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8/3/2019 Aníbal Quijano - Romper com o eurocentrismo - Entrevista a Aníbal Quijano http://slidepdf.com/reader/full/anibal-quijano-romper-com-o-eurocentrismo-entrevista-a-anibal-quijano 1/10 Santiago, 11 de xullo de 2006 Entrevista a Aníbal Quijano “Na América Latina a precarização e a flexibilização do trabalho foram muito mais longe que nos países ‘centrais’” Jorge Pereira Filho - Brasil de fato Na imposição global do "neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do estado por parte das corporações globais e de seu Bloco Imperial Global, a erosão da autonomia dos Estados menos democráticos e menos nacionais é contínua. Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político e histórico, a proposta da Terceira Internacional de que todos os países submetidos ao imperialismo tiveram "burguesias nacionais" com as quais os dominados/explorados/reprimidos tinham que fazer alianças porque supostamente havia um terreno comum de interesses diante da dominação imperialista. A avaliação é do sociólogo peruano Aníbal Quijano, um dos principais investigadores dos processos sociais da América Latina, professor da Universidade de San Marcos. Para ele, a construção de uma sociedade mais justa no continente passa, necessariamente, por uma superação na própria esquerda de uma visão eurocêntrica. "A derrota mundial entre meados dos anos 70 e final dos anos 80 no século XX foi, antes de tudo, uma conseqüência do domínio do eurocentrismo", diz o sociólogo nesta entrevista concedida ao Brasil de Fato em que também analisa a situação do movimento indígena na América Latina, sobretudo no contexto da vitória de Evo Morales na Bolívia. Jorge Pereira: Por que o senhor entende que a questão da identidade, na América Latina, é um projeto histórico aberto e heterogêno, como escreveu em um artigo? Aníbal Quijano: Essa é uma das conclusões de um complexo argumento teórico e histórico que está em debate desde mais de uma década e que procurei expor em uma apertada síntese no artigo mencionado, quando escrevi: "É pertinente assinalar, contra todo este pano de fundo histórico e atual, que a questão de identidade na America Latina é, mais do que nunca, um projeto histórico aberto e heterogêneo, não só, e talvez não tanto, uma lealdade com a memória e com o passado. Porque essa história permitiu ver que, na verdade, são muitas memórias e muitos Aníbal Quijano: “O "nacionalismo" dominou virtualmente todo o debate das esquerdas na América Latina durante o Século XX, com uma associação puramente ideológica com o "socialismo", sobretudo porque ambas as vertentes buscavam o controle do mítico Estado-Nação, precisamente em países nos quais, como obviamente nos "andinos", a colonialidade do poder havia feito historicamente inviável o projeto liberal/ eurocêntrico de um moderno estado-nação”.

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Santiago, 11 de xullo de 2006

Entrevista a Aníbal Quijano

“Na América Latina a precarização e a flexibilização dotrabalho foram muito mais longe que nos países ‘centrais’”

Jorge Pereira Filho -Brasil de fato

Na imposição global do "neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial docontrole do trabalho e do estado por parte das corporações globais e de seu BlocoImperial Global, a erosão da autonomia dos Estados menos democráticos e menosnacionais é contínua. Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político ehistórico, a proposta da Terceira Internacional de que todos os países submetidosao imperialismo tiveram "burguesias nacionais" com as quais osdominados/explorados/reprimidos tinham que fazer alianças porque supostamentehavia um terreno comum de interesses diante da dominação imperialista.

A avaliação é do sociólogo peruano AníbalQuijano, um dos principais investigadores dosprocessos sociais da América Latina, professorda Universidade de San Marcos. Para ele, aconstrução de uma sociedade mais justa nocontinente passa, necessariamente, por umasuperação na própria esquerda de uma visãoeurocêntrica. "A derrota mundial entre meadosdos anos 70 e final dos anos 80 no século XXfoi, antes de tudo, uma conseqüência dodomínio do eurocentrismo", diz o sociólogonesta entrevista concedida ao Brasil de Fatoem que também analisa a situação domovimento indígena na América Latina,sobretudo no contexto da vitória de EvoMorales na Bolívia.

Jorge Pereira: Por que o senhor entende quea questão da identidade, na América Latina, éum projeto histórico aberto e heterogêno,como escreveu em um artigo?

Aníbal Quijano: Essa é uma das conclusõesde um complexo argumento teórico e históricoque está em debate desde mais de umadécada e que procurei expor em uma apertadasíntese no artigo mencionado, quando escrevi:"É pertinente assinalar, contra todo este panode fundo histórico e atual, que a questão deidentidade na America Latina é, mais do quenunca, um projeto histórico aberto eheterogêneo, não só, e talvez não tanto, umalealdade com a memória e com o passado.Porque essa história permitiu ver que, naverdade, são muitas memórias e muitos

Aníbal Quijano: “O"nacionalismo" dominouvirtualmente todo o debate dasesquerdas na América Latinadurante o Século XX, com umaassociação puramente ideológicacom o "socialismo", sobretudoporque ambas as vertentesbuscavam o controle do míticoEstado-Nação, precisamente empaíses nos quais, comoobviamente nos "andinos", acolonialidade do poder haviafeito historicamente inviável oprojeto liberal/ eurocêntrico deum moderno estado-nação”.

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Pereira: Desde os anos 90, os movimentos indígenas, sobretudo nos Andes,ganharam força, derrubaram governos e impulsionaram mudanças no poder. Quaisas semelhanças entre esses movimentos da Bolívia, Peru e Equador? O que pensada atualidade da proposta do Estado plurinacional e pluriétnico?

Quijano: Primeiro, quero chamar a atenção sobre as dificuldades de olhar ou depensar os "movimentos indígenas" como se se tratassem de populaçõeshomegeneamente identificadas. Segundo, o Equador é o único lugar onde a virtualtotalidade de todas as "identidades" ou "etnicidades" "indígenas" conseguiramconformar uma organização comum, sem prejuízo de manter as própriasparticulares. É também o "movimento indígena" que mais cedo chegou à idéia deque a liberação da colonialidade do poder não consistiria na destruição oueliminação dos outros agentes e identidades do poder, e sim na erradicação dasrelações sociais materiais e intersubjetivas do padrão de poder e a produção de umnovo mundo histórico intercultural e de uma autoridade política (pode ser o Estado)comum, portanto, intercultural e internacional, mais que multicultural oumultinacional. O projeto de uma Universidade Indígena InterCultural e de seuInstituto de Investigações Interculturais é um dos claros testemunhos destaproposta, apesar de que seus desenvolvimento tenha sido, até agora, mais lento eirregular.

Depois de frustradas, por apressadas e equivocadas, alianças políticas que levarama alguns líderes do movimento a formar parte do governo do Estado central, sob ocomando do coronel Gutiérrez - que logo se revelou como agente da colonialidadedo poder -, divisões e debates ásperos abriram um período de grave crise naunidade e na organização do movimento.

Entretanto, está em curso um claro processo de renovação organizacional e derelegitimação da nova liderança tanto dentro da população "indígena", como emrelação a agentes sociais de outras identificações. Isso não permitiu ao movimentoindígena equatoriano voltar a ser o principal agente e representante político-cultural da população popular equatoriana, até o ponto de ser o condutor do atualmovimento popular que conseguiu bloquear e impedir a aprovação do Tratado deLivre Comércio (TLC) entre Equador e Estados Unidos.

Sem dúvida, logo estará dentro do movimento indígena equatoriano, se já nãoestá, o debate em torno do avanço em direção ao governo do Estado. E, nessecaso, as questões da interculturalidade e da internacionalidade do Estado, suasformas de apresentação e de organização institucional para a prática de ambas aspropostas, nos convocarão a todos na América Latina.

Pereira: E na Bolívia?

Quijano: No caso da Bolívia, não ocorreu um processo semelhante. Os que seauto-identificam como "indígenas" não conseguiram produzir uma organizaçãocomum, nem propostas culturais e políticas comuns. O Movimento ao Socialismo(MAS) não se formou nem se desenvolveu como "movimento indígena", e sim comoorganização sindical, primeiro, e política, depois, ainda que a população que ointegra começando por seu principal líder, Evo Morales, seja identificada ouinclusive possa autoidentificar-se como "indígena", segundo a classificação socialfundante da colonialidade do poder, ou seja, em termos de "raça".

Entretanto, a Bolívia é o primeiro país latino-americano no qual os "indígenas" (emtermos já não só "raciais", mas antes de tudo "culturais") terminaram sendohegemônicos em um movimento amplo que conseguiu assumir, por votaçãomajoritária da população, o governo do Estado Central do país.

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Pereira: E por que isso ocorreu justamente ali?

Quijano: Isso abre à investigação e ao debate um conjunto complexo de questões.A primeira e óbvia é se Evo Morales e o MAS seriam o que são se tivessem seapresentado, desde o primeiro momento, como um "movimento indígena", em vezde formar-se e de se desenvolver como um movimento político "popular" (isto é,pluri-social e pluriétnico), cuja meta histórica seria o socialismo. Evo Morales éaymará, mas em momento algum apareceu como o dirigente aymará de maiorautoridade e reconhecimento. Felipe Quishpe, apelidado El Malqu, esteve - e talvezainda esteja - mais perto desse lugar e desse papel. E enquanto que para umaparte influente da inteligência e da liderança política aymará, o projeto centralaymara é o restabelecimento do Collasuyo (nome do âmbito neohistórico aymarádentro do Tawantinsuyo ou "Império Inca"), para o atual governo do MAS o projetopolítico central é, em parte, o estabelecimento de um Estado multicultural emultinacional. Ou seja, a redistribuição da representação política de todas as"culturas" e/ou "nações" no mesmo Estado.

Essa democratização das condições e limites da dominação política, se tiver êxito,implicaria um processo peculiar de des/colonização do Estado e abrirá, sem dúvida,questões cruciais no debate boliviano, latino-americano e mundial. Especialmenteacerca de quais poderiam ser as formas de representação multinacional emulticultural e quais as respectivas formas de institucionalização no novo Estado.

Como nenhum "Movimento Indígena" unificado e organizado esteve debatendoaquelas questões durante o processo que levou o MAS ao governo do Estado, oindispensável debate está apenas começando. E essas discussões, sem dúvida,serão algumas das mais importantes áreas do conflito político durante e depois daAssembléia Constituinte. Fundamentalmente, as opções em debate poderiam ser:

a) Se o "multicultural" e o "multinacional" do Estado consistiriam na idéia deindivíduos de todas as várias "culturas" e/ou "nações" terem lugar e papel nogoverno do Estado;

b) se tais papéis seriam distribuídos entre indivíduos "indígenas",proporcionalmente à magnitude de cada uma das "identidades", mas em um Estadocom a mesma estrutura institucional que o atual, ou seja, sua conhecida erespectiva "divisão de poderes";

c) se cada uma das populações que reivindicam identidade diferenciada e própriaterão, como já estão reivindicando, autonomia territorial, política e jurídica e

d) se os organismos constituídos pelas populações pluriidentitárias, em seusprincipais momentos das lutas dos últimos anos, por exemplo, a Federação deJuntas Vecinais de El Alto, a Coordenadora da Água e outros equivalentes tambémformarão parte de um novo universo institucional de autoridade coletiva e pública,se preferir, se um novo Estado.

Pereira: E qual a relação do projeto do MAS com uma sociedade socialista naBolívia?

Quijano: Ainda que o termo socialismo esteja inscrito no nome mesmo daorganização política governante (o MAS), o vice-presidente, Alvaro García Linera,sustenta que, na Bolívia, não estão dadas as condições para tratar de ir agora em

direção ao socialismo, pois não existe nesse país uma classe operária ampla, muitomenos majoritária.

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García Linera propõe ir mais a um "capitalismo andino-amazônico".Fundamentalmente, essa fórmula pareceu se referir, de um lado, ao controleestatal de uma parte maior da renda produzida pela produção mercantil do gás e dopetróleo, como resultaria da recente nacionalização das respectivas jazidas, pararedistribuí-la entre as comunidades, povoados, pequenas e médias empresas eserviços públicos.

Essa política poderia implicar uma relativa desconcentração do controle do trabalho,de seus recursos e de seus produtos. Mas, do outro lado, seria mantido o controleprivado-empresarial do restante da acumulação capitalista, atualmente em mãos,sobretudo, da burguesia de Santa Cruz, Tarija e outros centros menores, associada

já ao capital global. Não está ainda esclarecida a relação entre ambas as formas deadmnistração do capital.

Os conflitos e as associações serão, provavelmente, discutidos e negociados naAssembléia Constituinte e no Referendo que também foi acordado para resolver asquestões das autonomias.

As burguesias regionales reivindicam, obviamente, o controle autônomo de suasrespectivas regiões (sobretudo Santa Cruz e Tarija, onde estão as reservas dehidrocarbonatos, a mais moderna agricultura comercial e algumas indústrias), masas "identidades indígenas" demandam autonomia territorial por questões culturais e

jurídico/políticas.

A próxima história permitirá contestar uma crucial e ineludível questão: Aredistribuição multicultural e multinacional do controle do Estado pode ocorrerseparadamente da redistribuição do controle de trabalho, de seus recursos e deseus produtos e sem mudanzas igualmente profundas nos outros âmbitos básicosdo padrão de poder?

Pereira: E o movimento indígena no Peru?

Quijano: Bem, nesse caso, a maior parte da população que "racialmente" éconsiderada "índia" ou "indígena" não está incorporada, nem parece até aquiinteressada em entrar em nenhum "movimento indígena" das mesmas dimensões eimpacto que em outros países em referência. A proposta teórica* para explicar essadiferença é que, sobretudo depois de 1945, ocorreu uma vasta "desindianização" noprocesso de urbanização da sociedade peruana, no contexto da migraçãorural/urbana, da crise do "Estado Oligárquico" e da bancarrota de suas duasexpressões de dominação cultural mais afirmadas: a "cultura gamonal-andina" nasrelações entre o senhorio proprietário de terra e os "índios", sobretudo no campo,mas também nas cidades da serra, e da "cultura senhorial-crioula" nas relaçõesentre a burguesia senhorial, os grupos de classe média educados por aquela, e os"negros", "mestiços" e "índios", nas cidades da Costa.

Pereira: E o que isso gerou?

Quijano: Esse processo de "desindianização" foi abrupto, masivo e abarcou todo opaís e produziu uma população, sobretudo urbana, ainda que também rural, aquem dentro da "cultura senhorial-crioula" se impôs o nome de "cholo". A"desindianização" produziu, assim, uma "cholificação" da população. Essapopulação identificada pelos outros como "chola" foi, sem dúvida, o agente principalde mudança da sociedade e do poder no Peru, embora primeiro tenha sido contidae derrotada políticamente, começando com os sucessivos regimes militares que seautodenominaram "revolucionários", em boa parte cooptada depois ao alteradopadrão de poder pós-oligárquico, especialmente desde a reprivatização do controle

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do Estado e a profunda reconcentração do controle dos recursos de produção e dosinvestimentos, que começou com a funesta ditadura fuji-montesinista.

Uma ampla parte da população que não se desindianizou foi vítima da "guerra suja"entre o terrorismo de estado e o do Sendero Luminoso, entre 1980 e 2000.Segundo o informe da Comissão da Verdade e Reconciliação, a maioria dos mais de60 mil assassinados nesse período eram, precisamente, camponeses "indígenas".Não faltam agora tentativas procedentes de alguns grupos da "ex-esquerda" paraformar um "movimento indígena" e até se montou por conta da "primeira dama" dogoverno Toledo um maquinário burocrático, já acusado de corrupção fiscal, paramanipular alguns poucos e pragmáticos grupos com um discurso "originário".

Os únicos grupos que de verdade se movem nessa direção são as comunidades daSelva Amazônica, onde começou há umas três décadas, com a formação daCoordinadora de Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (Coica), toda ahistória recente dos movimentos indígenas da área andina-amazônica **.

Mais recentemente, sob os impactos dos processos da Bolívia e do Equador,algumas comunidades camponesas, sobretudo aquelas que enfrentam ascorporações mineiras multinacionais, começaram a identificar-se como "indígenas"e a se estabelecerem como novos movimentos políticos identitários, seguindo,principalmente, o exemplo do Equador.

De todo modo, o mapa político da América Latina, tanto em termos territoriaiscomo "culturais" ou "étnicos", está mudando notoriamente. Mas a questão centraldestes preocessos é a crise da Colonialidade do Poder. Historicamente fundadonestas terras, também aqui está entrando em seu momento de crise mais radical.

Pereira: Na América Latina, há uma safra de presidentes de origem no movimentosocial ou de orientação de esquerda e nacionalista que chegaram ao poder. Nogoverno, essas lideranças têm mantido uma política econômica de clara orientaçãoneoliberal. Você acredita que isso tem relação com o fato de que, cada vez mais, osEstados de nações subdesenvolvidas terem se transformados em estruturas deadministração local dos interesses do capital mundial?

Quijano: No padrão atual de poder, um de cujos eixos centrais é o capitalismo, aidéia de um interesse social chamado "nacional" corresponde à existência de umasociedade nacional dominada por uma burguesia nacional, com um estado nacional.Ou seja, a uma estrutura de poder configurada segundo essas condições. NaAmérica Latina, antes da chamada Revolução Mexicana, essas característicascorrespondiam somente ao Chile, desde a República Portaliana, desde a segundadécada do Século XIX. Tal Estado Nacional Oligárquico foi consolidado com oextermínio genocida dos "mapuches" - denominação imposta a uma população de"índios" de diversas origens.

Os movimentos sociais, sobretudo das classes médias e do proletariado mineirorumo a um Moderno Estado-Nação que se desenvolviam desde os anos 20 doSéculo XX, culminaram nos anos 1930 com o Governo de Frente Popular, queimplicou numa espécie pacto político entre a burguesia chilena e os partidospolíticos dos trabalhadores e das classes médias, para consolidar as normas einstituições da democracia liberal/burguesa.

Foi com elas que os trabalhadores e seus associdados nas classes médias chegaramcom Allende ao governo do Estado em 1971, mas foi também sua lealdade comelas que facilitou sua derrota a um sangrento golpe militar em 1973. Sob oPinochetismo, levou-se a cabo uma contra-revolução. Uma ditadura sangrenta foiimposta enquanto eram removidas e alteradas as bases sociais mais corroídas

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deste Estado para adequá-las à neoliberalização do capitalismo, que foiprecisamente iniciado ali e nesse momento, e às necessidades da globalização, ouseja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do Estado.

Mas isso produziu também uma nova sociedade capitalista nacional e seurespectivo novo estado-nação.

Pereira: E esse processo foi localizado?

Quijano: Essa condição é o que explica que o que ocorre hoje com o capitalismono Chile, mas não ocorrera na Bolívia, apesar de que também ali ditaduras militaresferozmente represivas atuaram desde há mais tempo e durante os mesmos anos,ou mais tarde na Argentina ou Uruguai. Também não ocorrera em um país como oPeru, de longe melhor dotado em termos de recursos, mas cuja burguesia nãodeixou de praticar a rapina desde o começo mesmo da República, em associaçãocom o capital imperialista.

Por isso hoje, como ocorre na Bolívia, a demanda das populações que,precisamente, foram vítimas de Estados não-nacionais e não-democráticos não émais "nacionalismo" e mais Estado, mas sim, antes de tudo, outro Estado, ou seja,des/colonializar esse Estado, que é a única forma de democratizá-lo. Mas se esseprocesso chegar a ser vitorioso, o novo estado não poderá ser um Estado-nação ouum Estado nacional, e sim um multinacional, ou melhor, internacional.

Nos demais países, processos que iam nessa direção foram derrotados, como noBrasil desde o golpe de 1964 ou no Peru desde 1990. Na imposição global do"neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e doestado por parte das corporações globais e de seu Bloco Imperial Global, a erosãoda autonomia dos Estados menos democráticos e menos nacionais é contínua.

Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político e histórico, a propostada Terceira Internacional de que todos os países submetidos ao imperialismotiveram "burguesias nacionais" com as quais os dominados/explorados/reprimidostinham que fazer alianças porque supostamente havia um terreno comum deinteresses diante da dominação imperialista.

A propensão homogenizante, reducionista e dualista do Eurocentrismo seexpressava também nesse "materialismo histórico" pós-Marx. Como toda teoriaeurocêntrica, produziu na América Latina desvarios históricos, práticas políticaserrôneas e que não levavam a lugar nenhum e derrotas cujas vítimas foram e sãoos trabalhadores e todas as vítimas da colonialidade do poder.

E mesmo com José Carlos Mariátegui (pensador peruano) insistindo que na AméricaLatina não havia fundamento histórico para nenhuma "burguesia nacional",diferentemente de outras áreas, como na Ásia, por exemplo, a doutrina daburguesia nacional e da aliança nacional dos trabalhadores com ela foi impostasobre a imensa maioria das "esquerdas" quando da sua morte.

O "nacionalismo" dominou virtualmente todo o debate das esquerdas na AméricaLatina durante o Século XX, com uma associação puramente ideológica com o"socialismo", sobretudo porque ambas as vertentes buscavam o controle do míticoEstado-Nação, precisamente em países nos quais, como obviamente nos "andinos",a colonialidade do poder havia feito historicamente inviável o projeto

liberal/eurocêntrico de um moderno estado-nação.

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Assim, no Peru, por exemplo, Alan García Pérez, presidente eleito, foi, entre 1985 e1990, um dos agentes de tais desvarios teóricos e erros políticos, pelos quais levouseu povo a uma derrota cujas conseqüências não terminamos de pagar. E, pior, aoregressar agora mostra que aprendeu ao contrário a lição política dessa história.Essa lição não foi tampouco aprendida por seus adversários. Estes seguem,obviamente, acreditando que o "nacionalismo" produz "nações" e Estados-naçãoem sociedades configuradas em torno da colonialidade do poder e com universospluriculturais e também plurinacionais.

Muito pior, todos os eurocentristas do debate mundial atual, como os autores domuito vendido "Império" (Michael Hardt e Antoni Negri), persistem em sustentarque todo país, em qualquer contexto histórico, é por definição uma nação e quetodo estado central é, por isso, um estado-nação.

Pereira: O conflito no Iraque gerou uma disputa momentânia - hoje superada -entre os interesses dos EUA e de parte do bloco imperialista mundial. Se os EUAcontinuarem a insistir com ações unilaterais, há possibilidade de haver rachas nessebloco? Ou todas as outras potências globais (União Européia, Japão) já aceitam umpapel subalterno ao dos EUA na divisão do poder global?

Quijano: Obviamente, com a desintegração do "campo socialista", o mundoemergiu como "unipolar", no sentido específico de que um único padrão de podercontrolava toda a população do "globo". Por isso, o que era, e ainda é, um BlocoImperial Global com os EUA como seu Estado Hegemônico, foi percebido por muitoscomo virtualmente um único Estado todo poderoso, e até como o centro mesmo deum único império global. No entanto, os conflitos e tensões internas não podiamdeixar de existir nesse Bloco Imperial Global, por exemplo, em relação à invasão doIraque. Mas, é claro, visto que ocorriam dentro de um Bloco Imperial Global, umbloco de interesses sociais e políticos comuns, não tinha sentido esperar rupturasou enfrentamentos violentos.

De nenhum modo, no entanto, se poderia dizer que os conflitos terminaram, que osinteresses particulares, inclusive nacionais, dos outros membros do Bloco ImperialGlobal, deixaram de atuar. Dados os notórios problemas do capitalismo nos EUA,por exemplo, a maior dívida internacional mundial, assim como os maiores déficitsfiscal e comercial do mundo; suas crescentes dificuldades nas guerrascolonial/imperialistas no Iraque e no Afeganistão; a resistência dos "migrantes" noscentros mesmos do Bloco Imperial Global (as lutas na França, na Espanha e nosEUA, onde aconteceu a maior manifestação política de todos os Primeiros de Maioda história desse país), a resistência social mundial dos trabalhadores contra astendências extremas do poder; a luta dos "indígenas" na América Latina e na Ásia;as tensões nesse Bloco Imperial poderiam ser ainda mais fortes.

E na perspectiva do futuro, as tendências apontam para a formação de novosparticipantes das disputas hegemônicas no mundo, e em alguns casos pararealinhamentos conjuntarais de interesses possíveis nessas disputas, como China,Índia, Rússia, talvez Brasil, talvez, inclusive, teríamos direito a imaginar umaComunidade Sulamericana de Nações. Como se percebe, não se trata somente dedisputas entre "Estados", mas também de conflitos no padrão mesmo de poder,cujas expressões são esses Estados.

Ninguém, em nenhum espaço dentro deste padrão de poder, poderia estar fora oulivre dos conflitos, da exarcebação da crise e de suas violências. Ninguém,portanto, deveria imaginar sequer que entre as crescentes perversões dosdominadores/exploradores/repressores e as lutas de resistência de suas vítimaspode ser neutro. E na medida em que os estudos e os debates sobre o alteradomundo que a crise da colonialidade do poder produziu, também estão se

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levantando outros horizontes históricos em direção aos quais encaminhar nossaslutas.

Pereira: Em um artigo, o senhor afirmou que a globalização impulsionou uma novarelação entre capital e trabalho. Como isso está se refletindo na América Latina?

Quijano: Três modalidades principais: 1) a precarização e a flexibilização dotrabalho foram muito mais longe que nos países "centrais", a extensão do que Marxchamou de "mais-valia absoluta", ou seja, a prolongação arbitrária da jornada detrabalho; 2) a re-primarização e a terceirização da estrutura produtiva reduziramdrasticamente a população operária industrial-urbana, quase desmantelaram suasorganizações gremiais, assim como suas organizações políticas diferenciadas egeraram a crise de identidade social dessas populações em termos de classessociais; 3) a re-expansão das formas não-salariais de exploração, como aescravidão (como no Brasil e no conjunto da Bacia Amazônica), a servidão pessoale a pequena produção mercantil independente.

Pereira: Por que o senhor crê que a "colonialidade do poder" tem uma relaçãoprofunda com o atual padrão de poder?

Quijano: A Colonialidade não tem somente uma relação profunda com o padrão depoder hoje mundialmente dominante. É o caráter central mesmo desse padrão depoder. A associação entre o novo sistema de dominação social fundado na idéia de"raça" e de um novo sistema de exploração do trabalho, que consiste nacombinação de todas as formas de exploração em uma única estrutura de produçãode mercadorias para o mercado mundial, sob a hegemonia do capital, ou seja,formando em seu conjunto o capitalismo mundial, não seria possível de outromodo.

Pereira: É possível um movimento revolucionário ter sucesso na América Latinatendo uma visão eurocêntrica?

Quijano: Dificilmente. O eurocentrismo é um modo de distorcer a percepção daexperiência atual e histórica e como conseqüência impede resolver nossosproblemas, salvo de modo parcial e distorcido. A derrota mundial entre meados dosanos 70 e final dos anos 80 no século XX foi, antes de tudo, uma conseqüência dodomínio do eurocentrismo, e além disso, em suas fase de tecnocratização eaprofundamento de suas propensões distorcivas sob o domínio de capital finaceironovo e mais predatório. Agora, estamos de novo na resistência mundial, a derrotavai ficando para trás, e estamos começando a produzir outro horizonte histórico.

Pereira: Como o senhor avalia o processo bolivariano conduzido por Hugo Chávez?Qual o potencial dessa proposta, em termos de aglutinação de outras nações, pormeio de propostas como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba)?

Quijano: Desde o ponto de vista da ampliação e defesa das margens de autonomiarelativa dos países latino-americanos frente ao Bloco Imperial Global e antes detudo frente ao imperialismo dos Estados Unidos, esse processo tem uma inegávelimportância. Não está claro o que poderia implicar em termos da destruição dopadrão de poder como tal, ou seja, dadominação/discriminação/exploração/repressão no controle do sexo, do trabalho,da subjetividade, da autoridade pública e das relações com as demais espéciesanimais e o resto do universo. Só quanto as vítimas do controle em cada um dessesâmbitos puderem ganar autonomia, a produção democrática de uma sociedadedemocrática entre iguais/heterogêneos pode avançar. Isso implica na redistribuiçãodo acesso ao controle dos recursos de cada um de tais âmbitos. E isso não ocorre,

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8/3/2019 Aníbal Quijano - Romper com o eurocentrismo - Entrevista a Aníbal Quijano

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não pode ocorrer a não ser pelo desenvolvimento da capacidade de auto-organização de auto-governo dos povos do mundo.

Pereira: Muito se tem escrito sobre as rivalidades e as disputas de Argentina eBrasil no Mercosul (agora, entre Argentina e Uruguai). Como o senhor avalia oesforço de construção de uma integração sócio-política na América do Sul a partirdos atuais Estados?

Quijano: Enquanto a maioria das populações da América não conquistarem aigualdade básica e a des/colonialidade do poder, me parece difícil que a integraçãoda América Latina possa avançar e se consolidar. Até agora, as tentativas se fazemem termos de mercado, porque os mercados locais são considerados pequenos,dada a limitada, em rigor decrescente, capacidade aquisitiva das maiorias. Mas,não é tempo de nos perguntarmos por que a Suíça ou a Bélgica, que não têm osrecursos de nossos países, nem o tamanho de nossas populações, têm entretantograndes mercados internos? Essa questão não pode ser indagada, nem contestada,a não ser em termos da colonialidade do poder.

Pereira: Como o senhor avalia a posição do governo brasileiro na OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), que está empenhado em obter a retomada das suasnegociações, usando sobretudo o status de liderança dos países subdesenvolvidospara convencer as outras nações da pertinência de um acordo?

Quijano: Não vejo nada de surpreendente no comportamento ambíguo do atualgoverno brasileiro nesse cenário. Corresponde a uma linha de política de Estadoestabelecida já há um bom tempo, de negociação entre a burguesia brasileira e osgrupos dominante da burguesia global.

[Entrevista tirada do sitio web ‘Brasil de fato’, 23 de xuño de 2006 ]