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14 H ISTÓRIA DA CIÊNCIA Fundos para conter conflitos do pós-guerra na colônia japonesa beneficiaram física Este ano, o Brasil comemora os cem anos da chegada dos primeiros imi- grantes japoneses para trabalhar nas lavouras de café do estado de São Pau- lo. Mas, de 1908 até hoje, não é só na agricultura que as relações entre os dois países têm sido frutíferas. Os re- sultados da Colaboração Brasil-Japão (CBJ) na área de raios cósmicos ates- tam a prosperidade do intercâmbio nipo-brasileiro noutro ramo da ciên- cia: a física das partículas elementares. Quem vê o êxito do presente talvez não imagine o passado dramático que está por trás dele. Esta área da física beneficiou-se de recursos arrecadados no Brasil para conter conflitos inter- nos surgidos na colônia japonesa no pós-guerra. Capítulos da história da física se cruzam com capítulos das his- tórias mundial, do Brasil e do Japão. Capítulos que desafiaram não só a lei da física, de que “similares se repe- lem”, mas a hipotética “lei social” que, diferente daquela, pressupõe que “os semelhantes se aproximam”. Como toda regra tem exceção, toda lei é pas- sível de ser derrubada. SIMILARES SE TRAEM Um dos episó- dios trágicos e específicos da histó- ria da imigração, ainda hoje tabu para a comunidade nipônica, resul- tou no assassinato de pelo menos 23 japoneses pelos próprios japo- neses. Trata-se da divisão da colô- nia em dois grupos, nos anos 1930-40: os katigumi acreditavam na vitória do Japão na Segunda Guerra Mundial e eram a maioria da colônia, que lutava pela sobrevi- vência, estava desiludida e preten- dia voltar para o Japão; já os make- gumi, considerados “derrotistas” ou “esclarecidos”, eram uma minoria de cerca de 20%, que sabia da der- rota. Alguns katigumis fanáticos cometeram atentados contra make- gumis, que consideravam traidores. Numa tentativa de pôr fim definiti- vamente a esse conflito interno, um grupo de makegumis resolveu arreca- dar fundos para trazer ao Brasil o professor Hideki Yukawa – primeiro cidadão japonês a ganhar um Prêmio Nobel, o de física, em 1949 –, para que desse o testemunho sobre a der- rota do Japão. Num livro que conta a história da CBJ, o físico japonês Yoi- chi Fujimoto transcreveu a carta- convite feita à Yukawa, datada de 17 de agosto de 1952. O documento era assinado, dentre outros, por Shigueo Watanabe, atualmente professor ti- tular aposentado do Instituto de Fí- sica da USP, e pelo engenheiro Aya- mi Tsukamoto que, segundo Wata- nabe, teria liderado a iniciativa. Yukawa, porém, não pôde viajar ao Brasil naquela época. Então, os inte- lectuais nipo-brasileiros que haviam arrecadado e remetido ao Japão, através do jornal Mainichi Press, o montante de cerca de um milhão de ienes (hoje o equivalente a cerca de R$ 60 mil), para financiar sua via- gem, resolveram doá-lo à Universi- dade de Quioto, que passava por sé- rias dificuldades no pós-guerra, conta Edison Shibuya, do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A pes- quisa usando radiação cósmica se deve à escassez de recursos. No Ja- pão, nessa época, era a forma de fa- zer pesquisa de vanguarda utilizan- do poucos recursos”, explica ele. Fujimoto relata que foi com parte desse dinheiro que pôde comprar uma peça para transformar seu mi- croscópio monocular em binocular. BR Notícias do Brasil Siarc-Unicamp Lattes e Akinori Ohsawa brindam os primeiros resultados da cooperação

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    HI S T Ó R I A D A C I Ê N C I A

    Fundos para conterconflitos do pós-guerrana colônia japonesabeneficiaram física

    Este ano, o Brasil comemora os cemanos da chegada dos primeiros imi-grantes japoneses para trabalhar naslavouras de café do estado de São Pau-lo. Mas, de 1908 até hoje, não é só naagricultura que as relações entre osdois países têm sido frutíferas. Os re-sultados da Colaboração Brasil-Japão(CBJ) na área de raios cósmicos ates-tam a prosperidade do intercâmbionipo-brasileiro noutro ramo da ciên-cia: a física das partículas elementares.Quem vê o êxito do presente talvez

    não imagine o passado dramático queestá por trás dele. Esta área da físicabeneficiou-se de recursos arrecadadosno Brasil para conter conflitos inter-nos surgidos na colônia japonesa nopós-guerra. Capítulos da história dafísica se cruzam com capítulos das his-tórias mundial, do Brasil e do Japão.Capítulos que desafiaram não só a leida física, de que “similares se repe-lem”, mas a hipotética “lei social” que,diferente daquela, pressupõe que “ossemelhantes se aproximam”. Comotoda regra tem exceção, toda lei é pas-sível de ser derrubada.

    SIMILARES SE TRAEM Um dos episó-dios trágicos e específicos da histó-ria da imigração, ainda hoje tabupara a comunidade nipônica, resul-tou no assassinato de pelo menos23 japoneses pelos próprios japo-neses. Trata-se da divisão da colô-nia em dois grupos, nos anos1930-40: os katigumi acreditavamna vitória do Japão na SegundaGuerra Mundial e eram a maioriada colônia, que lutava pela sobrevi-vência, estava desiludida e preten-dia voltar para o Japão; já os make-gumi, considerados “derrotistas” ou“esclarecidos”, eram uma minoriade cerca de 20%, que sabia da der-rota. Alguns katigumis fanáticoscometeram atentados contra make-gumis, que consideravam traidores.Numa tentativa de pôr fim definiti-vamente a esse conflito interno, umgrupo de makegumis resolveu arreca-

    dar fundos para trazer ao Brasil oprofessor Hideki Yukawa – primeirocidadão japonês a ganhar um PrêmioNobel, o de física, em 1949 –, paraque desse o testemunho sobre a der-rota do Japão. Num livro que conta ahistória da CBJ, o físico japonês Yoi-chi Fujimoto transcreveu a carta-convite feita à Yukawa, datada de 17de agosto de 1952. O documento eraassinado, dentre outros, por ShigueoWatanabe, atualmente professor ti-tular aposentado do Instituto de Fí-sica da USP, e pelo engenheiro Aya-mi Tsukamoto que, segundo Wata-nabe, teria liderado a iniciativa. Yukawa, porém, não pôde viajar aoBrasil naquela época. Então, os inte-lectuais nipo-brasileiros que haviamarrecadado e remetido ao Japão,através do jornal Mainichi Press, omontante de cerca de um milhão deienes (hoje o equivalente a cerca deR$ 60 mil), para financiar sua via-gem, resolveram doá-lo à Universi-dade de Quioto, que passava por sé-rias dificuldades no pós-guerra,conta Edison Shibuya, do Institutode Física da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp). “A pes-quisa usando radiação cósmica sedeve à escassez de recursos. No Ja-pão, nessa época, era a forma de fa-zer pesquisa de vanguarda utilizan-do poucos recursos”, explica ele.Fujimoto relata que foi com partedesse dinheiro que pôde compraruma peça para transformar seu mi-croscópio monocular em binocular.

    BRN o t í c i a s d o B r a s i lSiarc-Unicamp

    Lattes e Akinori Ohsawa brindam osprimeiros resultados da cooperação

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  • N o t í c i a s d o B r a s i l

    De acordo com ele, outros cientistastambém puderam preparar trabalhospara a conferência internacional so-bre física teórica ocorrida em Quioto,em 1953. Além disso, o dinheiro en-viado estimulou a formação de umgrupo de pesquisas experimentaispioneiras com emulsão nuclear. Ogrupo, formado por Yukawa, Sin-Iti-ro Tomonaga e Masatoshi Koshiba –vencedores do Nobel de física em1949, 1965 e 2002, respectivamente–, além de, entre outros, Mituo Take-tani e Fujimoto, seis anos mais tarde,propôs ao cientista brasileiro CésarLattes a colaboração entre físicos teó-ricos e experimentais de ambos os paí-ses. “Assim, o gesto da colônia japone-sa, convidando o professor Yukawapara auxiliar nos problemas enfrenta-dos no Brasil, contribuiu diretamentepara a constituição da ColaboraçãoBrasil-Japão de Raios Cósmicos e, in-diretamente, para a consolidação dachamada física das partículas elemen-tares”, comemora Shibuya. Em 1958, quando das comemora-ções do cinqüentenário da imigra-ção japonesa, os professores Taketa-ni e Yukawa vieram ao Brasil e fize-ram questão de visitar o vilarejo deMizuho, localizado em São Bernar-do do Campo (SP). “O lugar foi me-morável, pois o movimento para darsuporte à física japonesa foi iniciadopor um pequeno círculo de jovensdesse vilarejo”, lembra Fujimoto, econtinua: “foi um grande evento pa-ra a colônia japonesa, dando forte

    apoio tanto para a colônia quantopara a física japonesa. Ao mesmotempo, foi o início da amizade entrefísicos de ambos os países”. Tam-bém em 1958, o professor Taketanifoi convidado a ser diretor científi-co do Instituto de Física Teórica emSão Paulo. “Ele aceitou o convite equis aproveitar a oportunidade paraexpressar sua gratidão aos emigran-tes japoneses pelo valoroso apoio”,comenta Fujimoto. “O professorTaketani”, conta Edison Shibuya,“toda vez que eu ia ao Japão, faziaquestão de me encontrar, para mos-trar a gratidão deles à colônia japo-nesa no Brasil, que eu estava repre-sentando. Segundo a ótica deles,eles só sobreviveram a esse períododo pós-guerra graças à contribuiçãovinda do Brasil, que tinha o propó-sito de acabar com o conflito [entrekatigumis e makegumis], ou seja, detrazer a paz”, finaliza.

    SIMILARES SE ATRAEM Data de 16 deabril de 1959 a carta que Yukawaenviou a César Lattes, propondo-lhe a formação da CBJ. Mas a afi-nidade científica que uniu os pes-quisadores decorre de encontrosanteriores: o brasileiro foi um dosque, em 1947, observou empirica-mente a partícula atômica méson-pi, cuja existência já tinha sidoproposta teoricamente cerca deuma década antes por Yukawa, fa-to que propiciou a conquista doNobel pelo pesquisador japonês.

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    Embora o átomo seja neutro, é com-posto por partículas que têm cargaelétrica: prótons positivos e elétronsnegativos. Intrigava os pesquisado-res o fato dos prótons, apesar de to-dos positivos, ficarem unidos no nú-cleo atômico, quando deviam se re-pelir, já que pelas leis da física “osopostos se atraem e os similares se re-pelem”. “Alguma coisa tem que se-gurá-los; tem que ter uma cola. E es-ta cola é o méson, que é liberadocom uma ‘pancada’”, explica Shibu-ya, um dos sucessores de Lattes naCBJ. Os raios cósmicos, partículasde altas energias que chegam de to-das as regiões do céu, são responsá-veis pelo choque que libera a energiaque une as partículas positivas.A CBJ deu novo ímpeto às pesqui-sas sobre raios cósmicos e à física daspartículas elementares. Em 1962,foi feito o primeiro experimento dacolaboração, no Monte Chacaltaya,na Bolívia. Os experimentos de co-lisão e liberação de mésons tiveramcontinuidade próspera com a CBJ.Uma de suas principais descobertasé chamada “centauro”, fenômenode produção de multipartículascom características não encontra-das na produção de multipartículasem acelerados sintéticos. Fruto daCBJ, pesquisas recentes sobre o cen-tauro aguardam confirmação doCentro Europeu de Pesquisas Nu-cleares (Cern), em Genebra, Suíça.

    Carolina Raquel Justo

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