alain de libera - filósofos e intelectuais

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  • coleo TRANS

    Alain de Libera

    PENSAR NA IDADE MDIA

    Traduo Paulo Neves

    editoraB34

  • 5 .

    FILSOFOS E INTELECTUAIS

    O aparecimento do intelectual no sculo XIII um momento, decisivo na histria do Ocidente. O f e n m ^ ^ J ^ m ^ e s c r i t o sociolo-gicamente pelos historiadores, ainda necessita no entanto ser avaliai do filosoficamente. A Idade Mdia, dizem, inventou um tipo de ho-mem novo: o ".universitrio". Mas a universidade medieval no exis-te mais, as questes tericas mudaram. Em que medida essa inveno poderia ainda nos interessar? Em que permanece ela legvel e compreen-svel? A Histria sugere uma resposta, que devemos considerar em todo o seu rigor. Resumamos seu ponto de vista.

    UNIVERSIDADE DE MISRIA, MISRIA DA UNIVERSIDADE

    A universidade medieval o ponto de partida durvel de uma diviso do trabalho cuja realidade deixa-se hoje facilmente formular: a funo do intelectual moderno crtica, isto que o distingue do universitrio, r t inr^pn-pal p nm .itnr da amdan.sQCal^.Q universi-tno^jim espertador indiferente. Enquanto universitrio, o intelectual medieval teria antecipado essa partilha, as prprias condies de sua emergncia sendo ao mesmo tempo as de sua renegao.

    "Homem da cidade" e "trabalhador do canteiro de obras urba-no", mas "apegado aos privilgios clericais e lngua latina", "crente no progresso e na razo", mas incapaz de "emancipar-se da hierar-quia das disciplinas", homem de cultura, mas de uma cultura que combina os dficits da cultura clssica e os da cultura eclesistica, apoiando sua atividade sobre "uma base social estreita" que tende a se reduzir "s dimenses de uma casta" , simultaneamente retido nas solidariedades corporativas e submetido tentao dos prncipes, ele teria oferecido ao pensamento o espao de todos os seus fracassos futuros: o das memrias improdutivas e dos saberes deslumbrados, o da autonomia intil e da traio dos clrigos.1

    Assim considerada, a histria da universidade medieval seria a de uma ambigidade de origem, de um casamento mal arranjado, cujo efeito distncia o divrcio se avaliaria plenamente hoje. O sen-

    Filsofos e intelectuais 139

  • tido filosfico dessa aventura seria dos mais claros e dos mais funes-tos: na falta de empreendimento social, os filsofos da Idade Mdia teriam aprisionado socialmente a filosofia; instalando-a no confort-vel desconforto de uma instituio equvoca, eles a teriam definitiva-mente condenado errncia ou repetio. Devemos aceitar esse diag-nstico partilhado por J. Le Cioff e J . Verger?

    No achamos que se deva recus-lo em bloco; cabe simplesmen-te matiz-lo.

    A lilosofia ensina-se hoje tanto .comu_na Idade Mdia: h ductores e textus; em_s.umn,-comQ_anteriormentc cm Plepas, pip AleynnHria p em Bagd, l-se e comenta-se. Dizer que a Idade Mdia a poca da explicao dfi-tcxtos. uma meia-yerdade; convm complet-la por sta outra: o ensino da filosofia continua sendo medieval-~=jan uma palavra, textualista.

    A funo do referente textual nas aprendizagens escolares no porm a nica manifestao da longa durao da Idade Mdia. Em sua dimenso universitria, a vida filosfica antes de tudo um em-prego do tempo. Uma vida de filsofo um curriculum: no h nada a colocar a seno o que se colocava na Idade Mdia uma lista de livros a ler acompanhada de um calendrio de leitura.

    Onde esto as diferenas? Poderamos encontrar milhares, mas suficiente destacar uma. O prublema_do magister era passar rln fa-culdade de~artes_ faculdade de ealogia;- Hn universitario-contem-porneo sil da universidade. A ambio social do intelectual mo-derno reflete uma necessidade nova, a de um ambitus social do saber, um desejo de "alargamento" que, segundo os historiadores, os univer-sitrios medievais precisamente ignoraram, preferindo "lavrar em pro-fundidade" um campo cujos limites, estabelecidos na base desde a Antigidade tardia e a alta Idade Mdia, eles no pensavam sequer em deslocar. No se discutir aqui a realidade de um fenmeno que tudo atesta e confirma: a "fuga dos crebros" certamente a sano de antigas limitaes.

    No entanto no se poderia reduzir a Idade Mdia a uma laboriosa preparao do xodo intelectual. A idia de uma auto-renegao quase original do intelectual medieval defendida por Verger ("quase desde a origem se reuniam j as condies de sua prpria renegao") de-senvolve uma intuio gramsciana de Le Goff. A aplicao do esque-ma de Gramsci a caracterizao do intelectual universitrio como

    1 4 0 Pensar na Idade M d i a

  • "intelectual orgnico" , "a l to funcionrio" a servio da Igreja e do Es-tado conduz paradoxalmente a um resultado cuja validade acredi-tamos dever contestar aqui: em primeiro lugar, por fazer remontar Idade Mdia o fenmeno denunciado em 1 9 2 7 por Benda* a sub-merso do " intelectual" , do clrigo, pela vontade de potncia, pelo desejo do dinheiro, pelo servilismo para com os poderosos do mun-do, o fim do desinteresse material; em segundo, por fazer da Idade Mdia a poca particular em que o intelectual, ao mesmo tempo em que emergia, renunciou poca, em suma, em que a universidade, que lhe havia dado origem, e o intelectual, que nela nascera, se sepa-raram inapelavelmente, o universitrio tornando-se o orgnico, o "in-telectual" escolhendo a crtica. Esse diagnstico parcialmente falso tanto para a Idade Mdia quanto para " n o s s a " poca: o intelectual no poderia simplesmente ser definido como um universitrio que se desviou, isto , que mudou repentinamente, o que parede implicar o privilgio sociolgico concedido quase automaticamente ajo intelectual crtico. Quanto traio a "renegao" , bvio que todo para-lelo entre o universitrio medieval e o universitrio contemporneo deve ser considerado com prudncia: o universitrio hoje um pequeno funcionrio a quem a "autoridade de tutela" exige justificar-se social-mente (o que chamam "responder demanda social") toda vez que sua especialidade parece exclu-lo de uma "rentabilidade econmica" imediata. Na linguagem ministerial, isto quer dizer entre outras coisas que, para uma instituio digamos um "grande estabelecimento de ensino superior" no vinculado a um caminho pr-profissional , "um longo passado, uma rica tradio podem ser, em certos, casos, uma desvantagem", e que ela precisa portanto "demonstrar sua validade presente" produzindo uma nova "visibilidade social" . Se o suposto intelectual "orgnico" deve, na maior parte do tempo, legitimar social-mente sua prpria disciplina por no poder legitim-la economicamen-te, parece que a possibilidade mesma da escolha entre o orgnico e o crtico lhe retirada, restando-lhe apenas acumular os restos dela numa opo simultnea pela sobrevivncia disciplinar e o inai humor pri-vado. De fato, e para tomar um nico exemplo, se as burocracias, essenciais ao esquema gramseiano, permanecem, j h muito um pro-fessor de filosofia no um "intelectual orgnico" que marcha agres-

    * Referncia ao clebre panfleto de Julien Benda, La Trahisnn des eleres [A traio dos intelectuais|.

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