é senão o outro aspecto da fatalidade

leva ao paradoxo de uma filosofia da liberdade que dá na “destinée”: “le choix libre

que l’homme fait de soi-même s’identifie absolument avec ce qu’on appelle sa

destinée” (Baudelaire, p.179). Daí esta passagem de EN: “essayer de comprendre ce

que représente pour la destinée humaine le fait de cette liberté” (p.612). Em seus

comentários a respeito do pensamento sartriano, Lukács escreve o seguinte: “a

liberdade seria (...) a fatalidade da existência humana” — “esse caráter fatal da

liberdade atravessa, segundo Sartre, toda a existência humana; o homem não poderia

escapar à liberdade de escolha” (Existencialismo ou Marxismo?, p.91). Haveria assim

em Sartre uma “concepção fatalista da liberdade” (p.96) — e aqui Lukács tem razão, a

nosso ver (malgrado os tropeços —para dizer o menos— de Existencialismo ou

Marxismo?: sem falar da sua total incompreensão do sentido progressista do

existencialismo francês, Lukács chega a ver em EN um “idealismo” nos moldes do

“bravo bispo Berkeley”..., p.75). 13)Já na Transcendance de l’Ego (1934), Sartre escreve: “La conscience est conscience

d’elle-même. C’est-à-dire que le type d’existence de la conscience c’est d’être

conscience de soi” (p.23-24).

O MITO DA RESISTÊNCIA

102

14)Recorde-se que para Hegel, conforme lemos no final de sua Filosofia da História, “a

idéia da liberdade só existe como consciência da liberdade” (p.410-411). Sobre a

importância da tomada de consciência em Hegel, cf. Paulo Arantes, “A Prosa da

História”: “para Hegel, a história irrompe no seio das sociedades por ocasião de uma

tomada de consciência” (Hegel— A Ordem do Tempo, p.157). Todavia, é no Hegel da

Fenomenologia do Espírito que, a nosso ver, Sartre encontra sua maior inspiração

filosófica para essa idéia de tomada de consciência. O que Hegel descreve na

Fenomenologia, como se sabe, é um caminho de tomada de consciência: o processo

pelo qual a consciência toma consciência dela mesma (uma consciência de si que

jamais é solitária, não é solipsista: estamos portanto já muito longe do cartesianismo).

E a consciência de si surge na Fenomenologia como a verdade das figuras da

consciência: “Le processus nécessaire des figures de la conscience exposées jusqu’ici

(...) exprime précisément que non seulement la conscience des choses est seulement

possible pour une conscience de soi, mais encore que celle-ci seulement est la vérité de

ces figures” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.140). (“A verdade da consciência

é a consciência-de-si”, reitera Hegel na parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas

dedicada à Fenomenologia do Espírito, vol.III, p.195.) Em sua tradução comentada da

Fenomenologia, Hyppolite assinala a diferença entre Fichte e Hegel no que diz respeito

ao papel fundamental da consciência de si: “Le but de Fichte était précisément de

montrer que la conscience de soi était la vérité de la conscience de quelque chose; mais

Hegel procède autrement que Fichte. Fichte partait de la conscience de soi, Hegel y

aboutit en suivant le chemin de l’expérience phénoménologique” (La Phénoménologie

de l’Esprit, vol.I, p.140, nota 53). Na ótica de Hyppolite, como lemos em seus Etudes

sur Marx et Hegel, “la prise de conscience” é “l’âme de toute la Phénoménologie

hégélienne” (Etudes sur Marx et Hegel, p.121). (Convém relembrar que a fonte dessa

leitura hyppoliteana é Kojève, para quem a consciência-de-si é “a chave do edifício” da

A Liberdade entra em cena

103

Fenomenologia do Espírito, como escreve Paulo Arantes em “Um Hegel errado mas

vivo”, p.75.) É justamente essa noção de tomada de consciência que norteia a leitura

que Hyppolite faz de Marx: “Cette notion de prise de conscience, si importante dans la

dialectique de la Phénoménologie hégélienne, elle est le moteur de l’émancipation

humaine pour Marx. La prise de conscience n’est pas la réflexion passive d’un état de

choses, elle est ce qui peut seul constituer la réalité de la contradiction dialectique

aussi bien que ce qui exige sa résolution. Que le prolétariat prenne conscience de

l’aliénation de l’homme, cela signifie une opposition intérieure à l’homme même, et

cette opposition n’est contradiction réelle et exigence de résolution que parce qu’elle

est à la fois objective et subjective, qu’elle exprime un état de fait —l’homme posé

comme en dehors de lui-même, comme une chose,— et une négation de ce fait —

l’homme comme sujet inaliénable ne pouvant se trouver précisément comme une

chose” (Jean Hyppolite, Etudes sur Marx et Hegel, p.141). Sabemos que essa idéia de

tomada de consciência atravessa toda a tradição do pensamento revolucionário. Nesse

sentido, ver o jovem Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:

idéia de despertar no povo alemão “a consciência da opressão” (p.17 e as pp. 18, 30 e

47). Vale lembrar também a retomada dessa idéia de tomada de consciência pelo

“marxismo hegeliano” de História e Consciência de Classe: o “salto do reino da

necessidade ao reino da liberdade” (p.115) via tomada de consciência — “o salto não

significa senão que a humanidade (post festum) toma consciência, acaso

repentinamente, da nova situação já alcançada” (p.118). E ainda: “a humanidade toma

conscientemente em suas mãos sua própria história” (Idem, p.119); “despertar” da

“consciência de classe” (p.90); “a tomada de consciência da sociedade significa ao

mesmo tempo a possibilidade de direção da mesma” (p.94). Pensando justamente nesse

“marxismo hegeliano” do jovem Lukács, Merleau-Ponty define a revolução em Marx

como “prise de conscience” ( Les Aventures de la dialectique, p.209). É essa noção de

tomada de consciência, diz ainda Merleau-Ponty, que ao mesmo tempo aproxima e

O MITO DA RESISTÊNCIA

104

distancia Sartre de Marx. Distancia porque Sartre converte a tomada de consciência

num absoluto (e aqui Merleau-Ponty tem em vista o pensamento sartriano como um

todo, tal como ele se desenvolveu a partir dos fundamentos de EN): “Pour Sartre, la

prise de conscience est un absolu, elle donne le sens, et, quand il s’agit d’un

événement, irrévocablement. Pour Marx, la prise de conscience, —celle du dirigeant

comme celle des militants,— est elle-même un fait, elle a sa place dans l’histoire, elle

répond ou non à ce que l’époque attend, elle est complète ou partielle, à sa naissance

déjà elle est dans une vérité qui la juge” (Les Aventures de la Dialectique, p.170). As

raízes dessa absolutização sartriana da tomada de consciência estão fincadas não

apenas na filosofia, mas também na literatura — examinaremos mais adiante o papel

decisivo do heroísmo dramático de Malraux na formação do pensamento sartriano. Por

ora basta lembrar que Malraux termina seu romance sobre a guerra civil espanhola,

L’Espoir, justamente enfatizando a idéia de tomada de consciência: “Et, comme lui et

comme chacun de ces hommes, l’Espagne exsangue prenait enfin conscience d’elle-

même” (L’Espoir, p.432). Na Segunda Parte deste trabalho compreenderemos melhor

por que essa idéia de tomada de consciência, fundamental na tradição de pensamento

revolucionário, irrompe com força tão decisiva no coração de um “ensaio de ontologia

fenomenológica” (mesmo que Sartre ainda desconheça quase tudo dessa tradição). 15)Em “Les Damnés de la Terre”, Sartre fala em “découvrir à vous-mêmes dans votre

vérité d’objets” (Sit.V, p.174).

16)Sobre a idéia de responsabilidade, recorde-se também esta passagem: “L’homme,

étant condamné à être libre, porte le poids du monde tout entier sur ses épaules: il est

responsable du monde et de lui-même en tant que manière d’être” (EN, p.612). E Sartre

acrescenta: “Je suis condamné à être intégralement responsable de moi-même. (...) La

responsabilité du pour-soi s’étend au monde entier comme monde-peuplé” (EN, p.615).

A Liberdade entra em cena

105

17)Um “decisionismo” que procede de Heidegger (mas também de Malraux e de uma certa

literatura heróica de guerra, como veremos melhor na Segunda Parte do trabalho): “A

liberdade apenas se dá na escolha de uma possibilidade” (Ser e Tempo, vol.II, p.73). Sobre

a importância estrutural da “decisão” em Ser e Tempo, cf. em particular o vol.I, p.100 e o

vol.II, pp.55, 86, 87, 94, 97, 98, 99.

18) Tanto em EN quanto em Les Mouches, a idéia de “Absurdité” surge como resultado

dessa impossibilidade de não escolher, ou seja, do fato de estarmos “condamnés au

choix”: “La réalité-humaine(...) ne peut pas ne pas se choisir(...). Ce choix est absurde,

non parce qu’il est sans raison, mais parce qu’il n’y a pas eu possibilité de ne pas

choisir” (EN, p.535). E ainda: “La liberté est liberté de choisir, mais non la liberté de

ne pas choisir. Ne pas choisir, en effet, c’est choisir de ne pas choisir. (...) D’où

l’absurdité de la liberté” (EN, p.537). (O “absurdo” vem da contingência — ambos são,

aliás, identificados em EN, cf. p.376.) A fórmula “condamnés au choix” se tornará,

assim como “condamnés à êtres libres”, recorrente na obra sartriana: “ce qui n’est pas

possible, c’est de ne pas choisir” (L’Existentialisme est un humanisme, p.73);

“condamné à se choisir” (Réflexions sur la question juive, p.164). O que leva Jameson

a sublinhar “o elemento paradoxal da noção de liberdade de Sartre”: “não somos livres

para não reagir ao destino em questão” (Marxismo e Forma, p.221-222). 19)”Il est libre parce qu’il peut toujours choisir”, reitera Sartre em A propos de

l’existentialisme: Mise au point (p.657). Essa identificação entre liberdade e “choix”,

constitutiva de EN, reaparece na Phénoménologie de la Perception de Merleau-Ponty:

“Il n’y a de choix libre que si la liberté se met en jeu dans sa décision et pose la

situation qu’elle choisit comme situation de liberté.(...) La notion même de liberté

exige que notre décision s’enfonce dans l’avenir” (p.499). Voltemos a EN: visto que o

ser do homem é liberdade e a liberdade é “choix”, torna-se possível uma outra

generalização filosófica: “Nous sommes choix” (EN, p.377). E ainda: “Pour la réalité-

O MITO DA RESISTÊNCIA

106

humaine, être c’est se choisir” (p.495); “Je suis renvoyé moi aussi à mon projet

originel, c’est-à-dire à mon être-dans-le-monde, en tant que cet être est choix” (EN,

p.512). Essa generalização filosófica será reelaborada nos Cahiers pour une morale:

“Il y a liberté s’il y a choix entre des possibles” (p.338).

20) Abordaremos posteriormente as implicações dessa idéia de ato decisório.

Limitemo-nos por enquanto a notar que Sartre, mais tarde, afirma que o “otimismo”

existencialista vem da “possibilidade de escolha” (L’Existentialisme est un humanisme,

p.15). Essa idéia de liberdade de escolha, diga-se de passagem, tem importância

decisiva nas reflexões de Merleau-Ponty sobre a história (mas aqui a liberdade de

escolha tem nítida ressonância weberiana, o que não caracteriza o caso de Sartre). 21)Esse “renverser la vapeur” pressupõe uma “conversion radicale”, cujo significado

será examinado na Segunda Parte deste trabalho. 22)Esse vínculo imanente entre negação, liberdade e ação (cf. também EN, p.488) é

característico de Kojève, como se sabe: “La Négativité est donc la liberté réelle qui se

réalise et se manifeste ou se révèle en tant qu’action” (Kojève, Introduction à la

lecture de Hegel, p.493; grifos do autor). Ou então: “Or, la négation se réalise en tant

qu’action effectuée, et non en tant que pensée ou simple désir. (...) La Liberté (...) se

réalise et se manifeste en tant qu’Action dialectique ou négatrice” (Introduction à la

lecture de Hegel, p.494). Nesse contexto, “l’interprétation dialectique de l’Homme” é

definida por Kojève como a interpretação “de la Liberté ou de l’Action” (Idem, p.495).

“Kojève chamará Ação”, explica Paulo Arantes, “esse impulso [do “sujeito nascente

para o futuro”] cuja matriz é uma distância interior definida pela negação” (Paulo

Arantes, “Um Hegel errado, mas vivo”, IDE, nº 21, 1991, p.75). 23)Além de Kojève (sobre “l’ativisme” kojeviano, Descombes escreve: “L’action, et

non l’être, fournit la règle de la vérité. (...) L’action est ce qui décide de tout”, Le

Même et L’Autre, pp.42 e 45), esse ativismo de EN paga um tributo especial a um certo

A Liberdade entra em cena

107

tipo de “literatura de situações extremas”: “Tu loges dans ton acte même. Ton acte,

c’est toi”, escreve Saint-Exupéry em Pilote de Guerre (p.151). (Publicado em 1942,

durante a redação de EN, Pilote de Guerre tem, como veremos, importância decisiva

nas reflexões de Sartre e de Merleau-Ponty sobre o heroísmo.) Cf. também Malraux, La

Condition Humaine: “L’acte, l’acte seul justifie la vie (...). Que penserions-nous si l’on

nous parlait d’un grand peintre qui ne fait pas de tableaux? Un homme est la somme de

ses actes, de ce qu’il a fait, de ce qu’il peut faire” (Pléiade, p.679). 24)O que Sartre aliás nunca deixará de fazer após EN — um ativismo que passará a

caracterizar o Existencialismo: “Il n’y a de réalité que dans l’action”, lemos em

L’Existentialisme est un humanisme (p.55). E algumas páginas depois:

“l’existentialisme (...) définit l’homme par l’action. (...) Il n’y a d’espoir que dans son

action” (p.62-63). O próprio existencialismo é definido como uma “doctrine d’action”

(p.95). Cf. também os Cahiers pour une morale: “La morale c’est la théorie de

l’action” (p.24). Ainda nos Cahiers, referindo-se a “Hegel-Kojève”, Sartre escreve que

“l’Être vrai de l’homme c’est son action” (p.78). E mais adiante: “L’homme se crée par

l’intermédiaire de son action sur le monde. Voilà ce qu’on peut concéder aux

marxistes” (Cahiers pour une morale, p.129). É essa mesma teoria da ação que norteia

“Qu’est-ce que la littérature?”: “Le monde réel ne se révèle qu’à l’action, (...) on ne

peut s’y sentir qu’en le dépassant pour le changer” (Sit.II, p.109). Em EN, diz

Jameson, “a origem mesma da ação (como o nada num domínio do ser puro, isto é, dos

objetos) foi encontrada na estrutura do ser humano como lacuna, como privação

ontológica, que tenta se satisfazer a si mesma, se realizar e, desse modo, atingir algum

estado ontológico definitivo” (Marxismo e Forma, p.180). E Jameson acrescenta que

na Crítica da Razão Dialética “o novo termo para esse processo é necessidade, que é

pouco mais do que uma tradução da terminologia ontológica para uma terminologia de

natureza relativamente mais sócio-econômica. Ambas são, é claro, hegelianas na

O MITO DA RESISTÊNCIA

108

origem: não apenas a noção da ação, experiência e trabalho humanos como negação do

ser existente, é caracteristicamente hegeliana; mas ainda para ele a própria história da

auto-consciência começa precisamente com o desejo (Begierde) que funciona, contudo,

de maneira bastante semelhante à idéia sartriana de necessidade” (p.180-181). 25)Cf. a retomada, feita por Merleau-Ponty na Phénoménologie de la Perception, da

questão dos “obstáculos” à liberdade: “C’est donc la liberté qui fait paraître les

obstacles à la liberté” (p.501-502). 26)Sobre a importância de Max Scheler para o primeiro Sartre, cf. os Carnets de la drôle de

guerre, p.287-288, nova edição. 27)”La négation concrète est refus, c’est-à-dire forme que prend une liberté et

résistance” (Cahiers pour une morale, p.193; grifos do autor). 28) Esse mecanismo de inversão é recorrente no livro: “l’indécision (...) appelle la

décision” (EN, p.68). Num estudo posterior sobre Mallarmé, Sartre escreve: “si

l’homme est impossible, il faut manifester cette impossibilité en la poussant jusqu’au

point où elle se détruit elle-même” (Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre,

p.155). 29)Sartre transfere “para o homem a onipotência do Deus cartesiano”, observa G.

Lebrun em “As Palavras ou os Preconceitos da Infância” (Discurso, nº 22, p.29). Em

Pour et Contre l’Existentialisme, Sartre escreve: “L’impuissance dévalorise la pensée,

dévalorise tout” (p.186). E acrescenta: “La grande idée de l’existentialisme: même

dans les situations les plus écrasantes, les plus difficiles, l’homme est libre. L’homme

n’est jamais impuissant” (p.188). 30)Expressão cunhada por Paulo Arantes, referindo-se justamente a Kojève (“Hegel no

espelho do Dr. Lacan”, IDE, nº 22, p.66). 31)”A existência precede a essência” — esse ponto de vista que norteia o

Existencialismo de Sartre, diz Heidegger, “não tem o mínimo em comum” com Ser e

Tempo (Carta sobre o humanismo , p.355).

A Liberdade entra em cena

109

32)Acrescentemos de passagem que Habermas sublinha na filosofia heideggeriana uma

“interprétation quiétiste de l’homme” (“le pathos de la sujétion et du laisser-être”),

própria sobretudo do Heidegger da Lettre sur l’humanisme (Martin Heidegger —

L’oeuvre et l’engagement, p.32). E ainda: “le philosophe s’apprêtait, après la guerre, à

persévérer d’une manière quiétiste à l’ombre d’un destin dont nul n’avait su se rendre

maître” (p.51.) 33)Recorde-se que em Ser e Tempo o Dasein é destino: “A pre-sença (Dasein) só pode

sofrer golpes do destino porque, no fundo de seu ser , ela é destino” (Ser e Tempo,

vol.II, p.190). Esse destino, como se sabe, é “o ser livre para a morte” (vol.II, p.189),

“livre para a sua morte” (vol.II, p.191). Nessa perspectiva, a liberdade em Ser e Tempo

é “liberdade para a morte que, apaixonada, factual, certa de si mesma e desembaraçada

das ilusões do impessoal (Man), se angustia”, vol.II, p.50 (donde o vínculo necessário

entre Dasein e “decadência”: “a pre-sença (...) é, em sua essência, de-cadente”, vol.I,

p.290; cf. também vol.II, p.71). Ora, essa idéia de destino —“não obstante impotente, o

destino é a potência maior” (Ser e Tempo, vol.II, p.190)— é inconcebível na ótica do

sujeito sartriano, que converte o que parecia destino poderoso e inelutável em

liberdade de “quebrar o destino” (é o que veremos melhor na Segunda Parte do

trabalho). Nesse contexto, salta aos olhos nossa impossibilidade de acompanhar Anna

Boschetti quando ela acusa EN do risco de “quietismo”: “Le volontarisme éthique

exaspéré fonde une morale aristocratique. Il peut en outre avaliser, contre les intentions

de l’auteur, des attitudes quiétistes, dans l’idée d’une liberté indifférente aux résultats,

d’une transformation du monde condamnée à demeurer une révolution en pensée,

puisqu’elle se dégrade dès qu’elle veut se faire réalité” (Sartre et Les Temps Modernes,

p.107). Essa é, aliás, a tônica das críticas endereçadas pelo PCF, já no final da guerra,

ao Existencialismo — cf. o resumo dessas críticas feito pelo próprio Sartre numa

resposta aos teóricos do PCF: “Que nous reprochez-vous? D’abord de nous inspirer de

O MITO DA RESISTÊNCIA

110

Heidegger, philosophe allemand et nazi. Ensuite de prêcher sous le nom

d’existentialisme un quiétisme de l’angoisse” (“A propos de l’existentialisme: Mise au

point”, p.653). É ainda no calor dessa polêmica com os comunistas que nosso autor

afirma em L’Existentialisme est un humanisme: “L”existentialisme (...) ne peut pas être

considéré comme une philosophie du quiétisme, puisqu’il définit l’homme par l’action;

(...) ni comme une tentative pour décourager l’homme d’agir puisqu’il lui dit qu’il n’y

a d’espoir que dans son action, et que la seule chose qui permet à l’homme de vivre,

c’est l’acte. Par conséquent, sur ce plan, nous avons affaire à une morale d’action et

d’engagement” (p.62-63). 34)Cf. os desdobramentos dessa “renúncia” nos Cahiers pour une morale, onde fica

claro o amálgama do ponto de vista heideggeriano e do ponto de vista do Hegel de

Kojève: “Ainsi un des sens du processus historique, c’est la mort. Il est fini dès qu’il

commence. Non la mort héroïque et intime du Sein-zum-Tode mais la mort par

retombée, par pesanteur. (...) Mais d’autre part (...) il est perpétuel enrichissement et

dépassement (...). Ainsi selon une des directions où il est écartelé le fait historique

justifie toujours la sagesse pessimiste (...). Et d’un autre côté, le fait historique est

toujours espoir, renouvellement d’espoir, garantie d’espoir, en tant qu’il est invention à

partir de...” (p.43). 35)Em Vérité et Existence, Sartre escreve: “La finitude est intériorisée par le choix.

Autrement dit, choisir, c’est faire que ma finitude existe concrètement pour moi. La

liberté est intériorisation de la finitude” (p.109). E mais adiante acrescenta: “Mon

choix, comme intériorisation de ma finitude, est choix d’une fin finie. (...) Le choix est

intériorisation de la finitude; l’assomption des conséquences du choix (...) est

intériorisation de l’infini” (p.127-128). Já numa carta de outubro de 1939 a Simone de

Beauvoir, ocasião em que pretende expor “une esquisse” das idéias filosóficas que está

elaborando, Sartre indica que o “destino” passa pela mediação de uma “escolha”: “Ne

A Liberdade entra em cena

111

croyez pas naturellement que ça veut dire que je devais m’y résigner ou l’accepter

[mon époque].Mais seulement la tenir pour mon destin, comprendre qu’en me

choisissant de cette époque, je me choisissais pour cette guerre”(Pléiade, p.1896; grifo

do autor). 36)Nesse sentido, cf. o seguinte comentário de F. Jameson: “Em Sartre, a morte (...)

deixa se ser algo que podemos contemplar como um mistério estimulante da vida

(como ainda é o caso no Sein-zum-Tode de Heidegger), e torna-se o outro lado

destituído de sentido, um evento por definição fora da vida e que nesse grau deixa, por

assim falar, de nos dizer respeito” (O marxismo tardio — Adorno, ou a persistência da

dialética, p.178). 37)”Avec le courage on fait quelque chose”; “Toute porte est ouverte pour ceux qui

veulent la forcer”, escreve Malraux em seu romance sobre a guerra civil espanhola,

L’Espoir (pp.176 e 339) — romance que tem especial importância na constituição do

heroísmo dramático sartriano. 38)”La responsabilité de l’homme est immense parce qu’il devient ce qu’il décide

d’être”, afirma Sartre em Pour et Contre l’Existentialisme (p.188). Eis, nas palavras de

Simone de Beauvoir, o ponto de vista que norteia o Existencialismo: “L’homme est

seul et souverain maître de son destin si seulement il veut l’être; voilà ce qu’affirme

l’existentialisme; c’est bien là un optimisme” (L’existentialisme et la sagesse des

nations, p.42; publicado originalmente em Les Temps Modernes, nº 3, dezembro de

1945). Merleau-Ponty, por sua vez, tentando aproximar o existencialismo do

marxismo, escreve: “Non seulement le marxisme tolère la liberté et l’individu, mais

encore, en tant que “matérialisme”, il charge l’homme d’une responsabilité pour ainsi

dire vertigineuse” (“La Querelle de l’Existentialisme”, Les Temps Modernes, nº 2,

novembro de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens, p.141). 39)Relembremos alguns momentos dessa visão heroicizante do confronto de

consciências na Fenomenologia do Espírito — a descrição da “lutte des consciences de

O MITO DA RESISTÊNCIA

112

soi opposées” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.158): “Chacun tend donc à la

mort de l’autre. (...) La première opération implique le risque de sa propre vie. Le

comportement des deux consciences de soi est donc déterminé de telle sorte qu’elles se

prouvent elles-mêmes et l’une à l’autre au moyen de la lutte pour la vie et la mort.

Elles doivent nécessairement engager cette lutte, car elles doivent élever leur certitude

d’être pour soi à la vérité, en l’autre et en elles-mêmes. C’est seulement par le risque

de sa vie qu’on conserve la liberté(...). Pareillement, chaque individu doit tendre à la

mort de l’autre quand il risque sa propre vie; (...) son essence se présente à lui comme

un Autre, il est à l’extérieur de soi, et il doit supprimer son être-à-l’extérieur-de-

soi(...). Cette suprême preuve par le moyen de la mort...” (La Phénoménologie de

l’Esprit, vol.I, p.159-160). Ou então: “Mais cet élément négatif et objectif est

précisément l’essence étrangère devant laquelle la conscience a tremblé. Or,

maintenant elle détruit ce négatif étranger...” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I,

p.165). Cf. também os comentários de Hyppolite, na esteira de Kojève, a respeito dessa

luta descrita por Hegel: “Les consciences de soi séparées se rencontrent d’abord

comme étrangères, puis s’opposent; enfin l’une domine l’autre, phénomène

fondamental dans le développement du soi” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I,

p.155, nota 1). Ainda Hyppolite: “Chaque conscience de soi se sait bien absolue, mais

elle ne l’est pas pour l’autre; pour l’autre elle est encore chose vivante, non conscience

de soi. Elle doit se montrer à l’autre, comme elle se sait être, et elle ne le peut que par

le risque de sa vie” (vol.I, p.158, nota 12). E mais: “En mettant la vie de l’autre en

danger, on lui permet de se présenter comme pur être-pour-soi. Cette opération par

laquelle l’autre risque sa vie est donc son opération” (vol.I, p.159, nota14). Malgrado

essa visão heroicizante, sem dúvida presente em Hegel, da luta entre consciências —

”cette lutte pour la vie et pour la mort”, como enfatiza Hyppolite (vol.I, p.160, nota

17) —, Gerd Bornheim tem razão ao sublinhar a diferença fundamental entre as

análises de EN e as da Fenomenologia do

A Liberdade entra em cena

113

Espírito: “Aparecendo o outro, torno-me ‘escravo’. Observe-se que a inspiração dessa

doutrina na dialética hegeliana do mestre e do escravo é evidente; mas em Hegel essa

dialética se apresenta como resultado de um processo ‘histórico’, sendo apenas um

momento da evolução geral do Espírito, ao passo que em Sartre a tese se torna absoluta

e aplica-se à condição humana como tal” (Sartre, p.88). E mais adiante Bornheim

acrescenta: “A palavra final de todo problema da intersubjetividade resume-se na luta,

no conflito. (...) Hegel também compreende a dialética do mestre e do escravo a partir

da idéia de luta, de um conflito que gera a angústia e o medo; todavia, como já

lembramos, tal conflito representa tão-somente uma etapa da dialética geral do Espírito

em seu gradativo processo de auto-reconhecimento. Em Sartre, ao contrário, o conflito

se apresenta como um absoluto: ‘O conflito é o sentido original do ser-para-outro’ (EN,

p.431) — original, exclusivo e único” (Gerd Bornheim, Sartre, p.92). Essa mudança de

registro (ou a metamorfose das análises hegelianas no interior de EN) se explica, por

um lado (pois há um outro lado do qual nos ocuparemos a seu tempo), porque a divisão

de águas entre as análises de EN e as da Fenomenologia passa sempre, é bom não

esquecer, por Kojève — e aqui Anna Boschetti tem razão quando, referindo-se à

“conception tragique de l’intersubjectivité” em EN, observa: “De toute évidence, il

s’agit du Hegel pré-existentialiste de Kojève, qui caractérise l’esprit comme pouvoir de

nier et comme manque, et le rapport à l’Autre comme ‘lutte à mort’“ (Sartre et Les

Temps Modernes, p.110). Ainda sobre a interpretação kojeviana de Hegel, é

interessante assinalar esta passagem de V. Descombes: “Son interprétation, loin de

mettre l’accent sur l’aspect raisonnable et pacifiant de la pensée hégélienne, insiste

avec complaisance sur les moments paradoxaux, excessifs, violents et surtout

sanglants. (...) Son commentaire de la Phénoménologie de l’esprit présente celle-ci

comme un récit de l’histoire universelle dans lequel ce sont les luttes sanglantes —et

non “la raison”— qui font avancer les choses vers l’heureuse conclusion. Il ne perd pas

O MITO DA RESISTÊNCIA

114

une occasion de mentionner les coups de canon que Hegel aurait entendus alors qu’il

achevait son manuscrit à Iéna. (...) Kojève lègue à ses auditeurs une conception

terroriste de l’histoire. On retrouve ce motif de la Terreur dans tous les débats qui se

succéderont jusqu’aujourd’hui: dans le titre du livre qu’écrit Merleau-Ponty en 1947

pour justifier une politique de ‘soutien au P.C.’ en dépit des procès de Moscou

(Humanisme et Terreur); dans les analyses consacrées par Sartre à la révolution

française dans sa Critique de la raison dialectique (thème de la “fraternité-terreur”)

ainsi que dans ses apologies de la violence” (Le Même et L’Autre, p.25, 26 e 27).

Assim como Descombes, Paulo Arantes também sublinha a “concepção dramática e

desabusada da intersubjetividade” presente em Kojève, antes de Sartre (“Hegel no

espelho do Dr. Lacan”, IDE, nº 22, p.75). Com efeito, esclarece o autor, “a descrição

hegeliana é por vezes deliberadamente escandida por lances dramáticos: afirmará, por

exemplo, que ao se ver literalmente fora de si, numa outra consciência que é ela

mesma, a consciência se vê perdida, e ao tentar suprimir esse outro é a si mesma que

suprime etc. Já conhecemos esse jogo de espelhos do reconhecimento. (...) E de fato há

traços heróicos arcaizantes na caracterização hegeliana” (p.71). Todavia, Paulo Arantes

acrescenta imediatamente que em Hegel “a luta pelo reconhecimento não se desenrola

mais no plano do desejo que definia a consciência-de-si antes da sua duplicação e do

aparecimento do rival — a partir daí a experiência de formação muda de registro, e

pode-se dizer que se trata de uma compreensão excêntrica do individualismo moderno”

(p.71). 40)Nos Cahiers pour une morale, Sartre escreve: “il n’y a d’oppression que d’une

liberté par une liberté” (p.172). 41)”L’Autre est ce (...) pour qui j’existe” (Cahiers pour une morale, p.375). 42)”Une philosophie qui met les consciences en position de rivalité”, escreve Merleau-

Ponty a respeito de EN (Les Aventures de la Dialectique, p.275).

A Liberdade entra em cena

115

43) “La liberté dans son être est revendication de risque, il n’y a de risque que pour et

par une liberté”, escreve Sartre em 1948 (Vérité et Existence, p.125; grifo do autor).

Para quem se propôs a elaborar uma filosofia da liberdade, não é portanto

surpreendente esta afirmação feita muito mais tarde: “Aujourd’hui je pense que la

philosophie est dramatique” (Sit.IX, p.12). É desta perspectiva que deve ser

compreendida a ênfase sartriana no “pantragicismo” de Hegel (Questão de Método,

p.121) —“avec Hegel l’histoire a fait irruption comme tragédie dans la philosophie”

(Sit.IX, p.12)— e no sentido “trágico da vida” de Marx (Questão de Método, p.125). O

sentimento “tragique de la condition humaine” já é assunto de “La fin de la guerre” (cf.

Sit.III, p.67). E em seus comentários sobre G. Bataille, Sartre afirma: “L’homme n’est

pas une nature, c’est un drame” (Sit.I, p.139). Nos Cahiers pour une morale, onde o

autor desenvolve a idéia (de clara ressonância kojeviana) de uma “histoire tragique”

(cf. particularmente as pp.96-97), lemos: “le rapport des consciences est lutte et

opposition” (p.112). Se a principal fonte filosófica dessa idéia sartriana de uma

“história trágica” é Kojève, sua fonte literária é Malraux, mais uma vez: “La révolution

est tragique. Mais (...) la vie aussi est tragique” (Malraux, L’Espoir, p.339). (A mola

propulsora dessa assimilação filosófico-literária da idéia de uma “história trágica” é,

como veremos na Segunda Parte deste trabalho, a experiência da Segunda Guerra.) Na

ótica sartriana, afirma Merleau-Ponty, “c’est toute l’histoire qui devient un duel sans

pause” (Les aventures de la dialectique, p.166). É ainda nas páginas das Aventures de

la dialectique que Merleau-Ponty sublinha esse caráter dramático da história em Sartre

(uma história que é essencialmente luta): “A lire Sartre, on croirait que l’action du

Parti est une série de coups de force par lesquels il se défend contre la mort” (p.171).

Nessa perspectiva, “le temps politique” em Sartre não é senão “une série de décisions

en présence de la mort” (p.172). Mas tal concepção dramática da história —decorrente

da visão heroicizante do confronto de consciências (isto é, voluntarista)— está também

O MITO DA RESISTÊNCIA

116

presente em Merleau-Ponty (sobretudo no primeiro Merleau-Ponty): “la liberté de

chacun menace de mort celle des autres” (Humanisme et Terreur, p.44). Visto que para

Merleau-Ponty a intersubjetividade é o lugar da História, torna-se possível a seguinte

indagação: “Au moins dans les périodes de crise, chaque liberté n’empiète-t-elle pas

sur les autres? (...) Le conflit est ainsi mis solennellement au coeur de l’histoire

humaine?” (Humanisme et Terreur, p.68-70). Ou então: “Est-il vrai enfin, selon le mot

fameux de Napoléon, que la politique soit la moderne tragédie où s’affrontent la vérité

de l’individu et les exigences de la généralité, comme, dans la tragédie antique, la

volonté du héros et le destin fixé par les dieux?” (Idem, p.109). Como em EN, a

principal fonte dessas reflexões de Merleau-Ponty é a releitura kojeviana da teoria da

intersubjetividade presente na Fenomenologia do Espírito: “On ne peut saisir en

définitive toute la signification d’une politique marxiste sans revenir à la description

que Hegel donne des rapports fondamentaux entre les hommes. ‘Chaque conscience,

dit-il, poursuit la mort de l’autre.’ Notre conscience, étant ce qui donne sens et valeur à

tout objet pour nous saisissable, est dans un état naturel de vertige, et c’est pour elle

une tentation permanente de s’affirmer aux dépens des autres consciences qui lui

disputent ce privilège. (...) L’histoire est donc essentiellement lutte, — lutte du maître

et de l’esclave, lutte des classes, — et cela par une nécessité de la condition humaine”

(Humanisme et Terreur, p.204). E ainda: “Il y a un tragique de la Révolution et le

révolutionnaire euphorique appartient aux images d’Epinal. Ce tragique s’aggrave

quand il s’agit non seulement de savoir si la Révolution l’emportera sur ses ennemis,

mais encore, entre révolutionnaires, qui a le mieux lu l’histoire” (Idem, p.160). Donde

a idéia que norteia o livro: “L’histoire est terreur” (cf. em particular as pp.190 e 194).

(No caso de Merleau-Ponty, muito mais do que no de Sartre, essa concepção dramática

da história vem não apenas do Hegel de Kojève, mas também do Weber de Aron:

“Weber nous permet de saisir le caractère dramatique de l’histoire: le paradoxe des

A Liberdade entra em cena

117

conséquences qui contredisent l’intention des hommes”, escreve Aron em La

sociologie allemande contemporaine, p.116 — é exatamente essa idéia que

reencontramos em Humanismo e Terror, onde os processos de Moscou são definidos

como o “drama da responsabilidade histórica”.) E em “Autour du marxisme”, lemos

que “l’histoire est une et compose un seul drame” (Sens et Non-Sens, p.212). Essa

dimensão dramática da história já fora sublinhada pelo autor na Phénoménologie de la

Perception: “Par rapport à ses dimensions fondamentales, toutes les périodes

historiques apparaissent comme des manifestations d’une seule existence ou des

épisodes d’un seul drame, — dont nous ne savons pas s’il a un dénouement” (p. XIV).

Donde “le drame de la coexistence” (p.200) — “Le drame social et économique(...) est

coextensif à l’histoire” (Phénoménologie de la Perception, p.201). Cf. também nesse

sentido os artigos de Harold Rosenberg que Merleau-Ponty publica em Les Temps

Modernes, manifestando sua “plena concordância” com o ponto de vista do amigo

americano: “L’Histoire est un drame, plutôt qu’un agencement d’événements objectifs”

(“La Tragédie et la Comédie de l’Histoire”, TM, nº 49, novembro de 1949, p.810);

“L’Histoire comme épopée de lutte de classes” (“Le Prolétariat comme Héros et

comme Rôle”, TM, nº 56, junho 1950, p.2151). 44)Daí a generalização filosófica: “je suis projet de récupération de mon être” (EN,

p.413-414). 45)Uma luta que não se faz sem violência, como lemos nos Cahiers pour une morale:

“La violence est refus d’être regardé” (p.184).

46)Recorde-se, nesse sentido, a seguinte passagem de Jameson: “Historicamente, é o

olhar do oprimido que é ontologicamente o mais fundamental: foi isso que Sartre já

havia tentado passar, com meios imperfeitos, em O Ser e o Nada” (Marxismo e Forma,

p.232). Seria preciso acrescentar: em EN, o olhar do oprimido não é fundamental, ele

vai se tornando fundamental através de um procedimento de inversão que leva a

O MITO DA RESISTÊNCIA

118

análise sartriana a metamorfosear a impotência (decorrente da alienação provocada

pelo olhar do outro) em “puissance du regard de la victime” (e o que põe em

movimento o mecanismo dessa inversão é, como veremos, uma experiência histórica

real). 47)Voltaremos à “peur” e à “honte” no Capítulo 1 da Segunda Parte. 48)Decorre daí outra generalização filosófica, isto é, a definição da realidade humana

como “rupture avec le donné”: “La réalité humaine étant acte ne peut se concevoir que

comme rupture avec le donné, dans son être” (EN, p.534). 49)Na interpretação kojeviana da Fenomenologia do Espírito, a liberdade é definida

justamente como “négation du donné”: “Mais si la Liberté est ontologiquement

Négativité, c’est qu’elle ne peut être et exister qu’en tant que négation. Or, pour

pouvoir nier, il faut qu’il y ait quelque chose à nier: un donné existant (...). Ce n’est

donc ni dans ses “idées” (ou son imagination) plus ou moins “élevées”, ni par ses

“aspirations” plus ou moins “sublimes” ou “sublimées” que l’Homme est vraiment

libre ou réellement humain, mais uniquement dans et par la négation effective, c’est-à-

dire active, du réel donné. La liberté ne consiste pas dans un choix entre deux données:

elle est la négation du donné” (A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, p.494).

É esse Hegel de Kojève que reencontraremos, após EN, nos Cahiers pour une morale:

“Dans sa théorie Hegel fait un saut comme tous ceux qui ont parlé de la liberté: il la

définit négativement comme pouvoir perpétuel d’échapper au donné” (p.175) —

rompendo com o estabelecido, a liberdade teria, na filosofia hegeliana, “la fonction de

réaliser nécessairement l’avenir” (Cahiers pour une morale, p.175). Mais adiante,

Sartre acrescenta: “La liberté est dépassement d’un certain être que je suis et d’un

certain nombre d’objets extérieurs (êtres mis en liaison par ce dépassement même avec

mon être dépassé). (...) Je suis dépassement de cet être-ci (la face du monde qui

m’entoure) et c’est parce que je dépasse cet être-ci que je suis ce dépassement-ci”

(Cahiers pour une morale , p.250). E ainda: “La liberté étant dépassement du monde

A Liberdade entra em cena

119

retient en elle le monde qu’elle dépasse et la fin est liberté retournée et objective”

(Idem, p.257). 50)Cf. La Phénoménologie de l’Esprit: a consciência como “négation absolue de tout

être-autre” (vol.I, p.104) — “Est donc nécessaire pour la conscience l’expérience selon

laquelle la chose s’effondre justement par le moyen de la déterminabilité qui constitue

son essence et son être-pour-soi. Et une telle nécessité, d’après le concept simple, peut

être brièvement considérée ainsi: la chose est posée comme être-pour-soi, ou comme

négation absolue de tout être-autre, et donc comme négation absolue se rapportant

seulement à soi” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.104). E mais adiante: “Se

présenter soi-même comme pure abstraction de la conscience de soi consiste à se

montrer comme pure négation de sa manière d’être objective” (Idem, p.159). Cf.

também a Introdução da Fenomenologia: “Mais la conscience est pour soi-même son

propre concept, elle est donc immédiatement l’acte d’outrepasser le limité, et, quand ce

limité lui appartient, l’acte de s’outrepasser soi-même” (p.71). 51)Num ensaio escrito alguns anos depois, em 1945, Sartre afirma: “Si l’on veut sauver

l’homme, il ne reste (...) qu’à le pourvoir d’une simple puissance négative: celle de

dire non à tout ce qui n’est pas le vrai” (“La Liberté Cartésienne”, Sit.I, p.291-292).

Nesse ensaio de 1945, Sartre critica a filosofia cartesiana por não ter levado às últimas

consequências “sa théorie de la négativité”. Embora Descartes tenha permitido entrever

“l’aspect négatif de la liberté” (Sit.I, p.294)—“on reconnaîtra dans ce pouvoir de

s’échapper, de se dégager, de se retirer en arrière, comme une préfiguration de la

négativité hégélienne”(p.300)—,“il n’a pas poussé jusqu’au bout sa théorie de la

négativité” (p.302):“Ainsi Descartes oscille perpétuellement entre l’identification de la

liberté avec la négativité ou négation de l’être—ce qui serait la liberté d’indifférence—

et la conception du libre arbitre comme simple négation de la négation. En un mot, il

lui a manqué de concevoir la négativité comme productrice” (Idem, p.302). Nesse

O MITO DA RESISTÊNCIA

120

sentido, cf. também Merleau-Ponty: “Num clarão, Descartes entreviu a possibilidade

de um pensamento negativo” (“O grande racionalismo”, Pensadores, p.418). 52)Essa consciência que, em sua própria estrutura, é “pure négation”, abre caminho para

a negação radical da sociedade burguesa — cf. nesse sentido a crítica de Merleau-

Ponty aos “Comunistas e a Paz”: “La conscience, pure négation, confrontée avec les

faits qui, au contraire, ne disent ‘ni oui ni non’, ne peut s’engager au-dehors que si elle

y trouve une négation qui lui ressemble et où elle se reconnaît: négation de la société

bourgeoise, emblème de la violence prolétarienne” (Merleau-Ponty, Les aventures de

la dialectique, p.155-156). Daí também a posterior identificação, estabelecida por

Sartre, entre literatura e “négativité”: “La littérature se confond avec la Négativité,

c’est-à-dire avec le doute, le refus, la critique, la contestation” (Sit.II, p.148). 53)O que pressupõe a identificação entre consciência e liberdade: “si la liberté est l’être

de la conscience, la conscience doit être comme conscience de liberté” (EN, p.64). Ou

então: “Je suis nécessairement conscience (de) liberté(...). Ainsi ma liberté est

perpétuellement en question dans mon être; elle n’est pas une qualité surajoutée ou une

propriété de ma nature; elle est très exactement l’étoffe de mon être; et comme mon

être est en question dans mon être, je dois nécessairement posséder une certaine

compréhension de la liberté” (EN, p.493). (Cf. nos Carnets de la Drôle de Guerre,

p.167, o primeiro esboço dessa identidade entre consciência e liberdade: “Ces

caractères de la liberté ne sont autres que ceux de la conscience”.) É essa identificação

que permite compreender melhor o vínculo necessário, de onde partimos neste

capítulo, entre liberdade e negação (ou a liberdade como resultado da “humanisation

du néant”): Nous avons, en effet, établi dès notre premier chapitre que si la négation

vient au monde par la réalité-humaine, celle-ci doit être un être qui peut réaliser une

rupture néantisante avec le monde et avec soi-même; et nous avions établi que la

possibilité permanente de cette rupture ne faisait qu’une avec la liberté. (...) Dans ces

conditions, la liberté ne saurait être rien autre que cette néantisation” (EN, p.493-494).

A Liberdade entra em cena

121

Recorde-se que em EN a consciência é definida como “néant”: “Le néant est la mise en

question de l’être par l’être, c’est-à-dire justement la conscience ou pour-soi” (EN,

p.117). “La liberté n’est autre chose que la conscience se vivant elle-même comme

néantisation de son passé”, escreve Jean Wahl a respeito de EN (“Essai sur le néant

d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.64). Dada a identificação entre consciência

e liberdade, e como a liberdade é “choix”, a consciência, por sua vez, não pode ser

também senão “choix”: “Il faut être conscient pour choisir et il faut choisir pour être

conscient. Choix et conscience sont une seule et même chose” (EN, p.517).

Comentando EN, V. Descombes afirma que “la définition volontariste de la conscience

(...) règne dans tout le livre” (Le Même et L’Autre, p.69). 54)O que significa a superação da engrenagem existencial da alienação, definida por

Heidegger (que aqui retoma Hegel) nos seguintes termos: “estranheza significa (...)

‘não se sentir em casa’” (Ser e Tempo, vol.I, p.252). 55)Cf. Paulo Arantes, “A Prosa da História”, in Hegel — A Ordem do Tempo .

Capítulo 3

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

“Si donc le temps est séparation, du moins est-il une séparation d’un type spécial: une division qui réunit” (EN, p.170).

Comecemos pelo resultado de nossos capítulos anteriores: se o problema da

negação implica a liberdade (indissociável da consciência de si, como vimos), implica

também a temporalidade —“l’explication définitive de la négation ne pourra être

donnée en dehors d’une description de la conscience(de) soi et de la temporalité” (EN,

p.70) Tendo nascido da mesma fonte —a negação—, a liberdade e o tempo seguem o

mesmo leito, seus cursos são indistinguíveis.“Une temporalité qui n’est pas fondée sur

la liberté n’est plus qu’une illusion”,escreve Sartre logo após EN, nos Cahiers pour

O MITO DA RESISTÊNCIA

124

une morale (p.64). Já nos Carnets de la Drôle de Guerre, o autor afirmara: “J’essayai

dans La Psyché de tirer dialectiquement le temps de la liberté” (p.257). E na medida

em que a liberdade pressupõe a tomada de consciência, compreende-se a seguinte

passagem ainda dos Carnets de la Drôle de Guerre: “L’irruption du pour-soi dans

l’en-soi fait apparaître d’un seul coup la temporalité (...). La temporalité fait irruption

dans le monde avec le pour-soi. Si la conscience est, comme dit Valéry, une absence,

la temporalité est l’adhérence au monde de cette absence en tant que telle” (p.264).

Essa idéia, exposta nos Carnets, de que “la temporalité fait irruption dans le monde

avec le pour-soi” ilumina a estrutura de EN, ou seja, explica por que o capítulo sobre a

temporalidade se encontra na segunda parte do livro, dedicada justamente ao “pour-

soi”. E mais: o capítulo sobre a temporalidade é preparado pelo capítulo precedente,

“Les structures immédiates du Pour-Soi”, onde, ao longo da reflexão sobre “l’être des

possibles”, é vislumbrada “a origem da temporalidade”: “Par là, nous entrevoyons

l’origine de la temporalité(...). Ce néant qui sépare la réalité humaine d’elle-même est

à la source du temps” (EN, p.141). É assim que o estudo das “structures immédiates

du Pour-Soi” culmina no problema da temporalidade, o qual, por sua vez, torna-se

condição para o desenvolvimento das análises do livro: “C’est dans le temps que mes

possibles apparaissent à l’horizon du monde qu’ils font mien. Si donc la réalité

humaine se saisit elle-même comme temporelle et si le sens de sa transcendance est sa

temporalité, nous ne pouvons espérer que l’être du pour-soi sera élucidé avant que

nous ayons décrit et fixé la signification du Temporel” (EN, p.144).

Mas se “la temporalité vient à l’être par le pour-soi” (EN, p.685) é porque o

pour-soi é, em sua própria estrutura, temporalização: “le Pour-soi est temporalisation;

cela signifie qu’il n’est pas; il ‘se fait’” (EN, p.610). E ainda: “Si le cogito1 (...) se

transcende vers ses possibles, ce ne peut être que dans le dépassement temporel. C’est

‘dans le temps’ que le pour-soi est ses propres possibles sur le mode du ‘n’être pas’”

(EN, p.144); “Le Pour-soi se temporalise en existant” (p.176). Donde a primeira

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

125

definição da Temporalidade: “Ainsi la Temporalité n’est pas un temps universel

contenant tous les êtres et en particulier les réalités humaines. Elle n’est pas non plus

une loi de développement qui s’imposerait du dehors à l’être. Elle n’est pas non plus

l’être mais elle est l’intra-structure de l’être qui est sa propre néantisation, c’est-à-dire

le mode d’être propre à l’être-pour-soi. Le Pour-soi est l’être qui a à être son être sous

la forme diasporique de la Temporalité” (EN, p.181-182). A temporalidade não é

portanto “une qualité contingente qui s’ajoute à l’être du pour-soi”, mas sim “une

structure essentielle du pour-soi” — “il faut pouvoir montrer que sa dynamique est

une structure essentielle du pour-soi” (EN, p.187). O que define “la nature même du

pour-soi qui ‘est’ dans la mesure où il se temporalise” (EN, p.596).2

Dissemos no Capítulo 1 que a negação é o primeiro divisor de águas entre o

pour-soi e o en-soi. Sabendo agora que em EN a temporalidade é o desdobramento

necessário da negação,3 já estamos em condições de compreender que é o Tempo a

verdadeira instância capaz de distinguir o pour-soi do en-soi: se a consciência é

essencialmente “temporelle” (EN, p.33), ou “pure temporalité” (p.669), “l’En-soi

échappe à la temporalité” (p.33), sendo “éternité pure” (p.669). (Pressupõe-se aqui a

distinção, que será examinada mais adiante, entre tempo e duração/eternidade.4) O que

nos permite falar, assim como foi dito a respeito do “néant”, numa humanização do

tempo — sem a consciência não há sequer “le temps du monde ou temps universel”

(EN, p.245): “Le temps universel vient au monde par le Pour-soi. L’en-soi ne dispose

pas de temporalité(...). Le Pour-soi, au contraire, est temporalité” (EN, p.245). O

tempo seria então uma “categoria subjetiva”? Sim e não.5 Por um lado, o tempo não é

destituído de objetividade: “La temporalité universelle est objective” (EN, p.245). Mas

essa objetividade só se revela como tal para uma subjetividade: “le temps se dévoile à

moi comme forme temporelle objective” (EN, p.257). Mesmo sendo forma objetiva, a

temporalidade já surge encarnada na realidade humana, tornando-se visível apenas

através de um sujeito que a explicita: “Notons d’abord que l’en-soi ne peut être futur

O MITO DA RESISTÊNCIA

126

ni contenir une part de futur. La pleine lune n’est future, quand je regarde ce croissant,

que ‘dans le monde’ qui se dévoile à la réalité humaine: c’est par la réalité humaine

que le Futur arrive dans le monde” (EN, p.162). Em resumo: a objetividade do tempo

só se expõe enquanto tal, evitando esfumar-se como “puro fantasma”, à condição de

ser apreendida subjetivamente — “La temporalité, en tant qu’elle est saisie

objectivement, est donc un pur fantôme, car elle ne se donne pas comme temporalité

du Pour-soi, ni non plus comme temporalité que l’en-soi a à être” (EN, p.247). O que

leva Sartre a buscar na subjetividade o fundamento da temporalidade:6 “Il n’y a de

temporalité que comme intrastructure d’un être qui a à être son être, c’est-à-dire

comme intrastructure du pour-soi” (EN, p.175). Ou então: “Ces remarques nous

permettent de refuser a priori le passé à l’en-soi (...). C’est par le pour-soi que le

passé arrive dans le monde” (EN, p.152). (Daí virá a idéia de uma “História

subjetiva”, ou a ênfase sartriana no “lado subjetivo” da história.)

A temporalidade surge portanto no mundo através da consciência e esta, como

sabemos, é liberdade —eis finalmente delineado o perfil do pour-soi: “je suis aussi un

existant dont l’existence individuelle et unique se temporalise comme liberté” (EN,

p.493). É o tempo que vai tecendo, por um movimento de “negação interna”, o vínculo

necessário entre liberdade e consciência. Ou melhor —visto que “o pour-soi é

temporalização”—, esse movimento de negação interna é desencadeado pela própria

consciência: “La négation que le Pour-soi réalise ainsi est négation interne; le Pour-soi

la réalise dans sa pleine liberté, mieux il est cette négation” (EN, p.330) — é pela

“réalité-humaine” que “la négation par dépassement vient au monde” (p.236-237). Tal

“négation par dépassement”, que define a temporalidade, é indissociável da idéia de

totalidade. No capítulo anterior, indicamos rapidamente o vínculo existente entre

liberdade e totalidade (cf. a Nota 1). Mas é à luz da temporalidade que esse vínculo

pode ser visto plenamente: “La seule méthode possible pour étudier la temporalité

c’est de l’aborder comme une totalité qui domine ses structures secondaires et qui leur

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

127

confère leur signification. C’est ce que nous ne perdrons jamais de vue. (...) Et surtout

il faut faire paraître chaque dimension envisagée sur le fond de la totalité temporelle”

(EN, p.145). O tempo não pode ser apreendido senão como “totalité temporelle” (EN,

p.235) que, em seu movimento, faz da liberdade um processo de totalização (ainda que

a totalidade para Sartre seja sempre, como veremos, “totalité détotalisée”).

Já sabemos que a liberdade é impensável fora da esfera da intersubjetividade. A

intersubjetividade, por sua vez, pressupõe o tempo (que permeia as relações entre as

consciências): “Un monde pour un seul pour-soi ne saurai comprendre de simultanéité,

mais seulement des co-présences, car le pour-soi se perd hors de lui partout dans le

monde et lie tous les êtres par l’unité de sa seule présence. Or, la simultanéité suppose

la liaison temporelle de deux existents qui ne sont liés par aucun autre rapport” (EN,

p.313). Enfatizamos no capítulo anterior o mecanismo de inversão através do qual as

análises de EN apontam para a superação da alienação decorrente das relações

intersubjetivas. Compreendemos agora que tal mecanismo de inversão é ativado pelo

Tempo, que põe em movimento o que estava paralisado no “espaço”: “Le regard

d’autrui me confère la spatialité. Se saisir comme regardé c’est se saisir comme

spatialisant-spatialisé. Mais le regard d’autrui n’est pas seulement saisi comme

spatialisant: il est aussi temporalisant. L’apparition du regard d’autrui se manifeste

pour moi par une ‘erlebnis’ qu’il m’était, par principe, impossible d’acquérir dans la

solitude: celle de la simultanéité. (...) Cela suppose donc un fondement de toute

simultanéité qui doit nécessairement être la présence d’un autrui qui se temporalise à

ma propre temporalisation. Mais, précisément, en tant qu’autrui se temporalise, il me

temporalise avec lui: en tant qu’il s’élance vers son temps propre, je lui apparais dans

le temps universel. Le regard d’autrui, en tant que je le saisis, vient donner à mon

temps une dimension nouvelle” (EN, p.313). É a temporalidade que, permitindo “un

dépassement libre du donné vers des possibilités” (EN, p.313), permite também a já

conhecida definição da liberdade como “changement”: “La liberté étant choix est

O MITO DA RESISTÊNCIA

128

changement. Elle se définit par la fin qu’elle pro-jette, c’est-à-dire par le futur qu’elle

a à être” (EN, p.553).

Vê-se assim que esse movimento de superação do estado de coisas vigente

torna-se possível porque a própria forma da temporalidade em EN aponta para o

futuro, como previne o autor logo no primeiro capítulo do livro: “nous avons affaire à

une forme temporelle où je m’attends dans le futur” (EN, p.71). Com efeito, em EN,

como aliás no resto da obra sartriana, o futuro é a instância privilegiada da

temporalidade. A principal fonte filosófica de tal privilégio é Heidegger (de onde vem

também, além da inspiração para a idéia sartriana de “Tempo do Mundo”, a própria

ênfase de EN no papel fundamental do Tempo na ontologia):7 “Il n’est pas un moment

de ma conscience qui ne soit pareillement défini par un rapport interne à un futur (...).

En ce sens, Heidegger a raison de dire que le ‘Dasein’ est ‘toujours infiniment plus

que ce qu’il serait si on le limitait à son pur présent’. Mieux encore, cette limitation

serait impossible car on ferait alors du Présent un En-soi” (EN, p.164). Mas se em Ser

e Tempo o tempo é pensado contra Hegel (ainda mais do que contra Kant)8, em EN as

análises heideggerianas, com sinal trocado, são repensadas a partir de Hegel (ou de

Kojève, o que dá na mesma no caso de EN). É assim que no privilégio do futuro

constitutivo de EN podemos reconhecer, mais uma vez, a mescla de decisionismo

heideggeriano e ativismo kojeviano:9 “L’action se présente (...) comme une certaine

efficacité du futur (...). Le monde se dévoile comme un ‘creux toujours futur’, parce

que nous sommes toujours futurs à nous-mêmes” (EN, p.370); “Ainsi l’urgence du

passé vient du futur. (...). C’est le futur qui décide si le passé est vivant ou mort. Le

passé, en effet, est originellement projet (...); son sens lui vient de l’avenir qu’il

préesquisse. Lorsque le passé glisse tout entier au passé, sa valeur absolue dépend de

la confirmation ou de l’infirmation des anticipations qu’il était. (...). C’est que la seule

force du passé lui vient du futur (...). Ainsi l’ordre de mes choix d’avenir va

déterminer un ordre de mon passé et cet ordre n’aura rien de chronologique” (EN,

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

129

p.556). Não sendo essa ordem cronológica, pode-se pensar num movimento do futuro

em direção ao presente: “en allant du futur au présent...” (EN, p.397). É a luz do

futuro que ilumina o presente:10 “Le futur revient sur le présent et le passé pour

l’éclairer” (EN, p.491); “C’est la libre invention et le futur qui permettent d’éclairer le

présent” (EN, p. 580); “C’est la fin qui éclaire ce qui est. Mais pour aller chercher la

fin à-venir pour se faire annoncer par elle ce qu’est ce qui est, il faut être déjà au delà

de ce qui est, dans un recul néantisant...” (EN, p.554). (O que pressupõe a idéia de

“antecipação”, que será examinada posteriormente.) E mais: é o futuro que dá sentido

ao presente (além de dar sentido ao passado: “l’avenir (...) confère au passé tout son

sens”, EN, p.244): “...ce Futur que j’ai à être et qui donne son sens à mon présent (...).

Le Futur (...) est le sens du Pour-soi” (EN, p.168); “L’avenir vient au présent du pour-

soi pour le déterminer en son coeur” (EN, p.240). Outros aspectos do privilégio que

EN concede ao futuro (definido nos seguintes termos: “Le futur est ce que j’ai à être

en tant que je peux ne pas l’être”, EN, p.164): “Toute négation, en effet, qui n’aurait

point par-delà elle-même, au futur, comme possibilité qui vient à elle et vers laquelle

elle se fuit, le sens d’un engagement perdrait toute sa signification de négation”

(p.233); “Le sens vient à la négation à partir du futur” (p.234); “C’est le futur seul, en

effet, qui peut revenir sur le présent pur pour le qualifier de commencement, sinon ce

présent ne serait qu’un présent quelconque” (p.522); “Un futur vient éclairer le présent

et le constituer comme présent en donnant aux ‘data’ en-soi la signification de

passéité” (p.536).11 Nos Cahiers pour une morale, explicitando os fundamentos

filosóficos de EN, Sartre aponta (e só pode fazê-lo via Kojève, bem entendido) o que

ele considera a verdadeira matriz dessa temporalidade direcionada para o futuro — o

pensamento hegeliano: “le temps hégélien étant caractérisé par l’hégémonie d’un

avenir défini...” (p.115).

Esse Hegel que mais parece um Heidegger radicalizado, essa peculiar união em

que o decisionismo heideggeriano vem desposar o ativismo kojeviano, já nos é

O MITO DA RESISTÊNCIA

130

familiar. Procuramos mostrar nos capítulos anteriores que em EN as águas

heideggerianas correm no mesmo sentido das do Hegel de Kojève (e numa velocidade

muito maior do que as das fontes de onde brotaram). A novidade estampada com a

entrada em cena da figura do Tempo é que agora, completando-se o processo de

radicalização do híbrido Hegel-Heidegger, um curto-circuito se dá no sistema de EN

(à revelia do autor): alguns fusíveis heideggerianos são irreparavelmente queimados, o

sentido original do curso de suas análises é invertido (contra Heidegger e contra o

próprio pensamento sartriano, como veremos) e na nova configuração que daí resulta

podem-se entrever alguns elementos novos, ainda não identificados. — Resta-nos

identificá-los, o que implica desmontar o mecanismo que induz esse curto-circuito,

pois aí está, a nosso ver, a cifra mesma de EN.

*

Se nossa leitura procede, algo ocorreu no decorrer da assimilação, feita em EN,

da idéia heideggeriana de tempo, isto é, algum ingrediente novo foi subrepticiamente

acrescentado à fórmula original “Dasein-temporalidade”, alterando-a de modo

substancial.Daí a possibilidade de “corriger la formule de Heidegger”:“Être dans le

monde, ce n’est pas s’échapper du monde vers soi-même, mais c’est s’échapper du

monde vers un au-delà du monde qui est le monde futur” (EN, p.241). Mas essa

“correção” é inversão. Se o privilégio sartriano do futuro deita suas raízes na filosofia

heideggeriana, isso não explica a forma que a temporalidade dirigida para o futuro

assume em EN. Onde encontrar em Heidegger —e aqui chegamos ao ponto nevrálgico

de EN— a idéia de uma temporalidade que, impelida vertiginosamente na direção do

futuro, arrebata a consciência de seu estado presente de sonolência, projetando-a num

futuro no qual tudo é possível, inclusive a “cura”, ou a superação, da alienação e da

“angústia existencial”?12 Nas análises de Sartre, tal superação se torna possível pela

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

131

mediação de uma temporalidade que rompe com a engrenagem repetitiva da alienação

(insuperável para Heidegger).13 É essa temporalidade capaz de “curar” as feridas do

presente que permeia o processo de superação da impotência da subjetividade em EN.

Se o presente anula a liberdade, engendrando a “alienação”, “la liberté (...) s’échappe

vers le futur” (EN, p.553). Ao fazê-lo, quebra o círculo reiterativo do “destino”

heideggeriano — a “cura” está justamente nessa radicalização da experiência da

temporalidade. Completa-se assim, com a temporalidade, o processo (examinado em

nosso capítulo anterior) de radicalização de Heidegger: a “cura” pelo tempo é ruptura

com o destino sombrio do Dasein (o que implica romper o vínculo “Dasein-

decadência”, característico de Heidegger14). Dissemos antes que EN procura mostrar,

contra Heidegger, que a morte tira (e não dá) o sentido da vida — à luz da experiência

da temporalidade compreendemos o porquê: “la mort est l’arrêt radical de la

Temporalité par passéification de tout le système ou, si l’on préfère, ressaisissement

de la Totalité humaine par l’En-soi” (EN, p.186-187). O que em Ser e Tempo não é

senão destino sombrio e “decadência”, em EN torna-se aposta esperançosa no

futuro. Esperança diante de uma temporalidade que se constitui como tal porque,

enquanto “changement” (e nisto também se evidencia o nexo interno entre

temporalidade e liberdade), supera a duração, a repetição, o permanente, o idêntico:

“Sans changement point de temporalité, puisque le temps ne saurait avoir de prise sur

le permanent et l’identique” (EN, p.182).15 O futuro, cuja via de acesso é a liberdade,

é a instância de superação do “determinismo” do passado: “Au passé, le monde

m’enserre et je me perds dans le déterminisme universel, mais je transcende

radicalement mon passé vers l’avenir, dans la mesure même où je ‘l’étais’“ (EN,

p.186). O privilégio do futuro em EN, na contramão de Ser e Tempo, significa, como

veremos, a superação do presente a partir da recriação do passado (ou de um certo

passado). “Quebrando” o destino, o binômio temporalidade-liberdade, característico

de EN, troca o sinal do “Tempo do Mundo” heideggeriano: do pessimismo próprio do

O MITO DA RESISTÊNCIA

132

Dasein, que, abandonado num mundo desencantado, caminha impotente para a morte,

passamos ao otimismo resultante da “descoberta” de uma temporalidade que “cura”

(“guérit”). Essa temporalidade que conduz à vida e não à morte (não é destino trágico)

acrescenta assim ao “Tempo do Mundo” uma determinação inexistente em Ser e

Tempo — a da “cura” (“guérison”). Mas nisto não é apenas Heidegger que é virado de

ponta cabeça: Sartre inverte também o curso de seu próprio pensamento pois até EN (o

livro é um momento de transição) o Tempo fora concebido pelo autor justamente

como destino trágico (uma idéia cujo molde era literário, antes de ser filosófico,

conforme veremos adiante). O que teria determinado essa guinada? Noutras palavras,

o que teria levado à radicalização da experiência da temporalidade ao longo do

movimento das análises de EN?

A resposta a essa questão passa necessariamente pela identificação do

“conteúdo” da nova figura de uma temporalidade que “cura”, que é “salut”. Com o

“Temps qui guérit”, estamos diante de uma forma determinada de temporalidade que

conduz à superação de um presente também determinado: “Mais ce présent est

dépassement vers un terme futur de quelque chose qui marche” (EN, p.397; grifos

nossos). Cabe decifrar o conteúdo desse “quelque chose” — aqui está, a nosso ver, o

segredo da nova fórmula sartriana. Para desatar esse nó, uma outra tarefa se impõe:

explicitar o sentido da mudança da figura do tempo no pensamento de Sartre, ou

melhor, compreender o papel que desempenha, no interior das análises de EN, a nova

figura de uma temporalidade que “cura”. Se é a “descoberta” da figura de uma

temporalidade heróica que leva à ruptura com a idéia heideggeriana de destino,

permitindo passar da fatalidade (repetição) à liberdade (“changement”), é preciso

reconstituir o processo de engendramento dessa figura. EN está, como já dizíamos em

nosso Preâmbulo, na encruzilhada do pensamento sartriano — entre outras razões (que

conheceremos mais tarde), porque é o ponto fundamental de transição onde se dá a

metamorfose de uma teoria do tempo como destino trágico (Saturno que é pura

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

133

destruição)16 numa teoria do tempo como “salvação”. Para que possamos finalmente

compreender o sentido dessa nova forma da temporalidade em EN, desembrulhando os

fios que ainda permanecem embrulhados em nosso novelo ontológico, tratemos de

expor a gênese do problema do tempo em Sartre, sua pré-história filosófico-literária.

*

Excurso sobre o sentido do Tempo na obra sartriana

Na tentativa de reconstituir, no interior da obra sartriana, o processo de

gestação da figura de um Tempo histórico capaz de romper com a fatalidade do

“destino” e restaurar a liberdade, uma temporalidade que é portanto redenção,

voltemos o olhar para os textos escritos às vésperas da Guerra — momento em que a

problemática do tempo se constitui no pensamento de Sartre (e quando o tempo,

concebido como destruição trágica, está ainda longe de ganhar a dimensão de “salut”):

“Et voici qu’à présent j’entrevois une théorie du temps”, afirma o autor nos Carnets de

la Drôle de Guerre (p.257).

Paradoxalmente, é num período marcado por uma espécie de paralisação do

tempo, conforme indicam as análises e os relatos de contemporâneos, período em que

“l’avenir est barré” —“pour nous tous, l’avenir est barré”, escreve Sartre em 1939

(Sit.I, p.74)17—, que o tempo se torna um problema para nosso autor. Esse problema

será enfrentado primeiramente por meio da literatura, no caso, da reflexão sobre o que

Sartre, referindo-se a Faulkner, Dos Passos e Virginia Woolf, chama de “phénomène

curieux de la dissolution du temps dans la littérature contemporaine” (carta de 1939 a

J. Paulhan, inédita). É justamente desse período de turbulência política, definido numa

das cartas a J. Paulhan como “vaniteuse période de redressement et de la plus parfaite

O MITO DA RESISTÊNCIA

134

confusion morale”, o ensaio intitulado “A propos de Le Bruit et la Fureur — La

temporalité chez Faulkner”, escrito poucos meses antes da deflagração da guerra (e

incompreensível fora do contexto daquele “présent écrasant”, tal como Sartre se

refere, em 1939, àquela conjuntura, cf. Les Carnets de la Drôle de Guerre, p.15).

O que é o tempo nesse ensaio de 39? “Le présent de Faulkner est

catastrophique par essence; c’est l’événement qui vient sur nous comme un voleur

énorme, impensable, — qui vient sur nous et disparaît. Par-delà ce présent il n’y a

rien, puisque l’avenir n’est pas” (Sit.I, p.66).18 Se considerarmos que mais tarde Sartre

descreverá a conjuntura vivida à véspera da guerra com o mesmo tom, e as mesmas

palavras (“les événements fondaient sur nous comme des voleurs”, Sit.II, p.254),19 que

ele descreve a temporalidade no romance de Faulkner, poderemos compreender

melhor todo o sentido de sua “profonde admiration” por esse escritor: o presente

“catastrophique” de Faulkner20 (para o qual não há futuro, segundo a leitura de Sartre)

diz a respeito do presente histórico da França de 39 o que nosso autor então não

conseguia, ou não podia ainda, dizer completamente. — “Tel est le temps de Faulkner.

Ne le reconnaît-on pas?” (Sit.I, p.69): essas palavras, com as quais Sartre pretende

sugerir uma aproximação entre Faulkner e Proust, poderiam ser ditas sobre o “tempo”

do próprio Sartre (tal como foi vivido e recriado pelo autor e por seus

contemporâneos). A temporalidade trágica desse romance americano (onde o tempo

“n’est pas une entreprise, c’est une fatalité; en perdant son caractère de possible, il

cesse d’exister au futur”, Sit.I, p.72) ilumina o tempo histórico de uma França que

caminhava em direção a uma tragédia. Vejamos o problema mais de perto.

En 47, refletindo sobre a conjuntura de 39, Sartre descreve o que ele pressentia

naquela ocasião: “quelque chose nous attendait dans l’ombre future, quelque chose qui

nous révélerait à nous-mêmes peut-être dans l’illumination d’un dernier instant avant

de nous anéantir; le secret de nos gestes (...) résidait en avant de nous dans la

catastrophe à laquelle nos noms seraient attachés” (Sit.II, p.243). Em face da

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

135

impossibilidade de frear essa marcha trágica rumo à “catastrophe” iminente

(apresentada como uma espécie de “néantisation”, no sentido —já nosso conhecido—

de Kojève explicando a Fenomenologia do Espírito: “néantisation” é “cessation de

l’action”21), em face da impossibilidade de ordenar, à maneira de Fausto, “Temps,

suspends ton vol” (essa referência ao Fausto, onde se pode reconhecer o problema

hegeliano por excelência, é do próprio Sartre nos Carnets de la drôle de guerre,

p.234), a reflexão sartriana de 39 sobre o romance de Faulkner, exprimindo

obscuramente o que parecia então um inevitável trabalho de destruição feito por

Saturno, transforma o tempo em destino.22 Naquele momento em que “les jeux sont

faits” (“nous n’avons rien à faire; nous n’avons plus jamais rien à faire”, escreve

Sartre, pouco antes da capitulação, em seu “journal de guerre”, Pléiade, p.1561), o

processo histórico em curso aparece obliquamente no interior da reflexão sartriana

como a encarnação da fatalidade própria a uma grande tragédia.23 — “Tout est

absurde”, afirma Sartre, retomando em seguida, a partir de Faulkner, estas palavras de

Macbeth: “la vie est une histoire contée par un idiot, pleine de bruit et de fureur, qui

ne signifie rien” (Sit.I, p.73). O “absurdo”, no caso, advém da “irracionalidade do

tempo” (Sit.I, p.72).

“Pour Faulkner, il faut oublier le temps (...). Pour Faulkner comme pour Proust,

le temps est, avant tout, ce qui sépare” (Sit.I, p.70; grifo do autor). E Sartre

acrescenta: “Si vous supprimez l’avenir, le temps n’est plus que ce qui sépare, ce qui

coupe le présent de lui-même” (Sit.I, p.73). (Em EN essa mesma idéia de tempo como

“separação” será retomada — mas agora com o sentido invertido, como veremos, visto

que nesse livro a temporalidade já se tornou “salut”.) Nessa “supressão” do futuro

Sartre vê a principal característica da temporalidade em Faulkner: “Chez Faulkner il

n’y a jamais de progression, rien qui vienne de l’avenir” (Sit.I, p.67) — o que dá às

suas histórias “une sorte de mouvement immobile” (p.67). E mais: “Dans Le Bruit et

la Fureur (...) rien n’arrive, tout est arrivé” (Sit.I, p.68). Isso ocorre porque em

O MITO DA RESISTÊNCIA

136

Faulkner é o passado que prevalece sobre as outras dimensões da temporalidade24 —

em seus romances o presente não é senão o passado que se (re)apresenta: “En ce sens

aussi, Faulkner peut faire de l’homme un total sans avenir (...). Les monologues de

Faulkner font penser à des voyages en avion, remplis de trous d’air; à chaque trou la

conscience du héros ‘tombe au passé’ et se relève pour retomber. Le présent n’est pas,

il devient; tout était. (...) Le présent chemine dans l’ombre, comme un fleuve

souterrain, et ne réapparaît que lorsqu’il est lui-même passé. (...) L’ordre du passé,

c’est l’ordre du coeur” (Sit.I, p.68-69). (Cerca de um ano antes, num outro ensaio

sobre Faulkner, Sartre escrevera: “On connaît la ‘technique du désordre’ de Le Bruit et

la Fureur, de Lumière d’août, ces inextricables mélanges de passé et de présent”,

“Sartoris par W. Faulkner”, Sit.I, p.11.)

Toda a tragédia humana estaria, segundo a leitura sartriana de Faulkner, na

temporalidade: “Le malheur de l’homme est d’être temporel” (Sit.I, p.66). E Sartre

cita o próprio Faulkner: “Un homme est la somme de ses propres malheurs. On

pourrait penser que le malheur finirait un jour par se lasser, mais alors c’est le temps

qui devient votre propre malheur” (Sit.I, p.66). Essa consciência infeliz do tempo

atravessaria a literatura contemporânea:“La plupart des grands auteurs contemporains,

Proust, Joyce, Dos Passos, Faulkner, Gide, V. Woolf, chacun à sa manière, ont tenté

de mutiler le temps. (...) Proust et Faulkner l’ont simplement décapité, ils lui ont ôté

son avenir, c’est-à-dire la dimension des actes et de la liberté” (Sit.I, p.71). Mas nessa

análise sartriana de 39 é o próprio tempo que, “comme un voleur énorme,

impensable”, mutila et decapita os homens, dilacera seu ser, devora seu futuro:

“L’homme passe sa vie à lutter contre le temps et le temps ronge l’homme comme un

acide, l’arrache à lui-même et l’empêche de réaliser l’humain” (Sit.I, p.73).25 Nessa

imagem clássica (basta lembrar do Saturno pintado por um Rubens ou por um Goya)

de um tempo que dilacera e devora é possível entrever o retrato de uma época

histórica muito determinada — uma época “pleine de bruit et de fureur” próprios de

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

137

uma verdadeira tragédia.26 Ou, mais particularmente, o retrato (prefigurado) de uma

França que caminha rumo ao fatídico 13 de junho de 1940: “Paris est déclaré ville

ouverte”, lia-se naquele dia em cartazes espalhados pela cidade. No dia seguinte a

Wehrmacht penetraria numa “Paris deserta” — uma “cidade sem olhar” (Die Stadt

ohne Blick), dirão os alemães. Sem olhar e sem futuro —”l’occupation a dépouillé les

hommes de leur avenir” (Sit.III, p.29)—, essa França que acabara de entrar na hora

alemã27 é o símbolo de uma temporalidade trágica (“une époque tragique entre toutes”,

escreve Sartre em seu balanço daquela conjuntura, Sit.II, p.234) que devora todo um

mundo e condena uma geração a “persévérer sans espoir” (Sit.II, p.254). É isso que, a

nosso ver, encontramos prefigurado na reflexão sartriana de 39 sobre a temporalidade

em Faulkner.

Precisemos os termos dessa prefiguração, que tem uma dupla face. De um lado,

como vimos, Sartre, relendo Faulkner, destitui o tempo de sua dimensão futura. Mas é

essa mesma destituição (literária) que se torna um problema (filosófico) para nosso

autor: “Mais le temps de l’homme est-il sans avenir?” (Sit.I, p.73). A resposta já é

pós-heideggeriana: “Il n’est plus permis alors d’arrêter l’homme à chaque présent et

de le définir comme ‘la somme de ce qu’il a’: la nature de la conscience implique au

contraire qu’elle se jette en avant d’elle-même dans le futur; on ne peut comprendre ce

qu’elle est que par ce qu’elle sera, elle se détermine dans son être actuel par ses

propres possibilités: c’est ce que Heidegger appelle ‘la force silencieuse du possible’“

(Sit.I, p.73). Daí a idéia —heideggeriana— de que “nous baignons dans l’avenir”

(Sit.I, p.74). Como ficamos? Com a “metafísica” de Heidegger e com a “arte” de

Faulkner (“j’aime son art, je ne crois pas à sa métaphysique”, Sit.I, p.74), embora

contrapostas. A chave para compreender essa aparente contradição nos é fornecida

pelo próprio Sartre que, ao contrapor a concepção de tempo em Heidegger e em

Faulkner, sugere o seguinte: se o primeiro tem razão do ponto de vista filosófico, a

grande arte do segundo está em, errando filosoficamente, atinar com “as condições

O MITO DA RESISTÊNCIA

138

sociais de nossa vida presente” (Sit.I, p.74).28 Contrariamente ao ponto de vista

heideggeriano, “l’homme de Faulkner” é uma “créature privée de possibles et qui

s’explique seulement par ce qu’il était”(Sit.I, p.73) — o que é “falso” filosoficamente.

Mas há um momento de verdade nesse “erro”, sugere ainda Sartre: ele exprime um

estado de coisas vigente, isto é, um “présent écrasant” para o qual não há futuro

possível. Em contrapartida, a temporalidade heideggeriana (a única capaz de dar conta

da “natureza da consciência”), essa temporalidade dirigida para o futuro, não pode ser

reconhecida numa época em que a história parece imobilizada, ou melhor, girando em

falso em torno de um mesmo presente trágico, “sans avenir” (embora, por outro lado, a

“filosofia patética” de Heidegger, sua idéia de destino sombrio, exprimisse, conforme

Sartre afirma nos Carnets de la Drôle de Guerre, pp.227-229, o “perfil patético” que a

história ia então delineando29). Se nossa leitura procede, poderíamos concluir que

Sartre, ao enfatizar o “fenômeno da dissolução do tempo” no romance americano, está

diagnosticando (inconscientemente, por assim dizer) a “dissolução” de um certo

tempo histórico. Não estamos pois diante de uma teoria geral do tempo.

Eis as palavras com as quais o próprio Sartre procura mostrar que o

“desespero” de Faulkner (decorrente de uma concepção de tempo que abole o futuro)

não pode ser explicado só por “sua metafísica”, mas pelas “condições sociais de nossa

vida presente”: “D’où vient que Faulkner et tant d’autres auteurs aient choisi cette

absurdité-là (...)? Je crois qu’il faut en chercher la raison dans les conditions sociales

de notre vie présente. Le désespoir de Faulkner me paraît antérieur à sa métaphysique:

pour lui, comme pour nous tous, l’avenir est barré. Tout ce que nous voyons, tout ce

que nous vivons, nous incite à dire: ‘ça ne peut plus durer’ et cependant le changement

n’est même pas concevable sauf sous la forme de cataclysme. Nous vivons au temps

des révolutions impossibles, et Faulkner emploie son art extraordinaire à décrire ce

monde qui meurt de vieillesse et de notre étouffement” (Sit. I, p.74). Essas palavras

que fecham o artigo (de junho-julho de 1939) sobre Faulkner poderiam ser lidas como

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

139

anúncio do “cataclysme” histórico que logo eclodirá — não são portanto palavras que

narram, como as de Horácio no final de Hamlet, uma tragédia consumada, mas

anunciam uma tragédia em curso. É sem dúvida a guerra como “expérience de

l’absurdité du monde” que se encontra obliquamente antecipada nessa passagem sobre

o romance de Faulkner. Melhor: é o próprio Sartre quem descreve a necessidade

histórica desse “monde qui meurt de vieillesse” e, ao fazê-lo, antecipa as

transformações sociais profundas da época. Essa “resposta antecipada” (a expressão é

de Adorno e será retomada mais adiante) pressupõe uma idéia de tempo que traz

estampada em si mesma, como uma chaga aberta, a marca dolorosa do “desespero” e

do “absurdo” (atribuídos ao romance de Faulkner) de uma época dominada pelo terror

do totalitarismo nazista (cuja ascensão Sartre presenciara diretamente durante sua

estada em Berlim, em 33-34).

Mais do que isso, é a fatalidade da capitulação da França e, como se acreditava

então, a inevitabilidade da marcha da Alemanha nazista rumo a uma hegemonia

européia que estão a nosso ver prefiguradas nas análises feitas por Sartre às vésperas

da guerra. Pretendendo falar apenas da temporalidade num romance americano, nosso

autor acaba atinando com a hora histórica da França de 39.30 Poder-se-ia mesmo dizer

que o ensaio de 39 sobre Faulkner antecipa o status quo da França de 40, ou melhor,

seria uma espécie de contemporâneo filosófico-literário do presente político da França

da “débâcle”. É essa França dilacerada de 40, onde se espera a morte “comme une

victime propitiatoire” (segundo Sartre em seu “journal de guerre”, Pléiade, p.1570),

que já se insinua na reflexão de 39 sobre a temporalidade no romance de Faulkner,

essa temporalidade “catastrófica” que conduz fatalmente à morte. Atravessada pelo

movimento da época, e exprimindo os grandes conflitos sociais do período,

a reflexão sartriana da véspera da guerra poderia ser considerada uma antecipação do

“monologue intérieur de la France occupée” mencionado em Qu’est-ce que la

littérature? (Sit.II, p.258). A idéia de uma temporalidade que realiza um trabalho de

O MITO DA RESISTÊNCIA

140

destruição inelutável, contra o qual toda resistência seria inútil, nos dá a imagem

prévia do processo que se convencionou chamar de “degradação do espírito público”

durante a “drôle de guerre” — processo que desemboca no “fatalismo” e na

“resignação” de 40: “un monde qui ne résiste jamais”; “on ne nous avait demandé que

notre patience”, escreve Sartre em seu “journal de guerre” (La mort dans l’âme,

Pléiade, pp. 1575 e 1578).31

Não mais podendo fazer a história —“nous pouvons souhaiter la victoire des

Anglais ou des Allemands mais nous nous sommes mis hors de jeu, totalement

neutralisés”, lemos ainda em La mort dans l’âme, Journal de Guerre (Pléiade,

p.1584)—, os herdeiros do “effondrement” de 40 a concebem como uma “course à

l’abîme”, ou “marche forcée vers la catastrophe”, em que “tous les personnages, quoi

qu’ils disent, quoi qu’ils fassent, avancent vers leur fin” (para usar as palavras com as

quais o jovem Sartre definira a tragédia, “L’art cinématographique”, in Les écrits de

Sartre, p.549). Essa idéia de uma temporalidade trágica (prefigurada no ensaio sobre

Faulkner, como acabamos de ver) leva Sartre a pensar o processo histórico em curso

como um mecanismo de forças cegas e incontroláveis, portanto irracionais, absurdas,

comparáveis aos fenômenos da natureza.32 Daí o recurso a metáforas de grandes

catástrofes naturais para descrever a conjuntura de 39-40: “nous étions au centre d’un

cyclone”; “le déluge est venu” (Sit.II, pp.252 e 259). (Nesse caso da análise sartriana

vale o que escreveu Adorno sobre “o poder da tendência histórica” na linguagem das

grandes epopéias, onde as metáforas poderiam ser tomadas como “alegoria da

história”, “La naïveté épique”, p.36.) “Cyclone”, “déluge”, ou ainda “catastrophe

céleste” e “cataclysme” — eis-nos em meio a tragédias da natureza que ninguém

poderia evitar.33 “Contraints par les circonstances à découvrir la pression de l’histoire,

comme Torricelli a fait de la pression atmosphérique...” (Sit.II, p.251). Ora, essa

identificação recorrente entre processo histórico e processo natural exprime

perfeitamente a “realidade” de uma França despojada de seu próprio tempo histórico

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

141

(um momento em que “as relações humanas se rebaixam ao nível das leis naturais”,

para adaptar num outro contexto uma idéia de Lukács em História e Consciência de

Classe, p.177): “nous vivons sans mémoire et sans avenir, dans l’instant”, escreve

Sartre em seu diário após a capitulação (La mort dans l’âme, Pléiade, p.1583).34 “Sem

memória e sem futuro”, essa França de 40, condenada a durar “no instante”, portanto

aquém do tempo (pois o instante, segundo EN, p.170, é “intemporal”), é concebida

como estando fora do processo histórico — jogada fora da história: “nous sommes (...)

stérilisés: des vivants éternels, comme des protozoaires”, lemos ainda no diário de

Sartre (Pléiade, p.1582).

Convém precisar um pouco mais o sentido dessa “dissolução do tempo”

durante a Ocupação. (Em setembro de 1939, nosso autor já escrevia: “Cette

dissolution de mon temps et de mes sentiments m’était comme un signe de l’approche

d’une catastrophe”, Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.62.) Recapitulemos

algumas passagens de Sartre para enfatizar a que ponto aquela conjuntura de reação

política35 é caracterizada por uma espécie de “paralisia” do tempo histórico(paralisia

que é causa e efeito de uma engrenagem repetitiva que emperra todo movimento, ou

toda Ação):“Pendant quatre ans, on nous a volé notre avenir.(...)L’occupation a

dépouillé les hommes de leur avenir”(Sit.III, p.28-29);“Paris(...)c’était une ville

d’hommes sans avenir”(Carnets de la drôle de guerre, p.240);“A Paris, les Allemands

levaient les yeux vers le ciel, y lisaient leur victoire et ses lendemains.Moi, je n’ai

plus d’avenir”(Les Chemins de la Liberté,vol.III,p.45);“La présence de la mort au bout

de notre route a dissipé notre avenir en fumée, notre vie est‘sans lendemain’c’est une

succession de présents”(Sit.I, p.108).36Ora, uma vida que é “sans lendemain”,37 “une

succession de présents”, não pode ser senão uma vida “sonolenta”(“ce temps ne fut

qu’un long sommeil; la ville était peuplée de dormeurs éveillés”, La Peste, p.169),

uma vida condenada à imobilidade, à eterna repetição do mesmo — numa palavra,

uma vida que dura aquém do tempo (“une éternité en deçà du temps”, nos termos dos

O MITO DA RESISTÊNCIA

142

Cahiers pour une morale, p.116). (Recorde-se que em Huis Clos a “eternidade”, ou

aquilo que “dura”, é a morte — daí a ênfase no “pour toujours!”, com a qual a peça se

fecha, p.95.)38 Vê-se melhor agora que é a idéia de repetição-duração, contraposta ao

tempo histórico, que sustenta as análises sartrianas sobre aquela época de reação

política (nessa contraposição, ressoam ainda os ecos dos ensinamentos de Kojève

sobre Hegel).

Com efeito, a contraposição entre repetição/duração e tempo histórico

(movimento transformador) perpassa a obra sartriana (já indicamos que em EN a

temporalidade, enquanto “changement”, opõe-se àquilo que dura).39 É em nome dessa

contraposição que Sartre critica Giraudoux, em março de 1940: “A chaque instant de

notre lecture, nous perdons pied, nous glissons sans nous en apercevoir de

l’individualité présente aux formes intemporelles. (...) Ces perpétuelles limitations du

devenir accentuent naturellement le caractère discontinu du temps. Puisque le

changement y est un moindre être, qui n’existe qu’en vue du repos, le temps n’est plus

qu’une succession de petites secousses, un film arrêté. (...) Tel est bien le temps de

Choix des Elues: un album de famille. Il faut bien tourner les pages, mais cela n’est

rien qu’un petit désordre sans mémoire entre la dignité calme de deux portraits” (“M.

Jean Giraudoux et la philosophie d’Aristote — A propos de Choix des Elues”, Sit.I,

p.82). Mas é nos Cahiers pour une morale que tal contraposição se torna um problema

central: “L’Histoire (...) exclut la répétition.(...) L’Histoire est totalité.(...) En tant que

cependant il y a totalité (...) il n’y a jamais répétition” (pp.28, 29 e 31). Ou então: “La

répétition implique un présent perpétuel” (p.82).E ainda: “Le monde a-historique de la

répétition...”(p.116).Considerando que o tempo histórico “implica a liberdade” e que

“a liberdade é invenção” (Cahiers pour une morale, p.64-65), a História só pode ser

ruptura com a repetição. Daí a crítica a uma concepção da história como “déchéance”,

que pressupõe uma “image (...) de l’éternel qui est en dehors du temps”: “Sans doute il

existe un avenir mais c’est l’avenir naturel (...). L’Histoire est un mythe.(...) Le temps

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

143

est essentiellement celui de la répétition. Le présent est l’immédiat. Conscience

immédiate du présent et du futur. (...) Or l’Histoire n’a cessé de se faire pendant qu’on

avait de fausses représentations d’elle; c’était une histoire immédiate qui (...) était

plus proche de la répétition et de l’éternel” (Cahiers pour une morale, p.38-39). A

história, contraposta assim à repetição (identificada à imediatez), é portanto um

processo de mediação (nisto também a análise sartriana está encharcada do

hegelianismo redivivo na cultura francesa da época — Kojève é justamente o grande

ponto de referência dos Cahiers pour une morale, mas voltaremos ao assunto na

Segunda Parte deste trabalho).40

Ao longo dos Cahiers, a análise sartriana vai tecendo uma trama, cujos fios se

enlaçam cada vez mais fortemente, entre abstração, pensamento analítico,41

“éternel”/”éternité”, categoria da repetição, conservadorismo, época de reação

política, passividade, resignação. Um exemplo: “Dans les périodes où l’économie, les

moyens de communication, l’Histoire enfin tendent à isoler l’homme de la

communauté concrète, la morale est abstraite et universelle parce que justement c’est

la communauté humaine universelle que l’homme a en vue et porte en soi, c’est-à-dire

la pure répétition à l’infini de lui-même. Et, pareillement, lorsque l’avenir concret est

masqué par l’éternel et qu’il devient une pure dilatation abstraite et infinie, la morale

considère l’activité humaine comme une succession d’actes au présent. Elle est

analytique.(...) La sagesse analytique est passivité, résignation” (p.52).42 Uma vez a

trama tecida, o leitor pode ver finalmente estampado o painel de uma época histórica

que acabara de declinar — é a elaboração filosófica dessa experiência histórica vivida

que Sartre, a nosso ver, está tentando empreender nos Cahiers (escritos no imediato

pós-guerra, como se sabe). Essa elaboração filosófica, por sua vez, ajuda a melhor

compreender as análises políticas do autor sobre a Ocupação: é porque o tempo

histórico é concebido como o avesso da repetição, do imobilismo e da resignação que

a França da “défaite” pode ser caracterizada como estando fora do tempo. Daí a idéia

O MITO DA RESISTÊNCIA

144

de paralisia do tempo — uma “estilização” (cujo caráter meramente conjuntural se

evidencia ainda mais agora) de clássicos da literatura contemporânea,43 indicando que

algo (aliás muito) morreu (e como) durante a Ocupação.

Daí também a já mencionada identificação, para caracterizar a conjuntura da

França ocupada, entre história e natureza (concebida justamente como o domínio da

repetição).44 Essa história naturalizada é essencialmente não-história, recusa da

história: “l’Histoire n’est jamais nature”; “l’Histoire est irréductible à la Nature(...).

L’Histoire n’est pas nature” (Cahiers pour une morale, pp.53 e 64). Ou então: “En

tant que l’homme invente, l’Histoire est toujours arrachement à la Nature.(...) Il y a

enrichissement perpétuel, perpétuelle anti-nature” (Idem, p.68). É ainda nas páginas

dos Cahiers pour une morale (cf. as pp. 53 e 65) que encontramos os fundamentos

filosóficos para a idéia de naturalização da história à época da Ocupação: a história só

“imita o determinismo natural” em momentos de “ausência visível de liberdade” —

nesse caso, a malha do tecido histórico se rompe e a história torna-se “quasi-nature”45

(ou “en-soi”, se quisermos colocar o problema nos termos de EN, onde, como se

recorda, o “pour-soi”, identificado à liberdade, é “pure temporalité”, ao passo que o

“en-soi” é “éternité pure”, EN, p.669). Por isso, naquela conjuntura, o futuro

desaparecera do horizonte, ou melhor, fora reduzido ao que Sartre chama nos Cahiers

de “avenir naturel” (p.38), isto é, repetição do mesmo (“futur de répétition”, p.38).46

À luz dessa elaboração post-festum de uma experiência vivida como ruptura do

curso do tempo, voltemos aos textos escritos no calor da hora e resumamos o ponto de

vista que os norteia: aquela França que “a perdu ses souvenirs”, conforme diz Sartre,

uma França “naturalizada”, onde impera “la mort dans l’âme”, se pensarmos no título

do diário de guerra de nosso autor (título reutilizado no terceiro tomo dos Chemins de

la liberté), é dominada por um enorme “pouvoir néantisant” (para usar a linguagem de

EN) — “Il n’y a que la Mort qui se voie. (...) Mort: guerre morte, mort dans le ciel,

ville morte (...) et nos cœurs que nous avons tués cet hiver, par crainte de souffrir”,

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

145

escreve Sartre em junho de 40 (La mort dans l’âme, Pléiade, p.1565). “Le grand

escamotage historique” (Sit.II, p.242) daqueles anos parecia condenar toda uma

geração a durar num “monde déraciné”: “Tout était creux et vide(...). Ainsi

jouissions-nous, dans cette cité agonisante, d’un calme mortuaire et symbolique(...).

Nous nous regardions et il semblait que nous voyions des morts. (...) Paris était peuplé

d’absents” (“Paris sous l’occupation”, Sit.III, pp.27, 29, e 38). É essa morte que Sartre

entrevê, às vésperas da Guerra, nos ensaios sobre o romance americano — e a chama

pelo nome de “Néant” (cf. Sit.I, p.23-24). Mas aqui já é novamente o fio filosófico de

EN que encontramos em meio a essa trama histórico-literária.

*

É esse mesmo “gosto amargo” de uma época que “dépérissait” (Sit.III, p.30)

que reaparece, em EN, encarnado filosoficamente na idéia de “Néant”: “le néant est la

possibilité propre de l’être et son unique possibilité” (EN, p.117). Pelo menos naquele

momento de “morte na alma” e nas coisas —”une population d’âmes mortes”, escreve

um historiador do período (De la chute à la libération de Paris, p.18)—, a idéia

abstrata de um “Néant” que “hante l’être” (esse “Néant” concebido como “condition

première(...) de toute enquête philosophique ou scientifique”, EN, p.46) torna-se

historicamente concreta. Sob este prisma, não seria exagerado dizer que em nenhuma

parte, fora dessa França “anéantie” pela “dureté des temps” (Sit.II, p.251), poder-se-ia

ver, numa tal pureza, “le néant iriser le monde, chatoyer sur les choses”, “éclore dans

le monde” (EN, p.58). Se naquela conjuntura da Ocupação (concebida como um

período de paralisia da ação política)47 o “néant” era de fato “l’unique possibilité de

l’être” (donde a generalização filosófica: “le néant est au coeur de l’homme”, EN,

p.495), torna-se possível pensar que a imagem abstrata do mundo apresentada nesse

“couple indissoluble, L’Être et le Néant” (EN, p.159), é a cifra filosófica de uma

O MITO DA RESISTÊNCIA

146

França cujo ser histórico (a liberdade) foi “anéanti” — a França da “fatalité du

calvaire” da Ocupação, conforme escreve Sartre num dos números clandestinos de Les

Lettres Françaises. Numa palavra: “ce couple indissoluble”, cuja essência o “ensaio

de ontologia fenomenológica” sartriano pretende descrever, seria antes “un Éternel qui

laisse entendre qu’il n’est qu’un moment de l’Histoire” (se nos for permitido adaptar

para o terreno da “pura” filosofia o que Sartre diz sobre a “pura literatura”, Sit.II,

p.82). Com o objetivo de entender o abstrato concretamente,48 EN acabaria

apreendendo o concreto abstratamente (em mais de um sentido, como veremos).

Graças a esse curto-circuito (cujo mecanismo detonador compreenderemos mais

adiante), cumprir-se-ia de fato o programa do livro: buscar uma “essência” que

coincida com a existência concreta de “carne e osso” — “l’existence concrète ‘en

chair et en os’ doit être l’essence, l’essence doit se produire elle-même comme

concrétion totale, c’est-à-dire avec la pleine richesse du concret” (EN, p.235).

Vimos a que ponto é recorrente nas análises sartrianas sobre aquela conjuntura

política a idéia de que a França Ocupada estava condenada a permanecer imutável na

duração do instante (portanto fora do tempo). É essa mesma contraposição entre

duração (ou “eternidade”) do instante e tempo histórico que reencontramos em EN: “la

temporalité (...) se temporalise tout entière comme refus de l’instant” (p.189). O

instante, considerado “intemporal” (EN, p.170), conforme já havíamos mencionado, é

definido “comme brisure néantisante de la temporalisation” (EN, p.523) — “l’instant

n’est lui-même qu’un néant” (EN, p.522).49 Nessa perspectiva, a idéia, elaborada em

EN, de que “nous sommes perpétuellement ménacés par l’instant” (EN, p.521) —

“mon choix (...) est hanté par le spectre de l’instant” (EN, p.523)— exprimiria uma

“ameaça” de ruptura do curso do tempo histórico, isto é, “ameaça” de que o tempo

interrompa seu movimento, tornando-se “viscoso” (e engendrando a “Nausée” —

resultado, como vimos, justamente de uma “quebra” do mecanismo regulador da

temporalidade): “L’horreur du visqueux c’est l’horreur que le temps ne devienne

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

147

visqueux” (EN, p.673). Retomando e desenvolvendo essa idéia nos Cahiers pour une

morale (concebidos como sequência de EN), Sartre escreve que, na ausência da

liberdade, “le temps s’effondre en instants non liés (...) c’est-à-dire en purs présents

intemporels” (p.64). EN poderia ser lido (mas veremos que as análises do livro não

são de mão única) como um diagnóstico filosófico de um desses momentos em que,

rompida a malha do tempo, perde-se a memória histórica (o que torna o homem “uma

paixão inútil” — “l’homme est une passion inutile”, EN, p.678): “notre passé se perd

au milieu du monde (...); notre passé (...) est séparé de nous par une épaisseur de

néant” (EN, p.505).

Já identificamos, no interior dos textos sartrianos, o local e a data do

nascimento desse “néant” que se confunde com a morte: os ensaios sobre Dos Passos e

Faulkner, escritos às vésperas da guerra. Nesses ensaios, ao desenvolver a idéia de

tempo como destino trágico, Sartre mescla os clássicos do modernismo americano não

só com Heidegger mas também com Malraux: “Malraux dit à peu près, dans L’Espoir:

‘Ce qu’il y a de tragique dans la Mort, c’est qu’elle transforme la vie en destin.’ Dos

Passos s’est installé, dès les premières lignes de son livre, dans la mort” (Sit.I, p.18).

Essa mesma idéia, retomada com as mesmas palavras, atravessa as páginas de EN. A

primeira retomada se dá no capítulo sobre o Tempo (“La temporalité”): “‘Ce qu’il y a

de terrible dans la Mort, dit Malraux, c’est qu’elle transforme la vie en Destin’“ (EN,

p.150-151). Logo adiante, Sartre acrescenta: “C’est (...) le sens de cette phrase de

Malraux que nous citions plus haut: ‘La mort change la vie en destin.’ C’est enfin ce

qui frappe le croyant lorsqu’il réalise avec effroi que, au moment de la mort, les jeux

sont faits, il ne reste plus une carte à jouer” (EN, p.153). E mais no final do livro, no

tópico intitulado “Ma mort”: “La mort (...) est le triomphe du point de vue d’autrui sur

le point de vue que je suis sur moi-même. C’est sans doute ce que Malraux entend,

lorsqu’il écrit de la mort, dans L’Espoir,50 qu’elle ‘transforme la vie en destin’. La

mort, en effet, n’est que par son côté négatif néantisation de mes possibilités” (EN,

O MITO DA RESISTÊNCIA

148

p.598). É essa idéia da morte como destino que leva Sartre a aproximar Malraux de

Heidegger: “Malraux, dans Les Conquérants, montre que la culture européenne, en

donnant à certains Asiatiques le sens de leur mort, les pénètre soudain de cette vérité

désespérante et enivrante que ‘la vie est unique’. Il était réservé à Heidegger de

donner une forme philosophique à cette humanisation de la mort” (EN, p.590). E

ainda: “Heidegger, en particulier, semble avoir bâti toute sa théorie du ‘Sein-zum-

Tode’ sur l’identification rigoureuse de la mort en la finitude; de la même façon,

Malraux, lorsqu’il nous dit que la mort nous révèle l’unicité de la vie, semble

considérer justement que c’est parce que nous mourons que nous sommes impuissants

à reprendre notre coup et, donc, finis” (EN, p.604).

Todavia, se o vínculo “néant”-morte-destino, extraído de Heidegger e da

leitura sartriana de clássicos da literatura contemporânea, é um fio que também urde a

trama de EN, já sabemos que o resultado final dessa urdidura altera a cor de seus fios

de origem. Embora à primeira vista Sartre esteja apenas reutilizando uma idéia

recorrente em seu pensamento (fundamental também em seus textos posteriores, cf.

por exemplo as análises sobre Baudelaire), o leitor de EN correria o risco de deixar

escapar o nó central do livro caso não percebesse que sob as vestes novas se esconde

uma figura nova. Mais precisamente, uma figura nova do Tempo. Procuramos mostrar

em nosso capítulo anterior que o Sein-zum-Tode heideggeriano é inaceitável aos olhos

do ativismo de EN e, mais, que no interior das análises de Sartre a morte é

metamorfoseada em vida (o que levará à afirmação, feita no final do livro, do

“primado do ser sobre o nada”, p.683). Compreenderemos agora que é uma certa

“experiência” do Tempo que desencadeia tal metamorfose.

Ao criticar o que considera um “erro” comum a Heidegger e a Malraux — a

identificação morte-finitude, que vai dar na idéia de “impotência” (EN, p.604) — ,

Sartre recorre a Hegel (idéia de negação da negação) na tentativa de superar esse “côté

négatif” da morte, convertendo a fatalidade em liberdade. Se por um lado, como já

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

149

mencionamos, “la mort est le triomphe du point de vue d’autrui sur le point de vue que

je suis sur moi-même” (EN, p.598) — o que implica a alienação —, por outro, “la

mort comme néantisation d’une néantisation” (EN, p.598) é posição, afirmação da

liberdade humana (“au sens où, pour Hegel, la négation d’une négation est

affirmation”, EN, p.598): “Tant que le pour-soi est ‘en vie’, il dépasse son passé vers

son avenir et le passé est ce que le pour-soi a à être” (EN, p.598). E ainda: “Est-ce à

dire que la mort trace les limites de notre liberté? En renonçant à l’être-pour-mourir de

Heidegger, avons-nous renoncé pour toujours à la possibilité de donner librement à

notre être une signification dont nous soyons responsables? Bien au contraire, il nous

semble que la mort, en se découvrant à nous comme elle est, nous libère entièrement

de sa prétendue contrainte” (EN, p.604). Deparamo-nos aqui, mais uma vez, com a

resposta voluntarista do sujeito sartriano ao “canto do destino”—tendo em vista a

possibilidade de superar a “condenação” à alienação, torna-se por conseguinte

possível “briser le destin” (para usar a expressão com a qual Sartre exalta mais tarde a

ação política da Resistência) ou, nos termos de EN, “briser les chaînes” (p.608).51 A

transformação do negativo em positivo no interior das análises de EN,52 cujo resultado

é a produção da liberdade como nova figura da fatalidade, conforme procuramos

mostrar no capítulo anterior, pressupõe assim a idéia de sujeito, um sujeito capaz de

realizar esse trabalho heróico: “La condition de possibilité de toute expérience, c’est

que le sujet organise ses impressions en système lié. Aussi, ne trouvons nous dans les

choses que ce que nous y avons mis” (EN, p.270). (Veremos na Segunda Parte deste

trabalho que, em EN, a conversão da fatalidade em liberdade se faz pela mediação do

herói, embora a noção de herói não seja claramente tematizada no livro.) Mas

pressupõe também a idéia de uma temporalidade que “cura”. Reencontramos

finalmente o ponto de onde partíramos.

É justamente em EN, conforme já indicamos, que toma forma no pensamento

de Sartre a idéia de uma temporalidade que “cura” — idéia que, resultando da total

O MITO DA RESISTÊNCIA

150

inversão de suas fontes filosóficas e literárias (tal como nosso autor as reinterpreta às

vésperas da guerra), rompe com o caráter de fatalidade (presente na reflexão sartriana

de 39-40) do trabalho de destruição efetuado pelo tempo: “Le temps ronge et creuse, il

sépare, il fuit. Et c’est encore à titre de séparateur —en séparant l’homme de sa peine

ou de l’objet de sa peine— qu’il guérit” (EN, p.169). Aqui, ainda como no ensaio

sobre Faulkner, o tempo “ronge et creuse”, mas seu trabalho de destruição não é mais

fatal. O mesmo movimento que leva à destruição pode levar também à “guérison”.

Invertendo o sentido anterior da idéia (atribuída a Faulkner e a Proust, como vimos)

de tempo como “separação”,53 Sartre afirma agora que o tempo é separação que

“reúne” (por isso “cura”, em vez de destruir): “Si donc le temps est séparation, du

moins est-il une séparation d’un type spécial: une division qui réunit” (EN, p.170).

Assim, a temporalidade “est à la fois forme de séparation et forme de synthèse” (EN,

p.173) — “la temporalité est une force dissolvante mais au sein d’un acte unificateur”

(EN, p.175). O tempo não é mais, portanto, pensado como destino trágico; seu

movimento não aparece mais como unívoco.

Em EN, Sartre pode enfim responder, de maneira afirmativa, à pergunta sobre a

irreversibilidade do tempo formulada na Nausée (“Est-ce que le temps ne serait pas

toujours irréversible?”, Pléiade, p.69): “L’ordre ‘avant-après’ se définit tout d’abord

par l’irréversibilité” (EN, p.169); “Nous avons montré l’irréversibilité même de la

temporisation comme nécessaire” (EN, p.188). É o caráter necessário dessa

irreversibilidade que leva à “cura” (não por acaso a passagem que evidencia a

“descoberta” de um tempo que “cura” vem logo após a primeira afirmação sobre a

irreversibilidade do tempo). E mais: “l’irréversibilité de la temporalité (...) n’est autre

que le caractère propre d’une liberté qui se temporalise” (EN, p.604). Resultado da

liberdade, a irreversibilidade do tempo entra em cena para se contrapor à repetição, ao

círculo natural do eterno retorno do mesmo.54 Mas só pode fazê-lo porque, como

vimos, a temporalidade é “changement”, ou seja, só toma forma à condição de superar

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

151

o “idêntico” e o “permanente” (até porque “la permanence et l’abstrait ne font qu’un”,

EN, p.235). Nesse sentido, relembremos esta passagem já citada: “Sans changement

point de temporalité, puisque le temps ne saurait avoir de prise sur le permanent et

l’identique” (EN, p.182). (Daí a crítica, endereçada sobretudo a Leibniz e a Kant, ao

“recours à la permanence pour fonder le changement” — um “recurso” “d’ailleurs

parfaitement inutile”, EN, p.183.) Outros aspectos dessa identificação entre tempo e

“changement”: “On ne saurait envisager la possibilité d’un monde sans changement,

sauf à titre de possibilité purement formelle” (EN, p.250); “La dimension présente du

temps universel serait donc insaisissable s’il n’y avait le mouvement. C’est le

mouvement qui détermine en présent pur le temps universel” (EN, p.255). E mais:

“Lorsqu’il s’agit de la réalité humaine, ce qui est nécessaire c’est le changement pur et

absolu” (EN, p.183). Vê-se assim aonde chegou, na versão de EN, o privilégio

heideggeriano do futuro — num ativismo que, invertendo o sentido da “condenação” a

um destino sombrio, faz do tempo “changement”, isto é, instância de superação do

estado de coisas vigente (via ato de vontade heróica): “Tout maintenant est destiné à

devenir un autrefois” (EN, p.169); “Le Présent est une fuite perpétuelle en face de

l’être. (...) Or le présent n’est pas, il se présentifie sous forme de fuite” (EN, p.162). O

que corrói a engrenagem repetitiva do “destino” é a já mencionada idéia do presente

como “dépassement”: “Mais ce présent est dépassement vers un terme futur de

quelque chose qui marche” (EN, p.397). Eis-nos novamente às voltas com o nó que

tentamos desatar: qual o “conteúdo” desse “quelque chose”?

*

“Il fallait nous sauver ou nous perdre”—é assim que Sartre evoca, em “Qu’est-

ce que la littérature?”, aquela conjuntura da guerra (Sit.II, p.253). O “salut”, como

nosso autor já dizia a respeito de Proust, estaria “dans le temps même” (Sit.I, p.70), ou

O MITO DA RESISTÊNCIA

152

na “cura” pelo tempo, conforme a “descoberta” de EN. Uma “descoberta” que, como

vimos, resulta de um curto-circuito que transforma o negativo em positivo: é

justamente porque “le temps ronge et creuse”, porque é “separação”, que ele “reúne” e

“cura” (EN, p.169). Não há cura para as feridas do Tempo a não ser no próprio

Tempo, ou melhor, na radicalização da experiência da temporalidade. Mas aqui

encontramos mais uma peça de nosso quebra-cabeça, pois no pensamento de Sartre

essa radicalização é própria da temporalidade revolucionária (momento privilegiado

de “reunião” da forma liberdade-temporalidade-totalidade—não por acaso, o problema

da revolução está colocado, em EN, no capítulo sobre a liberdade, como veremos).

Essa peça encontrada define finalmente o perfil da nova figura do tempo que estamos

vendo se esboçar. Expusemos até agora a série das sucessivas “descobertas” de EN: a

da irreversibilidade do tempo, que leva à da “cura” pelo tempo, que, por sua vez,

resulta daquela que é a “descoberta” fundamental do livro, a da liberdade (recorde-se:

“l’irréversibilité de la temporalité (...) n’est autre que le caractère propre d’une liberté

qui se temporalise”, EN, p.604). Ora, essa “descoberta” fundamental da liberdade (já

sabíamos desde o capítulo anterior que a liberdade é a personagem central que

determina o curso do livro) é datada historicamente: “le dévoilement même de notre

liberté”, afirma o próprio Sartre logo após EN, foi a Resistência (“La République du

Silence”, Sit.III, p.13).55 Nessa experiência política crucial, que se inscreve nos

desdobramentos da Guerra e da Ocupação da França, o autor vê (“sous mes yeux”,

conforme ele enfatiza numa de suas reportagens sobre a insurreição parisiense de

agosto de 1944) a realização histórica concreta da temporalidade revolucionária (a

única capaz de “curar” efetivamente, como o resto da obra sartriana tratará de

demonstrar).

Mas se essa derradeira peça que acrescentamos em nosso quebra-cabeça não foi

encontrada nos meandros da história interna da filosofia —é matéria viva da história

social e política, mais precisamente, da história do capitalismo e da luta de classes nos

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

153

anos 30-40—, torna-se possível pensar que não é com fios meramente ontológicos que

se tece a trama de EN e que, além disso, há mais coisas entre os dois planos da obra (o

céu da filosofia “pura” e as “situações” do mundo terreno) do que à primeira vista se

poderia imaginar. Se assim for, a separação, à qual nos referíamos no início deste

trabalho, entre esses dois planos da obra, o das demonstrações ontológicas “abstratas”

e o dos exemplos concretos, não seria senão, como Sartre disse a respeito do tempo,

“uma separação de um tipo especial: uma divisão que reúne” (EN, p.170).

Vê-se assim que no final desse itinerário em que tratávamos de expor a gênese

das figuras centrais de EN, atinamos com o seguinte resultado: a pré-história

filosófico-literária do problema do tempo no pensamento de Sartre, a qual procuramos

reconstituir, deságua na corrente principal (de cujo curso aliás brotou) — a história

social e política do período. Um reencontro de águas que todavia já não se misturam:

em EN estamos, como veremos, diante de um trabalho de recriação filosófica (numa

forma quase ficcional), onde o que menos importa é saber se as coisas de fato se

passaram assim ou de outra maneira (não se trata evidentemente de uma descrição de

um modo de produção determinado), pois a “verdade” da obra talvez esteja apenas na

“arte de inventar aquilo que, a seguir, parecerá ter sido exigido pelo tempo” (para

adaptar num outro contexto uma idéia de Merleau-Ponty). Esse trabalho de recriação

filosófica, essa reorganização temporal de uma experiência histórica real (alçada à

condição de Mito), pressupõe a “categoria de ponto de vista” — e aqui atingimos o

nervo do livro: se nossa leitura procede é o ponto de vista do Resistente que norteia a

mudança na figura do tempo em EN.

É a luz da experiência política da Resistência que permite ver todo o traçado da

figura do Tempo (da qual até agora captáramos apenas algumas facetas), revelando o

sentido de seu movimento. Com efeito, a passagem, ao longo do pensamento sartriano,

da idéia de tempo como destino trágico (uma temporalidade “catastrófica” cujo

trabalho inexorável de destruição torna inútil qualquer resistência) à idéia de tempo

O MITO DA RESISTÊNCIA

154

que “cura” poderia ser lida como uma reconstrução filosófica, feita de modo

involuntário, da passagem da França da “défaite” (uma época de resignação, conforme

vimos pelas descrições de Sartre e outros contemporâneos, de paralisia do tempo e da

ação política—uma época, enfim, vivida como “destino” trágico, contra o qual não se

podia lutar) à França da Resistência (apelo à ação heróica capaz de remir “l’homme

humilié par la défaite”, para usar os termos do próprio Sartre, cf. Sit.II, p.122).

Dissemos antes que é porque o tempo é concebido como transformação (avesso da

repetição) que a França ocupada pode ser pensada como fora do tempo. Mas, por outro

lado, a forma sartriana dessa idéia de tempo como transformação já exprime o que o

início de movimento de Resistência significou para toda uma geração: um curto-

circuito no sistema que alimentava a engrenagem reiterativa do terror totalitário

nazista. A reflexão de Sartre sobre o tempo vai por assim dizer acompanhando

(embora a cadência dos passos não seja a mesma) a mudança do Zeitgeist: da idéia de

“guerre de droite” à idéia de “guerre de gauche”,da guerra pensada como um momento

de reação política (“néantisation” da liberdade e, portanto, do próprio tempo—que não

é senão, na ótica de EN, o caminho da liberdade) à idéia de que a guerra leva à

revolução (daí a palavra de ordem que começa a se impor à época de EN: “Da

Resistência à Revolução”).56O movimento das análises sartrianas sobre o tempo

apreende essa virada histórica, convertendo-a em matéria filosófica. A “salvação”

encarnada historicamente no movimento de Resistência é a nosso ver a mesma que

está sendo elaborada filosoficamente na idéia de uma temporalidade que “cura” (uma

idéia que está assim na encruzilhada do pensamento de Sartre e de uma época). Ou

inversamente: a conversão filosófica da figura de uma temporalidade “catastrófica”

numa temporalidade que “cura” (um salto qualitativo que transforma a destruição

inelutável em “salut”) é feita com matéria histórica local — é a própria Resistência

que, transformando o negativo em positivo, induz, no interior das análises de EN, a

idéia (especulativa) de um tempo que “cura”. Essa a substância viva do livro a qual,

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

155

adicionada aos outros ingredientes que o compõem, provoca o curto-circuito a que nos

referíamos no início deste capítulo.

A figura do Tempo que “cura” expõe assim sua face política e social: o anúncio

dessa forma de temporalidade orientada para o futuro (observe-se até onde chegou o

processo de radicalização de Heidegger) termina por sinalizar o curso do movimento

de Resistência57—mais do que isso, é o sintoma de uma ordem social nova que começa

a nascer de dentro daquele mundo que agoniza. Doravante, torna-se possível, como a

idéia sartriana de uma temporalidade que “cura” permite entrever, resistir à

“fatalidade” de um tempo que, em 39,“mutilava”os homens, roubando-lhes o futuro e

destroçando toda esperança. O curso da história logo irá desfazer o mito da

inevitabilidade da vitória nazista na Europa. O movimento de resistência, na França e

no resto da Europa, começa a corroer esse mito que, até então, fora vivido como

destino inelutável. Primeiramente, a resistência inglesa. Sabe-se, pelas memórias de

época, o quanto tal resistência representou para os contemporâneos um abalo na

reputação de invencibilidade da Wehrmacht(“se conseguirmos resistir, toda a Europa

recuperará um dia sua liberdade”, dizia Churchill em junho de 1940).Na França,

mesmo se a Resistência não foi durante muito tempo senão uma “anarchie

combattante”, segundo de Gaulle, ou uma “desordem corajosa”, nas palavras de

Malraux (Documentário: “De Gaulle et Malraux”), ela permitiu a toda uma geração

não mais viver a história como destino, ou melhor, “briser le destin”, para retomar a

expressão de Sartre—“notre destin est entre nos mains”, escreve também o autor

(Pour et Contre l’Existentialisme, p.188). Uma vez que “les jeux ne sont pas faits”,

abre-se a possibilidade de romper com a duração de um “monde qui ne résiste jamais”

(conforme a já mencionada passagem do diário de guerra de Sartre).58 Se em 39-40 um

“destino” trágico projetou sua sombra sobre o “Tempo do Mundo”, à época de EN a

luz da liberdade já recomeça a iluminar a cena histórica e, ao fazê-lo, vai esmaecendo

a figura sombria do destino (que rondava a reflexão sartriana às vésperas da guerra),

O MITO DA RESISTÊNCIA

156

ou melhor, vai revelando que o “destino” não é senão a “minha liberdade” (tal como

Sartre enfatiza em Les Mots). Em vez de dobrar-se à “crença na fatalidade”,59 a

filosofia sartriana da temporalidade heróica, delineada em EN, conclama à luta, isto é,

a “forger le destin” (outra expressão recorrente em Sartre).60 Com isso já se evidencia

até que ponto é verdadeiro, também para caso de EN, o que o próprio autor disse

pensando particularmente em sua obra teatral: durante a Ocupação, “eu não era um

resistente que escrevia, mas um escritor que resistia” (Entrevista concedida a John

Gerassi, in Jean-Paul Sartre — Hated Conscience of His Century, p.179).

Sob este ângulo, não é só a figura do tempo em EN que ganha luz nova — é o

próprio movimento do conjunto das análises do livro que poderia ser reconstituído a

partir do fio central puxado pela radicalização da experiência da temporalidade: o

ponto de vista do Resistente. A “subversão” especulativa operada em EN (cujo

mecanismo procuramos desmontar nesta Primeira Parte do trabalho), a qual, através de

uma temporalidade redentora, converte a impotência da subjetividade em heroísmo da

consciência (“projet de suppression de cet asservissement réel” e de “reconquérir la

liberté”, EN, p.462), reconstrói filosoficamente, a nosso ver, uma “subversão”

histórica (a conversão de um estado de “néantisation” real em liberdade heróica da

Resistência) — é a própria História que vai sendo narrada no interior das análises do

livro (estamos diante de um processo de elaboração filosófica do Mito da Resistência).

Essa subversão especulativa só pôde ser feita a partir de materiais históricos da época,

como mostram os exemplos usados pelo autor (e que serão examinados na Segunda

Parte deste trabalho). Numa palavra: a radicalização da experiência da temporalidade

operada em EN é a expressão conceitual do processo de radicalização política em

curso. Eis portanto o que acelera o ritmo das análises de EN: uma experiência

histórica que se desenvolve ela própria num ritmo acelerado — a radicalização de

Hegel e de Heidegger no interior do “ensaio de ontologia” sartriano é impulsionada

(via ativismo kojeviano)61 por esse processo de radicalização da crise histórica. Vê-se

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

157

melhor agora em que sentido dizíamos que o “Tempo do Mundo” heideggeriano, na

versão de EN, exprime o tempo de um certo mundo muito determinado, ou de um

certo presente político. Já é o ponto de vista do revolucionário, no caso, do Resistente,

que se prefigura na idéia sartriana —que veio de Heidegger (quem diria?)— de uma

temporalidade orientada para o futuro.62

É portanto com a experiência da temporalidade que se dá o reencontro da

matéria viva da história com sua reelaboração filosófica. Noutras palavras: é o Tempo

a instância que reúne os dois planos aparentemente distintos de EN. Desfeita essa

aparência, a estrutura teatral (dramática) do livro, com seus sucessivos jogos de luz e

sombra sobre suas figuras centrais, se expõe plenamente: abre-se a cortina e torna-se

possível ver os dois planos que compõem o cenário da obra sustentados por uma única

viga, construída com material híbrido (filosófico, literário e histórico). Mas para

apreender o movimento simultâneo das figuras nesses dois planos é preciso abrir o

ângulo de nossa lente, ou seja, reunir o que distinguimos num primeiro momento: as

demonstrações ontológicas e as “situações” concretas do mundo. Examinar os termos

desse reencontro da elaboração filosófica com a matéria viva da história é a tarefa da

Segunda Parte do trabalho.

O MITO DA RESISTÊNCIA

158

NOTAS - Capítulo 3

1)”L’être du cogito nous est apparu comme étant l’être-pour-soi” (EN, p.144). 2)Idéia que vem de Heidegger, como assinala o próprio Sartre num ensaio de 1939:

“La conscience ne peut ‘être dans le temps’ qu’à la condition de se faire temps par le

mouvement même qui la fait conscience; il faut, comme dit Heidegger, qu’elle se

‘temporalise’“ (Sit.I, p.73). 3)Esse vínculo necessário entre negação e tempo é próprio de Hegel, como aliás

Heidegger enfatiza em Ser e Tempo. Reportando-se à Encyklopädie —”a negatividade

é o tempo”—, Heidegger lembra que em Hegel o tempo é “determinado como negação

da negação” (ST, vol.II, pp.243 e 247). Ainda sobre o vínculo necessário entre

negação e tempo em Hegel, cf. Paulo Arantes: “O tempo se mostra, então, como nada

mais que essa negatividade explicitada” (Hegel — A Ordem do Tempo, p.37). Ou

então: “Em Hegel, a unidade do conceito e do tempo tem de ser captada através da

categoria do negativo. (...) A negação constitui o que há de absoluto no conceito de

tempo” (Idem, p.132). “O tempo é, por certo, a ação corrosiva do negativo”, afirma

Hegel (citado em Hegel — A Ordem do Tempo, p.133). 4)Se por um lado as análises sartrianas acompanham a distinção hegeliana entre tempo

e duração/eternidade, por outro, diferentemente de Hegel (para quem, como afirma

Paulo Arantes, a “duração” está “a meio caminho do tempo e da eternidade”, Hegel —

A Ordem do Tempo, p.137), elas identificam eternidade e duração. 5)Nesse sentido, cf. Heidegger: “Apesar da opinião de Kant”, lemos em Ser e Tempo,

“o tempo do mundo é ‘mais objetivo’ do que qualquer objeto possível porque,

enquanto condição de possibilidade dos entes intramundanos, ele já se ‘objetivou’

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

159

junto com a abertura de mundo(...). Mas o tempo do mundo também é ‘mais subjetivo’

do que qualquer sujeito possível porque, no sentido bem entendido de preocupação

[Sorge] como ser do si-mesmo que de fato existe, ele também possibilita esse ser. ‘O

tempo’ não é e nunca está simplesmente dado no ‘sujeito’, nem no ‘objeto’ e nem

tampouco ‘dentro’ ou ‘fora’. O tempo ‘é’ ‘anterior’ a toda subjetividade e objetividade

porque constitui a própria possibilidade desse ‘anterior’“ (ST, vol.II, p.231; tradução

parcialmente modificada). E Heidegger acrescenta: “Se, portanto, o tempo do mundo

pertence à temporalização da temporalidade, então ele não pode se evaporar

‘subjetivisticamente’ e nem se ‘coisificar’ numa ‘má objetivação’“ (ST, vol.II, p.232).

Trata-se de buscar a “estrutura plena e essencial do tempo do mundo” ou a “estrutura

específica do tempo do mundo” (ST, vol.II, pp.234 e 236). Ainda sobre a idéia de

“Tempo do Mundo” em Heidegger: “Na medida em que a presença [Dasein] se

temporaliza, também se dá um mundo. (...) O mundo se temporaliza na temporalidade”

(ST, vol.II, p.167; ver também pp.214, 215 e 231). Em Ser e Tempo, o tempo do

mundo é “a história do mundo” (vol.II, p.182). 6)Na Phénoménologie de la Perception, Merleau-Ponty também estabelece uma

“relação íntima” (p.469) entre o tempo e a subjetividade: “Le temps suppose une vue

sur le temps. (...) Le temps n’est donc pas un processus réel, une succession effective

que je me bornerai à enregistrer. Il naît de mon rapport avec les choses. (...) Le monde

objectif est incapable de porter le temps” (Phénoménologie de la Perception, p.470-

471). E ainda: o tempo “n’est pas un objet de notre savoir, mais une dimension de

notre être” (p.475); “Le passé n’est donc pas passé, ni le futur futur. Il n’existe que

lorsqu’une subjectivité vient briser la plénitude de l’être en soi, y dessiner une

perspective, y introduire le non-être” (p.481); “Il faut comprendre le temps comme

sujet et le sujet comme temps” (p.483); “Nous sommes le surgissement du temps”

(p.489).

O MITO DA RESISTÊNCIA

160

7)Esse papel fundamental do tempo na “ontologia fenomenológica” de Sartre remonta

sem dúvida ao Heidegger de Ser e o Tempo, onde se lê justamente o seguinte: “a

problemática central de toda ontologia se funda e lança suas raízes no fenômeno do

tempo” — nessa medida, “o tempo é o ponto de partida” e o “horizonte de toda

compreensão e interpretação do ser”, o que torna necessária “uma explicação

originária do tempo enquanto horizonte da compreensão do ser a partir da

temporalidade”: “é na exposição da problemática da temporariedade que se há de dar

uma resposta concreta à questão sobre o sentido do ser” (ST, vol.1, p.45, 46 e 47). E

mais: “O fundamento ontológico originário da existencialidade da pre-sença [Dasein]

é a temporalidade” (ST, vol.II, p.13); “Todas as estruturas fundamentais da pre-sença

[Dasein] até aqui expostas devem ser concebidas ‘temporalmente’ e como modos da

temporalização da temporalidade e sua possível totalidade, unidade e desdobramento,

que se pode assegurar o fenômeno originário da temporalidade” (Ser e Tempo, vol.II,

p.96). Heidegger termina Ser e Tempo reiterando o vínculo essencial entre Dasein e

tempo: “A constituição ontológico-existencial da totalidade da pre-sença [Dasein] se

funda na temporalidade” (vol.II, p.251-252). Daí a pergunta que fecha Ser e Tempo:

“Será que o próprio tempo se revela como horizonte do ser?” (vol.II, p.252). Sobre a

preponderância do futuro dentre as outras dimensões da temporalidade em Heidegger,

cf. Gerd Bornheim: “Com as análises de Heidegger topamos com uma nova dinâmica,

que desvincula o tempo das amarras do passado, no sentido de que, se a existência

humana foi lançada no mundo, tal passividade originária como que suscita o projeto

que é o futuro — promovido, este, a dimensão fundamental do tempo” (“A invenção

do novo”, Tempo e História, p.103). Alain Renaut, por sua vez, escreve: “A análise da

historicidade própria do Dasein contribuía para romper com o que Heidegger

designava como a ‘representação vulgar do tempo’, a qual, desde Aristóteles e Santo

Agostinho, se caracterizava a seus olhos pelo privilégio concedido ao presente: contra

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

161

tal privilégio, (...) a historicidade do Dasein evidencia que há pelo menos uma

realidade, a do ‘homem’, onde a temporalização do tempo se efetua a partir do futuro,

e não a partir do presente” (Alain Renaut, Sartre, le dernier philosophe, p.49-50).

Nesse sentido, cf. o próprio Heidegger: “A abertura historiográfica (...) se temporaliza

a partir do porvir” (ST, vol.II, p.202; grifo do autor). Ou então: “O ente (...), em seu

ser, é essencialmente porvir (...). A história não tem seu peso essencial nem no

passado, nem no hoje e nem em seu ‘nexo’ com o passado, mas sim no acontecer

próprio da existência, que surge do porvir da pre-sença [Dasein]. Enquanto modo de

ser da pre-sença [Dasein], a história está tão essencialmente enraizada no porvir...”

(ST, vol.II, p.191-192; grifo do autor). Notemos de passagem que Ser e Tempo é

também o ponto de partida das reflexões de Merleau-Ponty sobre a temporalidade, em

particular na Phénoménologie de la Perception (cujo referencial privilegiado é EN).

Todavia tais reflexões (como as de Sartre, aliás) são sempre calcadas em referências

não só filosóficas mas também literárias — é o que já evidencia a justaposição das

duas epígrafes do capítulo “La Temporalité” da Phénoménologie de la Perception:

Claudel e Heidegger (p.469). 8)No que diz respeito ao problema do tempo, Hegel é sem dúvida o alvo privilegiado

das críticas de Heidegger: “Considerando que a presente análise do tempo, já em seu

ponto de partida, se distingue, em princípio, de Hegel e que sua meta, ou seja, a

intenção de uma ontologia fundamental, orienta-se contrariamente a ele...” (Ser e

Tempo, vol.II, p.215; grifo do autor). Ou ainda: “Hegel já fez a tentativa explícita de

elaborar o nexo entre o tempo, vulgarmente compreendido, e o espírito. Em contraste,

para Kant, o tempo, não obstante ‘subjetivo’, está desligado, colocando-se ‘ao lado’

do ‘eu penso’ (ST, vol.II, p.241). E o autor acrescenta numa nota: “em Kant se dá uma

compreensão mais radical do tempo do que em Hegel” (p.241). Daí o propósito de

desenvolver “a distinção do nexo ontológico-existencial entre temporalidade, pre-

O MITO DA RESISTÊNCIA

162

sença [Dasein] e tempo do mundo por oposição à concepção hegeliana da relação

entre tempo e espírito” (ST, vol.II, p.241). Heidegger procura mostrar que “Hegel se

move totalmente na direção da compreensão vulgar do tempo” (ST, vol.II, p.244-245).

E mais: “A determinação hegeliana do tempo segue os rastros da compreensão vulgar

do tempo, ou seja, também do conceito tradicional de tempo. Pode-se mesmo dizer

que o conceito hegeliano de tempo foi diretamente haurido da Física de Aristóteles”

(ST, vol.II, p.246). (A respeito desta última afirmação de Heidegger, só nos cabe

remeter aos comentários de Paulo Arantes, in Hegel — A Ordem do Tempo, p.109.) 9)Na leitura kojeviana de Hegel, como escreve Paulo Arantes, a “temporalidade

originária (...) empurra o sujeito nascente para o futuro” — essa temporalidade é um

dos elementos que despertam a consciência de um estado de torpor, ou seja, “chamam

a consciência a si” (“Um Hegel errado, mas vivo”, Revista IDE, nº 21, 1991, p.75). 10)Cf. a primeira elaboração dessa idéia nos Carnets de la Drôle de Guerre: “Chaque

présent a son avenir qui l’illumine” (p.14). 11)É exatamente em nome desse privilégio do futuro que Sartre, criticando o método

freudiano como “une régression vers le passé” (“la dimension du futur n’existe pas

pour la psychanalyse”, EN, p.514), indica a necessidade de virar a psicanálise de

ponta cabeça: “Mais si nous acceptons la méthode de la psychanalyse nous devons

l’appliquer en sens inverse. (...) Au lieu de comprendre le phénomène considéré à

partir du passé, nous concevons l’acte compréhensif comme un retour du futur vers le

présent” (EN, p.514). Esse ponto de vista que privilegia o futuro norteia também a

crítica de EN a Leibniz: “L’ordre de l’explication psychologique chez Leibniz va du

passé au présent(...). Pour nous, au contraire, l’ordre de l’interprétation (...) ne cherche

nullement à réduire le temps à un enchaînement purement logique (raison) ou logico-

chronologique (cause, déterminisme). Il s’interprète donc à partir du futur” (EN,

p.525). Já em dezembro de 1939, numa carta onde procura expor os fundamentos da

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

163

moral que está elaborando, Sartre escreve: “la réalité humaine (...) est toujours du côté

de l’avenir” (Carta a Simone de Beauvoir, Pléiade, p.1898). Nesse sentido, observe-se

o que diz o autor sobre um dos personagens de Les Chemins de la Liberté: “Un

homme est son projet, son avenir. Charles n’est pas un homme, parce qu’il est l’avenir

des autres. Il est un objet, il est un pot de fleurs. Sa vie sans avenir est une vie morte,

privée de sa dimension essentielle: celle des actes” (Entrevista, Paru, nº 13, dezembro

de 1945). Recorde-se ainda esta passagem de Morts sans sépulture, onde a

personagem Lucie, após identificar “vida” e futuro (“notre vie, notre avenir”), afirma:

“je n’ai plus d’avenir, je n’attends plus que ma mort” (p.185). 12)O que não significa “fugir”, via “má-fé”, da angústia. (Sobre as relações entre

“fuga” da angústia e “projeto de má-fé”, ver Marcos Müller, “A má-fé e a teoria da

negação em Sartre”, in Manuscrito, vol.V, nº 2, 1982; cf. em particular a p.94.)

Dissemos no Capítulo 2 que é a preponderância do heroísmo que levará Sartre a

vislumbrar uma real superação da “angústia” existencial — isso se torna possível a

partir de uma dupla negação: “un pouvoir néantisant au sein de l’angoisse même” —

“ce pouvoir néantisant néantit l’angoisse”(EN, p.80). Essa dupla negação, apresentada

para caracterizar a má-fé, pode levar também à verdadeira superação da “angústia”. 13)Sabe-se que a alienação, como “fenômeno originário”, é constitutiva do Dasein e,

portanto, insuperável para Heidegger: “O não sentir-se em casa deve ser

compreendido, existencial e ontologicamente, como o fenômeno originário” (ST, vol.I,

p.254). 14)Cf. a Nota 33 do nosso Capítulo 2. 15)Ainda sobre essa identificação entre tempo e “changement”, cf. os Cahiers pour une

morale: “le changement, c’est-à-dire le temps” (p.223). Num de seus ensaios sobre

Mallarmé, Sartre escreve: “se changer en changeant le monde, c’est vivre” (Mallarmé

— La lucidité et sa face d’ombre, p.105).

O MITO DA RESISTÊNCIA

164

16)A esse respeito, cf. Ser e Tempo, em particular vol.I, p.264. 17)Em setembro de 1939, quando a Guerra é declarada, Simone de Beauvoir anota em

seu diário: “Tout est barré, souvenirs, avenir, perception même”; “l’avenir est tout

barré” (Journal de Guerre, pp.18 e 49). Tal idéia atravessará as páginas desse Journal

de Guerre da autora: “C’est terrible cet avenir barré” (p.83). Nesse sentido, cf. o que

diz uma personagem de Sartre em L’âge de raison: “Je ne peux pas imaginer mon

avenir. Il est barré” (Pléiade, p.451). 18)”Le Futur n’a pas d’être en tant que Futur”, lemos em EN (p.168). 19)A conjuntura da Ocupação da França também será descrita nos mesmos termos. No

artigo “Paris sous l’Occupation”, Sartre compara o Ocupante a “une pieuvre” — “elle

s’emparait de nos meilleurs hommes dans l’ombre et les faisait disparaître” (Sit.III,

p.21). E ainda: “Pendant quatre ans, on nous a volé notre avenir” (Sit.III, p.28). 20)Assim como o de Kafka, relido por Sartre — mas isso veremos melhor na Segunda

Parte deste trabalho. 21)Cf. a nota 32 do nosso Capítulo 1. 22)”Nous sentions notre destin nous échapper”, escreve o autor em seu balanço daquele

período (Sit.III, p.28). Não por acaso a expressão “les jeux sont faits” (título de Gide

antes de ser também de Sartre) se tornou tão recorrente na época. — “Les jeux sont

faits d’avance”, lemos em Bariona, p.583 (peça escrita por Sartre no campo de

prisioneiros, em dezembro de 1940, e que poderia ser lida como parábola da França

ocupada: “notre village agonise”, “notre village écrasé”, p.578-579). O que ressalta

ainda mais a importância especial dada ao romance americano naquele período — e

não se trata apenas de Faulkner. Nesse sentido, cf. o elogio feito por Sartre, em 1938,

a Dos Passos: “Dos Passos veut nous faire sentir que les jeux sont faits. (...) C’est cet

étouffement sans secours que Dos Passos a voulu exprimer. Dans la société capitaliste

les hommes n’ont pas de vies, ils n’ont que des destins” (Sit.I, p.18-19). Em La Peste

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

165

—outra parábola da França ocupada (nos termos da epígrafe de livro: “représenter

n’importe quelle chose qui existe réellement par quelque chose qui n’existe pas”)—,

encontramos a mesma ênfase na idéia de destino: “des avertissements de ce qu’il est

convenu d’appeler le destin” (Camus, La Peste, p.270). 23)”La tragédie est le miroir de la Fatalité”, observa Sartre em 1943, referindo-se a Les

Mouches (Les Ecrits de Sartre, p.88). 24) Por essa via, a que privilegia o passado, Sartre vai posteriormente aproximar

Faulkner e Baudelaire: “Baudelaire (...) se rapproche un peu d’un écrivain comme

Faulkner, qui s’est détourné pareillement de l’avenir et qui se fait aussi le contempteur

du présent au profit du passé” (Baudelaire, p.158). Em ambos, o passado seria a

dimensão preponderante da temporalidade — um “passéisme” cuja crítica será a

tônica do livro de Sartre sobre Baudelaire (assim como de seus ensaios sobre

Mallarmé, diga-se de passagem). Todavia, na conjuntura sombria que precede “La

longue nuit” (título de um documentário sobre a Ocupação da França), momento de

“mélancolie de série” em que “le temps suscitait (...) chez tous l’angoisse qui lui est

propre” (para usar as palavras com que Camus descreve aquela época, La Peste, pp.73

e 75), a reflexão sartriana sobre o tempo, como estamos procurando mostrar, julga ver

estampado em Faulkner o próprio perfil sombrio que a história então desenhava. Mais

tarde, quando a idéia de tempo como “salut” tomar forma em seu pensamento, Sartre

passará a considerar conservador todo tipo de “passéisme” (porque pretende anular o

Tempo). É assim que a idéia baudelairiana do tempo como “l’obscur Ennemi qui nous

ronge le coeur” (“O douleur! ô douleur! Le Temps mange la vie, et l’obscur Ennemi

qui nous ronge le coeur du sang que nous perdons croît et se fortifie!”, Les Fleurs du

mal, Pléiade, p.16) tornar-se-á particularmente suspeita aos olhos de nosso autor. (Os

equívocos da leitura sartriana de Baudelaire —renegada aliás pelo próprio Sartre mais

no final de sua vida— serão evidenciados na Segunda Parte deste trabalho.)

O MITO DA RESISTÊNCIA

166

25)Em EN, encontraremos uma generalização filosófica dessa idéia de “arrachement”

(na forma de “arrachement de consciences”, como vimos em nosso capítulo 2): “cet

arrachement est constitutif de l’être du pour-soi” (EN, p.345). 26)Já em seu “journal de guerre”, Sartre, utilizando a mesma imagem de “déchirement”

do ensaio sobre Faulkner, escreve: “La guerre (...) ronge patiemment les oeuvres de

l’homme et parfois, entre les choses à demi digérées, (...) un rapport neuf et maléfique

s’établit brusquement” (“La mort dans l’âme — journal de guerre”, Pléiade, p.1571). 27)Isso mesmo no sentido literal porque, como se sabe, os relógios franceses foram

então acertados conforme o horário alemão. 28)Já num ensaio de 1938 sobre Dos Passos, Sartre resume nos seguintes termos o que

ele considera o interesse maior do romance social americano: “Il s’agit de nous

montrer ce monde-ci, le nôtre. (...) Nous reconnaissons tout de suite l’abondance triste

de ces vies (...); ce sont les nôtres” (Sit.I, p.14-15). 29)Esse assunto será desenvolvido no Capítulo 1 da Segunda Parte do trabalho. 30) Ao enviar o artigo de 39 sobre Faulkner para J.Paulhan (então diretor da N.R.F.),

Sartre o faz acompanhar da seguinte observação: “L’article que je voulais vous

proposer était d’un tout autre genre. J’aurais voulu tirer au clair certaines idées sur la

guerre et la politique, puisque personne ne semble s’apercevoir que cette vaniteuse

période de redressement...” (carta inédita a J. Paulhan, datada “mardi 1939”). O que

estamos procurando mostrar: é exatamente esse “outro gênero” de reflexão, “sobre a

guerra e a política”, que já está de certa forma presente no artigo a respeito de

Faulkner. É a guerra —antecipada, aliás (conforme a datação do manuscrito, feita por

Michel Contat, a carta seria de “avant juin 39”)— que está realmente em questão no

artigo sobre o problema do tempo no romance americano. Ora, se antes mesmo de sua

eclosão a guerra já é o pano de fundo das reflexões de Sartre, vê-se logo que ela é

dada como inevitável — daí a idéia de “fatalidade” que perpassa o artigo sobre a

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

167

temporalidade em Faulkner. (Num outro ensaio escrito cerca de um ano antes, Sartre

já afirmava que em Faulkner “les histoires (...) font la poésie du présent et sa fatalité”,

“Sartoris par W. Faulkner”, Sit.I, p.10.) É uma determinada “experiência vivida” da

temporalidade que, a nosso ver, está na base das análises sartrianas sobre o problema

do tempo. Mas não se trata, como veremos melhor mais adiante, de mera descrição

dessa experiência vivida e sim de recriação, “projeção” filosófica (daí sua

“autonomia” e sua significação objetiva). 31)São inúmeros os relatos que descrevem a impressão que as transformações sociais

em curso produziam nos homens da época. A respeito do estado de espírito dominante

naquele período, é interessante lembrar esta passagem de Julien Gracq: “Pour la

dernière fois peut-être en 1914 les hommes étaient partis avec l’idée de rentrer pour

les vendanges: en 1939 (...) ils savaient au fond d’eux-mêmes qu’ils ne reverraient

qu’une terre où serait passé le feu” (Un Balcon en forêt, p.110). “L’armistice (...) est

un deuil attendu”, afirma um historiador do período (De la chute à la libération de

Paris, p.39). Após o armistício, como indicam os documentos da época, “a convicção

de que a Europa seria alemã” tornou-se um sentimento quase hegemônico entre os

contemporâneos. — “Aucun sacrifice, jamais, nulle part, n’est susceptible de ralentir

l’avance allemande”, escreve Saint-Exupéry em meio aos últimos combates antes da

capitulação da França (Pilote de Guerre, p.83). “C’est le coeur serré que je vous dis

qu’il faut cesser le combat” — ordenou Pétain dia 17 de junho. Não havendo mais

nada a fazer,”chacun est rentré chez soi”, constata Jean Cassou ao evocar o estado de

“resignação” reinante em 40. Em agosto de 40, Sartre anota em seu “journal de

guerre”: “Il y a un vide énorme. (...) Nous avons été pris d’un immense dégoût pour

cette guerre ratée” (La mort dans l’âme, Pléiade, p.1583). Mais tarde, nosso autor

escreve: “Paris était mort. (...) Il semblait que nous fussions les oubliés d’un immense

exode” (Sit.III,p.24-25). Recorde-se também certas passagens do diário de A. Gide:

O MITO DA RESISTÊNCIA

168

“La lecture des journaux me consterne. La guerre incline tous les esprits.(...) Tout

m’invite au franc silence” (Journal, 1939-1949 , Pléiade, p.12); “Les consternantes

nouvelles. Consternantes, mais non surprenantes, hélas! (...) Les événements sont trop

graves(...).Moins attristé par eux que par l’état d’esprit que révèlent les

commmentaires” (Idem, p.21); “Les routes sont encombrées de familles errantes qui

fuient au hasard et sans savoir où” (Idem, p.26); “La grande désolation du pays...”

(Idem, p.36). Essa situação do francês “humilié par la défaite”, como a define Sartre

(Sit.II, p.122), é comumente descrita nos relatos de época nos seguintes termos: “une

population qui préfère contourner l’événement plutôt que l’affronter” (cf. De la chute

è la libération de Paris, p.7)—um estado, portanto, de “resignação”, conforme afirma

também Aron em suas Chroniques de guerre (p.34), ou de “asservissement réel” (se

quisermos utilizar uma idéia recorrente em EN). Nesse sentido, ver ainda La Peste, de

Camus:“Nos concitoyens(...)semblaient dans les rues plus abattus et plus

silencieux”(p.62).E mais adiante: “L’effondrement de leur courage, de leur volonté(...)

était si brusque qu’il leur semblait qu’ils ne pourraient plus jamais remonter de ce

trou. Ils s’astreignaient(...)à toujours garder, pour ainsi dire, les yeux baissés. (...)

Ainsi, chacun dut accepter de vivre au jour le jour, et seul en face du ciel” (La Peste,

pp.72 e 74)—“la nuit était dans tous les coeurs”(Idem,p.159). Àquela época,

acrescenta Camus, reinava entre “nos concitoyens” “une sorte de consentement

provisoire”: “ils étaient adaptés, comme on dit, parce qu’il n’avait pas moyen de faire

autrement(...). Ils ne choisissaient plus rien. La peste avait supprimé les jugements de

valeur.(...)On acceptait tout en bloc.(...)C’était la même résignation et la même

longanimité,à la fois illimitée et sans illusions”(La Peste, pp.167,169 e 170). Recorde-

se também o que diz Saint-Exupéry ao se preparar para uma missão, pouco antes da

capitulação:“Je m’habille pour le service d’un dieu mort” (Pilote de guerre, p.26). É

ainda nas páginas de Pilote de guerre que lemos:“La France est défaite” (p.124);

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

169

“Nous avons vu flamber la France”(p.177); “Certes nous sommes déjà vaincus. Tout

est en suspens. Tout s’écroule.(...)Mais nous nous sentons responsables”(Pilote de

Guerre, p.184). 32)Nos Cahiers pour une morale, o autor afirma que “un processus historique qui se

défait (...) imite le déterminisme naturel” (p.65). (Veremos mais adiante que, para

Sartre, a história é “imitation de la nature” em períodos de refluxo revolucionário e

“anti-nature” quando seu movimento resiste à ordem, quando é revolução

permanente.) É possível que Sartre tenha em mente aqui uma outra “catástrofe”

francesa, 1848, tal como a descreve Flaubert (malgrado as críticas de nosso autor a

L’Education sentimentale — relida, aliás, durante a “drôle de guerre”: “Je lisais

pendant les rares moments de répit L’Education sentimentale de Flaubert”, Les

Carnets de la Drôle de Guerre, p.129). “La coupure de 48”, para usar os termos de

L’Idiot de la famille (vol.III, p.420), é um ponto de referência decisivo no pensamento

sartriano (mesmo do jovem Sartre — basta lembrar os Carnets de la Drôle de Guerre).

Retomaremos o assunto no último capítulo deste trabalho. 33)Reencontramos nos exemplos usados em EN essa mesma aproximação entre

catástrofes naturais e a experiência da guerra — mas a diferença fundamental é que

aqui acaba prevalecendo a resposta voluntarista do sujeito heróico sartriano, ou seja, o

fatalismo é convertido em ato livre de um sujeito, a quem é justamente atribuída a

responsabilidade por esse ato: “En un sens, certes, l’homme est le seul être par qui une

destruction peut être accomplie. Un plissement géologique, un orage ne détruisent pas

— ou, du moins, ils ne détruisent pas directement: ils modifient simplement la

répartition des masses d’êtres. Il n’y a pas moins après l’orage qu’avant. Il y a autre

chose. Et même cette expression est impropre car, pour poser l’altérité, il faut un

témoin qui puisse retenir le passé en quelque manière et le comparer au présent sous la

forme du ‘ne-plus’. En l’absence de ce témoin, il y a de l’être, avant comme après

O MITO DA RESISTÊNCIA

170

l’orage: c’est tout. Et si le cyclone peut amener la mort de certains êtres vivants, cette

mort ne sera destruction que si elle est vécue comme telle. (...) Et le sens premier et le

but de la guerre sont contenus dans la moindre édification de l’homme. Il faut donc

bien reconnaître que la destruction est chose essentiellement humaine et que c’est

l’homme qui détruit ses villes par l’intermédiaire des séismes ou directement, qui

détruit ses bateaux par l’intermédiaire des cyclones ou directement. (...) En outre la

destruction, bien qu’arrivant à l’être par l’homme, est un fait objectif et non une

pensée” (EN, p.42-43, grifos do autor). 34)São idênticas as palavras com as quais Camus se refere aos homens daquela época:

“Sans mémoire et sans espoir, ils s’installaient dans le présent.(...) Il n’y avait plus

pour nous que des instants” (La Peste, p.168). Ainda sobre essa perda da memória

histórica (resultado de uma experiência que foi vivida como uma volatilização da

própria história) durante o período de reação política que caracteriza a França da

Ocupação, cf. também o balanço posterior de Sartre: “A chaque instant nous sentions

qu’un lien avec le passé s’était cassé. Les traditions étaient rompues, ses habitudes

aussi.(...) Paris était mort” (“Paris sous l’Occupation”, Sit.III, p.24). E Sartre

acrescenta: “En dépit de nos efforts les souvenirs pâlissaient chaque jour davantage.

(...) Pareillement s’effaçaient (...) le souvenir de certaines journées rayonnantes, d’un

14 juillet à la Bastille, (...) de la grandeur de la France” (Idem, p.38-39). (Veremos

mais adiante em que medida a idéia de Revolução como iluminação —”journées

rayonnantes”—, se delineia no pensamento sartriano como superação da “noite” da

Ocupação.) 35)”La guerre en 38 pouvait être l’occasion d’une révolution. En 40 elle est l’occasion

d’une contre-révolution. La guerre de 38 eût été une guerre ‘de gauche’ — celle de 39

est une guerre ‘de droite’“, escreve Sartre nos Carnets de la Drôle de Guerre (p.376).

O que explica esta já mencionada afirmação feita no ensaio de 1939 sobre Faulkner:

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

171

“Nous vivons au temps des révolutions impossibles” (Sit.I, p.74). Veremos que o

desenrolar dos acontecimentos levará Sartre (assim como seus contemporâneos) a

inverter esse diagnóstico — a idéia de uma “guerre de gauche” voltará a se impor,

permitindo assim, mais no final do guerra, a propagação da palavra de ordem “De la

Résistance à la Révolution”. 36)Nesse sentido, ver o testemunho de contemporâneos: “En juin 40 notre avenir était

derrière nous, dans la défaite. Il n’y avait pas d’avenir” (“La France à coup d’épée”,

Ollivier Guichard, Documentário). Essa “esterilização”, ou “paralisação”, do tempo é

também tema de Camus, em La Peste: “A cette époque le temps parut se fixer” (p.62).

E acrescenta: “nos concitoyens (...) flottaient plutôt qu’ils ne vivaient, abandonnés à

des jours sans direction et à des souvenirs stériles, ombres errantes qui n’auraient pu

prendre force qu’en acceptant de s’enraciner dans la terre de leur douleur. Ils

éprouvaient ainsi la souffrance profonde de tous les prisonniers et de tous les exilés,

qui est de vivre avec une mémoire qui ne sert à rien. Ce passé même auquel ils

réfléchissaient sans cesse n’avait que le goût du regret.(...) Impatients de leur présent,

ennemis de leur passé et privés d’avenir, nous ressemblions bien ainsi à ceux que la

justice ou la haine humaines font vivre derrière des barreaux” (La Peste, p.72-73).

(Camus retoma aqui um tema de Malraux: “Ô prison, lieu où s’arrête le temps — qui

continue ailleurs...”, La Condition Humaine, p.734-735.) Ainda Camus: “Notre ville

entière vivait sans avenir” (La Peste, p.233). Saint-Exupéry, por sua vez, referindo-se

ao exército francês de 1940, escreve: “Nous avons fondu comme une cire” (Pilote de

Guerre, p.8). Daí a idéia de “absurdo”: “Mais il est une impression qui domine toutes

les autres au cours de cette fin de guerre. C’est celle de l’absurde. Tout craque autour

de nous. Tout s’éboule. C’est si total que la mort elle-même paraît absurde. Elle

manque de sérieux, la mort, dans cette pagaille...” (Pilote de Guerre, p.8). Esse

“absurdo” decorre justamente da idéia de paralisia do tempo, “quebra” do mecanismo

O MITO DA RESISTÊNCIA

172

regulador da temporalidade: “Tout à coup une absurde image me vient. Celle des

horloges en panne. De toutes les horloges en panne. Horloges des églises de village.

Horloges des gares. Pendules de cheminée des maisons vides. Et, dans cette devanture

d’horloger enfui, cet ossuaire de pendules mortes. La guerre... on ne remonte plus les

pendules” (Pilote de Guerre, p.10). Uma análise comparativa dessas obras literárias

poderia mostrar que o “absurdo” de que falam Camus e Saint-Exupéry, assim como o

“absurdo” que caracteriza a “existence de champignon” descrita na Nausée —aquela

própria do “existant qui tombe d’un présent à l’autre, sans passé, sans avenir” (La

Nausée, Pléiade, pp.204 e 207)—, advém com efeito do que se considera uma ruptura

do curso do tempo (um problema de EN, como veremos). Desta perspectiva, torna-se

possível ler a “Nausée” como um resultado da “brisure” da temporalidade — o

romance descreveria assim um estado de reação política, ou de refluxo revolucionário,

e anteciparia “les années terribles” da Ocupação. (“L’oeuvre, désengagée en

apparence et terminée avant le Front populaire et le début de la guerre d’Espagne, ne

faisait pratiquement aucune place aux événements politiques de l’époque; Sartre avait

pourtant été frappé par la montée du fascisme en Europe et il avait personnellement

assisté au triomphe du nazisme en Allemagne”, observam M. Contat e M. Rybalka

sobre La Nausée, Les Ecrits de Sartre, p.62.) A idéia de uma “existence de

champignon” presente na Nausée antecipa um estado de coisas real: “Comme les

champignons(...) nous vivons à fleur de terre. Et lorsqu’un camp meurt (...) il pourrit

et sèche à la surface du sol et se transforme en poussière anonyme sous le soleil”,

escreve Sartre em seu diário de guerra (La mort dans l’âme, Pléiade, p.1581-1582).

Paralisia do tempo e época de reação política, eis o binômio que poderia definir a

Nausée. — “L’ennui, c’est l’ordre social”, afirma Sartre no início de 1938 (“Sartoris

par W. Faulkner”, Sit.I, p.9). Não por acaso, o personagem central do romance é um

historiador — tentativa de recuperar, por meio da forma narrativa (o trabalho do bom

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

173

historiador se confunde aqui com o do romancista, mas voltaremos ao assunto no final

do trabalho), uma temporalidade cujo fio central se rompeu, impondo-se assim a tarefa

de costurar essa temporalidade “briséé”, “en miettes”: “Mon passé n’est plus qu’un

trou énorme”; “tout ce qui n’était pas présent n’existait pas” (La Nausée, pp.77 e 114).

Busca do tempo histórico que se afasta do horizonte do presente (veremos mais

adiante que no pensamento sartriano o tempo histórico é identificado à temporalidade

revolucionária): “tenter d’attraper le temps par la queue” (La Nausée, p.50). A

“nausée”, se nossa leitura tem cabimento, é própria de um tempo fragmentado, do

“absurdo” de um “tempo de homens partidos”, “tempo de gente cortada” (tomando

emprestada a maneira como Carlos Drummond de Andrade se refere àquela época da

guerra, Obra Completa, p.144). A “existence de champignon” é justamente a

existência aquém do tempo (o “existant qui tombe d’un présent à l’autre, sans passé,

sans avenir”): “brusquement on sent que le temps s’écoule, que chaque instant conduit

à un autre instant, celui-ci à un autre et ainsi de suite; que chaque instant s’anéantit,

que ce n’est pas la peine d’essayer de le retenir” (La Nausée, Pléiade, p.69). Recorde-

se também as palavras de Roquentin quando da “revelação” da existência: “Le temps

s’était arrêté: une petite mare noire à mes pieds; il était impossible que quelque chose

vînt après ce moment-là” (p.156; grifo do autor). (Num ensaio de 1939, “Visages”,

Sartre escreve: “Je suis seul dans une pièce close, noyé dans le présent. Mon avenir est

invisible”, Les Ecrits de Sartre, p.562.) Há na Nausée uma contraposição (à qual

voltaremos mais tarde) entre o tempo da vida rotineira (tempo disperso, tedioso,

quando não há nada para contar) e o tempo da forma narrativa: “L’aventure est finie,

le temps reprend sa mollesse quotidienne” (p.47). Ou então: “J’ai voulu que les

moments de ma vie se suivent et s’ordonnent comme ceux d’une vie qu’on se

rappelle” (p.50). Poder-se-ia dizer que a “Nausée” advém justamente da

impossibilidade (pelo menos naquela conjuntura determinada) de realizar esse desejo

O MITO DA RESISTÊNCIA

174

— “Je n’ai voulu qu’être libre”, afirma ainda Roquentin (La Nausée, p.79). (Em sua

obra literária, observa Alain Renaut, Sartre descreve “pour l’essence des personnages

qui ont manqué leur liberté”, Sartre, le dernier philosophe, p.205.) Numa época em

que a luz da liberdade começa a bruxulear no horizonte, a temporalidade também se

volatiliza, torna-se “ilusão” (relembremos que para Sartre “une temporalité qui n’est

pas fondée sur la liberté n’est plus qu’une illusion”, Cahiers pour une morale, p.64).

Sobretudo para quem considera que “un homme, c’est toujours un conteur d’histoires

(...); et il cherche à vivre sa vie comme s’il la racontait” (La Nausée, p.48), quando a

fragmentação da vida cotidiana rompe a trama do tempo da narração (o que remete ao

problema da Narração no período crítico de entre-guerras), condenando a “tomber”

“d’un présent à l’autre, sans passé, sans avenir”, ou seja, condenando à repetição do

mesmo, quando se vive numa época em que “il faut choisir: vivre ou raconter” (La

Nausée, p.48), a existência não pode se tornar senão “existence de champignon”,

“Melancolia” (primeiro título da Nausée, inspirado na gravura de Dürer), numa

palavra, “Nausée”. Sobre a antecipação da experiência da guerra na Nausée, é

interessante o depoimento de Simone de Beauvoir: “Ainsi, nos aînés nous

interdisaient-ils d’envisager qu’une guerre fût seulement possible. Sartre avait trop

d’imagination, et trop encline à l’horreur, pour respecter tout à fait cette consigne; des

visions le traversaient dont certaines ont marqué La Nausée: des villes en émeute, tous

les rideaux de fer tirés, du sang aux carrefours et sur la mayonnaise des charcuteries”

(La force de l’âge, p.171). 37)O mundo em que o Existencialismo emerge, escreve Marcuse, é “un monde dans

lequel il n’y a ni espérance ni signification ni progrès ni lendemain”

(“L’Existentialisme”, Culture et Société, p.216). 38)Uma idéia análoga encontra-se nas Aventures de la Dialectique, onde Merleau-

Ponty relaciona a idéia de “não poder fazer seu destino” à “morte eterna” (p.24).

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

175

39)E nisto Sartre se distancia de Heidegger para quem “transformação e permanência

pertencem, de modo igualmente originário, à essência do tempo” (Ser e Tempo, vol.I,

p.270). Sobre as relações entre história, repetição e destino em Ser e Tempo, cf. em

particular o vol.II, p.202. Notemos de passagem que o jovem Marcuse, à época em que

tentava vincular filosofias da existência e tradição hegeliano-marxista, procura

mostrar que em Heidegger a idéia de “repetição” não é mera repetição: “ela não

consiste só em ressurreição, retorno da perecida existência passada, e sim em algo

novo, uma ‘réplica’ às possibilidades passadas” (Materialismo Histórico e Existência,

p.72). 40)Mais tarde, na Conferência de Araraquara, Sartre, polemizando com Lévi-Strauss,

define as “sociedades sem história” nos seguintes termos: “são sociedades (...) nas

quais as formas de mediação são tais que os conflitos na base não explodem ou o

esmagamento é de tal modo que algo aí não nasce. Não existe aquela malha que se vai

tecendo e que é a história” (p.57). 41)Em EN, Sartre procura mostrar que o pensamento analítico é regido pelo “princípio

de identidade” (cf. particularmente as pp.32-33). 42)O contraponto sartriano dessa forma abstração-repetição-pensamento analítico é o

“concreto histórico” cujo movimento “dialético” tem o proletariado como base. Já nos

Cahiers pour une morale (cf. em especial as pp.173-174), o pensamento

revolucionário (que pressupõe a negação do existente) aparece como sucedâneo do

“pensamento abstrato burguês” (que é “pura positividade”). 43)Sobretudo Faulkner e Kafka (a assimilação sartriana de Kafka, que é uma das

figuras de EN, será abordada na Segunda Parte deste trabalho). A característica do

presente em Faulkner, conforme Jameson procurou mostrar, “is a repetition, an

enfoncement, a succession like the ticking of a clock, in which events move into the

past, growing tinier and tinier in the distance like objects receding” — “Faulkner’s

O MITO DA RESISTÊNCIA

176

world (...) is a world without a future” (“The Selves in the Texts”, p.98-99). Sartre,

comentando Faulkner, contrapõe “tempo real” e tempo cronológico. E cita o próprio

Faulkner: “Le temps reste mort tant qu’il est rongé par le tic-tac des petites roues. Il

n’y a que lorsque le pendule s’arrête que le temps se remet à vivre” (Sit.I, p.66).

Quanto à “paralisação” do tempo na obra kafkiana, lembremos a bela análise de G.

Anders: “Para ele [Kafka] e para as pessoas do seu mundo, a vida é tão enroscada que

não anda (...). Essa paralisação do tempo distingue-se fundamentalmente da que

encontramos na poesia classicista. (...) Nos classicistas, a neutralização do tempo (na

forma da eternização) é intenção, enquanto que, para Kafka, a eternidade do momento,

o tétano do não-ir-adiante, é maldição” (G. Anders, Kafka: pró e contra, p.58). Sobre

o tipo de frase, própria de Kafka, que não “avança”, G. Anders afirma: “...o não-

avançar é o seu conteúdo” (p.59). E acrescenta: “O terror paralisa (para o aterrorizado)

o tempo” (p.62). No mesmo sentido, Adorno escreve que “l’épopée expressionniste”

de Kafka “obéit à la loi d’une répétition atemporelle. L’absence d’histoire dans

l’oeuvre de Kafka est en grande partie due à cette loi” (“Réflexions sur Kafka”,

p.235). Essa “paralisação do tempo” que, como indicam G. Anders e Adorno, é

resultado da forma peculiar de Kafka (expressão de um estado de coisas muito mais

amplo, pois diz respeito a problemas do curso do mundo moderno), em Sartre é mera

“estilização” conjuntural. 44)A análise sartriana parte aqui da “distinction de Hegel entre Nature et Esprit”

(Cahiers pour une morale, p.53). Ver nesse sentido o que escreve Lukács em História

e Consciência de Classe: “Diferentemente da natureza, na qual, sublinha Hegel, ‘a

transformação é um círculo, a repetição do igual’, na história a transformação não

procede só na superfície, mas no conceito” (p.21). 45)O que pressupõe a contraposição (outra herança dos ensinamentos de Kojève sobre

Hegel) entre natureza (domínio da necessidade) e história (domínio da liberdade). É

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

177

essa contraposição que levará Sartre, mais tarde, a recusar a dialética da natureza —

uma recusa já presente em Kojève (cf. Descombes: “D’où l’enseignement de Kojève:

l’histoire est dialectique, la nature ne l’est pas”, Le Même et L’Autre, p.47). Cf. nesse

sentido Hyppolite para quem, na Fenomenologia do Espírito, “la liberté suppose la

libération à l’égard de l’être-là naturel dans sa totalité” (La Phénoménologie de

l’Esprit, vol.I, p.166, nota 35). Em Pour une morale de l’ambiguïté (uma “moral”

calcada em EN), Simone de Beauvoir escreve: “se vouloir libre, c’est effectuer le

passage de la nature à la moralité en fondant sur le jaillissement originel de notre

existence une liberté authentique” (p.35) — isso significa “le triomphe de la liberté

sur la facticité” (p.64). 46) A crítica de Sartre ao conservadorismo político se sustenta justamente na recusa

teórica da idéia de repetição (que leva à naturalização da história, como vimos): “Il y a

des gens qui sont attirés par la permanence de la pierre .(...) Ils ne veulent pas

changer: où donc le changement les mènerait-il?” (Question Juive, p.21). É próprio

daqueles que “sont attirés par la permanence de la pierre” o medo do novo: “on ne

cherche jamais que ce qu’on a déjà trouvé”, “on ne devient jamais que ce que déjà, on

était” (Question Juive, p.21). O caráter conservador do antisemita é assim identificado

ao desejo de permanência — uma imutabilidade própria do reino da natureza: “il

choisit la permanence et l’impénétrabilité de la pierre” (p.63). Em “Paris sous

l’Occupation”, Sartre descreve a vida do francês durante a Ocupação como um

processo de “déshumanisation”, isto é, passagem da história humana à natureza —

“pétrification de l’homme” (Sit.III, p.29). Recorde-se ainda a crítica do autor, em

“Qu’est-ce que la littérature?”, ao “homme classique” do século XVII: “comme la

société où il vit confond le présent avec l’éternel, il ne peut même imaginer le plus

léger changement dans ce qu’il nomme la nature humaine; il conçoit l’histoire comme

une série d’accidents qui affectent l’homme éternel en surface sans le modifier

O MITO DA RESISTÊNCIA

178

profondément et s’il devait assigner un sens à la durée historique il y verrait à la fois

une éternelle répétition(...) et un processus de légère involution, puisque les

événements capitaux de l’histoire sont passés” (Sit.II, p.139). Na Questão de Método,

Sartre acusa o “mecanicismo” (ou o “determinismo cientificista”) de “reduzir a

mudança à identidade” (Critique de la raison dialectique, nova edição, p.114). Ainda

nesse ensaio, o autor chega mesmo a “definir o homem” pela possibilidade de romper

com o círculo natural da repetição: “Não se deveria definir o homem pela

historicidade —pois há sociedades sem história—, mas pela possibilidade permanente

de viver historicamente as rupturas que subvertem, às vezes, as sociedades de

repetição” (p.191). Já nos Ecrits de Jeunesse, onde o “ser” é identificado à

transformação, encontramos esse privilégio da mudança em detrimento da duração:

“précisément parce qu’elles durent, elles ne sont pas” (p.448). Ainda sobre a

contraposição entre história e natureza, lemos em “Matérialisme et Révolution” que

“la notion d’histoire naturelle est absurde” (Sit.III, p.148). E em Les Mouches: “La

nature a horreur de l’homme” (p.237). Nessa peça, a natureza é apresentada como

aquilo que dura na ordem do universo: “Vois ces planètes qui roulent en ordre, sans

jamais se heurter” (Les Mouches, p.233) — esse movimento natural, eterno,

harmonioso, cíclico e não-violento é regido pela lei da repetição (à qual se contrapõe a

Revolução, como veremos). 47)Nunca é demais lembrar que a paralisia da Ação significa, na ótica kojeviana,

“l’anéantissement” do sujeito livre. 48)Objetivo que Sartre atribui a Hegel: “Toute la théorie de Hegel se fonde sur l’idée

qu’il faut une démarche philosophique pour retrouver (...) l’abstrait à partir du concret

qui le fonde” (EN, p.48). 49)Ainda sobre essa contraposição entre duração do instante e tempo histórico, cf. o

ensaio de Sartre sobre Descartes: “...se retirer du temps même et se réfugier dans

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

179

l’éternité de l’instant” (“La Liberté Cartésienne”, Sit.I, p.301). Em Qu’est-ce que la

littérature?, criticando “o determinismo do romance naturalista”, Sartre afirma que “a

estrutura temporal” que convém particularmente a esse tipo de romance é o instante,

na medida em que o instante “est la négation du temps humain, ce temps (...) du

travail et de l’histoire” (Sit.II, p.173). Algumas páginas depois, o autor acrescenta:

“l’instant, c’est-à-dire de la synthèse aberrante de l’éternité et du présent

infinitésimal” (Sit.II, p.236). Nesse sentido ver nos Cahiers pour une morale a idéia

de História como superação da “éternité de l’instant” (p.38). É justamente esse vínculo

entre o instante e o “eterno” —aquilo que está “en dehors de l’histoire”, como se lê

em Sit.II (p.225)— que permitirá a Sartre, ao longo de sua crítica ao “quiétisme

surréaliste”, contrapor instante e tempo revolucionário (cf. Sit.II, p.221). 50)Cf. o próprio Malraux: “La chose capitale de la mort, c’est qu’elle rend

irrémédiable ce qui l’a précédée, irrémédiable à jamais (...). La tragédie de la mort est

en ceci qu’elle transforme la vie en destin” (L’Espoir, p.218). 51)Cf. nos Cahiers pour une morale a generalização filosófica dessa idéia: “fatalité ou

destin” — “briser perpétuellement ce destin” (p.129). Ser livre, afirma Sartre na

“Présentation des Temps Modernes”, é “choisir d’un même mouvement son destin, le

destin de tous les hommes et la valeur qu’il faut attribuer à l’humanité” (Sit.II, p.27-

28). Esse ativismo, como temos salientado, vem de Malraux, não obstante as críticas

que Sartre endereça à sua idéia de destino. (O problema, todavia, não pode ser

colocado em termos de simples “influência”, e sim nos termos que o próprio Sartre

formulou: “Je n’ai jamais été influencé par lui (...). Mais je sens tout aussi fort

combien je fais époque avec Malraux”, Les Carnets de la drôle de guerre, p.429-430.)

Nesse sentido, cf. em Malraux a idéia de escapar ao destino por um ato de vontade

heróica: “Mais il y aura encore des êtres humains qui accepteront de perdre leur vie

pour l’idée qu’ils se font de ce que peuvent être les hommes. (...) Disons si vous

O MITO DA RESISTÊNCIA

180

voulez ce par quoi l’homme échappe au destin...” (Adaptação teatral de La Condition

Humaine, Pléiade, p.770). 52)Malgrado a referência explícita de EN a Hegel, acreditamos que o verdadeiro

modelo desse mecanismo sartriano de conversão do negativo em positivo se encontra

num voluntarismo que evidentemente não tem nada a ver com o pensamento

hegeliano. De um lado, EN está a nosso ver reativando uma certa historiografia sobre

a Revolução Francesa. Limitemo-nos por ora a lembrar esta passagem em que

Michelet, transformando o negativo em positivo, extrai da morte a redenção: “Et c’est

justement à ce point où elle [la France] senti sur elle la main de la mort, que, par une

violente et terrible contraction, elle suscita d’elle-même une puissance inattendue, fit

sortir de soi une flamme que le monde n’avait vue jamais, devint comme un volcan de

vie” (Histoire de la Révolution Française, vol.1, Pléiade, p.1021). Mas a fonte mais

próxima da conversão heróica da perda em ganho, constitutiva de EN, é literária: a

literatura voluntarista de “situações extremas”, mais uma vez. Nesse sentido, cf. Saint-

Exupéry: “Ainsi je ne me désolidariserai pas d’une défaite qui, souvent, m’humiliera.

Je suis de France. (...) Je comprends le sens de l’humilité. Elle n’est pas dénigrement

de soi. Elle est le principe même de l’action. Si, dans l’intention de m’absoudre,

j’excuse mes malheurs par la fatalité, je me soumets à la fatalité. Si je les excuse par

la trahison, je me soumets à la trahison. Mais si je prends la faute en charge, je

revendique mon pouvoir d’homme. Je puis agir sur ce dont je suis. Je suis part

constituante de la communauté des hommes” (Pilote de Guerre, pp.189 e192). Cf.

também Malraux: “Nous devons (...) transformer notre Apocalypse en armée, ou

crever” (L’Espoir, p.186). Mas para compreendermos por que Sartre incorpora

(inconscientemente, na maior parte dos casos) essa tradição de pensamento sobre

“situações extremas” (guerra e/ou revolução) será preciso entender todo o sentido do

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

181

“je fais époque avec Malraux”, a que nos referimos na nota anterior (tarefa da

Segunda Parte deste trabalho). 53)Em EN, o referencial dessa reflexão sobre o tempo ainda é literário: “C’est

essentiellement sur cette vertu séparatrice du temps que les romanciers et les poètes

ont insisté” (EN, p.169). 54)Na verdade, essa resposta afirmativa à questão sobre a irreversibilidade do tempo já

estava prefigurada na própria Nausée: “jamais je ne pouvais revenir en arrière, pas

plus qu’un disque ne peut tourner à rebours” (Pléiade, p.30). Mais tarde, em 1947,

nosso autor reitera: “L’Histoire ne revient pas en arrière” (“La crise du socialisme”,

programa radiofônico da série La Tribune des Temps Modernes). A esse respeito,

note-se ainda o que Sartre escreve em seu estudo sobre Mallarmé: “Mais ce serait

revenir en arrière. Ils savent bien, au fond de leur coeur, que le passé ne se

recommence pas” (Mallarmé—La lucidité et sa face d’ombre, p.17). (Nesse particular,

cf. a diferença com Merleau-Ponty: “Le temps se recommence: hier, aujourd’hui,

demain, ce rythme cyclique...”, Phénoménologie de la Perception, p.484.) Donde a

crítica —desenvolvida desde os Cahiers pour une morale— à idéia de eterno retorno

(“temps cyclique de l’éternel retour”, como se lê em L’Idiot de la Famille, vol. III,

p.696). Tal idéia, escreve Sartre, referindo-se sobretudo a Nietzsche (“Nietzsche et le

retour éternel”), pressupõe uma moral “qui n’est valable que dans les étroites limites

d’une classe heureuse (donc d’oppression)” (Cahiers pour une morale, p.108). Em vez

de curvar-se resignadamente a um estado de coisas opressivo, acrescenta o autor, é

preciso lutar contra “le Mal”, “comme si c’était une vipère que nous voulons

réellement écraser” (Idem, p.109). Trata-se pois de privilegiar as idéias de movimento

(versus “repouso” e “morte”) e de luta (versus aceitação do existente): “Nous avons à

imposer notre Bien à nos contemporains” (Idem, p.109-110; grifo do autor). Está

aberto o caminho para uma ética da ação revolucionária (da qual nos ocuparemos mais

O MITO DA RESISTÊNCIA

182

tarde). Acrescentemos de passagem que as referências de Sartre a Nietzsche são raras

e quase sempre críticas. Nos Carnets de la Drôle de Guerre, por exemplo, o autor

critica “l’absurdité de la “volonté de puissance” schopenhauerienne ou nietzschéenne”

(p.282). E em maio de 1964, por ocasião de um colóquio organizado em Roma pelo

Instituto Gramsci, Sartre inicia sua comunicação apresentando uma condição primeira

para tratar adequadamente do problema das relações entre “determinação e liberdade”:

“Commençons par éliminer les morales impératives — Kant, Nietzsche”

(“Détermination et Liberté”, in Les Écrits de Sartre, p.735; grifo do autor). 55)Em Les Mouches (peça escrita ao mesmo tempo que EN e definida por Sartre como

um apelo à Resistência — desenvolveremos o assunto mais tarde), o personagem

principal, Orestes, afirma, no momento em que “descobre” a liberdade, que até então

estivera condenado a viver fora do tempo dos homens e com “un voile sur mes yeux”

(Les Mouches, p.235). 56)Esse assunto será desenvolvido na Segunda Parte do trabalho. 57)Convém lembrar que se EN foi concebido durante a conjuntura sombria da “drôle

de guerre”, sua redação só se inicia no outono de 1941, portanto após o começo do

movimento de Resistência e da participação do próprio Sartre nesse movimento

(através do grupo “Socialisme et Liberté”, sobre o qual falaremos depois — malgrado

o malogro dessa experiência política, ela teve um papel decisivo na formação do

pensamento sartriano, conforme atesta o balanço posterior do autor). 58)Vale sublinhar a autocrítica de Sartre em 1947: “Mon premier film, Les Jeux sont

faits, ne sera pas existentialiste. (...) Tout au contraire l’existentialisme n’admet point

que les jeux soient jamais faits. (...) Mon scénario baigne dans le déterminisme” (Le

Figaro, 29/04/1947). — “Quand les jeux sont faits, rien ne va plus, l’homme

disparaît”, reitera nosso autor em 1950 (“Faux savants ou faux lièvres”, Sit.VI, p.68).

Daí a crítica a Baudelaire: “Pour lui, à vingt-cinq ans, les jeux sont faits: tout est

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

183

arrêté, il a couru sa chance et il a perdu pour toujours” (Baudelaire, p.151). Se à época

em que julgara que “les jeux sont faits” Sartre pudera incorporar a idéia de “destino”

de Malraux, particularmente sua idéia de que “la mort transforme la vie en destin” (é

em EN que se dá a virada do sentido dessa idéia, como vimos), mais tarde, lá pelos

idos de 1944, o autor, relativizando o caráter “determinista” dessa idéia, tenta ainda

salvar Malraux e até mesmo contrapô-lo a Baudelaire: “Baudelaire ne néglige rien

pour transformer à ses propres yeux sa vie en destin. Cela n’arrive, Malraux l’a bien

montré, qu’au moment de la mort” (Baudelaire, p.149). Contudo, em 1948, quando

Malraux já estava sendo violentamente atacado pela esquerda, Sartre, recusando agora

explicitamente a mesma idéia de que “la mort transforme la vie en destin”, afirma:

“Nous, écrivains réunis ici ce soir, ne croyons pas au destin” (La Gauche,

20/12/1948). 59)Sartre critica o que ele chama de “crença na fatalidade” em vários textos do pós-

guerra. Ver em particular “La guerre et la paix”, in Franchise (Cahiers de la France

retrouvée), novembro-dezembro de 1946. Essa crítica é também recorrente nas

“Emissions radiophoniques — La Tribune des Tempos Modernes”, a já mencionada

série de debates coordenados por Sartre em 1947 (com a participação de Merleau-

Ponty). 60)Esse heroísmo do sujeito sartriano (cujo ato livre “quebra” o destino, garantindo o

otimismo), é o mesmo que ainda sustenta a “Lettre-Préface” de Sartre ao livro de

François Fejtö sobre o massacre da insurreição húngara de 56 (La Tragédie

Hongroise): “Cette longue histoire qui, en 53, en 56, êut pu conduire le peuple

hongrois hors de la nuit et qui est retombée aujourd’hui dans le sang, dans la boue et

dans les ténèbres, (...) apparaîtra comme un destin terrible. Mais tout n’est pas vain,

tout ce sang versé ne sera pas perdu: on voit surgir des ruines un prolétariat nouveau,

plus dur, conscient de sa force (...) Ces hommes neufs (...) vont reprendre la lutte par

O MITO DA RESISTÊNCIA

184

d’autres moyens, sous d’autres formes; ils ne permettront pas que la ‘démocratisation’

s’arrête” (La Tragédie Hongroise, p.15). Nesse sentido, cf. também “Matérialisme et

Révolution”: “la classe ouvrière a entrepris (...) de se forger, dans la liberté et dans

l’angoisse, son propre destin” (Sit.III, p.215). Discutindo o tema do heroísmo em

Malraux, Merleau-Ponty apresenta o problema das relações entre vontade e fatalidade

na História nos seguintes termos: “Un marxiste comme Kyo, dans La Condition

humaine, rencontrait la question au coeur même du marxisme. Il y a, disait-il, dans le

marxisme, à la fois une volonté et une fatalité: quand donc faut-il suivre le cours des

choses et quand faut-il les forcer? (...) Mais les faits ne sont acquis que lorsque nous

avons renoncé à les changer: n’est-ce pas le moment d’apporter aux communistes une

aide décisive et de forcer la main à l’histoire? Aucune philosophie de l’histoire ne

supprime cette hésitation” (“Le Héros, l’Homme”, Sens et Non-Sens, p.327). Poder-se-

ia dizer que em Sartre esse problema da relação dialética entre “fatalité” (“le cours des

choses”) e “volonté”, ou objetividade e subjetividade, dissolve-se enquanto tal porque

o voluntarismo sartriano não aceita nenhuma “imposição” da História — e nisto nosso

autor está distante de Merleau-Ponty, que tende (via Weber) a privilegiar o caráter

astucioso (o “gênio maligno”) da História: “Jamais les hommes n’ont mieux vérifié

que le cours des choses est sinueux (...). Mais quelquefois, dans l’amour, dans

l’action, ils s’accordent entre eux et les événements répondent à leur volonté.

Quelquefois, il y a cet embrasement, cet éclair, ce moment de victoire, ou, comme dit

la Maria de Hemingway, cette gloria qui efface tout” (“Le Héros, l’Homme”, Sens et

Non-Sens, p.330). Esse “quelquefois” de Merleau-Ponty é determinação constante em

Sartre — nas análises sartrianas, como nota o próprio Merleau-Ponty, a ação

revolucionária é “cette entreprise héroïque” que “ne tolère aucune espèce de condition

ni de restriction” (Les aventures de la dialectique, p.150). Todavia, pode-se observar

no primeiro Merleau-Ponty traços de um certo voluntarismo (ainda que sempre muito

Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo

185

mitigado quando comparado ao de Sartre) — cf. por exemplo o último capítulo da

Phénoménologie de la Perception (sobre a liberdade) onde, refletindo sobre o

heroísmo, o autor escreve: “Rien ne me détermine du dehors” (p.520). 61)Retomaremos mais adiante esse problema das relações entre o espírito da

Resistência e a reativação da filosofia kojeviana da Ação. 62)Para Sartre, como veremos melhor na Segunda Parte deste trabalho, é justamente o

privilégio do futuro que caracteriza o ponto de vista do revolucionário. Esse problema

das relações entre tempo e revolução norteia por exemplo as análises de “Matérialisme

et Révolution”: “Le révolutionnaire se définit par le dépassement de la situation où il

est. (...) C’est donc à partir de ce dépassement vers l’avenir et du point de vue de

l’avenir qu’il la réalise” (Sit.III, p.179). Nessa medida, pensar a história na

perspectiva da Revolução significa pensá-la “du point de vue de l’avenir”.

Segunda Parte

Uma descoberta filosófica dos Tempos Modernos

“Alguém que não compreende o aspecto puramente musical de uma sinfonia de Beethoven, comprende-a tão pouco como alguém que nela não percebe o eco da Revolução Francesa” (Adorno, Teoria Estética).

Introdução

“Les vérités dites ‘éternelles’ apparaissent dans et par l’Histoire.” (Sartre, Cahiers pour une morale, p.96) “...mais vraiment vie et philo, ne font plus qu’un” (Sartre, Carta a Simone de Beauvoir, janeiro de 1940, Pléiade, p.1904).

“Conteúdo de experiência” e movimento especulativo dos conceitos: eis o

ponto aonde nos levou a exposição da estrutura filosófica de EN. Tal resultado nos

permite determinar o duplo sentido da alienação a que nos referíamos na Introdução à

Primeira Parte deste trabalho. Se, como indicou nossa análise do problema do Tempo

em Sartre, há uma experiência histórica real no interior do movimento especulativo

dos conceitos de EN (o “conteúdo” do Tempo que “cura” não é senão um “conteúdo

de experiência”), estamos agora em condições de decifrar o enigma dos caminhos da

Liberdade no livro.

Identificado o “conteúdo de verdade objetiva e social” sedimentado na forma

filosófica (ou filosófico-literária) de EN, torna-se possível ver finalmente delineada

uma figura de duas faces (onde se expõem traços de duas épocas que se entrecruzam):

O MITO DA RESISTÊNCIA

190

uma face sombria olha para o passado recente (e é iluminada pela luz já sem brilho de

uma estrela quase morta: a época do totalitarismo nazista); a outra olha para o futuro

— um futuro que, desenhando-se no coração daquele presente, é refletido pelo prisma

luminoso da liberdade heróica da Resistência. No traçado dessa figura pode-se

reconhecer o trabalho do próprio Tempo. Um trabalho refeito pelo movimento das

análises de EN, ao longo das quais o “passado” vai se distanciando até que a luz da

Liberdade termine por eclipsar a face sombria do livro. Nessa face sombria, alumiada

por luz frouxa, é possível vislumbrar, ao invés do manifesto inaugural de uma filosofia

“pessimista” (como pretendem os comentadores)1, o crepúsculo de uma época

dolorosa e sangrenta. Noutras palavras: é uma Idade histórica que deixa ver sua fadiga

na face pálida do livro — essa fadiga é o sintoma de uma nova época, dos Tempos

Modernos então em marcha. Deste ângulo, os opostos constitutivos de EN (que

permitiriam duas direções de leitura do livro) —Ser e Nada, impotência da

subjetividade e heroísmo da consciência, liberdade e não-liberdade (ou alienação),

“honte” e “orgueil”— poderiam ser lidos como a recriação filosófica de uma época ela

própria cindida em opostos conflitantes, tal como Sartre a evoca por exemplo num

artigo de 1945: “ces quatre années de combat, d’espoir et de désespoir, d’humiliation

et de fierté...” (“Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1917). Daí os “dois

impulsos narrativos”, sendo um o reverso do outro, que põem as análises do livro em

movimento: a “angústia” e a esperança (nascida de uma vontade heróica), o

pessimismo e o otimismo, “são duas faces da mesma consciência coletiva” (para

adaptar num outro registro uma idéia de F. Jameson).

Essa chave abre uma outra porta: as duas faces do livro (verso e reverso dos

dois impulsos narrativos contraditórios) expõem o segredo do duplo sentido da

alienação em suas análises. Por um lado, EN descreve (obliquamente e à revelia do

autor) um estado de “néantisation” real (leia-se: privação da liberdade e da ação).

Nada mais “realista”, naquele período sombrio da história da França, do que as

Introdução

191

descrições, que atravessam as páginas do livro, de um processo de desintegração do

sujeito e do mundo veremos que esse momento negativo da alienação (o Ser-fora-

de-si, exposto no Capítulo1 da Primeira Parte) é a forma filosófica de um estado de

coisas real (assunto do Capítulo 1 da Segunda Parte). Por outro lado, como não

estamos diante de uma mera descrição desse estado real de coisas, mas de um trabalho

de recriação filosófica, as análises do livro, distanciando-se (justamente por tratar-se

de um processo de recriação) do presente político, que todavia as sustenta, conseguem

antecipar sua superação (essa passagem do momento negativo ao momento positivo da

alienação, que resulta na produção da figura da Liberdade, é feita pela mediação da

Resistência, cujo “mito” está a nosso ver sendo elaborado no interior do livro — esse

o assunto do Capítulo 2). Em suma: o mesmo movimento que descreve um estado de

coisas, narra o processo de seu perecimento (indica a hora histórica e anuncia a hora

seguinte). Nesse sentido, é uma “gênese do presente”.

É a passagem de uma França que permanecia imutável na duração do instante,

aquém do tempo, dominada por forças cegas e irracionais (presa ao “destino”),

segundo as descrições de Sartre e outros contemporâneos, a uma França que

reencontra seu tempo histórico (porquanto já pode entrever um futuro), “quebra” o

destino e se “historializa” pela ação livre da Resistência (pois “la liberté étant choix

est changement”, EN, p.553) que vemos filosoficamente anunciada nas páginas de EN

(em particular na reflexão sobre a temporalidade). Concebido nos sombrios momentos

da Ocupação, EN vislumbra no entanto “L’Espoir” da Resistência — ao fazê-lo, toma

a dianteira desse movimento de luta pela liberdade, pondo em forma filosófica sua

palavra de ordem política (o que explica a recepção do livro junto a intelectuais da

Resistência). Daí os dois sentidos das análises do livro — mas um termina

prevalecendo sobre o outro, ou melhor, a heroicização da consciência, que caracteriza

a filosofia da ação em EN e garante seu otimismo (expressão do “programa heróico”

da Resistência), é Ersatz da impotência da subjetividade num momento de reação

O MITO DA RESISTÊNCIA

192

política (concebido como uma “paralisação” do Tempo histórico — o que poderia

levar ao pessimismo próprio de uma subjetividade impotente). Tudo se passa como se

do fundo de uma conjuntura histórica sombria as análises de EN tivessem conseguido

entrever, através das frestas daquele mundo que se quebrava, o delineamento da

fisionomia de uma nova época, os Tempos Modernos, cujo espírito puderam

surpreender (antecipando-se especulativamente): Liberdade.

Uma intromissão do mundo nos assuntos internos da filosofia? Mas no caso de

EN, como veremos melhor na Segunda Parte do trabalho, esses assuntos “internos”

encerram o mundo (ou um certo mundo).2 Mais do que isso, o processo real de uma

determinada vida social é, a nosso ver, a própria substância do conteúdo lógico da

filosofia que está sendo elaborada no livro. O que já nos permite evitar um mal-

entendido: a divisão entre as duas partes deste trabalho não significa, evidentemente, a

passagem do “pequeno mundo” do discurso filosófico ao “grande mundo” da história.

São as mesmas cartas que estão sendo redistribuídas: trata-se agora de explicitar a

forma singular com que o “pequeno mundo” do discurso filosófico de EN recria o

“grande mundo” da história. É o próprio material trabalhado que faz vir à tona seu

contexto histórico — sem essa “intromissão” do mundo nos assuntos “internos” da

filosofia, ficaria inacabado o traçado das principais figuras do livro (completado

justamente com exemplos extraídos da experiência histórica).3 Esquematizando: nessa

passagem da Primeira para a Segunda Parte do trabalho seria possível dizer, se

invertéssemos o sentido original do ensinamento de Émile Bréhier (“o essencial de

uma filosofia é uma certa estrutura”), que o essencial de EN é uma certa “estrutura”

que encerra, na sua particularidade, todo um mundo — o mundo da Guerra, da

Ocupação e da Resistência. Esse seu “verdadeiro conteúdo”. Se na Primeira Parte

vimos a armação do esqueleto filosófico de EN, agora veremos esse esqueleto ganhar

vida, animado por uma experiência histórica real: são os conflitos sociais e as lutas

Introdução

193

políticas de uma época de transformação histórica radical que põem em movimento a

engrenagem especulativa do livro.

Eis finalmente exposto o núcleo do problema a ser desenvolvido nesta Segunda

Parte: se nossa leitura procede, é um processo objetivo que se insinua no interior das

análises filosóficas de EN. Desta perspectiva, não seria exagerado pensar que a forma

filosófica do “ensaio de ontologia” de Sartre exprime a lógica profunda de sua

matéria-prima: a obra estaria reescrevendo, numa forma dramática, uma experiência

histórica igualmente dramática. Mais precisamente, EN poderia ser lido como uma

encenação filosófica da “modernidade” nascente (a novíssima “modernidade”) —

partindo do propósito de descrever as “estruturas essenciais do existente”, o autor

terminaria (involuntariamente) por reconstruir (na língua abstrusa da fenomenologia

alemã — virada pelo avesso e amalgamada ao Hegel de Kojève) o movimento da

época, erigindo-o em forma filosófica (expressão do Mito da Resistência). Uma

reconstrução mitológica de uma experiência política crucial? Sim, mas é mito e

verdade histórica ao mesmo tempo. Noutras palavras, é uma trama imaginária cujos

fios são reais (problema do Capítulo 3).4 — Resta destrinçar esses fios que amarram

indissoluvelmente a obra sartriana àquele mundo marcado por uma experiência

histórica dramática. Tentemos, pois, vislumbrar nos caminhos da Liberdade em EN os

rastros imprimidos pelo Tempo histórico.

O MITO DA RESISTÊNCIA

194

NOTAS - Introdução

1)Essa a leitura corrente de EN. A análise de Marcuse, por exemplo, é inteiramente

calcada na ênfase do aspecto “pessimista” do livro. A existência humana está

“condenada a um perpétuo fracasso” — eis a fórmula que, segundo Marcuse, poderia

resumir EN (“L’Existentialisme”, in Culture et Société, p.223). O “essencial” da

análise ontológica de Sartre estaria assim na idéia de que “o ser do homem é

determinado como fracasso” (Idem, p.223). Nessa perspectiva, o “Existencialismo”

(no sentido mais amplo, incluindo também Camus) representaria um momento em que

o pensamento está mergulhado na “noite do desespero” (Idem, p.216) — daí seu

“pessimismo radical”. Essa impossibilidade de escapar do “fracasso” é também

enfatizada por Jameson em seus comentários a respeito de EN — a idéia de um

“fracasso inevitável do ser” seria constitutiva do “ensaio de ontologia

fenomenológica” de Sartre (Marxismo e Forma, p.212). Lukács, por sua vez, critica o

“niilismo radical” de EN (Existencialismo e Marxismo?, pp.85 e 191). (Sem falar de

A. Boschetti que, como já observamos no Capítulo 2, chega a ver “quietismo” em

EN.) Aliás, é o próprio Sartre quem sublinha o aspecto “pessimista” de seu “ensaio de

ontologia”. Recorde-se por exemplo sua conversa com Benny Lévy: “Tu as affirmé

que l’action humaine projette une fin dans l’avenir, mais tu as aussi dit que ce

mouvement aboutissait à un échec. Tu nous as décrit, dans EN, une existence qui

projetait des fins en pure perte...” (L’Espoir Maintenant, p.22). Resposta de Sartre: “Je

parlais de désespoir(...). Le désespoir, c’était la croyance que mes fins fondamentales

ne pouvaient pas être atteintes et qu’en conséquence il y avait dans la réalité humaine

un ratage essentiel. (...) Ce qui était le plus important pour moi, c’était l’idée d’échec;

(...) l’idée que la vie d’un homme se manifeste comme un échec; ce qu’il a tenté, il ne

Introdução

195

le réussit pas. (...) Cela aboutit en somme à un pessimisme absolu” (pp.22, 23, 24 e

25). (Mas é no decorrer dessa mesma conversa que Sartre nos dá a pista por onde se

pode chegar ao “otimismo” filosófico de EN: “mais le désespoir n’était pas le

contraire de l’espoir”, p.22-23.) Inútil assinalar que é justamente essa idéia de

“pessimismo absoluto” que, tornando-se lugar-comum, passou a caracterizar o

“Existencialismo”. 2)Se assim for, EN terminaria sendo fiel ao “propósito essencial do escritor moderno”

tal como Sartre vai defini-lo mais tarde: “faire découvrir au lecteur l’être-dans-le-

monde d’un universel singulier” — ”c’est la présence de la totalité dans la partie”

(“Plaidoyer pour les intellectuels”, Sit.VIII, p.449-450). E mais: “L’oeuvre doit

répondre de l’époque entière” (Idem, p.453). 3)Só com essa “intromissão” torna-se possível desfazer a aparência de “imbroglio

quase indecifrável” de que fala por exemplo Marcos Müller, exprimindo uma opinião

corrente sobre EN: “tudo isso provoca um misto indissociável em que à evidência

enfeitiçada da descrição se soma um ‘imbroglio’ quase indecifrável de intenções

teóricas e procedimentos metódicos divergentes” (“A má-fé e a teoria da negação em

Sartre”, in Manuscrito, vol.V, nº 2, 1982, p.91). Ou a aparência de “prazer do

paradoxo” em EN: “Há, indiscutivelmente, um prazer do paradoxo em Sartre” (Idem,

p.100-101).

4) Aliás, foi o próprio Sartre quem procurou mostrar, em seu estudo sobre Flaubert, a

que ponto uma concepção mistificada pode, paradoxalmente, expor a realidade. Já em

“Qu’est-ce que la littérature?”, o autor apontara, na obra de Kafka, as relações entre

mito e verdade ou, nas suas palavras, “le degré de réalisme et de vérité de la

mythologie de Kafka” (Sit.II, p.95).

Capítulo 1

Uma moral em tempos sombrios

“Je suis engagé tout entier dans une époque dont le sens est qu’elle essaie lentement et péniblement de penser la guerre”. (Sartre, Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.137; grifo do autor) “Il est donc oiseux de se demander ce que j’aurais été si cette guerre n’avait pas éclaté, car je me suis choisi comme un des sens possibles de l’époque qui menait insensiblement à la guerre; je ne me distingue pas de cette époque même, je ne pourrais être transporté à une autre époque sans contradiction.” (EN, p.614) “Mais là où les uns voyaient l’abstraction, d’autres voyaient la vérité.” (Camus, La Peste, p.89)

“Ma morale (...) est sombre comme il se doit”: assim Sartre define, no

início da Guerra, em dezembro de 1939, o espírito da filosofia que está elaborando

(Lettres au Castor, vol.1, p.458). Deixando de lado a aparente obviedade contida no

tom desse “comme il se doit”, somos levados a perguntar pela natureza de tal

necessidade de uma moral sombria. Uma necessidade de ordem histórico-filosófica?

Uma moral sombria como convém a uma época sombria?

O MITO DA RESISTÊNCIA

198

Comecemos pelos termos que definem essa moral sombria em EN: “La

réalité-humaine est souffrante dans son être (...). Elle est donc par nature conscience

malheureuse, sans dépassement possible de l’état de malheur” (EN, p.129). Após o

(inevitável) “fracasso” de cada tentativa de superação desse “état de malheur”, a

consciência volta ao ponto de partida, sempre cindida entre os opostos que

caracterizam as relações intersubjetivas (amor e ódio, desejo e indiferença): “Après

l’échec de cette tentative, il ne reste plus au pour-soi qu’à rentrer dans le cercle et à se

laisser indéfiniment ballotter de l’une à l’autre des deux attitudes fondamentales” (EN,

p.463). Desta perspectiva, não há nenhuma “dialética”, apenas “círculo”, do qual a

consciência não consegue escapar: “Ces deux tentatives que je suis sont opposées.

Chacune d’elles est la mort de l’autre, c’est-à-dire que l’échec de l’une motive

l’adoption de l’autre. Ainsi n’y a-t-il pas dialectique de mes relations envers autrui,

mais cercle — encore que chaque tentative s’enrichisse de l’échec de l’autre” (EN,

p.412). (Daí a crítica ao “otimismo” hegeliano; cf. em particular as pp. 285, 288 e

289.1) A consciência parece pois condenada à eterna repetição desse círculo: “Ainsi ne

pouvons-nous jamais sortir du cercle” (EN, p.413). Donde a inutilidade do drama da

Condição Humana, resumida nesta já mencionada passagem célebre: “L’homme est

une passion inutile” (EN, p.678). Uma inutilidade que só faz evidenciar o caráter

“absurdo” da existência: “Il est absurde que nous soyons nés, il est absurde que nous

mourions” (EN, p.605).2

Esse “pessimismo radical” (para retomar uma expressão corrente na

caracterização de EN3) advém da idéia, exposta no Capítulo 1 de nossa Primeira Parte,

de desintegração do sujeito: “Nous courons vers nous-mêmes et nous sommes, de ce

fait, l’être qui ne peut pas se rejoindre. En un sens, la course est dépourvue de

signification, puisque le terme n’est jamais donné, mais inventé et projeté à mesure

que nous courons vers lui” (EN, p.244). Estamos portanto, como já o sabemos, diante

de uma consciência cujo ser está fora de si: “Je suis dehors” (EN, p.468); “je suis

Uma moral em tempos sombrios

199

toujours hors de moi, ailleurs” (EN, p.652). Sabemos também que essa idéia de que o

ser da consciência foi jogado no mundo das coisas (“se métamorphoser en chose”, EN,

p.672) é constitutiva de EN. Ora, se voltarmos ao “comme il se doit” do início,

poderíamos ser tentados (tanto mais quando se pensa na importância de Kafka em EN,

como logo se verá) a reconhecer nessa subjetividade “coisificada” um momento do

processo de decomposição do sujeito ao longo do curso do mundo moderno. — Essa a

via sugerida por F. Jameson (cujas análises, nesse particular, correm no mesmo trilho

das de Marcuse4) que, numa passagem rápida (e não desenvolvida), aproxima EN do

Marx dos Manuscritos (descrição do processo de alienação pelo qual “o homem

aprende que é um objeto”, “tem seu ser fora de si mesmo”): “A descrição corresponde

quase exatamente àquela de O Ser e o Nada” (Marxismo e Forma, p.230).

Descontando o evidente exagero do “quase exatamente” (pois em EN, como vimos, a

alienação é resultado das relações intersubjetivas, muito mais do que do trabalho no

modo capitalista de produção — o que muda tudo, ou quase, com relação a Marx),

concedamos que, com efeito, o momento negativo da alienação em EN retrata a

impotência da subjetividade em face da “força das coisas”. Mas o interessante é que a

“descoberta” (que logo será nuançada, por razões que reconstituiremos mais adiante)

dessa subjetividade impotente, destituída de soberania, é novíssima na filosofia

francesa contemporânea, isto é, tem a mesma idade de EN. Todavia, correríamos o

risco de deixar escapar o sentido e a função de tal “descoberta” se nos limitássemos a

diluí-la (caso de Jameson e de Marcuse, a nosso ver) no processo histórico do sujeito

moderno, deixando de lado a especificidade do problema de periodização na cultura

francesa contemporânea, ou melhor, se não levássemos em conta o colapso da cultura

burguesa numa França convulsionada pela radicalização dos conflitos políticos e

sociais — um colapso que, conforme mencionamos no Preâmbulo, resulta na ruptura,

expressa em EN, com o “idealismo oficial” da Terceira República5 e na “descoberta”

O MITO DA RESISTÊNCIA

200

da “modernidade” filosófica e literária (já nos ocupamos da primeira; precisaremos

agora os termos da segunda).

*

Fazendo um balanço do período de transformação histórica acelerada que

prepara a eclosão da Segunda Guerra, Sartre o caracteriza como um momento de

“dissolução” do indivíduo no todo social: “notre vie d’individu, qui avait paru

dépendre de nos efforts, de nos vertus et de nos fautes, (...), il nous semblait qu’elle

était gouvernée jusque dans ses plus petits détails par des forces obscures et

collectives et que ses circonstances les plus privées reflétaient l’état du monde entier”

(Sit. II, p.242). Daí a primeira lição da Guerra, essa hora da verdade: doravante,

afirma o autor, o indivíduo não pode mais ser apreendido separadamente — “il se

surprend en voie de généralisation et de dissolution dans le tout social” (“Prière

d’insérer” para L’Age de Raison e Le Sursis, reproduzido em Les Ecrits de Sartre, p.

113).6 A ênfase nesse processo de “dissolução” do indivíduo é recorrente nos relatos

dos contemporâneos de Sartre. A principal “revelação” da Guerra, observa por

exemplo Saint-Exupéry, é que o indivíduo não existe enquanto tal, isto é, isolado: “Il

n’est point d’individu seul” (Pilote de Guerre, p.210). Essa liquidação do indivíduo,

pulverizado pelo turbilhão avassalador do processo histórico em curso, terminou por

inviabilizar toda forma de “vida pessoal”, conforme lemos no diário de guerra de

Simone de Beauvoir: “On ne sent aucune vie personnelle” (Journal de Guerre, p.20);

“Je me sentais juste un fragment d’un grand événement collectif” (Idem, p.356).

Estamos por conseguinte em face de uma dupla “descoberta”: a do fim do indivíduo

isolado e a da “força das coisas” (“ils sont changés par la force des choses”, escreve

Saint-Exupéry sobre os homens da época, Pilote de guerre, p.119). Ou melhor: a

“descoberta” da impotência do indivíduo isolado é o outro aspecto da “descoberta” da

Uma moral em tempos sombrios

201

“incroyable puissance de l’histoire” (para usar a expressão com a qual Merleau-Ponty,

num ensaio de 1945, resume a grande “verdade” ensinada pela Guerra e pela

Ocupação, “La Guerre a eu lieu”, Sens et Non-Sens, p.267).

Foi preciso portanto esperar a “situação-limite” vivida às vésperas da

Guerra, mais precisamente a partir de 1938, para que toda uma geração de intelectuais

franceses perdesse, nas palavras de Sartre, as ilusões (“le voile d’illusion (...) s’était

déchiré”, “La fin de la guerre”, Sit. III, p. 65) numa “histoire individuelle bien

cloisonnée” (“avec les journées de septembre 1938, les cloisons s’effondrent”),7 isto é,

rompesse com o “bourgeoisme” da cultura francesa tradicional (daí o “nous voilà

délivrés (...) de la ‘vie intérieure’“ do famoso artigo de Sartre sobre Husserl, Sit.I,

p.32; cf. nosso Capítulo1, Parte I): “il fallu toute l’histoire sanglante de ce demi-siècle

pour nous en faire saisir la réalité [de la lutte de classes] et pour nous situer dans une

société déchirée” (Questions de Méthode, p.30). Já “à partir de 1930”, lemos em

“Qu’est-ce que la littérature?”, “la crise mondiale, l’avènement du nazisme, les

événements de Chine, la guerre d’Espagne, nous ouvrirent les yeux” (Sit. II, p. 242).8

Abertos os olhos, o que viram não foi bem o “calmo jardim”, ao abrigo de toda

violência, idealizado nos ensinamentos de seus velhos professores (“ce jardin si calme

où le jet d’eau bruissait depuis toujours et pour toujours”, nos termos com que

Merleau-Ponty ironiza aqueles ensinamentos, “La Guerre a eu lieu”, Sens et Non-Sens,

p.246),9 mas uma terra devastada pela tempestade da guerra (“une destruction par le

fer et par le feu menaçait tout”, Sit.II, p.243), um mundo em que o indivíduo

(inteiramente mediatizado) perdeu sua visibilidade e em que a consciência teve seu

próprio ser arrancado de sua tranqüila morada (onde os universitários franceses

sempre o colocaram), levado pela “força das coisas”. Dura descoberta portanto, essa

da História, como atesta o depoimento de Simone de Beauvoir: “L’Histoire fondit sur

moi, j’éclatai: je me retrouvai éparpillée aux quatre coins de la terre, liée par toutes

mes fibres à chacun et à tous. Idées, valeurs, tout fut bousculé” (Simone de Beauvoir,

O MITO DA RESISTÊNCIA

202

La force de l’âge, p.445). Recorde-se ainda o que diz Sartre: “L’historicité reflua sur

nous; dans tout ce que nous touchions, dans l’air que nous respirions, dans la page que

nous lisions, dans celle que nous écrivions, dans l’amour même, nous découvrions

comme un goût d’histoire, c’est-à-dire un mélange amer et ambigu d’absolu et de

transitoire” (Sit.II, p.243). Se inicialmente esse “gosto de história” foi “amargo”10

(mas seu resultado positivo logo se fará sentir), foi porque, ao desfazer as ilusões, ou

os “doces sonhos de nossos professores” (Questions de Méthode, p.29), revelou a

realidade nua e crua, e sem consolo (pelo menos como pareceu num primeiro

momento), da ordem do Capital: jogada no mundo das coisas, e sem conseguir

compreendê-lo, a consciência, ela própria metamorfoseada em coisa, parecia

irremediavelmente esmagada pelo “peso da história”. Todavia, o ângulo dessa

“descoberta” é mais fechado (como veremos melhor adiante): a faceta da história que

se entreviu num primeiro momento foi antes a de um determinado presente

comprimido “entre um passado de ilusões e um futuro de trevas”: “La guerre avait

opéré en lui [Sartre] une décisive conversion. D’abord elle lui avait découvert son

historicité. (...) Soudain, tout se détraqua; l’éternité se brisa en morceaux:11 il se

retrouva, voguant à la dérive, entre un passé d’illusions et un avenir de ténèbres” (La

force des choses, vol.I, p.16). “À deriva” porque a “revelação” da História não

implicou simultaneamente a “revelação” de seu sentido (daí a idéia de “absurdo” da

existência, definido justamente como “nuit du non-savoir”, Sit.II, p.251): “Nous

avions découvert la réalité de l’histoire et son poids: nous nous interrogions sur son

sens” (La force des choses, vol.I, p.56). Aqui o nó do problema: como compreender o

sentido da História? — esse o ponto cego da geração de Sartre naquele primeiro

momento de “descoberta”.

Caindo pois do céu das idéias ditas eternas (mas que tinham a idade da

Terceira República) em direção à terra —um verdadeiro movimento de queda livre—,

Sartre e seus contemporâneos pousaram sem equipamentos (ou “mal equipados”)12, em

Uma moral em tempos sombrios

203

pleno “ciclone” da Guerra (“nous étions au centre d’un cyclone”, Sit.II, p.252), nada

mais, nada menos, do que num inóspito território inimigo (literalmente, pois a

Ocupação não tardaria muito). Um pouso tanto mais difícil se pensarmos que, nessa

chegada à terra, ainda não pisaram em solo firme: “il nous parut que le sol allait

manquer sous nos pas”, observa Sartre em seu balanço daquele período.13 Onde

encontrar os equipamentos necessários para enfrentar tempos tão difíceis? O vendaval

não deixara pedra sobre pedra em sua própria casa: “le survol qu’aimaient tant

pratiquer nos prédécesseurs était devenu impossible (Sit.II, p.242-243).14 Foi preciso

então bater na porta alheia, isto é, após tão longa viagem rumo à terra, tiveram ainda

de vencer outras tantas distâncias em busca de instrumentos teóricos que auxiliassem a

entender o tempo presente. Tem início assim o ciclo das “viagens de descoberta” (para

usar a expressão com que Hegel definia a Fenomenologia do Espírito15), que leva a

geração de Sartre a cruzar não apenas o Reno (na direção contrária à percorrida pela

filosofia clássica alemã mais de um século antes16), como vimos no Capítulo 1 da

Primeira Parte, mas até mesmo o Atlântico, rumo à América, onde também foi preciso

tudo (re)inventar (“en ces années où tout est à refaire ou à faire...”, escreve Sartre em

1944, “A propos de l’existentialisme: Mise au point”, in Les Écrits de Sartre, p.653).

Desta vez, na América, diferentemente do além-Reno, não é a filosofia, mas a

literatura (mais exatamente os clássicos do modernismo americano) que vai fornecer

munição contra a cultura francesa tradicional.

Esquematizando: a radicalidade do processo de transformação histórica em curso,

“impondo”, desde os anos 30, a necessidade de um pensamento “que não fosse apenas

uma contemplação”, como afirma Sartre nos Carnets de la drôle de guerre (p. 227), e,

por conseguinte, abalando o alicerce do “idealismo” universitário vigente, leva toda

uma geração de intelectuais franceses a buscar no romance social americano uma

alternativa para apreender a “história real”. Mas por que a solução para os problemas

O MITO DA RESISTÊNCIA

204

teóricos impostos pelas “circunstâncias”17 de uma Europa às vésperas da guerra

poderia estar num romance que florescera noutro continente?

A resposta vem do próprio Sartre que, refletindo sobre a influência da

literatura americana sobre a geração de intelectuais franceses que desenvolveu uma

“literatura de situações extremas” (“que font Camus, Malraux, Koestler, Rousset, etc.,

sinon une littérature de situations extrêmes?”, Sit.II, p.327), escreve: “Quant aux

américains (...), nous avons reconnu en eux des hommes débordés, perdus dans un

continent trop grand comme nous l’étions dans l’histoire et qui tentaient, sans

traditions, avec les moyens du bord, de rendre leur stupeur et leur délaissement au

milieu d’événements incompréhensibles. Le succès de Faulkner, d’Hemingway, de

Dos Passos (...) ce fut le réflexe de défense d’une littérature qui, se sentant menacée

parce que ses techniques et ses mythes n’allaient plus lui permettre de faire face à la

situation historique, se greffa des méthodes étrangères pour pouvoir remplir sa

fonction dans des conjectures nouvelles” (Sit.II, pp. 255-256). Nessa literatura de uma

América sem tradições,18 lugar de homens “débordés”, “perdidos” em meio a “eventos

incompreensíveis”, a “geração intelectual” de Sartre, cuja tradição cultural acabara de

ser varrida pelo “furação” da história e “perdida” ela própria num mundo considerado

incompreensível, se reconhece, isto é, vê seu próprio retrato.19 Não mais podendo se

ver refletida no espelho de sua própria história cultural —nesse espelho que durante a

“bonace trompeuse” refletira de forma tão luminosa quanto “mentirosa” (as palavras

são de Sartre) a imagem do “calmo jardim” do pensamento francês—, essa geração

busca sua imagem numa América também em busca de sua identidade — terra de “The

Misfits” (para usar o título de um filme de John Huston). Esse recurso a “métodos

estrangeiros”, métodos da literatura de um mundo “dilacerado”, expõe a situação

histórica de uma Europa que parecia à deriva e, mais do que isso, antecipa a

conjuntura particular de uma França que em breve será ocupada por estrangeiros,

dividida, transformada num “mundo sem tradição”, como sublinha Sartre em seu

Uma moral em tempos sombrios

205

diário de guerra (La mort dans l’âme — Fragments de journal, Pléiade, p.1581) — “A

chaque instant nous sentions qu’un lien avec le passé s’était cassé. Les traditions

étaient rompues, les habitudes aussi” (“Paris sous l’occupation”, Sit.III, p.24).

Tomando pois de empréstimo, às vésperas da guerra, a técnica de uma

literatura que floresceu em terras de além-mar, encharcando-se de “métodos

estrangeiros”, a geração de Sartre tenta acertar o passo com o processo social que se

desenvolve à sua volta. Esse “empréstimo deliberado”20 é, por certo, como diz Sartre,

“o reflexo de defesa de uma literatura” que se sentia “ameaçada”. Mas é ao mesmo

tempo (se nos for permitido adaptar num outro contexto o que Adorno escreveu a

respeito de Kafka21) “a resposta antecipada à constituição de um mundo onde toda

atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo ultrajante, pois a ameaça permanente da

catástrofe não permite mais a ninguém ser um espectador neutro” (daí a busca de uma

filosofia não contemplativa).

Qual o principal ganho teórico desse empréstimo? É naquele momento em

que a base da cultura francesa desmoronava, anunciando o abalo de seu solo

histórico,22 que Sartre, contra a tradição “idealista” local (cuja esterilidade fora

finalmente evidenciada pela crise mundial), vislumbra no romance social americano

uma pista (afora a fenomenologia alemã) para pensar um novo “realismo” — o

“realismo da temporalidade” proposto mais tarde, em “Qu’est-ce que la littérature?”

(Sit.II, cf. em particular a p.327). O primeiro sinal desse “realismo da temporalidade”

é detectado pelo autor, já em 1938, na forma literária de Dos Passos: “Le temps de

Dos Passos est sa création propre: ni roman, ni récit. Ou plutôt, si l’on veut, c’est le

temps de l’histoire” (“A propos de John dos Passos et de 1919”, Sit.I, p.16).23 Essa

leitura de Dos Passos antecipa, numa conjuntura em que, como escreve Sartre,

“l’historicité reflua sur nous” (Sit.II, p. 243), a “literatura da historicidade” reclamada

pelo autor quase dez anos depois, em 1947: “Brutalement réintégrés dans l’histoire,

O MITO DA RESISTÊNCIA

206

nous étions acculés à faire une littérature de l’historicité” (“Qu’est-ce que la

littérature?”, Sit.II, p.244-245).

Eis, portanto, o que mais pesou na bagagem de Sartre na volta dessa

“viagem” à América: um “realismo da temporalidade” via forma literária24 (mesclado

ao que veio na bagagem de uma outra viagem, essa sem aspas mesmo: uma filosofia

que não é mais mera contemplação, tal como vimos no Capítulo 1, Parte I). Os termos

desse “realismo da temporalidade” (que se desdobra por assim dizer num “realismo

subjetivo” e/ou numa “narração objetiva”, outros nomes para um “materialismo”25 que

não exclua a subjetividade) são definidos no seguinte elogio de Sartre ao romance

social americano (Dos Passos, em especial), contraposto ao romance francês26 (e mais

diretamente ao “monde stable du roman français d’avant-guerre”, Sit.II, p.252):

“Comme il est simple, ce procédé, comme il est efficace: il suffit de raconter une vie

avec la technique du journalisme américain, et la vie cristallise en social (...).27 Du

même coup le problème du passage au typique —pierre d’achoppement du roman

social— est résolu. Plus n’est besoin de nous présenter un ouvrier-type, de composer,

comme Nizan dans Antoine Bloyé, une existence qui soit la moyenne exacte de

milliers d’existences. Dos Passos, au contraire, peut donner tous ses soins à rendre la

singularité d’une vie. Chacun de ses personnages est unique; ce qui lui arrive ne

saurait arriver qu’à lui. Qu’importe, puisque le social l’a marqué plus profondément

que ne peut faire aucune circonstance particulière, puisque le social c’est lui” (“A

propos de John dos Passos et de 1919”, Sit.I, p. 22). Embora absolutamente único,

singular, irredutível, cada personagem de Dos Passos encerra em si mesmo o social,

ou melhor, é o social. (Vemos aqui prefigurada a idéia sartriana de universal singular:

o singular que traz em si o universal, ou inversamente, o universal apreendido no

coração do singular — idéia que norteará o “método progressivo regressivo”, e em

particular o estudo sobre Flaubert.28) Compreende-se melhor agora a função

conjuntural que o romance americano desempenhou para a geração de Sartre: ao

Uma moral em tempos sombrios

207

mostrar o social encravado na “singularidade de uma vida”,29 tal romance ilumina uma

conjuntura histórica vivida como um momento de verdadeira supressão da distância

entre o indivíduo e o todo social30 (o que evidencia o caráter datado destas palavras

apologéticas que fecham o artigo de 1938 sobre Dos Passos: “Je tiens Dos Passos pour

le plus grand écrivain de notre temps”, Sit.I, p.24). — Mas essa “supressão” a geração

de Sartre verá melhor na obra de Kafka.

É ainda em meio àquele momento de “crise da consciência européia” (a

qual, como Sartre disse da “crise da consciência européia” do século XVIII, exigia do

escritor “une fonction nouvelle”, Sit.II, p.154) que se dá também a “descoberta” de

Kafka: “Les événements fondaient sur nous comme des voleurs et il fallait faire notre

métier d’hommes en face de l’incompréhensible et de l’insoutenable, parier,

conjecturer sans preuves, entreprendre dans l’incertitude et persévérer sans espoir(...).

C’est ce qui explique le succès que nous avons fait aux oeuvres de Kafka et à celles

des romanciers américains” (Sit. II, p. 254-255). Que a “geração intelectual” de Sartre,

no afã de acelerar o passo para acompanhar o ritmo vertiginoso do processo histórico

em curso, tenta calçar botas de sete léguas fabricadas em outro continente, e a anos-

luz de distância da cultura francesa tradicional, já o sabemos. Mas Kafka junto aos

americanos de entre-guerras?

Compreendamos melhor as razões desse “sucesso” de Kafka: “Nous

comprîmes tout de suite qu’il ne fallait pas le réduire à une allégorie, ni chercher à

travers quels symboles l’interpréter, mais qu’il exprimait une vision totalitaire du

monde;(...) il en proposait une image fantastique et insupportable, simplement en nous

le montrant à l’envers. (...) Notre admiration pour Kafka fut tout de suite radicale.

Sans savoir au juste pourquoi nous avions senti que son oeuvre nous concernait

personnellement. (...) Kafka nous parlait de nous; il nous découvrait nos problèmes, en

face d’un monde sans Dieu” (Simone de Beauvoir, La force de l’âge, p.214).

“Concernia pessoalmente” mas de forma diferente dos americanos, bem entendido.

O MITO DA RESISTÊNCIA

208

Uma diferença que já se manifesta no modo de apropriação da obra de Kafka: não se

trata agora, vê-se logo, de buscar um “modelo” de forma literária — “On n’imite pas

Kafka, on ne le refait pas” (Sartre, Sit.II, p.255).31 É de outra ordem a razão do

“sucesso” de Kafka: o que a “geração intelectual” de Sartre julga ver no mundo

kafkiano é, em primeiro lugar, a revelação do “absurdo” da Condição Humana.32 Tal

“revelação” tem, contudo, um interesse muito localizado (exatamente como no caso do

romance americano, ainda que por motivos diversos), pois é tomada como a própria

descrição do presente político então vivido: “Kafka a voulu décrire la condition

humaine. Mais ce qui nous était particulièrement sensible, c’est que (...) dans ce

présent absurde (...) dont les clés sont ailleurs, nous reconnaissions l’histoire et nous-

mêmes dans l’histoire. Nous étions loin de Flaubert et de Mauriac: il y avait là, tout au

moins, un procédé inédit pour présenter des destins pipés, minés à la base” (Sit.II,

p.255). A ficcão kafkiana que, como diz Modesto Carone, “sinaliza a perda de clareza

do indivíduo moderno em relação ao rumo da existência”, vinha por assim dizer a

calhar na conjuntura histórica de uma Europa que (mais uma vez) parecia à deriva.

Expressão de “um mundo em permanente confronto com o absurdo”, enunciando,

conforme afirma Adorno, a “tese (...) da obscuridade da existência” (“Réflexions sur

Kafka”, Prismes, p.215), a obra de Kafka pôde ser lida por Sartre e seus

contemporâneos, levados eles próprios de roldão pela força de um processo de

transformação social cujo sentido lhes escapava, como o retrato de um estado de

coisas real. Na ficção kafkiana, julgam reconhecer sua própria realidade, ou melhor, o

“absurdo” (para usar a palavra que passou a caracterizar os escritos “existencialistas”)

da própria experiência vivida.33 (A Guerra, diz Merleau-Ponty, foi o “moment où nous

nous sommes sentis atteints au coeur par ces absurdités du dehors”, Sens et Non-Sens,

p.256.) É assim que no calor dos acontecimentos que conduziram à Segunda Guerra,

naquele momento que parecia reeditar “os últimos dias da humanidade”, uma geração

inteira de intelectuais franceses, em busca de materiais que possam auxiliar a dar

Uma moral em tempos sombrios

209

conta do tempo presente, volta-se para uma experiência literária forjada também num

momento de crise mundial, sob o impacto de uma outra guerra (“foi sob o impacto

recente do início da Primeira Guerra Mundial que Franz Kafka começou a escrever O

Processo”, lembra M. Carone, Posfácio de O Processo, p. 281).34

Mas há ainda uma outra razão para o “sucesso” de Kafka na França do

final dos anos 30: se os romancistas americanos ensinaram a enfrentar, “sem

tradições”, “eventos incompreensíveis”, Kafka põe em forma literária um estado de

liquidação do indivíduo que a geração de Sartre só parece pressentir a partir da crise

mundial que prepara a eclosão da Segunda Guerra. Através dessa “alegoria”35 da perda

do rumo da existência no mundo moderno, Sartre, muito em particular, consegue

entrever, em meio à “obscuridade” do processo histórico em curso (pois seu sentido

ainda não se tornara manifesto), flashes de um estado de “néantisation” real:36

esfacelamento do indivíduo, impotência da subjetividade, perda do referencial da

existência, alienação, ausência de liberdade objetiva (eis aqui os ingredientes da

estilização de Kafka em EN, como veremos). Desta perspectiva, compreende-se

melhor o fato de Simone de Beauvoir afirmar que Kafka foi ainda mais decisivo para

sua geração do que o romance americano (La force de l’âge, p.214-215). (Não por

acaso, Sartre termina “Qu’est-ce que la littérature?” com uma apologia da obra de

Kafka, Sit.II, p.315.) Note-se o que a autora escreve no momento em que a guerra é

declarada: “Je me sens fondre en petits morceaux. (...) Je ne pense à rien, une espèce

d’horreur fixe. (...) On dirait un roman de Kafka; on a l’impression d’une (...)

profonde fatalité qui vient du dedans” (Journal de Guerre, p.15-16). E acrescenta: “Je

n’ai pas l’impression d’un chagrin en moi; c’est le monde dehors qui est horrible. (...)

Pas d’espoir — impossible de réaliser concrètement aucun espoir” (Idem, p.18). Em

resumo: a Segunda Guerra, fazendo “explodir os quadros envelhecidos” do

“idealismo” acadêmico francês (para retomar a expressão de Questions de Méthode,

p.29-30) e, nessa medida, permitindo a “descoberta” da História,37 revela para uma

O MITO DA RESISTÊNCIA

210

“geração intelectual” francesa o que a Primeira Guerra já evidenciara para uma outra

geração:38 o indivíduo não é mais soberano, os Tempos Modernos se encarregaram de

cercear sua (relativa) autonomia.39

Mas estaríamos de fato diante de uma real percepção do declínio do

indivíduo ao longo do curso do mundo moderno? Nem tanto. Se por um lado a crise

mundial leva Sartre e seus contemporâneos a “descobrirem” um estado de

“anéantissement” do indivíduo, levando-os assim a esbarrar no problema do processo

histórico do sujeito moderno, por outro, o foco dessa “descoberta” é tão conjuntural

que ela não chega a ter nenhum alcance teórico. (Por isso esse ponto que, à primeira

vista, poderia aproximá-los de Kafka, para não falar de Marx, como pretende Jameson,

é o mesmo que os separa.) Noutras palavras: se a novíssima filosofia francesa da

existência apreende aspectos de um processo real de erosão do indivíduo (pelo menos

exprime um momento desse processo), não extrai daí nenhuma narração das ilusões

perdidas, mas antes a descrição de uma “situação-limite”.40 Ao constatar que o rumo

das coisas inviabilizou toda forma de “vida pessoal”, como vimos na já mencionada

passagem do Journal de Guerre de Simone de Beauvoir (p.20), o Existencialismo

emergente não está senão diagnosticando uma situação muito datada: “Nous avons vu

pendant quatre ans la vie personnelle annulée”, escreve Merleau-Ponty, acentuando o

caráter conjuntural dessa “descoberta” do eclipse do indivíduo (“La Guerre a eu lieu”,

Sens et Non-Sens, p.267). Mais precisamente, trata-se de um registro de um momento

de catástrofe nacional: “Après juin 1940, je ne reconnus plus les choses, ni les gens, ni

les heures, ni les lieux, ni moi-même. (...) Sans quitter les rues de Paris, je me trouvais

plus dépaysée qu’après avoir franchi des mers, autrefois” (Simone de Beauvoir, La

force de l’âge, p.685). Uma “alienação” que tem portanto a cor local, imprimida

naqueles que pareciam “condenados” a viver “sans gloire et sans espoir dans un pays

humilié par la défaite”, como diz Sartre (“Nouvelle littérature en France”, Pléiade,

p.1919).41 A desagregação do sujeito em questão é tão circunstancial que tem menos a

Uma moral em tempos sombrios

211

ver com algo irremediavelmente perdido ao longo do curso real do mundo moderno (e

aqui a distância de Kafka é oceânica) do que com a situação trágica da Guerra, que

coloca tudo “em suspenso”: “Certes nous sommes déjà vaincus. Tout est en suspens.

Tout s’écroule”, escreve Saint-Exupéry (Pilote de Guerre, p.184).42 Justamente

naquele momento em que “tout s’écroule”, e em que a existência individual parecia

movida por forças invisíveis, nossos “existencialistas” julgam ver realizada a

“profecia” kafkiana (daí o “Kafka falava de nós”): “Nous tâtonnions, aussi égarés,

aussi seuls, que Joseph K... et que l’arpenteur, parmi des brumes où nul lien visible ne

soude les voies et les buts. (...) Le chemin rigoureux sur lequel une fatalité nous

emportait s’enfonçait dans une nuit indéfinie. (...) Déjà nous devinions ce que nous ne

devions pas cesser d’apprendre: il n’y avait pas de terme à cette entreprise aveugle, ni

de sanction. La mort surgirait brutalement, comme celle de Joseph K..., sans qu’aucun

verdict fût prononcé; tout resterait en suspens” (Simone de Beauvoir, La force de

l’âge, p.215). Esse estado de “néantisation”, em que “tudo está em suspenso”, e a

liberdade em “Sursis”, ou regida pela ordem da “fatalidade”, expõe para a geração de

Sartre “l’image même de la liberté brisée et asservie” (EN, p.454) — mas aqui já nos

colocamos novamente à sombra de EN.

*

“Le monde est ‘en suspens’ dans le néant”: parece outro registro de época,

mas agora já é Sartre, glosando Heidegger, no início de EN (p.52). Se naquele

momento de “histoire en suspens” (“nous avons vécu (...) un de ces moments où

l’histoire en suspens...”, Humanisme et Terreur, p.43) esse início de EN soa como um

diagnóstico de época é porque a fórmula da alienação nesse “ensaio de ontologia

fenomenológica” é a mesma com que o próprio autor (assim como seus

contemporâneos) caracteriza os “anos terríveis” da Guerra e da Ocupação da França:

O MITO DA RESISTÊNCIA

212

“alienação” = “submissão ao Outro” = “anéantissement” da liberdade. (A formalização

filosófica desse estado de privação da liberdade é expressa na seguinte passagem de

EN: “le pour-soi est toujours en suspens parce que son être est un perpétuel sursis”,

p.683 — é que seu “ser”, como sabemos, é liberdade, a qual está “en suspens”, ou em

“sursis”, naquele momento.43) Pretendendo apenas descrever a estrutura (intemporal)

da consciência, Sartre atinou com a forma particular da “alienação” durante uma

conjuntura de crise política radical. Nada mais “realista”, num momento em que a

alienação atinge uma “situação-limite” (na linguagem de EN), do que as descrições,

constitutivas do “ensaio de ontologia” sartriano, e já nossas conhecidas, de um estado

de desintegração do sujeito, outro aspecto da desintegração do mundo: “le monde se

désintègre (...), mais cette désintégration ne m’est pas donnée, je ne puis ni la

connaître ni même seulement la penser” (EN, p.319). Esse momento negativo da

alienação —a subjetividade impotente diante da “força das coisas”— termina por

descrever (à revelia do autor, vale insistir) uma conjuntura histórica vivida como uma

época de “dissolução” do indivíduo. Nessa perspectiva, o Ser-fora-de-si, exposto no

Capítulo 1 de nossa Primeira Parte, poderia ser lido como a cifra filosófica da

“alienação” num momento crucial da história da França (“Le fait est que, à partir de

39, je ne m’appartenais plus”, afirma o próprio Sartre, in La cérémonie des adieux,

p.546).44

Quando se examina o imaginário da época, compreende-se que a vida era

aquilo mesmo que o momento negativo da alienação descreve em EN: angústia,

“estranhamento”, “peur”, “honte”, sentimento do “absurdo” do mundo.45 Tais atributos

da “conscience malheureuse” não são fantasmas, ou fato filosófico isolado, mas antes

a marca registrada de uma conjuntura histórica trágica (recriada filosoficamente na

língua arrevesada da fenomenologia alemã e do Hegel de Kojève). (Por isso o discurso

filosófico de EN pôde soar de forma tão familiar aos contemporâneos, como veremos.)

Uma conjuntura que, de fato, a se considerar as análises do próprio Sartre

Uma moral em tempos sombrios

213

(particularmente sobre o período da Ocupação da França), submetera aqueles que a

viveram a um processo de coisificação por intersubjetividade: “Il fallait compter sur

les autres. Et pour les autres nous n’étions qu’un objet. (...) Nous sentions notre destin

nous échapper(...). C’est que tous les Parisiens étaient dépersonnalisés. (...) Cette

déshumanisation, cette pétrification de l’homme étaient si intolérables...” (“Paris sous

l’Occupation”, Sit. III, p. 28-29; grifo do autor). Ora, já sabemos que em EN a

alienação advém justamente das relações intersubjetivas: “La véritable limite de ma

liberté est purement et simplement dans le fait même qu’un autre me saisit comme

autre-objet (...).46 En un mot, du fait de l’existence d’autrui, j’existe dans une situation

qui a un dehors et qui, de ce fait même, a une dimension d’aliénation que je ne puis

aucunement lui ôter, pas plus que je ne puis agir directement sur elle. (...). Par

principe, elle [l’aliénation] m’échappe, elle est l’extériorité même de la situation,

c’est-à dire son être-dehors-pour-l’autre. Il s’agit donc d’un caractère essentiel de

toute situation en général(...). Être aliénée, c’est-à-dire d’exister comme forme en soi

pour l’autre. Nous ne pouvons échapper à cette aliénation(...)” (EN, p. 582-583).

Uma transposição para a forma filosófica de uma experiência política

crucial? A resposta passa pela exemplificação usada em EN: pretendendo se ater à

descrição de estruturas filosóficas fundamentais, o autor o faz todavia com figuras do

mundo real, ou seja, a ilustração é colhida de materiais históricos da época (“não são

exemplos, é a própria vida”, confidenciava Sartre a J.-T. Desanti a respeito das

ilustrações de EN47). Mais precisamente: é a história imediata que ilustra o problema

filosófico (reativado sobretudo via Hegel de Kojève, como vimos) das relações com o

Outro. É assim que “Autrui”, descrito(abstratamente) na passagem citada no parágrafo

anterior como aquele que impõe um limite à minha liberdade (“véritable limite de ma

liberté”), e é causa da alienação, ganha em determinados momentos a figura concreta

do Alemão na França ocupada: “Autrui m’est présent partout comme ce par quoi je

deviens objet. (...) Que j’existe présentement comme objet pour un Allemand, quel

O MITO DA RESISTÊNCIA

214

qu’il soit, cela est indubitable” (EN, p. 327).48 Eis que aqui, no coração mesmo do

raciocínio especulativo, abre-se uma brecha por onde se pode entrever o mundo “real”.

Tudo se passa como se o próprio mundo “real” rompesse a muralha especulativa e

impussesse sua presença. Inicialmente temos pois a definição filosófica abstrata (nível

da pura “demonstração” ontológica) de “Autrui” como “ce par quoi je deviens objet”.

Logo depois essa descrição abstrata toma uma forma histórica precisa: “Que j’existe

présentement comme objet pour un Allemand, quel qu’il soit, cela est indubitable”.

Note-se que em meio a uma demonstração ontológica (intemporal, por definição)

irrompe, como que por encanto, esse “présentement” indicando a hora histórica.49 Ora,

isso autorizaria pelo menos um sentido de interpretação: no atual presente político da

França, o Alemão, o Ocupante, é a encarnação histórica concreta do conceito

filosófico de “Autrui” (“ce par quoi je deviens objet”). Mas o problema poderia ser

formulado também em sentido inverso: o conceito abstrato de “Autrui” é uma

elaboração, no plano filosófico, da figura histórica do ocupante — esse Outro (tal

como é descrito nos textos posteriores sobre o período) que condena a coletividade

francesa a viver como “objeto” (“se métamorphoser en chose”, na linguagem de EN,

p.672), ou seja, condena à alienação, à perda da própria identidade.50 (Nessa chave,

não é difícil compreender porque tal elaboração filosófica do problema do Outro

encontrou tanto eco entre os contemporâneos — cf. por exemplo o que diz um

Resistente de primeira hora, J.-T. Desanti: “C’est surtout à propos du problème

d’autrui que L’Être et le Néant a été, en ce qui me concerne, décisif”, Entrevista a

Michel Contat, Le Monde, 2/7/1993.) Vê-se melhor agora que não por acaso EN

enfatiza, conforme foi mostrado na Primeira Parte deste trabalho, a idéia, extraída da

Fenomenologia do Espírito, de que “o aparecimento do Outro torna-me ‘escravo’“:

isso faz sentido naquela conjuntura; as coisas se passavam assim mesmo — “Aucune

servitude n’est plus visible que celle d’un pays occupé”, como afirma Merleau-Ponty

(“La Guerre a eu lieu”, Sens et Non-Sens, p.251).

Uma moral em tempos sombrios

215

Detenhamo-nos em alguns outros momentos da descrição filosófica,

característica de EN, da alienação que resulta da existência de “Autrui”: “L’autre en

surgissant confère au pour-soi un être-en-soi-au-milieu-du-monde comme chose parmi

les choses” (EN, p.481); “Autrui est au milieu de mon monde” (p.316; grifo do autor);

“si je sais qu’il est au milieu du monde, en France, à Paris en train de lire, je ne puis,

faute de voir sa carte d’identité, que supposer qu’il est étranger” (p.341); “la présence

d’autrui” ‘démondanise’ mon monde (p. 318); “cet étranger...” (p. 321); “L’autre (...)

n’est ni connaissance ni catégorie, mais le fait de la présence d’une liberté étrangère.

En fait, mon arrachement à moi et le surgissement de la liberté d’autrui ne font qu’un

(...). Le fait d’autrui est incontestable et m’atteint en plein coeur (...); par lui je suis

perpétuellement en danger” (p.322; grifos do autor); “l’existence de l’autre, ce

scandale insurmontable” (p.515); “vivre dans un monde hanté par mon prochain...” (p.

567); “Il y a un état qu’on m’impose” (p. 569); “mon langage est donc subordonné au

langage d’autrui et finalement au langage national” (p. 577); “la mort (...) est le

triomphe du point de vue d’autrui sur le point de vue que je suis sur moi-même”

(p.598); “l’existence de l’Autre apporte une limite de fait à ma liberté” (p.581).

Através das páginas de EN, o leitor pode ir assim percebendo a que ponto essa

descrição filosófica abstrata termina por descrever o presente político da França.

Melhor: coincide com a descrição, feita por Sartre e outros contemporâneos, da França

Ocupada — essa França “alienada” porque despojada de seu “ser histórico”51 (pois a

“França profunda” de Pétain não é senão uma hipóstase, e a negação da “essência”

revolucionária francesa, como veremos). Noutras palavras: as “deformações” (por

assim dizer) filosóficas da realidade terminariam por descrever, de forma sibilina, um

estado de coisas “deformado”, isto é, que perdeu sua forma tradicional. É tal estado de

coisas “deformado” que, a nosso ver, o autor (involuntariamente, nunca é demais

insistir) erige em assunto de reflexão filosófica.52 Em resumo: no interior das análises

O MITO DA RESISTÊNCIA

216

de EN encontramos situações reais do mundo amalgamadas ao problema filosófico da

existência do Outro.

Mais do que isso: “estilizando” (como numa intriga teatral) em termos

filosóficos “absolutos” (descrição de essência, ou melhor, de existência) uma

conjuntura histórica precisa (alçada à condição de instância de demonstração

“filosófica”), as análises de EN acabariam se convertendo, se nossa leitura é

pertinente, numa espécie de grade que torna visível o conteúdo de uma certa

experiência do tempo. Isso em dois níveis. No primeiro deles, o que descreve o

momento negativo da alienação, e que estamos examinando neste Capítulo, as análises

do livro, parecendo muitas vezes caminhar quase que conjunturalmente rente aos

fatos, chegam a reproduzir o tom (e até mesmo o vocabulário) dos relatos de época

(memórias, romances, cinema). Considere-se por exemplo a idéia, que atravessa EN, e

já mencionada na Primeira Parte deste trabalho, de “effondrement du monde en tant

que tel” (EN, p.389), “effondrement de cet univers” (p.390) — “une destruction

aliénante et un effondrement concret de mon monde qui s’écoule vers autrui” (EN,

p.402)53 (uma idéia ligada ao problema do “effondrement” do Tempo). Ora, nada mais

presente nos testemunhos de época do que a idéia de “effondrement” do mundo

francês, de suas raízes históricas e culturais (aliás, “L’Effondrement” é justamente o

título da primeira parte do filme de Marcel Ophuls sobre a época, “Le Chagrin et la

Pitié”).54 Fazendo um balanço daquele período histórico, Merleau-Ponty escreve:

“Quand on a le malheur ou la chance de vivre une époque, un de ces moments où le

sol traditionnel d’une nation ou d’une société s’effondre...” (Humanisme et Terreur,

p.44). Vale lembrar também o depoimento de uma contemporânea:“Tout notre univers

s’était effondré” (documentário “Femmes dans la Guerre”, apresentação G. Guidez). E

Saint-Exupéry: “Tout craque autour de nous. Tout s’éboule” (Pilote de Guerre, p.8).

Tudo se passa como se as análises de EN, correndo no sentido do espírito

do tempo, endossassem as idéias então vigentes. Um outro exemplo: “Rien en effet ne

Uma moral em tempos sombrios

217

peut me limiter sinon Autrui. Il apparaît donc comme ce qui (...) me met hors de jeu et

me dépouille de ma transcendance...” (p.334). Essa idéia de ter sido “mis hors de jeu”

é recorrente na caracterização que os contemporâneos fazem da França ocupada.

Recorde-se, nesse sentido, algumas passagens do próprio Sartre: “Nous pouvons

souhaiter la victoire des Anglais ou des Allemands mais nous nous sommes mis hors

de jeu, totalement neutralisés” (“La mort dans l’âme, Journal de guerre”, Pléiade, p.

1584). Ou então: “Ainsi nous sentions-nous hors du jeu. Cette guerre que nous ne

faisions plus, nous avions la honte de la comprendre. Nous voyions de loin les Anglais

et les Russes s’adapter à la tactique allemande pendant que nous ruminions encore

notre défaite de 1940” (Sit.III, p.30); “...leur [dos franceses] destin est arrêté, comme

celui des morts; ils n’attendent plus rien que la fin de la guerre, qui ne dépend pas

d’eux” (Les carnets de la drôle de guerre, p.241); “La France dépendait dans son

destin de l’issue d’une guerre entre d’autres puissances (...). On dépendait des

circonstances, des volontés, des rapports de forces sur lesquels on ne pouvait rien, et

cela conduisait très naturellement au fatalisme. Je me rappelle cette impression de

fatalité qu’avaient les gens..(...); le sentiment d’une impuissance totale” (Pour et

contre l’Existentialisme, p.185-186).55 (Em EN, Sartre vincula a idéia de “catastrophe”

—palavra usada comumente pelo autor para designar a Segunda Guerra— a “une sorte

de nécessité fataliste que nous exprimons par un ‘ça devait arriver’“, EN, p.565.)

Recorde-se também o depoimento de Merleau-Ponty: “Durante anos tivemos de

esperar que o mundo nos salvasse”; “nossa humilhação...” (“Em torno do marxismo”,

p.203). Essa mesma situação trágica está registrada no diário de Gide: “La lutte est

vaine; c’est en vain que se font tuer nos soldats. Nous sommes à la merci de

l’Allemagne qui nous étranglera de son mieux. (...). A la lueur tragique des

événements est apparu soudain le délabrement profond de la France” (André Gide,

Journal, Pléiade, p.28). Cf. ainda o testemunho de Simone de Beauvoir: “Je sentais

l’avance allemande comme une menace directe (...). Ça m’a glacé l’âme, c’était

O MITO DA RESISTÊNCIA

218

définitif et sans espoir, les Allemands étaient à Paris dans deux jours, je n’avais rien à

faire qu’à partir...” (Journal de Guerre, p.299). Marc Bloch, por sua vez, observa:

“Cette situation affreuse que le sort de la France a cessé de dépendre des Français. (...)

L’avenir de notre pays et de notre civilisation font l’enjeu d’une lutte où (...) nous ne

sommes plus que des spectateurs” (L’Etrange Défaite- Témoignage écrit en 1940,

Editions Franc-Tireur, 1946, p.190).56 Refletindo também sobre o “fatalismo e a

resignação de 40”, R. Aron escreve: “Comment un renoncement, sans équivalent dans

l’histoire de la France, a-t-il pu être accepté passivement par le peuple français? La

réponse tient en deux mots: défaitisme et malheur. (...) Hélas! Il ne se trouvait

personne pour dire aux Français avec autorité: “Il faut tenter de poursuivre la lutte”

(R. Aron, Chroniques de Guerre, p.34-35). Daí a idéia de “honte” que percorre os

textos dos contemporâneos sobre aquele período, particularmente os de Sartre: “La

honte d’avoir perdu la bataille de 40, la douleur de renoncer à exercer notre

hégémonie sur l’Europe se confondent dans nos coeurs” (Sit.II, p.48-49); “Tout ce que

Londres a vécu dans l’orgueil Paris l’a vécu dans le désespoir et la honte” (“Paris sous

l’Occupation”, Sit.III, p.17); “Cette honte secrète qui nous tourmentait (...). La France

avait honte devant le monde. Nous étions entourés par le mépris des autres” (Sit. III,

p.33-34); “La condition abjecte où nous étions réduits(...). Nous avions la honte de

nous accommoder de notre misère” (Sit.III, p.38-39). (Nesse sentido, é sugestivo o

que Sartre diz sobre a primeira montagem de Les Mouches — peça escrita ao mesmo

tempo que EN: “Nous étions en 1943 et Vichy voulait nous enfoncer dans le repentir

et dans la honte. En écrivant Les Mouches, j’ai essayé de contribuer avec mes seuls

moyens à extirper quelque peu cette maladie du repentir, cet abandon à la honte qu’on

sollicitait de nous”, La Croix, 20 de janeiro de 1951.)57

Vejamos a elaboração filosófica dessa idéia de “honte”, que também é

recorrente em EN. Concebida como um estado de resignação, conforme já dissemos, a

“honte” é o principal exemplo da terceira parte do livro, dedicada ao “Pour-Autrui”

Uma moral em tempos sombrios

219

(cf. p.265): “La honte est honte de soi devant autrui” (EN, p.266); “La honte est

révélation d’autrui” (Idem, p.319); “La honte n’est (...) que le sentiment d’avoir mon

être dehors (...); c’est la conscience d’être irrémédiablement ce que j’étais toujours:

‘en sursis’, c’est-à-dire sur le mode du ‘pas encore’ ou du ‘déjà plus’. La honte

pure(...) d’être un objet, c’est-à-dire de me reconnaître dans cet être dégradé,

dépendant et figé que je suis pour autrui. La honte est sentiment de chute

originelle,(...) du fait que je suis ‘tombé’ dans le monde, au milieu des choses, et que

j’ai besoin de la médiation d’autrui pour être ce que je suis. (...) ‘J’ai honte de moi

devant autrui’“ (Idem, p.336-337). É ainda nas páginas de EN, no capítulo “Les

relations concrètes avec autrui”, que encontramos a descrição de um estado de

“asservissement réel qui me vient par les autres” (p.462, grifo do autor) — “une

expérience d’humiliation et d’impuissance” própria daquele que “se sent englué parmi

une infinité d’existences étrangères” e que, nessa medida, torna-se “aliéné

radicalement et sans recours” (p.470). Essa forma de alienação, que implica a “honte”,

advém essencialmente, como já sabemos, do olhar do outro.58

Acompanhemos algumas passagens que definem o famoso tema do

“Regard” em EN — “le regard de l’autre (...) comme solidification et aliénation de

mes propres possibilités” (p.309): “A chaque instant autrui me regarde” (p.303);

“autrui est, par principe, celui qui me regarde” (p.303); “l’aliénation de moi qu’est

l’être-regardé implique l’aliénation du monde que j’organise” (p.309); “cet autre

regard: l’arme braquée sur moi” (p.310); “Ainsi, être vu me constitue comme un être

sans défense pour une liberté qui n’est pas ma liberté. C’est en ce sens que nous

pouvons nous considérer comme des ‘esclaves’, en tant que nous apparaissons à

autrui. (...) Par le regard d’autrui, je me vis comme figé au milieu du monde, comme

en danger, comme irrémédiable” (p.314);59 “le regard d’autrui comme condition

nécessaire de mon objectivité” (p.316); “L’épreuve de ma condition d’homme, objet

pour tous les autres hommes vivants, jeté dans l’arène sous des millions de regards et

O MITO DA RESISTÊNCIA

220

m’échappant à moi-même des millions de fois, je la réalise concrètement à l’occasion

du surgissement d’un objet dans mon univers, si cet objet m’indique que je suis

probablement objet présentement à titre de ceci différencié pour une conscience”

(p.328); “le regard d’autrui façonne mon corps dans sa nudité” (p.413). A

compreensão da “natureza” filosófica do “regard” torna-se possível, no

desenvolvimento dessa análise sartriana do problema das relações com “Autrui”, a

partir do já citado exemplo extraído do presente político da França: “Que j’existe

présentement comme objet pour un Allemand, quel qu’il soit, cela est indubitable”

(p.327). Imediatamente após este exemplo, dá-se a formalização filosófica: “Nous

pouvons saisir à présent la nature du regard: il y a, dans tout regard, l’apparition d’un

autrui-objet comme présence concrète et probable dans mon champ perceptif et, à

l’occasion de certaines attitudes de cet autrui, je me détermine moi-même à saisir par

la honte, l’angoisse, etc., mon ‘être-regardé’” (p.327). Ou seja: a “essência” filosófica

do “regard” é construída com material histórico da época — a situação histórica

presente da França ocupada.60

Note-se que é durante a Guerra e a Ocupação que a experiência da

opressão do olhar do Outro —esse olhar que nos devassa e torna a existência absurda

e insuportável (“l’enfer, c’est les Autres”, Huis Clos, p. 93)— transforma-se em

problema filosófico para Sartre (“Que signifie pour moi: être vu?”, lemos em EN,

p.305). Nas palavras do próprio autor, referindo-se a Huis Clos: “si j’avais le souci de

dramatiser certains aspects de l’inexistentialisme, je n’oubliais pas le sentiment que

j’avais eu au stalag à vivre constamment, totalement, sous le regard des autres, et

l’enfer qui s’y établissait naturellement” (L’Avant-Scène Théâtre, maio de 1968;

citado em Les Ecrits de Sartre, p.100). (Um “sentimento” alçado à condição de forma

filosófica em EN: “Perpétuellement, où que je sois, on me regarde”, p.329.)61 Convém

não esquecer que, como bem observaram M. Contat e M. Rybalka, “Huis Clos ilustra,

de maneira evidente, as idéias desenvolvidas por Sartre no capítulo de EN ‘Les

Uma moral em tempos sombrios

221

relations concrètes avec autrui’“ (Les Ecrits de Sartre, p.100). Invertendo o ângulo,

poderíamos ir além: é como se EN colocasse em forma filosófica a experiência

política crucial que Huis Clos, Les Mouches e Les Chemins de la Liberté, entre outras,

colocam em forma literária.62 O problema das “relações concretas com o outro” seria

assim uma elaboração filosófica —feita, como já vimos, com instrumentos da filosofia

hegeliana e da fenomenologia alemã, sem falar da literatura (particularmente

Malraux63)— dessa experiência política. Esse amálgama de filosofia, literatura e

situações do mundo presente (um híbrido que caracteriza o pensamento sartriano) é,

aliás, sublinhado pelo próprio Sartre quando, numa carta de dezembro de 1939,

referindo-se à moral que estava elaborando, fornece esta preciosa pista para uma

leitura de EN: “J’y ai tout doucement glissé depuis septembre; la guerre, le Testament

espagnol, Terre des Hommes, Verdun m’y ont disposé. (...) Nous avons fait du

chemin, (...) depuis le temps où nous étions rationalistes, cartésiens et anti-

existentiels” (Lettres au Castor, vol.1, p.458). Curioso caminho, sem dúvida: em vez

de Descartes, Kant, ou outros clássicos da filosofia “tradicional” (que os

comentadores julgam ver no primeiro plano do “ensaio de ontologia” de Sartre),

figuram, nessa carta-manifesto de EN, Koestler, Saint-Exupéry e Jules Romains (uma

“literatura de situações extremas”) mesclados a uma situação-limite — a Guerra.

É portanto a experiência radical da guerra que, “revelando” o “espetáculo

do mundo”, como diria Merleau-Ponty, isto é, o mundo das relações intersubjetivas64

e, nessa medida, levando à ruptura (possível filosoficamente via Hegel de Kojève65)

com o solipsismo da consciência cartesiana (hegemônica na tradição universitária

francesa, conforme vimos), leva também ao problema, central em EN, da alienação

que resulta do olhar do outro. Essa consciência “alienada”, dividida, cujo ser está fora

de si mesma, distante pois de uma (idealizada) consciência unificada e independente,

exprime o “estranhamento” real de uma subjetividade esfacelada pelo mesmo

movimento que punha fim à (não menos idealizada) identidade do mundo europeu.

O MITO DA RESISTÊNCIA

222

Numa palavra, exprime o abandono e a impotência de uma subjetividade que parecia

de fato condenada a “durar” (como “coisa”) num mundo que se tornou irreconhecível,

que não é mais o “meu” mundo (nos termos de EN) — eis um ponto em que a

linguagem abstrusa da fenomenologia alemã se converte, como num passe de mágica,

em puro “realismo”, ou seja, descreve uma conjuntura histórica precisa: “C’est moi,

moi qui dure, (...) en danger dans le monde, avec mon historicité” (EN, p.192); “Le

vécu désigné devient désigné comme chose hors de ma subjectivité, au milieu d’un

monde qui n’est pas le mien” (Idem, p.403); “Je suis engagé dans un conflit avec

l’Autre. Le Tiers survient et nous embrasse l’un et l’Autre de son regard. J’éprouve

corrélativement mon aliénation et mon objectité. Je suis dehors, pour Autrui, comme

objet au milieu d’un monde qui n’est pas le mien” (Idem, p.468). Seria possível pedir

mais “realismo”, particularmente na conjuntura da França Ocupada?

À luz dessa descrição da metamorfose da subjetividade em “objeto”,66

podemos compreender melhor o sentido da estilização de Kafka em EN. É através de

exemplos de O Processo e O Castelo que Sartre ilustra suas análises da relação com

“autrui”, mais precisamente, ilustra a idéia de impotência da consciência que tem seu

ser fora de si — o que põe a liberdade em “sursis”: “C’est certainement une des

significations que ‘le procès’ de Kafka tente de mettre au jour, ce caractère

perpétuellement processif de la réalité humaine. Être libre, c’est être perpétuellement

en instance de liberté” (EN, p.559). E no capítulo “Le regard”, lemos o seguinte:

“L’apparition de l’autre fait apparaître dans la situation un aspect que je n’ai pas

voulu, dont je ne suis pas maître et qui m’échappe par principe, puisqu’il est pour

l’autre. C’est ce que Gide a heureusement appelé ‘la part du diable’. C’est l’envers

imprévisible et pourtant réel. C’est cette imprévisibilité que l’art d’un Kafka

s’attachera à décrire, dans Le Procès et Le Château. (...) La vérité de ces actes [tout ce

que font K. et l’arpenteur] leur échappe constamment; ils ont par principe un sens qui

est leur vrai sens et que ni K. ni l’arpenteur ne connaîtront jamais.(...) Cette

Uma moral em tempos sombrios

223

atmosphère douloureuse et fuyante du Procès, cette ignorance qui, pourtant, se vit

comme ignorance, cette opacité totale qui ne peut que se pressentir à travers une totale

translucidité, ce n’est rien autre que la description de notre être-au-milieu-du-monde-

pour-autrui” (EN, p.312). Essa assimilação sartriana de Kafka (outro sintoma da

ruptura com o sujeito cartesiano unificado), esse (estranho) Kafka quase

“existencialista” (e amalgamado ao “ser-no-mundo” heideggeriano, como já se vê),67

em suma, esse uso de materiais heteróclitos termina, num curto-circuito (e aqui está o

nó que entrelaça os verdadeiros problemas de EN, conforme estamos procurando

mostrar), descrevendo um processo de mudança social,68 e em particular o presente

político da França ocupada — concebido pelos contemporâneos justamente como uma

“atmosphère douloureuse” cuja verdade (e/ou sentido) parecia escapar à compreensão

da época: “nous ne comprenions rien”, eis uma frase recorrente nos testemunhos sobre

aquele período histórico (Documentário: “Femmes dans la Guerre”).69

No interior das análises de EN, o beco sem saída do mundo kafkiano se

confunde com o “ser-para-a-morte” de Heidegger, isto é, ambos exprimem uma

mesma figura: o “ser-para-a-guerra”.70 Essa estilização de uma conjuntura histórica

trágica começa a tomar forma no primeiro esboço de EN, Les carnets de la drôle de

guerre, onde, através da filosofia heideggeriana, apresentada como uma “filosofia

patética” de uma “época trágica” para a Alemanha, Sartre entrevê o “perfil patético da

História” na França de 1940. As passagens dos Carnets sobre a necessidade histórica

dessa “descoberta” de Heidegger são memoráveis: “Les menaces du printemps 38 puis

l’automne me conduisaient lentement à chercher une philosophie qui ne fût pas

seulement une contemplation mais une sagesse, un héroïsme, une sainteté, n’importe

quoi qui pût me permettre de tenir le coup. (...) C’est alors que parut le livre de Corbin

[tradução de Was ist Metaphysik]. Juste quand il le fallait. Suffisamment détaché de

Husserl, désirant une philosophe ‘pathétique’, j’étais mûr pour comprendre Heidegger.

(...) Le ‘pathétique’ de Heidegger, bien qu’incompréhensible au plus grand nombre,

O MITO DA RESISTÊNCIA

224

frappe avec ces mots de Mort, Destin, Néant jetés çà et là. Mais surtout il venait à

point. J’ai dit que je l’attendais obscurément, je souhaitais qu’on me procurât des

outils pour comprendre L’Histoire et mon destin. Mais justement nous étions

nombreux à avoir ces désirs. A les avoir à ce moment-là. C’est nous qui avons dicté ce

choix. En d’autre termes, c’est mon époque, ma situation et ma liberté qui ont décidé

de ma rencontre avec Heidegger. Il n’y a là ni hasard ni déterminisme mais

convenance historique. La philosophie de Heidegger, c’est une assomption libre de

son époque. Et son époque c’était précisément une époque tragique d’Untergang’ et de

désespoir pour l’Allemagne. (...) Et l’attitude de Heidegger est évidemment un

dépassement libre vers la philosophie de ce profil pathétique de l’Histoire. Je ne veux

pas prétendre que les circonstances soient les mêmes pour nous en ce moment. Mais il

est vrai qu’il y a un rapport de convenance historique entre notre situation et la sienne.

Et l’une et l’autre sont le développement de la guerre de 14, elles se tiennent.71 Ainsi

puis-je retrouver cette assomption de son destin d’Allemand dans l’Allemagne

misérable d’après-guerre pour m’aider à assumer mon destin de Français dans la

France de 40” (Les carnets de la drôle de guerre, pp.227 e 229-230; grifos do autor).72

A “modernidade” filosófica de Heidegger (assim como a de Hegel, num outro ângulo)

tem para Sartre, nesse primeiro momento de “descoberta”, o mesmo sentido da

“modernidade” literária de Kafka: em ambos os casos nosso autor vê a expressão de

algo “verdadeiro”, visível a olho nu, a saber, uma história trágica para a qual ainda

não vislumbra nenhuma “salvação” — um beco sem saída, ou melhor, cuja única saída

parece ser a morte... ou a guerra.

Daí o sentido e a função da idéia de paralisação do tempo (um verdadeiro

traço de época, conforme indicamos no Capítulo 3 da Primeira Parte, estilizado na

assimilação sartriana de Kafka). Um tempo morto é um tempo que não deixa marcas,

“um tempo sem impressões digitais”:73 é uma época trágica que se quer apagar da

memória (daí também a já mencionada idéia de perda da memória histórica durante

Uma moral em tempos sombrios

225

aquela conjuntura), que não se quer que deixe marcas. Numa palavra: um tempo que

se procura paralisar pois caminha inevitavelmente para a guerra (como o Dasein

heideggeriano caminha impotente para a morte) — é o “ser-para-a-morte”, ou o “ser-

para-a-guerra”. (Ironicamente, a História só impõe sua presença para a geração de

Sartre num momento em que parecia rumar para seu fim, numa conjuntura vivida

como “os últimos dias da humanidade”.)74

É justamente a Guerra o grande exemplo privilegiado de EN:75 “Le sens

premier et le but de la guerre sont contenus dans la moindre édification de l’homme”

(p.43); “la bombe qui détruit ma maison...” (p.373); “C’est par des motifs que les

historiens ont coutume d’expliquer les actes des ministres ou des monarques; à une

déclaration de guerre, on cherchera des motifs” (p.500); “Lorsque le capitalisme

américain décide d’entrer dans la guerre européenne de 1914-1918...” (p.557); “une

guerre et voilà les produits de première nécessité qui se raréfient, sans que j’y sois

pour rien” (p.569); Si j’attends, par exemple, un ordre de mobilisation...” (p.593); “Un

événement social qui éclate soudain et m’entraîne ne vient pas du dehors; si je suis

mobilisé dans une guerre, cette guerre est ma guerre, elle est à mon image et je la

mérite. (...) Vivre cette guerre, c’est me choisir par elle et la choisir par mon choix de

moi-même. (...) Mais dans cette guerre que j’ai choisie, je me choisis au jour le jour et

je la fais mienne en me faisant” (p.613). As descrições do problema das relações com

“Autrui” são permeadas pelo exemplo da Guerra: “Nous conférons à autrui par la

honte une présence indubitable. (...) Cette ferme qui, au sommet de la colline, semble

regarder les soldats du corps franc, il est certain qu’elle est occupée par l’ennemi;

mais il n’est pas certain que les soldats ennemis guettent présentement par ses

fenêtres” (p.322). Ao longo das páginas de EN, vemos assim passar sob nossos olhos,

como se fossem meros exemplos casuais, exteriores portanto ao fio ontológico que

está sendo tecido (e, vale insistir, é nesse nível aparente da obra que os comentadores

se detêm),76 as figuras de “prisioneiros de guerra” (“c’est ce que chacun a pu constater

O MITO DA RESISTÊNCIA

226

s’il a remarqué à quelle simplicité presque animale revenaient les prisonniers de

guerre par suite de l’extrême simplification de leur situation”, p.611),77 de Daladier

(p.662),78 das Panzerdivisionen ou da Royal Air Force (p.579), a figura do “captif”

que pode “chercher à s’évader (ou à se faire libérer)” (p. 540), do torturador e a do

torturado (p.454), a figura do judeu perseguido (“parce que je suis Juif, dans certaines

sociétés, je serai privé de certaines possibilités”, p. 581; como se essa sociedade

estivesse muito distante daquela França de 41-43...). Note-se que os exemplos de

perseguições sofridas pelos judeus, frequentes ao longo de EN, são apresentados como

se não tivessem nada a ver com a situação histórica vigente na França, como se fossem

meros exemplos de ordem geral: “De manière plus générale, la rencontre d’une

défense sur ma route: ‘Défense aux Juifs de pénétrer ici’...” (p.582). Ou então: “l’être-

juif apparaîtra comme limite objective externe de la situation” (p.584) — mas essa

“situação” em momento algum ganha uma fisionomia histórica mais precisa. O

interessante, no entanto, é que o próprio conceito de “pour-soi” é definido a partir da

designação histórica do povo judeu — “diáspora”: “On désignait dans le monde

antique la cohésion profonde et la dispersion du peuple juif du nom de ‘diaspora’.

C’est ce mot qui nous servira pour désigner le mode d’être du Pour-soi” (EN, p.176).

É ainda essa mesma idéia que servirá para designar a forma da temporalidade —

“forme diasporique de la Temporalité” (p.182).

Considere-se também a “noção-chave” de “angústia”, construída

igualmente a partir de exemplos extraídos da experiência da guerra: “L’angoisse est le

mode d’être de la liberté comme conscience d’être, c’est dans l’angoisse que la liberté

est dans son être en question pour elle-même. Kierkegaard décrivant l’angoisse avant

la faute la caractérise comme angoisse devant la liberté. Mais Heidegger, dont on sait

combien il a subi l’influence de Kierkegaard, considère au contraire l’angoisse comme

la saisie du néant. Ces deux descriptions de l’angoisse ne nous paraissent pas

contradictoires: elles s’impliquent l’une l’autre au contraire” (EN, p.64). Segue-se o

Uma moral em tempos sombrios

227

exemplo da Guerra para ilustrar a idéia kierkegaardiana de angústia: “La préparation

d’artillerie qui précède l’attaque peut provoquer la peur chez le soldat qui subit le

bombardement, mais l’angoisse commencera chez lui quand il essaiera de prévoir les

conduites qu’il opposera au bombardement, lorsqu’il se demandera s’il va pouvoir

‘tenir’. Pareillement le mobilisé qui rejoint son dépôt au commencement de la guerre

peut, en certains cas, avoir peur de la mort; mais, beaucoup plus souvent, il a ‘peur

d’avoir peur’, c’est-à-dire qu’il s’angoisse devant lui-même” (EN, p.65). Dos

exemplos (“Que signifie l’angoisse, dans les différents exemples que je viens de

donner?”, p.65), vem a equação filosófica (via Kierkegaard e Heidegger): “L’angoisse

c’est moi” (EN, p.69; grifo do autor); “Nous sommes angoisse” (EN, p.79; grifo do

autor); “le pour-soi se saisit dans l’angoisse” (EN, p.615).79

A “angústia”, diz Sartre mais tarde, é “uma das noções-chave da filosofia

de 1930 a 1940; vinha também de Heidegger” (L’Espoir Maintenant, p.24; ed.

brasileira, p.18).80 Essa “noção-chave”, reativada em EN, encontra seus fundamentos

numa conjuntura histórica precisa, marcada justamente pela “angústia”, como atestam

por exemplo as páginas do Journal de Guerre de Simone de Beauvoir: “C’est de

nouveau la guerre en moi, autour de moi, et une angoisse qui ne sait pas où se poser”

(p.70); “Vraiment aucune joie en moi, une angoisse qui serre la gorge” (p.266);

“J’étais dans une angoisse noire” (p.314); “Je suis instable, avec un tas de moments

d’angoisse et de nervosité” (p.357). (Ainda sobre o binômio guerra-angústia, cf. as

pp.197, 198 e 199 do mesmo Journal de Guerre de Simone de Beauvoir.) Saint-

Exupéry, por sua vez, descrevendo o estado de espírito vigente em 1940, evidencia o

vínculo entre “alienação” e “angústia”: “L’angoisse est due à la perte d’une identité

véritable. (...) Je suis comme rejeté dans le néant. Ce moi inconnu marche à ma

rencontre, de l’extérieur, comme un fantôme. Alors j’éprouve une sensation

d’angoisse” (Pilote de Guerre, p.34). Nesse sentido, veja-se o que o próprio Sartre

escreve em seus Carnets de la drôle de guerre, em 1939: “La Russie envahit la

O MITO DA RESISTÊNCIA

228

Pologne. (...) Angoisse réelle” (nova edição, p.32); “Tout s’écroule: un vide noir mais

en échange je réalise plus pleinement la guerre. (...) Ceci ne peut se ‘réaliser’ que dans

et par l’angoisse. (...) La Guerre est une invite à me perdre, à renoncer à moi

totalement” (Idem, p.67).

Voltemos à elaboração filosófica dessa experiência da guerra em EN.

Dentre as ilustrações que compõem a trama do livro, cabe destacar ainda a figura de

uma cidade em “estado de exceção”, sob “toque de recolher”: “Ce n’est pas la même

chose de rester chez soi parce qu’il pleut ou parce qu’on vous a défendu de sortir”

(EN, p.317); “la défense de circuler dans les rues après le couvre-feu...” (p.542).

Estamos diante de uma Paris descaracterizada, irreconhecível: “Qui n’a senti une

profonde déception de ne pouvoir, après un long exil, réaliser à son retour qu’il ‘est à

Paris’. Les objets sont là et s’offrent familièrement, mais moi je ne suis qu’une

absence, que le pur néant qui est nécessaire pour qu’il y ait Paris. Mes amis, mes

proches m’offrent l’image d’une terre promise lorsqu’ils me disent: ‘Enfin! te voilà, tu

es rentré, tu es à Paris!’ Mais l’accès de cette terre promise m’est entièrèment refusé.

(...). C’est que, en effet, ce n’est pas la même chose” (EN, p. 585). Esse retrato

(retocado filosoficamente) de uma cidade que se tornou “estranha” é o mesmo exposto

nos Carnets de la Drôle de Guerre, onde Sartre (então um soldado mobilizado)

descreve sua “profonde déception” com a Paris que reviu durante seus dias de licença:

“La tristesse des soirs, surtout, agit sur moi. Montmartre était mort et désolé.(...). Il y

avait d’ailleurs, dans l’air, quelque chose de plus subtil que le Castor me fit très bien

sentir: c’était une ville d’hommes sans avenirs. (...). Ce qui séparait plaisamment les

gens, pendant la Paix, c’est que chaque homme et chaque femme semblaient une porte

ouverte sur le dehors, sur des avenirs inconnus. (...) Tout cela a disparu (...). Cette

ville que j’avais tant envie de retrouver,(...) je la découvrais tout à coup à mes pieds

mais elle était pauvre et morte — d’une lugubre pauvreté” (Les Carnets de la Drôle de

Guerre, p.240-241).81 Dentre as tintas filosóficas com as quais Sartre retoca, em EN,

Uma moral em tempos sombrios

229

esse retrato da França ocupada, pode-se distinguir, por exemplo, a teoria da

espacialidade de Ser e Tempo:82 “Mais si, précisément, nous avons d’abord constitué

la terre française par un projet premier comme notre place absolue — et si quelque

catastrophe nous contraint de nous exiler...” (EN, p. 551). Dessa mescla de filosofia e

situações reais do mundo, vai-se delineando um painel que “mostra” a que ponto a

“catástrofe” condenou ao exílio (e ao “estranhamento”, isto é, à perda da identidade)

aqueles que vivem em sua própria terra (“comme si on était dans une ville étrangère”,

escreve Simone de Beauvoir logo no início da guerra, Journal de Guerre, p.30) —

uma “terre promise” que foi desfigurada: “Il serait vain d’espérer, par exemple, qu’on

retrouvera, après une guerre, après un long exil, tel paysage montagneux comme

inaltéré et de fonder sur l’inertie et la permanence apparente de ces pierres l’espoir

d’une renaissance du passé. Ce paysage ne découvre sa permanence qu’à travers un

projet persévérant: ces montagnes ont un sens à l’intérieur de ma situation — elles

figurent d’une façon ou d’une autre mon appartenance à une nation en paix, maîtresse

d’elle-même et qui occupe un certain rang dans la hiérarchie internationale. Que je les

retrouve après une défaite et pendant l’occupation d’une partie du territoire, elles ne

sauraient du tout m’offrir le même visage” (EN, p. 611).83

É naquele momento de descaracterização da paisagem histórica francesa

(que se torna “natureza”, como o leitor há de se lembrar dos relatos dos

contemporâneos, evocados em nosso Capítulo 3), desfiguração iniciada durante

“l’année terrible” de 40 —período sombrio marcado pela “Grande Peur: l’exode”84 e

pela “honte” de uma “armée de fuyards” (como eram chamados os “soldados do ano

40”)—, que Sartre, dialogando com psicólogos franceses e ingleses (e sobretudo com

Heidegger), no capítulo de EN intitulado “L’existence d’autrui”, dá o seguinte

exemplo: “La peur, c’est la fuite, c’est l’évanouissement. (...) Ce soldat qui fuit, il

avait tout à l’heure encore autrui-l’ennemi au bout de son fusil. (...) Mais voilà qu’il

jette son fusil dans le fossé et qu’il se sauve. Aussitôt la présence de l’ennemi

O MITO DA RESISTÊNCIA

230

l’environne et le presse; l’ennemi (...) bondit sur lui (...); en même temps cet arrière-

pays qu’il défendait et contre lequel il s’accotait comme un mur, tourne soudain,

s’ouvre en éventail et devient l’avant, l’horizon accueillant vers quoi il se réfugie.(...)

La peur se donne à nous comme un nouveau type d’hémorragie intra-mondaine du

monde: le passage du monde à un type d’existence magique” (EN, p.342-343). “Fuite”

e “peur” —identificadas, como se viu— são sintomas da “alienação”: “avec cet

éclatement, j’éprouve soudain la fuite hors de moi du monde et l’aliénation de mon

être” (EN, p.344). E no capítulo “Les relations concrètes avec autrui”, lemos: “Cette

objectivité de ma fuite, je l’éprouve comme une aliénation que je ne puis ni

transcender ni connaître” (EN, p.411-412). Se, como diz o próprio Sartre (seguindo de

perto, nesse particular, o método freudiano), nada ocorre por acaso, nada é inocente

(EN, p.514),85 o leitor atento de EN, levando em conta, por sua vez, que tampouco

nada é inocente numa filosofia, pode compreender que é a própria “engrenage de la

peur” —expressão com a qual se costuma designar o curso dos acontecimentos que

culminam na “défaite”86— que está sendo recriada no interior dessas análises do livro

(aqui também com o instrumental filosófico de Ser e Tempo87). A “peur”, construída

filosoficamente por Heidegger (assim como a angústia), torna-se, aos olhos de Sartre,

naquela conjuntura, algo terra-a-terra, cena da vida cotidiana (justamente a principal

fonte das ilustrações de EN). É esse estado de coisas real —“la peur, la souffrance

principale de ce long temps d’exil”, escreve Camus em seu balanço literário do

período (La Peste, p.67)88— que induz o momento negativo da alienação em EN.

Se os caminhos trilhados pelas análises do “ensaio de ontologia” de Sartre parecem

muitas vezes obscuros, é o próprio autor que, em seus inúmeros “exemplos”, que

vamos acompanhando, nos indica (inconscientemente, por assim dizer) a pista a ser

seguida, ajudando dessa maneira a iluminar sua obra. Ressaltemos, ainda, mais dois

exemplos que registram a hora histórica: “Le langage parlé, d’ailleurs, est toujours

déchiffré à partir de la situation. Les références au temps, à l’heure, à la place,

Uma moral em tempos sombrios

231

aux entours, à la situation de la ville, de la province, du pays sont données avant la

parole. Il suffit que j’aie lu les journaux et que je voie la bonne mine et l’air soucieux

de Pierre pour comprendre le ‘ça ne va pas’ avec lequel il m’aborde ce matin. Ce n’est

pas sa santé qui ‘ne va pas’ puisqu’il a le teint fleuri, ni ses affaires, ni son ménage:

c’est la situation de notre ville ou de notre pays. Je le savais déjà; (...) on doit

comprendre à partir du monde” (EN, p.573, grifo do autor). A leitura dos jornais,89

fornecendo assim inequivocamente a hora histórica, fornece também, para nós, leitores

de EN, a chave para a decifração da obra: é “a partir da situação”, ou “a partir do

mundo”, conforme a linguagem do autor, que o próprio EN deve ser compreendido —

no caso, daquele mundo sombrio da Guerra e da Ocupação (mas o verdadeiro sentido

de EN, como veremos, se inscreve na superação heróica desse momento sombrio).

O segundo “exemplo”, que figura como epígrafe deste Capítulo, é a nosso

ver decisivo para a compreensão de EN: “Il est donc oiseux de se demander ce que

j’aurais été si cette guerre n’avait pas éclaté, car je me suis choisi comme un des sens

possibles de l’époque qui menait insensiblement à la guerre; je ne me distingue pas de

cette époque même, je ne pourrais être transporté à une autre époque sans

contradiction. Ainsi suis-je cette guerre qui borne et limite et fait comprendre la

période qui l’a précédée.(...) Ainsi, totalement libre, indiscernable de la période dont

j’ai choisi d’être le sens, aussi profondément responsable de la guerre que si je l’avais

moi-même déclarée...” (EN, p.614).90 Esta passagem, que à primeira vista poderia

parecer estranha num “ensaio de ontologia fenomenológica”, vem confirmar nossa

leitura: há em EN um vínculo interno entre abstração filosófica e situações concretas

do mundo, ou melhor, o autor transforma (principalmente via Heidegger e

Hegel/Kojève) assuntos da vida cotidiana91 em raciocínio especulativo (o que aliás

define essa novíssima filosofia: o “existencialismo” francês). Seguindo a pista de

Sartre, é o próprio EN que permitiria ser lido como “um dos sentidos possíveis da

época que levava insensivelmente à guerra” — e não poderia “ser transportado a uma

O MITO DA RESISTÊNCIA

232

outra época sem contradição”. Numa palavra: uma obra “indistinguível” da época

histórica da qual “escolheu ser o sentido” (por isso é possível detectar, no interior de

suas análises especulativas, traços do processo social em curso). Nessa perspectiva,

caberia dizer que as verdades filosóficas de EN “são verdades dentro de uma

determinada ordem social” (para usar os termos de Lukács em História e Consciência

de Classe, p.95), isto é, são verdades que só se revelam à luz daquela ordem social. E,

se quiséssemos adaptar para a estrutura filosófica de EN a passagem de Camus que

também nos serve de epígrafe —”mais là où les uns voyaient l’abstraction, d’autres

voyaient la vérité” (La Peste, p.89)—, precisaríamos acrescentar: ambos tinham razão

pois a abstração, naquele momento, expõe um aspecto da verdade histórica, ou melhor,

é a própria realidade social que se tornara abstrata para os homens da época — “Paris

(...) n’avait plus qu’une existence abstraite”, escreve Sartre em seu balanço da

Ocupação.92 (Daí a formalização filosófica: “l’abstraction comme mode d’être originel

du pour-soi”, EN, p.234.)93 Com isso, e invertendo os termos tradicionais do

problema, conseguimos finalmente determinar um dos sentidos do que apenas

indicáramos na Primeira Parte deste trabalho: EN é concreto porque é abstrato.

Resumamos o resultado de nossa tentativa (que molda para EN uma

exigência do próprio autor) de “dégager les significations impliquées...” (EN, p.513)

na exemplificação usada no livro. Embora à primeira vista nada autorize a suspeitar

que o fio que está sendo tecido em EN não é meramente ontológico, o autor termina —

num acerto involuntário94— mapeando por dentro um estado de “néantisation” real.95

Espécie de interiorização da situação social (ou “interiorização do exterior”, como

diria o Sartre de “Plaidoyer pour les intellectuels”, cf. p.441), EN (nisto, verdadeira

culminância do “monologue intérieur de la France occupée”, antecipado, como vimos,

nos ensaios sartrianos da véspera da guerra) recria, no movimento de suas análises

especulativas, um estado real de “estranheza” de uma subjetividade de fato impotente

diante de um mundo “absurdo”: “la subjectivité est impuissante à constituer l’objectif”

Uma moral em tempos sombrios

233

(EN, p.29). É neste sentido, cuja especificidade o presente Capítulo se encarregou de

mostrar, que seria possível dizer que a subjetividade objetivada pelo Outro, exposta

em EN, é a forma lógico-abstrata de uma “alienação” real (radicalizada na

experiência-limite do campo de concentração, segundo as análises posteriores de

Sartre). (Se o indivíduo moderno, como se sabe, objetiva imediatamente seu

semelhante —e é mesmo “abstrato”—, em EN essa objetivação assume a forma

particular dada por uma conjuntura de “crise histórica” radical.)

Dissemos na Primeira Parte deste trabalho que há uma fonte filosófica (o

Hegel de Kojève) e literária (Malraux) para a concepção trágica, constitutiva de EN,

do mundo das relações intersubjetivas (onde “cada consciência persegue a morte da

outra”). Mas o que (re)ativa essa fonte filosófico-literária é, sabemos agora, a força

das águas de uma fonte histórica: a experiência da Segunda Guerra — “tout est d’un

tragique noir”; “le monde autour de moi était devenu tragique”, escreve Simone de

Beauvoir em seu Journal de Guerre (pp.91 e 355-356). A engrenagem existencial da

alienação em EN encena, ou melhor, “mostra” (no sentido da fenomenologia)96 uma

época histórica sombria. Nesse sentido (mas logo veremos que o movimento das

análises do livro não é unívoco), a obra poderia ser tomada por uma verdadeira

“epopéia negativa” (para usar uma expressão de Adorno a respeito do romance

contemporâneo, particularmente Kafka),97 pois expõe um estado de desintegração do

sujeito, de privação da liberdade (ou “anéantissement de la liberté”, na linguagem do

livro), de perda da própria identidade. Numa palavra (e aqui retomamos o ponto de

partida deste Capítulo): o momento negativo da alienação em EN descreve o

esmagamento da subjetividade pela “pressão histórica” (“la pression historique nous

écrasait”, afirma Sartre em seu balanço daquela conjuntura, Sit.II, p.236) — “ainsi je

rencontre ici tout à coup l’aliénation totale de ma personne: je suis quelque chose que

je n’ai pas choisi d’être” (EN, p.582).

O MITO DA RESISTÊNCIA

234

Tudo se passa como se na “situação-limite” da guerra, momento em que,

segundo Merleau-Ponty, se tornara impossível “ignorar a matéria da história, assim

como um doente já não pode ignorar seu corpo”,98 EN tivesse detectado traços da

sociedade burguesa então em crise (daí a ênfase no processo de erosão do sujeito).

Todavia, quando o livro parece entrever aspectos da alienação moderna ocorre a

virada radical, examinada no Capítulo 2 de nossa Parte I, no curso de suas análises: a

conversão da impotência da subjetividade em heroísmo da consciência, ou a

metamorfose da alienação em libertação.99 (O que engendra —e pressupõe— uma

outra metamorfose: a da “obscuridade” da existência em transparência da História.) É

justamente naquele momento em que tudo está “em suspenso”, em que tudo é possível,

e, portanto, nenhum diagnóstico definitivo, nenhuma verdade estabelecida (momento

que parecia sinalizar o “colapso da civilização burguesa”, para lembrar as palavras

escritas por Adorno e por Horkheimer durante a guerra, cf. Dialética do

Esclarecimento, p.11),100 que se torna também possível vislumbrar o “salut”, isto é,

forjar um “projet (...) de supression de cet asservissement réel” e de “reconquérir la

liberté” (EN, p.462). É assim que, contra o fundo sombrio de um cenário de privação

da liberdade, no âmago de um mundo “em suspenso no nada”, começa a ser

desenhada, conforme vimos na Primeira Parte deste trabalho, a figura luminosa da

Liberdade. (É a luz da liberdade que ilumina a Existência, tornando manifesto o

sentido da História, como veremos.) A câmara de decantação dessa figura luminosa é

o próprio estado sombrio de não-liberdade; seu desenho, contudo, já é feito com a

tinta viva da Resistência. São as cores fortes do heroísmo dramático dessa experiência

política que, se nossa leitura procede, alteram o foco das análises de EN. Rompendo

com o estado de coisas vigente, essa aventura da liberdade e da vontade —uma

verdadeira (re)invenção da liberdade—, que Sartre vê encarnada no movimento de

Resistência, abre caminho para a superação da “alienação”, da angústia existencial

(que ganhará novo significado, diferente do heideggeriano), da “abstração” e da

Uma moral em tempos sombrios

235

paralisia de uma subjetividade impotente, condenada a durar num mundo “absurdo”,

sem sentido. Com a experiência da Resistência (que leva à “conversion radicale”), a

Liberdade e o Tempo são redescobertos. — Resta compreender como essa mitologia

de época se inscreve no coração de EN.

O MITO DA RESISTÊNCIA

236

NOTAS - Capítulo 1

1)”Aucun optimisme logique ou épistémologique ne saurait donc faire cesser le

scandale de la pluralité des consciences. Si Hegel l’a cru, c’est qu’il n’a jamais saisi la

nature de cette dimension particulière d’être qu’est la concience (de) soi. La tâche

qu’une ontologie peut se proposer, c’est de décrire ce scandale et de le fonder dans la

nature même de l’être: mais elle est impuissante à le dépasser” (EN, p.289). 2)Ainda sobre a idéia de “absurdo” em EN: “l’absurdité (...) de mon être” (p. 537); “le

caractère absurde de la mort” (p.591); “la révélation de l’absurdité de toute attente”

(p.593); “le fondement d’une absurdité radicale” (p.599); cette absurdité se présente

comme l’aliénation permanente de mon être-possibilité qui n’est plus ma possibilité,

mais celle de l’autre” (p.605). Na Nausée, como se sabe, Existência e “Absurdité” são

identificadas: “Je comprenais que j’avais trouvé la clé de l’Existence, la clé de mes

Nausées, de ma propre vie. De fait, tout ce que j’ai pu saisir ensuite se ramène à cette

absurdité fondamentale. (...) Je voudrais fixer ici le caractère absolu de cette absurdité.

(...) J’ai fait l’expérience de l’absolu: l’absolu ou l’absurde” (La Nausée, Pléiade,

p.152-153). E mais adiante, lemos: “Tout existant naît sans raison, se prolonge par

faiblesse et meurt par rencontre. (...) Je savais bien que c’était le Monde, le Monde

tout nu qui se montrait tout d’un coup, et j’étouffais de colère contre ce gros être

absurde” (Idem, p.158-159). A título de comparação, cf. em Malraux a idéia de

“absurdité” da vida (La Condition Humaine, Pléiade, p.665). 3)Cf. a Nota 1 da Introdução à Segunda Parte deste trabalho.

4) Recorde-se que Marcuse, em 1948, já sugerira que EN é a expressão histórica de

uma sociedade alienada: “la pensée existentialiste n’atteint son objet, l’existence

Uma moral em tempos sombrios

237

humaine concrète, que là où, cessant de l’analyser comme ‘sujet libre’, elle la décrit

comme ce qu’elle est effectivement: une ‘chose’ dans un monde choséifié”

(“L’Existentialisme — A propos de L’Être et le Néant de Jean-Paul Sartre”, in Culture

et Société, p.219). Voltaremos à análise de Marcuse mais adiante. 5)No início da guerra, referindo-se ao desmoronamento dos valores vigentes, Saint-

Exupéry escreve: “Il s’agit de réinventer une morale” (Pilote de Guerre, p.108-109).

EN surge “suscitado” por esse “vazio”, isto é, para preenchê-lo (se for permitido

adaptar para EN uma idéia desenvolvida pelo próprio Sartre, e a qual retomaremos

posteriormente, acerca da necessidade histórica do surgimento de uma filosofia). 6) Uma “descoberta” tardia (além de ambígua, como veremos), diga-se de passagem,

quando se pensa no conjunto da cultura contemporânea — basta lembrar que os

romances de Kafka, como bem mostrou Adorno (referindo- se também a Joyce e, de

maneira mais geral, ao romance contemporâneo, “não tradicional”), “testemunham um

estado em que o indivíduo se liquida a si mesmo” (Notes sur la Littérature, p.43). 7) “Prière d’insérer” para L’Age de Raison e Le Sursis, in Les Ecrits de Sartre, p.113.

Sobre a constatação da iminência da guerra a partir de 1938, cf. por exemplo L’Age de

raison, Pléiade, p.522 — e também os Carnets de la drôle de guerre, onde Sartre

descreve seu estado de espírito a partir da crise de Munique, mais exatamente,

setembro de 1938, quando a guerra revelou-se inevitável: “À partir de ce moment et

jusqu’en Août 39, j’ai vécu dans ce que nous avons appelé une croyance imaginaire de

la guerre. (...) C’est tout de même vers cette époque que l’état de guerre s’est établi en

moi de manière durable” (nova edição, pp.87-88). 8)”C’est vers cette époque que la plupart des Français ont découvert avec stupeur leur

historicité” (Sit.II, p.241). Nesse sentido, vale também para os nossos futuros

“existencialistas” o que E. Hobsbawm escreveu de maneira geral sobre os intelectuais

da Europa Ocidental e do mundo anglo-saxão: “A radicalização dos intelectuais nos

O MITO DA RESISTÊNCIA

238

anos 30 foi essencialmente uma resposta à crise que tinha abalado o capitalismo no

início do decênio” (“Os intelectuais e o antifascismo”, História do Marxismo, vol.9,

p.263). 9)A respeito do “velho idealismo tradicional dos universitários franceses” (para usar as

já mencionadas palavras de Simone de Beauvoir), Merleau-Ponty escreve: “Nous ne

nous guidions pas sur les faits. Nous avions secrètement résolu d’ignorer la violence

et le malheur comme éléments de l’histoire, parce que nous vivions dans un pays trop

heureux et trop faible pour les envisager. (...) Cette philosophie optimiste, qui

réduisait la société humaine à une somme de consciences toujours prêtes pour la paix

et le bonheur, c’était en fait la philosophie d’une nation difficilement victorieuse, une

compensation dans l’imaginaire des souvenirs de 1914” (“La Guerre a eu lieu”,

publicado no número inaugural de Les Temps Modernes e reproduzido em Sens et

Non-Sens, p.245-246). E mais adiante: “Nous pensions qu’il n’y avait pas des juifs,

pas d’Allemands, mais seulement des hommes ou même des consciences” (Idem,

p.254). Ou ainda: “Avant la guerre, la politique nous paraissait impensable (...). Dans

la perspective de la conscience, la politique est impossible” (Idem, p.255-256). Sobre

a ruptura radical operada pela guerra, recorde-se também o depoimento Sartre: “Tout a

changé à partir de la guerre; (...) j’ai commencé à penser à ce que c’était qu’être

historique, que faire partie d’une histoire qui se décidait à chaque instant par des faits

collectifs. Cela m’a fait prendre conscience de ce qu’était l’histoire pour chacun de

nous; chacun était l’histoire. (...) J’avais découvert en quelque sorte un monde social,

et je m’étais découvert forgé par la société, au moins d’un certain point de vue”

(“Entretiens avec Jean-Paul Sartre”, in La cérémonie des adieux, pp.545 e 550). E em

“Qu’est-ce que la littérature?”, o autor afirma: “Nos prédécesseurs croyaient se tenir

en dehors de l’histoire (...), les circonstances nous avaient replongés dans notre

temps” (Sit.II, p.252). Já em L’imagination, Sartre ajusta contas com a tradição

Uma moral em tempos sombrios

239

“idealista” francesa: basta lembrar por exemplo a longa e dura crítica a Bergson (cf.

nosso Capítulo 1, Parte I, nota 15), “pour avoir confondu le monde avec la

conscience” (p.45). 10)Cf. também “Qu’est-ce que la littérature?”: “on pourrait expliquer notre époque, on

n’empêcherait pas qu’elle ait été pour nous inexplicable, on ne nous en ôterait pas le

goût amer, ce goût qu’elle aura eu pour nous seuls et qui disparaîtra avec nous” (Sit.II,

p.254). 11)”L’éternel a glissé derrière le monde, nous n’ignorons plus que nous sommes

historiques”, escreve Sartre em 1947 (“Scultures à n dimensions”, in Les Ecrits de

Sartre, p.663). 12)”L’Histoire (...) m’entourait et m’enserrait comme tous mes contemporains, elle me

faisait sentir sa présence. J’étais mal outillé encore pour la comprendre et la saisir,

mais pourtant je le voulais fort; je m’y efforçais avec les moyens du bord” (Sartre, Les

carnets de la drôle de guerre, p.227). 13)Sit.II, p.242. São idênticas as palavras com as quais Camus, em seu balanço

literário, descreve o sentimento hegemônico entre os homens daquela época: “ils

sentaient le sol manquer sous leurs pas” (La Peste, p.248). 14)Saint-Exupéry descreve o desnorteamento dos homens da época, em face do

vendaval da Guerra, para “rajuster leur conscience à ces temps nouveaux”: “on ne

renverse pas d’un coup tout un système de penser” (Pilote de Guerre, p.110). No

início do livro, o autor já afirmara: “Ma vérité est en morceaux” (Idem, p.16). Sobre o

“tournant” radical da guerra, cf. mais este depoimento de Sartre: “Tout ce que j’avais

appris, écrit, les années d’avant ne m’apparaissait plus comme valable, ni même

comme ayant un contenu” (“Entretiens avec Jean-Paul Sartre”, in La cérémonie des

adieux, p.548).

O MITO DA RESISTÊNCIA

240

15)Nesse sentido, cf. Remo Bodei, “Estratégias de Individuação”, Presença, nº 8,

p.124. 16)A esse respeito ver em particular o capítulo de Habermas intitulado “Hegel e a

Revolução Francesa”, in Teoria e Prática (além de Marcuse, Razão e Revolução). 17)”Les circonstances nous imposaient de rompre avec nos prédécesseurs; ils avaient

opté pour l’idéalisme” (Sit.II, p.256). 18)Numa conferência pronunciada em 1946 na Yale University, Sartre afirma: “Les

romanciers américains, sans traditions et sans aide, ont forgé, avec une brutalité

barbare, des instruments d’une valeur inestimable” (Atlantic Monthly, vol.178, nº 2,

agosto de 1946; reproduzido em Les Ecrits de Sartre, p.151). E em “Qu’est-ce que la

littérature?”, contrapondo o escritor americano ao “bourgeoisisme” tradicional do

escritor francês, nosso autor escreve: “L’américain (...) écrit aveuglément par un

besoin absurde de se délivrer de ses peurs et de ses colères (...). Ce n’est pas contre la

tradition mais faute d’en avoir une qu’il invente sa manière et ses plus extrêmes

audaces (...). A ses yeux le monde est neuf, tout est à dire” (Sit.II, p.202). É essa

abertura para o futuro (nisto o contrário do velho continente, vergado sob o peso do

passado) que encanta na América: “Une ville, pour nous, c’est surtout un passé; pour

eux, c’est d’abord un avenir”; “Les villes sont ouvertes. Ouvertes sur le monde,

ouvertes sur l’avenir. C’est ce qui leur donne à toutes un air aventureux” (“Villes

d’Amérique”, Sit.III, pp.101 e 111). E ainda: “Il y a cette collectivité qui

s’enorgueillit d’être la moins ‘historique’ du monde, (...) en face d’un avenir vierge où

tout est possible” (“Présentation”, Sit.III, p.127-128). 19)Sobre um outro momento da história das relações da literatura francesa com a

americana, cf. os comentários de Sartre sobre a “longa ligação” de Baudelaire com

Edgar Poe: “Baudelaire se penche sur les années profondes, sur cette Amérique

Uma moral em tempos sombrios

241

lointaine et détestée et il découvre soudain son reflet dans les eaux grises du passé

(Baudelaire, p.133). 20)”Si L’Étranger porte des traces si visibles de la technique américaine, c’est qu’il

s’agit d’un emprunt délibéré”, afirma Sartre sobre o livro de Camus (“Explication de

‘L’Etranger’“, Sit.I, p.106). E a respeito de sua própria obra literária, particularmente

Le Sursis, escrita com o propósito deliberado de “evitar” a maneira pela qual Zola fala

“d’une foule ou d’une nation comme d’une seule personne”, o autor esclarece: “J’ai dû

avoir recours au ‘grand écran’(...). J’ai tenté de tirer profit des recherches techniques

qu’ont faites certains romanciers de la simultanéité tels Dos Passos et Virginia Woolf”

(“Prière d’insérer” para L’Age de Raison et Le Sursis, in Les Écrits de Sartre, p.113;

Pléiade, p.1912). (Na verdade, Sartre está contrapondo certas técnicas vanguardistas

do romance contemporâneo ao romance tradicional do século XIX, e não, como

pretende Annie Cohen-Solal —que aqui comete um lapso, cf. Sartre, p.334—,

inserindo Zola, junto com Dos Passos e V. Woolf, no rol de seus modelos

explicitamente assumidos.) Essa técnica da simultaneidade, esse “recours au grand

écran”, que Sartre toma emprestado da literatura anglo-saxã (e que o leva a formular

“le problème philosophique et romanesque de la simultanéité”, como lemos numa

carta inédita de 1939 a Paulhan) vem sobretudo do “verdadeiro” cinema tal qual nosso

autor o define — aquele capaz de pintar “une grande fresque sociale” (Sartre, “Un

film pour l’après-guerre”, Les Lettres Françaises, número clandestino, abril de 1944).

Seja dito de passagem que as técnicas de montagem vanguardista do cinema (não por

acaso uma das fontes da exemplificação de EN) têm, para Sartre (assim como para

Malraux), o valor de um sucedâneo da narração tradicional. Nas páginas finais de seu

estudo sobre Baudelaire, Sartre, esboçando o perfil do método que procurará

desenvolver mais tarde (a “monografia histórica concreta”),afirma que a superioridade

do “portrait” sobre as formas tradicionais de descrição e narração está no fato de

O MITO DA RESISTÊNCIA

242

conseguir mostrar os traços simultaneamente (Baudelaire, p.172). Lembremos ainda

este depoimento do autor sobre L’engrenage (scénario, escrito em 1946): “Ce qui

m’amusait au départ, c’était de transposer à l’écran une technique que les romanciers

anglo-saxons utilisaient couramment avant la guerre: la pluralité des points de vue”

(in Les Ecrits de Sartre, p.185). Mas, cabe acrescentar, é sobretudo nas primeiras

obras de Sartre (e não nos Chemins de la liberté, malgrado o propósito deliberado do

autor) que os empréstimos americanos se fazem sentir mais vivamente. (Nesse sentido

G. Idt tem razão ao afirmar que “le simultanéisme du Sursis est moins une copie de

Dos Passos d’ailleurs infidèle, que le signe de cette copie, destinée à signaler

l’irruption de l’Histoire dans l’ordre du Vieux Continent”, Geneviève Idt, Prefácio às

Oeuvres Romanesques de Sartre, Pléiade, p.XXVIII.) Basta pensar nos empréstimos

de Hemingway na Nausée (técnica do diálogo direto, sem intervenção do autor,

mantida por exemplo nos diálogos de Roquentin com Anny e com o Autodidata) e em

Le Mur (cf. Michel Ribalka: “Sur le plan de l’écriture, ‘Le Mur’ est un récit objectif,

fait cependant à la première personne. Sartre semble s’être inspiré du style du roman

noir américain et en particulier de la technique de Hemingway”, Pléiade, p.1823). 21)”A situação do narrador no romance contemporâneo”, Notes sur la littérature, p.42. 22)Nesse sentido, cf. o livro de Pierre Laborie, L’Opinion française sous Vichy, em

particular o capítulo “La désintégration du tissu social : La grève du 30 novembre

1938”. 23)Cf. F. Jameson: “the time of Dos Passos is the time of History in which the present

dominates — not our lived present, but a present already past” (“The Selves in the

Texts”, p.99). 24)”L’écrivain ‘engagé’ (...) a abandonné le rêve impossible de faire une peinture

impartiale de la Société et de la condition humaine” (Sit.II, p.73). Esse “realismo” —o

da temporalidade, ou da historicidade— é concebido por Sartre como a pintura das

Uma moral em tempos sombrios

243

coisas num mundo de violência: “Je suis venu au réalisme à ce moment-là par la

violence, c’est-à-dire par l’idée de peindre des choses dans un monde violent”

(passagem de “Sartre par lui-même”, suprimida na versão definitiva do filme, e citada

nos Ecrits de Jeunesse, p.502). O passo seguinte será a “descoberta” de que esse

“realismo” é o “realismo do revolucionário” (Sit.III, p.213), o único capaz, na ótica

sartriana, de estabelecer uma síntese entre subjetividade e objetividade, como veremos

(não por acaso, um dos primeiros ensaios de Sartre no imediato pós-guerra intitula-se

“La violence révolutionnaire”, in Cahiers pour une morale, p.579). 25)O que realmente “seduziu” a geração de Sartre na técnica do romance social

americano, se seguirmos o depoimento de Simone de Beauvoir, foi a “descoberta” de

um certo “materialismo” que decorre de sua própria forma literária, como a autora diz

por exemplo a respeito de Faulkner: “La nouveauté et l’efficacité de sa technique nous

étonnèrent (...). Les équivoques avaient chez Faulkner une profondeur matérialiste; si

les objets et les usages se découvraient au lecteur sous des aspects saugrenus, c’est

que la misère, le besoin, en changeant le rapport de l’homme aux choses, changent la

face des choses. C’est là ce qui nous séduisait dans ce roman” (La force de l’âge,

p.212-213).

26)”Dans l’ensemble, nous trouvions que la technique des romanciers français [Gide,

Valéry, Malraux, Céline] était bien rudimentaire, comparée à celle des grands

Américains” (Simone de Beauvoir, La force de l’âge, p.158-159). E quanto a Proust?

Sobre ele, recai a pecha de “subjetivismo” — Sartre atribui frequentemente ao

romance americano a função que o “subjectivismo” de um Proust ou o “naturalismo”

de um Zola (“l’objectivité absolue (...) est rigoureusement équivalente à l’absolue

subjectivité”, Sit.II, p. 328, isto é, laboram nos mesmos erros, mas contrários) não

poderiam cumprir: dar conta do social na sua totalidade. (A título de comparação, cf. a

crítica de Adorno, num outro registro, ao “extremo subjetivismo” de Proust, in Notes

O MITO DA RESISTÊNCIA

244

sur la littérature, em particular pp.11 e 40.) Se o “subjectivismo” de Proust permanece

prisioneiro da “vida interior” — aliás sua “analyse intellectualiste (...) ne peut opérer

(...) que sur un fond d’irrationalité totale” (EN, p.209)—, o naturalismo de Zola não

nos dá tampouco o todo social (malgrado seu propósito de descrevê-lo): “pour les

naturalistes, la réalité c’est l’apparence, telle que la science positiviste l’a organisée”

(Sartre, “L’homme ligoté”, Sit.I, p. 277). E mais: “Chez Zola, tout obéit au plus étroit

déterminisme” (Sartre, Entrevista, Les Lettres Françaises, novembro de 1945). É

interessante notar, de passagem, que a crítica endereçada por Sartre ao naturalismo é

por vezes muito próxima daquela que Lukács, em seu célebre ensaio de 1936, “Narrar

ou Descrever?”, também lhe endereçou, a saber, a descrição naturalista se limita a

espelhar acriticamente o social: sucumbindo à aparência, como diz Sartre (donde seu

caráter conservador, pois supõe que “les jeux sont faits”, Sit.II, p.311), ou às formas

fenomênicas da realidade capitalista, na linguagem de Lukács, a descrição meramente

niveladora perde a dimensão do processo histórico em curso. “Le déterminisme du

roman naturaliste écrase la vie, remplace l’action humaine par des mécanismes à sens

unique”, lemos em “Qu’est-ce que la littérature?” (Sit.II, p.172). Em contrapartida, a

verdadeira obra de arte “n’est pas simple description du présent” (Sit.II, p.196).

(Sobre outros aspectos da crítica de Sartre ao romance naturalista, cf. Mallarmé — La

lucidité et sa face d’ombre, particularmente a p.61.) As relações de Sartre com Proust

são mais ambíguas do que com Zola. Por um lado, as críticas sartrianas ao autor da

Recherche, às suas “tendances intellectualistes et analytiques”, ou à sua “pure

description introspective”, como lemos em EN (cf. pp.398, 399 e 622), sempre foram

radicais (ou mesmo provocadoras): “La pure description introspective de soi ne livre

aucun caractère; le héros de Proust ‘n’a pas’ de caractère directement saisissable; il se

livre d’abord (...) comme un ensemble de réactions générales et communes à tous les

hommes(...): c’est que ces réactions appartiennent à la ‘nature’ générale du psychique”

Uma moral em tempos sombrios

245

(EN, p.398-399); “Proust s’est choisi bourgeois, il s’est fait le complice de la

propagande bourgeoise, puisque son oeuvre contribue à répandre le mythe de la nature

humaine. (...) Nous ne croyons plus à la psychologie intellectualiste de Proust, et nous

la tenons pour néfaste” (Sit.II, p.20-21). Denegação do antigo modelo (confesso)?

Recorde-se por outro lado a declaração de amor do jovem Sartre por Proust: “Je

n’aime pas seulement Marcel Proust comme un grand auteur, je l’aime encore comme

un tonique, un excitant. Il insère en moi sa méthode, l’ayant lu je pense tout le jour

comme lui. Je suis indulgent à ses fautes, je les aime” (Ecrits de Jeunesse, p.480).

Observe-se o seguinte comentário de Michel Contat sobre La Nausée: “Sartre a

toujours eu des modèles. La Nausée, par exemple, est une sorte de réécriture de La

Recherche du temps perdu qui est le modèle et le contre-modèle qu’il a en tête. Il veut

réécrire Proust à partir de la phénoménologie et du roman américain” (Entrevista,

Magazine Littéraire, número especial sobre Sartre, novembro de 1990, p.22).

Voltaremos ao assunto no último capítulo. 27)Comentando essa passagem de Sartre sobre Dos Passos, F. Jameson escreve: “É

claro que aqui Sartre dá um passo adiante em relação a Brecht na identificação da

linguagem da narrativa em terceira pessoa de um dado ato em termos do que é

alienado e social ou coletivamente inautêntico (o ‘homem’ heideggeriano ou ‘a gente’

é mencionado, e também evoca uma espécie de visão flaubertiana da onipresença do

clichê e do esteriótipo no capitalismo)” (F. Jameson, O Método Brecht, p.89). 28)A respeito do desenvolvimento da idéia de universal singular em Sartre, cf. o ensaio

“L’universel singulier” (Sit.IX), além de Questions de Méthode e de L’Idiot de la

famille. 29)Recorde-se o que Simone de Beauvoir diz sobre o “novo instrumento crítico”

oferecido pela forma literária de Dos Passos (um instrumento que lhes fornecerá a

primeira pista para superar o velho dualismo indivíduo-sociedade): “Chacun est

O MITO DA RESISTÊNCIA

246

conditionné par sa classe, personne n’est entièrement déterminé par elle; nous

oscillions entre ces deux vérités; dos Passos nous en offrait sur le plan esthétique une

conciliation que nous trouvâmes admirable. Il avait inventé à l’égard de ses héros une

distance qui lui permettait de les présenter à la fois dans leur minutieuse individualité,

et comme un pur produit social” (La force de l’âge, p.159). (Nesse sentido, cf. F.

Jameson, para quem, ao longo do movimento da narrativa de Dos Passos, a

experiência subjetiva é transformada na substância da própria história, in “The selves

in the Texts”, p.101.) Também Hemingway, ainda segundo Simone de Beauvoir, é

capaz de mostrar o mundo através de um “sujeito singular”: “La technique

d’Hemingway, dans son apparente et adroite simplicité, se pliait à nos exigences

philosophiques. Le vieux réalisme, qui décrit les objets en soi, reposait sur des

postulats erronés. Proust, Joyce optaient, chacun à sa manière, pour un subjectivisme

que nous ne jugions pas mieux fondé. Chez Hemingway, le monde existait dans son

opaque extériorité, mais toujours à travers la perspective d’un sujet singulier; (...) il

réussissait à donner aux objets une énorme présence, précisément parce qu’il ne les

séparait pas de l’action où ses héros étaient engagés; en particulier, c’est en utilisant

les résistances des choses qu’il parvenait à faire sentir l’écoulement du temps. Un

grand nombre des règles que nous nous imposâmes dans nos romans nous furent

inspirées par Hemingway” (La force de l’âge, p.161). 30)É essa “supressão” que, aos olhos de Sartre, define a América: “L’Amérique ou le

règne humain devenu tout entier intériorité extériorisée” (Cahiers pour une morale,

p.71). 31)Embora a forma literária de Sartre (“tradicional”, salvo os primeiros empréstimos

americanos, expressos na Nausée e nos contos de Le Mur) esteja a milhas de distância

de Kafka, foram várias as tentativas de aproximar os dois autores. Por ocasião da

publicação da Nausée, Nizan escreve: “Sartre pourrait être un Kafka français” (Ce

Uma moral em tempos sombrios

247

Soir, maio de 1938). Ainda sobre a comparação entre La Nausée e Kafka, cf. A.

Boschetti: “On comprend que, sans hésiter, Paulhan parle de Kafka comme de la seule

comparaison possible pour La Nausée: c’est la seule parenté que Sartre avance

clairement, par des emblèmes précis, dans son texte. Bien sûr, il ne s’agit pas pour lui

d’imitation, mais d’affinité élective, qui le révèle à lui-même, lui confirmant la valeur

de son entreprise. Kafka n’est-il pas alors, pour les initiés, la dernière grande

découverte, le modèle dont d’autres jeunes écrivains intéressants du moment —

Camus, Blanchot — se voudraient les égaux en France?” (Sartre et Les Temps

Modernes, p.53). M. Contat e M. Rybalka, num estudo sobre a Nausée, sublinham,

dentre as fontes mais importantes da obra, “l’influence, surtout technique, des

romanciers américains (...) et celle, plus profonde, mais formellement peu apparente,

de Kafka” (in Sartre, Oeuvres Romanesques, Pléiade, p.1666). Recorde-se também o

que diz Simone de Beauvoir: “L’aventure de K... était très différente —beaucoup plus

extrême et plus désespérée— que celle d’Antoine Roquentin; mais, dans les deux cas,

le héros prenait, par rapport à ses entours familiers, une distance telle que pour lui

l’ordre humain s’effondrait et qu’il sombrait solitairement dans d’étranges ténèbres”

(La force de l’âge, p.214). Na leitura de Lucien Goldmann, “La Nausée est le premier

roman où le personnage est en voie de dissolution et où le statut du sujet devient des

plus problématiques” (citado por Contat e Rybalka, in Sartre — Oeuvres

Romanesques, Pléiade, p.1675). Veremos melhor mais adiante em que medida,

malgrado o “sucesso” de Kafka junto à geração de Sartre e o fato de a obra kafkiana

ser uma importante fonte de EN, e, sobretudo, apesar da veemente crítica sartriana

(nisto, de fato, próxima de Kafka) à figura do narrador onisciente (à maneira de

Flaubert), qualquer tentativa de levar adiante uma aproximação entre os dois autores

só poderia incorrer em equívocos grosseiros.

O MITO DA RESISTÊNCIA

248

32)Desnecessário sublinhar que, do ângulo de nosso trabalho, o que realmente interessa

é o sentido do “sucesso” de Kafka junto à geração de Sartre — um “sucesso” que

decorre de um certo tipo de assimilação muito peculiar da obra kafkiana. É a

peculiaridade dessa assimilação que está em jogo aqui (independentemente da

qualidade, ou mesmo da pertinência, da leitura que foi feita de Kafka — não é isso

que conta para nossos propósitos). Poderíamos aliás adaptar para a leitura

“existencialista” de Kafka (assim como para a dos “3 H” e do romance americano) o

que V. Descombes escreveu, referindo-se justamente à produção intelectual francesa

daquele período: “Nous n’avons pas d’ailleurs à nous demander ici si les

interprétations qui seront données de Hegel, de Husserl, puis de Marx ou de Nietzsche

sont ou non fidèles aux pensées qu’elles veulent comprendre. Elles les trahissent, c’est

évident, mais peut-être cette trahison n’est-elle qu’une façon de faire ressortir un

certain ‘impensé’, comme dit Heidegger, inhérent à ces pensées”(Le Même et L’Autre,

p.15). Nessa “traição” evidente (com seus equívocos e “erros”), diríamos de nossa

parte, está o lado vivo daquele momento de renovação da cultura francesa.

33)Nesse sentido, é sugestiva esta passagem de Adorno: “Non seulement la prophétie

kafkaïenne de la terreur et de la torture s’est réalisée, mais ‘l’Etat et le Parti’ se

réunissent effectivement sous les toits, logent dans des auberges comme Hitler et

Goebbels au Kaiserhof, bande de conspirateurs érigée en police” (“Réflexions sur

Kafka”, Prismes, p.229-230).

34)A partir do momento em que a Segunda Guerra se torna iminente, a experiência da

Primeira Guerra passa a ter importância decisiva para a geração de Sartre. Uma

importância que só se faz aumentar com o desenrolar dos acontecimentos, como atesta

por exemplo a lista de livros que Sartre, então um soldado mobilizado, durante a

“drôle de guerre”, encomenda a Simone de Beauvoir: da mescla de materiais

Uma moral em tempos sombrios

249

heteróclitos (como sempre) encomendados (Heidegger, literatura, história e

documentos de época), a lista de Sartre punha um peso grande na história da Primeira

Guerra (cf. Simone de Beauvoir, Journal de Guerre, por exemplo a p.151). O enorme

interesse pela Primeira Guerra (basta lembrar das reflexões de Sartre nos Carnets de

la drôle de guerre) é, aliás, sublinhado pela própria Simone de Beauvoir desde o

início de seu Journal de Guerre: “Je lis le Journal de Gide de 1914 — beaucoup de

choses pareilles à maintenant”, escreve a autora em setembro de 1939 (Journal de

Guerre, p.27). E em outubro de 39: “Toute la matinée, lecture sur la guerre 1914. (...)

D’ailleurs c’est ça qui frappe d’abord dans l’histoire de la guerre de 14: c’est une

attente de 4 ans, coupée de massacres complètement inutiles; on dirait que les

massacres ne sont faits que pour habiller un peu cet écoulement pur du temps qui

brusquement à la fin se condense en une victoire. C’est absurde au possible, et

contingent plus que je n’aurais jamais cru” (Journal de Guerre, p.68-69). Ainda sobre

o “absurdo” da guerra de 14, cf. em particular as pp. 70, 189 e 213 desse mesmo

Journal de Guerre. (Sob o impacto da Segunda Guerra a geração de Sartre pode assim

finalmente compreender que a Primeira Guerra foi um pouco mais do que aquilo que

aprenderam com seus velhos professores: “a luta de Descartes contra Kant”. A esse

respeito, cf. Simone de Beauvoir, Privilèges, p.269; cf. também a resposta de Sartre:

“la guerre de 1914, ce n’est pas, comme le disait Chevalier, ‘Descartes contre Kant’,

c’est la mort inexpiable de douze millions de jeunes hommes”, Sit.III, p.211.) Junto

com a “descoberta” do “absurdo” da Primeira Guerra, a “descoberta” de Kafka: “J’ai

relu le début du Procès de Kafka ces jours-ci” (Simone de Beauvoir, Journal de

Guerre, p.178; cf. também p. 212). Ou então: “Je lis Le Château — (...) je suis prise

par cette histoire, ça a pesé sur moi tout le jour mêlé à toutes sortes d’angoisses”

(Idem, p.257). Sartre, por sua vez, escreve o seguinte durante a “drôle de guerre”:

“J’ai bien souvent pensé à Kafka, depuis la mobilisation, il aurait aimé cette guerre-ci

O MITO DA RESISTÊNCIA

250

et, ç’eût été un bon sujet pour lui, il aurait montré un homme, nommé Grégoire K.,

obstiné à la chercher partout, sentant partout sa menace et ne la trouvant jamais. Une

guerre en sursis, comme certaines des condamnations du procès” (Correspondência

inédita com Paulhan, carta de 13 de dezembro de 1939). E ainda: “Je fais une guerre à

la Kafka” (Idem, carta de 9/06/1940; cf. também os Carnets de la drôle de guerre,

nova edição, p.35). São idênticas as palavras de Simone de Beauvoir em seu Journal

de Guerre: “Toujours une drôle d’impression de guerre à la Kafka” (p.266).

35)Limitamo-nos aqui a retomar a análise de Adorno para quem “a prosa de Kafka (...)

toma por modelo a alegoria”: “com razão, Benjamin definiu-a como parabólica”

(Reflexões sobre Kafka”, Prismes, p.215). Recorde-se que também Lukács apresenta a

obra kafkiana como “alegoria”. Embora Günther Anders afirme, em contrapartida,

que “Kafka não é alegorista” (Kafka: pró e contra, p.50), as linhas mestras de suas

análises não nos parecem divergir, substancialmente, das de Lukács e Adorno (mas

não caberia, evidentemente, desenvolver o assunto no âmbito deste trabalho).

36)”Le Dieu de Kafka, les juges suprêmes dans Le Procès, la véritable administration

du château dans Le Château, représentent la transcendance des allégories kafkaïennes:

le néant” (Lukács, “Contre le réalisme mal compris”, in Textes, p. 259).

37)É interessante lembrar, de passagem, que para Hegel, como sublinhou Habermas

(“Os Escritos Políticos de Hegel”), “a guerra é o meio através do qual a história

universal estende seu destino sobre os homens”. — “La guerre fait sentir à chacun son

historicité”, escreve Sartre (Les carnets de la drôle de guerre, p.202). E num balanço

feito em 1974, nosso autor resume nos seguintes termos a guinada que a guerra

provocou em sua vida: “Ce n’était plus une vie de professeur, coupée de quelques

voyages à l’étranger: j’étais plongé dans une vaste situation sociale” (in La cérémonie

des adieux, p.503).

Uma moral em tempos sombrios

251

38)Nesse sentido, cf. por exemplo o estudo de Gerald Stieg sobre Os Ultimos Dias da

Humanidade, de K. Kraus, essa “obra apocalíptica” onde “não há mais herói

individual”: “os protagonistas históricos, os imperadores, não aparecem senão como

marionetes ou irresponsáveis” (Gerald Stieg, “Karl Kraus et Les Derniers jours de

l’humanité”, in Vienne 1880-1938 — Apocalypse Joyeuse, Editions du Centre

Pompidou, 1986). Recorde-se esta passagem do final de Os Ultimos Dias da

Humanidade: “A noite foi selvagem. O homem criado à imagem de Deus foi

destruído!”. Segundo Michel Contat, o “niilismo terapêutico” de Karl Kraus muito

teria impressionado Sartre (in Les Ecrits de Jeunesse, p. 539). O que nos interessa

aqui é que Sartre, levado pela “força das coisas” durante a Segunda Guerra, assim

como Kafka e Kraus durante a Primeira Guerra (cada um deles com seus próprios

“moyens du bord”, bem entendido), parece entrever aspectos do processo de

desintegração do indivíduo moderno. Em cada um desses casos, trata-se de um

testemunho (filosófico ou literário) de uma conjuntura histórica de radicalização dos

conflitos sociais cujo resultado, a Guerra, evidencia o indivíduo “dissolvido no todo

social” (para relembrar os termos de Sartre). 39)A esse respeito, cf. Horkheimer: “Sob o capitalismo monopolista esse tipo de

independência relativa do indivíduo deixou de existir. O indivíduo deixou de ter um

pensamento próprio” (“Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, p.159). 40)Sobre o “fenômeno da situação-limite” em Heidegger, pensado a partir de Jaspers,

cf. Ser e Tempo, em particular o vol.II, p.31. Em Ser e Tempo, como se sabe, a

“situação-limite” é “originária do ser-para-a-morte” (vol.II, p.147). 41)Recorde-se ainda o depoimento de Simone de Beauvoir após a Ocupação de Paris:

“Je sentais une solitude absolument désespérée, sans but, sans espoir. Un grand

cataclysme avait passé: non de ceux qui dévastent le sol et laissent tout à reconstruire,

mais au contraire qui laissent le monde intact mais anéantissent l’humanité. Tout était

O MITO DA RESISTÊNCIA

252

là, les maisons, les boutiques, les arbres du Luxembourg, mais il n’y avait plus

d’hommes, il n’y en aurait plus jamais — personne (...) pour repenser à tout le passé,

pour refaire un avenir. J’étais là, moi, une survivante absurde” (Journal de Guerre,

p.326). 42)Cf. também o que escreve Simone de Beauvoir em julho de 1940: “Il y a d’abord

cette espèce de suspens, de mise entre parenthèses du monde, du présent tout entier”

(Journal de Guerre, p.334). E sobre o estado de coisas vigente em outubro de 1940:

“C’est sur fond de néant, ça serre l’âme. Comme si toute ma vie était entre

parenthèses; elle coule comme ça, et elle ne s’affirme pas comme existante, elle est

suspendue hors du temps et du monde” (Idem, p.357). 43) Nesse sentido, é interessante lembrar o que Michel Contat observa sobre o segundo

volume de Les Chemins de la liberté, Le Sursis, escrito ao mesmo tempo que EN: “Le

choix de ce titre [Le Sursis], à un moment où l’issue de la guerre était encore

incertaine, même si la victoire des Alliés se dessinait à l’horizon, traduit bien la

liaison fondamentale du roman en train de se faire à l’histoire en train de se faire (...).

Le sursaut de la liberté que représente la résistance au nazisme ne peut l’emporter que

par la victoire militaire des Alliés, que rien ne garantit encore. Incertain de l’issue de

la guerre, (...) Sartre poursuit son roman comme un pari sur la liberté et le met ainsi en

sursis, comme la liberté est elle-même en sursis dans l’ensemble du roman” (in Sartre

— Œuvres Romanesques, Pléiade, p.1868-1869). E acrescenta: “Sartre écrivait Le

Sursis, au moment où le combat des Alliés et de la résistance était lui-même en sursis”

(Idem, p.1872). 44)No final de setembro de 1939, Sartre anota em seus Carnets de la drôle de guerre:

“La Guerre est une invite à me perdre, à renoncer à moi totalement” (nova edição,

p.67). Escrevendo sobre o problema da alienação na Crítica da Razão Dialética,

Jameson observa o seguinte: “A experiência básica desta espécie de alienação para o

Uma moral em tempos sombrios

253

próprio Sartre parece ter sido a eclosão da Segunda Guerra Mundial, na qual milhões

de liberdades pareciam cancelar umas às outras num total desamparo. Esse tipo de

alienação pela própria coletividade já foi descrita por Engels...” (Marxismo e Forma,

p.192). Todavia, Jameson não se dá conta de que é exatamente essa “experiência

básica” da Segunda Guerra, de fato ainda no horizonte da Crítica da Razão Dialética,

a matéria-prima da idéia de alienação em EN. J. Gerassi, por sua vez, afirma que em

EN a alienação é “descrita fenomenologicamente, sem qualquer tentativa de localizar

suas causas históricas ou sociais” (Sartre — Consciência odiada de seu século, p.188).

O que estamos procurando mostrar é que o problema é mais complicado: em EN, não

se trata, evidentemente, de tentar localizar as “causas históricas ou sociais” da

alienação — o que a obra nos dá é a própria forma da alienação naquela conjuntura

histórica. Se nossa interpretação procede, não é possível afirmar, como o faz por

exemplo Marcuse, que em EN a “experiência do absurdo” não é senão “experiência de

sua condição ontológica”, pois “transcende a experiência histórica” (Culture et

Société, p.217). (Isso explicaria, segundo Marcuse, o fato de EN ter sido publicado em

plena França ocupada — afinal, trata-se de uma... ontologia, p.218.) Ora, essa

“experiência do absurdo do mundo” é, naquele mundo da guerra, do nazismo, dos

campos de concentração, algo dramaticamente vivido. O mesmo poderia ser dito da

leitura que Gerd Bornheim faz de EN: “O desespero de Sartre diante do em-si mostra-

se integralmente metafísico” (Gerd Bornheim, Sartre, p.156). Longe de ser apenas

“metafísico”, esse “desespero” é histórico, ou melhor, tem uma base material:

encontra seu fundamento numa situação de “desespero” social própria de uma

conjuntura histórica dramática. Numa palavra: esse problema filosófico exprime uma

situação social objetiva. Ainda sobre esse tipo de leitura convencional que separa

radicalmente EN da experiência histórica, cf. M. Contat: “Dans L’Être et le Néant, il

[Sartre] s’est focalisé sur le rapport des consciences individuelles en dehors de

O MITO DA RESISTÊNCIA

254

l’histoire, mise entre parenthèses par une sorte de réduction phénoménologique”

(Magazine Littéraire, abril de 1994, p.24). 45)Recorde-se as palavras de Saint-Exupéry: “Mais il est une impression qui domine

toutes les autres au cours de cette fin de guerre. C’est celle de l’absurde. (...) C’est si

total que la mort elle-même paraît absurde” (Pilote de Guerre, p.8). E mais adiante:

“Tout cela est absurde” (p.75). Cf. também o Journal de Guerre de Simone de

Beauvoir: “impression d’irréel et d’absurde” (p.94). 46)Nesse sentido, cf. os Cahiers pour une morale: “ma subjectivité devient limitée par

l’autre” (p.309). Ou então: “La liberté de l’autre (...) est libre artisan de mon destin,

elle m’enferme — du moins je le crois ainsi — dans cette situation confinée d’où je ne

puis sortir” (Idem, p.241). 47)Desanti, J.-T., Entrevista concedida a Michel Contat por ocasião dos 50 anos de EN,

Le Monde, 2/7/1993. 48)Refletindo mais tarde sobre a conjuntura da França ocupada, Sartre afirma: “Nous

étions prisonniers des nazis en zone occupée. Ma liberté était malgré tout très brimée”

(in La cérémonie des adieux, p.504). Tal “circunstância”, acrescenta o autor, levou-o à

seguinte descoberta teórica: “Il y a des circonstances où la liberté est enchaînée. Ces

circonstances viennent de la liberté d’autrui. Autrement dit, une liberté est enchaînée

par une autre liberté ou par d’autres libertés” (Idem, p.506). E mais: “C’est là que j’ai

conçu la liberté comme pouvant s’anéantir dans certaines circonstances” (Idem,

p.507); “J’ai été opprimé au moment de la guerre. J’ai été prisonnier; je n’étais pas

libre quand j’étais prisonnier” (p.508).

49)O fato de haver dois planos em EN (o dos exemplos e o das “demonstrações”

ontológicas) não implica, contudo, um cotejo entre os assuntos históricos e os

filosóficos — mesmo porque não se trata, evidentemente, de mera descrição de

“fatos” históricos, mas de reconstrução filosófica desses “fatos”.

Uma moral em tempos sombrios

255

50)Segundo Merleau-Ponty, o regime político autoritário é o exemplo privilegiado de

um momento histórico “où la subjectivité absolue d’un seul transforme en objets tous

les autres” (Humanisme et Terreur, p.205). 51)O que significa dizer: uma França “naturalizada”, tal como os contemporâneos a

concebem, conforme vimos no Capítulo 3 de nossa Primeira Parte. Em EN, um dos

atributos da alienação que decorre do aparecimento de “Autrui” é justamente a

“naturalização”, ou seja, a metamorfose da existência em “natureza”: “Par le pur

surgissement de son être, j’ai un dehors, j’ai une nature; ma chute originelle, c’est

l’existence de l’autre” (EN, p.309; grifo do autor).

52)Procurando sugerir a necessidade histórica do surgimento do Existencialismo,

Merleau-Ponty escreve: “Cette philosophie, dit-on, est l’expression d’un monde

disloqué. Certes, et c’est ce qui en fait la vérité” (Humanisme et Terreur, p. 308). 53)”Tout à l’heure, nous avions pu appeler hémorragie interne l’écoulement de mon

monde vers autrui-objet” (EN, p.307). Em 1940, Sartre escreve em seus Carnets de la

drôle de guerre: “je sentis Paris comme une ville exsangue, qu’une hémorragie avait

vidée de tous ses hommes” (p. 240). 54)”La France en morceaux”: eis um outro título recorrente nas memórias de época e

na historiografia sobre aquela conjuntura — cf. por exemplo o livro de J-P Azéma,

1940 — L’année terrible, p.280.

55)”Il n’y avait pas un visage français qui ne fût une défaite vivante”, escreve Simone

de Beauvoir em junho de 1940 (Journal de Guerre, p.318). Sobre esse “fatalismo”

reinante à época da “défaite”, Sartre afirma: “Quand l’homme se laisse persuader de

son impuissance, le règne de la fatalité commence” (Esprit, nº 3, março de 1948).

O MITO DA RESISTÊNCIA

256

56)Sobre os escritos de Marc Bloch durante a guerra, cf. Peter Burke, A Escola dos

Annales (1929-1989) — A Revolução Francesa da Historiografia (particularmente as

pp.38-39). 57)A “honte” daquele que não resiste a um estado de coisas opressivo, observa Sartre

mais tarde, em “Les Damnés de la Terre”, equivale à perda da humanidade: “il se

dégrade, ce n’est plus un homme; la honte et la crainte vont fissurer son caractère,

désintégrer sa personne” (Sit.V, p.176). Em contrapartida, a “honte” torna-se “um

sentimento revolucionário” quando, a partir dela, pode-se vislumbrar o caminho para a

superação da alienação: “la honte, comme a dit Marx, est un sentiment

révolutionnaire” (Sit.V, p.175). Essa última alternativa Sartre verá no heroísmo da

Resistência (assunto do nosso próximo Capítulo). 58)Nesse sentido, cf. o seguinte comentário de Marcuse sobre EN: “O olhar do outro

me transforma em coisa entre coisas, transforma minha existência em ‘natureza’,

aliena minhas possibilidades, ‘rouba’ meu universo” (“L’Existentialisme”, Culture et

Société, p. 225). Esse problema da alienação que resulta do olhar do outro é retomado

por Merleau-Ponty: “sous son regard [d’autrui] je ne suis qu’une chose”

(“L’Existentialisme chez Hegel”, in Sens et Non-Sens, p.117). 59)Donde a generalização filosófica: “Et ce danger n’est pas un accident, mais la

structure permanente de mon être-pour-autrui” (EN, p.314). 60)O mesmo se dá nos Cahiers pour une morale, onde a principal fonte das ilustrações

das análises sartrianas sobre o “Regard” ainda é a experiência da guerra. É justamente

a partir de exemplos da guerra que Sartre, via Kojève (releitura da dialética hegeliana

do senhor e do escravo), retoma nos Cahiers a idéia, constitutiva de EN, de que a

alienação resulta do olhar do outro: “Le regard d’autrui me transforme en objet (...).

Ainsi le regard de l’autre, extérieur à la société dont je fais partie, me dissout dans une

totalité objective. (...) Je suis dans une certaine objectivité extérieure” (Cahiers pour

Uma moral em tempos sombrios

257

une morale, p.118). E ainda: “Ses yeux sont mes yeux, je regarde par son regard”

(Idem, p.277); “Par le regard (...) je transforme l’esclave en chose” (p.277); “Le

regard regarde l’esclave derrière les yeux” (p.278); “le regard de l’Autre me trouvant

objet, je me trouve moi-même comme objet autre” (p.375). Ou então: “Le regard de

l’autre me vole l’univers. J’ai expliqué dans L’Être et le Néant comment un regard

vidait littéralement et sous mes yeux l’arbre de sa substance. Dans la mesure où la

volonté de l’autre est regard...” (Cahiers, p.269-270). Segue-se o exemplo da Guerra:

“Le soldat qui accomplit sa mission, qui prend un contact avec l’ennemi...” (p.270).

61)E ainda: “Je suis regardé dans un monde regardé” (EN, p.316). É interessante

lembrar aqui a seguinte passagem de G. Anders: “A máscara da Górgona é o exato

oposto de um objeto de contemplação; ela mesma é ‘olhar’, ou seja, ‘mau-olhado’ —

feita e destinada para fazer quem olha continuar olhando ou para paralisá-lo

completamente. O que vale para a máscara vale, mutatis mutandis, para o mundo

kafkiano. Não somos nós que a olhamos, é ela, antes, que nos fita. Mas esse ser fitado

é, na Europa atual, algo terrivelmente conhecido. Pois viveu-se sob os olhos do

mundo, isto é, não como quem olha, mas como quem é olhado; em suma — sob

controle” (Kafka: pró e contra, p.65). Poderíamos acrescentar, por nossa vez: nesse

particular, o que G. Anders disse do “mundo kafkiano” vale, mutatis mutandis, para o

mundo sartriano (o que vai distanciar radicalmente esses dois mundos é a resposta

voluntarista do “herói” sartriano).

62)Eis o propósito de Les Chemins de la Liberté, nas palavras de Sartre: “J’ai voulu

retracer le chemin qu’ont suivi quelques personnes et quelques groupes sociaux entre

1938 et 1944. Ce chemin les conduira jusqu’à la libération de Paris...” (“Prière

d’insérer” para L’Age de raison e Les Sursis, in Les Ecrits de Sartre, p.113). Desta

perspectiva, Les Chemins de la liberté não são senão os caminhos da própria História.

O MITO DA RESISTÊNCIA

258

Cf. o que escreve Michel Contat a respeito do projeto literário da trilogia Les Chemins

de la liberté (concebido ao mesmo tempo que o projeto filosófico de EN): “...la

décision qu’il a prise, immédiatement après l’événement, d’intégrer la crise de Munich

à l’expérience de son héros. Cette démarche se retrouve tout au long de la rédaction du

roman; elle est en quelque sorte consubstantielle à celui-ci: elle s’épuise à rattraper

l’événement pour l’incorporer au récit, un peu à la manière de carnets intimes

branchés sur le cours du monde extérieur. Tout se passe comme si, à partir de l’été

1938, Sartre voulait verser au fur et à mesure son expérience dans le roman qu’il est

en train d’écrire et qui reçoit ainsi ses déterminations de l’extérieur: le projet

romanesque est happé par l’histoire, et le romancier, toujours en retard, est lancé dans

une course dont en définitive l’inachèvement est la loi, puisqu’elle est constamment

relancée par l’événement nouveau, par le cours de l’histoire” (in Sartre — Œuvres

Romanesques, Pléiade, p.1863). Nos Chemins de la liberté reencontramos os

problemas filosóficos centrais de EN, e em particular o tema do “Regard”. Recorde-se

por exemplo esta passagem de Le Sursis, onde Sartre descreve o processo de

“objetivação” que resulta da dolorosa experiência do olhar do outro: “On me voit;

non. Même pas: ça me voit. Il était l’objet d’un regard. Un regard qui le fouillait

jusqu’au fond, qui le pénétrait à coups de couteau et qui n’était pas son regard; un

regard opaque, la nuit en personne, qui l’attendait là, au fond de lui (...). Comme si la

nuit était regard. Je suis vu” (Pléiade, p.852, grifos do autor). E em L’Age de raison,

lemos: “Mathieu se voyait avec les yeux d’Ivich et il avait horreur de lui-même”

(Pléiade, p.478). A experiência lancinante do olhar do outro é também tema de Les

Mouches: “Je veux que chacun de mes sujets (...) sente, jusque dans la solitude, mon

regard sévère peser sur ses pensées les plus secrètes. Mais c’est moi qui suis ma

première victime: je ne me vois plus que comme ils me voient, je me penche sur le

Uma moral em tempos sombrios

259

puits béant de leurs âmes, et mon image est là, tout au fond...” (p.201). Cf. ainda

Morts sans sépulture: “Essaie de te voir avec ses yeux” (p.95). 63)Cf. em Malraux a ênfase (literária) no aspecto doloroso do olhar do outro: “Les

hommes ne sont pas mes semblables, ils sont ceux qui me regardent et me jugent” (La

Condition Humaine, Pléiade, p.549). Recorde-se ainda esta passagem da Condition

Humaine, onde já podemos ouvir Sartre: “il lui fallait les yeux des autres pour se voir”

(Idem, p.682). 64)Cf. Les Aventures de la Dialectique, p.292-293. Em Humanisme et Terreur,

Merleau-Ponty escreve: “Il n’y a pour nous que des consciences situées qui se

confondent elles-mêmes avec la situation qu’elles assument” (p.212). Daí a idéia de

uma “dialectique de l’intersubjectivité concrète” (Idem, p.123). 65)Sobre a “descoberta” do mundo hegeliano das relações intersubjetivas (assunto a ser

desenvolvido em nosso próximo Capítulo), cf. esta passagem do Journal de Guerre de

Simone de Beauvoir: “Une idée qui m’a si fort frappée chez Hegel: l’exigence de la

reconnaissance des consciences les unes par les autres — peut servir de base à une

vue sociale du monde (...). Solidarité métaphysique qui m’est une découverte neuve,

pour moi qui étais solipsiste” (p.361-362). 66)Nesse sentido, cf. ainda o Journal de Guerre de Simone de Beauvoir: “Faux

universalisme kantien du sujet. Une pensée sociale doit délibérément prendre les

hommes comme objet. (La conscience étant dans cet objet, mais comme passivisée)”

(p.363-364).

67)Cf. num outro registro a aproximação que Günther Anders estabelece entre a

“modernidade” de Heidegger e de Kafka: “A ausência de natureza, em Kafka, tem

motivos históricos muito mais atuais: também na filosofia existencial heideggeriana,

que representa (sendo nisso bastante semelhante a Kafka) uma luta contra o

naturalismo que assume o ateísmo do naturalismo, não existe natureza, mas o mundo

O MITO DA RESISTÊNCIA

260

apenas, na medida em que ele é ‘para a existência’, ou seja, a chamada ‘coisa’.

Heidegger e Kafka são os pensadores que suprimem, simultaneamente, o natural e o

supranatural; e, nessa medida, ambos são modernos” (Kafka: pró e contra, p.98-99).

68)O que não significa, bem entendido, que seja uma descrição precisa: não descreve

nenhum modo de produção determinado, como já sublinhamos. 69)”Je ne comprends plus mon pays”, escreve Saint-Exupéry pouco antes da

capitulação (Pilote de Guerre, p.23). E ainda: “L’incertitude me tient en suspens”

(Idem, p.34); “Personne ne savait rien” (Idem, p.100). Em seu diário de guerra, Sartre

relata o total desnorteamento dos contemporâneos diante do curso dos acontecimentos:

“Nous nous taisons, le coeur lourd. C’est vrai. On ne sait rien. Où sont les Allemands?

Devant Paris? Dans Paris? Est-ce qu’on se bat dans Paris?” (“La mort dans l’âme —

Journal de Guerre”, Pléiade, p.1562). Nesse sentido, cf. também o que Simone de

Beauvoir escreve, em outubro de 1939, em seu diário de guerra: “Staline et Hitler font

une offensive pour la paix — naturellement on n’acceptera pas mais on ne sait rien de

ce qui se passe ni de ce qui va se passer” (Journal de Guerre, p.68). 70)A expressão “être-pour-la-guerre” é recorrente na correspondência de Sartre com

Simone de Beauvoir, mantida no período de elaboração de EN. Cf. por exemplo esta

autocrítica de Sartre, numa carta de outubro de 1939: “Ce que je ne voyais pas c’est

que notre époque (18-39) ne tirait son sens de rien d’autre (en son ensemble comme

dans ses plus petits détails) que d’un être-pour-la-guerre. (...) Qu’aurait-il fallu faire?

Vivre et penser cette guerre à l’horizon, comme la possibilité spécifique de cette

époque. Alors j’aurais saisi mon historicité, qui était d’être destiné à cette guerre (eût

elle-même été évitée en 39 et pour toujours, elle n’était pas moins ce sens concret de

toute cette époque)” (Lettres au Castor, vol.I, p.378; grifo do autor). Ver também o

que Sartre anota em seus Carnets de la drôle de guerre, em setembro de 1939: “Il

m’est impossible d’éviter d’être en guerre. (...) C’est une modification du monde et de

Uma moral em tempos sombrios

261

mon être-dans-le-monde. (...) Mon destin individuel commence à partir de là (...). Je

suis-pour-la-guerre dans la mesure même où je suis homme. Il n’y a plus de différence

entre ‘être-homme’ et ‘être-en-guerre’. (...) Car s’il n’est possible à personne de

refuser son être-en-guerre, les différences individuelles et la liberté se retrouvent dans

la façon même d’être-pour-la-guerre” (nova edição, p.59). Daí a generalização teórica:

“l’être-pour-la-guerre est une structure essentielle de la réalité-humaine” (Idem,

p.138). Escrevendo sobre Les Chemins de la liberté, Michel Contat afirma: “Durant

toute la ‘drôle de guerre’, Sartre a parcouru un chemin philosophique considérable,

qui l’a conduit d’une morale individualiste et d’une position abstraitement anarchiste à

une pensée de l’historicité qu’il forge dans un dialogue intérieur avec Heidegger,

devant l’évidence que la guerre a non seulement modifié son propre rapport au monde,

mais aussi pénétré d’un sens radicalement différent toute l’expérience de sa

génération. Cette pensée de ‘l’être-pour-la-guerre’, inspirée de la notion

heideggerienne de ‘l’être-pour-la mort’, est maintenant au coeur de sa réflexion sur la

morale et la liberté, et il s’aperçoit que la méconnaissance qu’il a eue auparavant de sa

véritable situation dans le monde et dans l’histoire tire en arrière le roman conçu avant

cette révélation que constitue pour lui la guerre et qui l’entraîne à se convertir à

l’histoire. Or, la découverte de l’historicité est le sujet profond du second volume”

(Pléiade, p.1865). 71)”Tout portait l’ensemble de l’Allemagne en 1914 vers la guerre” (Cahiers pour une

morale, p.60). 72)Essa necessidade histórica (ou “convenance historique”, nos termos dos Carnets) da

reinvenção sartriana de Heidegger explica porque a “descoberta” da fenomenologia

alemã não se deu antes, ainda que não tivessem faltado ocasiões para tal: “S’étonnera-

t-on d’apprendre que Sartre n’assista pas aux conférences données en 1929 par

Husserl à la Sorbonne? (...) De même, Sartre n’avait pas, alors, prêté attention à

O MITO DA RESISTÊNCIA

262

Heidegger dont la leçon Qu’est-ce que la métaphysique? avait pourtant été publiée

dans le même numéro de Bifur que son extrait de La Légende de la vérité” (Annie

Cohen-Solal, Sartre, p.140). Observe-se o que diz o próprio Sartre nos Carnets de la

drôle de guerre: “Si je veux comprendre la part de la liberté et du destin dans ce qu’on

appelle ‘subir une influence’, je peux réfléchir sur l’influence que Heidegger a exercée

sur moi. Cette influence m’a paru quelquefois, ces derniers temps, providentielle,

puisqu’elle est venue m’enseigner l’authenticité et l’historicité juste au moment où la

guerre allait me rendre ces notions indispensables. (...) Mais en fait ce n’est pas ma

première rencontre avec Heidegger. J’en avais entendu parler longtemps avant de

partir pour Berlin” (p.225). E acrescenta, numa nota: “J’avais lu sans comprendre en

1930 Qu’est-ce que la métaphysique? dans la revue Bifur” (p.225). (Ainda sobre essa

primeira leitura de Was ist Metaphysik, cf. o depoimento de Simone de Beauvoir:

“nous n’en vîmes pas l’intérêt car nous n’y comprîmes rien”, La force de l’âge, p.93.)

Trocando em miúdos, Sartre só pôde “compreender” Heidegger quando a “força das

coisas” o impeliu a reinventar a fenomenologia alemã: “La guerre m’a découvert mon

historicité. (Jeu ordinaire des coïncidences, préparé à cela les derniers temps par Aron

et Heidegger. Mais sont-ce bien des coïncidences? N’est-ce pas la situation

européenne qui a décidé Aron à écrire ce livre [Introduction à la philosophie de

l’Histoire, publicado em 1938] et à l’écrire ainsi? Et moi-même, n’est-ce pas ce que

Nizan appelle la plus grande pression de l’Histoire qui m’a décidé et à les lire et à me

considérer moi-même sous mon aspect historique?)” (Carnets de la drôle de guerre,

nova edição, p.160; grifos do autor). 73)Adaptação de uma idéia de Zulmira Ribeiro Tavares. 74)”Une France qui perd ses entrailles”, escreve Saint-Exupéry sobre aquele mundo

agonizante (Pilote de guerre, p.112). “C’est toute une forme de vie qui vient de

prendre fin”, lemos no Journal de Guerre de Simone de Beauvoir (p.44). E mais

Uma moral em tempos sombrios

263

adiante, a autora acrescenta: “Ça consacre cette impression de fin d’un monde, d’une

époque, que j’ai si fort en ce moment” (Idem, p.356). De fato, o fim de um certo

mundo, mas vivido pelos contemporâneos como o fim do mundo — “c’est la fin du

monde!” é uma frase recorrente no início da guerra (cf. por exemplo Saint-Exupéry,

Pilote de Guerre, p.108). Em outubro de 1939, Simone de Beauvoir registra em seu

diário: “Je réalise que c’est la guerre, (...) je me sens malheureuse comme la pierre (...)

et quelque chose en moi échappait à l’historicité” (Journal de Guerre, p.83). Recorde-

se também o que diz o personagem principal de L’Age de raison, Mathieu, num

período em que a guerra se tornara iminente: “Je me suis vidé, stérilisé (...). Je

n’attends plus rien” (L’Age de raison, Pléiade, p.446). Sobre o problema,

desenvolvido na Primeira Parte deste trabalho, da “esterilização” do tempo na

conjuntura da guerra, e particularmente durante a Ocupação, cf. ainda estas passagens

do Journal de Guerre de Simone de Beauvoir: “Je continue à être terriblement limitée

au présent”; “le temps n’a plus de valeur” (pp. 35 e 37). E imediatamente após a

Ocupação, a autora afirma: “Maintenant c’est fini — il n’y a plus aucun moment qui

brille à l’horizon et auquel on fasse hommage du présent — il n’y a plus d’attente,

plus d’avenir — le temps devant moi est absolument stagnant, il semble qu’on n’aura

plus qu’à pourrir sur place pendant des années” (Idem, p.313); “Je me suis sentie dans

une souricière, secouée dans l’espace et le temps, sans avenir, sans espoir” (p.325-

326); “Tout est stagnant, fini, indifférent” (p.328). Essa “paralisia” do tempo é, na

ótica sartriana, como já sabemos, paralisia da “Ação”: “L’occupation fut souvent plus

terrible que la guerre. Car, en guerre, chacun peut faire son métier d’homme au lieu

que, dans cette situation ambiguë nous ne pouvions vraiment ni agir, ni même penser”

(Sartre, “Paris sous l’occupation”, Sit.III, p.42; grifos do autor). No início de outubro

de 1939, Sartre já anotava em seus Carnets de la drôle de guerre: “Aujourd’hui ma

vie s’est arrêtée, elle est derrière moi, morte” (nova edição, p.71).

O MITO DA RESISTÊNCIA

264

75)”La guerre ne fait pas seulement l’objet de mes pensées, elle en fait aussi l’étoffe”,

escreve Sartre em setembro de 1939 (Carnets de la drôle de guerre, nova edição,

p.60).

76)Mesmo Marcuse, não obstante o interesse de sua análise sobre EN, limita-se a esta

observação a respeito do lugar que as ilustrações ocupam no interior da obra:

“L’analyse existentielle de Sartre est strictement philosophique, en ce sens qu’elle fait

abstraction des facteurs qui constituent sa réalité empirique concrète: celle-ci ne fait

qu’illustrer les conceptions métaphysiques et métahistoriques de Sartre”

(“L’Existentialisme — A propos de L’Être et le Néant de Jean-Paul Sartre”, in Culture

et Société, p. 218). Mas as ilustrações, longe de serem exteriores ao tecido ontológico

de EN, tecem sua própria trama, como estamos procurando mostrar. O problema mais

sério da análise de Marcuse, a nosso ver, é o seguinte: o quadro histórico apresentado

no início de seu ensaio sobre EN (trata-se de uma época dominada pelo “terror

totalitário”, “o apogeu do nazismo”, a Ocupação da França, etc.) serve apenas de

introdução ao “Existencialismo” francês (espécie de “cenário sócio-histórico” em que

emerge esse movimento filosófico, para usar um título de Razão de Revolução), mas

desaparece completamente no decorrer da análise propriamente dita do “essai

d’ontologie phénoménologique” de Sartre — aqui, Marcuse limita-se a repetir o refrão

tradicional: há uma distância intransponível entre EN e a “realidade histórica” (p.231);

a obra não tem nada a ver com a experiência histórica efetiva, é mera ontologia, “uma

doutrina idealista” (p.218). Marcuse só destoa desse refrão tradicional na única

passagem (ponto de partida de Jameson), mencionada no início deste capítulo, onde o

autor sugere que EN é a expressão histórica de uma sociedade alienada: “la pensée

existentialiste n’atteint son objet, l’existence humaine concrète, que là où, cessant de

l’analyser comme ‘sujet libre’, elle la décrit comme ce qu’elle est effectivement: une

‘chose’ dans un monde choséifié” (p.219). Todavia, esta passagem diz respeito ao

Uma moral em tempos sombrios

265

capitalismo de maneira geral, e não aos problemas históricos específicos da conjuntura

da Guerra e da Ocupação (sem falar que EN não deixa de considerar a existência

humana como “sujet libre” — ocorre que essa liberdade nasce da própria alienação,

como vimos no Capítulo 2 de nossa Parte I).

77)Essa “simplicité presque animale” própria daqueles que saem da prisão, essa quase

perda da humanidade, é também tema de Malraux: “Quand les hommes sortent de

prison, neuf fois sur dix leur regard ne se pose plus. Ils ne regardent plus comme des

hommes” (L’Espoir, p.175). 78)”Il semble évident qu’une des raisons de la chute du cabinet Daladier, c’est son

attitude temporisatrice vis-à-vis de la Russie”, afirma Sartre nos Carnets de la drôle

de guerre (p.430-431). 79)Em resumo: sem os exemplos, ficaria incompleto o traçado das figuras

fundamentais do livro — é a partir deles que se dá a elaboração filosófica. É o próprio

Sartre quem sublinha a importância dos exemplos em EN: “Nos exemples (...) nous

ont montré un pour-soi niant concrètement qu’il soit un tel être singulier” (EN, p.220).

Assim, acrescenta o autor, a estrutura do pour-soi, “sa structure de négativité”, “était

dévoilée sur des exemples” (p.220) — mais precisamente, “sur des exemples concrets”

(p.303). 80)Recorde-se que em Ser e Tempo “o fenômeno da angústia” está colocado, como diz

o próprio Heidegger, na “base da análise” do livro: “O fenômeno da angústia foi

colocado à base da análise como uma disposição suficiente que atende tais exigências

metodológicas. A elaboração dessa disposição fundamental e a caractrização

ontológica do que nela se abre como tal retira seu ponto de partida do fenômeno da de-

cadência e delimita a angústia frente ao fenômeno que lhe é próximo, a saber, o

fenômeno do temor” (Ser e Tempo, vol.I, p.245). Sobre a relação entre os “fenômenos

do temor e da angústia” em Ser e Tempo, cf. em particular a p.254 do vol.I e as

O MITO DA RESISTÊNCIA

266

pp.138-140 do vol.II — “Como a temporalidade da angústia se comporta frente à

temporalidade do temor?” (vol.II, p.140). Em Ser e Tempo, como já foi lembrado na

Primeira Parte deste trabalho, a liberdade é “liberdade para a morte que, apaixonada,

factual, certa de si mesma e desembaraçada das ilusões do impessoal (Man), se

angustia” (vol.II, p.50). É a “angústia” que “sempre determina, de forma latente, o ser-

no-mundo” (Ser e Tempo, vol.I, p.254). Por outro lado, “o que angustia a angústia é o

mundo enquanto tal” (ST, vol.I, p.250; tradução parcialmente modificada) — “A

angústia se angustia com o próprio ser-no-mundo” (vol.I, p.251); “a angústia se

angustia com o ser-no-mundo lançado; a angústia se angustia pelo ser-no-mundo”

(vol.I, p.255). A respeito do vínculo estrutural entre “angústia” e alienação em Ser e

Tempo, cf. especialmente o vol.I, pp.250-252: “Na angústia, se está ‘estranho’“

(p.252).

81)Cf. o retrato literário desse estado de coisas em Camus: “Le soir approchait, mais la

ville, si bruyante autrefois à cette heure-là, paraissait curieusement solitaire” (La

Peste, p.81). E ainda: “Cette ville déserte(...) gémissait alors comme une île

malheureuse” (Idem, p.156). Cf. também o Journal de Guerre de Simone de Beauvoir:

“Jamais Paris n’a été aussi noir” (p.24); “Paris était sinistre” (p.347). 82)Sobre a “espacialidade existencial do ser-no-mundo” em Heidegger, ver Ser e

Tempo, em especial o vol.I, pp.148-163 e p.196.

83)Ainda sobre a desfiguração da paisagem histórica francesa, eis o exemplo dado por

Sartre para ilustrar a discussão filosófica sobre o desejo de apropriação: “Le pic sur

lequel on a planté un drapeau est un pic qu’on s’est approprié” (EN, p.646). Difícil

não nos lembrarmos que justo naquele momento a bandeira alemã tremulava no pico

da Tour Eiffel...

Uma moral em tempos sombrios

267

84)Título de um capítulo do livro de J.-P Azéma, 1940 L’année terrible. (“La

Grande Peur” é também o título de um roteiro inédito de Sartre escrito em 1943 para

Pathé Films.) Nesse capítulo sobre o grande êxodo de 1940, Azéma escreve: “Entre

mai et juillet 40, 8 millions de Français environ fuient l’avance de l’armée allemande.

En train, en voiture, à bicyclette ou à pied, poussés par la peur et les rumeurs, ils

s’efforcent de gagner le sud du pays” (1940 — L’année terrible, p.119-120). A esse

respeito, veja-se também uma passagem do livro de E. Astier, De la chute à la

libération de Paris: “C’est la grand-peur. (...) En quelques jours, un million de

Parisiens s’enfuyaient ou tentaient de s’enfuir. Chacun cherche un taxi ou un train,

voire une bicyclette, pour faire 10 kilomètres ou 1000. (...) Ceux qui restent (...)

regardent. (...) Ils voient la peur, les troupes, les tanks qui passent en débandade, les

garages pris d’assaut, les vieillards et les voitures d’enfants. Les fuyards sont

accablés...” (p.16). O documentário intitulado “La France Libérée”, realizado em 1944

por Serguei Youtkevitch, estima, na parte dedicada ao êxodo de 40 —”Les routes de

l’exode”—, em nada menos de 10 milhões o número de franceses em fuga pelas

estradas. Uma estimativa que não discrepa das de outros documentários sobre o

período. Observe-se o depoimento pessoal de Simone de Beauvoir: “Nous sommes

partis; il y avait déjà énormément de monde sur la grande route; les autos, avec leur

immanquable matelas sur le toit, les camions et surtout ces charrettes que j’ai vues

pour la première fois sur le Bd St Michel et qui m’avaient serré le coeur. A nouveau

elles étaient chargées de foin, et les femmes étaient assises, les yeux vides, un

mouchoir blanc sur la tête, parmi les bicyclettes et les matelas tandis que les hommes

marchaient à pied à côté des chevaux. Beaucoup de bicyclettes aussi, quelques

piétons, mais peu. (...) Les voitures en panne, les réfugiés assis sur les valises...”

(Journal de Guerre, p.321). Ainda a respeito do êxodo de 40, ver a descrição feita por

O MITO DA RESISTÊNCIA

268

Saint-Exupéry em Pilote de Guerre, particularmente as pp.99-100 e 117 — “le mot

d’ordre”: “on évacue” (Pilote de Guerre, p.100).

85)”Aussi devons-nous nous borner à nous inspirer de la méthode psychanalytique (...).

Nous n’admettons pas plus le ‘hasard’ déterministe que Freud” (EN, p.514). Essa idéia

tornar-se-á recorrente nos textos posteriores de Sartre. “Le hasard n’existe pas”, lemos

por exemplo em Questions de Méthode (p.55, nova edição), no decorrer da análise

sobre Flaubert. Cf. ainda EN: “ainsi n’y a-t-il pas d’accidents dans une vie” (p.613). 86)Cf. por exemplo o livro de Pierre Laborie, L’Opinion Française sous Vichy, p.175 e

pp.197-205. 87)Sobre o problema heideggeriano do “temor”, cf. ainda em Ser e Tempo o tópico “O

temor como modo da disposição”, vol.I, p.195. 88)Recorramos, mais uma vez, ao testemunho de Simone de Beauvoir: “Sinistre. Tout

pourrait aller, solitude, absences, s’il n’y avait pas cette terrible peur. Impossible de la

supporter longtemps; au bout d’une heure ou deux elle retombe”, escreve a autora em

setembro de 1939 (Journal de Guerre, p.34). E acrescenta, alguns dias depois: “La

substance dont je suis faite: détresse et peur” (Idem, p.77). 89)Já observamos que a lista de livros encomendados por Sartre durante o período da

“drôle de guerre”, e com a qual o autor ia completando seus anos de formação,

compreendia muita documentação de época. Acrescente-se a essa lista a leitura

sistemática dos jornais, usada como documentação para o projeto literário em curso —

à época de sua mobilização, referindo-se a Les Chemins de la Liberté, Sartre escreve:

“Quand je serai à Paris, je prendrai tous les Paris-Soir de septembre 38 pour ma

documentation” (Carta a Simone de Beauvoir, janeiro de 1940, Pléiade, p.1905). Cf. o

resultado dessa leitura sistemática por exemplo nesta passagem de Les Sursis: “Elle

déplia le journal, ajusta ses lunettes sur son nez et se mit à lire: ‘Dernière heure: M.

Uma moral em tempos sombrios

269

Chamberlain n’a pas conféré, cet après-midi, avec le chancelier Hitler’“ (Pléiade,

p.786).

90)Recorde-se também esta passagem de EN: “Descartes est un absolu jouissant d’une

date absolue et parfaitement impensable à une autre date” (p.580). Ver a gênese dessa

idéia nos Carnets de la drôle de guerre, momento da “descoberta”, imposta pela

guerra, da historicidade: “Descartes n’était point Descartes d’abord et du XVIIe siècle

ensuite. (...) Il a choisi par le XVIIe siècle d’être Descartes, il s’est fait du XVIIe

siècle, son être-dans-le-monde était être-dans-le siècle. (...) Je me fais dans l’Histoire

(...) Cela implique un être-pour-la-guerre, un être-dans-la-classe (pour la nier, la haïr

ou l’accepter), etc. Tout cela, qui m’avait échappé jusqu’ici, la guerre aura du moins

servi à me l’enseigner” (nova edição, p.137-138; grifos do autor). Cf. o

desenvolvimento dessa reflexão sobre as determinações históricas do racionalismo

cartesiano na Questão de Método (pp.120 e 167) e na Conferência de Araraquara

(p.25). 91)”Um fenomenólogo de cotidiano” — eis as palavras com as quais G. Lebrun define

Sartre (Passeios ao léu, p.130). É o próprio autor quem sublinha a importância da

“réalité quotidienne” na constituição da ontologia de EN: “Toutefois il ne saurait

s’agir ici de nous référer à quelque expérience mystique ou à un ineffable. C’est dans

la réalité quotidienne qu’autrui nous apparaît et sa probabilité se réfère à la réalité

quotidienne” (EN, p.299). Sobre a “cotidianidade” em Heidegger, cf. Ser e Tempo: o

“ser da cotidianidade” (vol.I, p.226); “a experiência cotidiana do mundo circundante”

(vol.I, p.244); a “cotidianidade” como “ponto de partida” (vol.II, p.11);

“Temporalidade e cotidianidade” (vol.II, cap.4, p.130). Ainda Ser e Tempo: “É,

portanto, somente no âmbito da discussão de princípio do sentido do ser em geral e de

suas possíveis derivações que se poderá conceituar, de forma suficiente, a

cotidianidade” (vol.II, p.175).

O MITO DA RESISTÊNCIA

270

92)”Paris sous l’occupation”, Sit.III, p.27. Também Camus caracteriza aquela

conjuntura como uma época de “abstração” — cf. nesse sentido, em La Peste, a

identificação entre “peste” e “abstração”: “il recommencerait quand l’abstraction

serait finie” (La Peste, p.255). 93)Cf. a definição de “abstração” em EN: “L’abstraction sépare ce qui est uni(...).

L’abstrait hante le concret comme une possibilité figée dans l’en-soi que le concret a à

être. (...) L’abstraction n’enrichit pas l’être, elle n’est que le dévoilement d’un néant

d’être par delà l’être” (p.229-230). A elaboração da idéia de “abstração” em EN passa

pela Fenomenologia do Espírito, onde, como se sabe, o abstrato é “o mais pobre”

(Hegel, La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.106) — “o imediato, o não-

experimentado, isto é, o abstrato” (La Phénoménologie de l’Esprit, Prefácio, vol.I,

p.32).

94)”En fait, j’aurais dû commencer à découvrir cette force des choses dès L’Être et le

Néant”, afirma Sartre (Sit.IX, p.102). Mas acrescenta, imediatamente, esta já

mencionada autocrítica: “L’Être et le Néant retrace une expérience intérieure sans

aucun rapport avec l’expérience extérieure —devenue, à un certain moment,

historiquement catastrophique— de l’intellectuel petit-bourgeois que j’étais. Car j’ai

écrit EN, ne l’oublions pas, après la défaite de la France” (p.102). EN é portanto

definido pelo próprio autor, conforme indicamos no início deste trabalho, como uma

obra de “filosofia pura” que não tem nada a ver com a realidade histórica. Por outro

lado, seria oportuno lembrar esta passagem de Sartre: “Tout écrit possède un sens,

même si ce sens est fort loin de celui que l’auteur avait rêvé d’y mettre” (Sit.II, pp.11-

12). Além disso, é o próprio Sartre quem afirma que, a partir de 1930, ou seja, a partir

da radicalização da crise mundial, a história “impôs” ao escritor a seguinte tarefa: “A

ces lecteurs sans loisirs, occupés sans relâche par un unique souci, un unique sujet

pouvait convenir: c’était de leur guerre, de leur mort que nous avions à écrire” (Sit.II,

Uma moral em tempos sombrios

271

p.244). Sobre o problema da “relação paradoxal” entre intenção e resultado de uma

obra, cf. Lukács que, no ensaio “O Romance”, sublinha justamente um certo

descompasso (detectado no caso por Lenin, em sua análise sobre Tolstoi) “entre

conception du monde consciente et conception du monde figurée, entre intention et

oeuvre” (“Le Roman”, Ecrits de Moscou, p.120-121).

95)Nesse sentido (mas não estamos em face de uma obra de mão única), EN seria um

livro verdadeiramente “existencialista” na acepção de Kierkegaard, ou seja, descreve

um mundo que “soçobra no nada” (como dizia o filósofo dinamarquês). 96)Sob este ângulo, EN é de fato uma “fenomenologia” no sentido em que Heidegger a

define: “O termo ‘fenômeno’ (...) significa mostrar-se (...) — trazer para a luz do dia,

pôr no claro. (...) Deve-se manter, portanto, como significado da expressão

‘fenômeno’: o que se revela, o que se mostra em si mesmo” (Ser e Tempo, vol.1, p.58).

Nessa perspectiva, acrescenta Heidegger, “a ontologia só é possível como

fenomenologia. (...) ‘Atrás’ dos fenômenos da fenomenologia não há absolutamente

nada(...). A fenomenologia é necessária justamente porque, de início e na maioria da

vezes, os fenômenos não se dão. O conceito oposto de ‘fenômeno’ é o conceito de

encobrimento” (p.66). Essa idéia é retomada por Sartre logo na Introdução de EN:

“Ainsi parvenons-nous à l’idée de phénomène, telle qu’on peut la rencontrer, par

exemple, dans la ‘Phénoménologie’ de Husserl ou de Heidegger (...). Le phénomène

(...) se dévoile comme il est” (EN, p.12). Voltemos a Ser e Tempo: “Descrever o

‘mundo’ fenomenologicamente significa: mostrar e fixar numa categoria conceitual o

ser dos entes que simplesmente se dão dentro de mundo” (Ser e Tempo, vol.1, p.103).

Daí a idéia de verdade como “desvelamento”: “A verdade (descoberta) deve sempre

ser arrancada primeiramente dos entes. O ente é retirado do velamento. A descoberta

em seu fato é, ao mesmo tempo, um roubo” (Ser e Tempo, vol.I, p.291). Em 1938,

Sartre elogia Dos Passos porque sua obra é capaz de “mostrar” o nosso mundo: “C’est

O MITO DA RESISTÊNCIA

272

que son art n’est pas gratuit (...): il s’agit de nous montrer ce monde-ci, le nôtre. De le

montrer seulement, sans explication ni commentaires. (...) C’est en peignant, comme

nous pourrions les peindre, ces apparences trop connues, dont chacun s’accomode, que

Dos Passos les rend insupportables. Il indigne ceux qui ne sont jamais indignés, il

effraie ceux qui ne s’effraient de rien” (Sit.I, p.14-15; grifo do autor). Ou seja: ao

“mostrar”, expõe o caráter “insuportável” desse mundo, levando, assim, à indignação

(voltaremos ao assunto mais adiante). Alguns anos depois, Sartre afirma: “écrire, c’est

(...) dévoiler le monde” (Sit.II, p.109).

97)Cf. “La situation du narrateur dans le roman contemporain”, in Notes sur la

littérature, p.43. Cf. também o que Adorno diz num outro ensaio, “Réflexions sur

Kafka”: “L’épopée expressionniste est un paradoxe. Elle raconte ce qui ne peut se

raconter, le sujet entièrement retranché sur lui-même, par là privé de liberté, au fond

inexistant, (...) dénué d’identité avec soi-même” (in Prismes, p.235). 98)Note-se que para Merleau-Ponty aquela foi justamente uma época privilegiada de

transparência, momento em que a história se fez totalmente inteligível. Segundo o

autor, é sobretudo numa situação revolucionária, numa situação de crise radical, que

as relações de produção se tornam transparentes: “C’est seulement à l’approche d’une

révolution que l’histoire serre de plus près l’économie, et comme, dans la vie

individuelle, la maladie assujettit l’homme au rythme vital de son corps, dans une

situation révolutionnaire, par exemple dans un mouvement de grève générale, les

rapports de production transparaissent, ils sont expressément perçus comme décisifs”

(Phénoménologie de la Perception, p.201). É nessa perspectiva que, após a crise

mundial que levou à Segunda Guerra (e que colocou na ordem do dia a possibilidade

de uma revolução mundial), o filósofo escreve: “nous avons peut-être appris à poser

des problèmes mondiaux et, pour avoir fait connaissance avec les infra-structures,

nous ne pouvons plus ignorer la matière de l’histoire, comme un malade ne peut plus

Uma moral em tempos sombrios

273

ignorer son corps” (Sens et Non-Sens, p.194). E em Humanisme et Terreur, lemos:

“Depuis 1939, nous n’avons certes pas vécu une révolution marxiste, mais nous avons

vécu une guerre et une occupation, et les deux phénomènes sont comparables en ceci

que tous deux remettent en question l’incontesté. La défaite de 1940 a été dans la vie

politique française un événement sans commune mesure avec les plus grands dangers

de 1914-1918; elle a eu pour beaucoup d’hommes la valeur d’un doute radical et la

signification d’une expérience révolutionnaire(...). Pour la première fois depuis

longtemps chaque français (...), au lieu de vivre dans l’ombre d’un État constitué, était

invité à discuter en lui-même le pacte social et à reconstituer un État par son choix.(...)

Les convenances de l’épuration réveillent encore le souvenir de ce moment où l’État

de fait a été mis entre parenthèses, ses décisions et ses lois frappées de nullité” (p.

125-126). Donde a idéia de “l’histoire en suspens” (Humanisme et Terreur, p.43) para

caracterizar aquela conjuntura. 99)O resultado dessa virada é o ponto de partida dos Cahiers pour une morale: “Cette

liberté en effet s’est dévoilé à partir de la découverte éblouissante de ma totale

impuissance. Elle se définit en face de moi comme puissance absolue puisqu’elle doit

se donner comme fondement à l’aveugle nécessité du monde qui m’écrase et, par là,

rendre cette nécessité inoffensive” (Cahiers pour une morale, p.237). 100)”Ce que j’envisage, c’est une totale révolution du monde”, escreve Simone de

Beauvoir em julho de 1940 (Journal de Guerre, p.340).

Capítulo 2

Razão e Resistência

“La conscience (...) doit surgir dans le monde comme un Non.” (EN, p.82; grifo do autor) “Je (...) parle (...) de tous les Français qui, à toute heure du jour et de la nuit, pendant quatre ans, ont dit non.” (“La République du Silence”, Sit.III, p.12; grifo do autor) “Jamais nous n’avons été plus libres que sous l’occupation allemande.” (Sartre, Sit.III, p.11)

Às vésperas da Guerra, quando começa a dar forma à sua “filosofia do Nada”,1

Sartre, mesclando Heidegger e romancistas americanos, no decorrer de uma reflexão

sobre a morte, previne: “Nous ne saisissons, en fait, que la belle apparence du néant.

Le vrai néant ne se peut ni sentir ni penser” (“A propos de John dos Passos”, Sit.I,

p.24; grifo do autor). Se assim for, em EN estaríamos então diante de uma “aparência”

do Nada? O problema, todavia, está mal colocado, pois o Nada, conforme indica o

título do livro, só se compreende na relação com o Ser, ou melhor, a verdade do Nada

O MITO DA RESISTÊNCIA

276

está no Ser que ele traz dentro de si (como possibilidade).2 Ora, já sabemos que em EN

esse Ser atende pelo nome de Liberdade, a qual, vindo à luz do dia, nega o estado de

“néantisation”. Tal negação da negação, ou “negação concreta” (EN, pp.223 e 230),3

que Sartre toma emprestada do Hegel de Kojève, e que resulta na afirmação da

Liberdade, vai permitir a passagem do momento negativo (insuperável para Heidegger)

ao momento positivo da alienação.

Essa irrupção da liberdade no livro —condição da “negação concreta”— se dá,

como o leitor há de se recordar, de forma tão intempestiva quanto dramática e radical.

Nascida no seio da “fatalidade”, e resultado (mas também pressuposto) de uma luta de

“vida e morte” entre opostos em conflito, a liberdade já entra em cena curto-

circuitando o sentido das análises de EN (um curto-circuito que revela o duplo sentido

da alienação). Transformando o negativo em positivo, a liberdade vai abrindo, ao longo

de seus caminhos, a possibilidade do “salut” no interior das próprias relações que

engendram a alienação. O mesmo processo que levou à alienação pode levar à sua

superação. Ou melhor, é exatamente essa alienação que é metamorfoseada em

“verdadeiro ser”, realização plena do homem — ela se torna condição para a

reconquista (que não se faz sem luta e conflito) da verdadeira liberdade.4 Com isso, vê-

se logo, já se partiu o casulo heideggeriano no qual se formou a “filosofia do Nada” de

EN. De uma crisálida de tons cinzentos (sintoma de um mundo inteiramente

desencantado), onde tudo é destino sombrio, morte, “quietismo” e “decadência”, alça

vôo uma viva filosofia da Liberdade, impulsionada por uma aposta otimista no futuro.

Um vôo que, todavia, não se dá após o declínio da experiência que o detonou, mas

junto com ela (e até mesmo num ligeiro avanço com relação a ela, como veremos).

Expliquemo-nos: a superação do momento negativo da alienação (que os Cahiers pour

une morale chamam de “síntese dialética”) não é, em EN, simplesmente uma varinha

mágica especulativa que reúne, sem paradoxo, os opostos em conflito, ou uma varinha

mágica que, tendo o dom de converter a perda em ganho, transforma a não-liberdade

Razão e Resistência

277

em liberdade, a impotência da subjetividade em heroísmo da consciência, a passividade

em atividade,5 o abstrato em concreto.6 Essa virada especulativa é antes a expressão de

uma virada histórica. Se nela ouve-se ainda, por certo, o eco da “négation féconde” do

Hegel de Kojève, já se ouve ao mesmo tempo o impacto do heroísmo dramático da

Resistência — um “tournant historique” que converteu, na ótica dos contemporâneos,

a passividade, ou a “resignação” característica da França da “défaite”, em ativismo

político. Nessa experiência política crucial, a geração de Sartre viu, a olhos nus, isto é,

sem lentes especulativas, o ponto extremo da alienação coincidir com o nascimento da

não-alienação. É a própria Ação revolucionária da Resistência que, imprimindo na

cultura da época a idéia de que a “verdadeira liberdade” pressupõe a libertação

(exatamente como ensinava Kojève ao comentar a Fenomenologia do Espírito,7 que

também tinha no horizonte uma Revolução), induz, no interior das análises de EN, a

reativação da filosofia kojeviana da Ação. Numa palavra: essa virada em que o

ativismo de Kojève prevalece sobre o “quietismo” heideggeriano é a cifra filosófica da

Resistência. A ser assim, só poderemos finalmente completar o traçado da figura da

Liberdade em EN (exposta em nosso Capítulo 2 da Parte I de modo ainda abstrato e

indeterminado — “la liberté n’est ici qu’un mot”, como dizia o próprio autor no início

do livro, p.59) se tornarmos manifesto o “conteúdo de experiência” aí formalizado.

*

Com efeito, veremos que todos os atributos da liberdade em EN, descritos em

nossa Primeira Parte, são também atributos da Resistência: tomada de consciência,

responsabilidade, escolha (ou “decisão fundamental”, para usar a linguagem de

Merleau-Ponty), Ação heróica, luta dramática contra o estado de coisas vigente,

movimento transformador orientado para o futuro (uma temporalidade que “cura”).

O MITO DA RESISTÊNCIA

278

Essa estrutura da liberdade em EN é sustentada com os mesmos materiais que

sustentam o Mito da Resistência. Tudo se passa como se a Resistência (“le dévoilement

même de notre liberté”, conforme lemos em Sit.III, p.13), nascida num momento em

que a liberdade está “en sursis”, tivesse revelado para Sartre (assim como para outros

de sua geração) que “a liberdade nunca está dada, e sempre está ameaçada”.8 (O que

nosso autor transforma em princípio filosófico: “la liberté (...) ne se conçoit qu’à partir

de la perpétuelle menace de sa perte”, Cahiers pour une morale, p.340.) Daí outra

“revelação” (que se torna a viga central de EN): a liberdade precisa ser conquistada na

luta, ou melhor, ela é luta — “une liberté qui lutte” (EN, p.454).9 Essa série de

revelações, que altera o foco das análises sartrianas, virando o “quietismo”

heideggeriano pelo avesso e permitindo a superação do momento negativo da

alienação, está cifrada na seguinte passagem dos Cahiers pour une morale, onde Sartre

termina por expor, de forma tão admirável quanto involuntária, o movimento de EN:

“J’ai entrevu un instant que l’homme était jouet du monde; aussitôt j’ai chargé une

liberté de ré-humaniser ce monde qui m’écrase. (...) C’est une décision désespérée

d’optimisme” (p.238; grifo do autor). É essa “décision désespérée d’optimisme” —

tomada, na prática, por cada um dos Resistentes— que, invertendo de fato o curso das

coisas, faz a liberdade brotar de uma luta heróica contra um estado de não-liberdade. À

luz dessa inversão,10 torna-se possível decifrar o enigma da tão polêmica —e

aparentemente paradoxal— fórmula sartriana sobre a Ocupação: “Jamais nous n’avons

été plus libres que sous l’occupation allemande” (Sit.III, p.11).11 Essa fórmula, que não

é senão a equação da Resistência (Liberdade = luta de resistência contra a não-

liberdade) é transposta para EN, tornando-se estrutura filosófica: “j’ai assez montré

[dans EN] qu’il n’y a pas de liberté si elle n’est en danger dans le monde” (Cahiers

pour une morale, p.338).12 Recorde-se o princípio norteador da teoria da liberdade de

EN: “En sorte que les résistances que la liberté dévoile dans l’existant, loin d’être un

danger pour la liberté, ne font que lui permettre de surgir comme liberté. Il ne peut y

Razão e Resistência

279

avoir de pour-soi libre que comme engagé dans un monde résistant” (EN, p.540). E

ainda: “la liberté est dépassement de ce donné-ci (...): sa fin est justement de changer

ce donné-ci” (Idem, p.565; grifos do autor).

Se nossas observações precedentes são corretas, poderemos compreender todo o

sentido do processo de inversão que permite o nascimento da liberdade em EN.

Retomemos o resultado desse processo, nos termos em que o sintetizamos no Capítulo

2 da Primeira Parte: em vez de dobrar-se resignadamente à força da alienação, ou à

impotência da subjetividade —o que implicaria eternizar tal estado de coisas—, as

análises de EN invertem o curso das águas de suas fontes filosóficas e, heroicizando a

consciência, conclamam à luta. É justamente aqui, no coração mesmo dessa passagem

especulativa que faz a liberdade renascer de um ato de resistência capaz de

metamorfosear a impotência em heroísmo, que se pode reconhecer a passagem

histórica: do “fatalismo de 40” ao voluntarismo da Resistência. Essa subversão

especulativa foi tecida, em filigrana, com matéria histórica local, como mostram os

exemplos usados pelo autor: “le fuyard” versus “l’homme qui résiste” (EN, p.498); “un

captif (...) est toujours libre de chercher à s’évader (ou à se faire libérer) — c’est-à-dire

que quelle que soit sa condition, il peut pro-jeter son évasion et s’apprendre à lui-

même la valeur de son projet par un début d’action” (p.540); “otez la défense de

circuler dans les rues après le couvre-feu — et que pourra bien signifier pour moi la

liberté (qui m’est conférée, par exemple, par un sauf-conduit) de me promener la nuit?”

(p.542-543);“la libération future du soldat...”(p.550);“le révolutionnaire

internationaliste” (p.551); “Par exemple, je puis adhérer au parti socialiste parce que

j’estime que ce parti sert les intérêts de la justice et de l’humanité, ou parce que je

crois qu’il deviendra la principale force historique dans les années qui suivront mon

adhésion”(EN, p.502);“je puis reagir contre ces interdictions [aux Juifs] en déclarant

que la race, par exemple, est une pure et simple imagination collective; que seuls

O MITO DA RESISTÊNCIA

280

existent des individus”(p.582); “libérer la Pologne, lutter pour le prolétariat”(p.609)—

“ainsi la liberté s’enchaîne-t-elle dans le monde comme libre projet vers des fins”

(p.610).

Essa “reunião” filosófica com o tempo presente, estampada na exemplificação

de EN, manifesta-se na própria composição da estrutura da consciência. Talhada nos

moldes da Fenomenologia do Espírito, como vimos na Primeira Parte, a consciência,

em EN, é essencialmente “negação do dado”: “la conscience (...) est pure et simple

négation du donné, elle existe comme dégagement d’un certain donné existant et

comme engagement vers une certaine fin encore non existante” (EN, p.535). Por isso

ela já entra em cena ungida de “poder negativo”:13 “La conscience (...) doit surgir dans

le monde comme un Non” (EN, p.82; grifo do autor); “toute conscience se définit par

sa négativité” (p.346). Tal “estrutura de negatividade” (EN, p.220) da consciência é

ilustrada com o seguinte exemplo: “C’est bien comme un Non que l’esclave saisit

d’abord le maître, ou que le prisonnier qui cherche à s’évader saisit la sentinelle qui le

surveille. Il y a même des hommes (gardiens, surveillants, geôliers, etc.) dont la réalité

sociale est uniquement celle du Non” (EN, p.82). Mas como “l’essence des rapports

entre consciences n’est pas le Mitsein, c’est le conflit” (EN, p.481), está sempre dada a

possibilidade de, através de uma “lutte ardente et périlleuse du maître et de l’esclave”

(EN, p.284), inverter a relação de dominação e, nessa medida, “dépasser mes

possibilités présentes” (EN, p.335): “je puis réagir” (EN, p.582); “il n’y a pas

d’obstacle absolu” (p.545). Se nos lembrarmos, ainda, que o ser da consciência é

liberdade (“la liberté est l’être de la conscience”, EN, p.64) e que a liberdade é

liberdade de “briser les chaînes” —l’esclave dans les chaînes est libre pour les briser”

(EN, p.608; grifo do autor)—,compreenderemos que a superação do momento negativo

da alienação (que implica a superação da “conscience d’esclave”) pressupõe a

transformação da força do opressor em fraqueza, ou da fraqueza do oprimido em força

—o que permite colocar “hors de jeu” justamente aquele que cerceia a minha liberdade

Razão e Resistência

281

(os “homens do não”, mencionados acima): “je jette l’Autre hors de jeu”; “Autrui se

trouve donc mis hors jeu” (EN, p.334); “Autrui devient maintenant ce que je limite”

(EN, p.335). (Donde o “projet (...) de transformer le regardant en regardé”, EN, p.473.)

O resultado dessa inversão é portanto o surgimento de uma nova figura capaz de

resistir àquilo que limita a liberdade, e cuja vontade heróica diz “não” ao estado de

não-liberdade: “Nous réservons l’épithète de ‘volontaire’ à l’homme qui résiste. (...) La

liberté n’est rien autre que l’existence de notre volonté” (EN, p.498-499); “j’existerai

comme volontaire et courageux et j’aurai mis toute ma liberté dans mon courage” (EN,

p.500). (Um heroísmo —tão próximo de Malraux, como logo se verá— para o qual já

se tornara inaceitável o “on était faits, comme des rats” de Céline, cf. em particular

Voyage au bout de la nuit, p.19.) Ao negar a não-liberdade, esses novos “homens do

não” (mas agora com sinal trocado, próprio daqueles nascidos para ser “gauche na

vida”) reafirmam a liberdade, fazendo-a renascer sob o signo da luta (daí a definição da

liberdade como “pouvoir inconditionné de modifier les situations”, EN, p.400): “il y a

‘quelque chose’ à détruire pour me libérer” (EN, p.462); “‘nous’ résistons, ‘nous’

montons à l’assaut, ‘nous’ condamnons le coupable” (EN, p.464).

Um “eu” que é “nós”? Não iremos muito longe na descrição da estrutura da

consciência se não conseguirmos determinar a natureza desse “nós”. Um problema que

remete a outro: como conciliar tamanho heroísmo da consciência com a idéia —

“revelada” pela época, conforme mostramos no capítulo anterior— de que o indivíduo

não é mais soberano (contrariamente ao que apregoava o bourgeoisisme dos

universitários franceses)? Qual o real poder de resistência dessa subjetividade

finitizada? Ainda que sem formular diretamente o segundo problema (pois o primeiro é

explicitado pelo autor, como logo veremos), as análises de EN apontam para a seguinte

tentativa de solução: se o indivíduo não é mais soberano, o herói não pode ser um

sujeito isolado, mas um “universal singular”. Embora a noção de “universal singular”

O MITO DA RESISTÊNCIA

282

(que os comentadores consideram muito tardia na obra de Sartre14) não chegue a ser

tematizada em EN, a nosso ver é ela que já se insinua na idéia (de clara ressonância

hegeliana) de um “eu” que é “nós” (EN, p.464),15 isto é, do singular que, atravessado

pelo universal, supera sua singularidade ao encarnar as aspirações de todos (“la haine

est haine de tous les autres en un”, EN, p.462) — uma consciência-de-si que, longe de

ser solitária, é a expressão de uma “experiência” (como na Fenomenologia do Espírito,

nunca é demais relembrar16): “L’expérience du nous-sujet peut se manifester en

n’importe quelle circonstance. (...) Je m’éprouve non-thétiquement comme engagé dans

un nous. Les rivalités, les légers conflits antérieurs ont disparu et les consciences qui

fournissent la matière du nous sont précisément celles de tous (...): nous regardons

l’événement, nous prenons parti. C’est cet unanimisme (...). Il est clair que le nous

n’est pas une conscience intersubjective, ni un être neuf qui dépasse et englobe ses

parties comme un tout synthétique, à la manière de la conscience collective des

sociologues. Le nous est éprouvé par une conscience particulière (...). Pour qu’une

conscience prenne conscience d’être engagée dans un nous...” (EN, p.465; grifos do

autor). E mais: “Le nous est une certaine expérience particulière” (EN, p.465). Trata-

se, aqui, de um certo tipo de experiência “especial”, ou de “certaines expériences

concrètes où nous nous découvrons, non pas en conflit avec autrui, mais en

communauté avec lui” (EN, p.464).

Tendo partido do “nós-sujeito” hegeliano, como se viu, EN chega ao “exemplo”

da “consciência de classe”: “Ceci nous amène à quelques ‘nous’ spéciaux, en

particulier à celui qu’on nomme ‘conscience de classe’. La conscience de classe est,

évidemment, l’assomption d’un nous particulier, à l’occasion d’une situation collective

plus nettement structurée qu’à l’ordinaire. Il nous importe peu de définir ici cette

situation; ce qui nous intéressera seulement, c’est la nature du nous de l’assomption”

(EN, p.471). Em busca da “natureza” desse “nós”, Sartre se lança numa longa reflexão

(que tem no horizonte uma “teoria da opressão”: “il faut longtemps pour construire et

Razão e Resistência

283

pour répandre une théorie de l’oppression”, EN, p.472) sobre a consciência de classe,

nascida no seio de uma sociedade que, “par sa structure économique ou politique, se

divise en classes opprimées et en classes opprimantes” (EN, p.471). Uma reflexão ao

longo da qual a dialética hegeliana do senhor e do escravo vai sendo reescrita à luz da

novíssima teoria sartriana do olhar do Outro: “Le ‘maître’, le ‘seigneur féodal’, le

‘bourgeois’ ou le ‘capitaliste’ apparaissent, non seulement comme des puissants qui

commandent, mais, encore et avant tout, comme les tiers, c’est-à-dire ceux qui sont en

dehors de la communauté opprimée et pour qui cette communauté existe. C’est donc

pour eux et dans leur liberté que la réalité de la classe opprimée va exister. Ils la font

naître par leur regard” (EN, p.472; grifos do autor). Daí a idéia de “alienação coletiva”

(“une expérience d’êtres-objets en commun”, p.466): “Je suis engagé avec d’autres

dans une communauté de transcendances-transcendées de ‘Moi’ aliénés”; “le Nous-

objet nous précipite dans le monde; nous l’éprouvons par la honte comme une

aliénation communautaire” (EN, p.466); “Cela signifie que je découvre le nous où je

suis intégré ou ‘la classe’ dehors, dans le regard du tiers et c’est cette aliénation

collective que j’assume en disant ‘nous’. (...) Je nous éprouve comme saisis à partir des

choses et comme choses vaincues par le monde” (p.472; grifos do autor).17 Mas é

justamente da “alienação coletiva” que brota a consciência de classe, a qual, por sua

vez, é condição da superação da alienação (“dans le ‘nous’ sujet, personne n’est objet”,

EN, p.464): “C’est à travers cette souffrance subie que j’éprouve mon être-regardé-

comme-chose-engagée-dans-une-totalité-des-choses. C’est à partir de ma souffrance,

de ma misère que je suis collectivement saisi avec les autres par le tiers, c’est-à-dire à

partir de l’adversité du monde, à partir de la facticité de ma condition. (...) Ainsi, la

classe opprimée trouve son unité de classe dans la connaissance que la classe

opprimante prend d’elle et l’apparition chez l’opprimé de la conscience de classe

correspond à l’assomption dans la honte d’un nous-objet. (...) La classe opprimé ne

O MITO DA RESISTÊNCIA

284

peut, en effet, s’affirmer comme nous-sujet que par rapport à la classe opprimante et

aux dépens de celle-ci” (EN, p.472-473); “Nous ne sommes nous qu’aux yeux des

autres, et c’est à partir du regard des autres que nous nous assumons comme nous”

(EN, p.474); “l’expérience du nous-sujet (...) dépend étroitement des différentes formes

du pour-autrui” (EN, p.479).18 Essa “experiência do nós-sujeito”, que exprime “a

unidade da classe oprimida”, exprime ao mesmo tempo “a fraqueza da classe

opressora”: “C’est ce qui explique un paradoxe apparent: l’unité de la classe opprimée,

provenant de ce qu’elle s’éprouve comme nous-objet en face d’un on indifférencié qui

est le tiers ou la classe opprimante, on serait tenté de croire que, symétriquement, la

classe opprimante se saisit comme nous-sujet en face de la classe opprimée. Or la

faiblesse de la classe opprimante c’est que, bien que disposant d’appareils précis et

rigoureux de coercition, elle est, en elle-même, profondément anarchique. (...) Le

‘bourgeois’ nie communément qu’il y ait des classes,19 il attribue l’existence d’un

prolétariat à l’action d’agitateurs, à des incidents fâcheux, à des injustices pouvant être

réparées par des mesures de détail: il affirme l’existence d’une solidarité d’intérêts

entre le capital et le travail; il oppose à la solidarité de classe une solidarité plus vaste,

la solidarité nationale où l’ouvrier et le patron s’intègrent en un Mitsein qui supprime

le conflit. (...) C’est seulement lorsque la classe opprimée, par la révolte ou

l’augmentation brusque de ses pouvoirs, se pose en face des membres de la classe

opprimante comme ‘on-regard’, c’est seulement alors que les oppresseurs

s’éprouveront comme nous. Mais ce sera dans la crainte et la honte et comme nous-

objet” (EN, p.480-481). Em resumo: ao negar a existência de classes sociais, a classe

dominante decreta sua própria “fraqueza”, condenando-se à condição de “nós-objeto”

e, nessa medida, faz da consciência de classe uma possibilidade exclusiva da classe

oprimida (um privilégio potencial que só se torna efetivo se o oprimido decidir-se ir à

luta). Essa vantagem que nasce da condição social de opressão, ou da luta de

resistência contra um mundo duro e opressivo, confunde-se com um heróico “esforço

Razão e Resistência

285

de recuperação da totalidade humana” (EN, p.474) —”le nous-sujet idéal serait le nous

d’une humanité qui se rendrait maîtresse de la terre” (EN, p.477)— e, mais do que isso,

é o primeiro sinal da irrupção da Liberdade no mundo. É portanto através do oprimido

que a Liberdade é introduzida no mundo (assim como o escravo, segundo as lições

Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito, é o primeiro a encarnar a idéia de

Liberdade).20

Dos sucessivos esboços do perfil desse “Nós” cuja natureza Sartre saiu à

procura chegamos assim à figura —privilegiada ontologicamente— do “oprimido”.

Mas o que vemos por ora é um retrato em branco e preto, onde a figura do oprimido,

desenhada contra o fundo escuro da opressão, carece ainda das cores que vão matizá-la.

Uma figura, portanto, apenas esboçada, da qual pouco, quase nada, a distingue de seu

antepassado — o “escravo” da dialética hegeliana, relida por Kojève. Todavia, se

detivermos por mais tempo nosso olhar sobre esse “Nós” formalizado em EN, tentando

apreender sua particularidade, veremos que é o imaginário da época que está sendo

filtrado nos interstícios dessa estilização sartriana da dialética do senhor e do escravo.

Aproximemos pois ainda mais o foco de nossa lente dessa figura que se delineia

em EN, o “nós-sujeito”, nascido de uma “experiência de humilhação e de impotência”

(EN, p.470), o “nós-objeto”:21 “le nous-objet (...) est la révélation d’une dimension

d’existence réelle”; “le nous-sujet est une expérience psychologique réalisée par un

homme historique, plongé dans un univers travaillé et dans une société de type

économique défini” (EN, p.481). E a principal característica dessa “experiência”, em

que “le Nous est brusque épreuve de la condition humaine comme engagée parmi les

Autres” (EN, p.470), é a “solidariedade” (“solidarité du nous”, EN, p.471): “ce qui est

éprouvé c’est la pure situation de solidarité avec l’autre” (EN, p.469), “une solidarité

concrète” (EN, p.470).22 E ainda: “Ce n’est aucunement la dureté du travail, la bassesse

du niveau de vie ou les souffrances endurées qui constitueront la collectivité opprimé

O MITO DA RESISTÊNCIA

286

en classe; la solidarité du travail, en effet, pourrait (...) constituer en ‘nous-sujet’ la

collectivité laborieuse, en tant que celle-ci (...) s’éprouve comme transcendant les

objets intra-mondains vers ses fins propres” (EN, p.471). “Solidariedade de classe”

(EN, p.480), por certo, mas que não nasce apenas da “solidariedade do trabalho” numa

sociedade dividida em classes.23 O que determina essa “experiência de solidariedade”

não é, pelo menos numa primeira instância, a infra-estrutura, ou a “estrutura

econômica” (EN, p.471) no seio da qual ela emerge, mas a tomada de consciência (que

se dá num momento de “brusque métamorphose”, ou de “conversion radicale”, como

veremos adiante). E aqui o “Nós” sartriano já começa a ganhar uma fisionomia mais

definida ao se referir à consciência de classe como uma experiência “especial” de

solidariedade, nosso autor tem em mente a experiência revolucionária (momento

privilegiado de liberdade, na ótica de Sartre):24 “Aucun état de fait, quel qu’il soit

(structure politique, économique de la société, ‘état’ psychologique, etc.), n’est

susceptible de motiver par lui-même un acte quelconque. (...) Aucun état de fait ne

peut déterminer la conscience à le saisir comme négatité ou comme manque. (...) C’est

la forme organisée: ouvrier-trouvant-sa-souffrance-naturelle, qui doit être surmontée et

niée (...). Cela signifie évidemment que c’est par pur arrachement à soi-même, et au

monde, que l’ouvrier peut poser sa souffrance comme souffrance insupportable et, par

conséquent, en faire le mobile de son action révolutionnaire. Cela implique donc pour

la conscience la possibilité permanente de faire une rupture avec son propre passé”

(EN, p.490; sublinhado pelo autor).25 (Essa “possibilidade permanente” não é senão a

possibilidade da revolução permanente, como Sartre dirá mais tarde.) Visto que a

“estrutura político-econômica da sociedade” não é suficiente por si só para engendrar o

ato revolucionário (porque não pode determinar diretamente a consciência), torna-se

necessária a ênfase no “poder negativo” da consciência (“ce qu’avait entrevu Hegel

lorsqu’il écrivait que ‘l’esprit est le négatif’“, EN, p.490), ou melhor, no poder da

consciência de negar o existente.26 E se a tomada de consciência é “le mobile” da “ação

Razão e Resistência

287

revolucionária”, a conclusão se impõe: “il faut reconnaître que la condition

indispensable et fondamentale de toute action c’est la liberté de l’être agissant”

(p.490). (Daí a importância do “projeto” no acabamento do processo revolucionário:

“nous nous pro-jetons vers une modification de cette situation”, p.492.) EN resume a

exigência do concurso de fatores subjetivos e objetivos na deflagração de um processo

revolucionário nos seguintes termos: “C’est la saisie d’une révolution comme possible

qui donne à la souffrance de l’ouvrier sa valeur de mobile” (p.492). É a tomada de

consciência de uma situação de “sofrimento” e de não-liberdade que, negando tal

estado de coisas, permite o desencadear da revolução, ou seja, a passagem ao “reino da

liberdade”.

Eis-nos pois de volta à “estrutura de negatividade” da consciência (“la

conscience doit surgir dans le monde comme un Non”, EN, p.82), ilustrada com o

exemplo dos “homens do Não” — mas conhecemos agora a via por onde aí se chegou:

a da “ação revolucionária”. E o que reúne todos os materiais com os quais o autor foi

montando tal estrutura —”solidariedade do nós”, tomada de consciência, luta de

consciências, Liberdade— é a experiência que define, para a cultura da época, o perfil

da ação revolucionária. Mais precisamente: a primeira figura da Revolução em Sartre é

esculpida segundo o modelo da Resistência. Conseguindo reverter as linhas de força

em vigor, isto é, romper com a engrenagem do totalitarismo nazi-fascista (resignação,

conformismo, fatalismo), os Resistentes serão saudados literalmente como os...

“homens do Não”: “São os homens do Não. Mas esse não do Resistente obscuro —

essas sombras desconhecidas— basta para fazer desse pobre homem em sua primeira

noite de morte um companheiro de Joana d’Arc e de Antígona”, afirma por exemplo

Malraux (Documentário: “De Gaulle et Malraux”). Ou então Camus, escrevendo sobre

os Resistentes torturados e assassinados: “Mille fusils braqués sur lui n’empêcheront

pas un homme de croire en lui-même à la justice d’une cause. Et s’il meurt, d’autres

O MITO DA RESISTÊNCIA

288

justes diront ‘non’ jusqu’à ce que la force se lasse” (in Combat, 30/08/1944). Cf. nesse

sentido o próprio Sartre: “Je (...) parle (...) de tous les Français qui, à toute heure du

jour et de la nuit, pendant quatre ans, ont dit non” (“La République du silence”, Sit.III,

p.12; grifo do autor). (Daí vem a idéia —que passará a caracterizar a filosofia

sartriana— de uma existência encharcada de negatividade.27)

Concebida como uma reativação da tradição revolucionária clássica,28 da

Revolução Francesa à Guerra Civil Espanhola, passando pela Comuna, a Resistência

representa para a geração de Sartre a experiência por excelência da “solidariedade do

nós”: “Je savais à présent que mon sort était lié à celui de tous; la liberté, l’oppression,

le bonheur et la peine des hommes me concernaient intimement”, escreve Simone de

Beauvoir sobre as lições daquela experiência histórica (La force des choses, vol.I,

p.15). Ainda no calor da hora, Camus faz este primeiro balanço da luta de resistência:

“Pendant quatre ans nous n’avons jamais été seuls. Nous avons vécu les années de la

fraternité. (...) Et pour certains d’entre nous, le visage de nos frères défigurés par les

balles, la grande fraternité virile de ces années ne nous quitteront jamais” (Combat,

agosto de 1944; reproduzido em A. Camus, Actuelles — Ecrits Politiques, p.20-21).29

Vejam-se também os termos com que Sartre rememora aquele período: “Jamais, peut-

être, il n’y eut tant de bonne volonté. Les jeunes gens rêvaient obscurément d’un ordre

nouveau...” — a Resistência foi “ce grand désir de solidarité”, “un immense et gauche

désir d’union” (“Paris sous l’Occupation”, Sit.III, p.41).30 Essa experiência da

solidariedade antifascista foi vivida pessoalmente pelo autor no Stalag e, logo depois,

no seu grupo de intelectuais resistentes, “Socialisme et Liberté”. (Criado pelo próprio

Sartre imediatamente após sua libertação, o grupo “Socialisme et Liberté” durou

apenas o tempo de uma estação: nasceu na primavera de 41 e morreu no outono do

mesmo ano — das cinzas desse movimento político surge EN, cuja redação tem início

justamente no outono de 41, quando da dissolução do grupo.)31 Vale lembrar o

depoimento de Simone de Beauvoir: “Son expérience de prisonnier le marqua

Razão e Resistência

289

profondément: elle lui enseigna la solidarité; loin de se sentir brimé, il participa dans

l’allégresse à la vie communautaire. (...) Perdu dans la masse, un numéro parmi

d’autres, il éprouva une immense satisfaction à réussir, à partir de zéro, ses entreprises.

Il gagna des amitiés, il imposa ses idées, il organisa des actions, il mobilisa le camp

tout entier pour monter et applaudir, à Noël, la pièce qu’il avait écrite contre les

Allemands, Bariona. Les rigueurs et la chaleur de la camaraderie dénouèrent les

contradictions de son antihumanisme: en fait, il se rebellait contre l’humanisme

bourgeois qui révère dans l’homme une nature; mais si l’homme est à faire, aucune

tâche ne pouvait davantage le passionner. Désormais, au lieu d’opposer individualisme

et collectivité, il ne les conçut plus que liés l’un à l’autre. Il réaliserait sa liberté non

pas en assumant subjectivement la situation donnée mais en la modifiant

objectivement, par l’édification d’un avenir conforme à ses aspirations” (La force des

choses, vol.I, p.16-17). Já em La force de l’âge a autora escrevera: “Au Stalag, il

[Sartre] avait composé et mis en scène une pièce, Bariona; le sujet apparent de ce

‘mystère’ était la naissance du Christ; en fait, le drame traitait de l’occupation de la

Palestine par les Romains, et les prisonniers ne s’y étaient pas trompés: ils avaient

applaudi, la nuit de Noël, une invitation à la résistance. Voilà le vrai théâtre, avait

pensé Sartre: un appel à un public auquel on est lié par une communauté de situation.

Cette communauté existait entre tous le Français, que les Allemands et Vichy

exhortaient quotidiennement aux remords et à la soumission: on pouvait trouver un

moyen de leur parler de révolte, de liberté” (La force de l’âge, p.555-556; grifo

nosso).32 Essas duas passagens de Simone de Beauvoir resumem os principais aspectos

da virada teórica que a experiência da guerra e da Resistência induziu no pensamento

de Sartre (e cujo resultado está expresso em EN): 1) Em primeiro lugar, a passagem do

“antihumanismo” ao “humanismo” (o Existencialismo será com efeito um humanismo,

cuja natureza logo precisaremos); 2) Em seguida, a descoberta da solidariedade numa

O MITO DA RESISTÊNCIA

290

“communauté de situation”, misto de experiência vivida e experiência estética (“vrai

théâtre”) — o que será cristalizado em EN, via Fenomenologia do Espírito, na forma

filosófica da “solidariedade do nós”; 3) Tal descoberta vem confirmar uma outra,

ocorrida às vésperas da guerra (e examinada no nosso capítulo anterior): a

impossibilidade de “opposer individualisme et collectivité”, isto é, a descoberta de um

indivíduo atravessado pelo social;33 4) Um exemplo privilegiado dessa subjetividade

permeada pela objetividade (e vice-versa) é a idéia de “universal singular”, esboçada

no “nós” de EN; 5) Finalmente, o que reencontramos no depoimento de Simone de

Beauvoir sobre as profundas transformações que a experiência da Resistência provocou

no pensamento de Sartre é nada mais, nada menos, do que a idéia central de EN: a

Liberdade é luta contra a submissão, “invitation à la résistance” — o que implica, por

sua vez, a idéia (otimista) de um sujeito capaz de agir, de modificar objetivamente o

presente e, nessa medida, criar as condições para “l’édification d’un avenir conforme à

ses aspirations” (daí a idéia de “cura” pela temporalidade revolucionária).

Esquematizando: o que vemos nessas passagens de Simone de Beauvoir é a montagem

dos andaimes de um novo humanismo que se desenvolve à sombra de uma experiência

histórica radical (e cuja construção definitiva toma a forma de EN).

Voltemos por um momento nosso olhar para o grau zero da construção desse

edifício sartriano, onde o que encontramos é ainda a desmontagem de outros

“humanismos”. Estamos falando do famoso “antihumanismo” da Nausée, época em

que, como diz Simone de Beauvoir, Sartre “se moquait de tous les humanismes”:

“impossible, pensait-il, de chérir —non plus que de détester— cette entité: ‘l’Homme’“

(La Force de âge, p.172). Recorde-se as palavras do personagem Roquentin, após ter

sido obrigado a ouvir a defesa simplória do Humanismo feita pelo Autodidata: “Les

hommes. Il faut aimer les hommes. Les hommes sont admirables. J’ai envie de vomir

— et tout d’un coup ça y est: la Nausée” (La Nausée, Pléiade, p.144). Esse ódio ao

humanismo (um ódio até a Naúsea, como o de Céline, já se vê) —“une race de gens

Razão e Resistência

291

têtus et bornés” (p.140)— ocupa páginas memoráveis da Nausée. Basta lembrar a crua

ironia com que Roquentin descreve os diferentes tipos de humanismo. (Um exemplo de

perfil “humanista”: “C’est en général un veuf qui a l’oeil beau et toujours embué de

larmes: il pleure aux anniversaires. Il aime aussi le chat, le chien, tous les mamifères

supérieurs”, La Nausée, p.138.) E é precisamente este o ponto nevrálgico: os diferentes

tipos de humanismo em questão na Nausée (e que estarão também em questão em EN:

“ce ‘nous’ humaniste demeure un concept vide”, p.474). Com efeito, a crítica de

Roquentin ao humanismo não é, bem entendido, dirigida diretamente ao Autodidata —

um “nigaud”, ou “un vrai médiocre” (como diria Flaubert, cujo horror à bêtise,

ridicularizada na figura de personagens que povoavam a mesma Normandia, está

justamente sendo reativado por Sartre)—, sobre quem ele se limita a lançar um olhar

sobranceiro (“ce n’était pas à moi de lui ouvrir les yeux”, p.144): “Est-ce ma faute si,

dans tout ce qu’il me dit, je reconnais au passage l’emprunt, la citation? Si je vois

réapparaître, pendant qu’il parle, tous les humanistes que j’ai connus?” (p.138). E

ainda: “Je rage, c’est vrai, mais pas contre lui, contre les Virgan et les autres, tous ceux

qui ont empoisonné cette pauvre cervelle” (p.144). Contra quais humanistas volta-se

então o ódio de Roquentin? Em primeiro lugar, na esteira de L.-F. Céline, contra os

ideólogos da nauseante Terceira República (que também já provocara naúseas em

Ferdinand Bardamu, o célebre personagem de Voyage au bout de la nuit),34

representados particularmente nas figuras do “philosophe humaniste” (“qui se penche

sur ses frères comme un frère aîné et qui a le sens de ses responsabilités”, p.139), do

“humaniste radical” (“l’humaniste radical est tout particulièrement l’ami des

fonctionnaires”, p.138) e do “humaniste catholique”: “L’humaniste catholique, le tard-

venu, le benjamin, parle des hommes avec un air merveilleux. Quel beau conte de fées,

dit-il, que la plus humble des vies, celle d’un docker londonien, d’une piqueuse de

bottines! Il a choisi l’humanisme des anges; il écrit, pour l’édification des anges, de

O MITO DA RESISTÊNCIA

292

longs romans tristes et beaux, qui obtiennent fréquemment le prix Femina” (p.138).

Menos que uma dimensão superlativa, a crítica da Nausée ao humanismo exprime antes

o sarcasmo de um ex-Normalien contra um certo humanismo, mais precisamente, o da

ideologia oficial da Terceira República (sempre o inimigo número um). Por isso

Simone de Beauvoir, imediatamente após afirmar que Sartre “se moquait de tous les

humanismes”, relativiza sua afirmação: “En fait, comme Antoine Roquentin dans La

Nausée, Sartre avait en horreur certaines catégories sociales, mais il ne s’en prit jamais

à l’espèce humaine en général: sa sévérité visait seulement ceux qui font profession de

l’aduler” (La force de l’âge, p.173). Noutras palavras, Roquentin é o intelectual-herói

em guerra com a sociedade francesa atrasada da Terceira República: “Je ne veux pas

qu’on m’intègre, ni que mon beau sang rouge aille engraisser cette bête lymphatique: je

ne commettrai pas la sottise de me dire ‘anti-humaniste’. Je ne suis pas humaniste,

voilà tout” (p.140; grifo do autor). Da luta contra a ideologia humanista (a de

Brunschvicg, por exemplo) que sustentava aquela sociedade (“Les Chiens de garde”, já

vivamente atacados por Nizan) vai nascer o humanismo sartriano, cuja primeira

dimensão é assim mesmo negativa, tal como foi sublinhada por Roquentin: “Je ne suis

pas humaniste”.35 (Não por acaso o primeiro “humanismo” aceito por Sartre, já às

vésperas da guerra, num artigo de fevereiro de 1938, é o de Faulkner, um humanismo

“negativo” por assim dizer, isto é, que nasce da recusa de “nos consciences bien

ajustées”: “L’humanisme de Faulkner est sans doute le seul acceptable: il hait nos

consciences bien ajustées, nos consciences bavardes d’ingénieurs”, “Sartoris par W.

Faulkner”, Sit.I, p.13.)

Mas resta ainda ressaltar uma outra dimensão do “antihumanismo” da Nausée.

Se o alvo principal das críticas de Roquentin é, sem dúvida, o conjunto das ignomínias

sociais e culturais da Terceira República (já inteiramente carcomida), o crivo

anarquista e niilista do personagem, para quem a existência é absurda e gratuita,

tampouco deixará passar nem mesmo outros tipos de humanismo, por exemplo aquele

Razão e Resistência

293

representado pela figura do “escritor comunista” (cujo modelo é Nizan, segundo

Simone de Beauvoir): “L’écrivain communiste aime les hommes depuis le deuxième

plan quinquennal; il châtie parce qu’il aime” (La Nausée, p.138). E mais: entre aqueles

que envenenaram o “pobre cérebro” do Autodidata, e contra os quais se endereçam as

palavras implacáveis de Roquentin (“Je rage, c’est vrai, mais pas contre lui, contre les

Virgan et les autres, tous ceux qui ont empoisonné cette pauvre cervelle”, p.144),

figura também, no manuscrito original da Nausée, o nome de Malraux (que Sartre

decide suprimir posteriormente, mantendo apenas este nome fictício, “les Virgan”; cf.

Pléiade, p.1782) — justo Malraux, cujo humanismo, como temos indicado, será

totalmente incorporado pela obra sartriana a partir da guerra. O interessante é que

quando o Autodidata tenta defender seu ponto de vista perante um Roquentin cético,

niilista e irônico, explica que foi a guerra (no caso, a de 1914) que, provocando uma

guinada radical em sua vida, o fez descobrir o humanismo socialista (“je suis

socialiste”, p.137): “dans le camp de concentration, j’ai appris à croire dans les

hommes” (p.135). Ora, é exatamente no campo de prisioneiros, logo depois da

capitulação francesa, que, como vimos nos relatos acima, Sartre redigiu a peça

Bariona, primeiro texto do autor onde um humanismo heróico à la Malraux se faz

sentir vivamente. Foi preciso portanto esperar a experiência trágica da guerra (“j’ai vu

le monde de la guerre; (...) le sens des choses est changé”, Carnets de la drôle de

guerre, nova edição, p. 21) para Sartre incorporar o humanismo de Malraux36 — donde

o “je fais époque avec Malraux”, que nosso autor anota nos seus Carnets de la drôle de

guerre: “Commencé à relire La Condition humaine. Agacé par une ressemblance

fraternelle entre les procédés littéraires de Malraux et les miens. (...) Je n’ai jamais été

influencé par lui mais nous avons subi des influences communes — des influences qui

n’étaient pas littéraires.(...) Je fais époque avec Malraux” (p.429-430, primeira edição).

Uma época que, propícia ao florescimento de um humanismo heróico (“ce n’est pas ma

O MITO DA RESISTÊNCIA

294

faute si ce siècle naissant m’a fait épique”, Les Mots, p.100), vai distanciando Sartre da

“angústia existencial” de Roquentin37 (mas a verdadeira superação da solidão do

intelectual,38 a superação de seu “individualisme exaspéré”, se dá para Sartre,

conforme veremos, com a Revolução).

Foquemos melhor o momento inaugural desse novo humanismo que nasce da

experiência do campo de prisioneiros, a peça Bariona.39 Escrita, como foi dito, para

estimular o espírito de resistência entre os companheiros presos (papel desempenhado

mais tarde pelo personagem Brunet, o militante comunista de La Mort dans l’âme), e

revelando um “profundo humanismo” (as palavras são de Simone de Beauvoir, La

force de l’âge, p.524), Bariona exalta a “joie” na solidariedade e na fraternidade entre

os homens,40 exalta “L’Espoir” (não por coincidência, a palavra é escrita assim mesmo,

com letra maiúscula, como no título de Malraux).41 Mais precisamente, a peça descreve

a passagem da “resignação” à “revolta”: “Nous ne devons pas nous résigner à la chute,

car la résignation est indigne d’un homme”, diz o herói Bariona (p.580). Ou então: “La

Résignation nous tuera et je la hais (...). Conserver en eux la flamme pure de la

révolte...” (p.615). Após sua “conversão”, Bariona faz um apelo à luta heróica de

resistência contra os... “Romanos”: “Nous allons, nous autres, nous porter à leur

rencontre, et nous les ferons reculer. (...) Voici revenu le temps de combattre, le temps

des moissons rouges et des groseilles de sang qui perlent aux lèvres des blessures.

Refuserez-vous de combattre? Préférez-vous mourir de misère et de vieillesse dans

votre nid d’aigle, là-haut? (...) Je n’ai pas le choix: je ne puis le défendre [notre

Messie] qu’en donnant ma vie” (p.630-631). E ainda: “Je déborde de joie comme une

coupe trop pleine. Je suis libre, je tiens mon destin entre mes mains. Je marche contre

les soldats d’Hérode (...) Marchons, saouls de chants, de vin et d’Espoir” (p.632).

Nessa encenação do drama do nascimento de Cristo, a “joie” tem no entanto a forma

bem profana42 da Revolução (daí a posterior definição sartriana da Revolução como o

“salut” na Terra, uma verdadeira laicização da idéia de “salut”, mas isso veremos no

Razão e Resistência

295

próximo capítulo): “C’est la Révolution! C’est la Révolution! (...) Que la terre

tressaille de joie, que toutes les îles se réjouissent! (...) Des éclairs brillent partout. (...)

Que la mer clame sa joie et la terre et tous ceux qui l’habitent” (Bariona, p.598).43 E

mais adiante, a identificação, tão própria de Malraux, entre Revolução e “Espoir”:

“C’est l’Espoir” (p.604). (O que levará, ainda em Bariona, à seguinte definição do

homem: “L’homme c’est l’Espoir”, p.609.) No final da peça, há uma brusca

intromissão do tempo presente na narrativa e o herói Bariona fala diretamente aos

prisioneiros do Stalag XII: “Et vous, les prisonniers, voici terminé ce jeu de Noël qui

fut écrit pour vous. Vous n’êtes pas heureux et peut-être y en a-t-il plus d’un qui a senti

dans sa bouche ce goût âcre et salé dont je parle. Mais je crois que pour vous aussi, en

ce jour de Noël, —et tous les autres jours— il y aura encore de la joie!” (p.633).

Essa liga de situações do mundo presente e forma teatral (onde já se insinua o

“metafísico no homem” de EN), cingida por um apelo à Resistência, define o perfil do

humanismo sartriano: “Où que soit un homme, le monde tout entier se presse autour de

lui”; “L’homme (...) est toujours beaucoup plus que ce qu’il est” (Bariona, pp. 579 e

604). Um humanismo calcado na força da liberdade: “Contre un homme libre, Dieu lui-

même ne peut rien” (Bariona, p.599); “Car nous autres, les anges, nous ne pouvons

rien contre la liberté des hommes” (Idem, p.620). (Essa força dos homens —e fraqueza

dos deuses— encontra-se quase sempre latente, eclipsada pela “alienação”; cf. nesse

sentido o que diz Júpiter ao rei Égisthe, em Les Mouches: “Le secret douloureux des

Dieux et des rois: c’est que les hommes sont libres. Ils sont libres, Égisthe. Tu le sais,

et ils ne le savent pas”, p.200. O que só faz reforçar a importância da tomada de

consciência.) Em resumo: o que Bariona anuncia, na linguagem cifrada do drama da

Natividade, é o nascimento de um novo tipo de humanismo, cuja figura principal —a

Liberdade— surgirá em breve da luta contra a não-liberdade e a desumanização. Já

conhecemos o local e a data desse nascimento, marcado pelo signo de uma dupla

O MITO DA RESISTÊNCIA

296

identidade: filosófica (EN) e histórica (Resistência). Noutras palavras, que assinalam a

direção dos caminhos da liberdade na obra sartriana: do “antihumanismo” da Nausée

ao “humanismo revolucionário” proposto em “Matérialisme et Révolution” (escrito no

imediato pós-guerra) muita água rolou na história do mundo contemporâneo, debaixo

da ponte do pensamento de Sartre — e foi filtrada nos meandros filosóficos de EN.

Dessa filtragem, que vai retendo os resíduos de um “antihumanismo” niilista à maneira

de Céline, resulta a substância da Liberdade heróica. Examinemos melhor o processo

de depuração dessa substância.

*

Concebida pois no campo de prisioneiros, na forma teatral de Bariona, e

desenvolvida filosoficamente em EN ao longo do processo de humanização do Nada e

do Tempo (cf. nosso Capítulo 2, Parte I), a Liberdade irrompe no mundo através da

violência contra o existente — uma violência perpetrada por um sujeito heróico. O fim

da alienação pressupõe portanto a idéia de um sujeito que renasce da violência44 (essa a

primeira forma da idéia sartriana de “cura” pela violência revolucionária). Nesse

sentido, veja-se esta passagem dos Cahiers pour une morale, onde já encontramos

desenvolvida a ética da ação revolucionária esboçada em Bariona: “La violence est

négation de la négation. (...) La violence ici est médiation nécessaire (...). La violence

représente donc nécessairement un progrès vers la liberté. Issue de l’objectivité, elle

est force destructrice de toute objectivité. (...) Issue de l’impossibilité d’être homme et

donc inhumaine, elle est seule voie possible à l’humain et contient en elle la

compréhension implicite de l’humain. Issue de l’objectivité absolue et objet elle-même

(...) elle conduit l’objet-homme à se découvrir comme sujet et contient dans son

principe un pressentiment de la subjectivité” (p.419-420). Esse sujeito que surge da

negação do “objet-homme”, ou da “impossibilité d’être homme”, só pode ser, na ótica

sartriana, o sujeito revolucionário (um “eu” que é “nós”, ou um singular universal),

condição da dupla negação, isto é, da afirmação da liberdade: “La violence est

Razão e Resistência

297

affirmation inconditionnée de la liberté” (Cahiers pour une morale, p.183). Se a

experiência de extrema desumanização do campo de prisioneiros (“c’est ce que chacun

a pu constater s’il a remarqué à quelle simplicité presque animale revenaient les

prisonniers de guerre par suite de l’extrême simplification de leur situation”, EN, p.

611) é, no caso sartriano, a câmara de decantação da Condição Humana é porque das

cinzas renasce um sujeito heróico45 — que se transforma em... Filosofia. (Recorde-se a

definição do “nós-objeto” em EN: “le Nous est brusque épreuve de la condition

humaine comme engagée parmi les Autres”, p.470.)

Com isso, conseguimos enfim desatar o nó do problema formulado acima, a

saber: a aparente contradição entre a “descoberta” de um indivíduo impotente diante da

“força das coisas” e a idéia de heroísmo do Resistente. Devidamente registrada a

“descoberta” de uma subjetividade destituída de autonomia, o indivíduo volta, não pela

porta dos fundos, mas pela entrada principal do pensamento de Sartre: a Resistência,

ou a “experiência da Resistência” (para falar como Merleau-Ponty, cf. “La Guerre a eu

lieu”, Sens et Non-Sens, p.266). Uma volta que, todavia, não se dá na forma do

indivíduo isolado (a ruptura com o bourgeoisisme da cultura francesa tradicional foi

definitiva o suficiente para arquivá-lo) e sim do “universal singular”.46 É justamente

como um universal singular —esse “universal concreto” que “se confunde com a idéia

de totalidade”, segundo a definição posterior de Questions de Méthode (cf. em

particular a p.106)— que o Resistente é descrito por Sartre. Porta-voz da coletividade,

o Resistente é aquele que, “en se choisissant lui-même dans sa liberté, choisissait la

liberté de tous”, conforme lemos num dos célebres ensaios sartrianos sobre a época

(“La République du Silence”, Sit.III, p.14).47 Não estamos pois diante de um simples

indivíduo, mas antes de um singular que encerra em si o universal: “Les F.F.I. ont à

chaque instant, derrière chaque barricade et sur chaque pavé, exercé la liberté pour eux

et pour chaque Français”, afirma o autor agora em “La Libération de Paris: une

O MITO DA RESISTÊNCIA

298

semaine d’Apocalypse” (p.661). Nesses ensaios paralelos escritos por Sartre no calor

da hora, vemos explicitado o conteúdo de experiência da idéia, codificada em EN, de

“nós-sujeito”, ou do “eu” que é “nós”: “A ceux qui eurent une activité clandestine, les

circonstances de leur lutte apportaient une expérience nouvelle: ils ne combattaient pas

au grand jour, comme des soldats; traqués dans la solitude, arrêtés dans la solitude,

c’est dans le délaissement, dans le dénuement le plus complet qu’ils résistaient aux

tortures (...). Pourtant, au plus profond de cette solitude, c’étaient les autres, tous les

autres, tous les camarades de résistance qu’ils défendaient; un seul mot suffisait pour

provoquer dix, cent arrestations. Cette responsabilité totale dans la solitude totale,

n’est-ce pas le dévoilement même de notre liberté?” (“La République du Silence”, Sit.

III, p.13). E acrescenta: “Ainsi, dans l’ombre et dans le sang, la plus forte des

Républiques s’est constituée. Chacun de ses citoyens savait qu’il se devait à tous et

qu’il ne pouvait compter que sur lui-même; chacun d’eux réalisait, dans le

délaissement le plus total, son rôle historique. (...) Cette république sans institutions,

sans armée, sans police, il fallait que chaque Français la conquière et l’affirme à

chaque instant contre le nazisme” (Idem, p.14).48 Essa experiência da democracia

direta —a “República do Silêncio”— é a verdadeira varinha mágica49 (aplicada

posteriormente à revolução de maneira geral) que, restaurando o “equilíbrio da vida

pessoal e da ação” (para retomar os termos da análise de Merleau-Ponty sobre a

Resistência, “La Guerre a eu lieu”, p.267), reconcilia o indivíduo com a História,

abrindo caminho para o fim da “alienação” (quando o indivíduo não está mais

“estranho”, podendo finalmente se sentir em casa): “La résistance offrait ce phénomène

si rare d’une action historique qui ne cessait pas d’être personnelle” (“La Guerre a eu

lieu”, p.266). Naquela situação-limite, o indivíduo ocupou o centro da história

(segundo Sartre, tanto a Resistência quanto a Colaboração têm seu ponto de partida

numa “decisão individual”, cf. “Paris sous l’Occupation” e “Qu’est-ce qu’un

Collaborateur?”, in Sit.III) e a política era uma “relação de consciência a consciência”,

Razão e Resistência

299

de “homem a homem”: “Dans la résistance, l’union était facile parce que les rapports

étaient presque toujours des rapports d’homme à homme”, afirma Merleau-Ponty (“La

Guerre a eu lieu”, p.267).50 (O que afinal tornou possível, para toda uma geração,

pensar a política: “Avant la guerre, la politique nous paraissait impensable (...). Dans la

perspective de la conscience, la politique est impossible”, “La Guerre a eu lieu”, p.255-

256.) Daí a conclusão de Camus, sublinhada por Simone de Beauvoir: “La politique

n’est plus dissocié des individus, écrivait Camus dans Combat au début de septembre.

Elle est l’adresse directe de l’homme à d’autres hommes” (La force des choses, p.14-

15). A Resistência foi portanto concebida pelos contemporâneos como uma “aventura”

ao mesmo tempo individual e histórica, isto é, um instante privilegiado de comunhão

entre o indivíduo e o todo social: “Il y avait une aventure collective qui se dessinait

dans l’avenir et qui serait notre aventure, c’était elle qui permettrait plus tard de dater

notre génération”, escreve Sartre sobre aquela conjuntura de aceleração da crise

histórica (Sit.II, p.243). Nesse sentido, recorde-se ainda a seguinte passagem do

Journal de Guerre de Simone de Beauvoir, quando a autora “descobre”, no início de

1941, a possibilidade do “salut” via Resistência:“Tentation de se fondre dans

l’universel(...)—puis reconquête de l’existence individuelle. Recherche de la

conciliation.(...)Individualisme élargi51 et passage au social” (p.366-367). Essa

“conciliação” se dá através da ação política (momento em que o “destino” individual se

confunde com o do mundo), conforme indica a autora ao extrair da experiência vivida

um plano para um romance: “Scène possible: l’exode(vu par la femme)avec la tentation

de renoncer à soi; (...)elle serait abîmée. Et puis le redressement, le maintien de sa

valeur individuelle—un destin lié à celui du monde. Se jette dans une action

antifasciste” (Journal de Guerre, p.368). Tal itinerário traçado para a heroína do

romance —do “êxodo” (“tentation de renoncer à soi”, isto é, impotência e “alienação”)

à redenção através da “ação antifascista”— são os mesmos Caminhos da Liberdade

O MITO DA RESISTÊNCIA

300

descritos nos romances e peças de teatro de Sartre.52 Baralhando pois os textos dos

contemporâneos sobre a Resistência com o movimento dos heróis da literatura

existencialista, o que vemos é a mesma metamorfose, constitutiva de EN, da

impotência da subjetividade em heroísmo da consciência. Todas essas formas —

memórias de época, ensaios políticos, romances, peças de teatro e “ensaio de ontologia

fenomenológica” — são momentos diversos de um único processo de formação do

Mito da Resistência.

Detenhamo-nos ainda num dos momentos da narração desse Mito, segundo

Merleau-Ponty: “Les résistants ne sont ni des fous ni des sages, ce sont des héros,

c’est-à-dire des hommes en qui la passion et la raison ont été identiques, qui ont fait,

dans l’obscurité du désir, ce que l’histoire attendait et qui devait ensuite apparaître

comme la vérité du temps. On ne peut pas ôter à leur choix l’élément de raison, mais

pas davantage l’élément d’audace et le risque l’échec” (Humanisme et Terreur,

p.130).53 E é por serem heróis que os Resistentes puderam conciliar —tragicamente—

o indivíduo com a história: “Seuls les héros ont vraiment été au dehors ce qu’ils

voulaient être au dedans, seuls, ils se sont joints et confondus à l’histoire, au moment

où elle prenait leur vie” (Merleau-Ponty, “La guerre a eu lieu”, p.258). O Resistente,

indica ainda Merleau-Ponty, colocou na ordem do dia a possibilidade de realizar

efetivamente os ideais de liberdade, de felicidade (a Resistência foi a experiência da

“felicidade em meio ao perigo”) e das “relações transparentes entre os homens” (“La

guerre a eu lieu”, pp.266-268). É essa transparência que torna possível ver, em plena

noite da Ocupação, o segredo da Condição Humana — e aqui voltamos ao essencial da

reflexão sartriana sobre a “República do Silêncio”: “Ainsi la question même de la

liberté était posée et nous étions au bord de la connaissance la plus profonde que

l’homme peut avoir de lui-même. Car le secret d’un homme, ce n’est pas son complexe

d’Œdipe ou d’infériorité, c’est la limite même de sa liberté, c’est son pouvoir de

résistance aux supplices et à la mort” (“La République du Silence”, Sit.III, p.12-13).

Razão e Resistência

301

Esse “pouvoir de résistance aux supplices et à la mort” —verdadeira prova dos nove da

Condição Humana— é o ponto central das análises de Sartre sobre aquele período

histórico: “Nous avons vécu en un temps où la torture était un fait quotidien.

Châteaubriant, Oradour, la rue des Saussaies, Tulle, Dachau, Auschwitz, tout nous

démontrait que le Mal n’est pas une apparence (...). Mais d’autre part, battus, brûlés,

aveuglés, rompus, la plupart des résistants n’ont pas parlé; ils ont brisé le cercle du

Mal et réaffirmé l’humain, pour eux, pour nous, pour leurs tortionnaires mêmes.54 (...)

Il ne s’agissait pas pour eux de croire en l’homme mais de le vouloir. Tout conspirait à

les décourager: tant de signes autour d’eux, ces visages penchés sur eux, cette douleur

en eux, tout concourait à leur faire croire qu’ils n’étaient que des insectes, que

l’homme est le rêve impossible des cafards et des cloportes et qu’ils se réveilleraient

vermine comme tout le monde. Cet homme, il fallait l’inventer avec leur chair

martyrisée, avec leurs pensées traquées qui les trahissaient déjà (...): ils avaient

seulement à décider souverainement s’il y aurait dedans quelque chose de plus que le

règne animal. Ils se taisaient et l’homme naissait de leur silence. Nous le savions, nous

savions qu’à chaque instant du jour, aux quatre coins de Paris, l’homme était cent fois

détruit et réaffirmé” (Sit.II, pp.246, 248-249). Desse silêncio, capaz de atravessar o

“deserto estéril” do inumano, desabrocha, sem alarde, “na sombra e no sangue” de uma

“République du Silence et de la Nuit”, “cette situation déchirée, insoutenable qu’on

appelle la condition humaine” (“La République du Silence”, Sit.III, pp.12 e 14). Vê-se

pois que a geração de Sartre redescobre o que há de mais sublime —a liberdade da

Condição Humana— em meio ao que há de mais sórdido: o campo de prisioneiros, ou a

tortura nos infectos porões da Gestapo (“c’est alors qu’il boit le calice jusqu’à la lie,

c’est-à-dire qu’il éprouve jusqu’au bout sa condition d’homme”, Sit.II, p.250).55 É

justamente naquela conjuntura histórica sombria que tem lugar, ainda, a mais luminosa

das experiências — a da verdadeira democracia: “Ce délaissement, cette solitude, ce

O MITO DA RESISTÊNCIA

302

risque énorme étaient les mêmes pour tous, pour les chefs et pour les hommes; pour

ceux qui portaient des messages dont ils ignoraient le contenu comme pour ceux qui

décidaient de toute la résistance, une sanction unique: l’emprisonnement, la

déportation, la mort. Il n’est pas d’armée au monde où l’on trouve pareille égalité de

risques pour le soldat et le généralissime. Et c’est pourquoi la Résistance fut une

démocratie véritable: pour le soldat comme pour le chef, même danger, même

responsabilité, même absolue liberté dans la discipline” (“La République du Silence”,

p.13-14). Observe-se também o depoimento de Sartre sobre a luta de resistência no

campo onde foi prisioneiro: “C’étaient des rapports d’individu à individu. C’était une

communication sans trou, nuit et jour; on se voyait, on se parlait directement et à

égalité” (Sartre — Un Film, p.67). (A Resistência vem assim radicalizar a função

democratizante que nosso autor já vislumbrara na experiência da guerra, isto é, a

função de apagar a diferença entre os homens, que se tornam todos iguais diante de

uma tragédia maior: “N’importe qui: un homme et une femme qui se regardaient sur

une plage; et la guerre était là, autour d’eux; elle était descendue en eux et les rendait

semblables aux autres, à tous les autres”, Le Sursis, Pléiade, p.756. Cf. o primeiro

esboço dessa idéia nos Carnets de la drôle de guerre: “En guerre je suis n’importe où,

n’importe qui, n’importe quand”, nova edição, p.98.)56

Essa descoberta da liberdade da Condição Humana posta numa situação-limite

diante da Gestapo —situação-limite que a um tempo apaga a diferença entre os homens

e estabelece uma fronteira intransponível entre “Ratos e Homens”— é, no interior das

análises de EN, a mola propulsora do mecanismo especulativo (desmontado no nosso

Capítulo 2, Parte I) de inversão das relações de força entre carrasco e vítima, torturador

e torturado. Nessa chave, reconsidere-se a análise do sadismo, desenvolvida no

capítulo “Les relations concrètes avec autrui”, e cujo principal exemplo é a tortura: “Ce

que le sadique recherche ainsi avec tant d’acharnement, ce qu’il veut pétrir avec ses

mains et plier sous son poing, c’est la liberté de l’Autre (...). C’est pourquoi le sadique

Razão e Resistência

303

voudra des preuves manifestes de cet asservissement par la chair de la liberté de

l’Autre: il visera à faire demander pardon, il obligera par la torture et la menace

l’Autre à s’humilier, à renier ce qu’il a de plus cher” (EN, p.453).57 E Sartre

acrescenta: “C’est pourquoi le moment du plaisir est, pour le bourreau, celui où la

victime renie ou s’humilie. (...) Et le spectacle qui s’offre au sadique est celui d’une

liberté qui lutte contre l’épanouissement de la chair (...). Et c’est justement à ce corps-

là qu’une liberté choisit de s’identifier par le reniement; ce corps défiguré et haletant

est l’image même de la liberté brisée et asservie” (EN, p.454). (“La torture est d’abord

une entreprise d’avilissement (...); la suprême ironie des supplices, c’est que le patient,

s’il mange le morceau, applique sa volonté d’homme à nier qu’il soit homme, se fait

complice de ses bourreaux et se précipite de son propre mouvement dans l’abjection”:

embora esta passagem possa ser confundida com as anteriores de EN, agora já é Sartre

falando diretamente sobre aquela época em que a tortura era, mais do que um “fato

cotidiano”, uma “obsessão” — “Obsédés par ces supplices, il ne se passait pas de

semaine que nous ne nous demandions: ‘Si l’on me torturait, que ferais-je?’“, Sit.II,

pp.246-247 e 249.) Mas já sabemos que no decorrer das análises ontológicas de EN um

curto-circuito no sistema (cujo mecanismo detonador vemos enfim exposto à luz do dia

— basta relembrar o que citamos acima: “la plupart des résistants n’ont pas parlé; ils

ont brisé le cercle du Mal et réaffirmé l’humain”, Sit.II, p.248) vai subverter as

relações de dominação: “Toutefois le sadisme lui-même (...) renferme le principe de

son échec. (...) Le complexe ‘chair-ustensile’ que le sadique a tenté de créer se

désagrège. (...) Lorsque j’ai bien devant moi un corps pantelant, je ne sais plus

comment utiliser cette chair: aucun but ne saurait plus lui être assigné puisque

précisément j’ai fait paraître son absolue contingence. Elle ‘est là’ et elle est là ‘pour

rien’. (...) Le sadisme recèle un nouveau motif d’échec. C’est en effet la liberté

transcendante de la victime qu’il cherche à s’approprier. Mais précisément cette liberté

O MITO DA RESISTÊNCIA

304

demeure par principe hors d’atteinte. (...) Le sadique découvre son erreur lorsque sa

victime le regarde, c’est-à-dire lorsqu’il éprouve l’aliénation absolue de son être dans

la liberté de l’Autre (...). Il découvre alors qu’il ne saurait agir sur la liberté de l’Autre,

même en contraignant l’Autre à s’humilier et à demander grâce, car c’est précisément

dans et par la liberté absolue de l’Autre qu’un monde vient à exister, où il y a un

sadique et des instruments de torture et cent prétextes à s’humilier et à se renier. (...)

Ainsi cette explosion du regard d’Autrui dans le monde du sadique fait s’effondrer le

sens et le but du sadisme. En même temps le sadisme découvre que c’était cette liberté-

là qu’il voulait asservir et, en même temps, il se rend compte de la vanité de ses

efforts” (EN, pp.455, 456 e 457). (Daí o “fracasso” do projeto da tortura, uma das

“tentatives avortées pour étouffer la liberté...”, EN, p.495.) Tal virada, que resulta na

“puissance du regard de la victime sur ses bourreaux” (EN, p.456), é o momento

preciso de inversão do sinal dos “homens do não”, e encerra, na sua forma filosófica,

um misto de experiência literária (o exemplo vem de Faulkner, como se há de recordar:

“Personne n’a mieux rendu la puissance du regard de la victime sur ses bourreaux que

Faulkner dans les dernières pages de Lumière d’août”, EN, p.456) e experiência vivida

na história imediata (“fato cotidiano”).58 (Note-se que desde o primeiro Sartre —cf. La

Nausée— é recorrente a idéia do olhar superior daquele que tem consciência, que é

lúcido —no limite, o intelectual—,59 contraposto à bêtise, ou aos salauds.) Essa

conversão da impotência da subjetividade em liberdade heróica é, tanto em EN quanto

nos textos dos contemporâneos sobre a época (incluindo a literatura), a condição (mas

também o resultado) da superação da “alienação”.

A visão simultânea de todas as faces (filosófica, política e literária) dessa figura

da liberdade heróica revela ainda outros ângulos novos e surpreendentes. Se

confrontarmos um pouco mais EN com os textos paralelos sobre a Resistência, em

particular os de Merleau-Ponty, veremos uma espantosa imagem especular: ambos

elaboram os mesmos materiais, mas em sentido inverso — se no primeiro caso é a

Razão e Resistência

305

Resistência que se insinua nas análises filosóficas em torno da Fenomenologia do

Espírito, no segundo é Kojève que se insinua nas análises políticas. Ao descrever a luta

entre Colaboradores e Resistentes, Merleau-Ponty o faz quase como se estivesse

ilustrando, com exemplos extraídos da história imediata, os ensinamentos de Kojève

sobre a Fenomenologia do Espírito (reativados pelo próprio Merleau-Ponty no ensaio

“L’Existentialisme chez Hegel”). Ou melhor, é como se a experiência da guerra e da

Resistência tivesse confirmado que a história presente é aquilo mesmo que Kojève

ressaltara na Fenomenologia do Espírito — uma luta de morte entre consciências (ou

um “duelo de consciências”, nos termos com os quais Merleau-Ponty resume a teoria

da intersubjetividade de Hegel, cf. “L’Existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens,

p.118):60 “Quand on a le malheur ou la chance de vivre une époque (...) où, bon gré mal

gré, l’homme doit reconstruire lui-même les rapports humains, alors la liberté de

chacun menace de mort celle des autres et la violence reparaît” (Humanisme et

Terreur, p.44). E ainda: “Confrontant le collaborateur avant qu’il eût historiquement

tort et le résistant après qu’il a eu historiquement raison, le résistant avant que

l’histoire lui ait donné raison et le collaborateur après qu’elle lui a donné tort, le procès

d’épuration met en évidence la lutte à mort des subjectivités qui est l’histoire présente.

Au cours d’un procès de collaboration, l’accusé, qui n’avait pas cru, en recommandant

la collaboration, agir contre l’honneur, présentait le gaullisme de Londres et la

collaboration de Paris comme les deux armes de l’intérêt français devant les

incertitudes de l’histoire. L’argument était odieux en ceci qu’il justifiait ensemble

gaullistes et collaborationnistes comme s’il s’était agi de thèses spéculatives, alors que

dans le fait il fallait être l’un ou l’autre et que les uns poursuivaient la mort des autres”

(Humanisme et Terreur, p.130-131; grifos nossos). A fórmula filosófia dessa luta já

nos é familiar: “je poursuis la mort de l’autre” (EN, p.282; grifo do autor). Recorde-se

que é exatamente através de uma luta de morte entre consciências que se dá em EN, via

O MITO DA RESISTÊNCIA

306

instrumental filosófico da Fenomenologia do Espírito, a passagem do momento

negativo ao momento positivo da alienação (cujo resultado é a conversão do quietismo

heideggeriano em ativismo político) — é através desse movimento assassino, em que

cada um persegue a morte do Outro,61 que a consciência prova a sua liberdade como

ser para si: “Chacune d’elles est la mort de l’autre. (...) Mieux, chacune d’elles est en

l’autre et engendre la mort de l’autre” (EN, p.412-413); “Hegel se place ici sur le

terrain non de la relation univoque qui va de moi (appréhendé par le cogito) à l’autre,

mais de la relation réciproque qu’il définit: ‘le saisissement de soi de l’un dans l’autre’.

En effet, c’est seulement en tant qu’il s’oppose à l’autre que chacun est absolument

pour soi; il affirme contre l’autre et vis-à-vis de l’autre son droit d’être individualité”

(EN, p.281). (Note-se que a fórmula com que Sartre define a estrutura da consciência

em EN —a consciência só toma consciência de si através da luta de morte com o

Outro— é a mesma com a qual o autor define, numa passagem já mencionada, a luta

entre os Resistentes e seus algozes: “La torture, c’est vraiment la lutte à mort des

consciences”.) Trocando em miúdos: no interior do “ensaio de ontologia” de Sartre a

virada histórica da Resistência está cifrada na releitura da “luta contra o Outro” (EN,

p.282) descrita na Fenomenologia do Espírito62 — “Pour me faire reconnaître par

l’autre, je dois risquer ma propre vie. (...) Je risquerai ma vie car j’ai fait, dans la lutte

contre l’autre, abstraction de mon être sensible en le risquant” (EN, p.282; grifo do

autor).63 Se Merleau-Ponty vê na prática política da Resistência a confirmação da

teoria hegeliana da intersubjetividade, as análises de EN reconstroem essa mesma

teoria com exemplificações da história imediata (a ponto de a figura filosófica do

Outro ser identificada com a figura histórica concreta do Ocupante alemão, conforme

vimos no capítulo anterior). Nessa trama tecida com situações reais do mundo e

narração filosófica os fios são tão fortemente entrelaçados que se torna quase

impossível distingui-los entre si. É que com a geração de Sartre se repete o mesmo

fenômeno que já se dera com Kojève: a Fenomenologia do Espírito é lida como uma

Razão e Resistência

307

exposição da gênese do mundo contemporâneo.64 Só que esse fenômeno se repete de

forma nova e ainda mais viva: se na interpretação kojeviana a Fenomenologia era uma

espécie de encenação das “aventuras da dialética” da Revolução Francesa à Revolução

Russa (se for consentido resumir o espírito das lições do mestre com um título do

discípulo), agora, com a geração de Sartre, as análises hegelianas da “lutte ardente et

périlleuse du maître et de l’esclave” (EN, p.284) são vistas não apenas como a narração

de um ciclo histórico recém-encerrado, mas antes como a descrição de uma revolução

em curso, e cujo desfecho decisivo se dará em breve (sabe-se que o grande propósito

da Resistência é levar adiante o trabalho da Revolução Francesa — daí sua palavra de

ordem, estampada em jornais, panfletos e affiches: “vers une deuxième Révolution

Française”, “une nouvelle révolution qui reprenne la trame interrompue de 1789”).65

Já em junho de 1940, no campo de prisioneiros, Sartre, numa carta a Simone de

Beauvoir, cita, como quem conta cenas da vida cotidiana, longas passagens da

Fenomenologia do Espírito sobre a luta de vida e morte entre consciências: “Dans la

mesure où c’est l’Autre qui agit, chaque conscience poursuit la mort de l’autre... Le

rapport des deux consciences de soi est donc déterminé ainsi: elles s’éprouvent elles-

mêmes et l’une l’autre par une lutte à mort. Elles ne peuvent éviter cette lutte car elles

sont forcées d’élever au niveau de la vérité leur certitude de soi, leur certitude d’exister

pour soi, chacune doit éprouver cette certitude en elle-même et dans l’autre. (...)

Chaque conscience de soi doit poursuivre la mort de l’autre puisqu’elle y risque sa

propre vie, puisque l’autre ne vaut pas pour elle plus qu’elle-même; l’essence de

l’autre apparaît à elle comme autre, comme externe et elle doit dépasser cette

extériorité” (carta/citações reproduzidas por Simone de Beauvoir em seu Journal de

Guerre, p.297; daí a autora extrairá a epígrafe para seu primeiro romance, L’Invitée:

“Chaque conscience poursuit la mort de l’autre”). À primeira vista, o disparate não

poderia ser maior: um prisioneiro de guerra, numa conjuntura em que a França acabara

O MITO DA RESISTÊNCIA

308

de capitular, escreve uma carta “pessoal” que é não é senão uma colagem de frases do

idealismo clássico alemão. O qüiproquó é aparentemente de tal ordem que um eventual

censor do campo de prisioneiros bem poderia desconfiar (caso não colocasse em

dúvida a saúde mental do autor, bem entendido) tratar-se de uma carta codificada de

algum Resistente de primeira hora. Nessa hipótese, nosso censor imaginário atiraria no

escuro e acertaria o ponto nevrálgico do problema, ainda que jamais pudesse atinar

com o grau, nem muito menos com os termos, desse acerto (que no próprio autor não

fora de caso pensado): é de fato a situação trágica da guerra, tal como é descrita pelos

contemporâneos,66 que está codificada no pastiche sartriano dos esquemas da

Fenomenologia do Espírito — querendo falar apenas de uma luta abstrata de vida e

morte entre consciências, Sartre acaba encontrando a fórmula com a qual passará a

descrever a experiência histórica vivida: “Pendant la guerre, (...) des millions

d’hommes s’affrontent, à la vie à la mort” (Sartre, in La cérémonie des adieux, p.510).

Mas se essa fórmula pôde ser encontrada é porque o autor, já àquela época, no campo

de prisioneiros, teve por assim dizer a intuição (que não chega contudo a ser formulada

teoricamente) de que as descrições abstratas da Fenomenologia do Espírito têm a ver

com a realidade histórica e se tornam, numa conjuntura política dramática, ainda mais

atuais do que o foram para Kojève. Um pouco mais tarde, quando a Resistência se

encarregar de radicalizar a idéia de heroísmo que a experiência da Guerra colocou na

ordem do dia, Sartre terá finalmente à sua disposição todos os materiais com os quais

montará um grande cenário filosófico “realista”, onde as figuras da Fenomenologia do

Espírito serão (re)colocadas em movimento.67 E se nos lembrarmos dos termos desse

“realismo” —a filosofia não contemplativa elaborada a partir da Fenomenologia do

Espírito e de Ser e Tempo, e cuja gênese no jovem Sartre expusemos no Capítulo 1 da

Primeira Parte— veremos que não estamos muito longe do que significou para nosso

autor a “modernidade” literária (sobretudo Céline e romancistas americanos): nos dois

casos “realismo” tem o mesmo sentido de dessublimação, isto é, de rebaixamento dos

Razão e Resistência

309

assuntos elevados (seja da filosofia “pura”, que paira no céu das idéias, seja do estilo

“nobre” da escrita dita “artística”) — um rebaixamento que resulta na mundanização

da filosofia e da literatura. (Ambas se tornam, como veremos melhor mais para a

frente, formas de expressão tão dessacralizadas quanto o cinema, isto é, autorizadas a

falar sobre os mais prosaicos assuntos da vida social e cultural.)

Chumbo nas asas da filosofia que a impede de voar (ou de voar demasiado

alto)? Ocorre que nesse registro sartriano a filosofia já não é mais pássaro crepuscular

(e muito menos pássaro cujo vôo jamais tangencia o mundo, mas isso nunca fora

mesmo com Hegel): sua natureza mudou, e é isto que está em jogo na forma peculiar

de assimilação da filosofia hegeliana. Convém atentar para as novas condições em que

o idealismo clássico alemão (leia-se Fenomenologia do Espírito) volta ao primeiro

plano da cena filosófica: devidamente rebaixado ao nível terra-a-terra dos problemas

de um mundo demasiado humano, e enquadrado no ângulo da história imediata. Para

além do “idealismo” e da “abstração” de Hegel, sugere Sartre nos Cahiers pour une

morale, o que realmente interessa é que, na filosofia hegeliana, “l’Esprit est une

structure du monde” (pp. 417 e 445). Uma “estrutura” que encerra o mundo (ao mesmo

tempo em que é por ele encerrada) e, nessa medida, pode mostrá-lo.68 E o que “mostra”

(no sentido o mais descritivo e menos especulativo possível) é, aos olhos de Sartre,

“une grande fresque sociale” (para lembrar os termos com que nosso autor definiu a

tarefa do “verdadeiro cinema realista”, “Un film pour l’après-guerre”, in Les Lettres

Françaises, abril de 1944): o drama da liberdade da condição humana numa situação

histórica limite (a mesma que é igualmente “mostrada” pelo cinema neo-realista de

Rossellini). É esse drama que a geração de Sartre vê encenado na Fenomenologia do

Espírito, cujo enredo fora tão vivamente narrado por Kojève: da consciência escrava à

luta pela libertação (o marco histórico dessa luta é a Revolução Francesa, revivida no

limiar dos “anos Sartre” pelo imaginário da Resistência). Os diferentes episódios desse

O MITO DA RESISTÊNCIA

310

enredo adquirem assim uma viva atualidade, tanto mais que nele vão sendo enxertadas

todas as principais figuras do presente político. (Na nova versão desse enredo,

conforme apontamos nos romances existencialistas, particularmente em Le sang des

autres, a consciência escrava reaparece encarnada na figura histórica do êxodo de 40,

que, por sua vez, dará origem a mais uma figura, a da luta antifascista, outro nome da

Libertação.) Na Fenomenologia está portanto, como Kojève já indicara, a matriz da

dramática história do mundo moderno. O capítulo inicial desse drama pode ser

resumido com a célebre descrição hegeliana, relembrada em nossa Primeira Parte, do

momento negativo da alienação — a consciência “dans la forme de la choséité”: “une

conscience qui n’est pas purement pour soi, mais qui est pour une autre conscience,

c’est-à-dire une conscience dans l’élément de l’être ou dans la forme de la choséité”

(La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.161). (Vimos no capítulo anterior a que ponto

a assimilação sartriana desse momento negativo da alienação na Fenomenologia —um

Ser-fora-de-si que reaparece em EN mesclado ao sujeito desintegrado de Heidegger—

é tingida com a cor local própria de uma conjuntura de crise histórica radical, em

particular a “défaite” da França.)69 Mas o enredo da Fenomenologia do Espírito não se

detém nesse momento negativo da alienação, como Kojève não se cansava de frisar. A

dialética do senhor e do escravo vai continuar até o final do livro (mesmo porque,

segundo Kojève, “la ‘dialectique’ historique est la ‘dialectique’ du Maître et de

l’Esclave”, Introduction à la lecture de Hegel, p.16): é a virada histórica da Revolução

Francesa que decide efetivamente essa luta. A consciência escrava que, ao longo das

análises hegelianas, vence e ao mesmo tempo não vence a dominação do senhor (pois

na verdade o escravo continua escravo, e sua liberdade é “abstrata”70) só vai realmente

inverter a relação de dominação nessa última grande reviravolta da Fenomenologia do

Espírito que é a Revolução Francesa71 (esse fecho da história vai se prolongar, para

Kojève, até a Revolução Russa e, para a geração de Sartre, até a Segunda Guerra).

Sabemos como se chega a tal desenlace: ao contrário da passividade própria de um

Razão e Resistência

311

sujeito do conhecimento, na Fenomenologia do Espírito, observa Kojève, estamos

diante de um sujeito “inquieto” (“l’homme est une in-quiétude (Un-ruhe) dialectique

absolue, Introduction à la lecture de Hegel, p.66), impelido à ação (definida como

“transformation du monde hostile à un projet humain en un monde qui est en accord

avec ce projet”, Idem, p.18) — e o que o impele é um vazio interno, isto é, o Desejo de

reconhecimento (“le premier et le seul Désir vraiment humain”, Idem, p.126), que só

pode ser satisfeito (este o ponto central) por meio da negação do existente.72 A

Revolução Francesa é o momento por excelência da negação do existente, ou seja,

quando o escravo encara de frente o problema da dominação, pois até então não ousara

arriscar realmente a sua vida para enfrentar a outra consciência que não trabalha,

apenas usufrui do objeto de seu trabalho. Numa palavra (para colocar o problema nos

termos de um decisionismo em que Sartre e Kojève se confundem): a Revolução

Francesa é o momento em que o escravo “decide” de fato ir à luta, encerrando com a

história de subterfúgios que até então fora a sua luta com o senhor. Esse o verdadeiro

momento de tomada de consciência, uma consciência de si que só se descobre na luta

efetiva, arriscando sua própria vida (recorde-se: “Et c’est pourquoi parler de l’’origine’

de la Conscience de soi, c’est nécessairement parler du risque de la vie”, Introduction à

la lecture de Hegel, p.14). Só agora, afinal, o escravo começa verdadeiramente a

pensar —”ce n’est qu’après cette expérience que l’Homme devient vraiment

‘raisonnable’ et veut réaliser une Société (État) où la Liberté soit vraiment possible”

(Introduction à la lecture de Hegel, p.144)— e torna-se... Intelectual,73 isto é, um

ativista (“l’Intellectuel bourgeois se supprimera ici lui-même, deviendra homme

d’action: révolutionnaire, puis citoyen de l’État napoléonien”, Idem, p.134), uma

consciência impulsionada pela ação negadora do existente, e cuja primeira figura de

envergadura histórica é a do ideólogo jacobino da Revolução Francesa: “L’Homme

‘éclairé’ qui commence à agir, c’est le Révolutionnaire de 1789” (Introduction à la

O MITO DA RESISTÊNCIA

312

lecture de Hegel, p.141; grifo do autor). A resolução da Revolução Francesa, arremata

Kojève, é o Saber Absoluto: “Napoléon achève l’histoire, Hegel en prend conscience,

c’est le ‘Savoir absolu’, qui ne devra plus être modifié ni complété, puisqu’il n’y aura

plus rien de nouveau dans le Monde” (Idem, p.41). Nesse momento, quando o Desejo

(de reconhecimento) foi enfim satisfeito, começa o grande “Dimanche de la Vie”.74

Mas não se chega a isso —a “supressão dialética” da relação de dominação— sem luta

revolucionária: “Si l’histoire au sens fort du mot a nécessairement un terme final, (...)

si le Désir doit aboutir à la satisfaction, (...) l’interaction du Maître et de l’Esclave doit

finalement aboutir à leur ‘suppression dialectique’. (...) Or, le Monde donné où il vit

appartient au Maître (humain ou divin), et dans ce Monde il est nécessairement

Esclave. Ce n’est donc pas la réforme, mais la suppression ‘dialectique’, voire

révolutionnaire du monde qui peut le libérer, et —par suite— le satisfaire. Or, cette

transformation révolutionnaire du Monde présuppose la ‘négation’, la non-acceptation

du Monde donné dans son ensemble” (Introduction à la lecture de Hegel, pp.16 e 33).

Resumindo: a superação da “consciência escrava”, que caracteriza o momento negativo

da alienação na Fenomenologia (“la conscience dans la forme de la choséité, donnera

la conscience de l’esclave, conscience qui est seulement pour un autre”, observa

Hyppolite, in La Phénoménologie de l’Esprit, p.161, nota 18), pressupõe a ação

revolucionária: “Le Citoyen (...) devra (...) nier la Société (par une action

révolutionnaire) et la transformer en Société nouvelle” (Introduction à la lecture de

Hegel, p.94).

O cenário estava portanto semi-armado para Sartre — bastava esperar que a

Guerra, a Ocupação e a Resistência imprimissem um novo conteúdo de experiência ao

enredo kojeviano: da consciência escrava à Libertação. Com as figuras vivas da

experiência histórica em curso, nosso autor reescreve esse mesmo enredo, ou melhor,

acrescenta a ele mais um capítulo da história do mundo contemporâneo, um capítulo

sustentado pela mesma estrutura básica que sustenta o conjunto do qual faz parte: a

Razão e Resistência

313

idéia de que a “dialética histórica” é essencialmente uma luta entre o “senhor” e o

“escravo”. Nesse novo capítulo, construído em EN, cada figura da Fenomenologia

encontra seu correspondente numa figura da atualidade política. E assim o “senhor” e o

“escravo” vão travar um novo momento de sua luta encarnados nas figuras históricas

do Ocupante e/ou Colaborador versus Resistente (na linguagem de EN: “opressor”

versus “oprimido”, torturador versus torturado, “le fuyard” versus “l’homme qui

résiste”). Daí a imagem especular a que nos referíamos acima: se nas análises sobre a

época (em particular as de Sartre, Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir) a Resistência

é descrita como uma luta heróica de consciência a consciência (onde se reconhece

Kojève), em EN a consciência heróica à la Kojève é resultado de uma luta onde se

exprime uma certa experiência (na qual se pode reconhecer a Resistência). Momento

de radicalização da “lutte pour la vie et pour la mort” (cf. Hyppolite, La

Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.160, nota 17), e, nessa medida, modelo da

verdadeira Ação, a Resistência concretiza, aos olhos da geração de Sartre, este instante

preciso de inversão das relações de força na Fenomenologia do Espírito: “Mais cet

élément négatif et objectif est précisément l’essence étrangère devant laquelle la

conscience a tremblé. Or, maintenant elle détruit ce négatif étranger...” (La

Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.165). (Cf. também o seguinte comentário de

Hyppolite: “Les consciences de soi séparées se rencontrent d’abord comme étrangères,

puis s’opposent; enfin l’une domine l’autre, phénomène fondamental dans le

développement du soi”, in La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.155, nota 1.) Esse

um exemplo do “realismo” das descrições da Fenomenologia, que se torna um grande

painel onde se pode ver, a olho nu, a luta heróica da Resistência contra o ocupante

estrangeiro.75 Devidamente traduzida para a conjuntura imediata, essa luta em que a

consciência “détruit ce négatif étranger” toma em EN a forma (exposta no Capítulo 2

de nossa Primeira Parte) do “projet de supprimer autrui (...), c’est-à-dire de reconquérir

O MITO DA RESISTÊNCIA

314

ma liberté” (EN, p.462). E ao tentar “me libérer de l’emprise d’autrui” (EN, p.413), “je

prends conscience (de) moi-même comme d’une de mes libres possibilités” (p.334) —

“mon projet de récupérer mon être ne peut se réaliser que si je m’empare de cette

liberté [d’Autrui] et que je la réduis à être liberté soumise à ma liberté” (p.415). O

resultado dessa luta dramática (“arrachement de consciences”, EN, p.334) contra

“Autrui” que “me met hors de jeu” (“Rien en effet ne peut me limiter sinon Autrui. Il

apparaît donc comme ce que (...) me met hors de jeu”, p.334) é o surgimento da figura

(cujo contorno especulativo vimos na Primeira Parte deste trabalho) de um “Autrui qui

ne me met hors jeu” (p.334) — uma figura através da qual a “segunda negação” é

“explicitada” (EN, p.334), levando assim à “supressão dialética” de que falava Kojève:

“je jette l’Autre hors de jeu” (EN, p.334); Autrui “devient maintenant ce que je limite”

(Idem, p.335). É esse “Autrui qui ne me met hors jeu” (cujo perfil ontológico coincide

com as descrições sartrianas do Resistente) que transforma efetivamente a impotência

da subjetividade em heroísmo da consciência. Nesse momento, completa-se a

metamorfose da “alienação” em libertação: “Par là je dépasse mes possibilités

présentes, (...) mais je dépasse aussi les possibilités d’Autrui (...). Ainsi, du même

coup, j’ai reconquis mon être-pour-soi par ma conscience (de) moi comme foyer

perpétuel d’infinies possibilités et j’ai transformé les possibilités d’Autrui en mortes-

possibilités” (EN, p.335); “l’Autre (...) se transforme alors en notre objet — et ici je

fais une expérience du Nous-sujet” (Idem, p.467). Tal metamorfose —“une brusque

métamorphose”, na linguagem de EN— é identificada com o que Sartre chama de

“conversão radical” (cujo sentido é a “rejeição da alienação”, conforme se lê nos

Cahiers pour une morale, p.486): “...par une conversion radicale de mon être-dans-le-

monde, c’est-à-dire par une brusque métamorphose de mon projet initial, c’est-à-dire

par un autre choix de moi-même et de mes fins. Cette modification est d’ailleurs

toujours possible” (EN, p.520).76 (É essa “conversion radicale” a condição para

“renverser la vapeur”, mencionada no Capítulo 2 da Primeira Parte: “Ainsi, sommes-

Razão e Resistência

315

nous perpétuellement engagés dans notre choix et perpétuellement conscients de ce que

nous-mêmes pouvons brusquement inverser ce choix et renverser la vapeur, car nous

projetons l’avenir par notre être-même et nous le rongeons perpétuellement par notre

liberté existentielle: nous annonçant à nous-mêmes ce que nous sommes par

l’avenir...”, EN, p.520.) Definida como um momento privilegiado de liberdade

(“l’instant libérateur”) —um certo tipo de experiência apreendida mais pela literatura

do que pela filosofia (“ces conversions, qui n’ont pas été étudiées par les philosophes,

ont souvent inspiré, au contraire, les littérateurs”; os exemplos vêm agora de Gide, e

também de Dostoievski: “qu’on se rappelle l’instant où Raskolnikov décide de se

dénoncer”, EN, p.532)77—, a “conversão radical” é saudada por Sartre nos seguintes

termos: “Ces instants extraordinaires et merveilleux, où le projet antérieur s’effondre

dans le passé à la lumière d’un projet nouveau qui surgit sur ses ruines et qui ne fait

encore que s’esquisser, où l’humiliation, l’angoisse, la joie, l’espoir se marient

étroitement, où nous lâchons pour saisir et où nous saisissons pour lâcher, ont souvent

paru fournir l’image la plus claire et la plus émouvante de notre liberté” (EN, p.532).

(Está aberto o caminho para a consolidação do vínculo sartriano entre revolução e

liberdade.) Essa metamorfose tão radical está condicionada, tanto quanto em Kojève, a

uma decisão igualmente radical: “C’est à partir du jour où l’on peut concevoir un autre

état de choses qu’une lumière neuve tombe sur nos peines et sur nos souffrances et que

nous décidons qu’elles sont insupportables” (EN, p.489; grifo do autor). (Tal idéia —

iluminista— da Revolução como “une lumière neuve” que “tombe sur nos peines” é

ilustrada com um exemplo, no caso um contra-exemplo, da história revolucionária

francesa, 1830, cf. a p.489.)78 Ora, já sabemos que a Resistência, reelaborando os

mesmos princípios da Revolução Francesa, é, na ótica sartriana, justamente esse limiar

de um novo ciclo histórico em que o “escravo” “decide” ir à luta. É a passagem a esse

“autre état de choses” que EN está anunciando (sugestivamente, no início do capítulo

O MITO DA RESISTÊNCIA

316

sobre a Liberdade). Mais do que isso: o livro faz por assim dizer o plaidoyer em favor

dessa passagem e, nessa perspectiva, poderia ser lido como o manifesto filosófico da

Resistência (assim como L’Espoir foi o manifesto literário da Guerra Civil Espanhola e

La Peste uma “chronique contre la terreur”, conforme escreve Camus no final do livro,

p.279). O nascimento dessa subjetividade militante79 é, aliás, anunciado pelo próprio

Sartre, já em maio de 1940: “C’est tout de même contre la faillite de la démocratie et

de la liberté, contre la défaite des Alliés —symboliquement— que je fais l’acte

d’écrire” (in Lettres au Castor, vol.II, p.252; grifo do autor).80

Nesse contexto, não há de surpreender que o estudo das “relations concrètes

avec autrui” culmine, em EN, indicando a possibilidade de uma “morale de la

délivrance et du salut” (via “conversion radicale”) — o mesmo processo que parecia

conduzir inexoravelmente aos “últimos dias da humanidade” pode também curto-

circuitar o caminho81 e levar ao “salut”: “Ces considérations n’excluent pas la

possibilité d’une morale de la délivrance et du salut. Mais celle-ci doit être atteinte au

terme d’une conversion radicale dont nous ne pouvons parler ici” (EN, p.463). Esta

passagem, colocada como nota, aparentemente externa à trama ontológica que está

sendo tecida (por isso não chama nunca a atenção dos comentadores), tem, a nosso ver,

importância estratégica na composição do livro: prepara o capítulo seguinte sobre a

liberdade (onde a idéia de “conversion radicale” é retomada e definida como “instants

extraordinaires et merveilleux”, conforme vimos) e, além disso, reaparece na conclusão

do livro, que se fecha justamente buscando as condições “d’un moyen de délivrance et

de salut” (p.691).82 Se nossa interpretação faz sentido, é a possibilidade (e até mesmo a

necessidade) histórica do “salut”, vislumbrada na experiência política da Resistência,

que norteia EN (daí seu otimismo). Ainda que o autor não possa (e tal impossibilidade

é também de ordem histórica) desenvolver essa “morale de la délivrance”, ou mesmo

delinear com precisão a fisionomia da “conversion radicale” (“nous ne pouvons parler

ici”), mas apenas vislumbrá-la vagamente no horizonte (um horizonte histórico ainda

Razão e Resistência

317

distante daquele presente da Ocupação), é o seu advento na cena política que está

sendo anunciado filosoficamente no interior das análises do livro (um anúncio

filosófico por antecipação). (Sartre verá essa “morale de la délivrance et du salut”

concretamente realizada durante a “semana de Apocalipse” de 1944 — por aí passa o

processo de transformação da forma filosófica ao longo de sua obra, cujo resultado é o

abandono do projeto original de escrever uma moral, mas sobre isso falaremos depois.)

É à luz desse horizonte histórico que se deve reler a passagem de EN onde

Sartre afirma que a liberdade da qual ele fala não é a “liberté intérieure bergsonienne”

—”qui aboutissait tout simplement à reconnaître à l’esclave l’indépendance de la vie

intime et du cœur dans les chaînes” (p.608)—, mas sim a liberdade de “briser les

chaînes”: “Nous ne voulons pas parler d’une liberté qui demeurerait indéterminée.

L’esclave dans les chaînes est libre pour les briser” (p.608-609). Páginas antes, nesse

mesmo capítulo sobre a liberdade, já líamos: “il n’est pas question ici d’une liberté qui

serait pouvoir indéterminé” (EN, p.535). Desnecessário dizer que Sartre não avança

mais na determinação dessa liberdade — seu verdadeiro conteúdo não é jamais

claramente exposto. Mas ao afirmar que a liberdade que está sendo engendrada

especulativamente não é “liberté intérieure”, não é mera liberdade subjetiva, o autor

(involuntariamente, mais uma vez) abre uma porta através da qual se pode entrever, se

levarmos às últimas consequências sua afirmação, a verdadeira fisionomia dessa

liberdade: ela é a elaboração filosófica da figura do Resistente (e de maneira mais geral

da figura do revolucionário, cujo perfil veremos nitidamente estampado pouco tempo

depois, em “Matérialisme et Révolution”).83 Estamos portanto diante de um apelo

(filosófico) à Resistência (por isso a heroicização kojeviana da consciência vem a

calhar), apelo ao ato “libre et volontaire” de resistência — “cette forme de la liberté

qu’est l’engagement libre et volontaire” (EN, p.416). Daí a importância crucial

atribuída ao ato decisório:84 “Si ces fins sont déjà posées, ce qui reste à décider à tout

O MITO DA RESISTÊNCIA

318

instant c’est la façon dont je me conduirai vis-à-vis d’elles, autrement dit l’attitude que

je prendrai. Serai-je volontaire ou passionné? Qui peut le décider sinon moi?” (EN,

p.499). Recorde-se que “volontaire” é “l’homme qui résiste” (“nous réservons

l’épithète de ‘volontaire’ à l’homme qui résiste”, EN, p.498) —aquele que realiza a

liberdade como ato de vontade e mudança (“changement”); em contrapartida,

“passionné” é “le fuyard” (ou “peureux”): “le fuyard est dit ‘passionnel’“ (EN, p.498; o

“ato passional” é também definido como “irracional”, p.502). É esse exemplo do

“homme qui résiste”, contraposto ao “fuyard”, que sustenta as análises de EN sobre

“les rapports de la liberté avec ce qu’on nomme la ‘volonté’“ (EN, p.495) — e que

levará ao voluntarismo da concepção sartriana de liberdade: “La liberté n’est rien autre

que l’existence de notre volonté (...). Mais comment soutenir, d’autre part, qu’une

volonté qui n’existe pas encore peut décider soudain de briser l’enchaînement des

passions et de surgir soudain sur les débris de cet enchaînement? (...) En opposition à

ces conduites [magiques], la conduite volontaire et rationnelle envisagera

techniquement la situation, refusera le magique et s’appliquera à saisir les séries

déterminées et les complexes instrumentaux qui permettent de résoudre les problèmes.

(...) Mais qui me décidera à choisir l’aspect magique ou l’aspect technique du monde?

Ce ne saurait être le monde lui-même — qui, pour se manifester, attend d’être

découvert. Il faut donc que le pour-soi, dans son projet, choisisse d’être celui par qui le

monde se dévoile comme magique ou rationnel, c’est-à-dire qu’il doit, comme libre

projet de soi, se donner l’existence magique ou l’existence rationnelle. De l’une

comme de l’autre il est responsable; car il ne peut être que s’il est choisi. (...) Je me

suis choisi peureux en telle ou telle circonstance; en telle autre j’existerai comme

volontaire et courageux et j’aurai mis toute ma liberté dans mon courage” (EN, p.499-

500; grifo do autor). Ainda sobre a responsabilidade da escolha: “Il convient de

remarquer d’abord que le choix des fins totales, bien que totalement libre, n’est pas

nécessairement ni même fréquemment opéré dans la joie. (...) Le choix peut être opéré

Razão e Resistência

319

dans la mauvaise foi. Nous pouvons nous choisir comme fuyant, insaisissable, hésitant,

etc.; nous pouvons même choisir de ne pas nous choisir: dans ces différents cas, des

fins sont posées par delà une situation de fait et la responsabilité de ces fins nous

incombe: quel que soit notre être, il est choix; et il dépend de nous de nous choisir

comme ‘grand’ ou ‘noble’ ou ‘bas’ et ‘humilié’. Mais si, précisément, nous avons

choisi l’humiliation comme étoffe même de notre être, nous nous réaliserons comme

humilié, aigri, inférieur, etc. Il ne s’agit pas là de données dépourvues de signification.

Mais celui qui se réalise comme humilié se constitue par là comme un moyen

d’atteindre certaines fins: l’humiliation choisie peut être, par exemple, assimilée,

comme le masochisme, à un instrument destiné à nous délivrer de l’existence-pour-soi,

elle peut être un projet de nous démettre de notre liberté angoissante au profit des

autres; notre projet peut être de faire entièrement absorber notre être-pour-soi par notre

être-pour-autrui. (...) Ainsi l’infériorité sentie et vécue est l’instrument choisi pour

nous faire semblable à une chose, c’est-à-dire pour nous faire exister comme pur

dehors au milieu du monde (EN, p.528). E acrescenta: “Ainsi celui qui souffre de

‘Minderwertigkeit’ a-t-il choisi d’être le bourreau de soi-même. Il a choisi la honte et

la souffrance” (EN, p.530). Vimos no capítulo anterior que é justamente esse estado de

“coisificação”, ou de desumanização —outro aspecto da escolha da “honte” e da

“humilhação”—, que, na ótica sartriana, caracteriza a França da Ocupação.85 Todavia,

vemos melhor agora que, mais do que a descrição de um estado de coisas vigente,

estamos diante da narração filosófica da luta do Resistente contra o Colaborador. Nos

textos de Sartre sobre a época este último é apresentado como um exemplo concreto da

“mauvaise foi”, própria de quem escolheu ser “le bourreau de soi-même” — basta levar

em conta as críticas de nosso autor à “escolha” de Drieu la Rochelle (“le

Kollaborateur”, como era chamado pela imprensa da Resistência): “Il est venu au

nazisme par affinité élective: au fond de son coeur comme au fond du nazisme, il y a la

O MITO DA RESISTÊNCIA

320

haine de soi — et la haine de l’homme qu’elle engendre” (“Drieu la Rochelle ou la

haine de soi”, Les Lettres Françaises, nº 6, abril de 1943; reproduzido integralmente

em Les Écrits de Sartre, pp.650-652).86 Contra esse tipo de escolha “opéré dans la

mauvaise foi” (para retomar a linguagem de EN), contra o conformismo político

(espécie de falsa consciência, embora nesse registro de EN não se possa evidentemente

falar em ideologia), a “teoria da ação” esboçada no ensaio de ontologia sartriano, e

desenvolvida nos Cahiers pour une morale como uma teoria da ação revolucionária

(cf. p.20), apela à luta, mostrando que não há inocentes em política: trata-se sempre de

uma escolha, de uma decisão, pela qual se é responsável. E a grande decisão em jogo

àquela época só podia ser esta que Sartre explicita nos Cahiers pour une morale (que

tornam pois manifesto o que estava por assim dizer latente em EN): “Problème de la

collaboration ou résistance: voilà un choix moral concret. (...) J’exige d’un Français

qu’il refuse la collaboration en 1940” (p.14). Essa a consequência política do binômio

“Liberté et Responsabilité” (um dos subtítulos do capítulo sobre a liberdade)

desenvolvido filosoficamente em EN: “La conséquence essentielle de nos remarques

antérieures, c’est que l’homme, étant condamné à être libre, porte le poids du monde

tout entier sur ses épaules: il est responsable du monde et de lui-même en tant que

manière d’être.(...) Les plus atroces situations de la guerre, les pires tortures ne créent

pas d’état de choses inhumain: il n’y a pas de situation inhumaine; c’est seulement par

la peur, la fuite et le recours aux conduites magiques que je déciderai de l’inhumain;

mais cette décision est humaine et j’en porterai l’entière responsabilité” (EN, p.612;

grifo do autor). E Sartre arremata: “De toute façon, il s’agit d’un choix. (...) Il faut

donc souscrire au mot de J. Romains: ‘A la guerre, il n’y a pas de victimes

innocentes.’87 Si donc j’ai préféré la guerre à la mort ou au déshonneur, tout se passe

comme si je portais l’entière responsabilité de cette guerre.88 (...) Le propre de la

réalité-humaine, c’est qu’elle est sans excuse.89 Il ne me reste donc qu’à revendiquer

cette guerre. Mais, en outre, elle est mienne parce que, du seul fait qu’elle surgit dans

Razão e Resistência

321

une situation que je fais être et que je ne puis l’y découvrir qu’en m’engageant pour ou

contre elle, je ne puis plus distinguer à présent le choix que je fais de moi du choix que

je fais d’elle (...). Il ne saurait être question de l’envisager comme ‘quatre ans de

vacances’ ou de ‘sursis’, comme une ‘suspension de séance’, l’essentiel de mes

responsabilités étant ailleurs, dans ma vie conjugale, familiale, professionnelle. (...) Si

elle doit être quatre années vides, c’est moi qui en porte la responsabilité. (...) En ce

sens, à la formule que nous citions tout à l’heure: ‘il n’y a pas de victimes innocentes’;

il faut, pour définir plus nettement la responsabilité du pour-soi, ajouter celle-ci: ‘On a

la guerre qu’on mérite’. (...) Je porte le poids du monde à moi tout seul, sans que rien

ni personne ne puisse l’alléger. (...) Je suis responsable de tout (...). Je suis délaissé

dans le monde, non au sens où je demeurerais abandonné et passif dans un univers

hostile, comme la planche qui flotte sur l’eau, mais, au contraire, au sens où je me

trouve soudain seul et sans aide, engagé dans un monde dont je porte l’entière

responsabilité, sans pouvoir, quoi que je fasse, m’arracher, fût-ce un instant, à cette

responsabilité, car de mon désir même de fuir les responsabilités, je suis responsable;

me faire passif dans le monde, refuser d’agir sur les choses et sur les Autres, c’est

encore me choisir” (EN, p.613-614). (Já nos Carnets de la drôle de guerre

encontrávamos o seguinte imperativo: “Il faut donc vivre la guerre sans refus”, nova

edição, p.90.) Mesmo sob tortura, a renúncia à luta —no caso, a abjuração— é sans

excuse: “En effet, quelle que soit la pression exercée sur la victime, le reniement

demeure libre, il est une production spontanée, une réponse à la situation; il manifeste

la réalité humaine; quelle qu’ait été la résistance de la victime et si longtemps qu’elle

ait attendu avant de crier grâce, elle aurait pu, malgré tout, attendre dix minutes, une

minute, une seconde de plus. Elle a décidé du moment où la douleur devenait

insupportable. Et la preuve en est qu’elle vivra son reniement, par la suite, dans le

remords et la honte. Ainsi lui est-il entièrement imputable” (EN, p.454; grifo do autor).

O MITO DA RESISTÊNCIA

322

E ainda: “même les tenailles du bourreau ne nous dispensent pas d’être libres” (EN,

p.563); “la torture même ne nous dépossède pas de notre liberté: c’est librement que

nous y cédons” (EN, p.582; grifo do autor).90 (Note-se o que diz Sartre mais tarde,

refletindo sobre a tortura durante a Ocupação: “quelles que soient les souffrances

endurées, c’est la victime qui décide en dernier recours du moment où elles sont

insupportables et où il faut parler”, Sit.II, p.247.)

Esse ativismo exasperado, essa atribuição de uma responsabilidade absoluta

diante de cada ato, tornar-se-iam incompreensíveis fora do contexto de uma época

marcada por um apelo dramático ao heroísmo: “Nous ne pouvions plus trouver naturel

d’être hommes quand nos meilleurs amis, s’ils étaient pris, ne pouvaient choisir

qu’entre l’abjection et l’héroïsme, c’est-à-dire entre les deux extrêmes de la condition

humaine, au delà desquels il n’y a plus rien” (Sit.II, p.249-250). Um apelo justificado

filosoficamente pelo vínculo indissolúvel entre liberdade e responsabilidade, e cujo eco

ressoa também nos romances daquele período: “Quoi qu’il arrive, c’est par moi que

tout doit arriver. Même s’il se laissait emporter, désemparé, désespéré, même s’il se

laissait emporter comme un vieux sac de charbon, il aurait choisi sa perdition: il était

libre, libre pour tout, libre (...) pour accepter, libre pour refuser” — assim Sartre expõe

o núcleo do pensamento de Mathieu, em L’âge de raison (Pléiade, p.664). Neste

espírito, recorde-se ainda as palavras de Jean Blomart, o personagem central do

romance de Simone de Beauvoir, Le sang des autres: “J’ai lu un jour: chaque homme

est responsable de tout, devant tous. Ça me semble tellement vrai. (...) Nous sommes

tous responsables. Mais tous, ça veut dire chacun. (...) Je n’ai pas créé le monde. Mais

je le recrée à chaque instant par ma présence. Et tout se passe pour moi comme si tout

ce qui lui arrive lui arrivait par moi. (...) On est toujours responsable. (...) Chacun est

responsable de tout” (pp.157, 167 e 238). Nesse mesmo romance, a autora resume nos

seguintes termos o drama vivido por sua geração no início da guerra: “Choisir. La paix

honteuse ou la guerre sanglante? Le meurtre ou l’esclavage?” (Le sang des autres,

Razão e Resistência

323

p.161). Veja-se também o depoimento de Sartre: “D’un bout à l’autre de la guerre,

nous n’avons pas reconnu nos actes, nous n’avons pas pu revendiquer leurs

conséquences. Le mal était partout, tout choix était mauvais et pourtant il fallait choisir

et nous étions responsables; chaque battement de notre coeur nous enfonçait dans une

culpabilité dont nous avions horreur” (“Paris sous l’Occupation”, Sit.III, p.37-38). É

justamente esse drama —o “drama da responsabilidade histórica”, como diria Merleau-

Ponty— que encontramos nas páginas de Saint-Exupéry: “Les hommes en fuite sont

responsables de la fuite, puisqu’il n’y aurait point de fuite sans hommes en fuite”

(Pilote de Guerre, p.86). E mais adiante: “Chacun est responsable de tous. La France

était responsable du monde. (...) Si la France avait eu saveur de France, rayonnement

de France, le monde entier se fût fait résistance à travers la France. (...) Si nous avions

été le Noël du monde, le monde se fût sauvé à travers nous. (...) Chacun est

responsable de tous. Chacun est seul responsable. Chacun est seul responsable de tous.

Je comprends pour la première fois l’un des mystères de la religion dont est sortie la

civilisation que je revendique comme mienne: ‘Porter les péchés des hommes...’ Et

chacun porte tous les péchés de tous les hommes” (Pilote de Guerre, p.190-191).

Essa “responsabilidade” é a outra face do “engajamento”, tal como é apregoado

tanto pelo mesmo Saint-Exupéry —”Qu’inventer pour décider l’homme à tout engager

de soi-même?” (Pilote de Guerre, p.86)— quanto pelos jornais da Resistência: “Il n’y

a pas deux politiques, il n’en est qu’une et c’est celle qui engage, c’est la politique de

l’honneur. En 1940 a commencé une époque où toutes les paroles et tous les actes

engageaient”, proclama um dos editoriais de Combat, em sua maioria redigidos por

Camus (“Le Temps de la Justice”, Combat, 22/08/44).91 Está inaugurada a época do

“engajamento”, da qual EN constitui o manifesto filosófico. Se o processo de

radicalização dos conflitos sociais e políticos transformou a idéia de

“responsabilidade” num traço definidor da sensibilidade filosófico-literária da época,92

O MITO DA RESISTÊNCIA

324

não é de se estranhar que, ao contrário do que costumam afirmar os comentadores (os

quais separam radicalmente o Sartre de EN do Sartre do “engagement”), a noção de

“engagement” comece a tomar forma no interior mesmo das análises especulativas de

um “ensaio de ontologia fenomenológica”, a partir da idéia de uma consciência

engajada, jogada no mundo. Recorde-se que em EN a noção de consciência surge

identificada à idéia de “engagement vers une certaine fin encore non existante” (EN,

p.535). E a própria existência está condicionada ao engajamento no mundo: “je

n’existe que comme engagé” (EN, p.339; grifo do autor).93 Já nos Carnets de la drôle

de guerre, Sartre escrevia: “Ce que j’ai compris c’est que la liberté n’est pas du tout le

détachement stoïque (...). Elle suppose au contraire un enracinement profond dans le

monde (...). Tout ce que je puis faire c’est, pour l’instant, de critiquer cette liberté en

l’air que je me suis patiemment donnée et de maintenir ferme ce principe qu’il faut

s’enraciner” (p.356; sobre a gênese da idéia de engagement nos Carnets, cf. ainda a

nova edição, p.136). Mas para chegar aos termos da identificação liberdade-

engajamento própria do imediato pós-guerra —”L’homme est libre pour s’engager,

mais il n’est libre que s’il s’engage pour être libre” (Sartre, Entrevista, Paru, nº 13,

dezembro de 1945)— será preciso passar pelos diferentes momentos da elaboração

filosófica de EN: “Mais dépasser le monde, c’est précisément ne pas le survoler, c’est

s’engager en lui pour en émerger” (EN, p.375); “La liberté du pour-soi est toujours

engagée” (p.535; grifo do autor); “En dehors de cet engagement, les notions de liberté,

de déterminisme, de nécessité perdent jusqu’à leur sens” (p.540); “C’est précisément

cet engagement qui donne son sens à ma place contingente et qui est ma liberté”

(p.552). É esse ponto de vista filosófico que norteia Les Mouches: “La liberté (...) n’est

pas je ne sais quel pouvoir abstrait de survoler la condition humaine: c’est

l’engagement le plus absurde et le plus inexorable” (Sartre, prière d’insérer para a

primeira edição de Les Mouches, citado em Les Ecrits de Sartre, p.88).

Razão e Resistência

325

De posse finalmente de todas as peças do quebra-cabeça que constitui o

processo de engendramento da liberdade em EN, podemos ver a que ponto os materiais

que armam a estrutura dessa figura (tomada de consciência, responsabilidade,

engajamento, escolha, ação heróica, resistência) são traços de época: “Quand, en juin

1940, les Français ont dû décider de leur attitude en face le l’occupant, aucun système

préexistant ne pouvait leur dicter leur conduite; ils ont dû choisir librement et c’est par

le choix pratique d’une ligne d’action qu’ils ont défini les valeurs qui rendaient ce

choix nécessaire”, afirma Simone de Beauvoir (“Idéalisme moral et réalisme

politique”, in L’Existentialisme et la sagesse des nations, p.93-94; publicado

originalmente em Les Temps Modernes, nº 2, novembro de 1945). E acrescenta (mas

aqui já se trata de uma generalização teórica de um problema político imediato): “Je

suis obligé de choisir et aucune réalité extérieure à moi-même ne m’indique mon

choix” (Idem, p.100). Nesse sentido, cf. o romance da autora sobre a Resistência, Les

sang des autres: “Chaque battement de mon coeur jette dans le monde une décision

sans recours” (p.46). O mesmo decisionismo heróico norteia os textos de Camus

escritos no calor da hora: “La grandeur de l’homme (...) est dans sa décision d’être

plus fort que sa condition” (“La nuit de la vérité”, in Combat, 25/08/1944; reproduzido

em Camus, Actuelles — Ecrits Politiques, p.21). Recorde-se também o balanço de

Merleau-Ponty: “Nous avons vécu (...) un de ces moments où l’histoire en suspens, les

institutions menacées de nullité exigent de l’homme des décisions fondamentales, et où

le risque est entier parce que le sens final des décisions prises dépend d’une

conjoncture qui n’est pas entièrement connaissable” (Humanisme et Terreur, p.43).94

Um risco tanto maior se pensarmos que naquela conjuntura, como diz Sartre, “le choix

que chacun faisait de lui-même était authentique puisqu’il se faisait en présence de la

mort (“La République du Silence”, Sit.III, p.12). (“Demain j’aurais à affronter la mort,

l’exil ou la révolution”, assim falava Jean Blomart em Le sang des autres, p.232.)

O MITO DA RESISTÊNCIA

326

Ainda sobre essa escolha dramática: “Pendant la Résistance, en effet, il semblait y

avoir une possibilité de décision libre.95 (...) Il y avait, pendant la Résistance, un

problème très simple, qui se ramenait finalement à une question de courage: il fallait

accepter les risques de l’action, c’est-à-dire le risque d’être emprisonné ou déporté. (...)

Ce que le drame de la guerre m’a apporté, comme à tous ceux qui y ont participé, c’est

l’expérience de l’héroïsme. (...) Le militant de la Résistance qui était arrêté et torturé

était devenu pour nous un mythe” (Sartre, Sit.IX, p.100-101). (Vale a pena relembrar a

forma filosófica dessa “experiência do heroísmo”: “Pour me faire reconnaître par

l’autre, je dois risquer ma propre vie. (...) Je risquerai ma vie car j’ai fait, dans la lutte

contre l’autre, abstraction de mon être sensible en le risquant”, EN, p.282; grifos do

autor.) Nessa perspectiva, o Resistente (enquanto universal singular) é o herói que

“decide” interromper a marcha do destino,96 convertendo a fatalidade em liberdade, e

superando assim a impotência do indivíduo isolado, pois sua particularidade exprime

os anseios da totalidade.97 (Herói é portanto o indivíduo que se confunde com a

História — no que se pode reconhecer, mais uma vez, a releitura de Hegel feita pela

geração de Sartre.98) É esse instante dramático de decisão que, cristalizado

filosoficamente em EN (“nous sommes choix”, p.377; “le Pour-soi est choix”, p.445;

“Je suis renvoyé moi aussi à mon projet originel, c’est-à-dire à mon être-dans-le-

monde, en tant que cet être est choix”, p.512), permite, no interior das análises do

livro, trocar o sinal do Sein-zum-Tode heideggeriano: da morte como destino inelutável

à luta heróica pela vida (não por acaso é o herói revolucionário de Malraux a principal

fonte do tópico “Ma Mort”, onde Sartre critica Heidegger; cf. em especial as pp. 590 e

598 de EN).99 (Vimos no final da Primeira Parte deste trabalho que a experiência da

Resistência significou para os contemporâneos justamente a possibilidade de apoderar-

se do “destino”.)100 É o movimento político de Resistência que, levando à radicalização

da idéia de “escolha” —”ces hommes savaient affirmer leur volonté et leur vie n’était

pas une sourde végétation de plante: ils se choississaient un destin”, lemos em Le sang

Razão e Resistência

327

des autres (p.86)—, induz à superação da idéia heideggeriana de morte como destino

(até porque o lema da Resistência é o renascimento das cinzas de 40: da morte a

redenção, tema também de Malraux): “Dans la guerre la mort frappe au hasard,101 mais

dans la Résistance elle choisissait” (Sartre, “Nouvelle littérature en France”, Pléiade,

p.1919; grifo do autor). O que tornou possível “recusar a Morte”, como Sartre escreve

nos Cahiers pour un morale: “je puis refuser les Allemands au nom de la Résistance,

refuser la Mort tout en la subissant s’il y a encore quelque moyen de l’éviter (livrer un

nom) et que je refuse ce moyen” (p.235). A conversão da fatalidade em liberdade se

faz, portanto, pela mediação do herói revolucionário, isto é, aquele que, num ato livre

de vontade —pois só um sujeito livre pode escolher (de novo Fichte, reativado pela

filosofia kojeviana da Ação)—, decide amarrar liberdade e destino, rompendo com o

estado de coisas vigente (recorde-se: “c’est à partir du jour où l’on peut concevoir un

autre état de choses qu’une lumière neuve tombe sur nos peines et sur nos souffrances

et que nous décidons qu’elles sont insupportables”, EN, p.489). Essa (livre) decisão

quebra o círculo da repetição —o círculo reiterativo do destino (seja do Dasein

heideggeriano, seja da França da “défaite”)— e, ao fazê-lo, permite o (re)surgimento

do tempo histórico (que “cura”,102 isto é, faz com que o homem não se perca em vão,

como Sartre dirá logo após EN, nos Cahiers pour une morale: “Ainsi l’homme s’atteint

lui-même en acceptant de se perdre pour sauver l’Être”, p.464) — “la liberté est (...)

dépassement du présent vers le futur par intention décisoire” (Cahiers pour une

morale, p.257). (Daí o já mencionado vínculo entre privilégio do futuro e ponto de

vista do revolucionário.) Dissemos antes que é o fio das horas que tece a figura da

liberdade em EN. Vemos agora o registro dessa hora histórica: uma temporalidade

acelerada que parecia apontar para uma solução revolucionária.

Colocando pois na ordem do dia a questão da escolha histórica, a Resistência

vem por assim dizer materializar, para Sartre, o decisionismo heideggeriano103 (e

O MITO DA RESISTÊNCIA

328

também certos aspectos da “fórmula de Weber retomada por Aron”104) — mas um

decisionismo cujo sentido original (inteiramente destituído da dimensão de luta e

conflito) já fora invertido e transformado, nos moldes de Kojève, num ativismo radical.

(Seria possível imaginar um caso mais espetacular de feitiço contra o feiticeiro do que

essa metamorfose da filosofia heideggeriana em prosa da Resistência contra o

nazismo? Não por acaso —o que se pode compreender melhor agora—, o austero

filósofo alemão renegou seu parente francês, vendo nele a encarnação do próprio demo,

o qual tratou de exorcizar.105) Tal inversão é de fato induzida pela força de uma

experiência revolucionária em curso, “la force des choses” (para usar a expressão de

Saint-Just, retomada no título do livro de memórias de Simone de Beauvoir)106 — basta

lembrar a palavra de ordem da Resistência que, contra o imobilismo e a resignação,

conclamava à ação: “de l’action, encore de l’action, toujours de l’action” (L’Humanité,

nº136, 7/11/1941; citado por Henri Michel, Les Courants de Pensée de la Résistance,

p.660). (É ainda o eco dessa ação política tão exacerbada que se pode ouvir no impacto

teórico que a filosofia kojeviana da Ação provocará, no imediato pós-guerra, nos

Cahiers pour une morale — aos olhos de Sartre, tratava-se afinal de uma filosofia

recém-confirmada pela prática.) A Ação é, com efeito, o princípio norteador daquele

movimento político107 — veja-se por exemplo o que diz o personagem principal de Le

sang des autres, o já mencionado Jean Blomart, quando, logo após a “défaite”, começa

a articular a Resistência: “Nous n’existons que si nous agissons. (...) Il faut agir pour

ce qu’on veut” (Simone de Beauvoir, Le sang des autres, pp.243 e 245). O tom

dramático desse apelo à ação, presente num romance de época, é o mesmo que

encontramos nas publicações clandestinas da Resistência: “Grâce au courage, à

l’intelligence, à la foi indomptable de son peuple, à sa passion pour la liberté, au

sacrifice de ses martyrs, à l’action résolue de ses Francs-Tireurs et Partisans, la France

est devenue elle-même une formidable machine de guerre dressée contre l’envahisseur.

(...) Aux premiers appels de la liberté renaissante, la France répondra par un

Razão e Resistência

329

redoublement de son action”, apregoa um editorial de Les Lettres françaises intitulado

“Valeur de l’heroïsme” (nº 9, setembro de 1943, arquivo da Biblioteca Nacional de

Paris).108 A filosofia da Ação e da liberdade heróica de EN é a grande resposta

filosófica a esses “premiers appels de la liberté renaissante”109 (assim como Le sang

des autres e Les Chemins de la Liberté são respostas literárias).110 “Le moment de

l’action était venu”, afirma Sartre em seu balanço daquele período histórico (Sit.II,

p.229). E em L’Existentialisme est un humanisme lemos: “Parler du quiétisme, à

l’époque actuelle, c’est se donner beau jeu, il s’agit bien d’une chose impossible”

(p.130). Dessa impossibilidade brota a “théorie de l’action” de EN (p.369): “Ainsi le

monde, dès le surgissement de mon Pour-soi, se dévoile comme indication d’actes à

faire, ces actes renvoient à d’autres actes, ceux-là à d’autres et ainsi de suite. (...) Ainsi

le monde, comme corrélatif des possibilités que je suis, apparaît, dès mon

surgissement, comme l’esquisse énorme de toutes mes actions possibles” (EN, p.370).

E ainda: “Le pour-soi (...) change le monde à chaque instant. (...) Cette possibilité

perpétuelle d’agir c’est-à-dire de modifier l’en-soi dans sa matérialité ontique, dans sa

‘chair’ doit, évidemment, être considérée comme une caractéristique essentielle du

pour-soi (...). Qu’est-ce qu’agir? Pourquoi le pour-soi agit-il? Comment peut-il agir?

Telles sont les questions auxquelles il nous faut à présent répondre” (EN, p.482).111

Mas essa “caractéristique essentielle du pour-soi” não é, convém sublinhar, a ação de

uma subjetividade solitária, mas uma “ação comum” — na experiência do nós-sujeito,

“ce qui est posé explicitement, c’est une action commune” (EN, p.464). E o autor

acrescenta: “Le but de la morale a été longtemps de fournir à l’homme le moyen d’être.

C’était la signification de la morale stoïcienne ou de l’Ethique de Spinoza. Mais si

l’être de l’homme doit se résorber dans la succession de ses actes, le but de la morale

ne sera plus d’élever l’homme à une dignité ontologique supérieure. En ce sens, la

morale kantienne est le premier grand système éthique qui substitue le faire à l’être

O MITO DA RESISTÊNCIA

330

comme valeur suprême de l’action. Les héros de ‘l’Espoir’ sont pour la plupart sur le

terrain du faire et Malraux nous montre le conflit des vieux démocrates espagnols, qui

tentent encore d’être, avec les communistes dont la morale se résout en une série

d’obligations précises et circonstanciées, chacune de ces obligations visant un faire

particulier. Qui a raison? La valeur suprême de l’activité humaine est-elle un faire ou

un être? Et, quelle que soit la solution adoptée, que devient l’avoir? L’ontologie doit

pouvoir nous renseigner sur ce problème; c’est d’ailleurs une de ses tâches essentielles,

si le pour-soi est l’être qui se définit par l’action. Nous ne devons donc pas terminer

cet ouvrage sans esquisser, dans ses grands traits, l’étude de l’action en général et des

relations essentielles du faire, de l’être et de l’avoir” (EN, p.485-486; grifos do

autor).112 (Se o livro se fecha com o problema da Ação é porque, como veremos melhor

no próximo capítulo, a totalidade que perseguiu ao longo de suas páginas estará

doravante condicionada à ação revolucionária.)

Uma filosofia da ação, portanto, como convinha ao espírito daqueles tempos, à

altura das aspirações da época. Com efeito, estamos no limiar de uma época marcada,

conforme observa uma contemporânea, pela “persistance du vocabulaire

révolutionnariste”.113 (É da cristalização teórica daquela conjuntura política crucial que

advém, no pós-guerra, a definição sartriana do Existencialismo como uma filosofia da

ação heróica: “L’Existentialisme est une philosophie humaniste de l’action, de l’effort,

du combat, de la solidarité”, A propos de l’existentialisme, p.658.)114 Sabemos que na

passagem da França do “Effondrement” à França do “Choix” (para seguir os títulos das

duas partes do filme de Marcel Ophüls sobre a época, “Le Chagrin et la Pitié”) um

vocabulário novo se impõe: ação, escolha, liberdade. É com esse imaginário social (à

luz do qual a filosofia kojeviana da Ação ganha importância especial) que EN pode

vislumbrar a via para a superação da angústia própria do Dasein heideggeriano — tal

superação se torna possível (como aliás Malraux já indicara) justamente através da

ação de um sujeito heróico.115 As “noções-chave” da linhagem Kierkegaard-Heidegger

Razão e Resistência

331

(“desespero”, “angústia”), reativadas por Sartre na tentativa de descrever uma situação

histórica limite, conforme vimos no capítulo anterior,116 vão sendo recriadas pelo

existencialismo emergente à medida que o movimento de Resistência imprime nova

fisionomia a essa situação. Não por acaso, as análises de EN apontam para uma dupla

negação (uma “néantisation” da “néantisation”) capaz de superar a “angústia”: “un

pouvoir néantisant au sein de l’angoisse même” — “ce pouvoir néantisant néantit

l’angoisse” (EN, p.80). (Essa dupla negação define a própria angústia: “L’angoisse est

la découverte de cette double et perpétuelle néantisation”, EN, p.52.) A angústia tem,

assim, um resultado positivo (e aqui é o Hegel de Kojève que supera Heidegger, mas é

também a experiência vivida): a tomada de consciência da liberdade — “c’est dans

l’angoisse que l’homme prend conscience de sa liberté ou, si l’on préfère, l’angoisse

est le mode d’être de la liberté comme conscience d’être, c’est dans l’angoisse que la

liberté est dans son être en question pour elle-même” (EN, p.64).117 (Daí o refrão

existencialista, popularizado no pós-guerra: “L’homme est libre. (...) Il est responsable

de lui-même et du monde. (...) Quant à l’angoisse, c’est la prise de conscience de cette

liberté”, insiste Sartre numa entrevista, in Paru, nº 13, dezembro de 1945.) Essa

liberdade que, na angústia, toma consciência de si mesma, essa “liberté qui si découvre

parfaitement elle-même et dont l’être réside en cette découverte même” (EN, p.615),

não é senão a encarnação filosófica da Resistência contra o nazismo. A superação da

“angústia existencial” —que encontrara seu fundamento numa conjuntura histórica

sombria— se dá numa situação social embalada pelo entusiasmo revolucionário

(regenerador) do movimento de Resistência. (Tal resultado positivo leva Sartre a

afirmar que a angústia diante da tortura, durante a Ocupação, era ao mesmo tempo uma

ameaça e uma promessa: “cette angoisse nous a tous hantés comme une menace et

comme une promesse”, Sit.II, p.250.) Passamos assim do “pessimismo” próprio de uma

angústia que paralisa (expressão de um mundo “absurdo”) à idéia de “salut” pela ação

O MITO DA RESISTÊNCIA

332

revolucionária (através da qual o mundo revela seu sentido). Ou melhor, a idéia de

“absurdo” (da guerra, em particular)118 foi se descaracterizando enquanto tal à medida

que foi propiciando um ganho teórico (até porque o “absurdo”, como já sabemos,

decorre da idéia de uma existência gratuita, sem sentido):119 a “revelação” de que a

Liberdade já nasce sob o signo da luta (como se falava na língua da Resistência), isto é,

a “revelação” da História como luta de vida e morte entre consciências (o que Sartre

transforma, “após 45”, na idéia de luta de classes como motor da História).120 Por isso,

refletindo mais tarde sobre aquele período, nosso autor pode finalmente concluir: “Je

considérais cette guerre non pas comme une chose absurde mais comme une

révélation” (Sartre par lui-même— Un Film, p.65).121 Uma “revelação” que tornou

possível a conversão dos atributos da “conscience malheureuse” —angústia,

“estranhamento”, “peur”, “honte”, “desespero”, sentimento do “absurdo” do mundo

(tal como as coisas se passavam, em EN e para os homens da época)— em heroísmo da

consciência. (Essa conversão oferece a toda uma geração a possibilidade de se redimir

da “honte” da “défaite” de 1940 — uma “compensação no imaginário”, se quisermos

adaptar uma expressão de Merleau-Ponty, para uma derrota real. Esse a nosso ver o

principal segredo do espetacular sucesso do Existencialismo no imediato pós-guerra —

um sucesso ambíguo e paradoxal, é bem verdade, mas isso já é outra conversa.)122

Esquematizando: o heroísmo como Ersatz da impotência da subjetividade, cuja

engrenagem especulativa expusemos no Capítulo 2 da Primeira Parte, é a forma

filosófica de uma mitologia de época.

É assim que o ser-no-mundo heideggeriano, devidamente redefinido, vai receber

um conteúdo histórico preciso, imprimido pelo voluntarismo heróico da época — uma

época que “foi, como todos os momentos revolucionários, propícia às premissas e

termos do voluntarismo” (“houve iniciativas heróicas e atos de vontade entre 1936 e

1946”), conforme observa Thompson (A Miséria da Teoria, p.87). É a situação-limite

da Guerra e da Resistência que permitiu (em plena Idade de Kafka!) uma reativação, na

Razão e Resistência

333

trilha aberta por Malraux, de temas do heroísmo clássico — “Comment pèserait-on les

risques quand tout s’écroule?”, indaga Saint-Exupéry (Pilote de Guerre, p.7). Com

efeito, o movimento de Resistência também pressupõe ilusões heróicas — tanto quanto

as grandes revoluções da era clássica, como sublinhava Marx.123 Desta perspectiva,

compreende-se que o heroísmo tenha se tornado um “axioma” da época, conforme se lê

nos relatos dos contemporâneos: “Avec tous nous partagions quelques mythes.

Résistance, Révolution. L’héroïsme communiste dans les camps était un axiome. Nous

étions ‘le Parti des 75000 fusillés’“ (D. Desanti, Les Staliniens — Une expérience

politique, p.39).124 Um “axioma” decisivo a ponto de definir uma geração intelectual —

notem-se as palavras com as quais Sartre, em “Qu’est-ce que la littérature?”, distingue

sua geração da precedente: “Si je n’ai parlé, plus haut, ni de Malraux ni de Saint-

Exupéry, c’est qu’ils appartiennent à notre génération. Ils ont écrit avant nous et sont

sans doute un peu plus âgés que nous. Mais, alors qu’il nous a fallu, pour nous

découvrir, l’urgence et la réalité physique d’un conflit, le premier a eu l’immense

mérite de reconnaître, dès son premier ouvrage, que nous étions en guerre et de faire

une littérature de guerre, quand les surréalistes et même Drieu se consacraient à une

littérature de paix. Pour le second, contre le subjectivisme et le quiétisme de nos

prédécesseurs, il a su esquisser les grands traits d’une littérature du travail et de l’outil.

(...) Guerre et construction, héroïsme et travail, faire, avoir et être, condition humaine,

(...) ce sont les principaux thèmes littéraires et philosophiques d’aujourd’hui” (Sit.II,

p.326-327). E mais adiante, referindo-se ainda à “literatura de situações extremas”

(Malraux, Camus, Koestler, etc.), Sartre precisa os termos desse novo humanismo

heróico: “Leurs créatures sont au sommet du pouvoir ou dans des cachots, à la veille de

mourir, ou d’être torturés, ou de tuer; guerres, coups d’État, action révolutionnaire,

bombardements et massacres, voilà pour le quotidien. A chaque page, à chaque ligne,

c’est toujours l’homme tout entier qui est en question” (Sit.II, p.327).125 É justamente

O MITO DA RESISTÊNCIA

334

essa “literatura de situações extremas” que se encontra, no interior das análises

sartrianas, mesclada a Heidegger: “Terre des hommes, de St-Exupéry, rend un son très

heideggerien” (Les carnets de la drôle de guerre, p.74). Se naquele contexto Heidegger

e Saint-Exupéry puderam conviver juntos sem muita cerimônia foi porque o fio do

tema coletivo da época —o heroísmo— era forte o suficiente para amalgamá-los. Um

amálgama que, todavia, só se mantém porque o tom acinzentado da concepção

“heroicizante” (ou estetizante, como prefere Lukács) da solidão do Dasein

heideggeriano —essa existência individual curvada sobre si mesma, “com autonomia

finita em meio ao nada de um mundo sem deuses” (cf. Habermas, Perfis filosófico-

políticos, p.62), abandonada enfim num mundo inteiramente desencantado—126 já foi

tingido com as cores vivas de um momento privilegiado de “fulguração da existência”

(a expressão é de Merleau-Ponty) — o que equivale à redescoberta do encanto do

mundo numa conjuntura de crise revolucionária (quando o indivíduo jamais é

solitário). Com isso, o heroísmo heideggeriano, radicalizado, volta-se contra si mesmo,

convertendo-se no seu contrário: um ativismo revolucionário.127 Na “literatura de

situações extremas”, em vez da experiência da impotência e do quietismo próprios do

Dasein heideggeriano, o heroísmo se confunde com a Ação, ou melhor, a existência é

pura Ação (em direção à vida e não à morte) — “Il faut commencer par le sacrifice”,

escreve Saint-Exupéry (Pilote de Guerre, p.216). Mas atenção: “Sacrifice ne signifie ni

amputation, ni pénitence. Il est essentiellement un acte” (Pilote de Guerre, p.208).

Desse imperativo filosófico-literário da época, vem o ativismo voluntarista de EN, cujo

perfil ia se definindo à medida que se cumpria o “programa heróico” da Resistência (as

aspas são por conta do próprio Sartre): “Aussi y a-t-il des trous dans la série de mes

possibilités. Les trous seront comblés (...) dans l’ordre de l’action par la volonté, c’est-

à-dire par le choix rationnel et thématisant” (EN, p.168); “La liberté est totale et

infinie, ce qui ne veut pas dire qu’elle n’ait pas de limites mais qu’elle ne les rencontre

jamais” (EN, p.589; grifos do autor).128 Em EN, como vimos, é o heroísmo (resultado

Razão e Resistência

335

de uma decisão) que define a condição humana (“l’héroïsme, (...) c’est le sens même de

l’action humaine”, reitera Sartre em A propos de l’existentialisme, p.658) — o medo, a

fuga e o recurso às condutas mágicas estão aquém da condição humana: “c’est

seulement par la peur, la fuite et le recours aux conduites magiques que je déciderai de

l’inhumain” (EN, p.612; grifo do autor).129 Esse verdadeiro sentido da ação humana,

perseguido na forma ficcional da “literatura de situações extremas” (além do romance

americano) e na forma ideal da filosofia (Heidegger e Hegel da Fenomenologia do

Espírito), será revelado para Sartre, ao vivo e a cores, pela prática política da

Resistência.130 Uma “revelação” que foi no entanto prefigurada quando o autor,

redescobrindo o heroísmo heideggeriano logo no início da guerra, enfeixa as

determinações do “Espírito objetivo”131 da época na seguinte fórmula filosófica:

“Heidegger est l’apparition dans le monde d’une conscience libre” (Les carnets de la

drôle de guerre, p.229). Mas não significava isto, exatamente, a Resistência para a

geração de Sartre: “l’apparition dans le monde d’une conscience libre”?132 Uma

“consciência livre” que nasce do seu contrário (a consciência escrava), mais

precisamente, nasce luta de “resistência” contra os obstáculos à liberdade — o que

mais uma vez evidencia a troca de sinal das fontes filosóficas de Sartre (não apenas

Heidegger, pois aqui é também o próprio teorema do Idealismo Alemão que é

invertido, como vimos no Capítulo 2 da Primeira Parte): do mundo resistente (pura

inércia) ao mundo ao mundo (do) Resistente (pura Ação).133 No interior das análises de

EN (onde a Resistência se torna resistência imanente): do “monde résistant” ao mundo

do “homme qui résiste” (EN, pp.498-540). Nessa inversão é ainda o ativismo heróico

da “literatura de situações extremas” que prevalece sobre as fontes filosóficas.

Recorde-se os termos com que Malraux enaltece a Resistência durante a Guerra Civil

Espanhola: “la résistance de fait, cette résistance est un acte: elle vous engage, comme

tout acte, comme tout choix” (L’Espoir, p.338-339; grifo do autor). E Saint-Exupéry:

O MITO DA RESISTÊNCIA

336

“La terre nous en apprend plus long sur nous que tous les livres. Parce qu’elle nous

résiste. L’homme se découvre quand il se mesure avec l’obstacle” (Terre des hommes,

p.9). Nessa chave, vale relembrar o já mencionado teorema filosófico de EN: “En sorte

que les résistances que la liberté dévoile dans l’existant, loin d’être un danger pour la

liberté, ne font que lui permettre de surgir comme liberté. Il ne peut y avoir de pour-soi

libre que comme engagé dans un monde résistant” (EN, p.540). Ou então: “Le

coefficient d’adversité des choses, en particulier, ne saurait être un argument contre

notre liberté, car c’est par nous, c’est-à-dire par la position préalable d’une fin, que

surgit ce coefficient d’adversité” (EN, p.538); “Montrer que le coefficient d’adversité

de la chose et son caractère d’obstacle (joint à son caractère d’ustensile) est

indispensable à l’existence d’une liberté” (EN, p.541); “Le donné en soi comme

résistance ou comme aide ne se révèle qu’à la lumière de la liberté pro-jetante”

(p.545). E ainda: “son projet même [de la liberté] est projet de faire dans un monde

résistant, par victoire sur ces résistances” (p.564). Tal “vitória”, resultante do ato de

resistir aos “obstáculos” à liberdade, é “un refus de l’individu qui ne veut pas

s’anéantir” (p.670) — numa palavra, é a resposta voluntarista do sujeito à ordem

estabelecida.

Reconstituídas, à luz do movimento geral das idéias da época, todas as

determinações essenciais da liberdade heróica em EN, chegamos pois novamente a seu

verdadeiro substrato, tal como víramos no Capítulo 2 de nossa Primeira Parte: o

trabalho de resistência. Mas o que não sabíamos então é que no “Ensaio de ontologia

fenomenológica” de Sartre a palavra resistência deve ser lida com R maiúsculo: essa

especulação tem uma idade histórica definida. Vivida e concebida como uma aventura

da liberdade —”son sens profond était la construction d’une autre société qui devait

être libre”, segundo Sartre (in La cérémonie des adieux, p.512)—,134 a Resistência

(com maiúscula) transforma a liberdade numa palavra mágica com a qual uma geração

inteira acreditou encontrar a chave dos mistérios da existência (o que aliás só faz

Razão e Resistência

337

radicalizar um traço de época que já vinha desde as vanguardas literárias e artísticas da

França dos anos 20 e 30):135 “Nous luttons au nom d’une cause dont nous estimons

qu’elle est cause commune. La liberté, non seulement de la France, mais du monde, est

en jeu” (Saint-Exupéry, Pilote de Guerre, p.130). Nesse sentido, note-se o que diz o

Prefácio (cuja autoria é atribuída a Sartre em várias bibliografias, e mesmo no catálogo

da Biblioteca Nacional de Paris, mas é negada por M. Contat e M. Rybalka em Les

Ecrits de Sartre) do livro Liberté Ship, coletânea de ensaios escritos por um grupo de

Resistentes (que “ont écrit ce livre après l’avoir vécu”): “A la liberté, ce modeste

recueil de souvenirs est dédié. Il porte sa couleur. Elle pénètre et presque illumine le

tableau de ces années obscures comme une étrange et subtile atmosphère. C’est à cause

d’elle que ce tableau nous est si cher, et que notre regard le caresse souvent” (p.9-10).

Ainda sobre aquela conjuntura em que “la question même de la liberté était posée”,

conforme afirma Sartre (“La République du silence”, Sit.III, p.12), cabe destacar a

edição especial do jornal Combat (então sob a direção de Camus, como sabemos) que,

estampando em 23 de agosto de 1944 a manchete “Liberté, Liberté Chérie...”,

preconiza: “Notre avenir, notre révolution, sont tout entiers dans ce présent, plein des

cris de la colère et des fureurs de la liberté” (Arquivo da Biblioteca Nacional de Paris).

Esse espírito do tempo é sintetizado por Jorge Semprun em seu romance sobre a

Resistência: “L’essence historique commune à nous tous qui nous faisons arrêter en

cette année 43, c’est la liberté” (Le Grand Voyage, p.53). É exatamente essa “essência

histórica” que encontramos (antecipada) em EN como “essência” filosófica: “la liberté

vient d’être définie comme une structure permanente de l’être humain” (EN, p.71);

“l’homme est libre” (EN, p.494).136 (Uma “essência” histórico-filosófica, portanto, que

se torna também literária: “l’essence de l’oeuvre littéraire, c’est la liberté”, “Qu’est-ce

que la littérature?”, Sit.II, p.189.)

Dada essa identidade137 entre a “essência” histórica e a “essência” filosófica,

O MITO DA RESISTÊNCIA

338

compreende-se que a estrutura da liberdade em EN seja a mesma da Resistência, como

já indicávamos desde o início deste capítulo: a liberdade é luta, uma luta dramática. O

apelo à luta, ou à emancipação, que marca o nascimento da figura da liberdade nas

análises de EN (cf. o final do Capítulo 2 de nossa Primeira Parte) é, sabemos agora, a

face filosófica da luta política da Resistência para... “reconquérir la liberté” (EN,

p.462). É a “Resistência de fato” (para retomar as palavras de Malraux) a mola

propulsora da metamorfose filosófica (mas que se dá também no imaginário social) da

não-liberdade em liberdade. —“La résistance (...) amenait à opposer à la force d’une

société tyrannique la liberté d’individus opposés à elle”, diz Sartre mais tarde (in La

cérémonie des adieux, p.510). Daí o vínculo estrutural, que sustenta tanto as análises

de EN quanto o ideário da Resistência, entre liberdade, negação e ação — nos dois

casos, a liberdade é ação negadora do existente (recorde-se: “la liberté est dépassement

de ce donné-ci (...): sa fin est justement de changer ce donné-ci”, EN, p.565).138 Talvez

não seja demais insistir que, em EN, é por meio da “négation du donné” que a

liberdade é introduzida na filosofia e no mundo — por isso, na ótica sartriana, a ação

revolucionária será sempre o veículo por excelência da liberdade. (Não por acaso, o

capítulo de EN sobre a liberdade começa com uma reflexão sobre a ação revolucionária

— e neste ponto já é novamente o fio da filosofia kojeviana da Ação que

reencontramos mesclado à prática política da Resistência: liberdade é “action libre ou

libératrice” contra o existente, conforme ensinava Kojève.)139 O que nos fornece a

abertura angular necessária para focar simultaneamente todas as figuras envolvidas no

momento crucial, descrito no Capítulo 2 de nossa Primeira Parte, em que as análises de

EN, contra o quietismo heideggeriano, fazem a liberdade nascer através do “conflito”,

isto é, através da luta de resistência contra o que a cerceia (e não a despeito dela).140

Essa luta é, como vimos, a parteira da liberdade, nascida das entranhas da não-

liberdade — ela é, por si mesma, exposição da liberdade. Estamos pois afinal em

condições de reler, agora em chave dupla, este alerta do próprio Sartre (no capítulo

Razão e Resistência

339

anterior ao da liberdade): “Les descriptions qui vont suivre doivent donc être

envisagées dans la perspective du conflit. Le conflit est le sens originel de l’être-pour-

autrui” (EN, p.413, grifo do autor). O que se ouve aqui, junto com o “ativismo

belicoso”141 de Kojève, já é o barulho da ação política da Resistência, que termina por

abafar a língua (quietista) de Heidegger: “L’essence des rapports entre consciences

n’est pas le Mitsein, c’est le conflit” (EN, p.481). —”La liberté, ça ne se donne pas, ça

se prend”: eis o lema dos Resistentes, conforme registra Sartre numa de suas

reportagens sobre a insurreição parasiense de agosto de 1944 (“Colère d’une Ville”,

terceira reportagem da série Un Promeneur dans Paris Insurgé, jornal Combat,

30/08/1944). (Cf. o que escreve Camus num editorial de Combat, em 23 de agosto de

1944: “Un peuple qui veut vivre n’attend pas qu’on lui apporte sa liberté. Il la prend”,

arquivo da Biblioteca Nacional de Paris, Publicações clandestinas durante a

Ocupação.) Esse, justamente, o resultado da “educação” da Resistência, para voltarmos

aos termos do balanço de Sartre sobre as lições da guerra: a liberdade, por vezes,

“precisa ser defendida pelas armas” (donde a idéia, mencionada no início deste

capítulo, de uma liberdade sempre ameaçada). A necessidade dessa defesa —cujo

momento sublime são, como diz Camus, “as barricadas da liberdade de 44”— vem

evidenciar que “la justice doit s’acheter avec le sang des hommes” (o que desfaz, para

toda uma geração, as ilusões liberais, ainda que Camus seja o primeiro a tratar de

reativá-las num momento seguinte142): “Une fois de plus, la justice doit s’acheter avec

le sang des hommes. (...) Le peuple est en armes ce soir parce qu’il espère une justice

pour demain” (Camus, “Le sang de la liberté”, in Combat, 24/08/1944; reproduzido em

Actuelles — Écrits Politiques, p.17-18). Ainda Camus: “Personne ne peut penser

qu’une liberté, conquise dans ces convulsions, aura le visage tranquille et domestiqué

que certains se plaisent à lui rêver. Ce terrible enfantement est celui d’une révolution”

(Idem, p.18). (Nesse sentido, vejam-se as palavras de um personagem de Sartre, Hugo:

O MITO DA RESISTÊNCIA

340

“On ne fait pas la Révolution avec des fleurs”, Les mains sales, p.199.)143 É esse

“sangue da liberdade” (ou “Sang de Gauche”, como prefere Malraux no título de um

dos capítulos de L’Espoir) que vai apagando, ponto por ponto, cada um dos vestígios

da impotência da subjetividade, conforme fora revelada na situação-limite de 1940.

Como que confirmando que “todo nascimento é uma destruição” (cf. a análise de Sartre

sobre essa passagem de Mallarmé em Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre,

p.133), o “terrible enfantement” da liberdade destrói, junto com o terror totalitário

nazista, a “alienação” de uma consciência esmagada pelo “peso das coisas” (ou a

“coisificação” própria de uma consciência passiva, para enquadrar o problema no

ângulo dos primeiros escritos de Sartre). Essa a matéria histórica local com a qual se

faz, no interior das análises de EN, a passagem —condição (e resultado) do nascimento

da liberdade— do momento negativo da “alienação” (uma consciência passiva que se

confunde com a inércia do mundo das coisas) ao momento positivo de conversão da

passividade em atividade (impensável na ótica do Dasein heideggeriano), na forma da

luta heróica entre consciências (uma passagem que, como vimos, é construída com a

mesma mescla de situações reais do mundo e Fenomenologia do Espírito que compõe a

estrutura de vários romances da época). Resumindo: a liberdade engendrada

filosoficamente de forma dramática em EN é a outra face da liberdade conquistada —

de forma igualmente dramática— na prática política da Resistência. Eis enfim a chave

do segredo, que buscávamos desde o Capítulo 2 da Primeira Parte (na verdade, desde o

final do Capítulo 1), para explicar o mistério da inversão de sinais que resulta, ao longo

das páginas de EN, na transformação da não-liberdade em liberdade. Tal metamorfose

é a expressão de uma certa “experiência”. Surgindo no seio do terror totalitário, a

Resistência —essa “experiência da liberdade”— mostra, na prática, que é possível

converter a perda em ganho. Ao fazê-lo, forja a idéia (central em EN, como vimos) de

que a liberdade brota da resistência à não-liberdade. Daí a fórmula sartriana com a qual

iniciamos este Capítulo —“jamais nous n’avons été plus libres que sous l’occupation

Razão e Resistência

341

allemande” (Sit.III, p.11)—, e que terminou finalmente por direcioná-lo, permitindo-

nos recontar de outra forma a mesma história do nascimento da Liberdade contada no

Capítulo 2 da Primeira Parte.

Aonde nos levaram tais variações em torno da mesma história? Focalizando os

diversos ângulos da figura multifacetada da liberdade em EN, tornou-se possível ver

que sua estrutura, muito embora fincada na pacata fenomenologia alemã (insuspeita de

radicalismo político), é análoga não só à de romances e peças de teatro de claro apelo à

Resistência (Les Mouches e Bariona, por exemplo), mas também à de textos políticos

paralelos (em particular os do próprio Sartre e de Merleau-Ponty), sem falar de

romances de Malraux sobre experiências revolucionárias contemporâneas

(especialmente a da Guerra Civil Espanhola, em L’Espoir, cujo título de um dos

capítulos, “Être et Faire”, chega a ser transposto, tal e qual, para o título do capítulo de

EN sobre a Liberdade) e, ainda, idêntica à da filosofia kojeviana da Ação (que tem no

horizonte, como já observamos, as aventuras da Revolução, da Francesa à Russa). É o

que explica a força da irrupção (à revelia do autor) de idéias próprias da tradição

revolucionária —tomada de consciência,144 Ação, heroísmo— no coração de um

“Ensaio de ontologia fenomenológica”. Com efeito, vimos que a viga mestra dessa

filosofia da liberdade —a idéia de resistência— é construída a partir de um curto-

circuito: a soma de dois termos que são pura inércia —a idéia de que “le réel, c’est ce

qui résiste” (tal como Kojève resume o teorema do Idealismo Alemão) e a idéia

heideggeriana (que vem de Dilthey e é retomada por Scheler, cf. nosso Capítulo 2 da

Primeira Parte) de que a “realidade é resistência” (“resistência vem ao encontro como

não deixar passar..., como impedimento da vontade de passar...”, Ser e Tempo, vol.I,

p.276-277)— resulta num puro ativismo, comparável ao do “no pasarán” da Guerra

Civil Espanhola, recriada literariamente por Malraux (cf. L’Espoir, em particular a

p.331). Mas, neste ponto, o que faz com que, no novelo ontológico de EN, as cores

O MITO DA RESISTÊNCIA

342

fortes do fio literário de Malraux prevaleçam sobre o tom esmaecido dos fios

filosóficos originais é —e aqui nos deparamos com mais uma circunstância temporal

permeando as análises do livro— o fato de a Resistência, àquela altura, ir se

encarregando, ela própria, de reativar o espírito heróico da Guerra Civil Espanhola (a

qual, por sua vez, já reativara o espírito da grande tradição revolucionária francesa:

“Pour la Révolution et pour la Liberté”, esse o lema dos antifascistas que lutavam na

Espanha, como sublinha Malraux, L’Espoir, p.288). (Não é casual que o paradigma de

Sartre para pensar a Revolução seja sempre a idéia de Apocalipse, conforme fora

exposta em L’Espoir.) Basta lembrar a palavra de ordem da Resistência durante as

barricadas de 44: “Ils ne passeront pas”. É esse imperativo que encontramos, por

exemplo, nas principais manchetes do jornal Combat —”Toute la ville aux

Barricades”; “Parisiens défendez vos rues par des barricades”—, cujo editorial de 23

de agosto de 1944 intitula-se, justamente, “Ils ne passeront pas”: “Qu’est-ce qu’une

insurrection? C’est le peuple en armes. C’est ce qui dans une nation ne veut jamais

s’agenouiller. (...) L’ennemi terré dans la ville ne doit pas en sortir. L’ennemi en

retraite qui veut entrer dans la ville ne doit pas y pénétrer. Ils ne passeront pas”

(arquivo da Biblioteca Nacional de Paris, Publicações clandestinas durante a

Ocupação). EN exprime também, em sua forma filosófica (o que pressupõe

antecipação), essa reativação política, em curso na época, do ideário da Guerra Civil

Espanhola.145 Por isso a figura da liberdade no livro é tão heróica quanto a tradição

revolucionária revivida naquela França da Segunda Guerra. Numa palavra: no

“voluntarismo prometéico”146 do ensaio de ontologia sartriano encontramos Malraux e

Kojève amalgamados da mesma forma que na Resistência se confundem o imaginário

da Guerra Civil Espanhola e da Revolução Francesa (além da Revolução Russa, é

claro, vista como um novo momento do Apocalipse revolucionário inaugurado no

século XVIII).

Razão e Resistência

343

Resumamos nossos resultados. A análise da organização interna de EN levou-

nos a descobrir o fio filosófico da obra entrelaçado numa trama histórico-literária.

Desmanchando esse novelo composto de materiais heteróclitos, tornou-se possível

decifrar o enigma do enredo dramático do livro (um claro enigma para os

contemporâneos — “É uma leitura tão excitante quanto uma novela de detetive”, dizia

por exemplo um antigo aluno de Sartre, o futuro cineasta Alexandre Astruc): suas

páginas narram, isto é, reconstituem através de movimentos lógicos, a “experiência” de

uma consciência submetida a “l’épreuve de la vie” — a experiência direta da liberdade

da Condição Humana posta numa situação-limite diante do terror nazista.147 Trocando

em miúdos: EN narra (filosoficamente) a história de uma luta (política) pela liberdade

— “L’Être et le Néant est un ouvrage sur la liberté”, para relembrar a definição de

Sartre (in La cérémonie des adieux, p.505).148 As demonstrações ontológicas do livro,

seus teoremas a respeito das estruturas fundamentais descritas (a consciência, a

liberdade, o tempo), acabam por condensar o processo social em curso, isto é, a

passagem da “alienação” à luta pela libertação. Ao incorporar filosoficamente essa

guinada histórica da Resistência, a consciência muda de figura: a impotência cede

lugar ao heroísmo. E assim nasce a liberdade heróica em EN. Essa nova figura —a

nova figura da razão em tempos de Resistência— exprime a certeza filosófica de que a

história estava acelerada e caminhava para um desenlace decisivo (donde a

identificação entre liberdade e “changement”, descrita no nosso Capítulo 2 da Primeira

Parte). Formulando de outra maneira: ao transformar em realidade o que até então era

apenas possibilidade do “verdadeiro ser” —a Liberdade—, a Resistência se transforma,

ela própria, numa figura dentro de EN (o que acrescenta mais uma figura à galeria das

figuras da Fenomenologia do Espírito, inaugurada com a Revolução Francesa e sua

expansão através das guerras napoleônicas). Essa figura, como suas precursoras na

Fenomenologia do Espírito, não é, bem entendido, o mero retrato de “fatos” reais, mas

O MITO DA RESISTÊNCIA

344

antes um conjunto de retratos retocados filosoficamente — por assim dizer, “imagem

de imagens” (se for permitido adaptar aqui a maneira como Jameson se refere ao

“realismo” na pintura). Por isso, vê-se logo, o “realismo” que extraímos da forma

filosófica de EN só pode ser compreendido enquanto tal se não perdermos de vista que

ele é essencialmente um trabalho de reconstrução,149 cujo movimento pendular —

subjetividade impotente e consciência heróica, paralisia da ação e ação intensa,

“désespoir” e “espoir”, não-liberdade (“alienação”) e liberdade—150 vai sendo

amortecido e finalmente unificado em torno de um eixo central: o ponto de vista do

Resistente.151 Esse o eixo invisível que articula os diversos planos em que a história

daquele mundo é recontada na forma de um mistério filosófico: o do nascimento da

Liberdade (não por acaso a primeira versão dessa história foi na forma teatral do

mistério da Natividade, Bariona). Ainda uma palavra sobre a natureza desse

“realismo”: estamos diante de uma reconstrução de uma reconstrução, isto é, da

reorganização de um material histórico ele próprio já elaborado (o que pressupõe

Tempo e Narração). Mais precisamente: a conversão da realidade bruta em matéria

filosófica é feita pela mediação de um mito coletivo,152 o da Resistência (refundido por

sua vez na reconstrução filosófica e/ou literária do mito da Revolução Francesa e da

Guerra Civil Espanhola, via Kojève e Malraux). É com essa argamassa material

composta de uma estrutura filosófica e uma estrutura histórico-literária que o sentido

positivo da alienação é construído em EN. Nesse resultado filosófico, nesse retrato

retocado, não se pode mais distinguir o que é “real” e o que é “ficção” — trata-se

antes de “ficções” necessárias, ou, para usar os termos de Sartre em sua análise sobre

Flaubert, de um “carrefour du réel et de l’imaginaire”.

Essa trama imaginária (mas urdida com fios reais) toma enfim a forma

filosófica de uma “tragédia da liberdade”, sucedâneo da “tragédia da fatalidade” (se

quisermos adaptar para EN o que o autor disse a respeito de Les Mouches153). Noutras

palavras, mais precisas: EN capta filosoficamente o momento em que a tragédia da

Razão e Resistência

345

Segunda Guerra se metamorfoseia, nos corações e mentes dos contemporâneos, em

liberdade — e esse momento de virada pode ser datado historicamente: Stalingrado

(note-se que o final da redação de EN, início de 43, coincide com a vitória de

Stalingrado).154 O que parecia levar fatalmente aos “últimos dias da humanidade” tem

um desfecho positivo, resultado de uma resistência heróica — por isso a batalha de

Stalingrado será exaltada (até neste nosso canto do mundo: “os telegramas de Moscou

repetem Homero”155) como uma verdadeira experiência épica, uma epopéia

contemporânea. EN está, assim, na encruzilhada de dois mundos (e aqui já

conseguimos determinar o que indicáramos no Preâmbulo deste trabalho, num nível

ainda muito genérico): um que começa a morrer em Stalingrado e outro que começa a

nascer exatamente naquele momento (daí os dois sentidos das análises do livro). Essa

encruzilhada dos dois mundos já fora, aliás, profetizada em Bariona, quando o herói da

peça, antes de sua “conversão”, descreve a decadência do mundo ao qual pertence: “Je

suis sur la route du côté du monde qui finit, et eux sont du côté du monde qui

commence” (p.623). A partir de Stalingrado, e do conseqüente alastramento do

movimento de Resistência, na França e no resto da Europa, a palavra de ordem “Da

Resistência à Revolução” se impõe (a ponto de se tornar a “divisa” de Combat)156 — a

Revolução mundial poderia finalmente sair da guerra (assim como no “ensaio de

ontologia fenomenológica” de Sartre a liberdade sai da não-liberdade). EN é uma

espécie de sismógrafo dessa “revolução imaginária” (expressão cunhada nas memórias

de D. Desanti), cuja primeira fase (ascendente) —o período da “ilusão lírica”—

anuncia filosoficamente.157 Um anúncio filosófico, portanto, da superação, através de

uma luta heróica e dramática, de um estado de não-liberdade, e, ao mesmo tempo, do

resultado dessa superação: o advento dos Tempos Modernos — uma época marcada

pela “puissance de la liberté”, para relembrar a maneira como Sartre define mais tarde

aquela conjuntura de efervescência revolucionária. Não por acaso, o livro termina com

O MITO DA RESISTÊNCIA

346

a afirmação da “primauté de l’être sur le néant” (p.683)158 e, mais do que isso, com a

apologia de uma liberdade que “prendra conscience d’elle même et se découvrira dans

l’angoisse comme l’unique source de la valeur” (p.691) — “la liberté (...) se prenant

elle-même pour fin” (p.692). Nessa apologia, podem-se ouvir os ecos da batalha de

Stalingrado. É à luz daqueles “instants extraordinaires et merveilleux” (para reutilizar

os termos com os quais EN designa o momento de “conversion radicale”) que o autor

pode antecipar o resultado vitorioso da luta pela liberdade (e o faz justamente no

capítulo sobre a liberdade): “Ces tentatives avortées pour étouffer la liberté...” (EN,

p.495). Se a delicada flor da verdadeira Liberdade (que brota da semente da Revolução,

e é o único remédio para a Naúsea e o Tédio do intelectual) foi capaz de irromper na

paisagem gelada de Stalingrado, bem como de furar as barreiras dos campos de

prisioneiros e os porões da Gestapo, então tudo é possível (até porque “la liberté est

invention”, Cahiers pour une morale, p.65), “tout est à commencer”, como proclama o

herói de Les Mouches no final da peça (p.246). Vejam-se também as palavras de

Bariona: “Qu’y a-t-il de plus émouvant pour un cœur d’homme que le commencement

d’un monde(...), quand tout est encore possible...” (p.622).159 Tal entusiasmo é o

mesmo com que Simone de Beauvoir celebrará a vitória da luta de resistência contra o

nazismo: “Cette victoire effaçait nos anciennes défaites, elle était nôtre et l’avenir

qu’elle ouvrait nous appartenait” (La force des choses, vol.I, p.14). Essa certeza

(iluminista) no futuro (“un avenir vierge où tout est possible”, como Sartre dizia da

América, Sit.III, p.127-128), trazida inicialmente por uma liberdade que veio do frio,

será confirmada no momento em que a geração de Sartre reconhecer o próprio espírito

da grande tradição revolucionária francesa reencarnado no “Apocalipse da liberdade”

de 44. É assim que o “Espírito do mundo” volta, não a cavalo, mas sobre os ombros de

cada um dos Resistentes que, para retomar as palavras de Sartre, “ont à chaque instant,

derrière chaque barricade et sur chaque pavé, exercé la liberté pour eux et pour chaque

Français” (“La Libération de Paris: une semaine d’apocalypse”, p.661).

Razão e Resistência

347

É a prefiguração desse momento de “explosão da liberdade” (tal como Sartre o

define em “La Libération de Paris: une semaine d’apocalypse”, p.661) que

encontramos em EN. Concebido durante o inverno sombrio de 1939-1940 (nos Carnets

de la drôle de guerre), escrito entre o outono de 1941 e o início da primavera de 1943,

o livro termina por antecipar o verão apocalíptico de agosto de 1944. — É “a presença

do futuro no coração do presente” (para usar a linguagem de Questions de méthode,

p.119), no caso, do presente filosófico de EN, ou, recolocando o problema nos termos

do próprio livro, é a luz do futuro que já ilumina o presente: “le futur revient sur le

présent et le passé pour l’éclairer” (EN, p.491); “c’est la libre invention et le futur qui

permettent d’éclairer le présent” (p.580).160 As análises do ensaio de ontologia

sartriano correm no mesmo trilho do movimento de renovação cultural e política que

começara na França de entre-guerras e culmina com a queda da Terceira República

(que ao cair faz soar a hora e a vez do Existencialismo), no limiar dos Tempos

Modernos. Rolando sobre esse trilho, o livro pôde ir assimilando a mudança dos

sentimentos predominantes entre os homens da época: de desterrados em sua própria

terra (marca registrada da “alienação” descrita em nosso capítulo anterior)161 ao

reencontro com a tradição revolucionária francesa. Um reencontro que é uma dupla

libertação: dos Alemães e da odiada Terceira República. É o fim de uma longa viagem

“au bout de la nuit”. Mas foi preciso essa viagem para redescobrir a “journée

rayonnante” da Revolução (ainda que imaginária). Aqui começa, para a geração de

Sartre, o verdadeiro Domingo da Vida.162

O MITO DA RESISTÊNCIA

348

Notas - Capítulo 2

1)Sobre o projeto sartriano de “escrever uma filosofia do Nada”, cf. Les carnets de la

drôle de guerre, p.383. Recorde-se além disso o que diz Sartre numa carta de janeiro

de 1940: “Ce matin j’ai relu la conférence de Heidegger ‘Qu’est-ce que la

métaphysique?’ et je me suis occupé dans la journée à ‘prendre position’ par rapport à

lui sur la question du Néant. B. vous aura dit que j’avais une théorie du Néant. Elle

n’était pas encore très bien tournée et voici qu’elle l’est. Vous la verrez quand je

viendrai en permission” (Lettres au Castor, vol.II, p.38-39). 2)”C’est-à-dire moi-même qui viens à moi du fond du Néant et à travers l’Être pour se

rejoindre au néant que je suis et qui surgit de l’Être”, lemos nos Cahiers pour une

morale (p.258). No mesmo sentido, Merleau-Ponty escreve: “En fait, nous ne pouvons

concevoir le néant que sur un fond d’être (ou, comme dit Sartre, sur fond de monde).

(...) Il n’y a d’être que pour un néant, mais il n’y a de néant qu’au creux de l’être”

(“L’Existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens, p.117). 3)A “negação concreta”, já mencionada nos Capítulos 1 e 2 de nossa Primeira Parte, é

entendida como uma “négation radicale et syncrètique” (EN, p.223). Cf. nos Cahiers

pour une morale a retomada dessa idéia de “negação da negação”; ver em especial a

discussão sobre o “esquema hegeliano de Engels” (p.356-357). 4)Nos Cahiers pour une morale, Sartre sublinha a seguinte “idéia hegeliana”: “l’esprit

revient sur lui-même à travers les catastrophes” (p.360). Note-se também o que o autor

escreve no final da guerra: “C’est quand il a perdu tout espoir que l’homme se trouve

lui-même, car il sait alors qu’il ne peut s’appuyer sur rien d’autre que sur lui-même”

Razão e Resistência

349

(“Nouvelle Littérature en France”, in Sartre — Œuvres Romanesques, Pléiade, p.1919).

Ainda a esse respeito, ver nosso Capítulo 2, Parte I (em particular a nota 10). 5)Nesse sentido, cf. os Cahiers pour une morale, onde também a atividade surge da

passividade (operação que é a marca registrada da liberdade): “Il ne peut y avoir

d’action sans passivité” (p.340); “la liberté est dépassement d’une situation c’est-à-dire

qu’elle implique une passivité” (p.345). O que levará Sartre a falar em “síntese

dialética” da passividade com a atividade: “La passivité n’en existe pas moins mais en

synthèse dialectique avec l’activité. L’activité est très exactement la passivité

dépassée” (Idem, p.346); “Ainsi l’action est passivité contre passivité” (p.347). Já em

La Transcendance de l’Ego, o autor escrevia: “toute activité se donne comme émanant

d’une passivité qu’elle transcende” (p.82). 6)Observe-se que em EN a própria abstração é definida como “dépassement”:

“L’abstraction (...) est dépassement” (p.229). Assim como a alienação é necessária para

que a não-alienação possa surgir, a abstração é necessária para o surgimento do

concreto: “L’abstrait est une structure du monde nécessaire au surgissement du

concret” (EN, p.234). Donde a impossibilidade de separar o abstrato do concreto: “Et

cette fusion doit être telle que l’abstrait soit fondement du concret et simultanément le

concret fondement de l’abstrait” (EN, p.235). 7)Cf. no final de nosso Capítulo 1, Parte I, a retomada, feita por Hyppolite, dessa

interpretação kojeviana da Fenomenologia do Espírito. Cf. também a fórmula sartriana:

“Il ne peut y avoir de liberté que dans la libération” (Cahiers pour une morale, p.430). 8)A frase é de Adorno, num outro registro (in Sobre a metacrítica da teoria do

conhecimento — Estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenológicas, p.26).

Veremos adiante que é o desdobramento dessa primeira “revelação”, isto é, a resposta

voluntarista do sujeito sartriano à descoberta de uma liberdade “en sursis”, que vai

O MITO DA RESISTÊNCIA

350

distinguir radicalmente os resultados teóricos que a geração de Sartre e a de Adorno

extraem daquela mesma situação-limite da guerra. 9)”J’étais libre. A présent j’ai à prouver que je suis libre. Ma liberté est mise en

question. Et si je ne puis le prouver, alors automatiquement, je tombe dans

l’inessentialité, j’appartiens à un monde inessentiel devant la liberté de l’autre. En

même temps le défi est risque et jeu. (...) La liberté fait donc naître le risque pour se

dévoiler comme liberté” (Cahiers pour une morale, p.388). 10)Sem o que seria difícil compreender por que uma filosofia nascida no seio da

circunspecta fenomenologia alemã (à qual ninguém em sã consciência ousaria atribuir

o propósito de revolucionar o mundo) pôde fixar como “ponto de partida”, segundo as

palavras do próprio autor, uma liga de Liberdade e Ação transformadora da ordem

existente: “C’est ça, ma liberté il fallait pour la faire triompher, agir sur l’histoire et sur

le monde, et obtenir un rapport différent de l’homme à l’histoire et au monde. C’est ça

qui a été le point de départ” (Sartre, in La cérémonie des adieux, p.509). 11)Michel Contat, por exemplo, refere-se a essa passagem como “provocante et

paradoxale” (Magazine Littéraire, abril de 1994, p.20). O problema, a nosso ver, é que

não há paradoxo — trata-se, antes, de um resultado necessário da concepção sartriana

da liberdade (uma elaboração filosófica da equação política da Resistência, como

estamos procurando mostrar). 12)Refletindo sobre o “herói contemporâneo”, particularmente em Pilote de Guerre, de

Saint-Exupéry, Merleau-Ponty escreve: “A mesure qu’il entre dans le danger, il

reconquiert son être. Au-dessus d’Arras, dans le feu de la D.C.A., quand chaque

seconde de survie est aussi miraculeuse qu’une naissance, il se sent invulnérable parce

qu’il est enfin dans les choses, qu’il a quitté son néant intérieur, et que, s’il meurt, ce

sera en plein monde” (“Le héros, l’homme”, Sens et Non-Sens, p.328).

Razão e Resistência

351

13)Recorde-se: “...lors qu’on attribue à la conscience ce pouvoir négatif vis-à-vis du

monde et d’elle-même...” (EN, p.490). E ainda: “son [du Pour-soi] premier rapport

avec l’être en soi est-il négation” (Idem, p.162). 14)A exceção fica por conta de Jean-François Louette e, antes dele, Geneviève Idt, mas

ambos se detêm na época da guerra, seja o período da Libertação (caso de G. Idt em

sua análise dos Chemins de la Liberté), ou o dos Carnets de la drôle de guerre (caso de

J.-F. Louette). Nos dois casos, a discussão não abrange EN. (Cf. G. Idt, “Les modèles

d’écriture dans Les Chemins de la Liberté”, in Etudes Sartriennes, I: Cahiers de

Sémiotique Textuelle, n° 2; J.-F. Louette, “Écrire l’universel singulier”, in Pourquoi et

comment Sartre a écrit Les Mots.) Indicamos no capítulo anterior que a idéia sartriana

de universal singular (que se tornará o substrato do “método progressivo-regressivo”)

foi a nosso ver esboçada antes mesmo da guerra, nos ensaios do autor sobre o romance

social americano. Com a guerra, essa idéia (que vinha também de Heidegger:

“Brotando da historicidade própria, a historiografia (...) já revelou o ‘universal’ no

singular”, Ser e Tempo, vol.II, p.202) ganha cores novas no pensamento de Sartre. São

cores imprimidas por um certo tipo de literatura heróica de guerra — cf. por exemplo

Saint-Exupéry: “Cette morale expliquera clairement pourquoi l’individu se doit de se

sacrifier à la Communauté” (Pilote de Guerre, p.208). O que leva o autor a justificar o

primado do universal sobre o particular: “Je combattrai pour la primauté de l’Homme

sur l’individu — comme de l’universel sur le particulier. Je crois que le culte de

l’Universel exalte et noue les richesses particulières — et fonde le seul ordre véritable,

lequel est celui de la vie. (...). Je crois que le culte du particulier n’entraîne que la mort

— car il fonde l’ordre sur la ressemblance” (Pilote de Guerre, p.217). Amalgamando (e

modificando) essas (e outras) fontes filosóficas e literárias, Sartre chegará à forma

definitiva de sua idéia de universal singular no estudo sobre Flaubert: “Un homme

n’est jamais un individu; il vaudrait mieux l’appeler un universel singulier: totalisé et,

O MITO DA RESISTÊNCIA

352

par là même, universalisé par son époque, il la retotalise en se reproduisant en elle

comme singularité” (L’Idiot de la famille, vol.I, p.7). 15)Recorde-se o conceito de Espírito em Hegel: “un Moi qui est un Nous, et un Nous

qui est un Moi” (La Phénoménologie de l’esprit, vol.I, p.154). 16)Ainda que já não se trate mais da mesma “experiência”, mas isso veremos depois. 17)Cf. nos Cahiers pour une morale o vínculo entre alienação e opressão: “l’aliénation

perpétue l’oppression”; “l’oppression perpétue l’aliénation” (p.398). 18)”Par l’Autre, comme le dit Hegel, je viens à la vérité de moi-même”, lemos nos

Cahiers pour une morale (p.375). 19)Essa negação da existência de classes sociais é, aliás, a marca registrada do

“burguês”, como Sartre precisará em “Qu’est-ce que la littérature?”: “On reconnaît le

bourgeois à ce qu’il nie l’existence des classes sociales et singulièrement de la

bourgeoisie” (Sit. II, p.159). 20)Sobre essa vantagem que resulta da desvantagem social, cf. Kojève: “L’avenir et

l’Histoire appartiennent donc non pas au Maître guerrier, qui ou bien meurt ou bien se

maintient indéfiniment dans l’identité avec soi-même, mais à l’Esclave travailleur.

Celui-ci, en transformant le Monde donné par son travail, transcende le donné et ce qui

est déterminé en lui-même par ce donné; il se dépasse donc, en dépassant aussi le

Maître qui est lié au donné qu’il laisse —ne travaillant pas— intact” (Introduction à la

lecture de Hegel, p.28). E ainda: “Seul l’Esclave peut transcender le Monde donné

(asservi au Maître) et ne pas périr. Seul l’Esclave peut transformer le Monde qui le

forme et le fixe dans la servitude, et créer un Monde formé par lui où il sera libre. Et

l’Esclave n’y parvient que par le travail forcé et angoissé effectué au service du Maître.

Certes, ce travait à lui seul ne le libère pas. Mais en transformant le monde par ce

travail, l’Esclave se transforme lui-même et crée ainsi les conditions objectives

nouvelles, qui lui permettent de reprendre la Lutte libératrice pour la reconnaissance

Razão e Resistência

353

qu’il a au prime abord refusée par crainte de la mort. Et c’est ainsi qu’en fin de compte

tout travail servile réalise non pas la volonté du maître, mais celle —inconsciente

d’abord— de l’Esclave, qui —finalement— réussit là, où le Maître —nécessairement—

échoue” (Introduction à la lecture de Hegel, p.33-34). Nesse sentido, cf. também

Hyppolite: “Pour le maître, le monde objectif est sans résistance, il est l’objet de sa

jouissance (de son affirmantion de soi); pour l’esclave, ce monde est un monde dur

qu’il peut seulement élaborer” (La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, p.162, nota 24).

E acrescenta: “Cette dure formation de l’homme par la peur, le service, le travail, est

un moment essentiel de la formation de toute conscience de soi” (Idem, p.163, nota

25). Merleau-Ponty, por sua vez, glosando justamente as análises de Hyppolite sobre o

“existencialismo” em Hegel, escreve: “Celui qui prend de la situation humaine la

conscience la plus exacte, ce n’est donc pas le maître, puisqu’il feint d’ignorer le fond

d’être et de communication sur lequel jouent son désespoir et son orgueil; c’est

l’esclave qui a vraiment eu peur (...) et qui seul a l’expérience de la mort parce qu’il a

seul l’amour de la vie. Le maître veut n’être que pour soi, mais en fait, il cherche à être

reconnu maître par quelqu’un; il est donc faible dans sa force; l’esclave consent à

n’être que pour autrui, mais c’est encore lui qui veut garder sa vie à ce prix; il y a donc

une force dans sa faiblesse. Parce qu’il a mieux connu que le maître les assises vitales

de l’homme, c’est lui qui finalement réalisera la seule maîtrise possible: non pas aux

dépens d’autrui, mais aux dépens de la nature. Plus franchement que le maître, il a

établi sa vie dans le monde, et c’est justement pourquoi il sait mieux que le maître ce

que signifie la mort: la ‘fluidification de tout ce qui était fixe’, l’angoisse, il en a

vraiment l’expérience. Par lui, l’existence humaine, qui était risque et culpabilité,

devient histoire (...). La vérité de la mort et de la lutte, c’est la longue maturation par

laquelle l’histoire surmonte des contradictions pour réaliser dans le rapport vivant des

O MITO DA RESISTÊNCIA

354

hommes la promesse d’humanité qui paraissait dans la conscience de la mort et dans la

lutte avec l’autre” (“L’Existentialisme chez Hegel”, in Sens et Non-Sens, p.118-119). 21)”Originellement l’appartenance au Nous-objet est sentie comme une aliénation plus

radicale encore du Pour-soi puisque celui-ci n’est plus seulement contraint d’assumer

ce qu’il est pour Autrui mais encore une totalité qu’il n’est pas, quoiqu’il en fasse

partie intégrante” (EN, p.470). E mais adiante: “L’épreuve du nous-objet renvoie à

celle du nous-sujet” (EN, p.473). 22)Cf. nos Cahiers pour une morale a retomada desse problema das relações

(contraditórias) entre o “mundo da alienação” e o “mundo da solidariedade” (cf. por

exemplo a p.387). 23)Mesmo nos Cahiers pour une morale, o tema do Trabalho ainda é puro Hegel (da

Fenomenologia), antes de ser Marx (embora a idéia de “humanidade sofredora”,

recorrente em EN, seja característica do jovem Marx, em particular o da

correspondência com Ruge): “Travail: Hegel a longuement développé l’efficacité du

travail dans la Phénoménologie. Ce qu’il dit est fort juste. (...) Seulement Hegel prend

une situation trop tranchée” (p.403). 24)Nos Cahiers pour une morale, Sartre estabelece um vínculo estrutural entre “esforço

apocalíptico”, generosidade e solidariedade — dessa mescla, sai a Liberdade: “effort

apocalyptique pour briser le cadre objectivant de l’Autre par explosion”; “il s’agit

aussi dans sa structure profonde d’une générosité qui fait paraître la liberté”; “structure

profonde de solidarité” (p.389) — “solidarité de la liberté” (p.395). 25)Essa idéia toma forma nos Carnets de la drôle de guerre: “Marx écrit dans Misère

de la philosophie que ‘la misère peut être une force révolutionnaire’. Et Albert Ollivier

(La Commune) lui répond avec raison que l’action de la misère, à elle seule, ne peut

guère être que paralysante. A vrai dire, pour que la misère devienne force

révolutionnaire, il faut qu’elle soit reprise et assumée par le miséreux comme sa

Razão e Resistência

355

misère. Et non seulement cela, mais il faut qu’elle soit reprise comme situation qui doit

changer, c’est-à-dire qu’elle soit replacée par le miséreux au sein du monde humain où

elle sera proprement intolérable. Mais la misère à elle seule n’est jamais intolérable:

elle n’est proprement rien. Les ouvriers de 1835 avaient un niveau de vie infiniment

inférieur à celui que les moins favorisés d’aujourd’hui jugeraient inacceptable. Et

pourtant, ils l’enduraient, faute de l’avoir saisi comme situation contingente et non

inhérente à leur essence. Pareillement, celui qui montre les forces économiques en lutte

ou en équilibre ne doit pas oublier que ces forces sont humaines” (Les carnets de la

drôle de guerre, p.360-361). Nesse sentido, note-se o que diz Merleau-Ponty na

Phénoménologie de la Perception: “Ce n’est pas toujours en période de crise

économique que le mouvement ouvrier progresse. La révolte n’est donc pas le produit

des conditions objectives, c’est inversement la décision que prend l’ouvrier de vouloir

la révolution que fait de lui un prolétaire” (p.505; cf. também a p.508). Voltaremos a

esse decisionismo mais adiante. 26)Cf. em Hegel a idéia de “emancipação da consciência” como condição da Revolução

(“A Revolução Francesa e suas consequências”, in Filosofia da História Universal,

p.405). Cf. também o vínculo entre salto revolucionário, tomada de consciência e

liberdade no “marxismo hegeliano” do Lukács de História e Consciência de Classe: “o

salto mesmo tem sua pátria no reino da liberdade” (p.118). E mais adiante, Lukács

acrescenta: “O desenvolvimento econômico objetivo não pode senão criar a posição do

proletariado no processo de produção, a posição que tem determinado seu ponto de

vista; não pode senão entregar ao proletariado a possibilidade e a necessidade de

transformar a sociedade. Mas a transformação mesma não pode ser senão ato livre do

próprio proletariado” (p.266). Contudo, é (mais uma vez) na releitura kojeviana da

Fenomenologia do Espírito que encontraremos a fonte do trinômio negação-ação-

revolução, central em EN: “La pensée naît d’une négation, c’est-à-dire d’une action

O MITO DA RESISTÊNCIA

356

(du travail). Elle devient elle-même active (‘révolutionnaire’)” (Kojève, Introduction à

la lecture de Hegel, p.69). 27)Por aí se compreende o lugar privilegiado que Jean Genet —essa “subjetividade do

Não”— ocupará na obra de Sartre. Sem necessidade de forçar a nota, pode-se dizer

que, na construção sartriana, a figura literária de Genet é um desdobramento da mesma

negatividade radical que nosso autor vira inicialmente encarnada na figura política do

Resistente: “L’essence objective du gosse étant le Non, Genet s’est donné une

personnalité en se donnant la subjectivité du Non; il est l’opposant absolu car il

s’oppose à l’Être et à toute intégration” (Saint Genet, Comédien et Martyr, p.658). 28)Essa reativação (sobre a qual falaremos depois) é o contraponto da derrota de 1940,

momento vivido como uma “nova restauração”: “les traits de cette nouvelle

Restauration —celle de 1940— où Pétain dans la France occupée jouait le rôle de

Louis XVIII...”, observa por exemplo Sartre após a Libertação de Paris (in Les Lettres

Françaises, 2 de dezembro de 1944). Ainda sobre o eclipse do espírito de 1789 no

início da guerra, quando a vitória do nazismo na Europa parecia inevitável, merece

destaque o seguinte registro presente nos anais da historiografia oficial do nacional-

socialismo alemão: “Atingimos dois objetivos: destruimos a linha Maginot e

extirpamos 1789 do coração dos homens” (Mémorial de la Guerre, Caen, Normandia). 29)Cf. a origem literária desse tema da “fraternité virile” no Mito da Guerra Civil

Espanhola, elaborado por Malraux. Basta lembrar algumas passagens de L’Espoir: “Ils

combattaient ensemble, dans une étrange fraternité” (p.31); “En prison, dit Puig, je

n’imaginais pas qu’il y aurait tant de fraternité” (p.34); “Pour Jaime, qui avait vingt-six

ans, le Front populaire, c’était cette fraternité dans la vie et dans la mort” (p.40);

“Contre les voitures fascistes lancées à travers les rues obscures avec leurs

mitraillettes, dévalaient les voitures réquisitionnées; et, au-dessus d’elles, le salud

obsédant, abandonné, repris, scandé, perdu, unissait la nuit et les hommes dans une

Razão e Resistência

357

fraternité d’armistice — plus dure à cause du prochain combat” (p.50). Recorde-se que

em L’Espoir a revolução é descrita como “une fraternité qui prenait la forme de

l’action”, p.237 (idéia retomada por Sartre na Critique de la Raison Dialectique). E

mais: “Il y a quelque chose que moi, le plus ancien officier marxiste, je n’avais jamais

soupçonné. Il y a une fraternité qui ne se trouve que de l’autre côté de la mort”

(L’Espoir, p.316); “Manuel regardait passer tous ces hommes en ordre de combat(...).

Ces regards qui, à chaque passage, croisaient le sien, n’étaient pas indifférents et

vagues: ils étaient tragiquement fraternels” (p.345-346). Ver também a descrição de

outras situações revolucionárias em Malraux: “...écrasé par la fraternité de la mort” (La

Condition Humaine, Pléiade, p.660); “Cet homme qui disait qu’il venait à nous parce

qu’il voulait la fraternité virile, cette fraternité qu’il avait cherchée sans la trouver dans

la guerre, qu’il attendait de la révolte, et qu’il eût trouvé dans la Révolution...” (Pour

Thaelmann, p.17). Sobre a reativação, durante a Segunda Guerra, desse tema da

fraternidade revolucionária, cf. em particular o romance de Simone de Beauvoir, Le

sang des autres (cuja gênese veremos logo adiante), escrito à mesma época de EN,

entre 1941 e 1943: “14 juillet 1936. Nous avions su coaliser toutes les forces de

l’espoir. Un chant, un chant de fête. Ils chantaient la magie de la liberté, la force de la

fraternité et la gloire souveraine d’être un homme. (...) C’était là l’espoir suprême

qu’ils saluaient au fond de l’avenir: la réconciliation de tous les hommes dans la libre

reconnaissance de leur liberté. (...) Les drapeaux claquaient, la foule chantait (...).

Notre fête. Notre victoire” (Le sang des autres, pp.84, 85 e 86). É exatamente nos

termos desse relato, feito pelo personagem central do romance, que a própria autora

saudará, um pouco mais tarde, a insurreição de 1944, seguida da Libertação de Paris. 30)”L’époque nous servit: il y avait alors, entre Français, une transparence des coeurs,

inoubliable, qui n’était que l’envers d’une haine. A travers cette amitié nationale...”,

escreve ainda Sartre num outro balanço daquele período (“Merleau-Ponty”, Revue

O MITO DA RESISTÊNCIA

358

Internationale de Philosophie, nº152-153, p.19). (Daí a idéia de “amitié

révolutionnaire” presente nas análises sartrianas a respeito da Revolução — uma idéia

desenvolvida em particular num roteiro inédito de um filme sobre a Revolução

Francesa, escrito por volta de 1956, e centrado na figura de Joseph Le Bon.) Nesse

sentido, cf. o manifesto do Front National des Écrivains: “Le peuple français ne

s’incline pas. L’immense mouvement de résistance aux oppresseurs allemands et à

leurs agents français a trouvé son expression dans le Front National de Lutte pour la

Liberté et l’Indépendance de la France. Le Front National groupe tous les Français, à

l’exception des traîtres et des capitulards qui font la besogne ou le jeu de l’envahisseur.

(...) Représentants de toutes les tendances et de toutes les confessions: gaullistes,

communistes, démocrates, catholiques, protestants, nous nous sommes unis pour

constituer le Front National des Écrivains Français” (Manifesto publicado em Les

Lettres Françaises, setembro de 1942; in Publicações Clandestinas durante a

Ocupação, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). 31)“A son retour de captivité, Sartre était bien résolu à s’unir avec les antinazis qu’il

connaissait pour organiser la résistance. Avec Maurice Merleau-Ponty, Simone de

Beauvoir, Jean Pouillon, d’autres encore, il fonda un mouvement intitulé ‘Socialisme et

Liberté’. Le mouvement, formé d’intellectuels sans expérience de l’action, fut bientôt

réduit à la plus totale impuissance. Les communistes refusèrent les contacts, firent

même quelque peu courir le bruit que Sartre était un flic et qu’il avait des rapports avec

les Allemands. Pour éviter des arrestations inutiles, Sartre se décida à dissoudre

‘Socialisme et Liberté’ (M.-A. Burnier, Les existentialistes et la politique, p.20-21). S.

de Beauvoir dá notícia desse episódio burlesco: “En 41, (...) ils [les communistes]

avaient fait courir le bruit que Sartre avait acheté sa libération en s’engageant à servir

de mouton aux Allemands. (...) Il y eut bien un tract, attribué à des communistes et

imprimé dans le sud de la France, où le nom de Sartre figurait sur une liste noire, entre

Razão e Resistência

359

Châteaubriant et Montherlant” (S. de Beauvoir, La force des choses, vol.I, p.17-18).

Em La force de l’âge, a autora já descrevera a aventura política de Socialisme et

Liberté: “Un après-midi, dans ma chambre de l’hôtel Mistral où de nouveau nous

habitions, eut lieu notre première réunion. Il y avait Cuzin, Desanti, trois ou quatre de

leurs amis, Bost, Jean Pouillon, Merleau-Ponty, Sartre, moi. Desanti proposa, avec une

rieuse férocité, d’organiser des attentats individuels: contre Déat, par exemple. Mais

aucun de nous ne se sentait qualifié pour fabriquer des bombes ou lancer des grenades.

Notre principale activité, outre le recrutement, consisterait pour l’instant à recueillir

des renseignements et à les diffuser par un bulletin et des tracts. Nous apprîmes assez

vite qu’il existait beaucoup de formations analogues à la nôtre. (...) Tous ces

groupements avaient des traits communs; d’abord, le nombre restreint de leurs

effectifs; ensuite, leur imprudence. (...) Bost promena dans les rues une machine à

ronéotyper; Pouillon transportait une serviette bourrée de tracts. Outre les prises de

contact et notre travail d’information, nous avions un objectif lointain; nous pensions

qu’il fallait préparer l’avenir. Si les démocraties l’emportaient, la gauche aurait besoin

d’une doctrine neuve: nous devions, par un ensembe concerté de réflexions, de

discussions, d’études, nous appliquer à la mettre sur pied. L’essentiel de notre

pogramme tenait en deux mots —dont la conciliation pose de vastes problèmes— qui

servirent à baptiser notre mouvement: ‘Socialisme et Liberté’. Cependant, envisageant

l’éventualité d’une défaite, Sartre exposa, dans notre premier bulletin, que si

l’Allemagne gagnait la guerre, notre tâche serait de lui faire perdre la paix. Nous

n’avions, en effet, à peu près aucune raison objective de croire à la victoire” (La force

de l’âge, p.551-552). Cf. o depoimento do próprio Sartre: “Voilà ce qui semblait être la

première chose à faire en revenant à Paris, c’était de créer un groupe de résistance;

essayer, de proche en proche, de gagner la plupart des gens à la résistance, et créer

ainsi un mouvement de violence qui chasserait les Allemands” (in La cérémonie des

O MITO DA RESISTÊNCIA

360

adieux, p.550). Os limites desse movimento são apontados num balanço crítico feito

pelo autor no famoso ensaio em homenagem a Merleau-Ponty: “En 41 des groupes

d’intellectuels se formaient un peu partout, qui prétendaient résister à l’ennemi

vainqueur. J’étais de l’un d’eux, Merleau en fut. Cette rencontre-là n’est pas due au

hasard: l’un et l’autre issus de la petite bourgeoisie républicaine, la tradition, nos goûts

et surtout notre conscience professionnelle nous portaient à défendre la liberté. Ou,

tout au moins, celle de l’esprit. Des naïfs. Nos amis ne l’étaient pas moins que nous.

Nous ignorions tout de l’action qui, fût-elle clandestine, demeure politique donc

ambiguë. Inefficaces par une innocence qui n’est pas excusable, il faut dire aussi que

nous étions étourdis et que nous n’imaginions même pas ce qu’il convenait

d’entreprendre. Notre première faute —ce fut la mienne, Merleau-Ponty laissait venir,

peu convaincu— je l’ai comprise trop tard: il fallait unir et nous divisâmes; avant

même de compter nos recrues, j’avais fait adopter un beau programme socialiste avec,

Dieu me pardonne, l’esquisse d’une constitution. Naturellement nos adeptes nous

approuvèrent: nous ne sûmes jamais le nombre de ceux que nous touchâmes et que

notre programme écarta de nous. (...) De toute manière notre groupuscule, né dans

l’enthousiasme, succomba, comme firent aussi les autres, à la première fièvre

puerpérale. Pour les Allemands nous étions restés dans le domaine de l’infra-visible: il

n’y eu pas de casse. Je pense aujourd’hui encore que les ratages de 41 ne furent pas

inutiles. Il est vrai: c’était l’anarchie; un poudroiement de formations dont les chefs

s’étaient vus quelquefois mais sans même songer à s’organiser. Mais après tout, en

printemps 41 nous étions seuls: le P.C. n’avait pas mis sur pied son efficace entreprise;

après tout, pendant l’interrègne, nos agitations moléculaires couvrirent la France; des

curés, des professeurs de médecine ou de sociologie se mirent à ronéotyper. Malgré les

divergences politiques opposant des droites idéalistes à des gauches spiritualistes,

malgré l’anarchie, l’accord était profond sur le praxique: nous résistions fort mal mais

Razão e Resistência

361

nous disions sur ces tracts divers, éparpillés sur tout le pays, que nous voulions la

Résistance, qu’elle était possible, qu’il fallait nous battre et nous organiser. Je ne veux

pas dissimuler l’irréalisme et le verbalisme de nos feuilles: mais je suis convaincu

qu’elles aidèrent la population — à mieux reconnaître son refus profond de la tyranie

allemande. Plus tard le F.N., d’autres groupes, moins comiques, récupérèrent un par un

les résistants de première heure: bien utilisés, ils firent ce qu’ils purent et montrèrent

que l’intellectuel peut agir s’il veut bien, au même moment, ne pas penser” (Sartre,

“Merleau-Ponty”, in Revue Internationale de Philosophie, nº 152-153, 1985, número

especial sobre Sartre, p.16-17; primeira versão, até então inédita, do artigo “Merleau-

Ponty Vivant”, publicado em Les Temps Modernes, n° 184-185, 1961). Cf. o

depoimento de uma integrante do grupo, Dominique Desanti: “Sartre apportait des

propositions concrètes. ‘Liberté et Socialisme’, rédigé par des intellectuels de familles

spirituelles différentes, traçait la ligne d’un avenir ni capitaliste ni communiste. (...)

Nous cherchions à influer sur l’avenir (...). Nous avions construit le mythe de

l’invulnérabilité. L’optimisme organique de Sartre nous y poussait. (...) Tous, pendant

quelques mois, Sartre, Camus, Merleau-Ponty et nous, croyions marcher vers le même

but” (“Le Sartre que je connais”, in Jeune Afrique, novembro de 1964, p.28). Ainda

sobre “Socialisme et Liberté”, cf. também o que afirma a mesma Dominique Desanti,

agora numa carta, escrita juntamente com Jean-Toussaint Desanti e Simone Debout-

Oleszkiewicz, em defesa de Sartre e de Merleau-Ponty (por ocasião do que a imprensa

francesa chamou de “Scandale Jankélévitch”): “Au printemps 1941, c’est-à-dire avant

l’entrée en guerre de l’URSS et donc à un moment où la durée de l’occupation restait

imprévisible a été publié, pendant plusieurs mois, une revue clandestine ‘Socialisme et

Liberté’. Jean-Paul Sartre en avait pris l’initiative dès son retour du camp de

prisonniers. Maurice Merleau-Ponty assuma, non seulement des éditoriaux, mais aussi

l’essentiel de la rédaction. Beaucoup d’informations lui ont été fournies par David

O MITO DA RESISTÊNCIA

362

Rousset qui s’en souvient à coup sûr. Nous sommes d’autant plus certains des dates et

des personnes impliquées que nous avons participé à la rédaction, à la fabrication et à

la distribution de cette publication clandestine, réalisée à Paris” (Libération,

18/6/1985). A respeito do “Scandale Jankélévitch” —publicação póstuma da entrevista,

concedida a Jean-Pierre Barou e Robert Maggiori, em que Jankélévitch tenta difamar

Sartre e Merleau-Ponty (in Libération, 8, 9 e 10 de junho de 1985)—, não há muito o

que observar, salvo que se perdeu uma boa ocasião de discutir a experiência da Guerra

e da Resistência na formação de toda uma geração intelectual. De um lado,

Jankélévitch acusa os filosófos da Ação e do engajamento, em particular Sartre e

Merleau-Ponty (sobretudo este último, que chega a ser injuriado: “Sartre était un grand

homme de gauche, mais Merleau-Ponty, ce n’est vraiment rien du tout! Un petit

caractère”), de impostores que, tendo se ocupado apenas de seus próprios estudos

durante a época trágica da guerra, negligenciando completamente a situação dramática

dos verdadeiros Resistentes, não hesitam, no imediato pós-guerra, quando não havia

mais perigo algum, e o vento já soprava a favor dos partidos de esquerda, em propor o

engajamento político do escritor — tal engajamento, na hipótese mais favorável,

“s’explique par le remords d’avoir manqué de courage sous l’occupation”. Mas se do

lado de Jankélévitch há de se lamentar o tom por demais pessoal, rancoroso (para não

dizer ressentido) e injurioso da entrevista, do outro, dos que saíram em defesa de Sartre

e de Merleau-Ponty (além do casal Desanti, Simone de Beauvoir, J.-L. Bost, Jean

Pouillon, Claude Lefort, entre outros), há de se lamentar o fato de terem se limitado a

arrolar fatos biográficos, sem conseguir extrair daí algo de alcance teórico — perdeu-se

assim uma preciosa oportunidade de transformar o “affaire” num verdadeiro debate

intelectual sobre o Mito da Resistência na cultura francesa da época. (A título de

curiosidade, vale registrar um desdobramento desse “affaire”, um artigo de Michel

Contat, “Les Philosophes sous l’Occupation”, publicado no Le Monde de 28 de junho

Razão e Resistência

363

de 1985, onde, jogando lenha na fogueira de Jankélévitch, o autor escreve: “Sartre et

Merleau-Ponty ont manqué à leur simple devoir d’hommes quand les choix cruciaux

s’imposaient aux intellectuels qui défendaient la liberté dans leurs écrits” — a

principal acusação contra Sartre, no caso, foi ter autorizado a montagem de Les

Mouches em plena França ocupada, e ainda mais num teatro do qual se retirara o nome

de Sarah-Bernhardt por sua origem judaica. O que provocou a resposta indignada de S.

de Beauvoir, J.-L. Bost e J. Pouillon, no próprio Le Monde, que se resume mais ou

menos no seguinte: fazendo parte do “entourage” Sartre, Contat não poderia ignorar

que a montagem de Les Mouches fora autorizada pelo CNE e que, além disso, a peça

fora elogiada pela imprensa clandestina da Resistência.) Ainda no anedotário a respeito

dos “Philosophes sous l’Occupation”, um livro mais recente também fez muito barulho

(por apresentar, à maneira de Jankélévitch, os Existencialistas como oportunistas, os

boas vidas da Paris ocupada, que nada têm a ver com a Resistência). Estamos falando

de Une si douce Occupation, do historiador Gilbert Joseph, para quem Sartre, durante a

guerra, tinha um único propósito: “écrire, et que ses écrits le fassent accéder à la

célébrité et aux belles femmes dont il serait plutôt embarrassé étant, par penchant et

capacité, attiré surtout par des jeunes femmes déracinées et névrosées. (...) Quant au

nazisme, il ne s’en est jamais préoccupé, étant peu enclin à défendre les droits de

l’homme ou à se compromettre pour quelque passion humanitaire. (...) La défaite, il la

subit sans révolte” (p.28). Trata-se aqui de uma visão caricata dos Existencialistas, tão

caricata quanto no filme feito por Stanley Donen nos anos 50, Funny Face (Cinderela

em Paris, na versão brasileira), onde Sartre é antes de tudo um devorador, não

exatamente de criancinhas, mas de mulheres... bonitas, de preferência. (O que,

convenhamos, não precisaria tanta “pesquisa séria”, como Gilbert Joseph define seu

próprio trabalho, para chegar a tal conclusão...) O problema é que se no filme a

caricatura de Sartre tem sua graça (até porque não deixa de registrar de forma divertida

O MITO DA RESISTÊNCIA

364

e bem humorada a imagem que na época se fazia do Existencialismo), no livro fica

grosseiro. Um exemplo, que dispensa comentários: “Sartre était l’écrivain, le

philosophe, le dramaturge dont on parlait. (...) Ces activités suscitaient autour de lui un

concours de jeunes femmes prêtes aux dernières faveurs pour obtenir un rôle ou être au

mieux avec l’homme célèbre. De ce point de vue, il triomphait et avait vaincu sa

laideur.(...) Les femmes lui tombaient sur la bouche. Sous peu, ses qualités d’orateur

lui vaudront des succès enflammés dans des salles combles où l’on écouterait ses

subtiles digressions sur l’existentialisme et l’engagement, ses appels à la liberté, tel

Abélard, adulé des femmes, qui neuf siècles plus tôt drainait une foule enthousiaste à

ses cours sur la montagne Sainte-Geneviève où il parlait d’essence, de substance et

incitait ses auditeurs à la recherche de la vérité. Quant à Simone de Beauvoir, Heloïse

vieillisante, chargée de labeur, elle avait toujours un regard tendre sur son vieux

compagnon avec qui elle entretenait un rapport d’égalité. Mais ses yeux et son coin de

lèvres s’accordaient en un sourire quand venait s’asseoir près d’elle une jeune fille ou

un jeune homme” (Une si douce Occupation, p.376). Ainda sobre nosso “novo

Abelardo”: “Sartre régnait déjà sans atteindre à la célébrité qui sera bientôt la

sienne(...). Pour la première fois depuis le Moyen Age, des philosophes allaient tenter

de régir la vie intellectuelle française et créer de puissants réseaux d’influence” (Idem,

p.375). (Na pressa desse vôo rasante e sem escala até a Idade Média não há tempo

sequer para a lembrança do século XVIII...) Enfim, e para fechar (não sem tempo) esse

anedotário, só resta concluir que tanto no “Scandale Jankélévitch” quanto no caso do

livro de Gilbert Joseph foi muito barulho por nada. E em meio a tanto barulho ninguém

atinou com o que realmente faz problema: tendo ou não participado de fato do

movimento de Resistência (aliás é o próprio Sartre quem afirma: “je n’ai fait que porter

quelques valises”, Sit.IX, p.101), nosso autor o converte em teoria. E isso não post-

festum, ou seja, no imediato pós-guerra (quando a teoria sartriana do engajamento já se

Razão e Resistência

365

tornara manifesta), mas no momento em que esse movimento eclode, ou mesmo um

pouco antes. Mais do que isso: tal resultado “realista” é forjado justamente na obra que

mais aparenta sobrevoar a “realidade” da França ocupada. É esse processo

(involuntário) de elaboração filosófica de um Mito coletivo (político e literário) que

realmente conta do ponto de vista do presente trabalho. Se o affaire Jankélévitch tem

algo de interessante é porque, malgrado seu reduzido alcance teórico, não deixa de

evidenciar a relação ambígua, ou mesmo paradoxal, dos intelectuais-resistentes com

EN: por um lado, nunca se cansam de demonstrar admiração por um livro que,

conforme enfatizam, “tornou nosso universo transparente” (mencionamos no capítulo

anterior o impacto que a elaboração filosófica do problema do Outro teve para Jean-

Toussaint Desanti); por outro, no fundo não perdoam o fato de Sartre ter se isolado do

mundo escrevendo uma obra de pura Metafísica, justo quando o mundo pegava fogo e a

tortura corria solta nas prisões da Gestapo. Mas o problema é: se EN estivesse de fato

tão distante daquele mundo, por que “tornou nosso universo transparente”? O que os

intelectuais-resistentes jamais perceberam (e o affaire Jankélévitch é a contraprova

disso: mesmo aqueles que saíram em defesa de Sartre não o fizeram sem deixar escapar

un certain malaise) é que EN só pôde tornar transparente aquele universo porque a

Liberdade que está sendo engendrada no interior de suas análises filosóficas é a mesma

que a Resistência está tentando conquistar na prática. Ao transpor essa experiência

vivida para o plano conceitual, EN ilumina —e justifica— a luta política efetiva pela

liberdade. É como se os Resistentes estivessem à espera dessa justificativa filosófica —

uma prática política por assim dizer à espera de sua teoria, suscitando-a. Indagado por

Michel Contat sobre o efeito da publicação de EN num momento tão crucial da guerra

—”Quel est l’effet de cette date, 1943, sur la lecture d’un traité de philosophie aussi

technique?”—, Jean-Toussaint Desanti responde: “1943, c’est le moment où la guerre

change de sens. La date compte donc en tant que telle. A vrai dire, nous attendions

O MITO DA RESISTÊNCIA

366

L’Être et le Néant. Nous, c’est-à-dire les gens qui gravitaient autour de Sartre, rentré

de captivité en 1941. Nous avions commencé à travailler ensemble dans le groupe

Socialisme et Liberté, et nous savions qu’il se consacrait à une grande entreprise

philosophique. (...) Il y avait donc une attente impatiente. Lorsque le volume a paru, on

s’est précipité dessus. Je me rappelle l’avoir lu d’un trait, en une semaine” (Entrevista,

Le Monde, 2/7/1993; grifos nossos). Uma “espera” que, todavia, não passou de um

pressentimento de que as idéias de EN tinham algo a ver com a experiência vivida —

um pressentimento tão vago quanto inconsciente, pois, como o problema nem sequer

foi formulado teoricamente, o livro não chegou a ser lido nessa chave. Desanti, por

exemplo, na mesma entrevista sobre os 50 anos de EN, limita-se a relatar o que Sartre

lhe disse a respeito da exemplificação usada no livro —“não são exemplos, é a própria

vida”—, sem contudo jamais atinar com a possibilidade de derrubar a muralha —

aparentemente intransponível— que separa os dois níveis que constituem a arquitetura

da obra: o das ilustrações e o das demonstrações ontológicas. Por isso, em vez da

exposição de um momento particular da “vida”, Desanti vê em EN a exposição da

“estrutura universal do viver”: “ce qui est éclairci est la structure universelle du vivre”

(Le Monde, 2/7/1993). 32)”Avec la guerre, la mobilisation, puis surtout le camp de prisonniers, la solidarité

antifasciste devenait une réalité. Dans la pièce (inédite) que Sartre avait écrite pour les

prisonniers du Stalag, Bariona, l’invitation à la résistance était facilement décelable

sous l’habillage de la mythologie chrétienne. Le réalisme politique, c’était d’abord

d’accepter de traiter un sujet (un conte de Noël) qui pût réaliser (...) ‘l’union la plus

large des chrétiens et des incroyants’“ (M.-A. Burnier, Les existentialistes et la

politique, p.20). Nas palavras do próprio Sartre: “A me voir écrire un mystère, certains

ont pu croire que je traversais une crise spirituelle. Non! un même refus du nazisme me

liait aux prêtres prisonniers dans le camp. La Nativité m’avait paru le sujet capable de

Razão e Resistência

367

réaliser l’union la plus large des chrétiens et des incroyants. Et il était convenu que je

dirais ce que je voudrais. Pour moi, l’important dans cette expérience était que,

prisonnier, j’allais pouvoir m’adresser aux autres prisonniers et évoquer nos problèmes

communs. Le texte était plein d’allusions à la situation du moment et parfaitement

claires pour chacun de nous. L’envoyé de Rome à Jérusalem, dans notre esprit, c’était

l’Allemand. Nos gardiens y virent l’Anglais dans ses colonies!” (Sartre, Entrevista,

1968, in Les Ecrits de Sartre, p.373-374). 33)”Je me réfléchissais dans cette guerre qui se réfléchissait en moi et me réfléchissait

son image” (Sartre, Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.10). Naquele “monde

de la guerre”, “tout homme est investi par tous les autres hommes” (Idem, p.29). 34)Não por acaso é justamente Céline que figura como epígrafe da Nausée. Sobre o

“antihumanisme virulent” de Voyage au bout de la nui, cf. M. Contat e M. Rybalka:

“Le Voyage au bout de la nuit est un cri contre la vie considérée comme une

dégueulasserie, son antihumanisme est un humanisme blessé” (in Sartre — Oeuvres

Romanesques, Pléiade, p.1665). A respeito da influência decisiva da revolução literária

de Céline sobre Sartre —uma influência formal, sobretudo, para além das diferenças

ideológicas entre o “anarquismo de direita” do primeiro e o “anarquismo de esquerda”

do segundo (distinção que se tornou obrigatória a partir do momento em que a

radicalização política imposta pela guerra passou a exigir de cada um uma tomada de

posição firme e clara, e sabemos que as “escolhas” de ambos foram opostas)—, Contat

e Rybalka escrevem: “Le vocabulaire de La Nausée est souvent cru et brutal (...). C’est

le vocabulaire d’un intellectuel qui s’exprime simplement, avec une sorte de correction

spontanée, sans faire des phrases, c’est-à-dire sans faire de littérature. Et c’est là sans

doute que se situe la vraie influence de Céline: celui-ci, avec le Voyage au bout de la

nuit et l’extraordinaire liberté de son écriture, a donné à Sartre licence d’oser. Tous les

textes de Sartre précédant La Nausée, y compris la première version de celle-ci, selon

O MITO DA RESISTÊNCIA

368

le témoignage de Simone de Beauvoir, sont extrêmement respectueux d’une certaine

légitimité littéraire qui n’est pas autre que l’écriture du XIXe siècle figée en écriture

scolaire et rehaussée d’afféteries, d’élégances ce qu’on appelle alors le ‘bel écrit’.

La bombe Céline a d’abord et pas seulement sur Sartre un effet de décongestion:

une langue littéraire est donc possible qui ne soit pas la langue du bien dire homologué.

Grâce à Céline tout devient licite, les barrières du lexique autorisé tombent, tous les

mots, même les plus obscènes, reçoivent droit de cité en littérature. Cette soudaine

extension du lexique ouvre du même coup des nouveaux possibles au champ

romanesque lui-même: il est désormais permis de parler de tout, sans périphrases. En

émancipant le lexique, en assouplissant la syntaxe, Céline a permis l’entrée en scène du

corps dans le roman français monopolisé jusque-là par la psychologie. La Nausée doit

à Céline d’avoir pu s’engouffrer derrière lui dans un territoire libéré” (in Sartre —

Oeuvres Romanesques, Pléiade, p.1666). Ainda sobre a “bomba Céline” e seus efeitos

de rebaixamento da língua nobre oficial, isto é, a quebra da monumentalidade do “bel

écrit” da tradição literária vigente, recorde-se o depoimento de Simone de Beauvoir:

“Le livre français qui compta le plus pour nous cette année, ce fut Voyage au bout de

la nuit de Céline. Nous en savions par coeur un tas de passages. Son anarchisme nous

semblait proche du nôtre. Il s’attaquait à la guerre, au colonialisme, à la médiocrité,

aux lieux communs, à la société, dans un style, sur un ton qui nous enchantaient.

Céline avait forgé un instrument nouveau: une écriture aussi vivante que la parole.

Quelle détente, après les phrases marmoréennes de Gide, d’Alain, de Valéry! Sartre en

prit de la graine. Il abandonna définitivement le langage gourmé dont il avait encore

usé dans La Légende de la vérité” (La force de l’âge, p.158). (Mas imediatamente a

autora acrescenta, numa nota: “Mort à crédit nous ouvrit les yeux. Il y a un certain

mépris haineux des petites gens qui est une attitude préfasciste”, p.158.) A

dessublimação do estilo elevado da escrita dita artística (representada por exemplo

Razão e Resistência

369

pelo Irmãos Goncourt), cujo resultado é a passagem, pela via aberta por Céline, das

afetações da língua “nobre” a uma língua viva em que é permitido “falar de tudo” —

uma passagem que dessacraliza o escritor, devolvendo-lhe a condição bem humana de

“homem entre outros”—, é um ponto central de Sartre nos Carnets de la drôle de

guerre: “Ce qui acheva de ligoter Renard, c’est l’idée qu’il était un ‘artiste’. Cette idée

d’artiste venait des Goncourt. (...) Une malédiction blanche, embourgeoisée,

confortable (...). Cette notion d’artiste n’est point seulement la survivance d’un grand

mythe quasi religieux, le mythe romantique du poète; elle est aussi le prisme à travers

lequel une petite société de bourgeois aisés et cultivés, qui écrivent, se voient et se

saisissent comme élite. Elle contient en elle les défauts et les tares de cette société.

Curieuse époque où les écrivains vivent entre eux parce qu’ils ne veulent pas encore se

résigner à être des hommes parmi d’autres” (p.425). 35)Nos Carnets de la drôle de guerre, fazendo um balanço da luta de sua geração

(“Nizan, Aron, moi-même”) contra a tradição espiritualista acadêmica francesa —“les

représentants les plus haïssables de la lâche pensée et du verbalisme”, “cette pensée

grise, ces transmutations, ces évolutions et ces métamorphoses, ces lents frissons”—,

Sartre afirma: “C’est vers ce moment que mon opposition théorique à l’humanisme fut

la plus forte” (pp.284-287, nova edição). Na Nausée, nosso autor não está pois

combatendo o Humanismo de maneira geral, mas certas “categorias sociais” como diz

Simone de Beauvoir. Mesmo porque, conforme sublinha Roquentin, não há um único

humanismo, e os diferentes humanistas “se haïssent tous entre eux: en tant

qu’individus, naturellement — pas en tant qu’hommes. Mais l’Autodidacte l’ignore: il

les a enfermés en lui comme des chats dans un sac de cuir et ils s’entredéchirent sans

qu’il s’en aperçoive” (La Nausée, p.139). É exatamente isso que Jacques Derrida

também ignora quando, misturando, à maneira do Autodidata, num único saco de gatos

o posterior humanismo sartriano e os humanismos em xeque na Nausée, aponta o que

O MITO DA RESISTÊNCIA

370

julga ser uma contradição no pensamento de Sartre: uma filosofia “fundamentalmente

humanista” que, contudo, fez na Nausée uma crítica implacável do humanismo: “Sartre

(...) est aujourd’hui la cible de tous les anti-humanismes — et cela est loin d’être

injustifié dans la mesure où sa philosophie est fondamentalement humaniste et se

donne même expressément pour telle. Sartre a néanmoins, dans La Nausée, fait le

procès le plus implacable, le plus lucide et le plus désespéré de l’humaniste, sinon de

l’humanisme, de la figure en tout cas de l’homme humaniste” (citado em Sartre —

Oeuvres Romanesques, Pléiade, p.1780-1781). É a diferença radical entre esses

humanismos, assim como a dimensão de luta (ideológica) presente na Nausée, que se

esfuma na análise de Derrida. Com isso, Derrida só poderia mesmo reproduzir uma

“falsa imagem” do pensamento sartriano, contra a qual o próprio autor fora no entanto

o primeiro a advertir: “J’ai toujours été constructeur et La Nausée et Le Mur n’ont

donné de moi qu’une image fausse, parce que j’étais obligé d’abord de détruire”

(Carnets de la drôle de guerre, p.280, nova edição). 36)Que será mesclado ao de um certo Marx: “Ainsi n’est-il aucune force mécanique qui

puisse décider de l’Histoire et nous pouvons reprendre, en un autre sens, la fameuse

formule de Marx selon laquelle ‘les hommes sont les auteurs et les acteurs de leur

propre drame’“ (Les carnets de la drôle de guerre, p.361). 37)É justamente a idéia, constitutiva da Nausée, de uma existência absurda e gratuita

(origem da “angústia existencial”) que Sartre, quase no final da guerra, criticará em

Baudelaire (cuja reinvenção sartriana é a nosso ver o provável modelo inspirador da

figura de Roquentin). Tudo se passa como se Sartre, através de Baudelaire, ajustasse

contas com seu próprio pensamento (“j’étais Roquentin”, diz o autor, parodiando

Flaubert, in Les Mots, p.210). Ou melhor, é como se Sartre visse em Baudelaire seu

próprio reflexo, mas numa imagem invertida, que precisa ser destruída. Destruindo

Baudelaire (um dos exemplos da idéia sartriana de “destino de grande homem”, cf. os

Razão e Resistência

371

Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.26), destrói ao mesmo tempo

Roquentin/Sartre. (Aliás, através de Baudelaire, Sartre faz por vezes sua auto-análise.

Um exemplo: “Baudelaire n’avait pu supporter le second mariage de sa mère”, in

Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre, p.87.) São inúmeras as aproximações que

poderiam ser feitas entre Roquentin e Baudelaire (tal como Sartre o descreve, bem

entendido), ou seja, é possível reconhecer Roquentin nas análises sartrianas sobre

Baudelaire: “il s’ennuie,(...) il se sentait un homme de trop” (Baudelaire, p.28-29)” —

“moi aussi j’étais de trop (...), j’étais de trop pour l’éternité”, dizia Roquentin (La

Nausée, p.152). (“Un homme de trop” é exatamente a definição sartriana do intelectual

— cf. “Plaidoyer pour les intellectuels”: “Comment parler, dès lors, d’une fonction de

l’intellectuel: n’est-ce pas plutôt un homme de trop, un produit loupé des classes

moyennes, contraint par ses imperfections de vivre en marge des classes défavorisées

mais sans jamais s’y joindre?”, Sit.VIII, p.426. Cf. também a descrição que Sartre faz

de um de seus personagens intelectuais: “Mathieu avait honte de lui-même, il était de

trop”, L’Age de raison, Pléiade, p.469. Ou ainda as palavras do intelectual Hugo, em

Les mains sales: “Je suis de trop”, p.219. Em 1939, nos Cahiers de la drôle de guerre,

encontramos o seguinte auto-retrato do autor: “vous êtes toujours de trop par rapport

au monde”, p.297, nova edição.) Tanto em Roquentin quanto no Baudelaire de Sartre, a

existência não é senão um longo e tedioso estado de sobrevivência, em nada diferente

da duração de um vegetal, de um mineral, de uma coisa qualquer deste mundo (pois é

mesmo de um estado de coisificação que se trata). (O tema do Tédio, presente em

Baudelaire, e que atravessará a literatura francesa —até justamente o Sartre da

Nausée— é também assunto das análises de nosso autor sobre Mallarmé, de quem

sublinha esta confissão: “Je suis triste et m’ennuie”, in Mallarmé — La lucidité et sa

face d’ombre, p.73.) O que é a Náusea senão a “conscience d’exister non plus en tant

que conscience, mais à la manière des choses” (cf. a análise de F. Jeanson, retomada

O MITO DA RESISTÊNCIA

372

por Alain Renaut em Sartre, le dernier philosophe, p.204)? Mais precisamente, como

sugerimos na nota 36 do Capítulo 3, Parte I, a Náusea é o resultado (ainda passivo, isto

é, antes do voluntarismo sartriano) de um estado de coisificação próprio de uma

consciência mergulhada numa conjuntura histórica em que o curso do tempo parecia

interrompido (“l’être-en-soi est de trop pour l’éternité”, conforme se lê em EN, p.34,

porque está aquém do tempo). Nas palavras de Roquentin: “À présent, je vais faire

comme Anny, je vais me survivre. Manger, dormir. Dormir, manger. Exister lentement,

doucement, comme ces arbres, comme une flaque d’eau, comme la banquette rouge du

tramway” (La Nausée, p.185). Sartre sobre Baudelaire: “il se veut chose au milieu du

monde”; “il ne lui reste plus qu’à se survivre” (Baudelaire, pp.99 e 151). Se Roquentin

e Baudelaire têm horror à natureza é porque cada um deles vê refletida nela sua própria

“existence amorphe et gratuite” — há nesse sentido passagens quase idênticas na

Nausée e em Baudelaire (cotejar por exemplo a p.184 do romance com as pp.99 e 101

do ensaio biográfico; a diferença é que já encontramos, no segundo caso, uma

contraposição entre a “gratuité” da natureza e as cidades, onde a “réalité naturelle”,

“travaillée et passée au rang d’ustensile, perd son injustifiabilité” — “le travail leur a

conféré une fonction et une place dans la hiérarchie humaine”, Baudelaire, p.99). Mais

do que isso: o que ambos vêem na natureza é a imagem de uma época de decadência

(sobre o sentimento de “impotência” vigente na segunda metade do século XIX, após o

massacre de 48, cf. Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre: “A vrai dire cette

impuissance est d’époque”, p.83; sobre a conjuntura de reação política descrita na

Nausée, cf. em particular a mencionada nota 36 do nosso Capítulo 3, Parte I).

Exatamente como Roquentin, Baudelaire é também “l’homme qui se sent un gouffre”

— “il se voit jusqu’au fond du coeur,(...) absurde, inutile, délaissé dans l’isolement le

plus total, supportant seul son propre fardeau, condamné à justifier tout seul son

existence, et s’échappant sans cesse, glissant hors de ses propres mains, (...) jeté hors

Razão e Resistência

373

de lui en une infinie poursuite” (Baudelaire, p.40). A essa vida concebida como puro

“jogo” (Baudelaire, p.30), Sartre contrapõe, agora, o “engagement” (inconcebível aos

olhos do niilismo anárquico de Roquentin — ou niilismo estetizante, haja vista a

solução musical do desfecho; a título de comparação, cf. os “movimentos musicais”

com os quais Malraux fecha L’Espoir). (Serviria também para Roquentin a expressão

“niilismo heróico”, usada por Habermas para definir o pensamento heideggeriano, cf.

Martin Heidegger — L’oeuvre et l’engagement, p.23.) Mas se o absurdo e a “gratuité”

da existência excluem toda perspectiva humanista, no final da Nausée, todavia,

Roquentin entrevê vagamente uma esperança de “salut” através da criação literária (“le

génie est l’issue qu’on invente dans les cas désespérés”, escreve Sartre mais tarde

sobre Jean Genet). Recorde-se que para Baudelaire a poesia (“s’enivrer de poésie”) era

uma alternativa possível “pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos

épaules et vous penche vers la terre” (“Le Spleen de Paris”, Pléiade, p.337). No caso de

Roquentin, mais do que uma alternativa para suportar a duração da existência, a

criação literária aparece como verdadeira salvação, algo que pode efetivamente

“justifier son existence”, redimir “du péché d’exister” (La Nausée, p.209; cf. nos

Carnets de la drôle de guerre a idéia de “salut par l’Art”, em particular as pp.275 e

285-287 da nova edição). (Será preciso esperar o balanço crítico de Les Mots —“la

culture ne sauve rien ni personne”— para desmistificar esse credo literário e colocar as

coisas no seu devido lugar: “je refilai à l’écrivain les pouvoirs sacrés du héros”, p.142;

“je confondis la littérature avec la prière”, p.151; “Militant, je voulus me sauver par les

oeuvres (...). J’ai changé. Je raconterai plus tard quels acides ont rongé les

transparences déformantes qui m’enveloppaient, quand et comment j’ai fait

l’apprentissage de la violence (...). L’illusion rétrospective est en miettes (...).

Longtemps j’ai pris ma plume pour une épée: à présent je connais notre impuissance.

(...) La culture ne sauve rien ni personne”, pp.210, 211, 212.) É portanto na criação

O MITO DA RESISTÊNCIA

374

literária, na forma, não da poesia, como em Baudelaire, mas da prosa (sempre

privilegiada por Sartre), mais precisamente, na forma do romance de aventura (cf. La

Nausée, p.210), que Roquentin vislumbra o “salut” que Sartre verá mais tarde na

Revolução (desenvolveremos o assunto no próximo capítulo). Limitemo-nos por ora a

observar que a leitura sartriana de Baudelaire é por demais marcada por uma

conjuntura de radicalização política (trata-se de um estudo redigido em 1944 — e

considerado mais tarde pelo próprio autor “une étude très insuffisante, extrêmement

mauvaise”, Sit.IX, p.113). Assim como às vésperas da guerra a estilização sartriana do

romance americano (afora Kafka) exprimira uma época de reação política, no final da

guerra, no calor de uma conjuntura de efervescência revolucionária —momento vivido

como um verdadeiro reinício da era das revoluções—, torna-se inaceitável aos olhos de

Sartre (voltados para o futuro luminoso anunciado pela Resistência) o “passéisme” de

Baudelaire (cf. a nota 24 do nosso Capítulo 3, Parte I) — “pour lui, la dimension

principale de la temporalité c’est le passé” (Baudelaire, p.154). É em nome de uma

aposta no futuro (formalização filosófico-literária do ponto de vista da Resistência) que

nosso autor contrapõe tal “passéisme” ao “grand fleuve révolutionnaire” da primeira

metade do século XIX — “l’immense courant d’idées et d’espoirs qui portait les

Français vers le futur”: “pour le prolétariat(...), pour Marx(...), pour Michelet(...),

l’avenir existe, c’est lui qui donne son sens au présent” (Baudelaire, p.153). No centro

dessa crítica sartriana a Baudelaire (e o mesmo se aplica às análises do autor sobre

Mallarmé e Flaubert) está a guinada ideológica de 1848 — “la coupure de 48”, como se

lê em L’Idiot de la famille (vol.III, p.420): “Il y a eu depuis 1794 bien des massacres.

Mais, chaque fois, la bourgeoisie avait pu les dissimuler, conserver sa façade de classe

universelle. (...) En juin 48, les voiles se déchirèrent: la bourgeoisie s’atteignit par un

crime dans sa réalité de classe: elle perdit son universalité pour se définir, dans une

société divisée, par des rapports de force avec les autres classes” (L’Idiot de la famille,

Razão e Resistência

375

vol.III, p.398). (A preocupação com 48 como ponto de clivagem decisivo na história da

cultura moderna —tão decisivo quanto o foi para Lukács, que viu aí, como se sabe, um

divisor de águas entre dois grandes estilos literários, isto é, a passagem da narração

para a descrição, ou do épico para o descritivo nivelador— atravessa a obra de Sartre, e

já se faz sentir vivamente, por exemplo, nos Carnets de de drôle de guerre, cf. em

particular as pp. 34 e 38-39.) Voltemos ao ensaio de 44 sobre Baudelaire, onde a

estilização sartriana realiza um duplo movimento: ao exprimir uma conjuntura histórica

em que a Revolução parecia iminente, faz reaparecer, no fundo desse cenário, o

espectro do “massacre de 48”. Esquematizando: de um lado, “l’immense courant

d’idées et d’espoirs qui portait les Français vers le futur” (e aqui, ao falar do

entusiasmo revolucionário característico da primeira metade do século XIX, Sartre

termina por registrar sua própria hora histórica); do outro, o fantasma da “société

piétinante et funèbre de l’Empire”, p.156 (confundido com os “anos terríveis” da

Ocupação), que nosso autor vê encarnado em Baudelaire — “Il n’a trouvé de repos

qu’à partir de 1852 lorsque le Progrès à son tour est devenu un rêve mort du Passé”

(Baudelaire, p.156). (Note-se que para o imaginário da Resistência a conversão da

“guerre de droite” em “guerre de gauche” realiza um movimento inverso ao de 1848,

isto é, passa da contra-revolução à revolução — em vez de um processo regressivo,

como em 48, acreditava-se numa nova linha revolucionária ascendente.) As análises de

Sartre sobre Baudelaire podem ser mais bem compreendidas no contexto da crítica que

o autor endereça ao conjunto literatura da segunda metade do século XIX, uma crítica

inteiramente norteada pela reviravolta histórica e conceitual de 48, como já

sublinhamos. É o caso por exemplo do estudo sobre Mallarmé, iniciado no final dos

anos 40, onde Sartre faz recair sobre Baudelaire, Flaubert e Mallarmé a pecha comum

de “conservadorismo”: “Réactionnaires sans le savoir, ils chantèrent une sorte de

Terreur blanche; ils partagent, par élégance, la haine que les conservateurs nourrissent

O MITO DA RESISTÊNCIA

376

contre l’espèce humaine” (Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre, p.61). Cada um

à sua maneira, todos eles preferem “la décadence à l’essor” (Idem, p.82). (A respeito

de Flaubert, Sartre vai mais longe com a famosa frase, da “Présentation des Temps

Modernes”, que provocou escândalo: “Je tiens Flaubert et Goncourt pour responsables

de la répression qui suivit la Commune parce qu’ils n’ont pas écrit une ligne pour

l’empêcher”, Sit.II, p.13.) O que une esses três momentos essenciais da literatura do

século XIX, todos eles assombrados pelo fantasma de 48, conforme a crítica sartriana,

é o privilégio do passado — “Aux époques sans avenir, (...) l’invention semble une

pure réminiscence: tout est dit, l’on vient trop tard. (...) On entrevoit chez Mallarmé

une métaphysique pessimiste” (Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre, p.154). Daí

sua “angústia metafísica” (Idem, p.167). E mais: “Qu’est-ce que le temps pour ce

phénix qui renaît de ses cendres et qui se connaît pour la septième réincarnation de

l’administrateur familial? Le présent, c’est l’exil, l’absence de la Mère et la vanité de

Tout (...). Mais l’avenir n’est pas non plus: c’est la résurrection du déjà vécu” (Idem,

p.104-105). Por isso, Mallarmé “prend le point de vue de la Mort. Pour la Mort, tout

est toujours consommé, de toute éternité; demain n’est qu’un mirage; vous le touchez:

c’était hier. (...) Le temps est un songe. Un cauchemar. Il échappe à l’Histoire” (Idem,

p.105-106). E Sartre acrescenta: “Il va nier le Monde” (p.115). É justamente por tomar

“o ponto de vista da Morte” que Mallarmé pode ser aproximado de Heidegger: “Avec

Mallarmé naît un homme nouveau, réflexif et critique, tragique, dont la ligne de vie est

un déclin. Ce personnage, dont l’être-pour-l’échec ne diffère pas essentiellement de

l’être-pour-mourir heideggerien, se projette et se rassemble, se dépasse et se totalise

dans le drame fulgurant de l’incarnation et de la chute, il s’annule et s’exalte en même

temps, bref il se fait exister par la conscience qu’il prend de son impossibilité”

(Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre, p.144-145). Em Mallarmé, vemos

encenado “le drame sacré de l’échec et de la mort” (Idem, p.163) — em sua obra, “le

Razão e Resistência

377

présent se réduit au passé” (Idem, p.164). Recorde-se (cf. nosso Capítulo 3, Parte I)

que Sartre, aproximando Faulkner de Baudelaire, escrevera que em ambos o presente

não é senão o passado que se (re)apresenta. 38)Cf. na Nausée a ênfase na solidão de Roquentin: “Il est vrai que personne, depuis

bien longtemps, ne se soucie plus de l’emploi de mon temps. Quand on vit seul, on ne

sait même plus ce que c’est que raconter: le vraisemblable disparaît en même temps

que les amis. Les événements aussi, on les laisse couler (...). Je suis seul au milieu de

ces voix joyeuses et raisonnables” (Pléiade, p.12-13). Um outro exemplo: “Les gens

qui vivent en société ont appris à se voir, dans les glaces, tels qu’ils apparaissent à

leurs amis. Je n’ai pas d’amis: est-ce pour cela que ma chair est si nue?” (Idem, p.24).

E ainda: “Je suis seul, la plupart des gens sont rentrés dans leurs foyers, ils lisent le

journal du soir en écoutant la T.S.F. Le dimanche qui finit leur a laissé un goût de

cendre et déjà leur pensée se tourne vers le lundi. Mais il n’y a pour moi ni lundi ni

dimanche: il y a des jours qui se poussent en désordre, et puis, tout d’un coup, des

éclairs comme celui-ci” (Idem, p.66). O que remete, mais uma vez, ao já mencionado

problema das relações entre a Náusea e o sentimento de ruptura do curso do tempo. 39)Sobre esse humanismo que nasce de uma situação-limite (momento em que é

exigido de cada um “faire notre métier d’hommes”), note-se o que Sartre escreve

no final da guerra: “Mais il faut parier. La guerre, en mourant, laisse l’homme nu,

sans illusion, abandonné à ses propres forces, ayant enfin compris qu’il n’a plus à

compter que sur lui” (Sartre, “La fin de la guerre”, Sit.III, p.71). E num ensaio

onde faz um balanço dos resultados literários da experiência da guerra, nosso autor

afirma: “La présence constante de la mort, la menace permanente de la torture ont

fait mesurer à des écrivains comme Camus les pouvoirs et les limites de l’homme.

(...) Camus (...) sait qu’un homme ne peut pas beaucoup. Et pourtant c’est cette

contribution infinie de chaque homme à la lutte qui, pour lui, confirme la

O MITO DA RESISTÊNCIA

378

prééminence de l’esprit humain sur le monde ‘absurde’“ — segue-se o exemplo de

La Peste, ainda inédito (Sartre, “Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1919-

1920; artigo publicado originalmente na revista americana Vogue, em julho de

1945, com o título “New Writing in France”). Note-se também o que diz Merleau-

Ponty sobre “o herói contemporâneo”, particularmente nos romances de Malraux,

Hemingway e Saint-Exupéry: “Le héros des contemporains (...) a l’expérience du

hasard, du désordre et de l’échec, de 36, de la Guerre d’Espagne, de juin 40. (...)

Le héros des contemporains, ce n’est pas Lucifer, ce n’est pas même Prométhée,

c’est l’homme” (“Le héros, l’homme”, in Sens et Non-Sens, p.330-331). Cf. o

próprio Saint-Exupéry: “Je crois que la Liberté est celle de l’ascension de

l’Homme. (...) Je combattrai pour l’Homme. Contre ses ennemis” (Pilote de

Guerre, p.217-218). Simone de Beauvoir, por sua vez, referindo-se aos

depoimentos dos que viveram o enorme “sofrimento físico” da guerra, observa: “Il

semble qu’à travers l’horreur et la peur il restait dans cette vie quelque chose

d’humain, une possibilité de liberté et de morale” (Journal de Guerre, p.48). O que

levará a autora a concluir que “il n’y a d’autre réalité que la réalité humaine —

toutes valeurs se fondent en elle” (Idem, p.362). 40)”Ce thème philosophico-moral de la résistance par l’espérance est au coeur de

Bariona (...). L’expérience de Sartre au camp est avant tout celle de la solidarité, celle

d’une vie en commun, au corps à corps perpétuel, dans une sorte de socialité

fusionnelle (...). Sur le plan littéraire, ce sentiment nouveau d’appartenance et de

solidarité se traduit par la priorité qu’il donne alors sur la poursuite du roman à une

entreprise collective, celle du théâtre” (Michel Contat, in Sartre — Œuvres

Romanesques, Pléiade, p.1867).

Razão e Resistência

379

41)Durante a Ocupação, Sartre escreve um artigo cujo título incorpora o do romance de

Malraux: “L’Espoir fait homme”, Les Lettres Françaises, nº 18, juillet 1944, número

clandestino. 42)Ainda mais acentuada pelo viés anarquista e irreverente de nosso ex-Normalien que,

como acabamos de ver, não resistiu à tentação de acrescentar a essa mistura de

mitologia cristã e heroísmo revolucionário uma pitadinha da boa “alegria” trazida

pelo... vinho. — “Je hais le sérieux. (...) C’est pourquoi je souscris entièrement à la

phrase de Schiller: ‘L’homme n’est pleinement homme que lorsqu’il joue’“, sublinha

Sartre nos seus Carnets de la drôle de guerre (pp.578 e 580; nova edição). 43)Reencontraremos essa identificação entre “joie” e Revolução na descrição sartriana

da Insurreição de 44 — um momento de “joie devant l’Apocalypse”. Nesse sentido, cf.

também Camus: “la joie de la délivrance”, “la terreur avait fait son temps” (La Peste,

p.268-269). 44)Por aí já se pode pressentir a importância que o jovem Marx terá para Sartre (nisto

próximo da matriz do chamado “marxismo ocidental”, História e Consciência de

Classe), isto é, a idéia de um sujeito revolucionário capaz de se contrapor à ordem

estabelecida. 45)Não é esse o caso de uma outra geração, a dos marxistas alemães de entre-guerras,

cuja resposta teórica àquela mesma conjuntura histórica é oposta à do Existencialismo

francês, encharcado do Mito da Resistência. Estamos pensando particularmente no que

diz Adorno a respeito do mundo depois de Auschwitz: o indivíduo morreu nos campos

de concentração, onde se expõe “a indiferença pela vida individual a que tende a

história” (“Depois de Auschwitz”, in Dialética Negativa, p.362). Nesse sentido, cf. em

Minima Moralia a idéia de que os campos de concentração evidenciaram o processo de

“dissolução do sujeito”, ou a “era da decadência do indivíduo” (ver em particular as

pp.8-10). Refletindo sobre a “era fascista”, ainda nas Minima Moralia, em 1944,

O MITO DA RESISTÊNCIA

380

Adorno escreve: “o indivíduo enquanto indivíduo, como representante do gênero

humano, perdeu a autonomia através da qual poderia realizar efetivamente o gênero”

(p.31). E acrescenta: “O pensamento de que após esta guerra a vida possa prosseguir

‘normalmente’ ou que a civilização possa ser ‘reconstruída’ —como se a reconstrução

da civilização por si só já não fosse a negação desta— é uma idiotice. Milhões de

judeus foram assassinados, e isso deve ser um mero entreato e não a própria catástrofe.

(...) A lógica da história é tão destrutiva quanto os homens que ela engendra: para onde

quer que tenda sua força de gravidade, ela reproduz o equivalente da calamidade

passada. Normal é a morte” (p.47). Evidentemente, a geração de Sartre nunca pensou

que após aquela guerra a vida pudesse prosseguir “normalmente”. Pelo contrário, o

mito da Resistência, como veremos melhor adiante, está calcado na convicção de que

após a “experiência” da Segunda Guerra tudo seria modificado de forma radical (daí o

“Da Resistência à Revolução”). Mas a diferença fundamental é que essa modificação,

ao invés de ser regida por uma lógica destrutiva, perversa, deveria levar, acreditava-se,

ao florescimento da verdadeira Condição Humana. (“L’état de guerre est devenu mon

état naturel. C’est vraiment une preuve et une manifestation de la liberté, ces

métamorphoses. (...) La guerre (...) met l’homme en face de sa condition humaine et la

lui fait sentir concrètement”, anota Sartre em seus Carnets de la drôle de guerre, nova

edição, p.61-62.) Portanto, se para a geração de Sartre a experiência-limite da

desumanização faz nascer um sujeito heróico, para Adorno, o campo de concentração é

o ponto terminal, onde acaba de morrer o que ainda restara do indivíduo. A

compreensão desse processo de liquidação do indivíduo —resultado da consolidação

do capitalismo, na ótica de Adorno (“fase em que o sujeito capitula diante da

supremacia alienada das coisas”, Minima Moralia, p.65)— escapa, por certo, à

filosofia francesa da existência, cujo diagnóstico da alienação moderna será sempre

truncado. As razões desse diagnóstico truncado? Aqui convém ceder a palavra a

Razão e Resistência

381

Merleau-Ponty: “Il faut dire que l’expérience de la résistance, en faisant croire que la

politique est un rapport d’homme à homme ou de conscience à conscience, favorise nos

illusions de 1939 et masque les vérités que l’occupation nous enseignait par ailleurs,

c’est-à-dire l’incroyable puissance de l’histoire” (“La guerre a eu lieu”, Sens et Non-

Sens, p.267). Sobre a “simplicidade poética do tempo da Resistência” (a expressão é de

Lukács, num dos raros acertos de um livro marcado por equívocos e tropeços, cf.

Existencialismo ou Marxismo?, p.162), é interessante lembrar também a autocrítica de

Simone de Beauvoir: “Ces rêves aimables étaient nés de la résistance; si elle nous avait

révélé l’histoire, elle avait masqué la lutte des classes” (La force des choses, vol.I,

p.19). 46)Aliás, seja dito de passagem, é por essa via —a idéia de um indivíduo atravessado

pela história— que a geração de Sartre tentou se aproximar do marxismo: “Être

marxiste, ce n’est pas renoncer (...) à l’individu pour se confondre avec le prolétariat

mondial. C’est bien rejoindre l’universel, mais sans quitter ce que nous sommes”,

escreve por exemplo Merleau-Ponty (“La Guerre a eu lieu”, Sens et Non-Sens, p.264-

265). 47)Em La Peste, Camus define o narrador do romance como aquele que “devait parler

pour tous”, por todas as vítimas da “Peste” (p.274). 48)Exprimindo originalmente, como se viu, uma determinada situação histórica, ou

melhor, uma determinada figura política, a idéia sartriana de universal singular será

generalizada filosoficamente, tornando-se uma característica da “realidade humana”:

“Il y a donc (...) apparition de l’universel à travers l’individu, ce qui est caractéristique

de la réalité humaine” (Cahiers pour une morale, p.125). Cf. os termos com que

Merleau-Ponty define o existencialismo francês: “Ce qu’on appelle l’existentialisme se

définirait peut-être par l’idée d’une universalité que les hommes affirment ou

O MITO DA RESISTÊNCIA

382

impliquent du seul fait qu’ils sont et au moment même où ils s’opposent”

(“L’Existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens, p.121). 49)”La Résistance (...) avait surtout, à nos yeux, une valeur de symbole(...). Une

rébellion symbolique dans une cité symbolique; seules les tortures étaient vraies”

(Sartre, “Paris sous l’occupation”, Sit.III, p.30). 50)Dessa experiência política virá a idéia sartriana de revolução permanente: “La

révolution permanente de Sartre, qu’elle soit opérée par le Parti ou par la littérature,

c’est toujours un rapport de conscience à conscience” (Merleau-Ponty, Les aventures

de la dialectique, p.230). 51)Esse “alargamento” da noção de indivíduo (e de Cogito) tornar-se-á o núcleo da

Phénoménologie de la Perception de Merleau-Ponty, publicada em 1945. Cf. também a

idéia de “raison élargie” que Merleau-Ponty atribui a Hegel (“L’Existentialisme chez

Hegel”, Sens et Non-Sens, p.109). 52)Recorde-se que no final do primeiro volume da trilogia Les Chemins de la Liberté,

L’Age de raison, o personagem Mathieu entrevê vagamente o “salut” (que Roquentin

vislumbrara na forma ficcional do romance de aventura) no engajamento político, mais

precisamente: “s’engager dans les milices espagnoles” (Pléiade, p.728). É essa

“salvação” que poderia, talvez, redimí-lo de uma existência de “honte” (Idem, p.725),

gratuita, em que tudo é feito “pour rien” (pp.727 e 729; fórmula que reaparece em EN

na análise do sadismo, cf. a p.455), uma existência, enfim, de pura negação: “je n’ai été

que refus et négation” (p.727). 53)Ao fazer “dans l’obscurité du désir, ce que l’histoire attendait et qui devait ensuite

apparaître comme la vérité du temps”, o Resistente evidenciou, para Merleau-Ponty, o

problema das relações entre a lógica e a contingência na História: “La gloire des

résistants comme l’indignité des collaborateurs suppose à la fois la contingence de

l’histoire, sans laquelle il n’y a pas de coupables en politique, et la rationalité de

Razão e Resistência

383

l’histoire, sans laquelle il n’y a que que des fous” (Humanisme et Terreur, p.130). Um

problema que Sartre formula nos seguintes termos: “La guerre: chacun est libre et

pourtant les jeux sont faits” (Le Sursis, Pléiade, p.1025). 54)”La plupart de ceux qui furent torturés n’ont pas parlé. Ainsi, dans l’extrémité de la

souffrance, il y a encore place pour le règne de l’humain”, escreve Sartre num artigo de

1945 (“Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1919-1920). 55)O que aliás só faz confirmar as lições de Kojève: a liberdade pressupõe a servidão —

“L’homme n’atteint son autonomie véritable, sa liberté authentique, qu’après avoir

passé par la Servitude, qu’après avoir surmonté l’angoisse de la mort par le travail

effectué au service d’un autre” (Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, p.32). 56)Daí vem a idéia sartriana do “n’importe qui”, utilizada especialmente para definir o

intelectual — recorde-se por exemplo o famoso final de Les Mots: “Tout un homme,

fait de tous les hommes et qui les vaut tous et que vaut n’importe qui” (p.213). Ainda

sobre a função democratizante (ou socializante) da guerra, note-se o que Sartre escreve

nos seus Carnets de la drôle de guerre: “La guerre est un socialisme. Elle réduit la

propriété individuelle de l’homme à rien et elle la remplace par la propriété collective.

Mes vêtements, ma couche, mes aliments ne m’appartiennent plus, je n’ai plus de

maison. Tout ce dont j’use appartient à la collectivité. Et je ne puis m’y attacher car ce

collectif est, précisément parce qu’il est collectif, impersonnel” (p.22, nova edição).

Por isso a liberdade que brota da experiência da guerra não pode ser “une liberté

bourgeoise, la liberté par l’argent” (Idem, p.21). O que Sartre tem em vista é, por certo,

um tipo muito particular de experiência que aflora na situação-limite da guerra: a da

camaradagem, onde o autor vê o embrião da Resistência. Mas isso não o impede de

registrar a crua realidade dos fatos: “Les bourgeois sont officiers. Les paysans et

beaucoup d’ouvriers sont soldats. (...) La guerre ne détruit pas les classes. Elle les

renforcerait plutôt” (Idem, p.102). Compreende-se pois que a “experiência” à qual

O MITO DA RESISTÊNCIA

384

Sartre se refere nos seus Carnets, no início da guerra, só pode nascer em meio aos

soldados: “Tout ceci n’est vrai que pour le soldat. L’officier n’est qu’un insecte de

proie totalement dépourvu de conscience” (Idem, p.125). Todavia, o movimento de

Resistência, na tentativa de somar esforços na luta contra o nazi-fascismo, terminará

por eclipar essas diferenças de classe social, colocando todos juntos no mesmo barco

— literalmente, como mostrava o cinema feito na época para incitar o espírito de

resistência. Veja-se por exemplo o filme de Michael Curtiz, Passage to Marseille, de

1944, cuja ação se passa quase que inteiramente num navio, onde todos, do mais

humilde controlador da casa de máquinas ao capitão, se igualam na luta dramática (se

não trágica) para fugir das águas da França de Vichy e alcançar as forças da

Resistência francesa na Inglaterra. Nessa aventura da vontade e da coragem só se

distingue quem, com gestos extremos, tenta ultrapassar as fronteiras da condição

humana, ou seja, o herói (Humphrey Bogart, cujo personagem é água no moinho de

Sartre por se tratar de um intelectual). 57)Numa entrevista de 1945, referindo-se à peça que então escrevia, Morts sans

sépulture, Sartre diz o seguinte: “L’action se passe dans un maquis, et la pièce a pour

thème ce que j’appellerai, faute d’un mot meilleur, l’héroïsme. Je m’efforcerai de

montrer ce qu’il y a dans l’héroïsme de total (...). Je m’efforcerai aussi d’élucider le

rapport très complexe qui lie, dans la torture, le bourreau et la victime, le bourreau

ayant besoin de croire à la bassesse de sa victime pour se sentir justifié, la victime,

inversement, ayant besoin de croire à sa dignitié pour n’être pas définitivement vaincue

par son bourreau. La torture, c’est vraiment la lutte à mort des consciences” (Paru,

nº13, dezembro de 1945; entrevista reproduzida integralmente em Sartre — Œuvres

Romanesques, Pléiade, pp.1912-1917). Sobre Morts sans sépulture, cf. o comentário de

Adorno em “Educação após Auschwitz” (in Palavras e Sinais, p.110).

Razão e Resistência

385

58)É interessante observar que no romance de J. Semprun sobre a Resistência, Le Grand

Voyage, reencontramos a mesma idéia, presente em EN, de superioridade do olhar do

oprimido — no caso de Semprun, trata-se da relação entre um resistente preso (prestes

a ser fuzilado) e o opressor nazista (Le Grand Voyage, p.273-274). Mais tarde, Sartre

escreve que é o olhar do “mais desfavorecido” que expõe a verdade do mundo social:

“Regarder l’homme et la société dans leur vérité, c’est-à-dire avec les yeux du plus

défavorisé” (“Les Communistes et la Paix”, in Sit.VI, p.151). 59)O intelectual é aliás pura consciência, isto é, puro Nada (“pour moi, il était pure

conscience et radicale liberté”, diz Simone de Beauvoir a respeito de Sartre, in La force

de l’âge, p.244). Por isso, na ótica sartriana, a matriz do intelectual é o ator (que imita

tudo, assim como o escritor faz pastiche) — cf. a definição de Kean, tal como Sartre o

recria a partir de Alexandre Dumas: “Je ne suis rien (...). Je joue à être ce que je suis”

(Kean, p.75). Sendo Nada (“le néant est la négation comme être”, EN, p.63), o

intelectual é por conseguinte pura negação (inclusive de toda forma de propriedade, o

que faz dele um traidor de sua classe, e o aproxima dos que são esbulhados pelo

processo econômico): “Comment l’appellerez-vous, cet avocat du Diable, sinon un

intellectuel?” (“Des rats et des hommes”, Sit.IV, p.63; grifo do autor). Num outro

registro, cf. o que escreve Paulo Arantes no decorrer de sua análise sobre a

intelligentsia alemã da primeira metade do século XIX: “O que Schlegel soube

reconhecer muito bem no herói dos novos tempos, Hamlet, o mais ilustre ancestral da

‘grande e lamentável família’ dos intelectuais modernos: ‘o fundo íntimo de sua

existência é um nada espantoso’...” (“Origens do Espírito de Contradição Organizado”,

in Manuscrito, vol.VIII, n° 1, abril de 1985, p.67). 60)Aliás, o próprio Kojève ensinara a seus ouvintes (dos quais Merleau-Ponty fora um

dos mais assíduos, como já observamos) que “la réalité, c’est la lutte à mort des

hommes” (cf. V. Descombes, Le Même et l’Autre, p.26-27). Nesse sentido, recorde-se

O MITO DA RESISTÊNCIA

386

algumas passagens das lições de Kojève: “C’est seulement dans et par une telle lutte

[une lutte à mort] que la réalité humaine s’engendre, se constitue, se réalise et se révèle

à elle-même et aux autres. (...) Si la réalité humaine ne peut s’engendrer qu’en tant que

sociale, la société n’est humaine —du moins à son origine— qu’à condition

d’impliquer un élément de Maîtrise et un élément de Servitude (...). Si l’être humain ne

s’engendre que dans et par la lutte qui aboutit à la relation entre Maître et Esclave, la

réalisation et la révélation progressives de cet être ne peuvent, elles aussi, s’effectuer

qu’en fonction de cette relation sociale fondamentale” (Kojève, Introduction à la

lecture de Hegel, pp.14-16). E ainda: “L’Histoire est l’histoire des luttes sanglantes

pour la reconnaissance (guerres, révolutions)...” (Idem, p.55). Ou então: “L’Histoire

exprime la Lutte (de classes) (...). La culture naît de la Lutte et de l’opposition; c’est

dans et par la Lutte (des classes) que la cultute humaine sera réalisée” (Idem, p.126-

127). (Sobre a visão heroicizante do confronto de consciências, presente na

Fenomenologia do Espírito, cf. nosso Capítulo 2, Parte I, em particular a nota 39.) Essa

luta de morte que Kojève realçou na Fenomenologia do Espírito não é senão, como

Sartre dirá mais tarde, a realidade da luta de classes, que só se tornou manifesta em

junho de 1848: “Les journées de Juin 48 représentent l’explosion répressive-

oppressive: la lutte des classes se montre à nu; pour avoir été longtemps dissimulée,

elle révèle avec toute sa brutalité que c’est une lutte à mort” (Critique de la Raison

Dialectique, p.834, nova edição; grifo do autor) — 48 foi, por conseguinte, o momento

em que se “descobriu” “a realidade concreta da luta de classes” (Idem, p.837). O que

no entanto não chega a entrar no esquema de Sartre, e muito menos no de Kojève (e

isto relativiza os termos “materialistas” que Habermas vê na tradução kojeviana da

“intersubjetividade autêntica” de Hegel, cf. Théorie et Pratique, II, p.201), é o

processo objetivo que induz essa “lutte à mort”, mais precisamente, a “história do

pecado original econômico” descrita por Marx (em particular no último capítulo do

Razão e Resistência

387

volume I do Capital, como se sabe à saciedade): os métodos da acumulação primitiva

—que “foram qualquer coisa menos idílicos”— inscritos “nos anais da história com

traços indeléveis de sangue e fogo” (O Capital, vol.I, pp.607-609). 61)Nos Cahiers pour une morale, procurando enfatizar o que chama de “conscience

terroriste de Hegel” (p.417), Sartre retoma várias vezes a fórmula: “chaque conscience

poursuit la mort de l’Autre” (cf. por exemplo a p.443) — “Il y avait lutte chez Hegel

parce qu’il y avait conflit des consciences” (Idem, p.359). Veja-se também o que

escreve Merleau-Ponty em “L’Existentialisme chez Hegel”: “Chaque conscience

poursuit donc la mort de l’autre par qui elle se sent dépossédée de son néant

constitutif” (in Sens et Non-Sens, p.117). Para uma melhor documentação a respeito

dessa releitura da “consciência terrorista de Hegel”, cf. nosso Capítulo 2, Parte I, nota

43. 62)A contraprova está na sequência de EN, os Cahiers pour une morale (um projeto

interrompido por razões que compreenderemos melhor no próximo capítulo), onde,

retomando o problema das relações com o Outro —”découvrir l’autre comme une

liberté en face de ma liberté” (p.283); “la liberté peut être cernée par une autre liberté

qui lui vole son univers” (p.345)—, Sartre intercala exemplos da Resistência entre

citações da Fenomenologia do Espírito (cf. em particular as pp.235-237). Resposta

imediata à primeira publicação dos cursos de Kojève, Introduction à la lecture de

Hegel, em 1947 (até então apenas um fragmento desses cursos havia sido publicado,

em 1939, em Mesures), os Cahiers pour une morale, escritos em 1947-1948, reafirmam

as idéias centrais de EN — a novidade é que agora a âncora filosófica mais submersa

do “ensaio de ontologia fenomenológica” (Kojève, justamente) é afinal trazida à tona.

O eixo em torno do qual giram as anotações dos Cahiers é ainda o mesmo de EN: a

liberdade nasce do fundo de um estado de “asservissement” da liberdade (cf. a

formulação kojeviana dessa idéia na nota 55 deste capítulo): “L’asservissement de la

O MITO DA RESISTÊNCIA

388

liberté est posé comme moyen de libération de cette même liberté” (Cahiers pour une

morale, p.220). E mais: “Le tragique c’est l’affirmation de la liberté dans l’échec total

de la liberté. C’est la découverte de l’échec comme condition de la liberté. (...) La

destruction même est posée dans l’univers humain de la construction et de la liberté.

(...) L’oppression (...) atteint directement la liberté en son coeur. Elle est entrave à la

liberté, mais il faut précisément pour qu’elle le soit qu’elle soit projet de le faire c’est-

à-dire conscience de la liberté de l’autre comme devant être supprimée. Donc elle est

en son fond liberté” (Idem, p.340) — “Seule donc une liberté peut être opprimée. (...)

Pour opprimer une liberté il faut la reconnaître et seule une liberté peut reconnaître en

l’autre une liberté. Mais il faut en même temps la traiter comme objet” (p.341). O outro

aspecto desse mesmo problema é o vínculo, constitutivo de EN, entre liberdade e

fatalidade — a idéia da liberdade como “destino” (cf. nosso Capítulo 2, Parte I, em

particular a Nota 12): “La fin est le destin de la liberté, parce que la liberté pose

l’impossibilité de renoncer à cette fin. Mais comme la liberté a posé cette fin et que

l’opération originelle devait être le dévoilement de la liberté à elle-même comme

puissance créatrice à propos de cette fin, la liberté devient destin pour elle-même,

c’est-à-dire qu’elle se veut à elle-même fatalité. (...) Ainsi ma liberté est destin pour

elle-même à l’occasion de la liberté négative d’un autre” (Cahiers, p.241). Cabe ao

revolucionário (cujo exemplo privilegiado nos Cahiers é o Resistente) a tarefa de

superar o “côté de l’impuissance et du Néant” (p.236) “pour retrouver la liberté comme

soutien du monde et structure de l’Être dans le monde” (p.237) — o que significa

“découvrir que cet ordre inexorable est l’effet concerté d’une volonté libre” (p.237).

Ainda sobre essa “vontade livre”: “Mon impuissance par rapport au cours du monde est

pure impuissance d’extériorité. Si une volonté est présente, je l’intériorise, cette

impuissance, j’en fais le caractère librement consenti de ma personnalité et je la lui

offre” (Idem, p.239). Daí o ativismo, tão próprio da leitura kojeviana da

Razão e Resistência

389

Fenomenologia do Espírito: “Hegel a montré l’esclave prenant conscience de sa liberté

dans le faire” (Cahiers, p.345; grifo do autor). 63)Observe-se que essa é, segundo Kojève, a condição do surgimento da consciência de

si: “L’homme ne ‘s’avère’ humain que s’il risque sa vie (...). C’est dans et par ce risque

que la réalité humaine se crée et se révèle en tant que réalité; c’est dans et par ce risque

qu’elle ‘s’avère, c’est-à-dire se montre, se démontre, se vérifie et fait ses preuves en

tant qu’essentiellement différente de la réalité animale, naturelle. Et c’est pourquoi

parler de l’’origine’ de la Conscience de soi, c’est nécessairement parler du risque de la

vie” (A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, p.14). E ainda: “L’activité en

question implique en elle le risque de la vie propre de celui qui agit” (Idem, p.18). 64)Cf. o já mencionado artigo de Paulo Arantes, “Um Hegel errado, mas vivo”, IDE, n°

21, dezembro de 1991. Sobre o fato de Kojève enxertar figuras da história

contemporânea na construção especulativa hegeliana, veja-se este depoimento de

Caillois, em seu “entretien avec Lapouge”: “Kojève a prononcé une conférence au

Collège, sur Hegel. Cette conférence nous a tous laissés pantois, à la fois à cause de la

puissance intellectuelle de Kojève, et par sa conclusion. Vous vous souvenez que

Hegel parle de l’homme à cheval, qui marque la clôture de l’Histoire et de la

philosophie. Pour Hegel, cet homme était Napoléon. Eh bien! Kojève nous a appris ce

jour-là que Hegel avait vu juste mais qu’il s’était trompé d’un siècle: l’homme de la fin

de l’histoire, ce n’était pas Napoléon mais Staline” (in Le Collège de Sociologie —

1937-1939, p.165). É justamente esse tipo de interpretação que une indissoluvelmente

a Fenomenologia aos problemas do mundo contemporâneo que leva Kojève a uma

inversão espetacular: é a engrenagem especulativa hegeliana que explica o mundo e da

interpretação dessa engrenagem depende o destino do próprio mundo — “Car il se peut

qu’effectivement l’avenir du monde et donc le sens du présent et la signification du

passé, dépendent en dernière analyse de la façon dont on interprète aujourd’hui les

O MITO DA RESISTÊNCIA

390

écrits hégéliens” (A. Kojève, Critique, 1946, nº 2-3, p.366; citado por V. Descombes,

Le Même et L’Autre, p.21). Tal lição de Kojève será devidamente abrandada por

Merleau-Ponty: “On pourrait dire sans paradoxe que donner une interprétation de

Hegel, c’est prendre position sur tous les problèmes philosophiques, politiques et

religieux de notre siècle” (“L’existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens, p.110).

Essa ligeira redução do foco de Kojève não tirará no entanto do centro das análises de

Merleau-Ponty o essencial dos ensinamentos do mestre: “Hegel est à l’origine de tout

ce qui s’est fait de grand en philosophie depuis un siècle, — par exemple du marxisme,

de Nietzsche, de la phénoménologie et de l’existentialisme allemand, de la

psychanalyse” (Sens et Non-Sens, p.109). (Se, para a geração de Merleau-Ponty, Hegel

é o ponto para onde tudo converge, como pretendera Kojève, após o final dos “anos

Sartre”, Hegel se tornará o ponto de onde tudo diverge — nesse sentido, cf. V.

Descombes, Le Même et L’Autre, p.24, que sublinha a seguinte passagem da aula

inaugural de Foucault no Collège de France, em 1970: “Toute notre époque, que ce

soit par la logique ou par l’épistémologie, que ce soit par Marx ou par Nietzsche,

essaie d’échapper à Hegel”. Mas isto já é uma outra conversa.) 65)O que torna ainda mais interessante naquele momento a Fenomenologia do Espírito,

norteada ela própria pelo élan da Revolução Francesa. Com a radicalização do

movimento de Resistência, mais no final da guerra, começa a se tornar hegemônica a

idéia de que aquela era realmente uma “guerre de gauche” e que caminhava “vers une

deuxième Révolution Française” (cf. Henri Michel, Les idées politiques et sociales de

la Résistance, pp.147 e 149). Veja-se por exemplo esta manchete de Francs-Tireurs et

Partisans: “La Patrie en danger — 1792-1943: comme nos grands aïeux les volontaires

de la levée en masse — Parisiens aux armes!” Os poemas escritos por Éluard e Aragon,

entre outros, exprimem esse mesmo estado de espírito: “Entendez, francs-tireurs de

France, L’appel de vos fils enfermés/ Formez vos bataillons, formez..., Assez manger

Razão e Resistência

391

le pain des larmes/ Chaque jour peut être Valmy” (poema assinado por François La

Colère, pseudônimo de Aragon; cf. Annie Cohen-Solal, Sartre, p.260). Daí o título de

um editorial de Combat, em 1944: “La France perdue et retrouvée” — essa França

“perdue et retrouvée” é a França das revoluções (desenvolveremos o assunto no

próximo capítulo). Por isso, num outro editorial, intitulado “Le Temps de la Justice”, o

jornal compara a insurreição parisiense de agosto de 1944 com 1792: “une insurrection

dont l’ampleur rappelle 1792” (Combat, 22/08/1944). Já na conjuntura de radicalização

política que antecede a guerra renasce um vivo interesse pela Revolução Francesa —

cf. nesse sentido o depoimento de Simone de Beauvoir: “Je décidai d’étudier la

Révolution française. À la bibliothèque de Rouen, je compulsai la collection de

documents recueillis par Buchez et Roux, je lus Aulard, Mathiez, je me plongeai dans

l’Histoire de la Révolution de Jaurès. Je trouvai cette exploration passionnante:

soudain les événements opaques qui obstruaient le passé me devenaient intellegibles,

leur enchaînement prenait un sens” (La force de l’âge, p.231). 66)”Cette guerre est une lutte à mort: il s’agit pour les nations de périr ou de survivre”,

escreve por exemplo Raymond Aron (Apud Jean-François Sirinelli, Deux intellectuels

dans le siècle, Sartre et Aron, p.164). 67)Sobre a importância da “descoberta” de Hegel durante aquela conjuntura, cf. o

Journal de Guerre de Simone de Beauvoir, em particular as pp.339 a 347 e 360-361.

No início da guerra, a autora dedica a Hegel suas horas de estudo na Biblioteca

Nacional: “Hegel. J’aborde la Logique. (...) Un tas d’idées inspirées de Hegel et qui

m’aident à accepter sans trouble la situation présente” (Journal de Guerre, p.350). Mas

é o cenário dramático da luta de consciências exposto na Fenomenologia do Espírito

que, uma vez descoberto, irá “servir de base à une vue sociale du monde” (Idem,

p.361). Os resultados teóricos dessa leitura de Hegel já se fazem sentir nas páginas do

mesmo Journal de Guerre: “Je voudrais que mon prochain roman illustre ce rapport à

O MITO DA RESISTÊNCIA

392

autrui dans sa complexité existentielle” (Idem, p.364). Ou então: “Autre aspect de la

conscience d’autrui: en un sens elle est l’ennemi. Mais aussi rien n’a de valeur que par

elle (Hegel). Le seul absolu, c’est la conscience d’autrui, soit incarnée (...), soit niée

indistinctement. (...) Idée profonde de Hegel sur la reconnaissance des conciences les

unes par les autres. Ça pourrait être le thème d’un nouveau roman plus intimement lié

au social que le premier” (Idem, p.365; sublinhado pela autora). Eis como Simone de

Beauvoir resume a idéia básica, ou o “sujet essentiel” (p.366), desse futuro romance:

“le caractère de lutte que comportent les rapports des gens, chacun cherchant à réaliser

son être, (...) chacun combattant et devant combattre pour son être” (Idem, p.367; grifo

da autora). Mas o que dará vida a tal “sujet essentiel” —o esqueleto da Fenomenologia

do Espírito, reconstruído por Kojève— serão figuras extraídas da história imediata. Daí

o primeiro esboço do enredo do romance, ao qual já nos referimos: do êxodo de 1940 à

luta antifascista (Journal de Guerre, p.368). Esse projeto literário, concebido no

Journal de Guerre de Simone de Beauvoir (ao mesmo tempo que o projeto filosófico

de Sartre ia tomando forma nos seus Carnets de Guerre), virá à luz do dia com o nome

de Le Sang des Autres (cuja redação também é simultânea à de EN, convém relembrar)

— um romance onde Hegel, amalgamado a situações colhidas na história presente,

chega a ser assunto de conversas dos personagens (um exemplo: “Le résultat ne se

laisse pas détacher de la lutte qui y conduit. Hegel explique ça si bien. Tu devrais le

lire”, Le sang des autres, p.23-24). O que o romance descreve, através da reciclagem

dos esquemas da teoria hegeliana da intersubjetividade (“Ma vie est justement faite de

mes rapports avec les autres hommes; (...) le monde entier est dans ma vie”, Le sang

des autres, p.156), são momentos do processo de formação do espírito da Resistência.

(Nisto aliás se resume, do ponto de vista deste trabalho, o maior interesse de Le sang

des autres — de resto, uma literatura de tese, indigesta, diga-se de passagem, onde

prevalece o lado mais convencional, e envelhecido, do jargão existencialista.)

Razão e Resistência

393

68)Merleau-Ponty, glosando Hyppolite, resume o “realismo” da filosofia hegeliana nos

seguintes termos: a Fenomenologia do Espírito não é apenas uma “história das idéias”

ou uma mera explicação filosófica das “aventuras da humanidade” — é a “descrição”

do “movimento interno da substância social”, incluindo tanto os costumes, as

instituições jurídicas e as estruturas econômicas quanto as obras de filosofia

(“L’Existentialisme chez Hegel”, Sens et Non-Sens, p.112). Essa “filosofia militante”,

continua Merleau-Ponty, “ne se propose pas d’enchaîner des concepts, mais de révéler

la logique immanente de l’expérience humaine dans tous ses secteurs. Il ne s’agit plus

seulement, comme dans la Critique de la Raison Pure théorique, de savoir à quelle

condition l’expérience scientifique est possible, mais de savoir d’une façon générale

comment est possible l’expérience morale, esthétique, religieuse, de décrire la situation

fondamentale de l’homme en face du monde et en face d’autrui et de comprendre les

religions, les morales, les oeuvres d’art, les systèmes économiques et juridiques comme

autant de manières pour l’homme de fuir les difficultés de sa condition ou de leur faire

face. Ici l’expérience n’est plus seulement comme chez Kant notre contact tout

contemplatif avec le monde sensible, le mot reprend la résonance tragique qu’il a dans

le langage commun quand un homme parle de ce qu’il a vécu. Ce n’est plus

l’expérience de laboratoire, c’est l’épreuve de la vie. Plus précisément, il y a un

existentialisme de Hegel en ce sens que pour lui, l’homme n’est pas d’emblée une

conscience qui possède dans la clarté ses propres pensées, mais une vie donnée à elle-

même qui cherche à se comprendre elle-même. Toute la Phénoménologie de l’Esprit

décrit cet effort que fait l’homme pour se ressaisir” (“L’Existentialisme chez Hegel”,

Sens et Non-Sens, p.112-113). (Ainda sobre esse Hegel “existencialista”, cf. nosso

Capítulo 1, Parte I, nota 3.) Note-se que ao diferenciar Hegel de Kant, salientando, com

muita justeza, a novidade radical da noção hegeliana de experiência (não mais uma

mera contemplação, ou um problema de conhecimento, mas tudo aquilo que se pode

O MITO DA RESISTÊNCIA

394

experimentar na vida social, cultural e política), Merleau-Ponty o faz entretanto de uma

maneira que poderia ser tomada como um sintoma: o do declínio da própria Erfahrung

—uma Bildung que é um processo objetivo, cumulativo, de formação, como se sabe—,

reduzida, no estado atual do mundo contemporâneo (do qual o Existencialismo francês

expõe um momento crucial), à condição de pura “vivência” (o “vécu” de que fala

Merleau-Ponty, uma “experiência” tão trágica quanto imediata). Noutras palavras: ao

tentar reconstituir a idéia hegeliana de experiência, Merleau-Ponty altera (ou reduz)

subrepticiamente seu alcance e, ao fazê-lo, termina por dizer algo sobre o processo

(histórico) de declínio dessa mesma experiência (coletiva). O que remete ao problema

(verdadeiro epicentro do processo de transformação da filosofia sartriana, como

veremos melhor no final deste trabalho) de uma nova forma de “narração” (por assim

dizer) possível nas condições sociais do mundo contemporâneo. 69)Na “resignação” característica da França da “défaite”, Sartre viu a confirmação

histórica concreta dos ensinamentos da Fenomenologia do Espírito, onde se aprende,

conforme lemos nos Cahiers pour une morale, que “la conduite majeure et quasi

institutionnelle de l’opprimé” é “la résignation, qui est complicité radicale avec le

maître” (p.406; grifo do autor). Relendo a Fenomenologia do Espírito, Sartre escreve

ainda nos Cahiers pour une morale: “A vrai dire la résignation est une réponse libre de

l’esclave à une situation limite, dont il ne peut sortir. (...) L’esclave privé de liberté,

réduit à l’état de chose par la volonté de l’Autre, inessentiel, recevant du dehors

l’existence comme un destin, veut tenir de lui-même cette situation qui lui est imposé

pour pouvoir y demeurer humain” (p.407). E acrescenta: “La résignation est le

corrélatif de la morale de la force. L’injustice règne dans ce monde, la force et la

chance règlent les destinés. (...) L’effet de la résignation c’est de maintenir l’ordre de

la servitude. La résignation a sans doute la liberté pour but. Mais le moyen d’atteindre

à cette liberté c’est l’acceptation de l’ordre inhumain de la contrainte. (...) Ce sera une

Razão e Resistência

395

liberté qui reprend à son compte les exigences du maître (...). Ainsi l’homme devient à

lui-même l’impossible. Une des sources du christianisme en effet c’est la résignation”

(Idem, pp.409, 410, 411). Essa longa reflexão sobre a “resignação” termina com a

figura do revolucionário, que surge por oposição ao homem “resignado”: “Plus tard le

résigné haïra le révolutionnaire plus encore que ne le hait le maître” (Idem, p.412). E

mais: “Ainsi dans la résignation l’esclave essayait d’assumer l’impossibilité de

l’humain en revendiquant librement d’être l’homme impossible et en se faisant

complice du maître dans la réification de l’homme. Dans la révolte l’esclave vit

jusqu’au bout l’impossibilité d’être homme et l’assume en tirant la conséquence de

cette impossibilité” (Idem, p.416). Daí a idéia de violência como forma superior à

resignação: “la violence est l’intermédiaire, la médiation, le devenir et, comme telle,

supérieure dans son ambiguïté même à toutes les formes de stoïcisme ou de

résignation” (Idem, p.420). A “revolta” (ou “la négativité de la révolte”, p.417) e a

violência são apresentadas como o “único caminho” —e aqui Sartre, na esteira de

Kojève, já converteu a Fenomenologia do Espírito num ativismo político— para o

escravo que queira realizar a “verdadeira moral humana”: “Reste donc un seul chemin

pour l’esclave, s’il ne veut pas que toutes ses tentatives (qui ne sont d’ailleurs que des

aménagements intérieurs et idéalistes) ne se tournent en complicité de l’entreprise de

déshumanisation de l’homme, c’est le refus concret dans les actes du pouvoir du

maître. (...) La situation veut que la vraie morale humaine prenne naissance dans cet

acte isolé, purement individuel, de violence purement négative. Tentons de le

comprendre dans son ambiguïté et de légitimer cette violence” (Idem, p.412). Todavia,

adverte o autor, a mera “violência terrorista” —que “não suprime a escravidão e a

alienação como fenômenos coletivos”— equivale à resignação: “Il ne faut pas voir, à la

manière hégélienne, dans la violence terroriste un passage vers la libération mais plutôt

une voie sans issue, la découverte unique et individuelle par un sujet, dans le tragique

O MITO DA RESISTÊNCIA

396

et la mort, de sa libre subjectivité. Expérience qui ne peut profiter à personne. Et

comme elle ne supprime pas l’esclavage et l’aliénation comme phénomènes collectifs,

nous la décrivons ici comme une des structures de la servitude au même titre que la

résignation” (Idem, p.420). 70)”Cette liberté n’est cependant qu’une liberté abstraite: l’esclave ne vit pas

effectivement en homme libre, bien qu’il ait une conscience intérieure de sa liberté. Il

n’est libre que par sa pensée et pour sa pensée. Il croit d’abord pouvoir s’en tenir là.

Mais il fait l’expérience que cette attitude n’est pas viable” (A. Kojève, Introduction à

la lecture de Hegel, p.56). Tal abstração advém da ausência de luta efetiva (caso do

estoicismo): “Liberté abstraite, car le stoïcien pense, mais n’agit pas. Son Moi reste un

avec lui-même (...). Il s’oppose au monde, se retire dans la pensée, mais il ne lutte pas

contre ce monde, contre le Maître, pour se faire reconnaître comme libre (en risquant

sa vie). C’est un homme libre, mais abstrait, car il n’est libre que dans la pensée, plus

exactement — dans sa pensée. (...) Stoïcisme = liberté abstraite; indépendance illusoire

du monde” (Idem, 61-62). O mesmo se dá no caso do ceticismo: “Toujours pas de lutte

pour la reconnaissance effective dans le monde réel. Le Stoïcien veut être libre vis-à-

vis du monde (...). Il s’aperçoit que sa liberté est illusoire. Il devient alors Sceptique ou

‘Nihiliste’. (...) Le Sceptique détruit l’être même du monde extérieur, mais seulement

mentalement, pas dans la réalité, activement. Lui non plus n’agit pas. Le Sceptique

réalise l’idéal de la liberté — mentalement. (...) La négation du Sceptique est purement

théorique” (Idem, p.62-63). 71)”La tentative pour réaliser, sur terre, l’idéal chrétien, c’est la Révolution française.

(...) L’Ancien Régime meurt de maladie (...). Cette ‘maladie’, c’est la Propagande de

l’Aufklärung. Maintenant, le cadavre est enterré, c’est le Monde de la Liberté absolue.

(...) Cette idéologie de la Liberté absolue est donc bien ‘le Ciel descendu sur Terre’

dont rêvait la Raison ‘éclairée’. (...) La réalisation de la Liberté absolue se fait par une

Razão e Resistência

397

lutte de Factions. C’est là que l’Esclave (ou le Bourgeois ex-Esclave) enfin se libère,

car c’est là pour lui la Kampf, la Lutte sanglante pour la reconnaissance, qui lui était

nécessaire pour intégrer en son être l’élément de la Maîtrise, de la Liberté” (Kojève,

Introduction à la lecture de Hegel, p.141-143). 72)”A l’origine l’homme se voit opposé au monde extérieur; cette opposition est active”

(A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, p.50; grifos do autor). Eis o que detona

essa “oposição” originária: “A l’encontre de la connaissance qui maintient l’homme

dans une quiétude passive, le Désir le rend in-quiet et le pousse à l’action. Etant née du

Désir, l’action tend à le satisfaire, et elle ne peut le faire que par la ‘négation’ (...).

Ainsi, toute action est ‘négatrice’. Loin de laisser le donné tel qu’il est, l’action le

détruit; sinon dans son être, du moins dans sa forme donneé. Et toute ‘négativité-

négatrice’ par rapport au donné est nécessairement active. (...) Le Moi du Désir est un

vide qui ne reçoit un contenu positif réel que par l’action négatrice qui satisfait le Désir

en détruisant, transformant et ‘assimilant’ le non-Moi désiré. (...) Car le Désir pris en

tant que Désir, c’est-à-dire avant sa satisfaction, n’est en effet qu’un néant révélé,

qu’un vide irréel. (...) Et puisque le Désir se réalise en tant qu’action négatrice du

donné, l’être même de ce Moi sera action” (Idem, p.11-12). E Kojève acrescenta:

“L’homme ‘s’avère’ humain en risquant sa vie pour satisfaire son Désir humain (...).

Tout Désir humain, anthropogène, générateur de la Conscience de soi, de la réalité

humaine, est, en fin de compte, fonction du désir de la ‘reconnaissance’. Et le risque de

la vie par lequel ‘s’avère’ la réalité humaine est un risque en fonction d’un tel Désir.

Parler de l’’origine’ de la Conscience de soi, c’est donc nécessairement parler d’une

lutte à mort en vue de la ‘reconnaissance’“ (Idem, p.14). Ainda sobre o Desejo de

reconhecimento: “La réalité humaine ne se crée, ne se constitue que dans la lutte en

vue de la reconnaissance et par le risque de la vie qu’elle implique. La vérité de

l’homme, ou la révélation de sa réalité, présuppose donc la lutte à mort. (...) L’homme

O MITO DA RESISTÊNCIA

398

n’est humain que dans la mesure où il veut s’imposer à un autre homme, se faire

reconnaître par lui. (...) La lutte pour la reconnaissance ne peut donc se terminer que

par la mort de l’un des adversaires, — ou des deux à la fois” (Idem, p.19-20). Ou

então: “L’homme cherche à être reconnu par les autres: le simple Désir (Begierde)

devient désir de reconnaissance. Cette reconnaissance (Anerkennen) est une action

(Tun), et non pas seulement une connaissance. (...) Il doit engager une lutte pour la

reconnaissance. En risquant ainsi sa vie, il prouve à l’autre qu’il n’est pas un animal”

(Idem, p.52). Daí a seguinte concepção dramática da História: “L’Histoire est l’histoire

des luttes sanglantes pour la reconnaissance (guerres, révolutions)...” (Idem, p.55). 73)”C’est l’Esclave qui deviendra l’homme historique, l’homme véritable: en dernier

lieu — le Philosophe, Hegel, qui comprendra le pourquoi et le comment de la

satisfaction définitive par la reconnaissance mutuelle” (Kojève, Introduction à la

lecture de Hegel, p.54). E mais adiante: “Cette Individualité — c’est l’Intellectuel”

(Idem, p.90); “L’Intellectuel dont parle ici Hegel ne prévoit pas la Révolution, mais

Hegel sait déjà qu’il la prépare. (...) L’Intellectuel, dans et par son Langage, a déjà

dépassé ce monde bourgeois; mais il ne le sait pas” (Idem, p.131). Ou então: “Le

Langage de l’Aufklärung (...) prépare la Révolution effective. (...) Différence entre le

Diderot de l’Aufklärung et son Neveu de Rameau encore purement nihiliste. (...) Le

Neveu de Rameau est à la pointe extrême de l’individualisme: il ne se soucie pas des

autres; Diderot souffre et veut au contraire que tout le monde l’entende. Ainsi, si tout

le monde parle comme le Neveu de Rameau, le monde par cela même sera changé. Le

Neveu de Rameau universalisé, — c’est l’Aufkärung. (...). L’Aufklärung est donc la

propagation (Verbreitung) des idées du Neveu de Rameau, c’est-à-dire déjà une Lutte

pour ces idées, et par conséquent, contre la Foi et son Monde. L’Aufklärung est un

phénomène social” (Idem, p.135). E ainda: “L’Aufklärung est inconsciente de sa

Vérité; — d’où sa platitude et son ridicule. C’est Hegel qui sait qu’elle prépare la

Razão e Resistência

399

Révolution (l’Action); elle-même ne le sait pas et ne le dit donc pas. (...) Mais

l’Aufklärung, après la Révolution française, ressuscite par et dans la Philosophie

hégélienne” (Idem, p.139). 74)Escrevendo sobre a leitura kojeviana de Hegel, Paulo Arantes observa: “A imagem

da dialética hegeliana que Kojève apresentava aos seus ouvintes era tudo menos

pacificadora. (...) A sabedoria final em que se resolve o Saber Absoluto representa

contudo uma espécie de calmaria inesperada e derradeira, o paroxismo da trajetória se

dissolve no ameno sopro utópico do epílogo. Anos depois, Queneau batizou esse

desfecho de Dimanche de la Vie (título de um romance que publicou em 1951),

expressão que foi buscar numa passagem de Hegel sobre a pintura holandesa, onde o

filósofo celebra a reconciliação do espírito moderno com a prosa capitalista do mundo”

(“Um Hegel errado, mas vivo”, IDE, n° 21, p.78). (Eis a passagem de Hegel que serve

de epígrafe ao romance Le dimanche de la vie, de Queneau: “...c’est le dimanche de la

vie, qui nivelle tout et éloigne tout ce qui est mauvais; des hommes doués d’une aussi

bonne humeur ne peuvent être foncièrement mauvais ou vils”.) Sobre a calmaria desse

Domingo da Vida, cf. o que diz Simone de Beauvoir: “Je discutai avec lui [Queneau]

sur ‘la fin de l’histoire’. Le sujet revenait souvent dans les conversations. (...)

Queneau, initié à Hegel par Kojève, pensait qu’un jour tous les individus se

réconcilieraient dans l’unité triomphante de l’Esprit” (La force des choses, p.56-57).

Durante a “drôle de guerre”, Queneau já figurava, junto com Kafka, Gide, Malraux,

Saint-Exupéry e Koestler, entre outros, na lista dos autores mais lidos por Sartre (cf.

Carnets de la drôle de guerre, pp.255 e 622, nova edição). 75)O que Simone de Beauvoir, por exemplo, enaltece em Hegel —”Une idée qui m’a si

fort frappée chez Hegel: l’exigence (...) de liberté de chaque conscience” (Journal de

Guerre, p.361)— é o mesmo que a sua geração enaltece na Resistência.

O MITO DA RESISTÊNCIA

400

76)”La guerre avait opéré en lui [Sartre] une décisive conversion”, afirma Simone de

Beauvoir (La force des choses, p.15). 77)São esses mesmos exemplos literários, Gide e Dostoievski, que encontramos nos

Carnets de la drôle de guerre, quando Sartre, refletindo em setembro de 1939 sobre as

condições “pour être-authentique-dans-cette-guerre”, escreve: “L’authenticité ne peut

être atteinte que dans le désespoir. Peut-être y a-t-il ensuite une sorte de joie calme et

meurtrie, celle dont parlent Gide et Dostoïevsky” (nova edição, p.67). 78)Esse recurso a metáforas de claridade para designar a Revolução (herança da

tradição iluminista, cf. em particular os Ensaios de Filosofia Ilustrada, de Rubens

Rodrigues Torres Filho, especialmente as pp.84-85) está presente desde as primeiras

obras de Sartre. Em Les Mouches, por exemplo, é recorrente a contraposição entre

metáforas de sombra, descrevendo momentos de desesperança (“les mouches” que

tapam a luz), e metáforas de luz, designando a “libération”: “c’est le point du jour;

nous sommes libres” (p.209). Nessa perspectiva, o homem que toma consciência de

um estado de coisas opressivo é aquele que desperta e vê a luz: “comme un homme qui

s’éveille, j’occupe ma place au soleil” (Les Mouches, p.164). Já em Bariona,

contrapondo no mesmo sentido luzes e sombras, Sartre refere-se a “l’Espoir” sempre

através de metáforas de iluminação: “... quand le soleil est présent dans l’air et sur les

visages (...), et qu’on pressent dans la fraîcheur aigre du matin les lourdes promesses

du jour. Dans cette étable un matin se lève...(...) Pour mes hommes, (...)se lève dans

cette étable, à la clarté d’une chandelle, le premier matin du monde” (p.622-623). (Cf.

Malraux: “Il semblait que le combat s’affaiblît avec la nuit — et, absurdement, que ce

jour naissant qui ne montrait pas une seule ombre ennemie apportât leur libération,

comme la nuit avait apporté leur emprisonnement”, La Condition Humaine, p.710.) É

assim que as jornadas revolucionárias, “un 14 juillet à la Bastille” por exemplo, serão

posteriormente descritas por nosso autor como “journées rayonnantes” (Sit.III, p.39).

Razão e Resistência

401

Sobre as metáforas de iluminação que acompanharam a história da Revolução

Francesa, cf. Michelet (ponto de partida das reflexões de Merleau-Ponty sobre a

revolução, nas Aventures de la Dialectique): “Elle [la France] s’avance avec courage

dans ce ténébreux hiver, vers le printemps désiré qui promet la lumière nouvelle. (...)

Rien de plus beau à voir que ce peuple avançant vers la lumière, sans loi, mais se

donnant la main” (Histoire de la Révolution Française, V.1, Pléiade, p.403). E ainda:

“Toute la terre de France devint lumineuse, et ce fut sur chaque point comme un jet

brûlant d’héroïsme, qui perça, et jaillit au ciel” (Idem, V.1, p.1021). Não custa

relembrar também os termos com os quais Hegel saudou a Revolução Francesa: “A

Revolução foi um magnífico alvorecer” (“A Revolução Francesa e suas

consequências”, Filosofia da História Universal, p.400). É justamente através dessa

mesma metáfora de iluminação que a Revolução entra em cena no Prefácio da

Fenomenologia do Espírito: “De resto, não é difícil ver que o nosso tempo é um tempo

de nascimento e passagem para um novo período. (...) Esse lento desmoronar-se, que

não alterava os traços fisionômicos do todo, é interrompido pela aurora que, num

clarão, descobre de uma só vez a estrutura [figura] do novo mundo” (Pensadores,

p.16). Ainda na Fenomenologia do Espírito, a Aufklärung, enquanto superação da

“noite vazia”, aparece como “o dia espiritual do presente” (vol.I, p.154, edição

francesa). Talvez não seja demais recordar que o jovem Marx definiu a Revolução em

curso na Alemanha como o momento —anunciado pelo “canto de galo gaulês”— em

que “a luz do pensamento penetra a fundo no ingênuo terreno popular” (Introdução à

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, p.47). 79)Serviria como uma luva para Sartre o “ideal de uma subjetividade militante” que

Remo Bodei (curiosamente, para dizer o menos) atribui a Adorno e a Habermas: “Em

Habermas, certamente, resiste ainda em forma atenuada o ideal dialético adorniano de

O MITO DA RESISTÊNCIA

402

uma subjetividade militante capaz de resistir à violência e às adulações do existente,

que sabe dizer ‘não’...” (“Estratégias de Individuação”, in Presença, nº8, p.133). 80)Mesmo durante o período mais sombrio da guerra, observa Simone de Beauvoir,

Sartre jamais perdeu seu otimismo: “il affirmait que nos idées, nos espoirs finiraient

par triompher” (La Force de l’âge, p.473). (Cf. o que diz o personagem Hugo, em Les

mains sales: “Il n’y a qu’un seul but: c’est de faire triompher nos idées, toutes nos

idées et rien qu’elles”, p.195.) Nesse sentido, ver o depoimento de Dominique Desanti

sobre o clima que reinava nas reuniões do grupo “Socialisme et Liberté”: “Sartre

triomphait: l’optimisme n’est-il pas toujours récompensé? Agir, n’est-ce pas la forme

privilégiée de la responsabilité humaine? (“Le Sartre que je connais”, in Jeune Afrique,

novembro de 1964, p.28). Mais tarde, no calor de uma “Revolução triunfante” nos

trópicos, Sartre declara: “Pode-se opor ao pensamento conservador [“que comporta

uma concepção pessimista do homem”, e “apresenta aos cubanos sua miséria sob a

forma de um destino”] o otimismo que sabe transformar as condições da vida e que

confia no homem para fazer a história sobre a base das circunstâncias anteriores”

(“Ideologia y Revolución”, texto publicado em Havana num número especial de Lunes

de Revolución, “Sartre visita a Cuba”, n° 51, março de 1960, p.2; inédito na França). 81)”Mais l’introduction de la liberté humaine change tout: c’est l’introduction de

l’imprévisible”, lemos nos Cahiers pour une morale (p.350). 82)Tendo em vista a importância do assunto na obra sartriana, e em particular seus

desdobramentos nos Cahiers pour une morale (sem falar em L’Idiot de la famille, mais

tarde), é decepcionante a pouca atenção (quando não o silêncio) dos comentadores a

respeito dessa nota de EN sobre a “morale de la délivrance et du salut” e a “conversion

radicale”. Marcuse por exemplo, em seu ensaio de 1948 sobre EN, após citar a

passagem que antecede a referida nota, e que com efeito parece indicar a

impossibilidade de “sortir du cercle de l’échec” —”après l’échec de cette tentative, il

Razão e Resistência

403

ne reste plus au pour-soi qu’à rentrer dans le cercle et à se laisser indéfiniment ballotter

de l’une à l’autre des deux attitudes fondamentales” (EN, p.463)—, escreve: “Arrivés à

ce point, l’image de Sisyphe et de sa tâche absurde nous apparaît tout naturellement

comme le symbole véritable de l’existence humaine. Sartre, de son côté, estime le

moment venu d’ajouter dans une note que...” (Marcuse, “L’Existentialisme”, in Culture

et Société, p.227). A frase termina com a citação da nota sobre a “morale de la

délivrance et du salut” e ponto final, ou seja, nem um único comentário a respeito. Só

muito mais tarde, num apêndice de 1968, Marcuse volta à idéia da “morale de la

délivrance et du salut”, mas para contrapor EN aos escritos posteriores de Sartre (“Les

Damnés de la terre”, etc.): “Les écrits et les prises de position de Sartre dans les vingt

dernières années représentent une conversion de ce type” (Idem, p.248). Desta

perspectiva, a “morale de la délivrance et du salut” seria, em EN, apenas uma idéia, ou

melhor, uma nota fora do lugar (exterior ao ponto de vista “pessimista” que norteia a

obra, qual seja, a impossibilidade de romper o “cercle de l’échec”). Gerd Bornheim,

por sua vez, deparando-se, ao longo de sua glosa pontual de EN, com a nota sobre a

“conversion radicale”, observa: “E, no entanto, Sartre como que corrige essas suas

análises ao lhes acrescentar uma observação de pé de página, que não deixa de ser

curiosa” (Sartre, p.107). Segue-se a citação da nota acompanhada do seguinte

comentário: “A frase é perigosa, e emite conceitos que, ao que tudo indica,

dificilmente podem ser conciliados com a derrocada total que marca a

intersubjetividade” (Idem, p.108). Por que a frase é “curiosa”, ou “perigosa”? O leitor

fica sem uma resposta mais precisa, pois Gerd Bornheim simplesmente dá o assunto

por encerrado. A nosso ver, como estamos procurando mostrar, já é o ponto de vista da

Resistência e da Revolução (visto que uma é pensada à luz da outra) que está

pressuposto nessa nota de EN sobre a “morale de la délivrance et du salut” e a

“conversion radicale”. Basta lembrar que a noção de “conversion radicale”

O MITO DA RESISTÊNCIA

404

(fundamental no pensamento de Sartre) vem sempre acompanhada nas análises do autor

(e não apenas nos mencionados exemplos de EN) da idéia de Revolução. Já antes de

EN, em L’Imagination, Sartre vinculara a idéia de revolução (filosófica, no caso) às

idéias de “salto”, “descontinuidade” e “conversão”: “Le passage du plan imaginatif au

plan idéatif s’opère toujours comme un saut: il y a là une discontinuité première qui

implique nécessairement une révolution ou, comme on a continué de dire, une

‘conversion” philosophique’“ (p.15). (Recorde-se que a Revolução aparece no Prefácio

da Fenomenologia do Espírito como “um salto qualitativo” que “interrompe

bruscamente a continuidade de um crescimento apenas quantitativo”, p.12, edição

francesa. Cf. o comentário de Hyppolite: “Dialectique de la croissance quantitative qui

devient altération qualitative — ici dialectique de l’évolution et de la révolution”, p.12,

nota 17.) Mais de uma década após L’Imagination, nos Cahiers pour une morale, é a

idéia de “revolução permanente” de Trotsky que encontraremos como paradigma da

noção sartriana de “conversão”: “La moralité: conversion permanente. Au sens de

Trotsky: révolution permanente” (p.12). (Sobre a importância de Trotsky nos Cahiers

pour une morale, ver em especial as pp. 91 e 167-176 do livro. A esse respeito, cf. o

que diz Simone de Beauvoir: “Nous avions la plus grande estime pour Trotsky, et

l’idée de ‘révolution permanente’ flattait beaucoup plus nos tendances anarchistes que

celle de la construction du socialisme dans un seul pays”, La force de l’âge, p.156.)

Nessa medida, a “conversão”, tomada agora no sentido político e social, “impliquera

non seulement un changement intérieur de moi mais un changement réel de l’autre; en

l’absence de ce changement historique, il n’y a pas de conversion morale absolue”

(Cahiers pour une morale, p.16). E mais adiante, Sartre acrescenta: “La révolution

historique dépend de la conversion morale” (Idem, p.54). É ainda nas páginas dos

Cahiers pour une morale que o autor se refere a EN como “une ontologie d’avant la

conversion”: “Le fait même que L’Être et le Néant est une ontologie d’avant la

Razão e Resistência

405

conversion suppose qu’une conversion est nécessaire” (p.13). EN é, certamente, “une

ontologie d’avant la conversion”. Mas a necessidade dessa “conversão” já está inscrita

lá mesmo, no coração daquele ensaio de ontologia (à revelia do autor, é sempre bom

sublinhar). 83)Outra contraprova é Les Mouches. Numa entrevista a respeito dessa peça, Sartre

retoma a mesma idéia de que a liberdade em questão não é mera “liberté intérieure”, no

sentido de Bergson e, por extensão, no sentido da filosofia na sua acepção tradicional,

metafísica: “Il est évident que le problème ainsi posé ne peut s’accommoder du

principe de la seule liberté intérieure dans laquelle certains philosophes, et non des

moindres, comme Bergson, ont voulu trouver la source de tout affranchissement vis-à-

vis de la destinée. Une telle liberté reste toujours théorique et spirituelle” (Comœdia,

24 de abril de 1943, citado em Les Ecrits de Sartre, p.90). Note-se que Les Mouches é

entendida pelo próprio autor como um apelo à Resistência: “Il fallait alors redresser le

peuple français, lui rendre courage” (discussão sobre Les Mouches em Berlim, 1948, in

Les Ecrits de Sartre, p.90). Donde as palavras do herói da peça, Oreste: “Les hommes

d’Argos sont mes hommes. Il faut que je leur ouvre les yeux” (Les Mouches, p.238).

Sobre a relação entre Les Mouches e a França ocupada, recorde-se também o que diz

Sartre numa outra entrevista: “Pourquoi faire déclamer des Grecs (...) si ce n’est pour

déguiser sa pensée sous un régime fasciste?” (Carrefour, 9 septembre 1944, citado em

Les Ecrits de Sartre, p.90). É que após a dissolução do grupo “Socialisme et Liberté”,

Sartre, segundo Simone de Beauvoir, “s’attela alors opiniâtrement à la pièce qu’il avait

commencée [Les Mouches]: elle représentait l’unique forme de résistance qui lui fût

accessible” (La Force de l’âge, p.514). Nesse sentido, cf. o comentário de M.-A.

Burnier sobre Les Mouches: “La pièce, qui date de 1943, exhortait les Français à se

dégager de leurs remords et à se lancer dans la Résistance. Elle opposait la liberté à

l’ordre. Oreste rêve de libérer sa patrie, opprimée par Égisthe, l’usurpateur, et

O MITO DA RESISTÊNCIA

406

Clytemnestre. Il apprend qu’une liberté sans attache et sans choix n’est que duperie,

que l’Histoire est matérielle et pesante, que pour dévier son cours et marcher vers un

progrès il faut souvent du sang. Il ne peut plus alors se sentir extérieur aux hommes et

à leur histoire: ‘Les Autres deviennent l’indispensable médiation entre lui-même et

lui’. Il tue le tyran et sa complice, délivre donc son peuple” (Les existentialistes et la

politique, p.21). Ver ainda o testemunho de Dominique Desanti: “Dans l’esprit de

Sartre et dans notre esprit Les Mouches c’est définitivement une pièce sur la Résistance

— la résistance d’un être en circonstances contraignantes” (Documentário, “Les

Aventures de la Liberté”, série apresentada por Bernard-Henri Lévy). (Se na França os

contemporâneos de Sartre leram Les Mouches nessa chave diretamente política, na

Alemanha do imediato pós-guerra —e aqui mais uma diferença de fuso intelectual

entre as gerações dos dois lados do Reno— essa dimensão política da peça foi

completamente ignorada, sendo antes destacado, a se considerar o depoimento de

Habermas, seu lado “metafísico”: “Cette pièce devait encore donner lieu à des

interprétations métaphysiques profondes en Allemagne. Mais les autres pièces, par

exemple Huis clos, nous permettaient déjà de percevoir l’homme politique en Sartre”,

“Rencontre de Sartre”, Entrevista concedida por Habermas a Les Temps Modernes, n°

539, junho de 1991, p.154. A respeito dos equívocos da recepção de Les Mouches na

Alemanha, seja dito de passagem que em 1948 os jornais de Berlim, então controlados

pelos soviéticos, protestaram contra o “antihumanismo” e a “difamação da verdadeira

liberdade” presentes na peça, cf. Les Écrits de Sartre, p.190.) Ainda sobre as relações

entre Les Mouches e a Resistência, cf. A. Boschetti (“Bariona, Les Mouches sont des

appels à la résistance”, Sartre et Les Temps Modernes, p.77) e J. Gerassi: “O sentido de

sua peça era louvar e estimular a Resistência” (Sartre — Consciência odiada de seu

século, p.189). Se nos lembrarmos que a redação de Les Mouches —concebida portanto

como “une pièce sous le couvert de laquelle on pourra lancer un mordant pamphlet

Razão e Resistência

407

contre les occupants”, conforme afirma ainda Sartre (entrevista concedida a Pierre

Lorquet, Mondes Nouveaux, 21 de dezembro de 1944, n° 2, p.3)— coincide com a de

EN (“exactement contemporain des Mouches dans l’écriture comme dans l’éclosion”,

escreve Annie Cohen-Solal sobre EN, Sartre, p.252), torna-se especialmente

interessante observar que a figura da liberdade tem uma estrutura idêntica nas duas

obras, ou seja, nasce de um ato de resistência heróica — ato que é recusa dos deuses

em Les Mouches e recusa do status quo, ou “d’un état de choses existant”, em EN. Nos

dois casos, a negação dos deuses é afirmação da liberdade humana: “ma liberté est-elle

choix d’être Dieu” (EN, p.660); “l’homme se perd en tant qu’homme pour que Dieu

naisse” (EN, p.678). E em Les Mouches: “Que m’importe Jupiter? La justice est une

affaire d’hommes, et je n’ai pas besoin d’un Dieu pour me l’enseigner” (p.205). (Cf.

Malraux: “au lieu des dieux, la force humaine en lutte contre la Terre”, La Condition

Humaine, Pléiade, p.755.) Convém ressaltar mais este comentário de Sartre sobre Les

Mouches: “L’homme (...) ne deviendra libre en situation que s’il rétablit la liberté pour

autrui, si son acte a pour conséquence la disparition d’un état de choses existant et le

rétablissement de ce qui devrait être” (Comœdia, 24 de abril de 1943; in Les Ecrits de

Sartre, p.90). É essa mesma exigência de “disparition d’un état de choses” para que se

possa “rétablir la liberté” (ou “reconquérir la liberté”, EN, p.462) que, como vimos,

está no coração de EN: “nous ne pouvons être libres que par rapport à un état de choses

et malgré cet état de choses” (EN, p.542). Um pouco mais tarde, refletindo sobre as

relações entre revolução e liberdade, Sartre retoma nos seguintes termos a crítica de

EN e de Les Mouches à “liberdade interior” (ou “liberdade metafísica”, cf. Sit.III,

p.197): “La liberté stoïcienne, la liberté chrétienne, la liberté bergsonienne, n’ont fait

que consolider ses chaînes en les lui cachant. Elles se réduisaient toutes à une certaine

liberté intérieure que l’homme pourrait conserver en n’importe quelle situation. Cette

liberté intérieure est une pure mystification idéaliste” (“Matérialisme et Révolution”,

O MITO DA RESISTÊNCIA

408

Sit.III, p.196). E em “La responsabilité de l’écrivain” (1946), nosso autor também

contrapõe a “liberdade abstrata” da metafísica —que trata da “liberdade em geral”— à

liberdade concreta, que “se fait au jour le jour et concrètement dans des actions

concrètes” (p. 64-65). As condições de realização dessa “liberdade concreta” são

indicadas nos Cahiers pour une morale: “il ne s’agit pas de réaliser la cité des fins par

une transformation intérieure de la subjectivité mais en changeant l’aspect économique

du monde” (p.178). Sobre a passagem, no interior da obra sartriana, da idéia de “liberté

intérieure” à idéia de uma “liberté pour tous” cf. os “entretiens” de Sartre com Simone

de Beauvoir: “C’est à partir de ce moment-là [la guerre] en somme que vous avez

essayé de concilier la présence d’une liberté intérieure avec l’exigence de la liberté

pour tous les hommes?” Resposta de Sartre: “Oui. Nous étions prisonniers des nazis en

zone occupée. Ma liberté était malgré tout très brimée” (Sartre, in La cérémonie des

adieux, p.504). Simone de Beauvoir insiste: “Comment s’est fait selon vous le passage

de la liberté individuelle à l’idée de liberté sociale?” Resposta: “Je travaillais à ce

moment-là à L’Être et le néant. (...) L’Être et le néant est un ouvrage sur la liberté. (...)

Ce changement est survenu vers 1942-1943” (Idem, p.505). Mas já março de 1940

Sartre anotava em seus Carnets de la drôle de guerre: “Le passage de la liberté absolue

à la liberté désarmée et humaine, (...) s’est opéré cette année” (p.577, nova edição).

Voltando a Les Mouches, cf. o que diz Jameson: “Os heróis sartrianos genuínos são

aqueles que, como Orestes, anseiam pelo irreparável, o ato pelo qual eles se tornarão,

de uma vez para sempre, homens marcados. As Moscas, é claro, termina nesse ponto e

é, de qualquer forma, uma espécie de parábola. De fato, penso que esse é o momento

em que se poderia invocar a noção de realismo desenvolvida por Lukács, bem como

sustentar que a verdade de tal conceito ético pode ser medida pelo grau em que ele se

realiza na obra de arte concreta, através da matérias-primas oferecidas pela realidade

contemporânea” (Marxismo e Forma, p.214-215).

Razão e Resistência

409

84)Seja dito de passagem que esse apelo ao ato decisório, um ato de vontade realizado

por um sujeito livre, reativa, via Kojève, o convite fichteano à liberdade, à escolha de

uma humanidade emancipada. Vale lembrar que Fichte (que, como ninguém ignora,

pretendera fazer a filosofia da Revolução Francesa) é a principal inspiração das

filosofias da Ação desenvolvidas pela esquerda hegeliana (sem falar que a Doutrina da

Ciência é, como tampouco se ignora, o primeiro modelo da Fenomenologia do

Espírito). Eis os termos com que Rubens Rodrigues Torres Filho define a filosofia

fichteana da liberdade: “filosofia total e totalitária, idealismo cujo único conteúdo é a

liberdade” (O Espírito e a Letra, p.21). E ainda: “A doutrina-da-ciência é uma ‘análise

do conceito da liberdade’ precisamente porque põe a liberdade absoluta como seu

fundamento e a radicaliza, mostrando geneticamente que o ser (a finitude inteira) é

também uma ‘análise da liberdade’, para perplexidade do dogmatismo, que queria

apenas a garantia de uma ‘liberdade regional’“ (Idem, p.247). Nas palavras do próprio

Fichte: “Meu sistema é, do começo ao fim, uma análise do conceito da liberdade”

(Apud Rubens R. Torres Filho, O Espírito e a Letra, p.244). (Desta perspectiva,

compreende-se a boutade de G. Lebrun ao definir Fichte como “o mais pré-sartreano

dos clássicos”, in Passeios ao léu, p.130.) Examinando a filosofia clássica alemã, e

referindo-se particularmente a Fichte, Lukács, em História e Consciência de Classe,

enfatiza “a tarefa de encontrar o sujeito da ação, de encontrar e mostrar o sujeito como

produto de cuja ação se possa entender a totalidade concreta da realidade” (História e

Consciência de Classe, p.186). Em Fichte, sublinha Lukács, “trata-se de mostrar o

sujeito da ‘ação’“, como evidencia esta passagem da Doutrina da Ciência: “A filosofia

parte de um fato ou de uma ação, isto é, de uma atividade pura...” (cf. História e

Consciência de Classe, p.169). Sugestivamente, é no decorrer de uma reflexão sobre o

cinema que a filosofia da Ação de Fichte será pela primeira vez (salvo engano)

mencionada por Sartre: “s’il faut des traîtres à cet art viril [le cinéma], il lui faut avant

O MITO DA RESISTÊNCIA

410

tout des héroïnes et des héros; comme dans Fichte le héros pose sa négation, le traître,

mais c’est pour le vaincre” (“Apologie pour le cinéma”, in Écrits de Jeunesse, p.404).

Sobre as relações entre Sartre e Fichte, cf. o que diz Adorno: “A filosofia de Sartre se

estruturou em sua fase mais influente segundo a antiga categoria idealista da livre ação

do sujeito. A objetividade, qualquer que seja, é tão indiferente ao Existencialismo

quanto a Fichte” (Dialética Negativa, p.55). Cf. também Gerd Bornheim: “A afirmação

do em-si, na sua acepção forte, encobre rigorosamente uma posição idealista — que

não deixa de apresentar semelhança ao não-eu de um Fichte” (Sartre, p.178). 85)Já no início da guerra, em meio ao clima de “défaitisme” reinante —o que evidencia

a “impotência” da consciência diante do curso das coisas—, Sartre anota em seus

Carnets: “Nous trouvons à présent la plénitude absurde de l’existence inhumaine

devant la conscience inhumaine et absurde (...) — une réalité-humaine qui vise à se

faire chose et qui purifie par là la conscience transcendantale, tels sont le monde et

l’homme de la guerre. Mais il ne faudrait pas croire que cette réification de l’homme et

cette déshumanisation du monde aboutissent. Elles représentent seulement les

possibilités ultimes et constantes de l’homme en guerre. Il est pour se réifier en face de

la conscience transcendantale, au milieu d’un monde à désorganiser” (Carnets de la

drôle de guerre, nova edição, p.145). 86)Ver o desenvolvimento dessa análise sobre Drieu la Rochelle em “Qu’est-ce que la

littérature?”, Sit.II, em especial a p.228. 87)Essa frase de J. Romains já fora citada por Sartre nos Carnets de la drôle de guerre,

p.28. 88)Comentando essa passagem de EN, Lukács, em Existencialismo ou Marxismo?

(p.98), limita-se a sublinhar o caráter “absurdo” de uma concepção “tão absoluta e

ilimitada” de responsabilidade (assim como de liberdade) — um “absurdo” que seria

mitigado se Lukács tivesse atinado com o sentido profundo de apelo à Resistência

Razão e Resistência

411

presente em EN (mas para isso teria sido necessário expor a estrutura da obra, ao invés

das refutações externas, em nome da ortodoxia soviética, que encontramos em

Existencialismo ou Marxismo?). 89)Cf. a primeira formulação dessa idéia nos Carnets de la drôle de guerre: “Tout ce

qu’elle [la conscience] est, elle se le fait être. Tout ce qui lui arrive doit lui arriver par

elle-même, c’est la loi de sa liberté. Ainsi la première assomption que peut et doit faire

la réalité-humaine en se retournant sur elle-même, c’est l’assomption de sa liberté. Ce

qui peut s’exprimer par cette formule: on n’a jamais d’excuse” (nova edição, p.319-

320; grifos do autor). 90)Ao criticar essas passagens de EN sobre a tortura como sendo mera abstração, velho

“idealismo” e exemplo de um momento em que os “conceitos filosóficos são

rebaixados ao nível da pura e simples ideologia” (“a ideologia da livre concorrência, da

livre iniciativa e das chances iguais para todos”), Marcuse (cf. “L’Existentialisme”,

pp.230-232) —cujo ponto de vista será reiterado por Adorno no ensaio

“Engagement”— deixa escapar o essencial, isto é, que se trata de uma exposição

filosófica do ativismo político da Resistência, e de uma condenação dos atos da

Colaboração (“c’est librement que nous y cédons”, EN, p.582). O que só faz evidenciar

a que ponto Marcuse e Adorno foram cegos, tanto quanto Lukács, para o lado

progressista do Existencialismo francês. Uma cegueira que chega ao paroxismo com as

afirmações de Adorno, tão genéricas e abstratas (algo surpreendente no autor), de que a

obra sartriana é “aceitável para a indústria cultural” e, pior, que muitos de seus

“slogans” poderiam até mesmo ser confundidos com os do fascismo: “Muitos de seus

slogans poderiam tornar-se os chavões de seus inimigos mortais. Que se trata em si de

decisão, seria equiparável até mesmo ao ‘somente a vítima nos liberta’ do nacional-

socialismo; no fascismo da Itália, o dinamismo absoluto de Gentile também profetiza

algo semelhante filosoficamente” (“Engagement”, Notas de Literatura, p.57).

O MITO DA RESISTÊNCIA

412

91)”Sartre (...) approuvait la ligne de Combat au point qu’il en écrivit une fois

l’éditorial”, observa Simone de Beauvoir (La force de choses, vol.I, p.20). 92)O que F. Jameson não consegue ver quando, referindo-se à noção de

responsabilidade em EN, afirma tratar-se de “um conceito relativamente a-histórico”:

“Esta responsabilidade global que, mais do que qualquer outra coisa, foi responsável

pela caracterização de Sartre como jansenista por alguns de seus críticos, era, contudo,

um conceito relativamente a-histórico” (Marxismo e Forma, p.183-184). 93)Nesse sentido, cf. o que diz Merleau-Ponty em defesa do recém-nascido

Existencialismo francês, e referindo-se particularmente a EN: “L’existence au sens

moderne, c’est le mouvement par lequel l’homme est au monde, s’engage dans une

situation physique et sociale qui devient son point de vue sur le monde” (“La Querelle

de l’Existentialisme, Les Temps Modernes, nº 2, novembro de 1945; reproduzido em

Sens et Non-Sens, p.125). 94)Ainda Merleau-Ponty, sobre Pilote de Guerre: “Saint-Exupéry se jette dans sa

mission parce qu’elle est lui-même, la suite de ce qu’il a pensé, voulu et décidé, parce

qu’il ne serait plus rien s’il se dérobait” (“Le héros, l’homme”, Sens et Non-Sens,

p.328). E em Humanisme et Terreur, o homem político é descrito como o herói que,

devido a uma “escolha fundamental”, desafia as “forças exteriores”, enfrentando o

“gênio maligno” de um história diabólica — ele é um personagem do “drama da

responsabilidade histórica”. Fazendo uma analogia entre os Processos de Moscou e a

experiência da Guerra e da Resistência, Merleau-Ponty procura mostrar que Bukharin,

assim como o resistente, é o herói chamado a uma “decisão fundamental”. Através de

Humanisme et Terreur, pode-se perceber que o “trágico” da política surge justamente

quando, no momento oportuno, é preciso decidir qual é a melhor escolha (cf. em

particular a p.160). Esse decisionismo, cuja pedra fundamental vimos assentada em

EN, tornou-se, no imediato pós-guerra, a marca registrada do Existencialismo, tal como

Razão e Resistência

413

é apresentado no manifesto que inaugura a revista Les Temps Modernes: “Bien loin

d’être relativistes, nous affirmons hautement que l’homme est un absolu. Mais il l’est

à son heure, dans son milieu, sur sa terre. Ce qui est absolu, ce que mille ans d’histoire

ne peuvent détruire, c’est cette décision irremplaçable, incomparable, qu’il prend dans

ce moment à propos de ces circonstances” (Sartre, “Présentation des Temps

Modernes”, outubro de 1945; reproduzido em Sit.II, p.15). E mais adiante: “Un homme

n’existe pas à la manière de l’arbre ou du caillou: il faut qu’il se fasse ouvrier.

Totalement conditionné par sa classe, son salaire, la nature de son travail, conditionné

jusqu’à ses sentiments, jusqu’à ses pensées, c’est lui qui décide du sens de sa condition

et de celle de ses camarades, c’est lui qui, librement, donne au prolétariat un avenir

d’humiliation sans trève ou de conquête et de victoire, selon qu’il se choisit résigné ou

révolutionnaire. Et c’est de ce choix qu’il est responsable. Non point libre de ne pas

choisir: il est engagé, il faut parier, l’abstention est un choix. Mais libre pour choisir

d’un même mouvement son destin, le destin de tous les hommes et la valeur qu’il faut

attribuer à l’humanité. Ainsi se choisit-il à la fois ouvrier et homme, tout en conférant

une signification au prolétariat” (Idem, p.27-28). Um decisionismo que atravessa a

obra sartriana (e norteia as análises políticas do autor): “Il faut décider: mais qu’est-ce

que je décide? (...) A quoi bon décider d’être libre?” (L’Age de raison, Pléiade, p.528);

“Il ne s’agit pas de choisir son époque mais de se choisir en elle” (“Qu’est-ce que la

littérature?”, Sit.II, p.265); “Être en situation, selon nous, cela signifie se choisir en

situation” (Réflexions sur la question juive”, p.72). Em 1970, referindo-se ao “combat

héroïque que mènent les Brésiliens”, Sartre afirma: “Cette lutte armée est un choix

inéluctable. (...) On est alors forcément acculé au choix de la lutte armée: résistance,

groupes d’action clandestine, guérilla urbaine et guérilla rurale” (“Le peuple brésilien

sous le feu croisé des bourgeois”, Sit.VIII, p.295-296).

O MITO DA RESISTÊNCIA

414

95)Daí a autocrítica de Sartre às suas primeiras peças: “J’en ai conclu que, dans toute

circonstance, il y avait toujours un choix possible. C’était faux” (Sit.IX, p.100).

Trocando em miúdos: se nosso autor converteu, como diz Adorno, a categoria

kierkegaardiana de decisão em “crença na liberdade absoluta de decisão” (Dialética

Negativa, p.55) é porque generaliza teoricamente a experiência política da Resistência

(e isto Adorno não vê, como já observamos). (Embora Kierkegaard só conte para a

geração de Sartre a partir de sua assimilação pela fenomenologia alemã, como atesta o

depoimento de Simone de Beauvoir sobre o que lhes interessava no início dos anos 30:

“Les premières traductions de Kierkegaard parurent à cette époque: rien ne nous

incitait à les lire et nous les ignorâmes. En revanche, Sartre fut vivement alléché par ce

qu’il entendait dire de la phénoménologie allemande”, La force de l’âge, p.157.) Nesse

sentido, cf. também o que diz Sartre, numa entrevista de 1959, sobre a época da

Resistência: “Le choix alors était facile — même s’il fallait beaucoup de force et de

courage pour s’y tenir. On était pour ou contre les Allemands. C’était noir ou blanc.

Aujourd’hui —et depuis 45— la situation s’est compliquée” (L’Express, 17 de

setembro de 1959; citado em Sartre — Œuvres Romanesques, Pléiade, p.1879). Essa

“complicação” das novas condições sociais no mundo do pós-guerra é, diga-se de

passagem, o calcanhar de Aquiles do Existencialismo francês, demasiado preso à

“simplicidade poética do tempo da Resistência” (para retomar a expressão de Lukács).

Ainda sobre o problema da “escolha” durante a Ocupação, cf. Michel Contat: “...les

problèmes de la liberté ne se posent plus comme sous l’occupation en termes de choix

tranchés: résister ou collaborer, abattre des Allemands au risque de faire fusiller des

otages, parler ou ne pas parler sous la torture, etc.” (Michel Contat, in Sartre —

Œuvres Romanesques, Pléiade, p.1871). Àquela época, acrescenta Contat, tratava-se de

alternativas extremas: “alternative extrême entre la vie et la mort, l’héroïsme ou la

lâcheté” (Idem, p.1871).

Razão e Resistência

415

96)Sabe-se que para Walter Benjamin o herói —”verdadeiro sujeito da modernidade”,

conforme se lê em Charles Baudelaire (p.108)— é justamente aquele capaz de

interromper a marcha do destino (a esse respeito, cf. também Adorno, Quasi una

fantasia, p. 70). Todavia, como bem observou Rainer Rochlitz (“De la philosophie

comme critique littéraire”, in Revue D’Esthétique, número especial sobre Benjamin),

para Benjamin (assim como para Adorno e Brecht) “o heroísmo é sempre suspeito” —

o que o afasta do heroísmo dramático sartriano, próximo de Malraux, conforme

procuramos indicar, e, em certa medida, do jovem Lukács. Sobre a idéia de heroísmo

em Malraux, vale lembrar ainda esta passagem de L’Espoir: “tout problème politique

se résolvait donc pour lui par l’audace et le caractère” (p.31). Ou então: “l’histoire, qui

nous juge et nous jugera, a besoin du courage qui gagne et pas de celui qui console”

(Idem, p.146). Recorde-se também La Condition Humaine: “Je voudrais bien que

quelqu’un pût dire à mon fils, que je suis mort avec courage”, diz um revolucionário

instantes antes de ser fuzilado (Pléiade, p.733). E logo adiante, é a vez do herói Kyo

exprimir seus últimos pensamentos: “Il aurait combattu pour ce qui, de son temps,

aurait été chargé du sens le plus fort et du plus grand espoir; il mourait parmi ceux

avec qui il aurait voulu vivre; il mourait, comme chacun de ces hommes couchés, pour

avoir donné un sens à sa vie. Qu’eût valu une vie pour laquelle il n’eût pas accepté de

mourir? (...) Comment, déjà regardé par la mort, ne pas entendre ce murmure de

sacrifice humain qui lui criait que le cœur viril des hommes est un refuge à morts qui

vaut bien l’esprit? (...) Non, mourir pouvait être un acte exalté, la suprême expression

d’une vie à quoi cette mort ressemblait tant” (La Condition Humaine, p.735). (É ainda

o eco desse heroísmo trágico que ouvimos no Sartre de L’Age de raison: “Je pense

comme toi qu’on n’est pas un homme tant qu’on n’a pas trouvé quelque chose pour

quoi on accepterait de mourir”, afirma o personagem central, Mathieu, Pléiade, p.525.)

No caso do jovem Lukács, a questão do heroísmo é mais complicada: se por um lado o

O MITO DA RESISTÊNCIA

416

autor faz o elogio do herói que sacrifica sua vida, por outro, mostra, nas páginas da

Teoria do Romance, que as noções de herói e de destino foram se tornando

problemáticas na própria evolução da literatura grega. Mais tarde, nos Écrits de

Moscou, Lukács observa que, para Marx, “a Revolução Francesa significa o fim do

período heróico do desenvolvimento burguês” (p.115). (Miguel Abensour ressalta, no

Marx do 18 Brumário, “o contraste entre a era heróica —a era de Roma ressuscitada,

dos colossos antediluvianos—, que corresponde à instauração da sociedade burguesa

moderna, e a prosa da sociedade burguesa instituída”, “O heroísmo e o enigma do

revolucionário”, Tempo e História, p.216.) Talvez não seja demais lembrar que Hegel,

na Estética, já demonstrara a impossibilidade do herói na sociedade capitalista — no

capitalismo (mundo prosaico) não haveria mais lugar para heróis. (Daí a pergunta de

Marx: “Aquiles será compatível com a pólvora e o chumbo?”, Para a Crítica da

Economia Política, p.130.) Como afirma Lukács, Hegel vincula —”certamente sem

descobrir os fundamentos econômicos objetivos”— “o período dos heróis” a “um

período em que a vida da sociedade ainda não era dominada por forças sociais que

conquistaram sua autonomia e sua independência com relação aos homens” (“Le

Roman”, Écrits de Moscou, p.83). E acrescenta: “Já na Fenomenologia do Espírito,

Hegel representou a oposição entre o período heróico e o período prosaico da

burguesia, a oposição entre a atividade humana espontânea e a dominação de forças

sociais abstratas” (Idem, p.91). (Em Cervantes, por exemplo, já temos o herói em

paródia. Sobre a luta, em Cervantes, “contra o ‘heroísmo’ da cavalaria” e, ao mesmo

tempo, contra “a prosa da sociedade burguesa”, cf. Lukács, “Le Roman”, Écrits de

Moscou, p.104.) Roberto Schwarz, comentando o livro de Robert Kurz, O colapso da

modernização, define o 18 Brumário como a “epopéia de Marx, que saudava a abertura

de um ciclo”: “o aprofundamento da luta de classes, onde as sucessivas derrotas do

jovem proletariado são outros tantos anúncios de seu reerguimento mais consciente e

Razão e Resistência

417

colossal” (Cebrap, nº 37, p.135-136). Contudo, observa que na época contemporânea

—“período da mercadoria e concorrência globais”— “o antagonismo da classe perdeu

a virtualidade da solução, e com ela a substância heróica. A dinâmica e a unidade são

ditadas pela mercadoria fetichizada —o anti-herói absoluto— cujo processo infernal

escapa ao entendimento de burguesia e proletariado, que enquanto tais não o

enfrentam” (Idem, p.136). É o espectro dessa “substância heróica” —já invocado por

Malraux, no embalo da guerra civil espanhola— que, como veremos melhor logo

adiante, ressurge em meio à “epopéia” contemporânea contra o nazi-fascismo. Um

ressurgimento que, aliás, fora prenunciado filosoficamente com a triunfal entrada em

cena, às vésperas da guerra, de um Hegel ornado com as vestes da tradição

revolucionária clássica, e apresentando-se com a linguagem emprestada do heroísmo

dramático dessa tradição: “L’être négatif est essentiellement fini. On ne peut être

homme que si l’on peut mourir. Mais il faut mourir en homme pour être un homme. La

mort doit être librement acceptée; ce doit être une mort violente dans un combat, et non

le résultat d’un processus physiologique” (Kojève, Introduction à la lecture de Hegel,

p.52). 97)Função que Sartre atribui também ao intelectual — o que pressupõe a idéia (que

deita raízes no primeiro Heidegger) do intelectual como herói. É justamente como um

universal singular que o autor define, em “Qu’est-ce que la littérature?”, a “literatura

concreta”: “elle manifeste le mieux la subjectivité de la personne lorsqu’elle traduit le

plus profondément les exigences collectives et réciproquement, sa fonction est

d’exprimer l’universel concret à l’universel concret et sa fin est d’en appeler à la

liberté des hommes pour qu’ils réalisent et maintiennent le règne de la liberté humaine”

(Sit. II, p.197). Donde elogio feito ao escritor que “exprimerait les espoirs et les

colères de tous les hommes” — ”c’est vraiment sur la totalité humaine que l’écrivain

aurait à écrire” (Sit.II, p.194).

O MITO DA RESISTÊNCIA

418

98)Em “Le héros, l’homme”, Merleau-Ponty afirma que, para Hegel, heróis (“les

individus de l’histoire mondiale”) são aqueles que “accomplissent et conquièrent pour

les autres ce qui apparaîtra ensuite comme le seul avenir possible et le sens même de

l’histoire” (in Sens et Non-Sens, p.324). E cita Hegel: “C’étaient des gens qui pensaient

et savaient ce qui est nécessaire et dont le moment est venu, à savoir la vérité de leur

temps et de leur monde...” (Idem, p.325). 99)Vimos no Capítulo 2 da Primeira Parte o quanto o Sein-zum-Tode heideggeriano é

inaceitável aos olhos do ativismo (kojeviano) de EN. Nesse sentido, cf. também o que

diz Merleau-Ponty: “Il y a deux méditations de la mort. L’une, pathétique et

complaisante, qui bute sur notre fin (...) — l’autre, sèche et résolue, qui assume la

mort, en fait une conscience plus aiguë de la vie” (“L’Existentialisme chez Hegel”,

Sens et Non-Sens, p.116-117). Esta última Merleau-Ponty, na esteira de Hyppolite, vê

no Hegel da Fenomenologia do Espírito: “Le Hegel de la Phénoménologie (...) nous

fait comprendre la fonction qu’exerce la conscience de la mort dans l’avènement de

l’humanité. (...) Il faut, comme dit Hegel, intérioriser la mort. Il faut rendre concret

l’universel abstrait qui s’est d’abord opposé à la vie” (Idem, p.117). E mais adiante, o

autor resume da seguinte maneira o ponto de vista de Hyppolite: “Tandis que chez

Heidegger, nous sommes pour la mort et la conscience de la mort demeure le

fondement de la philosophie comme de la conduite, Hegel transmue la mort en vie

supérieur. Il passe donc de l’individu à l’histoire” (Idem, p.120). Todavia, acrescenta

Merleau-Ponty, o existencialismo francês, em vez de contrapor Hegel a Heidegger,

aspira antes a uma síntese entre ambos: “Je vis donc, non pour mourir, mais à jamais,

et de la même façon, non pour moi seul, mais avec les autres” (Idem, p.121). Mas é na

“literatura de situações extremas”, mais do que na filosofia, que Merleau-Ponty vai

encontrar o exemplo da verdadeira “superação da morte”, através da figura do “herói

dos contemporâneos”, tal como aparece em Hemingway, Malraux e Saint-Exupéry: “Le

Razão e Resistência

419

héros des contemporains n’est ni celui de Hegel, ni celui de Nietzsche. (...) Ce qui

permet au héros de se sacrifier, ce n’est pas, comme chez Nietzsche, la fascination de

la mort, ni, comme chez Hegel, la certitude d’accomplir ce que l’histoire veut, c’est la

fidélité au mouvement naturel qui nous jette vers les choses et les autres. Ce que

j’aime, disait Saint-Exupéry, ce n’est pas la mort, c’est la vie” (“Le héros, l’homme”,

Sens et Non-Sens, p.326, 329-330). (Ainda que, na ótica de Merleau-Ponty, como

vimos acima, o “herói dos contemporâneos” se caracterize pela sua comunhão com a

História, conforme o critério hegeliano.) A esse respeito, rever em Malraux a idéia —

mencionada em nossa Primeira Parte, e que reencontramos em EN— de escapar ao

“destino” por um ato de vontade heróica: “Mais il y aura encore des êtres humains qui

accepteront de perdre leur vie pour l’idée qu’ils se font de ce que peuvent être les

hommes. (...) Disons si vous voulez ce par quoi l’homme échappe au destin...”

(Adaptação teatral de La Condition Humaine, Pléiade, p.770). E em La Condition

Humaine, Malraux descreve o mundo do revolucionário —esse mundo onde impera “le

sens heroïque”— como “le monde de la décision et de la mort” (Pléiade, pp.554 e 557).

Mais no final do livro, lemos: “Une civilisation se transforme, lorsque son élément le

plus douloureux —l’humiliation chez l’esclave, le travail chez l’ouvrier moderne—

devient tout à coup une valeur, lorsqu’il ne s’agit plus d’échapper à cette humiliation,

mais d’en attendre son salut” (Idem, p.755). Tal decisionismo dramático atravessa

também as páginas L’Espoir: “Jamais il n’avait ressenti à ce point qu’il fallait choisir

entre la victoire et la pitié” (p.332). E ainda: “Il y a quelque chose qui reste à mes yeux

passablement mystérieux: l’instant où un homme décide de prendre un fusil” (L’Espoir,

p.426). Segundo Sartre, o que aproxima Malraux da literatura diretamente marcada

pela experiência política da Resistência (Camus, por exemplo) é o fato de ele ter

mostrado “l’homme affrontant la mort et la torture jusqu’aux limites de son courage et

de sa liberté” (Sartre, “Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1920).

O MITO DA RESISTÊNCIA

420

100)Daí a função que Sartre passará a atribuir ao socialismo: “mettre chacun en

possession de son destin” (“Deux appels à l’opinion internationale”, programa

radiofônico da série La Tribune des Temps Modernes, da qual daremos notícia mais

adiante). Cf. o que escreve Camus durante a insurreição parisiense de 1944: “Nous

savons que nous sommes une nation majeure. Et une nation majeure prend toutes ses

destinées en mains, dans l’orgueil comme dans la honte” (Combat, 23 de agosto de

1944). 101)Eis como Sartre, relendo Heidegger no início da guerra, justifica a necessidade de

uma “reflexão sobre morte”: trata-se de uma resposta teórica à atualidade política —

“Je songe aussi, pour servir l’actualité, à des ‘Réflexions sur la mort’ que j’aimerais

donner à la N.R.F. Les accepterez-vous?” (Carta a Paulhan, setembro de 1939, in

Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.48; grifo nosso). Tal “reflexão sobre a

morte”, nascida do propósito deliberado de “servir l’actualité” (o que já diz muito

sobre a natureza dessa filosofia em gestação), só virá à luz do dia um pouco mais tarde,

em EN (cf. em particular o já mencionado tópico “Ma mort”, pp.589-612). 102)Cf. o sentimento de “maladie” vigente na conjuntura do início da guerra (cuja

expressão literária mais significativa será La Peste, de Camus): “La guerre est une

maladie que je porte en moi depuis le 2 Septembre”, anota Sartre, em outubro de 1939,

nos seus Carnets de la drôle de guerre (nova edição, p.98). 103)Sobre o decisionismo heideggeriano, cf. o Capítulo 2 da Primeira Parte. 104)A expressão é de Sartre, cf. Les carnets de la drôle de guerre, p.358. As reflexões

de Aron sobre a História adquirem importância especial para a geração de Sartre,

conforme lemos nas páginas desses Carnets de la drôle de guerre, a partir do momento

em que a guerra se torna iminente: “exactement depuis Septembre 38” — “nous

voulions saisir les causes de la guerre menaçante” (pp.357 e 359). (Todavia, já nesses

Carnets, Sartre afirma que o relativismo histórico de Aron é “idealista”, cf.

Razão e Resistência

421

particularmente a p.251, além das pp. 227 e 357-360.) Sobre o “decisionismo” de

Weber, note-se esta passagem de Aron: “Contre cette rationalisation de l’existence,

Weber n’apercevait de salut que dans la liberté irrationnelle, totale, qu’il revendiquait.

(...) La liberté que revendiquait Weber, devait s’exercer dans la vie politique contre la

cristallisation bureaucratique, dans la vie morale par la décision, par le choix enfin des

valeurs suprêmes” (La sociologie allemande contemporaine, p.125). Cf. também

Merleau-Ponty, este sim (muito mais do que Sartre) discípulo confesso do relativismo

histórico weberiano, ou melhor, da “formule de Weber reprise par Aron”: “Il y a donc

chez Weber l’esquisse d’une phénoménologie des choix historiques qui découvre les

noyaux intelligibles autour desquels s’installe l’infini détail des faits. Cette

phénoménologie reste bien différente de celle de Hegel, parce que le sens qu’elle

trouve aux faits historiques est vacillant et toujours menacé” (Résumes de Cours, p.51).

Nas Aventures de la Dialectique —livro que termina com a apologia do “liberalismo

heróico” weberiano— Merleau-Ponty escreve, justamente no capítulo sobre Weber:

“Nous constatons en nous un pouvoir de choix radical par lequel nous donnons sens à

notre vie” (p.35). (Cf. a origem dessa idéia de “heroísmo” weberiano em Aron, La

sociologie allemande contemporaine, p.109-110.) Mesmo à época em que tentou se

aproximar de Marx, Merleau-Ponty já procurava enquadrar “a interpretação marxista

da história” no ângulo de uma “moral heróica que prescreve aos homens pôr em jogo

suas próprias vidas” (cf. “Autour du Marxisme”, Sens et Non-Sens, p.189). 105)Um exorcismo que Habermas não poderia mesmo ter compreendido —”le fait que

Heidegger ait pris ses distances vis-à-vis de Sartre dans sa Lettre sur l’humanisme m’a

paru plutôt étrange” (“Rencontre de Sartre”, Entrevista, Les Temps Modernes, nº 539,

junho de 1991, p.154-155)—, pois sua leitura de EN é a nosso ver marcada por uma

série de equívocos: “Selon mon point de vue actuel, Sartre n’a pas mieux résolu le

problème de l’intersubjectivité dans L’Être et le Néant que Husserl dans Méditations

O MITO DA RESISTÊNCIA

422

cartésiennes ou Heidegger dans Être et Temps. (...) Sous les prémisses de la

philosophie transcendantale, on ne peut pas comprendre des notions telles que l’entente

(Verständigung), la communauté divisée intersubjectivement, la tradition ou le monde

dans lequel nous vivons (Lebenswelt). (...) Le mot ‘intersubjectivité’ est resté pour

Sartre, même plus tard, quelque chose de secondaire, voire un mot étranger” (Idem,

p.155). Ora, o fato de Sartre não ter feito uma “teoria da ação comunicativa”, nos

moldes do último Habermas, não significa que EN seja uma obra presa às “premissas

da filosofia transcendental” — se essa forma filosófica tradicional já não mais

caracterizava Ser e Tempo (pelo contrário, o que o primeiro Heidegger fez foi antes

uma destranscendentalização da filosofia, e isto o próprio Habermas mostrara num

texto anterior, por nós já mencionado, cf. a nota 13 do Preâmbulo e a nota 17 do

Capítulo 1 da Primeira Parte), falar em “filosofia transcendental” no caso de EN é

incorrer num contra-senso ainda maior (só superado pelo disparate da afirmação de que

o problema da intersubjetividade é “secundário” na obra sartriana). Tantos equívocos

juntos vêm aliás sinalizar um outro desencontro entre as gerações dos dois lados do

Reno: se na França a pacífica fenomenologia alemã renasce sob o signo da Resistência

e, com sinal trocado, torna-se uma filosofia da revolução, na Alemanha EN é lido como

uma “filosofia transcendental” — o que permitiu, no pós-guerra, mais um qüiproquó, a

saber, que toda uma geração de intelectuais alemães relesse Ser e Tempo a partir de EN

(e não o contrário), conforme o testemunho do mesmo Habermas: “La lecture de L’Être

et le Néant a été très importante pour ma compréhension de Être et Temps. Sartre nous

a aidés à lire le premier Heidegger, le seul que nous connaissions à l’époque, dans

l’esprit de la philosophie transcendantale. On pouvait lire ce livre à la manière

sartrienne comme exprimant une philosophie humaniste de la liberté” (Idem, p.154). 106)Mais tarde, em meio ao entusiasmo da “lua de mel da Revolução” em Cuba, Sartre

apregoará a “dissolução da fenomenologia na dialética” (“Una entrevista con los

Razão e Resistência

423

escritores cubanos”, in Lunes de Revolución, n° 51, março de 1960, p.20-21; número

especial intitulado “Sartre visita a Cuba”; inédito na França). 107)Daí vem a posterior definição sartriana do revolucionário como pura ação: “il est

action, sujet de l’histoire” (“Les communistes et la paix”, Sit.VI, p.185). E mais

adiante, o autor acrescenta: “Le prolétariat se fait lui-même par son action quotidienne;

il n’est qu’en acte, il est acte; s’il cesse d’agir, il se décompose” (Idem, p. 207). Nessa

perspectiva, conforme já líamos em “Matérialisme et Révolution”, o “ato

revolucionário” só pode ser um “ato livre” de vontade — “l’acte libre par excellence”

(in Sit.III, p.216). Em Sartre, observa Merleau-Ponty, “l’histoire est action” (Les

aventures de la dialectique, p.223). Referindo-se particularmente a “Les communistes

et la paix”, Merleau-Ponty sublinha que, na ótica sartriana, “l’histoire est volontaire ou

nulle” — “c’est toute l’histoire qui devient un duel sans pause” (Idem, p.166). E mais:

“pour lui [Sartre], le sens profond du communisme est bien au-delà des illusions

dialectiques, dans la volonté catégorique de faire être ce qui n’a jamais été” (Idem,

p.147); “de même la volonté révolutionnaire est dans le militant plus lui-même que sa

vie” (p.158); “l’histoire et la révolution ne sont qu’un pacte des pensées ou des

volontés” (p.233); “la classe prolétaire n’existe que par la volonté pure de quelques-

uns” (p.276). É esse ativismo sem limites que Merleau-Ponty, com razão, critica nos

seguintes termos: “on ne peut sans folie entreprendre de recréer l’histoire par le seul

moyen de l’action pure” (Idem, p.210) — “l’action pure est un mythe” (p.294). Donde

a “leitura mitológica” da história (Idem, p.215), presente em “Les communistes et la

paix”: “Sartre fonde justement l’action communiste en refusant toute productivité à

l’histoire, en faisant d’elle, pour ce qu’elle a de connaissable, le résultat immédiat de

nos volontés, et pour le reste une opacité impénétrable” (Idem, p.145); “les ouvriers

s’inventent militants et l’action pure vient au monde” (p.166); “Sartre est obligé

O MITO DA RESISTÊNCIA

424

d’imputer tous les faits historiques aux actions datées et signées des personnes, et

conduit à une sorte de mythologie méthodique” (p.210). 108)Sobre tal chamada à insurreição —apresentada como condição da “verdadeira

liberdade”— ver ainda o que diz este editorial de um outro número clandestino de Les

Lettres Françaises: “Les victoires soviétiques ayant modifié profondément le rapport

des forces en présence, l’insurrection des peuples d’Europe est devenu l’un des

élèments décisifs de la guerre. Cette insurrection nationale qui, seule, peut nous

restituer notre liberté véritable, c’est le but vers lequel tend, depuis sa fondation, le 30

mai 1941, notre Front National pour la Libération et l’Indépendance de la France” (nº

16, maio de 1944). Daí a palavra de ordem, que retoma espírito de 1789: “Aux armes,

citoyens!” (Les Lettres Françaises, nº 16, maio de 1944, arquivo da Biblioteca

Nacional de Paris, Publicações clandestinas durante a Ocupação). 109)O que explica a recepção de EN junto a intelectuais da Resistência, os quais, como

já observamos, por assim dizer pressentem que o livro lhes falava de perto. Nesse

particular, vale para EN o que Sartre escreveu, em “Matérialisme et Révolution”, sobre

o surgimento de uma idéia de maneira geral: “Une idée surgit parce qu’elle est

nécessaire à l’accomplissement d’une nouvelle tâche. C’est-à-dire que la tâche, avant

même d’être accomplie, appelle l’idée qui en ‘facilitera’ l’accomplissement. L’idée est

postulée, suscitée par un vide qu’elle vient combler” (in Sit.III, p.159). Voltaremos a

essa idéia de antecipação. Limitemo-nos por enquanto a sublinhar o seguinte registro

(literário) de Camus, em La Peste: os homens daquela época conseguem, do fundo de

“leur désespoir”, vislumbrar “l’espoir”, ou melhor, “le chemin du salut” (que

“transforme le mal en bien”, La Peste, p.94) — “dans le voile opaque qui, depuis des

mois, entourait la ville, une déchirure venait de se faire” (Idem, p.245), permitindo,

antecipadamente, entrever “la voie de l’espérance” (p.245); “on peut dire d’ailleurs

qu’à partir du moment où le plus infime espoir devint possible pour la population, le

Razão e Resistência

425

règne effectif de la peste fut terminé” (p.245). É assim que “dans tous les esprits déjà,

avec des semaines d’avance, les trains partaient en sifflant sur des voies sans fin et les

navires sillonnaient des mers lumineuses”, pondo fim àquele “long temps de

claustration et d’abattement” (La Peste, pp.246 e 248). Essa antecipação “dans tous les

esprits” da “délivrance qui approchait” (Idem, p.248) permite também que, ainda “dans

la ténèbre, un peu à l’aveuglette”, se recomece a “marcher en avant” (p.206),

acelerando, nessa medida, “le mouvement de guérison” (p.251): “on pouvait entendre

la rumeur lointaine de la liberté” (p.277). Mas é justamente o fato de essa liberdade

ainda estar distante do presente que explica o amálgama de “souffrance” e de “joie”:

“ils ne pouvaient séparer cette souffrance, qui se prolongeait derrière les volets, de la

joie qui emplissait les rues un peu plus loin” (Idem, p.248). 110)Cf. em L’Âge de raison a identificação entre liberdade e ação: “Est-ce que c’est ça

la liberté? Il a agi; à présent, il ne peut plus revenir en arrière”, diz o personagem

central, Mathieu (Pléiade, p.727; grifo do autor). 111)Em EN, observa F. Jameson, “a origem mesma da ação (como o nada num domínio

do ser puro, isto é, dos objetos) foi encontrada na estrutura do ser humano como

lacuna, como privação ontológica, que tenta se satisfazer a si mesma, se realizar e,

desse modo, atingir algum estado ontológico definitivo” (Marxismo e Forma, p.180). E

acrescenta: na Critique de la Raison Dialectique, “o novo termo para esse processo é

necessidade, que é pouco mais do que uma tradução da terminologia ontológica para

uma terminologia de natureza relativamente mais sócio-econômica. Ambas são, é claro,

hegelianas na origem: não apenas a noção da ação, experiência e trabalho humanos

como negação do ser existente, é caracteristicamente hegeliana; mas ainda para ele a

própria história da auto-consciência começa precisamente com o desejo (Begierde) que

funciona, contudo, de maneira bastante semelhante à idéia sartriana de necessidade”

(Idem, p.180-181). Cotejando ainda a Critique de la Raison Dialectique com EN, mas

O MITO DA RESISTÊNCIA

426

agora num outro texto, Jameson escreve: “A melhor maneira de entender ‘totalização’

em Sartre é através de sua função — envolver e encontrar o mínimo denominador

comum para as atividades humanas conjugadas da percepção e da ação. Um Sartre mais

jovem já tinha juntado essas atividades através de uma de suas características

dominantes, sob o conceito de negação ou nadificação (néantisation), uma vez que para

ele tanto a percepção quanto a ação eram formas através das quais o mundo realmente

existente era negado e transformado em alguma outra coisa (...). ‘Nadificação’ já era

assim para o Sartre de O ser e o nada um conceito totalizante, por assim dizer, uma vez

que buscava unir os domínios relacionados da contemplação e da ação com vistas a

dissolver o primeiro no segundo” (Pós-Modernismo, A lógica cultural do capitalismo

tardio, p.334). 112)Em abril de 1940, numa carta a Simone de Beauvoir, Sartre faz o seguinte registro

das idéias que então elaborava nos seus Carnets de guerre (os manuscritos desse

período nunca foram encontrados): “Ce soir j’ai encore un peu travaillé. Figurez-vous

que j’ai un peu repris le carnet. Uniquement pour marquer, à propos de Malraux, que

les catégories cardinales de l’éthique sont: être, avoir et faire. Et que des liens

dialectiques subtiles existent entre eux” (Lettres au Castor, vol.II, p.192; grifos do

autor). 113)Cf. as memórias de Dominique Desanti, Les Staliniens — Une expérience politique,

p.12. 114)Em Humanisme et Terreur, Merleau-Ponty apresenta o Existencialismo como uma

filosofia que “nous éveille à l’importance de l’événement et de l’action” (p. 310). A

forma que essa filosofia da Ação tomou no pós-guerra é o lado mais conhecido (e

popularizado) do Existencialismo: “Il n’y a de réalité que dans l’action” (Sartre,

L’Existentialisme est un humanisme, p.55) — “En ce sens, l’existentialisme est un

optimisme, une doctrine d’action” (Idem, p.95). O mesmo ativismo norteia “Qu’est-ce

Razão e Resistência

427

que la littérature?”: “le monde réel ne se révèle qu’à l’action” (Sit.II, p.109). Daí a

idéia sartriana de liberatura como “action de dévoilement”. Numa “sociedade em

revolução permanente”, lemos ainda em “Qu’est-ce que la littérature?”, “l’oeuvre

écrite peut être une condition essentielle de l’action” (Sit.II, p.196-197) — “L’écrivain

‘engagé’ sait que la parole est action: il sait que dévoiler c’est changer” (Idem, p.73);

“La force d’un écrivain réside dans son action directe sur le public” (Idem, p.223); “Il

faut que nous plongions les choses dans l’action...” (Idem, p.264). Já num ensaio de

1945, Sartre afirmava: “écrire est un acte”; “écrire est une action” (“Nouvelle

Littérature en France”, Pléiade, pp.1919-1920). Daí também o privilégio da literatura

de “situações extremas”, definida por nosso autor como uma “littérature volontaire,

décidée” (“Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1921). Alguns anos depois, num

estudo sobre Mallarmé, Sartre reitera: “La création n’est pas une pensée, c’est un acte”

(Mallarmé — La lucidité et sa face d’ombre, p.157). O desenvolvimento dessa “teoria

da ação” é o grande propósito dos Cahiers pour une morale: “La morale c’est la

théorie de l’action” (p.24) — “L’action (...) c’est donc une catégorie essentielle de

l’Histoire” (Idem, p.56); “l’homme ne peut pas être passif” (Idem, p.274); “la Totalité

est immanence et activité” (Idem, p.281). Mais tarde, na Conferência de Araraquara,

Sartre define a filosofia como “uma ação sobre o mundo, no sentido de que nasce da

ação e prepara a ação” (p.25). Mas aqui já estamos no coração da idéia norteadora de

Questions de méthode (uma idéia aliás muito próxima do Lukács de História e

Consciência de Classe): “Toute philosophie est pratique, même celle qui paraît la plus

contemplative; la méthode est une arme sociale et politique” (Questions de méthode, in

Critique de la Raison Dialectique, p. 20, nova edição). Esse caminho, qual seja, o que

privilegia a Ação, só poderia levar, segundo Sartre, ao marxismo — lido como um

ativismo, bem entendido, e a partir da ótica do jovem Marx (idéia de sujeito

revolucionário): “Marx (...) marque la priorité de l’action (travail et praxis sociale) sur

O MITO DA RESISTÊNCIA

428

le Savoir” (Questions de méthode, in Critique de la Raison Dialectique, p. 26, nova

edição). Sobre esse Marx ativista, cf. também os Cahiers pour une morale: “L’homme

se crée par l’intermédiaire de son action sur le monde. Voilà ce qu’on peut concéder

aux marxistes” (p.129). (A título de comparação, cf. Marcuse, para quem, na

perspectiva do “materialismo histórico”, “la Révolution reste un acte libre, en dépit de

toutes les déterminations matérielles”, in Culture et Société, p.241.) Note-se ainda o

que Sartre diz na Conferência de Araraquara: “A idéia de realização da Filosofia é

uma noção marxista. Verificou-se no século XIX um fato capital: a Filosofia tornou-se

prática. (...) Não apenas uma visão do mundo, (...) mas, ao mesmo tempo, uma ação

sobre o mundo, no sentido de que nasce da ação e prepara a ação” (p.25). Escusado

lembrar que a idéia de realização da filosofia não é exatamente uma noção marxista:

foi desenvolvida pelo jovem Marx, em particular na Introdução à Crítica da Filosofia

do Direito de Hegel, a partir dos “jovens hegelianos” (embora no prefácio à Crítica da

Economia Política Marx tenha se referido à Introdução à Crítica da Filosofia do

Direito de Hegel como o marco decisivo que serviu de “fio condutor” para seu ponto

de vista materialista posterior, Pensadores, p.135). 115)Cf. o que diz um dos personagens de Malraux em La Condition Humaine: se “le

fond de l’homme est l’angoisse, la conscience de sa propre fatalité”, essa “angoisse”

pode ser superada pela ação revolucionária: “heureusement on peut agir” (Pléiade,

p.620). O que vemos em EN é justamente um processo de sublimação da angústia

existencial através de uma filosofia da Ação heróica. (“A consciência heróica é uma

consciência feliz”, escreve M. Abensour em “O heroísmo e o enigma do

revolucionário”, in Tempo e História, p.226.) Nesse sentido, é oportuno mencionar a

seguinte passagem de uma carta de Sartre, de janeiro de 1940: “la philosophie que je

fais (...) a un rôle dans ma vie qui est de me protéger contre les mélancolies, morosités

et tristesses de la guerre” (Lettres au Castor, vol.II, p.39). Um pouco mais tarde,

Razão e Resistência

429

escrevendo sobre Baudelaire, Sartre fala em superação da alienação por meio de um

“libre projet” (o que sua geração, aliás, viu na experiência da Resistência): “Il tente

d’intérioriser cette chose qu’il est pour autrui en en faisant un libre projet de soi-

même” (Baudelaire, p.64). Voltando a Malraux: “Les hommes unis à la fois par

l’espoir et par l’action accèdent (....) à des domaines auxquels ils n’accéderaient pas

seuls” (L’Espoir, p.279). Daí a idéia de Apocalipse revolucionário como “goût de

l’action”: “Apocalypse — espoir, (...) goût de l’action” (L’Espoir, p.334) — “Toute la

fin du XIXe siècle a été passive; la nouvelle Europe semble bien se construire sur

l’acte” (Idem, p.337). Ainda L’Espoir: “Mais, en ce moment, c’est d’action qu’il

s’agit” (p.427). E em La Condition Humaine, lemos: “L’acte, l’acte seul justifie la vie

(...). Que penserions-nous si l’on nous parlait d’un grand peintre qui ne fait pas de

tableaux? Un homme est la somme de ses actes, de ce qu’il a fait, de ce qu’il peut

faire” (Pléiade, p.679). 116)Ainda a esse respeito, cf. o romance de Simone de Beauvoir, Le sang des autres:

“Je suis cette angoisse qui existe seule, malgré moi; je me confonds avec cette

existence aveugle” (p.172). Cf. também a retomada, feita por Sartre nos Carnets de la

drôle de guerre, do problema da angústia em Kierkegaard (em particular a p.344 da

nova edição). 117)Cf. Kojève: “Dans l’angoisse mortelle, l’homme prend conscience de sa réalité”

(Introduction à la lecture de Hegel, p.29). Ou então: “C’est par le travail effectué dans

l’angoisse au service du Maître que l’Esclave se libère de l’angoisse qui l’asservissait

au Maître” (Idem, p.31). E ainda: “L’Angoisse est donc une condition nécessaire de la

libération; mais insuffisante. Ce n’est qu’une possibilité de la liberté” (Idem, p.55).

Para que essa possibilidade se torne efetiva é preciso, já o sabemos, o ato decisório. 118)Sobre esse sentimento do “absurdo” do mundo — próprio da conjuntura do início

da guerra, como vimos no capítulo anterior —, note-se ainda o que Sartre escreve em

O MITO DA RESISTÊNCIA

430

setembro de 1939: “Une vie qui a perdu son sens et reste en suspens dans l’absurde”

(Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.31). 119)Nessa superação do “pessimismo clássico” decorrente da idéia de “absurdo”, Sartre

vê a diferença fundamental entre sua obra e a de Camus (o que levará à ruptura entre os

dois escritores nos anos 50 — “Vous avez fait votre Thermidor”, afirma Sartre naquela

ocasião, quando vê apagar-se definitivamente dos escritos de Camus a herança

“gauchiste” da Resistência, cf. “Réponse à Albert Camus”, Sit.IV, p.91). Numa

entrevista de 45, contrapondo-se justamente ao “pessimisme classique” de Camus,

nosso autor enfatiza: “Ce que j’appelle absurde est chose très différente; c’est la

contingence universelle de l’être, qui est, mais qui n’est pas le fondement de son être”

(Paru, nº 13, dezembro de 1945; entrevista reproduzida integralmente em Sartre —

Œuvres Romanesques, Pléiade, pp.1916). (Uma diferença mal compreendida pelos

contemporâneos, como atesta por exemplo esta passagem de uma carta de um discípulo

de André Gide, transcrita por este último em seu Journal: “L’effrayante absurdité des

Sartre et des Camus n’a rien résolu et n’ouvre que des horizons de suicide”, in Journal,

1939-1949, Pléiade, p.294.) E nos Cahiers pour une morale lemos: “Le monde n’est

pas pur chaos de fait — il ne s’agit pas de l’absurde de Camus —, c’est une

organisation et un ordre qui a sa valeur” (p.411). Todavia, comparado com um outro

tipo de pessimismo próprio da literatura francesa, o “pessimismo sombrio” de Camus é

considerado “sain et constructif”, como diz Sartre num artigo de 1945: “Ainsi les livres

de Camus sont profondément sombres. Ses premiers ouvrages, L’Etranger et Le Mythe

de Sisyphe, sont conçus pour montrer que le monde est ‘absurde’ et que l’homme est

délaissé, sans secours, sans espoir, sans Dieu. (...) Mais au rebours du désespoir de

Blanchot, le pessimisme de Camus et de ses camarades est sain et constructif”

(“Nouvelle Littérature en France”, Pléiade, p.1919).

Razão e Resistência

431

120)”Comprendre le marxisme c’était d’abord comprendre la lutte des classes. Tout ça,

c’est venu après 45” (Sartre par lui-même — Un Film, p.98). 121)”Bien que je répète et croie parfois que la guerre abrutit celui qui l’a faite, je ne

puis m’empêcher de la considérer comme source d’expérience, donc pour moi de

progrès. (...) C’est ce que le Castor appelle mon optimisme” (Carnets de la drôle de

guerre, nova edição, p.26). 122)Examinando, no caso de Flaubert, o problema da relação entre o público e a obra

(um problema central no pensamento sartriano desde Qu’est-ce que la littérature?:

“Pour qui écrit-on?”, e que atravessará L’Idiot de la famille), Sartre afirma: “Ces

jeunes lecteurs sont défaitistes: ils demandent à leurs écrivains de montrer que l’action

est impossible, pour effacer leur honte d’avoir raté leur Révolution” (Questions de

Méthode, p.59). Ora, poder-se-ia dizer exatamente o contrário do público do

Existencialismo no imediato pós-guerra. Naquela França que acabara de festejar sua

Libertação —a França da “fraternité virile” (para relembrar a expressão em voga na

época)— não há lugar para “défaitistes”: o que se reclama é antes uma filosofia da

ação, do engajamento e da liberdade heróica para “apagar” a “honte” da “défaite” de

1940. Recorde-se o balanço do próprio Sartre sobre aquele período: “On voulait

oublier une écrasante défaite” (“Qu’est-ce qu’un Collaborateur?”, Sit.III, p.54). Ou

então: “Cette honte secrète qui nous tourmentait, je l’ai connue d’abord en captivité.

(...) La France avait honte devant le monde. (...) Les meilleurs d’entre nous sont entrés

dans la Résistance par besoin de racheter le pays. Les autres demeuraient hésitants et

mal à l’aise” (“Paris sous l’Occupation”, Sit.III, p.34-35); “chaque battement de notre

coeur nous enfonçait dans une culpabilité dont nous avions horreur” (Idem, p.37-38);

“ce que notre pays a souffert, dans la honte, dans l’horreur et dans la colère...” (Idem,

p.42). (Por isso, as “barricadas da liberdade” de 44, para usar a expressão de Camus,

foram vividas como uma verdadeira redenção da “honte” de 40, mas isso veremos no

O MITO DA RESISTÊNCIA

432

próximo capítulo.) A obra sartriana, encarnando teoricamente o mito da Resistência

(“cette inquiétude virile dont parle l’existentialisme”, A propos de l’existentialisme,

p.656), servirá, para toda uma geração intelectual, de antídoto contra o “chagrin” do

“effondrement”. (Cf. no final de Humanisme et Terreur, de Merleau-Ponty, a idéia do

Existencialismo como uma filosofia que “cura”, p.308-309.) É todo o “charme” da

tradição revolucionária francesa (para falar nos termos de Engels) que será doravante

solenemente restituído ao público na forma de uma filosofia do “Apocalipse”. O leitor

de Sartre no pós-guerra, esse leitor que viveu a “resignação” de 1940 e, logo depois,

experimentou L’Espoir da Resistência, reconhece no movimento do pensamento

sartriano —da idéia de uma angústia que paralisia, expressão de uma subjetividade

impotente, ao ativismo de um sujeito heróico— o movimento de sua própria história

social e política. Do “chagrin” do “effondrement” ao “salut” através da Ação

revolucionária (que “cura”): eis o que a obra sartriana oferece, no final da guerra, a um

leitor “dégoûté” dos horrores da Ocupação (“honteux et dégoûtés de la honte”, Sit.III,

p.35) e inebriado pelo élan da “liberté renaissante” (outra expressão recorrente na

imprensa da época). Tendo antecipado, particularmente em EN, o vocabulário de uma

época impulsionada pela “puissance de la liberté” (a definição é do próprio Sartre), a

filosofia sartriana pôde encontrar no pós-guerra o estrondoso sucesso que conheceu. (A

ser assim, as razões desse sucesso não podem ser imputadas apenas, como quer G.

Lebrun, à “prosa vibrante” de Sartre, cf. Passeios ao léu, p.127, e muito menos —mas

aqui já se trata de um outro equívoco grosseiro de Lukács— ao que Existencialismo ou

Marxismo? rotula de “niilismo radical”: “é precisamente esse niilismo radical, esse

abandono consequente do conhecimento mais importante, que é a explicação do

enorme sucesso do existencialismo”, p.85.) Se 1940 “pesa como um pesadelo” sobre

uma França que, em 1945, tenta reencontrar seu lugar no mundo, a filosofia sartriana

da liberdade heróica permite exorcizar esse pesadelo e reconquistar L’Espoir. Nesse

Razão e Resistência

433

caso, valeria para EN o que Sartre disse sobre Le Traître, de André Gorz: “C’est le

premier livre d’après la défaite; les Vampires ont fait un carnage mémorable, ils ont

écrasé l’espoir; il faut reprendre souffle, faire le mort quelque temps et puis se lever,

abandonner le charnier, recommencer tout, inventer un espoir neuf, tenter de vivre”

(“Des rats et des hommes”, Sit.IV, p.81). Daí os termos do manifesto de lançamento da

revista Les Temps Modernes: “Notre préoccupation doit être de servir la littérature en

lui infusant un sang nouveau, tout autant que de servir la collectivité en essayant de lui

donner la littérature qui lui convient” (“Présentation des Temps Modernes”, Sit.II,

p.30). Naquele momento em que toda neutralidade, ou toda “atitude contemplativa”,

tornou-se inaceitável, a obra sartriana, evoluindo para um pensamento do engajamento,

dá efetivamente à coletividade o que lhe convém. Veja-se o que escreve A. Boschetti

sobre o sucesso do Existencialismo no pós-guerra: “Ainsi Sartre pourra apparaître à la

fin de la guerre comme la personnification la plus parfaite de l’ordre nouveau qui

remplace l’ordre bouleversé de l’avant-guerre” (Sartre et Les Temps Modernes, p.39).

Com efeito, o Existencialismo é a expressão maior do grande realinhamento ideológico

que caracteriza o pós-guerra francês. (Ainda sobre o sucesso de Sartre no imediato pós-

guerra, cf. a versão burlesca de Boris Vian em L’écume des jours, capítulo XXVIII.) É

desta perspectiva que Merleau-Ponty, na linha direta de Hegel (e do jovem Marx:

“donner au monde conscience de sa conscience”; “nous ne nous présentons pas alors

au monde en doctrinaires avec un principe nouveau”, carta a Ruge, 1843), pode

apresentar o Existencialismo não como uma doutrina que pretenda dizer ao mundo o

que ele deve ser, mas antes como “uma consciência mais aguda” da experiência

histórica em curso (Humanisme et Terreur, p. 183). (Em EN, lemos: “Le monde ne

donne de conseils que si on l’interroge”, p. 84.) Numa palavra, que resume a nosso ver

as razões do sucesso de Sartre: o Existencialismo é a expressão teórica dos Tempos

Modernos. Mas estamos diante de um sucesso paradoxal, bem entendido — convém

O MITO DA RESISTÊNCIA

434

não esquecer que, por um lado, o Existencialismo escandalizava tanto a direita quanto

a esquerda, e, por outro, como diz Simone de Beauvoir, “il y avait, du moins à

première vue, un remarquable accord entre ce qu’il apportait au public et ce que celui-

ci réclamait” (La force des choses, p.62). Nesse sentido, a reflexão sartriana sobre

Flaubert lança luz, ainda que oblíqua, sobre o itinerário do próprio Sartre: “Il faut alors

se demander quelle espèce de réalisme ce public réclamait ou, si l’on préfère, quelle

espèce de littérature il réclamait sous ce nom et pourquoi il la réclamait. (...) Par le

succès que lui fait son époque, Flaubert se voit voler son œuvre, il ne la reconnaît plus

(...). Mais en même temps son œuvre éclaire l’époque d’un jour neuf; elle permet de

poser une question neuve à l’Histoire: quelle pouvait donc être cette époque pour

qu’elle réclamât ce livre et pour qu’elle y retrouvât mensongèrement sa propre image?”

(Questions de Méthode, p.113; grifos do autor). Na teoria sartriana do engajamento,

nessa encarnação do espírito da Resistência heróica, o público reconhece

(“mensongèrement”, quando se pensa que de fato a quase totalidade dos franceses,

mesmo se não colaborou, pelo menos não resistiu) a imagem que reclama, isto é, a que

lhe convém. Inútil recordar a perplexidade dos “existencialistas” diante do sucesso

repentino de seu movimento de renovação cultural (e diante também dessa etiqueta que

lhes foi atribuída). Mas se a razão do sucesso do Existencialismo reside na experiência

social que exprime (na qual o leitor ouve ecoar as notas mais sensíveis de sua própria

experiência vivida), tal sucesso torna-se ainda mais paradoxal se nos lembrarmos que o

processo de radicalização do grupo Temps Modernes, no pós-guerra, vai na contramão

do curso das coisas, isto é, não se faz acompanhar de nenhum processo objetivo. O que

ocorre é, pelo contrário, um movimento de desaceleração (acionado em primeiro lugar

pelos freios da política soviética, que, antes mesmo da Conferência de Yalta, e

imediatamente após a insurreição parisiense de agosto de 1944, já ordenara a

desmobilização, dando adeus às ilusões de passar “Da Resistência à Revolução”), cujo

Razão e Resistência

435

resultado é a nova ordem econômica implementada com o Plano Marshall, em junho de

1947 (cf. E. Hobsbawm, Era dos Extremos, p.237-238) — daí o consenso

neokeynesiano que, apaziguando a Europa durante mais de duas décadas, põe fim a

qualquer possibilidade de retomada do processo revolucionário a curto ou mesmo a

médio prazo. 123)Talvez não seja demais recordar o voluntarismo heróico da Revolução Francesa,

narrada por Michelet: “Tout va se dissoudre, ce semble, c’est l’espoir de

l’aristocratie... Ah! vous vouliez être libres; voyez maintenant, jouissez de l’ordre que

vous avez fait... — A cela, que répond la France? Dans ce moment redoutable, elle est

sa loi à elle-même; elle franchit sans secours, dans sa forte volonté, le passage d’un

monde à l’autre, elle passe, sans trébucher, le pont étroit de l’abîme, elle passe, sans y

regarder, elle ne voit que le but” (Michelet, Histoire de la Révolution Française,

Pléiade, vol.1, p.402-403). E ainda: “ces héroïques efforts, ces élans divins de la

volonté...” (Idem, vol. 1, p.1021). 124)Não por acaso, Merleau-Ponty fecha a Phénoménologie de la Perception com uma

reflexão sobre o heroísmo (via Pilote de Guerre, de Saint-Exupéry). Ainda sobre essa

reativação do heroísmo —”Il est beau de se sacrifier: quelques-uns meurent pour que

les autres soient sauvés”, lemos em Pilote de Guerre (p.83)—, cf. o propósito de Sartre

ao escrever a série Les Chemins de la Liberté: “Je demande qu’on ne juge pas mes

personnages sur ces deux premiers volumes dont l’un tente de décrire le marasme

français des années d’entre deux guerres et dont l’autre vise à restituer le désarroi qui a

saisi tant de gens au moment du sursis dérisoire de Munich. Beaucoup de mes

créatures, même celles qui paraissent présentement les plus lâches, feront preuve plus

tard d’héroïsme et c’est bien un roman d’héros que je veux écrire” (Apresentação de

L’Âge de Raison e Le Sursis, in Pléiade, p.1912). À época da Ocupação, como observa

Michel Contat, “héroïsme et écriture coïncidaient” (in Sartre — Œuvres romanesques,

O MITO DA RESISTÊNCIA

436

Pléiade, p.1876). Cf. por exemplo o editorial de Combat, “Le Sang de la Liberté”,

escrito por Camus em 24 de agosto de 1944, exaltando “la flamme du courage lucide”

(reproduzido em Camus, Actuelles — Ecrits Politiques, p.19). Ainda no calor da hora,

Sartre caracteriza a literatura de Resistência como sendo justamente “une littérature qui

(...) exalte le courage” (“L’Espoir fait homme”, Les Lettres Françaises, nº 18, julho de

1944, número clandestino, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). Mais tarde,

referindo-se à “experiência do heroísmo” durante a guerra, nosso autor faz o seguinte

balanço crítico de seu itinerário: “C’est cela, que j’appelle l’expérience de l’héroïsme,

qui est une expérience fausse. Après la guerre, est venue l’expérience vraie, celle de la

société. Mais je crois qu’il était nécessaire, pour moi, de passer d’abord par le mythe

de l’héroïsme” (Sit.IX, p.101). 125)Vale a pena observar a maneira como Sartre apresenta para o leitor americano, num

artigo de 1945, a novíssima literatura francesa — resultado da experiência da guerra e

da Resistência, verdadeiro divisor de águas na cultura francesa contemporânea. É

justamente essa “experiência” que, segundo nosso autor, retirou os surrealistas do

primeiro plano do cenário intelectual: “La guerre a dispersé les surréalistes et, bien que

leur influence sur la poésie demeure profonde, à proprement parler il n’y a plus

actuellement de mouvement surréaliste en France” (“Nouvelle Littérature en France”,

Pléiade, p.1917). (Já no início de seus Carnets de la drôle de guerre, em setembro de

1939, Sartre faz o seguinte diagnóstico: “L’époque ‘entre deux guerres’, c’est déjà une

chose. De ce point de vue, des manifestations comme le surréalisme, le pacifisme, etc.,

au lieu d’être des aurores n’apparaissent plus que comme des idéologies conditionnées

par leur temps et devant disparaître avec lui. Elles ont perdu leurs horizons”, nova

edição, p.38; grifo do autor.) Além dos surrealistas, também Gide (sem falar de

Giraudoux) perdeu sua hora e vez: “Gide, longtemps absent, violemment attaqué, et

d’ailleurs ne s’exprimant plus guère, a perdu presque toute son influence sur la

Razão e Resistência

437

jeunesse: sa philosophie, qui convenait à l’époque heureuse d’avant l’autre guerre, ne

peut être d’aucun secours en nos temps de misère” (“Nouvelle Littérature en France”,

Pléiade, p.1917). As obras dessa geração de entre-guerras, mesmo no caso dos autores

que chegaram a participar da Resistência, permanecem externas ao espírito desse

movimento político: “Les mouvements qui furent si éclatants entre 1920 et 1930

survivent aujourd’hui, ralentis, fatigués, ayant perdu leur pertinence. Cela est d’abord

une affaire de générations: les événements n’ont que partiellement affecté nos plus

célèbres écrivains, qui ont plus de soixante ans. Ils pouvaient donner leur temps, leur

argent, leurs actions à la Résistance; ils ne pouvaient que prêter leur esprit.

Immédiatement après la Libération, ils ont repris leurs habitudes de pensée” (Idem,

p.1918). (Malraux é apresentado como um caso à parte. Embora Sartre critique seu

“romantismo” da ação —”ses engagements volontaires ont toujours été un peu

gratuits”—, contrapondo-o à “croyance en l’action austère, modeste et utile” de

Camus, Malraux é saudado como “l’écrivain d’avant-guerre qui est le mieux adapté au

présent et qui reprendra tout naturellement sa place d’honneur à nos yeux”, pois sua

obra antecipou o humanismo heróico dos novos tempos, p.1920.) Todavia, entre os

escritores da “nova geração” (resultado da guerra) há uma outra divisão de águas. De

um lado, os que sucumbiram ao “pessimismo absoluto”: “La guerre et nos malheurs ont

donné à plusieurs écrivains de la nouvelle génération un goût pour la vieille théorie de

l’Art pour l’Art — mais rajeunie, plus grave et enveloppée de métaphysique. La peur,

l’horreur et le désespoir ont incliné les âmes les moins touchées vers un pessimisme

absolu qui se tient à l’écart des entreprises humaines. Parmi les écrivains dont l’oeuvre

reflète ce dégoût pour l’époque, je pense spécialement à Georges Bataille (...) et à

Maurice Blanchot (...). Et il faut bien dire que les rigueurs de notre temps, les maux

sociaux, le contact quotidien avec le Mal, ont donné naissance en France à une

littérature du suicide” (Idem, p.1918). Do outro lado, aqueles cuja literatura, forjada na

O MITO DA RESISTÊNCIA

438

experiência da Resistência, superou o ponto de vista que norteia “ces oeuvres sombres

et secrètes” (condenadas a envelhecer precocemente, junto com as obras da geração

anterior): “La génération qui a brillé dans les années de l’entre-deux-guerres va bientôt

passer à l’arrière-plan [“Giraudoux, les surréalistes, Cocteau même”]; les oeuvres de

pur désespoir dont j’ai parlé plus haut, réactions excusables aux duretés de notre

époque, ne laisseront guère de postérité. Mais il est probable que dans l’oeuvre sombre

et pure de Camus se puissent discerner les principaux traits des lettres françaises de

l’avenir. Elle nous offre la promesse d’une littérature classique, sans illusions, mais

pleine de confiance en la grandeur de l’humanité; (...) une littérature qui s’efforce de

peindre la condition métaphysique de l’homme tout en participant pleinement aux

mouvements de la société” (Idem, p.1921). Contraposta pois não apenas à literatura

que brilhara no entre-guerras, mas também a um recente gênero literário sombrio,

destinado a não vingar (“sans posterité”), está a novíssima literatura herdeira da

Resistência, à qual caberá doravante o papel principal no cenário cultural francês que

ora se arma (onde nosso Autor, cela va de soi, será o grande Mandarim):

“Heureusement, ces ouvrages, par leur nature même, sont sans postérité. Il y une autre

littérature en train de naître qui porte tout l’espoir pour l’avenir, bien qu’elle soit

étroitement liée à nos plus anciennes traditions. Cette littérature est le résultat de la

Résistance et de la guerre; son meilleur représentant est Albert Camus, qui a trente ans.

Pour lui, comme pour la majorité des jeunes écrivains d’aujourd’hui, la Résistance a

été une éducation. Elle leur a appris que la liberté d’écrire, comme la liberté elle-

même, doit être défendue par les armes en certaines circonstances, et que la littérature

par conséquent n’est pas une activité gratuite menée indépendamment de la politique,

mais au contraire, en ces temps présents, une activité étroitement liée au

fonctionnement des institutions démocratiques (...). En publiant de nombreux articles

clandestins, souvent dans des circonstances dangereuses, pour fortifier les gens contre

Razão e Resistência

439

les Allemands ou pour les encourager, ils ont pris l’habitude de penser qu’écrire est un

acte, et ils ont acquis le goût de l’action. Loin de prétendre que l’écrivain n’est pas

responsable, ils demandent qu’il soit en tout temps prêt à payer pour ce qu’il écrit.

Dans la presse clandestine il n’y avait pas une ligne qui pût être écrite sans mettre en

danger la vie de l’auteur ou de l’imprimeur ou de ceux qui distribuaient les tracts de la

Résistance; ainsi, après l’inflation des années de l’entre-deux-guerres, où les mots

semblaient du papier-monnaie pour lequel personne ne pouvait payer en or, le mot écrit

a retrouvé son pouvoir. (...) C’est pourquoi il est tellement question de ‘littérature

engagée’ en France aujourd’hui. (...) Les nouveaux écrivains (...) sont les vrais

romanciers et poètes de la liberté” (Idem, p.1918-1919). (Observe-se a que ponto

Sartre, na tentativa de descrever uma situação histórica limite, reativa a famosa tese do

“engagement total” do escritor, defendida sobretudo nos anos 20 pelos historiadores da

Escola Jacobina da Sorbonne, particularmente por Mathiez: “L’historien a des devoirs

envers lui-même et envers ses lecteurs, jusqu’à un certain point, il a charge d’âmes. Il

est comptable de la réputation des grands morts qu’il évoque et qu’il peint”.

Desnecessário lembrar que em “Matérialisme et Révolution” Sartre “adota”

explicitamente a definição de Revolução elaborada por Mathiez, cf. Sit.III, p.176.)

Nesse manifesto da literatura resultante da “educação” da Resistência —”la Résistance

a été une éducation” (e aqui de fato a Resistência faz, na prática, as vezes de um

romance de educação)— podemos reconhecer o essencial das teses filosóficas de EN

(assim como sua apologia da Liberdade): a liberdade é conquistada na luta, o privilégio

da ação, o vínculo entre liberdade e responsabilidade. 126)Sobre essa concepção heroicizante do Dasein, cf. em particular Habermas, para

quem Heidegger “está exigindo uma existência heróica contraposta ao caráter

adormecido e decadente do comum e do ordinário” (Habermas, Perfis filosófico-

políticos, p.60). Inútil acrescentar que tal heroísmo não tem, evidentemente, nada de

O MITO DA RESISTÊNCIA

440

revolucionário, muito pelo contrário, como se sabe à saciedade (o que só faz ressaltar,

mais uma vez, a surpreendente troca de sinal da filosofia heideggeriana operada por

Sartre). O “indivíduo heróico” de Heidegger, como diz ainda Habermas, “é o indivíduo

superior, o solitário inquietante, e finalmente o sem saída, que considera a não

existência como a vitória suprema sobre o Ser, que encontra a plenitude de sua

existência na tragédia” (Idem, p.61-62). 127)O que afinal permitiu juntar os dois pontos de partida do Existencialismo (conforme

Sartre os demarca em “Merleau-Ponty Vivant”): o teórico (a fenomenologia alemã) e o

político (a Resistência). Ocorre que esse ponto de partida político vira... Teoria (que

por sua vez vira do avesso a fonte teórica original). 128)Um voluntarismo que Sartre nunca abandonou (embora chegue a dar razão a Engels,

contra Dühring, acusado justamente de voluntarismo: “Le point de vue de Dühring est

ici purement idéaliste puisqu’il déduit les situations de la volonté et non l’inverse”,

Cahiers pour une morale, p.354). Em 1947, durante as discussões da equipe de Les

Temps Modernes em programa de rádio, Sartre, contrapondo-se ao “attentisme” de

Merleau-Ponty, afirma: “Il ne faut jamais considérer une situation comme fermée. Il est

bien vrai que la situation du prolétariat est en recul. Mais c’est au moment de recul

semblable, ne l’oublions pas, que sont apparu les Première, Deuxième et puis

Troisième Internationales (précisément un moment de reprise de conscience)” (“La

crise du socialisme”, da série La Tribune des Temps Modernes, emissões radiofônicas

disponíveis apenas em fitas). Ver mais uma vez a origem literária desse voluntarismo

heróico em Malraux: “Et toujours les barricades en construction.(...) Toujours, dans la

brume, des ombres s’agitaient(...). Dans cette fantasmagorie silencieuse où mourait le

vieux Madrid, pour la première fois, au-dessous des drames particuliers, des folies et

des rêves, au-dessous des ces ombres lancées à travers les rues avec leur angoisse ou

leur espoir, une volonté à l’échelle de la ville entière se levait dans la brume de Madrid

Razão e Resistência

441

presque investie” (L’Espoir, p.268). Cf. também La Condition Humaine: “Sans doute

les hommes ne valaient-ils que par ce qu’ils avaient transformé” (Pléiade, p.755). É

ainda nas páginas de La Condition Humaine que lemos o seguinte: “Le marxisme n’est

pas une doctrine, c’est une volonté” (Pléiade, p.558); “Il y a dans le marxisme le sens

d’une fatalité, et l’exaltation d’une volonté. Chaque fois que la fatalité passe avant la

volonté, je me méfie” (p.611); “Aux yeux de Kyo le marxisme était une volonté”

(p.757). (Sobre essas passagens de Malraux, cf. o comentário de Merleau-Ponty citado

no nosso Capítulo 3, Parte I, nota 60.) 129)Daí a incompatibilidade entre medo e liberdade (ao contrário do que apregoava a

“teoria política do individualismo possessivo”, Hobbes, por exemplo: “o medo e a

liberdade são compatíveis”, Leviatã, Pensadores, p.133). 130)O que termina por reativar, ainda que numa forma nova, o ideal de transformação

das vanguardas políticas e culturais de entre-guerras, que Sartre julgara morto em 39,

isto é, quando a conjuntura parecia apontar para uma “guerre de droite”: “Mon temps a

été vaincu. J’ai toujours pensé que quelque chose, en 1920-25, avait failli naître:

Lénine, Freud, le surréalisme, les révolutions, le jazz, le cinéma muet. Tout ça aurait

pu s’accrocher. Et puis chaque chose a suivi son destin sporadique. Isolées, on a pu

leur tordre le cou à chacune. Elles n’ont fait un monde que dans ma mémoire” (Carnets

de la drôle de guerre, nova edição, p.162; grifo do autor). Junto com esse “mundo”

tido como irremediavelmente perdido, é ao mesmo tempo o espírito da época de ouro

da École Normale —uma época de “désordre heureux” (cf. Carnets de drôle de guerre,

p.286, nova edição)— que a geração de Sartre vê renascer à medida que a “anarchie

combattante” da Resistência (para retomar a expressão de de Gaulle) ia se afirmando . 131)Utilizamos aqui a noção de “Espírito objetivo” no mesmo sentido em que Sartre a

retoma no seu estudo sobre Flaubert: “C’est ce qu’on ne peut comprendre sans

quelques éclaircissements généraux sur l’Esprit objectif. On se demandera peut-être

O MITO DA RESISTÊNCIA

442

s’il n’est pas dangereux de conserver cette notion suspecte qui risque de porter en elle

les traces de l’idéalisme hégélien dont elle est issue. Il convient de la ‘remettre sur ses

pieds’ et d’indiquer la fonction instrumentale qu’elle peut remplir dans la perspective

du matérialisme historique” (L’Idiot de la famille, vol.III, p.43). 132)A ser assim, “o renascimento de Heidegger a partir do espírito da resistência” não

se dá post-festum, isto é, depois da Segunda Guerra (como pretende por exemplo

Habermas, cf. Perfis filosófico-políticos, p.67), mas sim no calor da hora — e mesmo

um pouco antes, antecipando filosoficamente aquela hora histórica. Foi uma conjuntura

política dramática, conforme sugere Sartre, que possibilitou uma “meilleure

compréhension de Heidegger” (Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.48).

Sobre a necessidade histórica da “descoberta” de Heidegger (tratada no capítulo

anterior), cf. ainda o balanço feito por nosso autor no ensaio em homenagem a

Merleau-Ponty: “Dans le camp de prisonniers, je fis amitié avec des prêtres qui me

demandèrent de leur expliquer Sein und Zeit: j’acceptai. Mais l’éclairage avait changé:

la guerre et le Stalag m’avaient disposé à comprendre l’existence: je ne sais si mes

commentaires ont servi aux auditeurs mais rien ne m’a servi mieux que cette lecture: ce

fut ma deuxième révélation” (Sartre, “Merleau-Ponty”, in Revue Internationale de

Philosophie, nº 152-153, p.16). 133)Daí o Hegel “existencialista” de que já falamos (cf. particularmente o Capítulo 1 da

Primeira Parte, nota 3) — um Hegel voluntarista e ativista: “Une idée qui m’a si fort

frappée chez Hegel: (...) l’idée existentielle que la réalité humaine n’est rien d’autre

que ce qu’elle se fait être” (Simone de Beauvoir, Journal de guerre, p.361; grifos da

autora). Cf. também o que diz Sartre no decorrer de uma discussão sobre Les Mouches,

em 1948: “Et là nous sommes en plein accord avec Hegel qui affirmait: ‘Personne, nul

homme ne peut être libre, si tous les hommes ne sont pas libres.’ (...) Notre but concret,

un but très actuel, contemporain, c’est la libération de l’homme” (in Les Écrits de

Razão e Resistência

443

Sartre, p.189). Esse ativismo hegeliano é impensável fora do registro de Kojève (pois,

como se sabe, se Hegel elaborou uma filosofia da revolução, deixou de lado a idéia de

iniciativa revolucionária): “Pour Hegel, l’Homme (...) diffère radicalement du monde

extérieur naturel, dans la mesure où il est action (c’est-à-dire si l’on veut: néant qui

néantit dans l’être donné de la Nature, en le niant par la lutte et le travail et en se

réalisant dans et par cette négation)” (Kojève, Introduction à la lecture de Hegel,

p.63); “La base, c’est l’action: l’Homme est action” (Idem, p.65; grifo do autor); “Mais

pour Hegel, il n’y a pas de ‘nature humaine’: l’homme est ce qu’il fait; il se crée par

l’action” (Idem, p.89-90; grifos do autor); “L’Homme est Action. (...) L’action se

révèle par la conscience et la conscience se réalise par l’action: les deux forment bloc.

L’Homme est action dès le commencement, et à la fin (par la Phénoménologie) il se

révèle (se comprend) comme action. (...) Pour Hegel, l’Homme n’est ce qu’il est que

par l’action; — il est l’action. Il n’est objet réel que dans la mesure où il s’est réalisé

par l’action dans le Monde” (Idem, p.91); “L’Homme (...) se crée soi-même, par

l’Action de la Lutte et du Travail, au cours de l’Histoire” (Idem, p.140). Sobre a

identificação kojeviana entre liberdade e ação, cf. ainda a Introduction à la lecture de

Hegel, pp.493-495. 134)Em “La guerre a eu lieu”, Merleau-Ponty escreve que a verdadeira tarefa política da

luta contra “une tyrannie anachronique comme l’antisémitisme et un expédient

réactionnaire comme le fascisme” é contribuir para “pousser les choses dans le sens de

la liberté effective” (in Sens et Non-Sens, p.268-269). 135)Basta pensar no Surrealismo (que àquela altura já perdera o fôlego, tornando-se um

alvo privilegiado das críticas de Sartre, como vimos): “Le seul mot de liberté est tout

ce qui m’exalte encore” (André Breton, Premier manifeste du surréalisme, p.11). 136)E num ensaio de 1945, Sartre escreve: “Il est visible que tout homme est liberté”

(“La Liberté Cartésienne”, Sit.I, p.293; grifo do autor). Criticando EN, Marcuse

O MITO DA RESISTÊNCIA

444

afirma, não sem razão, que o livro trata da “liberdade essencial do homem”,

independentemente de suas condições históricas — “a liberdade é a própria estrutura

do ser do homem, e nada pode destruí-la” (“L’Existentialisme”, in Culture et Société,

p.218-219). Sim, mas essa “estrutura” filosófica geral é expressão de uma “estrutura”

política muito determinada — e não, como pretende Marcuse, uma espécie de

“ressurgimento da mensagem de consolação luterana sobre a liberdade do cristão”

(Idem, p.218). (São equívocos como esses que abrem caminho para outros, como por

exemplo quando Marcuse afirma que a caracterização da realidade humana em EN não

é muito mais do que “uma retomada do conceito idealista de Cogito”, p.221 — por isso

Sartre, em EN, “risque en permanence de verser dans le solipsisme transcendantal”,

p.224. Ou então quando Marcuse insiste que, “subsumindo os diversos sujeitos

históricos na idéia ontológica do para-si”, Sartre estabelece um tal “abismo” entre sua

ontologia e a realidade histórica que termina por inviabilizar o propósito do livro de

fazer uma “filosofia da existência concreta do homem”, p.233-234.) Nesse sentido, cf.

também Gerd Bornheim, para quem Sartre, em EN, “faz da liberdade um

incondicionado e absoluto” (o que viria confirmar que o pensamento sartriano é

“caudatário da Metafísica tradicional”): “E nosso autor apresenta a sua tese como se

dotada de um valor absoluto, supra-histórico” (Sartre, Metafísica e Existencialismo,

pp.93 e 113-114). O “verdadeiro conteúdo” (cuja determinação histórica estamos

tratando de expor) dessa liberdade absolutizada em EN escapou até mesmo a Merleau-

Ponty, que aponta os limites da ontologia sartriana nos seguintes termos (que

justificariam, na ótica de Merleau-Ponty, a necessidade de uma Moral posterior): “En

ce qui concerne le sujet et la liberté, il est visible que l’auteur cherche d’abord à les

présenter hors de tout compromis avec les choses” (“La Querelle de l’Existentialisme,

Les Temps Modernes, nº 2, novembro de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens,

p.125-126).

Razão e Resistência

445

137)Utilizamos o termo num sentido preciso — o de Lukács, relendo Hegel em História

e Consciência de Classe: idêntico é aquilo que é resultado de um processo de

mediação. 138)Cf. os Cahiers pour une morale: “Négativité et liberté ne faisant qu’un...” (p.480). 139)Relembremos algumas outras lições de Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito:

“La Négativité de l’Homme est ici révélée par le Sceptique. Et c’est ainsi que l’idée de

liberté pénètre dans la philosophie. (...) La Négativité, c’est la liberté (l’action libre ou

libératrice) (...). L’homme diffère de l’animal parce qu’il est un être négateur”

(Introduction à la lecture de Hegel, p.63-64). E acrescenta: “La liberté (...) c’est un

acte” (Idem, p.65-66). Mais adiante, Kojève precisa a natureza desse “ato”, ou dessa

ação: “L’action créatrice (c’est-à-dire négatrice, révolutionnaire)” (Idem, p.131);

“Toute action révolutionnaire est donc aussi auto-négatrice” (p.136). Ainda sobre o

vínculo kojeviano entre negação, liberdade e ação, cf. em particular a nota 22 do

Capítulo 2 de nossa Primeira Parte. Cf. também a versão de Merleau-Ponty desse

“Existencialismo em Hegel”: “Ce que nous appelons un homme, c’est-à-dire un être

qui n’est pas, qui nie les choses, une existence sans essence” (“L’Existentialisme chez

Hegel”, Sens et Non-Sens, p.115). Ou então: “La vie n’est pensable que comme offerte

à une conscience de la vie qui la nie” (Idem, p. 116). 140)Com isso, evidenciam-se, mais uma vez (malgrado a opinião de não poucos

comentadores), os anos-luz de distância que separam Sartre de Hobbes, para quem

“liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição” (Leviatã, Pensadores,

p.133). 141)Cf. a nota 30 do Capítulo 2 da Primeira Parte. 142)Pouco depois, será a vez de Merleau-Ponty, ainda que de forma diferente de Camus,

a saber, na forma do “liberalismo heróico” weberiano (mas liberalismo tout de même).

Essa recaída nas ilusões liberais distingue radicalmente Camus e Merleau-Ponty de

O MITO DA RESISTÊNCIA

446

Sartre, sempre implacável com qualquer tropeço liberal (o que afinal determinará sua

ruptura com os dois amigos) — “Libéral est un mot ignoble”, proclama o autor nos

anos 70 (in La cérémonie des adieux, p.521). (Evidencia-se aqui o lamentável erro de

diagnóstico —aliás o mesmo dos teóricos do PCF, sem falar de Lukács— de um crítico

da qualidade de Anatol Rosenfeld que, num artigo de 1949 sobre a Questão Judaica,

afirma: “Na ocasião em que Sartre escrevia essa obra, já era existencialista, mas com

fortes pendores marxistas. Desde então, passou a combater o marxismo (ou os

marxistas) e hoje parece tender para a direita, embora seja perfeitamente possível que,

nessa sua deslocação política, pare em qualquer posição intermediária de tipo liberal”,

in “Jean-Paul Sartre: Reflexões sobre a Questão Judaica”, Texto/Contexto II, p.121-

122.) Sobre as primeiras críticas de Sartre ao liberalismo, cf. especialmente a

conferência de 1946, “La responsabilité de l’écrivain”, onde nosso autor, antecipando

“Qu’est-ce que la littérature?”, vincula o aparecimento da “ideologia liberal” (“la

contemplation des valeurs pures”, “un appel stérile à la liberté”) e o florescimento da

idéia de “l’art pour l’art”, no século XIX, ao “fim do apocalipse revolucionário” (in

Les Conférences de l’Unesco, cf. em particular a p.66). Cf. também nos Cahiers pour

une morale a crítica sartriana à “abstração” da moral burguesa (p.173) — “Le droit du

libéralisme est donc la mystification dans sa forme la plus pure” (Cahiers pour une

morale, p.153). Por isso, é preciso passar “de l’idée de liberté politique à l’idée de

liberté sociale” (Idem, p.45). Em 1947, num de seus programas hebdomadários no

rádio, Sartre faz um vivo ataque à “democracia formal” da sociedade burguesa e, na

linha do jovem Marx, enfatiza a necessidade de levar às últimas consequências os

princípios abstratos do liberalismo, tornando-os concretos (“Deux appels à l’opinion

internationale”, oitavo programa da série La Tribune des Temps Modernes). La Tribune

des Temps Modernes foi proibida pelo ministério Schuman justamente a partir desse

oitavo programa que, embora já gravado (junto com mais um outro), não chegou a ir ao

Razão e Resistência

447

ar. Em 1989, a rádio France Culture reprisou toda a série La Tribune des Temps

Modernes, inclusive os dois últimos programas proibidos em 1947 (o que nos permitiu

as transcrições utilizadas neste trabalho). Todos os debates dos nove programas que

chegaram a ser gravados (coordenados por Sartre e com a participação de Merleau-

Ponty, Simone de Beauvoir, Pontalis, David Rousset, entre outros) versaram sobre a

conjuntura político-econômica mundial. Os títulos dos programas foram os seguintes:

1.”Le Gaullisme et le RPF”; 2.”Communisme et anti-Communisme”; 3.”Lettres

d’injures et véritable définition de l’existentialisme” (um programa divertidíssimo, pois

Sartre lê —e responde com grande senso de humor e fina ironia— cartas de ouvintes

escandalizados com o “Existencialismo”, a ponto de lamentarem que os fornos

crematórios alemães tenham sido desativados, pois seriam a solução ideal para

insolentes como Sartre e seus amigos, representantes do “Excrémentialisme”: “nous

avons eu le mouvement Dada, maintenant nous avons le mouvement Caca”);

4.”Libéralisme et Socialisme” (Merleau-Ponty resume algumas teses de Humanisme et

Terreur); 5.”La crise du socialisme”; 6.”Mouvements syndicaux et conflits sociaux”

(Sartre entrevista um líder sindical); 7.”Le vrai sens des revendications ouvrières”;

8.”Deux appels à l’opinion internationale” (Sartre lê um manifesto —que está na

origem do Rassemblement Démocratique Révolutionnaire, R.D.R.— contra a guerra

fria e a favor de uma “Europa socialista”); 9.”David Rousset de retour d’Allemagne”

(debate sobre a situação política e cultural da Alemanha do imediato pós-guerra). 143)No decorrer desse processo de liquidação das ilusões liberais, desencadeado por

uma conjuntura de radicalização política, a geração de Sartre termina pois por esbarrar

no problema da violência revolucionária, tal como foi exposto por exemplo nesta

passagem célebre de Engels: “Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que

há; é o ato pelo qual uma parte da população impõe à outra parte a sua vontade por

meio de espingardas, baionetas e canhões, meios autoritários por excelência; e o

O MITO DA RESISTÊNCIA

448

partido vitorioso, se não quer ter combatido em vão, deve continuar este domínio com

o terror que as suas armas inspiram aos reacionários. Teria a Comuna de Paris durado

um só dia, se não tivesse servido desta autoridade de povo armado face aos

burgueses?” (“Da Autoridade”, in Marx-Engels, Obras Escolhidas, vol.II, p.410). 144)Cf. a nota 14 do Capítulo 2 da Primeira Parte. 145)Já nos Carnets de la drôle de guerre, pouco antes de escrever sua primeira peça de

apelo à Resistência, Bariona, Sartre esboça a idéia, desenvolvida em EN, de que a

liberdade nasce de uma luta heróica — e o faz precisamente através do exemplo da

Guerra Civil Espanhola, vista agora pelo prisma de Arthur Koestler: “Il y avait des

heures où nous surmontions même la peur de mourir. Dans ces heures-là nous étions

libres... hommes sans ombres congédiés du rang des mortels; c’était l’expérience de la

liberté la plus absolue qu’un homme puisse connaître” (Le Testament Espagnol, citado

por Sartre nos Carnets de la drôle de guerre, p.86-87; grifo do autor). É essa idéia de

Koestler que reaparecerá nas descrições sartrianas da Resistência como a experiência

da liberdade absoluta (mas aqui é ao mesmo tempo a narração filosófica da Revolução

Francesa, presente na Fenomenologia do Espírito, que está sendo reativada). Veremos

a culminância dessa idéia de que a liberdade surge da resistência à não-liberdade em

“Les Damnés de la Terre”, onde Sartre estabelece um vínculo íntimo entre resistência,

revolução e liberdade. Nesse célebre ensaio de 1961, a superação da condição de

objeto (“nous étions les sujets de l’Histoire et nous en sommes à présent les objets”,

Sit.V, p.189), e a consequente recuperação da humanidade, só pode se dar pela

violência revolucionária (que é redenção). Voltando à Guerra Civil Espanhola,

observe-se o que diz E. Hobsbawm sobre o significado dessa experiência

revolucionária para os contemporâneos: “É impossível compreender a vaga

internacional que, em 1936, levantou-se em socorro da república espanhola sem

considerar a convicção de que a batalha travada naquele país, à margem da Europa e

Razão e Resistência

449

pouco conhecido, era —no sentido mais específico— uma batalha pelo futuro da

França, da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Itália” (“Os intelectuais e o

antifascismo”, in História do Marxismo, vol.9, p.264-265). 146)Expressão cunhada por Jean Starobinski para designar o que se passou no final do

século XVIII (cf. A Invenção da Liberdade, p.232). 147)Uma situação-limite que se transforma num absoluto filosófico no resto da obra

sartriana: “Les buts absolus de la condition humaine (...) sont: sauver le monde (en

faisant qu’il y ait de l’être), faire de la liberté le fondement du monde, reprendre à son

compte la création et faire que l’origine du monde soit l’absolu de la liberté se

reprenant elle-même” (Cahiers pour une morale, p.463-464). 148)E ainda: “C’était bien ça que j’ai toujours voulu: le socialisme et la liberté. La

liberté, j’y croyais depuis longtemps, et j’en avais parlé déjà dans L’Être et le Néant,

dont elle est le sujet principal” (Sartre, in La cérémonie des adieux, p.562). Esse é

também “le sujet principal” dos romances escritos no mesmo período, como atesta

Sartre numa carta de julho de 1938, referindo-se ao projeto da trilogia Les Chemins de

la Liberté: “J’ai trouvé d’un coup le sujet de mon roman (...): le sujet, c’est la liberté”

(Lettres au Castor, vol.I, p.210). Em seus comentários a respeito de Les Chemins de la

Liberté, Michel Contat escreve: “Cantonné à Brumath, il commence la rédaction de

carnets et continue L’Âge de raison. (...) La philosophie, cependant, reste au centre de

ses préoccupations; durant toute sa captivité, il ne cesse de prendre des notes en vue de

L’Être et le Néant, qu’il comencera à rédiger après son retour à Paris et après avoir mis

au point la version définitive de L’Âge de raison, sur laquelle, nous a-t-il dit, il a

continué de travailler par intermittence au camp. (...) Sartre nous a pourtant affirmé

qu’il avait mené de front l’ouvrage philosophique et le roman [agora Le Sursis],

passant de l’un à l’autre pour se distraire du premier” (in Sartre — Œuvres

Romanesques, Pléiade, pp.1864, 1867 e 1868; grifo nosso). (O que de certa maneira se

O MITO DA RESISTÊNCIA

450

reproduz no movimento dos dois planos de EN, pois, como se sabe, o romance Le

Sursis, assim como os outros da trilogia, é construído com matéria histórica local, cf.

nosso capítulo anterior.) Reportando-se ainda a essa escrita simultânea de EN e Le

Sursis, Michel Contat sublinha o seguinte propósito de Sartre: “reprendre,

parallèlement à sa réflexion philosophique, la mise à l’épreuve de celle-ci dans cette

expérience concrète qu’est le roman” (Idem, p.1873). Convém atentar para o que o

próprio autor salienta no projeto literário de Les Chemins de la Liberté: “Ce

cheminement de l’homme libre vers sa liberté, c’est le paradoxe de la liberté et c’est

aussi le thème de mon livre. Il est l’histoire d’une délivrance et d’une libération. Mais

il n’est pas achevé. L’Age de raison et Le Sursis ne sont encore qu’un inventaire des

libertés fausses, mutilées, incomplètes, une description des apories de la liberté. C’est

seulement dans La Dernière Chance que se définiront les conditions d’une libération

véritable” (Entrevista, Paru, nº 13, dezembro de 1945, in Sartre — Œuvres

Romanesques, Pléiade, p.1915). Essa passagem das “liberdades falsas, mutiladas,

incompletas” à “verdadeira libertação” está, como procuramos mostrar, no coração de

EN. A ser assim, entre Les Chemins de la Liberté e EN há muito mais do que o

“paralelismo” de que fala Michel Contat na passagem acima, pois as faces literária e

filosófica são superpostas numa única “histoire d’une délivrance et d’une libération”. 149)Esta, aliás, a característica do “realismo” que Sartre vê nas análises de Marx (em

particular sobre o colonialismo) — um trabalho de reconstrução (o que não significa, é

óbvio, que a natureza dessa reconstrução seja a mesma no caso de Sartre e de Marx):

“Que l’Hindoustan soit tel ou autrement, peu nous importe: ce qui compte ici, c’est le

coup d’œil synthétique qui rend la vie aux objets de l’analyse” (Questions de méthode,

in Critique de la raison dialectique, p.34, nova edição; grifo do autor). 150)O que de certa maneira reconstrói o movimento alternado da própria guerra, tal

como foi registrado pelos contemporâneos, Adorno por exemplo: “Como a Guerra dos

Razão e Resistência

451

Trinta Anos, a atual —da qual, uma vez terminada, ninguém recordará mais o

começo— está dividida em campanhas descontínuas, separadas por pausas vazias: a

campanha da Polônia, a da Noruega, a da Rússia, a da Tunísia, a invasão. Seu ritmo, a

alternância entre a ação intermitente e a completa calmaria por falta de inimigos

geograficamente alcançáveis...” (Minima Moralia, p.45-46). 151)Se assim for, fica evidenciado o total equívoco de Anna Boschetti, cuja leitura de

EN salientamos na Introdução deste trabalho: “Enracinée dans des répugnances

viscérales, l’horreur pour le social devient presque une idéologie professionnelle pour

le philosophe qui conçoit son rôle, et sa valeur, comme la recherche, strictement

individuelle, d’une vérité ‘pure’, comme possibilité de se faire regard sans corps

(theoria), sans passé et sans point de vue, mettant le monde entre parenthèses...”

(Sartre et Les Temps Modernes, p.103; grifo nosso). Procuramos mostrar exatamente o

contrário: EN é elaboração filosófica do ponto de vista da Resistência (assim como em

História e Consciência de Classe Lukács pretendeu dar forma filosófica ao ponto de

vista do proletariado — mas com esta diferença fundamental: o que num caso foi

resultado do propósito deliberado do autor, no outro é expressão de um processo

objetivo que se insinua, involuntariamente, nas análises do livro). 152)Num sentido não muito distante do “realismo” que Sartre viu no grande cinema

americano o que tratou de construir o Mito do Velho Oeste (o mesmo John Ford

que, diga-se de passagem, não deixou de dar forma cinematográfica ao heroísmo da

Segunda Guerra, em They were expandable). 153)”J’ai voulu traiter de la tragédie de la liberté en opposition avec la tragédie de la

fatalité” (Entrevista, Comœdia, 24 de abril de 1943). Ainda sobre Les Mouches: “Il ne

m’a pas semblé impossible d’écrire une tragédie de la liberté(...). Je l’ai [Oreste]

montré en proie à la liberté comme Œdipe est en proie à son destin.(...) Comme un

héros” (“Le prière d’insérer” da edição de 1943 de Les Mouches).

O MITO DA RESISTÊNCIA

452

154) Travada durante o período em que Sartre redigia EN (entre o outono de 41 e o

início de 43, como sabemos), a batalha de Stalingrado (de setembro de 42 até a

rendição alemã em fevereiro de 43) é considerada pelos estudiosos do período como “a

mais heróica, a mais longa e crucial batalha da Segunda Guerra Mundial” (Liddel Hart,

historiador militar inglês, arquivos do Mémorial de la Guerre, Caen, Normandia). Em

sua biografia de Sartre, Annie Cohen-Solal reconstitui, a partir das memórias de

Simone de Beauvoir, o ambiente em que o autor escreveu EN: “Il écrit surtout et sans

discontinuer dans le cadre plus attendu de la maison angevine où Mme Morel les

accueille.(...) Simone de Beauvoir tente parfois d’arracher le prisonnier à ses quatre

murs. Quand elle y parvient, c’est une promenade au bord de la Loire, quelquefois une

balade à vélo. Et puis retour rapide pour capter la B.B.C. qu’on écoute en groupe dans

la chambre de Sartre. ‘Premiers revers des troupes de von Paulus à Stalingrad...’,

entend-on à Noël 1942: première bonne nouvelle, après le débarquement des Alliés en

Afrique du Nord!” (p.253). Mais tarde, Sartre afirma que Stalingrado foi o momento

decisivo em que ele e Merleau-Ponty se convenceram da virada da guerra, ou seja, da

“future défaite allemande” (Sit.IV, p.196). Recorde-se o já mencionado depoimento de

Jean-Toussaint Desanti: “1943, c’est le moment où la guerre change de sens. La date

compte donc en tant que telle” (Entrevista, Le Monde, 2/7/1993). 155)Stalingrado representa, para Carlos Drummond de Andrade, o momento por

excelência em que dos jornais se extrai poesia: “A poesia fugiu dos livros, agora está

nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero. Mas Homero é velho. Os

telegramas cantam um mundo novo que nós, na escuridão, ignorávamos. Fomos

encontrá-lo em ti, cidade destruída, na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,

no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas, na tua fria vontade de

resistir” (Carta a Stalingrado, Obra Completa, p.195).

Razão e Resistência

453

156)”Combat exprimait nos espoirs en affichant comme devise: De la Résistance à la

Révolution”, escreve Simone de Beauvoir (La force de choses, vol.I, p.14). Esse

assunto será desenvolvido no próximo capítulo. 157)Uma época que Aron tratou de enterrar quando, no título do capítulo de suas

memórias dedicado ao imediato pós-guerra —”L’illusion sans lyrisme”—, inverteu, de

caso pensado, a fórmula com a qual Malraux designava a primeira fase de uma

revolução: “L’illusion lyrique” (título da Primeira Parte de L’Espoir, como se sabe). A

esse respeito, cf. também o já mencionado artigo de Aron no número inaugural de Les

Temps Modernes: “Les désillusions de la liberté” (Les Temps Modernes, nº 1, outubro

de 1945). 158)Essa passagem do nada (ponto de partida da obra) ao ser, ou da não-liberdade à

liberdade, é, como vimos, feita pela mediação de um sujeito heróico. É interessante

lembrar aqui o seguinte comentário de M. Abensour sobre o heroísmo revolucionário

em Michelet: “O heroísmo, para Michelet, não é a qualidade subjetiva de tal ou qual,

mas é em primeiro lugar um clima, o tom da época que afeta todos os atores e,

prioritariamente, o ator principal, o povo, que passa do nada ao ser na própria

experiência desse afeto” (“O heroísmo e o enigma do revolucionário”, in Tempo e

História, p.217). 159)Nesse sentido, recorde-se a seguinte passagem de Michelet, em sua Histoire de la

Révolution Française (o final dessa passagem figura como epígrafe no “Epílogo” das

Aventures de la Dialectique, de Merleau-Ponty): “La foi, l’espoir étaient immenses.

Ces millions d’hommes, hier serfs, aujourd’hui hommes et citoyens, évoqués en un

même jour, d’un coup, de la mort à la vie, nouveau-nés de la Révolution, arrivaient

avec une plénitude inouïe de force, de bonne volonté, de confiance, croyant volontiers

l’incroyable. (...) Les hommes les moins amis de la Révolution tressaillirent à ce

moment, ils sentirent qu’une chose advenait. (...) Rare moment où peut naître un

O MITO DA RESISTÊNCIA

454

monde, heure choisie, divine!... (...) Ce jour-là, tout était possible... L’avenir fut

présent... C’est-à-dire, plus de temps... Un éclair et l’éternité” (Pléiade, vol.I, pp.428 e

430). Cf. também o ensaio de Sartre sobre Jules Renard, escrito em 1945 (mas

esboçado nos Carnets de la drôle de guerre): “Pour nous, qui trouvons aujourd’hui

toutes les voies libres, qui pensons que tout est encore à dire...” (Sit.I, p.277). E em “A

propos de l’existentialisme: Mise au point”, nosso autor sublinha: “...en ces années où

tout est à refaire ou à faire...” (in Les Écrits de Sartre, p.653). Desde o início da guerra,

Sartre estava persuadido de que uma eventual vitória da França não poderia significar a

manutencão do status quo —o mundo da nauseante Terceira República já é dado como

morto—, mas a construção de algo inteiramente novo: “Étrange: on prend les armes

pour défendre un certain monde (la République française d’après-guerre avec ses droits

et ses idéologies). Et on sait pourtant que le fait même de prendre les armes détruit ce

monde à coup sûr. (...) Si nous sommes vainqueurs, nous aurons défendu le monde que

nous allons faire après, qui sera ce que nous pourrons, que nous ne pouvons même pas

prévoir. Ainsi les hommes de 1914 ont défendu contre l’Allemagne impérialiste la

République de 1920. Celle de 1870-1914, en prenant les armes, ils l’avaient ensevelie

de leurs propres mains” (Carnets de la drôle de guerre, nova edição, p.146; grifo do

autor). E acrescenta: “Contre quoi nous battons-nous? Contre le nazisme? mais depuis

un an un fascisme larvé règne en France. (...) Et qu’est-ce que notre démocratie qui

supprime les Chambres et la liberté de penser?” (Idem, p.152-153).

160)É justamente nas páginas de EN que Sartre se refere à possibilidade de “prévoir”

“des bouleversements intérieurs de la situation” (p.611). A verdade, acrescenta o autor,

pressupõe sempre uma certa dose de “presciência”: “Ici comme ailleurs, la vérité n’est

pas rencontrée par hasard, elle n’appartient pas à un domaine où il faudrait la chercher

sans en avoir jamais eu de prescience, comme on peut aller chercher les sources du Nil

ou du Niger” (EN, p. 628-629). Ou então: “C’est la fin qui éclaire ce qui est. Mais pour

Razão e Resistência

455

aller chercher la fin à-venir pour se faire annoncer par elle ce qu’est ce qui est, il faut

être déjà au delà de ce qui est, dans un recul néantisant...” (EN, p.554). (Nos Carnets

de la drôle de guerre, nosso autor já escrevia: “En philosophie avoir besoin d’une

notion c’est la pressentir”, p.280, nova edição.) Ainda em EN, encontramos a seguinte

idéia de antecipação: “On a vu pareillement les générations nouvelles, vers 1938,

soucieuses des événements internationaux qui se préparaient, éclairer brusquement la

période 1918-1938 d’un jour nouveau et la nommer, avant même que la guerre de 1939

eût éclaté, ‘l’Entre-deux-guerres’“ (p.557). A mesma idéia será retomada em “La

nationalisation de la littérature”: “nos jeunes gens s’intitulaient ‘génération de l’entre-

deux guerres’ quatre ans avant l’accord de Munich” (Sit.II, p.42). Nos Cahiers pour

une morale, Sartre afirma que o futuro já está de certa forma “rayonnant sur le présent”

(p.175) — daí a idéia de “avenir nécéssaire” (p.176). E mais: “tout se passe comme si

par mon surgissement dans le monde, je dévoilais un avenir de ce monde qui

m’attendait. (...) Car le monde comme à-venir éclaire le monde présent et le monde

présent est esquisse figée du monde-à-venir et tous les traits concrets du monde-à-venir

sont fournis au projet par ceux du monde présent” (Idem, p.250-251). Recorde-se

também esta passagem do ensaio de Sartre sobre Baudelaire: “Dans le rapport

progressiste de finalité, c’est la statue future qui explique et détermine l’ébauche que le

sculpteur façonne présentement” (Baudelaire, p.155). Nesse ensaio sobre Baudelaire, a

noção de antecipação aparece calcada numa certa concepção do tempo que privilegia o

futuro (privilégio também presente em EN, como vimos no nosso Capítulo 3). Cf.

ainda a análise do autor sobre Mallarmé: “On dirait que la poésie négative du second

Empire a choisi cet extrémiste pour accomplir en lui son solennel suicide” (Mallarmé

— La lucidité et sa face d’ombre, p.83). Ou então: “Mallarmé mérite de mourir au seuil

de notre siècle: il l’annonce” (Idem, p.167). Mais tarde, em L’Idiot de la famille, é a

idéia de antecipação que levará à noção de “neurose objetiva”: “L’époque peut

O MITO DA RESISTÊNCIA

456

s’achever en un individu bien avant de prendre fin socialement. De ce fait, même les

vies brèves seront oraculaires: en elles, l’époque a choisi de dévoiler réellement son

sens et les circonstances de son abolition future” (vol.III, p.439-440). Em Questions de

méthode, de onde o autor extrai os princípios norteadores de L’Idiot de la famille, o

marxismo é apresentado como uma filosofia chamada pela história, uma filosofia que,

antes mesmo de ser conhecida, “provocava” na cabeça dos intelectuais a “exigência”

de buscar os “homens reais”— era a “realidade do marxismo” que “desagregava as

idéias nas cabeças dos intelectuais” (in Critique de la Raison Dialectique, pp.28-29,

nova edição). É nas páginas de Questions de méthode que a idéia de antecipação ganha

forma definida no pensamento sartriano: “o historiador liberta a história futura” (Idem,

p.81). (Cf. o esboço dessa idéia na passagem de “Matérialisme et Révolution” citada na

nota 109 deste Capítulo.) Ver nesse sentido a retomada, feita pelo jovem Lukács, da

idéia de Marx de “pôr em liberdade os elementos da nova sociedade” (História e

Consciência de Classe, p.25). Ainda em História e Consciência de Classe,

encontramos a reativação da idéia —que remonta a Hegel, como se sabe (“a Revolução

Francesa tem no pensamento seu começo e origem”, “A Revolução Francesa e suas

consequências”, Filosofia da História Universal, p.395)— de superar o estado de

coisas vigente “com a energia aceleradora do pensamento” (História e Consciência de

Classe, p.97). (Cf. no Prefácio da Fenomenologia do Espírito a idéia de

“pressentimento” do nascimento de um “novo mundo”: “L’ébranlement de ce monde

est seulement indiqué par des symptômes sporadiques; la frivolité et l’ennui qui

envahissent ce qui subsiste encore, le pressentiment vague d’un inconnu sont les signes

annonciateurs de quelque chose d’autre qui est en marche”, p.12. Comentário de

Hyppolite: “Dans les travaux de jeunesse, Hegel étudie, avec un sens historique qui lui

est sans doute inspiré par les événements contemporains, une transformation de l’esprit

du monde(...); il notait aussi dans ce texte cette désintégration et ces pressentiments qui

Razão e Resistência

457

précédaient le bouleversement”, in La Phénoménologie de l’Esprit, vol.I, pp.12-13,

nota 18. Sobre o problema das relações entre filosofia e revolução em Hegel, mas

agora num ângulo que não é mais o da Fenomenologia do Espírito, e totalmente

diverso da família Kojève-Hyppolite, ver Hegel— A Ordem do Tempo, onde Paulo

Arantes mostra que, na ótica hegeliana, “a filosofia não é desprovida de toda faculdade

de antecipação”: se, quanto ao conteúdo, a filosofia “não pode ultrapassar seu tempo”,

pode fazê-lo, contudo, no que diz respeito à forma — cf. em especial o capítulo “O dia

espiritual do presente”.) Marcuse, recuperando por sua vez a idéia de antecipação,

escreve: “Já acentuamos que as qualidades da sociedade futura estão refletidas nas

forças em curso que lutam por sua realização” (Razão e Revolução, p.289). Nesse

sentido, talvez não seja demais relembrar a célebre passagem do Prefácio à Crítica da

Economia Política, onde Marx afirma que, mesmo se as “condições materiais” não

existem ainda, elas podem ser “captadas no processo de seu devir” (Pensadores,

p.136). Ainda a propósito da idéia de antecipação, observe-se que Sartre comenta,

numa importante nota de Questions de méthode, o texto em que Marx mostra “a

situação atual do Hindustão ‘antecipada’ (antes dos ingleses) por suas velhas tradições

religiosas” (in Critique de la Raison Dialectique, p.34, nova edição; grifo do autor).

Sabemos que a idéia de antecipação em Marx é indissociável da idéia de que o novo

está contido no velho — “a violência é a parteira de toda sociedade velha que traz em

suas entranhas outra nova” (Capital, vol.1, p.639). Já o jovem Marx afirmava que o

“mundo novo é o produto que o presente traz em seu seio” (“Correspondence entre

Marx et Ruge”, in Œuvres Philosophiques, vol.V, p.204). É exatamente essa idéia do

novo antecipado no velho que, diga-se de passagem, o último Merleau-Ponty criticará

em Marx (mas aqui já é toda a tradição hegeliano-marxista que está em questão):

“Marx admet que la révolution est présente avant d’avoir être reconnue”; “dans cette

O MITO DA RESISTÊNCIA

458

certitude d’un avenir déjà présent, le marxisme croit trouver la synthèse de son

optimisme et de son pessimisme” (Les Aventures de la Dialectique, pp.128 e 307). 161)Ainda sobre o sentimento de dépaysement no primeiro momento da Ocupação, do

qual já tratamos, cf. Le sang des autres: “Toutes les promesses étaient fausses.

L’avenir s’écoulait goutte à goutte hors de la ville, et le passé se vidait; une carapace

sans vie qui ne méritait pas un regret; il tombait déjà en poussière; il n’y avait plus de

passé; il n’avait pas d’exil. La terre entière n’était qu’un exil sans retour” (p.248).

Observem-se as palavras com as quais Simone de Beauvoir descreve o estado de

espírito da heroína do romance, Hélène, no momento da défaite (uma descrição que

corresponde, como o leitor há de se recordar, às da própria autora em suas memórias;

cf. nosso capítulo anterior): “Elle se sentait aussi dépaysée que si elle se fût trouvée sur

une terre lontaine. Comme si le temps était devenu un vaste espace inexploré” (Idem,

p.250). (A respeito da idéia de paralisação do tempo naquela conjuntura trágica, cf.

nosso Capítulo 3 da Primeira Parte.) E acrescenta: “Et moi? pensa Hélène. La France

est vaincue. L’Allemagne victorieuse. Et moi, où suis-je? Il n’y a plus de place pour

moi! Les yeux secs, elle regardait passer les hommes et les chevaux, les tanks, les

canons étrangers, elle regardait passer l’Histoire qui n’était pas la sienne, qui

n’appartennait à personne. (...) Hélène était devenue éternelle; le sang avait séché dans

ses veines; elle était là sans souvenirs, sans désirs, à jamais” (Idem, p.256-257). E

mais: “Tout était là: les maisons, les boutiques, les arbres. Mais les hommes avaient été

anéantis: personne pour (...) reconstruire un lendemain, pour se rappeler le passé. Elle

seule survivait par miracle, intacte, absurde au milieu de ce monde sans vie. Mais elle

n’avait plus ni corps ni âme. Seulement cette voix qui dit: ‘Je ne suis plus moi’“ (Idem,

p.264). Note-se também o que diz Sartre durante a “drôle de guerre”: “Je n’espère

rien, je n’attends rien. (...) Manque de coordonnées. Ce que m’écrit le Castor: qu’elle a

l’impression que le seul endroit qui soit aujourd’hui sa place, c’est n’importe où.

Razão e Resistência

459

Impression pareille du point de vue de la mort. Le présent devient un n’importe-où,

n’importe quand, vécu par n’importe qui” (nova edição, pp.45 e 47, grifo do autor).

(Sobre o “n’importe qui” sartriano, cf. a nota 56 deste capítulo.) 162)Ainda a respeito do “Domingo da Vida” (cf. a nota 74 deste capítulo), observe-se o

que diz V. Descombes, escrevendo sobre os cursos de Kojève: “Hegel avait dit que la

spéculation philosophique visait à unir et réconcilier ‘les jours ouvrables de la

semaine’ et ‘le dimanche de la vie’, autrement dit les aspects profanes de l’existence

(travail, vie familiale, fidélité conjugale, sérieux professionnel, caisse d’épargne, etc.)

et ses aspects sacrés (jeu, dépenses sacrificielles, vertiges, états d’exaltation poétique).

R. Queneau, l’éditeur du cours, fera du ‘dimanche de la vie’ le titre de l’un de ses

romans” (Le Même et l’Autre, p.26). Essa reconciliação, atribuída por Kojève à

filosofia, Sartre verá na Revolução (neste sentido, verdadeira realização da filosofia).

Mas aqui já estamos diante de outra inversão sartriana: onde antes, no Hegel de

Kojève, havia pacificação, ou calmaria, agora não há senão revolução permanente. (Daí

a idéia de Revolução como ruptura com o tempo tedioso da vida rotineira, como

veremos.) Sem nenhuma calmaria, e em meio a muito barulho, a Insurreição de 44 tem

no entanto para Sartre o mesmo sentido apoteótico do desfecho kojeviano — mas isso

já é assunto do próximo capítulo.

Capítulo 3

O Domingo da Vida

“Il y aurait donc à écrire une histoire au présent. (...) Le reporter est déjà plus près de l’événement. (...) Il y a une pensée au contact de l’événement qui en cherche la structure concrète. Une révolution, si elle est vraiment dans le sens de l’histoire, peut être pensée en même temps que vécue” (Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p.416).

Se para buscar material filosófico-literário Sartre precisou cruzar o Reno (na

direção contrária à da filosofia clássica alemã, quando então buscava material para sua

filosofia da revolução), e até o Atlântico, para encontrar sua matéria política bastou-lhe

transpor as pontes do Sena, a pé ou de bicicleta, documentando a insurreição parisiense

em curso — “ce programme [héroïque] s’est réalisé point par point sous mes yeux”.1 É

de fato com a prática política da Resistência cujo momento sublime é sem dúvida

O MITO DA RESISTÊNCIA

462

essa “semana de Apocalipse” de agosto de 1944 que enfim se completam, agora

efetivamente, os anos de aprendizagem de nosso autor. Mas justo nesse momento em

que um período de formação se encerra, um elemento novo verdadeiro sinal de que o

trabalho de demolição da tradição espiritualista acadêmica francesa também acabara de

se completar, mais precisamente, um novo gênero (redescoberto à chaud nos

Carnets de la drôle de guerre e, um pouco mais tarde, alçado à condição de gênero

maior no manifesto inaugural dos “anos Sartre”, a “Présentation des Temps

Modernes”) é acrescentado à imensa argamassa de materiais heteróclitos trazidos de

além-Reno e de outras terras de ultramar (mas submetidos a uma verdadeira mutação

na viagem de volta, como vimos) a Reportagem. Com efeito, é na condição de

repórter que Sartre, autodenominando-se “Un Promeneur dans Paris Insurgé” (título de

sua série de sete reportagens sobre a Libertação de Paris, encomendada por Camus e

publicada no jornal Combat no calor da hora),2 procurará dar conta daquele evento

“histórico” crucial para a sua geração. (As aspas do “histórico” se devem ao próprio

Sartre que, exatamente um ano depois, lhe atribuiu este significado preciso: um evento

“élevé à la hauteur d’un symbole”.)3

“Je ne raconte que ce que j’ai vu. Ce que tout promeneur a pu voir comme moi”

assim começa a primeira das reportagens de nosso “Promeneur dans Paris Insurgé”.

Mera descrição jornalística da insurreição em curso? Registro da simples observação?

Limitemo-nos por ora a notar, o que aliás salta aos olhos, a insistência do autor na

absoluta fidelidade documentária do seu relato: esse “je ne raconte que ce que j’ai vu”

não apenas abre sua série de reportagens mas, ao fazê-lo, imprime o tom que definirá

todas elas “Je regarde cette foule... Je m’approche et je les écoute”; “Demain, je

parlerai des combats que j’ai vus” (“Colère d’une ville”); “Aujourd’hui je vous parlerai

des combats tels que je les ai vus moi-même, Quai des Grands-Augustins, en

complétant mes renseignements par le témoignage d’amis dignes de foi” (“Toute la

Ville Tire”) etc. Tudo se passa como se Sartre estivesse pastichando o famoso “é tudo

O Domingo da Vida

463

verdade” de Balzac. Mas antes do realismo de Balzac o que é expresso nessa intenção

estritamente documentária das reportagens de 44 é o desejo (naturalista), à primeira

vista não muito diferente do dos Irmãos Goncourt (todavia um alvo privilegiado das

críticas de Sartre, desde os Carnets de la drôle de guerre), de apenas reproduzir a

realidade diretamente, isto é, prescindindo da Literatura (evasão ficcional), e

sobretudo da Teoria. (Nisto essas reportagens são o contraponto exato de EN, cuja

intenção óbvia é flutuar livremente acima da realidade histórica imediata caso

contrário, como descrever estruturas ontológicas, intemporais por definição?) Estamos

pois diante de um problema (auerbachiano por excelência) de representação da

realidade.

Mas de que maneira Sartre conta (para não dizer, por enquanto, narra e/ou

descreve) o que vê? Aqui o ponto de fuga para onde convergem várias tendências e

onde, por conseguinte, vemos desatado o nó da intenção puramente documentária do

autor. Em vez de uma “topografia realista positiva” à la Irmãos Goncourt4 (o que seria

de fato impensável na ótica da negatividade essencial sartriana), as reportagens de 44

constituem uma forma singular modelada a partir de uma mistura de gêneros diversos,

se não antagônicos (dentre os quais os mesmos materiais heteróclitos que remontam às

“viagens de descoberta” de entre-guerras5). Portanto um estilo misto (aqui sim a marca

registrada de Sartre), que fica na intersecção do relato e da prosa de ficção. Mais

exatamente, trata-se de uma mescla de descrição sóciojornalística à maneira dos

clássicos do modernismo americano (relato de fatos e de comportamentos, sem

comentários), “roman-reportage”6 de Malraux (uma “literatura de situações extremas”,

que inclui também Camus e Saint-Exupéry, e igualmente inspirada no romance social

americano)7 e, na base, a fenomenologia alemã (estamos com efeito diante de

“descrições” de um “repórter husserliano”)8, sobre a qual hereticamente salpicam ainda

pitadas de romance policial, reminiscências da prática historiográfica de Michelet e

pastiches (mas com sinal trocado) do grande romance vinculado a um momento de

O MITO DA RESISTÊNCIA

464

virada histórica decisiva, L’Éducation Sentimentale tudo isso (e um pouco mais)

fluindo à maneira de uma narrativa cinematográfica, como se nosso repórter estivesse

de fato detrás de uma câmera, transmitindo ao vivo o Som e a Fúria de um instante

insurrecional.9 (Um instante recriado como se fosse a um tempo culminância e

cancelamento ou realização do programa libertário das vanguardas literárias e

artísticas de entre-guerras, no momento de seu declínio. Daí mais este elemento

entremeado nas reportagens de Sartre: uma constelação de imagens surrealistas, como

veremos.) Essa transmissão sur le vif é acompanhada de descrições de tal forma

pormenorizadas que, por vezes, o leitor/espectador é levado a incorporar o ponto de

vista do autor, julgando-se assim diante de um puro registro documentário, demasiado

rente aos fatos: “Tout à coup au bout de la rue des hommes traversent la chaussée en

courant, puis d’autres qui vont se cacher dans les immeubles. C’est un tank qui passe

(...). Les tanks traversent la rue vide, ils disparaissent...”; “J’ai pris une rue au hasard.

On se battait sur le Pont Neuf” (“L’Insurrection”, Combat, 28/8/44). E por aí vai,

mapeando a “geografia da Insurreição”: “Il y a une géographie de l’insurrection:10

Dans certains quartiers, la bataille fait rage depuis quatre jours sans désemparer; dans

d’autres, le calme se maintient avec une sorte de fixité presque inquiétante (à

Montparnasse, dans le XIVe, dans le XVe). (...) On regarde le Sénat, on regarde vers le

carrefour de l’Odéon. Une vingtaine de soldats allemands sortent du Sénat et

descendent la rue de Seine. La foule les regarde venir, placide” (“Naissance d’une

Insurrection”, Combat, 29/8/44). E assim por diante. Mas essa mesma descrição

pormenorizada tem um quê de mistério, quase uma intriga de romance policial: “La

bataille est partout présente. Dans le quartier le plus tranquille, on entend toutes les

deux ou trois minutes, le claquement sec d’un caillou contre la pierre: c’est une balle

de fusil. (...) Ces bruits sont inexplicables: il n’y a pas d’Allemands aux environs, les

F.F.I sont loin. Personne ne cherche la clé du mystère, les gens se regardent, ils disent

gravement: ‘Ça tire...’. C’est tout. (...) Personne ne le sait. On ne sait rien. Quelqu’un

O Domingo da Vida

465

soupire: ‘Est-ce que les Américains vont bientôt venir?’ et une voix lui répond: ‘Nous

pouvons bien délivrer Paris nous-mêmes’“ (“L’Insurrection”, Combat, 28/8/44). Ou

então: “Qui tire? Les Allemands? Sur qui tirent-ils? La réponse est invariable: ‘Nous

ne savons pas’. (...) Déjà, avec la chaleur de midi, quelque chose de sinistre pèse sur la

joie du matin. Le Sénat énorme et noir, tout au bout de sa rue vide, paraît vénéneux

avec cet insupportable drapeau qu’on regarde malgré soi” (“Naissance d’une

Insurrection”, Combat, 29/8). Não raro, a forma com que se desenvolve essa intriga

revela-se o oposto da fidelidade documentária. Nesses momentos, é como se nosso

Promeneur, na contramão de suas próprias intenções, parodiasse o “c’est un roman,

rien qu’une histoire fictive” de Céline.11 Com efeito, malgrado o “je ne raconte que ce

que j’ai vu” do autor, os personagens históricos em questão (os F.F.I., os franco-

atiradores, os Alemães, a população etc.) são reconstruídos tal qual personagens de

ficção, e a insurreição parisiense é contada como uma estória: “Un premier camion

allemand passa, en direction de l’Est. De grands hommes blonds, assez beaux, se

tenaient debout à l’arrière, sans méfiance. Les Parisiens, penchés sur leurs balcons,

savaient qu’ils n’avaient qu’un geste à faire, un appel à lancer pour sauver ces hommes

de la mort. Mais cet appel, ils ne voulaient pas, ils ne pouvaient pas le lancer. Ils ont

laissé le camion rouler vers son destin, avec le sentiment obscur d’assister à une fête

tragique et mortelle, à une corrida. Dans les corridas aussi, on attend, penché sur

l’arène, la mort fatale de la brute au soleil, la ‘mort dans l’après-midi’. (...) Les

Allemands commencent à tirer, les F.F.I. s’avancent, sans protection, et tirent aussi. Un

Allemand jette une grenade qui n’éclate pas: un F.F.I. court sous le feu, saisit la

grenade au risque de se faire sauter avec elle et la lance dans la Seine. Mitraillade. Les

spectateurs rentrent prudemment dans les chambres: déjà les balles sifflent à leurs

oreilles. Au bout de cinq minutes, le silence. Les têtes réapparaissent aux fenêtres et

puis c’est une immense clameur: les Allemands sont tous morts. (...) En quelques

instants, toute grâce de la bataille a disparu, les résistants sont cachés” (“Toute la Ville

O MITO DA RESISTÊNCIA

466

Tire”, Combat, 31/8/1944). Se nessa estória de uma “festa trágica e mortal”, ornada

com as cores fortes da Espanha, pode-se ainda ouvir Malraux, não é só porque aí se

realinham alguns dos temas fundamentais de uma “literatura de situações extremas”

que, nas palavras do próprio Sartre, mostrou “l’homme affrontant la mort et la torture

jusqu’aux limites de son courage et de sa liberté”,12 mas sobretudo porque a estória

contada por nosso autor tem estrutura análoga à do “roman-reportage” de Malraux

sobre a Guerra Civil Espanhola. Não por acaso, reencontraremos várias passagens de

L’Espoir recicladas nas reportagens sartrianas13 (assim como EN já transformara até o

título de um dos capítulos desse romance em título de seu capítulo sobre a Liberdade,

conforme vimos): “Toute la matinée, j’ai eu l’impression du tremblement de terre”

(L’Espoir, p.314)/”Toute la matinée, c’est la colère qui souffle sur la ville” (“Un

Promeneur dans Paris Insurgé”); “comme la joie de la foule au carnaval” (L’Espoir,

p.316)/”la foule hurle de joie”, “je n’ai jamais vu tant d’hommes à la fois (...), les

drapeaux rappelent les foules espagnoles (...), carnaval de guerre” (“Un Promeneur...”);

“Et toujours les barricades en construction” (L’Espoir, p.268)/”Vers 11 heures, on voit

apparaître les premières barricades” (“Un Promeneur...”) etc.

Essa reciclagem de Malraux, balizada por modelos narrativos de além-mar (os

“métodos estrangeiros” de que falará Sartre ao se referir à influência da técnica

jornalística dos romancistas americanos sobre sua geração, cf. Sit.II, p.256), no

coração de uma reportagem que no entanto pretende apenas transcrever o que se passa

sob os olhos do autor, já evidencia a que ponto as fronteiras entre o ficcional e o

histórico são aqui esmaecidas. É tudo verdade. E é tudo imaginação. Uma ficção cujo

corte é realista (prefigurando o “réalisme de la temporalité” preconizado em “Qu’est-ce

que la littérature?”, Sit.II, p.327); um documentário talhado nos moldes da ficção (leia-

se “literatura de situações extremas”). Um quase-romance que incorpora a técnica

jornalística (à la americanos); uma reportagem jornalística romanceada. De qualquer

modo, o anticonvencionalismo de Sartre já se encarregou de embaralhar os esquemas

O Domingo da Vida

467

classificatórios preestabelecidos. Reportagem? Ficção? Um pouco (ou muito) de tudo

isso, dependendo do momento de sua inserção no conjunto. (Um conjunto que encerra

indivisos os extremos definidos por esta fórmula lapidar: “a aderência ao concreto e a

mais desbragada imaginação”.14) Ou melhor, dependendo do ângulo em que se

apreende as múltiplas imagens e planos que o autor, à maneira cubista, por assim dizer,

vai sobrepondo. Se em alguns ângulos seu relato parece reportagem tout court, em

outros essa “reportagem” deixa entrever o quanto de transfiguração da realidade ela

contém. Eis portanto outra mutação: uma vez assimilado, o gênero reportagem já se

transformou nas mãos de Sartre, tornando-se um híbrido que, a partir de instrumentos

filosóficos e literários igualmente adulterados, reconstrói o que nosso Promeneur vê e

vive. Trocando em miúdos: o apregoado (pelo autor) “realismo” das reportagens de 44

não significa, cela va de soi, vinculação direta à realidade documentária (estamos a

anos-luz de um realismo espelhista) há mediação. (É isso que o historiador Gilbert

Joseph, no livro Une si douce Occupation, não consegue compreender quando, com a

mentalidade de um investigador de polícia, põe-se a checar as reportagens para

descobrir se elas coincidem com os fatos, ou se correspondem à “realidade”. Escusado

dizer que chegará à brilhante conclusão que não correspondem. E daí? Esse é

justamente o lado mais interessante “se era para fazer igual, por que não deixar a

realidade em paz?”, como diria entre nós Antonio Candido.15) Resta identificar o

elemento mediador.

*

Dada a multiplicidade de gêneros amalgamados nas reportagens de Sartre (mas

unificados no entanto por um elemento oculto centralizador, o qual a seu tempo se

tornará manifesto), por que então a insistência do autor em ofuscar o leitor com sua

intenção monocórdica (“je ne raconte que...”)? É que aqui talvez já estejamos diante de

O MITO DA RESISTÊNCIA

468

um outro pastiche, mas agora de segundo grau. Sem necessidade de forçar a nota,

poderíamos pensar num pastiche (involuntário?) do pastiche que Proust faz, no último

volume da Recherche, de um trecho inédito (imaginário) do Diário dos Irmãos

Goncourt. (Pastiche que, nas palavras de Antonio Candido, de cuja análise aliás

partimos, tem por finalidade “estabelecer de modo irônico a opinião negativa de Proust

sobre o realismo como ‘escola’, a propósito de sua modalidade extrema, o

naturalismo”.16) Mas se assim for, as relações sempre ambíguas, como indicamos

anteriormente17, de Sartre com Proust já se encarregaram de inverter o sinal do

pastiche original. Explicando melhor: se em ambos os autores o sentido e a função do

pastiche seja do estilo naturalista à la Irmãos Goncourt, no caso de Proust, seja do

propósito, igualmente naturalista, de reproduzir fielmente a realidade, no caso de

Sartre é uma dissimulação estratégica (provocativa, vê-se logo), na Recherche tal

dissimulação visa pôr em evidência uma superioridade (a da narração, capaz de

exprimir uma totalidade, sobre o realismo meramente descritivo),18 ao passo que nas

reportagens sartrianas trata-se antes de realçar uma “inferioridade” (o viés aqui é de

rebaixamento). Entre parênteses, convém não esquecer que a principal obra de ficção

de Sartre, La Nausée, começa justamente dissimulando sua natureza ficcional, isto é,

apresentando-se como realidade pura e simples basta lembrar a famosa (falsa) Nota

dos Editores (“Avertissement des Éditeurs”) atribuindo a Roquentin uma existência

real, fora da ficção19 (o que leva a pensar novamente no pastiche de Proust, um

verdadeiro exercício de estilo que, como salientou Antonio Candido, faz Edmond de

Goncourt falar de certos personagens da Recherche como se fossem pessoas vivas).

Esse recurso recorrente a técnicas (que variam em cada caso, bem entendido) para

imprimir uma aparência de realidade verdadeira (não ficcional), viabilizado pela

exploração do gênero jornal, o relato à moda americana (Hemingway e Dos Passos,

sobretudo), presente tanto na Nausée como nas reportagens de 44 (sem esquecer La

mort dans l’âme Fragments de journal e os Carnets de la drôle de guerre), traz

O Domingo da Vida

469

embutido o pressentimento de algo que só se tornará manifesto um pouco mais tarde

justamente a “inferioridade” de que falávamos acima. Se nossa leitura procede, a

dissimulação estratégica que apontamos nas reportagens de 44 serve para evidenciar a

nova função democrática do Intelectual à luz da experiência da Resistência. Uma

democratização que implica necessariamente em rebaixamento do Intelectual que se

torna “n’importe qui”, conforme a fórmula com a qual Sartre passará a caracterizá-lo,

isto é, apenas um homem comum no torvelinho dos grandes acontecimentos que

envolvem a todos (sua contradição essencial é que ele será sempre “un homme de

trop”, mas esse já é outro problema).20 Ao Intelectual, devidamente dessacralizado,

reconduzido à condição de homem como outros, já não cabe dizer ao mundo o que ele

deve ser (outra descoberta possível via Hegel de Kojève, e impensável na ótica do

“velho idealismo tradicional dos universitários franceses”, para usar as palavras de

Simone de Beauvoir). Cabe tão-somente isto que nosso autor, num derradeiro adeus

sem cerimônia à época em que primava o Espiritual, afirma fazer em suas reportagens:

“descrever” o que vê (não é essa afinal a função do repórter?). Com um agravante: sua

descrição não tem nenhuma superioridade com relação às demais “Je ne raconte que

ce que j’ai vu. Ce que tout promeneur a pu voir comme moi”.21 A subjetividade autoral

é atravessada pelos acontecimentos que objetivam a reviravolta da existência. O que

poderia restar dessa subjetividade senão a perspectiva de “tout un homme, fait de tous

les hommes et qui les vaut tous et que vaut n’importe qui” (para relembrar o célebre

final de Les Mots, p.213)?22 (Tal rebaixamento já estava de certa maneira inscrito na

epígrafe da Nausée, extraída de Céline: “C’est un garçon sans importance collective,

c’est tout juste un individu”.) É portanto nada mais nada menos do que a idéia sartriana

do Intelectual como “n’importe qui” que está se consolidando na declaração de

intenções (um sarcasmo que acaba revelando uma verdade) das reportagens de 44.

Durante a insurreição parisiense nosso Promeneur vê efetivamente cumprir-se a

vocação essencial do Intelectual, evidenciada quando se decompõe o nome do alter ego

O MITO DA RESISTÊNCIA

470

de Sartre, Mathieu Delarue (sucedâneo de Roquentin):23 uma consciência jogada no

mundo (puro Nada, diria Kean)24, um homem “de la rue”.25 (O que não é senão a

estrutura de intencionalidade da consciência que Sartre descobrira em Husserl, essa

consciência expulsa de si mesma, lançada vertiginosamente na direção do mundo, e

que receberá mais tarde, por ocasião de seu batismo político, o nome de

Engagement.26) Encerrando em seu próprio nome o destino (e caráter) do Intelectual,

Mathieu Delarue fará a um tempo a descoberta de que “on est toujours n’importe qui”

(cf. Le Sursis, Pléiade, p.756) e a sublime “experiência da solidariedade” em meio à

mais degradada situação-limite da guerra e do campo de prisioneiros (verdadeira prova

dos nove da Condição Humana, como dissemos no capítulo anterior, quando tratamos

da “solidarité du nous”, para relembrar os termos da transposição dessa “experiência”

para a forma filosófica de EN) “Mathieu fait timidement l’expérience de la

solidarité. Au milieu de tous ces hommes qui se perdent ensemble, il apprend qu’on ne

se sauve jamais seul”, escreve Sartre a respeito do último volume de Les chemins de la

liberté (“Prière d’insérer” para a primeira edição de La mort dans l’âme, citado em Les

Écrits de Sartre, p.207). Eis portanto definido o perfil dessa nova figura sartriana do

Intelectual, decantada ao longo de uma luta de Resistência: um “n’importe qui” que,

tendo abatido brutalmente o vôo (filosófico e/ou literário) de seus antecessores, os que

rezavam segundo os cânones do “idealismo oficial”27 da Terceira República, olha para

a vida ao rés-do-chão, e o faz como que projetando num ponto de fuga comum, já

quase indistinguíveis, o filósofo, o escritor e o repórter (o que sinaliza uma mudança de

registro da filosofia e da literatura) um “n’importe qui”, seria preciso acrescentar,

cuja única superioridade, sem a qual aliás se descaracterizaria, estará em se contrapor à

bêtise, ou aos salauds (nessa espécie de Grande Recusa generalizada da ordem positiva

do mundo Sartre será sempre herdeiro da “estética antiburguesa” de Flaubert).28

Estamos agora em condições de perceber mais claramente que o propósito da

dissimulação estratégica presente no parti pris “naturalista” das reportagens de 44 tem

O Domingo da Vida

471

dupla faceta (e o valor de um manifesto, antecipando a “Présentation des Temps

Modernes” e “Qu’est-ce que la littérature?”): mergulhar o Intelectual na ganga bruta da

realidade do dia-a-dia e substituir a “elevada” literatura (leia-se os velhos dogmas da

Academia: língua “nobre”, superioridade da escrita dita “artística”, escritor como

“elite” ou “consciência privilegiada”,29 genialidade e isolamento do escritor etc.), sem

falar da filosofia (já devidamente dessublimada), por algo (o que equivale a dizer: uma

forma) atento ao que de fato interessa a todos,30 ou seja, algo à altura (bem rasteira) da

revelação prosaica da existência. Claro que para Sartre tal modelo jamais poderia estar

nos Irmãos Goncourt, cujo propósito naturalista já nasce inteiramente carcomido pelo

jargão da Academia, da qual aliás são autênticos representantes (e por conseguinte

parte integrante do elenco de figurões laureados contra os quais se volta o sarcasmo de

nosso ex-Normalien).31 Sabemos ademais que o marco inaugural dessa reinvenção

naturalista, feita deliberadamente para contestar a legitimidade literária vigente, e que

tanto escandalizou os homens cultos da época,32 é Céline, cujo Voyage au bout de la

nuit (possível por sua vez graças à reivindicação “antiliterária” dos surrealistas) abriu a

porta para o propósito de Sartre/Roquentin de escrever sem “fazer frases”,

desconfiando da “literatura”. (“Je n’ai pas besoin de faire de phrases. J’écris pour tirer

au clair certaines circonstances. Se méfier de la littérature. Il faut écrire au courant de

la plume; sans chercher les mots”, La Nausée, p.68.) A novidade nas reportagens de 44

é que esse naturalismo renovado vem agora encharcado de um humanismo que acabara

de ser desentranhado de uma experiência de extrema desumanização.33 Por isso já não

basta, aos olhos dessa nova figura do Intelectual, a quebra da monumentalidade do “bel

écrit” da língua oficial, em nome de uma língua viva, sem afetações. É preciso mais

(um mais que é menos): ser homem entre outros.

Mas essa função democrática do Intelectual não é senão a formalização do

ponto de vista da Resistência ou melhor, é a expressão de uma totalidade. Para ir

direto ao ponto: estamos diante de mais uma figura (a última que faltava na

O MITO DA RESISTÊNCIA

472

composição de nosso quebra-cabeça) a reportagem na galeria das outras figuras

(romances, peças de teatro, memórias, ensaio de ontologia fenomenológica) da

Resistência. O que não aparece à primeira vista nas reportagens de 44, dando-lhes

comumente a falsa impressão de mero anedotário (impressão partilhada mesmo pelos

maiores conhecedores da obra sartriana, caso de Michel Contat), portanto algo de valor

reduzido, é exatamente isto: trata-se de mais um registro “fenomenológico”

(contrapeso “documental” de EN) em que a experiência crucial da Resistência é

recuperada e formalizada. Não obstante seu ar de modéstia (“je ne raconte que ce que

j’ai vu; ce que tout promeneur a pu voir comme moi”) falsa modéstia é claro, mas ao

mesmo tempo verdadeira, pois exprime uma descoberta, essas reportagens

convertem um momento real da vida prática em mundo reconstruído (realidade

ficcional). Portanto, formalização também aqui (e não mera “observação” de detalhes

exteriores), só que na outra ponta de uma meada que começamos a desfiar com EN. Se

juntarmos agora essas duas pontas teremos diante dos olhos um verdadeiro Mar de

Histórias da Resistência. Estruturas antagônicas, EN e as reportagens de 44 realizam

no entanto movimentos complementares, mas em sentido inverso. A narrativa da

história imediata através de um “eu” que é “nós” em vez de exprimir apenas o ponto

de vista pessoal do repórter, exprime, por meio dele, algo que diz respeito a toda a

coletividade, entrecruzando assim destino individual e destino político34 é a

concretização do Eu que é Nós hegeliano, reconstruído em EN. (Aos olhos de Sartre, o

que poderia ser aquela conjuntura concebida como um momento privilegiado em que

foi possível o ressurgimento de heróis com “a coragem de dizer não”, e igualmente

possível, para os que escreviam nas folhas clandestinas da Resistência, exercer, numa

“humilde ressonância” da função exercida pelos philosophes no século XVIII, “o

espírito de pura negatividade”35, o que poderia enfim ser aquela conjuntura senão a

encarnação histórica concreta da “estrutura de negatividade” da consciência em EN,

essa consciência heroicizada que, conforme vimos, já surge no mundo “como um Não”,

O Domingo da Vida

473

à maneira da Fenomenologia do Espírito, isto é, como “negação do dado”?) As

impressões do repórter são unificadas no interior do mesmo núcleo integrador das

idéias de EN: o Mito (literário e político) da Resistência. (“Les Forces de la Résistance

sont presqu’un mythe”, lê-se numa das reportagens de nosso Promeneur, “Naissance

d’une insurrection”.) Daí o mesmo interesse específico permeando as diferentes formas

de representação da realidade presentes nessas duas estruturas antagônicas

permeando e recortando o que o “narrador” (o repórter ou o filósofo) quer “contar”: 1)

“C’est cette extraordinaire journée de jeudi que je veux raconter. Elle a commencé

pour tout le monde dans l’espoir, dans la certitude que les Aliés entraient à Paris le

jour même” (“Espoirs et angoisses de l’insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat,

1/9/44); 2) a transposição (antecipada) dessa “extraordinaire journée” histórica para a

forma filosófica de EN se dera nos seguintes termos, que já conhecemos: “Ces instants

extraordinaires et merveilleux, où le projet antérieur s’effondre dans le passé à la

lumière d’un projet nouveau qui surgit sur ses ruines et qui ne fait encore que

s’esquisser, où l’humiliation, l’angoisse, la joie, l’espoir se marient étroitement, où

nous lâchons pour saisir et où nous saisissons pour lâcher, ont souvent paru fournir

l’image la plus claire et la plus émouvante de notre liberté” (EN, p.532). Desta

perspectiva, as reportagens lançam luz nova que permite ver a interpenetração quase

sempre oculta de níveis extremos, ou opostos, do espectro sartriano. (O que torna

menos surpreendente a analogia, assinalada no parágrafo anterior, entre estes planos

aparentemente incomunicáveis: o Intelectual como homme de la rue, a estrutura

intencional da consciência que veio, quem diria, da fenomenologia alemã e o

Engagement.) Interpenetração a ponto de as descrições pormenorizadas próprias de

uma reportagem estamparem o mesmo objetivo que norteará o resto da obra teórica do

autor (principalmente a Critique de la Raison Dialectique, mas já esboçado em EN,

como vimos no capítulo anterior): “Je voudrais vous montrer la naissance de l’esprit

O MITO DA RESISTÊNCIA

474

insurrectionnel” (“Naissance d’une insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat,

29/8/44).

Se quiséssemos afinal circunscrever essa zona (recuada) em que estruturas

opostas se interpenetram, bastaria centrar nosso foco de luz na relação paradoxal que

expuséramos em EN e que reencontramos agora nas reportagens de 44, mas com sinal

trocado entre intenção subjetiva do autor e forma objetiva da obra. O que estamos

vendo é um outro ângulo de uma imagem especular (daí os movimentos inversos mas

complementares mencionados acima). Observamos no início deste capítulo que, no que

diz respeito às intenções do autor, a série “Un Promeneur dans Paris Insurgé” é o

contraponto exato de EN. Com efeito, nada mais antagônico do que o propósito dessas

reportagens (irrestrita fidelidade documentária) e o do Ensaio de Ontologia

Fenomenológica (busca do intemporal pensée de survol, diria Sartre mais tarde), e

por conseguinte nada mais distante à primeira vista do que seus universos narrativos.

Entretanto, se olharmos bem, examinando a organização interna dessas obras,

encontraremos, conquanto bastante escondidas, relações profundas entre ambas há

mais coisas se passando em filigrana nos meandros dos textos do que sinalizavam as

intenções do autor. Daí o resultado desencontrado: há muito de quase-ficção nessas

reportagens jornalísticas, e muito de uma observação quase jornalística da vida

cotidiana no Ensaio de Ontologia Fenomenológica (a ponto de a leitura dos jornais

chegar a imiscuir-se no rumo de demonstrações ontológicas, como vimos no Capítulo

1, II: “Il suffit que j’aie lu les journaux...”, EN, p.573). (Afinal, o que caracteriza a

arquitetura de EN é o movimento contínuo de passagem entre seus dois planos

aparentemente contrastantes, o dos exemplos, colhidos de materiais históricos da

época, e o das demonstrações ontológicas os principais conceitos do livro vão sendo

definidos ao longo desse movimento, conforme procuramos mostrar.) Um resultado

desencontrado em mais de um nível (o da descrição e o da narração, já se vê, apesar de

seus contornos não estarem ainda bem delineados), pois se há muito de transfiguração

O Domingo da Vida

475

da realidade nas reportagens de 44, há muito de figuração do processo social em curso

no Ensaio de Ontologia Fenomenológica (o autor acaba sem querer dando com o

núcleo duro da experiência-limite vivida espécie de “intuição” dos

redirecionamentos das linhas de força da história). Do fundo dessa dupla tensão

inerente a uma obra atravessada pela história imediata, e na qual todavia o autor

pretendia sobrevoar o mundo de muito longe, e outra que procurava apenas transcrever

a realidade, mas resvala para a imaginação romanesca, do fundo dessa dupla tensão

emana no entanto um profundo sentimento daquele mundo (algo não muito diferente do

que Machado de Assis chamava de “sentimento íntimo”36). É que tanto em EN como

nas reportagens um momento crucial da prática política da Resistência já se converteu

em... realidade filosófica ou ficcional (daí a forte impressão de uma narrativa

verdadeira suscitada pela leitura desses textos). Esquematizando: momentos

antagônicos da obra sartriana, EN e as reportagens de 44 são unificados no interior de

um processo que os sintetiza. Ambos descrevem o que nosso Promeneur vê, no caso

das reportagens; a estrutura ontológica da realidade humana e cenas da vida cotidiana,

no caso de EN (mais precisamente o cotidiano de um “estado de exceção”: “la défense

de circuler dans les rues après le couvre-feu”, a volta de prisioneiros de guerra, locais

públicos interditados aos judeus, uma ordem de mobilização, escassez de produtos de

primeira necessidade durante uma guerra etc., sempre apresentados como meros

exemplos de ordem geral, inútil lembrar37). Mas ambos também narram (reconstroem).

Nos dois casos o autor vai inventando a realidade com as lentes (de aumento) da

Resistência.

O que nos recoloca em face da natureza do “realismo” sartriano discussão

encaminhada desde o início deste trabalho (cf. o projeto “realista” do jovem Sartre

exposto no Capítulo 1, I) e com a qual terminamos o capítulo anterior. Não custa

recordar os termos do “realismo” que extraímos da forma filosófica de EN. Por um

lado, o livro descreve um estado de “néantisation”, isto é, privação da liberdade e da

O MITO DA RESISTÊNCIA

476

ação — esse momento negativo da alienação (o Ser-fora-de-si) é, como tentamos

demonstrar (Capítulo 1, II), a forma filosófica de um estado de coisas real. Nesse nível

“descritivo”, o Ensaio de Ontologia Fenomenológica parece muitas vezes caminhar

paradoxalmente quase rente aos fatos, chegando a reproduzir o tom, e até o

vocabulário, dos relatos de época. Por outro lado, como não estamos por certo diante

de uma mera descrição desse estado real de coisas, mas de um trabalho de

reconstrução filosófica, as análises de EN distanciam-se do presente político, no qual

estão todavia profundamente imersas, e conseguem prefigurar sua superação (espécie

de “realismo antecipado”,38 ainda que a realidade representada por esse “realismo”

esteja colorida com as tintas de um mito coletivo). Daí a passagem feita pela

mediação do mito literário e político da Resistência, segundo nossa leitura (cf. em

especial o Capítulo 2, II) do momento negativo ao momento positivo da alienação, o

que resulta na produção da figura central do livro, a Liberdade. É essa argamassa

material composta de uma estrutura filosófica e uma estrutura histórico-literária que

sustenta o esqueleto do “realismo” de EN uma trama filosófica tecida com fios

puxados da experiência histórica. (Estamos na verdade diante de uma reconstrução de

segundo grau, como vimos no capítulo anterior, pois a transposição dessa experiência

histórica para a forma filosófica do livro se faz a partir das reconstruções das

experiências da Revolução Francesa e da Guerra Civil Espanhola, isto é, via Kojève e

Malraux.) Noutras palavras (as de Sartre sobre Flaubert, já citadas), um “carrefour du

réel et de l’imaginaire” o mesmo que acabamos de reencontrar nas reportagens de

44, só que agora na sua face “documental”. Em ambos os casos, portanto, o autor a um

tempo reproduz e flutua sobre a realidade, numa forma filosófica ou na de um “roman-

reportage”. Flutuação que carrega sempre consigo um grãozinho de conteúdo do solo

histórico de onde brotou. Por isso pode “inventar” a realidade, em vez de simplesmente

copiá-la (grande ilusão de todo naturalismo empobrecedor), mas com a convicção de

estar inventando certo. O resultado, um misto de “narração objetiva” e “realismo

O Domingo da Vida

477

subjetivo”,39 constitui por assim dizer um mundo à parte, embora incompreensível fora

da realidade histórica que o fez nascer. Mais do que isso, poderíamos arriscar o

paradoxo e dizer, um pouco na ótica do Sartre da Nausée, que esse mundo à parte é

verdadeiro justamente porque é ficção (recriação de um mito coletivo, no caso) já

quase desligado do mundo, com autonomia (relativa) de vôo, permite apreender melhor

o movimento histórico em curso do que se estivesse colado a ele. (Recorde-se que

Roquentin, contrapondo-se à historiografia tradicional, sugere que a realidade pode ser

mais bem apreendida pela ficção. O bom romancista se confunde com o verdadeiro

historiador e aqui sim Sartre navega nas águas de Balzac.40) Não sendo simples

espelho da realidade (daí sua significação objetiva), esse mundo recriado termina

expondo em profundidade o original pois é próprio da sua natureza autônoma ir além

da aparência dos fatos (sem o que aliás não pode haver crítica da aparência). Tal

autonomia torna-o necessariamente contraditório em relação ao estado de coisas

existente, acrescentando-lhe algo que não se vê a olho nu (assim como o visor da

câmera de um bom fotógrafo pode revelar coisas que o olho não vê41). O “realismo” de

EN e, na outra ponta, o das reportagens de 44 é, como Sartre dizia do olhar que Nova

York exige do bom observador, presbita (“New-York est une ville pour presbytes”,

Sit.III, p.115): precisa afastar-se para ver melhor. Só consegue fazê-lo, contudo,

porque esse olhar presbita pressupõe outra exigência fundamental: afasta-se do mundo,

por certo, mas não sem antes arrastá-lo consigo. Ainda uma vez, movimentos inversos

porém complementares: tal como a consciência que é arrastada para fora de si mesma,

na direção do mundo (o que define sua estrutura de intencionalidade), o mundo por sua

vez é arrastado para dentro da forma filosófica ou literária, que finalmente decantará

essa experiência (em termos mais precisos, o conteúdo de experiência).

Observe-se pois o caráter paradoxal do “realismo” que desentranhamos da

forma literária das reportagens de 44 e da forma filosófica de EN. No primeiro caso,

mais do que o documentário pretendido pelo autor, encontramos um verdadeiro

O MITO DA RESISTÊNCIA

478

documento de época42 que exige decifração, tal qual uma obra não-realista. No

segundo caso, o paradoxo se faz sentir ainda mais vivamente pois o realismo alojado na

forma filosófica da obra deriva justamente do procedimento “idealista” do autor (vimos

nos capítulos anteriores em que medida se pode dizer que o livro é concreto porque é

abstrato). Essas duas estruturas antagônicas são cifras que encerram o sentido profundo

de uma quadra histórica decisiva no mundo contemporâneo. Em ambos os casos, trata-

se de organizar, numa forma literária ou filosófica, uma experiência-limite sem rumo

definido. O que significa dizer: pôr ordem nas idéias da Resistência. A filosofia da

Ação e da liberdade heróica exposta em EN narra tão profundamente essa experiência-

limite que o “realismo” acaba sendo a característica essencial de sua forma.

Decifradas, as páginas desse Ensaio de Ontologia Fenomenológica ensinam muito mais

sobre a França do período crítico da guerra, da Ocupação e da Resistência do que

grande parte dos historiadores da época (só que aqui, ao contrário do que Engels dizia

do Realismo de Balzac, cuja intenção sempre foi “realista” mesmo, estamos diante de

um verdadeiro “fenômeno de acerto involuntário suscitado pela força das coisas”43).

Mais uma das ironias da História: dir-se-ia que aquela conjuntura política dramática

“escolheu” (se quisermos colocar o problema nos termos das análises posteriores de

Sartre sobre Mallarmé e Flaubert) expor suas dores, angústias e esperanças numa obra

que se convencionou classificar como o mais “abstrato” (e técnico) tratado de

Metafísica dos Tempos Modernos, pelo menos no âmbito da filosofia francesa. Noutras

palavras, uma conjuntura que secretou sua “honte”, e em seguida a redimiu, num

ensaio de ontologia fenomenológica.44 Uma obra, enfim, “reclamada” pelo Espírito

Objetivo da época (como diria o Sartre de L’Idiot de la famille).45 Daí sua notável

arquitetura em mais de um plano. Tanto mais notável quando, refratada pelo prisma da

Resistência, essa obra revela-se como o alicerce de uma ordem compósita um

conjunto unitário onde coexistem, sem abdicar de sua diversidade interna, não apenas

um Ensaio de Ontologia Fenomenológica e uma série de reportagens feitas no calor da

O Domingo da Vida

479

hora mas também, como vimos nos capítulos anteriores, romances, peças de teatro e

memórias de época. Por isso ao longo deste trabalho foi possível a analogia entre essas

formas tão diversas, quando não antagônicas. Uma vez rompida a barreira de um

esquema classificatório convencional, e expostos os nexos internos entre assuntos e

gêneros à primeira vista disparatados, o que se tem diante dos olhos, num leque que vai

das descrições de um repórter às descrições de estruturas ontológicas fundamentais, é

nada mais nada menos do que a síntese daquele momento histórico crucial. Unificadas,

essas formas díspares constituem uma totalidade, isto é, não uma simples miscelânea

sem ordem interna, mas o núcleo orgânico da Resistência. O que nos coloca

finalmente em condições de determinar o elemento mediador que buscávamos desde o

início deste trabalho. É a “proximidade imaginativa da revolução social” (nova figura

daquela que, segundo Perry Anderson, a quem se devem as aspas, fora a principal linha

de força do Modernismo de entre-guerras46) o elemento oculto centralizador que

organiza as diferentes formas de representação da Resistência, e dá a impressão de

realidade verdadeira ao relato (do repórter, do escritor ou do filósofo). Mas aqui

descrever já é ao mesmo tempo narrar.

*

Sartre está narrando o que julga ser o limiar de um novo ciclo revolucionário.

Com efeito, o ritmo da vida social e política ia mais e mais se acelerando, como que

preparando o salto veloz da Revolução. A partir da derrota alemã em Stalingrado,

conforme assinalamos no capítulo anterior, e com o conseqüente fortalecimento (e

radicalização) dos movimentos de Resistência em toda a Europa, começa a se tornar

hegemônica entre os contemporâneos a convicção de que a guerra levaria à revolução

mundial (esse o núcleo da mitologia da Resistência). O canto do galo gaulês parecia ter

novamente despertado os povos da Europa. A Revolução estava por assim dizer no ar,

O MITO DA RESISTÊNCIA

480

ou melhor, nas coisas — impulsionando o mundo, como tudo levava a crer, o que

poderia ser senão “la force des choses”? (A retomada dessa expressão de Saint-Just no

título do livro de memórias de Simone de Beauvoir não é pois casual. Trata-se,

ademais, de uma expressão que se tornou corrente com o acirramento dos conflitos

políticos já desde o início da guerra — cf. por exemplo, além dos Carnets de la drôle

de guerre de Sartre, Saint-Exupéry: “Il n’est plus d’armée. Il n’est que des hommes.

(...) Ils sont changés par la force des choses”, Pilote de Guerre, p.119.) Claro que a

grande crise sistêmica de entre-guerras, quando o capitalismo começara de fato a ruir

(abrindo a fenda por onde irromperam as vanguardas literárias e artísticas da primeira

metade do século), predispôs os espíritos para essa “crise revolucionária de 1936-46”

(a periodização é de E. P. Thompson, cf. A Miséria da Teoria, p.87). Veja-se o

depoimento de Simone de Beauvoir sobre a certeza, que sobreveio à Grande

Depressão, de ruptura iminente da ordem capitalista: “Heureusement, la liquidation du

capitalisme semblait se précipiter. La crise qui avait éclaté en 1929 n’avait fait que

s’exaspérer et ses spectaculaires frappaient les imaginations les plus rétives. En

Allemagne, en Angleterre, aux U.S.A., il y avait des millions de chômeurs; des bandes

affamées avaient marché sur Washington; cependant, on jetait à la mer des cargaisons

de café et de blé; dans le sud des U.S.A. on enterrait le coton; les Hollandais abattaient

leurs vaches et les donnaient en pâture à leurs porcs tandis que les Danois

exterminaient cent mille cochons de lait. Banqueroutes, scandales, suicides d’hommes

d’affaires et de grands financiers remplissaient les colonnes des journaux. Le monde

allait bouger” (La force de l’âge, p.155). No crepúsculo do interregno nazi-fascista,

não foi difícil recuperar essa certeza. Tanto mais que a palavra de ordem “Da

Resistência à Revolução” já se alastrara com a mesma rapidez dos rastilhos de pólvora

acionados na “Bataille du Rail” (para lembrar o título de René Clement, clássico da

filmografia da Resistência, dedicado “à la gloire des cheminots de France”). “La

tâche des hommes de la résistance n’est pas terminée. (...) Pour tout dire, n’ayant

O Domingo da Vida

481

qu’une foi en 1940, les Français ont une politique, au sens noble du terme, en 1944.

Ayant commencé par la résistance, ils veulent en finir par la Révolution. Nous ne

croyons ni aux principes tout faits ni aux plans théoriques. C’est dans les jours qui

viendront, par nos articles successifs comme par nos actes, que nous définirons le

contenu de ce mot Révolution. Mais pour le moment il donne son sens à notre goût de

l’énergie et de l’honneur, à notre décision d’en finir avec l’esprit de médiocrité et les

puissances d’argent, avec un état social où la classe dirigeante a trahi tous ses devoirs

et a manqué à la fois d’intelligence et de coeur. Nous voulons réaliser sans délai une

vrai démocratie populaire et ouvrière”, proclama um editorial do jornal Combat

durante a insurreição de agosto de 1944 (“De la Résistance à la Révolution”,

21/8/1944).47

Para o olhar retrospectivo, não mais do que uma “revolução imaginária”,48 por

certo, mas isso não faz dela uma idéia solta no ar, ao contrário, tratava-se de algo

enraizado num processo objetivo, e com visibilidade histórica pelo menos até o final da

guerra (a responsabilidade da política stalinista no refreamento desse processo

revolucionário são outros quinhentos). Já em 1941, Karl Korsch, embora denunciando

o “caráter pseudo-revolucionário da guerra em curso”, não deixa de considerar a

seguinte possibilidade: “Rien n’interdit de penser que la continuation de la guerre,

revenue ainsi à l’ancien style bourgeois, ne puisse en définitive aboutir elle aussi à un

changement par l’intérieur de la structure donnée de société. (...) Les développements

économiques mêmes qui détruisirent graduellement la fonction positive de la guerre en

tant qu’instrument de la révolution bourgeoise ont créé les prémisses objectives d’un

nouveau mouvement révolutionnaire” (“La guerre et la révolution”, in Marxisme et

contre-révolution, pp.229 e 232). De qualquer modo, reconhece Korsch, “le rapport de

la guerre à la révolution est devenu l’un des problèmes centraux de ce temps” (Idem,

p.216). Mais tarde, os estudiosos do período serão quase unânimes em enfatizar a

possibilidade revolucionária todavia tão fugaz aberta com os desdobramentos da

O MITO DA RESISTÊNCIA

482

guerra. (A fugacidade desse momento potencialmente revolucionário é de tal ordem

que, mal terminara a guerra, Sartre já insistia na necessidade de “s’adresser aux

marxistes, à eux seuls, et de dénoncer la révolution tuée dans l’oeuf, la Résistance

assassinée, l’éclatement de la Gauche” numa palavra, “dénoncer la révolution

trahie”, cf. Sit.IV, p.218.) É o caso por exemplo de F. Claudín, para quem “nas

condições de 1945, com o exército vermelho no Elba, a confirmação da possibilidade

revolucionária criada na França e na Itália seria a vitória da revolução na Europa

continental e a radical modificação do equilíbrio mundial de forças contra o

imperialismo americano” (A Crise do Movimento Comunista, vol.2, p.338). No mesmo

sentido, Annie Kriegel observa, em Communismes au Miroir Français, que “plusieurs

des facteurs qui favorisent des révolutions se trouvaient réunis” naquele período. O

espectro da revolução rondava (novamente) de tal maneira a Europa que R. Aron (nisto

insuspeito) indaga se, em face do processo revolucionário em curso, de Gaulle, “le

premier Résistant de France”, poderia “simultanément rétablir une démocratie

parlementaire et prendre la tête d’une révolution” (“Les désillusions de la liberté”, Les

Temps Modernes, número inaugural, outubro de 1945). Mais tarde, em suas memórias,

Aron reitera: “On parla beaucoup de révolution, dans la France libérée; sur la première

page de Combat, au-dessous du titre, figurait le mot d’ordre De la Résistance à la

Révolution; Georges Bidault lança le slogan ‘Révolution par la loi’“ (Mémoires, vol.I,

p.267). Note-se também o que diz um outro contemporâneo, G. Lebrun (bem mais

jovem, mas igualmente insuspeito): “A guerra acabara, o nazismo fora arrasado, todas

as tiranias (salvo a de Franco) haviam sido praticamente extirpadas da face da terra e o

capitalismo tinha os dias contados... Paris saía dos anos sombrios, presa de insaciável

fome cultural. As bancas de jornais estavam repletas de panfletos e libelos de extrema

esquerda...” (Passeios ao léu, p.126). E ainda o testemunho de Dominique Desanti:

“Tous les organismes de la Libération se disaient, se sentaient d’esprit et d’humeur

révolutionnaires. Leur vocabulaire même pouvait les entraîner assez loin” (Les

O Domingo da Vida

483

Staliniens (1944-1956), Une expérience politique, p.13). — “Depuis août 1944, tout le

monde parle chez nous de révolution”, arremata Camus (Actuelles — Ecrits Politiques,

p.127).49 Em seu balanço daquele período histórico, Sartre sintetiza o propósito dos

herdeiros da Resistência: “nous souhaitions que le Front National se transformât, après

la Libération, en un grand mouvement révolutionnaire de résistance, analogue, si vous

voulez, mais en plus serré, en plus efficace, à ce que pouvait être le Front Populaire en

1936” (Entretiens sur la politique, p.71).

Aos olhos dos homens da época, portanto, “a perspectiva histórica do momento

era a revolução” (como Sartre dirá do ponto de vista dos escritores do século XVIII).50

Mesmo descontando a grande parte de ilusão (lírica, para falar na língua de Malraux)

que tudo isso encerrou, é inegável que para os contemporâneos o mundo (pelo menos o

deles) mudara de tal forma com a Guerra, a Ocupação e a Resistência que se tornara de

fato impossível que algo radicalmente novo não resultasse daquela experiência-limite,

isto é, considerava-se definitivamente arquivada a ordem social e política vigente até

1939. Simone de Beauvoir expõe com clareza esse desejo coletivo de mudança radical:

“Pour moi, (…) c’était la liberté même qui s’incarnait (…). Hitler et Mussolini abattus,

Franco et Salazar chassés, l’Europe se nettoierait définitivement du fascisme. Par la

charte du C.N.R. la France s’engageait sur le chemin du socialisme; nous pensions que

le pays avait été assez profondément ébranlé pour pouvoir réaliser, sans nouvelles

convulsions, un remaniement radical de ses structures. Combat exprimait nos espoirs

en affichant comme devise: De la Résistance à la Révolution” (La force des choses,

p.14).51 Exprimindo com efeito o grau máximo de consciência possível da

intelligentsia francesa da época, os editoriais de Combat pressentiam (não mais do que

isso) que a verdadeira Libertação implicava não apenas a aniquilação do nazi-fascismo

mas também de seu substrato real, a ordem do Capital (particularmente na forma que

essa ordem assumira na Terceira República francesa): “Ce ne serait pas assez de

reconquérir les apparences de liberté dont la France de 1939 devait se contenter. Et

O MITO DA RESISTÊNCIA

484

nous n’aurions accompli qu’une infinie partie de nôtre tâche si la République française

de demain se trouvait comme la Troisième République sous la dépendance étroite de

l’Argent” (“Le Combat continue...”, 21/08/1944).52 Profundamente enraizados na

realidade nacional, os herdeiros da Resistência professam no entanto o mais extremado

internacionalismo revolucionário. O que ressalta, aliás, o duplo caráter da insurreição

parisiense de 1944: nacional e revolucionário (a síntese entre ambos já aparece

estampada na própria sigla Francs-Tireurs Partisans Français53) “L’insurrection de

Paris est née au moins de deux nécessités: une nécessité nationale et une nécessité

révolutionnaire” (Editorial intitulado “Des Comités de salut public”, Combat,

27/08/1944). É que naquela conjuntura (mas não apenas nela), como sugere Merleau-

Ponty, havia uma convergência de fundo entre “sentimento nacional” e espírito

revolucionário: “Dans la France de 1940 et maintenant, le sentiment national (nous ne

disons pas le chauvinisme) est révolutionnaire” (“La Guerre a eu lieu”, in Les Temps

Modernes, nº 1, outubro de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens, p.263-264).54 E

é essa convergência que impressionou vivamente o repórter Sartre no momento

apotéotico da Libertação de Paris: “Jamais, de mémoire d’hommes, l’insurrection n’a

ainsi voisiné, fraternisé avec l’armée; jamais on n’a vu défiler, sous les mêmes

acclamations, des combattants civils, armés pour la guérilla et l’embuscade, pour la

révolte, et pour la lutte inégale des barricades, et des soldats impeccables avec leurs

chefs. La foule applaudissait les uns et les autres, elle comprenait obscurément le

double caractère de ce défilé patriotique et révolutionnaire; elle sentait toutes les

promesses contenues dans cette cérémonie extraordinaire et qu’il ne s’agissait pas

seulement de chasser les Allemands de France, mais de commencer un combat plus dur

et plus patient pour conquérir un ordre neuf” (“Un jour de victoire parmi les balles”;

“Un Promeneur dans Paris Insurgé”, Combat, 4/09/1944). O impacto dessa “cérémonie

extraordinaire” sobre o repórter pode ser mais bem dimensionado se nos dermos conta

de que ela fora notavelmente antecipada pelo filósofo (à revelia de suas intenções,

O Domingo da Vida

485

nunca é demais insistir) quando, referindo-se em EN ao momento fundamental da

“conversão radical”, descreve-o nos seguintes termos, os quais vale a pena retomar

mais uma vez: “Ces instants extraordinaires et merveilleux, où le projet antérieur

s’effondre dans le passé à la lumière d’un projet nouveau qui surgit sur ses ruines et

qui ne fait encore que s’esquisser, où l’humiliation, l’angoisse, la joie, l’espoir se

marient étroitement, où nous lâchons pour saisir et où nous saisissons pour lâcher, ont

souvent paru fournir l’image la plus claire et la plus émouvante de notre liberté” (EN,

p.532). Deste novo ângulo, vê-se mais nitidamente em que medida, conforme

afirmáramos no final do capítulo anterior, a engrenagem ontológica de EN funciona

como uma espécie de sismógrafo de uma “revolução imaginária”. É justamente graças

à força totalizadora dessa “revolução imaginária” que, um ano após a “semana de

apocalipse” de agosto de 1944, o ponto de vista do filósofo e o do repórter já se

encontram finalmente reunidos na figura de um novo humanismo revolucionário: “Et,

si je me demande ce qu’on fêtait ainsi, je vois que c’était l’homme et ses pouvoirs. (...)

La plupart des F.F.I. avaient, en août 1944, l’obscur sentiment de se battre non

seulement pour la France contre les Allemands, mais aussi pour l’homme contre les

pouvoirs aveugles de la machine. (...) Tout Paris a senti, dans cette semaine d’août, que

les chances de l’homme étaient encore intactes (...). C’est l’explosion de la liberté, la

rupture de l’ordre établi et l’invention d’un ordre efficace et spontané. (...) C’est ce

triple aspect de tragédie refusée, d’apocalypse et de cérémonie qui donne à

l’insurrection d’août 1944 son caractère profondément humain et ce pouvoir qu’elle a

gardé de nous toucher au coeur. (...) En cette bataille cérémonieuse et

disproportionnée, Paris, contre les tanks allemands, a affirmé la puissance humaine”

(“La Libération de Paris: Une semaine d’apocalypse”, Clartés, n° 9, 24 de agosto de

1945; reproduzido em Les Écrits de Sartre, pp.659-662).

Como que confirmando Malraux “la plus grande force de la révolution, c’est

l’espoir” (L’Espoir, p.44),55 a grande força desses dias memoráveis do verão

O MITO DA RESISTÊNCIA

486

apocalíptico de 44, suficiente inclusive para consolidar o humanismo revolucionário

que daí nasce, decorre das intensas esperanças que aquele instante de “explosão da

liberdade” despertou nos contemporâneos. Observe-se o relato de nosso “Promeneur

dans Paris Insurgé”: “Au loin le canon tonne, l’espoir monte dans tous les coeurs. (...)

Les cloches se mettent à sonner, les fenêtres s’illuminent, l’immense clameur jaillit des

maisons et des rues. Au milieu du carrefour, un homme entonne ‘la Marseillaise’... Il

ne sait qu’un seul couplet, que la foule reprend deux, trois fois (...); mais les chants ne

suffisent pas à traduire notre joie: hommes et femmes se prennent par la main et

forment une ronde. Quelqu’un a allumé un feu au coin du boulevard Montparnasse et,

juste à cet endroit où se célébraient par un bal les 14 Juillet d’autrefois... La foule se

déroule en farandoles autour d’un feu de joie. (...) Tout à l’heure, du haut des toits, on

a tiré; la foule le sait et, cependant, l’enthousiasme est plus fort que toute prudence

(...). La foule hurle de joie” (“La délivrance est à nos portes”, “Un Promeneur...”,

Combat, 2/9/1944). (O espírito e a letra dessa reportagem reencontram-se nas

memórias de Simone de Beauvoir: “Le canon a tonné, toutes les cloches de Paris se

sont mises à sonner, tous les immeubles se sont illuminés. Quelqu’un a allumé un feu

de joie sur la chaussée; nous nous sommes tous pris par la main; et nous avons tourné

autour, en chantant”, La force de l’âge, p.681.)56 Naquele momento de festa, ornada

com o que Sartre chamará mais tarde de “masque trompeur de l’unité nationale”,57 a

ninguém ocorreria indagar por quem os sinos dobram. Eles dobram, é claro, por todos

(mantida a distância de praxe entre Ratos e Homens, inútil dizer). No calor de um

“moment d’ivresse et de joie”, na definição de Sartre (“L’Insurrection”, “Un

Promeneur...”, Combat, 28/8/1944), como distinguir as diferenças políticas ou de

classes sociais?58 (Desta perspectiva, faz sentido, isto é, não é mera abstração, a

generalização do autor nesta passagem citada no final do parágrafo anterior: “on fêtait

l’homme et ses pouvoirs”.) “Jour et nuit avec nos amis, causant, buvant, flânant,

riant, nous fêtions notre délivrance. Et tous ceux qui la célébraient comme nous

O Domingo da Vida

487

devenaient, proches ou lointains, nos amis. Quelle débauche de fraternité! (...)

Gaullistes, communistes, catholiques, marxistes, fraternisaient. Dans tous les journaux

s’exprimait une pensée commune. Sartre donnait une interview à Carrefour. Mauriac

écrivait dans Les Lettres françaises; nous chantions tous en choeur la chanson des

lendemains”, escreve Simone de Beauvoir (La force des choses, vol.I, pp.14 e 20).59

Tal “pensée commune”, indissociável de um sentimento coletivo, encontra-se

sintetizada neste belo depoimento de Camus, num editorial de Combat: “Tandis que les

balles de la liberté sifflent encore dans la ville, les canons de la libération franchissent

les portes de Paris au milieu des cris et des fleurs. Dans la plus belle et la plus chaude

des nuits d’août, le ciel de Paris mêle aux étoiles de toujours les balles traçantes, la

fumée des incendies et les fusées multicolores de la joie populaire. Dans cette nuit sans

égale s’achèvent quatre ans d’une histoire monstrueuse et d’une lutte indicible où la

France était aux prises avec sa honte et sa fureur. (...) Cette nuit vaut bien un monde,

c’est la nuit de la vérité. (...) Elle est la voix même de ce peuple et de ce canon, elle a

le visage triomphant et épuisé des combattants de la rue, sous les balafres et la sueur.

(...) Il y a quatre ans, des hommes se sont levés au milieu des décombres et du

désespoir et ont affirmé avec tranquillité que rien n’était perdu. (...) Ils ont payé le

prix. (...) Mais ces mêmes hommes, s’ils le pouvaient, ne nous reprocheraient pas cette

terrible et merveilleuse joie qui nous remplit comme une marée. (...) Unis dans la

même souffrance pendant quatre ans, nous le sommes encore dans la même ivresse,

nous avons gagné notre solidarité” (“La Nuit de la Vérité”, Combat, 25/08/1944;

reproduzido em A. Camus, Actuelles Écrits Politiques, pp.19-20). Sem dúvida, uma

“terrível e maravilhosa alegria”, ou “uma felicidade ainda amedrontada” (para usar os

termos com que uma criança de então definirá mais tarde seu sentimento daquele

mundo da desocupação60), misto de reações contraditórias que nosso repórter não

deixou de registrar: “Je regarde cette foule désarmée et une sorte d’angoisse me prend

à mon [tour]: elle a l’air si fragile, elle est heureuse, elle rit avec une espèce

O MITO DA RESISTÊNCIA

488

d’innocence. Et pourtant, parmi ces hommes, parmi ces femmes mêmes, je sais qu’il y

aura demain, après-demain, d’autres victimes” (“Colère d’une Ville”, “Un

Promeneur...”, Combat, 30/8/1944). Houve de fato muitas outras vítimas no decorrer

dessas “journées sanglantes” (“Naissance d’une Insurrection”, “Un Promeneur...”,

Combat, 29/8/1944), mas isso em nada diminuiu a euforia coletiva (“l’enthousiasme

éteignait la peur”, escreve Simone de Beauvoir61) pois é justamente desse “Sang de la

Liberté” (para usar o título de um dos artigos de Camus nas páginas de Combat,

24/8/1944) que brotou a certeza de que tudo se tornara possível. (Afinal, o que a

geração de Sartre julga ver naquele momento é nada mais nada menos do que a

encenação histórica concreta do desfecho apoteótico do enredo kojeviano, reescrito em

EN “C’est là que l’Esclave (ou le Bourgeois ex-Esclave) enfin se libère, car c’est là

pour lui la Kampf, la Lutte sanglante pour la reconnaissance, qui lui était nécessaire

pour intégrer en son être l’élément de la Maîtrise, de la Liberté”, A. Kojève,

Introduction à la lecture de Hegel, p.143.) Sobre essa euforia que resulta da convicção

de estar vivendo na curva ascendente de uma revolução, vejam-se as palavras de

Simone de Beauvoir: “C’est fini: tout commence. (...) Notre entourage partageait cette

euphorie (…). Tous les chemins s’ouvraient. Journalistes, écrivains, cinéastes en herbe,

discutaient, projetaient, décidaient avec passion, comme si leur avenir n’eût dépendu

que d’eux. Leur gaieté fortifiait la mienne. (…) Il me semblait savoir beaucoup et

pouvoir presque tout” (La force des choses, vol.I, pp.13 e 21). E ainda: “En août on

racontait que tout allait changer” (Les Mandarins, vol.I, p.26).62

Recém-chegados de uma longa “viagem ao fundo da noite” (a nauseante

travessia da Terceira República e da Ocupação), Sartre e seus contemporâneos

redescobrem a luminosa Paris das barricadas tão luminosa quanto, por exemplo, sua

representação na tela clássica de Delacroix, “La Liberté conduisant le peuple”, pois é

justamente essa tradição revolucionária francesa que está sendo reativada. (O que faz

da idéia, esboçada em EN, de Revolução como “une lumière neuve” que “tombe sur

O Domingo da Vida

489

nos peines et sur nos souffrances”63 ao mesmo tempo “un souvenir et une anticipation”,

para seguir livremente uma pista aberta por Sartre noutro contexto64 resíduo da

decantação da experiência revolucionária francesa, portanto parte da memória coletiva,

e antecipação da “semana de Apocalipse” de 1944.) “Les ténèbres qui avaient

enfermé la France explosaient”, lê-se em La force des choses (p.14). De tal explosão

renasce das cinzas a França das revoluções (que já entrara novamente em cena com o

Hegel de Kojève, conforme vimos no capítulo anterior), essa “France perdue et

retrouvée” como sublinha um editorial de Combat: “Il n’est, en vérité, de grandes

nations que les nations révolutionnaires, et ce qui a fondé la grandeur de notre pays, ce

sont précisément ces révolutions successives que les ‘bien pensants’ condamnaient.

Les insurgés d’aujourd’hui retrouvent la tradition française, et cette passion de la

liberté qui, comme l’amour, peut seule conduire d’un pas alerte jusqu’aux suprêmes

sacrifices. C’est avec le Paris de mars 1871 que nous renouons en ce moment. C’est

une nouvelle Commune que nous vivons, avec ses fédérés devenus F.F.I., et les canons

allemands dans le paysage des Tuileries et des Champs-Elysées. Mais cette fois, il

s’agit d’une Commune victorieuse. Nous pouvons même dire d’une Convention, et

c’est pourquoi l’étranger ne pouvait manquer d’être saisi” (“La France perdue et

retrouvée”, 24/08/1944). Vai no mesmo sentido a análise de Merleau-Ponty, para quem

1793, 1871 e 1944 são momentos em que o proletariado retomou por sua conta “a

herança nacional abandonada pela burguesia” (“Autour du Marxisme”, Sens et Non-

Sens, p.192). No imaginário da Resistência, com efeito, 1944 é o ponto decisivo em

que se consegue reatar o elo rompido das grandes revoluções dos séculos XVIII e XIX

na França. Eis o que diz Sartre num ensaio escrito no final da guerra, “Qu’est-ce qu’un

Collaborateur?”: “Il faut, autant que possible, achever l’unification de la société

française c’est-à-dire le travail que la Révolution de 89 a commencé; et c’est ce qui ne

peut se réaliser que par une révolution nouvelle, cette révolution qu’on a tentée en

1830, en 1848, en 1871 et qui a toujours été suivie d’une contre-révolution” (Sit.III,

O MITO DA RESISTÊNCIA

490

p.60). Já na primeira de suas reportagens de 1944 o autor observava: “La rue est

devenue, comme en 89, comme en 48, le théâtre des grands mouvements collectifs et

de la vie sociale” (“L’Insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat, 22/08/1944). Embora

não haja aqui nenhuma diferenciação entre as grandes “revoluções burguesas” como

1789 e a profunda reviravolta anti-sistêmica de 1848 (uma ambigüidade que aliás não

deixa de exprimir o caráter demasiado amplo da grande frente antifascista que se

estende da Guerra Civil Espanhola65 ao final da Segunda Guerra), a própria

radicalização política da Resistência, que mais e mais se “gauchissait”, conforme já

assinalamos, foi se encarregando de pôr as coisas no seu devido lugar no caso, “um

breve relance de olhos no quarto proibido”,66 quando se entreviu, naquele instante que

Sartre definiu como de “ruptura da ordem estabelecida” (“La Libération de Paris...”,

p.661), e portanto de vácuo do poder, algo para além da bêtise da vida burguesa (para

recolocar o problema nos termos de Flaubert e herdeiros). (A contraprova serão as

análises sartrianas sobre Maio de 68, cujo molde ainda é a “semana de Apocalipse” de

44.) Por isso em suas reportagens o autor fala em “commencer un combat plus dur et

plus patient pour conquérir un ordre neuf”, como vimos acima. Por isso também uma

geração inteira redescobre, nas páginas de Combat, a idéia de violência revolucionária

(doravante fundamental no pensamento de Sartre): “Qui oserait parler ici de pardon?

Puisque l’esprit a enfin compris qu’il ne pouvait vaincre l’épée que par l’épée,

puisqu’il a pris les armes et atteint la victoire, qui voudrait lui demander d’oublier?”

(Editorial intitulado “Le Temps du Mépris”, 30/8/1944).

Portanto, ainda que misturando séries históricas direcionadas para fins opostos,

1789 e 1848, o que realmente conta do ponto de vista da Resistência é a possibilidade

de enfim realizar, de forma agora efetiva, as grandes promessas de liberdade e

igualdade imanentes aos momentos de “haute température historique” (para usar a

expressão de Jaurès, retomada por Sartre) trocando em miúdos, “réaliser sans délai

une vrai démocratie populaire et ouvrière”, como apregoava um já citado editorial de

O Domingo da Vida

491

Combat. Vê-se pois que a tradição revolucionária clássica, radicalizada, já passou aqui

pelo filtro da experiência histórica em curso. É que, tal como foi vivida e concebida,

essa experiência é de fato vasta o suficiente para encerrar, e sobretudo reciclar, toda a

história da França revolucionária “toute l’histoire de Paris était là”, afirma Sartre ao

descrever o Apocalipse de 44 (mutatis mutandis, os termos dessa descrição são os

mesmos que reencontraremos nas análises do autor sobre Maio de 68): “Nous avait-on

dit que les révolutions du XXe siècle ne pourraient pas ressembler à celles du XIXe et

qu’il suffirait d’un seul avion, d’un seul canon pour réduire une foule révoltée. Nous

avait-on assez parlé de la ceinture de canons dont les Allemands entouraient Paris!

Nous a-t-on assez démontré que nous ne pouvions rien faire contre leurs mitrailleuses

et leurs chars! Or, en ce mois d’août, les combattants qu’on rencontrait dans les rues

étaient des jeunes gens en manches de chemise; ils avaient pour armes des revolvers,

quelques fusils, quelques grenades, des bouteilles d’essence; ils s’enivraient, en face

d’un ennemi bardé de fer, de sentir la liberté, la légèreté de leurs mouvements; leur

discipline inventée à chaque minute triomphait de la discipline apprise; ils mesuraient,

ils nous faisaient mesurer la puissance nue de l’homme. Et l’on ne pouvait s’empêcher

de penser à ce que Malraux nomme, dans L’Espoir, l’exercice de l’Apocalypse. Oui,

c’etait le triomphe de l’Apocalypse, cette Apocalypse toujours vaincue par les forces

de l’ordre et qui, pour une fois, dans les étroites limites de cette bataille de rues, était

victorieuse. L’Apocalypse: c’est-à-dire une organisation spontanée de forces

révolutionnaires.67 (...) Lorsque la foule de 1789 envahit la Bastille, elle ignorait la

signification et les conséquences de son geste; c’est après coup, peu à peu, qu’elle en a

pris conscience et qu’elle l’a élevé à la hauteur d’un symbole. Mais notre temps est

conscient de faire l’histoire. Ce qui frappait, en août 1944, c’est que le caractère

symbolique de l’insurrection était déjà fixé alors que son issue était encore incertaine.

Choltitz, en hésitant à détruire Paris; les Alliés, en acceptant d’avancer la date de leur

entrée dans la capitale; les Résistants, en choisissant d’y livrer leur grande bataille, ont

O MITO DA RESISTÊNCIA

492

décidé tous que l’événement serait ‘historique’. Tous avaient présentes à la mémoire

les grandes colères de Paris. (...) Et chaque F.F.I., en se battant, avait l’impression

d’écrire l’histoire. Toute l’histoire de Paris était là, dans ce soleil, sur ces pavés

déchaussés” (“La Libération de Paris: Une semaine d’Apocalypse”, pp.661-662). Vale

a pena observar essa nova figura recém-acrescentada à galeria das “grandes colères de

Paris” no exato momento em que ela toma forma nas reportagens de nosso Promeneur:

“Toute la matinée, c’est la colère qui souffle sur la ville. Cette foule a enfin décidé de

prendre son destin entre ses propres mains. Vers 11 heures, on voit apparaître les

premières barricades. Le chemin qui mène de la docilité douloureuse à l’insurrection

est enfin parcouru. A partir de ce moment, il n’y aura plus que des combattants”

(“Colère d’une Ville”, “Un Promeneur...”, Combat, 30/8/1944). No dia anterior o

repórter escrevia: “L’insurrection va-t-elle se généraliser? (...) Des groupes se forment.

(...) Alors tout à coup, la fureur de la foule se déchaine. C’est sa première

manifestation collective; c’est la première fois, depuis le matin, qu’elle prend

conscience d’elle-même. (...) Les gens sont transformés. (...) Ils ont pris parti”

(“Naissance d’une Insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat, 29/8/1944). Cifrada na

virada filosófica em que, nas análises de EN, o ativismo de Kojève prevalece sobre o

quietismo heideggeriano (“l’essence des rapports entre consciences n’est pas le

Mitsein, c’est le conflit”, EN, p.481), o que resulta na “conversion radicale”, ou na

decisão de “renverser la vapeur” (EN, p.520), cujo pressuposto é a “tomada de

consciência”, como mostramos em capítulos anteriores, essa virada histórica registrada

agora à chaud pelo repórter, quando “cette foule a enfin décidé de prendre son destin

entre ses propres mains”, converte-se mais tarde, na Critique de la Raison Dialectique,

na teoria do momento heróico da formação do grupo, o “groupe en fusion” “Le

caractère essentiel du groupe en fusion, c’est la brusque résurrection de la liberté”

(Critique de la Raison Dialectique, vol.I, p.502, nova edição).68

O Domingo da Vida

493

Tendo pois ele próprio assistido à formação de um “grupo em fusão”, e já às

voltas com a tentativa de descrever suas estruturas,69 particularmente sua estrutura

temporal, Sartre vai inventando nas reportagens uma forma narrativa capaz de exprimir

tal experiência heróica. E o que essa forma narrativa exprime, por meio de repetições

que sempre acrescentam algo ao que está sendo repetido, é uma temporalidade

cumulativa e ascendente: “On connaît la consigne: assommer un Allemand et lui

prendre son revolver, avec le revolver conquérir un fusil, avec le fusil s’emparer d’une

voiture, avec la voiture prendre une auto-mitrailleuse et un tank. Plus d’un en a souri,

parmi les incrédules de la résistance. Et pourtant, ce programme s’est réalisé point par

point sous mes yeux” (“Toute la ville tire”, “Un Promeneur...”, Combat, 31/8/1944).

Isso significa, no imaginário da Resistência, uma nova linha revolucionária ascendente,

cujo traçado vai num sentido inverso ao processo regressivo de fevereiro-junho de

1848, isto é, passa da contra-revolução à revolução, tal como se interpreta a

metamorfose da “guerre de droite” em “guerre de gauche”, conforme assinalamos no

capítulo anterior. E é justamente esse sentido inverso que encontramos embutido na

forma narrativa das reportagens de 44. Para expô-lo à luz do dia, bastaria salientar o

caráter revelador de um aparente qüiproquó: fazendo por vezes quase um pastiche das

descrições, presentes na Éducation Sentimentale, das jornadas revolucionárias de 1848

(a ponto de tomar emprestado até o vocabulário de Flaubert), as reportagens sartrianas

dão-lhes exatamente um... sentido inverso. Convém abrir um parêntese para lembrar

que pouco antes, nas páginas dos Carnets de la drôle de guerre, nosso autor, num feroz

embate com Flaubert, põe-se a corrigir e a reescrever várias passagens da Éducation

Sentimentale70 cuja “importância” decisiva o discípulo (ou antidiscípulo,71 o que dá

na mesma nessa linhagem de pensamento negativo) não deixa no entanto de registrar

nos seguintes termos: trata-se de um “estilo de transição” que foi capaz de “traduzir”

“a civilização industrial de Louis-Philippe e os movimentos sociais de 48” (Les carnets

de la drôle de guerre, p.130). Convém lembrar também que no pensamento de Sartre a

O MITO DA RESISTÊNCIA

494

reconstrução do mundo de 1848, ou, nas suas palavras, “le sens de la réalité de

1848”,72 passa de tal modo por Flaubert que o autor não hesitará mais tarde, no

momento de definir o projeto de L’Idiot de la Famille, em identificá-los: “C’est un

livre d’histoire: la révolution de 1848, etc.” (Entrevista, Tribune Étudiante, no 56,

janeiro-fevereiro de 1962). O que o conjunto desse projeto visava (uma verdadeira

obsessão), conforme Sartre esclarece noutra ocasião, era reconstituir, “a partir da vida

e da obra de Flaubert”, o processo social que culminou no “massacre de 1848” (Sit.IX,

p.118-119). Fechando o parêntese, e levando-se em conta essa obsessão que atravessa

de ponta a ponta a obra sartriana, não há de surpreender (mas apenas em termos) que

no momento apoteótico da insurreição de 1944, quando se deseja (inconscientemente,

como logo se verá) exorcizar o fantasma do “massacre de 1848”, Sartre o faça via

Flaubert. Com efeito, o leitor das reportagens de 1944, recordando-se das descrições da

Revolução de Fevereiro na Éducation Sentimentale (“o belo sonho de fevereiro” do

qual “junho é o mau despertar”, nas palavras de Dolf Oehler73), dificilmente deixará de

experimentar um estranho ar de família. Nessas descrições, relidas com os óculos de

nosso “Promeneur dans Paris Insurgé”, encontram-se passo a passo o que as

reportagens sartrianas chamarão de “naissance de l’esprit insurrectionnel”, começando

pela formação de um “grupo em fusão”, que se dá no caso sob os olhos do personagem

Frédéric Moreau: “Plus loin, il remarqua trois pavés au milieu de la voie, le

commencement d’une barricade, sans doute (...). La veille au soir, le spectacle du

chariot contenant cinq cadavres recueillis parmi ceux du boulevard des Capucines avait

changé les dispositions du peuple; (...) l’insurrection, comme dirigée par un seul bras,

s’organisait formidablement. (...) Paris, le matin, était couvert de barricades”

(L’Éducation Sentimentale, p.335-336). Na primeira das reportagens de Sartre, é

também após o terrível espetáculo do translado dos corpos de resistentes metralhados

pelos alemães e recolhidos por enfermeiros que advém a mudança no estado de espírito

do povo, e uma multidão surge nas ruas (“les infirmiers emportent les corps et la foule

O Domingo da Vida

495

renaît comme par enchantement”, “L’Insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat,

28/8/1944) a partir daí, isto é, desse momento crucial em que “les gens sont

transformés”, como vimos nas passagens citadas no parágrafo anterior, “la fureur de la

foule se déchaine”, aparecem as primeiras barricadas e a insurreição se generaliza.

Voltando à sequência das descrições de Flaubert na Éducation Sentimentale: “Frédéric,

pris entre deux masses profondes, ne bougeait pas, fasciné d’ailleurs (...). Il lui

semblait assister à un spectacle. (...) Tout à coup la Marseillaise retentit. (...) C’était le

peuple. (...) Alors, une joie frénétique éclata, comme si, à la place du trône, un avenir

de bonheur illimité avait paru” (pp.337-340). Recorde-se também o testemunho do

personagem Dussadier: “le peuple triomphe! les ouvriers et les bourgeois

s’embrassent! ah! si vous saviez ce que j’ai vu! Quels braves gens! comme c’est beau!

(...) On sera heureux maintenant! (...) Plus de rois, comprenez-vous? Toute la terre

libre! toute la terre libre!” (p.342-343). E ainda na sequência, quando já se ouve “la

sonnerie des cloches”, lê-se: “Le magnétisme des foules enthousiastes l’avait

[Frédéric] pris (...), comme si le coeur de l’humanité tout entière avait battu dans sa

poitrine. (...) Frédéric le suivit [Hussonnet] à son bureau de correspondance (...) et il se

mit à composer pour le journal de Troyes un compte rendu des événements (...) Les

espérances s’étalaient (...). L’orgueil d’un droit conquis éclatait sur les visages. On

avait une gaieté de carnaval (...); rien ne fut amusant comme l’aspect de Paris, les

premiers jours. (...) Il lui [Frédéric] sembla qu’une aurore magnifique allait se lever.

(...) Toute l’Europe s’agitait” (pp.343-349).

Se transcrevemos essas passagens da Éducation Sentimentale não foi apenas

para ressaltar o quase-pastiche de Sartre, cujos passos nem valeria a pena acompanhar,

até porque os materiais já utilizados ao longo deste capítulo são suficientes para

identificá-los. Ademais, numa conjuntura em que se julga reatar a tradição

revolucionária francesa, quando mais uma vez o povo entoa nas ruas a Marseillaise e

ouve-se novamente a “sonnerie des cloches”, pois em 1944 também “toute l’Europe

O MITO DA RESISTÊNCIA

496

s’agitait”, não seria de fato surpreendente o recurso de Sartre (seguido de perto por

Simone de Beauvoir) ao mesmo vocabulário usado por Flaubert em suas descrições de

1848: a “fascinação” dos que “assistem” ao “espetáculo”74 da insurreição, seja

fevereiro de 1848 ou agosto de 1944 (quando afinal o repórter conhece à chaud a

“monstruosa” e “fascinante” “matérialité de la foule” de que falava o filósofo: “la

matérialité monstrueuse de la foule et sa réalité profonde sont fascinantes pour chacun

de ses membres”, EN, p.474), a “joie frénétique”, nas palavras de Flaubert, ou o

“moment d’ivresse et de joie” nos termos de Sartre (“la foule hurle de joie”), o aspecto

carnavalesco da festa popular (mas na descrição sartriana as cores vivas desse carnaval

já exibem também a Espanha de Malraux, como vimos mais no início),75 e assim por

diante. O motivo da transcrição de Flaubert foi antes realçar uma nova imagem

especular: o pastiche de Sartre pode às vezes parecer igual ao original, só que está tudo

invertido. Mesmo nos momentos em que a letra é quase idêntica, o espírito das

descrições da Éducation Sentimentale já foi revertido em seu contrário nas reportagens

sartrianas. Tudo agora deve ser lido com sinal trocado: o que em Flaubert era negativo

(escárnio, ironia, uma descrição assassina da festa popular, pois o que está sendo

dissecado é o cadáver das ilusões mortas em junho de 48 “disséquer est une

vengeance”, como dizia o autor76), torna-se positivo (afinal, estamos diante do

nascimento de um Mito, o da Resistência, marco zero da “subjetividade rebelde”77 em

Sartre). Por isso falamos acima em estranho ar de família. A estranheza é ainda maior

se considerarmos que nosso “Promeneur dans Paris Insurgé” é o exato oposto de

Frédéric Moreau (que sem dúvida faz parte, e provavelmente mais do que qualquer

outro, da galeria dos “personagens irritantes” de Flaubert contra os quais Sartre se

volta) esse Promeneur na Paris das barricadas de 1848 (as de Fevereiro, é claro,

pois em Junho o herói já batera em retirada) não é senão, como evidenciam as

descrições implacáveis de Flaubert, un vrai médiocre (tanto quanto Lucien Fleurier,

talvez o mais flaubertiano dos personagens de Sartre). Ou un vrai salaud (se

O Domingo da Vida

497

enquadrarmos o personagem na ótica sartriana), sobre o qual recai um dos comentários

mais chocantes de Flaubert: “C’était la fusillade du boulevard des Capucines. Ah!

on casse quelques bourgeois, dit Frédéric tranquillement, car il y a des situations où

l’homme le moins cruel est si détaché des autres, qu’il verrait périr le genre humain

sans un battement de coeur” (L’Éducation Sentimentale, p.330). É bem verdade que

logo depois Frédéric, malgrado seu desdém inicial (“Oh! je les connais, leurs

manifestations. Mille grâces! J’ai un rendez-vous plus agréable”, p.322), se deixará

envolver pelo “magnétisme des foules enthousiastes”, como vimos nas descrições

acima, mas esse envolvimento superficial, pois daí não se extrai nenhuma mudança

significativa, ao contrário de nosso Promeneur só faz realçar ainda mais o caráter

volúvel do herói. Como então explicar os momentos de paralelismo nas descrições dos

dois “Promeneurs”? (Mais um exemplo: em ambos os casos, o primeiro registro da

insurreição ainda não é na condição de “Promeneurs” misturados à multidão, mas

através de uma janela que se abre para os grandes acontecimentos da rua “Ils

[Frédéric e Rosanette] passèrent l’après-midi à regarder, de leur fenêtre, le peuple dans

la rue”, escreve Flaubert referindo-se aos primeiros momentos da Revolução de

Fevereiro, p.330; “J’ai vu, de ma fenêtre, les Allemands déboucher sur le boulevard en

formation serré et arroser le trottoir avec leurs mitraillettes”, escreve Sartre na primeira

de suas reportagens, “L’Insurrection”, Combat, 28/8/1944.) Uma explicação possível,

que desfaz a estranheza inicial, é pensar no que poderia ser uma dupla função desse

paralelismo: 1)ressaltar o reencontro com o momento vitorioso da Revolução de

Fevereiro de 1848, descrito por Flaubert em termos que mutatis mutandis poderiam se

confundir com os de nosso repórter quase um século depois: “Paris avait changé. Tout

le monde était en joie; des promeneurs circulaient, et des lampions à chaque étage

faisaient une clarté comme en plein jour” (L’Éducations Sentimentale, p.330);

2)exprimir o desejo dos herdeiros da Resistência de que o verão apocalíptico de 1944

(no sentido positivo dado por Sartre, relendo Malraux) não tenha o desfecho trágico do

O MITO DA RESISTÊNCIA

498

verão apocalíptico de 1848 (no sentido negativo da Éducation Sentimentale: “c’était un

débordement de peur”, “l’aristocracie eut les fureurs de la crapule”, p.393) um

desfecho trágico a ponto de ser definido (por Engels) como “guerra de extermínio” e de

tornar-se, conforme mostrou Dolf Oehler, um verdadeiro trauma da “psique coletiva”

francesa.78 Caminhando paralelamente às descrições de Flaubert, mas invertendo seu

sentido original, Sartre estaria tentando sem se dar conta, pois aqui já é o espírito da

Resistência soprando às costas do autor virar pelo avesso “o mundo social

imaginário” de 1848 (“le monde social imaginaire de la rêveuse bourgeoisie de 1848”,

como se lê em Sit.IX, p.119). Desta perpectiva, as reportagens de 44 realizam no

imaginário (forma ficcional) um desejo coletivo (inconsciente): fazer com que a

engrenagem de fevereiro-junho de 1848 funcione agora em sentido contrário. Trocando

em miúdos, é como se a vitória de agosto de 1944 só pudesse compensar efetivamente

a derrota de junho de 1940 se compensasse ao mesmo tempo a derrota de junho de

1848.

O que torna mais compreensível o uso do plural défaites nesta passagem

em que Simone de Beauvoir celebra a vitória da Resistência em agosto de 1944: “Cette

victoire effaçait nos anciennes défaites, elle était nôtre et l’avenir qu’elle ouvrait nous

appartenait” (La force des choses, p.14). E ainda mais compreensível a insistência dos

editoriais de Combat na idéia de que “la tâche de la Résistance” só será plenamente

cumprida quando se realizar “une vrai démocratie populaire et ouvrière”, como vimos

acima. Sabemos que no ideário da Resistência a derrota de junho de 1940 significa o

eclipse da tradição revolucionária francesa (cf. capítulo anterior). Mas o que nos parece

estar no centro desse ideário, só que de maneira recalcada (e aqui um momento

particular da história da cultura francesa contemporânea que confirmaria a tese de Dolf

Oehler sobre o “recalque dos horrores de junho” de 48 na memória coletiva79), é antes

a total reviravolta dessa tradição, isto é, os “dias nos quais era decidida em Paris a

batalha entre a república burguesa e a república vermelha”,80 junho de 1848. O fato de

O Domingo da Vida

499

essa reviravolta radical aparecer nos textos da Resistência, inclusive nos de Sartre,

como vimos, sempre diluída nas revoluções burguesas é um sintoma desse recalque

(mas também da já mencionada ambiguidade própria de uma grande frente

antifascista). Várias contraprovas desse recalque encontram-se em passagens citadas

nos parágrafos anteriores. Basta notar por exemplo a espantosa omissão de 1848

quando Merleau-Ponty afirma que 1793, 1871 e 1944 são momentos em que o

proletariado retomou por sua conta “a herança nacional abandonada pela burguesia”.

Ou então o fato de Sartre, relembrando “les grandes colères de Paris”, e tentando

aproximar 1944 das revoluções do século XIX (“nous avait-on dit que les révolutions

du XXe siècle ne pourraient pas ressembler à celles du XIXe et qu’il suffirait d’un seul

avion, d’un seul canon pour réduire une foule révoltée...”), omitir na sequência 1848 e,

no seu lugar, dar o exemplo de... 1789. (Sugestivamente, o recalque de junho de 48 se

tornará um tema central de L’Idiot de la Famille.81) Ou ainda o fato de os editoriais de

Combat enfatizarem, em 1944, o reencontro com a Paris de 1871, ressalvando porém

que “cette fois il s’agit d’une Commune victorieuse”, e simplesmente silenciarem sobre

1848. Com efeito, em meio ao “belo sonho” (por analogia ao de fevereiro de 1848)

daqueles dias de verão de 1944 quem poderia relembrar o terrível pesadelo do

massacre do verão de 1848 (“un cauchemar, une hallucination funèbre”, como se lê na

Éducation Sentimentale, p.392)? E aqui a nosso ver o sentido profundo do quase-

pastiche (este sim sem dúvida involuntário) de Sartre: converte o recalque desse

massacre histórico em “força literária produtiva”.82

Se nossa leitura tem cabimento, torna-se possível dizer que a “escolha” de

Sartre em definir a insurreição parisiense de agosto de 1944 como “uma semana de

Apocalipse” tem, por detrás de sua face manifesta a reativação do “exercício do

Apocalipse” que Malraux viu na Guerra Civil Espanhola, uma face oculta, na qual se

pode entrever as marcas de um “désastre historique” (para usar os termos com os quais

o autor se refere a junho de 1848 em L’Idiot de la Famille, vol.III, p.393). Observe-se

O MITO DA RESISTÊNCIA

500

o que diz Dolf Oehler sobre o tom apocalíptico da literatura de 1848: “Não só da

Éducation de Flaubert e de Les Fleurs du mal de Baudelaire, mas também de toda a

literatura de 48 exala algo de apocalíptico. Indaga-se por toda a parte se não teria

chegado o fim do mundo. (...) As obras de última fase de Heine, a lírica de Baudelaire,

inclusive seus poemas em prosa, entre os quais deve figurar um texto intitulado La Fin

du monde, os escritos de Herzen redigidos na França e, num certo sentido, também os

romances de Flaubert podem todos ser lidos como ‘apoteoses da morte’ (Herzen).

Neles a morte aparece como refúgio diante de uma realidade que se tornou

insuportável, como sua negação, como aquilo que a destruirá definitivamente, mas

também como sua própria essência, que se manifesta inconfundivelmente no

sentimento de tédio. Quando Herzen aconselha pregar ‘a morte como a boa nova da

redenção que se avizinha’, ele mescla a idéia de uma morte sacrificial do povo de

junho de 48 com sua convicção de que a morte do velho mundo estaria mais próxima

por meio da vitória da ordem, já que todas as ilusões românticas da revolução burguesa

teriam sido aniquiladas por esse acontecimento” (O Velho Mundo Desce aos Infernos

Auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris, p.94-95).

Não é difícil perceber que a reconstrução sartriana da insurreição parisiense de 1944

expressão da vontade política da Resistência e cuja forma filosófica vimos

antecipada em EN inverte (mas não de caso pensado, tratando-se antes de uma nova

figura de um recalque histórico) o sinal negativo desse sentido apocalíptico da

literatura de 1848. Em vez do sentimento de que o fim do mundo se precipitava (este

fora aliás o sentimento hegemônico entre os contemporâneos à época da défaite de

1940, cf. Capítulo 1, II), o que prevalece é a convicção de estar vivendo o início de

uma vida alicerçada em bases inteiramente novas “tout est à commencer”,

anunciava o herói de Les Mouches no final da peça (cf. capítulo anterior). Recorde-se

também as palavras de Bariona: “Qu’y a-t-il de plus émouvant pour un cœur d’homme

que le commencement d’un monde(...), quand tout est encore possible...” (p.622). Em

O Domingo da Vida

501

vez de “apoteoses da morte”, uma apoteose da Vida, ou melhor, uma metamorfose da

primeira na segunda. E é exatamente essa metamorfose que vimos nas análises

ontológicas de EN, quando o “ser-para-a-morte” heideggeriano o Dasein que,

abandonado num mundo desencantado, caminha impotente e solitário para a morte é

transmudado em luta heróica pela vida. A marca registrada do sujeito heróico

engendrado em EN, como já mostramos, consiste em extrair da morte a redenção, à

maneira dos heróis de Malraux. Essa apoteose da Vida (para insistir no contraponto

com o sentido apocalíptico que Dolf Oehler sublinha na literatura de 1848), resultado

da reversão em seu contrário da tragédia do sujeito heróico (mas sem saída) de

Heidegger, é o equivalente filosófico da redescoberta do encanto do mundo numa

conjuntura de efervescência revolucionária, e cujo registro histórico encontra-se nas

reportagens de 1944. É como se o Apocalipse de 1944 viesse confirmar, para o

repórter, que a metamorfose da Morte em Vida operada pelo filósofo em EN estava de

fato no bom sentido histórico. E o bom sentido histórico só pode ser, aos olhos de

Sartre, a total inversão do Apocalipse de junho de 1848. Se na literatura marcada por

aquele verão sangrento “a morte aparece como refúgio diante de uma realidade que se

tornou insuportável”, e daí o sentimento de tédio que nela prevalece,83 no verão do

Apocalipse às avessas de 1944 uma geração inteira acreditou-se curada desse Tédio

(que atravessara a literatura francesa de Baudelaire até o Sartre da Nausée, como

indicamos anteriormente). Por isso esse evento histórico crucial tem, na ótica sartriana,

o valor de uma “conversion radicale”, ou seja, uma “brusque métamorphose”, como se

lê nas páginas de EN, e cuja importância decisiva na composição do livro (e no resto

da obra do autor) examinamos no capítulo anterior. Saudada em EN nos termos aqui já

várias vezes mencionados (“Ces instants extraordinaires et merveilleux, où le projet

antérieur s’effondre dans le passé à la lumière d’un projet nouveau qui surgit sur ses

ruines...”), a “conversion radicale”, condição de possibilidade de uma “morale de la

délivrance et du salut” (“Ces considérations n’excluent pas la possibilité d’une morale

O MITO DA RESISTÊNCIA

502

de la délivrance et du salut. Mais celle-ci doit être atteinte au terme d’une conversion

radicale dont nous ne pouvons parler ici”, EN, p.463), e por sua vez condicionada ao

“jour où l’on peut concevoir un autre état de choses” (EN, p.489), como se recorda,

essa “conversion radicale” que nosso repórter vê realizar-se diante de seus olhos

durante a “semana de Apocalipse” de 1944, mas que já nascera em seu Ensaio de

Ontologia Fenomenológica sob o signo da história revolucionária francesa (o exemplo

no caso era 1830, e aqui talvez um outro sintoma do recalque de 1848), será redefinida

mais tarde, agora diretamente à luz do que o autor chama de “interiorização” dos

acontecimentos de 1848, como “la découverte da la vérité” (cf. L’Idiot de la Famille,

vol.III, p.414).84 Essa “descoberta da verdade”, imposta pela “coupure de 48” (L’Idiot

de la Famille, vol.III, p.420), significa para Sartre a obrigatoriedade de estar doravante

do lado certo das barricadas, o dos vencidos de Junho, finalmente vingados no verão

catártico de agosto de 1944, tal como foi vivido pelos contemporâneos. (No

pensamento sartriano, esses dois verões apocalípticos, ainda que com sinal trocado,

têm valor “arquetípico”, no sentido de L’Idiot de la Famille, isto é, “un événement

ressenti par l’auteur jusque dans ses moelles”, vol.III, p.414.) É como se a insurreição

parisiense de 1944, abrindo todas as portas para o futuro “le monde, l’avenir nous

étaient rendus”, afirma Simone de Beauvoir (La force de l’âge, p.683), oferecesse

também, no imaginário da Resistência, a possibilidade de libertação efetiva de um

passado que sempre oprimiu como um pesadelo a intelligentsia francesa. Se assim for,

à dupla libertação desejada pelos contemporâneos libertação da podridão da

Terceira República francesa e do genocídio social perpetrado pelo nazismo seria

preciso acrescentar uma terceira faceta, a de um outro genocídio social, espécie de

trauma primitivo da “psique coletiva” francesa: a “morte sacrificial do povo de junho

de 48” (para retomar os termos de Dolf Oehler).85 Se esse verão de 1848 marcou o fim

de todas as ilusões românticas da revolução burguesa, o verão de 1944 marca o

nascimento de uma Grande Ilusão (de outra ordem, é claro) uma colossal ilusão

O Domingo da Vida

503

histórica, a passagem da Resistência à Revolução (uma vez interrompida essa

passagem, uma geração inteira vê-se condenada à superação mitológica do recalque de

um massacre real).

Esquematizando: a inversão sartriana do sentido do apocalipse de 1848 é uma

replicação involuntária, feita pela mediação de reminiscências literárias (daí o quase-

pastiche da Éducation Sentimentale), dos desejos políticos (manifestos ou latentes)

dos herdeiros da Resistência justamente a tripla libertação acima mencionada. Mais

do que isso: é porque o movimento histórico, na ótica dos contemporâneos, segue um

curso inverso ao processo regressivo de fevereiro-junho de 1848 que Sartre pretende

narrar (ou descrever) na forma oposta à de Flaubert, qual seja, a não-ficção, mera

reportagem sem intenção literária. Tudo se passa como se naquele momento de euforia

revolucionária “Apocalipse da Liberdade”, na definição de Sartre nosso

Promeneur não precisasse se valer de nenhuma ficcionalização propriamente dita

porque a própria realidade se apresentava de forma ficcional, ou de modo narrável. Por

isso a ficção pôde ser dispensada aqui alcançamos finalmente a mais decisiva das

determinações essenciais do “je ne raconte que ce que j’ai vu” e, malgrado tal

dispensa, a insurreição pôde ser contada como uma estória. (Nisto Sartre termina

atualizando a tradição do escritor francês que se converte em repórter para registrar

eventos históricos de caráter extraordinário. É o caso por exemplo de Restif de la

Bretonne que, referindo-se à natureza de seus escritos à época da Revolução Francesa,

diz literalmente: “Não faço ficção. Apenas testemunho o que vejo”.86 Ou o caso de

Alexandre Dumas em junho de 1848, correndo de barricada em barricada na condição

de repórter de um periódico.87) Pelo menos naquele momento histórico privilegiado,

quando havia efetivamente algo para contar, descrever foi também narrar. E se dizemos

“pelo menos” é porque estamos pensando numa certa estrutura temporal do processo

revolucionário, tal como foi sintetizada por Fredric Jameson em sua glosa das análises

de Sartre sobre a Revolução Francesa, na Critique de la Raison Dialectique: “Na vida

O MITO DA RESISTÊNCIA

504

contínua comum, a vida do costume e da tradição, nada realmente muda ou acontece,

não há nada para contar, no sentido narrativo (...). A peculiaridade do momento

revolucionário está em que nele, pela primeira vez, a história toma a forma de eventos

narráveis, revela-se com uma continuidade com um começo, meio e fim, marca uma

mudança para uma nova, e qualitativamente diferente, organização temporal” (F.

Jameson, Marxismo e Forma, p.201). Seguindo essa pista (mas evitando o atalho de

Jameson, demasiado marcado pelo Narrador de Walter Benjamin, a nosso ver

impensável no universo sartriano), não seria impossível encontrar, em Sartre, uma

espécie de elo original entre Tempo da Revolução e Tempo da Narração, pois no

pensamento do autor a Revolução é o momento por excelência em que se pode realizar

uma experiência ficcional do tempo. (Daí o vínculo, a nosso ver subjacente à obra

sartriana, entre Teoria do Romance e Teoria da Revolução, como se reencontrássemos

finalmente reunidas, só que agora a partir de um outro ponto de vista o do

Resistente, no lugar do proletariado, as linhas de força das duas obras fundamentais

do jovem Lukács, a Teoria do Romance e História e Consciência de Classe.

Voltaremos ao assunto mais adiante.) Se em períodos de refluxo revolucionário, como

se lê nos Cahiers pour une morale (onde são recicladas algumas lições fundamentais

dos cursos de Kojève, imediatamente após sua primeira publicação, em 1947, conforme

já observamos), “le Temps s’effondre en instants non liés”, “en purs présents

intemporels” e nesses momentos a História torna-se “imitation de la nature”, ou

melhor, “imite le déterminisme naturel” (é o que evidenciam aliás os textos de Sartre e

outros contemporâneos à época da “catástrofe” de junho de 1940, quando imperava a

convicção de que o nazismo se alastraria inevitavelmente por toda a Europa88), no

Apocalipse a História é “anti-nature”, seu movimento é o avesso da ordem, negação da

repetição, ou ruptura com o ciclo do eterno retorno da natureza, numa palavra, é

revolução permanente: “Pas de ‘caractères’ dans l’Apocalypse. On y est toujours

surpris. (...) Le caractère est le produit d’une société institutionnelle et traditionaliste.

O Domingo da Vida

505

Le caractère, c’est-à-dire la nature” (Cahiers pour une morale, pp.13-14 e 64-66; grifo

do autor). (Em Baudelaire, Sartre atribui às grandes correntes literárias e políticas

vinculadas à revolução de 1848 o “rêve d’une anti-nature”, definido como o ideal

“d’un ordre humain directement opposé aux erreurs, aux injustices et aux mécanismes

aveugles du Monde naturel”, e que estaria presente em Marx e Engels na idéia de

antiphysis, p.96-97.89) Vimos no Capítulo 3 da Primeira Parte que um dos pilares

teóricos da crítica de Sartre ao conservadorismo político é a recusa da idéia de

repetição, a qual leva à naturalização da história, outro aspecto do desejo de

permanência. Vimos também que a “existence de champignon” descrita na Nausée —

aquela própria do “existant qui tombe d’un présent à l’autre, sans passé, sans avenir”

(La Nausée, Pléiade, pp.204 e 207)—, poderia ser lida como a exposição de um estado

de reação política e uma antecipação da conjuntura de 1939-1940 (descrita nos relatos

de época como uma “brisure” da temporalidade). Desta perpectiva, e para relembrar

um pouco mais um argumento que já desenvolvemos, a própria “nausée” adviria do

“absurdo” de um tempo fragmentado, quando, nas palavras de Roquentin, “on sent que

chaque instant s’anéantit, que ce n’est pas la peine d’essayer de le retenir” (p.69), um

sentimento, enfim, de que “le temps s’était arrêté” (p.156; esse sentimento de

paralisação do tempo se tornará hegemônico entre os contemporâneos durante “les

années terribles” da Ocupação, conforme mostramos). Ora, é justamente na Nausée,

como se recorda, que encontramos uma contraposição entre o tempo da vida rotineira,

esse tempo disperso, desarticulado e tedioso, quando não há nada para contar, e o

tempo da forma narrativa: “L’aventure est finie, le temps reprend sa mollesse

quotidienne” (Pléiade, p.47). Ou então: “J’ai voulu que les moments de ma vie se

suivent et s’ordonnent comme ceux d’une vie qu’on se rappelle” (p.50). A forma

narrativa, pressupondo uma teleologia, opõe-se à “dispersão” do tempo (não por acaso,

no final do livro, Roquentin vislumbra a cura para a nausée na criação literária, mais

exatamente no romance de aventura)90 — dispersão que equivale à própria

O MITO DA RESISTÊNCIA

506

“dissolução” do tempo, inerente aos períodos de refluxo revolucionário, como

dissemos. E agora já podemos voltar à idéia acima sugerida (fundamental em Sartre, a

nosso ver, ainda que jamais explicitada): a revolução é o momento privilegiado em que

a vida segue o modelo da forma narrativa, ou o modelo do romance. Concebida

(particularmente na Critique de la Raison Dialectique) como uma temporalidade

teleológica capaz de romper com a uniformidade da existência rotineira a

desarticulada monotonia da “existence de champignon”, capaz, ainda, de superar a

dispersão do instante e de reunir os fragmentos no interior de um movimento de

totalização, a Revolução faz na realidade o que o romance faz na ficção. Por isso, nessa

ótica sartriana, só o tempo da Revolução poderia coincidir com o tempo da narração.

(Desta perspectiva, compreende-se melhor porque a “conversion radicale” é definida,

em EN, como um certo tipo de experiência mais bem apreendida pela literatura do que

pela filosofia, conforme vimos no capítulo anterior.) Dito de outro modo, a Revolução

abre fissuras num mundo há muito impermeável, permitindo que ele possa ser

novamente narrado (ainda que não mais nos termos de outrora) agora do ponto de

vista do Resistente. Essa a categoria que organiza, nas reportagens de Sartre, a

reconstrução da experiência vivida, como se a própria insurreição em curso fosse

expondo a si mesma, au fur et à mesure dos acontecimentos (não mais post-festum

como a Revolução Francesa na Fenomenologia do Espírito, recontada por Kojève),

dispensando o narrador onisciente à la Flaubert.91

Durante o Apocalipse de agosto de 1944 (verdadeiro paradigma das análises

sartrianas sobre a revolução, a nosso ver, muito mais do que a Revolução Francesa,

como pretende Jameson92) momento histórico sublime que “toma a forma de eventos

narráveis”, mas incrustado todavia num mundo no qual já se tornara impossível narrar

como antes as reportagens de Sartre vêm por assim dizer preencher certas funções

que o “grande realismo” desempenhara no oitocentos francês. Referimo-nos

especificamente às precondições subjetivas e objetivas desse Realismo nos termos em

O Domingo da Vida

507

que Jameson as resumiu a partir de Lukács: 1) “Os grandes realistas, Lukács nos diz,

são aqueles que de alguma forma participaram integralmente da vida do seu tempo, que

não eram meros observadores mas atores, ‘engajados’ num sentido menos limitado e

político do que no conhecido uso de Sartre”; 2) “O realismo depende, portanto, da

possibilidade de acesso às forças de mudança num dado momento histórico” noutras

palavras, depende “de momentos históricos privilegiados nos quais o acesso ao social

como uma totalidade pode de novo ser reinventado” (Marxismo e Forma, pp.157 e

159). Considerando a impossibilidade de repetir nos mesmos moldes esse modelo do

“grande realismo” (uma impossibilidade relativa ao curso do mundo contemporâneo,

independente dos talentos individuais, por maiores que sejam), mas considerando ao

mesmo tempo que nosso “Promeneur dans Paris insurgé” teve a sorte histórica de

testemunhar uma conjuntura de crise aguda em que tudo parecia possível, inclusive o

surgimento de algo sustentado em novos alicerces sociais e políticos, as reportagens de

44 poderiam ser lidas como um sucedâneo, ou uma nova figura da narração (o que

pressupõe a mudança de matriz do romance pós-realista), nascida de um momento

“apocalíptico” do final da Segunda Guerra, quando a leitura dos jornais era uma

questão de vida ou morte (“On se dispute les journaux du matin”, “Un Promeneur...”,

Combat, 2/9/1944).93 Uma nova figura cuja aparente simplicidade é imanente à

experiência que está sendo narrada, qual seja, a “simplicidade poética do tempo da

Resistência” (conforme a já mencionada expressão de Lukács, op. cit., capítulo

anterior). Se as reportagens de 44 narram e descrevem ao mesmo tempo é porque sua

linguagem prosaica exprime uma conjuntura histórica em que o prosaico se tornou

sublime mais precisamente, quando se viveu no dia-a-dia a sublime “experiência da

solidariedade”, para relembrar os termos de Sartre (daí a articulação interna, que aliás

caracteriza a narrativa sartriana, entre forma jornalística, romance e filosofia). Afinal,

aos olhos dos contemporâneos, tratava-se de um verdadeiro renascimento da vida

social e coletiva (aqui a chave do segredo que fez a descrição coincidir com a

O MITO DA RESISTÊNCIA

508

narração), como se lê numa das reportagens de 44: “C’est peut-être ce qui frappe le

plus cette ténacité de la vie sociale à renaître (…). Tous ont besoin, en ce moment

d’ivresse et de joie, de se retremper à chaque instant dans la vie collective. Qui donc

voudrait demeurer seul en sa chambre quand Paris se bat pour sa liberté?”

(“L’Insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat, 28/8/1944).94 Nesse momento único, a

rua se torna irresistivelmente “attirante”, como diz ainda nosso repórter (“Colère d’une

Ville”, “Un Promeneur...”, Combat, 30/8/1944) “Les rues sont noires de monde”

(“La délivrance est à nos portes”, “Un Promeneur...”, Combat, 2/9/1944); “La rue de

Rivoli disparaissait, il ne restait qu’un fleuve grondant d’hommes et de femmes” (“Un

jour de victoire parmi les balles”, “Un Promeneur...”, Combat, 4/9/1944). Mais uma

vez, as memórias de Simone de Beauvoir vêm complementar as reportagens de Sartre:

“Nous passâmes la journée à rôder dans le quartier”; “Tout le jour avec Sartre, je

marchai dans Paris pavoisé” (La force de l’âge, pp.678 e 682). (O que não deixa de

significar a realização histórica de um desejo do tempo das vanguardas, já em estado

avançado de decomposição a rua como o único lugar da experiência válida, como

pretendia André Breton.) Vê-se pois que no Apocalipse, tomado nesse sentido (de

Malraux) de um processo que envolve necessariamente toda a coletividade, o indivíduo

jamais é solitário (ao contrário do Dasein heideggeriano, que aqui já foi

completamente arquivado). Por conseguinte, ao longo desse processo totalizante e

totalizador (agora já é Sartre, via Kojève, levando Malraux aonde ele não foi), até

mesmo a habitual solidão do Intelectual (“cette solitude est son lot”95) é curto-

circuitada pela força das coisas. (Recorde-se as palavras de Simone de Beauvoir: “Je

savais à présent que mon sort était lié à celui de tous; la liberté, l’oppression, le

bonheur et la peine des hommes me concernaient intimement”, La force des choses,

p.15.) Um curto-circuito (cujo resultado literário é a elaboração da nova figura de

Antoine Roquentin, Mathieu Delarue) que, levando o Intelectual ao reencontro de sua

verdadeira natureza um n’importe qui na rua em meio à multidão, leva-o ao

O Domingo da Vida

509

mesmo tempo à cura de sua Náusea e de seu Tédio.96 Com a Revolução, essa

consciência essencialmente de la rue pode finalmente sentir-se em casa. Se o salut

vislumbrado por Roquentin era puramente imaginário o romance de aventura,

pois “quand on vit seul, on ne sait même plus ce que c’est que raconter”, como dizia o

alter ego de Sartre (La Nausée, Pléiade, p.12),97 o Apocalipse de 44 faz nosso

Promeneur descobrir que o verdadeiro antídoto para a nausée é puramente histórico: a

Revolução. (“L’intellectuel est seul parce que nul ne l’a mandaté. Or —c’est là une de

ses contradictions—, il ne peut se libérer sans que les autres se libèrent en même

temps”, dirá o autor mais tarde, “Plaidoyer por les Intellectuels”, Sit.VIII, p.412.)98 Só

que a Revolução não é aqui senão uma grande Aventura (a maior de todas elas), que

está sendo justamente... narrada (o que vem mais uma vez macular a “pureza” dos

gêneros em Sartre).99

Tal como a forma narrativa, a Revolução, por se opor à dispersão do tempo,

consegue recolocar em movimento o que estava (ou parecia estar) paralisado (daí a

idéia de renascimento da vida social acima mencionada). Entendamo-nos: é o

sentimento de paralisação, ou “esterilização”, do tempo um verdadeiro traço de

época, estilizado na releitura de Kafka feita pela geração de Sartre, como mostramos

em capítulos anteriores que o apocalipse revolucionário se encarrega de pulverizar,

evidenciando que algo caminhava por debaixo do que parecia parado. Recorde-se o

sentido e a função que atribuíramos a esse sentimento (Capítulo 1, II): são as marcas de

uma época trágica (o “ser-para-a-guerra”, outro aspecto da figura do “ser-para-a-

morte” heideggeriano) que se quer excluir da memória recalque que está cifrado na

idéia de um tempo morto, o qual justamente não deixa marcas, “um tempo sem

impressões digitais”. (Um duplo recalque, poder-se-ia acrescentar, se as análises do

presente capítulo são pertinentes, pois à sombra de Junho de 1940 se sobrepõe a de

Junho de 1848.) Ao desaparecer, esse sentimento de paralisia da sucessão temporal

(tempo morto) deixa no entanto “un résidu cendreux” (para usar a linguagem da

O MITO DA RESISTÊNCIA

510

Nausée, p.106) que dá origem a uma nova forma de temporalidade. Mais precisamente:

da cinza daquelas horas nasce a teoria sartriana da temporalidade revolucionária.

Sabemos que a pedra fundamental dessa teoria fora lançada em EN ponto de virada

decisivo onde uma teoria do tempo como destino trágico (Heidegger) é transmudada

numa teoria do tempo como “salvação”, conforme mostramos no Capítulo 3 da

Primeira Parte. Cabe relembrar que o binômio temporalidade-liberdade, constituído em

EN, troca o sinal do “Tempo do Mundo” heideggeriano: o pessimismo próprio do

Dasein que caminha fatalmente para a morte cede lugar ao otimismo resultante da

“descoberta” de uma temporalidade que “cura” (“guérit”). O que equivale à passagem

da fatalidade (repetição) à Liberdade, a qual, sendo por definição “changement” (“la

liberté étant choix est changement”, EN, p.553), tem seu movimento sempre

direcionado para o futuro (“tout maintenant est destiné à devenir un autrefois”, EN,

p.169) e, nessa medida, permite a superação do passado (“la liberté c’est l’être humain

mettant son passé hors de jeu en sécrétant son propre néant”, EN, p.64).100 Essa

possibilidade de superação, antecipada pelo filósofo, se realiza diante dos olhos do

repórter durante o “Apocalipse de 44”, quando o passado passa, efetivamente (o que

sinaliza a um tempo o fim de um ciclo histórico e o início de outro, inaugurado com os

“anos Sartre”). Nesse momento apocalíptico vale para o próprio Sartre o que ele

escreveu a respeito de Flaubert: “Gustave (...) est charrié par le cours des choses et la

praxis des hommes vers la Révolution de Février” (L’Idiot de la Famille, vol.III,

p.439; grifo do autor). Só que agora, como vimos, trata-se de um Fevereiro sem Junho,

o que significa, no imaginário da Resistência, “levar a Revolução até o fim”. Por isso

sugerimos que, malgrado o caráter conjuntural da Libertação em curso, abria-se ao

mesmo tempo para os contemporâneos, e muito particularmente para Sartre, a

possibilidade de uma libertação efetiva da forma temporal da vida burguesa, de seu

cotidiano desencantado e tedioso. (A possibilidade dessa dupla libertação está inscrita

nas seguintes etapas das demonstrações ontológicas de EN: “reconquérir ma liberté”,

O Domingo da Vida

511

“suppression de cet asservissement réel”, p.462; “nous pouvons envisager pour l’avenir

une organisation collective plus juste où la possession individuelle cessera d’être

protégée et sanctifiée”, p.647.) Se nosso autor não diferencia a estrutura temporal de

uma revolução burguesa e a de uma revolução socialista (essa a objeção de Jameson ao

Sartre da Critique de la Raison Dialectique) é porque privilegia na primeira a

constante possibilidade de superar sua própria incompletude, redirecionando seu

movimento “em direção da Esquerda”. Não por acaso, já em novembro de 1943 lia-se

nas páginas clandestinas de Combat: “La Révolution française doit être continuée. (...)

Seule la Révolution économique achèvera la Révolution politique”. Que não se veja

pois aí nenhuma nostalgia do tempo perdido das revoluções101 (muito menos a vitória

do passado sobre o futuro de que falava Gide à época da Primeira Guerra102), mas antes

a vontade heróica (ou a “escolha livre” do sujeito sartriano) de recriar, no ocaso do

nazismo, a negatividade explosiva que Sartre ressalta nos momentos apocalípticos das

revoluções verdadeira “fórmula para destruir o mundo” (uma fórmula soixante-

huitarde, como se sabe, que bem caracteriza a subjetividade rebelde sartriana). Tudo se

passa como se nosso Promeneur, levado pela força da tempestade que sopra sobre o

presente (se for permitido adaptar livremente a célebre idéia de W. Benjamin), só

pudesse olhar para trás, para o passado revolucionário francês, à condição de não se

deter nele, mas de projetá-lo, já como uma nova figura, no horizonte futuro o que

afinal estava cifrado, em EN, na forma filosófica de uma temporalidade heróica

direcionada para o futuro: “nous avons affaire à une forme temporelle où je m’attends

dans le futur” (EN, p.71). Com esse reencontro do problema do Tempo em EN nosso

círculo finalmente se fecha.

*

O MITO DA RESISTÊNCIA

512

Já podemos realinhar nossos resultados. No final da guerra e no término dos

quatro anos de Ocupação da França, o país, dilacerado, e tal qual um doente que já não

pode ignorar seu corpo (para falar como Merleau-Ponty), olha para dentro de si mesmo

(ainda que esse olhar não consiga alcançar a blessure profunda de Junho de 1848) e, ao

fazê-lo, reencontra sua história revolucionária. Paris já não é mais, portanto, a cidade

crepuscular descrita por Camus em La Peste.103 A cura dessa enfermidade social (que

carrega consigo também o peso de um passado histórico mal-digerido) é feita pela

mediação de uma temporalidade revolucionária “Temps qui guérit”, cuja

transposição para a forma filosófica de EN vimos no Capítulo 3 da Primeira Parte,

“Quando o Tempo cura as feridas do próprio Tempo”. Esse o ponto em que se resolve,

na ótica da Resistência, o movimento pendular da guerra: a alternância entre a calmaria

e a ação intensa, conforme indicáramos no capítulo anterior. (No âmbito mais restrito

da história local isso se resume à dúplice realidade da França Ocupada:

Colaboração/Resistência, ou resignação/ação heróica.) Mas esse é também o ponto em

que se resolve, na ótica de nosso “Promeneur dans Paris Insurgé”, o movimento

pendular da narrativa filosófica de EN, exposto ao longo deste trabalho: subjetividade

impotente e heroísmo da consciência, paralisia da ação e ação exasperada, “désespoir”

e “espoir”, não-liberdade (“alienação”) e liberdade. Imitação formal do ritmo alternado

da própria guerra esse meio social flutuante marcado pela batida de um pêndulo

imaginário ora à direita ora à esquerda, o desenvolvimento dual da narrativa

filosófica de EN é finalmente totalizado pelo “ato unificador” de uma temporalidade

revolucionária (“la temporalité est une force dissolvante mais au sein d’un acte

unificateur”, EN, p.175). Recorde-se que no Ensaio de Ontologia Fenomenológica de

Sartre a “négation par dépassement” (p.236-237), que define a temporalidade, é

indissociável da idéia de totalidade. (“La seule méthode possible pour étudier la

temporalité c’est de l’aborder comme une totalité qui domine ses structures secondaires

et qui leur confère leur signification. C’est ce que nous ne perdrons jamais de vue. (...)

O Domingo da Vida

513

Et surtout il faut faire paraître chaque dimension envisagée sur le fond de la totalité

temporelle”, EN, p.145.) Sendo por definição “totalité temporelle” (EN, p.235), o

tempo, em seu movimento, faz da liberdade um processo de totalização (embora essa

totalidade seja sempre “totalité détotalisée”, EN, p.221). Ora, em Sartre, como já

sabemos, o momento privilegiado da “reunião” (“Si donc le temps est séparation, du

moins est-il une séparation d’un type spécial: une division qui réunit”, EN, p.170) da

forma liberdade-temporalidade-totalidade é a Revolução (por isso o capítulo de EN

sobre a liberdade começa com uma reflexão sobre a ação revolucionária). É esse

momento privilegiado de “unité synthétique” (tal como será redefinido mais tarde),

redescoberto pelo autor com a “experiência” da Resistência, o elemento oculto cuja

força, conquanto mais imaginária que real, é suficiente para unificar os dois planos

narrativos aparentemente em conflito em EN (bem como os materiais heteróclitos que

compõem tanto esse Ensaio de Ontologia Fenomenológica quanto as reportagens de 44,

sem falar do resto da obra sartriana). Os antagonismos que permeiam a dualidade das

análises do livro vão por assim dizer acompanhando a própria dualidade da matéria

social que as induziu, e só se resolvem, como mostramos em capítulos anteriores,

quando se consuma a metamorfose da não-liberdade em Liberdade reduplicação

formal involuntária da metamorfose, constitutiva do imaginário social da época, da

Guerra em Revolução. Conhecemos as condições técnicas dessa virada filosófica que

faz a Liberdade brotar de uma luta dramática contra a não-liberdade: a dupla

radicalização, de Hegel e de Heidegger, cujo resultado é uma forma de temporalidade

que, impelida vertiginosamente para o futuro, arrebata a consciência de seu estado de

sonolência, rompendo por conseguinte com a engrenagem repetitiva da “alienação” (na

qual se detém o Dasein heideggeriano) e abrindo caminho para a superação do estado

de coisas vigente (o que pressupõe a superação, impensável na ótica de Heidegger, da

impotência da subjetividade). Recordando um pouco mais nossas análises da Primeira

Parte do trabalho: é pela mediação dessa temporalidade, capaz de “curar” as feridas do

O MITO DA RESISTÊNCIA

514

passado e do presente, que se constrói, ao longo das demonstrações ontológicas de EN,

o sentido positivo da alienação. ( “Le temps ronge et creuse, il sépare, il fuit. Et c’est

encore à titre de séparateur —en séparant l’homme de sa peine ou de l’objet de sa

peine— qu’il guérit”, EN, p.169.) Se o presente anula a liberdade, realimentando a

“alienação”, “la liberté (...) s’échappe vers le futur” (EN, p.553). Ao fazê-lo, quebra o

círculo reiterativo do “destino” heideggeriano — a “cura” está justamente na

radicalização da experiência da temporalidade, ou numa forma determinada de

temporalidade que leva à superação de um presente também determinado: “Mais ce

présent est dépassement vers un terme futur de quelque chose qui marche” (EN, p.397;

grifos nossos). Nessa equação filosófica abstrata, cujo conteúdo de experiência ainda

não identificáramos na Primeira Parte deste trabalho, encontra-se antecipada a data

histórica de agosto de 1944. (Parafraseando o que Sartre escreveu a respeito de

Flaubert “L’époque peut s’achever en un individu bien avant de prendre fin

socialement”, L’Idiot de la famille, vol.III, p.439-440, poder-se-ia dizer que o

Apocalipse de 44 irrompe numa obra de filosofia bem antes de irromper socialmente. O

que equivale a dizer: em plena atmosfera carregada e sufocante da Ocupação, quando

tudo parecia “parado”, a figura filosófica de um tempo que “cura” já sinaliza a

aproximação do “vento do amanhã”, o qual, para o imaginário da Resistência, como

vimos, deveria trazer de volta a tempestade revolucionária dissipada em junho de 1848

portanto ainda o mesmo “vento do amanhã” evocado por Baudelaire.104) Nosso

desvio, na Segunda Parte do trabalho, por textos literários e históricos, incluindo

reportagens, documentos e memórias de época, permitiu-nos trazer à luz do dia a

profunda rede de relações sociais entranhada na figura filosófica de um Tempo que

“guérit”. Se nossa leitura procede, essa figura é uma espécie de reminiscência

estrutural de uma experiência acumulada na vida intelectual pela grande tradição

revolucionária francesa, e reativada pela prática política da Resistência (daí a

dilatação-radicalização do molde filosófico que a plasmou, o híbrido Hegel-

O Domingo da Vida

515

Heidegger). Mais do que isso, o Temps qui guérit indica a homologia existente entre a

forma filosófica de EN e as armas mobilizadas pela intelligentsia progressista contra o

fascismo (é o que mostramos no capítulo anterior, onde conseguimos surpreender uma

certa semelhança funcional entre a estrutura filosófica de EN e a estrutura literária de

romances e peças de teatro da época). Daí o “estilo” combativo e heróico do livro. No

coração desse Ensaio de Ontologia Fenomenológica pulsa a vida política da época.105

Desta perspectiva, tornou-se possível identificar a natureza (histórica) do

“agente moral” de que fala o autor quando, ao fechar o livro anunciando sua “morale

de la délivrance et du salut”, na forma de uma “psicanálise existencial”, registra

vagamente a existência de “muitos homens” que não precisaram esperar essa Teoria

para colocar em prática seus princípios: “A vrai dire, il est beaucoup d’hommes qui ont

pratiqué sur eux-mêmes cette psychanalyse, et qui n’ont pas attendu de connaître ses

principes, pour s’en servir comme d’un moyen de délivrance et de salut” (EN, p.691).

Caberá à “psicanálise existencial” enquanto “description morale” (justamente a

“morale de la délivrance et du salut” vislumbrada no final do livro) “découvrir à

l’agent moral qu’il est l’être par qui les valeurs existent” (“às cegas”, alerta o autor,

haverá sempre o risco de se incorrer no “esprit de sérieux”, o qual já fora denunciado

páginas antes particularmente na figura do revolucionário que “se prend pour un

objet”, “materialismo” que termina por bloquear a própria Ação, p.641) “C’est alors

que sa liberté prendra conscience d’elle même et se découvrira dans l’angoisse comme

l’unique source de la valeur” (p.691). Nem foi preciso dizer mais para que os

verdadeiros agentes históricos em questão, como que pressentindo que a obra elevara

ao nível do conceito sua prática política efetiva, se precipitassem sobre um livro

técnico e inextricável com a voracidade e a urgência com que devoravam as palavras

de ordem impressas nas folhas clandestinas da Resistência. Basta relembrar o já

comentado depoimento de um Resistente de primeira hora, Jean-Toussaint Desanti: “A

vrai dire, nous attendions L’Être et le Néant. Nous, c’est-à-dire les gens qui gravitaient

O MITO DA RESISTÊNCIA

516

autour de Sartre, rentré de captivité en 1941. Nous avions commencé à travailler

ensemble dans le groupe Socialisme et Liberté, et nous savions qu’il se consacrait à

une grande entreprise philosophique. (...) Il y avait donc une attente impatiente.

Lorsque le volume a paru, on s’est précipité dessus. Je me rappelle l’avoir lu d’un trait,

en une semaine” (Entrevista concedida a Michel Contat, Le Monde, 2/7/1993; grifos

nossos).106 Sem se dar conta, essa intelligentsia resistente estava por assim dizer, como

observamos no capítulo anterior, à espera de uma Teoria, ou justificativa filosófica,

para sua prática política empreendida às cegas — uma espera tão “impaciente” que

terminou finalmente por suscitar tal Teoria. Contudo, é preciso considerar que os

principais fundamentos filosóficos dessa Teoria já estavam no ar e sendo recolhidos em

contextos diversos. Note-se por exemplo o modo como Jorge Semprun descreve sua

“descoberta” da fenomenologia alemã durante o inverno parisiense de 40-41: “J’avais

découvert, en effet, pendant cette année de philo, les travaux que Levinas avait publiés

naguère, dans diverses revues philosophiques, sur Husserl et Heidegger. Je les avais

lus, relus, annotés. D’où une curiosité et un intérêt tout neufs pour la phénoménologie

et la philosophie de l’existence. (...) Ce fût mon intérêt pour le monde réel qui me

rendait sensible aux idées de Heidegger découvertes chez Levinas” (L’écriture ou la

vie, p.101). Que o “interesse pelo mundo real” em plena Paris Ocupada, vindo de um

membro da Resistência que logo será preso e deportado para Buchenwald, onde se

tornará um dos dirigentes dos comunistas espanhóis do campo, que esse “interesse”

pudesse ter algo a ver com uma linhagem filosófica acadêmica insuspeita de

radicalismo político e, por isso mesmo, passível de ser descartada pela intelectualidade

oposicionista, sobretudo numa conjuntura de crise histórica aguda (tanto mais quando

se pensa que politicamente Heidegger sempre esteve do outro lado das barricadas),

tamanho imbróglio só pode significar que, tal como ocorrera com a geração de

Sartre,107 a fenomenologia alemã, retomada em outro patamar, já fora inteiramente

reciclada e atualizada. Atualização que pressupõe uma estrutura temática comum a

O Domingo da Vida

517

textos diversos (filosóficos ou literários), sustentada por uma experiência coletiva

crucial. Vimos por exemplo no capítulo anterior que a idéia, central em EN, da

superioridade do olhar do mais desfavorecido é análoga à que reencontramos no

romance do mesmo Jorge Semprun sobre a Resistência, Le grand voyage, tratando-se

no caso da relação entre um prisioneiro político e seu carrasco nazista. É justamente

“Le Regard” o título do primeiro capítulo das memórias de Semprun, dedicado a sua

experiência no campo de Buchenwald, e onde se reconhece os termos do problema

sartriano da intersubjetividade: “Je me vois soudain dans ce regard d’effroi (...).

Depuis deux ans, je vivais sans visage. (...) Ils me regardent, l’oeil affolé, rempli

d’horreur. (...) C’est l’horreur de mon regard que révèle le leur, horrifié” (L’écriture ou

la vie, p.13-14). Mas não se trata aqui apenas de reencontrar um tema central de EN

nas memórias de um escritor sobrevivente de um campo de concentração. O mais

interessante é que, como mostramos ao expor a gênese desse tema em Sartre (Capítulo

1, II), o Regard se torna um problema filosófico para nosso autor exatamente a partir

de sua própria experiência num Stalag. Recorde-se: “Je n’oubliais pas le sentiment que

j’avais eu au stalag à vivre constamment, totalement, sous le regard des autres, et

l’enfer qui s’y établissait naturellement”, diz Sartre mais tarde (in Les Ecrits de Sartre,

p.100). Recorde-se também a forma filosófica desse “sentimento” em EN:

“Perpétuellement, où que je sois, on me regarde” (p.329, grifo do autor). Uma vez

materializado na forma filosófica de EN, esse “sentimento” nascido de uma experiência

coletiva só poderia mesmo falar de perto a todos os que a viveram (o que explica o tão

propalado mistério de uma obra extremamente técnica ter sido lida com tamanha

paixão): “Nous avions dévoré en 1943 L’Être et le Néant”, afirma Jorge Semprun em

suas memórias (L’écriture ou la vie, p.84).108 É que esse Ensaio de Ontologia

Fenomenológica, como vimos no capítulo anterior, converteu em “essência” filosófica

(“la liberté vient d’être définie comme une structure permanente de l’être humain”, EN,

p.71) o que os Resistentes viveram como “essência histórica”: “L’essence historique

O MITO DA RESISTÊNCIA

518

commune à nous tous qui nous faisons arrêter en cette année 43, c’est la liberté” (Jorge

Semprun, Le Grand Voyage, p.53).109 Estamos portanto diante do Mito literário-

político da Resistência organizado em termos filosóficos. É justamente porque EN

consegue reunir o que estava pulverizado em registros diversos (filosóficos, literários e

políticos) que nos foi possível, no decorrer deste trabalho, descobrir uma imprevista

unidade em meio a gêneros tão disparatados como um Ensaio de Ontologia

Fenomenológica, romances, peças de teatro, memórias de época, panfletos políticos e

reportagens jornalísticas (o que poderia ser estendido também ao cinema neo-realista

italiano).110 Levando a fenomenologia alemã até onde seus pais fundadores obviamente

não iriam, Sartre inverte seu sentido original, transformando-a num ativismo radical.

Um passo a mais na radicalização da palavra de ordem de Heidegger em Ser e Tempo

—“às coisas em si mesmas!” (“An die Sache selbst”, ST, vol,1, p.57) só poderia ir

além da própria Filosofia (na sua acepção tradicional), na direção de um outro gênero,

inaugurado com o “je ne raconte que ce que j’ai vu” de uma Reportagem (quando se

pretendeu que a própria Sache a insurreição em curso fosse expondo a si mesma,

como dissemos, sem a intermediação da “literatura”, muito menos da “filosofia”).111

Com nosso repórter na Paris das barricadas de 1944, a Fenomenologia (“ciência de

rigor”, como queria Husserl), agora já amalgamada à vocação publicista do século

XVIII, torna-se efetivamente a filosofia “sur la route, dans la ville, au milieu de la

foule”, prometida pelo autor em 1939 em seu ensaio sobre Husserl. (Quando se cumpre

essa promessa ocorre no entanto uma mutação cujo resultado já não é mais Filosofia

stricto sensu. O que remete ao problema da evolução das formas, ou da transformação

dos gêneros, ao longo do itinerário de Sartre mas essa já é uma outra discussão, que

mereceria um estudo à parte.) Pouco tempo depois das reportagens de 44, Sartre, num

texto de divulgação das idéias de EN, L’Existentialisme est un humanisme, afirma:

“Maintenant on fait descendre la philosophie sur la place publique” (p.103). Mesmo

que esse texto na verdade mais contribua para banalizar do que para divulgar as idéias

O Domingo da Vida

519

de EN, ele não deixa todavia de constituir um sintoma de algo bem oculto: o mistério

filosófico do Ensaio de Ontologia Fenomenológica se resolve na prática política da

Resistência.

Doravante, no pensamento de Sartre, a verdadeira solução para o dualismo

contra o qual se debatia EN já não se dá no âmbito da filosofia, mas com a revolução.

Aqui finalmente desaparece o fantasma do “dualisme insurmontable” que rondara de

ponta a ponta as páginas do livro, tal como é registrado na sua Conclusão: “Nous

avions, dès notre introduction, découvert la conscience comme un appel d’être et nous

avions montré que le cogito renvoyait immédiatement à un être-en-soi objet de la

conscience. Mais après description de l’En-soi et du Pour-soi, il nous avait paru

difficile d’établir un lien entre eux et nous avions craint de tomber dans un dualisme

insurmontable. Ce dualisme nous menaçait encore d’une autre façon:112 dans la mesure,

en effet, où l’on pouvait dire du Pour-soi qu’il était, nous nous trouvions en face de

deux modes d’être radicalement distincts, celui du Pour-soi qui a à être ce qu’il est,

c’est-à-dire qui est ce qu’il n’est pas et qui n’est ce qu’il est, et celui de l’En-soi qui est

ce qu’il est” (EN, p.681). A solução encontrada pelo autor no decorrer de suas análises

“le Pour-soi et l’En-soi sont réunis par une liaison synthétique qui n’est autre que le

Pour-soi lui-même” (p.681) revelou-se no entanto apenas provisória, pois logo os

limites filosóficos dessa reunião sintética do Pour-soi e do En-soi se fizeram sentir:

“S’il est impossible de passer de la notion d’être-en-soi à celle d’être-pour-soi et de les

réunir en un genre commun, c’est que le passage de fait de l’un à l’autre et leur

réunion ne se peuvent opérer” “il y a ici un passage qui ne se fait pas, un court-

circuit” (EN, p.687-688; grifo do autor). Essa “passage de fait” e essa “reunião” não se

podem realizar no terreno da ontologia, cujo ponto cego, conforme se lê ainda na

Conclusão de EN, é justamente a Totalidade: “Seulement, cette question de la totalité

n’appartient pas au secteur de l’ontologie” (p.689). Ora, para quem erigira a Totalidade

como a única categoria capaz de dar conta dos problemas da existência humana (e nisto

O MITO DA RESISTÊNCIA

520

Hegel sempre prevaleceu na série sartriana dos “3 H”), para quem se propusera logo no

início da obra a compreender “cette totalité qu’est l’homme-dans-le-monde” (p.38) e,

no final do livro, afirmara que “il s’agit (...) de retrouver, sous des aspects partiels et

incomplets du sujet, la véritable concrétion qui ne peut être que la totalité” (p.622), os

limites do próprio Ensaio de Ontologia Fenomenológica que acaba de ser elaborado

revelam-se então irremediavelmente intransponíveis.113 “L’ontologie nous

abandonne ici” (p.677), afirma o autor no final de sua obra. Esse abandono impõe a

busca de um novo “método” de investigação da realidade humana, que, levando adiante

as “últimas descobertas” da ontologia,114 seja ao mesmo tempo capaz de dar conta do

problema da Totalidade. (Não por acaso a “psicanálise existencial” já nasce sob o

signo da Totalidade: “Le principe de cette psychanalyse est que l’homme est une

totalité et non une collection; qu’en conséquence, il s’exprime tout entier dans la plus

insignifiante et la plus superficielle de ses conduites”, EN, p.628; grifo do autor.)

Sabemos que o livro se fecha dando a palavra final à metafísica (“C’est à la

métaphysique de décider...”, p.689), isto é, remetendo à “reflexão pura” como a única

instância competente para encontrar as respostas para as questões agora já situadas no

“terreno moral” a “moral” que indaga sobre as condições de possibilidade “d’un

moyen de délivrance et du salut” (p.691), e portanto insolúveis numa obra de

ontologia (à qual cabe apenas “décrire les structures d’un être”, e não “expliquer un

événement”, EN, p.684): “Toutes ces questions, qui nous renvoient à la réflexion pure

et non complice, ne peuvent trouver leur réponse que sur le terrain moral. Nous y

consacrerons un prochain ouvrage” (EN, p.692). Se essa obra nunca veio à luz do dia

não foi a nosso ver por um “impasse” meramente teórico (como pretendem os

comentadores115), mas, ao mesmo tempo, por um impasse de ordem histórica. (O que

diz respeito à impossibilidade de erigir uma Moral que faça sentido nas condições

sociais do mundo contemporâneo problema cujo desenvolvimento ultrapassaria os

limites deste trabalho.) É como se o autor tivesse “descoberto” que não tem sentido,

O Domingo da Vida

521

sob pena de anacronismo, construir filosoficamente o que já foi realizado

historicamente. É bem verdade que essa realização não foi senão parcial, pois a

passagem da Resistência à Revolução não se deu. Mas ao transformar em realidade

efetiva a “morale de la délivrance et du salut” apregoada em EN o Apocalipse de 44

abriu a porta para que Sartre compreendesse mais tarde que a verdadeira solução para

os impasses do livro só pode se dar na prática social e política116 (daí a idéia de

realização da moral, desenvolvida nos Cahiers pour une morale, e análoga à idéia de

realização da filosofia no jovem Marx117). Uma porta aliás já aberta pelo próprio

movimento das análises de EN, que não por acaso termina com uma reflexão sobre a

Ação (p.689), a qual fora justamente o objeto da última parte do livro (e cujo

desdobramento será a ética da ação revolucionária exposta nos Cahiers pour une

morale, que por sua vez terminam com um estudo sobre a “violência revolucionária”).

Mais uma vez, o descompasso entre a intenção do autor e o resultado da obra. Embora

Sartre tenha dado a última palavra à Metafísica,118 sua reflexão sobre a Ação não hesita

em mesclar a filosofia na sua acepção mais tradicional Kant ao herói

revolucionário do Malraux da Guerra Civil Espanhola. (Recorde-se: “La morale

kantienne est le premier grand système éthique qui substitue le faire à l’être comme

valeur suprême de l’action. Les héros de ‘l’Espoir’ sont pour la plupart sur le terrain du

faire et Malraux nous montre le conflit des vieux démocrates espagnols, qui tentent

encore d’être, avec les communistes dont la morale se résout en une série d’obligations

précises et circonstanciées, chacune de ces obligations visant un faire particulier. Qui a

raison? La valeur suprême de l’activité humaine est-elle un faire ou un être? Et, quelle

que soit la solution adoptée, que devient l’avoir? L’ontologie doit pouvoir nous

renseigner sur ce problème; c’est d’ailleurs une de ses tâches essentielles, si le pour-soi

est l’être qui se définit par l’action. Nous ne devons donc pas terminer cet ouvrage

sans esquisser, dans ses grands traits, l’étude de l’action en général et des relations

essentielles du faire, de l’être et de l’avoir”, EN, p.485-486.) Em vez da Metafísica, ou

O MITO DA RESISTÊNCIA

522

da “reflexão pura” (onde a “pureza” de uma reflexão que nasce de tamanha mescla de

materiais filosóficos, literários e históricos?), coube ao “programa heróico” da

Resistência, especialmente no seu momento apocalíptico, fazer cumprir o propósito

maior da obra, acima mencionado: “retrouver (...) la véritable concrétion qui ne peut

être que la totalité” (p.622). Desta perspectiva, não seria exagerado dizer que é a

Resistência (e não um sistema moral abstrato) a herdeira dos ideais filosóficos de EN

(só pode sê-lo contudo porque tais “ideais” já eram a transposição para a forma

filosófica dessa prática política). Celebrado como um momento de comunhão entre o

indivíduo e a história, o particular e o universal, numa palavra, momento de síntese

histórica, o Apocalipse de 44 encarna concretamente, aos olhos de Sartre, o objetivo

vislumbrado nas páginas finais do livro, quando o autor julgava (mal) estar apenas

operando uma “demonstração” filosófica (no sentido da strenge Wissenschaft

husserliana): “une organisation synthétique telle que le pour-soi soit inséparable de

l’en-soi et que, réciproquement, l’en-soi soit indissolublement lié au pour-soi” (p.686)

— noutras palavras, “la totalité indissoluble d’en-soi et de pour-soi” (p.686), ou a

“fusion synthétique de l’en-soi avec le pour-soi” (p.691).119 Essa “fusion synthétique”,

“l’unité de relations internes” buscada em EN (p.622), é análoga à que

reencontraremos na Critique de la Raison Dialectique, onde a experiência

revolucionária vivida já foi sistematizada: “Dans l’Apocalypse (...) l’unité synthétique

est toujours ici; où, si l’on préfère, en chaque lieu de la ville, à chaque moment, dans

chaque processus partiel, la partie se joue tout entière et le mouvement de la ville y

trouve son achèvement et sa signification” (vol. I, p.461, nova edição).120 (Análoga

também ao “point sublime” com que Merleau-Ponty, referindo-se a História e

Consciência de Classe, define a Revolução: “La politique révolutionnaire se donnait

pour but prochain la synthèse. On allait voir paraître dans les faits la dialectique. La

révolution, c’était le point sublime où le réel et les valeurs, le sujet et l’objet, le

jugement el la discipline, l’individu et la totalité, le présent et l’avenir, au lieu d’entrer

O Domingo da Vida

523

en collision, devaient peu à peu entrer en connivence”, Les aventures de la dialectique,

p.14-15; grifo do autor.) Completando na Teoria um caminho historicamente

interrompido, a obra sartriana vai com efeito da Resistência à Revolução ponto de

chegada pressuposto no entanto no ponto de partida de EN: “Le véritable concret, pour

Hegel, (...) c’est la Totalité produite par l’intégration synthétique de tous les moments

abstraits qui se dépassent en elle, en exigeant leur complément” (EN, p.47). O que

poderia ser esse “véritable concret” para o Sartre pós-“conversão radical” senão a

Revolução?

Surgindo assim como a nova figura da Totalidade hegeliana essa totalidade

que Sartre não conseguiu (nem poderia, por razões de ordem histórica) recuperar em

sua obra de filosofia, a Revolução tem no pensamento de nosso autor a mesma

função que o romance como forma narrativa tinha no pensamento do jovem Lukács,

qual seja: realizar o “ideal do concreto”, ou realizar a síntese (que se dava de forma

ideal no Espírito Absoluto hegeliano) entre o sujeito e o objeto, o “espírito” e a

“matéria” (o “Pour-soi” e o “En-soi”, na linguagem de EN). Para o Lukács da Teoria

do Romance, como se sabe, só o romance poderia realizar essa síntese porque ele é o

sucedâneo da epopéia (época em que a comunidade era uma “totalidade concreta”121)

— a epopéia de um mundo “abandonado por deus”.122 “En face d’un monde sans Dieu”

(para usar os termos com os quais os Existencialistas franceses costumavam se

diferenciar do existencialismo cristão, cf. por exemplo Simone de Beauvoir, La force

de l’âge, p.214-215), e pressentindo que tal síntese se tornou inalcançável não apenas

pela Filosofia mas também pelo Romance (daí o “il n’est plus le temps de décrire ni de

narrer” de “Qu’est-ce que la littérature?”),123 Sartre deslocará para a Revolução a

possibilidade de efetivar o que o jovem Lukács caracterizara como o ideal de totalidade

da verdadeira narração (e que em História e Consciência de Classe já fora também

deslocado para a Revolução justamente o “point sublime” acima mencionado124).

Vimos que na ótica sartriana só a temporalidade teleológica e totalizadora da revolução

O MITO DA RESISTÊNCIA

524

poderia coincidir com o tempo da narração e que, por conseguinte, a revolução é o

momento por excelência em que a vida (novamente digna de ser narrada) segue o

modelo do romance. Fazendo na realidade o que o romance faz na ficção, a Revolução

torna-se assim a verdadeira epopéia dos Tempos Modernos. Donde a reabilitação

sartriana da figura do herói cujo destino individual encarna o destino de toda a

comunidade.125 (Reabilitação que é um traço de época, conforme mostramos no

capítulo anterior. Afinal, o Resistente, alçado à condição de herói épico, é concebido

como “universal singular” aquele cuja particularidade exprime os anseios da

totalidade, pois “en se choisissant lui-même dans sa liberté, choisissait la liberté de

tous”, para relembrar as palavras de Sartre. Se quisermos relembrar também Merleau-

Ponty, “les résistants ne sont ni des fous ni des sages, ce sont des héros, c’est-à-dire

des hommes en qui la passion et la raison ont été identiques, qui ont fait, dans

l’obscurité du désir, ce que l’histoire attendait et qui devait ensuite apparaître comme

la vérité du temps”.126) Essa “expérience de l’héroïsme” (nos termos com que Sartre se

refere à Resistência, cf. Sit.IX, p.101), isto é, a conversão da fatalidade em liberdade

feita pela mediação do herói revolucionário, confunde-se com o “ideal”, jamais

alcançado, como se lê em EN, de “recuperação da totalidade humana” (“effort de

récupération de la totalité humaine”, ou “l’effort pour réaliser l’humanité comme nôtre,

p.474; grifo do autor — “le nous-sujet idéal serait le nous d’une humanité qui se

rendrait maîtresse de la terre”, EN, p.477) e vai dar mais tarde na idéia, desenvolvida

pelo autor à época do terceiro-mundismo (e poucos anos antes de Maio de 68), de

violência revolucionária como a “lança de Aquiles”: “La France, autrefois, c’était un

nom de pays; prenons garde que ce ne soit, en 1961, le nom d’une névrose. Guérirons-

nous? Oui. La violence, comme la lance d’Achille, peut cicatriser les blessures qu’elle

a faites. Aujourd’hui, nous sommes enchaînés, humiliés, malades de peur: au plus bas.

(...) Ainsi finira le temps des sorciers et des fétiches: il faudra vous battre ou pourrir

dans les camps. C’est le dernier moment de la dialectique (...). Mais ceci, comme on

O Domingo da Vida

525

dit, est une autre histoire. Celle de l’homme” (“Les damnés de la terre”, Sit.V, p.192-

193).127 A primeira etapa dessa cura da neurose (do Intelectual, no limite) pela

violência revolucionária —”último momento da dialética” foi, para Sartre, a cura

(meramente conjuntural) da “maladie” da Ocupação128 mais uma enfermidade da

“psique coletiva” francesa, agravada pelas seqüelas do trauma original de Junho de

1848, como vimos. (Do ponto de vista sartriano a Colaboração é um fenômeno de

desintegração, inclusive no sentido psicanalítico, cujo resultado é uma espécie de

“alienação” por intersubjetividade o que está cifrado nesta fórmula filosófica de EN:

“alienação” = “submissão ao Outro” = “anéantissement” da liberdade.129) Mas o

“último momento da dialética” pressupõe, como já sabemos, algo mais estrutural do

que essa primeira etapa da “cura”, algo que dê fim ao “tempo de homens partidos” (se

for permitido falar na língua do poeta), tão errantes e solitários quanto os vemos

representados por exemplo nas figuras de Giacometti (cujo “L’homme qui chavire”

ilustra uma das edições de EN), enfermos e vergados pelo peso da “condição inumana a

nós imposta”.130 Se para Sartre essa mudança estrutural só pode advir da Revolução é

porque o movimento totalizador e sintético inerente à própria forma da temporalidade

revolucionária é o único capaz de “curar” efetivamente o que significa romper com

o círculo vicioso de uma vida à huis clos, ou, em termos próximos do jovem Marx

(assim como do jovem Lukács), superar a desintegração do sujeito, fazendo com que

ele se sinta novamente “em casa” (fim da alienação). (Na linguagem de EN: “Dans la

saisie même de cette négation surgit la conscience (de) moi comme moi-même... C’est

l’explicitation de la seconde négation, celle qui va de moi à autrui. A vrai dire, elle

était déjà là, mais masquée par l’autre... Je prends conscience (de) moi-même... J’ai

reconquis mon être-pour-soi par ma conscience (de) moi comme foyer perpétuel

d’infinies possibilités...”, p.334-335.) Se nos lembrarmos da definição sartriana do

Intelectual como “conscience déchirée” (conforme diz o autor referindo-se ao escritor

setecentista, cf. Sit.II, p.148), ou “conscience malheureuse”131 (ainda Hegel), e de seus

O MITO DA RESISTÊNCIA

526

desdobramentos “Nous connaissons tous cette angoisse distraite et sucrée-nous,

c’est-à-dire les intellectuels. Nous nous pensions universels parce que nous jouions

avec des concepts et puis, tout d’un coup, nous voyons notre ombre à nos pieds; nous

sommes là, nous faisons ceci et rien d’autre” (“Des Rats et des Hommes”, Sit.IV,

p.66), não seria demais pensar que a Revolução é o momento único em que essa

impressão (quase esquizofrênica, no sentido preciso que Sartre sublinha nos romances

de Giraudoux: incapacidade de se adaptar ao real, cf. Sit.I, p.76) de universalidade do

intelectual coincide com a realidade. Por isso “cura” a esquizofrenia do intelectual

(bem como seu “individualismo exasperado”, à la Roquentin132), e ele pode enfim

cumprir sua função essencial: tornar a experiência narrável (daí as reportagens de 44

enquanto descrição e narração simultâneas).

O pressuposto (mas também resultado) dessa “cura” pela síntese regeneradora

da temporalidade revolucionária é a dessacralização (ou laicização) da idéia de salut:

“le salut se fait sur cette terre”, afirma Sartre num ensaio de 1946.133 Veja-se também o

que diz o autor nos Cahiers pour une morale (onde Trotsky se confunde com o Hegel

de Kojève): “Pour Trotsky le but originel de l’homme est une fin concrète et

historique: le règne des fins descend sur terre, c’est la société socialiste à réaliser”

(p.174).134 O outro aspecto dessa dessacralização do salut é a sacralização da

Revolução. Não por acaso, a primeira figura da revolução em Sartre se esboça numa

recriação do drama do nascimento de Cristo, a peça Bariona, escrita e encenada no

campo de prisioneiros, e com forte apelo à Resistência, como vimos no capítulo

anterior. Recorde-se: “C’est la Révolution! C’est la Révolution! (...) Que la terre

tressaille de joie, que toutes les îles se réjouissent! (...) Des éclairs brillent partout. (...)

Que la mer clame sa joie et la terre et tous ceux qui l’habitent” (Bariona, p.598).

Momento de virada em que o “antihumanismo” do período da Nausée se converte num

humanismo heróico à la Malraux (a ponto de Sartre identificar Revolução e “Espoir”,

como sabemos), Bariona é um exemplo perfeito (seu assunto fala por si mesmo) da

O Domingo da Vida

527

nova função que o autor de L’Espoir atribuíra à Revolução: a de sucedâneo (terrestre)

das promessas acalentadas outrora pela idéia de “vida eterna” “Il y a un espoir

terrible et profond en l’homme (...). La révolution joue, entre autres rôles, celui que

joua jadis la vie éternelle, ce qui explique beaucoup de ses caractères” (L’Espoir,

p.278). Com efeito, em Sartre, a Revolução tem uma função essencialmente redentora.

(Função que, seja dito de passagem, remonta ao jovem Marx para quem a Revolução,

surgindo de forma análoga ao final do percurso da consciência na Fenomenologia do

Espírito, é o momento em que o mundo se confessa “confissão” que redime os

pecados do mundo pois implica uma “tomada de consciência” cujo resultado é a

superação do estado de coisas existente: “Il verra alors que, depuis très longtemps, le

monde possède le rêve d’une chose dont il lui suffirait de prendre conscience pour la

posséder réellement. (...) On verra enfin que l’humanité ne commence pas une oeuvre

nouvelle, mais qu’elle réalise son oeuvre ancienne avec conscience. (...) Il s’agit d’une

confession, voilà tout. Pour se faire pardonner ses péchés, l’humanité n’a qu’à les

reconnaître pour tels”, Carta a Ruge, setembro de 1843, in Oeuvres, vol.III, Pléiade,

p.345-346; grifos do autor.) Mais do que isso, a Revolução restitui a “alma” a um

mundo sem alma (um mundo regido pela lógica infernal da mercadoria inteiramente

fetichizada, para traduzir o problema em termos mais atuais) e consequentemente

torna-se a “alma” do Intelectual, que por natureza (“parasita de uma classe

parasitária”) não a possui (cf. Sit.II, p.147 e Les Mots, p.76).135 O que significa dizer:

a Revolução redime a vida prosaica burguesa de seu caráter filistino (inclusive no

sentido já identificado por Flaubert: “J’appelle bourgeois quiconque pense

bassement”136). Ela é a verdadeira epopéia terrestre (vislumbrada por Sartre no grande

cinema épico americano basta pensar por exemplo no John Ford de The grapes of

wrath) que se contrapõe à condição mesquinha das “epopéias degradadas” do mundo

burguês (às quais nosso autor respondera com a dessacralização da linguagem).137

Depurada dessa condição mesquinha, a vida deixa finalmente ver o sublime entranhado

O MITO DA RESISTÊNCIA

528

na existência bruta das coisas do dia-a-dia. Noutras palavras, a vida ganha uma aura

filosófica. Nesse “momento decisivo da História” (“le moment décisif de l’histoire,

c’est-à-dire celui de la révolution”, Sit.X, p.219), momento sublime por excelência,138

quando a filosofia e a vida prosaica enfim se reconciliam, cumpre-se o projeto do

Existencialismo, que consiste justamente nisto: encontrar na mais simples cena da vida

cotidiana os mais complexos problemas da filosofia o que Merleau-Ponty,

procurando demarcar a nova morada da totalidade hegeliana, chamou de “o metafísico

no homem”.139

Como não reconhecer nesse desfecho apoteótico em que o antagonismo entre o

sublime e o prosaico é superado num dia sagrado da Vida a nova figura do Dimanche

de la Vie kojeviano (a reconciliação entre “les jours ouvrables de la semaine et le

dimanche de la vie”, “les aspects profanes de l’existence et ses aspects sacrés”,

mencionada no final do capítulo anterior)? No desfecho sartriano já não há, por certo, a

calmaria de seu equivalente no Hegel de Kojève (pois agora a ótica é a da revolução

permanente), mas nem por isso a Revolução deixará de guardar seu ar endimanché:

“Aussi l’autre aspect de l’insurrection parisienne, c’est cet air de fête qu’elle n’a pas

quitté. Des quartiers entiers s’étaient endimanchés” (“La Libération de Paris: Une

semaine d’Apocalypse”, p.660). Na primeira de suas reportagens, Sartre escreve: “On

pense malgré soi à ces anciens dimanches, ces dimanches de paix où la foule se

pressait dans les foires...” (L’Insurrection”, Combat, 28/8/44). “Dimanches rouges”, é

claro, como o repórter não deixou de precisar, mas essa mescla contraditória de

“journées sanglantes” e de “festa”140 nada mais faz do que evidenciar a condição

necessária para que, de uma “lutte sanglante” (ainda Kojève), brote a Liberdade. Visto

que esse resultado já está presente na própria luta, a Revolução significará sempre para

nosso Promeneur o momento histórico privilegiado (“moment parfait” como diria

Anny na Nausée141) em que se torna possível domingar todos os dias da semana.

Afinal, conforme sublinhava Malraux, “la révolution, c’est les vacances de la vie”

O Domingo da Vida

529

(L’Espoir, p.176). (Ou “o tempo mais feliz da vida”, agora já nas palavras de Jean

Genet em Un Captif Amoureux, p.11.) Nesse momento de reconciliação, realiza-se o

Desejo (de reconhecimento) que movera o sujeito “inquieto” da Fenomenologia do

Espírito e que só poderia ser satisfeito, para relembrar as lições de Kojève, por meio

da negação do existente (quando o “escravo” enfrenta de vez o problema da

dominação): “L’histoire doit s’arrêter et ce n’est qu’à ce moment que la vraie

philosophie peut se réaliser” (Introduction à la lecture de Hegel, p.64).142 Colocando

ainda mais peso nessa carga negativa de Kojève, a dessublimação emancipadora de

Sartre traduzirá a idéia de realização da “verdadeira filosofia” nos seguintes termos:

em vez de exigir que se eleve o nível da Filosofia muito além da vida miúda do dia-a-

dia, trata-se de exigir a operação inversa que se eleve a própria Vida ao nível da

Filosofia. Mas esse momento em que a Vida se torna “filosófica” (novamente o jovem

Marx)143 dispensa a filosofia enquanto forma específica. É o pressentimento desse

“instant libérateur”, para usar a linguagem de EN (p.532), que induz o desvio de rota

de Sartre: da “filosofia pura” para “Situações”. Se esse desvio já estava inscrito no

coração de EN é porque, na sua radicalidade de obra-limite, o livro termina por

sinalizar os limites históricos do próprio gênero.

O MITO DA RESISTÊNCIA

530

O Domingo da Vida

531

NOTAS - Capítulo 3

1)Sartre, “Toute la Ville Tire”, quarta reportagem da série “Un Promeneur dans Paris

Insurgé”, in Combat, 31/08/1944. 2) “Les insurgés tenaient les Halles, la gare de l’Est, les centraux téléphoniques; ils

avaient occupé les imprimeries et les locaux abandonnés par la presse collabo: on

vendait dans les rues Combat, Libération. (...) Le lendemain, Sartre avait rendez-vous

avec Camus qui s’était installé rue Réaumur, dans les locaux de Paris-Soir: il dirigeait

le journal Combat. (...) Camus exultait. Il demanda à Sartre un reportage sur ces

journées” (Simone de Beauvoir, La force de l’âge, p.679-680).) Eis os títulos e as datas

da publicação em Combat de cada uma das sete reportagens de Sartre: “L’Insurrection”

(28/08/1944); “Naissance d’une Insurrection” (29/08/1944); “Colère d’une Ville”

(30/08/1944); “Toute la Ville Tire” (31/08/1944); “Espoirs et Angoisses de

l’Insurrection” (1/09/1944); “La délivrance est à nos portes” (2/09/1944); “Un jour de

victoire parmi les balles” (4/09/1944). 3)Cf. Sartre, “La Libération de Paris: Une semaine d’Apocalypse”, Clartés, n° 9, 24 de

agosto de 1945; reproduzido em Les Écrits de Sartre, pp.659-662. 4)Os termos são de Antonio Candido, cf. “Realidade e Realismo (via Marcel Proust)”,

in Recortes, p.127. 5)Sobre essas “viagens de descoberta”, cf. em especial o Capítulo 1, II. 6)Relatando seus projetos de trabalho a Jean Paulhan, numa carta de setembro de 1938,

Sartre escreve: “Je pense aussi à une chronique sur Malraux et le roman-reportage”

(correspondência inédita).

O MITO DA RESISTÊNCIA

532

7)A respeito da “littérature de situations extrêmes” (“Qu’est-ce que la littérature?”,

Sit.II, p.327), cf. o Capítulo 1, II. Recorde-se apenas este elogio de Sartre à técnica do

romance social americano: “Comme il est simple, ce procédé, comme il est efficace: il

suffit de raconter une vie avec la technique du journalisme américain, et la vie

cristallise en social” (“A propos de John dos Passos et de 1919”, Sit.I, p. 22). Em 1933,

Malraux, no prefácio para a tradução francesa de Sanctuary, de William Faulkner,

explica em que medida esse romance transcende os limites de uma mera intriga de

romance policial: “Limitée à elle-même, l’intrigue serait de l’ordre du jeu d’échecs —

artistiquement nulle. Son importance vient de ce qu’elle est le moyen le plus efficace

de traduire un fait éthique ou poétique dans toute son intensité” (André Malraux,

Oeuvres Complètes, Pléiade, vol.I, p.1273). Observação de um estudioso de Malraux,

J.-M. Gliksohn: “A l’évidence, ce qui vaut pour l’intrigue du roman policier vaut pour

l’action révolutionnaire dans La Condition Humaine” (Idem, p.1273). Se La Condition

Humaine é, conforme enfatizam seus comentadores, “un reportage a posteriori” (Idem,

p.1274), “Un Promeneur dans Paris Insurgé” é reportagem no calor da hora mas

ainda assim “roman-reportage”, no sentido de Malraux, como logo veremos melhor. 8)Referindo-se às “proezas hermenêuticas” de Sartre, G. Lebrun menciona o exemplo

da Critique de la Raison Dialectique: “...a tomada da Bastilha contada por um repórter

husserliano, como se a gente estivesse lá” (Passeios ao léu, p.130). À luz do “je ne

raconte que ce que j’ai vu” das reportagens de 1944, vale a pena rever os termos com

que Sartre define a descrição fenomenológica num ensaio de 1939, “Visages”: “Tels

sont les visages: des fétiches naturels. Je vais essayer de les décrire comme des êtres

absolument neufs, en feignant que je ne sache rien sur eux, pas même qu’ils

appartiennent à des âmes. Je prie qu’on ne prenne pas pour des métaphores les

considérations qui suivent. Je dis ce que je vois, simplement” (in Les Écrits de Sartre,

p.561; grifos nossos).

O Domingo da Vida

533

9)A contraprova da linguagem cinematográfica das reportagens de Sartre está numa

certa homologia entre os enquadramentos de suas imagens veementes e os que

reencontraremos em vários documentários sobre a Libertação de Paris, como por

exemplo “La France Libérée” (de Serguei Youtkevitch) e “La Libération de Paris”

(realização coletiva do “Réseau de Résistance du Cinéma”). A fonte mais próxima

dessa linguagem cinematográfica das reportagens de 44 ainda é Malraux. Comentando

uma cena crucial de La Condition Humaine, Roberto Schwarz observa: “A narração

procede à maneira do cinema” (“Existencialismo e Romance Histórico (Malraux)”, in

A Sereia e o Desconfiado, p.102). Tendo sublinhado também a “incorporação radical

da técnica jornalística ao romance” (p.101), o crítico acrescenta: “Contra a chatice da

mera reportagem e contra a individualização talvez já chôcha do realismo, Malraux

busca uma estrutura geral da ação, faz uma espécie de filosofia da prática, tal como

aparece ao jornalista” (p.108). 10) “Il y a une géographie de la pensée”, escreve Sartre mais tarde (Sit.IV, p.85). 11)Cf. a abertura de Voyage au bout de la nuit. 12) “Nouvelle Littérature en France”, in Sartre Oeuvres Romanesques, Pléiade,

p.1920. 13)Também não por acaso o mesmo jornal Combat no qual Sartre publica suas

reportagens aparece na recriação feita por Simone de Beauvoir daquele período com o

nome L’Espoir, cuja importância é sublinhada pela autora nos seguintes termos: “Ainsi

tu as en main le seul journal non communiste qui atteigne le prolétariat! Tu te rends

compte de tes responsabilités?” (Les Mandarins, vol.I, p.31). 14)A fórmula é de Davi Arrigucci Jr. (Entrevista concedida a Augusto Massi, Jornal de

Resenhas, Folha de S. Paulo, 8/5/1999). 15)Para o contexto do argumento de Antonio Candido, cf. “De Cortiço a Cortiço”, O

Discurso e a Cidade, p.124. Quanto ao livro Une si douce Occupation, cf. a nota 31 do

O MITO DA RESISTÊNCIA

534

nosso Capítulo 2, II. Não custa destacar algumas passagens (que dispensam

comentários) de Gilbert Joseph sobre as reportagens de Sartre: “Dans son premier

article, Sartre commença par affirmer: ‘Je ne raconte que ce que j’ai vu.’ Ce qui était

inexact. Simone de Beauvoir l’informait de ce qu’elle avait appris ou entendu. Michel

Leiris lui communiquait aussi ce qu’il apprenait, et Sartre ne se lassait pas d’interroger

son entourage. La récolte était abondante car pendant ces derniers jours de

l’Occupation à Paris, tout le monde colportait des on-dit et des anecdotes, chacun

jurant qu’il l’avait vu de ses yeux vu. Pour faire sa copie, Sartre rapporte ce qu’on lui

raconte sans toujours faire le tri, sans esprit critique. (...) L’insurrection passa par-

dessus sa tête sans qu’il en ait vu le déploiement. (...) Il parle au passé et n’ecrit pas au

présent. Rien n’est saisi sur le vif ou dit avec spontanéité. Il emprunte à un style

purement rédactionnel et non au ton évocateur de témoin. (...) Il ne recueille aucun

témoignage, ne rapporte pas de propos intéressants. On n’entend pas la voix de ses

contemporains. Ce que Sartre publie n’est pas plus d’un témoin que d’un journaliste

d’information, mais d’un écrivain habitué, cigarette aux lèvres, à écrire tranquillement

dans son coin. (...) Sartre ne décrit aucune barricade et ne montre pas ceux qui les

montèrent et y veillèrent. L’âme et l’esprit de ces journées de fièvre lui échappèrent”

(Une si douce Occupation, pp.353-356). 16)Cf. Antonio Candido, “Realidade e Realismo (via Marcel Proust)”, in Recortes. Ver

também os comentários de Paulo Eduardo Arantes a respeito desse ensaio de Antonio

Candido em O Fio da Meada Uma conversa e quatro entrevistas sobre Filosofia e

vida nacional, p.113-114. 17)Cf. a nota 26 do Capítulo 1, II. Vale a pena recordar aqui as palavras de Michel

Contat: “Sartre a toujours eu des modèles. La Nausée, par exemple, est une sorte de

réécriture de La Recherche du temps perdu qui est le modèle et le contre-modèle qu’il

a en tête. Il veut réécrire Proust à partir de la phénoménologie et du roman américain”

O Domingo da Vida

535

(Entrevista, Magazine Littéraire, número especial sobre Sartre, novembro de 1990,

p.22). 18)Antonio Candido, cujo argumento acompanhamos de perto, não fala em

dissimulação estratégica, mas a idéia é essa, salvo engano. 19)A respeito desse “Avertissement des Éditeurs”, Michel Contat e Michel Rybalka

escrevem o seguinte: “Cet avertissement, où l’auteur, suivant un procédé romanesque

utilisé depuis le XVIIIe siècle, feint de s’affacer devant ‘les éditeurs’, sert de point de

départ au récit et a pour principale fonction de maintenir sa fin ouverte sur un

prolongement indéterminé. Sartre nous a affirmé que cette note figurait déjà en tête de

la toute première version. Ce procédé qui vise à situer le récit dans la réalité, a

évidemment ici une fonction ironique, puisqu’il apparaît au lecteur contemporain

comme l’aveu même d’une fiction. À l’origine, chez Daniel Defoe par exemple, qui

semble avoir été le premier à l’employer avec Robinson Crusoë, le procédé pouvait à la

rigueur tromper le lecteur candide, aucun nom d’auteur ne figurant en tête du livre; il

devint cependant rapidement une pure convention, reconnue pour telle, dès lors

qu’apparut sur la page de titre de l’ouvrage un nom qui n’était pas celui du narrateur

prétendu. (...) Pour Sartre, qui voulait, avec La Nausée, dépasser le genre romanesque

tout en jouant avec ses modalités historiques, la référence à Robinson Crusoë par le

moyen de cet ‘avertissement’ est intentionnelle: d’entrée de jeu se trouve ainsi rattaché

à une tradition littéraire fondée par le récit de Defoe un livre qui vise à s’en affranchir.

(...) Plus important nous apparaît la lecture qu’implique cet avertissement liminaire, et

qui est une lecture cultivée: le texte se donne d’emblée en référence à une tradition

romanesque supposée connue et qui fonctionne selon un certain nombre de conventions

admises, un code culturel” (in Sartre Oeuvres Romanesques, Pléiade, pp.1719-

1720). Mas se considerarmos que Sartre está justamente transgredindo esse código

cultural e só por isso tem sentido falar, como Contat e Rybalka, em “função irônica”

O MITO DA RESISTÊNCIA

536

do “Avertissement” na Nausée, não seria demais nos lembrarmos da outra

transgressão que lhe precedeu, a de Proust, modelo ou contra-modelo, como se queira,

de qualquer modo, pastiche. 20)Sobre a fórmula sartriana “n’importe qui”, ver também o capítulo anterior. E a

respeito do Intelectual como “un homme de trop”, cf. esse mesmo capítulo, nota 37. 21)Alguns anos depois, respondendo a uma enquete do periódico americano The Nation,

sobre problemas da conjuntura política internacional, Sartre insiste, em uma longa

carta-artigo, que sua opinião é apenas a de um francês entre 40 milhões: “je suis un

Français parmi 40 millions”. E mais no final do mesmo artigo: “Je n’ai voulu que

donner des exemples: je n’ai pas qualité pour présenter un plan général et cela

risquerait de paraître comique. Qui suis-je pour faire des suggestions et à qui les ferais-

je?” Ou então: “Voilà ce que beaucoup de Français et d’Européens souhaitent; voilà ce

qu’ils n’ont jamais l’occasion de dire aux Américains. Je crois qu’ils seront

reconnaissant à La Nation d’avoir permis à l’un d’entre eux d’exprimer son point de

vue aux Etats-Unis”. (Publicado em The Nation, dezembro de 1950, com o título “The

Chances of Peace”; inédito na França. Agradecemos a Michel Contat a gentileza e a

generosidade de nos ter fornecido uma cópia da versão integral do manuscrito original

francês, “Les Chances de la Paix”.) 22)A respeito desse final de Les Mots, veja-se a seguinte passagem do diálogo entre

Michel Contat e Sartre: “Que vous le vouliez ou non, Sartre, vous n’êtes pas n’importe

qui... Des gens ont été choqués par la phrase finale des Mots (...). D’après eux, pour

revendiquer d’être n’importe qui, il faut déjà ne plus l’être”. Resposta de Sartre: “C’est

une erreur monumentale. Demandez, au hasard, à un type dans la rue ce qu’il est: il est

un homme, tout un homme et rien d’autre, comme tout le monde.” Objeção de Contat:

“Il est probablement plongé dans un anonymat total et dans une vie qui lui fait horreur:

il est un simple numéro dans une série! La hantise de beaucoup de gens c’est

O Domingo da Vida

537

précisément cet anonymat et ils seraient prêts à n’importe quoi pour n’être plus

n’importe qui...” Sartre: “Mais être n’importe qui, ce n’est pas être anonyme! C’est

être soi, pleinement soi, dans son village, dans son usine ou dans sa grande ville, et

avoir des rapports avec les autres au même titre que n’importe qui...Pourquoi faudrait-

il que l’individu ce soit l’anonyme?” (“Autoportrait à soixante-dix ans”, in Sit.X,

pp.158-159). 23) “Eux [Antoine Roquentin, Mathieu Delarue], c’est moi décapité” (Les carnets de la

drôle de guerre, p.410; nova edição, p.594). 24)Cf. a nota 59 do capítulo anterior. Nos Carnets de la drôle de guerre, lê-se: “la

conscience est, comme dit Valéry, une absence” (p.264, primeira edição). E em EN: “la

conscience n’a rien de substantiel” “elle est un vide total (puisque le monde entier

est en dehors d’elle)” (p.23). Note-se também o que Sartre escreve em Saint Genet: “Il

n’est permis à personne de dire ces simples mots: je suis moi. (...) Je n’aime pas les

âmes habitées” (p.100). 25)Daí o fascínio pelo “anonimato numérico” das ruas de Nova York: “Dans

l’anonymat numérique des rues et avenues, je suis simplement n’importe qui n’importe

où” (“New-York, ville coloniale”, Sit.III, p.118). 26)Nunca é demais recordar as palavras que fecham o famoso artigo de 1939 sobre

Husserl: “Husserl a réinstallé l’horreur et le charme dans les choses. (...) Finalement

tout est dehors, tout, jusqu’à nous-mêmes: dehors, dans le monde, parmi les autres. Ce

n’est pas dans je ne sais quelle retraite que nous nous découvrirons: c’est sur la route,

dans la ville, au milieu de la foule, chose parmi les choses, homme parmi les hommes”

(“Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: l’intentionnalité”, in Sit.I,

p.32).

O MITO DA RESISTÊNCIA

538

27)Cf. Questions de méthode, in Critique de la raison dialectique, vol. I, p.29, nova

edição. Sobre esse “idealismo oficial” da Terceira República, cf. o Preâmbulo e o

Capítulo 1 da Primeira Parte deste trabalho. 28)O retrato implacável de um salaud, o personagem Lucien Fleurier (um anti-

Roquentin), feito em 1938 na novela “L’Enfance d’un chef”, para não falar da Nausée,

também um pastiche das diatribes de Flaubert contra a burguesia normanda, conforme

assinaláramos antes, já não deixava dúvidas sobre a grande obsessão que atravessará a

obra de Sartre: mostrar “ce que pouvait contenir de merde un coeur bourgeois”. (Os

termos são do próprio Sartre, referindo-se particularmente às cartas e diários “d’un

certain nombre de gens de droite” à época do golpe de Luís Napoleão, ou seja, a

burguesia que se acanalhara a partir de 1848, e igualmente odiada por Flaubert, para

quem “89 a démoli la royauté et la noblesse, 48 la bourgeoisie, et 51 le peuple; il n’y a

plus rien qu’une tourbe canaille et imbécile”. Cf. Sartre: un film réalisé par A. Astruc

et M. Contat, Texte Intégral, p.91.) Esse anti-bourgeoisisme virulento está aliás

presente desde a época em que nosso então Normalien se empenhava, juntamente com

Nizan (a temível dupla “Nitre et Sarzan”, constituída já no período do liceu Henri-IV),

em ridicularizar o establishment acadêmico no qual todavia ambos se formaram. Um

rápido lembrete, no que diz respeito ao horror à bêtise: aqui a herança sartriana de

Flaubert corre também pelo atalho do Monsieur Teste de Paul Valéry, que se abre

justamente com o famoso “la bêtise n’est pas mon fort” (in Paul Valéry, Oeuvres,

vol.II, Pléiade, p.15). 29) “Il n’y a nulle part de conscience privilégiée et (...) les belles-lettres ne sont pas des

lettres de noblesse” (“Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, p.257). 30) “...il écrit pour tous et avec tous, parce que le problème qu’il cherche à résoudre

avec ses moyens propres est le problème de tous” (“Qu’est-ce que la littérature?”,

Sit.II, p.257).

O Domingo da Vida

539

31)Não custa recordar esta passagem dos Carnets de la drôle de guerre: “Ce qui acheva

de ligoter Renard, c’est l’idée qu’il était un ‘artiste’. Cette idée d’artiste venait des

Goncourt. Elle a leur cachet de bêtise vulgaire. (...) Une malédiction blanche,

embourgeoisée, confortable (...). Cette notion d’artiste n’est point seulement la

survivance d’un grand mythe quasi religieux, le mythe romantique du poète; elle est

aussi le prisme à travers lequel une petite société de bourgeois aisés et cultivés, qui

écrivent, se voient et se saisissent comme élite. Elle contient en elle les défauts et les

tares de cette société. Curieuse époque où les écrivains vivent entre eux parce qu’ils ne

veulent pas encore se résigner à être des hommes parmi d’autres” (p.424-425; grifo

nosso). A “elite” da Terceira República, bem entendido, como Sartre fará questão de

sublinhar ao reescrever essa passagem num ensaio posterior: “...le prisme à travers

lequel une petite société de bourgeois aisés et cultivés qui écrivent se saisissent et

se reconnaissent comme l’elite de la IIIe République” (“L’homme ligoté”, Sit.I, p.286).

“Les Goncourts n’étaient, à bien des égards, que des imbéciles fielleux”, reafirma

mais tarde nosso autor (Sit.IX, p.116). 32)Num outro contexto, ver escândalo equivalente provocado pela versão naturalista

que Brecht faz dos clássicos alemães, segundo a análise de Roberto Schwarz (“A

atualidade de Brecht”, in revista Vintém, n°1, fevereiro/março/abril 1998). 33)Sobre a gênese (filosófica e literária) desse humanismo nascido de uma experiência

histórica limite, cf. capítulo anterior. 34)Embora a relação entre destino privado e político seja, segundo Dolf Oehler, a marca

registrada da Éducation Sentimentale (cf. particularmente “Art Névrose, análise sócio-

psicológica do fracasso da revolução em Flaubert e Baudelaire”, in Novos Estudos

Cebrap, n° 32), a principal referência literária de Sartre aqui ainda é a releitura que sua

geração intelectual faz do romance social americano Hemingway, que mostrava o

mundo através de um “sujeito singular”, como diz Simone de Beauvoir (La force des

O MITO DA RESISTÊNCIA

540

choses, p.161), ou Dos Passos, em cuja narrativa a experiência subjetiva é

transformada na substância da própria história, para relembrar uma já mencionada

observação de F. Jameson (“The selves in the Texts”, p.101). Mas para chegar ao

pressentimento do que Sartre chama de “literatura do universal concreto” foi preciso

esperar a experiência política da Resistência: “Ceux d’entre nous qui ont collaboré aux

feuilles clandestines, s’adressaient dans leurs articles à la communauté entière. Nous

n’y étions pas préparés et nous ne nous sommes pas montrés fort habiles: la littérature

de la résistance n’a pas produit grand-chose de bon. Mais cette expérience nous a fait

pressentir ce que pourrait être une littérature de l’universel concret. (...) Du sein de

l’oppression, (...) nous représentions à la collectivité opprimée dont nous faisions

partie, ses colères et ses espoirs” (“Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, p.257-258). 35) “Dans ces articles anonymes nous n’exercions, en général, que l’esprit de pure

négativité. En face d’une oppression manifeste et des mythes qu’elle forgeait au jour le

jour pour se soutenir, la spiritualité était refus. Il s’agissait la plupart du temps de

critiquer une politique, de dénoncer une mesure arbitraire, de mettre en garde contre un

homme ou contre une propagande, et quand il nous arrivait de glorifier un déporté ou

un fusillé, c’était pour avoir eu le courage de dire non. (...) Ainsi notre fonction

semblait-elle une humble résonance de celle que les écrivains du XVIIIe siècle avaient

si brillamment remplie. Mais comme, à la différence de Diderot et de Voltaire, nous ne

pouvions pas nous adresser aux oppresseurs, sinon par fiction littéraire, fût-ce pour

leur donner honte de leur oppression, comme nous ne frayions jamais avec eux, nous

n’avions pas l’illusion que ces auteurs ont nourrie d’échapper par l’exercice de notre

métier à notre condition d’opprimés” (“Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, p.257-

258). 36) “O que se deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o

torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no

O Domingo da Vida

541

tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor

escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão

sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e

explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor

do que se fora apenas superficial” (Machado de Assis, “Notícia da atual literatura

brasileira Instinto de Nacionalidade”, Obra Completa, vol.III, p.804). A esse

respeito, cf. a análise de Roberto Schwarz no texto “A Nota Específica”, in Seqüências

Brasileiras. 37)Cf. Capítulo 1, II. 38)Os termos são de Antonio Candido, referindo-se a um comentário de José Veríssimo

sobre as Memórias de um sargento de milícias (cf. “Dialética da Malandragem”, O

Discurso e a Cidade, p.19). 39)Cf. o que diz Michel Contat a respeito de L’Âge de Raison: “...il n’est pas

philosophiquement licite de recourir à la technique du narrateur omniscient. Celle qui

s’impose alors est le ‘réalisme subjectif’: la narration à la première personne ou la

narration objective faite d’un point de vue particulier, à la troisième personne,

combinée à des formes de monologue intérieur, sans intervention d’auteur. Simone de

Beauvoir a dit l’importance qu’a eue Hemingway pour la conception du roman que

Sartre et elle se sont faite dans les années trente...” (in Sartre Oeuvres

Romanesques, Pléiade, p.1891). Além de Hemingway, é preciso não esquecer Dos

Passos. Note-se aliás de passagem este sugestivo comentário de Jameson a respeito das

análises sartrianas sobre Dos Passos: “Sartre avalia o efeito do estilo de John dos

Passos de forma muito parecida com as pistas e recomendações brechtianas. (...) Sartre

consegue desmontar o mecanismo na versão de Dos Passos: ele está escrevendo na

terceira pessoa uma narrativa de primeira pessoa; quer dizer, ele está fazendo em sua

O MITO DA RESISTÊNCIA

542

prosa o que Brecht recomendou a seus atores” (F. Jameson, O Método Brecht, p.88-

89). 40)Bastaria lembrar esta passagem de Balzac: “Voilà pourquoi l’auteur a choisi pour

sujet de son oeuvre la société française (...). L’auteur ici ne juge pas (...). Il est

historien, voilà tout. (...) Ainsi n’est-ce pas par gloire nationale ni par patriotisme qu’il

a choisi les moeurs de son pays, mais parce que son pays offrait, le premier de tous,

l’homme social sous des aspects plus multipliés que partout ailleurs” (Prefácio à

primeira edição de Une fille d’Ève, La Comédie Humaine, Pléiade, vol.II, pp.263-264;

grifo de Balzac). Inútil acrescentar que qualquer aproximação entre o “realismo” de

Sartre e o Realismo (aqui com maiúscula e sem aspas mesmo) de Balzac não poderia (e

tal impossibilidade é de ordem histórica) ir muito além da analogia, presente em

ambos, ainda que de forma diversa, entre o trabalho do (bom) romancista e o do

historiador (não convencional). No caso de Sartre, essa analogia surge inicialmente da

crítica à historiografia tradicional, perante a qual “des personnages de roman auraient

l’air plus vrais”, como afirma Roquentin (La Nausée, Pléiade,p.19). (Em que pese a

diferença de referencial teórico e histórico, esse comentário de Roquentin não deixa de

evocar a célebre observação de Engels de que a literatura de Balzac diz mais verdades

sobre a França da época do que todas as páginas da historiografia oficial.) Ainda

Roquentin: “...comme ces historiens qui font de Lénine un Robespierre russe et de

Robespierre un Cromwell français: au bout du compte, ils n’ont jamais rien compris du

tout... Derrière leur importance, on devine une paresse morose: ils voient défiler des

apparences, ils bâillent, ils pensent qu’il n’y a rien de nouveau sous les cieux” (p.83).

A contrapartida está num trabalho de reconstrução que faz do passado, reatualizado

pela memória, um misto de “souvenirs” e de “fictions”: “J’ai beau fouiller le passé je

n’en retire plus que des bribes d’images et je ne sais pas très bien ce qu’elles

représentent, ni si ce sont des souvenirs ou des fictions. (...) Je construis mes souvenirs

O Domingo da Vida

543

avec mon présent.(...) Le passé, j’essaie en vain de le rejoindre” (Idem, pp.41-42). Esse

trabalho de reconstrução (embrião do “método progressivo-regressivo”: “il s’agit

d’inventer un mouvement, de le recréer”, cf. Questions de Méthode, p.112) é um tema

central dos Carnets de la Drôle de Guerre, onde Sartre, contrapondo-se ainda à

historiografia tradicional, escreve: “J’esquisserai donc un autre type de description

historique (...), car il s’agit de donner un exemple de méthode et non de découvrir une

vérité historique de fait” (p.366). Cabe a tal “método” oferecer, como “correctif

synthétique de la décomposition abstraite” operada pelo historiador tradicional, uma

“recomposition synthétique du réel” (Idem, p.401). (Mais tarde Sartre atribuirá a

origem desse método a Marx, cujo “olhar síntético dá vida aos objetos da análise”, e

em cuja obra “nunca encontramos entidades”, mas “totalidades vivas”, particularmente

em O 18 Brumário, cf. Questions de méthode, p.34; grifos do autor) Com muita

propriedade, F. Jameson chamou a atenção para o caráter ficcional do “método

progressivo-regressivo” sartriano: “Através das obras de Sartre, a abstração é evocada

apenas para ser resolvida dentro de uma visão que é essencialmente ficcional (...). O

objetivo não é apenas ‘compreender’ a Gironda (no sentido redutivo), porém, uma vez

atingida essa compreensão, usá-la como um retorno ao que é essencialmente uma re-

experiência concreta da situação real dos girondinos, uma reencenação de seus

pensamentos e atos, numa forma semelhante à que eles tomariam para um romancista

histórico. Este é, de fato, o sentido daquilo que Sartre (seguindo Marc Bloch) chama de

‘método progressista-regressivo’: depois de ter trabalhado, analiticamente, a partir do

presente em direção ao que deve ter sido o significado e o valor dos atos passados, no

momento de sua representação, recriá-los, sinteticamente, no pensamento, de tal forma

que justiça seja feita a sua original riqueza e complexidade” (Marxismo e Forma,

p.174). Desta perspectiva, o que Sartre opõe a todo tipo de “modelo redutivo”

(inclusive o de um certo “marxismo esquemático”) é, ainda segundo Jameson, uma

O MITO DA RESISTÊNCIA

544

“figura histórica e retórica” (Idem, pp.172-174). Não por acaso, como estamos vendo

neste capítulo, a reconstrução sartriana da insurreição parisiense de agosto de 44, tanto

na série “Un Promeneur dans Paris Insurgé” quanto no ensaio posterior “La Libération

de Paris: Une Semaine d’Apocalypse”, está muito mais próxima do modelo de um certo

tipo de romance do que da historiografia na sua acepção tradicional (com a qual aliás

não tem nenhum parentesco). Comparado não apenas a essa historiografia, mas também

à filosofia numa acepção igualmente tradicional, o romance representa para Sartre

(nisto próximo do jovem Lukács da Teoria do Romance, como logo veremos melhor)

um gênero privilegiado para apreender a realidade social: “On peut à la rigueur

attaquer ces problèmes [ces questions que notre temps nous pose] dans l’abstrait par la

réflexion philosophique. Mais nous, qui voulons les vivre, c’est-à-dire soutenir nos

pensées par ces expériences fictives et concrètes que sont les romans...” (Sit.II, p.251-

252). Por isso o autor pode afirmar posteriormente: “Je pense que Les Mots n’est pas

plus vrai que La Nausée ou Les Chemins de la liberté” (Sit.X, p.146). É que todas

essas obras, tanto a autobiografia quanto os romances, são ao mesmo, embora Sartre

não o diga, “souvenirs” (no sentido em que Roquentin utiliza o termo, isto é,

reorganização de um material histórico) e ficções. O que remete novamente à analogia

entre o trabalho do historiador e o do escritor: ambos devem saber reconstruir a

realidade, e não apenas descrevê-la. Daí o reproche de Sartre a Jules Renard, visto

como um momento de “desagregação total do realismo”: “Renard ne peut même pas

concevoir autre chose que la réalité des apparences. (...) Renard est un Proust freiné, un

Proust manqué, parce qu’il reste sur le plan de l’observation. (...) Il ne s’aviserait pas

de parler de la glace un jour de plein été, comme Proust, il n’osera jamais

reconstruire” (Les carnets de la drôle de guerre, p.420-421; grifos do autor) falta-

lhe, em resumo, “la puissance nécessaire pour reconstruire la réalité par des

comparaisons sévèrement filtrées (comme Proust) et tout entière asservies à la

O Domingo da Vida

545

reconstitution tentée” (Idem, p.422). (Seja dito de passagem que há uma certa

proximidade entre o mapeamento sartriano dos equívocos em torno do realismo e

alguns argumentos de Antonio Candido, particularmente no já mencionado estudo

“Realidade e Realismo (via Marcel Proust)”. Por sua vez, como indicamos no Capítulo

1, II, a crítica de Sartre à descrição meramente niveladora a qual sucumbe à

“realidade das aparências”, detendo-se na superfície das coisas aproxima-se muito

em vários momentos, embora em outros também se afaste, do ponto de vista de Lukács

no famoso ensaio “Narrar ou Descrever?”) Essa contraposição que Sartre estabelece

entre Renard e Proust, a saber, um olhar que se detém no plano da observação e outro

que reconstrói, corresponde claramente à contraposição que o próprio Proust

estabelecera, na Recherche, entre a “vérité documentaire” dos Goncourt e a “vérité

d’art” do Narrador (cujos “retratos” não são meros retratos “Mais cela enlevait-il

tout mérite à mes portraits puisque je ne les donnais pas pour tels?, cf. Le temps

retrouvé, pp.41-42; p.74 Livre de Poche). Mas se por um lado a desqualificação

sartriana da descrição naturalista tem como ponto de referência a reconstrução operada

pelo Narrador na Recherche (aqui um dos pontos altos dos altos e baixos

característicos da relação de Sartre com Proust), por outro, seu modelo mais decisivo é,

como não poderia deixar de ser, a nova figura assumida pelo romance social americano

na “literatura de situações extremas” veja-se apenas esta passagem de “Qu’est-ce

que la littérature?”: “Après lui [Saint-Exupéry], après Hemingway, comment

pourrions-nous songer à décrire? Il faut que nous plongions les choses dans l’action...”

(Sit.II, p.264). 41)Essa afirmação é aliás de Cristiano Mascaro. 42)Vale a pena notar a tarefa que Sartre, nas páginas clandestinas da Resistência, atribui

ao grande cinema realista: “Sur l’écran sur l’écran seul il y a place pour une foule

affolée, furieuse ou recueillie. Le romancier peut évoquer les masses; le théâtre, s’il

O MITO DA RESISTÊNCIA

546

veut les représenter sur la scène, doit les symboliser par une demi-douzaine de

personnages qui prennent le nom et la fonction de choeur; seul le cinéma les fait voir.

Et c’est aux masses elles-mêmes qu’il les montre: à quinze millions, vingt millions de

spectateurs. Ainsi le film peut parler de la foule à la foule. C’est ce qu’ont si bien vu

les grands pionniers du film, les Griffith, les Cecil B. de Mille, les King Vidor. Cela ne

signifie pas que le cinéma doive s’interdire les drames d’amour ou les conflits entre

individus. Loin de là. Seulement il faut qu’il les replace dans leur milieu social. La

rapidité avec laquelle l’objectif peut voler d’un lieu à un autre permet en outre de

situer notre histoire dans l’univers entier. La fameuse règle d’unité théâtrale ne

s’impose aucunement au film, et l’on peut concevoir plusieurs intrigues: simultanées,

conduites dans des milieux différents et qui contribueraient par leur diversité même à

dépeindre une situation sociale dans son intégralité. L’unité du film viendrait alors de

sa signification profonde, de l’époque qu’il restitue, et non de l’echaînement des

circonstances dans une minuscule anecdote singulière. (...) Ainsi a-t-on infiniment

restreint le pouvoir du cinéma: on l’a enchaîné, on a contraint ce géant à peindre des

miniatures. C’est qu’on a peur de lui. La faute n’en est pas aux metteurs en scène: à

aucune époque, la France n’en a eu de plus grands. Elle est à certains producteurs, à la

censure aux ordres de Vichy, à tous ceux qui redoutent le pouvoir de suggestion, de

persuasion du film et qui tremblent encore au souvenir de l’enthousiame qui saisissait

avant la guerre les spectateurs français de ‘Halleluiah’ et de ‘Potemkine’. (...) Nous ne

pouvons aujourd’hui que préparer en silence sa libération, en cherchant les grands

sujets qui lui rendront sa place exceptionnelle d’art des foules. Et quel est le sujet qui

doit nous réclamer tout d’abord, si ce n’est précisément cette France occupée où nous

vivons, sa grandeur et ses misères? Il faudra bien laisser les Américains et les Russes

nous parler de la guerre, des batailles de Lybie, de Stalingrad, de Kharkov. Mais notre

souffrance est nôtre. Personne ne pourra, à notre place, parler des déportations, des

O Domingo da Vida

547

fusillades, des combats des soldats sans uniforme, de ces Maquis héroïques, et de ce

million de prisonniers qui manquent depuis quatre ans à la France. Il ne s’agira pas de

faire un film de propagande, et il serait indécent de vouloir distraire avec ce qui fut un

calvaire pour tant de familles. Le metteur en scène qui aura le courage d’entreprendre

un tel film devrait y penser dès maintenant, et dès maintenant rassembler les

documents: il cherchera simplement à témoigner. Mais ce témoignage aura pour effet

de rendre du même coup au cinéma sa largeur et sa puissance, car c’est une grande

fresque sociale qu’il aura à peindre” (“Un film pour l’après-guerre”, L’Ecran français,

incorporado a Les Lettres françaises, n° 15, abril de 1944; número clandestino). Ao

cinema que tratará dessa quadra histórica decisiva caberá pois apenas “testemunhar”.

Mas esse testemunho deverá ao mesmo tempo expor “une grande fresque sociale”

tal como as reportagens de nosso Promeneur em agosto de 1944. Não custa relembrar

(cf. Capítulo 1, II) que Sartre, em seu elogio a certas técnicas vanguardistas do

romance contemporâneo (particularmente Dos Passos e Virginia Woolf), sobretudo a

técnica da simultaneidade, lhes atribui qualidades muito próximas às do cinema realista

acima descrito. 43)As aspas são por conta de Paulo Arantes, glosando as análises de Marx sobre a

construção especulativa hegeliana (cf. Ressentimento da Dialética, p.50). 44)Sobre a transposição dessa humilhação histórica para a forma filosófica de EN, ver

em especial Capítulo 1, II. 45)Referindo-se à fusão de “dois métodos” em L’Idiot de la famille, um que veio da

psicanálise e outro do marxismo, e que resultou na idéia de neurose objetiva, Sartre

afirma: “la névrose de Flaubert est une névrose réclamée par ce que j’appelle l’esprit

objectif” (Sit.X, p.101; grifo do autor). 46)Cf. Perry Anderson, “Modernidade e Revolução”, Novos Estudos Cebrap,

fevereiro de 1986. Vistas as coisas por este ângulo, no qual convergem revolução

O MITO DA RESISTÊNCIA

548

social e vanguardas literárias e artísticas de entre-guerras, faz sentido a afirmação de F.

Jameson de que o Existencialismo seria um dos momentos da “extraordinária floração

final do impulso do alto modernismo” (cf. Pós-Modernismo A Lógica Cultural do

Capitalismo Tardio, p.27). 47)Publicações clandestinas da Resistência, acervo da Bibliothèque Nationale de Paris. 48)Expressão extraída das memórias de Dominique Desanti, cf. capítulo anterior. 49)Referindo-se à época da Libertação, A. Boschetti escreve: “Le sentiment

fondamental, attesté par toutes les sources, est celui, propre aux temps prophétiques,

d’une rupture radicale. L’état social et politique d’avant guerre, avec ses principes et

ses valeurs, semble bouleversé. Les intellectuels les moins suspects d’extrémisme

partagent l’impression de vivre un véritable processus révolutionnaire(...). ‘De la

Résistance à la révolution’, telle est la devise de Combat; et Mounier peut écrire, en

février 1945: ‘Si nous nous disons révolutionnaires, ce n’est pas par échauffement

verbal ni par goût du théâtre. C’est parce qu’une analyse honnête de la situation

française nous la montre révolutionnaire’“ (Sartre et Les Temps Modernes, p.137). Em

Malraux já encontrávamos um vínculo essencial entre guerra e revolução: “Il n’y a

plus, désormais, de transformation sociale, à plus forte raison de révolution, sans

guerre” (L’Espoir, p.104). E ainda: “...pour qui la légende dorée de la révolution

grandisse avec l’expérience de la guerre, au lieu d’être broyée par elle” (Idem, p.201).

Nos Cahiers pour une morale, Sartre também vincula guerra (“un processus historique

qui se défait”) e revolução (p.65-66). Um pouco antes, em “La responsabilité de

l’écrivain”, nosso autor observa: “Peut-être la guerre prépare la révolution” (in Les

Conférences de l’Unesco, p.70). 50) “Les auteurs du XVIII siècle ont contribué à faire l’histoire parce que la perspective

historique du moment, c’était la révolution et qu’un écrivain peut et doit se ranger du

côté de la révolution...” (“Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, p.288).

O Domingo da Vida

549

51)Ainda sobre essa convicção de que àquela altura se tornara impossível retomar o

velho curso do mundo, o que implicava o fim da sociedade capitalista, veja-se também,

no caso da Tchecoslováquia, o depoimento de Novomesky (um dos líderes da

insurreição tcheca de 68), resumido por Sartre: “En 45, personne ne voulait restaurer la

Ire République. Elle s’était écroulée avant l’occupation: à Munich. La capitulation,

pour ces jeunes gens en colère, ce n’étaient pas seulement leurs alliés qui s’en étaient

rendus coupables, mais, au premier chef, leur bourgeoisie nationale.(...) Les résistants,

lorsqu’ils vinrent au pouvoir, après la libération, se juraient bien qu’on ne reverrait

plus cette société de l’impuissance. Le socialisme, pour eux, c’était d’abord le veau

d’or renversé, l’intégration de tous à une collectivité humaine, pour chacun la

citoyenneté à part entière, la participation de plein droit à la gestion économique,

sociale et politique du pays; on obtiendrait à chaud cette unité nationale qui n’avait pu

se faire quand les circonstances l’exigeaient, en mettant le destin de tous entre les

mains de tous, ce qui ne pouvait se réaliser que sur une seule base: la socialisation des

moyens de production” (cf. “Le socialisme qui venait du froid”, Sit.IX, p.230-231;

grifos de Sartre). Um dos sintomas da força dessa radicalização política da Resistência

em toda a Europa, exprimindo por sua vez a força das profundas transformações sociais

em curso, é, se nos voltarmos agora para o caso da Itália, a repentina supremacia do

PCI nos últimos anos da guerra: “Embora tenha sido fundado em 1921, o PCI só se

tornou uma agremiação de massas na década de 1940. Sua transformação de uma

organização relativamente pequena, embora combativa, numa grande força política e

social resultou das profundas convulsões sociais que marcaram os anos 1943-45; em

circunstâncias mais calmas, as habilidades políticas de Togliatti bastante notáveis

teriam sido de pouca valia. As greves de massas da primavera de 1943 sinalizaram o

renascimento da militância da classe trabalhadora italiana, depois de quase duas

décadas de tranqüilidade forçada sob a ditadura de Mussolini, e pesaram decisivamente

O MITO DA RESISTÊNCIA

550

na decisão do rei e do Exército de romper com o Duce após os desembarques aliados

na Sicília. (...) Mas o período crucial para que os comunistas conquistassem a

supremacia, primeiro ideológica e depois política, na esquerda italiana foi entre

setembro de 1943 e abril de 1945, durante a ocupação alemã. O PCI, e não o Partido

Socialista Italiano (PSI) formalmente maior, do qual fora originalmente uma

dissidência, predominou tanto nas atividades militares da Resistência quanto nas

grandes greves de março de 1944, as mais bem-sucedidas nas regiões da Europa

ocupadas pelos nazistas” (Tobias Abse, “Itália: Uma nova agenda”, in Um Mapa da

Esquerda na Europa Ocidental, p.66). 52)O esquema explicativo para esse grau máximo de consciência possível alcançado

naquela conjuntura política será fornecido mais tarde pelo próprio Sartre: “Quand une

société, à la suite d’un grand bouleversement (guerre perdue, occupation par l’ennemi

vainqueur), perd son idéologie et son système de valeurs, elle se trouve souvent,

presque sans y prendre garde, charger ses intellectuels de liquider et de reconstruire.

Et, naturellement, ceux-ci ne remplacent pas, comme, en fait, on le leur demande,

l’idéologie périmée par une autre idéologie, aussi particulière et permettant de

reconstruire la même société: ils tentent d’abolir toute idéologie et de définir les fins

historiques des classes travailleuses” (“Plaidoyer pour les intellectuels”, Sit.VIII,

p.429; grifo do autor). E num outro texto, nosso autor escreve: “Il faudrait imaginer

des conflits d’ordres plus généraux, par exemple des guerres, des occupations, des

défaites, pour qu’une pensée vraiment oppositionnelle apparaisse” (On a raison de se

révolter, p.349). 53)A respeito da origem dessa sigla, note-se o que diz um dos principais historiadores

da Resistência, Henri Michel: “L’Humanité (...) réclamait ‘que surgissent du sol de la

Patrie, dans les régions occupées, des groupes de Francs-Tireurs qui renouvelleront les

exploits de leurs devanciers de 1870’. Au moment de donner un nom à ses groupes de

O Domingo da Vida

551

combats, le Parti a donc cherché d’abord un précédent dans l’Histoire de France. Le

mot partisan est venu ensuite: il évoquait les luttes des bolchevicks dans la guerre

civile, et aussi les actions des résistants soviétiques et yougoslaves. Le tout, auquel

s’ajouta ensuite l’adjectif français —Francs-Tireurs Partisans Français— résumait

bien le double caractère de la guerre de Résistance, à la fois guerre de libération

nationale et guerre civile internationale” (Les Courants de Pensée de la Résistance,

p.660). 54)Mais tarde, à época do terceiro-mundismo, é ainda esse duplo caráter nacional e

revolucionário característico da Resistência que encontraremos na base das análises

de Sartre (de renovada atualidade entre nós, basta pensarmos no MST): “Il se peut qu’il

y ait dans l’abstrait une contradiction formelle entre nationalisme et universalisme.

Mais dans le développement réel de l’Histoire, les formations de gauche ont toujours

été nationalistes et internationalistes à la fois. (...) Du reste, c’est la guerre de 39 qui a

produit et défini la majorité des hommes de gauche contemporains. Or il ne faut pas

oublier que, sous l’occupation, deux faits en apparence contradictoires mais en réalité

complémentaires se sont produits: l’union des forces de la Résistance s’est faite sur un

programme national et particulariste (chasser les occupants de France) et non sur un

programme universaliste et social; les conditions de la lutte contre les ennemis

‘radicalisaient’ les résistants; cela signifie que l’ensemble de ces mouvements

nationalistes se ‘gauchissait’ à mesure que leur combat s’intensifiait. En 1944, chez

presque tous les Français, le particularisme national était indissolublement lié à un

humanisme révolutionnaire. (...) Il est donc parfaitement incroyable que les hommes de

gauche puissent se déclarer effrayés par le nationalisme des Algériens: certes ce

nationalisme comme toutes les réalités historiques enveloppe des forces

contradictoires. Mais ce qui doit compter pour nous tous, c’est que le F.L.N. conçoive

l’Algérie indépendante sous la forme d’une démocratie sociale et qu’il reconnaisse, en

O MITO DA RESISTÊNCIA

552

pleine lutte, la nécessité d’une réforme agraire. Quelle que soit l’origine de ces

combattants, quelle que puisse être pour eux l’importance de la foi religieuse, les

circonstances de leur lutte les entraînent vers la gauche comme firent celle de notre

Résistance entre 40 et 45. (...) Rien ne l’empêche, dans cette perspective, de

reconnaître le nationalisme algérien comme un particularisme qui doit déboucher sur

l’universalité.” (“Interview de Sartre”, texto originalmente publicado em Vérités

pour..., jornal clandestino do “réseau Jeanson” de apoio à luta pela libertação da

Argélia, junho de 1959, pp.14-17; reproduzido em Les Écrits de Sartre, pp.723-729,

com o título “Entretien de Sartre avec Francis Jeanson”; grifos do autor. Essa

entrevista custou a Sartre que de caso pensado aceitara seu nome numa publicação

clandestina um processo movido por um tribunal militar contra os membros do

“réseau”.) No mesmo sentido, cf. também “Le colonialisme est un système”: “Le

nationalisme algérien n’est pas la simple reviviscence d’anciennes traditions, d’anciens

attachements: c’est l’unique issue dont les Algériens disposent pour faire cesser leur

exploitation” (Les Temps Modernes, março-abril de 1956; reproduzido em Sit.V, p.46-

47). 55)Oberve-se essa herança de Malraux presente ainda no Sartre soixante-huitard: “On

n’est pas à gauche parce qu’on est misérable; il y en a qui le sont pour cela; mais

beaucoup d’ouvriers ou d’intellectuels sont à gauche pour d’autres raisons, ils ont la

vie matérielle à peu près assurée. (...) Mais je pense qu’il y a maintenant d’autres

raisons personnelles de faire une révolution que des raisons strictement matérielles,

telles que les concevait Marx, par exemple. Ce qui s’exprime de plus en plus dans la

masse, c’est un mouvement antihiérarchique et libertaire; elle réclame de vivre en

supprimant ces hiérarchies et ces chefs qui nous brisent la vie, c’est pour ça qu’ils se

battent. (...) C’est beaucoup l’espoir, qui, selon moi, est actuellement une grande force

révolutionnaire” (On a raison de se révolter, p.188).

O Domingo da Vida

553

56) “Le plus beau souvenir de notre vie”, reitera a autora no filme “Simone de

Beauvoir” (série “Témoins”, de J. Dayan e M. Ribovska). Veja-se também o

depoimento de Claude Roy: “Le drapeau français est amené sur la Sorbonne libérée des

traîtres de l’intelligence et des intellectuels nazis. Un étudiant embrasse son amie. Le

plus beau jour de notre vie. Un vieux professeur a mis son lorgnon pour mieux voir. Le

plus beau jour de notre vie. La foule chante La Marseillaise. Le plus beau jour de notre

vie. Une jeune fille jette les bras en l’air, rit, danse. Le plus beau jour de notre vie”

(apud Annie Cohen-Solal, Sartre, p.288). 57)Cf. “Merleau-Ponty”, Sit.IV, p.201. “Illusoire unité française”, diz ainda o autor

referindo-se àquela conjuntura (Idem, p.222). Já no final de 1944, Sartre observava:

“La France entière se réjouit ou fraternise dans les rues, les luttes sociales semblent

provisoirement oubliées” (Réflexions sur la question juive, p.86). 58)Eclipsadas pela grande frente anti-fascista, as diferenças entre as classes sociais

haviam sido no entanto “reforçadas” pela própria guerra, para retomar os termos de

Sartre nos Carnets de la drôle de guerre (cf. capítulo anterior, nota 56). Diferenças

que, diga-se de passagem, Jean Renoir mostrara de maneira esplêndida em La grande

illusion, filme situado à época da Primeira Guerra, como se sabe, mas realizado

sintomaticamente às vésperas da Segunda Guerra, e no qual a classe social é

determinante o suficiente para distanciar homens que se encontram do mesmo lado do

conflito político ou, inversamente, aproximar inimigos em luta. 59)Vimos no capítulo anterior que, para a geração de Sartre, a origem desse tema da

fraternidade revolucionária é literária mais exatamente Malraux. 60)Trata-se de Jean-Claude Bernardet: “A guerra também pode deixar boas recordações.

Deitados no chão do terraço de nosso quarto, na retirada das tropas de ocupação, minha

mãe, meu pai, meu irmão e eu espiamos a passagem de um comboio alemão, no maior

O MITO DA RESISTÊNCIA

554

silêncio para não sermos descobertos e ameaçados, ou levarmos um tiro. Uma

felicidade ainda amedrontada...” (Aquele rapaz, p.12). 61)La force de l’âge, p.682. E em La force des choses, a autora reafirma: “Nous étions

libérés. Dans les rues, les enfants chantaient: ‘Nous ne les reverrons plus. C’est fini, ils

sont foutus’. (...) La peur retrouvait en moi une place encore toute chaude. Mais la joie

la balayait vite” (vol.I, p.13). A esse respeito, ver também Les Mandarins, vol.I, p.21. 62)Note-se o que diz A.Gorz a respeito da conjuntura do imediato pós-guerra: “C’était

la grande époque. (...) Tout paraissait possible et, parce qu’on se sentait au début d’un

nouveau départ, après sept ans durant lesquels les vieux cadres avaient sauté et

l’intelligence théorique perdu tout objet, ça avait l’air terriblement important de

penser. On pouvait repartir comme à zéro dans la pratique, semblait-il, et donc aussi

dans la théorie (...). On pouvait tout dire et il y avait tout à dire, et il y avait un public

pour toutes les questions parce que les faits n’en avaient tranché aucune” (Le Traître,

p.248). Esse sentimento coletivo de que “tudo é possível” a França reencontrará mais

de duas décadas depois, em Maio de 68 (em que pese a diferença de registro histórico e

político, é claro): “De modo geral, hoje se reconhece que 68 foi uma das cesuras

profundas deste século. (...) Durante algumas semanas, houve a renúncia de todas as

autoridades, um sentimento de que ‘tudo é possível’, e uma ‘transformação do mundo

transformado’ que representavam um evento histórico e, ao mesmo tempo, algo que

concernia aos indivíduos em sua essência íntima e cotidiana. Era a prova de que, num

grande número de pessoas, dormita o desejo de uma vida totalmente distinta e de que,

se encontra meios de expressar-se, tal desejo pode, a qualquer momento, pôr de joelhos

um Estado moderno” (Anselm Jappe, Guy Debord, p.132). 63)A respeito dessa passagem de EN (p.489), e do recurso sartriano a metáforas de

claridade para designar a Revolução (herança da tradição iluminista), cf. o capítulo

anterior.

O Domingo da Vida

555

64)Cf.Questions de Méthode, in Critique de la raison dialectique, p.94. 65) “Tous les opprimés, qu’ils le soient d’une façon ou d’une autre, sont venus

combattre avec nous”, escreve Malraux (L’Espoir, p.82). 66)Os termos são de Robert Kurz em sua análise sobre Maio de 68 (cf. Os Últimos

Combates, p.292). 67)Cf. a retomada dessa fórmula de Malraux na Critique de la Raison Dialectique: “Dès

ce moment, quelque chose est donné qui n’est ni le groupe ni la série mais ce que

Malraux a appelé, dans L’Espoir, l’Apocalypse, c’est-à-dire la dissolution de la série

dans le groupe en fusion” (Critique de la Raison Dialectique, vol.I, p.461, nova

edição). 68)Glosando a Critique de la Raison Dialectique, Remo Bodei escreve: “Ce n’est que

dans des situations exceptionnelles comme la prise de la Bastille ou l’assaut du Palais

d’Hiver que les hommes retrouvent ensemble la capacité de changer et de se soustraire

à l’inertie, qu’ils retrouvent la solidarité et deviennent un ‘groupe’“ (La Philosophie au

XX siècle, p.180). A respeito do “groupe en fusion” como paradigma das análises

sartrianas, cf. também o comentário de André Gorz: “À la lecture de la Critique de la

Raison dialectique (…) on est porté à penser que le seul modèle de ‘coopération

volontaire’ est celui des groupes en fusion. Que le groupe en fusion ne puisse être un

statut durable tient à plusieurs faits: 1° à la rareté et à la multiplicité des processus

antagonistes en cours dans le monde; 2° à la nature des outils (ou moyens de

production), c’est-à-dire à la résistance, à l’inertie et à la complexité du champ

pratique tel qu’il est structuré par les techniques disponibles, inertie et complexité qui

obligent le groupe à se faire inerte et complexe pour être efficace et qui déterminent en

son sein tout à la fois des spécialisations et des raretés des forces productives” (Le

socialisme difficile, p.242).

O MITO DA RESISTÊNCIA

556

69)Recorde-se a passagem da Critique de la Raison Dialectique na qual o autor, após

descrever o momento de “renversement dialectique” durante a Revolução Francesa

quando finalmente ecoa o grito “A la Bastille!”, arremata: “Nous avons assisté à

la formation d’un groupe en fusion et nous avons décrit ses structures” (vol.I, p.483-

484). 70)Um exemplo: “Chez Flaubert la faiblesse congénitale du verbe entraîne sa banalité et

c’est plus déplaisant encore parce que le substantif, la plupart du temps, enferme déjà

la signification de l’action, de sorte que le verbe se colle au sujet comme un gros

paquet normand. Exemple: ‘Un vent léger soufflait.’ Eh, que peut faire le vent sinon

souffler? Mieux vaudrait écrire alors ‘vent léger’, comme Loti. C’est un peu par

horreur de ça que j’écrirais plutôt, moi: ‘il y avait un vent léger’, parce que le ‘il y a’,

vague et indéfini, ne préjuge pas de la suite, et la phrase finit en force. (...) Plus haut,

une voiture à deux chevaux attend Frédéric Moreau à la gare: ‘les deux chevaux

n’appartenaient pas à sa mère.’ C’est-à-dire qu’un seul des deux chevaux lui

appartenait, mais Flaubert s’est refusé à écrire une phrase si lourde. En conséquence il

a commis une incorrection de pensée plus lourde encore. Car ‘les deux chevaux

n’appartenaient pas à sa mère’, cela veut dire qu’aucun des deux ne lui appartenait”

(Les carnets de la drôle de guerre, p.131-132). 71) “Flaubert représente, pour moi, l’opposé exact de ma propre conception de la

littérature: un désengagement total et la recherche d’un idéal formel qui n’est pas du

tout le mien. (...) Flaubert a commencé à me fasciner précisément parce que je voyais

en lui, à tous points de vue, le contraire de moi-même” (Sit.IX, p.116-117). (O mesmo

“exato oposto” aliás que Sartre vê em Proust: “Si grande que soit mon admiration pour

Proust, il m’est tout opposé”, Entrevista, Mondes Nouveaux, n° 2, dezembro de 1944.)

E ainda: “Quand on lit Flaubert, on est plongé au milieu de personnages irritants, avec

O Domingo da Vida

557

lesquels on est en désaccord complet” (Idem, p.117). Mas não é exatamente isso que o

próprio Sartre diria por exemplo de um de seus personagens, Lucien Fleurier? 72)Cf. “Sartre parle de Flaubert”, in Michel Sicard, Essais sur Sartre Entretiens avec

Sartre (1975-1979), p.148. 73)Cf. Dolf Oehler, O Velho Mundo Desce aos Infernos Auto-análise da

modernidade após o trauma de Junho de 1848 em Paris, p.111. 74)Aqui Sartre paga também um tributo a Michelet, que descreve a Revolução Francesa

como um “spectacle vraiment prodigieux” (cf. Histoire de la Révolution Française,

Pléiade, vol.1, p.1021). 75)Cf. também Simone de Beauvoir: “Mêlés à la foule immense, nous acclamâmes, non

pas une parade militaire, mais un carnaval populaire, désordonné et magnifique” (La

force de l’âge, p.682). 76)A esse respeito, cf. Dolf Oehler: “De fato, a Éducation Sentimentale é toda ela uma

reflexão sobre a história prévia e posterior da revolução fracassada uma reflexão

sobre as condições econômicas, sociais e intelectuais que tornaram possível passar da

euforia de fevereiro aos massacres de junho” (O Velho Mundo Desce aos Infernos

Auto-análise da modernidade após o trauma de Junho de 1848 em Paris, p.17). Sobre

o processo de desilusão que sobreveio a Junho de 1848, cf. o que diz o mesmo Dolf

Oehler, mas referindo-se agora a Baudelaire: “Um soneto como ‘De profundis clamavi’

transcreve a falta de esperança dos derrotados de junho de 1848, a quem, após a

devastadora derrota para as forças reacionárias, restava apenas aguardar o lento

decurso da ampulheta da história” (Quadros parisienses, p.45). 77)A expressão foi usada por Habermas, referindo-se a Marcuse (in Habermas and

Modernity, p.111). 78)Ainda que Dolf Oehler se volte inteiramente contra as análises de L’Idiot de la

Famille, na base do seu livro encontram-se (mas não sozinhas) “as teses provocativas

O MITO DA RESISTÊNCIA

558

de Sartre sobre a enfermidade crônica da psique coletiva, causada pelos massacres de

junho” (os termos são do próprio autor, cf. O Velho Mundo Desce aos Infernos

Auto-análise da modernidade após o trauma de Junho de 1848 em Paris, p.15). 79)Cf. O Velho Mundo desce aos Infernos Auto-Análise da Modernidade após o

trauma de junho de 1848 em Paris, p.18. A respeito desse recalque de junho de 1848

na história das idéias, note-se o que diz o autor: “Pois as jornadas de junho de 1848 não

representam apenas uma das datas mais dolorosas da história do século XIX, um

‘pecado original da burguesia’ (Sartre), que dividiu a nação francesa em dois campos, e

cujo recalque ao contrário da história análoga da Comuna nunca foi realmente

superado; houve recalque também dos testemunhos literários, de um modo ou de outro:

esquecidos, ignorados, arrancados do contexto, erroneamente interpretados” (Idem,

p.15). E ainda: “O recalque dos acontecimentos de junho não foi tematizado somente

com Baudelaire ou Flaubert, ou mesmo com Sartre; embora a noção de recalque ainda

não existisse e seu mecanismo não fosse consciente aos contemporâneos, ele é um tema

implícito e, algumas vezes, explícito da literatura de junho. Alexandre Dumas o

confessa, com um cinismo inconsciente (...). Toda a França, toda a Europa se apressava

em esquecer o choque de junho” (Idem, p.122-123). Ou então: “Sartre salienta com

razão que o acontecimento do junho de 48 a ser recalcado eram os massacres, e não a

batalha de junho como tal” (Idem, p.124; grifo do autor). 80)Os termos são de Dolf Oehler, cf. O Velho Mundo..., p.142. 81) “Cette chute, ce Péché originel, apparu en 48, mais commis de tout temps

conséquence a priori de la praxis bourgeoise, tout le monde voulait l’oublier; tout

le monde acceptait la culpabilité, la honte, mais refusait de les lier à l’événement. On

admettait la haine mais à la condition de lui supprimer toute historicité et d’en faire

une détermination générale de l’espèce c’est-à-dire, du même coup, une explication

et une abolition de l’Histoire” (L’Idiot de la Famille, vol.III, p.398). E mais adiante:

O Domingo da Vida

559

“Cela signifie, bien entendu, que l’écrivain élu doit passer les événements de 48 sous

silence: c’est ce que fait, d’ailleurs, Leconte de Lisle qui l’avoue naïvement...” (Idem,

p.414; grifos do autor). 82)Adaptação de uma idéia de Dolf Oehler, para quem os escritores pós-desilusão de

junho de 1848 “descobrem que a melancolia da impotência pode tornar-se uma força

literária produtiva” (O Velho Mundo..., p.21). 83)A esse respeito, cf. ainda Dolf Oehler: “Se para o Iluminismo e se também para

Hegel o tédio significava um motor do progresso (...), depois dos massacres de junho, e

em nítida alusão a eles, o tédio aparece como o principal agente da destruição da

verdade e da vida. Esse tédio, alegoria da época, é também a súmula do leitor hipócrita,

que em seus devaneios abandona-se a todos os horrores de que sua memória não mais

quer saber” (O Velho Mundo..., p.281-282). 84)Veja-se também esta passagem de L’Idiot de la Famille: “La totalisation de la

société française par les grands mouvements contradictoires qui la brassent produit à la

fois la Révolution manquée de 48 et la conversion de Leconte de Lisle. (...) Leconte de

Lisle est défini comme convertible à partir de ses propres contradictions qui naissent

directement en lui de l’intériorisation du tout contradictoire qu’est la collectivité

française et en même temps il réalise sa conversion par l’intériorisation directe de la

catastrophe, c’est-à-dire de Juin 48” (vol.III, p.428-429; grifos do autor). 85)Note-se a sugestiva analogia estabelecida por Dolf Oehler, a partir de Sartre, entre a

“solução final” dos nazistas e o massacre de Junho de 48: “‘Cada época sonha a

seguinte’, diz Michelet. A ‘solução final’ dos nazistas já ronda as mentes por volta de

meados do século passado. O próprio junho de 48 e esta poderia ser uma das razões

da atração por ele exercida sobre um intelectual como Sartre indica analogias de

atmosfera com o curso da perseguição aos judeus sob o Terceiro Reich, como várias

vezes alude Sartre no Idiot de la famille, por exemplo ao qualificar os massacres de

O MITO DA RESISTÊNCIA

560

junho de genocídio social perpetrado com a cumplicidade de todos e silenciado com a

aprovação de todos. Precisamente o fato de ela poder ser compreendida como uma pura

luta de classes, o fato de o ódio que irrompeu nesses dias poder ser subdividido num

ódio abjeto, o dos algozes burgueses, e outro legítimo, o das vítimas proletárias (e com

essa interpretação Sartre prende-se à tradição marxista), empresta à história de junho

um sentido histórico universal, faz dela um paradigma, o objeto de demonstração de

um pensamento que não quer mais estar a serviço da burguesia, mas do proletariado.

(...) A princípio, Toussenel tenta contrariar o recalque dos massacres de junho ao

propagar uma espécie de solução final, que em última instância é a solução da questão

judia. Isso explica que, na época do caso Dreyfus e na França de Vichy, ele tenha

conhecido um certo renascimento, e certamente não foi sem razão que se celebrou nele

o pioneiro do ‘nacional-socialismo francês’, um precursor mesmo de Rosenberg e

Hitler (O Velho Mundo..., p.208). E ainda: “Por isso a palavra extermínio é a senha da

época [1848], com um efeito bem mais poderoso do que as divisas magnânimas de

fevereiro. (...) O agravamento da situação econômica no início do verão de 1848 pôde

conduzir ao que se chamou de retorno à mais sombria barbárie. Mas do recalque

coletivo dos massacres, que tornou possível sua repetição...” (Idem, p.210; grifo do

autor). 86)A versão é de Ettore Scola no filme “La Nuit de Varennes”. 87)A esse respeito, cf. Dolf Oehler, O Velho Mundo..., p.27. 88)Cf. Capítulo 3, I e Capítulo 1, II. Sobre a época de reação política que se seguiu a

uma outra “catástrofe” francesa, também num junho fatídico, o de 1848, recorde-se a

descrição de Flaubert, na qual essa catástrofe histórica é nivelada às catástrofes da

natureza: “La raison publique était troublée comme après les grands bouleversements

de la nature” (L’Education Sentimentale, p.393).

O Domingo da Vida

561

89)Cf. os Cahiers pour une morale: “Il va de soi que le cassage d’une forme naturelle

est libération, amorce d’antiphysis” (p.368). 90)Veja-se o comentário feito por M. Contat e M. Rybalka da seguinte passagem da

Nausée — “un homme, c’est toujours un conteur d’histoires (...); et il cherche à vivre

sa vie comme s’il la racontait” (La Nausée, p.48): “Le roman oppose à l’infinie

dispersion du vécu, aux ‘molles spirales du temps’ (Les Mots, p.161) une structure, un

vecteur, une rigidité signifiante et téléologique. Pour se sauver de l’ennui (...), il s’agit

de tenter d’imprimer à sa propre vie le modèle du roman” (in Sartre Oeuvres

Romanesques, Pléiade, p.1761). 91)Observe-se o que Sartre diz sobre a “literatura de situações extremas” feita por sua

geração intelectual: “Puisque nous étions situés, les seuls romans que nous pussions

songer à écrire étaient des romans de situation, sans narrateurs internes ni témoins

tout-connaissants; bref il nous fallait, si nous voulions rendre compte de notre époque,

faire passer la technique romanesque de la mécanique newtonienne à la relativité

généralisée, peupler nos livres de consciences à demi lucides et à demi obscures, dont

nous considérerions peut-être les unes ou les autres avec plus de sympathie, mais dont

aucune n’aurait sur l’événement ni sur soi de point de vue privilégié” (“Qu’est-ce que

la littérature?”, Sit.II, p.252; grifos do autor). E mais adiante: “De plus, en renonçant à

la fiction du narrateur tout-connaissant, nous avons assumé l’obligation de supprimer

les intermédiaires entre le lecteur et les subjectivités-points-de-vue de nos

personnages” (Idem, p.327). Claro que essa dispensa sartriana do narrador onisciente

passa também por Kafka, mas a nosso ver seu ponto de referência mais decisivo é,

ainda, o romance social americano. 92)A prova disso é que a própria Revolução Francesa é analisada, na Critique de la

Raison Dialectique (ponto de referência de Jameson, cf. Marxismo e Forma), segundo

a mesma fórmula do Apocalipse com a qual Sartre, via Malraux, definira a insurreição

O MITO DA RESISTÊNCIA

562

parisiense de agosto de 1944 (cf. a nota 70). Outra prova são as análises de Sartre à

época do terceiro-mundismo, cujo pano de fundo histórico ainda é a Resistência, como

vimos na nota 57. 93)Se por um lado tudo isso não deixa de soar muito estranho quando se tem em mente

os termos (negativos) com que W. Benjamin e Adorno formularam o problema do fim

da Narração (um rápido apanhado do problema encontra-se no Preâmbulo deste

trabalho), por outro talvez se torne bem menos surpreendente se pensarmos justamente

nesta conclusão a que chegam ambos os autores cada um à sua maneira: a tentação da

“reportagem” (forma jornalística) cresce à medida que as condições da narração épica

vão se tornando proibitivas. Em “O Narrador Considerações sobre a obra de Nikolai

Leskov” Benjamin mostrou, como se sabe, que o declínio da Experiência (Erfahrung)

levou à progressiva substituição da narração genuína pelo romance e pela informação

jornalística, sendo esta última a “mais ameaçadora”, provocando de resto “uma crise no

próprio romance” (in Obras Escolhidas, vol.I, p.202). (Observe-se este comentário de

Jameson sobre “O Narrador”: “Assim como os atores se defrontam com o avanço

técnico da obra de arte reprodutível, assim também a arte de narrar tem que se

defrontar com os sistemas modernos de comunicação, e em particular com o jornal”,

Marxismo e Forma, p.66.) Adorno, por sua vez, reformula o problema nos seguintes

termos: “La peinture a été privée par la photographie de bien des tâches qui lui

revenaient traditionnellement; et le roman aussi, par le reportage et les media de

l’industrie culturelle, par le cinéma surtout” (“La situation du narrateur dans le roman

contemporain”, Notes sur la littérature, p.38). Num outro registro, inteiramente

diverso, Sartre também aborda esse problema da transformação da forma literária no

mundo contemporâneo, e as novas relações da literatura com o cinema e o jornalismo

(cf. em particular “Qu’est-ce que la littérature?”, Sit.II, pp.269 e 328). Entretanto a

diferença fundamental com relação a Benjamin e Adorno é que nosso autor não vê

O Domingo da Vida

563

nesse processo de transformação da forma literária nenhuma perda irreparável, muito

menos degradação. Mera cegueira diante do curso do mundo moderno? Em termos,

pois o otimismo sartriano encerra esperanças reais, só que circunscritas a uma

conjuntura histórica muito específica, além de efêmera (fora dessa circunstância abre-

se é claro o caminho para compensações mitológicas, cujo alto preço a pagar será um

diagnóstico sempre incompleto do novo rumo da alienação num capitalismo

consolidado, conforme indicamos no capítulo anterior). Se em Benjamin a informação

jornalística se impõe a partir do momento em que a experiência coletiva declina, no

Sartre das reportagens de 1944 se dá o inverso,ou seja, a forma jornalística se impõe

justamente num momento em que se acredita recuperar uma certa “experiência”

coletiva claro que aqui num sentido muito mais conjuntural, que evidentemente

nada tem a ver com a Erfahrung, e cujos termos precisaremos a seguir. Esse a nosso

ver o verdadeiro fundamento do veemente elogio sartriano da Reportagem (um gênero

que não por acaso dá seus melhores frutos em situações históricas “extremas”),

estampado na “Présentation des Temps Modernes”: “Il nous paraît, en effet, que le

reportage fait partie des genres littéraires et qu’il peut devenir un des plus importants

d’entre eux. La capacité de saisir intuitivement et instantanément les significations,

l’habileté à regrouper celles-ci pour offrir au lecteur des ensembles synthétiques

immédiatement déchiffrables sont les qualités les plus nécessaires au reporter; ce sont

celles que nous demandons à tous nos collaborateurs. Nous savons d’ailleurs que parmi

les rares ouvrages de notre époque qui sont assurés de durer, se trouvent plusieurs

reportages comme ‘Les dix jours qui renversèrent le Monde’ et surtout l’admirable

‘Testament espagnol’...” (in Sit.II, p.30). 94) “Paris renaît au sentiment de la liberté”, afirma um editorial de Combat (21/8/44). E

num outro editorial, lê-se: “Si la résistance doit être autre chose qu’un moment de

O MITO DA RESISTÊNCIA

564

notre histoire, c’est qu’elle aura réussi à placer des citoyens face à face” (Combat,

1/9/44). 95)Cf. “Plaidoyer pour les Intellectuels”, Sit.VIII, p.429. Sobre a ênfase sartriana na

solidão do Intelectual, em particular na Nausée, cf. capítulo anterior, especialmente a

nota 38. 96)Em seus comentários sobre o heroísmo à época da Revolução Francesa, M. Abensour

escreve: “É bem dessa liberdade política que fala Hegel quando, em Berna, saúda a

Revolução Francesa como experiência da liberdade. ‘A chama do entusiasmo que a

liberdade espalha por todas as veias de um ser vivo.’ A redescoberta da paixão pela

coisa pública afasta o tédio da cena do mundo” (Tempo e História, p.220). 97) “Qu’on se rappelle la solitude de Roquentin, dans la Nausée. (...) Roquentin

envisage toujours qu’il lui faut se sauver seul, agir seul (...). Aussi la seule action qui

lui semble possible est-elle finalement action par le moyen de l’imaginaire, de la

création artistique”, escreve Francis Jeanson (Le problème moral et la pensée de

Sartre, p.275). Veja-se a respeito o que diz o próprio Sartre: “La Nausée est

l’aboutissement littéraire de la théorie de l’’homme seul’ et je n’arrivais pas à sortir de

là, même si j’entrevoyais déjà les limites de cette position qui consistait en somme à

condamner les bourgeois comme des salauds et à tenter de rendre compte de mon

existence en essayant en même temps de définir pour l’individu solitaire les conditions

d’une existence non mystifiée. Dire la vérité sur l’existence et démystifier les

mensonges bourgeois c’était tout un et c’était ça que j’avais à faire pour accomplir

mon destin d’homme, puisque j’avais été fait pour écrire” (“Autoportrait à soixante-dix

ans”, Sit.X, p.177). 98)Note-se este balanço que Sartre faz de seu itinerário político: “Je pense qu’il faut

commencer à partir de 36. A ce moment-là, je ne faisais pas de politique. Cela signifie

que j’étais un intellectuel libéral de cette République des professeurs — comme on

O Domingo da Vida

565

nommait parfois la République Française. (...) Ce qui me restait encore, c’était les

principes de l’individualisme; je me sentais attiré par les foules qui faisaient le Front

Populaire, mais je ne comprenais pas vraiment que j’en faisais partie et que ma place

était au milieu d’elles: je me voyais en solitaire. (...) La guerre m’a ouvert les yeux

(...). La durée de la guerre, et surtout celle de la captivité en Allemagne (dont je

m’échappais en me faisant passer pour civil) furent l’occasion pour moi d’une plongée

durable dans la foule (...). En outre, un devoir politique était venu nous chercher tous

dans le camp de prisonniers (...): il fallait combattre nos ennemis allemands et français

au nom de la démocratie. Mais celle que nous défendions n’était plus tout à fait la

démocratie libérale” (Sartre, On a raison de se révolter, p.23-24). E mais adiante o

autor define a natureza dessa democracia: “Au lendemain de la Libération, (...) j’étais

devenu socialiste convaincu, mais anti-hiérarchique —et libertaire— c’est-à-dire pour

la démocratie directe” (Idem, p.26). 99)Nesse sentido, Jameson tem razão ao afirmar que a noção de revolução em Sartre

“pode ser melhor entendida (...) em termos de tempo e de narração, daquilo que, em

última instância, são categorias literárias” (Marxismo e Forma, p.200). O que significa

entender a revolução “não tanto em termos de conteúdo quanto em termos de forma”

(Idem, p.200; grifo do autor). 100)Recorde-se ainda esta passagem de EN: “C’est par pur arrachement à soi-même, et

au monde, que l’ouvrier peut poser sa souffrance comme souffrance insupportable et,

par conséquent, en faire le mobile de son action révolutionnaire. Cela implique donc

pour la conscience la possibilité permanente de faire une rupture avec son propre

passé” (p.490; grifo do autor). 101)É o caso de F. Jameson, para quem Sartre, “em sua freqüente recorrência à

Revolução Francesa como um paradigma do comportamento do grupo”,

particularmente na Critique de la Raison Dialectique, “é representativo de uma

O MITO DA RESISTÊNCIA

566

corrente mais ampla na vida intelectual francesa contemporânea, a qual pode ser

descrita como a da nostalgia revolucionária, governada por um mito da própria

revolução, carregado de valor” (Marxismo e Forma, p.199-200). 102) “Je pense parfois, avec horreur, que la victoire que nos coeurs souhaitent à la

France, c’est celle du passé sur l’avenir” (Gide, citado por Sartre nos Carnets de la

drôle de guerre, nova edição, p.39). 103)Cf. os termos com que Simone de Beauvoir expõe o pensamento de Camus à época

da Libertação, nas palavras do personagem Henri Perron: “La France n’était plus une

prison, les frontières s’ouvraient, la vie ne devait plus être une prison” (Les Mandarins

I, p.12). 104)Cf. Dolf Oehler, Quadros Parisienses, p.35. 105)É esse “núcleo temporal” de EN que os comentadores ignoram completamente,

como mostramos em capítulos anteriores cegueira histórica às vezes por demais

flagrante (embora não surpreendente levando-se em conta o ângulo em que o livro é

enquadrado), como por exemplo neste caso em que Gerd Bornheim, tentando explicar o

binômio liberdade-libertação, chega a demonstrar perplexidade “libertação de que?”

(em plena França Ocupada?) e dá apenas respostas genéricas, além de fora do foco

das análises de Sartre: “Liberdade se faz sinônimo de libertação. Cabe, então,

perguntar: libertação de que? Libertação, antes de mais nada, de tudo o que não se

confunde com a própria subjetividade. (...) Mas libertação também de si mesmo”

(Sartre, Metafísica e Existencialismo, p.126). (Sobre a leitura de EN feita por Gerd

Bornheim, cf. em particular a Introdução deste trabalho.) Recorde-se também o que

escreve John Gerassi: “O Ser e o Nada não era nem um pouco político. Embora sua

preocupação básica fosse revelar a alienação fundamental do homem num mundo em

que nada tinha uma razão real para ser como é ou mesmo para existir essa

alienação era descrita fenomenologicamente, sem qualquer tentativa de localizar suas

O Domingo da Vida

567

causas históricas ou sociais” (Jean-Paul Sartre Consciência odiada de seu século,

p.188). Evidente que, vistas as coisas num nível assim tão imediato, EN não é mesmo

“nem um pouco político”... Veja-se ainda o livro mais recente de Bernard-Henri Lévy,

onde o autor, após indicar algumas “alusões à conjuntura política e ideológica do

momento” presentes em Les Mouches, afirma que tais “alusões” poderiam ser

detectáveis também na peça Huis Clos, malgrado a proximidade desta última com

temas filosóficos de EN (cf. Le Siècle de Sartre, pp.367-372). Os equívocos em torno

de EN são a nosso ver tão cristalizados que deles não escapam nem mesmo os grandes

especialistas, como no caso por exemplo deste conselho que Michel Contat e Michel

Rybalka dão aos que se aventurarem a transpor os tijolos impenetráveis do livro: “La

lecture préalable de Questions de méthode peut déployer autour de L’Être et le Néant

son horizon implicite en lui ajoutant une dimension qui en est presque totalement

absente, celle de l’histoire et de la lutte des classes” (cf. Les Ecrits de Sartre, p.87;

grifo nosso). Para outro exemplo da leitura que Michel Contat faz de EN, cf. a nota 44

do Capítulo 1, II. 106)Ainda segundo Desanti, nessa mesma entrevista, EN teria sido o último livro lido

por Cavaillès antes de ser preso e fuzilado. 107)Sobre a redescoberta de Heidegger por Sartre, quando “as ameaças da primavera de

1938” levaram-no a buscar “uma filosofia que não fosse apenas uma contemplação”

(Les carnets de la drôle de guerre, p.227), cf. em particular o Capítulo 1, II. E a

respeito do impacto da destrancendentalização da filosofia, operada por Heidegger,

sobre outras gerações de intelectuais, especialmente o jovem Marcuse, cf. o Capítulo 1,

I. 108)Essa materialização filosófica de um “sentimento” coletivo escapou por completo a

F. Jameson que, referindo-se ao primeiro Sartre “um dos últimos grandes

construtores de sistema da filosofia tradicional”, contrapõe o problema das relações

O MITO DA RESISTÊNCIA

568

intersubjetivas próprio de EN às inflexões políticas que tal problema veio a conhecer à

época do terceiro-mundismo: “Na aurora dos anos 60, contudo, o paradigma do olhar

de Sartre e a luta por reconhecimento entre sujeitos individuais serão também

dramaticamente apropriados por um modelo muito diferente de luta política, na visão

enormemente influente que Frantz Fanon (Les damnés de la Terre, 1961) apresentou da

luta entre Colonizador e Colonizado, onde a reversão objetificadora do Olhar é

apocalipticamente reescrita como o ato de violência redentora do Escravo contra o

Senhor (...). De saída, é significativa a maneira pela qual o que antes fora um problema

técnico filosófico (o ‘problema’ do solipsismo, a natureza das relações entre os sujeitos

individuais ou cogitos) correu o mundo e tornou-se uma ideologia política explosiva e

escandalosa: um pedaço do antiquado sistema técnico filosófico do alto existencialismo

que se fragmentava escapa completamente dos departamentos de filosofia, migrando

para a paisagem mais assustadora da praxis e do terror” (“Periodizando os anos 60”, in

Pós-Modernismo e Política, pp.94-96). Ocorre que esse “pedaço” do alto

existencialismo só pôde “migrar para a paisagem mais assustadora da praxis e do

terror” porque dela saiu (e não dos departamentos de filosofia), ou seja, jamais foi

apenas “um problema técnico filosófico”, muito menos “filosofia tradicional” (a

apropriação feita por Fanon não é casual o Apocalipse como violência redentora

está no cerne das análises de Sartre). 109)Vistas as coisas desta perspectiva, não deixa de ter sua graça verificar que a ironia

de G. Lebrun a respeito de Sartre “não era escrever a história ‘verdadeira’ que lhe

interessava, e sim a história em termos de ‘liberdade’” (Passeios ao léu, p.130)

acaba sendo ela própria vítima de uma outra ironia, a do destino histórico, que quis

reunir o que o comentarista separou: naquele mundo da Resistência, escrever a história

“verdadeira” era justamente escrevê-la em termos de “liberdade”.

O Domingo da Vida

569

110) “Por que o romance, como o cinema, foi incapaz de reconstituir esse período [da

Ocupação e da Resistência]?” A pergunta foi endereçada a Jean-Luc Godard, que

respondeu o seguinte: “‘Roma, Cidade Aberta’ (1945) é um filme de resistência por ser

um filme de ressurreição. Não é por acaso que tal obra nasceu na Itália, a nação mais

ausente da guerra e, ao mesmo tempo, uma guardiã do cristianismo. (...) Então veio

‘Roma, Cidade Aberta’. E esse país, depois de trair-se por duas vezes, pôde novamente

olhar-se de frente e difundir a imagem da Itália no mundo inteiro. Não houve

equivalente na França. (...) Os escritores não tiveram necessidade de escrever um tal

romance porque eles o viveram de uma forma mais ou menos intensa. Surgiram

somente poesias e canções —estilos considerados menores e antiquados— para

resistir ao real e salvar a honra” (Entrevista concedida ao jornal Le Monde e

reproduzida com o título “Histórias da Resistência” no Caderno Mais! da Folha de

S.Paulo, 29/3/1998; grifos nossos). Em grandeza e importância cultural, não houve de

fato na França nenhum equivalente nem no romance (a trilogia Les Chemins de la

Liberté é o que houve de melhor no gênero, mas a nosso ver fica aquém do que o

próprio Sartre já produzira em literatura) nem muito menos no cinema. (A filmografia

da Resistência é por certo vastíssima, mas sem significado cultural, valendo apenas

como registro de época. A exceção fica por conta do clássico de René Clement, “La

Bataille du Rail”, sem dúvida o filme francês do período mais próximo do neo-realismo

italiano. Outros filmes do mesmo René Clement sobre aquela conjuntura política, por

exemplo “Le jour et l’heure”, com Simone Signoret e participação de Michel Picoli, já

são muito posteriores e têm o sabor de algo requentado. Nessa linha há ainda inúmeros

outros filmes, dentre os quais se destaca “La Traversée de Paris” (com Jean Gabin), de

Claude Autant-Lara, de interesse no entanto limitado. Existem, é claro, alguns grandes

filmes sobre a França Ocupada, como “Le Chagrin et la Pitié” do suíço Marcel Ophüls

e “Lacombe Lucien” de Louis Malle, mas eles foram feitos décadas depois de

O MITO DA RESISTÊNCIA

570

encerrado aquele período histórico.) Se este trabalho tem cabimento, o equivalente ao

neo-realismo italiano, na França, não surgiu, ao contrário do que pensa Godard, de

estilos considerados menores (poesias e canções) e sim da Filosofia. A França fez na

Filosofia o que a Itália fará, logo em seguida, no cinema. Tanto no cenário filosófico

“realista” de EN quanto no cinema neo-realista italiano o que se mostra (no sentido o

mais descritivo e menos especulativo possível, como dissemos no capítulo anterior) é o

mesmo drama da liberdade da condição humana numa situação histórica limite. Ambos

com efeito apenas mostram esse drama, não mais do que isso, pois nos dois casos o

trabalho é de dessublimação estamos diante de uma filosofia e de um cinema

essencialmente de Situações. Por isso a analogia que estabelecemos entre a forma

filosófica de EN e a forma literária de romances e peças de teatro sobre a Resistência

poderia ser estendida ao cinema neo-realista da Itália do imediato pós-guerra, no qual

reencontramos a mesma semelhança temática que dá unidade aos diversos gêneros que

examinamos. Basta pensar no papel fundamental do olhar do Outro nas produções mais

significativas do neo-realismo italiano, e muito particularmente em “Roma, Cidade

Aberta”, filme no qual Rossellini “mostra” magistralmente a superioridade do olhar do

torturado, que prefere a morte à delação, diante do torturador. A força dessas imagens

vigorosas e lapidares de Rossellini talvez só encontrem equivalente em EN, que foi

capaz de exprimir com igual grandeza, na sua releitura da luta de vida e morte entre

consciências na Fenomenologia do Espírito, a dramatização do Olhar própria da

literatura da Resistência. É isso que Godard não conseguiu perceber, malgrado sua

proximidade de Sartre. E por proximidade, seja dito de passagem, não estamos nos

referindo apenas às conhecidas peregrinações de Godard com Sartre e Simone de

Beauvoir pelas ruas de Paris vendendo o jornal Cause du Peuple, mas sobretudo aos

próprios pontos programáticos da Nouvelle Vague, que afinal faz no cinema o que

Sartre fizera com a filosofia e a literatura: o rebaixamento da obra dita de “qualidade”

O Domingo da Vida

571

em nome da linguagem coloquial da vida do dia-a-dia, sem arabescos “literários” ou

“filosóficos”. E o faz também à maneira de Sartre, isto é, juntando coisas

tradicionalmente não relacionadas. Sem falar do desprezo soberano da Nouvelle Vague

pelo cinema francês de “arte”, equivalente ao de nosso ex-Normalien pela linguagem

oficial da Academia, além de sua incorporação do cinema americano, cujo grande

precedente na cultura francesa contemporânea fora justamente a incorporação do

romance social americano pela “literatura de situações extremas”. 111)Embora o Sartre posterior sempre tenha insistido na idéia que EN não é mais do que

um conjunto de “verdades inegáveis, mas quase nulas, com as quais não se pode fazer

quase nada”, porque são “abstratas” (cf. a Introdução deste trabalho), o autor no

entanto não deixou de perceber o seguinte: “EN foi ao mesmo tempo o fim da minha

formação burguesa, individualista, (...) e o início de uma coisa nova, algo cujo germe

já estava presente, com minhas noções de liberdade e responsabilidade, má fé e

inautenticidade, que mais tarde se transformaria num compromisso muito social e

moral” (in John Gerassi, Jean-Paul Sartre Consciência odiada de seu século,

p.188). 112)A tradução dessa passagem na edição brasileira de EN é um exemplo flagrante de

sua má qualidade: “Esse dualismo ainda nos ameaça, de outra maneira” (O Ser o Nada,

tradução de Paulo Perdigão, Vozes, 1997, p.753). A alteração do tempo do verbo

(ameaça em vez de ameaçava) e do sentido do advérbio (ainda significando “até agora”

em vez de “além disso”) comprometem de maneira definitiva os termos do original. 113)O privilégio da categoria da totalidade já vinha aliás se consolidando desde a época

da Esquisse d’une théorie des émotions, cujo propósito Sartre resumira nos seguintes

termos: “découvrir le sens de cette totalité synthétique qu’on appelle monde” (Esquisse

d’une théorie des émotions, p.10). Daí o ponto de partida do livro: “nous partons de

cette totalité synthétique qu’est l’homme” (Idem, p.14). Nunca será demais recordar

O MITO DA RESISTÊNCIA

572

alguns momentos desse privilégio da totalidade em EN: “Le concret ne saurait être que

la totalité synthétique dont la conscience comme le phénomène ne constituent que des

moments” (p.37-38); “Il ne peut y avoir de l’être originellement que comme totalité.

(...) La réalité humaine est ce par quoi l’être se dévoile comme totalité” (p.222); “Ainsi

Hegel semble avoir raison: c’est le point de vue de la totalité qui est le point de vue de

l’être, le vrai point de vue” (ainda que “le néant représente la négation de toute totalité

synthétique à partir de laquelle on prétendrait comprendre la pluralité des

consciences”, p.347-348); “la connaissance de l’homme doit être totalitaire” (p.635).

Sabemos no entanto que em EN, bem como no resto da obra sartriana, a totalidade só

existe como “totalité détotalisée” (o que caracteriza aliás a forma de existência do

Pour-soi): “totalité concrète quoique détotalisée de ses déterminations” (EN, p.222). A

fórmula “totalité détotalisée” aparece em EN como resultado de um “curto-circuito” na

passagem dialética (p.688) daí a idéia de uma “dialética” curto-circuitada,

designada também como “totalité désintégrée” (p.689) ou “synthèse manquée” (p.690):

“Cette totalité n’est jamais achevée, elle est totalité qui se refuse et qui se fuit, (...)

totalité insaisissable” (p.189); “Ainsi le monde, comme corrélatif d’une totalité

détotalisée, appararaît comme totalité évanescente, en ce sens qu’il n’est jamais

synthèse réelle (p.224); “l’inachèvement d’une totalité détotalisée” (p.233); “...comme

le temps universel lui-même, sous l’aspect de totalités en perpétuelle désagrégation”

(p.249); “Ainsi, la totalité (...) produirait partout son être comme un ailleurs: le

papillotement d’être-en-soi d’une totalité brisée, toujours ailleurs, toujours à distance,

jamais en lui-même, maintenu pourtant toujours à l’être par le perpétuel éclatement de

cette totalité” (p.347). É justamente essa idéia de “totalité détotalisée” o fundamento

do “método progressivo-regressivo” exposto mais tarde em Questions de Méthode,

onde se lê: “la totalisation n’est jamais achevée et (...) la totalité n’existe au mieux

qu’à titre de totalité détotalisée” (p.67; grifo do autor). Nesse sentido, cf. também o

O Domingo da Vida

573

que diz Sartre em L’Idiot de la Famille:“l’Histoire,cette totalisation en cours, se

détotalise sans cesse dans le mouvement même de totalisation et par lui”(vol.III p.433). 114) “C’est là, en effet, que doit s’arrêter l’ontologie: ses dernières découvertes sont les

premiers principes de la psychanalyse. A partir de là, il est nécessaire d’avoir une autre

méthode puisque l’objet est différent” (EN, p.636). 115)Cf. por exemplo Michel Contat, in Magazine Littéraire, n° 103-104, setembro de

1975; Jean Pouillon, Sartre — Un Film, p.102-103; Juliette Simont, Jean-Paul Sartre,

Un demi-siècle de liberté, p.6; Alain Renaut; Sartre, le dernier philosophe, p.207.

Entre nós, cf. Gerd Bornheim: “Tudo indica que, se Sartre não escreveu a sua

prometida Ética de ‘libertação e de salvação’, é porque seu pensamento se emaranhou

num impasse” (Sartre Metafísica e Existencialismo, p.128). E ainda: “As ricas e

densas análises de Sartre deságuam num impasse. (...) Tudo se passa, pois, como se o

impasse a que chega Sartre fosse o impasse do próprio platonismo, da crise do todo da

Metafísica ocidental” (Idem, p.144-145). Por isso G. Bornheim prefere falar em

“impasse metafísico”, mais do que metodológico (p.181). 116)Ao deslocar a solução dos problemas da filosofia para o terreno da práxis, Sartre

aproxima-se do jovem Lukács e de Gramsci (ainda que a concepção da práxis seja

diversa em cada um deles, inútil acrescentar), mas distancia-se dos frankfurtianos,

sobretudo Adorno (Marcuse é um caso à parte), se pensarmos na constelação do

marxismo ocidental. 117) “Le passage de la pseudo-Histoire à l’Histoire vraie est soumis à cette

détermination (...) de réaliser la morale”, escreve Sartre nos Cahiers pour une morale

(p. 54). O autor condiciona a Revolução à realização da moral (assim como o jovem

Marx condicionara a Revolução à realização da filosofia, e vice-versa) essa

realização é ao mesmo tempo supressão da moral: “Il faut que la moralité se dépasse

vers un but qui n’est pas elle. Donner à boire à celui qui a soif non pour donner à boire

O MITO DA RESISTÊNCIA

574

ni pour être bon mais pour supprimer la soif. La moralité se supprime en se posant, elle

se pose en se supprimant. Elle doit être choix du monde, non de soi” (p.11). Daí os dois

pontos de partida principais dos Cahiers: 1) “La morale aujourd’hui doit être socialiste

révolutionnaire” (p. 20; grifo do autor); 2) “si nous tirons Hegel vers le Marxisme?”

(p.69). O autor recorre a Lenin para contrapor Moral (no sentido abstrato e formal) e

Revolução (ação política concreta): “Un révolutionnaire, comme le disait Lénine, n’a

pas de morale parce que son but est concret et que ses obligations se font annoncer par

la fin qu’il se propose. Et Hegel a bien montré que dans la petite cité antique le lien

concret du citoyen avec la ville tenait lieu de morale. La morale est par définition un

fait abstrait: c’est le but que l’on se donne quand il n’y a pas de but. C’est une certaine

manière de traiter les autres quand on n’a aucune autre relation avec les autres que la

pure relation ontologique” (Cahiers pour une morale, p.110). E acrescenta: “Aucune

morale par exemple ne nous dit comment nous devons nous comporter en face de la

maxime du révolutionnaire. (...) Ensuite il ne se peut pas que le révolutionnaire ne

viole les règles de la morale puisque précisément il veut établir un lien concret avec les

personnes et que ce lien concret en devenant pour lui maxime implique des obligations

concrètes qui s’opposent aux obligations formelles de la morale. Aussi bien la morale,

n’ayant aucun contenu réel, ne se conçoit que dans un statu quo. (...) Ainsi l’agent

historique se passe de la morale, il l’ignore: elle n’est que le pur jeu formel de relations

entre personnes juridiques. Elle apparaît là où s’arrêtent l’action politique, la vie

religieuse, l’Histoire. C’est-à-dire dans les périodes où le droit abstrait définit la

personne morale et où l’Histoire réelle tombe en dehors de cette définition. Ainsi

semble-t-elle inutile” (Idem, p.110). Nesses Cahiers pour une morale, vê-se logo, a

“moral” já não tem mais nada a ver com o sentido tradicional do termo, significando

apenas a explicitação de uma certa concepção do homem e do mundo pressuposta na

ação do revolucionário, ou do “agent historique”: “le but concret que se propose

O Domingo da Vida

575

l’agent historique suppose une certaine conception de l’homme et des valeurs; il est

impossible d’être un pur agent de l’Histoire sans but idéal” (Idem, p.110-111). A essa

explicitação do ponto de vista do revolucionário, Sartre chama “morale concrète” —

nela estaria a saída para a superação da antinomia entre Moral e História: “Ainsi

s’entrevoit, par-delà l’antinomie de la morale et de l’Histoire, une morale concrète qui

est comme la logique de l’action effective” (Idem, p.111). Daí a conclusão: “il ne s’agit

pas de réaliser la cité des fins par une transformation intérieure de la subjectivité mais

en changeant l’aspect économique du monde” (p.178). E mais: “La vraie moralité

(concrète): préparer le règne des fins par une politique révolutionnaire, finie et

créatrice” (Idem, p.487). Donde o plano de uma Moral comprometida com o tempo

presente, traçado logo depois em Vérité et Existence: “Je cherche donc la morale

d’aujourd’hui, c’est-à-dire le fait d’historialisation totale. J’essaye d’élucider le choix

qu’un homme peut faire de soi-même et du monde en 1948” (p.137; grifo do autor).

Nesse sentido, cf. também Saint Genet: “Ou la morale est une faribole ou c’est une

totalité concrète qui réalise la synthèse du Bien et du Mal. (...) On comprendra,

j’espère, qu’il ne s’agit nullement d’un ‘au delà’ nietzschéen du Bien et du Mal mais

plutôt d’une Aufhebung hégélienne. La séparation abstraite de ces deux concepts

exprime simplement l’aliénation de l’homme. Reste que cette synthèse, dans la

situation historique, n’est pas réalisable. Ainsi toute Morale qui ne se donne pas

explicitement comme impossible aujourd’hui contribue à la mystification et à

l’aliénation des hommes. Le ‘problème’ moral naît de ce que la Morale est pour nous

tout en même temps inévitable et impossible. L’action doit se donner ses normes

éthiques dans ce climat d’indépassable impossibilité. C’est dans cette perspective, par

exemple, qu’il faudra envisager le problème de la violence ou celui du rapport de la fin

et des moyens” (Saint Genet, p.211-212). Nos anos 70, fazendo um balanço de sua

obra, Sartre afirma que seu “moralisme s’est réduit de plus en plus, au nom d’un

O MITO DA RESISTÊNCIA

576

réalisme”(Sartre — Un Film, p.99). Descoberta a luta de classes, acrescenta o autor, “il

fallait être réaliste”—e esse “realismo” deveria “suprimir” a moral (idem, pp.98-100). 118)Que aliás fora também seu ponto de partida: “l’interrogation métaphysique — qui

est notre interrogation”, lê-se no primeiro capítulo de EN (p.39; grifo do autor). 119)Nos Cahiers pour une morale, Sartre refere-se à “unidade” do ser e do nada, da

subjetividade e da objetividade, numa “dialectique de l’action sur le monde” (p.56).

Voltando a EN: “L’idéal de la volonté, c’est d’être un ‘en-soi-pour-soi’ en tant que

projet vers une certaine fin” (p.506); “...nous devions considérer l’être total comme

constitué par l’organisation synthétique de l’en-soi et du pour-soi” (p.686). “Le

pour-soi, dit Sartre, est hanté par l’idéal d’être en-soi-pour-soi, c’est-à-dire d’être un

être qui aurait la transparence à soi du pour-soi en même temps que la permanence

intemporelle et la plénitude d’être de l’en-soi”, observa André Gorz (Le socialisme

difficile, p.208). A esse respeito, veja-se também o que diz Jean Wahl, num dos

primeiros comentários sobre EN: “Nous saisissons en tout cas, ici, par cette volonté

d’insistance à la fois sur la conscience et sur l’objectif, un trait bien caractéristique de

Heidegger comme de Sartre: la fusion profonde, ou plus exactement tentée de façon

profonde, et réussie parfois, entre le subjectif et l’objectif” (Jean Wahl, “Essai sur le

néant d’un problème”, in Deucalion, nº 1, 1946, p.42). Note-se ainda o que diz

Merleau-Ponty na Phénoménologie de la Perception: “La synthèse de l’En soi et Pour

soi qui accomplit la liberté hégélienne a cependant sa vérité. En un sens, c’est la

définition même de l’existence, elle se fait à chaque moment sous nos yeux dans le

phénomène de présence, simplement elle est bientôt à recommencer et ne supprime pas

notre finitude” (p.519). E em Humanisme et Terreur, lê-se: “La responsabilité

historique dépasse les catégories de la pensée libérale: intention et acte, circonstances

et volonté, objectif et subjectif. Elle écrase l’individu dans ses actes, mélange l’objectif

et le subjectif, impute à la volonté les circonstances; elle substitue ainsi à l’individu tel

O Domingo da Vida

577

qu’il se sentait être un rôle ou un fantôme dans lequel il ne se reconnaît pas, mais dans

lequel il doit se reconnaître, puisque c’est ce qu’il a été pour ses victimes et que ses

victimes aujourd’hui ont raison” (p.133). 120)Cf. a elaboração prévia desse vínculo entre Revolução e Totalidade em

“Matérialisme et Révolution”: “Le révolutionnaire se définit (...) par le dépassement de

la situation où il est. Et parce qu’il la dépasse vers une situation radicalement neuve, il

peut la saisir dans son ensemble synthétique ou, si l’on préfère, il la fait exister pour

lui comme totalité” (in Sit.III, p.179). 121)Cf. A Teoria do Romance, p.68. 122)Recorde-se apenas estas passagens da Teoria do Romance: “Nosso mundo tornou-se

infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego,

mas essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade”

(p.31); “O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida

não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se

problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade” (p.55); “A epopéia

dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca

descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida” (p.60); “O romance é a

epopéia do mundo abandonado por deus” (p.89). 123)Os termos desse “não se pode mais narrar” de Sartre são, é claro, diversos dos de

W. Benjamin e Adorno, como indicamos em nosso Preâmbulo, porém pressupõem o

mesmo problema núcleo duro do Marxismo Ocidental da forma de sobrevivência

da Filosofia e da Literatura após a “decomposição do Espírito Absoluto” (na linguagem

de Marx e Engels) e a “decomposição da forma romanesca” (agora já na linguagem de

Adorno). Observe-se este comentário de F. Jameson: “Hegel já havia percebido o

romance como uma substituição moderna para o épico, no sentido de Lukács. Mas,

para Hegel, como sabemos, a plenitude da arte está, não em uma certa forma de arte,

O MITO DA RESISTÊNCIA

578

mas na sua autotranscendência, na transformação da arte em filosofia (...). Porém, para

Lukács, o pensamento puro não possui nunca um valor absoluto como instrumento

privilegiado de acesso à realidade. Ao contrário, é a narração que é, para ele, o

absoluto. Até mesmo o esboço preliminar dos estágios da arte grega tem como

premissa a primazia da narração. A epopéia é a única forma a ser considerada

puramente narrativa. (...) E, na filosofia, o domínio do pensamento puro, longe de ser

uma virtude, é julgado e avaliado precisamente por sua eliminação da narração como

possibilidade formal. É dentro deste referencial que surge a idéia básica de Teoria do

Romance: o romance, como forma, é a tentativa, nos tempos modernos, de recapturar

algo da qualidade da narração épica como reconciliação entre espírito e matéria, entre

vida e essência. É um substituto para a epopéia, sob condições de vida que doravante

tornam a epopéia impossível” (Marxismo e Forma, p.135-136). Mas doravante, como

Benjamin e Adorno mostraram, é a própria narração, enquanto forma imanente ao

“romance tradicional”, que se tornou impossível (uma impossibilidade objetiva) nas

condições sociais da vida contemporânea. Se após a “decomposição do Espírito

Absoluto” a “filosofia pura” revelou-se incapaz de apreender o todo social (não por

acaso o marxismo começa pela crítica da filosofia e desemboca na crítica da economia

política), após a “decomposição da forma romanesca”, segundo Adorno, o romance

enquanto forma narrativa não pode mais, como pensava o jovem Lukács, ser o

instrumento privilegiado para expor a realidade social (e aqui todo o problema da

literatura pós-realista). É no contexto desse processo de modificação histórica da forma

filosófica e literária que, a nosso ver, a Revolução pode ganhar em Sartre a missão de

realizar (efetivamente, na prática) um ideal de síntese que a filosofia e o romance não

podem mais realizar (idealmente ou literariamente). 124)Tal deslocamento do Romance para a Revolução já se encontra na verdade

preparado no final da Teoria do Romance onde Lukács, num desfecho notavelmente

O Domingo da Vida

579

antecipador de 1917, sugere que a passagem de Tolstói (em cuja obra já “eram visíveis

os vislumbres de uma ruptura para uma nova época mundial”) a Dostoiévski (que “não

escreveu romances”, pois já pertence ao “novo mundo”) significa, mais do que a

passagem de uma forma literária para outra, o indício da “chegada do novo”, ou seja, o

fim da “era da perfeita culpabilidade” (nos termos de Fichte) da qual o romance fora a

forma dominante (cf. as pp.160-161; tradução parcialmente modificada). “Somente

o ano de 1917 trouxe-me uma resposta às perguntas que até então me pareciam

insolúveis”, dirá Lukács mais tarde (Prefácio de 1962) sobre a Teoria do Romance,

livro escrito em 1914-1915, como se sabe, sob o impacto da eclosão da Primeira

Guerra. Essa “resposta”, como também se sabe à saciedade, atende pelo nome de

História e Consciência de Classe. Segundo F. Jameson, ainda estaria presente em

História e Consciência de Classe o mesmo ideal (da narração) da Teoria do Romance:

“Somos tentados a dizer que, para o Lukács de História e Consciência de Classe, a

resolução definitiva do dilema kantiano deve ser encontrada não nos sistemas

filosóficos do século XIX, nem mesmo no sistema de Hegel, mas no romance do século

XIX: pois o processo que ele descreve tem menos parentesco com os ideais do

pensamento científico do que com a elaboração de um enredo” (Marxismo e Forma,

p.148-149). Seria preciso acrescentar: em História e Consciência de Classe permanece

a obsessão pela narração, característica da Teoria do Romance, só que numa nova

forma, pois em vez do romance cabe à Revolução realizar o ideal da verdadeira

narração. — Este será também o caso de Sartre, com a ressalva já feita: o que antes

encarnava o ponto de vista do proletariado, tal como se configurou na constelação

revolucionária de 1917 (e em particular na revolução húngara de 1919), agora encarna

o ponto de vista do Resistente (com suas diversas figuras na obra sartriana, da frente

antifascista ao terceiro-mundismo, incluindo seu desfecho em On a raison de se

révolter).

O MITO DA RESISTÊNCIA

580

125) “O herói da epopéia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se

traço essencial da epopéia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma

comunidade”, lê-se em A Teoria do Romance (p.67). 126)Sobre a figura sartriana do herói enquanto “universal singular”, bem como as

figuras equivalentes entre os contemporâneos, particularmente Malraux, Saint-Exupéry

e Merleau-Ponty, cf. o capítulo anterior onde procuramos expor as ilusões heróicas (tão

heróicas quanto as que Marx ressaltara nas grandes revoluções da era clássica)

veiculadas pelo movimento de Resistência. O caráter paradoxal desse heroísmo

redivivo em pleno “período prosaico” do mundo burguês (para usar os termos de

Lukács num ensaio de 1935, “O Romance”), e prenunciado por um Hegel vestido com

a roupagem da tradição revolucionária clássica (Kojève), foi também abordado no

capítulo anterior. 127)Ainda em “Les damnés de la terre” lê-se: “Cette violence irrépressible (...) c’est

l’homme lui-même se recomposant. (...) L’arme d’un combatant, c’est son humanité”

(Sit. V, p.182-183). Já em “Orphée Noir”, Sartre escrevera: “La souffrance comporte

en elle-même son propre refus; elle est par essence refus de souffrir, elle est la face

d’ombre de la négativité, elle s’ouvre sur la révolte et sur la liberté” (Sit.III, p.276). Cf.

também o que diz o autor na já mencionada entrevista concedida a um jornal

clandestino de apoio à libertação da Argélia: “...le même système leur ôte les moyens

d’être hommes en leur apprenant, bien malgré lui, que tout homme peut et doit

réclamer sa valeur et sa dignité d’homme, fût-ce en prenant les armes” (“Entretien de

Sartre avec Francis Jeanson”, in Les Ecrits de Sartre, p.728). Não seria difícil

reconhecer os ecos desse terceiro-mundismo de Sartre no cinema de Glauber Rocha,

seja dito de passagem. Bastaria lembrar por exemplo a fala do Corisco (Othon Bastos)

em “Deus e o Diabo na terra do sol” (1963): “Homem nessa terra só tem validade

quando pega nas armas para mudar o destino”. (O próprio lema desse personagem ir

O Domingo da Vida

581

pela vida “desarrumando o arrumado” coincide perfeitamente com a idéia sartriana

de Intelectual.) Ou então as idéias básicas do Testamento de Lampião em “O dragão da

maldade contra o santo guerreiro” (1969): “A vingança tem de vir para curar os anos de

sofrimento, sem respeito e sem arespeito”; “É no fundo da sujeira que vou me limpar”;

“Lute com a força das suas idéias, que elas valem mais do que eu.” 128)Sobre a passagem do sentimento de “humilhação”, próprio da França Ocupada, ao

sentimento de “cura” que nasce com a Libertação, é interessante conferir o depoimento

de um brasileiro que foi membro da Resistência francesa, Apolonio de Carvalho, no

livro Vale a pena sonhar, pp. 137-173. 129)A respeito dessa fórmula da alienação em EN, cf. em especial nosso Capítulo 1, II.

E a respeito das análises de Sartre sobre a Colaboração, cf. particularmente “Qu’est-ce

qu’un Collaborateur?” (Sit.III) e o artigo clandestino “Drieu la Rochelle ou la haine de

soi” (cf. Capítulo 2, II), tentativa de expor o funcionamento “interior”

(psicanaliticamente falando) da engrenagem do fascismo. 130) “É a obra de Giacometti que torna nosso universo ainda mais insuportável (...), essa

condição inumana a nós imposta...”, observa Jean Genet em O Ateliê de Giacometti

(p.12). Sobre a profunda solidão e a enfermidade representadas nas figuras esculpidas

por Giacometti, Genet escreve: “Ainda que presentes, onde estão essas figuras de

Giacometti a que me refiro, se não na morte? De onde escapam ao mínimo apelo de

nossos olhos para se aproximar de nós” (O Ateliê de Giacometti, p.15); “suas estátuas

me dão a sensação de se refugiarem, em última instância, não sei em que enfermidade

secreta que lhes proporciona a solidão” (p.42); “mergulhava cada vez mais longe, em

regiões impossíveis e sem saída” (p.66); “Diante de suas estátuas, um outro

sentimento: são todas pessoas muito belas, contudo me parece que sua tristeza e

solidão são comparáveis à tristeza e solidão de um homem disforme que, subitamente

nu, veria exposta sua deformidade, ao mesmo tempo oferecida ao mundo para indicar

O MITO DA RESISTÊNCIA

582

sua solidão e sua glória. Inalteráveis” (p.72); “Giacometti recusa depositar sobre o

objeto a mínima aparência mesmo que delicada, cruel ou tensa humana. (...)

‘Estou só’, parece nos dizer o objeto, capturado numa necessidade contra a qual você

nada pode” (p.94-95). Note-se o que diz Sartre num ensaio de 1947 sobre David Hare:

“La sculpture de Hare —comme celle de Giacometti— (...) tente de déshumaniser notre

regard, à la manière de Kafka qui fait voir la transcendance à l’envers” (“Sculptures à n

dimensions”, in Les Écrits de Sartre, p.667; para outras reflexões de Sartre sobre

Giacometti, cf. “La Recherche de l’Absolu”, Sit.III, e “Les peintures de Giacometti”,

Sit.IV). Demos o exemplo de Giacometti, como poderíamos de fato ter dado também o

de Kafka. “A arte monológica de Kafka (...) é a formalização estética de isolamento,

da solidão, do mundo esquecido. (...) Não é possível exprimir melhor, através de

imagens, a desumanização e o caráter solitário do indivíduo contemporâneo”, afirma

Modesto Carone (“A construção de Kafka”, Praga — Revista de Estudos Marxistas, nº

1, pp.102-103). É que no mundo de Kafka, como escreve Günther Anders, não há

“solução”; sua obra descreve “o beco-sem-saída da vida” “Happy endings são, por

isso, acontecimentos muito raros em Kafka” (Kafka: pró e contra, p.59-60). Nos

termos de Adorno: “A história torna-se em Kafka o inferno, porque a salvação possível

foi perdida. Esse inferno foi inaugurado pela própria burguesia tardia. Nos campos de

concentração do fascismo aboliu-se a linha demarcatória entre a vida e a morte, o que

gerou uma situação intermediária, esqueletos vivos e em estado de decomposição,

vítimas que falharam na sua tentativa de suicídio, a gargalhada de Satanás diante da

esperança da abolição da morte. Como na épica pelo avesso de Kafka, o que pereceu

ali foi o parâmetro da experiência, a vida vivida até o fim” (“Anotações sobre Kafka”,

Prismas, p.257). Se num primeiro momento (negativo) de descoberta da “incroyable

puissance de l’histoire” (para relembrar os termos com os quais Merleau-Ponty resume

a grande “verdade” ensinada pela Guerra e pela Ocupação, “La Guerre a eu lieu”, Sens

O Domingo da Vida

583

et Non-Sens, p.267), a geração de Sartre, ferida-de-realidade, descobre ao mesmo

tempo que “a salvação possível foi perdida” (o que é expresso justamente na

estilização de Kafka, examinada no Capítulo 1, II), num momento posterior, quando a

Resistência sinalizar a possibilidade de saltar fora do beco-sem-saída da vida burguesa

(nada mais nada menos do que o salto da Revolução), essa primeira “descoberta” será

transmudada no seu oposto, um humanismo heróico, alimentado por uma conjuntura de

radicalização política que leva a acreditar novamente na possibilidade do que EN

chamou de “recuperação da totalidade humana”. 131) “Le moment de la conscience malheureuse — c’est-à-dire de l’intellectuel

proprement dit” (Sit.VIII, p.373). 132)A expressão é de Francis Jeanson, referindo-se exatamente a Roquentin (cf. Le

problème moral et la pensée de Sartre, p.276). 133) “Écrire pour son époque”, fragmento de “Qu’est-ce que la littérature?” excluído da

versão final; publicado em Les Temps Modernes, junho de 1948, e reproduzido em Les

Écrits de Sartre. 134)Nunca é demais relembrar Kojève: “Le ‘royaume de Dieu’ se réalise ici-bas et par

l’homme, par l’action créatrice (négatrice) de l’homme” (Introduction à la lecture de

Hegel, p.69). Ou então as palavras do próprio Hegel saudando a Revolução Francesa:

“le ciel est descendu et transporté sur la terre” (La Phénoménologie de l’Esprit, Tome

II, p.129). Voltando a Sartre. Antes de chegar na Revolução (o que ocorrerá

manifestamente nos Cahiers pour une morale), o processo de laicização da idéia

sartriana de salut passou por duas etapas, na verdade coincidentes, pois ambas são

variações em torno do Estetismo do período da Nausée (vimos acima o salut

vislumbrado por Roquentin: fazer a vida seguir o modelo do romance) “salut par

l’Art” (cf. Carnets de la drôle de guerre, pp.275, 286, 287, 288, nova edição) e salut

pela Moral: “Faire son salut, non pas au sens chrétien du terme, mais au sens stoïcien:

O MITO DA RESISTÊNCIA

584

imprimer à sa nature une modification totale qui la fasse passer à un état de plus-value

existentielle. (...) Je vois enfin que la recherche du salut était la quête d’une voie

d’accès vers l’absolu. (...) Bref, je cherchais l’absolu, je voulais être un absolu et c’est

ce que j’appelais la morale, c’est ce que nous nommions ‘faire notre salut’“ (Idem,

pp.280-282). O salut, como se sabe, é uma obsessão dos personagens de Sartre veja-

se por exemplo o projeto de Mathieu em L’Âge de Raison: “Je ferai mon salut”

(Pléiade, p.445). No ensaio sobre Paul Nizan, Sartre escreve: “Nous gardâmes

longtemps, lui et moi, le vocabulaire chrétien: athées, nous ne doutions pas d’avoir été

mis au monde pour y faire notre salut et, avec un peu de chance, celui des autres. Une

seule différence: j’avais la certitude d’être élu; Nizan se demandait souvent s’il n’était

pas damné” (Sit.IV, p.156). Cf. ainda o que diz o autor na primeira versão de seu

ensaio sobre Merleau-Ponty: “Faire son salut sur terre, c’est vivre” (in Revue

Internationale de Philosophie, n° 152-153, 1985, p.11). 135)A respeito das análises de Sartre sobre o parasitismo do Intelectual, note-se o

seguinte comentário de Paulo Arantes: “Não é apenas na letra de uma expressão

[‘consciência dilacerada’] que Sartre retoma o espírito das análises hegelianas; já na

sua referência ao parasitismo congênito mas também metafórico e premonitório da

modernidade vindoura do intelectual do Antigo Regime, em que germina um grão do

antiintelectualismo kojèveano, ecoa ainda a reconstituição hegeliana das tortuosas

relações de clientela entre a riqueza, o poder e o espírito atormentado do plebleu

intelectualizado” (“Paradoxo do Intelectual”, in Ressentimento da Dialética, p.28). 136)Citado por Dolf Oehler, Quadros Parisienses, p.12. 137)A relação entre as “épopées dégradées dans un monde petit-bourgeois” e a

dessacralização da linguagem em Sartre foi estabelecida por Geneviève Idt no seu

Prefácio a Sartre Oeuvres Romanesques: “Ce qui convient à ces épopées dégradées

O Domingo da Vida

585

dans un monde petit-bourgeois, c’est un langage désacralisé par le mélange des genres

et des tons” (Pléiade, p.XXXI). 138)A idéia de Revolução como um momento sublime remonta aos clássicos da

historiografia sobre a Revolução Francesa. Eis por exemplo as palavras com as quais

Michelet descreve os eventos revolucionários do século XVIII: “Une multiplicité

infinie d’incidents sublimes” (Histoire de la Révolution Française, vol.1, Pléiade,

p.1129). 139)Cf. “Le Métaphysique dans l’Homme”, in Sens et Non-Sens. Cf. também a definição do

Existencialismo no final de Humanisme et Terreur: “Cette philosophie-là ne peut pas nous

dire que l’humanité sera en acte, comme si elle disposait de quelque connaissance séparée

et n’était pas, elle aussi, embarquée dans l’expérience, dont elle n’est qu’une conscience

plus aiguë. Mais elle nous éveille à l’importance de l’événement et de l’action, elle nous

fait aimer notre temps, qui n’est pas la simple répétition d’un éternel humain, la simple

conclusion des prémisses dejá posées, et qui, comme la moindre chose perçue, comme

une bulle de savon, comme une vague, ou comme le plus simple dialogue, renferme

indivis tout le désordre et tout l’ordre du monde (p.309-310). Nos termos de Sartre: “La

métaphysique n’est pas une discussion stérile sur des notions abstraites qui échappent à

l’expérience, c’est un effort vivant pour embrasser du dedans la condition humaine dans sa

totalité” (Sit.II, p.251). Observe-se ainda o que diz o autor em “La responsabilité de

l’écrivain”: “On n’est pas, d’abord, le gardien des valeurs éternelles, car la liberté est

concrète. Quand je dis qu’un livre est un appel à la liberté, il ne s’agit pas d’un appel à une

liberté abstraite qui soit simplement une sorte de pouvoir métaphysique de l’homme; celle-

là, nous ne la connaissons pas, nous la trouvons dans des traités de philosophie; mais il n’y

a chez personne le propos direct d’agir en vue de maintenir une liberté absolue éternelle,

incolore. (...) Si on se borne à écrire sur la liberté en général, on contribue tout simplement

à l’oppression, car on peut opprimer totalement au nom de la liberté. La liberté se fait au

O MITO DA RESISTÊNCIA

586

jour le jour et concrètement dans des actions concrètes où elle est impliquée et, par

conséquent, lorsque nous parlons d’un engagement de l’écrivain, d’une responsabilité de

l’écrivain, il ne s’agit pas d’un engagement au nom d’une liberté abstraite...”(pp.64-65). E

em Saint Genet:“Bref, il faut en revenir à des vérités fort simples et fort vulgaires

(...).Contre les banalités subjectivistes qui tentent partout de noyer le poisson, il faut

restaurer la valeur de l’objectivité” (p.622-623).“Il avait horreur des idées abstraites”,

escreve André Gorz a respeito de Sartre (Le Traître, p.245). 140) “Ça commence comme une fête...”, escreve Sartre na primeira de suas reportagens

de 1944 (“L’Insurrection”, “Un Promeneur...”, Combat, 28/8/44). Sobre aquele

momento em que Paris era de fato uma festa, veja-se também o relato de Simone de

Beauvoir: “Les jours qui suivirent furent une longue fête. Les gens se riaient au visage,

le soleil brillait, et comme les rues étaient gaies!” (La force de l’âge, p.666). A idéia de

Revolução como “festa”, nascida dessa experiência da Resistência, tornar-se-á

recorrente no pensamento de Sartre. Note-se por exemplo o que diz o autor a respeito

do período da “lua de mel da Revolução” em Cuba: “Il y avait un état de bonheur et

d’agrément que je n’ai jamais vu. Cette espèce de révolution qui était une fête, c’était

remarquable” (Sartre — Un Film, p.119). Ou então seus comentários sobre Maio de 68:

“Che Guevara a dit: ‘Quand il se passe dans la rue des choses extraordinaires, c’est la

révolution.’ Nous n’avons pas eu la révolution mais il s’est passé des choses

extraordinaires, que nous devons essayer de défendre” (“L’idée neuve de Mai 1968”,

Sit.VIII, p.207). 141) “Il y a d’abord des signes annonciateurs. Puis la situation privilégiée, lentement,

majestueusement, entre dans la vie des gens. Alors la question se pose de savoir si on

veut en faire un moment parfait” (La Nausée, Pléiade, p.175). 142)Mas realiza-se ao mesmo tempo o Grande Desejo de uma subversão liberadora que

impulsionara a vasta corrente que vai das vanguardas literárias e artísticas de entre-

O Domingo da Vida

587

guerras ao Existencialismo francês (cf. as notas 130 e 135 do Capítulo anterior). Nos

termos com que Sartre definiu esse Grande Desejo: “Pour tout dire, nous vivions à

l’époque du Grand Désir: les surréalistes voulaient réveiller cette infinie concupiscence

dont l’objet n’est autre que Tout” (Sit.IV, p.152). É como se a exaustão histórica do

surrealismo, no limiar dos Tempos Modernos, coincidisse com a realização de seu

programa—o que é o “Apocalipse de 44”, na ótica dos contemporâneos, senão o

momento em que o fantástico coincide com o real (justamente o que apregoava Breton

no Manifesto do Surrealismo, 1924)? Não é casual que, no seu lado fabuloso, as

descrições da insurreição feitas por nosso repórter em nada fiquem devendo às imagens

consagradas pelos surrealistas. Alguns exemplos: “D’ailleurs le danger est

imprévisible. (...) Pourquoi tenter de l’éviter? Je trouve une certaine grandeur à cette

destination. C’est elle qui donne à Paris cette physionomie extraordinaire (...). Le

crépitement des balles de mort... Là, c’était presque le désert. Au milieu de la chaussée,

un énorme camion gisait, renversé, comme un crabe sur le dos” (“L’Insurrection”, “Un

Promeneur...”, Combat, 28/8/44); “...en beaucoup d’endroits la bataille s’est étendue

d’abord comme une inondation et puis s’est retirée, laissant les rues à sac, désertes et

tranquilles, avec quelques chicanes et des cadavres de camions”; “Déjà, avec la chaleur

de midi, quelque chose de sinistre pèse sur la joie du matin. Le sénat énorme et noir.

Tout au bout de sa rue vide, paraît vénéneux, avec cet insupportable drapeau qu’on

regarde malgré soi” (“Naissance d’une Insurrection”, “Un Promeneur...”, 29/8/44); “Ce

soir, ils brûlèrent un camion sur le quai, à la hauteur de l’hôtel Notre-Dame. Les

flammes montaient plus haut que les maisons, la cathédrale entière rougeoyait plus

lumineuse qu’aux grandes fêtes du temps de paix”(“Toute la Ville Tire”, “Un

Promeneur...”, 31/8/44); “La rue de Rivoli disparaissait, il ne restait qu’un fleuve

grondant d’hommes et de femmes” (“Un jour de victoire parmi les balles”, “Un

Promeneur...”, 4/9/44). Malgrado as críticas (não destituídas de equívocos) de Sartre ao

O MITO DA RESISTÊNCIA

588

surrealismo, a negatividade explosiva do pensamento de nosso autor só pôde correr

solta porque a pista já fora aberta por esse movimento cultural. Lembramos mais no

início o viés “antiliterário” dos surrealistas, cujo alvo principal não é outro senão a

mesma Academia igualmente satirizada por Sartre. Poderíamos lembrar também sua

atitude emancipatória, com ênfase na revolta (cujos ecos ouviremos ainda no Sartre

soixante-huitard de On a raison de se révolter), além é claro de seu

anticonvencionalismo característico. Aliás, convém não esquecer que muito antes da

paródia do Cogito na Nausée (“Je ne pense pas donc je suis une moustache” etc.),

Louis Aragon já se encarregara, em O Camponês de Paris, de fazer a paródia das

Meditações de Descartes. Mas é bem possível que o mais decisivo para Sartre tenha

sido a ironia dos surrealistas, e em particular do mesmo Aragon em O Camponês de

Paris, a respeito dos “sofismas de Kant”: “E o homem duvida, pois não gosta das

petições de princípios, e vê onde o pequeno Emmanuel quer chegar com suas palavras

encantadas, e percebe a falha dessa empreitada intelectual (...). Mosquito, saia! Você

toma os pântanos por terra firme”(O Camponês de Paris, p.87-88). Ao recusar a

“empreitada intelectual”de Kant, os surrealistas não estão brincando, o que está em

jogo é nada mais, nada menos, do que a filosofia profissional, isto é, a filosofia tal

como a conhecemos. Essa recusa, sobreposta ao Heidegger de Ser e Tempo, abriu o

caminho por onde Sartre vai explodir o quadro da filosofia institucional (parte

integrante do esqueleto carcomido das formas do mundo burguês cujo fim o

Existencialismo francês, reativando a combustão do vanguardismo de entre-guerras,

tentou precipitar). 143) “Marx pretendia subordinar o bom êxito da ‘superação da filosofia’ à sua

‘realização efetiva’, ou seja, ao momento em que ‘o mundo se tornasse filosófico’”,

escreve Karl-Otto Apel (Transformação da Filosofia, vol.I, p.12).

Breve nota comparativa

“Tudo é consequência de um certo nascer ali” (Carlos Drummond de Andrade, Farewell, p.20)

Sublinhamos ao longo deste trabalho alguns efeitos desencontrados que

decorrem da diferença de fuso intelectual entre os dois lados do Reno no período

crítico da Segunda Guerra. Vimos por exemplo duas respostas teóricas opostas diante

da mesma situação-limite do campo de concentração. Se do lado da geração de Sartre a

experiência de extrema desumanização do campo de prisioneiros é a câmara de

decantação da Condição Humana (das cinzas renasce um sujeito heróico), do lado da

geração de Adorno, Auschwitz é, ao contrário, o ponto terminal, onde acaba de morrer

o que ainda restara do indivíduo. Para os marxistas alemães de entre-guerras, como já

observamos, esse processo de liquidação do indivíduo é resultado da consolidação do

capitalismo, portanto diz respeito a algo mais amplo do que a situação conjuntural da

Segunda Guerra e isso vale mesmo para as reflexões feitas ainda no calor da hora,

caso das Minima Moralia. Trocando em miúdos, estamos diante de um diagnóstico da

O MITO DA RESISTÊNCIA

590

alienação moderna diagnóstico sempre truncado na ótica da filosofia francesa da

existência, plasmada pelo Mito da Resistência, conforme procuramos mostrar.

Mas esse é apenas um dos desencontros de uma série de outros entre as duas

gerações intelectuais mais importantes da cultura contemporânea. Seria o caso de

relembrar também o total equívoco da recepção de Sartre entre os frankfurtianos,

começando por Marcuse, cuja leitura de EN, ainda nos anos 40, deixou escapar o

essencial do livro, a nosso ver, e foi completamente cega para o caráter progressista do

existencialismo nascente. Um exemplo flagrante, já mencionado: ao comentar as

passagens de EN sobre a tortura justamente o momento mais propício para encontrar

algumas trilhas na mata cerrada das análises do livro, ou seja, encontrar os elementos

mediadores entre as demonstrações ontológicas e as ilustrações extraídas do presente

político, Marcuse não conseguiu ver nessas passagens nada além de mera

“abstração”, velho “idealismo”, ou mesmo “ideologia da livre concorrência, da livre

iniciativa e das chances iguais para todos”. Essa cegueira de Marcuse, muitíssimo

agravada em Adorno (sem falar de Lukács), que não hesita em comparar os “slogans”

de Sartre aos do fascismo, dá lugar mais tarde a verdadeiros disparates como por

exemplo a afirmação de Habermas de que EN é uma obra presa às “premissas da

filosofia transcendental”, e na qual o problema da intersubjetividade é “secundário”.1

Tantos equívocos juntos desembocam num desencontro maior: se na primeira vez em

que cruzou o Reno a pacata fenomenologia alemã teve seu sinal trocado, tornando-se a

exposição filosófica do ativismo político da Resistência, na segunda vez, retornando a

seu ponto de origem, o sinal é novamente invertido e os fundamentos da teoria

sartriana da revolução regridem ao nível de uma “filosofia transcendental” (só que da

segunda vez essa inversão de sinal se repete como farsa, pois a

destranscendentalização da filosofia já fora operada por Heidegger em Ser e Tempo de

forma irreversível e essa operação é o ponto de partida de EN, como mostramos na

Primeira Parte deste trabalho).

Breve nota comparativa

591

A diferença de fuso intelectual e político entre os dois lados do Reno torna-se

bem mais evidente quando se desloca o foco da recepção de EN para Les Mouches

(afinal, EN foi considerada uma obra de pura Metafísica pelo próprio autor ainda

que “metafísica” aqui, como sabemos, seja algo a anos-luz de distância da metafísica

clássica, o que os leitores alemães de Sartre, mas não apenas eles, não

compreenderam). Enquanto na França Ocupada as platéias lotavam o teatro para

ovacionar essa peça na qual viam um claro apelo à Resistência, e uma veemente

condenação do ponto de vista da Colaboração, na Alemanha a dimensão política de Les

Mouches foi inteiramente ignorada (a ponto de Habermas dizer que só com Huis Clos

tornou-se possível “perceber o homem político em Sartre”), devendo-se seu sucesso às

“profundas interpretações metafísicas” que foi capaz de suscitar, segundo um já

mencionado depoimento do mesmo Habermas (cf. Capítulo 2, II, nota 83). (Vistas as

coisas por esse ângulo, não admira que os comunistas alemães tenham protestado nos

jornais de Berlim, no imediato pós-guerra, contra o “antihumanismo” de Les Mouches,

verdadeira “difamação da verdadeira liberdade”.)

Se juntamos todos esses equívocos expostos em notas esparsas no decorrer

deste trabalho foi para circunscrever agora um derradeiro efeito desencontrado,

extraído de um rápido confronto que realça ainda mais a particularidade de EN.

Quando se compara esse Ensaio de Ontologia Fenomenológica com outro clássico do

pensamento contemporâneo, concluído também em plena guerra, cerca de um ano após

EN, em maio de 1944 (mas só publicado em 1947), a Dialética do Esclarecimento,

deparamo-nos mais uma vez com o problema central no nosso último capítulo da

relação paradoxal entre intenção e resultado de uma obra (embora os termos do

problema aqui já não sejam os mesmos). O livro de Adorno e Horkheimer visava

diretamente as questões fundamentais da época, uma época atravessada pela guerra e

irremediavelmente marcada pelos horrores do nazismo, mas nem por isso foi premido

pelas imposições e urgências da conjuntura política imediata (por mais dramática que

O MITO DA RESISTÊNCIA

592

fosse), considerada sempre do ponto de vista mais amplo do “processo de transição

para o mundo administrado”, nos termos dos próprios autores.2 Como observa Robert

Kurz, a Dialética do Esclarecimento não subordinou a Teoria Crítica aos objetivos

imediatos da coalização antifascista, isto é, não reproduziu, num “maniqueísmo

filosófico”, as frentes de guerra.3 (É preciso não esquecer, contudo, que as

circunstâncias do exílio americano deixaram Adorno e Horkheimer, ao contrário de

Sartre, completamente afastados da embriaguez da luta política, alimentada pelas mais

arraigadas esperanças revolucionárias, que toda a Europa, e particularmente a França

Ocupada, travava contra o nazi-fascismo.) Já EN, uma obra de “filosofia pura”, tal

como seu autor a concebeu, deliberadamente distante, portanto, dos problemas

políticos da época, transpõe para a sua forma filosófica o Zeitgeist, isto é, atende à

demanda da consciência social que norteava a grande frente antifascista, como

procuramos demonstrar neste trabalho. Em vez de enquadrar a história imediata no

ângulo grave do capitalismo contemporâneo (caso da Dialética do Esclarecimento),

enquadra alguns momentos decisivos da mais avançada cultura contemporânea a

“modernidade” filosófica e a “modernidade” literária importadas de além-Reno e de

ultramar no ângulo agudo da vida nacional, àquela altura radicalizada e muito

acelerada pela “força das coisas”. Ao mergulhar na ontologia, Sartre encontrou (sem se

dar conta), nas essências intemporais e autônomas que procurava, as marcas profundas

de uma época histórica definida. Noutras palavras (adaptadas de W. Benjamin), o

sentido daquele período histórico crucial “se depositou como um sedimento” em EN.4

Daí o efeito desencontrado a que nos referíamos: o processo social em curso encontra-

se condensado muito mais num Ensaio de Ontologia Fenomenológica (desta

perspectiva, um verdadeiro documento de época, tanto quanto as reportagens sartrianas

sobre a insurreição parisiense de 1944, como vimos) do que na Dialética do

Esclarecimento, nascida no mesmo período de uma reflexão sobre o presente histórico.

Esquematizando esse desencontro. De um lado, uma obra que pretende refletir a

Breve nota comparativa

593

respeito do tempo presente salta por sobre sua época (um salto por vezes grande

demais, se Robert Kurz tem razão, arremessando os autores até formulações de ordem

“quase supra-histórica”) e tem alcance teórico mais geral.5 (Compreenda-se: diz

respeito aos problemas do capitalismo de maneira geral a ponto de o mesmo Robert

Kurz defini-la como “o livro negro do capital”,6 e não apenas àquela conjuntura

política imediata.) Do outro lado, uma obra cujo propósito é saltar por sobre seu tempo

em direção às verdades gerais termina por recriar uma mitologia de época.

(Evidentemente, jamais ocorreria a nenhum Resistente, em sã consciência, dizer que a

Dialética do Esclarecimento “tornou nosso universo transparente” o que foi dito

justamente de um... Ensaio de Ontologia Fenomenológica.)7 Nessa recriação

encontram-se ao mesmo tempo a grandeza e os limites de EN. O que aumenta seu

significado específico, diminui seu alcance teórico geral.8 (Onde, nas premissas do

livro, os elementos para compreender a tragédia do mundo contemporâneo, o sujeito

soterrado pela avalanche do capital? Nisto EN acaba, novamente não sem paradoxo,

sendo uma obra muito datada se comparada à Dialética do Esclarecimento.) Se Sartre

não conseguiu perceber que a democracia que nascia no fim da guerra não era senão a

irmã inimiga do fascismo (como farejaram Adorno e Horkheimer), portanto membros

da mesma família, é porque não vislumbrou no horizonte o “totalitarismo do mercado

global e onipresente”9 (àquela altura de fato ainda longe demais para ser vislumbrado)

e sim a Revolução (por isso julgou possível reunir novamente o que o curso do mundo

já havia separado). Essa sua grande ilusão — uma “ilusão lírica”, por certo, porém com

forte base real (o fato de não ter se efetivado já fica por conta da história das lutas de

classes, sem falar da responsabilidade política do stalinismo).10 De qualquer modo, não

foram meras ilusões de um promeneur solitaire, mas ilusões necessárias, ou ilusões

históricas poderosas o suficiente para se materializarem filosoficamente (às costas do

autor). Afinal, estávamos diante do último surto de heroísmo da época de ouro das

O MITO DA RESISTÊNCIA

594

vanguardas históricas. Não por acaso, aquele foi o último momento em que a

Liberdade pôde ocupar o centro de um ensaio filosófico.

Breve nota comparativa

595

NOTAS

1)Esses comentários de Marcuse, Adorno e Habermas, bem como os de Lukács, foram

examinados no Capítulo 2, II (cf. em especial as notas 45, 83, 88, 90, 105 e 136).

Acrescente-se a essa série o tremendo tropeço de Horkheimer: “Se evitarmos o uso da

palavra ‘existência’ e, em vez dela, dissermos ‘situação humana’, ‘condição humana’,

evitaremos o mal-entendido de que somos existencialistas. E que terrível mal-

entendido seria! Li Sartre. Mas ele é um charlatão! Utiliza palavras e conceitos de

Hegel como uma espécie de termini technici, como parte de fórmulas científicas, como

coisas pequenas ou símbolos ou algo semelhante. Ele é um professor de colégio, que

tenta fazer acreditar que é um curandeiro [medicine men] disfarçado de filósofo. Como

se não soubéssemos que até mesmo os genuínos curandeiros queriam justamente fazer

crer que eles eram de fato curandeiros. Na verdade eles próprios sempre souberam que

seu ofício era um embuste”. (Carta a Norbert Guterman, 6 de setembro de 1946, in

Horkheimer, M., Gesammelte Schriften, vol.17, Briefwechsel 1941-1948, Frankfurt,

Fischer, 1996, p.756. Nota dos organizadores: “As observações de Horkheimer se

relacionam, provavelmente, à obra filosófica mais importante de Sartre na época,

L’Être et le Néant”.) E numa carta a Heinz Maus (10 de dezembro de 1946),

Horkheimer, referindo-se a um “reaquecimento eclético do passado, sobretudo do

humanismo e do idealismo e, em parte, de uma metafísica desbotada que, de certo

modo, se apresenta como o complemento da matéria elevada do positivismo das

instituições científicas”, acrescenta: “que o Sr. Sartre, que já liquidara Heidegger,

agora seja consumido por aqueles que não tiveram a coragem de se aproximar da

autêntica forma nazista da filosofia da existência, então não há nenhuma outra reação

O MITO DA RESISTÊNCIA

596

possível a não ser manifestar indignação, sem desconhecer a impotência de um tal

sentimento”. (Tivemos acesso a essa correspondência de Horkheimer graças à gentileza

de Ernani Chaves.) Caricatura por caricatura, é preferível o discreto charme da versão

hollywoodiana do Existencialismo, que tem a seu favor pelo menos um ótimo senso de

humor, como no caso de Stanley Doney no filme Funny Face (cf. a nota 31 do

Capítulo 2, II). 2)“Sobre a nova edição alemã” (1969), Dialética do Esclarecimento, p.9. 3)Cf. Robert Kurz, “Até a última gota”, Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 24/08/97. 4)As palavras de Benjamin referem-se, como se sabe, à Éducation Sentimentale (cf. W.

Benjamin, Obras Escolhidas, p.212). 5)Ainda que esse alcance tenha se tornado limitado, como aliás não deixam de

reconhecer os próprios autores no Prefácio à edição alemã de 1969: “Não nos

agarramos sem modificações a tudo o que está dito no livro. Isso seria incompatível

com uma teoria que atribui à verdade um núcleo temporal, em vez de opô-la ao

movimento histórico como algo de imutável. O livro foi redigido num momento em

que já se podia enxergar o fim do terror nacional-socialista. Mas não são poucas as

passagens em que a formulação não é mais adequada à realidade atual” (“Sobre a nova

edição alemã”, Dialética do Esclarecimento, p.9). Veja-se o seguinte comentário de

Robert Kurz: “Por maiores que sejam os acertos da Dialética do Esclarecimento, hoje

ela tem eficácia limitada. Horkheimer e Adorno não cruzaram a porta por eles

franqueada. Sua recorrência quase supra-histórica ao problema da dominação da

natureza põe em curto-circuito dois planos diversos, o condicionamento de toda a

história da humanidade pela dominação socialmente inconsciente e o fetichismo

especificamente econômico da modernidade. A Dialética do Esclarecimento ganha,

com isso, algo de inevitável e supratempral, ao passo que, simultaneamente, concede à

Breve nota comparativa

597

falsa promessa da liberdade burguesa um resto de dignidade” (“Até a última gota”,

Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 24/08/97). 6)“A crítica radical de Robert Kurz”, Entrevista concedida a José Galisi, Folha de S.

Paulo, Caderno Mais!, 23/01/2000. 7)Isso não significa que não se possa encontrar também na Dialética do

Esclarecimento, ainda que com características diferentes das de EN, bem entendido,

uma temática própria da época. Veja-se por exemplo, na Parte V de “Elementos do

Anti-Semitismo”, o problema das relações entre o carrasco e a vítima nos campos de

concentração: “É pelo gemido da vítima que, pela primeira vez, chamou a violência

por seu nome, e até mesmo pela simples palavra que visa as vítimas: francês, negro,

judeu, que eles se deixam intencionalmente transportar para o desespero dos

perseguidos obrigados a reagir com violência. (...) Eles reproduzem em si a

insaciabilidade da potência de que têm medo. Tudo deve ser usado, tudo deve lhes

pertencer. A mera existência do outro é motivo de irritação. Todos os outros são ‘muito

espaçosos’ e devem ser recolocados em seus limites, que são os limites do terror sem

limites” (p.170-171). Ou então, na Parte VI desses “Elementos do Anti-Semitismo”, o

tema do Olhar (e aqui nem sequer estamos muito longe do processo de coisificação por

intersubjetividade em EN): “O proverbial olhar nos olhos não preserva a

individualidade, como olhar livre. Ele fixa. Ele constrange os outros a uma fidelidade

unilateral, aprisionando-os entre os muros sem janelas das mônadas de suas próprias

pessoas. Ele não desperta a consciência moral, mas de antemão vai exigindo a

prestação de contas. O olhar penetrante e o olhar que ignora, o olhar hipnótico e o

olhar indiferente, são da mesma natureza: ambos extinguem o sujeito. Porque a esses

olhares falta a reflexão, os irrefletidos deixam-se eletrizar por eles” (p.178). 8)Os termos dessa formulação foram extraídos da análise de Antonio Candido sobre O

cortiço (cf. O Discurso e a Cidade, p.152).

O MITO DA RESISTÊNCIA

598

9)As aspas são por conta de R. Kurz, “Até a última gota”, Caderno Mais!, Folha de S.

Paulo, 24/08/97. 10)Afinal àquela altura do curso do mundo o peso das responsabilidades políticas ainda

não fora inteiramente minguado pela entronização do fetichismo, própria da fase atual

do capitalismo “momento totalitário”, como observa José Luís Fiori, em que “o

poder do império e do capital vão dissolvendo o conteúdo substantivo da vida política”

(cf. José Luís Fiori, “O Poder e o Dinheiro: uma hipótese e várias lições”, in

Globalização o Fato e o Mito, p.38-39).

BIBLIOGRAFIA Abensour, M., “O heroísmo e o enigma do revolucionário”, in Tempo e História, São Paulo, Companhia das Letras, 1992. Adorno, T.W., “Caracterização de Walter Benjamin”, in Theodor W. Adorno — Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1986. Adorno, T.W., Notes sur la littérature, Paris, Flammarion, 1984. Adorno, T.W., Notas de Literatura, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1973. Adorno, T.W., Quasi una fantasia, Paris, Gallimard, 1982. Adorno, T.W., Prismes — Critique de la culture et société, Paris, Payot, 1986. Adorno, T.W., Prismas Crítica Cultural e Sociedade, São Paulo, Ática, 1998. Adorno, T.W., Dialéctica Negativa, Madrid, Taurus, 1975. Adorno, T.W., Théorie Esthétique, Paris, Klincksieck, 1989. Adorno, T.W., “Educação após Auschwitz”, in Theodor W. Adorno — Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Atica, 1986. Adorno, T.W., Palavras e Sinais, Petrópolis, Vozes, 1995. Adorno, T.W., Actualidad de la Filosofia, Barcelona, Paidós, 1991. Adorno, T.W., Minima Moralia, São Paulo, Ática, 1992. Adorno, T.W., Sobre la Metacritica de la Teoria del Conocimiento — Estudios sobre Husserl y las antinomias fenomenológicas, Venezuela, Monte Avila Editores, s.d. Adorno, T.W. e Horkheimer, M., Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1986. Amouroux, H., La vie des Français sous l’Occupation, Paris, Fayard, 1990. Anders, G., Kafka: pró e contra, São Paulo, Perspectiva, 1969.

O MITO DA RESISTÊNCIA

600

Anderson, P., Considerações sobre o marxismo ocidental, Porto, Edições Afrontamento, 1976. Anderson, P., A crise da crise do marxismo, São Paulo, Brasiliense, 1984. Anderson, P., “Modernidade e Revolução”, Cebrap, nº 14, fevereiro de 1986. Anderson, P. e Camiller P. (org.), Um Mapa da Esquerda na Europa Ocidental, Rio de Janeiro, Contraponto, 1996. Apel, K.-O., Transformação da Filosofia, São Paulo, Loyola, 2000, volumes I e II. Aragon, L., O Camponês de Paris, Rio de Janeiro, Imago, 1996. Arantes, P., Hegel — A Ordem do Tempo, São Paulo, Polis, 1981. Arantes, P., “Um Hegel errado, mas vivo”, in Revista IDE, nº 21, dezembro de 1991. Arantes, P., “Hegel no espelho do Dr. Lacan”, in Revista IDE, nº 22, 1982. Arantes, P., Um Departamento Francês de Ultramar — Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (Uma experiência nos anos 60), São Paulo, Paz e Terra, 1994. Arantes, P., O Fio da Meada — Uma conversa e quatro entrevistas sobre filosofia e vida nacional, São Paulo, Paz e Terra, 1996. Arantes, P., Ressentimento da Dialética Dialética e Experiência Intelectual em Hegel (Antigos Estudos sobre o ABC da Miséria Alemã), São Paulo, Paz e Terra, 1996. Aron, R., Chroniques de Guerre, Paris, Gallimard,1990. Aron, R., D’une sainte famille à l’autre, Paris, Gallimard, 1969. Aron, R., Histoire et Dialectique de la Violence, Paris, Gallimard, 1973. Aron, R., La sociologie allemande contemporaine, Paris, PUF, 1991. Aron, R., Les désillusions de la liberté, in Les Temps Modernes, nº 1, outubro de 1945. Aron, R., Marxismes Imaginaires, Paris, Gallimard, 1970. Aron, R., Mémoires, Paris, Julliard,1983, vol. I e II. Astier, E., De la chute à la libération de Paris, Paris, Gallimard, 1965. Azéma, J.-P., 1940 — L’Année Terrible, Paris, Editions du Seuil, 1990.

Bibliografia

601

Beaudelaire, C., Œuvres Complètes, Pléiade, Paris, Gallimard, 1975. Beauvoir, S., Journal de guerre, Paris, Gallimard, 1990. Beauvoir, S., La force de l’âge, Paris, Gallimard, 1960. Beauvoir, S., La force des choses, Paris, Gallimard, 1963, vol. I e II. Beauvoir, S., Les Mandarins, Paris, Gallimard, 1954, 2 volumes. Beauvoir, S., Lettres à Sartre, Paris, Gallimard, 1990. Beauvoir, S., Pour une morale de l’ambiguité, Paris, Gallimard, 1944. Beauvoir, S., Privilèges, Paris, Gallimard, 1955. Beauvoir, S., Le sang des autres, Paris, Gallimard, 1945. Beauvoir, S., “Entretiens avec Jean-Paul Sartre”, in La cérémonie des adieux, Paris, Gallimard, 1981. Beauvoir, S., L’Existentialisme et la sagesse des nations, Paris, Nagel, 1984. Benjamin, W., Origem do Drama Barroco Alemão, Brasiliense, 1984. Benjamin, W., W. Benjamin — Obras Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1987, vol. I. Benjamin, W., Charles Baudelaire, Paris, Payot, 1982. Bernardet, J.-C., Aquele rapaz, São Paulo, Brasiliense, 1990. Bloch, M., L’Etrange Défaite- Témoignage écrit en 1940, Paris, Editions Franc-Tireur, 1946. Bodei, R., “Estratégias de Individuação”, in Presença, nº 8, setembro de 1986. Bodei, R., La philosophie au XXe siècle, Paris, Flammarion, 1999. Bornheim, G., “A invenção do novo”, in Tempo e História, São Paulo, Companhia das Letras, 1992. Bornheim, G., Sartre: Metafísica e Existencialismo, São Paulo, Perspectiva, 1971. Boschetti, A., Sartre et Les Temps Modernes, Paris, Les Editions de Minuit, 1985.

O MITO DA RESISTÊNCIA

602

Burke, P., A Escola dos Annales (1929-1989) — A Revolução Francesa da Historiografia, São Paulo, Editora Unesp, 1991. Burnier, M-A., Le testament de Sartre, Paris, Olivier Orban, 1982. Burnier, M-A., Les existentialistes et la politique, Paris, Gallimard, 1966. Camus, A., Actuelles — Écrits Politiques, Paris, Gallimard, 1950. Camus, A., Actuelles, II, Paris, Gallimard, 1953. Camus, A., L’Homme révolté, Paris, Gallimard, 1951. Camus, A., La Peste, Paris, Gallimard, 1947. Candido, A., O Discurso e a Cidade, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1993. Candido, A., Recortes, São Paulo, Companhia das Letras, 1993. Cassou, J., “1848”, in Anatomie des Révolutions, Paris, NRF. Caute, D., Le Communisme et les Intellectuels Français, Paris, Gallimard, 1964. Caute, D., Les compagnons de route, Paris, Laffont, 1979. Céline, L-F., Voyage au bout de la nuit, Paris, Gallimard, 1952. Claudin, F., A Crise do Movimento Comunista, São Paulo, Global, 1986. Cohen-Solal, A., Sartre, Paris, Gallimard, 1985. Cohen-Solal, A., Paul Nizan, communiste impossible, Paris, Grasset, 1980. Cohen-Solal, A. (org.), Album Jean-Paul Sartre, Paris, Pléiade, Gallimard, 1991. Contat, M. e Rybalka, M., Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Contat, M. e Rybalka, M., Sartre-Bibliographie 1980-1992, Paris, CNRS Editions, 1993. Contat, M., “Les Philosophes sous l’Occupation”, in Le Monde, 28/06/1985. Contat, M. (org.), Pourquoi et comment Sartre a écrit Les Mots, Paris, Presses Universitaires de France, 1996. Davies, H., Sartre and Les Temps Modernes, Cambridge, Cambridge University Press, 1987.

Bibliografia

603

Defrasne, J., La gauche en France de 1789 à nos jours, Paris, PUF, 1972. Desanti, D., Les Staliniens (1944-1956) — Une expérience politique, Fayard, 1975. Desanti, D., “Le Sartre que je connais”, in Jeune Afrique, nº 205, novembro de 1964. Desanti, J-T., Un destin philosophique, Paris, Grasset et Fasquelle, 1982. Desanti, J.-T., Entrevista a Michel Contat, Le Monde, 2/7/1993. Descombes, V., Le Même et L’Autre Quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978), Paris, Les Editions de Minuit, 1979. Drummond de Andrade, C., Carta a Stalingrado, Obra Completa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1967. Faulkner, W., Œuvres Romanesques, Pléiade, Paris, Gallimard, 1977. Fejto, F., La Tragédie Hongroise, Editions Pierre Horay, 1956. Fiori, J.L. (org.), Globalização: O Fato e o Mito, Rio de Janeiro, ed. UERJ, 1998. Gagnebin, J-M., “Walter Benjamin ou a história aberta”, in W. Benjamin — Obras Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1987, vol. I. Genet, J., O Ateliê de Giacometti, São Paulo, Cosac & Naify, 2000. Gerassi, J., Jean Paul Sartre: Hated Conscience of His Century, Chicago, University of Chicago Press, 1989. Gerassi, J., Jean-Paul Sartre: Consciência odiada de seu século, Rio de Janeiro, Zahar, 1990. Gide, A., Journal 1889-1939, Pléiade, Paris, Gallimard, 1951. Gide, A., Journal 1839-1949, Pléiade, Paris, Gallimard, 1954. Gorz, A., Le Traître, Paris, Editions du Seuil, 1958. Gorz, A., Le socialisme difficile, Paris, Editions du Seuil, 1967. Gracq, J., Un Balcon en forêt, Paris, José Corti, 1958. Guérin, D., La lutte de classes sous la Première République, vols. I e II, Paris, Gallimard, 1968.

O MITO DA RESISTÊNCIA

604

Habermas, J., Martin Heidegger—L’oeuvre et l’engagement, Paris, Cerf, 1988. Habermas, J., “Rencontre de Sartre”, Entrevista, Les Temps Modernes, nº 539, junho de 1991. Habermas, J., Théorie et Pratique II, Paris, Payot, 1975. Habermas, J., Perfiles filosófico-políticos, Madrid, Taurus, 1975. Habermas, J., Le discours philosophique de la modernité, Paris, Gallimard, 1988. Habermas, J., “Um perfil filosófico-político”, Entrevista, Novos Estudos Cebrap , nº 18, Dossiê Habermas, setembro de 1987. Habermas, J., “La psique al termidor y el renacimiento de la subjetividad rebelde”, in Habermas y la modernidad, Madrid, Ediciones Cátedra, 1988. Hegel, G.W., F., Leçons sur l’histoire de la philosophie, Paris, Vrin, 1985. Hegel,G.W.F. , La phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier Montaigne, 1983, tradução de Jean Hyppolite, 2 volumes. Hegel,G.W.F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas, São Paulo, Loyola, volumes I e III, 1995. Heidegger, M., Carta sobre o humanismo, São Paulo, Pensadores, 1973. Heidegger, M., Ser e Tempo, Petrópolis, Vozes, 1989, Vol. 1. Heidegger, M., Ser e Tempo, Petrópolis, Vozes, 1993, Vol. 2. Hobsbawm, E., “Os intelectuais e o antifascismo”, História do Marxismo, vol.9, Paz e Terra, 1987. Hobsbawm, E., Era dos Extremos — O breve século XX (1914-1991), São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Hobsbawm, E., Pessoas Extraordinárias Resistência, Rebelião e Jazz, São Paulo, Paz e Terra, 1998. Horkheimer, M., Filosofia e Teoria Crítica, São Paulo, Pensadores, 1975. Horkheimer, M., Teoria Tradicional e Teoria Crítica, São Paulo, Pensadores, 1975.

Bibliografia

605

Horkheimer, M., Gesammelte Schriften, vol.17, Briefwechsel 1941-1948, Frankfurt, Fischer, 1996. Hugo, V., La Fin de Satan, Paris, Gallimard, 1984. Hugo, V., Les Misérables, Paris, Librairie Générale Française, 1985, vol. I, II e III. Husserl, E., A Idéia da Fenomenologia, Lisboa, Edições 70, 1986. Idt, G., “Les modèles d’ecriture dans Les Chemins de la Liberté”, in Études Sartriennes, I: Cahiers de Sémiotique Textuelle, n° 2, Paris X, 1984. Idt, G. (org.), Études Sartriennes, IV: Cahiers de Sémiotique Textuelle, n°18, Paris X, 1990. Jameson, F., Marxismo e Forma, São Paulo, Hucitec, 1985. Jameson, F., Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism, New Left Review, n° 146, 1984. Jameson, F., Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism, Duke University Press, 1991. Jameson, F., Pós-Modernismo — A lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Ática, 1996. Jameson, F., The Origins of a Style, New York, Columbia University Press, 1984. Jameson, F., The Selves in the texts: Sartre and Literary Criticism, in Wilcocks, R. (org.), Critical Essays on Jean-Paul Sartre, Boston, G.K. Wall, 1988. Jameson, F., “Periodizando os anos 60”, in Pós-Modernismo e Política (organização de Heloisa Buarque de Hollanda), Rio de Janeiro, Rocco, 1992. Jameson, F., “Reificação e utopia na cultura de massa”, in Crítica Marxista, vol.1, nº 1, Brasiliense, 1994. Jameson, F., O marxismo tardio — Adorno, ou a persistência da dialética, São Paulo, Unesp e Boitempo, 1996. Jameson, F., O Método Brecht, Petrópolis, Vozes, col. “Zero à Esquerda”, 1999. Jappe, A., Guy Debord, Petrópolis, Vozes, col. “Zero à Esquerda”, 1999. Jeanson, F., Le problème moral et la pensée de Sartre, Paris, Seuil, 1965.

O MITO DA RESISTÊNCIA

606

Jeanson, F., Sartre dans sa vie, Paris, Seuil, 1974. Joseph, G., Une si douce Occupation..., Paris, Editions Albin Michel, 1991. Judt, T., Le marxisme et la gauche française, Paris, Hachette, 1987. Kessel, J., L’Armée des ombres, Paris, Plon, 1990. Kriegel, A., Communismes au miroir français, Paris, Gallimard, 1974. Kojève, A., Introduction à la lecture de Hegel, Paris, Gallimard, 1947. Kojève, A., “Les conceptions hégéliennes”, in Hollier, D. (org.), Le Collège de Sociologie (1937-1939), Paris, Idées/Gallimard, 1979. Korsch, K., “La guerre et la révolution”, in Marxisme et contre-révolution, Paris, Seuil, 1975. Korsch, K., Marxisme et Philosophie, Paris, Editions de Minuit, 1964. Kurz, R., Os últimos combates, Petrópolis, Vozes, col. “Zero à Esquerda”, 1997. Kurz, R., “Até a última gota”, Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 24/08/97. Laborie, P., L’Opinion Française sous Vichy, Paris, Editions du Seuil, 1990. Lebrun, G., Sobre Kant, São Paulo, Iluminuras, 1993. Lebrun, G., “Sartre em seu tempo”, in Passeios ao léu, São Paulo, Brasiliense, 1983. Lebrun, G., “As Palavras ou os Preconceitos da Infância”, Discurso, nº 22, 1993. Lefebvre, H., “Question de génération”, Libération, 23-24 juin 1990, número especial sobre Sartre. Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, São Paulo, EDUSP, 1970. Lévy, B.-H., Le Siècle de Sartre, Paris, Grasset, 2000. Lheureux, D., Les Oubliés de la Résistance, Paris, Editions France-Empire, 1988. Lottman, H.R., La rive gauche, Paris, Seuil, 1981. Lukács, G., La Théorie du Roman, Paris, Gallimard, 1968. Lukács, G., A Teoria do Romance, São Paulo, Duas Cidades, 2000.

Bibliografia

607

Lukács, G., Historia y Consciencia de clase, Barcelona, Grijalbo, 1975. Lukács, G., “Le Roman”, in Ecrits de Moscou, Paris, Editions Sociales, 1974. Lukács, G., “Raconter ou Décrire?”, in Problèmes du réalisme, Paris, L’Arche, 1975. Lukács, G., “Contre le réalisme mal compris”, in Textes, Paris, Editions Sociales, 1985. Lukács, G., Existencialismo ou Marxismo?, São Paulo, Editora Ciências Humanas, 1979. Lukács, G., El asalto a la razón, Barcelona, Grijalbo, 1972. Malraux, A., L’Espoir, Paris, Gallimard, 1937. Malraux, A., Oeuvres Complètes, Pléiade, Gallimard, 1989. Marcuse, H., L’Existentialisme — A propos de L’Être et le Néant de Sartre, in Culture et Société, Paris, Les Editions de Minuit, 1970. Marcuse, H., Razão e Revolução, São Paulo, Paz e Terra, 1978. Marcuse, H., Materialismo Histórico e Existência, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968. Marcuse, H., Philosophie et Révolution, Paris, Editions Denoèl, 1969. Marx, K., e Engels, F., Manifesto do Partido Comunista, in Obras Escolhidas, Lisboa, Avante, vol.1, 1982. Marx, K., e Engels, F., Sur la Révolution Française, Paris, Editions Sociales, 1985. Marx, K., Contribution a la Critica de la Filosofia del Derecho de Hegel, Buenos Aires, Editiones Nuevas, 1968. Marx, K., Manuscritos econômicos-filosóficos, São Paulo, Pensadores, 1974. Marx, K., O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Pensadores, 1974. Marx, K., Para a Crítica da Economia Política, São Paulo, Pensadores, 1974. Marx, K., El Capital, vol.1, México, Fondo de Cultura Económica, 1946. Marx, K., Oeuvres, vol.III (“Philosophie”), Pléiade, Paris, Gallimard, 1982. Merleau-Ponty, M., Eloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 1960.

O MITO DA RESISTÊNCIA

608

Merleau-Ponty, M., Em torno do marxismo, São Paulo, Pensadores, 1975. Merleau-Ponty, M., Humanisme et Terreur, Paris, Gallimard, 1980. Merleau-Ponty, M., Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 1964. Merleau-Ponty, M., Les Aventures de la Dialectique, Paris, Gallimard, 1955. Merleau-Ponty, M., O grande racionalismo, São Paulo, Pensadores, 1975. Merleau-Ponty, M., Sens et Non-Sens, Paris, Nagel, 1966. Merleau-Ponty, M., Signes, Paris, Gallimard, 1955. Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de la Perception, Paris, Gallimard, 1945. Merleau-Ponty, M., “Sartre — L’Imagination”, in Journal de Psychologie normale et pathologique, vol.33, nº 9-10, novembre-décembre 1936. Merleau-Ponty, M., La querelle de l’Existentialisme, in Les Temps Modernes, nº 2, dezembro de 1947. Merleau-Ponty, M., La Fenomenologia y las Ciencias del Hombre, Buenos Aires, Editorial Nova, 1969. Merleau-Ponty, M., Résumés de Cours — Collège de France (1952-1960), Paris, Gallimard, 1968. Merleau-Ponty, M., “Les Cahiers de la Pléiade”, in Les Temps Modernes, nº 27, dezembro de 1947. Michel, H., Histoire de la Résistance, Paris, PUF, 1958. Michel, H., Les courants de pensée de la Résistance, Paris, PUF, 1962. Michel, H. e Mirkine-Guetzévitch, B., Les idées politiques et sociales de la Résistance, Paris, PUF, 1954. Michelet, J., Histoire de la Révolution Française, Pléiade, Gallimard, 1952, 2 volumes. Müller, M., “A má-fé e a teoria da negação em Sartre”, in Manuscrito, vol.V, nº 2, 1982. Nizan, P., La Conspiration, Paris, Gallimard, 1938. Normand, S., Liberté Ship, Paris, Nagel, 1945.

Bibliografia

609

Oehler, D., “Art Névrose, análise sócio-psicológica do fracasso da revolução em Flaubert e Baudelaire”, in Novos Estudos Cebrap, n° 32, março de 1992. Oehler, D., Quadros Parisienses — Estética antiburguesa em Baudelaire, Daumier e Heine (1830-1848), São Paulo, Companhia da Letras, 1997. Oehler, D., Le spleen contre l’oubli, Juin 1848 — Baudelaire, Flaubert, Heine, Herzen, Paris, Payot, 1996. Oehler, D., Dolf Oehler, O Velho Mundo Desce aos Infernos Auto-análise da modernidade após o trauma de Junho de 1848 em Paris, São Paulo, Companhia da Letras, 1999. Poster, M., Existential Marxism in Postwar France, Princeton, Princeton University Press, 1977. Queneau, R., Le dimanche de la vie, Paris, Gallimard, 1952. Renaut, A., Sartre, le dernier philosophe, Paris, Grasset, 1993. Rochlitz, R., De la philosophie comme critique littéraire, in Revue D’Esthétique, número especial sobre Walter Benjamin, 1990. Rosenfeld, A., “Jean-Paul Sartre: Reflexões sobre a Questão Judaica”, Texto/Contexto II, Editora da Unicamp, Edusp, Perspectiva, 1993. Roudinesco, E., História da Psicanálise na França, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, vol. 2. Saint-Exupéry, A., Pilote de Guerre, Paris, Gallimard, 1942. Saint-Exupéry, A., Terre des hommes, Paris, Gallimard, 1939. Salinas, L. R., “A Liberdade como Apocalipse”, in Revista de Cultura e Política, nº 2, agosto/outubro de 1980, São Paulo, Cedec/Paz e Terra. Salinas, L. R., “Questão de Método”, in Epistemologia, Metodologia — Ciências Humanas em Debate, série Cadernos PUC, Educ, 1988. Sartre, J-P. e Benny Lévy, L’Espoir Maintenant, Paris, Verdier, 1991. Sartre, J-P., A propos de l’existentialisme: Mise au point, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., Baudelaire, Paris, Gallimard, 1975. Sartre, J-P., Cahiers pour une morale, Paris, Gallimard, 1983.

O MITO DA RESISTÊNCIA

610

Sartre, J-P., Les carnets de la drôle de guerre, Paris, Gallimard, 1983. Sartre, J-P., Carnets de la drôle de guerre, Paris, Gallimard, 1995. Sartre, J-P., Sartre no Brasil — A Conferência de Araraquara, São Paulo, UNESP-Paz e Terra, 1986. Sartre, J-P., Correspondência com Paulhan (1937-1940), material inédito. Sartre, J-P., Joseph Le Bon, roteiro de um filme sobre a Revolução Francesa, inédito. Sartre, J-P., “The Chances of Peace”, in The Nation, dezembro de 1950; “Les Chances de la Paix”, versão integral do manuscrito original, inédito. Sartre, J-P., Critique de la raison dialectique, Paris, Gallimard, 1960. Sartre, J-P., Critique de la Raison dialectique, Paris, Gallimard, 1985, nova edição revista e comentada por Arlette Elkaïm Sartre. Sartre, J-P., Critique de la raison dialectique II, Paris, Gallimard, 1985. Sartre, J-P., Dullin et l’Espagne, in Combat, 8/11/1944. Sartre, J-P., “Écrire pour son époque”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., Écrits de Jeunesse, Paris, Gallimard, 1990. Sartre, J-P., Entretiens sur la politique, Paris, Gallimard, 1949. Sartre, J-P., Entrevista, Mondes Nouveaux, 21 de dezembro de 1944, nº 2. Sartre, J-P., Entrevista, Carrefour, 9 de setembro de 1944. Sartre, J-P., Esquisse d’une théorie des émotions, Paris, Hermann, 1965. Sartre, J-P., Gavi, Ph., Victor P., On a raison de se révolter, Paris, Gallimard, 1974. Sartre, J-P., Huis Clos, Paris, Gallimard, 1947. Sartre, J-P., Il nous faux la paix pour refaire le monde, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “Jean-Paul Sartre répond à ses détracteurs”, in Audry, C. (org.), Pour et contre l’Existentialisme, Paris, Editions Atlas, 1948.

Bibliografia

611

Sartre, J-P., L’ Existentialisme est un Humanisme, Paris, Nagel, 1970. Sartre, J-P., L’affaire Henri Martin, Paris, Gallimard, 1953. Sartre, J-P., L’engrenage, Paris, Nagel, 1962. Sartre, J-P., “L’Espoir fait homme”, in Les Lettres Françaises, nº 18, juillet 1944 (número clandestino, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). Sartre, J-P., L’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 1943. Sartre, J-P., L’Idiot de la famille, Paris, Gallimard, 1988, vols. I, II e III. Sartre, J-P., L’Imaginaire, Paris, Gallimard, 1986. Sartre, J-P., L’imagination, Paris, PUF, 1936. Sartre, J-P., “La Conférence de Rome”, in Les Temps Modernes, março de 1993. Sartre, J-P., “La guerre et la paix”, in Franchise (Cahiers de la France retrouvée),1946. Sartre, J-P., “La Libération de Paris: Une semaine d’Apocalypse”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., La Littérature, cette liberté, in Les Lettres Françaises, nº 15, abril de 1944 (número clandestino, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). Sartre, J-P., Drieu la Rochelle ou la haine de soi, in Les Lettres Françaises, nº 6, abril de 1943 (número clandestino, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). Sartre, J-P., La mort dans l’âme-Journal de Guerre, in Oeuvres romanesques, Pléiade, Gallimard, 1981. Sartre, J-P., “Nouvelle littérature en France”, in Oeuvres romanesques, Pléiade, Gallimard, 1981. Sartre, J-P., La Nausée, Oeuvres romanesques, Pléiade, Gallimard, 1981. Sartre, J-P., “La responsabilité de l’écrivain”, in Les Conférences de l’Unesco, Paris, Fontaine, 1947. Sartre. J-P., “Pour un théâtre de situations”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “L’imagination au pouvoir Un entretien avec Daniel Cohn-Bendit”, in Le Nouvel Observateur, 20 de maio de 1968.

O MITO DA RESISTÊNCIA

612

Sartre, J-P., “L’intellectuel face à la révolution”, entrevista, Le Point, janeiro de 1968. Sartre, J-P., “La Théorie de l’Etat dans la pensée moderne française”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., La Transcendance de l’Ego, Paris, Vrin, 1985. Sartre, J-P., Les chemins de la liberté, Oeuvres romanesques, Pléiade, Gallimard, 1981. Sartre, J-P., “Le processus historique”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “Légende de la Vérité”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “Brecht et les classiques”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., Les Jeux sont faits, Paris, Nagel, 1947. Sartre, J-P., Les mains sales, Paris, Gallimard, 1948. Sartre, J-P., Les Mots, Paris, Gallimard, 1964. Sartre, J-P., Les Mouches, Paris, Gallimard, 1947. Sartre, J-P., Lettres au Castor, Paris, Gallimard, 1983, vol. 1 e 2. Sartre, J-P., Mallarmé—La lucidité et sa face d’ombre, Paris, Gallimard, 1986. Sartre, J-P., “Moby Dick d’Herman Melville”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “De la vocation de l’écrivain”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., “Entretien de Sartre avec Francis Jeanson”, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., Morts sans sépulture, Paris, Gallimard, 1947. Sartre, J-P., “Que peut la littérature?”, Paris, col. “L’Inédit”, 10/18, 1965. Sartre, J-P., Réflexions sur la Question Juive, Paris, Gallimard, 1954. Sartre, J-P., Saint Genet - Comédien et martyr, Paris, Gallimard, 1952. Sartre, J-P., Kean, Paris, Gallimard, 1954.

Bibliografia

613

Sartre, J-P., Sartre par lui-même— Un Film réalisé par Alexandre Astruc et Michel Contat, Paris, Gallimard, 1977. Sartre, J-P., Sculptures à n dimensions, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P., Situations, I, Paris, Gallimard, 1947. Sartre, J-P., Situations, II, Paris, Gallimard, 1948. Sartre, J-P., Situations, III, Paris, Gallimard, 1949. Sartre, J-P., Situations, IV, Paris, Gallimard, 1964. Sartre, J-P., Situations, V, Paris, Gallimard, 1964. Sartre, J-P., Situations, VI, Paris, Gallimard, 1964. Sartre, J-P., Situations, VII, Paris, Gallimard, 1965. Sartre, J-P., Situations, VIII, Paris, Gallimard, 1972. Sartre, J-P., Situations, IX, Paris, Gallimard, 1972. Sartre, J-P., Situations, X, Paris, Gallimard, 1976. Sartre, J-P., Un Film pour l’après-guerre, in Les Lettres Françaises, nº 15, avril 1944 (número clandestino, arquivo da Biblioteca Nacional de Paris). Sartre, J-P., “Un Promeneur dans Paris insurgé”, série de sete reportagens sobre a Libertação de Paris, jornal Combat: 28/08/44, 29/08/44, 30/08/44, 31/08/44, 1/09/44, 2/09/44, 4/09/44. Sartre, J-P., Vérité et Existence, Paris, Gallimard, 1989. Sartre, J-P., Visages, in Les Écrits de Sartre, Paris, Gallimard, 1970. Sartre, J-P.,”Emissions radiophoniques — La Tribune des Temps Modernes”, série de debates coordenados por Sartre em 1947, com a participação de Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Pontalis e outros (inédito). Sartre, J-P., “Ideologia y Revolución”, in Lunes de Revolución, n° 51, março de 1960; número especial intitulado “Sartre visita a Cuba”, publicado em La Habana. Sartre, J-P., Présentation des Temps Modernes, Les Temps Modernes, nº 1, outubro de 1945.

O MITO DA RESISTÊNCIA

614

Sartre, J-P., “Merleau-Ponty”, in Revue Internationale de Philosophie, nº 152-153, 1985. Sartre, J-P., Questão de Método, Pensadores , São Paulo, Abril, 1973. Schwarz, R., “Existencialismo e romance histórico (Malraux)”, in A Sereia e o Desconfiado, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. Schwarz, R., Que horas são?, São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Schwarz, R., Seqüências Brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Semprun, J., Le Grand Voyage, Paris, Gallimard, 1963. Semprun, J., L’écriture ou la vie, Paris, Gallimard, 1994. Sève, L., La philosophie française contemporaine et sa genèse de 1789 à nos jours, Paris, Editions Sociales, 1962. Sicard, M., Essais sur Sartre — Entretiens avec Sartre , Paris, Galilée, 1989. Sirinelli, J-F., Génération intellectuelle, Paris, Fayard, 1988. Sirinelli, J-F., Deux intellectuels dans le siècle, Sartre et Aron, Paris, Fayard, 1995. Starobinski, J., 1789: Les Emblèmes de la Raison, Paris, Flammarion, 1979. Starobinski, J., A Invenção da Liberdade, São Paulo, Editora Unesp, 1994. Stieg G., Karl Kraus et Les Derniers jours de l’humanité, in Vienne 1880-1938 — Apocalypse Joyeuse, Editions du Centre Pompidou, 1986. Thompson, E.P., A Miséria da Teoria, Zahar, 1981. Torres Filho, R.R., Ensaios de Filosofia Ilustrada, São Paulo, Brasiliense, 1987. Torres Filho, R.R., O Espírito e a Letra, São Paulo, Ática, 1975. Touchard, J., La gauche en France depuis 1900, Paris, Seuil, 1977. Valéry, P., Monsieur Teste, in Oeuvres, vol.II, Pléiade, Paris, Gallimard, 1960. Vian, B., L’Ecume des jours, Paris, J-J. Pauvert, 1963. Wahl, J., Vers le Concret, Paris, Vrin, 1932.

Bibliografia

615

Wahl, J., “Essai sur le néant d’un problème — sur les pages 37-84 de L’Être et le Néant de J. P. Sartre”, in Deucalion, nº 1, 1946. Whitford, M., Merleau-Ponty’s critique of Sartre’s philosophy, French Forum, Publishers,1982. * Alguns dos Periódicos Citados Les Lettres françaises, números clandestinos durante a Ocupação, acervo da Bibliothèque Nationale de Paris. Combat, números clandestinos durante a Ocupação, acervo da Bibliothèque Nationale de Paris. Présence Francophone — Des usages de Sartre, Québec, nº 35, 1989. Les Temps Modernes, nos 531-533, outubro/dezembro de 1990, número especial intitulado “Témoins de Sartre”, 2 volumes. Magazine Littéraire, nº 282, novembro de 1990, número especial intitulado “Sartre dans tous ses écrits”. Libération, 23-24 de junho de 1990, número especial sobre Sartre. Magazine Littéraire, nº 320, abril de 1994, número especial intitulado “L’Existentialisme, de Kierkegaard à Saint-Germain-des-Prés”.