a tese da continuidade e o marxismo anal

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  • 7/26/2019 A Tese Da Continuidade e o Marxismo Anal

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    Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro

    A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:

    Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky

    Rio de Janeiro

    2013

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    A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:

    Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky

    Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro

    Instituto de Histria / CFCH

    Bacharelado em Histria

    Nome do orientador: Demian Bezerra de Melo

    Titulao: Doutor (UFF)

    Rio de Janeiro

    2013

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    A TESE DA CONTINUIDADE E O MARXISMO:

    Anlise da historiografia da Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky

    Marcio Antonio Lauria de Moraes Monteiro

    Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de Histria da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do

    grau de Bacharel.

    Aprovada por:

    _________________________

    Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo

    (Orientador)

    _________________________

    Prof. Dr. Felipe Abranches Demier

    (Departamento de Direito da UniFOA)

    _________________________

    Prof. Dr. Tatiana Silva Poggi de Figueiredo

    (Departamento de Histria da UFF)

    Rio de Janeiro

    2013

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    Monteiro, Marcio Antonio Lauria de Moraes.

    A tese da continuidade e o marxismo: Anlise da historiografia da

    Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky / Marcio

    Antonio Lauria de Moraes Monteiro. Rio de Janeiro, 2013.

    vii; 68 p.:

    Monografia (Bacharel em Histria) Universidade Federal do

    Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Histria, 2013.

    Orientador: Demian Bezerra de Melo.

    1. Revoluo Russa. 2. Historiografia. 3. Marxismo. 4.

    Histria Monografias. I. Melo, Demian Bezerra de (Orient.). II.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Histria. III. A

    tese da continuidade e o marxismo: Anlise da historiografia da

    Revoluo Russa e das contribuies de Leon Trotsky.

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    RESUMO

    Monteiro, Marcio Lauria. Historiografia da Revoluo Russa; A tese da

    continuidade versusas contribuies de Leon Trotsky. Orientador: Demian Bezerra de

    Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Departamento de Histria; 2013. Monografia

    (Bacharelado em Histria).

    O objetivo do presente trabalho analisar criticamente alguns momentos centrais do

    debate historiogrfico acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, focando a

    chamada tese da continuidade tanto em sua verso sovietloga dos anos 1940-50,

    quanto em sua nova e recente forma, sintonizada com o revisionismo neoliberal e com

    as elaboraes de Franois Furet. Analisaremos tambm as contribuies do movimento

    revisionista dos anos 1960-70, que se ops a verso inicial de tal tese, bem como as

    contribuies do marxismo, em especial de Leon Trotsky, para se pensar a Revoluo

    Russa.

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    ABSTRACT

    Monteiro, Marcio Lauria. Historiografia da Revoluo Russa; A tese da

    continuidade versusas contribuies de Leon Trotsky. Orientador: Demian Bezerra de

    Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / Departamento de Histria; 2013. Monografia

    (Bacharelado em Histria).

    The goal of the present work is to critically analyze some of the central moments of the

    historiographical debate about the Russian Revolution and the Soviet Union, focusing

    the so-called continuity thesis both in its sovietological version of the 1940-50s, and

    in its new and recent form, aligned with the neoliberal revisionism and the elaborations

    of Franois Furet. We will also analyze the contributions of the revisionist movement of

    the 1960-70s, which opposed to the initial form of such thesis, and the contributions of

    Marxism, especially those of Leon Trotsky, for thinking the Russian Revolution.

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    SUMRIO

    INTRODUO, 01

    CAPTULO 1 - A TESE DA CONTINUIDADEONTEM E HOJE, 04

    1.1. A riqueza e a i!er"i#i$a%&' a" (ri)eira" (r'u%*e"+ 04

    1.,. O $'"e"' "'!ie/0'' e a re"('"a re!i"i'i"a+ 07

    1.2. A0u)a" a" $'ri3ui%*e" re!i"i'i"a"+ 16

    1.2.1. Se(4e C'4e+ 16

    1.2.,. Mar$ 5err'+ 18

    2.2.2. M'"4e Le6i+ 20

    1.7. O re'r' a e"e a $'iuiae e a i#0u8$ia e

    5ra%'i" 5ure+ 23

    1.7. 5ra%'i" 5ure e ' re!i"i'i")' e'0i3era0+ 24

    1.7.,. A '!a e"e a $'iuiae+ 28

    CAPTULO , - O MAR9ISMO COMO ALTERNATI:A+ 41

    ,.1. Para a0;) ' re!i"i'i")'< a e$e""iae e u)a

    4i"'ri'ra#ia )ar=i"a+ 41

    ,.,. A 0ua e Lei $'ra a 3ur'$ra$ia< #'e e (re$eee"

    aa0>i$'"+ 46

    ,.2. Le' Tr'"?@ e ' Sa0ii")' equa' rea%&'

    er)i'riaaB+ 51

    CONCLUSO+ 63

    ILIORA5IA+ 64

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    INTRODUO

    It is often said that the germ of all Stalinism was in

    Bolshevism at its beginning. Well, I have no objection. Only,Bolshevism also contained many other germs, a mass of othergerms, and those who lived through the enthusiasm of the firstyears of the first victorious socialist revolution ought not toforget it. To judge the living man by the death germs which theautopsy reveals in the corpse and which he may have carriedin him since his birth is that very sensible? Victor Serge, From Lenin to Stalin, 1937.

    A Revoluo Russa e a existncia da Unio Sovitica so indiscutivelmente temas

    centrais para a histria do sculo xx. No toa, o conhecido historiador britnico EricHobsbawm chegou mesmo a utilizar a dissoluo da URSS enquanto marco do trmino de

    tal sculo1.Do desfecho da Primeira Guerra Mundial situao internacional caracterizada

    como Guerra Fria, passando pelo papel cumprido pela Unio Sovitica na Segunda Guerra

    Mundial e sua influncia (direta e indireta) em uma srie de processos polticos ao longo dos

    seus mais de setenta anos de existncia, este foi claramente um dos fenmenos polticos mais

    importantes do sculo passado seno o mais importante.

    Assim sendo, compreensvel que as anlises que suscitou no campo das ditasCincias Sociais a Histria inclusa tenham sido marcadas por ferrenhas disputas e

    apaixonados debates. O objetivo do presente trabalho tratar de alguns aspectos dessas

    repercusses intelectuais, atravs do resgate de alguns momentos centrais do debate

    historiogrfico acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica e da anlise de determinada

    produo mais recente. A esta anlise historiogrfica, acrescentamos tambm a apresentao

    de contribuies tericas e analticas produzidas por fora dos meios acadmicos e

    frequentemente ignorada por eles, a despeito de sua considervel sofisticao e capacidadeexplicativa.

    Por mais diversificada que seja essa produo historiogrfica acerca da Revoluo

    Russa, ela atravessada por um debate em especfico, que marcou tal campo de forma

    profunda nas dcadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. A base para esse

    debate partiu da necessidade de compreenso das origens do regime stalinista e seu foco

    reside na questo da existncia ou no de uma continuidade fundamental entre este e os

    primeiros anos da revoluo. Ou, em outras palavras, se ele seria um desenvolvimento lgico

    1Cf. Hobsbawm, E. Era dos extremos: o breve sculo XX - 1914-1991 [1994]. Traduzido por Marcos Santarrita.2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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    destes anos iniciais. Posto dessa forma, tal debate tambm abarca a questo do Stalinismo ser

    ou no uma continuidade do Bolchevismo.

    No foi por acaso que o debate sobre as origens do regime stalinista assumiu

    contornos que colocavam em seu centro a existncia ou no de uma continuidade. Essa forma

    especfica surgiu por volta dos anos 1940, principalmente no meio acadmico dos Estados

    Unidos, distanciando-se dos debates ento vigentes acerca da Revoluo Russa e das questes

    por eles suscitadas. Na dcada seguinte, a problemtica da(s) continuidade(s) j havia

    atingindo posio hegemnica entre acadmicos norte-americanos e ganhado adeptos em

    outros pases, produzindo-se um verdadeiro consenso a favor de uma tese que advogava a

    existncia de continuidades fundamentais entre o projeto Bolchevique e o Stalinismo, entre

    Outubro de 1917 e a ditadura dos gulags, dos Processos de Moscou e de tantas outrasatrocidades. Essa interpretao portanto, era fundamentalmente marcada por uma hostilidade

    ao seu objeto de estudo.

    Essa mudana de foco da produo acadmica acerca da Revoluo Russa e da Unio

    Sovitica se deu justamente, e no toa, durante o perodo no qual a chamada Guerra Fria

    se faz mais intensa no sentido de uma disputa de projetos societrios, levando as produes

    historiogrficas de carter acadmico predominantes a ressoarem uma condenao poltica do

    projeto revolucionrio bolchevique e daqueles que nele se inspiraram ao longo do sculo xx.Tendo atingido uma posio hegemnica nos anos 1950, tal consenso s se dissipou

    algumas dcadas depois, com o advento de estudos baseados em paradigmas diferentes

    daqueles que o sustentavam. Para tal, foi necessria uma verdadeira batalha de posies por

    parte dos adeptos das diversificadas perspectivas auto-proclamadas revisionistas, que se

    apresentaram enquanto alternativa e, aos poucos, angariaram aceitao nos meios acadmicos.

    dessa tese da continuidade que trataremos no presente trabalho. Tanto na forma

    que assumiu em sua gnese, com a criao do campo batizado de sovietologia

    2

    e ancorado noparadigma do totalitarismo, quanto em sua reapario mais recente, sob uma nova roupagem

    paradigmtica e fazendo uso de caminhos analticos distintos daqueles dos sovietlogos.

    2Nas palavras do historiador revisionista norte-americano Stephen Cohen, a sovietologia uma deselegante,porm til, palavra para designar o estudo profissional acerca da Unio Sovitica (Cf. Cohen, S.Rethinking thesoviet experience Politics and History since 1917. Oxford: Oxford University Press, 1985, p. 3.). Entretanto,esse termo est intrinsecamente associada a um ramo em especfico da historiografia, com seus paradigmas

    particulares e com uma forte filiao poltica que a marcou profundamente. Portanto, rejeitamos o sentido maisgeral que Cohen a atribui e a utilizaremos no presente trabalho para designar uma historiografia em especfico,da qual trataremos no Captulo 1 e que foi a responsvel por produzir a tese da continuidade em sua verso quepoderamos chamar de clssica (em contraposio quela mais atual que analisaremos mais adiante).

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    Assim como a gnese da tese da continuidade se deu em um contexto extremamente

    politizado, atendendo a necessidades de certos grupos sociais de elaborarem uma narrativa

    condenatria da Revoluo Russa, a tentativa recente de elaborao de uma nova verso de tal

    tese tambm se d na esteira de uma conjuntura de grande polarizao poltica: os anos de

    ascenso e triunfo doprojeto neoliberal. Ligando-se ao que se pode chamar de revisionismo

    neoliberale, nos marcos dos novos paradigmas do ps-modernismo e do relativismo cultural,

    tal tentativa se constitui enquanto um renovado ataque experincia revolucionria russa.

    Como contraposio a esta tese, resgataremos em nossa anlise as diferentes

    contribuies produzidas pela historiografia revisionista dos anos 1960 e 1970, baseadas no

    difuso campo da Histria Social e que, com o tempo, suplantaram o consenso originalmente

    produzido pelos sovietlogos dentro da historiografia e das Cincias Sociais em geral.Esse processo de mudana historiogrfica que culminou na vitria dos revisionistas

    teve incio em meados dos anos 1960 e se consolidou ao longo das duas dcadas seguintes,

    beneficiando grandemente da abertura parcial e gradual dos famosos arquivos soviticos.

    Apesar da mudana de paradigmas pelas quais passou a historiografia ao fim do sculo xx,

    principalmente com o advento do chamado giro lingustico e da ascenso de vertentes

    epistemolgicas ps-modernas3, encaramos que algumas das contribuies fundamentais

    desses estudos revisionistas ancorados na Histria Social se mantm atuais e retm suaimportncia para uma reflexo crtica. Especialmente ante o referido retorno ainda que por

    vias diferentes da velha tese da continuidade, nos marcos do novo revisionismo neoliberal.

    Dessa forma, encaramos ser importante o resgate das contribuies dos primeiros

    revisionistas, que se contrapuseram ao consenso sovietlogo, principalmente no que tange

    suas crticas aos antigos defensores dessa tese.

    Mas iremos mais alm do que um simples panorama de diferentes vertentes

    historiogrficas conflitantes. Conforme nossa anlise destas balizada pela adeso aomarxismo, e, consequentemente, possui carter crtico, tambm resgataremos anlises

    originadas no campo epistemolgico ao qual nos filiamos. Apesar de no ter obtido at hoje

    um peso expressivo dentro da historiografia acerca da Revoluo Russa e da Unio Sovitica,

    estudiosos que se pautam por uma compreenso marxista da realidade foram capazes, a nosso

    ver, de produzir snteses de grande sofisticao.

    Mais especificamente, apresentaremos uma sntese das contribuies intelectuais de

    Leon Trotsky, cujas anlises acerca da Unio Sovitica e do fenmeno stalinista (elaboradas

    3Cf. Segrillo, . A historiografia da revoluo russa: antigas e novas abordagens. Projeto Histria, v. 41,dezembro de 2010, pp. 83-85.

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    em torno de conceitos como reao termidoriana e Estado operrio degenerado)

    constituem uma poderosa contraposio a tese da continuidade seja em sua forma

    sovietloga ou em sua verso ressurreta.

    Portanto, mais do que um balano historiogrfico, nosso trabalho constitui uma anlise

    crtica de partes da produo historiogrfica pregressa e recente e, acima de tudo, uma tomada

    de posio em favor de determinadas anlises marxistas e, consequentemente, da necessidade

    de uma batalha em seu favor nos meios acadmicos e intelectuais.

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    CAPTULO 1

    A TESE DA CONTINUIDADEONTEM E HOJE

    Um breve panorama das produes anteriores ao surgimento da sovietologia e do

    quase que concomitante predomnio da tese da continuidade que o acompanhou suficiente

    para demonstrar a historicidade dos contornos assumidos pelos estudos sovietlogos. Bem

    como para se ter noo de que uma srie de outras questes permeava os escritos produzidos

    sobre a Revoluo Russa antes da consolidao do regime stalinista e da centralidade que

    assumiu o debate sobre suas origens e possveis ligaes diretas com o projeto revolucionrio

    original dos Bolcheviques.

    1.1. A riqueza e a diversifica das !ri"eiras !rdu#es

    Um farto e diversificado material foi produzido logo aps a revoluo, principalmente

    de cunho autobiogrfico e jornalstico, e que tendia a tomar posies claras quanto aos

    eventos que relatava. Tal material teve como autores figuras polticas proeminentes, como

    opositores que se exilaram na Europa e agentes do processo revolucionrio, bem como

    jornalistas que se encontravam em solo russo. Alguns exemplos de tais obras podem ser

    encontrados em balanos historiogrficos, como o realizado pelo historiador ngelo Segrillo,

    Historiografia da Revoluo Russa: antigas e novas abordagens4.

    Entre as produes de cunho autobiogrfico destacou-se, por exemplo, a escrita por

    Aleksandr Kerensky, Primeiro Ministro derrubado junto com o Governo Provisrio pela

    Revoluo de Outubro, e que relata os eventos a partir do ponto de vista de uma experincia

    que teria sido bruscamente abortada, possuindo um ttulo que toda uma sntese: A

    Catstrofe (The Catastrophe, 1927).

    J entre os materiais de carter jornalstico, um dos mais difundidos sem dvidas o

    relato do jornalista norte-americano John Reed, Os dez dias que abalaram o mundo (Ten

    Days that Shook the World, 1919). Alm de ter angariado grande popularidade no mundo

    anglo-saxo, tal livro foi recebido com bons olhos pelo regime sovitico, que o reeditou vrias

    vezes e at mesmo financiou uma adaptao cinematogrfica5. Baseando-se em suas

    4Cf. Cf. Segrillo, . Op. cit., p. 65.5O renomado filme realizado por Sergei Eisenstein e Grigori Aleksandrov, Outubro (Oktyabr', 1927).

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    observaes realizadas no principal palco dos eventos revolucionrios, Petrogrado, o livro de

    Reed conta ainda com o contato prximo que este pode ter com figuras de destaque dos

    principais agrupamentos envolvidos nas disputas polticas de ento e se configura enquanto

    um relato entusiasmado de um defensor da revoluo.

    Outro jornalista que atingiu considervel destaque por seus relatos in loco foi o

    correspondente do peridico britnico The Guardian, Morgan Philips Price. Price teve

    opinies mais ambguas do que as de Reed acerca da revoluo, tendo mudado seu juzo sobre

    ela alguns vezes enquanto escrevia seus relatos e anlises. Estes foram produzidos

    principalmente a partir de observaes realizadas nas provncias, proporcionando assim um

    ponto de vista alternativo ao de outros correspondentes alocados nos centros urbanos de maior

    peso. Na abertura de uma coletnea de escritos seus, organizada por sua filha em 1998, EricHobsbawm se referiu a tal material como um importante suplemento Histria da Revoluo

    Russa e um corretivo til para a reao ps-sovitica contra ela6.

    Ao mesmo tempo em que esse tipo de material era produzido, desde a Rssia alguns

    historiadores de formao realizaram pesquisas, ainda no calor dos acontecimentos, acerca do

    evento que vivenciavam. Entre estes se destacou Mikhail Pokrovsky, ligado ao Partido

    Bolchevique. Mas ele esteve longe de ser o nico, inclusive porque o prprio partido investiu

    na promoo de espaos de difuso, como peridicos cientficos, para a produo ento emcurso de uma Histria do Tempo Presente avant la lettre, como apropriadamente a nomeou

    Segrillo7.

    Mas no foram apenas os historiadores de formao que produziram obras at hoje

    valorizadas por sua rigorosidade e capacidade analtica. Podemos citar aqui o exemplo de

    Leon Trotsky, membro do Partido Bolchevique diretamente envolvido nos eventos

    revolucionrios de 1917 e que publicou uma Histria da Revoluo Russa em trs volumes,

    na qual buscou aliar o relato da revoluo a uma compreenso das especificidades histricas eestruturais por detrs do desenvolvimento russo (Istoriya Russkoi Revolyutsii, 1930). Nessa

    vertente tambm se encontram as diversas obras de Victor Serge, entre as quais se destacou

    O ano um da revoluo russa (Lan 1 de la rvolution russe, 1930).

    Alm desses tipos de materiais, impossvel no mencionar os diversos escritos

    propriamente polticos que trataram de defender ou criticar o processo revolucionrio, como

    os incisivos A revoluo russa - Uma avaliao crtica, de Rosa Luxemburgo (Die russische

    6Hobsbawm, E. Foreword. In: PRICE, M.Dispatches from the Revolution:Russia 1916-1918(Ed. TaniaRose). Durham: Duke University Press Books, 1997, p. xii.7Segrillo, . Op. cit., p. 66.

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    Revolution - Eine kritische Wrdigung, 1918), A ditadura do proletariado, de Karl Kaustsky

    (Die Diktatur des Proletariats, 1918) e a resposta de Lenin a este, A ditadura do proletariado

    e o renegado Kautsky (Proletarskaya revolyutsiya i renegat Kautsky, 1918).

    Pode-se vislumbrar, portanto, a riqueza que permeou a nascente produo

    (historiogrfica ou no) acerca da Revoluo Russa e daquilo que viria a ser a Unio

    Sovitica. Percebe-se que, nesse primeiro momento, foi marcante a atuao de agentes

    variados e a produo de tipos diferentes de materiais que iam de relatos jornalsticos e de

    materiais que hoje seriam encarados como peas de memria produes realizadas por

    historiadores de formao, passando por anlises de flego escritas por personagens

    diretamente envolvidos nos eventos por eles analisados.

    Quanto sua temtica, esse verdadeiro boomde escritos que se seguiram a 1917 tinhacomo tema principal o processo revolucionrio propriamente dito. Essas obras buscavam

    analis-lo a partir de perspectivas e recortes variados e almejavam, a um s tempo, tecer uma

    narrativa factual aliada a anlises do que teria causado e possibilitado as Revolues de

    Fevereiro e de Outubro. E, no raro, assumiam claras posies de condenao ou defesa

    desses processos e de seus principais agentes polticos.

    de se considerar, portanto, que houve uma significativa perda quando essa riqueza

    presente na produo dos anos 1920 e 1930 deu lugar, nas dcadas seguintes, ao que oStephen Cohen nomeou de consenso acadmico, ao fazer um balano historiogrfico de

    grande importncia para a compreenso dos contornos que a sovietologia assumiu aps a

    Segunda Guerra Mundial, no auge da Guerra Fria. Foi nesse momento que o estudo da

    Revoluo de Outubro e da formao social por ela gerada ganhou maior espao na academia

    e foi batizado de sovietologia, passando a predominar nos estudos produzidos a questo a

    qual aludimos anteriormente, acerca da existncia ou no de uma continuidade fundamental.

    1.$. O c%se%s svie&'() e a res!s&a revisi%is&a

    No balano em questo, presente no que se pode considerar enquanto uma obra-sntese

    da produo historiogrfica de Cohen, Rethinking the Soviet Experience Politics & History

    Since 1917(1985), tal historiador traa aquelas que encara serem as principais caractersticas

    desse consenso, cuja base epistemolgica seria o paradigma totalitarianista. Tal paradigma,

    cuja origem indigna remonta ao seio do movimento fascista italiano e que foi popularizado

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    enquanto categoria analtica por Hannah Arendt8, pautou a maior parte da produo

    acadmica acerca da Unio Sovitica entre o final dcada de 1940 e o comeo dos anos 1960,

    quando comeou a perder fora, tendo sido em grande parte abandonado no incio dos anos

    19709.

    Em oposio ao consenso sovietlogo, tomou forma em meados da dcada de 1960

    um campo um tanto quanto difuso, mas unido por algumas linhas gerais em comum, que ficou

    conhecido como revisionista. Cohen no s se reivindica como parte deste10, como

    Rethinking the Soviet Experience muitas vezes tida como uma obra de referncia para se

    compreender tal vertente e a sua adversria sovietloga (ou totalitarianista, uma vez que

    Cohen enxerga a sovietologia como um campo de estudos, e no uma escola

    historiogrfica11).Na avaliao de tal historiador, um dos debates que mais marcaram a sovietologia era

    a avaliao da relao entre Bolchevismo e Stalinismo12pois, da resposta a essa questo, teria

    resultado uma srie de desdobramentos ao nvel da interpretao dos fatos ocorridos entre os

    primeiros anos de vida do Partido Bolchevique e o regime que se consolidou nos anos 193013.

    Frente ao desafio analtico apresentado por essa questo, os sovietlogos, aplicando o

    paradigma totalitarianista, se distanciaram consideravelmente da sofisticao e multiplicidade

    de interpretaes presentes nos estudos desenvolvidos nas dcadas de 1930 e 1940, tendoeliminado de seu prprio objeto tudo de diverso e problemtico14. Ao encarar que os ricos

    eventos dos anos 1920 constituram to somente uma ante-sala do Stalinismo, ou um

    Stalinismo ainda no totalmente desenvolvido/implementado, essa vertente historiogrfica

    estabeleceu a suposta existncia de uma continuidade ininterrupta (an unbroken continuity) na

    histria da Unio Sovitica e no processo da Revoluo de Outubro como sendo um dos

    principais pilares do consenso por ela gerado no meio acadmico15.

    Essa tese da continuidade da qual estamos tratando, alicerou de forma quase quemanualesca os trabalhos produzidos sob o paradigma totalitarianista, gerando assim uma

    8O uso original do termo remete s crticas do liberal italiano Giovanni Amendola ao movimento liderado porBenito Mussolini. Os fascistas italianos, entretanto, o adotaram rapidamente enquanto sntese de sua propostapoltica. Mais tarde, Arendt o recuperou e o transformou em categoria analtica, em The Origins ofTotalitarianism(1951), que logo se tornou uma referncia padro para os sovietlogos.9Cf. Cohen, S. Op. cit., pp. 3 e 27)10 Cf.Id., ibid.,Preface.11Quanto a essa questo, cf. nota 2.12

    Id., ibid.,p. 38.13Id., ibid.,p. 53.14Id., ibid.,p. 7.15Id., ibid.,pp. 43-44.

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    narrativa comum aos seus adeptos. Em dada ocasio, o historiador marxista Kevin Murphy

    sintetizou essa narrativa-padro da seguinte forma:

    [] These accounts typically began by holding up Lenin's What Is to Be Done? asan embryonic dictatorial blueprint, fully developed well before the Revolution. Fromhere it was but a short step to the assertion that a conspiratorial minority had seizedpower in 1917 thought a coup dtat, monopolized the state for its own purposes,and created the totalitarian party-state. Through iron discipline and brutal terror, theBolsheviks subsequently prevailed in the civil war of 1918-1921, but the exhaustedvictors were forced to retreat temporarily during the New Economic Policy (NEP,192l-1928). Driven by ideological zealotry, the thesis concludes, the totalitarianmachine then proceeded to pulverize society. State-imposed collectivization, forcedrapid industrialization, and mass terror are thus viewed as organic elements in aninevitable process driven by the Bolsheviks' inner totalitarian logic.16

    Analisando a tese da continuidade estabelecida pelos sovietlogos, Cohen os acusou

    de serem orientados por um determinismo monocausal, uma vez que reduziam os eventos

    da histria sovitica a consequncias diretas das aes e desejos das lideranas do Partido

    Bolchevique, imputando, assim, um carter de inevitabilidade Histria17. Por detrs desse

    determinismo, residiria um mtodo analtico que avaliava o passado nos termos do presente,

    os antecedentes nos termos dos resultados18, possuindo assim carter verdadeiramente

    teleolgico.

    Alm disso, os sovietlogos entendiam a formao social sovitica, em todos os seusaspectos, como um monlito do ponto de vista poltico e cultural. Consequentemente, estes

    no viam prejuzo em centrar suas anlises nos chamados estudos de regime (em

    contraposio a estudos sociais), tendo por objeto principal a poltica formal da alta cpula

    do Partido Bolchevique e do Estado, que era utilizada para interpretar a histria sovitica

    como um todo19.

    Tais caractersticas marcaram as anlises sovietlogas com uma perspectiva

    consideravelmente ahistrica, a partir da qual seus adeptos se tornaram incapazes de integrar aelas as diversas mudanas que marcaram o Partido Bolchevique e o regime sovitico ao longo

    das primeiras dcadas da nova formao social inaugurada pela revoluo20. Em sntese, para

    16Murphy, K.Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory. Oxford: BerghahnBooks, 2005, p. 2. Essa sntese muito semelhante a que o prprio Cohen havia feito em sua obra aqui tratada(Cohen, S. Op. cit., pp. 5-6). Demos preferncia citao de Murphy por ser ela consideravelmente mais curta,sem apresentar perdas para a nossa exposio.17

    Cf. Cohen, S. Op. cit.,pp. 43-44.18Id., ibid.,p. 52.19Cf.Id., ibid.,pp. 23-24.20Cf.Id., ibid.,p. 23.

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    mais uma vez recorrermos s palavras de Cohen, preconceitos cegos, rtulos, imagens,

    metforas e teleologia assumiram o lugar de explicaes reais21.

    Ao comentar sobre esse paradigma totalitarianista que balizava os estudos

    sovietlogos e que, anteriormente, fora muito utilizado para se analisar os fenmenos fascistas

    (o nazismo alemo em especial)22, o historiador portugus Manuel Loff resumiu a questo de

    seus significados conceitual e social da seguinte forma:

    [...] a teoria do totalitarismo propunha uma explicao da mudana socialradical e da mobilizao social das massas nas sociedades contemporneascomo fenmenos necessariamente explicveis pela manipulao deliberada,calculada, arquitectada por grupos polticos que se autodescrevem comovanguardas.

    Esta creio ter sido a maior vitria intelectual dos neoliberais dos anos 50, herdadapelos seus correligionrios do ltimo quarto do sculo XX: ler os processos demudana sociopoltica impulsionados pela participao das massas como jogos demanipulao de verdadeiros profissionais da subverso poltica, lanando, assim, asuspeita sobre a espontaneidade, a representatividade real de toda a mobilizaosociopoltica. Lida a realidade desta forma, as nicas formas de mudana social noartificiais, designemo-las assim, seriam produto de longos processos de mudana,suficientemente longos para resultarem de complicados processos de negociaoentre sectores das elites polticas e sociais, uns mais conservadores, outros maisreformistas, cujos produtos finais seriam, portanto, sempre consensuados com osgrupos dominantes no momento em que tais processos teriam o seu incio. [...]23

    Assim, mais do que um mero paradigma problemtico do ponto de vista metodolgico

    e terico, a compreenso da realidade social centrada na categoria de totalitarismo estava

    diretamente vinculada a certa viso apologtica da poltica, que colocava as democracias

    burguesas ditas ocidentais como o patamar mais elevado e correto do fazer poltico,

    contrapondo-se a projetos de transformao centrados na autonomia e agncia das grandes

    massas. Mais adiante, ao tratarmos das tentativas recentes de restabelecer uma tese da

    continuidade na historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, tomaremos tal

    discusso de forma mais aprofundada.

    Por hora, cabe questionarmos como foi possvel, frente a todos esses elementos

    problemticos que constituam as anlises sovietlogas, que suas concluses tenham se

    21Id., ibid.,p. 6.22Para uma detalhada crtica de sua aplicao no caso dos estudos do fascismo/nazismo, cf. Paxton, R.Anatomiado Fascismo. Traduzido por Patrcia Zimbres e Paula Zimbres. So Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 345-350, paraquem A imagem totalitria pode evocar de forma poderosa os sonhos e as aspiraes dos ditadores, mas, naverdade, prejudica o exame da questo de importncia mais vital, ou seja, com que eficincia os regimes

    fascistas conseguiram se encaixar nas sociedades, em parte submissas e em parte recalcitrantes, governadas poreles. (Id., ibid.,p. 350).23Loff, M. Depois da Revoluo?...Revisionismo histrico e anatemizao daRevoluo.Histria & Luta deClasses,n. 12, setembro de 2011, pp. 8-9. Grifo do original.

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    estabelecido por mais de duas dcadas enquanto o consenso historiogrfico do perodo. Para

    tal, necessrio situ-la na conjuntura poltica da poca e no seu local de origem, os Estados

    Unidos.

    O paradigma totalitarianista e tese da continuidade, que combinados traavam um

    perfil absolutamente negativo da Unio Sovitica e do comunismo em geral s puderam se

    tornar hegemnicos entre os estudos acadmicos graas possibilidade de sua

    instrumentalizao poltica, uma vez que serviam de sustentculo poltica externa dos

    governos norte-americanos que operaram segundo a lgica da Guerra Fria, bem como do

    discurso oficial anticomunista. Estes elementos conjunturais eram iconicamente expressos na

    ao de instituies como o Comit de Atividades Antiamericanas (rgo da House of

    Representatives, uma das duas cmaras do Parlamento norte-americano) e em toda a histeria eperseguies pblicas promovidos por polticos como o senador Joseph McCarthy ao longo

    da dcada de 1950.

    Frente a esse contexto, a sovietologia tornou-se um campo de estudos extremamente

    importante para o stablishment norte-americano, que a alimentou com generosas verbas. Os

    sovietlogos obtiveram grandes financiamentos para suas pesquisas junto ao governo e a

    diversas corporaes capitalistas nas dcadas de 1950 e 1960, dentre elas as Fundaes Ford e

    Rockfeller24

    . Comentando acerca desse contexto mais geral que abarcava a sovietologia etambm outras reas, o historiador Josep Fontana afirmou que

    [...] Nunca houve uma associao to ntima entre os historiadores e o poder como aque se estabeleceu nestes anos. Historiadores acadmicos de prestgio trabalharampara o governo alguns em cargos importantes como Schlesinger, Kennan ouRostow , primeiro na OSS [Office of Strategic Services], depois na CIA [CentralInteligence Agency], no Departamento de Estado ou em instituies controladas porestes.25

    Aos historiadores cabia, agora, no apenas defender os valores sociais estabelecidos,

    funo que tradicionalmente haviam realizado, mas tambm abrir a sociedade norte-americana ao novo papel de protagonista no cenrio mundial que o pas,tradicionalmente isolacionista, havia assumido. [...]26

    Concomitante promoo e ao financiamento de estudos marcadamente anti-

    soviticos, aqueles acadmicos que assumiam posies crticas e dissidentes frente ao

    consenso estabelecido (e imposto) corriam o risco de perseguies diretas ou indiretas, que

    24Cf.Id., ibid.,pp. 3-4, 10 e 16.25Fontana, J. As guerras da histria. In:A histria dos homens. Bauru: Edusc, 2004, pp. 347-348.26Id., ibid.,p. 349.

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    podiam ir desde a excluso de redes de favoritismo acadmico at a demisso em momentos

    de caa s bruxas, chegando priso em casos extremos27.

    Assim, essa interferncia no campo de estudos por parte de foras sociais

    objetivamente interessadas em uma oposio (e mesmo na destruio da) Unio Sovitica

    imprimiu sovietologia um forte matiz anticomunista. Dessa forma, Cohen encara que a

    sovietologia foi levada produo de estudos cujo objetivo eram gerar explicaes para o

    comunismo ser algo necessariamente mal (evil) ou demonstraes de que tal maldade

    permeava todo e qualquer momento da histria sovitica28. Nesse sentido, o historiador

    ngelo Segrillo, em seu j citado balano historiogrfico, denominou tal vertente de

    estudiosos como cold warriors29 nomenclatura mais do que adequada para se referir a

    verdadeiros combatentes da Guerra Fria a servio da poltica do governo norte-americano, taiscomo os historiadores Richard Pipes e Robert Conquest (talvez os mais conhecidos

    sovietlogos, cujos cargos em rgos governamentais foram um complemento central de

    suas carreiras acadmicas).

    Mas, apesar da hegemonia angariada pela escola totalitarianista nos meios acadmicos

    norte-americanos e da difuso que seus membros mais proeminentes obtiveram fora do pas,

    influenciando profundamente os estudos historiogrficos da poca, alguns estudiosos

    dissidentes conseguiram se destacar sem compartilhar desse consenso made in USA. Foi ocaso, por exemplo, do historiador polons erradicado na Inglaterra, Isaac Deustcher.

    Deutscher conseguiu uma visibilidade considervel com sua primeira obra, uma biografia de

    Stalin (Stalin: A political biography, 1949), aps a qual continuou a produzir materiais sobre

    a Unio Sovitica como sua conhecida biografia de Trotsky em trs volumes, publicados

    entre 1954 e 1963. Vale ressaltar que Deutscher no s no compartilhava dos pontos que

    unificavam os totalitarianistas, como era um marxista declarado, baseando-se, portanto em

    paradigmas extremamente diferentes daqueles dominantes no meio acadmico de ento.Outro historiador que obteve grande destaque no campo da sovietologia sem fazer

    parte da escola totalitarianista foi o britnico E. H. Carr, autor de uma monumental Histria

    da Revoluo Russa em quatorze volumes, amplamente citada at hoje (A History of Soviet

    Russia, 1950-1978).

    Obviamente no foi um acaso que estes historiadores, bem como alguns outros que

    poderamos aqui incluir, tenham se formado e produzidoforados Estados Unidos. Entretanto,

    27Cf.Id., ibid.,p. 18.28Cf.Id., ibid.,p. 14.29Segrillo, . Op. cit., pp. 73-74.

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    se nessa poca havia no dito ocidente escasso espao para produes historiogrficas

    sofisticadas, a situao dentro da Unio Sovitica no era muito diferente daquela nos EUA

    exceto por uma inverso de paradigmas. Tal qual ocorrera no ocidente, uma produo

    inicialmente rica e diversificada acabou por dar lugar a um consenso baseado em anlises

    rasas e explicaes simplificadoras, cujo maior smbolo era o manual oficial do regime, a

    Histria do Partido Comunista de Toda a Unio (bolchevique) - Breve Curso (Kratkii Kurs,

    1938).

    Conforme apontou o j mencionado Kevin Murphy, a produo acadmica sovitica

    da poca em questo pode ser considerada enquanto o reverso da moeda da escola

    totalitarianista:

    [...] The depiction of the steady and heroic march of the Soviet people from 1917toward Communism under the leadership of the party was an inverted image of theOriginal Sin version put forward by Western academic. Soviet scholars advancedlinear accounts purged of contingency, in which alternative political strategies andpossibilities were trivialized or completely ignored, and which depicted ordinarySoviet citizens as passive followers of the dictates of an unerring party.30

    ***

    Mas o domnio da escola totalitarianista, apesar de prolongado, no passou inclume

    s mudanas conjunturais ocorridas em fins da dcada de 1950. Conforme aponta Cohen, a

    mudana nas relaes diplomticas entre o governo norte-americano e a Unio Sovitica ps-

    Stalin (por vezes nomeada de dtente), bem como os conflitos que marcaram o chamado

    Bloco Socialista (a ruptura sino-sovitica e os diversos conflitos no Leste Europeu,

    marcadamente a Revoluo Hngara de 1956), abalaram consideravelmente as certezas

    tecidas pelo consenso acadmico sovietlogo31. A esses elementos conjunturais podemos

    ainda adicionar o enorme abalo gerado no prprio movimento comunista internacional por

    conta do XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, com a revelao dochamado Relatrio Khrushchev (1956).

    Em sntese, durante um mesmo perodo de tempo relativamente curto, vieram tona

    para os observadores externos (ao menos queles dispostos a enxergar) a diversidade de

    projetos presentes no interior do que antes era considerado um monlito, enquanto o governo

    norte-americano alterava para tons menos hostis as suas relaes diplomticas com aquilo que

    a propaganda oficial at ento veiculava como a verdadeira encarnao do mal.

    30Murphy, K. Op. cit., p. 2.31Cf. Cohen, S. Op. cit., p. 28.

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    Assim, no s a conjuntura poltica passou por uma mudana considervel, como uma

    grande quantidade de possveis novas fontes surgiu para aqueles dispostos a confrontarem as

    anlises at ento hegemnicas. Nas palavras de Cohen, realidades multicoloridas [...]

    colidiram cada vez mais com os esteretipos cinzas da sovietologia32.

    No momento em que ocorriam essas mudanas responsveis pela alterao da

    conjuntura da Guerra Fria, uma nova gerao de acadmicos iniciou seus trabalhos

    historiogrficos, operando assim sob um contexto bem diferente daquele de seus antecessores

    totalitarianistas. Esse contexto foi marcado, segundo Cohen, acima de tudo por uma maior

    liberdade em relao s restries impostas pela Guerra Fria e tambm pela oportunidade de

    participao em programas de intercmbio que permitiam a ida Unio Sovitica, criados em

    195833.Dessa leva de novos acadmicos que surgiu a escola revisionista, que se

    caracterizou fundamentalmente pela empreitada de desconstruo do consenso previamente

    dominante e pela sua substituio por estudos mais sofisticados e diversificados. Foi nesse

    novo momento historiogrfico que destacaram historiadores como Moshe Lewin, Ronald

    Suny, Marc Ferro, Alexander Rabinowitch e o prprio Stephen Cohen, dentro tantos outros.

    A principal marca de seus escritos, em contraposio escola totalitarianista, foi a

    valorizao de uma histria vista de baixo, alicerada em pesquisas arquivsticas34

    .Pesquisas estes guiadas por uma compreenso no determinista, que por vezes se mostrou

    capaz de apreciar o devido lugar na Histria das possibilidades no realizadas, e que levava

    em conta a existncia de mltiplas causalidades.

    Paralelamente, tambm na Unio Sovitica, o consenso predominante encontrou

    resistncias sob o novo clima de relativa distenso da perseguio e apertado controle

    poltico, dando espao para estudos que fugiam quilo at ento imposto pelos manuais35.

    nesse contexto que iniciaram suas respectivas produes historiogrficas alguns dos autoresmais tarde valorizados pelos revisionistas ocidentais, como o amplamente citado Roy

    Medvedev.

    A nosso ver, a principal contribuio do esforo revisionista foi ter refutado, desde

    pesquisas empiricamente aliceradas, os principais pilares da escola totalitarianista, que se

    baseava largamente em especulaes escoradas na dificuldade de acesso aos arquivos

    oficiais produzidos pelo Estado sovitico. A falta de acesso fontes primrias ligadas a

    32

    Id. Ibid., p. 29.33Id. Ibid., p. 29.34Cf. Segrillo, . Op. cit., p. 75.35Id. Ibid., pp. 86-87.

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    assuntos demogrficos, econmicos, culturais e mesmo a questes do dia a dia (como atas de

    reunies dos mais variados tipos de organismos coletivos, por exemplo) e ainda dos variados

    rgos de segurana e inteligncia do governo, criou uma enorme margem para todo tipo de

    abstraes. Margem essa que foi largamente aproveitada pelos sovietlogos e adeptos do

    consenso totalitarianista em geral, que buscaram preencher as lacunas existentes com seu

    paradigma simplificador e extremamente apriorstico.

    Na contramo dessa abordagem, os revisionistas contestaram a viso da formao

    social sovitica enquanto monlito, fundamental ao conceito de totalitarismo, bem como a

    tese da continuidade, segundo a qual o regime stalinista seria o fim lgico do projeto

    bolchevique. A partir de seus estudos, os historiadores revisionistas apresentaram ao meio

    acadmico interpretaes alternativas e mais sofisticadas para se pensar o Stalinismoenquanto um fenmeno histrico, fruto de condies muito mais diversas do que pressupunha

    o determinismo monocausal predominante nos estudos sovietlogos.

    No lugar da narrativa padro segundo a qual uma linha reta partia da publicao de

    Que Fazer? e chegava aos gulags, fazendo um pequeno desvio de percurso durante o

    perodo na NEP, esses trabalhos trouxeram tona a questo das alternativas histricas. Dessa

    forma, buscaram entender as diferentes causalidades por trs do surgimento do Stalinismo,

    incluindo a quais outros projetos teriam fracassado ante a sua vitria. Seus trabalhos tambmincluram a tentativa de compreenso das especificidades de cada um dos momentos que

    marcaram a Rssia revolucionria antes da dcada de trinta, buscando analisar a tomada do

    poder, o comunismo de guerra e a NEP a partir de suas prprias especificidades, ao invs de

    tentar encaix-los em uma narrativa teleolgica onde todo e qualquer evento fazia parte de um

    plano que teria no regime stalinista sua concretizao final.

    Nesse sentido, as produes revisionistas, apesar de sua multiplicidade de concluses

    e linhas de anlise, tenderam a chegar a alguns pontos de convergncia, criando assim seuprprio consenso, contraposto quele da sovietologia. Esses pontos foram sobretudo o

    reconhecimento de uma diferena fundamental entre Bolchevismo e Stalinismo, bem como

    entre os primeiros momentos da nascente formao social sovitica e o regime que se

    consolidou em meados da dcada de 1930 a refutao, portanto, da tese da continuidade.

    Outros pontos importantes dessa convergncia entre os revisionistas incluam a

    refutao da Revoluo Russa como sendo to somente um golpe de Estado orquestrado por

    uma minoria de fanticos, como costumavam defender os totalitarianistas, e a suposio (por

    vezes no to embasada em anlises de fontes) de que, no lugar de uma represso brutal,

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    haveria um considervel apoio popular ao regime Stalinista36 a refutao, portanto, da

    caracterizao da formao social sovitica enquanto um monlito totalitrio.

    Apesar dessas concluses terem sido comuns a muitos estudos revisionistas, elas

    partiam de anlises diferentes, por vezes excludentes entre si. Acreditamos que tais anlises

    contm muitas contribuies importantes, mas nem por isso as reivindicamos integralmente.

    Ao contrrio, apresentaremos mais adiante aquilo que acreditamos ser a alternativa terica

    que, complementada com as contribuies produzidas no meio acadmico a partir da segunda

    metade do sculo xx, se torna um avanado instrumento de anlise da histria sovitica.

    Vamos, ento, a alguns exemplos dessas anlises revisionistas, bastante inovadoras em seu

    tempo.

    1.*. A()u"as das c%&ri+ui#es revisi%is&as

    1.*.1. ,&e!-e% C-e%

    Stephen Cohen, que utilizamos aqui como referncia para resumir os debates

    acadmicos do ps-guerra, atuou principalmente no sentido de resgatar algumas das

    alternativas histricas suprimidas pela vitria do Stalinismo. Seu trabalho se deuparticularmente no sentido de restaurar a importncia de Nikolai Bukharin enquanto terico

    de destaque dentro do Partido Bolchevique e durante os primeiros momentos da histria

    sovitica. Das suas pesquisas acerca de Bukharin, Cohen concluiu que existem diferenas

    fundamentais entre Bolchevismo e Stalinismo. Sua caracterizao do Stalinismo enquanto

    fenmeno poltico estabelece como sua principal marca distintiva o excesso e o

    extremismo, que teriam se mantido enquanto sua prpria essncia independemente das

    diversas mudanas pelas quais ele passou

    37

    .Em relao ao Partido Bolchevique e ao regime sovitico, Cohen aponta para uma

    considervel mudana ocorrida em suas estruturas, em concordncia com as consideraes

    que j haviam sido realizadas pelo historiador revisionista Robert Tucker. Estas teriam

    passado de um sistema de ditadura partidria caracterizada por uma poltica de liderana

    oligrquica dentro do partido governante, para uma ditadura pessoal38.

    36No que concerne essa suposio em particular, estudos mais recentes vieram a contest-la a partir de pesquisas

    arquivsticas. Exemplo disso a obra do j citado historiador marxista, Kevin Murphy,Revolution andCounterrevolution: Class Struggle in A Moscow Metal Factory.37Cf. Cohen, S. Op. cit.p. 48.38Id., ibid., p. 54.

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    A interpretao de Cohen do Stalinismo enquanto uma descontinuidade em relao ao

    Bolchevismo se baseia em uma anlise que encaramos bastante problemtica, e para a qual

    apresentaremos uma alternativa mais adiante, ao tratarmos da contribuies do marxismo.

    Resumidamente, este encara que a coletivizao forada da terra, realizada entre 1928 e 1929

    e costumeiramente chamada pelos revisionistas de uma revoluo pelo topo (revolution

    from above), teria sido o ponto de virada a partir do qual se consolidou a ruptura definitiva do

    Stalinismo em relao ao Bolchevismo: Esses anos de revoluo pelo topo foram,

    historicamente e programaticamente, o perodo de nascena do Stalinismo. A partir dessa

    primeira grande descontinuidade outras iriam se seguir39.

    Mas essa descontinuidade no se daria tanto pelos mtodos utilizados, e sim pelo

    programa. Para Cohen, a ruptura com o projeto da NEP seria a marca maior dadescontinuidade, uma vez que o programa defendido por Lenin seria aquele de um

    capitalismo de Estado que evoluiria gradualmente para o socialismo40. Dessa forma, Cohen

    encara que as teses de Bukharin seriam as que melhor representavam a continuidade do

    Bolchevismo, indicando inclusive que todas as outras propostas, como aquelas de Trotsky e

    Evgeny Preobrazhensky, se colocavam nos marcos da continuidade da NEP41.

    Alm da incompreenso acerca do programa econmico original da Oposio de

    Esquerda (um dos grupos que compuseram a Oposio Unificada em 1926), formulado porTrotsky, Preobrazhensky e outros quadros bolcheviques, essa anlise de Cohen demonstra

    certo desconhecimento acerca da evoluo do pensamento de Lenin.

    Se, por um lado, verdade que, por volta de 1918, Lenin tentou formular um conceito

    de capitalismo de Estado com o intuito de dar conta de explicar como se daria a transio da

    Unio Sovitica para o socialismo na conjuntura de isolamento internacional e baixo

    desenvolvimento das foras produtivas na qual ela se encontrou ao fim da guerra civil, por

    outro, esse conceito foi posteriormente abandonado, por volta de 1920

    42

    .No nossa inteno adentrar aqui no complexo debate acerca dos diferentes projetos

    defendidos pelos quadros do Partido Bolchevique durante os primeiros anos da nova

    formao social sovitica este pode ser facilmente encontrado em diversas obras. O que

    buscamos ressaltar foi que, apesar de suas limitaes e equvocos, Cohen foi capaz de

    elaborar uma anlise alternativa monocausalidade determinista que sustentava a narrativa-

    39Id., ibid., p. 62.40

    Cf.Id., ibid., p. 58.41Cf.Id., ibid., pp. 60-62.42Cf. Moshe, L.Lenins Last Struggle[1967]. Traduo de A. M. Sheridan Smith. 4 ed. Ann Arbor: TheUniversity of Michigan Press, 2008, pp. 26-28.

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    padro produzida pela escola totalitarista acerca da histria sovitica e agentes importantes

    como o Partido Bolchevique em geral e suas lideranas em particular. Vejamos, ento,

    algumas outras contribuies.

    1.*.$. arc /err

    Entre os revisionistas cujos trabalhos obtiveram maior visibilidade consta o francs

    Marc Ferro, cuja obra de maior destaque foi A Revoluo de 1917, publicada em dois

    volumes (La Rvolution de 1917, 1967). Os estudos realizados por Ferro acerca da Revoluo

    Russa e da Unio Sovitica so um bom exemplo de uma perspectiva de histria vista de

    baixo. A partir deles, tal historiador contraps tese da continuidade o reconhecimento dedois momentos qualitativamente diferentes na histria sovitica: um primeiro, marcado pela

    ampla participao popular, e um segundo, no qual esta teria dado lugar ao domnio de uma

    burocracia governante.

    Em uma sntese produzida em 1980, Dos soviets burocracia, Ferro detalha os

    diferentes organismos de poder criados pelas massas russas no calor de suas lutas polticas e

    que eram, em grande parte, inspirados na experincia prvia de 1905. Ferro chamou a ateno

    para a existncia de uma srie de outros organismos para alm dos conhecidos soviets (osConselhos de Deputados), como os Comits de Bairro, os Comits de Greve, as diversas

    variantes de milcias operrias e, principalmente, os Comits de Fbrica. Organizaes essas

    que, ao atingirem expressividade, acabaram por gerar uma situao de duplo poder, uma

    vez que acabaram por se tornar fontes paralelas de poder poltico muitas vezes contrapostas

    s decises do Governo Provisrio43.

    A partir do estudo de alguns desses organismos, Ferro ressaltou a espontaneidade que

    por vezes se fez presente em seu surgimento, o que contradiz a interpretao cannicapresente no consenso acadmico das dcadas anteriores, segundo a qual a revoluo teria sido

    sobretudo obra de uma minoria maquiavlica sem respaldo das massas.44

    Porm, se Ferro se afasta do consenso totalitarista ao reconhecer o papel das massas,

    em especial da classe proletria enquanto sujeito histrico dotado de conscincia e iniciativa

    43Cf. Ferro, M.Dos soviets a burocracia [1980]. Traduzido por Cludio Nascimento. Porto Alegre: CentroEcumnico de Evangelizao, Capacitao e Assessoria, 1988, PP. 13-21.44O principal historiador revisionista a contrapor tal tese sovietloga a partir de uma densa pesquisa arquivstica

    foi Alexander Rabinowitch, em sua obra Prelude to Revolution The Petrograd Bolsheviks and the July 1917Uprising (1968). Recentemente, tal historiador atualizou suas anlises em uma obra de flego. Cf. Rabinowitch,A. The Bolsheviks Come to Power. The Revolution of 1917 in Petrograd.Chicago: Haymarket Books, London:Pluto Press, 2004.

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    prprias, ele se aproxima daquele em sua avaliao no que diz respeito ao papel do Partido

    Bolchevique no processo de burocratizao do regime revolucionrio.

    Em sua anlise vista de baixo, Ferro busca contrapor a atuao dos sindicatos e

    tambm dos partidos em geral a essa espontaneidade das massas, estabelecendo entre esses

    agentes uma dicotomia direta45. Se essa contraposio demonstradamente vlida para

    organizaes como o agrupamento Menchevique, em relao a outras ela contradiz alguns dos

    dados citados pela prprio historiador nomeadamente, em relao ao Partido Bolchevique.

    Apesar das algumas generalizaes e amlgamas que Ferro produz em relao aos partidos,

    falando deles em geral por diversas vezes, este reconhece que os Bolcheviques

    simpatizavam com os diversos comits criados pelos trabalhadores46.

    Na realidade, entretanto, estes expressavam mais do que uma mera simpatia pelosrgos de dualidade de poder, como o demonstra o peso da presena de delegados

    bolcheviques na composio de alguns dos congressos nacionais e regionais desses comits,

    bem como documentos citados pelo prprio Ferro, em que lideranas bolcheviques, como

    Grigori Zinoviev, defendiam abertamente o controle operrio das empresas por parte dos

    comits de fbrica e sindicatos47.

    Sem resolver essa contradio entre sua anlise e os dados que apresenta, Ferro busca

    demonstrar o suposto papel dos Bolcheviques enquanto os responsveis diretos pelaburocratizao. De proponentes e defensores diretos da dualidade do poder48, estes teriam

    passado a seus maiores inimigos: quando, desde outubro, os soviets de deputados e os

    sindicatos foram dominados pelos bolcheviques, os prprios bolcheviques se voltaram contra

    as instituies populares autnomas49. Para Ferro isso teria ocorrido porque o surgimento e

    a extenso de um poder popular autnomo punha em causa a autoridade das instituies tipo

    partido e sindicato50.

    A partir dessa oposio, Ferro defende que teria se desenvolvido um duplo processo deburocratizao, ocorrido tanto pelo alto, quanto por baixo. Entretanto, os dados por ele

    apresentados mais uma vez contradizem as suas concluses, apesar de apontarem para uma

    45Cf.Id., ibid., pp.19 e 20.46Cf.Id., ibid., p. 21.47Cf.Id., ibid., p. 21.48Expressa na famosa consigna toda poder aos soviets, lanada por Lenin em suas Teses de Abrilde 1917 eaprovadas pelo Partido em uma Conferncia Extraordinria realizada no mesmo ano. Cf. Getzler, I. Outubro de

    1917: O debate marxista sobre a revoluo na Rssia. In: HOBSBAWM, Eric (org.).Histria do Marxismo.So Paulo: Paz e Terra, v. 5, 1985, p. 37.49Ferro, M. Op. cit., p. 25.50Id., ibid., p. 24. Grifo do original.

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    tendnciade aumento da dependncia das massas nas organizaes partidrias51e de prticas

    diferentes de burocracias espontneas derivadas da queda na participao popular por conta

    da guerra civil52.

    Essa tendncia, entretanto, no implica em um desaguamento direto no regime

    stalinista das dcadas posteriores revoluo, mas sim um fator que deve ser analisado em

    sua especificidade em conjunto com as alternativas e contratendncias que a eles se

    apresentaram na poca. Em grande parte, podemos encarar que os embaraos contra-factuais

    que marcam essa anlise de Ferro so frutos de um suporte terico inadequado, que parte do

    princpio da oposio entre partidos/sindicatos e organizaes autnomas/espontneas ou

    semiespontneas.

    Esse tipo de posio tpico de uma corrente poltica em especfico, o chamadocomunismo de esquerda(ou de conselhos)53. A proximidade de Ferro com essa vertente se

    faz ainda mais clara na sua avaliao da burocracia emergente, apressadamente classificada

    como uma nova classe, cujas caractersticas centrais seriam uma nova fonte de renda,

    atividade indita na sociedade, solidariedade funcional com o partido bolchevique e a ruptura

    com as atividades de suas classes de origem54. Caractersticas essas que permitem a distino

    de um grupo social especfico, mas no necessariamente de uma classe social, ao menos no

    no sentido marxista do conceito. Mais adiante abordaremos a insuficincia terica por detrsdessas caracterizaes, ao tratarmos daquilo que encaramos ser a melhor alternativa terica

    produzida para analisar a formao social sovitica.

    *.*.*. s-e Le0i%

    Por ltimo, no podemos deixar de mencionar as contribuies de Moshe Lewin, um

    dos primeiros revisionistas a se destacarem. Lewin foi um exilado polons que, antes deiniciar sua carreira de historiador na Frana, havia passado pela Unio Sovitica, onde

    trabalhara em uma fazenda coletiva, em uma metalrgica e onde servira no Exrcito

    51Id., ibid., pp. 25-26.52Id., ibid., p. 26-27.53Representantes destacados dessa tendncia poltica e terica que, vale ressaltar, um tanto quanto variada so Herman Gorter e Anton Pannekoek nos Pases Baixos, Karl Korsh na Alemanha e Amadeo Bordiga na Itlia.Uma representao brasileira pode ser encontrada nas produes de Maurcio Tragtenberg, comoReflexessobre o socialismo, 1986). Boa parte das crticas de Ferro aos sindicatos podem ser entendidas tambm como

    inspiradas nas posies da Oposio Operria, frao formada no seio do Partido Bolchevique em meados de1920 e liderada por figuras como Alexandra Kollontai e Alexander Chlyapnikov com as quais o autordemonstra clara simpatia ao longo de seu artigo aqui analisado.54Id., ibid., p. 28-29.

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    Sovitico. Influenciado por suas experincias passadas, Lewin estudou as relaes entre o

    campesinato e o regime sovitico (La Paysannerie et le Pouvoir Sovietique, 1966).

    Nos estudos seguintes, seu foco passou a residir principalmente nos projetos e no

    pensamento de figuras proeminentes do regime sovitico, bem como em suas estruturas

    polticas e econmicas. Em uma de suas obras de grande destaque, A ltima batalha de

    Lenin (Le Dernier Combat de Lenin, 1967), Lewin realizou uma pioneira anlise dos ltimos

    anos de vida do principal lder sovitico antes de Stalin, utilizando-se largamente do material

    presente em suas Obras Completas (especificamente sua 5 edio) e tambm de material

    ento recentemente liberado para o pblico, como o Dirio das Secretrias e uma coleo de

    memrias de uma das principais secretrias de Lenin55.

    Atravs da anlise que realizou a partir de tais materiais, fartamente cotejada por umprofundo conhecimento factual acumulado atravs de suas pesquisas anteriores, Lewin

    demonstrou as relaes tensas que existiam entre Lenin e os demais lderes do Partido

    Bolchevique (ento j chamado de Comunista) durante seus ltimos anos de vida,

    particularmente Stalin. Ao analis-las, Lewin destacou trs momentos especficos em que essa

    tenso assumiu um carter de conflito aberto.

    O primeiro foi o debate no Politburo (Bureau Poltico, principal rgo dirigente o

    Partido Comunista aps a revoluo) acerca do abandono ou no do monoplio do comrcioexterior. Disputa na qual Lenin se aliou a Trotsky contra a maioria do Politburo, que era

    favorvel ao abandono, e que perdurou de fins de 1921 at meados de 1922, com a vitria

    final da posio destes dois.

    O segundo foi o caso da agresso fsica que sofreu um dirigente do Partido Comunista

    da Gergia, Ordzhonikidze, por parte de um enviado do PC russo. Esse caso foi

    consideravelmente acobertado por Stalin e seus aliados prximos, que, nas palavras do

    prprio Lenin, trataram o ocorrido com conivncia

    56

    , levando-o a promover umainvestigao clandestina em fins de 1922 e meados de 1923, na qual contou mais uma vez

    com a colaborao prxima de Trotsky57.

    Por ltimo, o terceiro caso foi uma contenda pessoal entre Lenin e Stalin, gerada por

    conta deste ltimo ter supostamente ofendido a esposa de Lenin e militante do Partido,

    55Cf. Lewin, M. Op. cit., Preface.56Lenin, V. ltimos escritos e Dirio das secretrias (Ed. Por Henrique Canary). So Paulo: Editora Jos Luis eRosa Sundermann, 2012, p. 127.57

    Clandestina pois Lenin estava sob ordens estritas de seus mdicos para que no se envolvesse em nenhumtipo de atividade poltica, por conta de um derrame que sofrera aps um atentado no qual um militante doagrupamento Socialistas Revolucionrios (SR) o feriu com um tiro. Essas ordens haviam sido acatadas ereforadas pelo Politburo do PC, mas Lenin as infringiu por mais de uma vez.

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    Nadezhda Krupskaia frente ao que Lenin exigiu uma imediata retratao por parte daquele,

    ameaando romper relaes em uma carta de maro de 192358.

    Para alm de analisar esses conflitos entre Lenin e os demais dirigentes do Partido

    Comunista, que teriam marcado o que Lewin caracterizou como o eclipse [de sua] cabea

    suprema59, este tambm demonstrou a intensa preocupao que marcaram os ltimos anos de

    atividade de tal dirigente em relao aos rumos que o Estado sovitico vinha tomando. Um

    dos temas que predominaram em seus ltimos escritos o que, em suas prprias palavras,

    Lenin nomeava de questo burocrtica, isto , a progressiva substituio das massas pelo

    Partido e, por sua vez, a substituio deste pelos estratos administrativos internos e estatais.

    Essa preocupao, bem como as medidas que Lenin buscou para reverter tal

    fenmeno, demonstram de forma clara que no existia uma linha direta de continuidade entreseus planos e seu pensamento e aqueles de Stalin, que viria a se tornar o smbolo mor da

    culminao de tal processo de domnio da burocracia sobre as massas soviticas e sobre o

    prprio Partido Bolchevique.

    Conforma conclui Lewin, o tipo de regime que se consolidou na dcada de 1930 no

    s no fazia parte dos planos estratgicos dos Bolcheviques, como foi fruto de uma srie de

    elementos muito mais diversos do que supunha o consenso sovietlogo e sua defesa de uma

    continuidade ininterrupta entre 1917 (ou mesmo 1903) e o regime stalinista. Contra essaperspectiva, Lewin ressaltou a importncia da necessidade de uma perspectiva histrica para a

    devida compreenso das origens desse regime:

    [...] Leninist doctrine did not originally envisage a monolithic state, nor even astrictly monolithic party; the dictatorship of the Party overthe proletariat was neverpart of Lenins plans, it was the completely unforeseen culmination of a series ofunforeseen circumstances. [] it is no true that the concentration of power thatreached its apogee with Stalinist regime was the result of ideas and splits of 1903-1904. It is in the history of a later period, in the events that followed the Russianrevolution and the way in which they molded theory, that its origin is to be found.60

    Para tal historiador, o regime stalinista que se consolidou por volta da dcada de 1930

    seria fruto do enfraquecimento paulatino da sociedade civil que havia florescido dentro dos

    limites estreitos do czarismo e se desenvolvido com os primeiros anos do regime sovitico.

    Esse enfraquecimento, em grande parte engendrado pelos considerveis desgastes que a

    guerra civil produzira na vida do pais, teria levado a uma concentrao de tarefas cada vez

    maior na esfera do Estado. Essa concentrao, por sua vez, teria se expandido como fruto da

    58Id. Ibid., p. 125.59Lewin, M. Op. cit., p. 35.60Id., ibid., p. 17. Grifo nosso.

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    coletivizao e da industrializao foradas da Era Stalin, que atuaram como catalisadores

    para uma sequncia de crises que retroalimentaram as tendncias concentracionista,

    culminando no que Lewin chamou de Estado-Leviat61.

    Ademais, os estudos de Lewin acerca do pensamento de Lenin tambm o levaram a

    contestar a suposio totalitarista de que o Partido Bolchevique seria um monlito composto

    de fanticos na base e de manipuladores ditatoriais no topo. Ao contrrio, demonstrou que at

    mesmo uma figura proeminente como Lenin necessitava travar duras batalhas internas para

    fazer valerem suas posies, sendo este muito mais um lder do que um ditador62.

    Por suas contribuies, acreditamos que sua perspectiva de como produzir um trabalho

    histrico constitui ainda hoje um referencial crtico central para qualquer um interessado em

    realizar pesquisas de qualidade, seja sobre a Revoluo Russa ou qualquer outro objeto:

    [...] Os estudos histricos podem contribuir para restabelecer o equilbrio e oferecerinterpretaes mais satisfatrias, recorrendo aos truques do ofcio: narrar odesenvolvimento dos eventos, mas tambm apontando suas tendncias; tratar asideologias, mas sem isol-las das instituies e das estruturas sociais; estudar aspersonalidades mais destacas, mas sem esquecer, alm da rede de seus subordinadosdiretos, tambm as grandes massas, mesmo que alguns lderes as tenhamconsiderado com desprezo; examinar os Estados enquanto elementos importantes desistemas sociais que se modificam com eles e neles.63

    1.. O re&r% da &ese da c%&i%uidade e a i%f(u2%cia de /ra%is /ure&

    Apesar de todo o esforo realizado pelos revisionistas para remover a tese da

    continuidade do seio da historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica, esta retornou

    recentemente a tal campo de estudos sob nova roupagem, levemente distinta daquela dos

    sovietlogos e reivindicando-se crtica em relao a tal vertente. Mesmo este retorno se

    constituindo at o momento enquanto uma tendncia marginal dentro do campo da

    historiografia ps-Muro de Berlim, como ngelo Segrillo apropriadamente nomeou o atual

    momento historiogrfico64, encaramos ser relevante travarmos um debate com a mesma.

    Acreditamos que um retorno historiografia dos consensos forjados pela literatura

    cold warrior ao longo das dcadas de 1950 e 1960, ainda que sob nova roupagem, seria

    extremamente danoso, pois levaria a um novo empobrecimento intelectual do mesmo, com a

    61Cf.Id.. Para uma conceituao do stalinismo. In: Hobsbawm, E. (org.)Histria do Marxismo, cit,.v. 7,

    1986, pp. 221-222.62Id. Lenins Last Struggle, cit., p. 41-42.63Id.Para uma conceituao do stalinismo, cit.pp. 206-207.64Segrillo, . Op. cit., p. 78.

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    retomada de explicaes deterministas e teleolgicas. Ademais, uma vez que os mesmos j

    foram largamente contestados a partir de insumos factuais, de difcil justificao a

    relevncia cientfica de buscar ressuscit-los dentro deste campo historiogrfico.

    No obstante essas consideraes, os proponentes da nova tese da continuidade, apesar

    de condenarem formalmente o paradigma totalitarianista, reproduzem muitos de seus

    aspectos. Ao mesmo tempo, os mesclam com outro referencial, uma vez que se inspiram nas

    anlises realizadas por Franois Furet acerca da Revoluo Francesa de 1789 contendo

    estas o principal paradigma que orienta a nova forma da velha tese. Pode-se afirmar que os

    pesquisadores com elas identificados buscam transpor para o campo da sovietologia alguns

    dos principais pressupostos tericos formulados por Furet, mesmo que isso leve muitas vezes

    a anlises contrafactuais e muito distantes do campo da Histria Social com o qual buscamcerta proximidade em termos de credenciais historiogrficas.

    1.. /ra%is /ure& e revisi%is" %e(i+era(

    A partir de meados da dcada de 1960 at o final da dcada de 1980, Furet produziu

    diversos estudos acerca da Revoluo Francesa, tendo chegado ao Bicentenrio da

    Revoluo (1989) como um dos historiadores recentes de maior visibilidade neste campo orei do bicentenrio, como por vezes foi chamado pela mdia francesa. Sua produo dessa

    poca foi marcada centralmente pela tentativa de estabelecer uma alternativa analtica s

    interpretaes historiogrficas que ele nomeou de jacobino-marxistas (representada por

    historiadores como Albert Soboul e Georges Lefebvre)65. Tentativa esta que confluiu junto a

    outros esforos na criao de uma reviso historiogrfica que tinha como principal referncia

    a tentativa de Alfred Cobban, nos anos 1950, de questionar o carter de revoluo burguesa

    de 1789.A sntese da proposta historiogrfica de Furet foi publicada na forma de uma

    coletnea, na obra Pensando a Revoluo Francesa (Penser la Rvolucion franaise, 1978).

    Tal obra se tornou bastante popular, principalmente pela visibilidade conferida pela mdia a

    seu autor. Entretanto, segundo a avaliao crtica de Eric Hobsbawm, a empreitada de Furet

    no teria fornecido dados novos historiografia da Revoluo Francesa. Ela teria se resumido

    a reinterpretao de dados provenientes de trabalhos produzidos por historiadores que no

    compartilhavam de sua empreitada, principalmente pesquisadores norte-americanos e

    65Cf. Correa, P.Histria, Poltica e Revoluo em Eric Hobsbawm e Franois Furet. So Paulo, 2006.Dissertao (Mestrado em Histria Social) Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, pp. 50-63.

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    ingleses66. Para Hobsbawm, o esforo empreendido por Furet sequer teria como objeto real a

    Revoluo de 1789, mas sim as grandes generalidades historiogrficas e polticas que podem

    ser lidas nela67.

    Dessa forma, ao retomar autores como Alexis de Tocqueville, Franois Guizot e

    Augustin Cochin, Furet teria se apropriado de seus escritos de uma forma extremamente

    seletiva, visando elaborar uma narrativa histrica que levasse condenao da experincia

    revolucionria, constituindo assim uma denncia poltica mais do que um trabalho

    historiogrfico srio68.

    Colocando essa empreitada em seu devido contexto, Hobsbawm encara

    corretamente, a nosso ver que tal operao de reviso historiogrfica ocorreu, sobretudo,

    sob o signo da condenao da Revoluo Russa e dos movimentos correlatos que elainfluenciou nas dcadas posteriores69. No contexto acadmico e intelectual francs mais

    especificamente, no qual Furet se encontrava, a mesma teria ligao menos com uma ameaa

    poltica revolucionria que se colocasse no horizonte prximo e a qual essa empreitada

    buscasse responder no campo das idias, e mais com as prprias paixes dos intelectuais

    nela envolvidos, que teriam buscado em seu esforo de reviso estabelecer um ajuste de

    contas com seu passado marxista. Isso porque, em tal contexto, haviam se fundido na luta

    antifascista os ideais Iluministas e Republicanos, originando uma identidade poltica radicalde esquerda que remontava herana de 1789 herana essa que tais intelectuais buscavam

    combater, aps t-la substitudo por um liberalismo anticomunista70.

    Em suma, ao rejeitarem a revoluo enquanto um paradigma poltico da

    transformao, bem como enquanto uma categoria analtica para processos histricos, tais

    intelectuais, dos quais Furet foi sem dvidas o mais destacado, se voltaram para a Revoluo

    Francesa, a revoluo por excelncia, e buscaram descontra-la. Em sua empreitada, chegaram

    inevitavelmente na descontrao tambm da Revoluo Russa. Assim, nas palavras deHobsbawm, a reviso liberal da histria revolucionria francesa inteiramente dirigida, via

    1789, para 191771. Dessa forma, comparaes entre ambas abundaram nos escritos de Furet e

    de seus companheiros revisionistas, em uma tentativa de usar a experincia da Revoluo

    66Cf. Hobsbawm, E. Ecos da Marselhesa[1990]. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 106.67Cf.Id. Ibid. p. 107.68

    Cf.Id. Ibid. pp. 110-111.69Cf.Id. Ibid. p. 110.70Cf.Id. Ibid. pp. 112-13.71Cf.Id. Ibid. p. 110.

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    Francesa como um argumento contra as revolues comunistas modernas e, inversamente,

    avaliar criticamente Robespierre luz de Stalin ou Mao72.

    Mas essa empreitada no foi exclusiva de Furet ou do meio intelectual francs. Ela se

    insere em um movimento historiogrfico mais amplo, comumente nomeado de

    revisionismo termo que aqui j assume um significado distinto daquele utilizado pelos

    historiadores sociais da Revoluo Russa anteriormente mencionados, e que carrega um forte

    senso de crtica negativa. Em um balano historiogrfico nomeado Reviso e revisionismo

    historiogrfico: os embates sobre o passado e as disputas polticas contemporneas, o

    historiador Demian de Melo buscou estabelecer os traos centrais deste e mapear seus

    principais representantes.

    Conforme aponta Melo, em um mesmo momento histrico, marcado pelascontrarrevolues no Leste Europeu e pela queda do Muro de Berlim portanto, pela

    ascenso do projeto neoliberal , diferentes historiadores buscaram reinterpretar eventos

    marcantes do passado de seus respectivos pases, compartilhando entre si um mesmo carter

    apologtico e o referencial no pensamento neoliberal do fim do sculo XX 73. Foi a partir

    dos embates que travaram com outros historiadores que receberam a nomenclatura de

    revisionistas, enquanto uma sntese dessas acusaes.

    Mas nem sempre essas empreitadas individuais so vistas como parte de ummovimentohistoriogrficoque v alm das especificidades de cada pas, conforme o estamos

    encarando a partir das anlise de Melo. Segundo o mesmo, a abordagem de Furet, que

    podemos estender em traos gerais aos demais revisionistas por ele analisados e que

    justifica essa forma de encar-los enquanto expresses diversificadas de um mesmo

    fenmeno,

    [...] relacionou-se de forma mais ampla por uma (normativa) concepo do fazerpoltica na modernidade que busca, entre outras coisas, substituir o tema darevoluo pelo tema da democracia, separando um do outro e transformando oprimeiro numa maldio e o segundo na chave da teleologia liberal no futurodesejvel e nico possvel.74

    Esses outros revisionistas que compartilhariam de tal abordagem presentes na

    produo de Furet seriam principalmente o alemo Ernst Nolte e seus aliados na reviso

    historiogrfica acerca do Nazismo, que desencadeou a polmica que ficou conhecida como

    72

    Cf.Id. Ibid. p. 111.73Melo, D. de. Reviso e revisionismo historiogrfico: os embates sobre o passado e as disputas polticascontemporneas.Marx e o Marxismo, v. 1, n. 1, jul/dez de 2013, p. 53.74Id. ibid., p. 53.

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    Historikerstreit (a querela dos historiadores), bem como o italiano Renzo de Felice, com

    sua reviso acerca do Fascismo. Mas tambm se incluem na lista outros nomes menos

    famosos, ligados a empreitadas revisionistas semelhantes em Portugal (acerca do regime de

    Salazar) e na Espanha (acerca do regime de Franco), chegando ainda ao meio acadmico

    brasileiro e incluindo historiadores que buscam reinterpretar, a partir de tal base, as principais

    questes acerca do golpe de 1964 e da ditadura empresarial-militar por ele estabelecido 75.

    Mas, para alm de suas motivaes polticas e de seu sentido mais geral, no que

    especificamente consistiu o revisionismo de Furet, cuja influncia acreditamos estar no bojo

    da nova tese da continuidade? Como apontamos, destaca-se em seus escritos a influncia

    (seletiva) das anlises de Tocqueville e de Cochin, a partir dos quais Furet assentou sua

    compreenso da Revoluo Francesa no uso do par conceitual continuidade-ruptura.Apesar de ser aparentemente antittico, esse par foi utilizado por Furet em um sentido

    de complementaridade dialtica e apresentado enquanto o substituto mais apropriado para o

    conceito de revoluo burguesa, que engendra o entendimento da Revoluo Francesa

    enquanto uma radical mudana social, correspondente s necessidades objetivas da classe

    capitalista76.

    A partir de Tocqueville, Furet criticou duramente essa noo da revoluo enquanto

    uma ruptura radical do tecido histrico, defendendo que aquela s pode ser devidamentecompreendida pelo vis da continuidade: toda a conceitualizao da histria revolucionria

    comea pela critica da idia de Revoluo tal como ela foi vivida pelos seus atores e

    veiculada pelos seus herdeiros: ou seja, como uma transformao radical e como a origem de

    um tempo novo77.

    Essa continuidade se daria pela suposio da revoluo ter sido fundamentalmente

    uma aceleraode processos que j se faziam presentes sob a monarquia e que teriam sido

    plenamente realizados com o advento da Repblica entre os quais se destacariam,sobretudo, o desenvolvimento capitalista a partir do campo78e a constituio de um modelo

    de poder administrativo centralizado (o chamado Estado moderno)79.

    75Id. ibid., passim.76Cf. Furet, F. Pensar a revoluo francesa. Traduo de Rui Fernandes de Carvalho. Lisboa: Edies 70, 1983,p. 38. Ao conceito de revoluo enquanto transformao da ordem scio-econmica, Furet contrape a definiode um espao histrico que separa um poder de outro poder, e em que uma ideia da ao humana sobre a

    histria se substitui instituda (Id., ibid., p. 45).77Id., ibid.,p. 30.78Cf.Id., ibid., p. 24.79Cf.Id., ibid., p. 32.

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    Nas palavras do prprio Tocqueville, citadas por Furet, a Revoluo resolveu

    repentinamente, por um esforo convulsivo e doloroso, sem transio, sem precaues, sem

    deferncias, o que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo80. Dessa forma, a

    revoluo seria na realidade o desabrochar do nosso passado. Longe de constituir uma

    ruptura, ela s pode compreender na e pela continuidade histrica. Cumpre esta continuidade

    nos fatos, embora aparea como uma ruptura nas conscincias81.

    Frente a essa interpretao, a revoluo enquanto ruptura reduzida a to somente

    uma iluso da transformao uma ideologia da ruptura radical com o passado, criada

    pelos atores revolucionrios e posteriormente reproduzida pelos historiadores com eles

    identificados de uma forma ou de outra82.

    Mas a influncia de Tocqueville sobre Furet no foi soberana. A partir dessacompreenso da ruptura enquanto um fenmeno restrito ao mbito das mentalidades, presente

    em germe na anlise de Tocqueville, Furet buscou as reflexes de Cochin. Para este, a

    principal caracterstica da Revoluo Francesa seria uma descontinuidade poltica e

    cultural, na qual se afiguraria o advento da ideologia democrtica83.

    Assim, a reviso historiogrfica de Furet estava assentada no princpio da

    continuidade, negando Revoluo Francesa um carter de revoluo social e, portanto, de

    ruptura radical. Ao mesmo tempo, esse princpio era complementado com a concesso deque de fato teria ocorrido uma mudana qualitativa, mas que esta se limitava ao campo das

    mentalidades. Essa concesso, entretanto, equivalia a afirmar que a ruptura revolucionria

    no havia passado de uma construo, no tendo se dado na esfera do real.

    Conforme sintetizou a historiadora Priscilla Correa, a partir da dialtica do poder do

    imaginrio, privilegiou-se, portanto, o aspectopolticoe culturaldessa Revoluo84. J para

    o anteriormente citado Josep Fontana, que compartilha de uma avaliao crtica semelhante

    de Hobsbawm, em termos gerais, o objetivo essencial [do revisionismo liberal] era negar arevoluo em si como fenmeno com consequncias de transformao social [...] e apresent-

    la como a origem de todas as aberraes polticas do sculo XX, especialmente da revoluo

    sovitica e do triunfo do bolchevismo85.

    1..$. A %va &ese da c%&i%uidade

    80ApudCorrea, P. Op. cit., p. 201, nota 145. Grifo nosso.81Furet, F. Op. cit., p. 31.82

    Id., ibid.,p. 34. Cf. tambmId., ibid., pp. 31 e 45.83Id., ibid., p. 49.84Correa, P. Op. cit., p. 203. Grifo nosso.85Fontana, J. Op. cit., p. 358.

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    Vejamos ento como se expressa a influncia de Furet e do revisionismo neoliberal

    (somada a aspectos do velho consenso sovietlogo) entre aqueles que buscam atualmente

    estabelecer uma nova tese da continuidade no campo da historiografia da Revoluo Russa e

    da Unio Sovitica. Tomamos aqui enquanto exemplos dessa tendncia alguns dos

    pesquisadores que participaram da organizao da obra coletiva O sculo dos comunismos

    (Le Sicle des Communismes, 2000, seguido de uma edio aumentada de 2004)

    principalmente Bruno Groppo e Claudio Ingerflom, ambos vinculados a grupos de pesquisa

    pertencentes ao Centre Nationale de Recherche Scientifiquefrancs (CNRS rgo estatal de

    fomento pesquisa das mais diversas reas) e a instituies universitrias francesas86.

    O conjunto dos organizadores deLe Sicle...alegam que tal obra constitui um esforode superao do quadro historiogrfico francs, muito marcado pela obra coletiva organizada

    por Stphane Courtois, O livro negro do comunismo (Le livre noir du communisme, 1997)

    e, por mais que possa parecer contraditrio, pelo ensaio de Franois Furet, O passado de uma

    iluso (Le passe dune illusion Essai surlide communiste au xxesicle, 1995). Para eles, a

    historiografia influenciada por essas duas obras teria imprimido s produes historiogrficas

    francesas uma abordagem marcadamente simplista, muito prxima daquela da sovietologia87.

    Eles se propuseram, ento, a contrapor a essa historiografia uma abordagemmultifacetada do fenmeno sovitico em particular e das diversas experincias comunistas do

    sculo xx em geral. Para tal, buscam reunir contribuies aliceradas na Histria Social e em

    outras reas do saber acadmico, produzindo uma obra diversificada, que chega at a incluir

    entre seus materiais um artigo do pensador marxista franco-brasileiro Michael Lwy

    tambm membro pesquisador do CNRS.

    Bernard Pudal, por exemplo, ao comentar sobre o projeto do livro durante uma

    entrevista realizada em 2008, afirmou que a empreitada partiu de uma rejeio interpretaototalitarianista/sovietloga, responsvel por simplificar a interpretao das formaes sociais

    86Groppo diretor de pesquisa do CNRS, onde atua no Centre dhistoire sociale du XXe sicle, sendo tambmligado Universidade de Paris I, onde exerce funes docentes e atua como pesquisador no Centre de RecherchedHistoire des Mouvements Sociaux et du Syndicalism. Ele mais conhecido nomeio acadmico brasileiro porsuas elaboraes no que diz respeito ao tema memria, sendo membro do comit cientfico dos Cahiers

    Amrique latine Histoire et Mmoire. Ingerflom tambm diretor de pesquisa do CNRS, onde atua no Centred'tudes des mondes russes, caucasiens et centre-europen, sendo tambm membro do comit de redao da

    Revue des tudes slaves.87Conforme mostraremos adiante, os herdeiros de Furet no campo da historiografia da Revoluo Russa noreivindicam sua prpria anlise do tema, encarando que esta se distancia da que havia feito durante as dcadas de1970 e 1980 acerca da Revoluo Francesa.

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    supostamente comunistas e dos grupos que se colocavam sob a bandeira vermelha da foice e

    do martelo. Na ocasio, Pudal afirmou que

    Le sicle des communismes analisado a partir do campo dos especialistas docomunismo. Ns estvamos confrontados com o sucesso de duas obras Le passdune illusion, de Franois Furet, e Le livre noir du communisme, de StphaneCourtois. Esses dois livros reivindicavam no somente uma interpretaototalitria do comunismo, mas tambm repudiavam todas as aquisies da histriasocial. A reduo da histria do comunismo a uma essncia (as representaesqualificadas como ilusrias no trabalho de Furet e a criminalidade, em Courtois) nonos convinha. O plural do ttulo do nosso livro tem como objetivo colocar emdvida essas simplificaes, sem subestimar as empreitadas de homogeneizaodo mundo comunista sob a frula sovitica e as organizaes especficas (EscolaLeninista Internacional, a Internacional Comunista logo aps o Kominform, ascomisses de gerentes, as pesquisas biogrficas internas ao mundo comunista, etc.).

    Ns, ento, reunimos pesquisadores (franceses e estrangeiros) bastante diferentes,mas que tinham em comum o fato de no se reconhecerem nas interpretaes deFuret e de Courtois. [...]88

    Dessa forma, Le sicle reuniu contribuies de diversos especialistas advindos de

    variadas reas dos estudos sociais, como historiadores, antroplogos, socilogos e politlogos

    sendo a sua maioria pesquisadores franceses (ou alocados na Frana) e vinculados com o

    CNRS. Para apresentar tais contribuies de forma coerente, os organizadores de Le Sicle o

    dividiram em partes temticas, tendo sido cada uma delas coordenada por um pesquisador

    diferente.

    Abrangendo temas que vo da Unio Sovitica a Partidos Comunistas de diferentes

    pases, alm de outras formaes sociais, como a China, foi inevitvel que Le sicle tenha se

    constitudo enquanto uma obra heterognea, o que significa que nem todos os pesquisadores

    nela reunidos compartilham das anlises inspiradas na produo de Furet acerca de Revoluo

    Francesa. A obra inclui, por exemplo, algumas contribuies de pesquisadores norte-

    americanos identificados com a escola revisionista e que em nada se aproximam dessa

    inspirao, como o caso de Lynne Viola e Lewis Sigelbaum.

    Pudal e outros organizadores deLe sicle podem rejeitar o paradigma totalitarianista e

    alguns dos consensos historiogrficos produzidos pela sovietologia e presentes na

    historiografia francesa, mas a parte da obra que trata da Unio Sovitica em especfico mostra

    que tal rejeio no foi comum a todos organizadores e pesquisadores convidados a

    publicarem contribuies.

    88Pudal, B. Da militncia ao estudo do militantismo: a trajetria de um politlogo [2008]. Entrevistaconcedida a K. Tomizaki. Traduo de Daniela Ferreira. Pro-Posies, Campinas, v. 20, n. 2 (59), maio/agosto2009, p. 129-138.

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    O mesmo vlido para a suposta rejeio a Franois Furet, uma vez que tal autor

    largamente citado como referncia positiva no quarto captulo da obra, Da Rssia Unio

    Sovitica, organizado por Ingerflom. Este e parte dos pesquisadores por ele reunidos nesse

    captulo deLe sicle, ao contrrio do que afirma Pudal, realizam uma transposio ao campo

    da historiografia da Revoluo Russa e da Unio Sovitica de alguns aspectos centrais que

    pautaram os trabalhos de